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O PODER DA HONRA

A CORAGEM
Livro 2

William R. Silva

1ª Edição

Porto Alegre

2016

Senda Literária
Copyright © William R. Silva 2016

Capa Denis Lenzi


Projeto Gráfico e Diagramação giselle Jacques
Impressão de Miolo e Capa Letras e Versos

Todos os direitos reservados e protegidos, de acordo com a


Lei 9.610 de 19/02/1998.

Impresso no Brasil.

Dados Internacionais de Catalogação da Publicação (CIP)

S853 p Silva, William R.


O Poder Da Honra - A Redenção / William R. Silva – 1. ed. –
Porto Alegre : Escândalo, 2014.
328 p. ; 23 cm.

ISBN 978-85-65319-29-4

1. Literatura brasileira - Romance. I. Título.

CDU 869.0(81)-31
CDD 869.3

Índice para catálogo sistemático:


1. Literatura brasileira : Romance 869.0(81)-31

“TODA A HISTÓRIA SE BASEIA EM ACONTECIMENTOS E


PERSONAGENS FICTÍCIOS”

Senda Literária é parte integrante do selo

Editora Escândalo
www.editoraescandalo.com.BR

Rua Coronel Genuíno 342 / 1004


Porto Alegre – RS – Brasil
“Quem muito se preocupa em se vingar
daqueles que lhe fizeram mal, acaba se trans-
formando num ser tão cruel quanto eles. De
vítima, passará a algoz.”

William R. Silva
I

A DESPEDIDA

MÁSCARAS

Lembranças de Dionísio

6 de janeiro de 2013.

“Belo Horizonte, 16 de Maio de 2004

Ana Júlia, desde a primeira vez que vi você, senti uma coisa especial dentro de mim, um
amor muito forte e diferente, algo que não posso nem explicar. Você, para mim, é como um anjo,
uma estrela que brilha no céu e desejo muito que você seja feliz, do fundo do meu coração. Durante
todos esses meses que estudamos juntos, confesso que não consegui parar de te olhar.
A Coragem

Em todos os minutos, em todas as horas, em todos os dias eu parava para reparar em você,
nos seus olhos que são da cor do verde da natureza, sua pela tão branca como a neve e seu jeito
de ser, uma meiguice que não dá para comparar. Sempre gostei de você, mas nunca tive coragem
de me aproximar. Só que, no dia em que fizemos o trabalho de história juntos, entendi que a gente
poderia tentar se conhecer melhor. Você é uma menina muito interessante, a mais linda do colégio,
a mais educada, a melhor. Eu amo você! Gostaria muito de poder te conhecer melhor. Seria eu
capaz de merecer essa chance?

Do seu admirador, Dionísio Augusto.”

O garoto obeso ergueu a carta e a contemplou por alguns segundos. Um sorriso inocente
escapou-lhe dos lábios. Respirou fundo, fechou os olhos e pensou no formoso rosto da jovem
estudante. Sentiu um ar de esperança ser suavemente liberado pelos pulmões, provocando uma
estonteante sensação de prazer. Em seus pensamentos, tenta representar o sorriso admirável e
cativante de Ana Júlia ao ler a declaração que elaborou para ela.
Ele colocou tanto amor no processo de escrita da carta que mal se aguentava de expectati-
va. Sonhava com a reação de alegria da estudante ao recebê-la. Se pudesse, iria naquela mesma
hora levar o precioso pedaço de papel a linda jovem.
Leu o texto pela derradeira vez. Depois, diz a si mesmo com um brilho no olhar:
– Pronto, assim está ótimo! – sua face se iluminou.
O adolescente vasculhou seu quarto com os olhos e assustou-se com toda a desordem. Li-
vros sobre o tapete, restos de alimentos e uma infinidade de bagunça em volta da cama. Deslizou
a mão sobre a testa, afastou a franja para trás.
– Que porqueira que está esse lugar, nem sei mais qual foi a última vez que arrumei essa
zona – murmurou baixinho.
Foi até a mesinha do lado da cama. Pegou um envelope que havia sobre ela. Entristeceu-
se ao ver suas inchadas bochechas refletidas na superfície polida do móvel. Acariciando seu ros-
to arredondado, transformou o seu momento de satisfação, após confrontar-se com sua imagem,
em sentimentos de inferioridade e insegurança.
Em razão disso, o menino depressivo ficou bastante receoso em relação ao que estava a fazer.
– Será que ela vai gostar de mim de verdade? Não sou tão bonito como os famosos da
escola. Será mesmo que ela vai me amar do jeito que eu gosto dela? –questionou-se aflito.
Continuou a reparar em seu rosto na fachada transparente da pequena mesa. A tristeza era
visível em seu semblante.

– Dionísio! Dionísio... – chamou seu pai. Átila o notou distraído, então gritou – Dionísio!
A figura outrora dispersa o encarou subitamente. Nélson lançou um travesseiro na direção
do filho. A almofada voou e o acertou em cheio. Segurando um balde preto e um pano, Dionísio
recuou, seus olhos escancaram imprimindo um misto de divertimento e susto. Há mais de meia
hora fazia faxina em seu quarto, perdido em seu mundo de lembranças. Aquela interrupção o
trouxe bruscamente para a realidade.
Átila passou vagarosamente o dedo indicador sobre a estante de livros. Levantou o dedo
sujo diante de seus olhos e estudou a poeira.

6
William R. Silva

– Esse quarto está a mais de oito meses sem uma boa faxina, você demorou muito para
limpar essa pocilga. Até retirar todos esses resíduos e deixar isso em ordem, vai demandar um
bom tempo.
Dionísio nada declarou, apenas anuiu com a cabeça.
– E as novidades? Esse é o seu último ano de curso, não é? – o homem ajeitou a gravata
– Como o tempo passa rápido! Parece que começou o curso ontem – suspirou. – Estou muito
satisfeito! – o seu orgulho era notável através do timbre de sua voz. Nélson Átila sentia que, com
êxito, finalmente completava sua missão.
O filho o encarou com uma expressão de desinteresse.
– Meu professor da faculdade disse que sou um dos melhores da turma – contou ele, es-
fregando o pano sobre uma das portas do seu guarda-roupas. Falou sem um pingo de vigor nas
palavras, como se aquela confissão fosse algo constrangedor.
Uma ruga de dúvida se formou nas sobrancelhas de Átila. Julgava aquela declaração algo
bom, não compreendia o porquê do herdeiro não apresentar entusiasmo algum com a revelação.
– Você recebeu um elogio e está triste? – quis saber Átila, incisivo – Não entendi.
Apenas o barulho da água se espalhando foi ouvido no cômodo conforme Dionísio movia
o recipiente. Trocou o balde de lugar e o descansou no piso. Assim que adicionou mais um
pouco de detergente, afogou o pano na água espumada e o chacoalhou até que o tecido ficasse
totalmente encharcado. Por alguns segundos, continuou a esfregar o pano úmido na porta empo-
eirada do guarda-roupas. Retornou o tecido ao balde.
– Ele me disse que vai me indicar a uma vaga de pós-graduação para o ano que vem– suas
sobrancelhas franziram. – Assim que me formar, irei concluir meus estudos numa das melhores ins-
tituições de ensino de Belo Horizonte, ou melhor, uma das mais conceituadas do Brasil – esclareceu
ele, trazendo o pano ensopado de volta e, em seguida, esfregando-o sobre a outra porta do móvel.
Seu pai reparou na camada úmida que se formou sobre o pedaço retangular de madeira.
Dionísio prosseguiu a tarefa, silencioso.
– Ótimo! – Átila regozijou ainda mais – Vai te servir como uma luva, pelo menos com
moradia você não vai precisar se preocupar, tem a casa da sua mãe. Não queria você longe, pois
me ajuda muito aqui e tinha muitos planos para você, mas não posso travar seu destino. Tem
meu total apoio!
Terminado o processo, Dionísio, agora com outro pano seco, esfregou o tecido no móvel
até deixá-lo perfeitamente polido. Mostrou-se satisfeito ao constatar que o mesmo estava relu-
zente com a luz do sol. A mesma que entrava pela janela e iluminava seu quarto.
– Mas continuo sem entender o porquê da sua falta de entusiasmo. Acredito que a maioria
dos alunos sonha com essa chance e me parece que você não se agradou com a indicação. Por
quê? – Nélson insistiu, reparando no rapaz cuja metade da face era iluminada pelos raios solares.
O quadro com a foto da formatura colegial é desgrudado da parede.
– Fico feliz por provavelmente poder voltar a ver minha mãe e a Kamille – Dionísio
começou a remover a poeira acumulada no vidro de proteção da imagem. – Principalmente a
minha princesinha – sentiu uma carga de afeição envolvê-lo quando comentou sobre a irmã –,
ela deve ter crescido bastante. Mas aquela cidade... – fez uma pausa, angustiado – não me traz
boas lembranças.
Tornou a fixar o quadro no lugar de origem. Com os dedos, Dionísio contornou a foto-

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A Coragem

grafia da irmã posicionada no canto esquerdo. Ele ficou pensativo analisando a imagem da linda
garotinha. Seus olhos brilhantes e seu curto cabelo loiro alcançando-lhe os ombros davam à
menina uma aparência angelical. Sem desgrudar a visão da face da criança, escorregou a palma
da mão sobre a mesa ao seu lado. Tateou o móvel até sentir a flanela, puxou-a e se pôs a esfregar
o quadro empoeirado até tornar o rosto de Kamille, que já era bonito, ainda mais encantador.
Átila, cuja porção de seus cabelos lhe tapava parte do olho direito, disparou um ruído
hilário por entre os lábios.
– Finalmente resolveu retirar a máscara! – caçoou.
Ele não conseguiu traduzir o que o pai queria lhe dizer com aquela revelação. Esquecendo-se
do sorriso congelado da irmã, deu meio giro e se empreitou a encarar o sujeito de cabelos longos.
– Como assim? – inquiriu ele – Poderia me explicar isso melhor?
O homem mais velho interrompeu por alguns segundos o diálogo. Foi em direção ao
quadro com a foto da menina e o retirou da parede. Com um brilho de felicidade incomum nos
olhos, observou os traços de Kamille. Depois, encarou o rapaz e lhe entregou o objeto. Ele o
recebeu, sem entender ao certo o que o genitor pretendia.
– Está vendo o rosto dela? – seu pai o instigou.
Dionísio tornou a apreciar o retrato da criança.
– Sim – respondeu, desprovido de discernimento. Quanto mais reparava a fisionomia
pueril da moldura, maior era a saudade que sentia.
– Repare bem na luz dos olhos dela! Tudo nela é verdadeiro, é real, é exatamente ela.
Aí está toda a decodificação do seu interior– argumentou Átila. – Ela é a Kamille Menezes, é
a mesma em todos os lugares, com todas as pessoas e em todas as situações. Seja com quem
for, independente da classe social, do credo, da cor e da orientação de cada um, agirá sempre
da mesma forma. Ela não irá alterar sua personalidade em hipótese alguma para agradar os
outros por interesses particulares, para se beneficiar da situação ou para ser aceita. Ela é um ser
original, sem qualquer preconceito, é a mesma menininha que veio aqui algumas vezes brincar
com você, derrubar meus móveis, fazer bagunça e deixar essa casa monótona e silenciosa, feliz
e divertida, tirando-nos do tédio.
O estado de surpresa fez as sobrancelhas de Dionísio se arquearem.
– Pensei que se irritava com a presença dela – retirou os olhos da foto e encarou o homem
mais velho. – Não sabia que tinha tanta afeição por ela assim.
– Que criança nesse mundo não irrita? – Nélson notou que as pálpebras do interlocutor
estavam segurando lágrimas – Todas são assim, isso não é motivo para odiá-las.
O homem mais moço sorriu para o pai. Eram raras as vezes em que vira Átila expor certos
sentimentos de afeição. Seu companheiro de morada mais parecia uma caixa de mistérios. Anos
se passaram e Dionísio ainda tinha a sensação de que não o conhecera o bastante.
– Muitos dos adultos não são como ela. O tempo todo costumam usar máscaras...– o
orador continuou – Máscaras para esconder seus medos, suas tristezas, seus fracassos, para
transparecer uma vida que não têm. Veja só aqui no bairro, temos bons exemplos disso, casais se
endividando para pagar carros de luxo, roupas caras e queimando todo o orçamento sem neces-
sidade com centenas de besteiras para chamar atenção de pessoas inúteis e hipócritas como eles.
E não é nem preciso ser fuxiqueiro para saber disso, os fatos são tão óbvios que até os cachorros
vadios que rondam a pracinha sabem como as coisas funcionam aqui nas redondezas.

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William R. Silva

– Acho que estou entendendo – Dionísio acrescentou –, é mais ou menos como nas redes
sociais. As pessoas se mostram felizes, bem sucedidas, com bens materiais, mulheres exibindo
seus corpos como se fossem um artigo de luxo a serem leiloados, gastos excessivos e uma ótima
vida sentimental, quando, na verdade, são indivíduos pobres de espírito. Como se todo aquele
teatro não fosse somente para convencer os outros, mas principalmente eles mesmos de que suas
vidas medíocres estão bem resolvidas.
– Exato! – Átila deu meio sorriso– Quanto mais as pessoas tentam se mostrar ricas, po-
derosas e bem sucedidas, mais descontroladas financeiramente, mais fracas e menos felizes elas
são. Redes sociais podem, sim, potencializar sua projeção social, mas não sua realidade interior,
essa sempre irá invadir sua consciência e irá perturbar-lhe o sono durante as noites – volveu ele,
coçando seu fino bigode.
Dionísio, sentado, prestando atenção nas palavras de seu genitor, reflete sobre o discurso.
– Você afirmou que eu usava máscara – o jovem tornou a conversar. – Por quê?
Arrastando a cadeira giratória de perto da escrivaninha e a trazendo para perto de si, Átila
se assenta. Mirou o rapaz e respondeu:
– Existem pessoas tristes que, o tempo todo, fazem piadas e se mostram alegres. Há ho-
mens fracos emocionalmente que compensam essa fraqueza com agressividade física, mostran-
do-se durões, maldosos e ignorantes com as pessoas e situações complicadas do dia a dia. Há
mulheres lindas, com boas medidas e bem arrumadas, que se sentem gordas e feias. Geralmente,
a máscara é o contrário do que cada um aparenta ser. Aquele que ostenta é o mais pobre, aquele
que humilha e o que mais se sente humilhado, quem mais se vê injustiçado é que mais comete
injustiças, o invejado é o mais invejoso, e assim vai, progressivamente – discorreu Átila, movi-
mentando a cadeira com os pés.
Dionísio sentiu a mão direita de seu pai cair-lhe por cima do ombro. Nélson, exalando
uma invejável confiança interior, continuou a falar:
– Você quis se tornar um garoto popular, impenetrável, incapaz de sentir fraquezas, festei-
ro, cheio de amigos da classe alta. Se relacionando com várias garotas, gastando rios de dinheiro
com badalações inúteis e adornos para se mostrar para os outros. Mas, em seu íntimo, não era
isso que queria. Tudo o que vivenciou, não foi nada mais que um disfarce que criou para não ter
que confrontar suas aflições. Um modo covarde e destrutivo de fugir da dor. Quem age assim,
na verdade, não evita de sofrer e, sim, adia o sofrimento, que com o tempo irá acometê-lo com
muito mais intensidade.
– E por que usamos máscaras? – perguntou Dionísio, bastante atento.
Átila deslizou os dedos sobre a barba rala.
– Como forma de proteção, para proteger a nós mesmos da verdade. Todos dizem gostar
de pessoas sinceras, mas isso não passa de conversa fiada, tente ser verdadeiro com as pessoas e
elas, minutos depois, te crucificarão. Se tornará o mais odioso dos homens. Poucos suportam a
realidade, por isso criam esses mecanismos para terem tais lampejos de felicidade.
O jovem sorriu e balançou a cabeça, aprovando o orador. O homem de terno se ergueu da
cadeira e levantou o braço para checar o horário no relógio preso ao pulso.
– Bem... – disse Átila – Creio que já é hora de me retirar. Tenho uma reunião daqui a quarenta
minutos – deus três leves tapas nas costas do filho e se virou. Andou até a porta do quarto e saiu.
Dionísio deixou a moldura de lado e se esparramou no colchão.

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A Coragem

– Não tenho como ir contra meu próprio destino – puxou uma quantidade suficiente de
ar e o liberou suavemente. O suspiro lhe trouxe à tona vários sentimentos escondidos – Ano
que vem eu volto para a capital. Parece muito, mas o tempo passa rápido – se virou e deitou de
costas, com a cara esbaforindo no travesseiro.

NARCISISMO

Belo Horizonte -MG

2 de Janeiro de 2013.

O espelho colado à cômoda era bem maior que a estatura da charmosa mulher diante dele.
Ela não consegue se conter, contemplar a si mesma é uma das suas manias preferidas. Comple-
tamente perdida na imensidão esverdeada dos próprios olhos, Ana Júlia Bittencourt se sentia
presa a sua imagem refletida. Nada que surpreendesse, sua beleza era acima da média. O auge
de sua juventude ainda era notável. Enquanto idolatrava a si própria, seus dedos suavemente
escorregavam por sua macia face rosada. O formato de suas sobrancelhas trazia uma mensagem
enigmática, um misto de maldade e inocência. Seus incontáveis fios dourados possuíam um
esplendoroso brilho, cujas raízes surgiam num tom fracamente escuro e, na medida em que se
alongavam até centímetros abaixo do pescoço, assumiam uma coloração mais amarelada. Uma
cor tão rica em sua tonalidade que realmente lembravam fios de ouro.
Neste instante, sentia como se o mundo girasse em torno dos seus calcanhares. Quer se
despir e fará isso sem pudor algum, visto que a janela do seu quarto está fechada. Almeja apre-
ciar cada detalhe de si mesma. Manter seu rosto angelical, ver silhuetas sempre bem modeladas,
para ela era o que mais importava. Era o momento em que podia notar que todos os seus sacrifí-
cios valeram a pena. Horas de dedicação na academia, uma dieta balanceada, as melhores dicas
de moda, fortunas gastas em ambientes de estética e beleza, roupas das melhores marcas. Ana,
desde a adolescência, nunca poupou esforços para manter o seu poder atrativo o mais encantador
possível. Esses são os combustíveis principais de sua autoestima.
Ela sorriu para si mesma e suspirou feliz. O ar fugiu com tanta voracidade de seus pul-
mões que ela se sentiu embebida de prazer. Suas mãos se dirigem a suas peças de vestuário, não
desejou tirá-las todas de uma vez. Aos poucos, foi se despindo. De início, desabotoando a calça
e puxando o zíper, desceu calmamente o jeans, deixando suas lisas coxas à mostra. Usava uma
calcinha de renda vermelha. Depois, tocando prazerosamente a bainha de sua blusa branca com
listras pretas e de manga curta, encolheu os braços e a puxou com calma para cima até chegar a

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William R. Silva

seu pescoço. Atrapalhou seus loiros fios de cabelos quando foi retirada. Ela arremessou a roupa
sobre a cama. Olhou para a própria silhueta e deu meio sorriso.
Compenetrada em sua tarefa, tornou a se encarar e arrancou suas peças íntimas. Estava
nua. Ana Júlia prendeu o cabelo com um grampo. Com apenas o cordão de prata no pescoço,
exibiu seus empinados seios e toda a sua graça natural de mulher.
Cessando o ritual, começou a circular todo o lugar com a visão, ficando assim a contem-
plar os móveis de seu quarto: seu computador na escrivaninha, o grande guarda-roupa branco,
a humilde prateleira de seus livros preferidos de romance, sua cama forrada com um limpo e
perfumado lençol. Acima da cama, uma estante posicionada na parede servia de lar para uma
grande quantidade de ursos, bonecas e uma variedade de brinquedos infantis. Objetos esses que
lhe trazem boas lembranças de sua infância. Não pretende se desfazer desses pertences enquanto
estiver viva.
Desse modo ficou ela por alguns segundos, até voltar sua atenção para o criado mudo,
com suas gavetas e seu primoroso espelho. Acariciou-se a face e descalçou suas sandálias. O
cordão foi desprendido e ela o arremessou para trás, fazendo o objetivo valioso cair exatamente
em cima de sua blusa listrada.
Iniciou seus passos devagar por entre o cômodo. Sentindo a sensação gelada do piso de
azulejo em contato com seus pés, adentrou no banheiro. Deparou-se outra vez com o espelho
que estava por cima da pia. Ela, sem pressa, agarrou o puxador do armário e abriu uma de suas
portas. Apertou a embalagem de shampoo e, esquecendo a porta do móvel aberta, seguiu até a
banheira de espuma, que já estava totalmente cheia.
Sua boca se escancarou num sorriso de satisfação. Enfiou as mãos na água espumada, per-
cebeu uma quentura agradável arrepiar-lhe a pele. Posteriormente, colocou primeiro suas pernas
dentro da banheira, depois todo o corpo. Adentrando sutilmente, sentiu a gostosa sensação da
água morna a envolver-lhe. Abriu o shampoo e jogou seu conteúdo ao redor da superfície espu-
mada. Observou por alguns instantes, o fluido pastoso escorregar da boca do frasco.
Remexendo o fluido espumoso, colocou-se a brincar feito uma criança entretida, pegando
a espuma com as mãos, soprando-a e prestando atenção nas bolinhas brancas e deformadas a
voarem pelo banheiro e caírem sobre o piso. Mergulhou até a base e molhou seus cabelos que
se encontravam presos. Ficou um tempo submersa. Subiu à superfície segundos depois. Limpou
os resíduos de espuma dos olhos. Assim permaneceu a mulher de cabelos dourados por mais de
vinte minutos até se cansar do período de relaxamento, levantar-se e refazer o trajeto seguindo
ao quarto. Apanhou a toalha.
Ana se enxugou e parou defronte ao seu guarda-roupa. Indecisa, dedicou-se a escolher
qual a melhor indumentária para vestir e se aprontar para mais um dia de malhação. Estudou
seu repertório. Vestiu uma calça preta legging, colocou uma regata branca e enfiou os tênis nos
pés. Ela puxou uma das gavetas, apanhou suas luvas de academia, mas não chegou a pôr em
suas mãos, pois no momento em que iria usá-las, foi interrompida pelo barulho do seu telefone
celular. O telefone móvel tocava de forma agitada, o impacto da música alta o fazia chacoalhar
ao lado do mouse do computador.
Na curiosidade de saber de quem se tratava, segurou o aparelho e reparou na tela. Conten-
te, notou que era o nome da amiga que aparecia na identificação. Levou o aparelho até o ouvido.
– Oi, Maria! Estou com saudades de você, faz um tempão que não me liga. O aconteceu

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A Coragem

com você? – atendeu, com a cabeça pressionada sobre o ombro afim de prender o telefone móvel
sem utilizar os dedos.
Uma risada feminina soou através do fone.
– Estava meio ocupada esses dias – a moça na linha esclareceu. – Muito trabalho da facul-
dade. Vi algumas ligações suas aqui, é que eu desliguei meu celular para poder estudar melhor.
– Queria te chamar para sair, ir ao shopping sei lá... – Ana Júlia abriu uma gaveta do
guarda-roupa e começou a procurar seu cartão de acesso. O mesmo necessário para entrar na
academia de ginástica que frequenta – Você é estranha, quase não sai de casa... Deveria apro-
veitar mais sua juventude, sabia? Você é só casa, igreja, estudos. Isso não é vida, amore! – não
encontrou o que queria, empurrou a gaveta de volta.
– Você com essa conversa de novo? – a voz no fone pareceu fatigada – Sabe que sou feliz assim,
do jeito que eu sou.
– Está bem... está bem, Maria! – suspirou. Ela foi até a escrivaninha e abriu sua gaveta – Não
vamos mais falar sobre isso. Mas vê se aparece aqui em casa hoje, sabe que te amo como uma irmã, a
irmãzinha que nunca tive. Desde quando éramos bem crianças sempre te disse isso. Sinto falta das nossas
conversas – um sorriso infantil se desenhou nos lábios de Ana enquanto ela procurava o seu pertence.
– Tudo bem, maninha do meu coração! – o timbre que ecoava do fone agora era mais amável e
alegre – Hoje à noite, sem falta, apareço por aí. Pode ser?
– Ótimo! – Ana viu que o objeto de plástico não estava no compartimento da escrivaninha – Esta-
rei te aguardando, Mari linda! – riu – Beijo pra ti!
A mulher na linha retribuiu a risada.
– Tchau, loira maluca! Até mais tarde – a ligação foi encerrada.
– Onde será que foi parar essa merda desse cartão? – ela arremessou o celular na cama e continua
sua busca. Notou sua agenda por cima da estante e a puxou, o cartão magnético estava por baixo dela –
Que bom, achei!
Com as luvas postas por entre os dedos, saiu do quarto. Seguiu o longo corredor, atravessou a sala
e alcançou a porta da cozinha. Seus pais lanchavam na mesa enquanto conversavam sobre algum assunto
qualquer. Ela entrou e foi em direção ao casal.
– Oi, paizinho – beijou-lhe a testa. – Oi, mami! – fez o mesmo com a mulher.
Sua mãe mordiscou uma fatia de torrada e a encarou.
– Não te vi a manhã inteira. O que houve, meu anjo?
Ana Júlia esticou o braço e sacou uma caixa de cereais do armário. Então, derramou um pouco do
alimento numa tigela rasa de porcelana.
– Fui dar uma volta – segurou a caixa de leite e despejou um bocado por cima do prato com cereais.
Assentou-se à mesa, adicionou açúcar na porção e misturou tudo usando uma colher.
– Muito bom, minha linda! – o senhor concordou – Tem que se distrair mesmo.
A moça levou uma colherada de cereais à boca e mastigou por alguns segundos. Engoliu o lanche
e se virou para o homem sentado ao lado.
– Pai! – Ana o invocou.
O homem tomou um gole de sua xícara de café e a fitou.
– O que foi? – retirou um guardanapo e limpou o canto dos lábios.
– Tenho uma coisa para te contar! – ela piscou os olhos para sua mãe. A mulher sacudiu
a cabeça. Ana picou uma banana com uma faca de cabo de plástico e jogou os pedaços junto

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William R. Silva

com três morangos para dentro do cereal.


– Fale! – ele a incentivou.
Ana comeu mais um pouco da mistura e mirou o homem. O sorriso que despontou em seus lábios
se equiparou ao de uma criança que acabara de praticar um ato de travessura. Sabia que o que tinha para
dizer iria desencadear algum sentimento de descontentamento em seu pai. Por isso, respirou fundo antes
de soltar a bomba.
– Eu tranquei minha matrícula na faculdade! – baixou os olhos, esperando a rajada de reações
nervosas serem disparadas – Não quero mais fazer curso de moda.
Sua mãe já estava ciente da notícia, mas para seu marido, realmente fora como uma bomba.
– Outra vez? – o tom de voz dele aumentou ensurdecedoramente – Essa é a terceira faculdade que
faz e desiste! O que você pretende da vida, menina? – Ana sentiu gotas de saliva nos braços quando seu
pai cuspiu as palavras em tom de ira.
– Precisa gritar assim? – a esposa o rebateu, irritada.
– Mas, Berenice – ele encarou a conjugue –, por acaso pensam que dinheiro nasce em árvore?
Sua esposa franziu a testa para ele.
– Eu sei, Adalberto... – volveu, desafiadora – Mas não precisa se exaltar assim. Coitada da menina.
Tenha paciência, ela ainda não se decidiu.
O homem sorveu todo o café de maneira agressiva.
– Largou o curso de direito, depois entrou no curso de psicologia e desistiu quatro meses depois.
Prestou o maldito vestibular para a faculdade de moda no começo do ano passado e agora está me dizendo
que não quer mais estudar? Tudo isso custou dinheiro. Assim fica complicado, sabia?
– Eu não quero mais estudar e pronto! – com rebeldia, Ana soltou a colher na tigela. Leite res-
pingou no forro da mesa. Ela se retirou da mesa, pegou sua garrafa térmica e deu as costas – Vou para a
academia. Adeus! – disse emburrada e marchou em direção à saída da casa.
– Viu o que você fez? – Berenice o fitou, descontente – Deixou ela chateada.
Adalberto arrastou a cadeira e se levantou bruscamente.
– Já passou da hora de ensinar nossa filha a ter responsabilidade – ele revidou – Sempre demos
tudo o que ela queria e acho que a estragamos por isso.
Viu que sua esposa o ignorou, então saiu da cozinha, bufando de raiva.

VIDA DE PLAYBOY

Fileiras de grandes coqueiros, tanto no lado esquerdo quanto no direto, margeavam o trecho
de entrada da mansão. A arquitetura da propriedade era composta por três sacadas, cada uma delas
com formas singulares, permitindo que a claridade solar adentre em cada uma das acomodações
através de suas grandes janelas. Tamanha era a residência, que nem mesmo os próprios moradores

13
A Coragem

seriam capazes de precisar a quantidade exata de seus quartos. Mas, provavelmente, deixariam muito
dos indigentes da cidade com um confortável colchão para dormir se os mesmos quartos lhes fossem
oferecidos. Em sua entrada principal, duas estátuas com formas humanas pareciam dar boas-vindas
a todos que ali chegassem. Ambas eram de mármore e se assemelhavam a esculturas gregas, usando
meias vestes como a dos deuses do Olimpo. Cada qual, com suas mãos e cabeça esticadas para cima
simulando saudar uma entidade superior qualquer. A longa varanda mais parecia um camarote Vip
de algum evento musical. No andar debaixo, pela vidraça transpareciam os móveis e adornos colo-
cados em vários cantos da grande sala, enquanto os outros cômodos possuíam meias paredes brancas
em cujas janelas alcançavam o teto. A grama ao redor era tão verde e bem aparada que quase supe-
rava a de um campo de futebol. Quatro pequenos pinheiros enfeitavam os três minúsculos degraus
necessários para que se pudesse alcançar o piso da grande copa. Mas, a fachada do bonito jardim
que era visto de longe, guardava muito mais que duas dúzias deles. Rodeando o imenso muro, avis-
ta-se uma pequena via que desce em sentido à garagem e, bem ao lado dela, estava a área de lazer.
Lá, havia uma piscina, cujos dois chafarizes situados no centro da superfície aquática, cuspiam em
movimentos giratórios jatos de água para cima. Era neste local que o filho de um dos homens mais
influentes da cidade promovia mais uma de suas costumeiras esbórnias.
Um grupo de jovens nadava e se divertia em meio à água que corria abundantemente.
Em torno da piscina, espreguiçadeiras eram ocupadas por lindas garotas de biquíni. Sobre uma
mesa, repousava um balde abastecido com duas garrafas de champagne flutuando sobre vários
cubos de gelo. A enorme soleira protegia tudo dos potentes raios solares. O BMW, que pertence
ao organizador da festa, entoava, em alto som, batidas de músicas agitadas.
Seis moças e cinco rapazes, alguns segurando taças cheias e aparentemente embriagados,
dançavam na mesma intensidade que a vibração dos alto-falantes do automóvel. As caixas tre-
miam com vigor a cada mixagem.
Despertando atenção das formosas garotas à beira da piscina, surge por entre a porta dos
fundos, Roberto Tavares. O homem, com seus cabelos molhados penteados para trás e um sem-
blante sério, exalava prepotência. Com seu corpo de fisiculturista, coberto pela toalha de banho
enrolando-lhe o quadril e parte das pernas, saiu a perambular pelo local. Era o comandante da
farra, um dos futuros herdeiros da mansão, algo que, naquela ocasião, o transformava em centro
das atenções. Não se incomodava. No fundo, amava tudo isso.
Ele interrompeu seus passos e cumprimentou três dos seus amigos. A turma de baladeiros
estava entretida, bebia seus drinks e conversava entre si. Continuando a caminhar, desviou-se de
um garçom que carregava uma bandeja com cervejas importadas, vinho e alguns copos e prosse-
guiu seu percurso. Deu amigáveis tapas nas costas de alguns convidados. O homem se achegou
mais às garotas perto do balde de champagne e beijou a cada uma nos lábios.
Cessando suas saudações, o anfitrião parou diante da piscina, soltou a toalha e a atirou no
chão de porcelanato. Fez uma pausa para respirar fundo, tomou impulso e, num salto acrobático,
mergulhou fazendo respingar água pelo ar. Submerso, percorreu a piscina movendo pés e mãos
até conseguir atingir sua outra extremidade. Levantou-se escorrendo água pelo piso. Ele pegou
uma toalha e se enxugou.
Indo em direção à mesa, retirou uma das taças, afundou a mão no balde de gelo e sacou
uma das garrafas. Segurou a peça de vidro e a encheu. Ingeriu todo o conteúdo da taça. Alguns
dos baladeiros reparam numa menina emburrada que marchava em direção a Roberto, ele nem

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William R. Silva

a notou. A adolescente era dona de cabelos ruivos, lisos e longos, que lhe caíam sobre as sardas
em suas bochechas. Ela ainda não comemorou seus quatorze anos, mas em poucos meses, alcan-
çaria a referida idade. Trajava um vestido longo, azul florido.
A ruiva aproveitou que o barulho da música havia sido abaixado e gritou para o homem de costas.
– Vou contar para o papai que você está fazendo festa de novo!
Todos os presentes a olharam, curiosos. Roberto Tavares tomou mais um pouco da bebida espu-
mada e se virou. Com uma expressão de ira, dilacerou a menina com seus olhos de cão raivoso.
– Cale essa boca, Rosane! – rosnou – Volta para o seu quarto e vê se não fala merda!
Rosane empinou o nariz e apoiou as mãos na cintura.
– Eu vou contar! Você vai ver.
– Some daqui, sua pirralha! – esbravejou. Ele levantou o braço e apontou para a fachada
da casa – Desaparece!
Ela se mostrou emburrada, mas percebeu que persistir em desafiar o irmão seria perda de
tempo. Nervosa, saiu arfando.
– Parece que sua irmã quer tomar conta do pedaço – comentou uma das mulheres, timidamente.
Roberto mirou a convidada com um olhar frio e a deixou sem graça.
– Ela não é minha irmã – afirmou convicto. – Essa menina foi adotada.
A mulher estirada mordeu os lábios e se viu confusa. Não entendeu bem o que o homem
quis dizer. Uma irmã adotiva continuava sendo uma irmã, pelo menos ela pensava assim. Calou-
se, achou melhor não contrariar o dono da festa. Roberto se sentou ao lado dela e colocou-lhe a
mão direta sobre a coxa.
– Esquece aquela pirralha, minha linda! – sorriu e deslizou os dedos pela pele macia da
jovem– Vamos aproveitar a festa – ele se aproximou e a beijou com voracidade. Parecia não
haver mais ninguém por perto.
O garçom com a bandeja vazia, disparando reflexos solares por onde passava, serpenteou
em meio ao amontoado de pessoas, pisou na lateral da piscina e observou o casal se agarrando.
Pigarreou afim de chamar atenção. O ato surtiu efeito, pois Roberto imediatamente parou o que
estava fazendo, franziu o cenho e se virou para o serviçal.
– O que você quer? – indagou, segurando as coxas grossas da mulher – Fale!
O homem rodopiou a bandeja e respondeu:
– Tem um rapaz querendo lhe falar a sós, ele está na área da churrasqueira. O nome dele
é Paulo Munis. O que eu digo?
Roberto se levantou.
– Não diga nada. Eu irei até ele – apanhou o balde e o ergueu para o homem. – Quero
mais bebidas e faça-me o favor de encher isso de gelo – ordenou, como se estivesse a lidar com
um animal adestrado.
Sete minutos depois, Roberto já estava no espaço. A fumaça de carne assando na grelha
pairava de maneira agradável no ar e, no balcão, um amontoado de garrafas estava empilhado.
Rapazes se revezavam no espeto para arrancar fatias de carne enquanto alguns outros proseavam
e ingeriam bebidas alcoólicas. Nenhum deles interessava ao dono da casa, a não ser o homem
de terno que aguardava recostado na parede de adobe. Quando os olhos de Roberto se dirigiram
ao visitante, ele gargalhou.
– Não entendi nada! – riu mais alto – Domingo à tarde, te chamo para uma festa com a

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A Coragem

rapaziada e você vem de terno e gravata. Que droga é essa, cara? – zombou, abrindo os braços.
O homem moreno, com cabelo espetado e de óculos escuros, franziu as sobrancelhas para Ro-
berto. A conversa era de caráter particular, mas não se importou, visto que, com o barulho da música alta,
dificilmente alguém notaria o teor da conversa. Ele arrumou a gola do terno e encarou o amigo.
– Não vim aqui para participar dessa sua reunião de playboys beberrões e patricinhas pervertidas –
o tom de voz de Paulo Munis estava áspero – Tenho uma conferência daqui a duas horas. Apenas quero
te dar um recado importante.
Uma ruga de curiosidade surgiu na testa de Roberto.
– Tentei te ligar várias vezes – Paulo prosseguiu. – Mas, pelo visto, não estava com o celular por
perto. Como o assunto é de urgência e não dava para esperar a festa terminar, resolvi passar por aqui.
Roberto contraiu o rosto.
– Do que se trata?
O homem de terno deu quatro passos e parou ao seu lado.
– O João Sérgio saiu da cadeia. Prepare-se, depois do que lhe aconteceu, ele deve vir atrás de você
para tirar satisfação.
Roberto arqueou as sobrancelhas e emudeceu. Não fora acometido por nenhuma sensação de
medo, mas sabia que a notícia poderia lhe trazer problemas futuramente. Paulo se despediu e o deixou ali,
pensativo. Meio preocupado, Roberto agarrou uma garrafa de Red Label, colocou cubos de gelo num dos
copos de vidro no balcão e despejou o whisky dentro.
– Era só o que faltava! – disse, pressionado os lábios – Espero que ele não me cause problemas –
apreensivo, engoliu a bebida de uma só vez.

FACE MORENA

22 de Janeiro de 2013.

O cão pastor alemão farejou o ar e enxergou a sandália no chão da área de tanque. Cravou
as mandíbulas no salto da sandália. Tentou prendê-la em seus dentes, mas sem sucesso. Numa
segunda tentativa, mudou a sua posição e agarrou-lhe a alça. Conseguiu fixar a Melissa em sua
boca. Espichou as orelhas e avistou alguém assistindo televisão na sala, reparou desconfiado
para ver se tinha sido notado, a pessoa nem se moveu. De mansinho, seguiu para as passagens da
casa. Serpenteou entre os móveis e obstáculos e entrou num dos quartos. O animal parou e ficou
vigiando uma mulher de costas para ele. A moça, cujos longos cabelos ondulados tapando-lhe
parte de sua coluna, revirava impaciente o sapateiro a procura de algo.
– Meu Deus, onde foi parar o par dessa sandália? Que diacho! – ela resmungou assim que
desprendeu o último par e o lançou para fora.

16
William R. Silva

O cachorro se aproximou. Ela riu baixo quando sentiu o odor canino pairando no ar. Era
capaz de reconhecer seu bicho de estimação apenas pelo cheiro de tantas que foram as vezes
que o abraçou. A jovem de pele morena se virou bruscamente e pousou seus olhos castanhos
claros sobre animal. Seu rosto se encheu de alegria quando viu o que tanto procurava grudado
na boca do cachorro.
– Hércules, meu amor – sorriu. – Você encontrou?
O cachorro soltou a sandália. Ela se dirigiu até o pastor alemão e acariciou-lhe o pelo. Riu
alto por causa das cócegas que recebia da língua úmida em suas mãos.
– Maria do Rosário! – berrou uma voz produzindo um grave eco nas paredes da residên-
cia. As orelhas peludas voltaram a se levantar.
– O que foi, mãe? – reagiu ela.
– Tira esse animal imundo de dentro de casa! – ordenou num grito ainda mais alto, fazen-
do Hércules arrepiar os pelos – Quantas vezes tenho que te falar pra não deixar esse bicho entrar
aqui? – advertiu a mulher.
Maria deu três leves palmadas no dorso peludo.
– Sai daqui, Hércules! – falou, num tom amável – Anda logo, antes que minha mãe te dê
vassouradas. Vai, bebê, corre!
Ela o observou fugir do quarto e depois desviou o olhar para a sandália que estava com
a alça molhada. Deu uma ligeira gargalhada e pegou o calçado de plástico. Retirou um pano da
gaveta de seu guarda-roupa. Com um sorriso pueril, removeu a saliva da sandália. Assim que
colocou a Melissa em seus pés, sentou-se sobre a cama.
– Esse cachorro é um barato, parece até que ele lê meus pensamentos! – suspirou com os
olhos presos ao teto.
– Maria, venha aqui, por favor! – a voz de sua mãe outra vez tornou a ecoar.
Maria do Rosário se colocou de pé e foi para a sala. Notou que a mãe costurava alguns
botões numa camisa xadrez ao mesmo tempo em que assistia uma telenovela mexicana.
– O que foi, mãe?
Cessando sua tarefa por alguns segundos, a mulher se voltou para a filha.
– Estou meio ocupada aqui – as rugas de suas pálpebras engrossam ao mirar o semblante
triste da jovem – Vá até a cozinha e faça o café. Daqui a pouco, seu pai chega do trabalho e vai
querer um pouco. Ele sempre faz isso...
– Está bem... – Maria respondeu e deu as costas. Quando começou a andar, sua mãe a
invocou novamente:
– Filha!
Maria parou, girou no calcanhar e a encarou novamente. Não proferiu uma só palavra,
mas sua sobrancelha arqueou denotando curiosidade.
– Seu rosto – a mulher no sofá enfiou a agulha e puxou a linha que se enroscava no tecido
–, estou te achando meio triste. Você está aflita com alguma coisa, minha filha? – quis saber,
meio preocupada.
Os olhos de Maria assumiram um ar melancólico.
– Sei lá! – seu semblante se tornou ainda mais triste – Estou sentindo uma sensação estranha, um
vazio. Como se estivesse faltando alguma coisa, não sei explicar o que é, mas acho que é isso.
A mulher observou a beleza da filha. Tão bela e com uma vida inteira pela frente. Como

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A Coragem

é que uma pessoa dessa idade já sentia tais angústias? Estava bastante preocupada, problemas
existências como esse eram comuns no fim da vida, mas não com alguém tão jovem.
– Vamos orar um pouco mais. Deus vai acalmar seu coração, não se preocupe! – sua mãe
a tranquilizou e tornou a examinar a linha da agulha.
Maria sorriu timidamente e rumou para a cozinha. Começou a preparar o café. Encheu
o recipiente de água, adicionou a medida de açúcar e apertou o botão do fogão. Verificando a
fogo aceso, colocou a chaleira para ferver. Pensativa, ela contou as colheradas de pó e pôs uma
a uma no coador.
Sozinha à mesa, perdeu-se nas chamas que escapavam da trempe. Observou a flama azu-
lada enquanto se perdia em seus pensamentos.

Sentada na Varanda
(Dois dias antes)

Em frente à casa vizinha, um carro saía da garagem e ganhava o asfalto. Logo atrás, duas
mulheres tagarelavam distraídas. Um casal de adolescentes se beijava discreto debaixo de uma
árvore. Maria do Rosário observava tudo, apesar de pouco se importar com o que os outros
faziam ou deixavam de fazer. Ela sentia seus fios de cabelos se espalharem com a intensidade
do vento, conforme refletia sobre a vida e si mesma. Recostou-se na parede quando parou para
reparar nas samambaias dependuradas no muro.
Na rua, Ana Júlia caminhava em direção à casa de Maria do Rosário. Ela lançou um olhar
à amiga dispersa na varanda e correu para o portão sem que fosse notada. Lentamente, a moça
de cabelos dourados abriu a porta e entrou na moradia. Foi de mansinho e chegou por trás da
morena. Tapou os olhos de Maria do Rosário simulando um jogo de adivinhações.
– Adivinha quem é! – Ana Júlia brincou.
Maria apalpou dedos e braços da mulher. Sentiu alguns anéis e a pulseira no braço dela,
então, falou risonha:
– Com esse tanto de bijuterias e essa pulseira, só pode ser a Ana.
A loira retirou suas mãos da face da amiga.
– Posso saber porque minha irmãzinha estava tão pensativa? – ela a mirou nos olhos –
Será que está esperando o príncipe encantado aparecer no cavalo branco? Cavalo não, Deus me
livre! Num Camaro, uma Mercedes, é isso, assim é bem melhor – Ana desatou a rir.
– Não fala besteira, menina! – Maria a fitou com afeto– Nem sei que carros são esses, não
entendo nada disso, mal sei o meu.
Ana gargalhou.
– Perdão, amore! Foi só para descontrair mesmo – falou séria. – Sabe o que é, Mari? Estou
cansada de te ver enfurnada dentro de casa. Chega disso, menina! – as sobrancelhas de Ana Júlia
se arquearam – Hoje você vai em uma festa comigo. Vai estar cheio de caras legais lá. Quem
sabe você não conhece alguém especial. Já imaginou? E aí, vamos? – convidou, tocando nos
cabelos da morena.
– Não estou afim, não. Já disse que não gosto desse tipo de coisa– Maria recusou.

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William R. Silva

Um ar de descontentamento disparou quando Ana suspirou.


– Você está perdendo a melhor fase da sua vida, não consigo te entender, juro que não...
– insistiu, preocupada – Tem que aproveitar enquanto está nova e bonita, porque o tempo passa.
Sabia? Conheço um monte de rapazes que são doidos por você e nem se toca.
– Já disse que vou esperar o homem que Deus guardou pra mim...tudo tem seu tempo –
Maria do Rosário revidou, mirando a amiga de baixo para cima.
Ana segurou um riso no canto dos lábios.
– Tudo tem seu tempo!? – agora riu, ironicamente – Faz mais de cinco anos que está fa-
lando isso pra mim. Daqui a pouco vai estar velhinha, com a coluna envergada, segurando uma
muleta e dizendo: Vou esperar o homem certo, vou esperar o homem certo, o homem certo, o
amor... – zombou. Ana Júlia se entortou e tremelicou os quadris, simulando os movimentos de
uma pessoa de idade avançada. Seus risos se prolongaram.
Maria a fitou com repúdio.
– Posso saber qual é a graça?– o tom da pergunta soou estridente.
– Desculpa! – Ana umedeceu os lábios vermelhos e sorriu – É que isso não está certo.
Você não vive! – suspirou – Não sai, não se diverte, é de poucos amigos e quase sempre passa os
finais de semana em casa. Eu duvido que você seja feliz assim! – notou que a declaração magoou
a amiga internamente, mas Ana se via na obrigação de ser sincera.
Maria baixou os olhos e respirou fundo. Tudo o que a amiga dissera fazia sentido. Vários
anos correram desde que se envolveu afetivamente com um homem pela última vez. Sua única
experiência em relacionamentos foi demasiadamente frustrante. Nunca gostou de baladas e lo-
cais com alto fluxo de libertinagem. Os rapazes de sua igreja eram desinteressantes. Conhecer
alguém na situação em que vivia era quase impossível. Sabia que, como toda mulher, tinha suas
necessidades emocionais e precisava saciá-las.
– Eu quero o seu bem, não fica triste comigo, não! – Ana falou brandamente – Tudo o que
sonho é ter aquela menina corajosa capaz de enfrentar o mundo de volta. A que eu conheci anos
atrás – acariciou a face morena de Maria.
A jovem olhou Ana Júlia com afeição.

A água dentro da chaleira borbulhava com tanta intensidade que chegou a derramar parte
do líquido melado em cima do fogão. Bruscamente, Maria do Rosário recuperou a atenção e
correu apagar a chama.
Assim que começou a despejar a água quente no coador e percebeu o líquido preto se
formar e cair sobre a boca da cafeteira, viu o pai entrar e sorrir para ela. O homem austero tinha
a face arredondada e o cabelo grisalho. Características essas que sempre lhe conferiam respeito
mesmo que não dissesse uma única palavra.
– Senti o cheiro de café de longe. Tudo bem com você, minha filha? – perguntou o homem
ao beijar-lhe a testa. Sentou-se à mesa.
– Boa tarde, pai! – encheu uma das xícaras e entregou a ele – Aqui está o seu café
Ele se mostrou grato e, em seguida, tomou um gole do café.
– Seu irmão ligou? – indagou ele, chacoalhando vagarosamente a xícara, que exalava
bastante fumaça.
– Não, não ligou, não – volveu Maria enquanto enroscava a tampa na cafeteira.

19
A Coragem

– Será que ele vai ficar muito tempo no Rio? – ela se sentou junto ao pai – O Miguel me
disse que o curso seria rápido.
– Isso só Deus sabe, minha filha... só Deus sabe! – seu pai sussurrou.

O ASSALTO

Cinco minutos para as três. Os números no painel digital se destacavam ante o céu escuro,
podiam ser vistos a uma longa distância. Comércios e bancas de revistas com suas portas de aço
fechadas, prédios com as grades trancadas e nenhum porteiro de sentinela nas guaritas, ou pelo
menos não à vista. A avenida estava semideserta. Um ou outro andarilho se escondendo do frio
em seus cobertores maltrapilhos, luzes de postes iluminando o nada, poucos veículos surgiam
e desapareciam conforme avançavam pelo breu. Nem tudo na madrugada era sombrio, as árvo-
res que aperfeiçoavam a paisagem purificavam o ar, retirando muito do cheio de combustível
queimado, sujeira e outros resíduos urbanos que eram emitidos durante o dia. O condutor de um
Vectra 2.0 prata seguia cabreiro pela via, notou um veículo se aproximar como um raio e sumir
de suas vistas. Pronto, agora ele e seus passageiros estavam a sós na grande avenida. O Vectra
não podia causar suspeitas, precisava ser o mais ligeiro possível. Vagarosamente, o grupo foi se
aproximando e parou rente à fachada de uma agência bancária.
O motorista estacionou, levou o cigarro que segurava até a boca e deu uma tragada, es-
palhando fumaça pela janela. Seu rosto ficou parcialmente indistinguível devido à neblina de
nicotina que se espalhou no ar. Ele abanou a fumaça. Com seu rosto magro, cabeça desprovida
de cabelo e um olhar negro, encarou o outro no banco do carona.
– João Sérgio, você vai com o Deco dessa vez. Entendido? – o motorista atirou o cigarro
para fora. Um pequeno ponto laranja reluziu no asfalto – Eu e o Bola ficamos na retaguarda.
O rapaz baixou os olhos, tateou a mochila em seu colo e sentiu a rigidez das dinamites
que estavam no interior dela. João Sérgio calmamente levantou o rosto e o mirou com uma
confiança diabólica.
– Faça como quiser, Picolé – a arma em seu punho ficou ainda mais firme.
– E aqueles mendigos ali? – disse alguém no banco de trás – Será que eles não vão nos
atrapalhar?
Picolé se virou para a rua e viu dois indigentes do outro lado. Os miseráveis estavam
estirados sobre um papelão e cobertos por um manto velho. Garrafas de cachaça e latas vazias
estavam esparramadas em torno deles. Desviou o olhar para o retrovisor central e mirou o ho-
mem no banco traseiro.
– Está com medo, Deco?
– Claro que não, isso se chama precaução – o homem rosnou.

20
William R. Silva

– Em que eles iriam nos prejudicar? – Bola o questionou. Ele estava assentado bem atrás
de João Sergio – O máximo que eles poderiam fazer é nos espantar com o fedor que provavel-
mente exalariam caso estivessem próximos.
O grupo disparou a ri, menos Deco.
– Não é isso. Eles poderiam nos denunciar a alguém... – Deco se irou.
– Vão ficar batendo papo ou vamos resolver a parada logo? – vociferou Picolé com as
mãos sobre o volante.
João Sérgio sentiu sua pulsação aumentar, era hora de agir.
– Vamos lá! – ele gritou – É hora do Show! – com a mochila sobre as costas, deslizou a
mão por debaixo do assento e puxou um pé de cabra. Desconfiado, ele retirou uma touca ninja
estilo motoqueiro de dentro do porta-luvas e cobriu o rosto. Apenas seus olhos e sua boca fica-
ram visíveis através dos orifícios. Depois, abriu a porta e saiu. Caminhou até o acesso à agência
bancária fazendo o possível para esconder a ferramenta a qual empunhava. A emoção alucinante
do momento não o atrapalhava, a adrenalina que corria era ainda mais estimulante.
Deco, também com o rosto camuflado, saltou do carro e seguiu o comparsa. Seus olhos
atentos rolavam para todos os lados, ninguém à vista e os mendigos dormiam como pedra.
Sentindo seu coração palpitando, com o revólver em posição de ataque, ia arisco na contenção.
O homem armado escoltava João Sérgio no segundo em que Picolé e Bola, cujos revólveres
estavam erguidos, abriram suas portas e se posicionaram em lugares estratégicos.
O primeiro homem com força e destreza, fincou o pé de cabra no vão da porta automática
da sede bancária e a pressionou para fora. O esforço fez surgir uma fresta entre o trinco e o arco
da porta. Deco fechou um dos olhos e mirou o cano na brecha. O tiro de pistola arrebentou a
tranca e a porta de vidro se escancarou. O ruído de alarme perturbador começou a soar. Os men-
digos se assustaram e se moveram em seus dormitórios precários.
Agora era tudo ou nada, teriam que ser ágeis. Metade do grupo invadia a agência. Com
cuidado, João Sérgio sacou as quatro bananas de dinamites da bolsa e passou duas delas para o
cúmplice. Cada um dos explosivos foi colocado do lado de caixas eletrônicos. Ele e Deco, muni-
dos com isqueiros, acenderam os respectivos cordéis detonantes e correram para a rua. Os quatro
homens taparam as orelhas. Bastaram poucos segundos para que fosse ouvida uma sucessão de
estrondos ensurdecedores. O grupo se abaixou quando um clarão os atingiu em cheio, por sorte
nenhum fragmento os feriu. O baque de cada impacto fez parte da vidraça ser destruída, lançan-
do estilhaços de metal e vidro pelas paredes e o teto. Somando-se a todo esse prejuízo, peças
eletrônicas, pedaços de madeira, isopor, gesso e centenas de notas de cem, cinquenta, vinte e dez
reais voaram pelos ares, esparramam-se sobre o piso danificado.
A dupla de mendigos saltou apavorada, quase aos tropeços. Picolé e Bola riram quando
os viram em fuga. Eles apontavam a arma para todos os lados em estado de alerta, os outros
assaltantes retornaram para dentro da instituição. João Sérgio e seu parceiro, com os nervos
disparados, apanhavam todo o dinheiro e enfiavam dentro da bolsa. Um amontoado de maços e
notas amassadas tornou a mochila volumosa.
– Vamos embora, estão demorando demais! – a voz de Picolé berrou da rua – Daqui a
pouco, a polícia vai aparecer e a chapa vai esquentar, mais depressa...mais depressa...
Mais uma vez, cacos de vidro partiram do interior do recinto e foram parar na calçada,
mas isso não se ocasionou de uma nova explosão e sim do pontapé que João Sérgio dera na

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A Coragem

vidraça antes intacta, com pressa de sair. Deco também fez o mesmo.
Ele arremessou a mochila no banco de trás e pulou para dentro do Vectra. Picolé e Bola
retornaram aos assentos dianteiros. Bola foi o último a entrar. O motorista girou a chave, ligou o
carro e avançou velozmente pela avenida. Ignorou sinais de trânsito, faixa de pedestres e cortou
a via em linha reta.
Ainda insistindo em burlar as regras de trânsito, o carro prateado dobrou a esquerda e ace-
lerou. Clientes de uma pizzaria estranharam quando notaram o automóvel disparar. Nem sinal
da polícia. Assim, os bandidos se tranquilizaram.
– Conseguimos! – Deco comemorou – É isso aí, rapaziada!
Todos sorriram vitoriosos.
– Nitroglicerina e Nitrato de amônia. Essa é a fórmula do sucesso! – Bola gargalhou. Seu
corpo balançava com o agitado movimento do automóvel.
O Vectra percorreu parte do município por volta de vinte e dois minutos até chegar a seu
destino: o Morro do Igarapés. Costurou caminho, subiu e desceu morros. O condutor freou vio-
lentamente raspando os pneus no meio-fio, os quatro corpos se moveram com o brusco baque.
Quase no mesmo tempo que o carro estacionou, a turma de assaltantes abriu as quatro portas e
saiu. Deco agarrou a mochila.
Os revólveres engatilhados sobre os dedos e seus passos rápidos os levaram para dentro
do aglomerado de casas, becos e córregos. O quarteto encontrou certas dificuldades pelo ca-
minho, posto que nem todos os acessos da favela eram iluminados. Quando eram, nem sempre
estavam fáceis de percorrer. Desceram uma pequena viela e se deparam com um bar. Homens
conversavam, ingeriam bebidas alcoólicas e se drogavam. Uma música de rap ecoava da má-
quina de músicas.
– Olha lá o mano Picolé, chega aí! – gritou um dos homens embriagados no bar, levan-
tando uma garrafa de cerveja.
– Depois eu apareço aí, meu truta! Depois...– Picolé berrou, educado –, tenho que resolver
umas paradas – ele e sua turma continuaram o trajeto e sumiram entre as paredes de alvenaria.
Passando ao lado do córrego, viram o vulto de ratos e insetos passarem por seus pés. O
bando atravessou uma pequena ponte e se deparou com a enorme escada. Deco começou a se
cansar com o peso nas costas, mas não reclamou. Arfando, finalmente ele e o grupo chegaram a
seu destino. Ele destrancou a porta e a abriu. A quadrilha entrou no barraco. Eles rumaram para
o fundo da residência. O bandido soltou a mochila, fazendo a mesma bater com força no piso
de seu quarto. Picolé foi quem entrou por último, então trancou a porta. Um minuto de suspense
dominou o recinto quando os dedos de Bola puxaram o zíper da bolsa e a abriram. Os olhos de
Picolé cintilaram diante da fortuna transbordando de dentro da mochila.
– Dessa vez foi melhor que a anterior! – Bola comentou. Quis sentir o objeto do roubo
com as mãos para ver se eram reais. Apalpou o monte de notas.
Três deles se ajoelharam e começaram a repartir o furto em quatro partes iguais. João
Sérgio continuou de pé. Ele sorriu e afundou a mão no bolso interno de seu blazer. Retirou um
colar de ouro branco dezoito quilates com um diamante em sua extremidade. A pedra cristalina
fora lapidada em forma de coração. Ergueu o objeto precioso sobre o rosto. O brilho da joia era
ainda mais potente no momento em que entrou em contato com a claridade da lâmpada no teto.
Sem querer, acabou por chamar a atenção dos comparsas. Eles pararam de contar o di-

22
William R. Silva

nheiro e observaram João Sérgio, curiosos.


– Com certeza ela vai gostar! – declarou João, maravilhado. Não estava falando para
ninguém em específico, mas sim deixando seus pensamentos saltarem dos lábios – É a joia mais
linda que vi.
– Que gracinha! Presentinho para a namorada – Deco caçoou. – Onde roubou essa para-
dinha aí? – indagou, na mesma hora que se pôs de pé e tocou, admirado, no metal do cordão.
– Não roubei, eu comprei com o fruto do meu trabalho! – todos gargalharam, mas João
fingiu não notar – Adquiri numa famosa joalheria no centro da cidade. Custou mais de quatro
contos... – João sorriu, feliz – Paguei com a grana da última fita que agente meteu no mês pas-
sado – ele pendeu a joia no ar, movendo-a de um lado para outro.
– Que mulher é essa, mano? – Picolé ficou curioso, mas não parou de separar as notas –
Para tu ficar com essa cara de besta quando falou nela, essa mina deve ser muito gostosa.
O marginal guardou o cordão e fitou Picolé com os olhos flamejantes. Sua ira se tornou
mais visível assim que suas sobrancelhas franziram.
– É uma tal de Maria... – Bola afirmou – É um namorico que ele teve no ensino médio.
Vivia falando o nome dessa moça na temporada que esteve lá na cadeia – separou outro monte
de notas.
João Sérgio deu meio sorriso.
– Maria do Rosário!– suspirou – Foi por ela que aguentei todo esse tempo trancafiado
naquele lugar maldito. Foi por ela que tive força. Se não fosse por isso, acho que teria enlouque-
cido! Ela nem sabe que estou livre. Em breve, iremos nos encontrar novamente.
Os outros riram baixo e continuaram com a partilha.

O OCTÓGONO

O Quartel - Arena de Combate

Quatro cordas paralelas de mais de uma polegada se esticavam aos postes, delimitando a
área octogonal. O piso do ringue era de um material macio, pelo qual os pés de Dionísio pare-
ciam escorregar no mover de pernas. Seu adversário, um lutador de características orientais, o
seguia com o olhar conforme via o homem esbelto saracotear. Tanto um quanto outro tinham as
mãos envoltas por luvas. O duelo estava acirrado e nenhum dos combatentes aparentava ceder.
Na parte exterior, os berros alucinados dos curiosos incitavam os duelistas a continuarem o con-
fronto. Sacos de box, nunchakus, bastões entre outras ferramentas de treino haviam sido remo-
vidos para um canto apertado. A sala estava abarrotada, durante ocasiões normais, a quantidade
de membros ali não ultrapassava duas dezenas, em momentos de competição, a quantidade é três

23
A Coragem

vezes maior. O volume humano aumentava gradativamente. Incontrolados, rapazes se puxavam


e se empurravam em busca de espaço visando expandirem o campo de visão.
O competidor então afagou seus lisos fios capilares que caiam sobre a testa e lançou seus
olhos puxados em direção a Dionísio. Sorriu para ele e falou:
– Está rolando um boato de que você irá embora da cidade – moveu a perna para frente e
levantou os punhos na direção de seus lábios. – Isso é verdade, Max Wolf?
Enquanto rodeava a demarcação, Dionísio distraiu-se com a pergunta. O termo “outra
cidade” acabou por lhe trazer um leve devaneio. Sua vida mudará de agora em diante. Estar lu-
tando na arena mestra, para ele, era uma das melhores sensações de orgulho. Anos correram até
que lhe fosse liberado participar dos combates. Sobreviveu a todos os testes do quartel secreto,
tornara-se um frequentador de alta patente. Enfim, pouco mais de um ano, houve o momento
em que estava preparado. Desde a primeira chance, nunca mais se ausentou. Todas as últimas
sextas-feiras do mês, os melhores quartelianos testam suas técnicas no ringue. Mas, em breve,
tudo ficaria para trás. Os ensinamentos, as táticas de luta, as lições de vida. Toda a fração de sua
vida em Realinópolis será somente um resíduo de um tempo remoto. Mudanças são difíceis de
serem aceitas, principalmente esta, que envolve tantas reviravoltas passadas.
Sua guarda estava parcialmente baixa, nem notou o homem se materializar a sua frente
e atingir-lhe o queixo. Seu adversário havia saltado? Corrido? Nem teve tempo de descobrir.
Sentiu a dor se espalhar pelo seu maxilar e recobrou a consciência.
O grito de alguém alcançou-lhe os ouvidos:
– Que vacilo foi esse, Max Wolf? Distrair-se na hora crucial do combate é condenar-se à
morte. Lembre-se que aqui é como se fosse uma simulação da realidade.
O rosto de Dionísio se moveu para cima e deu de cara com a fisionomia séria de Thales
encarando-o insatisfeito. Seu mentor se encontrava no lugar mais alto do salão, esparramado sobre
uma poltrona confortável. Lá, tinha meios de analisar com mais clareza as habilidades de cada um.
Risos escondidos sussurram no salão, segundos depois, o local abafou num silêncio ansio-
so. O japonês deu um risinho desdenhoso e caçoou:
– Está parecendo um principiante inexperiente. Ouvi falar que você era um dos melhores
daqui. Pelo visto, foi tudo conversa fiada.
Ao apertar as luvas sobre os punhos, Dionísio discordou:
– Nada de se iludir, japa. Você me acertou apenas uma vez.
O homem de aparência asiática descreveu um círculo imaginário com um rodopio de
mãos e afastou o braço direito para trás. Os olhos minúsculos tornaram a fitar Dionísio.
– Sou Donnie Yen, japa é sua vovozinha.
Sem piscar, a massa de espectadores ficou ansiosa com os próximos assaltos. Muitos
comparavam tais disputas com partidas de futebol. Cada ataque bem planejado fazia-os saltar
de prazer quase tanto quando uma bola que balançou a rede, trazia-lhes vitória. Havia cerca de
dezoito garotos loucos a espera de uma vaga, mas apenas um terço deles podia entrar na lista.
A regra era clara, somente quem tivesse mais que vinte e cinco anos e três ou mais anos de
frequência era admitido no octógono. Para o grande número de observadores, só lhes restava
torcer pelo melhor.
Thales avistou os ponteiros do relógio no alto do octógono e franziu as sobrancelhas.
Detestava ver os discípulos protelarem o encerramento das lutas. Se não fizerem bom uso do

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tempo, poderia chegar a madrugada sem que um vencedor deixasse a divisa. Então, ordenou:
– Quanto tempo mais teremos de ficar esperando? Já é hora dar cabo nisso, não?
Confiante, Donnie deu um soco no ar e declarou:
– Está bem, chefe! Vamos acabar com a brincadeira.
O que Dionísio almejava finalmente se concretizou, o opositor avançou para atacar. Sou-
be o que fazer no segundo exato em que viu uma das pernas do rapaz subir um golpe em direção
a sua testa. Rápido como uma lebre, agarrou o pé direito de Donnie antes de ser impactado.
Ligeiro, o japonês livrou a perna do bloqueio e recuou pouco mais que dois metros.
– É – Donnie Yen gargalhou –, acho que te subestimei – sem recuperar o fôlego, mais
uma vez correu, deu um salto e voou na direção do adversário. Dionísio só teve chance de se
agachar e sentir o sujeito magro sobrevoar sobre seu dorso. Após cair em pé, virou-se e tentou
acertar um murro no inimigo temporário. Com maestria, Dionísio segurou-lhe o punho antes que
fosse agredido. O asiático estudou o punho detido pela mão do oponente, em seguida, encarou
Dionísio e riu.
– Vai girar meu braço e tentar me desequilibrar? Isso é bem previsível, não acha?
A plateia seguia calada, atenta a cada golpe.
O riso vitorioso que Dionísio lhe ofereceu deixou o rapaz surpreso. Continuando a segu-
rá-lo, revidou:
– Não. Sei muito bem que você sabe se safar de estratégias como essas.
Ele quis refletir sobre qual seria a tática seguinte, mas Dionísio foi bem mais ágil que os
pensamentos do rival. Sorrateiro, Max Wolf girou no calcanhar e lhe entregou um violento chute
no rosto. Em virtude da pancada, o lutador cambaleou e sentiu um peso estranho empurrar-lhe
a barriga. Depois de dar-lhe um soco no estômago, Dionísio o agarrou pelo colarinho. Deslizou
seus pés por detrás das coxas dele e o soltou no tapete. Se o piso de estofado fosse de concreto,
é bem certo que Donnie desmaiaria com a queda.
O público explodiu em exaltações. Sentiram a estrutura trepidar em virtude dos saltos e gri-
tos frenéticos. O lutador derrotado olhou para Dionísio de baixo para cima. Assim, sorriu satisfeito.
– Você foi o campeão, Max Wolf! Parabéns!
O vencedor o observou estirado e toda a rivalidade que pairava entre os dois evaporou-se
como poeira no vento. Assim que os berros terminaram, apenas a amizade e o companheirismo
restou entre cada um dos participantes que ocupavam a arena. Assim, deu um sorriso rápido para
o homem imóvel e lhe estendeu a mão.
– Na vitória ou na derrota, todos sempre ganhamos algo.
Donnie se pôs de pé com a ajuda do outrora rival.
– É isso aí – arrumou as calças, retirou as luvas e as jogou no tapete azul. – Desejo que
seja feliz na sua nova cidade, caro amigo.
– Obrigado, Donnie. Pode me aguardar! Assim que puder, virei visitá-los.
O jovem de olhos esticados ficou contente com a notícia.
– Então me avise! Vou treinar bastante para te convocar para uma revanche – virou-se e
caminhou em direção a um dos limites do octógono. Levantou uma das cordas que lhes sepa-
ravam e passou por baixo dela. Desceu a pequena rampa, irrompeu a barreira humana e seguiu
para o banheiro. Sentiu vontade de se refrescar do calor.
Thales colocou uma perna sobre a outra e coçou o queixo.

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A Coragem

– Você venceu, Max Wolf. Escolha seu próximo oponente. Duas vitórias consecutivas
valem quatro estrelas.
Quando o silêncio imperou, Dionísio foi capaz de ouvir a própria respiração cansada.
Sob os olhares impacientes e orelhas sintonizadas à espera de um pronunciamento, perguntou:
– Posso escolher qualquer um que esteja de acordo com os regulamentos?
A turma de curiosos desconheceu o motivo da pergunta. As regras eram claras, não have-
ria razão para tirar tal dúvida. Thales, de codinome Travis Bickle, também considerou a questão
meio óbvia, mas se limitou a responder num monocórdio rouco:
– Sim.
Sentiu-se certa dose de audácia no semblante de Dionísio assim que ele levantou o braço
e apontou o dedo para cima. Notando que era ele o indicado, Thales tentou, mas não foi capaz
de esconder sua surpresa. Aquilo lhe trouxe um estímulo. Seja qual for a razão que o motivou
a desafiá-lo, naquele momento, viu que uma energia de entusiasmo o envolveu de modo praze-
roso. Mesmo não tendo gastado mais que três segundos para analisar as expressões dos jovens
ao redor da arena, conseguiu notar alguns cenhos se arquearem e bocas ficarem entreabertas.
Ninguém nunca ousaria convocar um mestre para uma disputa. A diferença entre habilidades era
inquestionável. Thales sentiu um arrepio no momento em que viu o homem no octógono, com
seu ar confiante, dizer em alto e bom som:
– Escolho você, Travis Bickle!
Grande parte dos jovens continuou pasma.
– Max Wolf quer desafiar o mestre Travis... – Dr. Bettle falou em meio ao aglomerado
– Ele é maluco.
Thales deu uma risadinha discreta e rápida.
– Está certo disso, meu caro?
– Me concederia essa honra? – Dionísio limpou o suor do rosto.
O mentor se pôs de pé e constatou que todas as atenções se voltaram para ele. Desabotoou
seu blazer, livrou-se dele e o estendeu no encosto do assento. De certo modo, aquilo o deixou
satisfeito. Sem ter ciência do fato, Dionísio possuía um laço especial com ele. É o filho de um
dos homens que mais admirou na vida. Queria saber quanto do pai ele escondia dentro de si.
Discretamente, começou a analisar as peculiaridades do pupilo desafiador. Suas feições, o modo
de olhar e os traços firmes, embora não tão expressivos quanto os de Átila. Ele realmente lem-
brava seu genitor. Caso algum dia deixasse o cabelo crescer, pai e filho seriam confundíveis.
O tutor sentia saudades da época em que era um simples e inexperiente aluno. Em verdade,
o jovem ainda não possuía toda a maestria e racionalidade de Átila, mas estava no caminho certo.
– Então – Travis retirou a gravata e deixou a camisa folgada –, desafio aceito – estava a
mais de quatro metros de altura. O piso macio amortecerá a queda. Já fizera isso algumas vezes.
Foi então que, para o contentamento de todos, Thales saltou e seu corpo despencou na gravi-
dade. Impactou-se dentro da arena. Suas pernas flexionaram assim que tocaram o solo, depois
ficou de pé. Levantou a cabeça, fitou no pupilo e pronunciou:
– Então, vamos brincar.
Meninos e homens mal conseguiram piscar os olhos. Metade deles apostava na derrota
do membro Max Wolf e outra não pensava nos resultados. Queriam tirar suas conclusões no
decorrer do combate. Dionísio pouco se importava com o resultado. Ganhar ou perder, para ele

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não era a essência do jogo. Nutria bastante consideração e respeito pelo pessoa que se encon-
trava a sua frente. Sonhou por meses com este momento. O próprio evento em si já valia mais
que qualquer vitória.
No mesmo instante, sussurros ecoaram no salão e garotos abriram espaço para que uma
das personalidades mais truculentas do pedaço transitasse entre eles. Exalando arrogância, Co-
bra parou ante as cordas esticadas e declarou:
– Essa eu quero assistir de camarote – riu alto. – Vamos ver do que você é capaz, Max
Frouxo.
O competidor mais novo se virou para ele, irônico.
– O que foi, Cobrete? Está com ciúmes do Travis? Não se desespere, depois que acabar,
você terá tempo de sombra para lamber as virilhas dele.
Um show de reações hilárias transbordou no salão. De relance, Dionísio chegou a ver
rapazes apertando a barriga de tanto rir. Mas sua postura se manteve neutra, o olhar ríspido que
Travis dirigiu a ele o fez se calar.
Cobra nem se importou com o gracejo, apenas olhou para o superior e perguntou:
– Nesse caso, quem será o juiz?
Travis Bickle pousou os olhos no indagador.
– Você.
Cobra assentiu. Logo depois, endireitou-se para examinar melhor a luta que se seguirá. Re-
lanceou a distância que havia entre ele e a escada. Comprovou que teria dificuldade para atravessar
o trecho bloqueado pela dezena de rapazes para alcançar a poltrona do árbitro. Decidiu que apitaria
a partida dali mesmo. Seu olhar retornou para os homens na arena. Assim, deu a ordem:
– E que iniciem o duelo! Que vença o melhor.
Em meio à confusão de garotos, rapidamente um deles se amontoou por cima das costas
do irmão mais velho e se equilibrou no ombro dele. Outro, fez algo ainda mais improvável, es-
calou um poste e agarrou numa cesta de basquete que estava fixada a parede. Ganhando impulso,
ergueu-se e sentou por cima da rígida caixa de ar condicionado. Muitos outros, cada um de sua
maneira, também usaram de artifícios estranhos para poderem assistir o confronto de um ângulo
privilegiado. Logo após trocaram olhares, Thales se agachou e recolheu as duas luvas jogadas
no chão. Ao se levantar, calçou o par.
Posicionado sobre o octógono, Dionísio confessou:
– Sabia que esperei muito por esse momento?
Os dois lutadores elaboraram seus movimentos de ataque.
– Então faça o seu melhor – a frase de Thales soou com rigidez.
Um ou outro teria de começar as investidas, por isso Dionísio fez questão de ser ele o
primeiro a disparar. Sentimentos de emoção, gratidão, orgulho e nostalgia explodiram em seu
cerne. Diante do imprevisível resultado, avançou e empurrou um dos punhos em direção ao
rosto de Thales. Seu golpe falhou. Reativo, o mestre arremeteu o dorso para trás, esquivando-se.
Com isso, nem necessitou sair do lugar.
– Esse é o seu melhor? – Thales o incitou – Já estou começando a ficar entediado.
Na insistência, o punho de Max Wolf subiu até seu ombro e fez uma trajetória semicircu-
lar a fim de atingir-lhe em cheio. Novamente, Travis Bickle se safou e aproveitou-se do breve
período de desestabilização do oponente. Ele deu uma pancada no peito volumoso do jovem

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A Coragem

lutador, lançando-o para longe. Assim, a coluna de Dionísio deslocou a corda quando se encos-
tou nela. Como um elástico de bodoque, foi imediatamente arremessado para frente com a força
que o repeliu. Quase perdeu o sustento e se esborrachou, mas conseguiu equilíbrio. Torcedores
gritavam o nome “Travis Bickle” repetidas vezes. Vozes misturadas, de todos os tons, vibravam
a cada tática bem calculada.
Thales franziu a testa.
– Como homens, o que devemos fazer diante de um desafio? – quis saber – Lembra?
O discípulo exalou confiança quando respondeu:
– Sim. Analisar a situação. Os pontos fortes e fracos do inimigo e só depois agir. Não sei
se percebeu, mas é exatamente o que estou fazendo.
Era a resposta que Travis queria escutar. Mais uma vez lembrou-se de Nélson. O Silverato
mais moço realmente fazia jus a sua árvore genealógica.
– Você me lembra alguém – o mentor revelou –, uma pessoa que há muitos anos ajudou-
me a ser quem sou e me proporcionou um caminho de honra e coragem – uma pitada de emoção
quis lhe escapar das pálpebras. Mesmo assim, Thales continuou com sua postura séria.
Dionísio sorriu para ele.
– Que bom! Sinto-me feliz por isso.
Tiveram a sensação de que somente ele e Thales estavam no local. O suspense eliminou
até mesmo os mais fracos ruídos como o arrastar de solas ou cochichos camuflados. O salão
mais pareceu um museu rodeado por estátuas humanas feitas de pedra. O homem mais expe-
riente apertou os punhos e flexionou os joelhos. Houve um instante de expectativas e corações
acelerados. Era, pois, sua hora de agir. Calculadamente, Travis Bickle deu um pulo e girou o pé
direito no ar. Dionísio só teve tempo de dar um ligeiro passo retrógrado e sentir o vulto do bico
do sapato do oponente que, por pouco, não lhe dilacerou o nariz.
Assim que seu pé tocou o solo, Thales indagou:
– Você alguma vez já parou para pensar sobre a real razão desses combates? Para que
eles servem?
Max Wolf pareceu confuso, ainda assim, respondeu:
– Para aprendermos a nos defender.
– Errado – Thales segurou a gola desarrumada da camisa social e a dobrou. – Existem
inúmeras formas de se defender. Ignorar um insulto, tentar um diálogo amigável, pensar numa
maneira de imobilizar o rival quando este for mais fraco, usar técnicas de persuasão, compreen-
der o outro, dar as costas e seguir seu caminho. Na maioria dos casos, existem muitas formas de
evitar o pior. Brigar nem sempre é a primeira solução, na verdade, deve ser a última coisa a se
pensar numa situação de risco. Muitas vezes a calma e a sobriedade surtem efeitos muito mais
plausíveis do que a violência.
– Pensei que isso aqui fosse para nos ensinar a enfrentar bandidos e pessoas perigosas.
O mestre gargalhou.
– Eu, em toda a minha vida, nunca ouvi falar de técnicas que pudessem parar tiros de um
revólver no ar e impedi-los de matar pessoas. Sabia que, às vezes, é muito mais difícil fugir de
um briga do que se manter nela? Um homem que não se rende a provocações pode até perder
a guerra contra o outro, mas, por outro lado, vence a guerra contra si mesmo. Palavras firmes e
acertadas costumam ser mais eficazes que socos e pontapés.

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Dionísio ergueu os olhos com certa inquietação.


– Então... por que, durante tanto tempo, nos ensinam técnicas de luta?
Travis sacudiu a cabeça e ergueu a mão fechada.
– Primeiro – levantou o dedo indicador –, quando ambos os oponentes possuírem a mes-
ma força e habilidade. Segundo – também mostrou o dedo médio –, quando seres humanos
inocentes estiverem sofrendo risco de morte e, por fim – posicionou o anular –, quando nenhuma
outra estratégia der resultado. Somente nessas condições é que o combate será honesto e justo.
Do contrário, será sempre um ato de covardia. Entendeu?
Poderia ter ficado contente com a lição que recebeu, mas aconteceu o contrário, uma
angustia se instalou no coração de Dionísio com um ímpeto cruel. Quanto mais o tempo passa-
va, mais via que ainda tinha muito o que aprender. Sentiu-se inseguro. Será que estava mesmo
preparado para guiar-se sozinho no curso da vida. Sem mestre? Sem seu pai? Lições como essas
faziam com que surgissem questionamentos em sua mente. Será mesmo que está preparado para
lidar com seus monstros interiores?
Isso o desconsertou, estava na hora de terminar a luta de uma vez por todas. Queria ver
as reais técnicas do admirado mestre, do que ele era capaz. Sua tática era concentrar toda a sua
energia em suas pernas e tentar fulminar o peito de Thales, assim o derrubar no chão. Reações
animadas incidiram-lhe da face assim que Dionísio começou a transitar em volta da arena.
– Chega de conversa, já enrolamos demais.
Com o cotovelo apoiado num dos postes, Cobra bocejou.
– Ufa! Já era hora, hein!
Gritos ecoaram quando os rapazes avistaram Dionísio distante do mestre nas delimitações
da arena. Thales fez um gesto com as mãos:
– Vem, estou te esperando – sorriu.
E assim, Dionísio teve uma das mais agradáveis experiências de sua vida, embora, dessa
vez, tenha perdido a luta.

A PROMESSA

29 de Setembro de 2013.

O clima do dia era um dos mais agradáveis, as flores da primavera, ao colorirem o cená-
rio, deixavam tudo mais alegre e acalentador. Tirando muito da tenebrosidade depressiva que
normalmente era algo comum neste lugar no decorrer do ano. Dionísio, cujo ramalhete de rosas
estava preso aos dedos, conforme caminhava pelas rotas do cemitério, rolava os olhos sobre as
centenas de sepulturas, cruzes, esculturas, velas e ornamentos. Esquadrinhado, curioso, as lápi-

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A Coragem

des e suas descrições, lia meses de nascimentos, dias da morte e calculava mentalmente a idade
de cada um dos cadáveres enterrados. Sentiu um vento gelado lhe arrepiar os pelos corporais,
provocando uma sensação de paz e, ao mesmo tempo, melancolia. Não uma angústia ou dor,
mas sim algo natural, uma reação instantânea posto que aquilo era o leito eterno dos mortos.
O jovem bem aparentado tocava respeitosamente os pesados pés sobre a grama, como se
estivesse com medo de fazer barulho e perturbar as almas que ali descansavam. Sua considera-
ção era tal, que seu respeito se dava na mesma maneira com a qual tratava os vivos. Sem esboçar
qualquer receio por estar a transitar solitário por entre os túmulos, prosseguiu sua jornada pelo
ambiente silencioso até que encontrou o que tanto procurava: o túmulo da amiga Catarina, com
sua lápide cintilante, usando a mesma descrição e imagem do dia em que fora sepultada.
Ele se agachou perante a retangular peça de mármore até tocar os joelhos na grama. Nin-
guém havia no cemitério. Generosamente, deixou o ramalhete por cima da sepultura. Sua mão
escorregou sobre a pedra afim de remover seus resíduos de terra, poeira, flores murchas, folhas
secas e outras sujeiras. Sentiu uma sensação de júbilo tomar-lhe conta, seus olhos soltaram al-
gumas lágrimas de saudades. Incontáveis lembranças se chocaram em seu interior. Quanto mais
tateava a sepultura, mais um sentimento de alegria o contaminava. Não que o fato da amiga estar
morta o deixasse feliz, mas a maioria das recordações que tinha junto dela eram boas. Admirou o
adorno que outra vez voltara a ter seu brilho natural. Leu e releu a descrição na lápide.
– Quanto tempo, hein, moça? – sorriu com fervor – O tempo passa rápido, parece que foi
ontem que nos conhecemos. Quando você e eu passávamos a tarde toda contando casos, rindo,
nos divertindo. Não temíamos nada. Nem a vida, nem... – abaixou a cabeça – nem a morte!
Ele se ergueu e reparou a cova com bastante admiração. Outra lágrima deslizou de seus
olhos e molhou-lhe os lábios.
– Como eu queria te ver de novo, pelo menos uma última vez! – suspirou.
Um grupo de três pombas brancas sobrevoa o aglomerado de túmulos. As aves içaram
e seguiram sobre a interminável fileira de cruzes, velas, flores fúnebres e lápides. A vegetação
no fundo se assemelhava a um grande forro verde. Só naquele instante é que o visitante notou
o quanto o lugar era imenso. Quantos defuntos repousavam ali? Provavelmente bem mais que
trezentos. Ele continuou a contemplar as pombas em suas manobras. Num movimento circular,
elas se aproximam com as asas abertas e aterrissam sobre o túmulo de Catarina.
– Seu pedido foi atendido, estou aqui! – ecoou uma voz feminina, que fora trazida pela
brisa e alcançou os ouvidos do visitante. As aves fogem ariscas e somem no horizonte.
Por um breve segundo, Dionísio percebeu que suas pernas não obedeciam ao seus coman-
dos. Ambas paralisaram na medida em que o susto se apossava de seus sentidos. Aquela maneira de
falar, aquele timbre, não lhe era estranha. Será? Será mesmo? Estremeceu-se. Queria se mover, mas
o que lhe ocorria era impossível demais para ser verdade. Numa rápida reação, assumiu o controle
de seus movimentos e se virou. Seus olhos escancararam, completamente descrentes, assim que en-
xergou a autora da fala. Uma linda jovem de rosto rosado, cabelos curtos e pretos se movimentando
no sentido do vento. A charmosa franja tapando-lhe a testa. A garota o fitou denotando afeto. Ela
transmitia leveza no olhar e seu rosto se iluminava como o de um anjo de luz.
O visitante deu dois passos para trás. Como isso era possível? Ele a viu morta. Quase tropeçou
em empecilhos quando recuou. Seus olhos se mantiveram vidrados na assombração, boquiaberto.
– Não tenha medo... – disse a mulher.

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Ele recuperou a calma e partiu para a jovem. Catarina sorriu quando os braços fortes de
Dionísio a envolveram por inteira.
– Catarina... – ele disse, trêmulo – Você está viva! Você está viva, que bom, que bom! –
passou as costas das mãos sobre a face da jovem.
Sem nada dizer, ela o apertou com mais força.
– Se você estava viva o tempo todo, por que nunca apareceu? – sua fala se atrapalhava
com o ritmo apressado de sua respiração, quase ficando indistinguível – Por que deixou a mim,
o Ricardo, sua família e todos nós tristes durante tanto tempo? Por quê?
Ele a segurou pelos pulsos. Catarina permanece contente.
– Acalme-se! – a moça se sentou num banco pétreo. Suas mãos continuaram presas nas
dele – Eu vim aqui para te falar uma coisa, uma coisa muito importante – falou, carinhosa.
Os dois trocaram olhares afetuosos, Dionísio se sentou junto a ela. Soltou as mãos e co-
meçou a tocar o rosto da moça enquanto os olhos dela brilhavam para ele.
– Sobre o quê? – o rapaz indagou, brando – Pode falar!
Catarina puxou o ar e o soltou imediatamente. Depois direcionou a palma da mão e a
prensou sobre o lado esquerdo do peito do amigo. Sentiu os batimentos cardíacos de Dionísio
mais intensos.
– Seu coração – ela se entristeceu –, ele está cheio de ódio. Você vai voltar, mas precisa
se livrar desse ódio.
O homem inclinou a cabeça para ela.
– Que ódio? O que quer dizer com isso? – quis saber Dionísio.
– Essa raiva que guarda dentro de você – Catarina o mirou, com vigor. – Esse desejo de
vingança que tem dentro de si, precisa se livrar dele.
Dionísio hesitou.
– Não estou com raiva de nada e nem de ninguém. Você está equivocada em relação aos
meus sentimentos.
– Cuidado para que seus sentimentos negativos não te dominem – Catarina reafirmou.
O tom de sua voz se tornou mais rígido – Não deve, em hipótese alguma, perder a sua honra.
Nunca! Está me ouvindo?
Ele sentiu certa dose de angústia nos olhos dela, então resolveu se render a suas súplicas.
– Sim, Catarina. Farei como você pediu.
Catarina notou os dedos de Dionísio mudarem seus fios de cabelos para trás.
– Jura?
– Juro – ele reiterou. – Agora, me diz, por que não apareceu antes? Por que ficou durante
todo esse tempo sumida? Sentimos sua falta.
Catarina nada respondeu. Ela sorriu inocentemente e encostou a testa na dele. Ambos fe-
charam os olhos e se beijaram. Terminado o momento de afeto, Dionísio abriu os olhos. O estado
de desespero tomou conta de seus sentidos no breve segundo que se deparou com a horrorizante
cena que se desenrolava. O corpo da garota começou gradativamente a se tornar transparente. Ele
rodopiou o braço por dentro do rosto de Catarina e suas mãos não sentiram sua pele, em vez disso,
apenas cortaram o ar. Seu coração acelera. A mulher sumiu como num passe de mágica.
– Catarina... – ele se levantou e começou a correr de um lado para outro – Catarina... Ca-
tarinaaaaa! – berrou, provocando um eco ensurdecedor. Em seguida, acordou agitado, jogando

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travesseiro, cobertor e seu celular com fone de ouvido no chão. Tudo, mesmo sendo bastante
real, não passava de um sonho.
Saltou da cama. Às pressas, dirigiu-se até o banheiro, parou diante da pia, abriu a tor-
neira. Encheu as palmas de água e, de forma agressiva, esfregou as bochechas. Durante alguns
minutos, sem se dar conta da torneira aberta desperdiçando uma enorme quantidade de água,
distraiu-se no nada.
– Preciso me livrar do ódio para ir embora... ir embora – suspirou, com energia – O que
você quis dizer com isso, Catarina? O que você quis dizer com isso? – questionou, fitando a si
mesmo. Juntou mais água, jogou-a sobre a cabeça e esfregou a testa.
Se voltou e viu, por entre a brecha da porta, o seu relógio despertador ao lado da cama. Já
passava das onze e quarenta e cinco da manhã. Fez careta ao perceber que era tarde. Não estava
acostumado a acordar àquela hora, mas passou a noite inteira acordado por estar ansioso com o seu
retorno à Capital. Teve que dormir algumas horas a mais para compensar a madrugada perdida.
Ele se enxugou com a toalha de rosto e rumou para a cozinha. Vozes e risos emanavam
da sala, Dionísio se desviou, avançou pelo corredor e entrou na sala. Seu pai estava debruçado
sobre a janela bisbilhotando a vizinhança e um senhor saboreava o aroma do café que exalava de
sua xícara e comia alguns biscoitos num prato sobre a mesa. Era Padre Jerônimo.
Os dois homens se voltaram para Dionísio assim que ouviram seus passos.
– Padre Jerônimo! – Dionísio foi até o senhor e lhe apertou a mão – A que devo a honra
de sua visita?
Encarou Átila.
– Bom dia, pai!
O homem enfiou os dedos em seus longos fios de cabelos e os ajeitou atrás das orelhas.
Ele anuiu com a cabeça para o filho, em retribuição. Dionísio pegou a cafeteira, encheu uma das
xícaras postas sobre a mesa. Comeu três biscoitos e um pão com mortadela de outra bandeja.
Acomodou-se no sofá, junto ao líder religioso.
– Parece que tirou o dia de domingo para fazer as pazes com a cama – o ancião brincou.
– Dormiu a manhã inteira.
– É... – Dionísio abocanhou uma fatia do pão recheado e mastigou vorazmente. Parecia
que não comia nada há anos – Hoje eu exagerei um pouco.
O Padre assoprou o conteúdo da xícara, fazendo a fumaça se espalhar no ar, bebeu um
gole do café e repousou a xícara sobre a mesa.
– Eu e seu pai estávamos reunidos aqui para te dar a bênção para que sua viagem dê certo,
ou melhor, para que sua vida na Capital seja repleta de realizações.
– Que bom, obrigado! – Dionísio retribuiu – E saibam que as bênçãos de vocês serão
sempre bem-vindas!
O homem se retirou da janela e caminhou até o herdeiro.
– Mas, antes... – Átila firmou os olhos no rapaz – Queremos que você nos prometa uma
coisa – ele e Jerônimo o fitaram com semblantes enigmáticos.
Dionísio se esqueceu do lanche e examinou a fisionomia dos dois.
– O que seria?
– Daqui a pouco mais de três meses, você estará indo embora e vai voltar a morar em Belo
Horizonte – seu pai seguiu com a conversa. – Aquela moça que te iludiu, a tal de Ana Júlia, e os

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marginais que te espancaram. Aqueles que você quase matou. É sobre eles que queremos falar
– o tom de voz de Nélson parecia pesado.
O homem mais novo se levantou do sofá e encarou a ambos, desaprovando-os.
– Mas eu já não disse que coloquei uma pedra sobre esse assunto?
O educado senhor limpou alguns farelos de sua batina e recuperou sua xícara. Com bas-
tante sabedoria, sorveu mais um pouco da bebida escura e começou seu aconselhamento.
– Antigamente, padres eram tão aceitos quanto pais e mães, mas hoje os jovens estão per-
dendo a noção de respeito. Tanto a autoridade paterna quanto a religiosa estão perdendo o valor.
Sempre me simpatizei por você, pois a consideração pelos mais velhos durante todo esse tempo
sempre regeu o seu caráter. O respeito, além de ser uma obrigação, também é uma virtude. E é ba-
seado nesse mesmo respeito, não só pelo que você tem por mim, mas também pelo que eu tenho por
você, que queria que nos prometesse uma coisa, mas que fizesse de coração e não para nos agradar.
O jovem mordeu outro pedaço de pão, confuso.
– Fique o senhor à vontade. Meus ouvidos estão a sua disposição.
Os olhos do ancião se abriram de repente, neles havia um afeto inestimável, forte como
de um avô para o neto. Mas seu semblante transmitia algo mais, algo de muito preocupante
incomodava-lhe a alma.
– Queremos que nos prometa – o padre prosseguiu –, diante de nós dois, diante de Deus, que
perdoará aqueles quatro jovens que te fizeram mal. Não digo que tenha que se aproximar deles,
tentar ser amigo, apenas botar um ponto final nisso tudo. Sabemos que você ganhou algumas habi-
lidades extras, está mais forte, mais ágil e mais inteligente, mas terá que nos prometer que não vai
tentar se vingar deles. Entenda que a vingança envenena a alma, ela faz emergir um dos lados mais
nefastos do nosso ser. E quem age assim, não só destrói a vida dos outros, mas também a própria.
Dionísio ficou chocado. Menos de quinze minutos antes havia conversado com sua amiga
em sonho sobre o mesmo assunto. Seria aquilo uma obra divina ou uma simples coincidência?
– Caramba!– Dionísio tornou a se afundar no sofá, atordoado – A Catarina tinha acabado
de me pedir a mesma coisa.
Átila e Jerônimo trocaram olhares e deram de ombros. Ambos sabiam que a moça estava
morta a mais de quatro anos. Aquilo parecia fora de lógica.
– Agora deu para prosear com fantasmas? – ironizou seu pai.
Entendeu que seria inútil convencê-los do sonho que teve pouco antes de estar ali. Dioní-
sio decidiu não tocar no assunto.
– E aí, meu caro amigo, o que tem a dizer sobre o nosso pedido? – reiterou o Padre. Ele
continuou a beber seu café enquanto seus olhos cansados se grudaram no rapaz.
– Qual o objetivo disso?– o tom de voz de Dionísio se tornou mais grave – Eu já não os
convenci de que esqueci minhas mágoas do passado?
Jerônimo sacou um lenço e limpou o suor da testa.
– Eu sei, mas existem certas forças malignas que ficam adormecidas em nosso subcons-
ciente – o velho continuou –, apenas esperando a oportunidade para assumirem o controle para
nos transformar em seres destrutivos. Todos carregamos o mal dentro de nós e é nossa obri-
gação, com a ajuda do senhor altíssimo, domar essa energia nociva. Querendo ou não, ainda
não sabemos se seu perdão foi verdadeiro. Isso só vai ser realmente averiguado quando estiver
novamente frente a frente com seus agressores. Falar é uma coisa, viver a situação é outra.

33
A Coragem

– Por isso queremos que jure que não vai tentar nenhum tipo de vingança – Átila comple-
tou. – Queremos que nos dê sua palavra.
Ele mirou o pai, depois se voltou para o amigo idoso.
– Sim, eu prometo – Dionísio afirmou, decididamente. – Quando colocar meus pés na-
quela cidade, tudo ficará para trás. Nenhum sentimento de desforra irá atrapalhar meu caminho.

O TELEFONEMA

São José do Buriti


(Distrito de Felixlândia -MG)

2 de Dezembro de 2013.

O farfalhar das árvores, cantos de cigarras e os ruídos da mata ressoavam no lado de fora.
O homem, no seu quarto, ajoelhou e levantou os olhos para a cruz com a imagem de Jesus Cristo
presa no alto da parede. O adorno religioso fora estrategicamente posicionado por cima de sua
cama, para que ele sempre pudesse admirar o objeto por todos os ângulos. Ernesto Rodrigues
segurou o rosário e o dependurou diante de si. Começou fazer a sua prece matinal. O terço desli-
zava em suas mãos conforme orava e seu temor era cada vez mais envolto de fé. Seus olhos azuis
estremeciam diante do adereço religioso. Do seu lado esquerdo, uma bíblia aberta e do outro,
uma infinidade de jornais e papéis. Uma vela abençoava a prece. Sua chama de tom laranja, ao
derreter a cera, formava uma camada branca no chão.
– Oh, senhor altíssimo! – o homem sussurrou – Por que as pessoas não me compreendem?
O mundo está perdido na ignorância, na maldade e na ambição. Filhos se voltando contra os
próprios pais. Nações se destruindo. Os criminosos estão tomando conta das ruas. A homos-
sexualidade está se tornando algo normal, impedindo assim o dom sagrado da procriação. Não
há mais respeito, não há mais amor, não há mais... fé. O mundo está se corrompendo, meu pai.
Segurou as duas extremidades do terço e se pôs em de pé. Deu alguns passos e tocou com
suavidade o rosto do corpo crucificado. Seus olhos quiseram transbordar em lágrimas e seu
semblante se inundou de emoção.
– Não deixarei destruírem esse mundo que vós tanto amais. Vou varrer todos os efêmeros,
adúlteros, delinquentes e toda a raça de pecadores que encontrar no meu caminho. Farei a minha
parte, isso eu prometo.
Ele recolheu a bíblia e o terço, abriu uma gaveta e guardou tudo dentro. A vela se apagou
pondo fim a seu momento de prece. Há mais de cinco anos, está morando no casarão. Uma

34
William R. Silva

aconchegante residência, que, além de tranquila, está longe de curiosos. Sua vida estava com-
pletamente monótona, algo que, para ele, era detestável. Sempre fora um ser de ação, nunca foi
de esperar para cumprir seus objetivos, qualidade essa que o destacou durante muito tempo na
época de treinamento. Foi um dos primeiros e mais brilhantes dos alunos do Quartel. Quase se
tornou um dos mentores principais de lá. Ficar na inércia para ele era quase a morte, sua calma
estava chegando ao limite.
Nos meses que se seguiram, suas emoções pareciam estar em conflitos. Talvez seja a
nostalgia ou a solidão, pode ser que sejam ambas as alternativas. Às vezes, por sentir que estava
falhando na sua suposta missão. Na visão dele, já deveria estar agindo, mas as circunstâncias o
impediam disso. O passado o assola durante todo o tempo. Reza dia e noite. O homem pertur-
bado desejava acalmar seu espírito. A imagem das passagens, portas, entradas e saídas secretas,
os setores e tudo o quanto ajudou a criar no Quartel não sai de sua mente. Os mestres, a história
que teve lá e tudo de bom que viveu e aprendeu.
– Átila, Thomas, Thales... – ele pressionou os lábios de raiva – Sílvio. Todos vocês foram,
por muito tempo, a minha família. Tudo o que construímos juntos...tantas coisas boas, tanto apren-
dizado... tantas lições. Como eu queria que me entendessem, mas... – suas sobrancelhas franziram
– Isso é querer demais. Não queria ter de eliminá-los, entretanto, não encontro alternativa.
Ele caminhou lentamente pelos acessos do casarão.
– Os impuros não merecem viver – sussurrou. – Esse mundo glorioso não lhes pertence.
Malditos! Os mestres querem me impedir de fazer o bem à humanidade – a revolta o dominou com
mais voracidade. – Mas devo esquecer esse detalhe. Eles escolheram o caminho deles e eu fiz o
meu. Aqueles que me impedirem devem ser eliminados, mesmo sendo eles, pessoas que admiro.
Sua cabeça parecia latejar. Guiou-se até a cozinha, tomou um copo de água. O líquido
transparente o refrescou do calor, mas não de sua consciência. Seus passos o levaram para a
sala, parou ante o arco da porta e contemplou o horizonte. Nada mais além de uma imensidão
de árvores, grama, vegetação e o solo seco era visto. Sacou os óculos do bolso da camisa e os
encaixou no rosto. Elevou seus olhos em direção ao sol. Por trás das lentes escuras e protetoras,
conseguiu ver nitidamente o pequeno fragmento da gigantesca bola de fogo queimar no céu.
– Sou a luz em um mundo perdido na escuridão! – murmurou, sentindo seu peito se en-
cher de orgulho.
Moveu a face e enxergou o seu telefone residencial por cima da mesa. Sabia que o que
planejava fazer era arriscado. Recebeu várias recomendações para que não o fizesse. Hesitante,
resolveu ir em direção à mesa. Ele puxou o aparelho do gancho e teclou os números proibidos.
Após digitar os comandos numéricos, aguardou. Os toques soam por alguns segundos até uma
voz aborrecida sussurrar pelo fone.
– Ernesto? Enlouqueceu? – o homem na linha se enfureceu – Por acaso quer me ferrar? Já
lhe disse várias vezes para não me contatar. Quando quero, eu mesmo entro em contato.
– Olá, querido sócio! – Ernesto respondeu – Como vão as boas novas?
– Será que se esqueceu do nosso trato?– insistiu a voz no fone – O que quer? Para nos
arriscar assim, acredito que o motivo seja de urgência. Ou estou errado?
Ernesto esquadrinhou a sua volta, mas sem necessidade, era impossível ter alguém na sua
casa. Sua atitude fora mais por costume do que por lógica.
– Eu sei muito bem que você não pode se expor, Senhor Tedesco! – ele vociferou –

35
A Coragem

Acontece que estou a mais de dois meses esperando sua resposta e nada. Ainda não me deu
seu parecer da situação. Contudo, ainda acredito que meu plano seja o melhor. Desculpe minha
sinceridade, mas não estou mais com paciência de esperar as suas ordens que nem sei por que
obedeço. Lembre-se! Nossa relação não é a de chefe e subordinado e, sim, de sócios.
– Não seja insolente! – berrou a voz, estridente – Tudo o que lhe prometi, fui capaz de fazer.
Ajudei na sua fuga e estou financiando todas as suas necessidades. Não só as suas, mas também irei
arcar com todas as despesas necessárias ao sucesso da operação. Então, meu amigo, tenha calma!
Não se esqueça de que ainda está em menor número. Precisa urgentemente de aliados.
Os passos de Ernesto se tornaram pesados quando marchou até o sofá e se esparramou
sobre ele.
– Estou há anos nesse isolamento – o homem no sofá reclamou. – Os únicos elos que
tenho com o mundo são meu sobrinho e Olegário. Tudo bem que saio às vezes, faço alguns
passeios e não fico preso o tempo inteiro aqui. Mas ficar nesse estado de inatividade está sendo
insuportável. Quero partir para o ataque. Meus punhos estão roxos de tanto espancarem árvores
e meu saco de boxe. Até quando pretende protelar?
– Era só o que faltava. Está fraquejando? – Tedesco se irou. Está cada vez mais impaciente
– A essas alturas, está preocupado com sentimentos imbecis. Está fraco emocionalmente e isso, é
perigoso. Como poderá executar uma missão tão grandiosa como essa, se não pode vencer suas
próprias fraquezas? Nem parece um membro do Quartel. Não me faça ter ânsia de vômito.
Ernesto se sentiu constrangido.
– Você tem razão! Eu não sei o que anda ocorrendo comigo. Nunca fui de ter esses deva-
neios. Vou fazer o possível para me manter mais firme de agora em diante.
Um ruído indistinguível entoou na saída de som do aparelho.
– Nunca mais me ligue, entendeu? Não posso me arriscar – Tedesco pareceu um pouco
mais calmo. – Já não basta aqueles dois que me viram pessoalmente. Tem certeza que mais
ninguém sabe da minha ligação com você?
– Não! Os únicos que te viram foram a psiquiatra e Olegário, o agente de segurança –
respondeu Ernesto, discretamente.
– Ainda assim, é arriscado. Cedo ou tarde, terá que queimar o arquivo, se é que me enten-
de. Não quero provas contra mim. Suma com eles do mapa, antes que os mesmos abram a boca
e contem sobre mim. Se isso acontecer, todo o plano irá pelo ralo.
Ele forçou o telefone contra a orelha. Aproximou o fone dos lábios e baixou o tom de voz.
– Eu sei... compreendo bem a gravidade da situação. Mas não posso fazer o que você
deseja agora. Sabe bem o porquê disso. Mas farei assim que a situação for favorável. Não se
preocupe, sua identidade será preservada.
– Assim espero! – devolveu Tedesco – Agora me deixe em paz, tenho assuntos impor-
tantes a resolver! E não se agite, esse é uma ano corrido, sabe como sãos as coisas. Tem que se
manter mais paciente! Irei entrar em contato sempre quando puder, mas por enquanto, reduzirei
as frequências. Tenha um ótimo dia!
O alto falante emitiu uma sessão de baixos ruídos, o aparelho foi desligado. Pensativo,
Ernesto recolocou o telefone no seu lugar de origem.

36
William R. Silva

O CÓDIGO DE HONRA

O Quartel: Sala de Debates

7 de Novembro de 2013.

Mais de trinta cadeiras preenchiam o modesto saguão. Entretanto, todas estavam ocupadas.
Dionísio chegou tarde e por isso não encontrou uma brecha confortável para se acomodar. Ajeitou-
se num canto e ficou assentado sobre o piso com as costas apoiadas na parede. Devido ao mau jeito,
sentia-se incomodado e, frequentemente, ajeitou o corpo para amenizar o desconforto. No entanto,
para ele valia a pena. Não se importava. Assim como todos os outros garotos do Quartel, ele es-
tava a quase vinte minutos, distraído e satisfeito, ouvindo uma das histórias gregas que o membro
Diomedes relatava. O narrador, em sua mesa, contava uma sessão de acontecimentos para a plateia
de ouvintes. Seus contos já se tornaram tradicionais, o próprio Dionísio não perde quase nenhum e
sempre fez questão de assimilar as lições que as histórias passam.
O contador de histórias fez uma pausa para tomar um copo de água e seguiu com o roteiro.
– Adônis afastou este pensamento da mente e se fixou em outro: se ele conseguisse abater
este javali, sua capacidade como caçador seria incontestável! Ele seria conhecido em toda a Gré-
cia! Ele teria uma conquista que jamais poderia ser tirada dele! Confiando que no último instante,
o animal recuaria, Adônis empunhou sua lança, correu com seu mais alto grito de guerra contra
o javali e... sem demora, o animal avançou contra ele, com sua cabeça baixa e presas aguçadas...
– E assim Adônis acabou com ele, arrebentou com as fuças do javali! – interrompeu um
dos ouvintes.
Murmúrios insatisfeitos ecoaram no salão.
– Para de atrapalhar! Deixa ele terminar – reclamou um dos jovens ao seu lado. Outra
dezenas deles encararam o intrometido com desaprovação.
Diomedes verificou que o silêncio retornara, então seguiu com o relato:
– Vênus se assustando com um urro de dor vindo das profundezas, passou a procurar
Adônis incessantemente pela floresta. Ao fim do dia, ela ouviu gemidos fracos e uma respiração
curta. Assim, achou Adônis abatido, com a coxa perfurada de um lado ao outro por uma arma
aguçada e rombuda, o chão lavado em sangue. Ela chamou por Adônis, já em seu colo, tentando
mantê-lo acordado... o caçador caído tem tempo para olhar mais uma vez para ela, sorrindo... e
sucumbe ao ferimento, morrendo em seus braços.
– O quê? Fala sério – um dos espectadores se decepcionou –, o Adônis morreu?
Diomedes reparou que a maioria dos rapazes não se mostrou satisfeito com o desfecho
da história.

37
A Coragem

– Sim. O javali o abateu – o narrador concordou. – Ele o subestimou, mas isso não é foco
principal de lição de hoje. Assim termino essa análise. Esse é o mais importante legado que
os antigos deixam para nós, seja a história fictícia ou não, pois foram escritas por seres reais,
tirando como exemplo fatos reais. Preservem o seu nome, seu carácter e enfrentem os perigos
da vida de braços abertos. Vivam como homens, morram como homens, pois no final essa será
a única coisa que levaremos para a eternidade. E outra... – ele sorriu, triunfal – Nunca subestime
seus inimigos.
– Eu gostei bastante da história, amigo Diomedes! – comentou Dionísio de pé, com os
braços levantados visando alongar a coluna.
– Eu também! – adicionou outro no meio da sala.
– Todos nós gostamos, como sempre – revelou mais um.
– Que bom que gostaram, amigos! Fico feliz! Vou terminado por hoje. Força e Honra! –
saudou Diomedes ao levantar de sua mesa. Ele ajeitou seus pertences e saiu dando apertos de
mãos e tapas nas costas de quem via no percurso até a saída.
– Força e Honra! – repetiam todos ao vê-lo passar.

Dionísio se despediu de alguns membros com quem tinha laços de amizade e também se-
guiu para a saída. Ele avançou pelos corredores vazios rumando para a saída secreta que o leva-
va para a velha ferrovia. Entre portas e passagens, conseguiu alcançar o acesso principal. Subiu a
escada e tocou no grosso portão de ferro. Perante o decodificador de voz, anunciou sua retirada:
– Max Wolf, desconectar!
A porta de metal continuou imóvel.
– Max Wolf, desconectar! – berrou novamente. Frustrou-se, uma vez que a porta insistia
em não se abrir – Que diabos. Será que o sistema deu pane? – resmungou impaciente – Isso
nunca me aconteceu.
Um leve calafrio é sentido pelo rapaz. Sentiu que alguém o observava.
– Sabe que horas são? – um voz fez eco nas paredes da passagem estreita. Dionísio compro-
vou que suas suspeitas estavam certas – Deveria ter prestado atenção nesse detalhe! – o homem mis-
terioso continuou. Se bem que não era tão misterioso assim, Dionísio conhecia aquele modo de falar.
Ele girou nos calcanhares e se deparou com Thomas Bruso segurando a maçaneta de uma
porta entreaberta. O homem estava parado, contendo um riso que estava prestes a transbordar
em seus lábios. Viu que Dionísio se esqueceu de uma das regras básicas do recinto.
– Doutrinador, é você! Por que não está dando certo dessa vez? – perguntou Dionísio não
se agradando muito com a atitude de zombaria do mestre.
O lutador de cabeça raspada fechou a porta, deu alguns passos e parou diante dos degraus.
Ainda achando graça do jovem, olhou para cima e lhe deu a explicação:
– Por acaso se esqueceu de que o acesso principal é bloqueado durante o dia por medidas
de segurança? Ninguém entra pela ferrovia, ninguém sai pela ferrovia. Nesses horários é mais
fácil de alguém nos descobrir.
Dionísio viu que o superior tinha razão. Deu um tapa na própria testa e respondeu, en-
vergonhado:
– Nossa. É mesmo! – riu instantaneamente – Agora são duas da tarde, estou tão acostuma-
do a entrar e sair durante a noite, que me esqueci desse detalhe.

38
William R. Silva

– Não se preocupe! Precisava mesmo te ver. Vem comigo! – ordenou Doutrinador (Tho-
mas Bruso) ao fazer um gesto com a mão direita.
O mentor adentrou na sétima porta da fileira e o rapaz o seguiu. Os dois entraram no setor
de mecânica de veículos e condução de automotores, um dos preferidos de Dionísio. Pneus presos
na parede à esquerda, imagens de veículos possantes em forma de calendários, uma simulador 3D
com volantes e apetrechos computadorizados e um carro seminovo sendo desmontado. Uma turma
de jovens rodeava o professor enquanto ele os ensinava algo. Dionísio, na primeira vez que entrou
na sessão, apavorou-se pensando que aquilo se tratava de uma quadrilha de desmanche de carros
roubados, centenas de dúvidas ainda martelavam em sua mente mesmo após meses de conhecimen-
to dos cursos que haviam do lugar escondido. Seus temores foram embora quando viu que tudo ali
era de acordo com a lei. Todas as peças e veículos eram legalizados. O setor é onde os integrantes
aprendem sobre peças de carro, prudência no transito, conselhos sobre como manter suas máquinas
em bom uso entre outras dicas para amantes de veículo de duas e quatro rodas.
Thomas Bruso atravessou o salão e cumprimentou os presentes que montavam peças e
aprendiam lições com um engenheiro e um especialista em mecânica de automóveis. O rapaz se
apressou atrás dele. Doutrinador foi em direção a sua moto que estava estacionada num canto.
Pegando dois capacetes, passou um deles para Dionísio. O motoqueiro saltou para cima de sua
Hornet e ordenou que Dionísio se assentasse na garupa. O piloto enfiou a mão dentro da jaqueta
e de lá tirou um celular. Levou o aparelho em direção aos lábios. Após discar uma espécie de
senha, disse em tom de comando:
– Abra a porta número 4!
Três rápidos sons de alarmes soaram nos alto-falantes do saguão.
– Seu celular é conectado aos comandos eletrônicos do Quartel? – Dionísio ficou bastante
surpreso com a tecnologia. Ele montou e colocou o capacete.
O piloto assentiu com a cabeça afim de responder a pergunta do caroneiro. Nesse mesmo
momento, um dos acessos se abriu num rugido de metal, fazendo aparecer um extenso beco
estreito diante de todos. Thomas Bruso ligou a máquina e deu toques no acelerador, provocan-
do um ruído desagradável. Causando impacto no corpo de ambos, o homem no guidom fez o
veículo de duas rodas arrancar disparado por entre o percurso apertado. A velocidade era tanta
que Dionísio só conseguiu enxergar vultos de câmeras acopladas na extensa parede branca pas-
sarem por si. A Hornet transpôs uma abertura e penetrou numa área de preservação ambiental.
Quando o passageiro notou que já estavam fora da sede, uma fileira de árvores, matagais, plantas
selvagens e uma trilha de terra com gramas nas laterais brotaram diante de seus olhos. A moto
avançou pela trilha, ambos sentiram o vento forte, galhos e o matagal roçarem em suas peles. O
motoqueiro pilotava cada vez mais rápido. O corpo de Dionísio quase tombou com a pressão da
velocidade que o empurrava para trás. Entre curvas, subidas, trepidando entre pedras e ramos
secos, chegaram os dois na parte dianteira do Quartel. A Hornet saltou e deslizou sobre a linha
férrea. Os dois sentiram seus corpos quicarem em razão do atrito das rodas com o trilhos. Corre-
ram por mais de vinte metros até Thomas reduzir e frear. Eles se desequilibraram, mas firmaram
os pés no solo antes que pudessem cair.
– Por que me trouxe aqui? Pensei que me levaria até a cidade – Dionísio ficou confuso.
Desceu da Hornet e retirou o capacete.
Thomas Bruso bateu com a sola do sapato no descanso da moto e o fixou no solo. Ele tirou

39
A Coragem

o capacete e o pendurou sobre o guidom. Notou micos assustados pularem de um galho para
outro, escalarem troncos e desaparecer entre as densas árvores. O mentor reparou nas lagartixas
passeando pelos escombros, formigas operárias com seus pedaços de folhas verdes e resíduos
sobre o dorso rumarem enfileiradas. Ele desceu e começou a passear pelos trilhos até parar pró-
ximo à placa de madeira quebrada caída sobre os pedregulhos.
– Está vendo esse trilho? – o semblante de Thomas se encheu de orgulho – Ele parece não ter fim.
– Estou. Mas o que tem isso a ver? – inquiriu Dionísio contemplando a imagem do seu
superior diante da linha férrea.
O homem exalou o ar fresco e elevou os olhos para o céu azulado.
– Há muito anos, quando o Quartel se tornara um monte de aglomerados de teias de ara-
nhas, lixos e resíduos, repleto de animais peçonhentos e escondido do mundo, eu e mais quatro
homens depositamos nossas esperanças aqui. Cada um com seus problemas, cada um com seus
medos, suas frustrações e suas falhas. Eu, Thales, Sílvio, Ernesto e o mestre Nessahen. Todos
nós tínhamos personalidades, metas e objetivos diferentes. Apesar disso, nos unimos e constru-
ímos algo grandioso que jamais pensávamos que um dia seríamos capazes. Foi nesse instante
que descobrimos qual era a nossa razão de existência: Trazer esperança, transformar pessoas,
propor mudanças não somente para nós mesmos mas também para os outros que passaram por
problemas semelhantes aos nossos.
– Ernesto? – Dionísio franziu o cenho – Mas esse não é o tal mestre que enlouqueceu? Por
que o Ernesto ficou louco e foi expulso do Quartel? Se ele foi considerado o terceiro na hierarquia
dos mestres e, junto com vocês, foi um dos grandes idealizadores disso tudo aqui? E Nessahen, por
que ninguém fala nele? – Dionísio disparava perguntas como uma metralhadora carregada.
O homem mais velho se divertiu com a chuva de questionamentos do pupilo. Foi compla-
cente, uma vez que já fora daquela idade e sabia que rapazes como Dionísio eram sedentos por
informações. Então, prosseguiu:
– Nessahen, cuja identidade verdadeira é protegida a sete chaves, foi o primeiro mestre da
hierarquia, ele e o Sílvio foram os precursores e Ernesto... – ele faz uma pausa, levantou a cabeça
e suspirou preocupado –No início ele parecia ser bom, o melhor de nós três.
– Nós três quem? – indagou Dionísio vendo o homem de costas – Conte-me! Sei como são
as regras, mas não estamos mais na fortaleza.
Thomas soltou um risinho.
– Eu, Ernesto e Thales. Fomos os primeiros alunos do Quartel – O tutor se virou para ele
– Mas esqueça isso! Não foi por esse motivo que o trouxe até aqui.
– Então me trouxe até aqui pra quê? – volveu Dionísio andando até o mestre e parando
ao seu lado.
Os olhos de Thomas o fitaram de esguelha.
– Sabia que todos os grandes guerreiros do passado possuíam seu código de honra?
– Código de honra? – Dionísio o encarou – Bem, acredito que sim.
– Sim, eles tiveram – Doutrinador se inclinou sobre um tronco, levou os braços para trás
e continuou –, e foi graças a esse código que cada um deles carregava junto a si que se fizeram
heróis, ou na pior das hipóteses, os deixou de pé ante as batalhas. É esse mesmo código que fez
soldados se sacrificarem em guerras sangrentas em prol da defesa de suas esposas e filhos, guer-
reiros cravarem suas espadas afiadas em seus inimigos inescrupulosos, caçadores protegerem

40
William R. Silva

suas crias de animais perigosos, combatentes se arrastarem disparando rajadas em trincheiras


na esperança de voltarem inteiros para suas pátrias. Esse mesmo preceito transforma meninos
medrosos em valentes desbravadores. É a base dos raros e grandes heróis, generais, imperado-
res e demais líderes do mundo que prosperaram a deixaram seu legado na história. Todos que
ousaram desprezar o poder da honra falharam. Viram seus impérios ruírem, suas famílias, suas
pátrias e seus poderes serem reduzidos a pó.
O discípulo ergueu os olhos.
– O poder da honra! O padre Jerônimo já me falou sobre isso algumas vezes! É a força
oculta que nos rege, um misto de todos nossos valores pessoais, nossa fé e nossos ideais. Algo
que deve ser sempre cultivado, pois se o perdemos por um segundo sequer, somos fatalmente
penalizados pelo universo – deduziu o jovem sorrindo para seu tutor
– Exato – o homem no tronco confirmou. – Nós nem sempre somos justo com os outros e
as pessoas também costumam ser impiedosas conosco. Todos os seres humanos são falhos. Eu,
você e qualquer outro estamos suscetíveis a erros. Sei que nem sempre sou justo e complacente,
tenho meus defeitos, todos temos. Podemos perder a paciência, ter prejuízos financeiros, magoar
pessoas que nos amam e sermos culpados por atos imorais, mas a honra deve ser sempre preser-
vada, pois será ela que nos manterá de pé, de cabeça erguida perante nossas falhas humanas. É
uma das mais fortes conexões do homem com o criador...
Dionísio se sentiu desiludido por um breve instante.
– Que pena que a honra não existe mais nos dias de hoje! – ele observa a antiga sede
com certo pesar.
Thomas franziu a testa e o mirou.
– Engano seu. É isso que os imorais querem que pensemos!
Um mico saltou sobre a cabeça de Dionísio. Ele levantou a cabeça tentando acompanhar
a acrobacia, mas o animal já tinha se enfiado nos galhos esverdeados e desaparecido. Tornou e
prestar atenção no homem.
– Noticiários denunciam policiais corruptos sujando o nome da corporação – o mentor
reiniciou sua argumentação –, mas não mostram policiais honestos sacrificando suas vidas para
salvar a população e trazer segurança a nossas casas, cidades e bairros. Relatam milhares de
acidentes de trânsitos, assassinatos e outros atos de violência física. No entanto, não batem pal-
mas para médicos, bombeiros, enfermeiros e demais profissionais que se dedicam diariamente a
salvar vidas. Idolatram bandidos, marginais audaciosos e traficantes e se esquecem de pautar o
valor sagrado de pais de famílias honrados que dão tudo de si para dar o melhor para seus filhos.
Adoram mostrar destruição, por outro lado, se esquecem de relatar sobre as milhares de pessoas
espalhadas pelo mundo que se dedicam a ajudar os desafortunados, não só em questões finan-
ceiras, mas também os suprindo em muitas outras necessidades humanas. A dignidade humana
está muito mais presente do que você possa imaginar, o problema é que no mundo atual, essa
palavra foi banalizada, dando a impressão de que saíra de moda. Assim como tivemos heróis do
passado, também temos nos dias de hoje.
Sinais de esperança brotaram nos olhos do ouvinte.
– Tem razão, essa qualidade está sim presente nos seres humanos, há tantas coisas boas
no mundo que, por influências externas, acabamos por não percebê-las – reiterou Dionísio, com
bastante entusiasmo.

41
A Coragem

Thomas Bruso sentiu a brisa o refrescar por alguns segundos e prestou atenção na locomo-
tiva consumida pelo tempo e seus vagões quase destruídos. Então, novamente observou o aluno.
– Agora, sim, cheguei no ponto que queria!
– Chegou? – O semblante de Dionísio denotou curiosidade.
– Isso mesmo. Vou te contar um segredo... – Thomas encarou com firmeza a face do in-
terlocutor – Você teve um desenvolvimento muito superior a alguns dos membros mais antigos
de casa. Não é qualquer um que consegue alcançar o nível quatro com tanta rapidez.
– Valeu! Vindo de você, isso é muito bom – comentou o rapaz, animado.
– Por isso o trouxe até aqui. Terá que aprender uma das mais valiosas regras do código de honra,
escute-a e guarde com você onde quer que for. Nunca, em hipótese alguma, esqueça-a. Entendido?
– Qual seria essa regra? – inquiriu o aluno com os olhos atentos.
Thomas Bruso ergueu as sobrancelhas e disse em voz alta, fazendo-a ecoar por entre a vegetação:
– Diz para ele, Sílvio Koren!
Dionísio rodopiou e fitou o horizonte. Estreitou os olhos em direção a central de paredes
desgastadas. Lá estava a sombra de um homem se projetando no interior da construção e avan-
çando no breu. Há quanto tempo estava ali? Dionísio não fazia a mínima ideia. Não se espantou,
já que fora naquele mesmo local que vira o cômico e sábio mestre pela primeira vez. A luz do dia
tornou as formas de Sílvio Koren nítidas quando ele surgiu no lado de fora. Seu bastão quicava
nos trilhos de metal a cada toque que ele dava visando ganhar impulso e apoio para se mover.
Sorrindo ao ver o sujeito, Dionísio o interrogou:
– Desde que horas está aí em cima?
– Desde o momento em que chegaram – Sílvio sorriu. Firmou-se em um dos vagões en-
ferrujados e soltou as costas contra ele – Ouvi toda a conversa!
Dionísio recuou ao notar que a ponta de madeira afundou suavemente em sua barriga,
Sílvio riu quando sua bengala o acertou.
– A regra é nunca usar o que sabe para objetivos escusos. Muito menos para querer revidar
algo que lhe fizeram no passado. Mostrar-se superior ou qualquer outro ato covarde, caso contrário
tudo reverterás contra ti. Existe uma lei do universo e deves respeitá-la. Se não tomar para si seu
código de honra, será penalizado severamente pela vida. Aprenda isso, paspalho! – Sílvio concluiu.
– Vou guardar suas palavras comigo, grande mestre! – devolveu Dionísio.
– É isso o que queria que você soubesse, Dionísio! – reiterou Thomas Bruso.
– Também há outro assunto que queria lhe dizer – Sílvio se aproxima do rapaz. – Pelo que
sei, já faz ou vai fazer, três anos que frequenta o quartel. Não é?
Dionísio fez uma pausa, como se estivesse simulando um cálculo mental.
– Sim, faz sim.
Sílvio escalou o metal enferrujado e se sentou na cabide de pilotagem do vagão da locomotiva.
– Todo membro com três anos ou mais, passado os critérios de avaliação e provando ser
digno de carregar nosso legado, tem direito de trazer um novato para cá – o homem baixinho
explicou. Sílvio estava tão engraçado na cabine que mais se assemelhava a uma criança no
carrinho de brinquedo. Dionísio teve de segurar o riso diante da cena. O mentor mais velho
prosseguiu – Pode ser parente, amigo, colega, qualquer pessoa. A única exigência é que o novo
membro seja uma pessoa de reputação ilibada e de caráter.
– É isso mesmo, Dionísio. Tem alguém em mente para se tornar um de nós? – disse

42
William R. Silva

Thomas – Pode trazê-lo aqui quando quiser. Basta fazer os mesmos procedimentos de sempre.
– Sim – Dionísio respondeu – Há tempos tenho alguns nomes em mente, mas de todos, este que
estou pensando agora é o que mais precisa do Quartel. Com certeza, será ele quem enviarei para cá.

10

A DESPEDIDA

2 de Janeiro de 2014.

Quando arrancou com força a camisa do guarda-roupas, o tranco fez o amontoado de cabides
despencar, causando uma sequência de barulhos das peças de plástico atritando com o fundo de ma-
deira. Dionísio, segurando o vestuário, avaliou a penumbra de dentro do móvel retangular. Depois,
retirou todos os cabides e os lançou um por um em direção à cama. Estava munido de uma sensação
estranha, a qual não sabia ao certo como denominar. São comuns nos seres humanos sentimentos
de insegurança diante de transformações em certos setores da vida. Seus anseios iam além disso.
Ele dobrou a camisa e a colocou cuidadosamente sobre a mala abarrotada de roupas. Relanceou
o interior do móvel e viu que havia algo mais perdido no escuro. Por pouco não tinha enxergado
aquilo, visto que o objeto se escondia bem abaixo do compartimento em que guardava seus pares
de sapatos. Achou interessante, passados tantos anos, ter esquecido isso ali.
Ele se pôs de joelhos e cerrou os olhos. Descobriu o que havia, era uma caixa. Deslizou
a ponta dos dedos na base de madeira até conseguir apalpá-la. Um odor de naftalina veio junto
com a caixa quando a puxou. O cheiro invadiu o ar empoeirado do seu quarto e penetrou em
suas vias respiratórias. Trouxe uma leve irritação cuja desagradável sensação quase lhe cortou
a garganta. A caixa despencou no solo e ele levantou a tampa. Seus olhos faiscaram de emoção
ao se depararem com sua antiga coleção de revistas em quadrinhos. Quanto tempo estavam ali?
Não tinha a mínima noção. Sentiu-se novamente adolescente e esparramou as revistas no chão.
Folheou as páginas, admirou as imagens de heróis, monstros, seres e cenários estranhos estam-
pados em suas respectivas capas. Percebeu-se contente. Os antigos pertences surtiram um efeito
nostálgico tão intenso que o fez se perder em suas lembranças.

O novo lar
(Maio de 2004)

O disparo da buzina fez com que os pássaros içassem voo e fugissem desnorteados. O
homem desceu o mastro carregado de algodão doce sobre os ombros e o ergueu para que se

43
A Coragem

tornassem visíveis. A buzina que tinha na mão direita soou por repetidas vezes, fazendo pessoas
surgirem para pagarem pelos seus produtos adocicados. Recebeu o dinheiro e entregou-lhes a
mercadoria. O vendedor arriou o boné a fim de proteger a testa do sol e apertou sua pochete na
cintura, assim continuou a circular pela praça. Três garotinhos avançaram desatentos pela rua
de pedra em busca da guloseima. Um Honda Civic contornava a via, mas nenhum deles viu-o se
aproximar. O condutor freou bruscamente, um dos meninos deixou suas moedas caírem quando
se assustou com a derrapagem. Por pouco, o motorista não os atropelou.
Segurando o volante e o sapato ainda pesando no pedal, Átila suspirou fundo.
– Essa molecada não tem juízo mesmo – esbravejou. – Já imaginou se eu não tivesse parado
a tempo? Teria acontecido uma tragédia – notou a criança recuperar as moedas e correr para a praça.
O lado direito das gordas bochechas de Dionísio adquiriu uma marca avermelhada de tan-
to encostá-lo na janela do veículo. Durante quase toda a viagem, cochilou no banco de trás. Pelo
vidro, sonolento, o passageiro visualizou a garotada comprar alegremente algumas das sacolas
de algodão doce, rasgar os lacres e começarem a comê-los.
Nélson Átila dirigiu por mais alguns metros e parou na calçada. Se virou e encarou Dionísio.
– Essa será a sua nova casa! – o homem apontou para fora.
O menino gordinho vagarosamente abriu a porta. Pessoas caminhavam. Ele temeu sair,
pensando que iriam caçoar dele. Os transeuntes nem o notaram. Seus olhos se ergueram quando
ele deu de cara com a entrada da residência que se tornaria seu lar nos próximos anos. Tudo
aconteceu muito rápido: a vingança que dera errado, conhecera seu pai, deu adeus à mãe e a
sua cidade. Em menos de duas semanas, uma reviravolta em sua vida. Entusiasmo, esperança e
atordoamento bagunçam seus sentidos.
Quis ir atrás do pai, no entanto, nem moveu os pés. Enxergou um cão vadio dormindo
encostado no muro.
– Oi, amigo. Como vai? – brincou. Seu gesto foi bastante carinhoso. Aquele ser o fez se
lembrar de seu cachorro Sanção que abandonara. Os olhos do animal se abriram com preguiça, suas
pálpebras pareciam pesar. Reparou ligeiro no suposto amigo e o ignorou. O cão continuou a cochilar.
O motorista bateu a porta e deu meia volta até o porta-malas aberto. Pegou as malas
e as soltou no chão. Afastou a cabeça com um movimento brusco, arremessando o extenso
cabelo para trás. Então, disse:
– Ainda bem que as estradas estavam tranquilas. Demoramos menos de oito horas para che-
gar ao nosso destino. Bem-vindo a Realinópolis, garoto! A partir de agora, essa será a sua cidade.
Dionísio sorriu para seu pai. Afundou a mão direita no interior do bolso da calça, extraiu
uma de suas bolachas e a arremessou em direção ao animal dorminhoco. O bicho acordou so-
bressaltado e se levantou. Cheirou a bolacha e, desprezando a oferenda, foi embora sem dar
atenção a seu benfeitor.
Dionísio fez careta e resmungou, vendo a criatura se distanciar:
– Ingrato. O Sanção é bem mais bonito que você!
O novo habitante girou nos calcanhares e esquadrinhou os contornos do bairro. A bonita
praça, o pouco tráfego de veículos, as pessoas, o vendedor de algodão doce desfilando com seu
mastro, as árvores, os pássaros, a padaria, supermercado, comércios, a monumental igreja no
cume do morro e toda a limpeza do município. Tudo transmitia paz e harmonia. A cidade parecia
seguir em câmera lenta, bem ao contrário da capital, onde pessoas e transportes corriam sempre

44
William R. Silva

às pressas. Satisfeito, ele ergueu suas malas. O peso o fez querer fraquejar, mas aguentou firme
e as foi levando até a entrada da moradia.
Ao jogar sua jaqueta sobre o sofá da sala, Átila pegou o controle remoto o e apertou no
rumo da televisão. No aparelho, ressoou uma canção de abertura de um programa qualquer
assim que a imagem do apresentador portando um microfone apareceu na tela. O homem mais
velho desviou os olhos e reparou no filho. O menino rechonchudo rugiu esgotado no instante em
que soltou as malas no chão.
– Deixa a mala em qualquer lugar aí – seu pai avisou –, depois organizamos seus pertences.
Senta e descansa. Vou providenciar algo para comer, assim como eu, você deve estar faminto.
Sentiu um sorriso despontar em seus lábios, observando o pai ir para a cozinha. O adoles-
cente rolou os olhos e começou a reparar nos móveis do aposento. Eram mais simples do que os
que enfeitavam o lar de sua mãe. Mas, sentando-se no sofá, pressentiu algo especial que nunca
antes sentira em sua casa anterior. De repente, seu regozijo repentino deu lugar a uma leve inse-
gurança. Como será sua vida de agora em diante? O que vai ser? Suspirou.

O sino da igreja que berrava as dez badaladas cortou o fluxo de seus pensamentos. Dio-
nísio entendeu que o momento de partida estava próximo, então prosseguiu com a organização
de seus objetos mais importantes, para que pudesse colocar toda a sua mudança no carro. Seus
dedos puxaram com afinco o zíper, a mala custou a fechar. Estava abarrotada. Levou a mala
para perto das outras duas e as encostou na parede. Ele amontoou alguns pertences importantes
em cima da cama e apanhou com orgulho seu diploma de conclusão de curso. Já poderia ser
considerado uma administrador, embora com mínima experiência. Enfiou o documento em um
envelope e o introduziu em uma das bolsas. Imóvel, reparou o cômodo. Era incrível, já estava
com saudades de seu quarto antes mesmo de se desfazer dele.
Rumou para a cozinha e faz um rápido lanche. Transitando pelo corredor e preparando-se
para retornar ao quarto, enxergou pela porta do escritório entreaberta, Nélson sentado sobre a mesa.
O pai manuseava alguns papéis e com a outra mão, controlava o mouse do notebook. Passados
quase dez anos vivendo juntos, depois de tristezas, desentendimentos, alegrias e superações, final-
mente estava prestes a abandoná-lo. A situação para ele era mágica e, ao mesmo tempo, estranha.
Queria agradecê-lo por tudo, dizer ao genitor o quanto ele é e foi especial. Entretanto, Dionísio
sofre de um dos mais sérios problemas da psique masculina: a dificuldade de demonstrar seus
sentimentos. Por um instante, hesitou em ir até o fundo do corredor. Refletiu um pouco e suspirou.
A passos firmes, entrou no escritório deixando a porta escancarar atrás de si.
Átila agora digitava algo no computador portátil enquanto lia algumas anotações impres-
sas num caderno de arame. Tamanho era o empenho em sua tarefa que nem notou o filho entrar.
Dionísio contemplou a grande estante de livros localizada atrás do homem de cabelos
longos. A pilha de impressos estava perfeitamente enfileiradas. Átila conhecia todos os títulos
e assuntos. Lera todos. Discretamente, o intruso arrastou uma cadeira fazendo-a produzir o som
de madeira raspando o assoalho. Com o leve ruído irritante, o homem ergueu as sobrancelhas e
lançou seu conhecido olhar intimidador sobre o descendente.
– Deveria estar preparando suas malas – ele tirou os olhos de Dionísio e continuou seu
trabalho. – Quanto mais cedo viajar, melhor a estrada.
Sem se preocupar com a reação do pai, Dionísio encostou a cadeira abaixo da janela e se

45
A Coragem

sentou com um dos braços no lado de fora. Ele ficou a estudar a imagem do trecho da grande praça
que terminava em uma grande via perpendicular. Em seguida, levantou os olhos e observou o céu.
– O tempo está a meu favor – o homem mais jovem pronunciou. – Nenhuma chuva deverá
me atrapalhar no percurso.
Átila novamente interrompeu seu ofício e o observou.
– Creio que já esteja com tudo pronto, não?
Ele continuou a se concentrar na paisagem, mas Átila compreendeu sua resposta quando
fez que sim com a cabeça. Cerca de dez segundos foi o suficiente para que a voz de Dionísio
tornasse a ecoar na pequena sala.
– Em menos de uma hora, eu irei seguir viagem – o rosto do jovem se voltou para o em-
presário na mesa. – Na verdade... – sorriu, timidamente – vim me despedir de você.
Nenhuma reação aparente se desenhou na face de Átila. Ele desligou o notebook, aguar-
dou uns instantes e arriou sua tampa.
– Quer dizer, então, que a partir de amanhã serei de novo um homem solitário? – o canto
de sua boca se desatou num meio sorriso.
Contagiado com o ato de bom humor, Dionísio respondeu:
– Sozinho por que quer – falou em tom desafiador. – A Michele é louca para viver com
você. Pensa que nunca reparei?
O empresário guardou os documentos numa das gavetas e fechou o caderno. Pôs-se de pé
e caminhou na direção do filho. Também deixou o braço direito sobre a janela e resolveu vigiar
o movimento na rua. E disse, com firmeza nas palavras:
– Cada um com sua vida. É melhor assim, acredite!
– E se ela arrumar outro? Não se preocupa com isso, não? – revidou o rapaz, com certo receio.
Uma carroça com quatro barris de leite atravessou a rua com o vendedor sentado coorde-
nando o cavalo. O tilintar da ferradura do animal batendo no chão de pedra alcançou os ouvidos
de Dionísio e seu pai. Eles se centraram na travessia e se desligaram da conversar até que o
leiteiro desapareceu do ângulo de visão e o barulho dos trotes cessou.
– No dia em que ela quiser ficar com outro homem – a voz de Nélson quebrou o silêncio –,
com certeza ela vai ficar, e isso independe de ela estar morando comigo ou não. Estarmos no mesmo
teto não interfere em nada. O que rege um ser humano é seu caráter e não o relacionamento em si.
– Será mesmo que você não a quer aqui com você? – reagiu Dionísio. Os dois trocaram
olhares – Não que eu duvide de você, mas acho difícil se acostumar com a solidão.
Seu pai deu um sorriso involuntário e o fitou.
– Veio aqui para falar da sua viagem ou para discutir sobre minha vida sentimental? –
questionou, brincalhão – Creio que está bastante ansioso, não? – ele voltou sua visão para o
movimento na praça.
O semblante do homem mais novo mudou. Mostrou-se meio acanhado. Respirou profunda-
mente e tentou pensar num modo de agradecer à pessoa que tanto lhe ajudou em sua evolução. Aque-
le que lhe salvou da morte. Sem entender bem o motivo, não encontrou palavras para se expressar.
Brigar era fácil, dizer o que havia dentro de seu coração, não. Sempre desejou dizer que o ama, que
o admira e sonha um dia ser como ele. Entretanto, nunca foi capaz de pronunciar tais confissões. Um
abraço, um obrigado ou seja o que for. Precisava se destravar, liberar os sentimentos aprisionados em
seu íntimo. O que dizer? Como agir? Parecia que a postura fria do pai o atingira por osmose.

46
William R. Silva

Dionísio simulou mover os lábios, mas nenhuma frase soou. Emudeceu. Átila franziu o
cenho assim que o notou confuso. Fitou o filho com rigidez, como se estivesse esperando algo
vir dele. Dionísio hesitou por um curto tempo, mas ganhou coragem e iniciou:
–Pai! – sentiu o ar faltar – Queria lhe dizer uma coisa!
– Fale – o genitor incentivou.
– Eu queria te... – o telefone na mesa tocou. O rapaz na janela se calou e o outro andou
até a mesa, tirou o aparelho do gancho e atendeu a chamada. A troca de informações entre o
empresário e um de seus fornecedores durou pouco. Dando por encerrada a ligação, o homem
retornou para perto do companheiro.
– Você iria me dizer alguma coisa. O que era? – reiniciou, mirando os olhos de Dionísio que
imediatamente fugiram dos seus. Se surpreendeu, pois isso era algo que há anos não acontecia.
O jovem coçou a cabeça e olhou para o genitor.
– Nada, não... – deu as costas e se dirigiu à porta, mas parou defronte a ela. Precisava
dizer o que sente, aquela era a hora. Um sentimento de paz, ansiedade, orgulho e alegria agora o
envolvia, trazendo todas suas emoções à tona. Ele bruscamente se virou, avançou até o pai e lhe
deu um abraço apertado. Seus braços pareciam querer esmagá-lo. Dionísio com os olhos quase
transbordando em lágrimas, encarou a face do mentor. Tantas lições sobre autocontrole e mascu-
linidade recebera do pai que tinha temor em chorar na sua frente. Mas que mal havia de chorar?
Os braços continuavam a envolvê-lo. Era a primeira vez, em muitos anos, que Átila se
sentiu desconcertado, sem ter o que dizer. Agora, era ele quem não sabia como agir. Ficou sem
ação. Há anos cultivou a habilidade de não demonstrar suas emoções, mas aquilo o pegou des-
prevenido. Suas lágrimas queriam escorrer pelo rosto. Ele as conteve como pode.
Dionísio sentiu a grande emoção se intensificar e envolver-lhe a alma.
– Muito obrigado por tudo, pai! – começou – Nada nesse mundo vai ser capaz de expres-
sar o que eu sinto por você, nada! Você foi a melhor coisa que me aconteceu na vida.
– Acho que essa é a primeira vez que recebo um abraço seu durante todos esses anos –
Átila sorriu, sentindo o calor humano que emanava do rapaz – Mas se começar a chorar, juro que
te encho de porradas e te lanço pela janela – zombou, acariciando as costas do filho.
Dionísio se sentiu aliviado. Antes um incômodo pesava-lhe às costas, agora se via liberto. Ima-
ginou que se sentiria um fraco. Pelo contrário, passado o momento de afeto, estava mais confiante para
seguir sua jornada que antes. Beijou a barbuda face de Nélson e pôs suas mãos nos ombros dele.
– Se cuida! – disse e finalmente saiu.
Orgulhoso, o homem anuiu com a cabeça enquanto via o pupilo de tantos anos andar pelo
corredor.
– Vê se toma cuidado! – gritou ele, vendo o filho sumir no vão da porta – Não vá sair acelera-
do feito um louco pela BR – silenciou-se, escutando as pisadas do rapaz indo em direção ao quarto.
– Tudo bem, pai. Vou seguir o seu conselho – a voz de Dionísio produziu um eco.
Átila tornou a se debruçar sobre a janela. Um vento fraco moveu seus longos fios negros.
Suspirando feliz, sussurrou falando consigo mesmo.
– Deus o abençoe nessa sua nova jornada. Deus o abençoe! – uma de suas raras lágrimas
escorreu pelos seus olhos, umedeceu sua pele e correu pelos lábios. Ele gostou, já tinha se es-
quecido o quanto era bom vivenciar momentos de tal intensidade.

47
A Coragem

II

O RETORNO

11

O RETORNO

Sente-se como se o mundo lhe pertencesse, assim seguia rumo a seu destino. Um destino
incerto, por outro lado, muito esperado. Entende que irá cursar pós-graduação, reencontrar sua
mãe e a irmã. Sorri ao se lembrar da pequena. Terá de encontrar sua antiga casa, seu quarto.
Ainda assim, seu futuro era misterioso. Os alto-falantes berravam uma música agitada na medi-
da em que o Honda avançava no asfalto. Essa foi a melhor forma que encontrou para controlar a
ansiedade. Houve momentos em que parecia que o carro estava imóvel e o cenário a sua volta é
que se movia. Cercas, placas, montanhas e árvores dançavam a sua volta.
Não podia correr além do limite, os conselhos paternos se cauterizavam em sua mente.
Seguiu um longo trajeto sozinho na rodovia. Sua tranquilidade acabou assim que fora alcançado
por uma moto barulhenta. Ela passou zunindo ao lado do veículo e desapareceu. Há poucos
quilômetros a sua frente, um caminhão. Bem atrás, um corsa Sedan e, na contramão, um gol que
passou como um vulto e foi engolido pelo horizonte.

48
William R. Silva

Faixas amarelas na pista se curvavam, moviam e se tornavam pontilhadas. Calculou a


distância. Em uma pequena fração de segundos, desceu o pé no pedal e invadiu a contramão.
Conseguiu se parear com o veículo de grande porte até ultrapassá-lo. Seus olhos notaram o ca-
minhão longínquo no retrovisor. Depois de correr uma boa distância, avistou uma placa verde.
Conseguiu ler a descrição, dizia que acabara de passar perto da divisa de Alpinópolis. Mais
algumas horas se passaram, atravessou o município de Capitólio.
Quando a cidade de Piumhi foi exibida, rapidamente desapareceu. O vento batia agressi-
vamente em sua face, não se importava. Assim que alcançou a BR seguinte, reduziu a velocida-
de e prestou atenção curioso num grupo de soldados do corpo de bombeiros. Também enxergou
uma viatura da polícia rodoviária e, mais adiante, um carro capotado na pista contrária, comple-
tamente danificado. Era um Siena que colidiu de forma violenta na lateral de um caminhão no
quilômetro 494, próximo ao acesso do município de Formiga. Tudo indicava que o motorista
morrera no impacto. Em virtude disso, decidiu ter ainda mais prudência. Tornou a lembrar as
recomendações do pai.
Interrompeu por alguns minutos a viagem, pois teve de recompor as energias almoçando
num restaurante. Tempos depois, já estava de volta na estrada.
Quanto mais se aproximava, mais difícil ficava para controlar sua ansiedade. Alegrou-se
ao ver Divinópolis, já ouvira muito falar dessa cidade. Passando por Itaúna, colocou uma música
mais branda para acalmar seu estado de agitação. O sol já se prepara para se esconder quando
se aproximou de Betim.
Falta pouco! Corridas mais de sete horas que partira de Realinópolis, o viajante finalmen-
te chegava em seu destino. Escancarou os olhos contemplando as primeiras imagens da capital
de Minas Gerais brotarem na paisagem. No início, teve trabalho para se guiar no engarrafamen-
to. Toda aquela quantidade de veículos, pedestres e motocicletas o atrapalharam, mas em pouco
tempo entrou no ritmo.
Conseguiu passar pela primeira etapa, já estava próximo à rodoviária. Notou que muita
coisa mudou. Na avenida, guiou o Honda Civic até se deparar com a praça sete. Parou de fronte
ao sinal vermelho, observando admirando a imensidão dos prédios, comércios, bancos, sinais
de trânsito e aquele enorme contingente de pessoas circulando pelas vias de acessos. Tinha von-
tade de descer e correr a pé toda a cidade para ver o como mudou, mas nada fez, pois sabia ser
impossível naquele momento.
Com muito custo, depois de mais de uma hora, conseguiu chegar próximo a seu antigo
bairro. Logo de início, observou a fachada do colégio São Magno e o parque ecológico. Sentiu
certa angústia apertar-lhe o peito. Recordou-se de como fora sua adolescência, principalmente
em relação à barbaridade que iria cometer tentando matar seus agressores e tirar a própria vida.
Mas logo desistiu de ficar ali, partiu. Por fim, chegou a sua velha moradia. O portão era o mes-
mo, mas a cor estava diferente, não estava mais branco e sim azul.

Parou o carro próximo à calçada, mas sem descer. Reparou a vizinhança enquanto abria
vagarosamente a porta do carro. Retirou sua velha chave do porta-luvas, a mesma que levou
consigo quando se despediu. Ele saiu. Encaixou a chave no portão, girou-a e conseguiu abri-lo.
Sua dedução foi correta, sua mãe pintou o portão, mas não mudara a fechadura.
Sorriu, apesar de sua reação ter tido algo de nervosismo embutido no semblante. Ele

49
A Coragem

examinou cada parte do quintal visando descobrir o que mudara. Sabia que seu cachorro tinha
falecido, nenhum outro animal tomara seu lugar. As paredes da residência, assim como no lado
de fora, também mudaram de cor, de branco, passaram a verdes. Dionísio gostou, pois era uma
cor mais viva que a anterior.
Na medida em que adentrava na moradia, prestava atenção em todos os detalhes: encosta-
da na parede, uma pequena bicicleta vermelha com cestinho, no chão via-se bonecas, panelinhas
e um monte de brinquedos espalhados. Roupas no varal, vasos de plantas presos ao muro, rosas
e margaridas plantadas num pequeno canteiro de terra preta. Tudo estava bem melhor que na
época em que vivera na casa, havia mais alegria no seu antigo e mais novo lar.
A porta da cozinha estava aberta, entrou. Os móveis eram novos. Continuou a incursão
e encontrou o cômodo seguinte. Empurrou a porta e observou seu antigo quarto surgir com os
mesmos móveis, quadros e utensílios. Maria Clara não mudara nada, seu quarto está como dez
anos atrás. No começo, sentiu-se mal ao entrar, pois a sensação depressiva começou a invadir-
lhe a alma. O antigo Dionísio melancólico, triste e isolado, aquele sem nenhuma esperança para
o futuro, fadado a humilhações e fracassos quis se apoderar de suas emoções.
Imediatamente, afastou tais angústias de seus pensamentos. Nada estava empoeirado. O
tapete, lençóis, cortinas e cobertores estavam limpos e perfumados, mesmo não estando nin-
guém a usá-los durante anos. Tudo indicava que com certa frequência havia faxinas e limpezas
no lugar. Abriu uma a uma as gavetas do seu velho, mas conservado, guarda-roupas, e notou
uma de suas antigas fotografias. Suas bochechas gordas e rosadas, seu semblante estava de-
pressivo e detinha uma postura totalmente desengonçada. Observou canetas, papéis, revistas e
alguns objetos que ele gostava de usar para passar o tempo, uma variedade de papéis rabiscados.
Tateou a trava da janela e a abriu. Uma leve brisa refrescou-lhe a face. Retornou para o
corredor e caminhou até a entrada seguinte. Espiou o outro aposento. Um tapete rosa florido co-
bria o piso. No centro, uma minúscula mesa com duas cadeirinhas. Não só o carpete, mas todas
as paredes, os móveis e o balaústre eram dessa mesma cor. Entrou vagarosamente e segurou o
riso quando percebeu as estrelas, uma lua e imagens infantis pintadas no teto. Bonecas, ursos e
brinquedos no armário. Concluiu que estava no quarto de Kamille.
Ele abriu os olhos e se sentiu emocionado. A menina sentada no tapete com as costas apoia-
das na beirada da cama, mexia a cabeça, fazendo um zumbido com as cordas vocais querendo re-
produzir a melodia de uma música qualquer. Kamille ainda não o notara. A menina mantinha uma
Barbie no colo. Cantarolando, penteava alegremente o cabelo da boneca, dispersa.
Pisando devagar, Dionísio prendeu a respiração. Soltou o ar e gritou:
– Cara de queijo!
Nos primeiros segundos, Kamille se apavorou. Logo mudou sua feição e sorriu. Só existia
uma pessoa no mundo que a apelidara daquela forma. Ela arremessou a boneca num cesto vazio
e deixou o pente no chão. Seus pés se afundaram no colchão no instante em que saltou para cima
da cama. Kamille retirou os fios louros que caíam-lhe sobre o nariz e riu tornando visíveis duas
falhas em seus dentes. Nenhuma palavra era capaz de traduzir o brilho de saudade que emitiu
seu rosto inocente.
Ela deu três passos desarrumando o lençol e parou diante do rapaz.
– Nossa! – seus olhinhos se espicharam. Observou o irmão de cima abaixo – Você está
gordo, hein?

50
William R. Silva

– Gordo, eu!? – Dionísio riu do comentário. Estava sim mais corpulento, mas nada além
do normal. Na última vez que ela o viu, não tinha os músculos hipertrofiados da madeira como
estava naquele momento.
Kamille abriu os braços e voou para cima dele. Os braços de Dionísio também a envol-
veram e dois se apertaram um contra o outro. Sentiu a respiração contente da pequena soprar
em seu ouvido.
– Vai morar aqui? – ela perguntou com os lábios quase encostados na orelha do irmão –
Por favor, diz que vai!
O irmão levou os dedos até seu rosto e começou a alisar seus cabelos. A garota deu uma
risadinha. Dionísio a encarou. Então, respondeu:
– Sim!
O colchão ficou a ranger conforme Kamille saltitava na cama levantando as mãos.
– Meu irmão vai morar comigo! – falou em voz alta. Seus saltos eram cada vez mais altos.
Dionísio temeu que a cama pudesse se quebrar, mas o móvel resistiu à pressão do leve corpo
despencando sobre ele – Meu irmão vai morar comigo – berrou – Viva, viva!
O grito alcançou a rua. Maria Clara, por ter escutado a exaltação da filha, estacionou seu
carro e invadiu às pressas a sua residência. Sentiu um ar de pavor exalar dos pulmões, imaginou
que a menina estivesse em perigo. A mulher adentrou no quarto da filha e recuou ao se deparar
com o homem.
Mãe e filho trocaram olhares. Maria não imaginava que iria sentir uma emoção tão forte
quanto aquela assim que observasse os dois herdeiros. A mulher moveu os lábios simulando
dizer algo, mas as lágrimas trancaram sua boca enquanto escorriam.

12

O PRIMOGÊNITO

Em Realinópolis

5 de Janeiro de 2014.

Meia dúzia de crianças corriam à gargalhadas pela rua despavimentada. Não se cansavam,
queriam a todo custo alcançar o grupo de dançantes que estava bem à frente. Como tradicional-
mente acontece, todos os anos os três foliões com a máscara dos três reis magos, junto a sua banda,
circulavam pela cidade para celebrar o nascimento do menino Jesus. Desde os mais velhos até os
pequenos, ninguém gostava de perder a celebração. Bastava um longínquo barulho de sanfona,
sopro de gaitas e batuques no tambor para que os moradores arredassem os pés de suas casas e cor-

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A Coragem

ressem para a rua. E lá vinham eles: a bandeira, carregada por um homem negro, alto e magro, com
a gravura dos três reis magos, enfeitada com flores e fitas azuis, vermelhas amarelas e roxas, abria
espaço por entre a estrada de terra. Logo atrás de si, um grupo de aproximadamente vinte pessoas,
todas trajadas de vestes coloridas, sapateando, dançando e dando pequenos saltos lançando suas
fitas coloridas no ar. Em sua maioria, mandando notas musicais nos violões, batendo nos tambores
e seguindo suas coreografias. Entre eles, Senhor Emanuel tocando alegremente sua sanfona e Se-
nhor José Pereira com seu cavaquinho, que com muita seriedade, orquestrava a folia de reis. Ambos
usando seus tradicionais chapéus, ao lado dos três mascarados, que dançavam determinados em
volta dos integrantes da festa popular, arrancando, assim, sorrisos de admiração de moradores,
tanto nas ruas quanto encostados sobre suas varandas, janelas e até mesmo por cima das lajes. Lá
iam eles pela via, assustando crianças pequenas e sendo agraciados por cumprimentos de pessoas
que passeavam no momento em que ocorria a procissão.
Marisa, por ordem de sua vó que percebera a companhia se aproximar de sua casa, car-
rega com dificuldade, um galão de vinho tinto para a calçada. Com cuidado para não quebrar o
fundo de vidro, colocou a garrafa sobre o chão. Depois, retornou para dentro e voltou com uma
embalagem de copos descartáveis. Ela ficou sozinha, parada em frente à entrada de sua moradia,
aguardando o grupo de dançantes se achegar.
Seu avô, um senhor simples e já de idade avançada, escutando a melodia suave que inva-
dia as janelas de sua residência e ecoava pelas paredes, pisou devagar por entre os cômodos se-
guindo para a calçada. Antes, ajudou sua esposa a levar uma das bandejas de bolo que carregava.
Unindo-se a ela, foram os dois para fora e aguardam o grupo na companhia da neta.
Um dos homens que usava a máscara de bastião, se achegou sapateando para perto dos
três. Interrompendo seus passos, parou em frente ao dono da casa. Cessando a menção de cantos
e melodias, o integrante, diante da moça e seus avós, iniciou seu show de versos.
– O de casa, nobre gente... escutai o que direi...É da parte do oriente, é chegada dos três
reis! – versou o sujeito. Ele concertou a máscara.
O senhor educadamente retirou seu chapéu preto e o colocou sobre o peito. Depois, retri-
bui a saudação:
– Vem seu moço, vem bom veio, vem menina, vem sinhá, aos três reis do oriente, vamos
todos saudar!
Ouvindo a saudação do idoso, escutam-se gritos vindo da rua:
– Viva, viva!
– Ô de casa abre a porta, vem o gente me atende, pros santos reis uma esmola, venho aqui
arrecebê – prosseguiu o outro mascarado balançando a cabeça e gesticulando.
O respeitável homem deslizou a mão sobre o bolso e sacou duas notas de dez reais. Com
bastante consideração, colocou as cédulas dentro de uma caixa que um dos tocadores segurava.
O mascarado agradeceu a doação e pegou um dos copos cheios de vinho que Marisa servia.
A moça carregou a bandeja com pedaços de bolo e copos de plástico com bebida. Ca-
minhou em direção aos membros do grupo e foi lhes entregando o agrado. Todos sorriam em
retribuição na medida em que pegavam o conteúdo.
Terminado o intervalo e se despedindo dos benfeitores, ajeitaram cada um suas roupas,
seus instrumentos, acertaram cada qual suas máscaras e recomeçam a celebração. Um bando de
meninos e meninas risonhos e apressados correu atrás do grupo.

52
William R. Silva

Marisa, apesar de seus avós já terem retornado para dentro de casa, permanecia encostada na
parede da varanda. De pé, admirou a turma de festejantes se distanciarem e a alegria das pessoas a sua
volta. Constando que estava realmente só, cuidadosamente, deslizou os dedos para dentro de sua blusa
e começou a acariciar sua barriga. Embora estando naquele lugar em corpo, sua mente sem que ela
perceba, viajava para um tempo distante, no momento em que viu Dionísio pela última vez.

Na casa de Dionísio
(Dois meses antes)

O estalo de um raio chicoteou no céu, Marisa se assustou, seus olhos azuis se espicharam.
A chuva que caía sem parar, ao despencar sobre as telhas da residência de Átila, sai escorrendo
e descia molhando parte dos vidros da janela trancada. A jovem no lado de dentro, tocando
sutilmente os dedos na vidraça, observava distraída a árvore no lado de fora e suas folhas farfa-
lhando, recebendo as gotículas de água.
– Assim que a chuva terminar, te levo pra casa – avisou Dionísio revirando o sofá da sala
a procura do controle remoto da televisão – É perigoso sair nesse temporal. Tenha paciência!
Marisa se virou para o rapaz, receosa. Então, ela respondeu de forma educada:
– Fico muito agradecida por me trazer aqui. Se não fosse por você, estaria no meio desse tem-
poral. Mas não é bom uma moça ficar sozinha com um homem dentro da casa dele – sua voz denota-
va preocupação –, ainda mais quando esse homem não é namorado e nunca quis nada sério com ela.
Dionísio se constrangeu com a indireta. Puxou uma almofada e encontrou o controle de-
baixo dela. Ao invés de se preocupar em ligar a TV, dedicou-se a tranquilizar a moça.
– Pode ficar sossegada! Por acaso não confia em mim? – inquiriu ele olhando em sua di-
reção. Internamente, quer acalmar seus desejos, uma vez que, desde que a trouxe para sua casa,
fora invadido por pensamentos maliciosos. Talvez a pergunta que fizera não serviu somente para
ela, mas também, para si mesmo.
– Na verdade, não... – Marisa respondeu. Seu peito se estufou no ritmo de sua respiração – Pior
ainda, não confio nem em você... e nem em mim – ela imediatamente se arrependeu do que disse.
Seus olhos se cruzam intensamente e a água caindo no lado de fora pareceu mais pesada. Num
breve instante, Dionísio quase perdeu o domínio de seus instintos. Sentiu seus impulsos quase to-
marem conta de suas ações. Esteve prestes a ir em direção a garota, jogá-la sobre o sofá e retirar sua
roupa. Não passou de vontade. Nada fez. Subitamente, ele virou o seu rosto, ergueu o controle e ligou a
televisão. Um forte sentimento de indecisão os fez se calarem. Marisa tornou a se concentrar na chuva.
Suas palavras foram verdadeiras. Seu corpo estava em chamas, mas seu senso moral a inco-
modava. Sentia-se suja, jamais pensou em se deitar com um homem sem que ele fosse seu marido.
Mas não é isso o que ela deseja incontrolavelmente neste momento? Ou será que não? Estava confu-
sa. A vida inteira fora ensinada a preservar sua castidade. Suas amigas a rotulam de careta, ela não se
importava. No fundo, o que a perturbava não era o julgamento dos outros, e sim os dela em relação a
si mesma. Não quer decepcionar seus avós. Precisava tomar uma atitude antes que seu corpo padeça.
Viu que Dionísio estava distraído, tomou coragem e correu para a porta. Agarrou a maçaneta, porém,
cessou o movimento assim que sentiu os dedos de Dionísio apertarem seu pulso.

53
A Coragem

Ele a segurou com firmeza, encarando-a.


– Eu disse para esperar a chuva passar, não é bom sair agora – seu cenho franziu – Por que
quer se arriscar nesse temporal? Eu já não disse para confiar em mim?
Os olhos azuis da garota estavam medrosos e... ardentes. O rapaz a conduziu para o centro
da sala e a fez se sentar. No mesmo sofá, os dois ficaram próximos.
Marisa firmou o cotovelo nas pernas. Cabisbaixa, começou a esfregar aflita os longos fios
de cabelo. Sua razão orientava para que ela fugisse dali, mas sua emoção insistia em fazê-la ficar.
– Vou buscar alguma coisa para comer – Dionísio se levantou – Você deve estar com fome.
Ela se concentrou novamente no barulho da chuva. Ergueu a face e o fitou.
– Sim, seria bom. Eu agradeceria!
Marisa olhou de relance enquanto o viu se dirigir para a cozinha. Constatando que ele não
está mais por perto, disse, temerosa:
– Parece que essa chuva vai demorar...
Dionísio pegou alguns pães de forma no armário, abriu o refrigerador e apanhou uma em-
balagem de mortadela, mussarela e um refrigerante. Organizou tudo em uma bandeja retangular.
Refez seu trajeto segurando o lanche e a garrafa de dois litros. Examinou a sala, a moça não
estava mais lá, o sangue gelou. Seus olhos encontram a porta escancarada. Pingos de chuva tra-
zidos pela ventania atingiam o tapete estendido. Surpreendido, ele arremessou o refrigerante e os
alimentos no sofá. Saiu afoito, atravessou a porta e viu Marisa se lançar em meio ao pé d’água.
– Marisa! – berrou ao enxergá-la ensopada no meio da rua – Não faça isso!
Num lapso, como se estivesse voltando no tempo, Dionísio visualiza Catarina dançando
alegremente, recebendo gotas de água sobre o corpo. Paralisado, sendo tomando pelas lembran-
ças nostálgicas da adolescente falecida, ficou a reparar a mulher encharcada diante da praça,
completamente sem ação.
Após ouvi-lo chamar seu nome, Marisa ficou por um tempo a encará-lo, sentindo o agua-
ceiro a inundar-lhe. Desorientada, percebeu que as circunstâncias não lhe permitem enfrentar o
temporal. A chuva era densa demais. Raios faiscavam vez ou outra por entre as nuvens carrega-
das. O que pretendia fazer era arriscado. Olhou para o rapaz parado na escada, suspirou fundo e
retornou para dentro da morada do filho do patrão.
Ao ir ligeira para dentro da sala, sentiu-se constrangida ao constatar que parte do piso
estava ensopado. Escorrendo água pelo rosto, com os cabelos bagunçados e suas vestimentas
totalmente ensopadas, encarou-o apreensiva.
– Por que fez isso? Enlouqueceu? – Dionísio meneou com a cabeça. Se sentiu culpado
pelo ato de insanidade da moça – Vem comigo! Precisa se trocar, acho que tenho uma calça e
uma camisa que servem em você.
Segurando em suas mãos, levou-a até seu quarto.
Marisa tremia de frio com os braços encolhidos sobre os ombros enquanto ele fuçava o
guarda-roupas à procura de peças de vestuário que sirvam nela. Ele tirou a toalha do cabide. Sem
olhar para a moça, entrega-lhe a peça de banho. Encontrou uma calça e uma camisa velha da épo-
ca em que tinha menos massa muscular. Se virou para a jovem e a reparou sem camisa. Sentiu seu
coração palpitar. Marisa estava apenas com a calça jeans molhada e seu sutiã branco.
Enxugando-se distraída, soltou a camisa ensopada sobre os pés. Manuseou a toalha sobre
os cabelos. Ao tirá-la do rosto, deu de cara com o homem a fitando com o olhar queimando de

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William R. Silva

desejo. Seus sentidos novamente se tornam conflitantes, ela pensou em hesitar, mas descobriu
que não tem mais forças para fugir. Dionísio se entregou a suas fraquezas internas. No calor da
tensão, passou as mãos pela cintura dela e a prensou contra o próprio corpo. Ela não lhe ofereceu
qualquer resistência física. Embora cogitasse a ideia.
– Não, Dionísio... – suplicou respirando ofegante. Seus olhos se prenderam ardentemente
nos dele – Por favor!
– Eu sei que você quer tanto quanto eu. Eu sei disso! – falou ele.
Ele aproximou seus lábios lentamente dos dela e se entreolharam por alguns segundos.
Subitamente, começaram a se beijar impacientes como se estivessem a se devorar. Desabotoou-
lhe o sutiã e deixou seus seios soltos. O homem ia lhe acariciando os mamilos na medida em
que aumentava a intensidade de seus beijos. Se despindo afoito, Dionísio a jogou sobre a cama.
Embriagando-se com a própria libido, empenhava-se a corromper a pureza da jovem.
Aos sussurros, perdendo a noção de tudo a sua volta, do ambiente e de si mesma, ela lhe
entregava seu bem mais precioso. Uma mancha vermelha tingiu parte do lençol que se bagunça-
va com os movimentos frenéticos dos dois amantes.

Assim que os dançarinos se distanciaram de vez do bairro periférico, a garotada voltou salti-
tando de alegria, correndo pelo rua. Marisa se assustou com a agitação. Seus pensamentos tinham
sido interrompidos com os gritos dos meninos que corriam fazendo subir poeira com o movimento
de seus pés. Ela ergue a visão para o céu e observa as nuvens se moverem lentamente ao passo que
prosseguia com as carícias em sua barriga. Naquele momento já apresentava os primeiros sinais de
gestação. Está esperando um filho de Dionísio, o homem que tanto amou, o primeiro e até então,
único homem com quem se deitou em sua vida. Ainda não explicou a verdade a seus parentes, teme
decepcioná-los, mas sabe que cedo ou tarde terá que contar-lhes sua situação. Uma gravidez era
tudo o que não podia lhe acontecer nessa altura da vida. Não entrou na faculdade, é jovem demais,
tem poucos recursos. Está acanhada, sem rumo na vida. No entanto, de um coisa ela tem certeza:
está decidida a trazer a essa nova vida ao mundo, e nada e nem ninguém irá impedi-la.

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BANCO $ÉCULO

Belo Horizonte-MG
(Região Central)

Mesmo havendo lugar suficiente para deixar os executivos principais bem acomodados, a
sala de reuniões, na seguinte ocasião, aparentou ser tão minúscula quanto o interior dos elevado-
res. Seguranças se empenhavam em manter a ordem enquanto os repórteres, que preencheram os

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A Coragem

quatro cantos da seção, bombardeavam o entrevistado de perguntas. Flashes de câmeras fotográ-


ficas disparavam intermitentes. Para Rogério Tavares, o presidente da empresa financeira, es-
tava complicado se posicionar diante de tantos microfones a se movimentarem em sua direção.
Conversas e questionamentos dos jornalistas se misturavam e ele tinha dificuldade para poder
sanar todas as dúvidas. Sua gravata brilhava com os lampejos e sua barriga saliente se forçou
contra a mesa. Seus olhos, embora cheios de vida e uma extensa visão de futuro, começavam
a demonstrar os primeiros sinais do tempo. Observou braços erguidos, câmeras filmadoras e
fotográficas, gravadores de áudio, cabeças, ombros, logomarcas de canais televisivos e estações
de rádio brigando por espaço.
Embora seus assessores estivessem ali sentados a seu lado para ajudá-lo, Rogério Tavares
fazia questão de responder tudo sozinho. Qualquer que fosse a indagação, não se intimidava. Essa é
a imagem que quer transmitir a todos. De um homem implacável que, nesse momento, projetava-
se ante o símbolo de sua instituição: um cifrão dentro da enorme moeda de ouro fixada a parede.
– Sobre a acusação de que sua instituição tenha praticado lavagem de dinheiro fruto de
atos de corrupção e ter sido envolvida em escândalos políticos. O que tem a declarar sobre isso?
– quis saber um dos repórteres. Era uma mulher de terno azul marinho que se espremia entre os
membros das emissoras concorrentes.
A pergunta havia deixado a maioria dos presentes ansiosos pelo parecer do presidente.
Rogério antes liberou um sutil sorriso amistoso, depois, devolveu:
– A transparência é o nosso lema! – sua voz soou com uma confiança estridente – O Ban-
co Século saiu ileso de todas as acusações, nenhuma prova foi encontrada contra a instituição no
processo. Não temos nada o que temer.
Outro jornalista se adiantou, entrando na frente da mulher de terno.
– Mas o nome de sua instituição foi citado na última CPI. Por quê?
Rogério ergueu as sobrancelhas para o indagador. Mostrando-se neutro, respondeu:
– Grande parte dos homens do congresso possui volumosos investimentos em nosso gru-
po. É natural surgirem desconfianças como essas.
Um dos poucos profissionais que conseguiu um assento na sala, levou seu microfone até
o presidente e se posicionou:
– Ainda assim, o senhor acha que o incidente poderá sujar a imagem do Grupo Século?
O presidente arqueou as sobrancelhas.
– Se as acusações fossem verdadeiras, sim! Entretanto, não são. Por isso, não há com o
que se preocupar.
A voz do entrevistador seguinte ecoou no salão:
– Seu grupo se consolidou como o banco privado mais seguro do Brasil. Quais são os
planos para se manter nesse posto depois de ter sido citado nesse tantos escândalos políticos?
Uma câmera fotográfica no canto esquerdo disparou um flash, mais quatro clarões momen-
tâneos resplandeceram logo em seguida. Rogério piscou várias vezes antes de esclarecer a dúvida:
– Todas as vezes que um cliente, novato ou não, deixa o dinheiro deles em nosso poder,
investe em nossos produtos bancários e pratica qualquer outra de nossas modalidades de in-
vestimento de recursos, não consideramos isso como uma simples transação. Sempre fizemos
questão de construir uma relação sólida entre as agências e seus usuários. Nosso maior lucro
é a confiança que as pessoas depositam em nós. A segurança de que o investimento será bem

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William R. Silva

ressarcido. Foi esse mesmo lema que fez com que o Banco Século sobrevivesse por tanto tempo.
Não será qualquer mentira que irá derrubar nossa credibilidade.
O entrevistado apanhou um copo d’água a seu lado e bebeu um rápido gole para umedecer
a garganta. Sua boca estava seca por causa da longa conversa com os agentes da imprensa. Mais
um vez, uma voz feminina ressoou em meio ao grupo:
– Só mais uma pergunta...
Os olhos de Rogério reviraram à procura da autora da fala, mas foi um de seus assessores
a seu lado quem a cortou:
– Os minutos da entrevista já se encerraram.
– Deixe que ela fale – Rogério se interpôs. O assessor sequer o questionou.
A jornalista arrumou a gola de sua camisa e indagou:
– Casa haja quebra de sigilo bancário, qual seria seu ponto de vista a respeito disso?
Rogério lhe devolveu, sem receio:
– Nesse caso, o meu ponto de vista pouco importa. Apenas iremos cumprir a determi-
nação do poder judiciário – percorreu a sala com os olhos e finalizou. – Coletiva encerrada.
Obrigado a todos pela presença!
Imediatamente, todas as vozes e equipamentos cessaram. Jornalistas engravatados come-
çaram a guardar suas aparelhagens e seguranças orientavam os demais para a saída. Enquanto
observavam a sala de reuniões se esvaziar, um dos assessores comentou em baixo tom:
– Espero que essa coletiva faça a impressa se aquietar.
Estarrecido, o banqueiro tentou ver quantas das principais emissoras de jornais, canais de
televisão e mídias impressas estiveram presentes. O império bilionário que Rogério construiu
era um parte inerente de si. Qualquer escândalo envolvendo sua marca seria considerado como
algo que lhe ferisse a própria honra. Outra vez agarrou seu copo vítreo cheio de água e levantou
a sobrancelha direita para o executivo.
– Aquietar? Você realmente acha que isso irá acontecer? – umedeceu os lábios e recolocou o
copo em cima da mesa – A impressa precisa de estardalhaços. É isso que a mantém. Já viu notícia
boa render? Claro que não, nunca – relanceou os últimos profissionais que já estavam a se retirar do
recinto. – Esses carniceiros adoram sensacionalismo, é isso que paga os salários deles.
Uma vez não restando mais nenhum entrevistador na seção, duas serviçais surgiram em
cena e começaram a recolher os jarros de água vazios, copos usados e colocar o local em ordem.
O banqueiro se levantou, seus assessores também.
O vice-presidente empurrou sua cadeira para conseguir passagem. Ele é um homem que,
apesar de não ser tão calvo como seu superior, tinha os primeiros sinais de quedas de cabelos
na parte alta de sua testa. O rosto fino e suas raras expressões de idade serviam de realce para
sua presença marcante. Esperou que seus colegas saíssem da frente, alcançou Rogério já rente
à porta de saída e disse:
– Você tem razão, Rogério. Mas penso pelo lado prático, essa coletiva nos liberou de
muitos boatos inescrupulosos.
No momento em que o banqueiro parou de andar, todos se detiveram atrás dele. Rogério
virou o rosto para o homem.
– É isso o que desejo, Alfredo. Mas eu lido com a impressa há anos, os conheço bem.
O presidente, o vice e seus dois assessores atravessaram a porta e caminharam pelo passadi-

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A Coragem

ço. Três seguranças vieram logo atrás. Os seis homens foram seguindo em linha reta pelo corredor
até pararem defronte ao elevador. O chefe do grupo se virou para fitar o trio de guarda-costas.
– Podem ficar por aqui, há muito mais o que se fazer lá em baixo. Estão dispensados. E
vocês – mirou a dupla de assessoria – podem voltar ao trabalho.
Os homens acenaram com a cabeça, viraram de costas e se foram. O elevador se abriu,
cinco funcionários surgiram de dentro do compartimento. Empregados e chefia se cumprimen-
taram e trocaram de lugar.
Ao ver as portas de metal se fecharem, Rogério segurou as duas partes de seu blazer e o
ajeitou no tórax.
– Chega de escândalos – franziu o cenho. – Não quero saber mais de financiar campanhas
de ninguém. Dessa vez, nos trouxe muitas dores de cabeça.
Sentiram o compartimento subir, lento.
– Tem certeza? – Alfredo indagou sem virar a cara – Isso são ossos do ofício. Seus pais
agiram assim, seus avós também. No fundo, não há como separar grandes corporações do mun-
do da política. Essa é a regra do jogo!
Depois de massagear a parte calva de sua cabeça e descer a mão até o queixo, Rogério
respondeu, pensativo:
– Mas não é esse o legado que quero passar para minha família.
– E quem disse que será? – o vice o mirou.

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ADAPTAÇÃO

30 de Março de 2014.

O fim da manhã não estava dos mais calmos e o aglomerado de automotores de pequeno
e grande portes disputava espaço no asfalto. O turno matutino de aulas acabara de se encerrar e
os portões dos colégios começavam a abrir suas portas para despejarem os alunos. Centenas de
veículos se embaralhavam nas avenidas. Pais apreensivos tentavam empurrar seus carros uns na
frente dos outros e motoqueiros se aventuravam nas brechas. O pé direito de Dionísio ora desli-
zava no freio, ora no acelerador, suas mãos pareciam ter se automatizado no processo de trocar
marchas. Seu Honda, seguindo o trajeto dos veículos na sua dianteira, andava apenas cerca de
dez metros para frente a cada minuto. Durante quase todo o tempo, encontrava-se parado no
meio da via, pouco mais de trezentos carros se empacaram atrás dele.
Transcorridos quase trinta minutos, seu automóvel conseguiu alcançar o cruzamento. O
amontoado de automotores se espalhou pelos trajetos perpendiculares e descongestionaram a ave-
nida. Ele converteu para direita e foi ganhando caminho até que, finalmente, chegou na calçada do

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William R. Silva

colégio onde a irmã estuda. O condutor reparou na escola decorada por desenhos de lápis, cadernos
e outras imagens infantis na fachada e nas dezenas de crianças com idade entre sete e doze anos que
se digladiavam para conseguir espaço e conquistarem a saída. Uns saltavam para dentro das vans,
outros entravam no carro de seus responsáveis e uma minoria saiu andando de mãos dadas com
algum adulto. Seu passado distante retornou em seus pensamentos, lembrando do Dionísio depres-
sivo que fora outrora, que sofria humilhações no colégio. “Mas por que diabos estou relembrando
isso?”, ele resmungou. Esses eram traumas que já deveria ter superado.
Ele saltou do Honda e marchou em direção à guarita da instituição particular. Encarou a
moça por trás da grade.
– Eu vim buscar a garota que atende pelo nome de Kamille Menezes! – disse, sacando um
documento de autorização dobrado do bolso da camisa. Em seguida, entregou a mulher.
A secretária abriu o papel e correu os olhos nas informações.
– Preciso da sua identidade, por favor – ela pediu.
– Ah, sim... – ele retirou o RG de dentro da carteira – aqui está!
Ele viu a funcionária se arrastar para trás por cima de sua cadeira rolante e berrar o nome
da aluna. Segundos depois, ouviu-se um barulho de alguém andando depressa do lado de dentro
da escola. Não era preciso ter dons mágicos e poder enxergar através das paredes para saber que
era Kamille que se achegava. Seu irmão mais velho sabe como ninguém o quanto a menina era
afoita. Somente os passos acelerados que se escutavam aumentando gradativamente era o sufi-
ciente para anunciar a aproximação dela. Os olhos de Dionísio mal tinham se lançado no portão
quando o vulto de uma menina com os cabelos louros se levantando no ar voou para fora quase
tropicando num casal de gêmeos e por pouco não se esborrachando no asfalto. No embalo do
pulo, ela firmou as pernas magras e recuperou o equilíbrio.
A aluna arrumou a mochila que se desconsertou em suas costas e levantou a face para o
irmão. Os fios de cabelo dela se embaraçaram em seu rosto e seus olhos semicerraram quando
entraram em contato com os raios solares. Ela levou a mão direita a testa e deslocou os fios
rebeldes para trás da nuca.
– Nossa! – disse com a voz entrecortada – Exagerei na corrida – ela fez uma careta engra-
çada movendo parte do lábio para o lado esquerdo.
O olhar afetuoso de Dionísio caiu sobre ela.
– Por que será? – sorriu, irônico.
Seu irmão a segurou pelo braço e a conduziu. Os dois avançaram em meio ao aglomerado
de pessoas e rumaram até o Honda. Dionísio estava pronto para levar os dedos à maçaneta do
carro quando uma sensação de calafrio o desestabilizou como se fosse uma corrente elétrica.
Imediatamente interrompeu a ação e se virou. Estreitando seus olhos em linha reta, avistou uma
estranha mulher fixa em seus movimentos. Ele examinou as características da curiosa, mas não
conseguiu associar a imagem dela a ninguém que ele conhecera no passado. Ela usava óculos
escuros e seus cabelos de estilo rastafári deslizavam sobre o rosto. Por um instante, Dionísio
pensou se tratar de um equívoco, entretanto suas conclusões se confirmaram quando a viu sorrir
para ele. Foi então que um ônibus atravessou na frente da espiã e, quando o veículo passou, ela
desapareceu como mágica.
Kamille franziu a testa e fitou o homem estático.
– Dio, não vamos embora mais, não? – ela o invocou, puxando o braço do irmão. Dionísio

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A Coragem

se assustou com o movimento brusco e abriu a porta do carro. Sentiu-se aliviado pelo fato de a
garota não ter percebido o que ocorreu.
O corpo de Kamille se afundou no banco traseiro assim que ela saltou para dentro do Hon-
da. Ela arrancou o celular de dentro de sua bolsa e começou a teclar o display, jogando um jogo
qualquer. O condutor se concertou no volante e pôs o veículo para andar. Enquanto tomava seu
rumo, ele rolou os olhos em volta para ver se reencontrava a bisbilhoteira, não descobriu nada.
Por sorte, o percurso de retorno era bem mais fácil e com menos de trinta minutos já
estava em casa com sua passageira. O portão automático começou a se mover quando Dionísio
apertou o controle remoto. O Honda invadiu a garagem e antes que o motorista desse meio giro
na chave para desligar o motor, Kamille saiu do veículo e caminhou para dentro da casa. O
condutor saiu, em seguida.
Ele entrou na cozinha e viu a mochila no chão. Estranhou e lançou os olhos na irmã sobre
uma cadeira ao lado do armário com uma das portas superiores escancarada. A menina insistia,
a todo custo, em estender o braço para conseguir alcançar um pacote de bolachas.
– O que você quer aí? – Dionísio perguntou, num tom grave. Não que ele não soubesse
o que ela almejava, mas sim por que usou o questionamento como uma espécie de repressão.
Kamille se virou para ele com as mãos para o alto.
– Quero biscoito recheado!
Ele se aproximou e a agarrou por trás, descendo-a até o piso.
– Nada disso, é hora do almoço e não de comer porcarias.
Ela cruzou os braços e fez cara de emburrada.
– Minha mãe deixa – ela falou de modo manhoso.
– Mas eu não permito! – seu irmão ergueu o braço e bateu a porta do móvel.
A criança saiu a passos pesados pelos cômodos e rumou para o quarto da mãe. Ela es-
quadrinhou a suíte a procura da genitora até que a enxergou através da porta entreaberta do ba-
nheiro. Ela entrou no toalete e espichou os olhos quando viu o reflexo de Maria Clara através do
espelho. O rosto da mulher estava coberto por um creme branco, que ela removia com o auxílio
de um algodão ensopado num produto qualquer de higiene e estética.
– Mamãe, o Dio não quer me deixar comer biscoito! – Kamille reclamou.
Maria Clara atirou o algodão usado no cesto de lixo no lado da pia, retirou outro de den-
tro de uma caixa de cosméticos e o afundou no líquido transparente que estava dentro de um
pequeno pote.
– O que foi que você disse, meu bem? – indagou, fazendo o algodão limpar o produto de
sua pele facial.
– O Dio não quis me deixar comer biscoito – Kamille repetiu, com uma voz irritada. Seus
braços voltaram a se cruzar.
– Não? – Maria Clara continuou a tarefa até ver sua face totalmente livre do creme. O tom
da sua indagação não denotou o menor interesse.
– Você escutou o que falei? – sua filha insistiu. Ela se cansou quando entendeu que a
mulher não lhe dera atenção e ficou a observando por cerca de dez minutos.
A mulher se admirou no espelho e fez várias expressões sedutoras.
– E aí? – ela moveu os olhos na direção da menina – A mamãe está bonita?
– Tá, sim! – Kamille respondeu, se esquecendo do assunto anterior – Posso usar também?

60
William R. Silva

Um gargalhada foi disparada por Maria Clara.


– Claro que não. Isso é um creme rejuvenescedor – saiu do banheiro e caminhou até a filha
–, somente pessoas da minha idade podem usar – sorriu.
Ela agarrou suavemente o pulso da garota.
– Vem, minha lida! – começaram a andar – Vamos para a cozinha preparar algo para comer.

O aroma agradável de bife fritando se infiltrou nas narinas das duas enquanto avançavam.
Kamille e a mãe assumiram uma expressão de surpresa quando deram de cara com Dionísio
picando cebolas numa tábua e, vez ou outra, virando a carne na chapa. O arroz no fogo estava
quase a secar a água e o feijão borbulhava na panela. Maria Clara revirou os olhos a procura de
mais alguém, não acreditava que o rapaz pudesse ter feito tudo aquilo tão rápido sozinho.
– Nossa! – a menina abriu a boca de tanto entusiasmo – Não sabia que você sabia cozinhar.
O homem ergueu a faca e encarou a irmã.
– Sei, sim! – respondeu, notando a expressão de espanto de Maria Clara – O meu pai me
obrigou a aprender – ele riu alto e destampou a panela com arroz.
Quando a mulher citou a frase “preparar algo para comer” estava se referindo a algo
como arrumar dois pães integrais com alface e camarão ou colocar uma pizza para rodar no mi-
cro-ondas para comer com a filha. Não tinha a menor vontade de cozinhar, na verdade detestava
e o filho sabia bem desse detalhe. A empregada não pode vir e ela desejava distância do fogão.
– Bem – Maria Clara declarou –, já que meu querido filho cozinheiro quer nos agraciar
com sua culinária, estarei ansiosa para provar – mostrou-se orgulhosa. – Irei para sala assistir a
um filme enquanto engano a fome – deu as costas e saiu.
Ele abaixou a cabeça demonstrando um ar de decepção. Neste instante, sentiu uma arreba-
tadora saudade do pai. Mesmo que não quisesse, era impossível deixar de fazer uma comparação
entre os dois. Átila sempre que o via preparar o almoço, se unia a ele nos afazeres, não importava
o quão atarefado estivesse. Eles ficavam durante todo o tempo a jogar conversa fora ou caçoa-
rem um do outro. Sua mãe continuava a mesma, não que tivesse esperanças de que ela mudasse.
Até mesmo no cotidiano, quando se senta à mesa com ela ou na hora de assistirem algo
na TV, Dionísio se sente como se os dois fossem estranhos um para o outro. Há esforço das duas
partes para tentar um diálogo, mas ambos não conseguem dar o primeiro passo. Seu pai sempre o
questionava sobre seu desempenho nos estudos, o que tinha aprontado e o indagado sobre coisas do
tipo. Por outro lado, o máximo que obtém da mãe é um “bom dia” ou frases superficiais como a que
ela acabara de pronunciar. Somente nas ocasiões em que Kamille está presente e começa a tagarelar
seus tópicos sem importância é que ele e a mãe conseguem estabelecer um rápido diálogo. Maria
Clara mais parecia uma irmã distante do que uma genitora propriamente dita. Ele talvez nutra certo
carinho por ela, mas não exatamente como deveria ser em uma relação entre mãe e filho.
– Quer ajuda? – a menina perguntou, de pé na entrada da cozinha.
Nem tinha se lembrado de que a irmã ainda se encontrava na cozinha, ficou surpreso ao
escutar a voz dela. Dionísio pegou uma vasilha de plástico cheia de alface e tomate e a empur-
rou, fazendo-a escorregar sobre a pia.
– Lave tudo! – ordenou – Quero ver tudo bem limpinho! – riu, carinhosamente.
Kamille sorriu. Ela arrastou uma cadeira até a pia, subiu, abriu a torneira e começou a tarefa.

61
A Coragem

15

OBSESSÃO

O brilho da lua cheia, de tão intenso, parecia-lhe clarear o rosto. Reclinada sobre a rede,
Maria do Rosário examinava o esplendoroso satélite natural, sua forma arredondada, solitário no
céu escuro. Seus longos fios capilares se desordenavam em sua face, seu olhar era indecifrável
e seus finos lábios se moviam timidamente como se estivesse a implorar ao esplendoroso saté-
lite que satisfizesse os seus desejos mais íntimos. Com seus olhos castanhos parados e neutros,
estudou a lua e se sentiu sozinha tanto quanto ela. A longa malha de pano oscilava de um lado
para outro originando um fraco ruído do ranger de uma das cordas fixada na parede. A tempe-
ratura noturna era agradável, apesar do frio que percorria seu corpo. A brisa gélida soprava-lhe
suavemente as têmporas. Visando se proteger do frio, deslizou as mãos sobre uma cadeira ao seu
lado e puxou para si, um cobertor dobrado que estava sobre ela. Ela esparramou o manto aberto
sobre a rede e se cobriu. Suas pernas se tornam aquecidas, deixando apenas a face e o braço es-
querdo no relento. Enrolou os longos fios negros nos dedos e, distraída, puxou e os desenrolou.
Soltando-os, os fios despencaram desordenados sobre a testa. Por um segundo, soltou o braço e
o deixou pendurado balançando no ritmo da rede.
Ela tornou a se conectar a lua. Sua vida passou como um rápido filme em sua mente e isso
a angustiava. Suas experiências, em grande parte, foram desprovidas de emoções. Ana Júlia es-
tava certa. Quantos momentos bons teve? Quantos homens conheceu na vida? Que histórias tem
para contar? Questionamentos como esses o tempo inteiro norteavam sua mente. Por mais que
não quisesse admitir, seus últimos dez anos tiveram poucos momentos que valessem a pena. Ir à
igreja era bom, sentia-se feliz com isso. Sempre foi uma aluna aplicada nos estudos e sua família
se orgulha disso. Mas, precisava viver! Quase não tivera namorados, durante anos vivera presa
dentro de casa, experiências novas eram mínimas. Sua vida era um marasmo. Novamente pen-
sou em Ana, suas histórias, as viagens, as festas, as pessoas que ela conheceu. Seus pais dizem
que a amiga é mau exemplo, pois seu estilo hedonista de viver é contra as leis do senhor criador.
Que aqueles que seguem a moral e os bons costumes eram bem afortunados pelo destino. Nada
disso parecia verdade. Mesmo que não queira admitir, o modo pelo qual a amiga se diverte é
muito mais satisfatório do que se definhar em cima de uma rede sábado à noite. Seus pais, ela
nunca desejou magoá-los, também detestava baladas, bebidas e todas essas esbórnias sociais.
Sentia-se confusa em relação ao que queria. Talvez o tédio a deixasse meio desorientada.
– Vida sem graça! – Maria suspirou. Seus olhas miravam o céu, bastante desesperançosos
– Será que um dia vou conhecer alguém que valha a pena? Que me faça feliz de verdade? – seus
tormentos se esvaíram no momento em que sentiu algo roçar em seus braços. Riu com as cóce-
gas assim que sentiu as lambidas quentes e úmidas na palma de sua mão. Imediatamente se virou
para o lado, seu pastor alemão estava a afagando.

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William R. Silva

Ela levou os olhos em direção ao animal enquanto corria os dedos em seu pelo.
– Hércules! – sua voz ressoava de forma carinhosa – É você, meu amor!
Sacudindo o rabo e com a língua para fora, empolgado, pulou para cima da mulher deita-
da. Batendo as patas em sua barriga, quase a faz cair da rede. O bicho, insistente, tentou lamber-
lhe as bochechas.
– Para com isso... seu cachorro maluco! – queria dizer em tom de repreensão, mas as
risadas teimavam em sair – Para... para, Hércules! – berrou, as gargalhadas eram cada vez mais
intensas. Interceptando o cachorro agitado com a força dos braços, fez o que pode para afastá-lo.
Teve dificuldade, entretanto, conseguiu lançar o cão para fora da rede. A criatura se acal-
mou por um breve instante, até que um ruído faz suas orelhas se espicharem. Um chiado baru-
lhento de uma suposta motocicleta é ouvido se aproximando de sua morada. O barulho termina,
percebeu que o motoqueiro parara em sua porta. Hércules subitamente se deslocou arisco para
o portão e começou a latir. Maria notando que o visitante provavelmente estava à procura de
alguém em sua casa, saltou rapidamente da rede, agarrou a corrente do animal e o puxou para
dentro. Ela voltou segundos depois. Vendo que o motoqueiro ainda permanecia na fachada de
sua morada, foi até o muro e questionou a presença do estranho sujeito.
– Deseja alguma coisa? – abriu mais os olhos tentando reconhecer a fisionomia escondida
pelo visor do capacete.
– Sim... – o motoqueiro respondeu – Não está conhecendo minha voz? – ele sorriu.
Aquela maneira de falar não lhe era estranha, mas decidiu continuar a interrogar o visitante.
– O que você quer? Diga! Se eu puder te ajudar… será um prazer! – Maria do Rosário
gritou. Virou-se para a janela de sua casa e viu sua mãe assistindo televisão, distraída.
O homem cuidadosamente retirou o capacete e o descansou sobre o guidom. Maria subiu as
mãos até os lábios, sua fisionomia era mais de susto do que de alegria. Ela viu transparecer, através
das luzes dos postes, o rapaz de barba suave e fisionomia penetrante lançar um olhar apaixonado
em sua direção. Ela não sabia o que dizer, jamais pensou que o reencontraria de novo.
– Desejo algo, sim... – o rosto do homem se ilumina, anos se passaram, mas seu amor pela
jovem parecia maior – Você, Maria do Rosário!
– João Sérgio! – o pavor a deixou boquiaberta. Parecia ter visto um fantasma.
O motoqueiro deu quatro passos e se deteve ante o portão. Então, olhou para cima e disse:
– Esperei muito tempo para te ver, muito mesmo... – abriu os braços – Não vai descer?
Precisamos conversar.
A mulher desapareceu do muro, ouviram-se passos. A porta de ferro se abriu. Por entre
o vão, surgiu a formosa moça. O ar de preocupação era aparente em seu semblante. Sua família
conhecia a fama do rapaz e se o visse ali, a situação não iria ter um bom desfecho.
O sujeito apaixonado a encarou com uma expressão de veneração, feliz em revê-la. Sentiu
uma leve sensação de tristeza, pensou que receberia uma abraço afetuoso, nada disso ocorreu.
Observou que nenhuma expressão de contentamento fora emitida pela amada. Ignorou o fato,
considerou aquilo apenas uma reação de susto por vê-lo depois de tanto tempo. O homem a con-
templou e notou que o tempo a tornara ainda mais bela. Seus olhos caíram sobre o lindo rosto da
moça, o simples fato de poder admirá-la deixava seu coração mais brando.
Maria do Rosário ajeitou os cabelos e deu uma rápida checada na rampa de sua residência,
afim de ver se não havia algum parente por perto.

63
A Coragem

– O que você está fazendo aqui, Jó? – ela perguntou, friamente.


João se aproximou. Ergueu o braço a fim de tocá-la no queixo.
– Meu amor, pensei em você durante todo esse tempo na prisão... – sua mão direita des-
liza suave pelos cabelos da jovem. Ela se sentiu incomodada – Vamos começar tudo de novo,
esquecer tudo e começar do zero. Me ajuda a sair desse vida!
Maria o desaprovou, balançando negativamente a cabeça.
– Quantas vezes já me prometeu isso? Quantas? Já foi para igreja, disse que iria se tornar
uma pessoa melhor. Eu acreditei... – Maria se irou – Fiz de tudo para acreditar, e o que você fez?
Continuou nessa vida criminosa. Disseram-me que você já até cometeu homicídios. Você me dá
medo – com as costas das mãos, afastou o braço do rapaz.
O cenho de João Sérgio franziu, mas fez o que pode para manter a calma.
– É mentira, Mari... – o homem se desesperou – não acredite nessas asneiras! Eu nunca
matei ninguém. Já cometi furtos, me envolvi no tráfico, mas agora não estou mais metido nesse
mundo de roubos. Confie em mim! Dessa vez eu mudei de verdade... mudei por você!
Maria o encarou descrente.
– Não, Jó, não... O que aconteceu entre nós foi bom, bom mesmo, mas é passado – ela se
esquivou. – Vamos cada um viver a sua vida. A partir de agora, seremos bons amigos, apenas
isso. Esquece o que houve entre nós! – esclareceu, temendo a reação do sujeito perigoso – Foi
muito bom te ver, Jó, mas é melhor agente ficar por aqui.
A frustração era visível no semblante do amante desafortunado. Durante anos sobreviveu
como um animal enjaulado, mas toda a dor do isolamento social que sofrera fora amenizada
pelas felizes lembranças junto a amada. O desejo de reencontrá-la era a sua maior fonte de for-
ça. Por ela, ele aguentou tudo, a lembrança do lindo sorriso de Maria era como um anestésico.
Quando foi condenado, havia uma mulher disposta a ficar a seu lado, amando-o para o que der
e vier. Mas, neste momento, via outra totalmente distante, como se ele nunca tivesse significado
nada para ela. A situação era deprimente demais. Sentia-se humilhado.
– Adeus, amigo. Que a paz do senhor esteja com você! – Ela tocou a chave na fechadura
e puxou aporta querendo fechá-la. Apenas metade do seu corpo estava visível, contudo, João
subitamente parou o braço na brecha impedindo-a de fazer o que desejava.
Ele reabriu o portão. Os dois trocaram olhares. O medo que ela sentiu e a paixão que o
envolveu se chocaram entre si. Ele desejou ardentemente voltar a sentir os lábios da moça nos
seus. A mulher almejava fugir dele em segurança. Maria cogitou a ideia de gritar por ajuda.
– Eu amo você! – as palavras ditas por ele denotavam desespero – Quero construir uma vida
honesta. Viver como um homem digno e trabalhador, ganhado o meu salário sem ter que fugir da
polícia, de problemas e de tudo mais. Me dê só mais uma chance, a última! – suplicou aflito.
Os olhos de Maria se espicharam de medo. Respirou fundo tentando se tranquilizar.
– Eu não acredito mais em você, nunca vai mudar seu jeito, nunca! – ela discordou – Desde
aquela época do colégio, você e seus amigos viviam humilhando os mais fracos. Aquele gordinho
inocente que vocês espancaram, lembra? Depois, pensei que você iria parar com essas maldades,
escolhi acreditar em você. Briguei com meus pais e meu irmão por isso. Estava disposta a desafiar o
mundo por nossa união. Acreditei nas suas embromações. E no fim de tudo, o que aconteceu? Nada
disso adiantou. Fiz papel de idiota – o tom de sua voz soava como um veredito de condenação. Os
berros que ela dava eram cada vez mais altos – Se misturou com playboys traficantes, foi no morro

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William R. Silva

Igarapés e se aliou aos marginais de lá. Começou a vender aquelas porcarias, fez as maiores atroci-
dades e foi preso. Não, João Sérgio, não quero mais isso... por favor, desaparece!

O jovem desiludido suspirou fundo. Ele baixou os olhos e enterrou a mão no interior de
sua jaqueta. Retirou o colar de ouro branco com diamante em forma de coração. Ergueu a joia
no ar e a mulher ficou boquiaberta, admirando os sublimes contornos do colar cuja luminosidade
incidia em seus olhos, fazendo-o brilhar em resposta ao estímulo.
– É para você, minha princesa! – João a fitou, afetuoso. A felicidade voltou a envolvê-lo
– É seu... é tão precioso quanto você! – ele esticou o colar e o entregou para a moça.
Maria do Rosário o segurou, apertando a joia em seu punho. Ela recuou dois passos e levan-
tou o colar diante de seu rosto. Então, discordou com um movimento de cabeça e mirou o rapaz.
– Onde comprou? – ela quis saber, em tom de desconfiança – Tenho certeza que deve ter
custado caro. Essa joia é de uso de pessoas ricas, muito ricas, você não a adquiriu com o suor de
um trabalho honesto. Tenho certeza que não...
João Sérgio agarrou-lhe o pulso. Maria levantou a sobrancelha, sobressaltada. Ele fez um
movimento brusco e enfiou a joia dentro do bolso da calça da moça atordoada.
– Eu não esperei tanto tempo para nada, Mari... – seus dedos nervosos apertavam-lhe a
carne – Amo você! Você não pode agir assim comigo, não pode!
Maria do Rosário encobriu seus temores e o encarou, raivosa. João Sérgio olhou os entor-
nos para ver se havia testemunhas. Não viu nenhuma alma viva por perto. Ele a segurou na cin-
tura e firmou seus olhos no rosto da morena. A mulher tentou se esquivar do assédio obsessivo.
O homem arriscou um beijo, mas ela desviou seus lábios.
– Me deixe em paz! – a jovem berrou. Ela reuniu forças e empurrou o assediador. O mo-
toqueiro entendeu que por um segundo perdera a razão. Seus dedos se desprenderam do braço
da amada quando a reparou lacrimejante.
– Desaparece da minha vida, eu... não... amo... mais...você! – a voz de Maria do Rosário
conteve seu choro – Entende isso, pelo amor de Deus! Aquilo foi paixonite de adolescente, só isso.
Desaparece daqui! Senão, vou ser obrigada a chamar meu irmão e meu pai. Estou falando sério.
Ela bateu a porta e a trancou, correndo para a varanda. O homem se encontrou paralisado
defronte à entrada da residência, entristecido. Lentamente, ele ergueu a face para cima. Viu
que Maria, sobre o muro, mantinha o colar dependurado entre os dedos. João Sérgio se sentiu
como se estivesse dentro de um pesadelo. Todas os seus sonhos e expectativas se esvaiam como
fumaça no ar.
– Tome seu cordão, Jó! – ela disse – Vou orar a Deus para que encontre uma boa dona
para ele. Uma garota que te ame de verdade, não eu... – ela abriu a mão e o colar despencou. Sen-
tiu uma angústia incomodá-la quando o objeto tocou o chão. Maria o observou pela derradeira
vez e terminou: – Seja feliz, Jó, adeus!
João Sérgio tentou gritar algo. Entretanto, antes do ar escapar-lhe da garganta, a amada já
havia sumido. Insatisfeito, começou a chutar os sacos de lixo na calçada. Queria dizer o quanto a
queria, o quanto ela era importante para ele. Como ela pode ter o esquecido? Cessou o ataque de
fúria e respirou mais calmo, apoiando a mão na parede. Prestou atenção na joia caída na calçada.
– Não vou desistir de você, Mari! – murmurou. Se abaixou e recuperou o colar – Não
acredito que tenha me esquecido tão rápido assim.

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A Coragem

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O HACKER

Buzinas, berros de vendedores e silvos de sirenes de viaturas ecoavam por todos os cantos
do centro da cidade. Mesmo com o clima chuvoso, o período comercial seguia suas atividades.
Nuvens cinzas pesavam no céu, formando uma densa camada escura. A pesada garoa respingou na
jaqueta do magro homem quando ele dobrou a esquina e parou ante o enorme edifício. Levantou a
cabeça, arrumou os óculos por cima do nariz. Com o chuvisco a respingar-lhe na testa, enxergou na
parte mais alta do edifício o grande símbolo: uma moeda de ouro com um cifrão no centro.
– Banco Século! – o sujeito resmungou – Mas, por que diabos esse cara me chamou até aqui?
Ele passou a mão no topete molhado e fez parte da água escorrer em sua testa. Endireitou
suas vestes e avançou para dentro da sede financeira. Ficou maravilhado com a arquitetura e a
decoração do agência. O piso no centro era liso e brilhante com quadrados com a cor preta, bran-
ca e marrom que se alternavam. Tanto no lado esquerdo quanto no direito do caminho, viam-se
funcionários trabalhando. Todos postos num conjunto de mesas em fileiras, com os pés sobre
um extenso tapete vermelho. O teto, em cujas inúmeras lâmpadas clareavam o ambiente, era
sustentado por várias colunas gregas que seguiam em linha reta posicionadas em paralelo. Ban-
cários circulavam com papéis e se acomodavam em seus lugares e em algumas mesas, clientes
eram atendidos ou aguardavam o empregado retornar.
O visitante apressou os passos, mas parou ao ser interceptado por dois homens de ternos.
– Boa tarde, amigo! – o primeiro falou – Deseja alguma coisa?
O jovem coçou a cabeça.
– Tenho uma visita marcada – sua voz entrecortou – Quem me chamou até aqui foi o
senhor Rogério Tavares.
A frase mal tinha terminado quando os dois homens riram involuntariamente.
– Por um acaso você sabe quem é Rogério Tavares? – o segundo o questionou.
O sujeito de rosto fino balançou a cabeça, hesitante.
– Não sei, não. Quem é ele?
O homem olhou para o parceiro por alguns segundos e tornou a encarar o visitante.
– Ele é o dono de tudo isso aqui – respondeu, mostrando a extensão do lugar.
O queixo de Túlio caiu ao ouvir a confissão. Quando recebeu o telefonema e a secretária
o avisara que um homem queria contratá-lo para um serviço na área de sistemas de informações,
não imaginava que seria o proprietário do banco. Tudo aquilo se tornou ainda mais inexplicável.
Alguém trazê-lo até ali já era algo estranho, o próprio presidente da corporação o convocar era
ainda mais surpreendente.
Como norma de etiqueta da empresa, todos os que entram na agência devem ser tratados
com respeito e consideração. A dupla continuou incrédula, mas fez o possível para não destratar

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William R. Silva

o estranho diante deles. Concordaram que deveriam seguir o protocolo, então os dois trocaram
olhares e resolveram checar a informação. Desconfiaram que se tratava de um equívoco, mas
tinha de cumprir suas obrigações.
– Por favor, entregue-me sua identidade! – o funcionário pediu.
Túlio retirou o documento e o estendeu para o homem de terno.
– Aguarde! – o outro falou – Voltaremos logo!
Os homens caminharam e entraram numa sala.
Sete minutos foram o suficiente para que ambos retornassem visivelmente envergonha-
dos. Uma mulher caminhando elegantemente com seu salto seguia em companhia da dupla. O
moço devolveu-lhe o documento. A secretária sorriu para o rapaz.
– Olá, senhor Túlio Ernanes Vieira! – ela lhe ofereceu a mão. O rapaz desengonçado a
apertou – Que bom que veio, Rogério está a sua espera!
Ela o conduziu até o elevador. O compartimento se abriu e ambos entraram. Partindo do
andar térreo, uma sequência de números correram perante os olhos curiosos de Túlio. Indivídu-
os entravam e saiam, mas a mulher continuava imóvel. Por um instante pensou que estivessem
subindo rumo as nuvens. Enfim, décimo andar. A mulher se retirou do elevador. Ele caminhou
atrás dela e ficou embasbacado com o requinte da sala de espera.
– Espere um pouco, por favor! – a secretária andou até sua mesa, sentou-se e sacou o
telefone. Ela ergueu o aparelho no ar e apontou para a mesa no centro da sala.
– Temos café puro, chá e cappuccino! – ela avisou – Pode tomar se quiser! – voltou o fone
para o ouvido e discou um número.
O rapaz pousou os olhos sobre a mesa no centro da sala. Nela, encontrava-se quatro xícaras
em torno de uma moderna máquina de cappuccino. Três sofás posicionados sobre um tapete mar-
rom também enfeitavam o ambiente. Nos quatro cantos da parede se viam quadros de fotos antigos.
Revistas repletas de notícias atualizadas sobre assuntos econômicos e afins lotavam um mostruário.
– Não. Obrigado – Túlio respondeu.
A recepcionista pronunciou algumas palavras e levou o aparelho no gancho.
– Siga o corredor e vire a direita – encarou o rapaz – Rogério está a sua espera.
O visitante se arrepiou. Nunca antes tinha se deparado com um homem de tamanha in-
fluência quanto o que estava prestes a conhecer. Já ouvira muito falar dele em colunas sociais e
reportagens em sites de notícias, principalmente os ligados a mercado financeiro. Sem dúvida, o
banqueiro é uma das personalidades mais ricas da cidade. Ele encheu o pulmão de ar e o liberou.
Depois iniciou seus passos rumo a sala presidencial. Seguiu o itinerário indicado pela funcioná-
ria e cessou suas pisadas defronte a uma porta dupla de madeira maciça envernizada. As portas
se abriram automaticamente e ele irrompeu na sala. Túlio observou as laterais e notou que quase
todo o retângulo possuía vidros ao invés de paredes. Ele virou o rosto e viu a movimentação da
cidade. Carros e pessoas se assemelhavam a minúsculos objetos de maquetes escolares. Tudo
se movia vagarosamente como se fossem formigas em procissão. No fundo da sala, um homem
o vigiava. Túlio se sentiu acanhado no instante em que deu de cara com o presidente sentado
sobre a mesa. O semblante severo do banqueiro se realçava com a grande imagem da logomarca
da instituição atrás dele. O tapete vermelho, o tom de mogno e as cores fortes que ornamentava
o ambiente transformava o senhor em um ser ainda mais grandioso.
O senhor levou o dedo ao computador e clicou uma tecla, em seguida, sorriu educada-

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A Coragem

mente para o rapaz tímido.


– Sou muito grato pela sua presença! – Rogério falou – Por obséquio, queira se sentar!
A expressão de Túlio claramente tornou visível seu estado de nervosismo. Ainda assim, o
rapaz marchou até a mesa, mas ficou de pé. O presidente percebeu a situação, então decidiu não
insistir. O visitante tentou olhar o senhor de frente, mas seu olhar subitamente se desviou quando
se deparou com aquela figura imponente.
– O que quer comigo?
O banqueiro sorriu amistoso e mais rugas acentuando sua idade transpareceram em sua
testa quando suas sobrancelhas arquearam. Rogério empurrou um globo terrestre para o canto
da mesa e deslizou os dedos sobre o queixo. Então, falou:
– Soube que você é mestre em invadir sistemas de computadores. Você é aquilo que cha-
mados de hacker. Isso é verdade?
– Sim... e não! – o jovem desajeitado respondeu – Somente uso minhas habilidades para
o lado do bem. O que eu faço – sentiu parte da inquietação passar – é proteger computadores e
sistemas de grandes corporações de possíveis invasões em seus bancos de dados, evito roubos
de informações e amenizo perigos de prejuízos financeiros.
– Exatamente! – o presidente confirmou – E é por isso que te convoquei, tenho uma
missão para você – ele apoiou o cotovelo sobre a mesa e começou a mover uma caneta sobre os
dedos. – Se aceitar, será bem recompensado!
O hacker coçou a cabeça denotando um ar de incompreensão.
– Peço desculpas pela minha sinceridade, mas tem algo de muito esquisito nessa história
toda – ele viu que Rogério franziu o cenho, mesmo assim seguiu com sua argumentação – O
senhor coordena uma rede bancária com inúmeras transações financeiras de alto valor diaria-
mente. Trabalha com milhares de computadores e tem filias espalhadas por todo o país e está me
contratando para esse trabalho... Quer dizer então que não tem uma equipe técnica para defesa e
aprimoramento do sistema que opera? Ou entendi errado?
Rogério riu alto, satisfeito com a astúcia do rapaz.
– Na verdade, nós temos – o presidente soltou a caneta, se levantou e olhou a paisagem lá
em baixo. – O banco conta com todo um aparato técnico para assegurar a segurança de nossas
operações. O problema é que... – o tom de voz de Rogério se modificou, transmitindo uma leve
sensação de aflição nas palavras – uma quantidade de cinquenta milhões desapareceu da minha
conta particular.
Túlio quase caiu para trás, seus olhos se escancaram.
– Cinquenta milhões?
– Isso! – o presidente se virou para ele – Essa é uma informação perigosíssima. Se cair
no ouvido de pessoas erradas, muitos investidores poderão remover seus recursos, e toda a
credibilidade do Banco poderá ser posta em cheque. Entende a gravidade da situação? Mesmo
esse dinheiro sendo meu, ainda assim é arriscado. O lema do meu banco é a segurança em suas
transações. Nunca antes coisa semelhante ocorreu. E para piorar, ainda há outra questão: Você
deve ter assistido aos noticiários nos últimos meses, não é? Com certeza sabe que o nome da
minha instituição está envolvida em denúncias de corrupção política. Não posso me dar ao luxo
de comprometer nossa imagem com um novo escândalo.
O ouvinte anuiu com a cabeça. Mas nada respondeu.

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William R. Silva

– A equipe de monitoração tem como função impedir que o sistema seja burlado, mas
não recupera os prejuízos quando eles ocorrem. Esse rombo foi grande demais, somente alguém
muito próximo de mim conseguiria tal façanha – Rogério afundou as mãos nos bolsos e ergueu
a cabeça. – Esse valor desaparecido, não atrapalha em nada o Banco Século, no entanto, não
posso deixar as coisas como estão, caso contrário, esse ladrão poderá levar o meu legado à ruína.
– É por isso que quer minha ajuda? – o hacker falou – Quer que alguém que não tenha vín-
culo com a empresa descubra o ladrão para você. Primeiro porque tem medo que alguém relate
o acontecido e a notícia circule na mídia e, segundo, porque desconfia de que quem te roubou
esteja envolvido na sua própria equipe de segurança de sistemas.
Rogério sacudiu a cabeça. Ele o presenteou com um sorriso de cumplicidade.
– Sim. Acertou na mosca!
– E o que te faz pensar que eu, um ser humano que você nunca viu mais gordo, possa ser
de confiança? – Túlio argumentou.
Rogério deu quatro passos e se deteve diante do visitante. Ele levou a mão até o ombro de
Túlio e o fitou como se ambos fossem velhos conhecidos.
– O Paulo é um grande amigo seu. Ele me contou que vocês estudaram no mesmo colégio
e passou ótimas recomendações de você. Inclusive, indicou-lhe a um cargo, mas como meu
quadro de funcionários estava preenchido, nunca cogitei a ideia de contratá-lo. Mas, se caso me
ajudar a encontrar esse salafrário que me furtou, saberei te pagar o serviço. O que você me diz?
Aceitaria trabalhar nisso pra mim?
Os lábios do hacker se cerraram por uns instantes. Depois, respondeu:
– Queria que o senhor me concedesse um prazo, para que eu possa pensar a respeito.
O banqueiro sacudiu a cabeça, satisfeito.

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REENCONTRO

Travou o veículo, pagou o homem do guichê e se dirigiu para a entrada do estabeleci-


mento. No momento em que passou ao lado do movimentado sacolão, Dionísio quase esbarrou
em um carregador que levava uma caixa cheia de legumes para o abastecimento. Desculpou-se
e rumou para a passagem no interior do supermercado. Por ter sido impossível encontrar um
local nos arredores da academia, resolveu deixar o carro no estacionamento da rede comercial.
Passeou animado por entre os corredores, desviou-se de carros de compras, pessoas escolhendo
produtos, crianças no carrinho sorrindo enquanto eram guiadas por seus responsáveis.
Ele se tornou um homem esbelto e de boa aparência. Por onde passava, na maioria das
vezes, era notado. Continuava a andar pelo supermercado. Sua regata vermelha ia se esticando na
medida em que seu tórax se contraía e se estufava com o movimento de seus braços. A cada passo,

69
A Coragem

as veias de suas pernas surgiam e desapareciam e seus ombros largos faziam-no ser observado pela
maioria das pessoas conforme trafegava. Duas jovens o encararam, sorrisos foram lançados em sua
direção. Se entusiasmou com o assédio. Caminhou com o rosto virado para trás e retribui o sorriso.
As duas mulheres também o acompanharam com os olhos. Uma pilha de caixas de sabão em pó
estavam amontoadas a sua frete, ele não viu. Uma das moças se preparava para alertá-lo sobre o
obstáculo, mas antes que seu grito saísse, ele tropeçou na mercadoria. A pirâmide despencou no
chão. Na queda, Dionísio se desequilibrou e agarrou em um prateleira e arrastou uma fileira frascos
de detergentes, soltando-os no chão. Nenhum funcionário percebeu o acidente. Deixou tudo como
estava e zarpou. A vergonha foi tamanha, que nem quis mais virar para trás e olhar para as duas
admiradoras. Contudo, ouviu risadas femininas dispararem no corredor de produtos.
Partiu para o lado de fora e seguiu a rua perpendicular. Mirou o semáforo, a luz verde acen-
deu, os veículos frearam, liberando a faixa de pedestre. Ele atravessou e foi para o local de treino.
O prédio de dois andares, tinha suas duas janelas inferiores feitas de vidro. Na parte de cima, a
imagem de um homem e uma mulher, ambos esbeltos e fazendo poses em um enorme Outdoor.
No breve instante em que se deslocou para dentro da academia, uma sucessão de pensamen-
tos nostálgicos sobrevoam sua mente: Ricardo, a academia Lios Brave, Diego Santorini, os mo-
mentos bons e sua mudança estética. O Quartel. Como será que estão todos? Um orgulho interior
o envolveu na mesma hora em que conectou o cartão magnético na catraca. Trespassou a roleta.
Analisou toda a estrutura do estabelecimento como se fosse um ambiente sagrado, um templo que
merecia uma prece antes de ser visitado. Hard Core é muito mais do que estética, saúde e meta de
vida. Musculação, para ele, é muito mais que um esporte. É a energia que explode dentro de si a
cada movimento de braços, a cada urro ao carregar o peso. Está há alguns meses sem treinar, seus
músculos sentiam falta das barras e das saudáveis sensações de dor produzidas por elas.
No percurso, às vezes era o centro das atenções, mas na academia, era apenas mais um.
Sua presença, no máximo, fora notada pelas moças da recepção que, como qualquer outro fun-
cionário que cumpre sua função, lhe deram as boas-vindas. Pouco importa, seu objetivo é erguer
anilhas e mover barras, todo o resto é insignificante. Nem mesmo as lindas mulheres que rode-
avam os equipamentos desviavam a sua atenção.
A música que tocava, de tão agitada parecia espancar os alto-falantes. A melodia tinha um
efeito sinestésico, as batidas penetravam seus ouvidos, invadiam seu sistema nervoso e faziam seu
corpo vibrar. Não havia dúvidas, a canção realmente o deixava motivado. Sua ficha de treino se
estendia em sua mão. Tríceps e bíceps eram o seu objetivo do dia. Retirou duas anilhas e as encaixou
em uma barra. Enganchou um dos lados para que elas não se soltassem, mas se esqueceu de prender
o outro. Simplesmente ficou segurando o gancho enquanto procurava um lugar para se acomodar. O
primeiro cubículo, com espelhos laterais estava com quatro rapazes, cinco senhoras tagarelavam em
outro deles. No último, uma mulher fazia agachamento. Não havia espaço para mais um. No topo
da longa escada, via-se um grande espaço vazio. Galgou os degraus e chegou no andar de cima. Lá
haviam dois monitores e alguns usuários se exercitando. Ajeitou-se num canto.
Um ou outro transitava ao seu lado, mas nada que o atrapalhasse. É seu primeiro dia na
academia, acertou seis meses adiantados. Não quer perturbar os instrutores, só pedirá informa-
ções em último caso. A barra tinha uma das extremidades destravadas, mas as pesadas rodas de
ferro não se desprendiam. Corpo ereto, tórax estufado, descendo e subindo a peça de ferro na
mesma intensidade de sua respiração. De lado, mirava-se no grande espelho, sentia-se satisfeito

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William R. Silva

ao ver seus músculos dilatarem. Ele olhou de relance para a parte de baixo, homens se divertiam
com brincadeiras engraçadas, garotas circulavam em volta segurando garrafas térmicas, dois
homens se revezavam no bebedouro. Sua atenção retornou para o espelho.
Continuou seu exercício respiratório enquanto movia os pesos. Descansou por alguns se-
gundos e retornou para a segunda sessão. Conforme praticava, novamente reparou as pessoas no
andar térreo, foi então que seus olhos se escancaram. Seu coração palpitou mais rapidamente e a
barra ficou incrivelmente mais pesada, chegando a pender para o lado esquerdo. Seu semblante
denotou pavor, empalideceu. Não pode ser? Será? Era coincidência demais. Seus sentidos entra-
ram em ebulição, insistiu em se manter sob controle embora já tenha interrompido o movimento
de braços. Todas essas reações ocorreram por ele ter acabado de ver um mulher loira caminhar em
direção à escada. Quanto mais ela se aproximava, maior era a confusão que se instalavam em seu
interior. Seus olhos se perderam em cada detalhe da jovem, seu cabelo repartido de lado, as raízes
escuras dando vazão a longos fios dourados. Um rosto prepotente, mas exageradamente bonito, tão
formoso ao ponto de causar um efeito hipnótico a quem se prestasse a admirá-lo. Seu short azul
apertava em suas coxas, sua mini blusa modelava seus seios com perfeição. Ela se movia de forma
elegante na medida em que cumprimentava conhecidos com quem se encontrava. Beijava o rosto
de algumas amigas, sorria para alguns instrutores e seguia a desfilar. Dionísio, boquiaberto, fixou
atentamente nos olhos verdes da moça.
A mulher notou a curiosidade do rapaz e ambos trocaram olhares. E quando os olhos se cru-
zaram, Dionísio estremeceu. Não havia mais dúvidas, aquela era Ana Júlia. Um sentimento estranho
pairou no ar, somente os dois se conectaram à situação, todo o resto estava disperso. A moça perma-
neceu imóvel no pé da escada e seus olhos verdes persistiam em se fixar no desconhecido. Será que
ela também o reconheceu? Será que esse seria um bom momento para expor toda a raiva que sentiu
por ela durante todos esses anos? Seus pensamentos foram tão intensos, que não chegou a notar
que uma das anilhas se soltou da barra. Só voltou a si quando escutou o barulho da roda de ferro
deslizando no piso e ganhando a escada. Ana Júlia não teve tempo de se desviar, pois; em questão de
segundos, a anilha rolou, quicou e voou em sua direção. Sobressaltada, ela deu um pulo para trás. Por
sorte, o pesado objeto de ferro aterrissou diante de seus pés. Quem estava próximo se assustou, mas
não tanto quanto ela. Um silêncio se instalou na academia, todos reparavam neles naquele instante.
Dionísio concertou a barra e a descansou no piso. Desceu com pressa e parou diante da
moça apavorada. Ana se recuperou rápido do susto, pois seus lindos olhos verdes quase o de-
voraram. Para a surpresa de Dionísio, o semblante dela não denotava raiva, mas sim excitação.
O cheiro de suor feminino penetrou em suas narinas, uma leve sensação de prazer o paralisou.
Sentimentos de raiva, desejo, vergonha e curiosidade se misturavam dentro de si. Minutos an-
tes, queria se vingar, acusá-la de mentirosa por tê-lo enganado dez anos antes. Porém, naquele
momento, não sabia como agir.
– Se machucou? – gritou um dos instrutores – A anilha acertou seu pé, Ana Júlia?
Dionísio sentiu um calafrio percorrer seus corpo quando ouviu o nome que tanto o ator-
mentou ser pronunciado pelo funcionário. Desejando contornar a situação, ele mesmo respon-
deu, em voz alta:
– Não se preocupe, ela está bem – não conseguiu desviar a atenção da linda face rosada
contornada por lisos fios louros. O efeito era quase magnético.
“O que está acontecendo? Por que não sinto mais ódio?” Ela continuava tão bonita quanto

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A Coragem

antes. Estava dez anos mais velha, mas se sentia enfeitiçado tanto quanto fora dez anos antes.
Uma chuva de sentimentos confusos o atordoou. Talvez não seja amor, mas sim um desejo car-
nal. Nem ele mesmo entedia. Aquele situação era inesperada demais. O movimento na academia
voltou ao normal. Em instantes, ninguém mais os notava.
Ana Júlia arqueou as sobrancelhas, um sorriso provocador surgiu em seus lábios. Então o
mirou com um olhar avassalador. Dionísio se sentiu desconcertado.
– Você me assustou... – ela pressionou os lábios – Quase esmagou meus dedos.
Dionísio coçou o couro cabeludo e sorriu.
– Peço desculpas! Me distraí.
– Está perdoado – ela sorriu novamente. – Por um acaso não nos conhecemos de algum lugar?
Ele ficou sem ação. Quis mover os lábios, mas as palavras não saíram.
– Seu rosto. Ele não me é estranho...Desde a hora em que pousei os olhos em você, senti
algo estranho...Eu sei que você me lembra alguém... – ela examinou a estrutura facial do homem
a sua frente. Continuou confusa – Qual é o seu nome?
Aquele era uma boa oportunidade de jogar as cartas na mesa. Interrogá-la e fazer com
que ela contasse sobre a cilada que armou quando estudavam no mesmo colégio. No entanto,
compreendeu que o ambiente não era propício, o tiro poderia sair pela culatra. Suas emoções
estavam conflitantes, precisava adiar o reencontro, para depois saber como agir.
– Pode me chamar de... – franziu o cenho, pensou por uns instantes – de Augusto – não
quis pronunciar seu primeiro nome, pois temeu que ela pudesse se lembrar caso ele o revelasse.
Ela estendeu a mão. Dionísio tornou a sentir calafrios quando deslizou seus dedos na lisa
palma da jovem. Ana riu para ele, o verde de seus olhos espelhavam desejos.
– Muito prazer, Augusto! – passou por ele e subiu os degraus.
Dionísio continuava a tentar interpretar o episódio enquanto ouvia o barulho do tênis de Ana
pisar nos degraus. Ele se virou, ela o fitou de novo. Os dois sorriem. Tornou a se sentir confuso. Sem
que ninguém o percebesse, o homem atravessou a roleta e foi embora. Todo o seu passado caiu em
toneladas sobre suas costas, sentiu necessidade de ficar sozinho, de pensar sobre o que fazer de agora
em diante. Hoje encontrou Ana, amanhã poderão ser os covardes que o espancaram, precisava se
preparar psicologicamente para isso. E hoje, descobriu dolorosamente que não estava pronto.

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OLHOS DE SERPENTE

A noite estava fria, mas Ernesto se sentia aquecido com seu sobretudo. Um estrondo
ressoou quando o portão metálico começou a se mover. Ele, no banco de trás, não sabia onde
estava. Por segurança, conferiu a arma presa em seu coldre. O motorista do Hyundai deslizou o
pé no acelerador e seguiu seu rumo. De início, tudo estava escuro, mas uma sequência de luzes

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William R. Silva

foi acionada, dando claridade ao ambiente. O homem conduziu o veículo por um passadiço
estreito, o passageiro se manteve desconfiado. Dois vigilantes particulares guardavam a entrada.
O homem no volante parou o carro, mirando a dupla bloqueando a passagem.
– Deixe-nos entrar! – o condutor falou com seu timbre grave. Sua voz era facilmente
confundível com a de um locutor de rádio.
Eles estudaram o motorista e o passageiro. Um dos vigilantes balançou a cabeça em sinal
de concordância. Os dois deram espaço para que o carro passasse. Ernesto levantou os olhos e
encarou ambos com certo desdém. O automóvel continuava a seguir.
– Já estamos há mais de meia hora andando em círculos – inferiu o passageiro. Sua pa-
ciência começava a se esgotar – Até quando pretende dar voltas? Estou me sentindo enjoado.
O motorista arqueou as sobrancelhas, mas quis se mostrar educado.
– Tive ordens para ser o mais cuidadoso possível. Os Tedesco são muito cautelosos – res-
pondeu, fixando a face do homem no banco de trás pelo espelho frontal. – Apenas cumpro ordens.
– Entendo – o cenho de Ernesto franziu. – Espero que ele já esteja a nossa espera.
O chofer assentiu com a cabeça e percorreu um corredor até alcançar um grande cômodo.
Parou o carro e puxou o freio de mão.
– É aqui! – avisou ele, assim que abriu a porta. Saiu do Hyundai.
Os olhos escancarados de Ernesto se moveram de um canto a outro observando todo o
lugar. O teto era branco e límpido, um extenso piso de granito cobria o chão. Dois sofás, o apa-
relho televisor preso à parede, uma discreta mesa e um tapete escuro no centro. Que diabos, o
idiota estacionou o carro dentro de um sala? Ernesto estranhou, mas as palavras se mantiveram
em seus pensamentos. Só quando o viu de pé fora do automóvel que percebeu o quanto o chofer
era alto. O homem negro tinha sua cabeça tão bem raspada que sua careca chegava a brilhar à
luz que fugia do lustre.
– Onde está o Cláudio Tedesco? – rosnou, vendo que a sala estava vazia.
– Saia do carro, por favor – o chofer pediu.
Ernesto consertou a gola de seu sobretudo e puxou as mangas. Abriu a porta traseira e
saltou sorrateiro. Caminhou pelo salão, seus sapatos pareciam deslizar no piso lustroso. Seus
olhos azuis irados se lançaram em direção ao motorista.
– E aí? Por quanto tempo ficaremos aqui admirando um ao outro? – perguntou, irritado.
O homem se preparava para responder quando o som de um sapato de salto quicando
no porcelanato fez eco no cômodo. O barulho das pisadas era alto, denotava um passo rítmico.
Ambos se concentraram no indivíduo que se aproximava.
– Creio que cheguei cedo para a reunião – disparou uma voz feminina por detrás de uma porta.
– Cristina Tedesco? – Ernesto rugiu. Sentiu o estomago embrulhar quando ela se projetou
diante dele – Era só o que me faltava. Sabe muito bem que não te suporto. O que faz aqui?
Cristina Tedesco não era desprovida de beleza, mas suas lentes de contato a tornavam apavo-
rante. Seus olhos amarelados eram tão estarrecedores como os de uma serpente. Seus dreads presos
no couro cabeludo apresentavam um brilho natural mesmo sendo pouco crespos. O cabelo rastafári
de tom castanho escuro caía sobre as costas. Viam-se veias em seu pescoço e seus braços, apesar
de não muito grossos, tinham seus músculos visíveis. Tinha as coxas grossas e troneadas, o busto
se apertava em suas vestes. Trajava uma jaqueta de couro de manga curta, calça jeans e as negras
botas de cano longo e salto grosso cobriam-lhe as pernas do joelho para baixo.

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A Coragem

– Creio que se esqueceu de um detalhe – ela encarou o visitante de forma odiosa. – Cláu-
dio é meu irmão. Os negócios dele nunca foram segredos para mim – andou mais alguns centí-
metros. – Você não tem nada o que achar ruim, não é pago para isso.
– Cale-se, sua serpente paraguaia! – irou-se Ernesto – Não me trate como um dos seus
funcionários. Eu e seu irmão temos uma sociedade. Ele no financeiro e eu faço a mão de obra.
Pouco me importo onde você se encaixa!
Cristina rangeu os dentes, teve vontade de lançar-lhe os braços em volta do pescoço e
sufocá-lo com a pressão de sua força muscular. O visitante deu uma ligeira risada dissimulada e
pousou seus sinistros olhos na sócia.
– Onde está seu irmão? – a indagação de Ernesto soou como uma afronta.
Ela ignorou a pergunta. Agarrou um de seus dreads e deslizou os dedos sobre ele, pu-
xando-o e, em seguida, soltando a mecha. Tocar os cabelos se tornara algo tão natural que nem
mesmo nota quando os acaricia. Caminhou fazendo sua bota ranger e alcançou alguns papéis
sobre uma mesa. Ela pegou os documentos e levou-os até o visitante. Ernesto os recebeu, mas
antes de averiguar as informações, olhou de soslaio para o chofer.
– E o motorista, tem mesmo necessidade de ele ficar conosco?
O cenho do chofer franziu, girou e se dirigiu à saída.
– Santiago – Cristina o chamou, em tom de comando –, fique! – ele se deteve diante da
porta. Sua altura ficou ainda mais visível, ele era maior que o marco.
Ele olhou firme nos olhos de Ernesto e deu uma risadinha cínica. O visitante sentiu seus
dedos amassarem os papéis em suas mãos em virtude da raiva que sentiu. A mulher sempre
gostou de desafiá-lo, era como um vício. Cristina sabia que o sócio era um sujeito extremamente
submerso em seus preconceitos e teorias de superioridades de raça.
– Só há duas pessoas em quem meu irmão confia – ela pronunciou –, uma delas sou eu, o
outro... – ela se virou para o chofer – é ele.
O homem prendeu a irritação entre lábios e correu as vistas nas folhas em suas mãos. Leu
algumas partes, mas não deu nenhum parecer. Santiago se dirigiu à cozinha.
– Por que diabos o Tedesco ainda não está aqui? – seus olhos se desviaram das impressões
e encaram a mulher.
– Por que ele está em Brasília tratando de negócios.
– O quê? – o grito escapou de forma automática. Ele a encarou prestes a atingir o limite
de sua ira.
– Meu irmão me encarregou de lhe passar essas informações – Cristina prosseguiu, sem se
importar com o descontentamento do sócio. – Esses papéis são informações atualizadas sobre a
antiga ferrovia na cidade de Realinópolis. O Quartel... – sorriu, triunfante – ainda é um segredo
para maioria dos habitantes da cidade, ou melhor, dos habitantes do país.
– Sim – as sobrancelhas do sócio se ergueram, com desdém –, agora me conte a novidade.
Santiago voltou com três xícaras de café recém coados sobre uma bandeja prateada.
– Tenho fraca tolerância a cafeína – Ernesto fez um gesto dispensando a bebida. – Obriga-
do pela cortesia! – o sujeito de quase dois metros colocou os itens sobre a mesa.
Ela outra vez acariciou os grossos fios castanhos.
– A novidade é que o prefeito e as demais autoridades não têm conhecimento do que está
escondido lá.

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William R. Silva

– O prefeito é um membro da Quartel – Ernesto a corrigiu enquanto lia os documentos.


– Não seja tolo! – ela sentiu a raiva do homem prestes a transbordar – Não estou falando
do Quartel. Estou falando do que há escondido no Quartel. Aquilo que os jovens que frequentam
o lugar desconhecem. Aquilo que os mestres consideram lenda e que nós... sabemos que é ver-
dade! Aquilo que pertence a mim e a meu irmão, os descendentes diretos de Florentino Gaspari
Tedesco, conhecido como... – os olhos de serpente brilharam – o Barão de Januária.
Ernesto refletiu sobre o que ela disse.
– Eu sei, não me subestime! – pegou o papel que estava por baixo e o colocou por cima do
primeiro – Foi por causa desse segredo que Cláudio se aliou a mim, foi por causa desse segredo
que fui parar na cadeia... – começou a ler a página seguinte.
– Foi parar na cadeia porque é um homofóbico desequilibrado – Cristina o cortou, descontente.
Seus olhos azuis se levantaram por cima do papel.
– Apenas uni o útil ao agradável. Ele descobriu o que não devia e era um pecador – seus lá-
bios estavam escondidos por trás das folhas, mas suas sobrancelhas arqueadas denunciaram o sorri-
so diabólico que acabara de esboçar. – Matei dois pombos com um só tiro. Só mais uma pergunta...
Ela pegou uma das xícaras, uma fumaça cheirando a café infiltrou em seu nariz.
– Fale!
– Trouxe-me aqui apenas para me mostrar documentos imbecis que podem facilmente ser
pesquisados na internet?
Cristina tomou um pouco da bebida quente e respondeu:
– Não!
– Cláudio deseja que você more aqui nessa cidade – a voz masculina fez Ernesto se as-
sustar –, mais precisamente, nessa mesma casa. O ataque ao lugar secreto na ferrovia de Reali-
nópolis está prestes a começar. Ele quer tratar desses assuntos pessoalmente e não tem a menor
vontade de ter que ir a sua casa quando necessário.
Ele quis se aborrecer com a intromissão do chofer, mas teve compostura. O máximo que
fez foi mover os olhos na direção do intruso e franzir a testa.
– Diga a ele que espere sentado! – o visitante arremessou os papéis sobre a mesa, fazendo
com que se espalhem.
– Para as autoridades, você não existe mais – Cristina discordou. – Você foi achado morto
no dia do incêndio. Se esqueceu desse detalhe?
Ernesto riu.
– E isso foi uma jogada de mestre! A questão é que... – ele produziu um ronco como se
estivesse limpando algo da garganta – ele ainda não me deu carta branca para atacar. Preciso me
manter em forma. Onde estou posso treinar artes marciais como e quando eu quiser. Não posso
ser prejudicado por causa de caprichos megalomaníacos. E outra... – fez uma pausa e a encarou
– a última coisa que desejo na vida é morar no mesmo lugar que você.
– A recíproca é verdadeira – a mulher conseguiu uma voz sarcástica e, ao mesmo tempo,
que denotava aversão. Santiago riu baixo – Esse é apenas um de nossos imóveis. Podemos muito
bem passá-lo para o seu nome. É claro que... meus seguranças e meu motorista virão embora
comigo. Você é um quarteliano de alta patente, sabe muito bem se defender sozinho.
O homem de sobretudo deu as costas e caminhou até o Hyundai.
– A reunião acabou – determinou, sem se virar. – Diga ao Tedesco que quando quiser me

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A Coragem

propor algo, me convença pessoalmente e não use seus serviçais – ele abriu a porta do carro e se
dirigiu ao chofer com um ar de superioridade. – Por favor, leve-me de volta para o mesmo lugar
que você foi me buscar – foi para o interior do carro.
Santiago olhou para Cristina como se tivesse a espera de sua uma decisão. Ela anuiu com
a cabeça. O motorista caminhou até o automóvel e abriu a porta do lado do condutor.
– Saiba que meu irmão ficará muito irritado com sua atitude! – a mulher de dreads o
intimidou.
O passageiro colocou a cabeça para fora.
– Que se dane o que ele vai pensar!

19

O CONFLITO

O BMW seguia em alta velocidade pela estrada. Roberto retirou seus óculos escuros,
lançou-os no banco do carona, reduziu a marcha e girou o volante para a direita. Ele pisou forte
no pedal e invadiu a via estreita com gramados laterais. Conforme avançava, o portão de sua
residência se ampliava. A poucos metros da entrada, abriu o porta-luvas, pegou seu controle e
pressionou o botão. Quando o carro atingiu uma distância de cerca de vinte metros do acesso,
as grades férreas se abriram automaticamente. Irrompendo a passagem, o luxuoso automóvel
passou como um vulto pelo trecho. O motorista pousou os olhos no retrovisor e viu o portão au-
tomático se fechar atrás de si. O veículo alcançou a garagem e freou. Sem ao menos tirar a chave
da ignição, Roberto saiu do carro e caminhou rumo a entrada da mansão. O rico jovem cerrou
as vistas quando sentiu a luminosidade solar acertar-lhe a face. Sua pele clara e a sua fisionomia
prepotente se tornaram ainda mais notáveis com a claridade do dia.
Ele puxou as extremidades de sua regata preta a fim de acertá-la, arrumou o cordão de
prata no pescoço e continuou suas pisadas. O jardineiro, empregados e demais funcionários da
casa para ele eram invisíveis. Roberto, como faz normalmente, nem mesmo se deu ao trabalho
de cumprimentá-los. Entrou na sala da enorme casa e torceu o nariz. Rosane estava sentada len-
do uma revista. Assim que viu o irmão entrar, ela saltou do sofá e sorriu para ele.
– Oi, irmão! – falou, embaraçosamente – Senti sua falta.
O homem lhe devolveu um semblante de desprezo e depois desviou o olhar. Como se a
adolescente não existisse, passou ao lado dela sem retribuir-lhe a saudação. Ele subiu a escada-
ria. A moça, com um olhar triste, voltou a se sentar e reiniciou sua tarefa. O playboy arrogante
trafegou pelo corredor, parou diante do seu quarto, encaixou a chave, escancarou a porta e
entrou. Caminhou até a janela e a abiu. A claridade intensa tornou a ofuscar sua visão. Ele se
concentrou na paisagem e contemplou toda a área externa da mansão, desde o espaço de lazer
até as fileiras dos grandes coqueiros.

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William R. Silva

– Nada disso é seu, sua intrusa – seu cenho franziu. – Você não é e nunca será uma de nós.
Nunca! – rangeu os dentes.
Imediatamente sorriu com uma leve dose de maldade. Se jogou por cima da cama e des-
cansou. Espichou os olhos assim que ouviu alguém dar pancadas na porta.
– Que droga! – saltou do colchão, irritado – O que essa pirralha quer de novo?
Sem muito ânimo, Roberto reabriu a porta e deu de cara com seu pai. Rogério Tavares
lançou um olhar de desprezo sobre o rapaz, depois adentrou. Seu filho não imagina vê-lo em
casa àquela hora, seu rosto denotou um que de surpresa.
– É você, pai – deu as costas. – O que quer comigo?
O homem de cabelos grisalhos arriou a manga do terno, averiguou as horas em seu relógio
de pulso e o mirou. Seus olhos inquisidores denotaram insatisfação por debaixo das lentes.
– Por que não foi trabalhar, ainda?
Roberto se irou com a pergunta. Sua expressão de raiva se tornou notável, mas faz o
possível para se segurar.
– Eu sou herdeiro do dono de uma das maiores e mais rentáveis instituições financeiras do
país – seu filho rosnou. – Mereço um cargo melhor... não aquela função ridícula que você me deu.
O banqueiro gradativamente mudou sua expressão até sentir sua testa franzir.
– Cargo melhor? Como? – discordou, descontrolado – Me diz. Como posso indicar o
cargo de vice-presidência, algo tão sério, para um irresponsável como você? Se nem uma função
simples como essa é capaz de desempenhar.
Com agressividade, Roberto se virou e deu um murro em sua guitarra dependurada na
parede. O instrumento se moveu para o lado, mas não chegou a despencar. Rogério se afastou
instintivamente, não estava acostumado a ver o rapaz reagir dessa maneira, mesmo sendo co-
mum a impulsividade rebelde do herdeiro.
– Eu mereço algo melhor, meu pai – Roberto recuperou a calma. –Como seu filho, tenho
direitos. Eu me empenhei nos estudos, terminei a faculdade de economia como o senhor sempre
quis. Você não podia ter feito isso comigo.
Rogério rumou em sua direção.
– É esse seu problema – prosseguiu –, você só pensa em direitos, mas nunca nos deveres.
Nunca se deu bem com autoridades, jamais gostou de se subordinar aos outros. Você não tem o
menor tino para lidar com pessoas, é um prepotente por natureza.
– É isso que você pensa de mim? Se não é capaz de acreditar no trabalho do seu próprio
filho, é sinal de que nossa relação não anda bem –os olhos raivosos de Roberto caíram sobre o
homem. – Se é que se um dia andou.
– Não me venha com manipulações baratas! – o empresário revidou – Isso pode funcionar
com sua mãe, mas comigo é inútil. Estou farto das suas irresponsabilidades e extravagâncias. A
vida inteira só quis saber de luxos, carros importados, mulheres, uma vida de festas e curtição.
Nunca teve empenho nenhum na vida. Agora me explique, como posso deixar o legado da famí-
lia nas mãos de um inconsequente como você?
Seu filho se virou e começou a zanzar impaciente pelo aposento.
– Pai, as coisas não são assim – ele se apoiou na parede e mirou o genitor. – Eu posso me
empenhar. Posso me esforçar para mudar meu jeito de ser. Quero apenas uma chance – olhou
para o pai, suplicante.

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A Coragem

Rogério discordou, movendo a cabeça.


– Eu sinto muito – a voz do senhor denotou angústia. Ele jamais desejou ferir o filho com
sua sinceridade áspera – Você raramente terá condições de controlar o legado de nossa família.
Rosane, mesmo sendo ainda muito nova, me traz muito mais confiança que você.
Os batimentos cardíacos de Roberto aumentaram a frequência e suas pupilas se dilataram.
Enraivecido, levantou as sobrancelhas para o pai.
– Não, isso eu não vou admitir, nunca! – disparou – Aquela adotada, que não tem o nosso
sangue correndo nas veias, não tem esse direito. Eu sou seu filho legítimo, não ela... – o grito
ecoou no lado de fora – Não ela – o ódio deixou o rosto do homem vermelho.
Algo ruim percorreu as lembranças do empresário parado no meio do quarto. Rogério
reparou na fotografia do pequeno garoto na parede e começou a pensar no que fizera durante
todos esses anos na criação do filho. Será que fora amor demais por parte de sua mãe? Ou seria
falta de amor? Talvez tenha sido um pai ausente. Um turbilhão de sentimentos sobrevoou seus
pensamentos naquele instante. “Será que conheço mesmo meu filho?” Aquele sujeito descon-
trolado mais se assemelhava a um mostro. Anos e anos trancando naquele prédio, acumulando
riquezas, prestígio e status enquanto o menino crescia sem sua atenção. O homem de terno se
sentiu culpado, poderia ter feito mais pela educação do rapaz.
– Ela é tão minha filha quanto você – argumentou, mantendo a calma. – Não só pelo fato
de eu e sua mãe a estimarmos muito, mas também pelos parâmetros da lei. Querendo ou não,
Rosane é uma de nós.
Roberto franziu a sobrancelha.
– Pois, pra mim, ela não é e nunca será!
– Não importa o que você pensa ou deixou de pensar – seu pai o rebateu.
Os dois se calaram assim que um barulho de alguém correndo em direção ao quarto res-
soou no corredor. Uma mulher usando um longo colar de diamantes, vestido de seda longo, com
seu coque destacando seu rosto magro e duas argolas de brilhantes pendendo em suas orelhas
surgiu diante de ambos. Ela moveu os olhos e sentiu uma aura negativa pairando no ambiente.
– O que significa isso, posso saber?
Roberto mirou a mãe.
– Seu marido não confia em mim!
– Não se intrometa nesse assunto, Tânia! – Rogério bradou – Deixe-nos a sós!
Sua esposa o encarou, inconformada.
– Me intrometo, sim! – ela revidou – Vocês são minha família e não admito vê-los brigando.
– Ele disse que nunca me dará o cargo de vice presidente. Prefere deixar outra pessoa no
meu lugar – Roberto omitiu a parte em que ele menosprezou a irmã adotiva, pois sabia que pode-
ria sofrer alguma represália da mãe. – Aquele sujeito vai continuar no posto que deveria ser meu.
– O Alfredo é um ótimo profissional – Rogério falou. – Nunca tive o que reclamar dele.
Jamais irei demiti-lo para colocar esse aí no seu lugar.
Tânia acariciou o rosto do filho.
– Não se preocupe, meu querido! – a mulher olhou para o marido – Ele está dizendo essas
coisas porque está nervoso. Logo tudo se ajeita e ele te dará uma chance. É tudo questão de tempo.
O banqueiro caminhou até a esposa e cravou os olhos nela.
– Sabe quando seu filho vai ter o cargo na diretoria que ele tanto quer?

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William R. Silva

A expressão de Tânia congelou.


– Somente depois que eu estiver morto! Porque, em vida, isso jamais irá acontecer – Ro-
gério saiu andando fazendo o ruído de seus passos sumir no passadiço.
Ela respirou fundo e deu um passo para frente. Abraçou o filho e lhe deu um beijo no rosto.
– Fique tranquilo! Vou conversar com seu pai – suspirou. – Confie em mim – ela se des-
prendeu e correu atrás do homem zangado.
“Somente depois que eu estiver morto! Porque, em vida, isso jamais irá acontecer.”
Roberto refletiu sobre as últimas palavras ditas pelo pai e novamente caiu sobre a cama. Espar-
ramado no colchão, ele riu baixo e ficou com a visão fixa no teto.

20

O NOVO FUNCIONÁRIO

O céu fracamente alaranjado com manchas cinzas começava a dar os primeiros sinais do
pôr do sol quando Dionísio se levantou da cama. Sentado na beirada do colchão, ele esticou os
braços, abriu suavemente a boca e sentiu um longo bocejo liberar o ar preso em seus pulmões.
Finalmente era segunda-feira. Cada minuto do final de semana parecia uma eternidade. Seu
corpo ainda insistia em continuar no estado de repouso, mas o que lhe reservava no dia que se
seguirá o inundava de energia interior. A ansiedade que sentia se sobrepunha à vontade de voltar
a descansar a nuca no travesseiro. Ele se ergueu e caminhou até o banheiro, escovou os dentes,
despiu-se e entrou no chuveiro.
– Hoje é o grande dia! – entusiasmou-se, assim que rodou a torneira na parede e a água
caiu sobre seu corpo. Ele se ensaboou e começou a se esfregar. Quando sentiu os últimos res-
quícios de espuma sumirem de sua pele, lavou os cabelos com shampoo e fechou o chuveiro.
Ele se enrolou na toalha, saiu do banheiro e alcançou o guarda-roupas. O céu clareou
no instante em que abriu a porta de madeira. A imagem de um ônibus cortando o cruzamento,
poucos habitantes andando pacificamente e meia dúzia de comércios levantando seus portões
de aço para iniciarem o período de vendas. Tudo isso passou pelos olhos de Dionísio quando
prestou atenção na janela de grade aberta e viu o alvorecer urbano. Seu braço se estendeu para
dentro do guarda-roupas e sua mão empurrou, uma a uma, o amontoado de camisas nos cabides.
Não encontrou o que procurava.
– Onde será que foi parar meu terno? – murmurou enquanto revistava os quatro cantos do
compartimento. Depois, reparou em volta e estranhou assim que viu a capa protetora do terno por
cima de seu notebook na escrivaninha. Ele avançou e agarrou a proteção de plástico, confuso.
Foi nesse instante que sentiu a vibração de passos no corredor e sua mãe surgir no quarto.
Maria Clara usava uma calça de ginástica apertada em seus quadris e uma camiseta colada aos
seios. Como de costume, todas as manhãs de segundas, quartas e quintas-feiras ela acordava

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A Coragem

cedo para cumprir sua tabela semanal de treinos na academia. Dionísio desceu os olhos até a
mão esquerda da mulher e viu que ela segurava o que procurava. Ela sorriu, ergueu o braço e
mostrou o terno totalmente passado e organizado sobre um longo cabide.
– Hoje é o seu primeiro dia de trabalho – Maria Clara declarou, orgulhosa. – Tudo tem
que correr bem. Você tem que causar boa impressão – duas linhas de expressões se desenharam
em suas pálpebras quando ela tornou a sorrir.
Seu filho a encarou surpreso. Ela deu seis passos e repousou as vestes sobre a cama. Maria
Clara se abaixou e suas unhas vermelhas deslizaram sobre a blusa presa no cabide. Puxou a peça
e entregou ao rapaz.
– Seu pai sempre usava terno para trabalhar, não é?
O semblante de Dionísio assumiu uma feição de curiosidade no segundo em que ele se-
gurou a blusa e começou a vesti-la.
– Sim – apertou o último botão e mirou a mãe. – Por quê?
– O Átila deveria ter te ensinado que a gravata deve ter quase a mesma tonalidade da
camisa. Sabia? – a mulher pegou a peça seguinte – Eu tomei um susto quando vi que sua gravata
não estava combinando, então sábado eu corri e comprei outra – Maria Clara levantou o tecido e
o lançou para ele. – Olhe bem para essas listras alternadas, umas são azuis, outras pretas. Como
sua camisa é azul, a gravata também tem que ter algo da mesma tonalidade. Entendeu?
O homem laçou a fita no pescoço e aquiesceu.
Foram raras as vezes em que Dionísio precisou usar terno e, nelas, Nelson sempre fazia
questão de encomendar um aluguel em lojas autorizadas. Seu pai constantemente se apresentava
com elegância em suas reuniões empresarias e até mesmo na rotina simples em seus dias de
trabalho, mas os dois quase nunca conversavam a respeito de roupas, se conversavam, ele não
se lembrava. A falecida Catarina foi quem lhe ensinou a se vestir bem e algumas outras dicas foi
recebendo de amigos. Já sua mãe era mestre em elegância, moda e requinte. Ela é tão lapidada
no assunto que poderia ser capaz de transformar um mendigo em modelo fotográfico em questão
de pouca horas, por menos belo que este fosse. Mas não era nada disso que o deixava contente e
sim o zelo que sua mãe teve na preparação de seu traje. Parecia que ela estava entusiasmada na
mesma intensidade que ele. Ás vezes se sente confuso em relação aos sentimentos que nutre por
ela, mas neste instante, via que a mãe não era tão fria e distante como pensava.
Maria Clara notou que o rapaz estava com problemas para dar o nó, então ela esticou o
braço e terminou o serviço. Ela se lembrou de relance do filho ainda pequeno sentado na cadeira
da sala balançando as perninhas enquanto o vestia e depois voltou a si.
– Você não sabe nem dar nó na gravata – sua mãe riu baixo.
Ela lhe passou o blazer e ele o trajou. Os dedos de Dionísio abotoaram o primeiro botão,
contudo, quando foi prender o segundo, Maria Clara o interceptou:
– Nunca se deve abotoar o último botão do blazer! – mais um sorriso contornou-lhe a
boca – Regra de ouro. Nunca se esqueça!
Era um adulto formado apesar de ter se sentido como uma criança inocente nos minutos
que correram. Ele olhou para a mãe bastante contente no instante em que ela se virava para apa-
nhar a calça. Todo o terno já estava em seu corpo, só faltavam os acessórios finais. Maria Clara
abriu o compartimento do guarda-roupas e arrancou de lá o calçado e o cinto.
– Aleluia, pelo menos isso! – sua genitora suspirou e ergueu os dois objetos – Sapato

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William R. Silva

combinando com o cinto – gargalhou. – Parabéns, você acertou!


A face de sua mãe cintilou no momento em que ela examinou o resultado de seu esforço.
O homem estava magnífico. Pronto para o seu primeiro dia no emprego.

Um fileira de prédios se movia diante dos olhos de Dionísio conforme o Citroen de sua
mãe avançava pelos acessos da área central. Ela dobrou à direita e entrou na avenida Afonso
Pena. Seguiu em linha reta, parando e prosseguindo de acordo com as indicações dos semáforos.
Um sorriso de nervosismo e expectativas despontou no rosto do passageiro assim que o prédio
do Banco Século surgiu em meio à paisagem, cujo conhecido símbolo se iluminava entre os
feixes solares. Depois de tanto esforços, entrevistas e dias de espera, conseguiu passar no teste
e ocupar um dos cargos mais cobiçados da famosa e respeitada rede bancária. O orgulho de si
mesmo era tão imenso que quase não cabia no peito.
O Citroen estacionou próximo ao edifício. Pedestres se locomoviam na calçada e clientes
eram vistos entrando e saído do local. Maria Clara soltou a mão de cima do volante e a colocou
sobre o ombro do filho. O homem no banco a mirou.
– Estarei torcendo por você! – disse, emocionada – Que Deus te abençoe e você passe
nesse estágio e se efetive nesse emprego.
Dionísio, pela primeira vez depois de muitos anos, fitou a mãe com um olhar de afeto e
gratidão. Sentiu vontade de dizer que a ama. Mas será que a ama? Como alguém pode não ter
certeza se amava ou não a própria mulher que o pôs no mundo? Ele se sentiu estranho e comple-
xo por isso. Expulsou esses questionamentos da mente e moveu a trava da porta. Percebeu que
não sabia como lidar com a situação e desviou o olhar.
– Obrigado! – ele a agradeceu sem sequer olhar para a motorista e abriu a porta.
Dionísio se retirou, bateu a porta escutando um baque atrás de si e rumou em direção a
entrada do prédio. Antes de acessar a instituição, ouviu o barulho do Citroen sendo ligado e
observou de soslaio o carro sumir da sua vista. Imediatamente, sentiu-se mal e se petrificou no
meio do percurso. Transeuntes zanzavam em torno dele. “Por que eu não a olhei nos olhos? Eu
não lhe mostrei a menor consideração. Será que ela se entristeceu por isso? Podia ter pelo menos
a abraçado. Meu Deus, ela é minha mãe. Por que razão não consigo entender os sentimentos que
tenho por ela? Seria excesso de mágoas ou por que não a aceito como ela é?” Respirou fundo
e prosseguiu com os passos. A ocasião não era a melhor para raciocinar sobre o assunto. O que
foi feito não tem mais volta.
O evento que acontecerá em sua vida será um dos mais importantes e ele precisava se
manter confiante e alegre. Seu rosto escondeu o arrependimento outrora estampado e, assim,
partiu para o interior do lugar. Admirou todo o cenário operacional e foi avançando pelo enorme
salão. Alguns funcionários o encararam, mas nada disseram. Dionísio se apresentou na recepção
e seguiu para o elevador. Digitou o número correspondente ao oitavo andar e aguardou o piso
se mover. Sozinho no elevador, notou o sentimento de ansiedade envolvê-lo por completo. Por
isso, o novo funcionário colocou a mão esquerda sobre o peito e começou a sentir o tórax inflar
e murchar repetidas vezes no ritmo de sua respiração. Era um exercício que aprendeu no lugar
misterioso onde Doutrinador lhe ensinou para ter calma nos momentos cruciais de sua vida.
Dionísio sabia que a primeira impressão é a cartada decisiva para o seu sucesso ou fracasso. O
emprego ainda não era cem por cento seu e compreendia bem que seria avaliado nas próximas

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A Coragem

semanas. É comum seres humanos se sentirem apreensivos ante a opinião de terceiros, mas
estava fazendo o possível para amenizar a situação. Sentiu o elevador cessar o movimento e viu
a porta dupla de metal se abrir.
O novato penetrou no setor e se empenhou a andar pelo lugar estudando todo o ambien-
te. Dez cubículos estavam postos em fileiras com algumas atendentes falando no microfone
embutido próximo aos lábios. Mais à frente, quatro divisórias transparentes, cada qual com um
empregado lendo contratos sobre a mesa e digitando dados em seus computadores. Bancários de
ternos circundavam de um lado para outro e entravam em suas salas. Dionísio esquadrinhou as
paredes e descobriu que as grandes janelas de vidro mostravam a amplitude dos edifícios vizi-
nhos, tornando nítida a sensação de altura a qual se encontrava. Só então concordou que estava
perdido. No documento de admissão dizia que ele deveria ir até o referido lugar, mas agora não
sabia como proceder. Resolveu que iria solicitar informação.
Ele revirou os olhos e viu um sujeito segurando uma mala sair de uma porta, dar as costas e
sair caminhando. O funcionário foi até uma mesa vazia, Dionísio o seguiu com os olhos até vê-lo
parar. O homem ergueu a mala e a colocou por cima do móvel. O novato rumou em direção ao rapaz
de costas – que acabara de abrir a mala e checava alguns papéis dentro dela – e parou atrás dele.
– Bom dia! – Dionísio falou. O funcionário interrompeu a ação e ergueu as sobrancelhas
– Eu sou novo na empresa e irei trabalhar na área administrativa. Estou meio desorientado, teria
como me auxiliar com algumas informações?
O bancário virou o rosto por cima do ombro e sorriu para Dionísio.
– Que bom! Então iremos trabalhar no mesmo andar – fechou a mala e a trancou. – Mas
você está na parte errada, o lugar que você quer é próximo ao meu setor. Só que antes, você
precisa fazer uma coisa... – arrastou a mala e segurou.
Dionísio viu uma serviçal adicionar mais copos descartáveis no bebedouro e duas mulhe-
res passarem por ele e entraram numa das portas. Depois, falou:
– O que eu preciso fazer?
O homem se virou, encarou o novato e estendeu a mão. Os olhos de Dionísio se abriram
quando se chocaram com as características físicas do indivíduo. Sabia quem era... será mesmo
ele? Não pode ser! Dionísio sentiu seu estômago revirar. Os anos se passaram e o rosto do es-
tudante ainda era o mesmo. Tê-lo visto não lhe causou tanto atordoamento quanto o reencontro
com Ana, mas ainda assim, aquele sujeito lhe oferecendo as boas-vindas lhe trouxe sensações
ruins e um forte sentimento de raiva. Com certeza o aluno agressor não o reconheceu, o novato
se controlou internamente e apertou a mão do seu antigo desafeto. O funcionário estranhou a
demora que o colega teve para aceitar sua saudação, entretanto, fingiu não notar.
– Muito prazer, meu nome é Paulo Munis – ele ergueu a sobrancelha quando viu que a
expressão de Dionísio mudou assim que falou seu nome – E o seu?
Dionísio pensou por alguns segundos e respondeu:
– Pode me chamar de Augusto. Não gosto do meu primeiro nome – riu, discretamente,
tentando camuflar sua ira interior. Não queria que o antigo adolescente do São Magno o reco-
nhecesse, assim como fez com Ana Júlia, omitiu parte do nome.
Paulo sorriu.
– Como eu ia dizendo... trabalho no setor de advocacia e o seu escritório será no mesmo
andar que o meu...

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William R. Silva

“Que ótimo! Vou ter que aturar esse covarde desgraçada todos os dias.” Dionísio fingiu
felicidade embora seus pensamentos guardassem o contrário.
– Mas, antes – Paulo continuou –,você deve passar no Recursos Humanos.
– E onde é o RH? – perguntou ao advogado.
– A segunda porta à direita – Paulo respondeu e andou até o elevador. –Até daqui a pou-
co, Augusto. Qualquer coisa, pode me consultar, terei prazer em ajudá-lo – as portas de aço se
abriram e o homem entrou no elevador.
Os dentes de Dionísio rangeram.
– E eu terei o prazer de arrebentar sua cara com a força do meu soco, seu covarde maldito!
– disse, cerrando os punhos.

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SENTIMENTO PLATÔNICO

Parque Natural São Genaro

13 de Abril de 2014.

Por diversas vezes, Dionísio evitou trafegar no parque ecológico, uma vez que o lugar
poderia trazer-lhe lembranças ruins. Embora tenha ignorado o antigo colégio, cuja localiza-
ção era logo à frente do parque, adquiriu coragem e resolveu enfrentar seus anseios. Ao con-
trário do que imaginava, o local lhe trouxe uma sensação agradável e não de recordações tris-
tes como pensava que iria ocorrer. Talvez tudo isso fosse reflexo do esplendoroso momento
que está vivendo. Dedicou-se por alguns minutos a passear pela reserva ecológica. O terreno
era grande, evitou andar pelos locais que o traumatizaram durante muitos anos: o banquinho
de madeira onde leu a carta de Ana, o esconderijo onde foi surrado e a outra entrada onde ele
tentou assassinar os colegas de colégio. Desviou-se da rota e percorreu as outras áreas do São
Genaro. Desconfiou que aquelas partes do estabelecimento público o entristeceriam, por isso,
resolveu que nesse dia iria evitá-los.
Foi assim, caminhando sem destino que, a uma razoável distância, em meio a diversos
transeuntes, viu a linda morena solitária, folheando o seu livro distraída no gramado. Algo nela
o abalou, seu coração pulsou mais rápido, algo percorreu-lhe o corpo e sua boca se abriu invo-
luntariamente. A sensação não era de amor, excitação, curiosidade, desejo, não era capaz de
compreender. Era incrível o que lhe ocorria. Não sabendo o motivo, sentiu uma sensação de
euforia ao vê-la. Checou várias vezes ao redor a fim de certificar-se de que estava sozinha. Tinha
impressão de que a conhecia de algum lugar, outra época. Entretanto, não conseguia se recordar

83
A Coragem

quando e onde. Quis se aproximar, suas pernas travam. Cerrou os olhos, lançando-os na direção
de sua presa. Rumou na direção da moça determinando a encará-la de frente.

O canto dos pássaros, o barulho da agitação das crianças que brincavam animadas pene-
travam em seus ouvidos como músicas relaxantes. Indivíduos transitavam de um canto a outro,
indo, voltando. Folhas verdes despencavam das árvores e eram levadas pelo vento sereno. Nada
era capaz de interferir no seu momento de paz. Maria do Rosário desfrutava parte de seu sábado
em um dos lugares mais tranquilos e saudáveis da cidade. Sentada na grama, de cabeça baixa,
com seus cabelos cacheados se movimentando em volta da face. Um grosso livro em suas mãos
a distraia de tudo. Mantinha-se distante do mundo como se não houvesse mais ninguém ali,
apenas ela, seus personagens. Viajava na história totalmente inserida nas linhas e parágrafos.
Lia as páginas completamente desconectada do ambiente. Seu estado de concentração foi tão
intenso que não se deu conta de que estava sendo observada. Seus sentidos se aguçaram, sentiu
um calafrio. Ela subitamente desviou os olhos da página e os ergueu. A troca de olhares não
durou mais que cinco segundos, mas foi o suficiente para deixá-la curiosa. Sem medo, ela sorriu.
Aparentemente, o rapaz estava mais nervoso que ela.
Maria do Rosário esboçou uma expressão de dúvida e, ao mesmo tempo, achou graça da
atitude do paquerador.
– Algum problema? – encarou o intrometido, sorridente.
Maria do Rosário era uma morena de beleza radiante, seus olhos castanhos claros pare-
ciam pedir socorro de tão profundos, sua pele era de um tom moreno não muito escuro, seus
cabelos confundiam-se entre ondas e cachos, dona de um rosto fino e nariz achatado, cujos tra-
ços seguiam fielmente sua descendência indiana. Dionísio, de uma maneira que nem ele mesmo
conseguiu compreender, quanto mais reparava naquela fisionomia, mais sentia-se enfeitiçado
por ela. Uma sensação boa e, simultaneamente, estranha o envolvia a cada segundo. Uma espé-
cie de aura que tomava conta de sua estrutura. Toda a sua confiança interior, naquele momento,
esvaia-se, deixando-o completamente neutralizado. Não conseguiu se concentrar numa só frase,
palavra e nem sequer num movimento. O homem ficou inerte, de pé diante daqueles traços femi-
ninos. “De onde a conheço? Onde?” Questionou a si mesmo, em seus pensamentos.
Maria do Rosário o olhou fixamente na esperança de que ele dissesse algo.
– Ei, rapaz, você é mudo, é isso? – tentou ela, outra vez.
Seus olhos se espicharam de curiosidade, mas o sujeito continuava calado.
– Oiê! – chacoalhou as mãos ante o rapaz, tentando tirá-lo do transe – Já que me descon-
centrou, me diga pelo menos seu nome?
– Meu nome é Dionísio. E o seu?
A mulher riu, não sabia como, mas o intruso trazia-lhe uma sensação prazerosa.
– Maria – respondeu educadamente.
Ela levantou a mão direita em sua direção. Dionísio a tocou suavemente deslizando os
dedos sobra sua palma.
– Nos conhecemos de algum lugar? – ela tornou a sorrir em retribuição – Você me pa-
rece familiar.
Ela também sentiu o mesmo? Dionísio procurou em suas recordações alguém parecido,
mas era impossível tê-la conhecido anos atrás. Quando era jovem, nunca fora capaz nem sequer

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William R. Silva

de fazer amizade com garotas. Elas sempre o ignoraram. Nenhuma menina do colégio lhe dera
atenção, com exceção de Ana Júlia para arma-lhe uma cilada. Se estivesse em Realinópolis, até
que poderia ser possível, mas na sua cidade natal, não tinha lógica. “Talvez, os dois estejamos
enganados”, pensou.
Cogitou a ideia de tentar seduzi-la, estava acostumado a agir assim com outras mulheres,
mas quanto mais tentava se livrar da atração que estava a sentir pela jovem, mais intenso o
desejo se tornava. Era algo que se assemelhava a um sentimento de tranquilidade, uma energia
especial que lhe encantava. Não aceitava aquela situação, precisava mostrar segurança, jamais
desejou parecer desajeitado diante de um mulher novamente.
– Creio que nunca nos vimos antes. Com certeza, nunca nos vimos –um semblante de
cinismo tomou conta do sedutor. – Talvez isso tenha algum nome. Acredita em amor à primeira
vista? – Dionísio continuava encantado e nervoso. No entanto, a firmeza e decisão de sua fala,
camuflou seu estado de acanhamento.
Maria do Rosário soltou uma gargalhada tão alta, que fez o paquerador arregalar os olhos.
Após fechar o livro, ela ajeitou os fios de cabelos que incomodavam-lhe os olhos.
– Não. Não acredito em amor à primeira vista.
Dionísio se esticou no gramado e os dois voltaram a trocar olhares. Ele estufou o tórax e
se apoiou no solo.
– Eu também não – seu semblante franziu. – É por isso que pretendo te olhar mais vezes
– falou sedutoramente.
A moça novamente caiu na gargalhada.
– Interessante. Além de atrapalhar a leitura dos outros em lugares públicos e passar can-
tadas ruins, o que mais você faz, senhor intruso? –brincou ela.
A frase o desconcertou, mas ele se manteve otimista. Ou ao menos continuou a fingir que estava.
– Estou cursando pós-graduação na universidade e trabalho na sede de um banco, mudei
para cá faz pouco tempo. Estou em busca de novas amizades – sua voz saiu debochada.
Maria deu outra risadinha e o encarou, descrente:
– Novas amizades? Sei! – uma cova surgiu no contorno de seus lábios femininos – Agora
mudou de estratégia. É um cínico você, hein?
– Sim... exatamente. Você aceita ser minha amiga? – retrucou ele, fitando-a de um jeito safado.
A moça outra vez solta uma sessão de risos passageiros.
Dionísio observou uma das folhas cair sobre o couro cabeludo da moça e prender-se em
seus fios. Ele ergueu os dedos e começou a remexer em seus cabelos, a fim de remover o corpo
estranho até vê-lo deslizar sobre a capa do livro. Maria se viu confusa com a atitude de atrevi-
mento e lançou os olhos no livro. Ela notou a folha verde em cima da capa.
Numa atitude ousada, o conquistador continuou a acariciá-la, invadindo-lhe a testa e por
fim, massageado sua face. Maria do Rosário contraiu o rosto.
– Acho que você já ultrapassou o limite de intimidade permitido. Não acha? – repreendeu.
Ela deu um tapa com as costas das mãos no braço de Dionísio, interrompendo seus afagos.
Ele ficou sem graça. Depois, desculpou-se:
– Perdão, é que me empolguei!
– Está desculpado, senhor atrevido – ela o perdoou, educadamente.
Maria do Rosário se levantou.

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A Coragem

– Foi muito bom te conhecer, Di... – abraçou seu livro – Como é mesmo seu nome?
Dionísio num rápido salto, colocou-se à fronte da jovem. Reparou despistadamente nas
perfeitas silhuetas da moça.
– Dionísio, meu nome é Dionísio.
– Sim, senhor Dionísio, foi um enorme prazer conhecê-lo, obrigada pela companhia! –
agradeceu ela. Outra vez, estendeu-lhe a mão direita.
O rapaz continuou hipnotizado por seus encantos femininos. Ele tornou a apertar-lhe a
mão com seus olhos presos nos dela. Planejou elaborar uma frase impactante, a fim de apimentar
sua despedida. Entretanto, nenhuma atitude genial se apossou de sua mente.
– Tchau, até logo! – Maria acenou com a mão e deu as costas.
Dionísio sentiu um desespero estranho, então gritou:
– Irei te ver de novo?
Maria interrompeu os passos e novamente encarou o interrogador.
– Eu venho aqui quase sempre nos sábados, nesse mesmo horário.
– Então, tudo bem, até sábado!
A mulher seguiu seu caminho. Enquanto a observava desaparecer na paisagem, Dionísio
sentiu um sorriso de emoção saltar-lhe dos lábios. “Quem será ela? Onde ela deve morar?” As
seguintes questões o fizeram parar no tempo.

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O SEGREDO DE ÁTILA

Realinópolis-MG

Recordações de Átila
(Janeiro de 2008)

Girou no calcanhar e levou a própria perna na direção do queixo de Átila. Dionísio viu
seu pai recuar soltando seus longos fios de cabelos nos próprios olhos. Notando que o homem
mais velho se desequilibrou por ter se esquivado do ataque, o pupilo impulsionou outro golpe na
parte posterior de uma das panturrilhas do rival. Em razão da pressão da baque, Átila empurrou
o saco de pancadas dependurado com as costas e viu seu corpo ser projetado no chão. Dionísio
se jogou para cima do oponente abatido. O vencedor firmou a palma da mão esquerda e ergueu
o braço direito, deixando seu punho cerrado na reta dos olhos do oponente.
Átila o mirou determinado enquanto o filho permanecia sorrindo. O lutador mais novo
estava prestes a golpear-lhe o nariz.

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William R. Silva

– O que foi? Vai ficar me olhando? Se fosse uma luta de verdade, a essas alturas, o inimi-
go já haveria arquitetado uma revanche. Deixá-lo com tempo para pensar não é uma boa ideia!
– esclareceu Átila, fitando a mão fechada diante de sua face.
O jovem lutador fixou o adversário estirado e simulou querer acertar-lhe os dentes. Ele
fingiu proferir um soco em direção ao rosto do pai. No entanto, a poucos centímetros de atingi
-lo, desviou e esmurrou o tapete.
O rapaz soltou uma risada vitoriosa e se pôs em pé.
– Queria mesmo que eu socasse seu nariz?
O derrotado se moveu e ficou de joelhos.
– É claro que não... – Nélson deslizou a palma no tapete – Se fizesse isso, ficaria sem
emprego – riu baixo.
Átila se preparou para se levantar. Dionísio imediatamente conduziu o braço em sua dire-
ção com o objetivo de içá-lo. Seu pai com extrema agilidade, deu-lhe um tapa nas costas da mão.
– Está pensando que sou algum velho acabado? Claro que não, meu caro... estou em muito
boa forma. Deixe que me levanto sozinho – disse, flexionando as pernas.
– Se estivesse tão inteiro assim, não teria perdido essa luta – o lutador o provocou.
Seu genitor endireitou o físico, conferiu o saco de pancadas e sorriu.
– É impressão minha, ou vossa senhoria quer outro combate? – indagou, mirando o rapaz
arrogante – Quero ver me vencer em dois assaltos.
Dionísio fez um gesto o chamando para a briga. No mesmo instante, organizou sua nova
posição de ataque.
Átila deu uma cotovelada no saco de pancadas, fazendo-o ser arremessado a meio metro dele
com deslizamento da corda presa na roldana. Em seguida, lançou um olhar intimidador ao rival.
– Tudo bem, rapaz! Mas saiba que, dessa vez, não irei deixá-lo ganhar.
– Me deixar ganhar? Conta outra! – caçoou Dionísio – Perdeu porque é um fracote.
O homem de cabelos longos cerrou os punhos e partiu para cima do filho. O combate
havia se reiniciado.

– E os negócios, como andam? – perguntou Padre Jerônimo enquanto regava as plantas


da fachada da igreja.
Átila retornou de seu estado disperso e espiou o velho homem com regador.
– Tudo ótimo. Cada vez melhor!
– Que bom! – devolveu Jerônimo. Seu rosto assumiu uma expressão agradável.
Crianças corriam na calçada, pássaros pousavam na escadaria do templo religioso e de-
pois levantavam voo. O padre e seu companheiro moveram o rosto em saudação a um casal que
passava ao lado de ambos. Sendo retribuídos no mesmo momento. Concluída a sequência de
ações, Átila ergueu a cabeça e prendeu-se no relógio gigante no alto da torre. Depois, tornou a
encarar o amigo.
– O tempo corre cada vez mais veloz. Já passa das dez.
– É verdade, meu amigo... – o padre concordou – Isso é verdade! – e mostrou satisfeito
quando viu as pétalas das orquídeas serem molhadas.
A água que fugia do regador brilhava com a claridade solar. Jerônimo contemplou o su-
jeito debaixo da árvore por alguns instantes.

87
A Coragem

– E o jovem Dionísio, o que tem feito ele na cidade grande? –perguntou o senhor, soltando
o regador na grama.
O homem observou um cachorro vadio revirando o lixo e respondeu:
– Por coincidência, estava pensando nele agora a pouco.
– Desconfiei – afirmou o padre. – Dez anos vivendo juntos. Não é fácil se desgarrar – riu,
discretamente.
O outro caminhou alguns metros e ficou ao lado do senhor de cabelos brancos.
– Está tudo bem. Muito mais do que eu imaginava.
O idoso o olhou com respeito.
– Fez um bom trabalho, transformou-o num legitimo Silverato... mas creio que todo pás-
saro, quando cria asas, uma dia tem que voar.
– E se não voar – Nelson arqueou a sobrancelha –, o lançamos do ninho até aprender, ou
se não... deixamos que ele se esborrache – ironizou.
– Está certo, meu amigo! – Jerônimo achou graça da declaração – Está certo!
Uma Blazer preta surgiu no fim de uma das vias perpendiculares do quarteirão do tem-
plo. O carro acelerou, atravessou o cruzamento e reduziu a velocidade até parar. Átila, alerta,
examinou o veículo. Se acalmou assim que viu estampado no capô um desenho de letras “H”
no interior de um escudo. Sem ter dúvida alguma, concluiu que aquele era um dos veículos da
empresa de segurança da qual era sócio: a Equipe Homens de Honra.
As portas do condutor e do carona se abriram, Thales é o primeiro a descer, Thomas
apareceu pouco depois.
– Hora, hora, hora! Finalmente resolveram aparecer! – Padre Jerônimo mal podia contro-
lar sua alegria – Pensei que esse velho aqui não fosse mais digno da visita dos senhores.
– Nosso tempo é escasso, meu caro amigo! Bom te ver também! – Thomas Bruso o abra-
çou – Só Deus sabe como o estimo. Sinto saudades das nossas conversas – bateu nas costas do
padre com carinho.
– A que devo esse milagre? Os dois aqui a essas horas? – quis saber Átila depois apertar
a mão de Thales.
– Estávamos de passagem – esclareceu Thales, dando meio sorriso – Aí resolvemos parar
quando vimos os dois aqui.
Jerônimo riu e estudou os três homens.
– O grande mestre – virou-se para Atila –,o menino intruso – sorriu para Thomas – e o
sujeito carrancudo – disse a Thales. – Todos unidos novamente.
O quatro riram instantaneamente.
– Só faltaram dois... – balbuciou o padre.
– O rasteira e o rei do deboche – Átila gargalhou.
Thomas também gargalhou e se voltou para o simpático senhor.
– Grande Jerônimo! Ainda hoje mantém nossos antigos apelidos.
– E como não? Eu os conheci assim – disse o ancião se mantendo hilário. – E olha que
ainda tem seus codinomes quartelianos.
Thales deu três passos e ficou a reparar nas sobrancelhas grisalhas do homem de estatura
baixa diante do jardim.
– O senhor me conhece há muitos anos e sabe que sou um ateu convicto, não tenho crença

88
William R. Silva

nenhuma em um Deus superior ou qualquer outra entidade do gênero. Mas sempre fiz questão de
respeitar não só a sua fé, mas também a de todos os outros. Independe de crenças ou descrenças,
tenho uma grande consideração em relação ao senhor – disse Thales, mirando-o com um sorriso
nos lábios.
– Eu sei disso, meu prezado amigo! Tanto é que não tenho dúvidas quanto a sua honra e
seu carácter, assim como os outros. Você sempre se mostrou tão honrado quanto eles – revelou
Jerônimo apertando-lhe a mão.
Thomas aquiesceu. Ele ergueu as sobrancelhas para Átila.
– Átila, posso te fazer uma pergunta?
O homem de cabelos longos franziu o cenho.
– Claro. Do que se trata?
Thomas averiguou a praça vazia.
– Por que não contou ao Dionísio que você é o verdadeiro Nessahen? Por que não disse a ele
que foi você o idealizador, quem introduziu as primeiras ideologias, e que é um dos responsáveis
direto pela existência do quartel? Aquele que guarda os outros segredos que envolvem o lugar.
Os quatro se voltaram para o primeiro mestre.
O cachorro ainda insistia em revirar o lixo. Átila contemplou a grande árvore e se dirigiu
a Thomas. Baixou os olhos por uns instantes, pensativo.
– Eu não sou mais o Nessahen, me desliguei dele há anos – ergueu a cabeça e observou o
céu azul. – Não faço mais parte do quartel. Sempre considerei desnecessário contar-lhe a verdade.
– Será mesmo que deixou de ser o Nessahen? – intrometeu Jerônimo.
Átila sentiu sua língua travar. Algo que há tempos o perturbava veio à tona com a indaga-
ção estratégica do líder religioso. Ele suspirou, receoso.
– Para ser sincero, durante todos esses anos eu pensei que tinha deixado de ser, mas vocês
são mais que amigos e não há como ter segredos como esse com vocês. Às vezes, tenho a im-
pressão de que... o Nessahen é mais real que o Átila.
Thales sacudiu a cabeça.
– Anos se passaram e o Ernesto não deu as caras, um dia ele vira atrás de nós. Nessahen
é a nossa origem, é o começo de tudo. Você nos treinou, eu, Thomas e ele. É impossível se des-
ligar desse fato, pois ele está enraizado em você muito mais do que possa imaginar. No fundo,
você, seu nick e o quartel são uma coisa só.
– É melhor encerrarmos o assunto por aqui! – Thomas pareceu preocupado. Um grupo de
pessoas se aproximaram. Eles deram suas saudações e depois seguiram em frente.
– Tem razão... – Jerônimo concordou, reparando no sujeito careca –Segredos como esse
não se podem ser discutidos ao ar livre.
Thales pousou a mão direita no ombro do padre.
– Um segredo que o senhor soube muito bem guardar!
Jerônimo sorriu.
– Foi muito bom vê-los, senhores – Thomas baixou os olhos, ergueu o braço e mirou o
relógio de pulso. – Mas é hora de partir, temos assuntos a tratar. Tenham um ótimo dia!
O homem careca se despediu e retornou para o veículo. Thales abriu a porta do carona,
mas não chegou a entrar na Blazer.
– Se cuidem vocês dois, até logo!

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A Coragem

– Mande um abraço ao Sílvio por mim, diga àquele maluco para vir me visitar qualquer
dia desses – gritou Jerônimo.
Thomas já dentro do carro, arriou o vidro elétrico.
– Pode deixar, aviso sim.

23

O EDIFÍCIO BANCÁRIO

Térreo

O horário comercial do banco há pouco tinha se iniciado e os funcionários do prédio


seguiam cada qual para seu setor de trabalho. Túlio, bastante aflito e portando uma pasta de
papelão com aba de elástico, ia atravessando o extenso salão da instituição financeira. Conforme
avançava rente o trecho de pilares e o piso de cores intermitentes, nem notou que alguns dos
bancários o reparavam confusos. Sua expressão de preocupação era perceptível a metros de dis-
tância. Dois atendentes o cumprimentaram. Ele sorriu para eles e, acanhado, continuou a andar
até que cessou os passos ante o elevador. A porta dupla se abriu, mas o sujeito medroso hesitou.
Olhou para os lados e correu para o banheiro executivo.
Desde o alvorecer, estava vivendo um maldito dilema. Acordou disposto a entregar ao
patrão as provas que tinha sobre quem o furtou. Entretanto, uma sensação de pânico constante-
mente o consumia. Aterroriza-se toda as vezes que pensa sobre as consequências destruidoras
que a informação irá causar quando vier à tona. Um funcionário da empresa e seu próprio filho
estão roubando um dos maiores banqueiros do pais. Quando aceitou a tarefa, não imaginava a
complexidade da situação. Respirou fundo, entrou no banheiro e se trancou lá dentro.
Ele foi até a pia, arredou um vaso com uma flor artificial e colocou a pasta por cima da área de
ardósia. Levou os dedos até os dois elásticos e os desprendeu, assim começou a examinar os papéis
amontoados. Conversas de e-mails e redes sociais, comprovante de depósitos, saques e transferências.
Algumas anotações com datas de movimentações financeiras ilegais para o exterior. Túlio burlou seus
próprios conceitos de ética e invadiu todos os acessos virtuais de Roberto Tavares. Agora as provas
estavam diante de seus olhos. Há dias estava protelando, mas entendia que já passara da hora de entre-
gar o criminoso ao homem que arca com seu salário. Seu coração bateu mais forte quando deslizou sua
mão sobre as impressões. Segurou as provas e as folheou para verificar se estavam todas ali.
O jovem atormentado deixou a pasta de lado, retirou os óculos de grau e os descansou
sobre a borda da pia. Pressionou o botão por baixo da torneira. Assim que a água começou a
jorrar, começou a molhar o rosto desesperadamente. Não sentia calor, muito menos queria lavar
a pele, agia dessa forma simplesmente para ver se tal atitude o livrava do estado de tensão que
tanto o incomodava.

90
William R. Silva

Ele mirou os próprios olhos refletidos no espelho e mordeu os lábios.


– E se tiver mais pessoas envolvidas no esquema? – abaixou a cabeça e respirou fundo
ouvindo a água cair.
A torneira automática interrompeu o fluxo e ele levantou os olhos para o espelho.
– Não posso mais demorar com isso. Rogério me cobra resultados dia após dia.
Quatro pancadas na porta o assustaram. Túlio esticou o braço, arrancou uma das toalhas
descartáveis na barra de apoio e a esfregou na face com o objetivo de se secar. Ligeiro, organizou
os papéis. Mais outros quatro toques na porta o desestabilizaram. Ele se virou e não sentiu seu
cotovelo empurrar os documentos. Também deixou de notar quando algumas das folhas voaram
e caíram sobre o piso. Tornando a prestar atenção na pasta, pegou seus óculos e os pôs de volta.
Reunindo os documentos, acomodou tudo novamente dentro da pasta e prendeu os elás-
ticos. Depois, avançou até a porta e a abriu. Um homem alto trajado com um terno o aguardava
na entrada do banheiro. O segurança se mostrou preocupado.
– Algum problema, amigo? – o homem indagou – Pensei que estivesse passando mal.
Quando entrou no banheiro, estava com uma cara ruim. Trancou-se, demorando a sair.
Realmente parecia que Túlio não se sentia bem. Sua cara estava branca como se estivesse
recebido borrifadas de pó de arroz, sua respiração saía com mais velocidade que o normal e seus
olhos estavam escancarados num tom de espanto.
– Não... – Túlio respondeu – Está tudo bem comigo – desviou-se do funcionário e cami-
nhou depressa rumo ao elevador.
O homem balançou lentamente a cabeça em negativa, enquanto seguia o rapaz desajeitado
com os olhos. O elevador se abriu e Túlio entrou apressado.
– Sujeito estranho! – riu ao ver as portas de aço se fecharem.
O segurança se virou e seus olhos imediatamente se lançaram nos papéis caídos no chão
do banheiro. Andou até próximo a pia e se agachou para pegar as folhas de papel.
– O idiota esqueceu parte do trabalho no piso do banheiro – murmurou, cômico. – Depois
dizem que esse banco é sério!
Sem nem mesmo se interessar sobre o que se tratava o documento, saiu e rumou até o
elevador visando entregar os itens nas mãos do seu verdadeiro dono.

Quinto andar

– Pode acreditar, cara! Grande parte das operadoras de telemarketing que trabalham aqui
ficam excitadas quando nos veem – disse o rapaz diante do computador ao dar um toque na tecla
Enter e permitir que um arquivo iniciasse sua hospedagem na área de trabalho. Era um rapaz de
aparência jovial, cuja parte dos cabelos castanhos era movida para o lado da orelha esquerda,
possuía lábios finos e olhos cor de mel.
O segundo funcionário ao seu lado sorriu e digitou algo no teclado do outro computador
que estava trabalhando. Não era tão bem afeiçoado como o colega de trabalho, seus cabelos
escuros possuíam um brilho metálico e seus olhos negros e o formato triangular de sua face
transpareciam uma seriedade impactante.

91
A Coragem

– Não seja ingênuo, Michael! – discordou, girando a cadeira para o lado do rapaz – Elas
se atraem pelos executivos de altos cargos daqui e não por nós. Somos apenas profissionais de
TI. Nada mais que isso. O que as interessa é dinheiro.
O software instalado na tela do monitor começou a carregar, Michael se virou e encarou
o companheiro com um ar de arrogância.
– Estou falando sério, Heitor! – insistiu Michael – É muito fácil transar com as garotas
daqui. Por acaso se esqueceu daquelas duas com quem saí no mês passado?
O profissional arrumou a gravata que lhe apertava o pescoço e franziu o cenho para Michael.
– Conta outra, cara! Acha que me engana? – Heitor clicou duas teclas de atalho, salvou
uma planilha e continuou – Você conseguiu transar com aquelas vadias por que é amigo do filho
do patrão. Só por isso!
Michael riu cinicamente e lançou os olhos na tela, viu que quase noventa por cento do
arquivo já tinha sido transferido.
– Não é, não – revidou. – Elas foram conquistadas pelo meu charme.
Heitor gargalhou.
– Sei como é.
O programa alcançou os dez por cento restantes e se instalou no sistema, então Michael
reiniciou o computador e esperou a tela escurecer. Reparou em volta da mesa e indagou:
– Onde está meu pendrive? Eu o deixei aqui ontem.
– Errado! – o outro falou. Ele abriu o navegador e inseriu algo no site de busca – Você o
esqueceu na cantina pouco antes de terminar o expediente. Eu o guardei na recepção – clicou em
pesquisar e uma lista enorme de itens surgiu instantaneamente na imagem do monitor.
Michael se levantou da cadeira fazendo-a rodopiar. Seu computador religou no mesmo
instante. Viu que ainda faltavam mais cinco computadores na sala para serem vistoriados, mas
decidiu ir buscar seu pertence antes.
– Eu vou lá procurar meu pendrive! – avisou. Ele varou a porta do setor – Voltou já! –
gritou e saiu caminhado.
A porta dupla do elevador se abriu e um homem alto segurando papéis saiu. Michael o
cumprimentou e saltou para dentro do compartimento antes que se fechasse. O segurança andou
no pequeno corredor e entrou na sala. Ele fitou o segundo profissional de TI sozinho monitoran-
do um dos computadores da sala e chamou, em voz alta:
– Ei, rapaz!
O sujeito sentado girou sua cadeira e, ligeiro, pousou os olhos no homem de terno parado
na entrada.
– O que deseja?
– O Túlio trabalha com vocês, não é? – o moço no lado de fora perguntou.
– Às vezes, sim, mas não o vi hoje – o funcionário retornou à sua tarefa e executou um
comando no teclado para testar o antivírus – Por quê?
O segurança marchou até o jovem e atirou as folhas sobre uma mesa.
– O Túlio esqueceu isso no banheiro. Entregue a ele, por favor!
Heitor olhou de relance para os papéis e prosseguiu com sua função.
– Pode deixar, entrego sim!

92
William R. Silva

Oitavo andar

O orador desabotoou o paletó, afrouxou a gravata e riscou em baixo de uma das palavras
escritas no quadro branco. Os quatro administradores o observavam atentos.
– Liderança em vendas aliada a proatividade – ele apontou para a palavra sublinhada. – O
que entendemos quando ouvimos a junção desses dois vocábulos? – correu os olhos no grupo à
espera de uma explicação plausível.
As sobrancelhas de Dionísio subiram quando formulou uma resposta em sua mente, mas
antes que pudesse abrir a boca, a colega na mesa o cortou:
– Querer sempre fazer o melhor, trabalhar com excelência e aprimorar cada vez mais as
qualidades dos serviços que a empresa oferece, mesmo estando no seu auge de vendas.
– Muito bem! – o analista sorriu.
A equipe concordou e o palestrante ergueu o apagador e começou a remover os rabiscos do
quadro. Dionísio levantou a caneta e a deteve no ar até que o líder terminasse a tarefa e o avistasse.
– Fique à vontade, pode perguntar – autorizou o chefe da sala.
– Sabendo que o ramo financeiro está sempre sujeito a oscilações de mercado, como
alterações nas taxas de juros e crises inflacionárias, qual é a melhor forma de lidar com esses
imprevistos e, ao mesmo tempo, manter a liderança proativa?
O braço do mentor se ergueu involuntariamente. Seus lábios se abriram num sorriso ani-
mado quando apontou para Dionísio.
– Isso, garoto! É exatamente esse tipo de questionamento que queremos dos nossos ad-
ministradores.
A sensação de orgulho quis corromper a seriedade de Dionísio, mas ele manteve seu
semblante neutro de emoções. Os olhos do orador se lançaram sobre o relógio na parede e re-
tornaram para o grupo.
– Queria muito responder essa questão, rapaz! – o líder falou com certo pesar – Mas,
infelizmente nosso tempo findou. No entanto, continuaremos essa pauta na próxima semana.
Desejo a todos um ótimo trabalho.
Dionísio se despediu dos integrantes da equipe e saiu da sala. Como sempre gostou de se man-
ter em forma, optou pela escada para atingir o setor abaixo de onde estava. Todas as quartas-feiras
tinha de chegar um pouco mais cedo e participar da reunião com seus colegas e o chefe do setor. Não
teve tempo de tomar seu café e decidiu dar uma passada na cantina para fazer um lanche rápido. Ele foi
descendo os degraus em espiral até que alcançou a área de alimentação. Irrompeu no lugar, contudo,
suas pisadas cessaram quando ele se deparou com um jovem cabisbaixo sobre uma das mesas, obser-
vando a fumaça sair de seu café. “Será que é ele mesmo?” Dionísio se entusiasmou.
Hilário, correu em direção à figura apavorada e estudou suas características por alguns
segundos. Foi nessa hora que o rapaz levantou os olhos para o seu espião e levou um susto. Túlio
arredou para trás, fazendo seus óculos por pouco não se soltarem e se espatifarem no chão. Um
senhor comendo na mesa vizinha e uma garçonete os encararam confusos.
– Q-quem é vo-você? – Túlio titubeou com os olhos arregalados quase a saltar das lentes.

93
A Coragem

Um turbilhão de pensamentos ruins e um frio na espinha o atravessaram ao se deparar com aque-


le homem alto e robusto. “Será que é um dos bandidos que estão junto com Roberto nesses rou-
bos a empresa? Ele está aqui para me intimidar? Ou será que veio tentar arrancar-lhe a verdade
ou suas provas?” Cogitou fugir. Não se moveu, entendeu que aquela atitude seria insana demais.
Em nenhum dos reencontros Dionísio fora reconhecido, mas por causa da boa relação que
manteve com Túlio no passado, pensou que este teria facilidade de se lembrar dele. Nada saiu como
ele pensou, o colega mais parecia estar vendo uma assombração do que um velho conhecido.
– Cara, sou eu, seu amigo de escola! – insistiu – Sou o Dio.
O magricela desajeitado se levantou e ficou a fitá-lo. Dionísio viu que ele ainda era o
mesmo, cresceu pouco em estatura, estava abaixo do peso, seus óculos ainda eram sua marca re-
gistrada e sua expressão de insegurança continuava firme em seu olhos. Túlio também persistiu
a investigá-lo, esquadrinhou aquele rosto, aquele olhar. Uma onda de emoções e recordações fez
sua boca entreabrir. Foi então que sua garganta disparou num berro de alegria:
– Dionísio! – seus olhos assumiram um que de esperança –Você voltou!
Os dois se abraçaram imediatamente. Se estivesse a sós, Túlio provavelmente teria cho-
rado. Seu estado emocional estava tão abalado que qualquer válvula de escape faria seus senti-
mentos de medo e hesitação virem à tona.

24

PONTO DE IMPACTO

30 de Maio de 2014.

Um após outro, os automóveis no autódromo tomam distância e provocam um ronco es-


trondoso com o berro dos motores. Cortavam em linha reta, vinham em direção ao ponto indicado
e giravam três vezes até se manterem parados. Marcas de pneus fixaram no asfalto. O cheiro de
borracha queimada se misturava no ar. Nos canteiros da avenida, um contingente de pessoas
se movendo, exacerbados de animação. Mais que a metade consumia bebidas alcoólicas, cujo
pouco espaço os fazia se espremer para passar de um lado a outro. Uma mistura de sons, músicas
e ritmos exagerados saltava de uma infinidade de alto-falantes, muitos deles com mais de cinco
metros de altura. Todos os equipamentos eram acoplados na traseira de carros, caminhonetas e
outros veículos. Ansiosa, uma multidão esperava as competição de automóveis se iniciaram.
Na cidade interiorana onde vivera por uma década quase não havia opções de lazer, a não
ser a que os próprios moradores inventavam. Belo Horizonte, pelo contrário, possuía centenas
de lugares para entretenimento. Ponto de Impacto é um dos locais preferidos de encontros em
noites de sexta-feira e durante todo o fim de semana. Ambiente onde a curtição era a regra. Nes-
se local, rachas são permitidos, desde que estejam dentro dos parâmetros da lei e de segurança.

94
William R. Silva

Foi essa a causa principal que trouxe Dionísio até o lugar. Ele está plenamente impressio-
nado com a enorme pista de autódromo e tudo que notava a sua volta. Seu Honda desfilava tran-
quilamente pela pista a procura de um espaço para estacionar. Conduziu vagarosamente o seu
veículo pelo trajeto, com cautela para não atropelar alguns distraídos que atravessavam bêbados
e bastante alegres a sua frente. Pegou o outro lado da via, reduziu para não bater nas laterais das
barraquinhas comerciais e não se chocar com outros automóveis.
Túlio estava ao seu lado. O jovem estabanado, durante todo itinerário se perdeu nas de-
zenas de garotas rebolando a sua volta, com seus shorts curtos, camisas e rosto bonitos, umas
estiradas em cima de capôs, outras com as mãos nos joelhos, nádegas arrebitadas e remexendo
os corpos ao ritmo das melodias que ecoavam das gigantescas caixas de sons. No banco do
carona, boquiaberto, quase não piscava ao pousar seus famintos olhos sobre as beldades. Caixas
de isopor lotadas de bebidas e um grande variedades de automotores, desde os mais comuns a
importados, cada imagem era mais colorida e surpreendente que a outra conforme o Honda ia
circulando pela pista.
– Então esse é o tal lugar que você me falou... – Dionísio comentou. Girou cautelosamente
o volante e avançou destino a uma demarcação retangular desocupada – Simplesmente sensacio-
nal– seus olhos estavam reluzentes.
– Sim! – o passageiro magricela chacoalhou a cabeça em sinal de concordância. Seus
óculos quase saltaram do rosto – Ponto de Impacto é bem famosa aqui na região! – seus olhos
esbugalhados caíram sobre uma enorme nádega se requebrando ao lado do capô. Sua boca entre-
abriu – Rola muita coisa legal aqui, sem contar as gostosas e a variedade de carros importados,
um mais fantástico que o outro.
– O Ricardo ia adorar isso aqui! – o condutor concluiu, no mesmo instante em que estacionou.
– Quem é Ricardo? – indagou Túlio, arrumando a armação sobre o nariz.
O homem no volante deu meio giro na chave e desligou o motor.
– Um amigo realinopolitense – Dionísio sorriu ao segurar a trava e abrir a porta. Ele saiu,
seu companheiro o seguiu. Ao longo do percurso, finos postes de metal projetavam luzes por
todo o ambiente com seus refletores presos no topo. Apesar de ainda ser início do anoitecer,
aquilo tornava o local mais estimulante. Com a claridade, avistou-se uma longa pista manchada
por centenas de marcas de pneus, com seus trajetos indecifráveis.
– Esse lugar é mesmo enorme! – deduziu Dionísio, cujo campo de visão se perdia na
enorme pista automobilística.
Túlio se adiantou apressado quase largando o companheiro para trás. Estava complicada
a travessia por causa da grande concentração de indivíduos se digladiando por espaço, mas nada
que os desanimasse.
– Sim. É imenso! – o magrela sorriu. O barulho do ambiente se intensificou, suas falas
mais pareciam berros – Tem gente de tudo quanto lugar aqui! Belo Horizonte, Santa Luzia, Con-
tagem, Betim, Venda Nova... – alcançou o local de inscrição, onde cada corredor se alistava para
participar das disputas – E tudo quanto é região, isso aqui é bastante movimentado!

Após varar a divisória da longa pista composta por dois semicírculos, entrar no centro
de eventos e reduzir a velocidade, o BMW deslizou sobre uma das pistas privilegiadas que le-
vava até o estacionamento. O carro de luxo parou temporariamente na entrada interceptada por

95
A Coragem

grades. Na parede à sua esquerda, a face gorda de um homem, dentro de uma quadrada janela
de ferro, encarou-o franzindo a testa. O vidro elétrico se arriou. Os olhos de Roberto Tavares
pareciam querer metralhá-lo.
– Identificação, por favor! – o homem pediu, em tom áspero.
O braço do motorista se levantou por cima do vidro semiaberto. O segurança mirou o cartão
magnético preso entre os dedos médio e o indicador do condutor. Assim que o funcionário pegou o
cartão e o examinou, meio sorriso surgiu em seus lábios. O objeto de acesso foi devolvido.
A passagem é liberada. O possante seguiu seu trajeto.
– Verme! – rosnou Roberto. Seu cenho franziu, reparando, pelo retrovisor, o homem na
guarita – Eu sou cliente especial, seu imbecil!
O motorista acomodou o automóvel numa das vagas e se retirou. Uma súbita gargalhada
disparou de suas cordas vocais no instante em que viu duas lindas jovens entretidas na fachada
de uma barraca de bebidas.
– Que beleza! – sorriu, maliciosamente – Olha só quem está aqui? A fios dourados.
Concertou seu cordão de prata, conferiu a gola da sua camisa de manga longa. Com o
tórax avantajado e nariz para cima, ele partiu rumo às duas mulheres.

Ana Júlia afastou alguns fios de sua franja lateral. Olhos de desejo e cobiça foram lança-
dos em sua direção, ela não se importou. Às vezes, até sorria em retribuição. Se bem que isso
mais dependia do veículo que o paquerador dirigia que de seu interesse pelo condutor em si.
– Ana, quer beber alguma coisa? – quis saber a moça ao seu lado. Ela recebeu uma garrafa
de bebidas do comerciante e lhe passou duas notas.
– Não, Barbara – virou-se para a mulher recebendo o troco. – Não estou a fim de beber
nada agora.
– Tudo bem – Barbara bebeu um gole de seu ice. – Vamos dar uma volta?
Ana aceitou. Ambas saíram a caminhar.
Roberto conseguiu alcançar as duas já em movimento.
– Quanto tempo, hein, minha loirinha preferida? – abriu os braços calorosamente – Senti
sua falta!
A mulher conteve seus passos e puxou a amiga. Rapidamente, ela se virou à procura do
autor da voz. Seus olhos clareados pelas luzes se espicharam. Havia mais de um ano que não
encontrava o ex-namorado. Sentiu-se irada, por outro lado, também gostou de o ver nas condi-
ções em que estava. Suas roupas e seus calçados eram de marcas caras, o cordão no seu pescoço
cintilava e seu brilho tornava o rosto de seu portador ainda mais bonito. O relógio Patek Philippe
preso em seu pulso, tudo despertava seu interesse.
Barbara estudou o homem à sua frete. Sorriu sem nada a dizer.
– Oi, Beto! – Ana respondeu, sem demonstrar interesse – Faz tempo mesmo... tudo bem
com você?
– Estou atrapalhando? – Bárbara brincou – Detesto segurar vela! – riu.
Os olhos de Roberto saltaram da face de Ana e se dirigiram à mulher de cabelo liso e
castanho. Ele arqueou a sobrancelha e também sorriu para a outra jovem.
– Vamos conversar um pouco? – o galanteador viu que Ana Júlia fez cara de desaprova-
ção. Mesmo assim, insistiu – Pode vir você e sua amiga.

96
William R. Silva

A testa da loira franziu de raiva. Um sorriso cínico partiu dos lábios daquele que a cortejava.
– Sei muito bem o que quer, seu canalha! – Ana agarrou o braço da amiga. Sua garrafa de
bebida quase caiu de sua mão – Pensa que esqueci das suas traições? Foi bom te ver novamente,
mas... não rola – deu as costas e puxou a moça fazendo-a segui-la.
Bárbara se manteve imóvel e reparou o homem de soslaio.
– Vamos dar uma chance pra ele, Ana! O cara está querendo ser cordial. Deixa de ser
marrenta!
– Eu conheço esse daí! – Ana discordou – Ele não vale nada.
Outro sorriso atrevido fugiu dos lábios de Roberto.
– Tenho uma ótima reserva, em um dos melhores locais do evento. Tem uma visão ótima
do autódromo de lá... – ele apontou a parte superior da pista. Lá se viam dezenas de pessoas
sentadas em cadeiras, comendo, bebendo e se divertindo. Mas, o principal era o ponto onde está
localizada: em um ângulo onde toda a extensão da pista poderia ser vista – Como disse antes,
pode trazer sua amiga junto, se desejar! Há alguns amigos meus me esperando lá. Seremos um
grupo perfeito. E aí?
Ana mudou de ânimo e deu uma risadinha.
– Sim... aceitamos! – Bárbara intrometeu, se pondo na frente da companheira.

Dionísio e Túlio taparam os olhos, por uma pequena fração de tempo, sentiram suas vistas
ofuscadas pelas luzes de xenon liberadas dos faróis de um Astra. A forte luz azul que os atingia
em cheio ia diminuindo na medida em que o veículo se afastava. O automotor resplandecente
finalmente ganhou outra das pistas e sumiu. O lugar voltou a ser perceptível. Túlio se perdeu
em meio à multidão, procurou em torno, não encontrou o companheiro em parte alguma. Moveu
a cabeça de um lado para outro até que enxergou Dionísio. O homem o esperava com o braço
apoiado em um poste.
– Que diabo de luz forte! Quase me cegou... – reclamou mirando o sujeito magro. Des-
viou-se de dois rapazes e foi até o parceiro – Quando vai começar as disputas?
Túlio, meio estonteado, recuperou-se do baque da claridade forte. Suas vistas ainda se
encontravam parcialmente embaçadas.
– Fique tranquilo, cara! – disse, piscando calmamente as pálpebras – Você se inscreveu,
não é? Logo, logo se inicia.
As sobrancelhas de Túlio se ergueram subitamente e assim, assumiu expressão de pavor.
Ele avistou algo em meio à multidão que acabou por deixá-lo perplexo. Dionísio examinou o
semblante atemorizado do amigo sem compreender sua mudança repentina de humor.
– Algum problema?
Túlio continuou calado.
Dionísio se virou e viu apenas a dezena de visitantes passeando no local. Tornou a mirar
o jovem embasbacado.
– O que foi? – já estava impaciente – Não vai falar nada?
– Promete que não vai arrumar confusão! – Túlio finalmente reagiu – Você não imagina
quem estou vendo agora.
A testa de Dionísio franziu. Novamente olhou para trás, não viu nada demais.
– Arrumar confusão? Por quê?

97
A Coragem

Túlio levou o dedo indicador no rumo de duas mulheres e um homem na entrada da área
VIP. Dionísio seguiu o dedo do amigo e estudou ao redor. Entendeu que o parceiro lhe mostrava
três pessoas subindo para área privilegiada. Entre o trio, estava Ana Júlia.
– Sim. Uma das garotas é Ana Júlia – Dionísio riu para ele – Eu já a encontrei antes.
– Sim, mas não é ela que queria te mostrar – volveu, Túlio, serio.
– Não? – exclamou, confuso.
– Está vendo o rapaz junto delas? – sua voz denotava preocupação – Sabe quem ele é?
– Não... – Dionísio, de longe, observou-o outra vez – Quem é?
Túlio mais uma vez ajustou o óculos, inspirou todo o ar e o soltou suavemente. Na espera
do barulho da canção que fugia das caixas de uma Mercedes se abaixar, dirigiu-se ao colega.
– Aquele ca-cara é... o filho do nosso pa-patrão – Túlio notou que estava gaguejando
contra sua vontade. – O cara que mais nos pe-perturbou no colégio. É o Roberto Tavares. Esse
nome te lembra algo?
Uma torrente de rancor atravessou o sistema nervoso de Dionísio em milésimos de segun-
do. Seus punhos se cerraram e seus músculos se tornam rígidos como uma rocha. Ele se asseme-
lhou a um animal prestes a atacar a presa. A simples menção daquele nome o fazia querer socar
qualquer objeto ou pessoa que ele visse a seu alcance. Seu olhos não mais enxergavam nada
além de Roberto. Veículos, luzes coloridas, mulheres, pistas, tudo o mais se tornou invisível.
Quando reencontrou Ana se sentiu atordoado, ter descoberto que Paulo trabalhava na mesma
empresa que ele despertou-lhe a ira. Todavia, nenhuma dessas sensações se comparava a que
experimentava ao ver o covarde estudante do São Magno. “Nada de perder o controle, rapaz.
Acalme-se!” Uma voz interior soou em sua mente.
Ele entrou no camarote junto as duas moças. Dionísio o acompanhou com os olhos. Ro-
berto era filho do seu patrão. Novamente se viu numa posição inferior à dele. Sua antiga inse-
gurança queria outra vez aterrorizá-lo, entretanto, manteve seu equilíbrio. Precisava encará-lo
de frente, saber se o inimigo continuava o mesmo. Após tantos anos, queria voltara a encarar
aquele olhar demoníaco.
– Túlio, me espere aqui! – o timbre de Dionísio assumiu um tom mais pesado – Quero
olhar esse covarde desgraçado nos olhos. Saber até onde vai sua coragem.
Túlio o mirou preocupado. Arquitetou segurar o braço do homem para contê-lo, mas
descobriu que não teria forças para tal, visto que Dionísio tinha braços tão fortes que ele jamais
seria capaz de segurá-los com força.
– Está de brincadeira, não é? – sua expressão de medo era notável – Você não pode brigar
com ele aqui. Se quer acertar as contas, faça em outro lugar – Túlio pestanejou, desnorteado.
Dionísio contraiu o rosto.
– Eu vou lá – adiantou-se alguns passos – Espere-me aqui!
Dionísio correu e penetrou na multidão. Tudo foi rápido demais, Túlio mal teve tempo de
escancarar a boca para gritar.
– Dio-Dionísio... – chamou, o mais alto que pode – Volta aqui, cara! – disparou atrás
dele. Um Ford emergiu como um raio e estacionou a sua frente. O som de seus alto-falantes foi
acionado impedindo Túlio de passar para o outro lado. Em poucos instantes, corpos estavam
requebrando e pulando em volta do carro, deixando o homem magro encurralado.
Uma dupla de brutamontes guardava a entrada da área VIP. Dionísio não tinha creden-

98
William R. Silva

ciais, mas almejava burlar o bloqueio. Pensou em qualquer coisa para dizer, mas um dos homens
o deteve antes mesmo que ele se pusesse a falar.
– Acesso grátis somente para sócios. Se quiser entrar, vai ter que pagar mais caro – avisou
um dos homens, com o dedo indicador em direção ao caixa ao lado da grade.
Dionísio fitou a cabine, coçou o couro cabelo e se foi.
– Bem mais fácil do que pensei – resmungou. Ele atravessou a passagem. Observou um
rapaz entrelaçado a uma garota num canto escuro. Os dois se beijavam loucamente, ignorou-os
e prosseguiu – Que burrice a minha! Era só comprar o ingresso.
Encontrou a guarita. Centro e cinquenta reais? Quase caiu para trás com o preço, mas com-
prou o ingresso. Ele recebeu seu bilhete e retornou. A dupla de preto o deixou passar. O homem
irrompeu na área privilegiada. O barulho de músicas, risos e urros estava maneirado naquele lugar,
nenhum neon de faróis para ofuscar-lhe a vista e mesas se encostavam na arquibancada, quase
todas ocupadas. O autódromo parecia menor com seu fundo escuro e estrelado. O astros no céu
pareciam clarear a pista bem mais que os postes. Numa das mesas, viu somente Ana Júlia e sua
amiga. Enquanto caminhava, planejou um pretexto qualquer para justificar sua presença.
A mulher de cabelos loiros se surpreendeu quando o viu.
– Olha só quem está aqui! – Ana Júlia o saudou. Um sorriso radiante denotou em seus
lábios vermelhos escuros.
– Sim. Sou eu – tentou se mostrar seguro. Viu que ela era ainda mais bonita na imensidão
da noite – Como vai, Ana?
Os olhos esverdeados flamejaram em sua direção.
– Eu vou bem. E você?
Bárbara deu uma cotovelada na amiga.
– Esse também é bonitinho, hein? – sussurrou – Deixa esse pra mim. O outro já é seu,
né? – riu, discretamente.
Dionísio quis entender o que a moça disse, mas não chegou a ouvir nada do cochicho.
Sentiu um calafrio quando notou que alguém o observava pelas costas.
– Algum problema, amigo? – perguntou Roberto.
A voz do homem fez Dionísio tornar a fechar o punho. Ele se virou e seus olhos se
cruzaram destemidamente com os de seu algoz. Aquela forma insuportável de falar, cheia de
superioridade, autoridade e desconsideração. Era o mesmo, seu semblante de desprezo pelos
que ele considera inferiores. Poderia pôr tudo a perder, sair dali escorraçado pelos seguranças,
mesmo assim teve uma vontade avassaladora de ver os dentes de Roberto se desprenderem com
a pressão de um soco bem calculado. Mas nada ocorreu, tudo não passou de vontade. Continuou
lá, inerte, diante do sujeito arrogante.
– Anda, cara! – o olhar do seu suposto inimigo exprimiu ainda mais desprezo – Diz logo
o que que você quer na minha mesa?
O jovem que acompanhava Roberto se pôs entre ambos.
– Esse cara faz pós-graduação comigo. Eu conheço ele, o nome dele é... como se chama mesmo?
Era verdade, Dionísio reconheceu o rapaz, ele se senta do seu lado no curso de pós-gradua-
ção. Tudo indicava que a sorte estava do seu lado, embora entendesse que não poderia abusar dela.
– Augusto – Dionísio fingiu um sorriso. – Meu nome é Augusto.
O colega de curso estranhou, não era esse o nome que conhecia, entretanto, aceitou a resposta.

99
A Coragem

– Esse é o…Augusto. Ele é da minha sala no curso de administração. Ele veio do interior
de Minas. Acho que veio esse ano para a capital. Ou estou errado? – virou-se para o novo inte-
grante do grupo.
– Sim. É isso mesmo.
Roberto denotou certo ar de benevolência disfarçada de ironia.
– Se é seu amigo, então ele é bem-vindo. Prazer em conhecê-lo... Augusto! – Roberto lhe
estendeu a mão – Fique aqui e se divirta conosco.
Dionísio sentiu um nó apertar-lhe a garganta, então se forçou a produzir outro de seus
sorrisos fabricados. Apertou a mão do falso cortês.
– Sente-se! – Roberto puxou a única cadeira vazia – É uma honra tê-lo junto a nós, menino
do interior – riu, cinicamente.
Dionísio identificou um leve sarcasmo na última frase, mas fingiu não se importar. Ro-
berto nunca fora cordial, com certeza planejava alguma coisa. Várias vezes o mirou desejando
ser reconhecido, mas assim como Ana e Paulo, ele não fazia a menor ideia de que aquele era o
menino fracassado que ele espancou anos atrás.
Os três se assentaram. Junto às duas mulheres, começaram a conversar e a beber as cervejas
que o garçom deixara sobre a mesa. Não conseguia acreditar no que acabara de acontecer. Nunca
imaginou que um dia iria estar naquela situação. Sentando na mesma mesa que Ana Júlia e Roberto,
sem que os dois se lembrassem dele. Nesse instante, sentiu-se parcialmente perdido. Como agir? O
que fazer? Por um rápido segundo se sentiu atordoado, todavia, sua calma interior voltou a reinar.
– Pelo que meu amigo acabou de me dizer, o senhor Augusto veio do interior – dessa vez,
o tom de deboche de Roberto era nítido. – E aí, brother, que você está achando da cidade? Já
aprendeu a andar de carro ou ainda atravessa a avenida no lombo do cavalo?
Ele e seu amigo iniciam uma sessão de gargalhadas. Bárbara também achou graça, mas
Ana se mostrou irritada com a atitude do ex-namorado. Constatou que o homem agia com as
mesmas manias desagradáveis.
Não havia dúvida, Dionísio só havia sido convidado a se sentar para servir de chacota. Era
perceptível que Roberto não sabia quem ele era, afinal. Mas o simples fato de ser mencionado
que viera do interior, já fez o rico mimado se achar no direito de caçoar dele. Sentiu a ira crescer
dentro de si, mas fingiu que a humilhação não o atingira. Roberto não mudara em nada, ainda
persistia com sua obsessão doentia de constranger os outros para se tornar o centro das atenções.
As risadas diminuíram de intensidade. Assim, Dionísio encarou Roberto nos olhos e lhe
deu a merecida resposta:
– Não. Aqui, a maioria dos cavalos anda com apenas duas patas, seria um pouco compli-
cado ter de montar neles – a firmeza na sua voz era ameaçadora. As risadas cessaram de uma só
vez – Interessante é que os da cidade de onde eu vim relinchavam, aqui os cavalos agem de outra
forma – Dionísio sorriu, mas dessa vez, seu riso era espontâneo –, eles fazem piadas de mal gosto.
O constrangimento de Roberto era visível através da reação em seu rosto. Ninguém mais
pronunciou uma só palavra, o revide surtira um bom efeito
– Pelo que vejo, você se sai bem com piadas... – os olhos de Roberto sinalizaram aborre-
cimento. Adorava diminuir os outros, mas odiava ser derrotado – Vamos ver se também é bom
no asfalto. Que tal um disputa! Só eu e você nos cones – ele forçou o dedo contra o peito do
desafeto – E aí? Vai amarelar?

100
William R. Silva

As pálpebras de Dionísio ficaram semicerradas. A pergunta final o fez puxar algo profun-
do, guardado no porão de sua mente.

“Vai amarelar? Vai amarelar?” Num instante estava na área privilegiada, no outro, se
via estirado no chão gramado. O menino gordo ensanguentado gemia de dor. Apenas dois rapa-
zes o surravam, somente pernas e chutes eram vistos por ele. A dor dilacerava seus sentidos, mas
não conseguia forças para gritar. A voz do líder do trio foi ouvida se dirigindo a outro adolescen-
te: O que foi, Paulo, vai amarelar? – nesse momento, recebeu uma pancada violenta na perna.
Seus olhos feridos se abriram, notou um terceiro estudante se unido ao grupo que o espancava.

– O que você me diz? – Roberto gritou. Viu que o rapaz parecia distante – Vai aceitar o
desafio ou não? – deu um violente soco na mesa.
Dionísio saiu do seu estado de transe.
–Tudo bem! – se ergueu da cadeira – Duelo aceito – encarou-o sem medo.
O playboy sorriu.
– Então vamos lá! Aposto uma rodada – tirou três notas do bolso e as lançou sobre a mesa.
Dionísio fez o mesmo.

No autódromo

Encontravam-se os veículos de ambos na pista, uma fileira de postes iluminava o percurso


interceptado por cones laranjas. O cronômetro digital piscava no topo de um pilar de concreto
e centenas de espectadores aguardavam ansiosos o duelo. O trecho que deverão correr era infi-
nitamente pequeno se comparado com o tamanho real da pista. Rostos indistinguíveis, roupas
coloridas, berros e conversas se misturavam na arquibancada lotada, não era necessário ver a
fisionomia de cada um para saber que estavam ansiosos pelos segundos de diversão que os dois
motoristas iriam lhes proporcionar.
– Quem vai primeiro? – inquiriu o locutor. Sua voz, graças ao uso do microfone, retumbava
estridente nos grandes alto-falantes. Era um homem calvo, apesar de não aparentar muita idade.
– Tanto faz – volveu Roberto cujo braço esquerdo estava para fora.
– Então vai você! – o locutor ordenou.
– Tudo certo, brother!
O BMW deslizou na pista. “Vou humilhar esse babaca!”, pensou Roberto, esboçando um
sorriso maquiavélico. Ele deu partida no exato momento em que o cronômetro fora acionado. A
borracha da roda cromada queimou no asfalto e o berro do motor ecoou quando o veículo dispa-
rou pela pista sinuosa. Sem derrubar os cones, acelerou e se desviou de todos eles. Em questão
de segundos, chegou no lugar indicado. O BMW deu três rápidos giros e freou na mesma posi-
ção. Sendo ovacionado por um coro de gritos alucinados da multidão, ao som da música que era
emitida das caixas de saída, já se considerava vitorioso.
– Trinta e seis segundos e quarenta e seis centésimos, ótima colocação! – disse o homem
com microfone, averiguando o sinalizador.

101
A Coragem

Uma chuva de palmas foi direcionada ao competidor no BMW. Roberto acenou para a plateia.
– Agora é minha vez! – Dionísio guiou o Honda até a pista.
Com um dos pés no acelerador, mirou por alguns segundos Ana no alto da arquibancada.
Não entendeu como, mas a viu entre o incontáveis rostos atentos. Queria mostrar a ela o quanto era
bom no que fazia. Sentiu vergonha de si mesmo, aquele atitude era deveras infantil. A luz vermelha
num pequeno poste mudou para verde e o sinalizador de segundos zerou a contagem. Dionísio
pesou o pé e o Honda escorreu pela pista. Ele iniciou suas manobras e circulou todos os cones.
Com perícia, alcançou o fim da pista. Outro giro triplo foi visto pelos espectadores e, assim como o
rival, freou o carro no mesmo lugar. A multidão gritou animada, as palmas se tornam mais intensas.
Quase todo os olhos se esbugalharam quando se deparam com o cronometro gigante.
– Trinta segundos! – gritou o narrador. Sua voz saiu tão alta que quase estourou o microfone.
Dessa vez, era diferente. A multidão alegre, pulava nas arquibancadas.
Ao notar que era o vencedor, Dionísio reparou em Ana que também batia palmas. O
BMW emparelhou com seu carro. Nesse momento, avistou os olhos de Roberto se lançarem em
sua direção através da janela.
– Muito bom, menino do interior! Está de parabéns – ele balançou a cabeça, positivamen-
te. – Você é dos meus. Depois a gente se vê lá no camarote, estamos te aguardando lá! – sua
postura arrogante desaparecera. O tom de voz de Roberto, naquele momento, denotava certo
respeito. Ele se foi.
Aquilo era bom... ruim. Dionísio não era capaz de compreender. O destino estava colo-
cando todos em seu caminho. O que lhe reservava de agora em diante? Nem ele mesmo poderia
descobrir. Por um instante, lembrou-se de Túlio, ele deveria estar preocupado com sua ausência.
Com certeza o viu na pista. Assim, saiu no encalço da amigo.

25

A PROTEGIDA

4 de Maio de 2014.

O domingo estava calmo e o ambiente bastante arejado. Linhas de claridade da irradiação


solar coloriam o teto da cozinha, todas vindo das frestas das janelas. A família quase toda estava
em torno da mesa farta. A regra sempre fora a de reunir o casal e seus dois filhos para o almoço
dominical e o homem mais velho da casa fazia questão de que o costume fosse respeitado. Ma-
ria do Rosário não tinha muito assunto e quando seus pais lhe perguntavam algo, respondia, na
maioria das vezes, em monossílabas. Sem muito ânimo, a moça revirava sua comida e vez ou
outra abocanhava uma porção da sua mistura de arroz, salada e carne bovina.
Rita recolheu alguns alfaces picados na tigela, despejou sobre seu prato e observou a filha.

102
William R. Silva

Não se agradou com a fisionomia tétrica da jovem.


– O que foi, minha filha? Algum problema?
Continuando a remexer o alimento, encarou a mãe.
– Não...está tudo bem – Maria deixou o garfo parado –, só não tenho fome.
– Coma! – disse seu pai – Prove pelo menos um pouco – apesar de ter uma voz autoritária,
sua fala denotava afeto.
Rita baixou os olhos e avistou em volta da mesa.
– E seu irmão, por que não veio até agora? – indagou ela, notando uma das cadeiras vazias.
Maria agora firmou o garfo no bife e cortou uma fatia.
– Ele estava fazendo uma pesquisa no computador, disse que já estava vindo.
Hércules saltou para dentro da casa deixando Rita incomodada. Ela agarrou a vassoura
encostada na parede e começou a quicar o cabo no piso desejando expulsar o animal.
– Deixa ele, mãe! – Maria pediu.
As pancadas no azulejo prosseguiram. Sua mãe berrava cada vez mais alto.
– Não sei por que tem tanta raiva desse infeliz – Soares riu.
– Ele faz bagunça demais aqui dentro. Sai daqui... anda... sai! – os ataques continuaram.
O pastor alemão fugiu das vassouradas e se escondeu atrás de sua dona. Rita se levantou e
quando se preparava para expulsar o cachorro da sala, uma voz disparou, retumbando nas paredes.
– Pare com isso, mãe! Não precisa machucar o coitado!
Maria travou o cão entre as pernas e começou a rir. Um som de pisadas fortes ecoou pelas
paredes. Indo em direção a mesa, o último membro da família surgiu na cozinha e parou perto
do cachorro. Hércules pulou em suas pernas. Em retribuição, o homem deslizou levemente os
dedos em seu pelo. Era Miguel, o filho mais velho, um homem beirando a casa dos trinta, alto e
de pele mais clara que a da irmã. Seus cabelos castanhos escuros tinham os fios rebeldes, alguns
para cima, outros caídos e seus traços desenhavam um nariz fino.
– Vamos, Hércules. Saia! – ordenou ele, apontando para fora.
O animal abanou o rabo e saltitou para o exterior da casa.
– Oi mãe, oi pai! – Miguel se sentou à mesa.
– Bom dia, meu filho! – devolveu o casal quase no mesmo segundo.
Soares lhe passou a jarra de suco.
– E lá na delegacia? Como andam as coisas?
Encheu seu copo e respondeu meio exaltado:
– O mesmo de sempre! Menor de idade zombando da nossa cara, leis protecionistas,
confusões e todo dia, assassinatos diferentes para investigar. Mas... essa é a vida que eu escolhi,
então, tenho que cumprir minha obrigação.
O senhor aquiesceu.
– Filho! – chamou sua mãe.
– Sim, pode dizer! – falou. Derramou feijão no prato e parou os olhos na mãe.
– Depois arruma um tempo para conversar com sua irmã, ela anda muito estranha esses
últimos meses – revelou ela, voltando-se para a moça.
Miguel a fitou com certa afeição e ergueu a testa. Continuou a preencher seu recipiente.
– Espero que não tenha voltado a se envolver com aquele marginal do João Sérgio – disse Mi-
guel puxando a vasilha de salada para si. – Sei que ele está fora da prisão. Vou ficar no encalço dele.

103
A Coragem

Soares encarou a filha mais nova, severo.


– É bom que a vigie, ficaremos de olho!
A morena mudou seu semblante, estava irritada.
– Se eu disse que não estou mais, é por que não estou – dosou o tom para não se irar com
o pai. – Não confiam em mim?
– Não é questão de confiar. Eu confiou em você. O problema é que aquele sujeito é peri-
goso – o homem grisalho a repreendeu.
– Eu sei me proteger sozinha... – a moça revidou, impaciente.
– Não discuta! – Soares se irou – Vamos ficar atentos aos seus movimentos e pronto!
Maria soltou o garfo fazendo-o tilintar na mesa e os encarou, revoltada.
– Eu já disse que não estou mais com esse cara, mas que saco!
– Que rebeldia é essa menina? – bradou Rita.
– É que estou cansada de ser tratada igual criança. Não sou mais menina. Quando é que
vão entender isso? – arrastou a cadeira e se retirou da mesa.
– Maria, sente-se! – seu pai berrou.
Maria ignorou a ordem. Ela se dirigiu até a sala e apanhou um livro que estava em cima
da mesa. Partiu rumo à garagem da casa. O portão se abriu quando o controle fora acionado por
ela. Entrou em seu Celta e o carro seguiu pela rua.
Miguel correu atrás da irmã, mas a única coisa que viu foi o automóvel dela fazer uma
conversão e desaparecer. Ele retornou à cozinha.
– Não se preocupem! – voltou a se acomodar na mesa – Depois eu converso coma mana.
Sabe como é o gênio dela. Daqui a pouco ela se tranquiliza e volta.
Soares meneou com a cabeça.
– Essa menina sempre teve essa personalidade complicada, puxou a mãe dela.
– Ela tem razão. Vocês ainda a tratam como se ela tivesse quinze anos – Rita discordou.
Os dois a miraram com um olhar de reprovação.
– Não, mãe – Miguel revidou. –Nós queremos o bem dela. Hoje em dia, está tudo muito
perigoso, precisamos protegê-la.
A mulher segurou o queixo e deu um suspiro de aflição.

Parque Natural São Genaro

Kamille aprumou o corpo e saiu serpenteando às pressas numa fileira de pequenas árvores.
Indo em ziguezague, se desviou dos troncos finos, sendo seguida por um casal de irmãos que faziam
o mesmo que ela. Dionísio a observava apreensivo temendo que ela pudesse se machucar. A menina
pouco se importava com os perigos. Tudo o que queria era se divertir. Saltou como uma raposa, bei-
rou o lago e, junto com os outros pequeninos, deslizou as mãos e os pés na borda. Encheu as palmas
de água e lançou as gotas para cima. Gargalhou ao ver que seus cabelos estavam meio molhados.
– Ei, menina. Tome cuidado! – Dionísio a orientou.
Maria do Rosário lhe fazia companhia. Ambos estavam sentados em um banco. O livro se
encontrava sobre os joelhos dela.

104
William R. Silva

– Acho muito legal esse zelo que tem com sua irmãzinha, muito bom isso – ela o elogiou.
Dionísio varreu com os olhos a região onde as crianças brincavam por um instante. De-
pois, virou-se para a companheira de assento.
– A família é um bem precioso. Temos que cuidar sempre!
Maria levantou os olhos e contemplou o céu azul com manchas fracas de cor branca. As
nuvens no céu mais pareciam fumaça se dissipando no ar. Quando abaixou o rosto e reparou
na imensidão verde que sumia de sua visão, um suspiro disparou de seus lábios avermelhados.
– É verdade! Sou grata a Deus pela família que tenho, mas é que... – desistiu de prosseguir
a confissão.
– É o quê? – ele a encorajou.
– Nada – respondeu, cabisbaixa –, esquece!
O homem encostou o dedo indicador no queixo da moça e subiu o rosto dela com um mo-
vimento ligeiro. Seus olhos se conectam um no outro. Dionísio voltou a sentir a mesma emoção
de quando a viu pela primeira vez. Cada vez que via aquele rosto, mais ele se encantava. “Que
diabos! O que está acontecendo comigo?” Internamente se contestava. No passado, foi uma
garoto carente, se apaixonava fácil, mas agora era diferente, era um homem maduro. Sua mente
agora deveria ser forte, teria de ser capaz de controlar seus desejos íntimos. Ou, pelo menos
pensava que era assim. Os olhos dela ainda se prendiam nos seu, seus lábios se moviam. Ele
teve desejo de beijá-la. Que estranho! Quando a voz da razão tornou a soprar em seus ouvidos,
ele tornou a se sentir o canalha de anos atrás. Recordou da tarde em que tirou a virgindade de
Marisa, isso o atordoava. Seu senso moral o perturba vez ou outra.
– Pode falar! – insistiu – Estou sem ter o que fazer mesmo – riu –, pode desabafar.
Maria se firmou no horizonte e segurou seus longos fios negros.
– Minha família parece que não se deu conta de que já sou dona do meu destino. Tratam-
me como se eu fosse uma adolescente indefesa.
As mãos de Dionísio se deslizaram sobre a face morena da jovem. Sabia bem que as mu-
lheres gostavam de desabafar, revolveu não dar nenhum conselho. As vezes sentiu vontade de
tentar alguma frase sedutora, paquerá-la. Com outras garotas que conheceu era uma tarefa fácil,
não tinha outra vontade a não ser o de levá-las para cama. Mas com ela, sentia-se incapaz. Era
fácil com mulheres experientes e liberais, aquelas que lhe davam sinais de interesse. Mas não
agia assim com as de personalidade semelhante à de Marisa. Talvez seja isso, sentia-se culpado
por ter ficado com a jovem realinopolitense. Ter tirado a pureza dela. Maria o fazia se lembrar
de alguém, talvez seja Marisa. Mas a morena ao seu lado era muito mais bonita.
Kamille enxergou os dois conversarem no banco e percebendo que Dionísio não mais a
vigiava, com o auxílio do outro traquina, escalou uma das árvores. Segurou-se em um galho e
soltou o corpo ficando dependurada no ar. À pouco mais de dois metros de altura, a pequena
garota usando da força do mover de pernas, arremessou o próprio corpo em um movimento
frenético para frente e para trás. Balançou-se no alto e fez o tronco ranger. As folhas verdes se
agitaram nos galhos. Algumas delas se espalham no sentido do vento e ganharem o solo.
O irmão a viu se arriscar. Sobressaltou-se e o clima entre o casal se quebrou. Imediatamente,
Dionísio avançou em direção a aprendiz de macaca que dançava com as mãos presas no galho.
– Está maluca!? – vociferou, marchando como um touro – Vai se machucar. Desce daí, agora!
Ele alcançou a cintura da irmã com a elevação dos braços e a desceu.

105
A Coragem

– Eu disse para não subir em árvores – viu que os olhos dela se espicharam. – Na próxima,
prometo que não te trago aqui mais.
Kamille o fitou com uma expressão amedrontada e inocente. Correu e continuou a brin-
car. Dionísio retornou ao seu lugar.
– Criança dá muito trabalho! – comentou, divertindo-se. Sentou novamente – Não posso
me distrair nem um pouco.
– É verdade! – concordou Maria. Ela atirou seus fios negros para trás – Eu também era
assim – gargalhou.
– Como ia dizendo. Você disse que sua família não te trata como adulta – ele reiniciou.
– Às vezes isso me sufoca! – ela disse.
Dionísio examinou sua expressão angustiada sem nada mencionar. Maria liberou outro
sorriso de consideração.
– Me desculpa! – virou-se para ele – Você estava aqui com a sua irmã curtindo o fim de
semana. Eu apareci do nada, me sentei ao seu lado e agora quero despejar meus problemas em
você. Deixe isso pra lá! – sentiu-se constrangida. Não estava acostuma a contar seus problemas
a pessoas que ela pouco conhecia.
– Está certo... – ele voltou a olhá-la nos olhos – Não vou mais insistir. É seu direito! De
qualquer forma, já nos conhecemos aqui antes. Temos uma razoável liberdade um com o outro,
então não tem nada demais.
– É mesmo! – ela se animou.
Estavam distraídos de tal maneira que nem notaram Kamille se aproximar. De modo sútil,
a pequena observou a expressão dos dois. Maria riu discretamente na hora em que se deparou
com os olhinhos da criança pousados sobre ela. Os dois ligeiramente se encaram e depois retor-
nam para a observadora, parada na frente do banco.
Causando ainda mais curiosidade, a menina se achegou para perto do irmão. Sorridente,
ela segurou-lhe a mão. Maria se dirigiu a Dionísio e os dois deram de ombros sem saber o que a
garotinha pretendia. A inocente então conduziu o braço dele até a perna da mulher. Em seguida,
também segurou o pulso de Maria do Rosário e colocou sua mão em baixo da de Dionísio.
Kamille os encarou e gritou com um ar de exaltação:
– Aperta a mão dela! – viu que os dois não se moveram – Anda logo. Aperta a mão dela!
– repetiu, com uma voz mais pueril que antes.
Maria do Rosário sentiu uma energia boa lhe envolver assim que sentiu os dedos do rapaz
se entrelaçarem firmemente entre os seus. Dionísio gostou da ideia. Continuou a acariciar e
apertar as mãos lisas da moça.
– O que significa isso? – indagou ele sem se desprender. Fingindo não gostar da atitude
da irmã – Que brincadeira é essa, Ká?
Kamille deu uma risadinha.
– Pronto, agora sim... – seus olhos inocentes brilharam – São como namorados, um casal
de namorados – pôs suas mãozinhas sobre o queixo e se conteve os observando.
Um olhou para o outro. Não sabiam se achavam engraçado, constrangedor ou excitante o fato
inesperado que ocorria. O casal permaneceu mudo, submerso naquele estranho e interessante momento.

106
William R. Silva

26

O TELEFONEMA

São José do Buriti


(Distrito de Felixlândia -MG)

7 de Junho de 2014.

A poeira que dominou o pequeno distrito mudou a tonalidade das folhas verdes, que
agora apresentavam uma cor desbotada, e penetrou nas residências causando embaraços nas
janelas e empoeiramento dos móveis. Tudo isso era potencializado pela ausência de chuva e o
rígido calor que há meses assolava o povoado. No início da estrada, transparecendo em meio
a uma imensa névoa de poeira vermelha, um BMW cruzava acelerado a entrada do povoado.
Com os vidros fechados, seus óculos escuros e mascando chicletes, Roberto Tavares, dirigia
seu carro de luxo.
O possante, primeiro desceu um pequeno morro à esquerda e, em seguida, virou à direita
e entrou numa trilha por entre uma mata repleta de árvores. O deslocamento foi tão rápido que o
condutor quase bateu o retrovisor nos galhos e troncos. Chegando no local almejado – uma mo-
rada modesta, com a parede descascada, janelas e porta de madeira – freou bruscamente. Com a
breve derrapagem, alguns pássaros voaram assustados de cima dos galhos, provocando a queda
de algumas folhas secas sobre a lataria do capo.
O carro permaneceu por cerca de meio minuto estacionado na beira do casarão até que um
de seus moradores surgiu através da porta que acabara de se escancarar. Abrindo a porta com
cuidado, Olegário atingido pelos raios solares, saiu a caminhar em direção ao veículo. Nesse
mesmo instante, Roberto baixou o vidro elétrico e estreita os olhos na direção do homem que
se aproximava.
– E aí, brother, tudo beleza? – perguntou Roberto. Colocou a cabeça para fora e cuspiu o chiclete.
Olegário inclinou o pescoço e estudou o interior do automóvel. Queria se certificar de que
não havia mais ninguém nos assentos traseiros. Constatando que apenas o condutor ocupava o
veículo, seu semblante mostrou tranquilidade.
– Sim – Olegário respondeu, bastante áspero. – Tudo certo, vem comigo!
Roberto já no lado de fora, bateu com força a porta do BMW escutando um baque atrás de
si. Após apertar o controle a fim de travar o veículo, ouviu três rápidos barulhos baixos de alarme.
– Qual é o seu nome mesmo? – interrogou, sarcástico– Perdão, esqueci!
O sujeito de barbas longas interrompeu suas pisadas na terra seca.
– Olegário – respondeu, sem se virar. – Meu nome é Olegário...

107
A Coragem

O segurança conduziu o visitante para dentro do casarão. Ao entrarem, Olegário o fitou


com uma expressão dura.
– Aguarde! – avisou – Vou informá-lo sobre sua chegada – o homem barbudo se meteu
pelos cômodos a procura do dono da casa.
– Pode deixar, meu brother! – o visitante respondeu.
Roberto revirou os olhos para todos os lados. A sala era macabra e, ao mesmo tem-
po, fascinante. Observou, atônito, três grandes quadros presos no alto da parede da sala.
Examinando uma a uma as famosas personalidades nas pinturas, concluiu que todas elas
representavam figuras que já ouvira muito falar nas aulas de história, documentários e filmes
épicos. A imagem do centro era o célebre ditador do holocausto, Adolf Hitler, usando sua
farda, cabeça erguida demonstrando seu poder e prepotência. Sua cabeleira penteada para os
lados, o peito estufado tornando uma cruz bordada no bolso ainda mais notável e suas duas
marcas registradas – seu famoso bigode e o símbolo da suástica visível na manga do braço
esquerdo – davam-lhe uma vivacidade medonha. Parecia que o ditador ameaçava aniquilá-lo
com seus inescrupulosos olhos nefastos. O do canto direito era o magistral imperador francês
Napoleão Bonaparte, com seu rosto sombreado pelo seu chapéu, olhos negros penetrantes e
amedrontadores, nariz fino e sua pose de dono do mundo, completamente envolto pela sua
farda imperial. O último, um esboço de uma escultura pouco expressiva, semelhante a uma
foto de Alexandre, o Grande.
Ele considerou tais enfeites bizarros. Depois, contemplou todos os móveis do aposento e
ficou ainda mais surpreso com a simplicidade e harmonia do ambiente. No meio da sala, um sofá
com duas mesas ao lado, ambas decoradas com objetos ornamentais. A sua frente, um barzinho
guardando vinhos envelhecidos, cervejas importadas, whisky, conhaques e algumas bebidas
destiladas. Uma televisão rodava um documentário sobre a evolução da humanidade.
O homem abriu os braços, sorriu e balançou a cabeça olhando para o chão. Um longo
tapete persa marrom com detalhes laranjas, vermelhos e amarelos estava debaixo de seus pés.
Sentindo o tênis deslizar no tapete e desconsiderando o aviso do segurança, rumou até
uma saída que dava para o quintal da moradia. Moveu o rosto e averiguou se havia alguém o
vigiando. Assim, atravessou a porta estreita da sala e apareceu no lado de fora. Perambulando
cautelosamente em meio à terra molhada, reparou nas plantações de alface, couve e alguns ou-
tros vegetais. Mais adiante, dois pés de laranja e cinco cachos de uva emaranhados no alto das
árvores frutíferas, tudo cercado por uma grande cerca de arame farpado.
Corado pelos quentes raios solares, caminhou mais adiante.
– Está vivendo como um lavrador! – Roberto caçoou, balançando a cabeça – Essa vida
pacata o está transformando em um ser rural – riu.
Prosseguiu a incursão, porém, desistiu de continuar ao ouvir uma ruído estridente, que
ressoava de uma parte qualquer da horta. O som amedrontador, acertando seus tímpanos, quase
causava estremecimento em suas pernas na medida em que se intensificava. Apreensivo, dispa-
rou a olhar para todos os lados.
Recuou com o impacto do susto. Viu, rente ao muro, um cachorro da raça rottweiler cujo
olhar agressivo e seu focinho entreaberto eram ameaçadores. Com seus dentes pontudos para
fora, o bicho rosnava prestes a atacá-lo.
– Merda! – Roberto bradou, temendo uma agressão – O que essa criatura está fazendo

108
William R. Silva

aqui? – pensou em fugir, mas entendeu que não era uma alternativa plausível.
O animal com os pelos arrepiados e a atenção fixa no invasor, levantou-se e iniciou uma
sequência de latidos graves, deixando Roberto ainda mais nervoso. Com os olhos presos no cão,
calmamente se abaixou, agarrou um grande pedaço de pedra e a empunhou planejando se defen-
der. O cachorro cada vez mais furioso simulava querer partir para cima do visitante. No estado
de tensão, o intruso ergueu a pedra na direção do cachorro. Preparava-se para arremessar o duro
objeto no crânio do rottweiler, no entanto, não prosseguiu com o ato. Uma grossa corrente ajus-
tada no pescoço da criatura perigosa impedia seus movimentos.
Ainda a ladrar, o cão chacoalhava a corrente fixada no muro tentando se soltar, mas por
mais que se debatesse, poucas chances tinha de escapar.
– Calma, Nosferato! – uma voz retumbou de dentro do imóvel – Ele é dos nossos – escu-
taram-se ligeiros passos no assoalho – É um amigo!
Segundos depois, Olegário apareceu no quintal. Mas não era a voz dele que tinha sido
berrada pelo lado de dentro do imóvel.
– Eu não te disse para esperar lá dentro? – o segurança esbravejou.
Roberto abriu a boca, mas quando ia se pronunciar, outro personagem surgiu no cenário.
Ernesto Rodrigues terminava de secar os cabelos com a toalha. Seus olhos azuis complacentes
caíram sobre o animal raivoso. Ele andou até o cão e massageou os brilhantes pelos negros de
Nosferato. O bicho se abrandou.
Ele sorriu para o visitante e estendeu a toalha no varal. Caminhou em direção a Roberto
e os dois se abraçaram.
– Que bom que veio! – deslizou a mão sobre a face jovem do rapaz – Você me lembra seu avó,
sabia? – bateu carinhosamente em seus ombros – É uma honra recebê-lo aqui, meu querido sobrinho!
– Também me sinto feliz em revê-lo, tio Ernesto! – Roberto retribuiu.
O homem agarrou a corrente do rottweiler para se certificar de que estava firme e observou
o cercado. Andando, exigiu que o segurança e o rapaz entrassem para o interior da propriedade.
Reinando o silêncio com o fim dos latidos, Ernesto, junto ao sobrinho, ajeitou-se no sofá.
Olegário, no exato instante, se encontrava na cozinha preparando alguns drinks. Roberto assistiu
as imagens passarem no aparelho de TV sem o menor interesse.
– Até quando pretende viver nesse fim de mundo, tio? – inquiriu, com os olhos presos na
tela – Nossa família sempre foi moldada em luxos. Você carrega nosso sangue, nossa linhagem
merece o melhor.
– Até quando for necessário – respondeu Ernesto. – Sou um foragido da justiça! – encarou
o interrogador– Muitos duvidam da minha morte. Esqueceu?
O segurança trouxe dois copos quadrados com gelo, entregou a cada um e os encheu de
whisky. Roberto encostou a bebida na boca, degustou e se voltou para o servidor.
– Esse whisky é péssimo! – reclamou, com desprezo – Não tem cerveja?
Olegário franziu a sobrancelha e lançou-lhe um olhar colérico.
–A geladeira está logo ali atrás daquela parede – o homem revidou. – Vá você e pegue!
– Poxa, cara! – o visitante ergueu os braços – Eu pedi com educação.
Os olhos de Ernesto começaram a se encher de raiva, mas não se pronunciou.
– Você nunca foi educado. Agiu assim em todas as visitas que te fiz para passar as co-
ordenadas de seu tio – confessou Olegário, cuspindo sua ira. – Mas tenho algo para te dizer, o

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A Coragem

mundo não gira a sua volta e você não é dono dele. Escuta aqui, seu playboy de merda, já lidei
com muita gente ruim e não vai ser você quem vai me intimidar.
Roberto saltou do assento e encarou o desafiador.
– Vai engolir tudo o que disse sobre mim, agora! – quis aterrorizá-lo, mas Olegário não se
amedrontou – Senão... – cerrou os punhos – Eu arrebento sua cara.
Ernesto finalmente perdeu a paciência.
– Seria bom que vocês dois parassem com essa palhaçada! – o líder do trio gritou – Calem
a boca e me escutem! – seu olhar era ameaçador.
Os dois miraram a face do homem com sua expressão de descontentamento. Ernesto
Rodrigues tomou sua bebida, direcionou o controle e desliga a TV. Pondo-se de pé, caminhou e
parou exatamente abaixo do quadro do ditador alemão.
– Parem de besteiras! – falou, num tom grave – Nosso grupo ainda é pequeno, preciso de
mais homens e vocês, meus únicos aliados, estão brigando? Vamos ser mais práticos, pode ser?
Ou é pedir demais?
Roberto assentiu com a cabeça.
– Desculpa, cara! – estendeu-lhe a mão. Sua sinceridade escondeu um leve ar de zombaria
–Prometo que vou tratá-lo bem a partir de agora!
Olegário retribui o cumprimento.
– Está bem! – suas mãos se apertaram – Vamos passar uma borracha nisso.
O rapaz arrogante voltou a se derramar no sofá. Com a coluna no encosto, jogou uma
perna por cima da outra, mantendo sua expressão de superioridade. Ele ficou a encarar o tio na
espera de seu discurso. Olegário volta para à cozinha.
Ernesto meneou com a cabeça e moveu os lábios, pensativo.
– Roberto, preciso que me ajude! – seu cenho franziu – Posso contar com você?
O sobrinho cravou os olhos azuis do orador e se manteve confuso.
– Posso ou não? – repetiu Ernesto, com severidade.
– Como posso te ajudar em algo que nem sei do que se trata? – volveu Roberto.
– Sabe sim, meu caro! – Ernesto riu, triunfante – É para isso que o convoquei – o homem
se sentou novamente.
Olegário entregou uma cerveja a Roberto. Ele sorriu, agradecido.
– E o que seria? – o sobrinho respondeu, enquanto abria a garrafa – Poderia refrescar
minha memória?
– Preciso de homens que possam me ajudar – Ernesto o mirou – Pago em dinheiro vivo e
a grana é alta. Mas preciso de caras com disposição para matar ou morrer. Teria como encontrar
alguns bons para mim?
– Só isso? – indagou Roberto, bebendo um longo gole de sua cerveja – Pode deixar comi-
go! Conheço uns caras bons para o serviço que você quer.
Os olhos azuis de Ernesto se tornaram ainda mais visíveis no abrir de pálpebras, seu
singular sorriso maquiavélico despontou entre os dentes. No instante em que sorria, visualizava
todo plano que há tempos arquitetara.

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A GESTAÇÃO

Em Realinópolis

O cheiro de terra molhada pairava no ar na medida em que as gotas de chuva acertavam o


solo. Poças de lama se formavam lentamente. Em virtude disso, a temperatura se tornou agradá-
vel e a brisa passou a provocar uma suave sensação de prazer. Muitos dos pingos respingavam-
lhe a face, mesmo assim, Marisa continuava imóvel ante a janela aberta. Seus olhos se abriram
atentamente, fazendo-a, a uma grande distância, contemplar a linda imagem da névoa chuvosa
que camuflava parcialmente o enorme relógio da igreja. As duas torres laterais do templo pare-
ciam fotografias em baixa resolução. Prestou atenção na simplicidade das casas que tinham suas
paredes molhadas. Alguns moradores fechavam janelas, dois moleques descalços e bastante
ensopados chutavam uma bola na rua sem pavimento. Ela riu alto quando enxergou um bêbado
cambaleando atordoado à procura do seu barraco.
Maria baixou os olhos e examinou sua volumosa barriga. Carinhosamente, começou a
alisar a pele lisa ao redor do umbigo. Sorriu no exato segundo em que sentiu um leve golpe no
interior de seu ventre.
– Será que o papai vai nos ligar? – disse, continuando a executar as carícias na barriga
inchada – Será que ele se esqueceu mesmo de mim? – suspirou, aflita – Será?
O pé d’água se intensificou. Os pingos passaram a cair com tanta potência que quase
perfuravam a terra. Intermináveis gotas enlameadas começaram a respingar na parede abaixo
da janela. Por um momento, a gestante sentiu vontade chorar, mas conteve o fio de lágrima que
por pouco não transbordou. Tudo aquilo era novo, uma experiência feliz e, ao mesmo tempo,
frustrante. Seu corpo sofrera transformações, o sentimento de insegurança constantemente a
atormentava. Ser mãe era mágico, a sensação de carregar uma vida dentro de si indicava algo
que nenhuma palavra, frase ou até mesmo um livro pudesse ser capaz de descrever. Coisa que
somente quem teve o privilégio de vivenciar a situação seria capaz de entender. Nem tudo eram
flores, os vizinhos passaram a encará-la com olhares acusadores, às vezes de desprezo, mas nada
lhe tirou o desejo de pôr a nova criatura no mundo.
– Se pelo menos o Dionísio estivesse aqui para me dar apoio – murmurou. – Ele pouco se
importa comigo. Eu para ele, nunca fui nada... nada!
Ela firmou o cotovelo na base de madeira e ficou de cabeça baixa. Sentiu seus cabelos
longos e negros se molharem quando colocou a mão sobre a testa. Por entre os dedos, notou
água escorrer e deslizar em seu antebraço. Entretanto, toda aquela umidade que inundava suas
pálpebras não fora somente trazida pela chuva, lágrimas escorreram sem que ela percebesse.
Soluços involuntários saltavam-lhe da garganta e o som do seu choro desesperado foi abafado

111
A Coragem

pelo aguaceiro. O feto sobrevivendo através dela não fora gerado sozinho. Haverá um momento
em que será obrigada a contar quem era o pai. Dionísio poderia estar no outro lado do planeta,
no entanto, a modernidade lhe proporcionava inúmeros recursos para encurtar a distância entre
ela e o homem que ela amava. Existam tanto meios legais quanto tecnológicos aos quais poderia
recorrer para informar Dionísio de que havia uma criança com seu sangue prestes a nascer.
Contudo, o sentimento de desamparo, decepção e revolta a impedia de agir. Átila era um
patrão exemplar, concedeu-lhe a licença e resolveu pagar um dinheiro extra junto aos devidos
honorários para ajudá-la nessa fase complicada. Apesar de tudo, teme a reação dele quando o
mesmo souber que ela guardava um neto em seu ventre. Será que o patrão iria perdoá-la por ter
escondido a verdade durante tanto tempo? Ele a perdoaria se soubesses que ela tinha se encon-
trado algumas vezes dentro da própria loja com seu filho?
O instante de melancolia durou menos que um minuto, embora tenha sido o suficiente para
acalmar sua alma. Endireitou o rosto, afastou os cabelos para trás. Sentiu uma pequena porção de
suas costas se encharcarem com a água que escorreu dos fios molhados e inundou sua camisa.
– Quer pegar uma pneumonia? – uma voz feminina aparentemente fraca e cansada ecoou no
quarto – Saia desse janela, minha filha! Por acaso não está vendo os pingos atingirem aqui dentro?
Marisa agarrou as duas extremidades da janela, puxando-as para dentro. Uniu as duas
portas venezianas e prendeu o trinco. O barulho da chuva batendo nas peças de madeira ficou
a ressoar pelo aposento. Ela deu meia volta e se deparou com a avó segurando algumas roupas
secas por cima de uma cadeira e as acomodando no guarda-roupas. Marisa removeu da testa a
água que escorria de seu couro cabeludo.
– A dona Verônica avisou para que, assim que você souber o sexo da criança, passasse na
casa dela – a senhora sacudiu uma calça e a dobrou. Abriu uma gaveta e enfiou a peça dentro. –
Ela disse que vai te comprar umas roupinhas para o bebê como forma de ajudar – a idosa pousou
seus olhos carinhosas sobre a grávida e sorriu para ela.
A face de Marisa se iluminou.
– Comente com ela que serei muito grata – devolveu, em bom tom. – Que Deus a abençoe!
A mulher mais velha levantou uma camisa e a encaixou num cabide preso no interior do
móvel. Após o ato, apanhou um vestido florido e o dobrou. De repente, suspirou contra a von-
tade e denotou um ar de desgosto.
– Como a criança não tem um pai, toda ajuda é bem-vinda – a idosa deplorou, assim que
guardou o tecido na gaveta.
A lamúria de sua avó produziu um peso incômodo nos ombros da gestante.
– Quem disse que o neném não tem pai? – a indagação disparou num ruído de desabafo.
– Se tivesse um, ele estaria aqui com você – a anciã refutou. Ela pegou uma calça jeans e
a dependurou em outro cabide.
A moça engoliu em seco. Queria seguir a revidar o questionamento, mas as palavras se
perderam. Não era certa a forma como estava agindo, sua avó merecia a verdade. Fora a pessoa
que esteve ao lado dela a vida inteira e a criou com um amor incondicional. Sentiu-se injusta.
Cresceu em meio a muitos dogmas religiosos, aqueles que a educaram nutriam uma forte base
conservadora. Uma avalanche de remorso e vergonha despencava sobre Marisa toda vez que
pensava em contar aos avós o real modo pelo qual a criança fora concedida.
Para preservar seu segredo, inventou uma história de um homem que ela conhecera no

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William R. Silva

trabalho. Os dois namoraram por alguns meses e ela, por descuido, engravidou. Dizia sempre
que o rapaz fora embora desconhecendo a paternidade e sumiu sem deixar notícia. Nos meses
que se sucederam, manteve a meia mentira. Constantemente se desvencilhava de perguntas que
a pudesse encurralá-la.
A senhora retirou uma toalha do monte e a estendeu na porta do quarto.
– Sabe o que eu penso?
As sobrancelhas da neta se ergueram para ela demonstrando sua curiosidade. A amável
figura de pele envelhecida a encarou, austera. Marisa estremeceu assim que sentiu aqueles olhos
fatigados pelo tempo se lançarem em sua direção.
– Que você se envolveu com um homem casado e tem medo de estragar a vida dele ou
outro perigo qualquer – um vigor incomum fora transmitido através das pálpebras semicerradas
da acusadora. – É por isso que você teima em não contar quem é o homem com que se deitou.
Confesse, Marisa! O pai dessa criança é casado, não é?
A gestante recuou. Seus lábios se moveram à procura de um argumento que a livrasse
daquela acusação absurda, mas o semblante recriminador de sua avó a deixava cada vez mais
desorientada. Teve dificuldade para se proteger.
– Não... – sua voz saiu num murmúrio de prantos – Eu nunca faria isso, mãe. Eu juro.
O homem que me engravidou não tinha compromisso com ninguém... Jamais faria uma coisa
dessas. Você me conhece.
Apenas o barulho da chuva deslizando nas telhas entoou no cômodo quando ambas se
silenciaram encarando uma à outra. Marisa sentiu vontade de abraçar o ser humano velho e
triste que ela tanto amava e admirava como forma de pedir perdão. Jamais desejou lhe dar tanto
desgosto, embora concorresse o tempo inteiro para isso.
– Por favor, mãe. Me dê um tempo para poder pensar melhor – a grávida suplicou. – Pro-
meto que dou um jeito de procurar o pai do meu filho assim que me resolver internamente. Tem
vezes que minha cabeça parece querer explodir.
Quando uma lágrima escorreu na pele enrugada da mulher, Marisa se viu ainda mais
atordoada. Os olhos de sua avó, outrora acusadores, assumiram uma expressão de compaixão.

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O LAÇO

Livros de filosofia, estudos sobre a mente humana, alguns romances psicológicos, fi-
nanças, automotores e principalmente teorias de administração. Apreciava outros temas, mas
esses eram os seus livros favoritos. A livraria do bairro não era distante de sua residência, por
isso passou a frequentá-la de duas a três vezes por mês. Mesmo não tendo concluído a leitura
dos que adquiriu nas semanas anteriores, ele jamais deixava de fazer suas visitas. Dionísio se

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A Coragem

sente como uma criança quando está numa loja de livros. Aquela imensidão literária, fazia-o se
perder entre as prateleiras. Circulou a área dos clássicos, folheou um a um os best-sellers. Sua
satisfação não é na compra em si, simplesmente estar diante de todo aquele amontoado cultural,
proporcionava-lhe um prazer único. Percorreu todos os setores, dando uma passada rápida de
olhos no nome dos títulos, capas e autores. Podiam se passar minutos e até horas sem que visse
o tempo passar. Sempre compra quase todos que tem vontade. Quando em casa, dependendo
do seu grau de interesse, devorava-os em menos de duas semanas. Uma das suas metas de vida,
quando tiver a própria casa, é montar uma biblioteca pessoal dentro do próprio lar. Seu amor
pelos livros se tornou algo incondicional, um dos seus mais importantes legados deixado pelos
anos de convivência paterna e suas visitas ao labirinto escondido na velha ferrovia.
Cruzando alguns setores com o cesto dependurado no antebraço, parou na ala infantil. Ele
recolheu um impresso.
– Será que a Kamille vai gostar? – se autoquestionou. Pousou os olhos na capa, contente –
Não é possível que ela não goste de Monteiro Lobato –despejou a mercadoria na cesta.
Seus passos seguiram. Parou novamente, leu outro título na bancada e riu.
– A Mentira Cabeluda? – achou o nome engraçado – Pedro bandeira... vou levar pra ela
esse também – inclui-o em sua compra.
Bem no fundo do beco de prateleiras, enxergou o setor de filosofia e se lembrou de que
não havia buscado nenhum do gênero. Levantou o cesto e se desviou de alguns contratempos. Foi
andando devagar para desfrutar do maravilhoso cheiro de papel novo que alcançava suas narinas e
atravessou algumas sessões. Ele reparou ao seu redor, a fim de ver se encontrava algo interessante
pelo caminho. Funcionários da loja vez ou outra lhe ofereciam ajuda. E sempre os dispensava.
Repentinamente, imobilizou os passos. Ficou bastante surpreso quando vislumbrou a
moça não muito distante de si. Será coincidência ou destino? Para ele, pouco importava. Estava
decido a não perder a oportunidade. Maria do Rosário, em uma das fileiras, entretida, tateava
algumas obras de romance. Outra vez a inércia planejava tomar conta de seus atos, diante dela,
estranhamente apresentava sinais de timidez. Como uma estátua, ficou no corredor hesitante,
atrapalhando outras pessoas a se deslocarem. Pensou em não seguir, porém, respirou fundo,
encheu o peito e partiu determinado em direção ao local onde estava a moça.
Marchou à pisadas calmas pelo vão estreito, rumo a leitora que tanto lhe chamara atenção.
A morena estava bastante entretida na sua tarefa, como de costume, nem percebeu o predador
se aproximar. Com a atenção vidrada nos movimentos da mulher segurando o livro, achegava-
se cauteloso para perto da jovem até se manter ao seu lado. Ainda sem ser notado, contemplou
por alguns segundos o nariz arrebitado, a pele corada e o olhar sereno da cliente, que distraída,
averiguava um clássico nacional.
Dionísio examinou a capa, o nome e o autor do livro que ela segurava. Quebrando seu
estado de desatenção, disse intrometidamente:
– Vidas Secas de Graciliano Ramos? – viu que ela se virou, assustada e com os olhos
espichados. Ele não se intimidou – É um livro muito bom, romance nordestino, mas... acredite!
É um pouco triste.
Maria do Rosário, numa reação instantânea, sentiu se formarem contornos em volta da
sua boca e abaixo de seus olhos cintilantes. Realçando ainda mais sua bela expressão, um sorriso
saltou-lhe dos lábios e uma covinha surgiu no centro de seu maxilar. Por uma pequena fração de

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William R. Silva

tempo, reparou seu interlocutor mantendo sua expressão de estranheza até que uma gargalhada
rápida e involuntária foi liberada de suas cordas vocais.
– Perdão pelo atrevimento! – o paquerador disse. Seus olhos se cruzaram. Uma agradável
sensação de calor se enovelou em seus corpos – Boa noite antes de qualquer coisa! – a cortejou,
com bom humor.
Maria colocou a mercadoria em sua cesta, seus olhos se dirigiram à vitrine de livros,
depois retornaram para o homem.
– Não se preocupe! – mostrou-se receptiva – Já estou acostumada com seu atrevimento!
– os dois riram simultaneamente. Ela continuou a examinar a prateleira.
– Então, você estava me dizendo que o livro...? – tornou a fitá-lo.
Por mais que negasse, cada vez que a via, seus sentimentos por ela eram mais perceptíveis
em seu íntimo. Distraiu-se, mas logo voltou a si. Ao se lembrar que puxou assunto a respeito do
livro que ela estava a escolher, coçou o couro cabeludo.
– Comentei que era um pouco deprimente, contudo, é um grande clássico brasileiro. Todo
mundo deveria ler.
Maria lhe presenteou com outro sorriso.
– Acredita que quando li sobre a morte da cadelinha baleia – ele insistiu – Fiquei tão triste,
que dei esse nome a minha primeira cachorra de estimação? – mentiu, de forma descarada.
Ela novamente caiu na gargalhada.
– Pedi para me falar sua opinião e não contar a história – ela o repreendeu.
Dionísio baixou os olhos e deu uma rápida passada de mão na testa.
– É verdade, me desculpa! Que burrada a minha, hein?
Ela voltou a segurar o clássico. Alisando-o com a ponta dos dedos.
– Não tem problema... – seguiram os dois pelo corredor estreito. Um casal de adolescentes
passou por eles – Eu já o li – os olhos da jovem cintilaram, Dionísio parecia hipnotizado pela
luz interior que era emitida deles.
– Você já leu e está comprando-o de novo? – indagou surpreso, no subir de sobrancelhas.
– Sim. Por quê? – volveu ela – Não pode?
Dionísio moveu dois passos em direção a ela.
– Quem sou eu para dizer que não? – seus lábios se aproximaram.
Os dois trocaram olhares com semblantes afetuosos. Ela se esquivou. Um outro cliente
trafegou entre ambos, fazendo com que retornem à conversa.
– Claro que não. Você não me proíbe de nada – continuou a passear pelo lugar, ele a seguiu.
– Está de carro?
– Não – ela respondeu, num tom de timidez. – Essa livraria é apenas a quinze minutos da
minha casa. Gosto de vir caminhando.
– Aceitaria uma carona? – Dionísio arriscou.
– Sim. Adoraria! – a resposta soou como música no ouvido do galanteador – Deixe-me
pagar meus livros e te espero na saída.
– Ah! E já vou avisando... – ela moveu um longo fio de cabelo para trás de sua orelha
direita – Sem ousadias, por favor! – advertiu, com bom humor.
O homem riu.
Minutos depois, acertaram os valores no caixa e foram embora. Dionísio dirigia sentindo

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A Coragem

um júbilo interior crescer dentro de si, uma espécie de sentimento que há tempos não presencia-
va. Nem mesmo Sílvia e as outras com quem se relacionou na adolescência foram capazes de
despertar tais afeições. Por que aquela mulher tanto lhe fascinava? Será que estava apaixonado?
Nem se lembrava mais o que era isso.
– Então, Maria – disse, trocando a marcha. – Você vem sempre neste livraria?
A morena ajeitou os livros na sacola em seu colo e reparou no movimento da rua.
– Sim – retirou outro fio de cabelo do queixo. – Desde meus doze anos.
– Estranho nunca nos encontrarmos – parou no sinal vermelho. – Faz meses que fre-
quento essa loja.
– É! Estranho mesmo.
Sinal verde, então o Honda atravessou a faixa e continuou o percurso. Dionísio, com o ob-
jetivo de tornar a viagem mais longa, pegou alguns trechos fora de rota e guiou o veículo numa
velocidade mais reduzida. Todavia, sua estratégia não foi o bastante, uma vez que o percurso até
a residência da passageira não durou mais que oito minutos. Vendo que já chegara em um dos
seus destinos, freou o carro e ficaram estacionados na calçada.
– Muito obrigada, menino atrevido! – ela o agradeceu – Depois nos vemos!
Ela quis sair do veículo, mas sentiu os dedos de Dionísio agarrarem seu pulso.
– Espera mais um pouco! – exigiu o condutor com uma voz calma.
Maria olhou para a rua semideserta. Três indivíduos entravam em suas moradias, outro
guardava o carro na garagem da casa vizinha. Ainda contida, voltou-se para o rapaz.
– O que você quer? – perguntou, trêmula, embora já soubesse a resposta. Ela desejava o
mesmo que ele. Só percebeu isso quando seus olhares novamente se encontraram.
Continuaram a se entreolhar ardentemente. Dionísio se aproximou, deixando seu nariz
colado no dela. Maria tentou reunir forças para escapar do bloqueio do amante, mas seus desejos
se tornaram mais intensos. Governada pelas próprias emoções, correspondeu às expectativas do
sedutor e o beijou. Estava confusa sobre o que sentia por ele até então, mas nesse breve instante
de carícias, desejou amá-lo pelo resto da vida. Quanto mais sentia aquela pele e o cheiro femini-
no, mais ele a desejava em seus braços. Os poucos segundos os fizeram esquecer de tudo: suas
dúvidas, seus anseios... seus temores.
Os lábios se desprenderam, ela o abraçou.
– Que loucura! – Maria suspirou – Você é um abusado, sabia? – riu.
– Eu sei – voltou a beijá-la.
O corpo que roçava contra seu físico robusto descontrolou seus sentidos, O homem tocou
com suavidade a cintura da moça e começou a massagear-lhe a região abdominal até alcançar a
região dos seios. Maria do Rosário, com um inesperado movimento de braço, levou a mão até a
face de Dionísio e lhe deu uma forte bofetada.
– Atrevido, atrevido! – ela berrou – Não te dei essa intimidade!
A passageira saiu do automóvel e bateu a porta, irada. O vermelhidão na bochecha de
Dionísio ardia intensamente. Com a mão na face, ele abriu a porta, deixando-a entreaberta.
Correu até a mulher tentando reparar o erro.
– Perdão! Eu me empolguei... desculpa, Maria!
– Vai para o inferno! – gritou ela. Sua voz ressoou pela via, uma mulher olhou pela janela
de um condomínio, curiosa.

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William R. Silva

Ela entrou em casa, trancou o portão e subiu a rampa apressada.


– Eu vou voltar para te ver... – o homem persistiu – Eu voltarei, está ouvindo? Vamos nos
ver de novo! – contente, entrou no Honda e se foi.
Maria ouviu o recado. Com as pernas trêmulas, despencou sobre a rede na varanda e
admirou as estrelas no céu. Deu um sorriso involuntário, pensando nele enquanto se balançava.

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CONEXÃO DE RISCO

30 de Jumjo de 2014.

O perigoso elemento galgava os extensos degraus com a mochila pesada sobre o lombo.
João Sérgio seguia na dianteira enquanto os outros três ficavam na contenção. Atrás dele, seus
comparsas verificavam, intrigados, os acessos da periferia. Todos, com exceção do portador da
mercadoria furtada, andavam com seus revólveres presos aos dedos. Os degraus terminaram e
as dezenas de fendas que se abriam entre os acessos surgiu diante do grupo. A quadrilha esteve
durante todo o percurso em estado de alerta. Então serpentearam pelos barracos, deram a volta.
Poderia terem chegado onde queriam com mais rapidez, mas precisavam estudar os entornos
antes de se aventurarem para dentro do esconderijo. Se conseguiram burlar a vigília urbana dos
policiais, isso era incerto. Qualquer medida cautelosa era útil. Nenhum indício dos agentes da
lei fora encontrado, os bandidos penetraram no aglomerado e seguiram.
– Vocês demoraram demais para acenderem os detonadores! – Picolé rosnou – Perderem
muito tempo. Mais rapidez na próxima vez. Aqueles caixas eletrônicos estavam muito mais
fáceis do que os anteriores – ele se encolheu para atravessar um vão estreito. Ele era o mais
magro, seus ajudantes tiveram mais dificuldade para avançar no curto espaço. Uns até chegaram
a raspar os braços nas paredes desgastadas.
– Que diferença faz? – Deco falou. Foi o último a sair da passagem estreita, teve de se
abaixar quando deu de cara com uma calça jeans secando. Havia um varal cheio de roupas esten-
didas no caminho. O bando acabou de entrar no quintal de uma das casas da favela – Deu tudo
certo, não deu? Está reclamando de que, porra?
– Encerra o assunto! – Bola berrou – Esqueceram que paredes tem ouvidos?
Eles desceram outro beco, mas esse era menor que o anterior. Picolé atingiu o final do
trecho e saltou um pequeno barranco. Então falou:
– Que se dane as paredes!
O trio nem lhe dera atenção, estavam apressados demais para alcançarem o esconderijo.
Cada um deles pulou o obstáculo e assim prosseguiu em procissão. João Sérgio suspirou de
alivio, abriu os olhos e contemplou a singela casa no fundo do passadiço de alvenaria. Deco

117
A Coragem

sondou tudo a sua volta e parou ante a porta. Estudou o ambiente, percebeu que não está sendo
monitorado por vizinhos. Ele sentiu a maçaneta com o tato, encaixou a chave na fechadura e a
movimentou, a porta abriu num ranger de madeira. Imediatamente, todos entraram no barraco.
João Sérgio na frente, rumou em direção a sala. Ele retirou a mochila das costas puxan-
do-a pela alça. Quando se preparava para descansá-la sobre o piso, alguém deu três passos e
segurou a bolsa no ar.
– Coloca na mesa! – ordenou Deco.
– Qual é problema de deixá-la no chão? – João Sérgio questionou, imobilizado. Sua colu-
na ainda estava deslocada para baixo.
– Não estou a fim de ficar ajoelhado! – Deco insistiu.
– Ei, cassete, tanto faz onde e como, tira a grana da bolsa e começa a dividir isso aí logo
– Picolé se intrometeu. – Não temos o tempo inteiro, não. Já não basta o fato de termos passado
a madrugada e a manhã inteira nos escondendo, agora vamos ficar aqui discutindo sobre onde
vai botar a mochila?
João fez força e ergueu a mochila, arremessando-a sobre a mesa. Ele puxou o zíper e
espalhou as dezenas de maços de notas sobre o móvel.
Centrados na tarefa, Picolé começou a repartir o furto. Eles não se desgrudavam nem por
um minuto da partilha. Através da janela fechada, ouviram-se conversas, passos de transeuntes,
ruídos semelhantes a latidos de cachorros, gritos de crianças, rádios tocando músicas e alguns
outros gêneros musicais.
No entanto, nenhum deles causou tanto alvoroço e atenção dos quatro marginais quanto
a um repentino barulho de batidas fortes na porta. Na reação imediata do som produzido pelos
toques, todos ficaram com os olhos esbugalhados. Receosos e sentindo seus nervos vibrarem,
assumiram uma posição de alerta. Armas foram subitamente erguidas em direção a entrada do
barraco. O grupo se preparou para atirar.
– Sujou... sujou! – apavorou João com o braço alinhado. Olhou para Deco esperando uma
solução – Será que é a polícia? Será que deduraram agente?
As pancadas na madeira, continuaram.
– Calma, mano! – Deco falou, seu dedo deslizava no gatilho – Se fossem policiais, você
acha que iriam bater na porta? É óbvio que já chegariam sentando o pé e dando voz de prisão.
– Quem é? – Picolé esbravejou, furioso – Estamos ocupados, caralho! Não temos bagulho
pra vender – ele se aproximou. As batidas na porta cessaram – Volta mais tarde!
– Somos amigos! – uma voz masculina vindo do lado de fora respondeu – Temos uma
ótima proposta para vocês. Deixem-nos entrar e garanto que vai valer a pena.
Tenso, João Sérgio avançou rumo à porta. Franziu o cenho e seus olhos se encheram de
ódio. Estreitou o cano do revólver, passou por bola, desviou-se de Picolé e assumiu a dianteira.
– Não acredito que você teve a cara de pau de vir até aqui, seu traidor desgraçado! – João
reconhecera a voz. Sabia quem era o homem que falava – Só pode ser brincadeira!
– Sou eu mesmo, brother! – a voz respondeu – Abre a porta pra gente conversar.
Ele se voltou para os demais.
– Abro? – seus olhos caíram sobre Deco, depois saltaram para Picolé.
Então, Picolé encarou Deco e ambos aquiesceram.
Bola correu para cobrir as cédulas com um lençol azul, João Sérgio segurou apreensivo

118
William R. Silva

a maçaneta prestes a escancarar a porta. A maçaneta girou e os revólveres se ergueram. Com a


porta entreaberta, ele a puxou devagar. Quando a luz do dia se introduziu na residência, duas
silhuetas se projetaram. Tinham escutado apenas uma voz, mas eram dois homens que os aguar-
davam. Um dos visitantes deu um passo para trás, no momento em que notou os calibres na
direção de seus rostos. Sua atitude fora mais instintiva do que de medo propriamente dito.
– Podemos entrar? – o outro homem finalmente deu o ar de sua voz.
– Vejam só quem veio nos visitar! – Picolé baixou a arma, mas não esboçou nenhuma
expressão de boas-vindas – A que devo a honra de sua visita? Pensei que esse mundo não lhe
pertencesse mais.
– Na verdade – o homem despontou num sorriso maquiavélico –, esse mundo nunca foi meu!
Bola foi o que mais se irritou com o comentário.
– Então por que está aqui de novo? Para um homem rico como você, acredito que não seja
tão difícil assim conseguir entorpecentes. Para se arriscar aqui no morro depois de tantos anos,
a situação deve ser séria.
Os visitantes o ignoraram.
– Entrem e fechem essa merda logo! – Deco deu a ordem – Não podemos ficar na vista assim.
Segundos após a dupla adentrar no interior da residência, um dos visitantes sentiu um
cano gélido de uma pistola contra sua testa. Ele então fica imóvel, mirando a face do homem
que o ameaçava.
– É muita cara de pau da sua parte, aparecer por aqui, Roberto Tavares! – João Sérgio
o desafiou. Seu revólver estava prestes a disparar – Por sua culpa, eu fui parar na cadeia, seu
desgraçado! Por acaso já se esqueceu?
Picolé franziu a sobrancelha, o resto se calou diante da cena.
– Eu sei que está chateado comigo, brother! – Roberto tremeu – Mas é para isso que esta-
mos aqui. Para reparar o dano que lhe causei. Acredite! A proposta que tenho, será boa.
Roberto sutilmente afastou o cano do perigoso objeto de metal com a ponta do dedo indi-
cador. Mas foi em vão, o revólver regressou firme em sua face.
– Não acredito mais nas suas mentiras! – o marginal rebateu. Seu dedo dançava no gatilho
– Você me incumbiu de transportar todo o carregamento para a zona sul e abastecer a galera da
classe média com as drogas daqui – João prosseguiu,– A polícia me capturou por sua culpa! E o
que você fez? – a pressão da arma fez a vítima se encostar na parede. Roberto abriu os braços a
fim de acalmá-lo – Me deixou cinco anos naquela maldita penitenciária.
– Esqueça as feridas do passado, cara! – Roberto tentou – Pelo menos escute o que tenho a dizer.
– Diga! – João persistiu com a ameaça – Dê-me um bom motivo para não enterrar uma
bala na sua cara!
Picolé saltou para cima do comparsa e segurou-lhe o braço.
– Acho melhor ouvirmos o que eles têm a dizer – ele aconselhou. – Deixa os caras fala-
rem, João Sérgio!
– Para com essa porra, merda! – Deco perdeu a paciência – Abaixa esse troço!
O braço armado de João arriou, mas a ira em seus olhos se intensificaram.
– Desembucha, mané! – Picolé mandou – Ande logo! – enfiou o trinta e oito no coldre – Já
vou avisando, não temos muita mercadoria para vender.
Roberto sorriu para ele.

119
A Coragem

– Antes de tudo, quero apresentar a vocês o meu parceiro aqui – virou-se para o sujeito
barbudo ao seu lado. – O nome dele é Olegário – deu um leve tapa no ombro do companheiro.
Ninguém estava para formalidades. O máximo que fizeram foi examinar o homem de
cima abaixo e continuarem desconfiados.
– Certo! – Picolé disse, cético – Mas vamos direto ao ponto. Qual é a razão de sua visita?
Os olhos de Roberto caíram sobre o misterioso volume escondido sobre a mesa. Sem te-
mor algum, caminhou entre os presentes e parou ante o móvel de madeira. Os cinco o encararam
confusos e incomodados. Para o espanto do bando, o visitante ergueu as mãos e as deslizou com
suavidade sobre o tecido. Começou a apalpar os maços de notas por debaixo dela.
Subitamente, ele agarrou o lençol e o puxou. No momento que o arremessou para longe,
olhos coléricos foram lançados em sua direção. Olegário não assumiu nenhuma expressão, ape-
nas o observou, friamente.
– Que ironia da vida, eu sou o herdeiro de um banco milionário e vocês... roubam migalhas de
caixas eletrônicos – Roberto deu uma risadinha. – Quanto tem aqui? Trinta, quarenta, cinquenta mil?
Todos se entreolham, sem entender a atitude do playboy.
– Merreca! – o homem debochou – Já cheguei a gastar bem mais que isso num único fim de semana.
Picolé rangeu os dentes e cerrou os punhos. Sentiu tanta raiva que cogitou a possibilidade
de estourar os miolos do exibido com um disparo.
– Veio aqui para tratar de negócios ou para mostrar o quanto é rico e fodão? – o líder do
bando perguntou – Porque se for, é melhor sair fora se não quiser ver o bicho pegar.
Roberto mirou Olegário e sorriu indecifravelmente. Segurou algumas notas.
– É disso que vim falar com vocês, de grana, dinheiro de verdade – lançou as cédulas no
ar. As dezenas de notas se espalharam – Se aceitarem minha proposta, é isso que vão ter.
– Muito dinheiro? – os olhos ambiciosos de Bola se espicharam. Ele sequer reparou nas
cédulas que atingiram o chão – Teria como estimar?
Olegário se virou para o homem baixo e gordo.
– Trezentos mil para cima – falou, coçando sua volumosa barba.
– Dividido em quatro? – inquiriu Picolé, descrente.
Roberto sorriu. Havia algo em seu olhar, uma coisa que sem dúvida alguma, os homens
ali almejavam: Riqueza. Roberto era bastante persuasivo quando se utilizava da confiança que
se via constantemente em seu semblante.
– Não – respondeu. – Para cada um.
– Cada um? – Bola gritou. A frase saiu involuntariamente.
– Está falando sério? – o queixo de João caiu.
Picolé andou em direção ao contratante.
– Quanto maior a recompensa, mais perigosa é a tarefa. Ou estou errado? – ele encarou
Roberto nos olhos – O que temos que fazer? Ainda não comentou.
Todas as atenções se voltaram para o sujeito musculoso.
– Talvez terão que matar e... – Roberto franziu o cenho – também correrão o risco de
morte. A escolha é de vocês.
Deco, Bola e Picolé se mantiveram calados.
– Vamos pensar no assunto! – João gritou – Não confiamos mais em você.
– Sim. O João está certo! – Picolé concordou.

120
William R. Silva

Roberto arqueou a sobrancelha.


– Então, creio que a conversa terminou por aqui – disse, caminhando até a saída. Inter-
rompeu os passos quando alcançou João Sérgio – Pense bem! Será uma oportunidade de ouro.
Olegário o seguiu, Roberto estava prestes a sair.
– Espere! – Picolé ordenou, em voz alta.
Os dois visitantes pararam ante a porta entreaberta.
– Queremos quinhentos mil para cada um! – exigiu. Todos concordaram – queremos a
metade de adiantamento.
– Um terço de adiantamento e não se fala mais nisso – Roberto revidou. – É pegar ou lagar.
A dupla girou e observou a turma de marginais.

30

O INIMIGO OCULTO

No Quartel Secreto
(Realinópolis -MG)

A porta do acesso principal se escancarou. Um dos membros cujo nome de identificação


é Iron Balls, aterrissou os pés na divisão do ambiente secreto e percorreu o extenso corredor.
Pousando rapidamente os olhos nas janelas de cada compartimento, verificou a movimentação
de pessoas e suas atividades. Ele interrompeu o trajeto perante a sala de debates e adentrou.
Dezenas de rapazes zanzavam no setor enquanto alguns discutiam sobre temas do coti-
diano. A turma de quartelianos, notando a presença do sujeito, cessou o diálogo e começou a
reparar no jovem que acabara de chegar. Ele pressentiu uma leve intenção de zombaria pairar no
ar quando o silêncio se instalou no ambiente.
– Ei, Iron Balls! – um dos garotos gritou. Todos o olharam, o novo visitante ficou inco-
modado – Ouvi um boato sobre você hoje. Não entenda isso como falta de respeito, mas queria
que nos esclarecesse uma dúvida. Teria como nos responder?
Uma suave expressão de deboche se notou escancaradamente no semblante da maioria
dos presentes. Iron, desconfiando do objetivo do interrogatório, contraiu os lábios e assumiu um
ar de ira. Seu semblante pareceu querer estraçalhar o indagador.
– O que foi? – seu timbre soou apático – Diga logo o que quer!
– É que... – o membro hesitou, coçando a cabeça – Disseram-me que, quando você es-
tudava no ginásio, você tinha tentado humilhar um gordinho na porta da escola, mas... – sentiu
vontade de rir, entretanto, segurou o desejo na garganta – ele te meteu uma baita de uma porrada
na cara... – viu que Iron franziu a testa – Fazendo você cair no chão com a pancada perante a
escola inteira. É verdade isso, mano?

121
A Coragem

A chuva de gargalhadas foi tão intensa que faz eco no salão.


– Tinha que ser o Zio! – Iron urrou como um touro bravo– Sempre com suas brincadeiras
de mau gosto. Vai para o inferno, seu babaca! – cuspiu.
– Desculpa, cara! – Zio prosseguiu – Só queria saber se é verdade – entoaram mais risos.
– É verdade, sim – outro emendou.– E dizem as más línguas que foi um membro daqui
que nocauteou ele. Acho que foi o Max Wolf.
Expressões hilárias se avistaram por todos os lados. Iron Balls se revoltou coma zomba-
ria. Isto fez sua raiva explodir, por isso, soltou as palmas das mãos com força no tórax de Zio.
O caçoador, com a pressão do impacto, foi lançado cerca de um metro para trás. Checou o outro
se recuperando da pancada, então Iron se achegou ao segundo zombeteiro e fez seu cotovelo ir
de encontro ao ombro do referido rapaz. O mesmo gemeu de dor quando sentiu a cotovelada. O
grupo no saguão ficou em estado de choque.
– Seus babacas, esse assunto não os interessa – disse Iron, com o dedo apontado no nariz
do sujeito agredido. – Isso já faz muitos anos.
Batidas fortes e rápidas de sapatos ressoam pelo corredor, o acesso se abriu. Conde e Barão Ka-
geyama, em questão de segundos, apareceram apressados na sessão. Barão averiguou ao redor a procura
de explicação, mas ninguém lhe contou nada. Edmundo Dantes arqueou a sobrancelha, depois, berrou:
– Nobres amigos, sabem muito bem que não aceitamos desavenças e falta de respeito –
todos baixaram a cabeça. – Zio, não sei ao certo o que rolou aqui, mas tenho certeza de que você
o provocou. Acalmem-se, caso contrário, receberão o código de expulsão de sete dias.
Barão Kageyama sacudiu a cabeça, em concordância.
– E você, Iron – Dantes o encarou. – Será que ainda não aprendeu a ter autocontrole? Ignore-os!
– Eu vim aqui com a finalidade de escutar os debates – Iron se defendeu. – Mas esses
otários vieram tirar onda com a minha cara. Isso não vou aceitar.
Os dois monitores o fitaram com autoridade, causando-lhe vergonha.
– Mas está bem! – ele continuou – Peço desculpas pela minha insubordinação às regras.
Iron, irritado, deu as costas e se retirou do saguão. Caminhou determinado pelas passagens.
Viu cinco quartelianos passarem por ele, faz o gesto com a mão no peito e continuou seu ritmo.
Perambulou solitário durante um logo período. Sentiu-se parcialmente nervoso, seus olhos descon-
fiados circulam o passadiço. Finalmente chegou onde pretendia: ao lado da sala de registros. O
homem parou e observou em volta. Não havia ninguém ali, apenas câmeras. Edmundo Dantes e
Barão, os únicos presentes a terem permissão para entrar na sessão, estavam distantes.
O espião, após raciocinar por um breve instante, constatou que ambos irão demorara retornar.
Precisava despistá-los e a ajuda de Zio veio em boa hora. O membro era detestável, isso ele não
negou, mas a zombaria acabou lhe ajudando. Era a sua chance, tem poucos minutos, mas, na opinião
dele, tempo bastante para fazer o que pretende. Do bolso da blusa, tirou uma luva com marcas digi-
tais e, ligeiro, enfiou-as em seus dedos. Pressentiu um zumbido de vozes, sobressaltou-se e escondeu
as mãos dentro da vestimenta. Dois garotos surgiram transitando, sua tensão aumentou e uma gota
de suor em sua testa anunciou os primeiros sinais de seu nervosismo. Despistadamente, simulou
estar rumando para as demais entradas até perceber a dupla desaparecer. Outra vez sozinho, puxou a
manga longa da blusa e leu uma sequência de números escritos a caneta em seu antebraço.
Digitou a sequência no aparelho acoplado na porta, um barulho de bip tocou, em seguida,
ressoou uma voz digitalizada:

122
William R. Silva

– Coloque sua mão aberta no identificador digital!


Ergueu o braço e prensou a mão aberta no disco rígido interno. O leitor de impressões
escaneou as digitais da luva e a voz gravada voltou a ecoar no alto falante:
– Fuhrer, administrador mestre! – uma luz vermelha piscou, tornando-se verde – Reco-
nhecimento concluído, acesso liberado.
Seus lábios se prenderam de alegria ao ver a passagem acessível. Sem pensar, invadiu o local
e fechou a porta atrás de si. As batidas afoitas do seu coração o incentivavam ainda mais no ato.
As gotas de suor se intensificaram em sua pele. Seu estômago pareceu querer embrulhar, mas logo
passou. O tumulto interno o deixou preocupado no início, entretanto, logo conseguiu se acalmar.
Televisores e computadores, eram esses seus objetivos principais, todo o resto era irrelevante.
Ele marchou até as câmeras de monitoramento interno. Digitou os comandos e teve aces-
so a imagens dos últimos cinco minutos anteriores, viu a gravação de si mesmo na porta do setor.
Acessou as permissões e excluiu tudo.
– Pronto, agora ninguém saberá que me intrometi na área proibida – gargalhou, triunfante.
Rumou em direção a escada. Cabreiro, virou-se para os computadores de registros. Sua mão
fuçou incessantemente os bolsos de sua calça em busca do seu pen drive. O espião o conectou em uma
das entradas USB do grande gabinete. Seus dedos tremeram nos teclados. Com perícia, vasculhou o
sistema e encontrou uma pasta de arquivos online. O programa continha os dados técnicos de todos os
melhores membros quartelianos e suas informações pessoais. Inseriu o comando copiar e, depois de
segundos de espera, transferiu todos as informações para o seu hardware. Conseguindo o que desejava,
desinstalou o dispositivo, desencaixa-o e o guardou novamente. Prendeu a visão na tela do monitor e
através das câmeras de monitoração, enxergou Barão e Conde retornando à sala de registros.
– Droga! – estremeceu – Se eles me pegarem aqui, estará tudo perdido – rodopiou pela
sessão à procura de uma saída de emergência – Preciso pensar!
Os dois controladores estavam cada vez mais perto e o intruso não sabia o que fazer. Rodeou
todos os cantos com os olhos. O estado de desespero proliferou em seu sistema nervoso. Tinha que
agir depressa. A dupla já estava a cerca de cinco metros da entrada. Mais tenso que antes, vira-se
para a escada, sua boca arreganhada esbaforiu o ar de pavor. Sentiu-se bastante agitado, suas pernas
quase a vacilaram. Premeditou correr para algum pedaço escondido. Por sorte, notou uma pilha de
equipamentos obsoletos e um grande armário com peças em uma parte do departamento. Entre o
móvel e a parede, existia uma vão estreito. O melhor refúgio até o momento.
Barão Kageyama, no lado de fora, começou a digitar a sua senha de acesso, necessitava
escapar do flagrante o quanto antes, porém continuou hesitante em relação ao suposto esconderijo.
“Será que seria uma boa ideia?”, cogitou ele, bastante eufórico.
A mão direita do controlador já se preparava para ser conectada ao leitor digital. Seus
olhos se espicharam e seu estado de embaraço atingiu o limite. Não avistou janelas para outros
espaços, nem portas secretas ou intercaladas para outras partes do Quartel. A única opção era
aquele refúgio que vira antes. No exato momento em que Conde e Barão entraram no setor, o
invasor saltou ligeiro para trás do móvel, ajoelhou-se e se manteve ali.
– Poxa, mano! – Kageyama entrou, reclamando – Estou torcendo para que os administra-
dores, os outros controladores e os mestres venham amanhã. Só nós para vigiarmos isso aqui dá
um trabalho do caralho.
Conde balançou a cabeça, meio esgotado.

123
A Coragem

– É verdade, nobre confrade! – coçou a barba – É verdade.


– O bom é que a quantidade de frequentadores hoje está pouca – Kageyama comentou, checando
um dos monitores. – Se estivesse movimentado igual nos dias anteriores. Aí sim, estaríamos ferrados.
O homem de cavanhaque e cabelos na altura do pescoço observou o grande móvel. Por
meio de uma pequena aresta, os olhos de Iron se apavoram ao vê-lo mirar no seu rumo. Será que
Dantes o viu? Seu corpo se enrijeceu, como um animal acuado prestes a atacar seu predador.
– O que há? – inquiriu o outro operador.
Conde ficou calado por alguns segundos. Prosseguiu seu exame no armário de objetos.
Iron Balls fez o que pode para se manter como uma estátua, temendo ser descoberto. Seu sangue
gelou e sua respiração entrecortava.
– Que beleza! – berrou Dantes, sério – Não acredito!
O usurpador fechou os punhos com força. Se for pego, não pensará duas vezes antes de
atacá-los e fugir. O intruso olhou para frente. Cuidadoso, agarrou uma caixa com fios ligados
para usar como arma. O objeto quadrado era rígido como uma rocha.
Kageyama ficou sem compreender.
– Fala logo, cara! – insistiu – O que está acontecendo?
Conde andou em direção ao móvel. Iron já se preparava para empurrar a mobília e partir
com a caixa dura para cima dele. No entanto, desistiu ao vê-lo pegar algo na prateleira.
Dantes sorriu, animadamente.
– Veja só! – chacoalhou um caderno diante dos olhos do parceiro – Meu bloco de anotações
estava aqui o tempo todo. Pensei que o tivesse perdido na mata, naquele dia de treinamento externo.
– Porra, meu truta! – Barão se esparramou na poltrona – Pensei que fosse algo grave.
– E não é? – risos – Todo os cálculos das vendas da minha loja estão aqui. Também regis-
tro tudo no meu computador, mas acho esses caderninhos mais práticos.
O monitorador rodopiou na cadeira giratória.
– Você é uma comédia mesmo! – brincou.
O rapaz escondido mordeu os lábios. Seu corpo outrora alerta, relaxou-se.
– Estranho! – Barão saltou do assento.
– O quê? – os olhos de Dantes o seguiram – Algum problema?
Kageyama desceu a face no maior dos monitores quase batendo a testa na tela.
– O sistema diz que cinco minutos da gravação foram cortados. Dá uma lida aqui em bai-
xo. Está escrito ali no relatório de últimas atividades – ele apontou para o canto da tela.
Iron estremeceu. Aterrorizou-se com a segunda possibilidade de ser desmascarado.
Dantes e Kageyama entreolham-se confusos.
– Acalme-se! Esse sistema está precisando mesmo de reparos. Esse fim de semana a gente
dá uma consertada nisso – aconselhou Edmundo Dantes.
–Tem razão – concordou.
O intruso deu um baixo suspiro em tom de alívio.
– Parceiro!
Conde o encarou.
– O que foi?
– Fiquei sabendo que, agora pouco, uns caras trouxeram umas dez caixas de pizzas mais alguns
refrigerantes e levaram para sala de cinema – o membro estapeou a barriga e sorriu. – Está rolando um

124
William R. Silva

filme viril lá. Que tal irmos assistir e lanchar às custas daqueles manés? Topa? – sugeriu Kageyama.
Dantes deu meio sorriso.
– Boa ideia, meu nobre amigo! Vamos logo antes que acabe.
Os operadores deixaram a sala. Se o que estivesse fazendo não fosse algo ruim, o intruso com
certeza teria feito um prece em agradecimento. Iron, não se aguentando de tanta ansiedade, saiu do seu
esconderijo. Ficou na espreita até notar os dois desaparecem no corredor através da imagem das câme-
ras. Uma vez tendo oportunidade de escapar, correu até a saída. Abriu-a e, passando por debaixo da
câmera acima da entrada com a finalidade de não ser focado pela lente, fez a porta se fechar e escapou.
Muito atordoado em virtude do sufoco que passara minutos antes, o espião disparou em
direção à saída geral. Sentiu-se paranoico, uma sensação estranha, contudo, ninguém o viu. Com
os olhos atentos, quanto mais percorria o espaço, mais ansioso estava para alcançar o ponto de
retirada. Deslizou a mão no bolso, sentiu o pen drive, sorriu satisfeito. Conquistando o fim do
percurso, colocou-se no acesso principal. Pé ante pé, foi em direção a escadaria que dá para a
antiga central. Pisou um a um os degraus e parou diante do decodificador.
– Iron Balls, desconectar! – gritou, em tom de comando.
O acesso se liberou. Iron varou a porta escancara, segundos depois escutou-a fechar atrás
de si. No breu, tateou a parede e encontrou a lanterna escondida no meio dos entulhos. Sua
lanterna clareou o caminho escuro, mesmo assim, tropeçou em alguns restos de gravetos. A
noite estava bastante fria e a brisa faz seu nariz congelar. Chegou na linha férrea e caminhou nos
trilhos, indo em direção ao matagal. Lá estava sua moto com o capacete.
– Espero que o Ernesto saiba me recompensar! – ele a montou – Pois estou tendo muito
trabalho para conseguir essas informações – enfiou o pen drive no bolso.
Colocou o capacete, ligou a moto, acelerou e desapareceu na trilha.

31

A DISPUTA DE EGOS

Ponto de impacto
(No autódromo)

9 de Agosto de 2014.

O ruído produzido pela derrapagem de um carro rebaixado fez a massa de curiosos recuar.
O ranger do metal ecoou na pista quando o fundo do automotor raspou no solo. O carro chegou a
subir na divisa e quase atingiu uma tenda que comercializava bebidas. O condutor conseguiu frear.
Ele tinha se empolgado em uma manobra arriscada e por um triz não causou uma tragédia. Dionísio

125
A Coragem

olhou de relance para a multidão assustada e se conteve, indiferente. Nada que acontecesse lhe des-
pertava atenção, seu objetivo era somente um. Havia carros de inúmeros estilos, cores e modelos,
mas nenhum deles atraia tanto a atenção quanto o BMW de Roberto Tavares. Não pela qualidade e
aparência chamativa do automóvel e sim por causa do seu motorista, deseja derrotá-lo em todos os
sentidos, estava determinado a vencê-lo na disputa que irá ocorrer dentro de alguns minutos. Está
sendo dominado pela sua vontade de se vingar, sua cegueira está aos poucos impedindo sua razão
de fluir e suas emoções negativas estão assumindo o controle. Sem perceber, está se tornando um
ser tão cruel, inconsequente e egoísta quanto aqueles que lhe fizeram mal no passado.
Em torno do autódromo, dessa vez se viam mais pessoas nas arquibancadas, uma quan-
tidade bem superior à de datas anteriores. Era dia de evento e para ele seria a oportunidade de
humilhar seu algoz perante milhares de testemunhas.
Ele se encontrava, neste exato momento, de braços cruzados, encostado no seu Honda
Civic, aguardando os corredores se aproximarem. Não estava para conversa e mal reparava nas
dezenas de indivíduos que transitavam a sua volta. Todavia, sua situação isolada durou pouco.
Seus olhos se abriram, atentos, pois há uma curta distância, uma moça loira, surgindo em meio à
multidão, rumou em sua direção. A mulher desfilava como um modelo numa passarela enquanto
serpenteava entre obstáculos e pessoas.
Os olhos neutros de Dionísio iam notando Ana Júlia se aproximar. Pensamentos confusos
quiseram atrapalhar-lhe o sossego, então, afastou tais anseios do coração. Uma frieza aterrori-
zante e estranha se apossara de si naquele instante. Trocando olhares, permaneceu na mesma
posição e a loira, já perto dele, esparramou-se sobre o capô.
Ela atirou a cabeça para trás e afastou seus fios dourados da testa. Contente, se virou para
o sujeito sério. Ana apoiou as mãos na lataria e estufou o decote. Sua sensualidade quase des-
concertou Dionísio. Depois, indagou:
– Faz tempo que não te vejo na academia. Parou de malhar?
O homem examinou a circulação de pessoas na lateral da pista.
– Não – ele respondeu. – Só mudei de horário. Trabalho, faculdade e outras atividades
estão tomando meu tempo. Passei a frequentar de manhã.
– Deu para perceber que você não parou de treinar – Ana deu uma risada tímida. Ela apal-
pou-lhe os músculos braçais e sentiu a virilidade deles – é impossível manter um físico como
esse sem carregar muito peso!
Ela quis observar alguma reação aos seus estímulos, mas não viu nenhuma mudança no
rosto do homem. Parecia que suas investidas não o deixavam excitado. Aquilo a frustrava e a
fascinava simultaneamente. Quantos rapazes só faltavam lhe beijar os pés? Centenas. Por que
aquele não haveria de se curvar? Não desistiu.
– Sabe o que eu acho? – perguntou, mirando-o no olhos.
– Não... – volveu ele, reparando no BMW de seu algoz rondando a pista.
Os lábios de Ana ficaram úmidos quando passou a língua sobre eles.
– Que poderíamos nos conhecer melhor! – arredou-se para mais perto.
Ele a fitou, surpreso. Sentiu malícia na própria atitude.
– Isso foi uma indireta? – ele a provocou, risonho. Suas sobrancelhas se ergueram – Quer
que eu a chame para sair? – a moça era atraente, mas ele estava comprometido com outra. No
fundo, havia muito mais desejo de reverter as mágoas do passado do que qualquer outra coisa

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William R. Silva

em si. O seu senso moral, naquele instante, esvaía-se de seu ser. A vontade que tinha de se vin-
gar de Ana era muito maior que o amor que sentia pela namorada. Queria ver Ana Júlia sofrer,
queria tê-la em suas mãos. Nada e nem ninguém iria impedi-lo disso.
Dionísio percebeu que um Vectra prateado seguia o BMW. Seu olhar retornou para a mulher
de cabelos dourados. O cheiro da jovem a seu lado atiçou-lhe a libido. Lembrou-se do seu jura-
mento. Maldito juramento! Praguejou, em seus pensamentos. O veículo parou ao lado do seu rival.
Sua atenção, nesse instante, novamente se desviou e se centrou no homem que saía do automóvel.
Então Ana sacou o celular do bolso e deu três toques na tela. Ele esteve tão submerso em
suas preocupações e nos movimentos de Roberto que se desligou dela.
– WhatsApp – ela comentou enquanto digitava algo no aparelho. –Você tem, amore?
O competidor se limitou a encarar Ana Júlia, neutro.
– Ainda não tenho – respondeu. – Essas coisas só prestam para tomar nosso tempo.
Ela tirou os olhos da tela e observou Dionísio. Parecia perplexa, considerava alguém que
não possuísse esse aplicativo como um ser de outro planeta. Assim, perguntou:
– Está falando sério?
Dionísio a mirou, descontente. Na verdade ele tinha o aplicativo instalado em seu apa-
relho, contudo, resolveu não passar nenhum de seus contatos. Temia que ela descobrisse seus
segredos. Caso ela juntasse as informações, poderia descobrir sua verdadeira origem. Apesar
disso não fazer muita diferença, uma vez que nenhum de seus antigos colegas meliantes se
lembrava de seu nome verdadeiro.
A mulher notou que ele não gostou da pergunta, em virtude disso, silenciou-se. Dionísio
a estudou de cima abaixo e de uma hora para outra se mostrou mais receptivo. Escorrendo os
dedos na pele facial da jovem, acariciou-lhe o queixo. Ana sorriu para ele.
– Espere-me amanhã, às dezenove horas, em frente àquela lanchonete próxima à acade-
mia – Dionísio sorriu, maliciosamente. – Tudo bem assim? – uma pontada de remorso apertou-
lhe o coração. Seria aquilo uma atitude honrada? Ele a quer, mas agora não entendia se era
realmente por angustias passadas, desejo carnal ou o que quer que fosse.
Ana sentiu um agradável frio na barriga. Suas pernas tremeram naquele instante. Por
muito tempo um homem não a fazia se sentir assim.
– Sim... – ela sentiu um tom de luxúria na própria voz. Queria ser beijada ali mesmo, mas
o máximo que o galanteador fez foi lhe oferecer um sorriso – Estarei te esperando lá.
Dionísio se despediu, deu as costas e saiu andando. Ele atravessou a pista e alcançou o es-
tacionamento do lado oposto. A moça de cabelos louros ficou imóvel, vendo-o ganhar distância.
Sentiu-se nas nuvens com o convite.

João Sérgio descansou o braço direto no teto do Vectra e firmou o outro na cintura. Re-
parou nos entornos e achou meio estranho. Estava acostumado a ouvir música alta nos arredores
do autódromo, mas naquele momento só se ouvia vozes e rugido de motores.
– Tem certeza que o esquema do seu tio é coisa boa, vai rolar grana mesmo?
Roberto lançou seus olhos em duas mulheres de roupas curtas que passaram por eles.
Tornou a prestar atenção no acompanhante e respondeu:
– Pode confiar, cara. A recompensa será boa!
– Sei lá, tenho um pé atrás com você – João confessou. – Será mesmo que posso confiar?

127
A Coragem

Roberto se centrou na movimentação de pessoas e viu Dionísio emergir entre a multidão.


– Claro que pode! – respondeu. Continuou atento no homem que vinha em sua direção.
– Espero que isso seja verdade – João sussurrou.
Enquanto isso, Dionísio estava cada vez mais perto.
– Depois falamos sobre isso – Roberto respondeu, no mesmo instante em que o outro
competidor parou a sua frente.
O playboy riu para o rapaz que acabara de chegar.
– Como vai, rapaz do interior, tudo bem com você?
Dionísio mirou o segundo sujeito por um breve instante.
– Sim. Está tudo ótimo.
– Perdão, esqueci de falar... – Roberto laçou os braços em volta do pescoço do compa-
nheiro – Esse aqui é meu brother. O nome dele é João Sérgio.
Era para Dionísio ter sentido uma sensação qualquer que mesclasse algo entre ódio e
surpresa. Dessa vez, foi diferente, não sentira nada. Agora todas as peças do quebra-cabeças
estavam encaixadas. O jogo estava quase no fim. Neste momento, descobriu o quanto se modi-
ficou desde a época do colégio até os dias atuais. Passou ileso entre todos. O menino gordinho
e espancado ainda se mantinha em segredo. Nenhum deles sabia quem era ele. Agora eram
próximos e isso enchia-o de prazer e... aflições.
Ele apertou a mão de João Sérgio.
– Prazer em conhecê-lo!
– Igualmente! – João retribuiu, com um sorriso amigável.
– E aí, brother. Está a fim de uma disputa? – desafiou Roberto, já cantando vitória. A sua ma-
neira prepotente não tinha desaparecido. Mas Dionísio sentia um leve respeito vindo dele. Desde a
primeira vez que se (re)encontraram na área VIP do autódromo, recebeu um revide de sua tentativa
de zombaria e foi vencido naquela competição, Roberto passou a demonstrar-lhe certo respeito.
– Só se for agora! – respondeu Dionísio. Sentia-se determinado – É hora de esquentar os
motores – riu, discretamente.
Roberto sacudiu a cabeça, satisfeito.
– Vai ser divertido – João comentou. – Quero assistir esse duelo de camarote.

A disputa

Os holofotes atingiram seus fachos oscilantes sobre o Honda Civic logo que o carro desli-
zou na pista. Dionísio sentiu a boca escancarar de atordoamento quando viu seu rosto no grande
telão. A princípio ficou constrangido por se ver sendo exibido para a grande plateia. Passando
o estado de tensão, não mais se incomodou. Num instante, as luzes incidiram em sua cara com
tal intensidade, que suas vistas estiveram quase a se fechar. A massa humana na arquibancada
vidrada no início da competição, esperava o narrador do evento começar sua primeira entrevista.
A música que se emitia pelas enormes caixas tocava cada vez mais alto.
O competidor apertou os dedos no volante e tentou ver o fim da longa pista sinuosa que
se perdia na claridade, mas não conseguiu. Fizera outra aposta com Roberto, e agora estava se

128
William R. Silva

questionando se toda essa disputa não era infantilidade da parte dele. Desde quando sua desforra
seria saciada através de uma vitória automobilística? Esteve tão cego pelo objetivo de derrotar o
antigo inimigo que perdera a noção de maturidade.
O som pesado de música se interrompeu. O narrador, no meio da via, obrigou o concor-
rente a se adiantar. O motorista meteu o pé no acelerador, deu um arranco e fez o veículo parar a
meio metro. O locutor então circulou o Honda e parou do lado da janela do condutor. O sujeito
na direção soltou os braços para fora. Dionísio mais uma vez se achou embaraçado com as luzes
e câmeras que não cessavam de destacar seu rosto.
O narrador primeiro reparou em uma das câmeras e, em seguida, varreu a plateia alvoro-
çada com os olhos. Terminada sua averiguação, sua voz berrou no microfone:
– Boa noite, minha gente! É hora de ver pneus cantarem no asfalto –ergueu o braço livre
no ar quando a volumosa massa de espectadores começou a gritar e assobiar. – Essas corridas
de hoje prometem. Nosso primeiro corredor do dia já está se aquecendo. Diga para galera ouvir,
qual é o seu nome, meu amigo?
Quase fazendo o microfone encostar na boca do concorrente, ficou na expectativa de sua
resposta. O rapaz no volante, esquadrinhou o público, sentindo-se confiante.
– Meu nome é Di... – engasgou. O público ficou na espera – Meu chamo Augusto.
– Então vamos lá, Augusto! – o locutor acenou e se afastou do automóvel – Acionem os
cronômetros! – gritou.
Os números na tela começaram a se modificar rapidamente. Dionísio estudou o movimento
nas arquibancadas e tentou precisar a quantidade de pessoas que se encontrava ali. Era impossível.
Tornou a se concentrar no cronômetro, o painel zerou. Foi nesse segundo que o locutor deu o sinal:
– É hora do show!
Suas mãos e pés pareciam funcionar por vontade própria, seu raciocínio esteve tão rápido
quanto suas manobras. O estrondar de motor e o ecoar de pneus inflamando no asfalto o fez se
sentir imbatível. Dionísio pisou fundo e trocou a marcha. Em razão disso, seu carro escorregou
na pista em ziguezague para delírio de todos. Impulsionado pelos gritos eufóricos, afundou o pé
no acelerador e, por um triz, não se arrebentou com o pequeno muro lateral. Um suspiro coletivo
ressoou da arquibancada. Superado o susto, o estado de agitação aumentou gradativamente, con-
tudo; o motorista pouco se importou com o perigo que acabara de escapar. Para a alegria de todos,
inclusive dele mesmo, o carro seguia sem resistência no trajeto. Nenhum ruído, naquele instante
se ouviu e o estado de tensão dominou o público. Uma curva brotou adiante e o corredor reduziu e
elaborou sua conversão para a direita. Finalmente enxergou o fim da pista, aumentou a velocidade.
Chegando no ponto indicado, seu carro deu um giro de trezentos e sessenta graus, depois outro e
parou na pista. Inalou o odor de borracha queimada como se fosse o néctar dos deuses.
A multidão se exaltou. Uma sucessão de aplausos disparou por todos os cantos. O ego de
Dionísio quase atingiu seu limite.
Os braços de Ana Júlia se levantaram. Ela estava junto a um grupo de garotas, mas o
competidor não a viu. Se bem que era humanamente impossível ser avistada no meio de tantos
indivíduos alvoroçados.
Roberto e João Sérgio, encostados no BMW que aguardava ser convocado para a corrida
seguinte, também prestaram suas salvas palmas.
– Seu amigo mandou bem! – João Sérgio comentou. Outros corredores estavam atrás

129
A Coragem

deles, ávidos por também participar do evento – Ele sabe mesmo lidar com as quatro rodas.
– Ele pode até ser bom – Roberto se virou para o comparsa –, mas não tanto quanto eu –
ele escancarou a porta do seu possante e saltou para dentro. – Agora é minha vez de mostrar a
todos do que eu sou capaz.
João desatou a rir.
– Esses caras parecem criança – cruzou os braços e seguiu o BMW se mover com os olhos.

A figura imponente do BMW invadindo a pista já era o suficiente para ganhar a atenção
dos presentes. O extenso automóvel, com a forte claridade dos holofotes, tornava-se ainda mais
espetacular. Roberto já perdera uma vez para o oponente, dessa vez dará tudo de si. Há tempos
desejava uma revanche e essa era a sua oportunidade. Seu veículo é um dos mais caros e sempre
adorou ter toda a atenção para si.
O locutor ajeitou seu microfone, mirou o painel e se dirigiu ao novo concorrente.
– Meu nome é Roberto! – o segundo competidor da noite falou, em voz alta.
O homem com o microfone acenou e as rodas cromadas imediatamente escorregaram no
asfalto. O cronômetro prosseguia com a contagem. O motorista correu o trecho e todos urraram
de emoção quando um movimento brusco no volante obrigou o automóvel a tomar a curva.
Grande parte dos presentes se levantou com as mãos sobre a boca ao ver o corredor, com bas-
tante perícia, correr rente ao extenso muro de concreto e continuar sem nenhum arranhão. Ante
o enorme grupo de espectadores eufóricos, imprimiu mais velocidade e partiu com afinco em
direção ao fim do percurso. Em questão de segundos, o BMW girou seus trezentos e sessenta,
mais outra rotação completa e finalizou com mais meia volta.
Depois do espetáculo, Roberto bateu com força a mão esquerda na porta ao sentir a vibração fre-
nética da centena de pessoas que assistiram suas manobras. Não havia dúvida de que se consagrou como
o até então vencedor do duelo. O locutor dava a impressão de ter enlouquecido de tanto berrar, para
muitos faltava pouco para ficarem roucos de tanta gritaria. A massa humana desabou em aplausos. Ro-
berto saiu de sua máquina e acenou para o público. O sorriso que esboçou quase não coube em seu rosto.
O gosto amargo da derrota rasgou na garganta de Dionísio. Teve a impressão de que
aquela disputa infantil o aborrecera mais do que deveria. Sem despedidas, fez o carro avançar
em alta velocidade e atravessar a saída.

32

DOCE VINGAÇA

Mesas com seus forros xadrezes vermelho e branco, o balcão, as cadeiras, o assoalho,
tudo era de madeira. A fraca penumbra e a claridade laranja que jorrava dos lustres davam a
sensação de estarem todos num jantar de luz e velas. Clientes se deliciavam com os sabores

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William R. Silva

da casa, a impressão que os garçons tinham quando prestavam-lhes seus serviços era a de
que cada grupo em sua mesa vivia em seu universo próprio. Todos no recinto tagarelavam
e desatavam a rir, sem se preocuparem uns com os outros. Ana piscou os olhos e conseguiu
enxergar apenas taças, chopes e travessas de pizzas saltarem de mesa em mesa. Não era bem
delírio, só suas vistas que se embaralharam por causa dos primeiros efeitos das quatro taças
de vinho que consumiu. Embora não estivesse plenamente embriagada, sempre fora fraca
ante bebidas alcoólicas. Ela deixou a taça sobre a mesa e tombou suas cinco pulseiras de
brilhantes no antebraço assim que seus delicados dedos agarraram o garfo. O talher fincou
no pedaço de pizza em cima do prato e a faca cortou uma porção da massa. Linhas de queijo
derretido, junto ao alimento, alcançaram-lhe os dentes com a elevação de seus braços. Até o
modo como ela mastigava era afrodisíaco. Ana Júlia despertava a libido de qualquer homem
mesmo sem intenção. Coisas simples como bebericar um vinho ou limpar os lábios com
guardanapo a deixavam mais bela. Dionísio pensou que seria capaz de fugir daquela energia
feminina que o envolvia como uma teia de aranha. Quando deu por si, não pensavam mais em
outra coisa, a não ser no fato de tê-la em sua cama.
Ela novamente apanhou a taça e sorveu-lhe o conteúdo. Sedutoramente, prosseguiu a mas-
tigar outra fatia de pizza, pousando seus avassaladores olhos esverdeados em cima de Dionísio. O
homem se posicionou a sua frente, mas ela o sentia com mais intensidade que nunca. Tamanha era
a conexão entre ambos, que conseguiam sentir a respiração um do outro.
– O colégio São Magno. Estudou lá, não? – Dionísio quis saber. Devorando-a com os olhos.
– Sim, amore! – Ana tirou um dos lenços brancos do porta-guardanapos e limpou a boca
– Você já me perguntou isso, não?
– Eu estudei naquele colégio também. Você disse que se lembrava de mim de algum
lugar. Tem certeza que não é porque já nos vimos lá?
Ana franziu as finas sobrancelhas e examinou todos os detalhes da fisionomia de Dioní-
sio. Então, sentiu um sorriso fugir-lhe dos lábios e disse:
– Amore, como é que iria me esquecer de um homem como você? É claro que se tivesse
te conhecido naquele colégio, provavelmente teria lembrado.
Dionísio corrigiu a gola da camisa social e manejou o garfo e a faca. Arrancou uma fatia
de pizza com o talher e a devorou. Assim que engoliu o alimento, tornou a falar:
– Mas tem certeza que não se lembra de nada? – seus olhos a penetraram na alma.
Ana Júlia estremeceu – Não se recorda de nada grave naquele colégio? Algo que você fez,
se arrependeu, ou algo assim? – também estava meio bêbado. Faltava muito para Dionísio
perder o controle, mas queria ter certeza de que ela não nutria nenhum arrependimento real
pelo que havia feito.
– Você às vezes me dá medo, sabia? – ela bebericou mais do líquido vermelho escuro.
Seus olhos se ergueram por cima da taça, sorriu involuntariamente. Mesmo que não planejasse,
seus sinais de contentamento sempre estampavam em seu rosto rosado – Mas eu adoro isso. O
medo me excita!
Dionísio arrastou a cadeira e se achegou mais perto dela.
– Ainda não respondeu minha pergunta.
Ana Júlia se inclinou até se tornarem mais íntimos.
– Amore, por que você quer tanto saber da minha vida naquele colégio chinfrim? Não

131
A Coragem

vamos perder a magia desse momento. Essa noite está sendo muito boa – ela massageou as
pernas de Dionísio por debaixo do forro xadrez da mesa. – E olha que a noire ainda nem
começou...
As pupilas do homem ficaram imóveis, um rápido flashback povoou seus pensamentos.
De relance, viu a imagem da jovem aluna recebendo sua carta de amor no corredor da escola.
Dessa vez era verdade, não havia insinuações, palavras mentirosas e nem ciladas no parque
ecológico. A atração que ela sentia por ele era verdadeira, podia senti-la em seu olhar. Mal
podia acreditar, finalmente Ana Júlia irá pagar pelo sofrimento que lhe causou. De repente,
o triunfo se transformou em tormento. Sentiu uma mão imaginária apertar-lhe o coração.
Novamente levou uma pancada na consciência. Uma voz ordenava para que ele prosseguisse
com o plano, outra insistia para que recuasse. Dionísio recuperou a imagem de Átila e do
padre Jerônimo. Ambos o obrigando a fazer a promessa meses antes de ir embora da casa do
pai. Prometera que não iria, em hipótese alguma, se vingar daqueles que o maltrataram. Mas...
não a iria cumprir.
– Gostou da pizzaria? – quis saber Ana Júlia – Venho sempre aqui com minhas amigas!
De súbito, ele retornou para o momento presente.
– Sim. Muito luxuosa.
– Então quer dizer que você morou aqui durante a adolescência. E depois se mudou para
o interior de minas. É isso mesmo ou entendi errado? – ela perguntou. Agora seus dedos desli-
zavam sobre a barriga de Dionísio.
– Exatamente – volveu ele, derramando mais vinho em sua taça.
A linda mulher o mirou por alguns segundos. Sua sedutora face rosada exalava desejo.
– Guto! – sentiu-se envergonhada – Posso te chamar assim? – sorriu – É abreviação de
Augusto, posso?
– Sim. Faça como quiser... – ele respondeu. O vinho desceu mais agradável em sua garganta.
A mulher tocou no rosto masculino. Gostou de sentir as penugens de barba no queixo dele.
– Gostei muito de te conhecer... – seu hálito quente e embriagante soprou nas narinas de
Dionísio – Muito mesmo!
– Igualmente! – não a encarou quando respondeu. Ele fez uma sinal de braço, convocando
o garçom até sua mesa.
Quando o viu, o garçom então caminhou, estacou perto do casal e indagou:
– Sim, senhor!
O homem engoliu o resto do vinho e passou o guardanapo em volta do queixo.
– A conta, por favor!
Ele recebeu a anotação, tirou a quantia da carteira e pagou a conta. No momento em que
o funcionário da pizzaria se afastou, segurou a mão de Ana Júlia e disse:
– É hora de ir embora.
A visão de Ana outra vez se embaralhou e se estreitou em poucos segundos. Ele a ergueu
da mesa e saíram de mãos dadas. Sentiu um prazer sádico enquanto a conduzia. Ganharam a rua
e entraram no Honda estacionado na fachada do estabelecimento.
A moça se esparramou no banco do carona. Seus seios pareciam mais fartos que nunca.
Ela encarou o motorista de modo provocante e perguntou:
– Onde vai me levar?

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William R. Silva

O carro se pôs a trafegar pela via urbana.


– Querendo bancar a inocente comigo? – o motorista lançou-lhe um olhar oblíquo – Você
não é nenhuma donzela inocente. Sabe muito bem onde estamos indo!
Ana atirou a cabeça para trás e riu alto.
– Hum... – olhou para ele e mordeu a ponta do dedo mindinho – Estou adorando isso!
Se não tivesse se distraído, Dionísio poderia ter dito qualquer coisa. Por ter se recordado
do dia em que viu Ana pela primeira vez, desligou-se totalmente da conversa.

Primeiro dia de aula


(Fevereiro de 2004)

Cochichos, risos e deboches ressoaram quando a dupla bizarra passou pela fileira inacabá-
vel de estudantes. Dionísio ficou para trás e seu amigo saiu correndo. Os alunos abriram espaço
para que o menino gordinho conseguisse passar.
Túlio com a coluna parcialmente envergada por causa do peso da mochila estacou diante
da porta de uma das salas e ergueu sua carteirinha diante dos olhos.
– Duzentos e um A. É essa a nossa sala.
Dionísio avançou entre o aglomerado de alunos e gritou de longe:
– Ei, Túlio, me espera! – estava arfando – Espera aí, cara! Para que a pressa?
Túlio entrou, estava ansioso demais para esperar o colega retardatário. O adolescente de
bochechas grandes viu que uns poucos meninos insistiam em rir dele, então baixou os olhos e
continuou a andar. Ia apressando enquanto ajeitava a mochila nas costas. Com muito esforço,
conseguiu chegar onde queria. Adentrou na classe e reparou na dezena de alunos inquietos.
Prestou atenção numa turma de meninas com um estojo de maquiagem aberto sobre a carteira,
conversando enquanto erguiam batons e pincéis, dois rapazes rindo num canto vendo algo numa
revista, outros fazendo amizade entre si e a maioria saracoteando pelo local de estudos. Rodo-
piou à procura de Túlio, mas não o encontrou.
O estudante desengonçado seguiu a procurar o colega, conseguiu vê-lo sentando numa
mesa próxima a porta. Quando ia partir em direção ao amigo, seu queixo caiu e seus olhos quase
saltaram das órbitas. Uma garota desejando passar, parou defronte para ele. Era a moça mais
linda que ele já vira em todos os seus tristes dezesseis anos de vida. Sua altura era de aproxima-
damente um metro e cinquenta, o rosto era bonito e simétrico, seus olhos lembravam esmeraldas
e os cabelos longos e loiros brilhavam como cobre.
A formosa aluna se sentiu incomodada.
– Licença, por favor, me deixa passar! – ela pediu com um tom áspero.
Ele se arredou para o canto, empurrando acidentalmente uma mesa com a pressão do ab-
dômen. Liberou o espaço e viu a moça se locomover ao seu lado. Por um breve momento sonhou
acordado com aquela beldade que acabara de apreciar. A estudante se afastou, mas o perfume
dela ainda pairava no ar. Dionísio podia senti-lo, o cheiro penetrou em suas narinas causando-
lhe uma maravilhosa sensação de prazer. Observou-a, notou que ela se divertia com um grupo
de garotas num canto perto da grande mesa usada pelos professores.

133
A Coragem

– Dio... Dio! – Túlio chamou, sacudindo os finos braços – Estou aqui, vem sentar aqui!
Ele tornou a reparar a adolescente, admirou-a pela última vez e foi para perto de Túlio.

– Ei! –Ana Júlia o invocou – Percebi que você se distraiu. Estava pensando em alguém?
O homem acionou a seta, fez uma conversão.
– Não estava pensando em nada!
– Está bem! – ela ajeitou sua franja – Vou fingir que acredito.
O condutor parou o carro numa calçada deserta e contemplou o corpo da passageira es-
parramado no banco.
– Você não imagina o quanto esse encontro está sendo gratificante para mim – Dionísio
assumiu um ar extremamente malicioso quando falou. Ele levou o dedo indicador sobre o queixo
de Ana, depois o deslizou até o decote – Ele será inesquecível, pode acreditar.
A mulher suspirou. Dionísio alcançou-lhe os lábios e começou a beijá-la. Segundos
depois, eles riram um para o outro. Voltou a guiar o veículo e atravessou a via. Acelerado,
girou o volante para a direita, deixando o carro estacionado em frente a um motel. Ele nova-
mente se aproximou.
– Vamos para um lugar mais à vontade, o que você acha? – sugeriu Dionísio, cujos lábios
ruçavam na orelha da jovem rendida.
– Sim... – a mulher em seus braços sussurrou – Leve-me para onde você quiser.
O Honda Civic deu meia volta e entrou na garagem do motel.

33

PASSIONAL

Seis projéteis rolaram por cima da peça de mármore, tilintando na pedra até atritarem
uns nos outros e se encontrarem inertes. João Sérgio deitou a palma sobre a superfície e a
deslizou sobre o plano liso. Recolheu algumas das balas de revólver fechando-as sobre o
punho. Rangendo os dentes de ódio, tornou a soltá-las na mesa, provocando uma sessão de
ruídos das munições em contato com a pedra. Baixou a cabeça, pensativo. Outra vez apa-
nhou os seis projéteis e os encaixou no tambor. Soltou o calibre trinta e oito sobre o colo,
enfiou a mão no bolso, arrancou uma pequena sacola e a abriu. Uma minúscula montanha de
pó branco surgiu em cima da mesinha ao lado da cama e a nota de dez foi enrolada. O mon-
te, graças à seu esforço manual, transformou-se em uma linha branca de aproximadamente
vinte centímetros. Com o canudo improvisado, João sugou, numa ligeira aspiração, toda a
substância para dentro do pulmão. Soltou o corpo para cima da cama e cerrou os olhos na
potente luz da lâmpada.
– Maria do Rosário... – suspirou. Ergueu a arma diante da claridade e ficou a admirar o

134
William R. Silva

brilho intenso do metal – Por que não consigo te esquecer?


Estirado sobre o confortável colchão, descansou o perigoso objeto de metal sobre o
peito. Com as pupilas imóveis, começou a pensar sobre um dos momentos mais felizes de
sua adolescência.

Encontros no parque
(Setembro de 2005)

Roberto Tavares e João Sérgio se achavam assentados no banco do parque ecológico


como combinado. O dia estava ensolarado e a sombra da árvore projetada sobre a dupla trazia-
lhes uma agradável sensação. João já estava cansando de esperar, por isso retirou uma bucha
de maconha do bolso. Tocou no zíper da mochila e a abriu. A procura de papel, encontrou uma
folha de caderno. Mas quando planejava fabricar seu fumo, de súbito, presenciou o amigo puxar
a droga de seus dedos e a arremessar para dentro de sua bolsa aberta.
João o encarou, com uma expressão de descontentamento.
– O que foi, cara? – o estudante estranhou – Vai me dizer que não curte mais uma erva?
Conta outra.
Roberto franziu o cenho para ele.
– Brother, esqueceu que a Maria do Rosário é metida a santinha, filha de evangélicos? –
advertiu – Todo mundo sabe que ela é a fim de você, mas se ela sentir o cheiro da erva entre seus
dentes, não vai conseguir nada hoje.
– É verdade, Beto! – o adolescente soltou um tapa na própria testa – Você tem razão –
João fechou a mochila escolar e sorriu. – Cara do céu! Você não sabe o quanto eu sou louco para
ver aquele corpinho despido na minha frente.
– Sei não! – o amigo falou – A Ana Júlia disse que ela quer se manter virgem até o dia do
seu casamento. Acredita nisso? Isso só pode ser piada! – ironizou.
João Sérgio deu um pulo do banco e encostou a mão esquerda num tronco.
– É por isso mesmo que, a cada dia que passa, eu fico mais louco por causa dessa mina
– levantou os olhos e viu alguns pássaros voando. – Sou até capaz de ir na casa daquele gordo
idiota e pedir desculpas por ter espancado ele.
Roberto disparou uma gargalhada, fazendo-a ecoar pela área verde.
– Está apaixonado mesmo, hein? Quem diria!

Maria do Rosário corria hesitante atrás da amiga. Nervosa, enrolava os dedos nos cachos
e acertava a gola do uniforme escolar. À sua frente, Ana Júlia se adiantava apressada pelo trajeto
gramado. Na proporção em que a adolescente de cabelos dourados percorria o trecho e enfiava-
se na fileira de árvores, Maria se encontrava cada vez mais indecisa em segui-la. Percebendo que
Ana se afastava em meio à paisagem natural, foi pisoteando a grama lentamente até que cessou
os passos. Observou de longe a colega de classe ganhar caminho.
Ana se viu sozinha, olhou para trás. Revirou os olhos à procura da companheira.
– Mari, vem logo! – gritou, assim que a viu distante – Eles já estão aqui. Olhe lá embaixo

135
A Coragem

– apontou para dois rapazes, um no banco de pedra e outro apoiado numa árvore. –Eles já estão
nos esperando.
Maria moveu o supercílios e mordeu os lábios apreensiva. Ela inspirou fundo e soltou o ar.
– Meu querido pai do céu! – exclamou – O que estou fazendo aqui?
Contrariou a ordem de seus pais, e isso a deixava insuportavelmente incomodada. Sen-
do movida pela emoção e a pressão da amiga, correu e alcançou a colega de classe. Parou
perto de Ana Júlia e as duas seguiram juntas. Finalmente chegaram no local onde a dupla
as aguardava. Não tendo coragem de encarar João Sérgio, manteve-se inerte com os dedos
entrelaçados.
Roberto também saltou do banco.
– E aí, meninas? – saudou – Tudo bem como vocês?
– Tudo ótimo, amore! – Ana respondeu. Ela deu alguns passos e beijou Roberto na ponta
dos lábios.
O peso na consciência deixou Maria sem voz.
– Vem, Mari! – Ana a segurou pelo pulso e a trouxe para mais perto. Maria pareceu se
arrastar – Agora que estamos aqui, vamos aproveitar! – riu alto.
Ela conduziu a amiga até João Sério. Maria baixou os olhos para não encará-lo.
– Amore, é só fingir que não estamos aqui – Ana insistiu.
O problema não eram eles, o parque e nada a sua volta. Era ela mesma. Seus valores,
tudo o que ela jurava seguir. Se pelo menos o rapaz fosse um sujeito honesto. Ele era um garoto
ruim, que adora fazer maldades e ainda consumia drogas ilícitas. Nunca seria o marido que seus
pais sonharam. Mas, então, por que se sentia tão atraída por ele? Ficou perturbada. Olhou-o nos
olhos, seu coração palpitou.
Ana notou os braços do namorado a envolverem pela cintura. Sentiu um hálito quente
soprando em seus ouvidos. Era os lábios do rapaz querendo lhe dizer algo.
– Por que não saímos e deixamos os dois a sós? – Roberto falou em voz baixa.
Ana fez que sim com a cabeça.
– Eu e o beto vamos dar uma volta por aí – Ana avisou. Viu que Maria espichou os olhos
quando a ouviu, como se estivesse a suplicar para que ela ficasse – Juízo vocês dois, hein! Ou
melhor, esqueça essa coisa de juízo! – gargalhou.
O casal saiu a caminhar até que desapareceu, deixando Maria do Rosário e o estudante a
mercê de seus próprios desejos. Sozinhos, trocaram olhares, o corpo de ambos entrou em cha-
mas. O rapaz deu três passos e estacou diante da aluna.
– Por que está com medo? – indagou de forma mansa, deslizando os dedos em torno dos
cabelos da jovem.
Ela pressionou os lábios.
– Você é uma pessoa ruim – disse ela, mas sem se desvencilhar das caricias. – Agiu como
um covarde e nem pediu desculpas àquele menino que vocês maltrataram.
João franziu o cenho e respondeu educadamente:
– Nem parece mais aquela garota corajosa que, um tempo atrás, desafiou a mim e meus
amigos lá no depósito do campo de futebol – ele disparou a rir. – Está tímida agora, é? Pensei
que não tivesse medo de nada.
Ela ergueu as sobrancelhas fazendo transparecer seu lindo rosto no feixe de luz solar.

136
William R. Silva

Segurou um longo fio de cabelo que atrapalhava-lhe a visão e o conduziu até atrás da orelha
esquerda. As mãos do rapaz escorregaram em sua face morena.
– Não tenho medo de você, não – Maria pronunciou. – Nunca tive... – suspirou, aflita –
Não quero é decepcionar meus pais.
– E não vai, não estamos fazendo nada de errado. Estamos? – ele perguntou.
Maria pensou.
– Acho que não... – baixou os olhos – Mas você precisa mudar, só assim poderemos ficar
juntos. Não posso me envolver com uma garoto que só faz maldades.
O estudante levou o braço até as mãos da garota e uniu seus dedos nos dela. Então decla-
rou o que há tempos desejava dizer:
– Gosto muito de você... muito mesmo!
Maria o mirou, radiante. Completamente emocionada, sentiu seu queixo ser tocado por
João Sérgio. Ela sorriu, fazendo sua covinha surgir.
– Se me ama... – prosseguiu – Então pare com essas maldades, deixe de fumar essa por-
caria que eu sei que vocês fumam! Eu quero que você se torne um homem bom. Mude por mim!
– Eu mudo... – os olhos de João a fitaram com fervor – Faço o que você quiser, prometo
que não vou humilhar aquele seu amigo magricela e mais ninguém no colégio. Vou parar de
fumar essa droga e ainda dou um jeito de pedir desculpas àquele menino gordinho que ajudei a
espancar. Está bom assim?
Os dois se abraçaram com firmeza.
– Que bom! – ela sussurrou nos braços do amado – Você não sabe o quanto sonho com
isso! – o enlace foi ainda mais forte.
Outra vez ficaram paralisados, cruzando olhares sinceros. O rapaz, sentindo-a aberta para
sua investida, agarrou-a com firmeza e lhe deu um beijo.

Moveu-se de um lado para outro na cama, está sem paciência para dormir.
– Ela me amava. Ela queria ficar comigo – sua cabeça latejava de ódio. – Por que ela não
me quer mais, por quê?
Ergueu-se, pegou o controle remoto e ligou a TV.
– Quem era aquele cara? – sua sobrancelha franziu. Seus dedos alcançaram o revólver –
Quem era aquele desgraçado?
Enquanto assistia a um filme, outra lembrança tornou a perturbá-lo.

Próximo à residência de Maria do Rosário


(Um dia antes)

A brisa noturna produzia um agradável frescor na pele, as vias estavam calmas, os carros que
brotavam no asfalto trafegavam sem pressa. João Sérgio deslocava o Vectra pelas ruas do extenso
bairro de classe média. Ele estava distraído como se estivesse com os pensamentos presos em outra
dimensão. Picolé, a seu lado, direcionava o cigarro até os lábios, sugava a fumaça e a soltava para
fora do carro enquanto Deco, no banco de trás, examinava o movimento pelo vidro.

137
A Coragem

O passageiro no banco do carona, pressionou o dedo indicador na tela do display e aumen-


tou um pouco o volume da música de hip hop que tocava nos alto-falantes.
– Mano! – Picolé chamou – Você está nos levando para onde? Não é bom ficarmos cir-
culando com essa carro pela cidade. Sabe bem que o usamos para nossas paradas. Sabia que os
cana poderia nos reconhecer por causa dele?
João Sérgio soltou uma das mãos do volante, com o pé na embreagem mudou a marcha.
– Sei disso – o motorista respondeu. – Só vou entrar naquela rua ali. Prometo que vai ser rápido.
Picolé deu um último trago e lançou o toco de cigarro fora. Denotou descontentamento,
mas nada disse.
– Ele vai na casa da ex-namoradinha dele, tentar vê-la– caçoou Deco. – Semana passada
fez o mesmo.
O condutor, pelo retrovisor, mirou-o com olhos raivosos. Os ocupantes desataram a rir.
– O Roberto já te ligou? – Picolé mudou de assunto – Disse que ia rolar muita grana, mas
até hoje não disse nada. Por quê?
– Espera um pouco, cara! – João Sérgio falou – Ele me garantiu que assim que puder, vai
nos contatar – virou e entrou na rua seguinte. – É só ter paciên...
O homem no volante, com grosseria, afundou o pé no freio. O pneu deslizou com rispidez,
fazendo os passageiros ricochetearem nos assentos. Os dois ocupantes arregalaram os olhos.
– O que aconteceu? – Deco berrou.
Sentindo a ira crescer junto aos batimentos acelerados de seu coração, João Sérgio enxer-
gou um carro parado na entrada da casa de sua amada. Os demais passageiros também observa-
ram o mesmo que ele.
O homem ficou estupefato quando viu Maria sair do Honda e, logo depois, o dono do
carro ir atrás dela. João em relação a ela não era mais namorado, nem amigo... mais nada.
No entanto, sentiu-se traído. O rapaz esbelto a acompanhou até a porta da residência. Deco e
Picolé não sabiam se riam ou se tentavam consolar o sujeito desafortunado. O casal se beijou
apaixonadamente no mesmo instante em que o motorista do Vectra, rosnando como um leão
irado, esmurrou o volante. Os anos na prisão passaram diante de seus olhos, como se fossem
páginas de um livro queimado. Seus sonhos e esperanças se quebraram como um copo de
vidro se espatifando no chão.
– Calma, porra! – Picolé esbravejou – O volante não tem culpa de sua mina estar com outro.
– É, mano! – Deco falou – Parece que tem um galo ciscando no seu terreiro – um sorriso
tímido escapou de seus lábios.
Os punhos de João Sérgio se cerraram, mas ele se manteve firme.

Segurou a arma e revirou por cima cama. Acompanhava o filme na televisão com
um olhar mórbido. Estava com ódio, mas era um sentimento diferente, daquele que jamais
presenciara antes. Queria adormecer, mas nada que fizesse deixaria sua cabeça leve. O que
sentia o perturbava. Era a destruidora sensação da paixão frustrada que corroía seu organismo
como um vírus nocivo.

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William R. Silva

34

O DOSSIÊ

12 de Setembro de 2014.

Com o corpo reto e os ombros elevados, Roberto revezava os halteres. Seus cotovelos encon-
travam-se imóveis, os antebraços eram elevados um após outro no movimento sincronizado de subir
e descer pesos. O suor que ensopou parte de sua camiseta regata acabou por refrescar-lhe o tórax es-
tufado. Nada mais que o som de seus urros poderia ser ouvido dentro do local. Esse é um dos lugares
que mais gosta na casa e nas suas horas de treino odeia ser interrompido. Desde adolescente, sempre
detestou ter de dividir equipamentos e anilhas com outros frequentadores, por isso, há pouco mais
de seis anos, resolveu construir uma mini academia dentro do enorme terreno da própria residência.
Quase ninguém ousava interromper seu momento de paz, nem mesmo seus pais, a não ser nos casos
de emergência. O único indivíduo cuja presença era sempre solicitada e bem vinda era o personal
trainer que o visita uma vez por semana para lhe passar as devidas orientações.
O chão, o teto e as paredes eram constituídos de madeira. Oito janelas, duas em cada uma
das quatro paredes, davam vazão aos raios solares e arejavam o ambiente. O saco de box pendia
intacto no centro da sala, uma esteira se posicionava na entrada, anilhas podiam ser vistas nos
quatro cantos, organizadas em cima do extenso carpete de borracha que cobria todo o assoalho.
Barras, pesos e uma boa variedade de equipamentos se encontravam em pontos estratégicos
do cômodo. Quatro espelhos foram fixados em cada uma das paredes para que o proprietário
pudesse ver seu reflexo em qualquer uma das localizações da sala.
Sua testa se inundava com o líquido corporal que era produzido pela sua transpiração.
Mas não se importava com o suor quente que escorria, a alegria maior era sentir seus músculos
se desenvolverem. Palmas das mãos para cima, os punhos retos se cerravam fortemente para
manter firmes os pesos. Seus olhos estavam penetrados em si mesmo. Ao levantar os halteres,
expirava e quando os arriava, inspirava o ar de volta. Assim foi seguindo seu treino até que o
confortável silêncio foi quebrado por um irritante ruído continuo. Era o telefone fixo em cima
de uma mesa que começou a chamar. A toada produzida pelo aparelho mais se assemelhava a
um tilintar de dezenas de moedas sendo chacoalhadas dentro de uma lata.
Ele ergueu os halteres pela última vez e rugiu no segundo em que os soltou no piso, sentiu
o baque das circunferências de ferro quando bateram na madeira resistente. No meio do percurso
esticou o braço e apanhou uma toalha. Já perto telefone, sacou o aparelho e levou o fone até o ouvido.
– O que você quer? – perguntou. Esfregou a toalha no rosto e depois a passou em torno
do peitoral visando retirar o suor.
– Senhor, tem um rapaz aqui na sala o aguardando para conversar – o empregado na outra
linha avisou. – O nome dele é Michael.

139
A Coragem

O homem de músculos atrofiados rosnou e bateu o fone no gancho com agressividade.


Sentiu outra gota de suor escorrer de seus cabelos ensopados e deslizar sobre o nariz.
– O que esse imbecil está fazendo aqui?
Saiu do retângulo e começou a andar. Sentiu-se nervoso por ter sido interrompido, mas
pareceu que sua raiva se intensificou ainda mais quando viu Rosane indo em sua direção portan-
do uma garrafa térmica. A irmã adotiva o alcançou e estendeu a garrafa para ele.
– Vi que não tinha água para você beber – a menina sorriu –, então resolvi trazer um
pouco. Está bem gelada.
O homem franziu a testa e lançou-lhe um olhar de menosprezo. A adolescente conteve a
tristeza que sentiu interiormente naquele momento e notou o vulto do braço de Roberto passar
diante de seu rosto e arrancar com violência a garrafa de suas mãos. Desprovido de qualquer
cortesia, destampou o recipiente, levou o bico até a boca e ingeriu um bocado do seu conteúdo.
A água gélida surtia um efeito prazeroso conforme corria em sua garganta. Seus passos continu-
aram, ignorando a jovem por completo.
– Eu te amo, irmão! – a menina gritou. Seu tom de voz mesclou agonia, esperança e temor.
Roberto rangeu os dentes e retesou.
– Você não é minha irmã – devolveu, de costas. – Não tem o sangue da família correndo
em suas veias. É e sempre será um estranha para mim.
Ela correu até o irmão e se virou para ele. Seus olhos castanhos claros fitaram Roberto
decididamente na expectativa de lhe extrair alguma demonstração de afeição. Rosane removeu
um pouco de seus cabelos ruivos de cima das sobrancelhas e o encarou timidamente. Suas sardas
ficaram ainda mais notáveis.
– Por que me odeia tanto? – ela exigiu saber – O que fiz de tão mal assim para você?
Os olhos de Roberto a encararam com frieza.
– Nasceu! Esse foi o seu maior erro – desviou-se e continuou a andar.
– Posso não ter esse maldito sangue de vocês – Rosane berrou enquanto o observava se
distanciar. Ele não a viu de frente, mas pode facilmente notar o ar de aflição que a voz dela tenta-
va em vão esconder –Mas seus pais me amam e me aceitam da mesma forma que aceitam você.
E nada nesse mundo vai mudar isso. Entendeu? – aumentou o tom – Eles me amam!
– Maldito sangue? Como ousa falar assim do legado da minha família? – volveu o ho-
mem, enfurecido – Nossa linhagem tem mais de duzentos anos de histórias de sucesso e ascen-
são. Ajudamos a construir essa cidade. Nossa influência e prestígio ultrapassa as fronteiras – ele
se voltou para a garota e vociferou, colérico.– Cale-se e pare de falar besteiras, sua pirralha!
– seguiu seus passos e atravessou a área de lazer.
A adolescente dolorosamente percebeu de uma vez por todas que nada que fizesse faria
Roberto sentir o mesmo amor que seus pais nutrem por ela. Durante seus quatorze anos de vida,
sempre sonhou que um dia o irmão adotivo iria abraçá-la e dizer que a estimava de todo o cora-
ção. Mas tudo era em vão, quanto mais tentava se aproximar, mais ele a odiava.
Inconformada, Rosane saiu correndo e entrou na sala de treino. Sentada sobre um banco,
tapou o rosto. Lágrimas correram em seus olhos.

O mordomo irrompeu na sala e repousou a bandeja com um bule de porcelana, duas xíca-
ras, um colherzinha metálica e um minúsculo pote cheio de açúcar na mesa.

140
William R. Silva

– Aqui está, senhor! – dirigiu-se ao visitante – Caso queira mais alguma coisa, pode me solicitar.
O homem colocou a pasta que tinha em mãos sobre a mesa, apanhou o bule e derramou
café em uma das xícaras.
– Meu filho está a caminho – a patroa avisou.
– Tudo bem, Tânia! – adicionou açúcar na bebida e começou a misturar com o auxílio da
colher – De qualquer forma, muito obrigado por ter liberado minha entrada.
Tânia sorriu e encheu a outra xícara.
– Você trabalha para o meu marido e é amigo do meu filho. Sua visita aqui é mais que
bem-vinda. Bem... – a senhora se levantou da poltrona – o Roberto já foi avisado da sua presen-
ça. Logo ele estará aqui. Vou indo –degustando a bebida quente, rumou até a escada e iniciou
sua subida aos degraus.
Michael olhou de soslaio para a mulher sumindo na escada e sorveu outro gole do café.
Avistou o piano rente à escada, depois o castiçal de ouro ao lado dele. Levantou as sobrancelhas
e averiguou o enorme lustre de cristal preso ao teto. Suas atenções, por um bom tempo, ficaram
ocupadas com todo o luxo e móveis sofisticados daquela parte da mansão.
Passos afoitos ecoaram sugerindo a aproximação de alguém. O visitante se assustou,
girou o corpo e deu de cara com o filho do patrão.
– Você ficou louco? – a voz de Roberto bufando cortou o ar.
Michael calmamente tomou mais um pouco do conteúdo da xícara.
– Qual o motivo dessa pergunta? – encarou Roberto – O que tenho para dizer é importan-
tíssimo. Tenho certeza que você vai querer saber.
Roberto o dilacerou com seus olhos irados e deu a ordem:
– Vem comigo!
Ele rapidamente deixou a xícara na mesa e apanhou a pasta assim que viu Roberto an-
dando em linha reta. O homem robusto abriu a porta e penetrou num pequeno cômodo. Quando
Michael entrou no lugar e constatou que havia muitos livros, computador, aparelho de impres-
sora e fax, luminária de mesa e outros itens de estudos, entendeu que aquilo se travava de uma
espécie de escritório residencial.
– Esse lugar tem isolamento acústico – Roberto falou. Caminhou até a porta e a trancou
– Ninguém poderá escutar nossa conversa. Meu pai sempre usou esse lugar para ler e estudar.
Roberto se voltou para o homem. Uma linha de expressão surgiu em sua testa quando seu
cenho franziu. Depois, exigiu:
– Qual é o assunto?
Michael se manteve sério. Os olhos de Roberto se baixaram para a pasta na mão direita do
visitante quando ele levantou o braço e a arremessou em direção a mesa. O utensílio de plástico
fez soar um baque e deu três giros escorregando na superfície polida, parando poucos centíme-
tros de onde Roberto se achava.
O homem de maior estatura segurou a pasta e fitou o visitante com um ar de estranheza.
– O que significa isso?
– Veja você mesmo! – Michael declarou.
Quando os dedos apressados arrebentaram os elásticos, a posta se rompeu e inúmeros documen-
tos se bagunçaram sobre a mesa. Roberto agarrou alguns deles e começou a ler o que cada um dizia.
– O dinheiro transferido para a suíça – jogou a primeira folha para o alto –, nossas con-

141
A Coragem

versas de e-mails? – pasmo continuou a revirar as dezenas de papéis – Que palhaçada é essa?
– deslizou a mão por cima da mesa e, agressivo, empurrou os documentos. Quase metade deles
caíram sobre o tapete. Ele se voltou para Michael – Por que imprimiu isso? Por acaso quer me
chantagear? – rugiu, enfurecido.
O informante observou a reação de desespero do homem por alguns segundos.
– Não fui eu quem fez isto – respirou com força e soltou o ar. – Há uma pessoa que sabe
tudo o que nós fizemos. Ele é um hacker habilidoso...
– Hacker? – as sobrancelhas de Roberto se elevaram – Como você?
– Sim... e há essa altura, ele já deve ter fabricado outro dossiê como esse. Roubei as pro-
vas, mas provavelmente ele deva ter uma cópia em seu computador.
– Quem é o desgraçado? – Roberto vociferou – Como o descobriu?
Michael se atirou na cadeira e deu meio giro nela.
– Faz um bom tempo que estou no encalço desse delator, mas foi justamente ontem que
tive a evidência que eu precisava. Acalme-se, irei te contar tudo.

Meses antes

Era fim de tarde e ainda restavam mais algumas horas de trabalho. Michael mascava seu
chiclete enquanto circulava pelas incalculáveis divisórias. Contente, observava o grande número
de operadores de telemarketing desempenhando suas funções. Tarefas a cumprir o aguardavam
no seu andar de trabalho. Deu uma de suas fugidas rotineiras para paquerar uma das garotas que
ali se encontrava. Do total de atendentes, mais que dois terços eram mulheres. Sentia-se no pa-
raíso toda vez que transitava pelo local. Argumentos tinha de sobra para justificar sua escapada,
era um técnico em computadores, poderia mentir dizendo que estava ali para averiguar as falhas
de um computador qualquer. Muitos acreditariam em suas palavras.
Vozes dos funcionários e ruídos de teclas sendo digitadas irrompiam pelo salão. Enfim,
andando despercebido pelo corredor de cubículos, encontrou quem tanto sondava, uma linda
garota que se assentava na primeira divisa da fileira pela qual passeava. Ele parou por trás da
moça, abaixou lentamente e soprou-lhe ao ouvido:
– Olá, meu benzinho.
A atendente se virou num sobressalto.
– Você está louco, Michael? – ela retirou o headphone – Estou trabalhando.
Ele a beijou no rosto.
– Eu sei, vim te ver... – deu uma risada cínica – estava com saudades.
Esticando o braço, a moça afastou o rosto dele.
– Sim – ela sorriu –, mas é melhor sair, estou ocupada.
O pervertido cheirou o pescoço da moça e avisou:
– Depois do expediente estarei te esperando na garagem. Ok?
Por todos os lados, operadores atendiam ligações de clientes, um dos poucos que não pos-
suía ocupação olhou desconfiado para a mulher sendo paquerada. A atendente sentiu vergonha.
Ao ver outra funcionária reparar com um ar de reprovação, a jovem respondeu:

142
William R. Silva

– Está bem, Michael. Estarei lá, agora vá embora!


– Até mais tarde! – o homem saiu a caminhar. O contentamento estampado em seu rosto era
contagiante. Durante o percurso, viu que mais algumas das garotas riram para ele. Vendo uma linda
loura o acompanhar com os olhos, virou-se e deu um piscadela, a operadora deu uma risadinha.
Quando retornou a sua posição para continuar seu deslocamento, recuou ao dar de cara com um
sujeito magro e desengonçado. O tímido rapaz nem se moveu, ficou boquiaberto ao vê-lo.
– O que foi, Túlio? – Michael se irritou – Algum problema?
Túlio começou a suar frio.
– Não... nada.
Ele tentou sem sucesso esconder um pasta que portava, Michael achou estranha a atitude
dele. Pela forma que o desajeitado colega de trabalho o fitava, poderia até cogitar a hipótese de
que ele estivesse escondendo algo por baixo de sua expressão apavorada. Mas o que esse idiota
haveria de esconder?
Com desprezo, passou por Túlio e disse:
– Você é maluco, cara! – prosseguiu com os passos por entre o labirinto de cubículos.
Subiu no elevador, alcançou seu andar e entrou na sala. Avistou Heitor sentado a uma
mesa com quatro computadores e mais quatro técnicos entretidos em suas obrigações. Quando
se assentou perto de Heitor, perguntou:
– Acho que aquele Túlio é meio retardado.
Heitor conectou o mouse numa das entradas de um do aparelho e o encarou, confuso.
– Túlio? Você está falando do magricela que trabalha conosco?
Michael por pouco não perdeu a paciência.
– Sim, é ele. Quem mais poderia ser? Tem mais alguém com esse nome aqui?
– O que você tem contra ele? – deu dois cliques no mouse para testá-lo.
– Sei lá! Tenho a impressão de que ele não vai com a minha cara.
Auxiliado por um pincel, Heitor começou a remover a sujeira de uma ventoinha de um
gabinete desmontado.
– Cuidado, cara! Dizem que esse Túlio é bem quisto pelo patrão.
Michael engoliu em seco.
– Está falando sério?
O homem assoprou a poeira sobre a mesa e falou:
– Pode acreditar! Rogério sempre o chama para conversar na sala da presidência. Por
falar nisso... – indicou duas folhas de papel sobre a mesa. – Quando ele chegar, avise que o
segurança do térreo deixou isso aqui, é para entregar esses papéis para o Túlio. Disse que ele os
havia perdido.
Michael foi até onde os papéis estavam e os pegou. Sua respiração entrecortou quando viu
a que os documentos se referiam. Trêmulo, reparou nos funcionários da sala. Ninguém prestava
atenção nele. Então, era isso?
“Desgraçado!”, pensou. “Então é por isso, ele sabe de tudo... ele sabe de tudo.” Deu meia
volta e saiu às pressas da sala.

– E depois, como você conseguiu retirar essas provas das mãos do imbecil? – Roberto
interrompeu o relato.

143
A Coragem

Michael, ainda estirado sobre a cadeira giratória, respondeu:


– Todo esse tempo, eu estudei os passos dele, onde ia, que horas chegava. As vezes em
que seu pai o chamava para conversar. Descobri que ele deixava a pasta trancada em seu armá-
rio. Ontem, consegui roubar a chave dele. Abri seu armário e peguei a pasta.
– Fez um bom trabalho – o homem robusto lhe parabenizou.
Michael sacudiu a cabeça.
– Estamos ferrados, meu amigo – sentiu desânimo na própria voz. – Rogério já deve estar
sabendo de tudo.
– Duvido muito – Roberto discordou. – Se ele tivesse me entregado a meu pai, essa casa já
teria se transformado num campo de guerra – franziu a testa. – Ainda temos tempo, meu rapaz.
– E agora, o que pretende fazer com esse delator? Precisamos calar o Túlio antes que ele
cause uma tragédia.
Uma aura maligna se apossou do rosto de Roberto. Sem qualquer receio, confessou, irônico:
– Não se preocupe! Vou resolver essa situação de forma definitiva.

35

AMIGAS DE INFÂNCIA

Ana elevou o pincel achatado até as pálpebras de Maria do Rosário. Fez um movimento
circular tingindo-o com uma das cores que entram em contraste com a sua pele morena clara.
Escorregou de leve o pincel nas cores da paleta e tornou a passá-lo na parte superior dos olhos
fechados. A morena abriu os olhos e deu uma espiada no espelho, enxergando um lindo e liso
rosto feminino.
– Eu estou amando, Ana! – Maria sorriu ante o próprio reflexo – Muito legal!
A loira ergueu o pincel.
– Eu disse que marrom avermelhado caía bem em você – sorriu, cheia de orgulho. – Está
maravilhosa!
– Você sempre diz a verdade, amiga! – a morena arrumou algumas mechas em seu rosto
– Em questão de beleza e estética, nunca te vi errar.
Ana prendeu o pincel no estojo, retirou outro mais fino e o esfregou em uma das tonali-
dades da paleta. Encarou a moça.
– E eu sei muito bem disso... – concordou, convicta – Se não fosse por mim, seria aquele
menina desarrumada até hoje – as duas riram simultaneamente. – Meu Deus! Lembra de você
com seus treze anos? – ela fez careta – Que horror!
– É verdade! – o semblante de Maria exalava jovialidade – Aprendi a me arrumar com você.
A maquiadora se sentiu ainda mais orgulhosa.

144
William R. Silva

– Se você hoje é esse espetáculo de mulher – continuou –, parte disso deve a mim
– Está bem, Ana. Está bem! Daqui a pouco vai querer que eu te compre um par de sapatos
novos para compensar a ajuda que me deu nos últimos dez anos – Maria brincou.
A loira atirou a cabeça para trás e gargalhou.
– Até que não seria má ideia.
– E não seria mesmo! – Maria também se divertiu.
– Feche os olhos, amore! – ordenou à amiga.
Maria cumpriu a ordem. Riu baixo como se estive a sentir cócegas conforme a maquiado-
ra pintava a entrada de seus olhos.
– E o bonitão da academia? – perguntou, de olhos fechados – Ele tem te ligado?
Ana suspendeu o movimento do pincel e sussurrou:
– Faz um tempão que ele não me procura – continuou a deslizar o pincel pela face da
amiga. O semblante da maquiadora se entristeceu. Tornou a parar o objeto no ar – Nem na
academia o vejo mais... acho que ele tem outra, comigo era só curtição – continuou a deslizar o
pincel.– Pronto...pode abrir os olhos!
Suas pálpebras se abriram e a imagem da amiga de cabelos dourados surgiu diante dela.
– Que estranho – Maria voltou a falar. – Um homem sumir assim, do nada!
Os olhos de Ana Júlia caíram em depressão.
– Estranho mesmo! – sua voz parecia apática – Nem o Roberto agia dessa forma, aquele or-
dinário me traía na maior cara de pau, mas sempre foi atencioso comigo. Ele nunca me desamparou.
– Ah, Ana, só você mesmo! Na minha opinião, mesmo não tendo conhecido esse tal de...
qual é o nome dele mesmo?
– O nome dele é Augusto – Ana respondeu, entristecida.
– Mesmo nunca tendo visto esse tal de Augusto, acredito que tanto ele quanto o Roberto
são da mesma laia – a morena continuou. – Você teve tantos pretendentes legais e dispensou
todos. Seus namoros não duraram nada. Um cara mais canalha que o outro. É por isso que preferi
ficar sozinha até encontrar um que valha a pena! Assim não me decepciono.
Ana se sentiu mal com a conversa, pois fora bastante fisgada pelo mistério que envolvia o
indecifrável homem. Não estava acostumada com rejeições e se sentia frustrada.
– E o bandido do João Sérgio? – Ana desviou o assunto – Ele te deixou em paz, ou ainda
está te perseguindo?
Maria novamente admirou-se ante o espelho, gostou de se ver.
– Graças a Deus, não – revirou suas mechas soltas. – Aquele nunca mais deu sinal de vida,
é melhor assim. O que houve entre nós foi muito especial, mas acabou. É passado, ele tem que
entender isso.
– É isso aí, menina. Tem um monte de pessoas interessantes a fim de você, chega de
perder tempo que quem não vale a pena. Está na hora de conhecer um cara à sua altura – disse
a loira, em tom alegre.
A moça fitou a maquiadora, entusiasmada.
– Está na hora de conhecer, não... – uma risada discreta escapou de seus lábios –Já conheci!
Ana levou a mão à boca e gritou, eufórica:
– Anh? O quê? Não acredito! – seus olhos se espicharam – E não me contou nada? Pensei
que fossemos amigas de verdade. Uma sempre abriu o jogo pra outra.

145
A Coragem

– É verdade, concordo com você! – Maria comentou, contente – Mas é que eu nem sabia
que ia rolar, simplesmente aconteceu.
Ana piscou.
– Fico muito feliz por você! Seus pais já sabem?
– Ainda não – respondeu, meio receosa.
Ana circulou o pincel em torno dos cílios da mulher a sua frente e indagou, curiosa:
– Então Mari, diz para mim! Como é que ele é?
– Ai, Sei lá! – voltou a sentir cócegas – É malhadão, tem uma voz firme... lembra muito
esses caras de filmes americanos. Também tem um carro bem legal.
Ana lançou-lhe um olhar surpreso. Achando graça da confissão, exclamou:
– Quem diria, hein! Senhorita Maria do Rosário – brincou, enquanto prosseguia com sua
pintura – sempre me disse que não ligava para essas coisas, que se fosse gostar de alguém, não
ia se preocupar com a situação financeira e sim com o caráter. Mas acabou de me comprovar
que não é bem assim.
– Como assim? – revidou.
– Você acabou de me dizer que o seu paquera tem um carro legal.
Maria desatou a rir.
– Claro! Preciso saber, se um dia formos nos casar, se ele vai ter condições de sustentar
nossos filhos – sorriu.
– Meu Deus! – Ana suspirou – Então a coisa está séria – riu alto. – Já está pensando até
em casar... só você mesmo, só você... – outra vez deslizou o pincel na paleta – Agora me diz,
onde o conheceu?
Os olhos de Maria do Rosário se iluminaram.
– Foi no parque ecológico, aquele em frente ao nosso antigo colégio.
– Ixi! – o cenho da maquiadora franziu – O mesmo lugar em que ficou com o João pela
primeira vez.
–Sim, mas... uma coisa não tem nada a ver com a outra.
O lápis escorregou na extremidade dos cílios.
– É, pode ser que não! Rezo por isso.
Examinou o rosto desenhado e ficou alegre com o resultado. Ana retirou o rímel e o usou
para juntar os cílios. As duas se mantiveram caladas por alguns minutos. A loira destampou o
blush, pegou o espesso pincel com a coloração e roçou-o em volta do rosto moreno da jovem. Em
seguida, correu o batom em seus lábios. Com o pente, fez alguns reparos nos cabelos da amiga.
– Pronto! – berrou, satisfeita.
Maria do Rosário fixou o espelho e riu satisfeita.
– Adorei esse look!
Ela ficou de pé. Ana reparou a hora na tela do celular, conferiu seu rosto no espelho e
avisou, voltando-se para a amiga:
– Está na hora – ela lhe mostrou o relógio – Vamos logo!
– Vamos, sim. Seus pais disseram para não demorarmos.
Abriu a porta do quarto e as duas saíram conversando em voz alta.

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A CORAGEM

Realinópolis-MG

Os trilhos enferrujados atravessavam a mata e eram engolidos pela vegetação. O caminhante


que os pisoteava se perguntou onde terminava aquela longa linha férrea, quais cidades ela cortava, que
terrenos seguia, se eram todos silvestres ou alguns urbanos. O lugar fora construído há muitas décadas
para transportar vários passageiros, mercadorias e objetos, mas neste instante, transportava apenas os
pensamentos de um homem. O farfalhar das folhas, animais nativos saltitando de galho em galho, asas
de pássaros batendo e içando voou. Uma infinidade de sons alcançava os ouvidos de Nélson Átila
enquanto ele caminhava sem destino rumo ao horizonte. A brisa que soprava os únicos fios negros em
sua testa, os finos raios solares penetravam as poucas frestas das árvores e incidiam nos ramos, no solo,
nas ferragens mortas. Tudo era sentido com intensidade. O atrito de seus sapatos com o metal também
lhe era agradável. Destino não tinha, nem se importava em ter. Sua caminhada era despretensiosa, não
queria chegar a lugar algum, por outro lado, queria ir até o limite, se assim pudesse.
Mas entendeu que suas pernas demorariam meses para encontrar o fim daquele trecho.
Seu corpo leve se introduziu na penumbra, vez ou outra via uma claridade entre a floresta densa.
Medo não possuía, se achava velho demais para isso. Quantos batalhas travou em lugares como
estes no passado? Já perdera a conta. Os passos calmos o levaram para longe do arvoredo. O re-
lógio de pulso estava aprisionado no bolso de sua calça, evitou checar as horas. Queria se sentir
livre de tudo, da vida, da humanidade, da própria noção de tempo. Sentiu que o sol estava fraco,
sinal de que o anoitecer se aproximava. Deu meia volta e observou uma cobra deslizar nas peças
férreas, serpentear na terra úmida e se infiltrar na mata. Ele mesmo se questionou por não a ter
temido. Quando a morte deixa de causar receios, é por que ela está por vir. Aquele pensamento
arrepiou-lhe as entranhas. Seguiu inalando o ar puro, aquela travessia era agradável.
Minutos se passaram do passeio e lá estava ela, a velha central ferroviária, a passagem secreta
do quartel. O céu ainda estava azul, a massa solar se despedia lentamente nas nuvens. O bisbilhoteiro
examinou com apreço a fachada da central. As telhas manchadas e danificadas pelo tempo, a placa
por cima dos arcos das duas portas com a descrição do nome da cidade, as paredes descascadas.
Era impressionante saber que mesmo após tantos anos, o Quartel ainda era segredo para a maioria
dos moradores de Realinópolis. A ferrovia obsoleta fora tombada como patrimônio histórico, mas a
maioria dos moradores só se lembra de sua existência quando se depara com sua imagem nos livros
de histórias e documentos antigos. Isso era bom... muito bom! Se soubessem todos os segredos que
ali se escondem, o pacato município seria assolado por uma avalanche de caos.
Átila respirou feliz, como se estivesse exalando orgulho por entre os pulmões. O lugar
misterioso foi uma das suas maiores conquistas na vida. Não almejava glória, respeito e nem re-

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A Coragem

conhecimento. A sensação de missão cumprida, para si, era a maior de todas as dádivas. Sentia-se
em débito com o mundo e digno do amor sagrado do criador. É o primeiro mestre do lugar e seu
idealizador, e isso já bastava. No fundo, o velho mestre sentia que tudo aquilo, desde a vegetação,
os escombros, os trilhos, as passagens secretas do Quartel, os muros, os equipamentos, a tecno-
logia, todo o conhecimento compartilhado e as inúmeras atividades, eram parte dele. Pensou que
poderia deixar de ser Nessahen, mas na verdade, compreendeu que era impossível. O codinome, a
maestria, era a principal parte de seu ser, sua identidade, é o homem que se tornou.
Ele prosseguiu seus passos calmos e seguiu a transitar pelo ambiente pacífico. Estava à
procura de se conectar com a natureza, com sua filosofia de vida, com seu presente, seu pas-
sado, centrar-se no nada e, ao mesmo tampo, em si mesmo. O homem cujos cabelos longos se
encontravam amarrados, estudou as enormes árvores, prestou atenção nos micos que saltavam
na paisagem. Folhas caíam por onde pulavam.
Intuitivamente, entendeu que não estava mais só. Suspendeu os passos, desconfiado, pre-
sumindo a presença de algum ser rumando em sua direção. Por mais incrível que parecesse,
conseguiu sentir pisadas lentas no solo. Sorrateiro, escutou um vento sibilar atrás de si, o som
era fraco e estrondoso. Por duas vezes, o zunido semelhante a de algo cortando o ar repetiu-se
na direção de sua nuca. Foi então que seu instinto fora acionado e ele se virou ligeiro. Nélson
ergueu o braço direito para trás e interceptou a extremidade de um bengala com a palma da mão.
Constatou que os movimentos foram proferidos por um senhor que o observava há algum tempo.
Ele franziu a sobrancelha para o homem que tentou lhe golpear.
– Sílvio Koren? – encarou-o, hilário – Bom te ver!
A ponta de madeira subiu com o impulso do braço de Sílvio e encostou na testa de Nélson.
Forçou-a contra a cara do visitante e o mesmo atirou a cabeça levemente para trás. Depois, disse:
– Não diria que seja tão bom assim, meu caro!
Os olhos de Átila se ergueram para o objeto em seu rosto.
– Tem certeza que é isso que você quer? – deu uma risadinha camarada antes de fitá-lo –
Você está um pouco velho para isso, não acha? – até achou que Sílvio Koren tinha diminuído de
tamanho. Ou podia ser ele quem estava alto demais. Mesmo tendo meses que não o encontrava,
tentou se recordar se antes haviam tantos cabelos grisalhos em sua cabeça. Quis rir de novo, mas
vendo o amigo tão velho, sentiu-se ainda mais idoso que ele. Com a barba por fazer, Sílvio ainda
mantinha seu ar cômico, embora seus olhos azuis claros guardassem uma angústia camuflada.
– Meu nome é Búfalo – seu rosto exprimia sarcasmo –, o homem mais viril da América Latina!
O punho fechado fez o bastão tornar a chicotear o ar. Ora pela esquerda, ora pela direita
e, em seguida, girou na diagonal. Átila se desvencilhou dos ataques. O lutador baixinho firmou
o objeto de apoio no solo e lançou-lhe um olhar destemido. Obteve equilíbrio, seu pé direito se
levantou e foi em direção a barriga do rival. Átila imediatamente se afastou. O golpe falhou.
Enfim, o homem de cabelo preso arquitetou sua posição de contra-ataque. Corpo de lado,
pernas flexionadas e punhos cerrados na altura do queixo.
– Então é isso? – Nélson indagou – Você está a fim de brigar. Vou te mostrar como se faz
uma boa luta, seu anão de jardim!
Como nos tempos áureos, o peito de ambos começou a palpitar de emoção e os olhos
estratégicos se cruzaram como faíscas elétricas em alta voltagem.
– Vou te mostrar quem é o anão de jardim – Koren retrucou –, seu mestre de merda! – tentou

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William R. Silva

aplicar outro chute com o mover de sua perna esquerda, no entanto, o adversário se protegeu afastando
seu ombro. Insistente em vencer, içou sua arma e, fazendo seu corpo rodear em torno do eixo da perna,
levou a bengala no maxilar do rival. Outra vez, Átila escapou do baque abaixando a cabeça. Apenas o
ruído do ar dilacerado ressoou. Ainda com os joelhos flexionados, o lutador deu um pontapé em uma
das coxas de Sílvio, desestabilizando-o. Na sequência, arremeteu um murro no peito do baixinho.
Pouco antes de perder o sustento, com destreza, Sílvio empurrou o bastão lígneo na direção
do adversário e agarrou-lhe a perna com o gancho. Puxou-o com precisão e fez Átila se descontrolar.
Rodopiou sua arma e, por fim, fez bater sua ponta no abdômen no alvo. Devido à pressão do golpe, o
mestre de cabelos longos despencou. Segundos depois, Sílvio também se esborrachou nos pedregulhos.
Ambos nocauteados, entreolham-se sérios. Subitamente, caíram na gargalhada.
– Vejo que não parou de treinar, amigo! – o baixinho seguiu com as risadas. Seu semblante
agora era mais amigável – Pensei que tivesses se tornado um velho fracote e cansado – ironizou.
– Você também, grande búfalo! Seus movimentos estão bem sincronizados e continuam
bastante rápidos – Átila também o elogiou. Tateou os trilhos e se pôs de pé – Quer ajuda, vovô?
– seus lábios denotaram um divertimento irônico.
O homem outrora caído fincou sua bengala no solo e simulou se levantar. Antes estapeou
suas calças removendo os resquícios de poeira e gramas. Terminado o ato, falou:
– Não... – ele se sustentou prensando o objeto no solo, com dificuldade – Tenho condições
de fazer isso sozinho – ergueu-se. – Meus cabelos branquearam, mas ainda tenho disposição
para uma vida inteira. A propósito – franziu o cenho –,vovô é o raio que o parta.
Riram novamente. O homem mais alto correu os olhos pela floresta em volta. Observou
uma trilha na mata, cipós se enroscavam no túnel que ali se formava. Involuntariamente ele
bufou. Não que o combate tenha o deixado esgotado, seus pensamentos é que liberaram a respi-
ração com mais agressividade. Desse modo, fitou Sílvio e iniciou seu discurso:
– No início, trouxe o Dionísio para cá com a intenção de ensiná-lo lições valiosas de vida,
transformá-lo em um legítimo Silverato e fazê-lo evoluir. Meu objetivo era puramente orien-
tá-lo. Mas... – mirou o velho companheiro com um semblante austero – Jamais imaginei que
ele pudesse me ajudar também. Mas ajudou – seus olhos se encheram de esperança –, e muito.
Através dele, tive momentos bons, aprendi coisas importantes e evolui como ser humano. Como
sempre digo – deu alguns passos e parou, sentiu o vento fresco que circulava ao redor –, é muita
inocência de um mestre supor que não poderá nunca assimilar nada com o aluno. Se minhas
habilidades como lutador não se perderam, foi graças a esses quase dez anos que dediquei a
ensiná-lo a lutar. Se não fosse por ele, com certeza teria me atingindo no primeiro golpe.
Sílvio se guiou até ele.
– Entendo que quer dizer, Nessahen!
Nessahen. Ouvir o referido nome deixou Átila atordoado. O outro continuou:
– Seu filho foi um dos melhores alunos que já se teve no Quartel. E mais... – deu três toques
com o dedo e expulsou uma folha verde escura de seu ombro – Com mais alguns anos aqui, acredito
que ele ganharia o título de mestre. Ele fez jus ao sangue que carrega nas veias, honrou o seu nome.
Nélson assumiu uma expressão serena. O orgulho paterno acalmou-lhe o coração.
– E tudo pelo seu próprio mérito, sem necessitar da minha intervenção.
Sílvio aquiesceu.
– Dionísio é um jovem repleto de medos e inseguranças. E isso sempre será o seu maior triunfo.

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A Coragem

Surpreso. Foi assim que se sentiu quando o mestre de estatura baixa lhe proferiu a frase
anterior. Átila passou a mão sobre a cabeça e a deslizou sobre o cabelo amarrado.
– É a primeira vez, em anos, que você me diz algo que não fui capaz de compreender
Cordas de cipó e matéria orgânica seca estavam amontoadas sobre uma grande pedra.
Sílvio arrastou tudo para o chão com o auxílio da bengala. Examinou a pedra para ver se não
havia nenhum ser peçonhento. Estava lisa e limpa, sentou-se sobre a rocha. Ele se inclinou no
tronco de uma árvore e prosseguiu:
– A coragem não é ausência de fraquezas, nunca foi. Pelo contrário, quanto mais temores
um homem tem, mais ele tem tendência a aderir a um dos extremos – observou um mico saltar
de um galho a outro, e continuou. – Ou ele se torna muito covarde, ou muito corajoso. Seu filho
seguiu a melhor escolha. Max Wolf ainda guarda seus temores mais profundos e, talvez, eles
nunca o abandonem. Eu observei vários sinais de insegurança em seu modo de agir. Não é fácil
de se notar, apenas através de uma profunda investigação interna. E é isso que o fez e ainda o
fará evoluir: sua busca para se livrar dos seus anseios, domar seus medos camuflados. É essa a
essência da valentia, a arte de lidar com seus pontos fracos.
Átila franziu o cenho. O companheiro comentou sobre algo que ele sempre sentiu, mas
que até agora não fora capaz de deduzir em explicações lógicas.
– Acredito que essa seja a sina dos Silverato – comentou, pensativo. –Viver eternamente
em confrontos. Seja contra outros... seja contra nós mesmos.
Sílvio levantou as sobrancelhas para ele.
– Os fracassos, os receios, as desilusões e tudo o que seu filho passou, são os seus mais
poderosos combustíveis. É isso que o define. Tudo o que lhe rendeu de ruim, em um momento
crucial, será a cartada final de sua vitória. É uma vantagem de poucos.
Nélson Átila concordou. Sentiu-se bastante contente. Às vezes se perguntava se não havia
sido rígido demais com Dionísio. Talvez não.

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CRISE DE CONSCIÊNCIA

Shopping Central

28 de setembro de 2014.

Sentiu apenas o movimento da escada rolante descendo para o andar inferior assim
que os ocupantes se acomodaram nos degraus junto a ele. Dionísio baixou os olhos e viu a
circulação de pessoas com suas sacolas de compras, na praça de alimentação ou negociando

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com lojistas. O Shopping durante a noite possui um maior fluxo de usuários e as salas de
cinema eram mais disputadas. Conferiu o bolso da jaqueta para ver se seus ingressos estavam
lá, tranquilizou-se quando os sentiu com o tato. Com muito custo, conseguiu entradas para o
próximo horário e a namorada tinha menos de trinta minutos para chegar. Mas não se quei-
xou, seus esforços valeram a pena. Depois de tantos anos, tornou a se envolver com alguém
de modo mais emocional.
Sentia-se imensamente feliz e, ao mesmo tempo, era transtornado por uma leve sensação
de culpa que, com o tempo, ia assumindo uma maior proporção. Ana Júlia? Por que ela vem
em sua mente a cada segundo? Nunca fora um traidor. Já fora desiludido algumas vezes e não
deseja isso para ninguém. Mas o ato que cometera não foi uma traição? Ele começou a se sentir
perturbado. A imagem da sedutora mulher de cabelos loiros sempre vinha aparecendo involun-
tariamente em seus pensamentos. Seria peso na consciência? Decidiu que daria um fim nessa
história de uma vez por todas. Rememorou os traços de Maria do Rosário, entendeu que tinha
uma grande afeição por ela. Mas, e Ana? Seria um desejo puramente carnal? Usou-a por vingan-
ça, contudo, houve algo na antiga colega de colégio que o prendeu. Sua desforra não saiu como
planejado, jamais cogitou a possibilidade de se encantar por Ana Júlia de novo. Por ela ele nutria
ódio e desejo. Talvez seja esse um dos seus mais avassaladores conflitos internos.
O que o incomoda é que, para dar cabo a sua vingança, envolveu-se com duas mulheres ao
mesmo tempo. O que seria se Maria do Rosário descobrir a traição? Poucos meses completaram
que os dois estavam juntos. A namorada é o tipo de moça que ele sonhou a vida toda em ter a
seu lado. Nunca, em momento algum, iria querer desiludi-la. O último degrau automático rolou
e seus sapatos tocaram o piso. Esperou que aqueles que estavam a sua frente se espalhassem para
que pudesse seguir seu rumo.
O interior do Shopping era completamente construído em forma de um círculo, as
centenas de visitantes pareciam transitar numa órbita de cento e oitenta graus. Uma multidão
serpenteando entre as alas de compras, subindo e descendo nas escadas automáticas. Dionísio
levantou o queixo e olhou para cima, contou três andares somando com o que estava e havia
mais dois debaixo dos seus pés. Cinco no total, o lugar era imenso. O relógio digital depen-
durado na parte mais elevada anunciava as horas e passava uma sessão de slides de ofertas
e indicação de lojas. Se os clientes e os vendedores não estivessem tão entretidos em suas
tarefas ou se os transeuntes não estivessem ocupados com as inúmeras distrações que o local
oferece, provavelmente teriam rido da situação de deslumbramento que esboçava, parado
em meio à grande movimentação. Perto de toda aquela modernidade, Realinópolis passava a
impressão de décadas de atraso.
Ele prosseguiu até parar diante de uma vitrine de ternos, precisava adquirir alguns novos
para ir ao trabalho. Os que tinha estavam se tornando repetitivos. Outra vez pensou nas duas
mulheres, continuou a caminhar visando burlar a própria consciência. Entendeu que deveria es-
quecer o desejo de retaliação que nutria de seus antigos agressores. Não era mais um adolescente
traumatizado e sim um homem formado. Em nome do juramento que fez antes de retornar e pelo
amor que sente por Maria do Rosário, resolveu que a partir desse dia iria colocar de uma vez por
todas uma pedra nesse assunto.
Irá ignorar Roberto e suas disputas infantis nos autódromos, distanciar-se de Ana Júlia e
tratar Paulo como apenas um colega de trabalho. Sabia que ainda não os tinha perdoado, entre-

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A Coragem

tanto, faria o possível para isso.


O celular vibrou. Dionísio retirou o aparelho do bolso e checou a mensagem no What-
sApp. Riu baixo quando viu o nome da amada no aplicativo avisando em qual parte da extensa
área comercial ela o esperava.
Incontáveis vitrines passavam diante de seus olhos na medida em que ele avançava pelos
arredores do Shopping. Calçados, roupas de marca, perfumes, computadores de última geração.
Averiguou a escada rolante e a viu lotada. Também haviam outras pessoas guardando lugar.
Então atravessou o largo corredor entre uma loja de instrumentos musicais e outra de eletrodo-
mésticos e seguiu escada abaixo. Descendo em espiral, alcançou o térreo.
Dos lábios do homem desabrochou um discreto sorriso quando viu Maria do Rosário en-
tretida com uma manequim na vitrine de uma loja de trajes para casamento. A boneca usava um
longo vestido de noiva cuja tiara tinha parte de suas joias escondidas pelos cabelos artificiais.
As luvas brilhantes alcançavam-lhe os cotovelos.
Ele reparou ao redor e se aproximou lentamente. Com a boca perto da orelha da jovem,
indagou em voz baixa:
– Não acha que ainda é cedo para pensar nisso?
A mulher disparou uma rápida gargalhada e se virou. Só então que Dionísio percebeu
que os negros e compridos cabelos da namorada haviam sido alisados. Suas mechas estavam
escorridas pouco acima da cintura e uma meia franja ampliava a formosura de seu rosto. O olhar
dela o enfeitiçava, embora os olhos dele tenham ligeiramente caído sobre o decote que ela usava.
Não estava acostumado a vê-la com roupas assim, mas não se incomodou. Na verdade, sentiu-
se ainda mais embasbacado. Se perguntou sobre o que havia de tão especial no sorriso que ela
esboçava. Vê-la o fazia se livrar de todos os seus receios, traumas e aflições, como se a amada
tivesse o poder de transformar todo seu ódio em afeição e suas tristezas em alegrias. O mundo,
quando estava próximo dela, parecia coberto de paz, alegria e conforto.
– E quem disse que eu estava pensando em casamento? – Maria rebateu, hilária – Senti
uma pontinha de medo da sua parte, ou estou enganada? – ela tornou a rir e se concentrou na
reação do namorado. Dionísio continuava a mirá-la, imóvel.
Novamente um sentimento de culpa o assolou quando ele esquadrinhou aquela face
feminina iluminada por sonhos e esperanças. Meu Deus, como pode traí-la? Uma voz interior
soprou em seus ouvidos. Teve vontade de se esconder naquele momento, mas conteve sua
angústia interior.
O homem respirou fundo e retribuiu o riso.
– E quem disse que estou com medo? – ele segurou na mão da moça – Eu apenas disse
que ainda é cedo – chegou mais perto e a beijou.
Maria do Rosário o encarou, afetuosa.
– Eu sei!
– Vamos logo, senão vamos perder o filme – seu namorado avisou.
O casal entrelaçou as mãos e partiu em direção ao cinema.

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William R. Silva

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O JOGO PERIGOSO

Boate Sex Hot

Sobre o pódio destacado pelo show de holofotes, a dançarina iniciou seus passos eróticos.
Sapateando ao balanço dos movimentos dos quadris e levando a cabeça de um lado a outro, descon-
certou seus compridos cabelos castanhos. Os aplausos, elogios e saudações do público masculino
que preencheu quase todas as mesas da boate e o jogo de três fachos de luzes de efeito estonteante
potencializavam sua sensualidade. A mulher se contorceu excitadamente. Na desenvoltura de sua
apresentação de pole-dance, agarrou o mastro. Esfregando os seios na peça de ferro, alcançou o
topo e desceu girando. Quando atingiu o liso piso de madeira com seu salto alto, ficou de joelhos.
Segurou novamente o mastro e o circulou, fazendo o grupo de espectadores entrarem em um estado
de prazer visual e delírio. Ela rebolou com mais velocidade descendo e subindo o corpo, mexia as
cadeiras freneticamente, agarrada na barra cilíndrica vertical. Flexionou a coluna para trás, tornou
a girar a face levando os longos fios de cabelos ao chão. Projetando seu busto e suas pernas abertas
para a plateia, deixou seu órgão genital quase ser facilmente visível através da roupa intima. Refa-
zendo sua postura, a charmosa mulher ficou de pé, retirou o sutiã e o arremessou numa das mesas.
Roberto e João Sérgio, que assistiam com os olhos vidrados a apresentação de Strip-tease, riram
quando a roupa íntima voou sobre onde estavam.
João Sérgio segurou a peça enquanto contemplava a prostituta. A cada movimento da
dançarina, seus olhos a seguiam vorazmente. Estava totalmente encantado.
– É bem parecida com a Maria do Rosário – comentou. Sentiu o tecido no tato.
Raramente se via algo no recinto que não estivesse nas cores roxa, azul e vermelha. Desde
as mesas, cadeiras e sofás até o teto recebiam as chamadas tonalidades eróticas. Pilares de ferro
brotavam do solo e alcançavam o teto. Até mesmo os rostos dos homens e as prostituas seminuas
que lançavam olhares provocantes sobre eles brilhavam com a claridade forte. Roberto tirou os
olhos da bailarina e o direcionou para o rapaz.
– O quê? – gritou, pasmado – Até hoje você está encanado nela? Ainda não esqueceu
aquela sonsa da Maria do Rosário?
João Sérgio fez cara de desaprovação e fulminou o parceiro com uma expressão de raiva.
Entretanto, resolveu se manter em silêncio. As luzes fortes e intermitentes oscilaram em torno
do recinto erótico. Uma das bem aparentadas garçonetes surgiu perto da dupla. Deixou uma
garrafa de bebida e dois copos na mesa, um no lado de cada, despediu-se e saiu. A dupla esperou
a garota se distanciar antes de dar sequência ao diálogo.
– Cara, aprende uma coisa na sua vida! – Roberto se aproximou do ouvido do compa-
nheiro – Mulher é tudo igual, só muda o endereço, a cor dos cabelos e... – interrompeu sua fala

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A Coragem

no instante em que uma das garotas passou perto de sua mesa. Ele pousou os olhos nas nádegas
da moça, deu um sorriso malicioso e finalizou – E o tamanho do traseiro – ele riu, mas o amigo
não achou a menor graça.
João carregou sua taça e engoliu seu drinque de uma só vez.
– A Maria não é como as outras, ela é diferente. Sempre foi.
Roberto balançou a cabeça. Clientes riam e introduziam dinheiro nos quadris e sutiãs das
garotas que gargalhavam e comentavam obscenidades em seus ouvidos.
– Brother, desencana! – bateu levemente na nuca do parceiro apaixonado – Preste atenção
a sua volta, veja bem quantas mulheres temos aqui! Sou sócio dessa boate, posso te dar qualquer
uma que quiser aqui, é só escolher – seus braços se abriram, em sinal de arrogância. – Aqui tem
ruiva, loira, morena, mulata, japonesa, chinesa, indiana, tailandesa e tudo quanto você puder
sonhar. Se livra de uma vez dessa crentezinha metida a santa e pega uma mulher de verdade.
– Não estou falando de sexo – João o recriminou. – Quero dizer gostar, eu gosto dela de
verdade, é muito mais do que levar pra cama. Cara, será que nunca amou ninguém de verdade?
Roberto riu desdenhoso. Há cerca de oito metros, uma garota rodopiou numa cadeira e
abriu as pernas, o homem perto dela a agarrou e ela o prendeu com as coxas. O cliente cochichou
qualquer coisa na orelha dela e a meretriz atirou a cabeça para trás, rindo alto. Ele segurou na
mão da moça e ela aceitou. Os dois subiram a escadaria de ferro e penetraram numa fenda escu-
ra. A parte superior também continha mesas e sofás, só que lá passeavam mais garotas do que
clientes. Algumas portas por trás do salão estavam escuras, outras fechadas. Magnatas entravam
e saíam com suas acompanhantes. João se distraiu no desenrolar da cena.
– Meu amigo, para com essa babaquice! – Roberto disparou. O outro o encarou subita-
mente – Com a grana que eu tenho, o que não falta é vagabunda na minha cama. Sou filho de um
dos maiores banqueiros do pais, amor não faz parte do meu vocabulário – a música estava mais
alta, por isso ele teve de se aproximar novamente. – Não perco tempo com essas baboseiras de
sentimentalismos. Eu curto minha vida ao máximo.
O rapaz soberbo apanhou a garrafa e despejou mais do líquido na taça do companheiro. João
tomou outro longo gole, mas não consumiu todo o conteúdo. Ele girou a taça no ar vendo o líquido
espumoso assumir uma coloração roxa quando projetada na luz. Teve vezes em que a forte inci-
dência da luminosidade arroxeada em suas vistas causou-lhe irritação, mesmo assim, ignorou esse
detalhe. Viu que mais homens esfregavam cédulas nos lindos rostos das dançarinas, uns velhos e
gordos, outros jovens. Por um segundo pensou em que tipo de pessoas havia ali, certamente todos
bem ricos e bastante influentes. Só pelo preço da entrada e os valores das bebidas, já era o suficiente
para se ter uma base. Coçou o canto do queixo e franziu o cenho para o colega de mesa.
– Todas as mulheres daqui são compradas! – rosnou – Você acha que as têm, mas na
verdade, só tem seus corpos por algumas horas.
– E que mulher desse mundo não é? – Roberto rebateu – Aqui vem juiz, político, empre-
sário e toda a classe alta da cidade, até bandido endinheirado aparece nesse estabelecimento.
Todas as putas daqui caem aos seus pés, os tratam como reis. Para elas não importa o seu sen-
timento, seu carácter, se você pode ser um bom marido ou não, a única coisa que importa é o
lucro que vai dar a elas, o quanto você pode beneficiá-las, nada mais que isso... Não há muita
diferença entre as garotas lá fora – Roberto estudou ao redor e prosseguiu lançando seu aroma
alcoólico nas narinas do ouvinte. – Agora me diz! Seja sincero consigo mesmo. Acha que al-

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William R. Silva

guma mulher nesse mundo vale a pena? Seu esforço, seu sacrifício, seus choros. Será que elas
merecem tudo isso? Não, elas não valem, pois você não tem valor nenhum se não for capaz de
proporcionar a elas o que elas desejam...
– Não seja cínico! – João Sérgio vociferou – Está julgando todas as mulheres como se
fossem prostitutas? Está querendo dizer que todas só pensam em dinheiro? Para de besteiras!
– Exatamente! Não se iluda, de uma forma ou de outra, todas têm seu preço – adicionou
Roberto, esboçando meio sorriso. – Mas não te disse que o que elas mais amam é dinheiro, você
entendeu errado. O que elas amam mesmo é poder, elas idolatram homens poderosos. E isso
– arqueou as sobrancelhas, desenhando uma expressão de vitória – eu tenho de sobra. E você
pode ter também – empurrou o dedo contra o peito do interlocutor. – Posso te tornar um homem
influente, de grande destaque social, posso te dar o que tantos almejam. Um bom emprego, res-
peito, tudo o que você sempre quis.
João Sérgio desconfiado, segurou-o pelo braço.
– Acha que acredito nas suas ladainhas? – seu semblante era ameaçador. Os dedos ner-
vosos cerraram na carde rígida do comparsa – Diz a verdade! Por que me trouxe aqui? Sei que
quer alguma ajuda minha. Sempre foi assim, a vida inteira me usou como um serviçal para seus
trabalhos sujos.
Roberto deu um solavanco, livrou seu braço e respondeu, hilário.
– E sempre o recompensei por isso – deu leve safanão na orelha do marginal. – Mas tudo
bem... você tem razão. Preciso de você, quero que faça um trabalho extra para mim.
Outra dançarina galgou os quatro degraus e se posicionou no pódio. Ela se cobrira com
um roupão de banho, mas, por causa da claridade confusa, muitos tiveram dificuldade para des-
cobrir se o traje era branco ou rosa. A meretriz desatou o laço e levantou o tecido na altura das
pernas. Depois começou a bambolear em torno do mastro, deslocando-se no ritmo da música.
Homens assobiaram para ela. Roberto mirou a striper, surpreso com a maneira com que reque-
brava. Seu comparsa também estava maravilhado com o que via, mas rapidamente desviou os
olhos da apresentação e o mirou.
– Além daquele que me contratou para ajudar seu tio?
A bailarina arrancou o roupão e o lançou para a plateia. Sua perfeita silhueta veio à tona.
Ela vestia um corpete verde que acabava por destacar suas coxas morenas. Suas meias, que iam
até o joelho, também eram da mesma cor. João Sérgio perguntou a si mesmo por que eles insis-
tiam tanto nessa bagunça de cores. Contudo, tinha assunto mais importante para tratar.
– Sim... – Roberto lhe respondeu, atento nos movimentos da dançarina – Só que vai ser
bem menos complicado.
– Seja mais direto! – o amigo marginal exigiu – O que tenho que fazer?
Assim que a striper desprendeu o corpete e o soltou no chão, ambos admiram os volumo-
sos seios dela.
– Aqui não vai dar para te esclarecer, mas depois iremos conversar melhor sobre sua
tarefa. Mas se tudo correr bem – riu para ele –, vou ressarcir todo o tempo que você perdeu na ca-
deia. Irei te dar uma vida digna. Será um dos homens importantes do banco do meu pai. Lembre-
se que, graças a mim, o Paulo tem um bom cargo, posso muito bem fazer o mesmo com você.
Quem sabe se depois disso, aquela estúpida da Maria não passe a te admirar. Já pensou nisso?
Os olhos de João Sérgio brilharam diante da revelação, levou o bico da garrafa até a boca

155
A Coragem

e ingeriu o líquido dela. Nem se importou com sua maneira indelicada de sorver a bebida. A
dançarina continuava a deslizar no mastro como uma serpente. Roberto balançou o braço direito
no ar e fez com que uma garçonete no balcão o enxergasse, o outro nem notou sua atitude.
Foi quando a funcionário se aproximou e se abaixou para perguntar o que Roberto queria,
que João compreendeu que ele planejava alguma coisa. A prostituta deu uma risadinha depois
que ouviu o que o homem lhe pediu, aprumou-se e saiu andando.
– O que disse a ela? – João quis saber.
Roberto se levantou da mesa.
– Venha comigo! – fez um gesto com a mão direita – Precisamos nos divertir um pouco.
O bandido desconfiado também saltou da mesa e os dois subiram a escada férrea, atra-
vessaram um acesso estreito e apareceram num outro setor da boate. O outro ia na frente, ele o
seguiu, cabreiro.
Roberto invadiu um quarto escuro e as luzes de lá se acenderam. Seu parceiro ficou para
trás, não quis prosseguir.
– Vai ficar aí? – berrou para o amigo, do lado de dentro.
Ele entrou no lugar e viu que Roberto começava a tirar a roupa.
– O que significa isso? Por acaso você é gay e me chamou aqui pra ficar comigo?
Roberto quase perdeu o fôlego de tanto rir.
– Relaxa, cara... – arriou as calças e mostrou-lhe a cama – Deite!
– Relaxa porra nenhuma! Que viadagem do caralho é essa, mano? Nunca imaginei isso de
você – João deu as costas. Contudo, interrompeu seus passos, boquiaberto. Uma mulher estava
sorrindo para ele diante da porta. Ela se virou e trancou o quarto.
– Para que a pressa, meu amor? – uma voz feminina ressoou por de trás dele. Ele girou e
encontrou outra jovem. A duas prostitutas se juntaram e o fitaram maliciosamente. Roberto se
esparramou na cama e deitou sobre os próprios braços.
O marginal riu alto.
– Seu idiota... – virou-se para o parceiro – Por que não me disse antes?
O homem esparramado no colchão então respondeu, com um ar irônico:
– Se tivesse me deixado explicar, já teria entendido.

39

IMATURIDADE

O filme estava no ápice do momento de ação quando um travesseiro voou no rosto de Dio-
nísio. O homem sentado no sofá se assustou. Suas mãos abertas se ergueram instintivamente para
afastar a almofada que já tinha despencado e sua cabeça se moveu para todos os lados a procura
da agressora mirim. Ele estendeu o controle remoto no rumo da TV e pausou a cena que estava

156
William R. Silva

passando na tela. Discreto, ele revirou os olhos vistoriando o esconderijo da criatura que ousou
perturbá-lo. Quis gargalhar no segundo em que viu um couro cabeludo se mexer por trás da mesa
de centro, mas prendeu o barulho entre os lábios e esboçou apenas um sorriso silencioso.
Pé ante pé, para não provocar nenhum ruído no tapete, Dionísio marchou até o móvel e
reparou a menina agachada. Ela o mirou com um ar cômico.
– Nem fui eu... – Kamille mostrou-lhe a língua e riu baixo. Ela se endireitou e saiu corren-
do pela sala. Seus passos se contiveram assim que sentiu duas mãos a envolverem e seu corpo
magro ser puxado para trás.
Ela começou a rir alto e balançar as pernas, seu irmão também se divertia tanto quando a
peralta. O pé direito da menina disparou um golpe acidental num vaso de porcelana e o adorno se
quebrou no impacto com o chão. Dionísio nem percebeu. Ele segurou a criança no ar e a lançou
no sofá. Assim, Kamille iniciou uma torrente de risos cada vez mais alucinados na medida em
que os dedos de Dionísio faziam cócegas entorno do umbigo dela.
– Pensou que eu não iria te pegar? – brincou o detentor. Suas cócegas continuavam e a
vítima ria convulsivamente – Quero ver se sair dessa agora! – ele deslizou as mãos para as axilas
da garota e ela gritava ainda mais alto.
– Para. Seu chato, feioso! – gargalhou Kamille enquanto tentava se defender – Não aguen-
to mais rir – ela rolou para o tapete visando fugir do ataque de risos.
Menos que um minuto foi o tempo suficiente para que Maria Clara surgisse no cenário da
bagunça. Os olhos da mulher se escancaram quando se lançaram no objeto oriental despedaçado
no tapete e sua boca se abriu dando vazão a um berro de ira:
– Parem já com isso!
Ao ouvirem o grito da mãe, os dois trocaram olhares de cumplicidade, fizeram uma careta
expressando algo semelhante a estamos ferrados e se levantaram logo em seguida.
– Olhem só o que vocês fizeram – reclamou a mulher com um timbre de aflição. Ela se
ajoelhou e começou a reunir os cacos – Tinha esse vaso há mais de onze anos e agora virou lixo.
Ela se ergueu e encarou os filhos com um ar severo.
– Limpem essa sujeira, agora! – ordenou – Não quero mais saber dessa bagunça aqui
dentro de casa. Estão ouvindo?
As cabeças dos desordeiros sacudiram. Era sempre a mesma coisa, Kamille o provocava
e seu irmão partia para cima dela para dar início a mais uma sessão de brincadeiras. Dionísio
adora dar trela às travessuras da garota, exceto quando está mal humorado, tinha tarefas do curso
ou assuntos do trabalho para resolver. Sempre dedicava alguns minutos para entreter a criança
se a situação colaborasse.
Ele observou a mãe de soslaio e notou que ela tingira o cabelo na cor castanha, era a se-
gunda vez no período de um ano que via a genitora fazer alterações em suas mechas. No primei-
ro semestre, Maria cortou o cabelo na altura do ombro e agora mudou sua tonalidade. Por alguns
instantes seguiu a refletir sobre o quanto Kamille fora solitária na presença da companheira. Sua
mãe era normalmente distante, pouco notava demonstrações de afeto dela em relação a filha.
Constantemente absorta em seu mundo, suas maquiagens, roupas de grife, encontros sociais e
estética. Em relação à menina, não era tão negligente quanto fora com ele em sua adolescência,
ainda assim, deixava a desejar. Às vezes uma vontade avassaladora o impelia a perguntar sobre
quem era o pai de sua irmã. No entanto, sentia as palavras travarem em sua garganta. De certa

157
A Coragem

forma, Dionísio entendeu que a presença dele na casa, supriu a carência emocional que a menina
tivera durante seus anos iniciais de vida. Mas essa era a sua mãe, a mesma de hoje e sempre. O
que havia ele de esperar?
Maria Clara franziu o cenho e deu as costas, indo direto para seu quarto. Ele encarou
Kamille, sarcástico.
– Foi você quem derrubou. É você quem tem de limpar.
Os braços de Kamille se cruzaram.
– Isso não vale!
Dionísio a mirou com carinho.
– Estou brincando – sorriu. – Traga uma par, um jornal velho e uma vassoura e deixe tudo
aqui que daqui a pouco eu removo os estilhaços.
Ele se virou e foi para seu quarto. Entrou no aposento e se afundou na cama. Ultimamente
se sentia irritado consigo mesmo, agia como um juiz e vivia a condenar os outros. Todavia, será
que também não estava sendo errado nessa história toda? Detestava aqueles que ele julga serem
seus inimigos, embora os mesmos atualmente o tratem bem sem saber quem realmente ele é.
Vive a se questionar internamente sobre a mãe, na verdade, nunca concordara com sua forma de
ser. Mas como poderia questionar alguém por ser quem é?
Interiormente, tem raiva de seus conflitos internos, quanto mais o tempo passa, menos
habilidade ele tem para lidar com seus sentimentos negativos. Tem a sensação de ter se tornado
uma ovelha perdida à procura de seus pastores para guiá-lo em seu caminho. Pensa em Átila,
nos mestres do Quartel. Percebeu que sente desesperadamente falta deles. Queria orientações,
mas estava sozinho. Quando retornou, pensou que já era maduro o suficiente para lidar com a
personalidade da mãe, esquecer o ódio que nutria de seus agressores, mas tudo não se passou
de um triste engano.
Resolveu retornar à sala e limpar os destroços do adorno na sala.

40

MÁGOA REPRIMIDA

Parque natural São Genaro

18 de Outubro de 2014.

Circulou o tronco da paineira deslizando a ponta dos dedos sobre a casca rígida. Nenhum
dos grossos espinhos o feriu, desviava deles conforme tateava o espesso caule. Rodeando a árvo-
re, Dionísio levou os olhos para cima e ficou a contemplar uma das maiores atrações do parque

158
William R. Silva

ecológico. Quantos metros teria ela? Tentou ver o topo, apenas uma curva sinuosa e rugosa que
parecia alcançar o céu ensolarado surgiu em seu campo de visão. Realmente o tronco parecia
não ter fim. O auge de sua graciosidade ocorre no mês de março, mas mesmo assim, aquele
gigantesco adorno natural causava impacto a quem o via.
Seguiu com sua incursão pelo parque São Genaro. Muita coisa mudou desde o dia em que
tentou assassinar os colegas de colégio: a quantidade de guardas municipais aumentara. Não
só na entrada mas também em todos os cantos, notava-se muito mais opções de lazer, escor-
regadores, balanços e vários brinquedos infantis, mais bancos e os canteiros para piqueniques
triplicaram. Está tudo melhor que anos atrás. Ambiente este que no passado poderia ter sido o
seu leito de morte, hoje simboliza seu renascimento. Fora ali que encontrou a namorada pela
primeira vez, motivo pelo qual se sentia imensamente grato. Quanto mais inalava o ar fresco e
despoluído produzido pela reserva natural, mais sentia o poder da vida envolver-lhe por inteiro.
O colégio São Magno, ele ainda o evita, por outro lado, vez ou outra visita a área ecológica.
O erro que iria cometer, seu ódio mortal que nutre pelos rapazes que o maltrataram, a alu-
na dissimulada, tudo vinha em suas lembranças conforme avançava pelo inacabável gramado.
Começou a questionar se estava agindo da forma correta. Será que tudo aquilo não o fazia agir
como um ser imaturo que não conseguiu superar seus traumas do passado? Talvez seja esse o
problema. É um homem escravo de seus próprios traumas. Seus maiores inimigos hoje o tratam
com respeito. Será que isso já não seria o suficiente? E Ana Júlia, será que agiu certo? Começou
um relacionamento com Maria do Rosário, mas deixou seus instintos falarem mais alto e teve
um encontro íntimo com outra. Cometeu um ato de traição. Justo ele que uma vez abominara
Sílvia por ter desprezado sua fidelidade. Agora não tinha mais moral nenhuma para julgá-la,
cometeu o mesmo erro. Os pensamentos repetitivos ricocheteavam em sua mente.
Solitário, passeia pelos arredores da reserva ecológica, lembrando-se de que fora nesse
mesmo lugar que conheceu o pai, que parecia mais ter vindo do céu a fim de lhe trazer a reden-
ção. Ciclistas passaram por ele e sumiram apressados num estreito trecho asfaltado. Trançando
pelo lugar, vasculhou tudo o que pode, comparando todos os cantos e puxando da memória
como tudo era anos antes, relacionando passado e presente. Finalmente, decidiu fazer o que
há meses protelava, percorrer a outra metade do território, onde tudo de ruim lhe aconteceu. O
cenário dos seus pesadelos mais profundos.
A viagem até que não estava depressiva, embora certa partes do lugar o deixassem es-
tonteado. Tudo ia bem, até que recuou ao ver a inesquecível trilha que dava para uma parte
escondida. Ali se avistava um trecho coberto por plantas trepadeiras engastalhadas em troncos
e galhos cuja função era guardar o acesso de um lugar qualquer. Sem que pudesse perceber,
uma avalanche de sensações angustiantes ocupou um dos espaços mais sombrios de sua mente.
Imóvel como uma estátua, ele observou a fenda. Hesitou por um instante, pressentia que não
seria boa ideia voltar àquele lugar. É bem provável que o esconderijo pudesse novamente lhe
trazer recordações ruins. Sua hesitação não foi suficiente, a vontade de retornar àquele que fora
seu ambiente de torturas era mais forte.
Ignorou suas preocupações e se aventurou na selva. Irrompendo a brecha, penetrou o
pequeno terreno. Tudo em volta era verde e cheio de vida. O cheiro fotossintético encheu seus
pulmões de energia. O local era, por ser escondido por entre um amontoado de vegetações, des-
conhecido para a maioria dos que frequentam o parque. O ar era úmido e agradável. Conseguiu

159
A Coragem

enxergar o céu, mas eram poucos os raios solares a tocar o solo, fazendo parte do terreno ficar
escuro como o anoitecer.
Na penumbra, imediatamente sentiu seus punhos se fecharam firmemente. Como flashba-
cks, revirou os olhos, observou o gramado e reviveu todas as cenas daquela deprimente e ines-
quecível manhã de maio: ler a carta, correr feliz ao encontro da amada, ser enganado, apanhar
dos três colegas e cair estirado. Grama, lama, chuva, dor e sangue. Seu semblante se transfor-
mava cada vez mais numa máscara de tristeza e revolta. Seus sentimentos tornaram a se emba-
ralhar, respirou fundo com o objetivo de alcançar o equilíbrio. Na medida em que avançava, a
gruta o deixava cada vez mais atordoado. Visualizou a jovem Ana Júlia sorridente, de pé à sua
frente. Na realidade, sentiu-se ressarcido por ter tido uma noite com ela semanas antes. Obteve
vitória em seduzi-la, mas estava sendo derrotado pela sensação de desonra interna. No entanto,
sua luta interior era forte. Está desorientado como se não pudesse lidar com os próprios desejos.
A culpa o dilacerava por dentro, novamente se recordou de Maria. A vida inteira sonhou como
uma mulher como ela, mas não fora capaz de fazer jus aos seus sentimentos.
Foi neste momento que se viu agitado e raivoso. O local de sua emboscada abalou seu
equilíbrio. Por um segundo, quase chegou a sentir as dores dos chutes e pontapés que receberá
uma década antes. Ele esticou os braços e suspirou intensamente. Retornou sua atenção para
o céu e contemplou, por entra as fendas esverdeadas, o branco das nuvens que se moviam
lentamente. Por serem escassas, as raras incidências solares brilhavam com mais graciosidade
quando atingiam o solo.
Como se estivesse querendo falar com Deus, suplicou em voz baixa fazendo seu corpo girar:
– Eu jurei que iria perdoá-los – seus olhos se encheram de lágrimas –,eu prometi ao meu
pai e ao padre Jerônimo, mas... – desceu os braços – Eu não consigo, a raiva é maior, é muito
maior! – suspirou, desesperado – Não consigo me livrar dessa mágoa. Agora eu compreendo o
que a Catarina quis dizer naquele sonho. Ela estava certa.
Queria se ajoelhar e chorar, estar ali o deixou extremamente comovido. Conteve seus
impulsos e simplesmente continuou como estava.

Minutos antes

Enquanto Dionísio transitava distraído pela enorme área de lazer, sem saber que ele estava
próximo, Ana Júlia também perambulava pelo parque ecológico. Ela entendeu que precisava arejar
a mente. Esquecer o homem misterioso que tanto a fascinou, devia ser a melhor opção. Dentro de
seu quarto não era o suficiente para afogar seus sentimentos, distrair-se era a melhor opção.
Ela acessou sozinha uma fileira de árvores que mais se assemelhavam a um trecho de um
bosque e andou com leveza quase a afundar seu salto no chão macio. O parque despertava-lhe
nostalgia. Os tempos de infância abriam-lhe um sorriso quando repassavam ante seus olhos. Ia
sempre passear por ali com seus pais desde quando dera seus primeiros passos. Mais de oito
meses se passaram desde a última vez em que pisara no São Genaro. Bem humorada, sacudia a
bolsa presa em seu braço enquanto se deslumbrava reparando no movimento de adultos, crian-
ças e toda a agradável paisagem a seu redor.

160
William R. Silva

É uma garota orgulhosa, nunca precisou exigir amor e atenção de ninguém. Prometeu a si
mesma que não iria procurar o rapaz que a encantou. Considerava-se superior demais para correr
atrás de seus ex-amantes, mesmo quando interessada. Cortejos e elogios eram fatores comuns em
sua vida, jamais imaginou que um dia poderia ser desprezada. Pela primeira vez, estava sentindo o
gosto do próprio veneno, depois de menosprezar tantos pretendentes, agora era ela a desdenhada.
Seria ego ferido, paixão? Ela sentiu uma pontada no peito. Almejava urgentemente reen-
contrá-lo, apesar de não se mover para isso. Ele é quem deveria ir atrás dela. Pelo menos era a
opinião que sustentava e se achava com razão.
– Será que um dia vou ver esse ordinário de novo? – riu, enquanto passeava.
Parou por um instante, sentiu o sol aquecer sua face, a sensação era agradável. Sorriu
quando, segundos depois, uma leve brisa a refrescou. Observou um casal sentado num banco de
pedra curtindo o momento a sós. Outra vez pensou nos braços fortes de Augusto a envolvê-la
com fervor. A recordação provocou um arrepio gostoso na camada sensível de sua pele. Deu um
rápido suspiro e se entristeceu. Então prosseguiu.
– Ele nem deve se lembrar mais de mim – murmurou, melancólica. Um cãozinho dispa-
rou entre suas pernas, duas crianças correram em direção ao animal fujão. Ela riu e continuou a
caminhar – Com certeza está com outra, não devo significar nada para ele. Se é que signifiquei!
Ergueu o rosto e venerou um pássaro sobrevoando em movimentos circulares. A ave
desceu em espiral até aterrissar na beira de um pequeno lago e começar a beber da fonte. Após
assistir o breve espetáculo, continuou a seguir o trecho. Resolveu sentar-se num dos bancos e as-
sim fez. Com a mão sobre o queixo, ficou a vislumbrar a paisagem e as pessoas que se divertiam.
Surpreendentemente, algo improvável aconteceu. Num movimento brusco, a linda jovem
saltou ligeira do banco fazendo sua bolsa cair. Era coincidência demais ou talvez destino. Acre-
ditava em destino. Seus olhos se espicharam quando avistou Dionísio, não muito longe, descer
uma trilha e seguir para uma gruta.
– Augusto – berrou, o mais alto que pôde. – Me espere! – agachou e recuperou sua bolsa.
Em seguida, saiu correndo.
Ela gritou por mais duas vezes, nenhuma resposta. O homem finalmente sumiu de vista. Às
pressas, a mulher seguiu em perseguição e alcançou o mesmo caminho que seu amado percorrera
instantes antes. Mesmo sem fôlego, enfiou-se no espaço estreito envolto de plantas trepadeiras.
Arfando de cansaço, deu de cara com Dionísio de costas. Manteve-se por alguns segundos a obser-
vá-lo bastante emocionada. Queria avançar e abraçá-lo. Senti-lo nela. Entregar-se.
A mulher adiantou três passos para mais perto. Estava prestes a explodir de tamanha
emoção. Dionísio sentiu um frio na barriga, sentiu que alguém o espiava. Ele não se moveu.
– Oi, amore! – Ana regozijou – Não imaginava que iria te encontrar aqui!
O corpo de Dionísio girou imediatamente. O olhar frio a atingiu em cheio. A bela jovem
estremeceu quando notou sua expressão de lobo raivoso. Por mais incrível que aquilo pudesse
ter sido, Ana Júlia estava parada no exato ponto onde ele a encontrou no dia em que fora espan-
cado. Era coincidência demais ou... não quis continuar sua dedução. Será que aquilo era mais
uma... não, não podia ser.
– Oi, Augusto! – ela estranhou – O que está acontecendo?
O semblante do homem não era mais sedutor como o que ela vira quando estiveram
juntos. Ao invés disso, demostrava uma grande carga de ira. Dionísio parecia estar prestes a

161
A Coragem

atacá-la. As pernas da jovem vacilaram e o pulso acelerou. Ela quis fugir, mas a forte atração
que nutria por ele a empacou.
O medo a neutralizou completamente quando viu Dionísio partir como um touro para
cima dela. Ela temeu um ataque, então levou as mãos sobre o rosto, fechou os olhos e encolheu-
se. Nem notou que o rapaz se desvencilhou dela. Um grito forte poderia trazer qualquer um dos
visitantes que circundavam o parque para vir em seu socorro. Diante do estado de perplexidade,
Ana Júlia nem cogitou tal alternativa. Suas pálpebras se juntaram com tanta pressão que quase
arderam. Continuou sem enxergar, escutou algo arrancando folhas e galhos. Não tinha sido
atingida por nenhum golpe.
Ela adquiriu coragem e abriu os olhos. Desse modo, vislumbrou a inexplicável cena que se de-
senrolava. Dionísio, enfurecido, precipitava a rasgar as plantas trepadeiras que os cercavam. Quando
a paixão que sentia por ele minutos antes se converteu em medo e perplexidade, Ana não soube pre-
cisar com exatidão, mas era isso que passara a sentir por ele diante da cena. O homem descontrolado
sussurrava algo enquanto chutava as plantas e galhos quebrados. O que tanto procurava?
O indomado, ainda mantendo seu estado de insanidade, virou-se para a mulher loira e
berrou agressivo:
– Onde eles estão? Trouxe eles de novo, não é? Armou a armadilha outra vez... – com
voracidade, insistia em romper o forro verde, puxar ramos e a quebrar galhos à procura de algo
entre suas frestas – Onde eles estão, onde? – a encarou, friamente – Me fala?
Ana ficou sem ação.
– O que você está falando, Augusto? – começou a questioná-lo, aflita – Eles quem? Quem
está procurando?
Sua lucidez voltou assim que compreendeu que a moça estava pálida e com as mãos
sobre a boca. Enfim, ele percebeu a gravidade do ato de delírio que estava a cometer. Pensou
erroneamente que Roberto e seus cúmplices estavam ali novamente querendo zombar dele, mas
entendeu que sua suspeita não fazia o maior sentido. A raiva o dominara, só naquele instante
compreendeu o quanto sua atitude era patética. Sentiu vergonha de si mesmo, tentou se acalmar.
Ana estava branca como um boneco de neve. Ela se assemelhava a uma criança com medo de
ser castigada pelos pais após um ato de travessura.
– O que você está fazendo aqui? – quis saber Dionísio, arfante. Seu tom de voz ainda era
grosseiro, embora tenha soado com razoável suavidade.
O ar saía descontrolado de seus pulmões, os lábios de Ana Júlia se pressionaram. Primeiro
o encarou e tentou controlar o pavor que sentia. Depois disse:
– Estava passeando no parque... – ela engasgou – Vi você e te segui até aqui.
Ele também recuperou o ar perdido e respirou apreensivamente.
– Veio sozinha? – sabia a resposta, mas queria ter certeza.
A incompreensão dela se tornou mais visível quando arqueou suas sobrancelhas aparadas.
Ela olhou ao redor e voltou-se para o interrogador.
– Sim... estou sozinha, mas por que está agindo assim? O que aconteceu?
O cenho de Dionísio franziu.
– Está na hora de acabar com essa farsa – afirmou, decidido – Já chega!
– Augusto, você está me dando medo – ela recuou.
– Não se lembra de nada, Ana Júlia? – ele a encarou. Viu que a jovem ficou desorientada

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William R. Silva

– Olha bem para esse lugar! – indicou-lhe o chão gramado.


Ela tirou o cabelo da testa e o colocou atrás da orelha esquerda.
– Por favor, pare com isso! – revidou, apavorada – Senão, vou embora!
Ele se aproximou e a segurou pelo braço. Os olhos de esmeralda se arregalaram para ele.
Foi nessa hora que seu detentor fez a pergunta que há tempos estava presa em sua garganta:
– Lembra daquele gordinho que te mandou uma carta na escola, que disse que te amava?
– o punho de Dionísio se cerrou no pulso dela. Fosse o que fosse, ela era uma mulher. Era mais
fraca que ele, seria covardia machucá-la. No entanto, seus dedos eram fortes, não viu que o pulso
dela doeu – Lembra, Ana?
A mulher novamente sentiu seu coração palpitar, um arrepio atravessou-lhe a espinha.
Sentindo sua face inundar-se em lágrimas, uma luz imaginária faiscou ante seu rosto, fazendo-a
se lembrar do episódio. O menino gordinho que ela ajudou a enganar. A cilada que armaram
para ele. Como isso passou despercebido? Agora começava a enxergar com mais clareza a situ-
ação. Em pânico, ela o indagou bastante surpresa:
– Você é parente dele, e isso? Meu Deus, isso foi há muito tempo! –afastou-se – Nem me
lembrava mais...
– Não se lembrava mais? – ele contestou. Deu alguns passos e parou com o rosto quase
unido com o dela – Não... – num solavanco, soltou-lhe pulso. Uma marca roxa contornou o
antebraço dela – não sou parente dele...
Outra vez, ela tentou se afastar, mas um tronco atrás de si frustrou-lhe a fuga. Sentiu a
dura árvore quando forçou sua coluna contra ela, sua boca entreabriu.
O homem prosseguiu:
– Menti para você, Augusto é meu segundo nome –ele a olhou nos olhos. – Me chamo
Dionísio, lembra desse nome? Ele não te diz nada?
Ana Júlia, em prantos, passou as mãos no rosto borrado de maquiagem e limpou os ves-
tígios de lágrimas que lhe escorreram. Os olhos verdes dela se escancaram lentamente e percor-
ram Dionísio de baixo para cima até se encontrarem com os olhos dele. Ela ficou zonza. Não
podia ser! Aquilo só poderia ser um pesadelo!
– Aquele menino tímido e desajeitado, é... – ela titubeou e agarrou no tronco. Suas unhas
tentaram perfurar a casca dura, tamanho era o temor que sentiu naquele instante. A sensação de
morte envolveu-lhe por inteira –Você? É você mesmo? Como você pode mudar tanto? Como?
– mais lágrimas escorreram em sua pele lisa e rosada – Como?
Vagarosamente, ela foi deslizando pelo tronco planejando ter uma margem para escapar.
Ainda a chorar, mais uma vez analisou no homem a sua frente. Penetrou os olhos de Dionísio e
conseguiu sentir sua alma. De modo nítido, visualizou o adolescente obeso que ela desprezou preso
dentro daquele globo ocular. Sua face não era mais arredondada, não era dono de uma postura
acanhada e tudo nele havia mudado, estava mais esbelto. O rosto masculino e atraente que a dei-
xou fascinada, quase tudo nele tinha se modificado. Contudo, sua forma de olhá-la era a mesma.
Cismou que seria espancada da mesma maneira que os colegas do colégio fizeram com sua vítima.
Talvez ele queira revidar, um suor gelado escorreu em sua pele. Tinha de correr para longe, mas se
ele a alcançar e tapar-lhe a boca para que não pudesse gritar? Mais lágrimas começar a cair.
– Eu não sabia que eles iriam espancá-lo! – as palavras dela denotaram um misto pavor e
desespero – Eu juro... – ela dobrou o indicador e removeu as lágrimas das pálpebras – Eu juro,

163
A Coragem

Dionísio! Era só uma brincadeira, não era para ter acontecido daquela maneira.
Ela andou até a saída, Dionísio a interceptou e se deteve diante dela.
– Era só uma brincadeira? – ele gritou. O tom colérico voltou a controlar sua voz – É
assim que você pensava? E o sentimento dos outros? Isso não tem valor para você?
Clamar por socorro, o mais forte que puder. Sua única forma de se proteger de uma pos-
sível agressão. Exatamente isso que Ana planejava fazer se Dionísio experimentasse bater nela.
Assim, suspirou e engoliu o choro.
– A ideia da carta não foi minha... – suplicou – Eu juro! Não pretendia te magoar. Por
favor, acredite em mim!
O ódio do homem flamejou.
– Sabe por que aceitei ficar com você, Ana? Sabe? – ela fez que não com a cabeça – Para
poder te usar, era esse meu objetivo desde o dia que a reencontrei – ele revelou. – Assim como
você me usou como um passatempo, um brinquedo de diversão, também agi assim com você –
ele viu Ana chorar com mais intensidade, mas continuou. – Mulheres como você não merecem
o amor de ninguém... nunca!
Pedir perdão não surtiria nenhum efeito, não naquele momento. Ana queria que ele a
perdoasse, que a amasse. O rapaz nunca nutrira nenhuma afeição por ela. Aquilo lhe feriu como
uma faca deslizando e cortando-lhe a carne. Era tudo vingança, tudo mentira. Se fosse do feitio
dele esbofeteá-la, também já teria feito. Chances para isso não faltaram. Ele não cogitava lhe
fazer nenhum mal, pelo menos não fisicamente.
Foi então que Dionísio sentiu as mãos da moça o empurrarem, nem mesmo Ana Júlia
descobriu de onde retirara tamanha força. Sua atitude espontânea fora resultado do abalo que a
loira teve com tudo que aconteceu ali. Dionísio se sentiu repelido e liberou a passagem.
Quando a jovem saiu disparada, ele berrou:
– Você é um monstro, Ana Júlia! Um monstro.
As palavras ditas por ele a feriu vorazmente. Ana pressionou os lábios e observou Dioní-
sio pela última vez. Atordoada, deu as costas e saiu apressada pela brecha. A mulher correu pelo
parque. Conforme ia se distanciando, percebia que queria ir para bem longe, fugir, mas não dos
outros e sim.., de si mesma.

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CORAÇÃO FERIDO

O breu sintonizava perfeitamente com o estado de espírito no qual Ana Júlia se encon-
trava. Por isso, as cortinas foram unidas para impedir que a claridade do dia penetrasse no
quarto. Queria ficar no escuro. Os olhos de suas antigas bonecas, ursos e personagens de pano
pareciam ganhar vida ante a penumbra. Os brinquedos a fitavam como se estivessem com pena

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William R. Silva

dela. Ana sempre adorou ficar parte do dia confortavelmente em seu quarto. Bater papo com
amigos nas redes sociais, ler seus livros prediletos, sonhar com seu futuro, mas agora, somente
prantos desabavam sobre sua cabeça. Não queria conversar, não queria ver ninguém. Ou talvez
quisesse. Ter alguém para desabafar não seria de todo ruim. Seus olhos esvaíam-se em lágri-
mas que pareciam nunca ter fim. Com a coluna encostada na cabeceira, seus braços caíam-lhe
sobre os joelhos e suas pernas se ajuntaram. Haviam se passado longos minutos desde que ela
estava afundada na cama, submersa em seu estado de autorreflexão. O que havia lhe aconteci-
do no dia anterior a destruiu por dentro. Sentia o tempo todo como se uma mão lhe apertasse
o pescoço, a sufocasse.
Ela reparou nas roupas de grife, caixas de sapatos e bijuterias esparramadas pelo len-
çol. Sem entusiasmo algum, adquiriu tais utensílios durante um passeio matutino no Shopping.
Compras sempre foram seu refúgio nos momentos de decepção, desanimo e tristeza. Entretanto,
nem mesmo um banho de loja fora capaz de tirá-la do seu estado depressivo.
Foram tantas as ocasiões em que foram esfregados, que seus fios dourados se exibiam
bagunçados. Seus lindos olhos de esmeralda agora não possuíam mais seu brilho de juventude.
Pelo contrário, pareciam perdidos. Levantou os olhos, sentiu as pálpebras pesadas. Ela antes
fungou e pensou por um curto instante. Depois, sussurrou:
– Augusto! Dionísio Augusto! – encostou a testa nos joelhos – A carta, o parque. Ele nunca
me amou. Saímos juntos e ele me odeia, tudo foi vingança – sentiu novas lágrimas escorrerem.
A cortina se moveu um pouco por causa do vento que soprou através de um orifício da
janela. Nem quis reparar em nada, apenas dirigiu seus olhos para o espelho e se observou. Como
estava diferente, não via mais beleza em seu rosto. Quando foi que ficara tão desleixada com a
aparência? Nunca se vira assim.
– Ele mudou... mudou demais! Como isso é possível, como? – indagou como se estivesse
a questionar a si mesma.
Ela tornou a inclinar o rosto por cima dos braços sobre seus joelhos e deu um suspiro aba-
fado. Sentindo mais uma gota de choro escorregar pelo nariz e pingar em uma de suas pulseiras,
reviveu uma das lembranças de sua adolescência.

A carta
(17 de Maio de 2004)

Na medida em que percorria o corredor do colégio São Magno, Ana ia se revelando bas-
tante alarmada. Qualquer um que a investigasse de maneira minuciosa, saberia que circulava
pela instituição com más intenções. Meio desconfiada, foi avançando cautelosamente. Ela lan-
çava olhares para o interior das salas de aulas, diretoria, setores e funcionários que se empenha-
vam concentrados em suas tarefas. Passou despercebida. Então deteve-se defronte ao banheiro
feminino. Simulou querer entrar, moveu a cabeça para os lados e observou o ambiente. Ninguém
a vigiava. O estado de tensão tomou conta de seu sistema nervoso. Sentindo um sorriso de adre-
nalina escapulir de seus lábios, desviou-se da porta do banheiro e desceu correndo a escada que
dava para o pátio.

165
A Coragem

Ligeira, viu uma das cozinheiras transitar ao seu lado com uma vassoura. Ela então fingiu
ir até o bebedouro e ingerir a água que jorrava da fina torneira. Assim que notou que a serviçal
entrara na cantina, checou se mais funcionários trafegavam. Como se viu livre de curiosos,
apressou-se e alcançou a parede da cantina. A estudante sorrateira escorregou as mãos pela
parede detrás do refeitório e saiu deslizando pelo espaço estreito. Enfim, ela se deparou com o
namorado de costas.
Roberto, de pé, ainda não a tinha avistado. Tragava seu cigarro. Uma nuvem de fumaça
subia por cima de sua cabeça. Ela se empenhou para que os ruídos de suas pisadas não fizerem
muito barulho.
Sentia medo de ser encontrado pela diretoria. O que estava fazendo era passível de sus-
pensão, mas o que sentia tornava a situação mais divertida. Talvez seja esse fator que deixasse
aqueles encontros escondidos tão estimulantes. A garota olhou para os lados e chamou o namo-
rado em voz baixa:
– Beto, estou aqui, amore!
O adolescente sugou o cigarro fazendo a brasa da ponta do rolo ficar ainda mais acesa.
Ergueu a sobrancelha e liberou a fumaça no ar. Girou e contemplou a formosa menina.
– Oi, loirinha, vem aqui! – riu – Pensei que não viesse.
Ana Júlia se aproximou. Ela recuou quando viu que os olhos do estudante estavam ver-
melhos. Por que o namorado faziam tantas coisas ilegais na escola e nunca era punido? Muitas
vezes se perguntara isso, resposta não encontrava nenhuma. Aquilo não importava.
– O que foi, Ana Ju? – ele perguntou. Seu sorriso estava malicioso –Está com medo, é?
A garota tocou a face do rapaz.
– Tenho medo dos meus pais descobrirem o nossas traquinagens – ela o olhou com esti-
ma. – Você não teme ser castigado pela diretoria?
Roberto arremessou o cigarro de maconha no outro lado do muro fazendo-o cair na rua.
Segura na mão da garota trazendo-a para si e a agarra.
– Está vendo como essa escola é linda? – escorregou as mãos até o traseiro da aluna e lam-
beu-lhe a orelha – Meu pai vive emprestando dinheiro a juros baixos para financiar as reformas,
projetos e melhorias desse colégio. Acredite, minha linda! – agora seus lábios se tocaram rapi-
damente e depois se desprenderam – O São Magno não pode fazer nada contra mim. Eu mando
nesse lugar – ele a soltou e abriu os braços. – Esse lugar é meu reino – riu, desmedidamente.
Seus braços voltaram a envolvê-la.
– Vamos aproveitar o máximo que pudermos. Não podemos demorar, senão nossos profes-
sores irão sentir nossa falta – disse ele. – Embora eu pouco me importe com isso! – ambos sorriram.
– Assim é ótimo. Escondido é mais gostoso! – volveu Ana excitadamente.
Os dois ficaram a se beijar por alguns minutos. Preocupada, a garota se livrou do abraço.
– É melhor eu ir agora – ela disse. – Na hora do intervalo, agente se vê! – encarou-o e sorriu.
Roberto gesticulou.
– Corre na frente, vou esperar um tempo para ninguém desconfiar.
Ela refaz toda a sua trajetória rumo a sua sala de aula enquanto ajeitava o uniforme e ca-
belos desordenado. O retorno poderia ter sido despercebido se não fosse pela fato de um menino
obeso vir em sua direção. Ana Júlia tentou esconder a careta de desagrado que fez quando viu
que o estudante desengonçado se aproximava. Conseguiu, pelo sorriso nervoso que ele demons-

166
William R. Silva

trava, acreditou que a moça estava feliz em vê-lo. Sentiu um gosto amargo na garganta, ela o
detestava. Aquela cara de menino carente, tímido e recluso. Internamente, sabia que o aluno
gostava dela, mas a afeição que nutria a incomodava. Se pudesse, faria-o desaparecer num passe
de mágica. Arquitetou uma forma de fugir, mas já era tarde.
Ana correu os olhos no estranho desajeitado e se convenceu de que não poderia mais se
esquivar da rota dele. A menina dissimulou um sorriso. Tornou a arrumar seus cabelos e per-
guntou, confusa:
– Oi, Di...qual é seu nome mesmo?
Sem ter coragem de encará-la, o gordinho respondeu:
– Dionísio. Fiz o trabalho de história com você na sexta-feira. Lembra?
Nem se lembrou, mas a jovem continuou com a farsa. Começou a coçar a cabeça espa-
lhando seus fios de ouro.
– Ah... sim, lembro sim. Então, quer alguma coisa?
– Sim – acanhado, baixou os olhos. – Na verdade, não, quer dizer, quero te dizer sim, mas
de forma escrita!
Estremeceu de vergonha, mesmo assim ele lhe entregou um envelope que tirou do bolso. Ana
Júlia recebeu a carta com desdém, fez o possível para não demonstrar o quanto considerava a atitude
do colega de classe desprezível. Por um triz, ela não correu disparando gargalhas. Os risos seriam tão
altos que sem dúvida ressoariam por todo o passadiço. Conseguiu prender a reação de comicidade no
canto dos lábios. Não se soube se era por desatenção ou inocência, a verdade era que a atrapalhada
figura a sua frente, de modo algum enxergou o ar de deboche que Ana esboçava.
– Espero que goste! – ele soltou a última frase, virou-se e saiu apressado. Caminhou sem
olhar para trás.
O semblante dela assumiu uma expressão de nojo no momento em que observava o
garoto se afastar.
– Que menino idiota! Será que não se enxerga? – meneou com a cabeça, rindo – Nunca
que vou querer me envolver com um garoto desengonçado e esquisito desses, nunca! – ela repa-
rou na carta, carregada de desprezo.

Num clique, a luz do teto se acendeu, iluminando o quarto outrora escuro. Palpitou serem
seus pais. Quem mais seria? Ana não levantou os olhos para ver o intruso. Sentiu um corpo se
esparramar no colchão. Um cheiro suave de perfume circulou no quarto e infiltrou-se em suas
narinas. Conhecia aquele aroma, ergueu a cabeça. Depois de horas de prantos, finalmente um
sorriso surgiu em seu rosto quando viu a amiga sentada ao seu lado. Maria do Rosário nem se
importou com a aparência abatida de Ana.
– Mari! – surpreendeu-se alegremente – Que bom que você veio, estava mesmo precisan-
do de você. Desde quando está aí? – perguntou com uma voz cansada.
Maria do Rosário acariciou a bochecha da amiga.
– Acabei de entrar, te vi cabisbaixa e me sentei a seu lado. Parecia que você estava distan-
te. Pensava em que, ou melhor, em quem? Por que está deprimida assim, posso saber? Seus pais
ligaram para mim, estão preocupados.
Ana sacudiu a cabeça.
– Lembra daquele rapaz que te falei, o Augusto?

167
A Coragem

– Sim. O que ele te fez? – Maria pressionou os lábios.


Os olhos verdes e aparentemente sem vida encaram Maria deixando escapar uma lágrima.
– Sabe aquele menino gordinho da escola que... você sabe.
Quando relembrou o fato com seu rápido movimento de arquear as sobrancelhas, a mo-
rena então respondeu:
– Sim. O que tem os dois a ver?
As mãos de Ana deslizaram sobre as dela e ambas trocaram olhares.
– Sei que você nunca viu o tal Augusto que te falei... apesar de comentar dele várias vezes
e lhe confessar que estava apaixonada – Ana falou. – Você pode até não acreditar no que vou
te dizer agora, mas o Augusto e o garoto obeso que me mandou a carta, aquele que enganei no
parque... – outra lágrima molhou seu queixo rosado – são a mesma pessoa. Ele se aproximou de
mim para me fazer sofrer... como eu fiz com ele – sua voz soou trêmula.
Os olhos de Maria se escancaram de susto e sua boca entreabriu no instante em que ela
recua tapando a boca.
– O quê? – seu berro disparou tão alto que pode ser ouvido do outro lado da rua – Você
está brincando? – balançou a cabeça, tentando convencer a si mesma de que o que escutou era
mesmo verdade – Então ele mudou bastante para você não descobrir, não é?
– Sim, mudou mesmo – Ana concordou. – Vou te contar tudo. Está com tempo de ouvir?
Maria aquiesceu.
– Claro que sim... Sou toda ouvidos.
Ana, com seus olhos mórbidos fixos na ouvinte, seguiu a narrar toda a história. Maria a
escutava ansiosa, plenamente atordoada com cada informação que era detalhada pela amiga.

42

NOSTALGIA

(Lembranças de 2008)

O piso brilhava como diamante lapidado, queria ele ser tão asseado como o pai. Quando
este e seu filho não tinham tempo para manter a casa limpa, o dono da casa contratava emprega-
das para o serviço. Jamais vira a pia transbordar de vasilhas e sujeira no chão. Mesmo a comida,
no fim de cada refeição, era toda retirada do fogão e armazenada na geladeira, para que assim
pudesse limpá-lo. Átila sabia lidar com maestria de seus afazeres na cozinha. Vez ou outra che-
cava a touca que prendia-lhe os grandes fios negros e prosseguia no preparo da refeição.
O homem de touca enrolou um pano nas mãos, foi até o forno e abriu a porta. O calor no
local ficou mais pesado com o vapor quente que escapou do compartimento. Dionísio acertou
os talheres por cima do prato e sentiu seu estômago roncar assim que o cheiro da carne assada

168
William R. Silva

penetrou em suas narinas. O cozinheiro carregou a travessa de frango tostado e a deixou sobre a
mesa. Macarrão, arroz, feijão branco e uma salada colorida também enfeitavam a tábua.
– Parece ótimo! – o rapaz falou, com os olhos grudados na travessa – Já posso comer? –
ergueu o garfo em direção a bandeja.
O homem mais velho rapidamente moveu a faca. Provocando um tilintar de metal, afastou
o garfo de Dionísio do alvo.
– O que foi? – o garoto se viu confuso.
A testa de Átila franziu e ele sorriu para o filho. O cozinheiro então apontou para o liqui-
dificador, um jarro e quatro limões sobre a pia.
– Entendi! Tenho que fazer a limonada, não é? – a cadeira de Dionísio se arrastou para trás
com o tranco de seus pés – É a minha função.
– Não era esse o combinado? – Átila riu.
– É sim... – o jovem concordou enquanto cortava os limões em fatias e jogava os pedaços
dentro do copo do liquidificador.
Seu pai percebeu um certo desânimo em sua voz.
– Por que não esquece essa tal de Sílvia e procura outra que realmente valha a pena?
Desde que o dia alvoreceu, você esteve cabisbaixo – disse-lhe, assim que puxou uma cadeira e
se acomodou. – Sei muito bem que ela é a causa de sua agonia.
O cenho do homem mais novo se inundou de angústia, mas não revidou. Ele abriu a par-
te superior da geladeira, arrancou uma forma de gelo e a colocou sobre a superfície de pedra.
Levantou a jarra com água e a despejou dentro do copo. Adicionou açúcar. Encaixou o copo no
liquidificador e indagou:
– Como sabe que estou triste por causa dela?
– E teria outro motivo para estar? – indagou seu pai no segundo em que enchia seu prato
com um pouco de cada item da mesa.
O barulho pesado do motor do liquidificador interrompeu a conversa e alguns instantes
correram até que o suco ficasse pronto para o consumo. O silêncio tornou a imperar assim que
o rapaz pressionou o botão da máquina. Ele derramou o suco na jarra e depois pegou a peça
com cubos congelados, fazendo várias pedras de gelo se desprenderem da forma e despencarem
sobre o líquido esverdeado.
– Antes, ela às vezes era carinhosa, meiga, mas... – Dionísio carregou a jarra e a descan-
sou sobre a mesa – em outros momentos era fria, distante. Agora ela me ignora por completo.
– É claro! – Átila concordou – Ela age assim porque está com o ego saciado. Você há mui-
to tempo deixou de ser um desafio – ele tombou o jarro e preencheu pouco mais que a metade de
seu copo de vidro com a bebida. – Sua namorada já notou que você já está totalmente dominado
por ela. Acredite, mulheres como ela perdem o interesse com homens que se rendem facilmente
a todos os seus caprichos.
O garoto se endireitou na mesa e seguiu a organizar sua refeição no prato.
– Não compreendi o que quis dizer.
O homem mais velho viu que sentia calor e retirou a touca. Levou alguns de seus longos
fios de cabelos para trás, direcionou o garfo cheio até a boca e começou a mastigar. Terminando
o ato, pousou os olhos no filho.
– Uma mulher pode despertar o desejo de cem homens – declarou Átila – e apenas um re-

169
A Coragem

jeitá-la. Sabe o que acontecerá? – limpou os lábios com um guardanapo – Ela enfim se esquecerá
dos cem pretendentes que a cortejavam, mas se lembrará daquele que a desprezou pelo resto da
vida. Acredite, meu filho! Há poucas mulheres que são capazes de lidar com o ego ferido. Por
outro lado, todas elas se saem bem quando estão saciadas emocionalmente.
– Está dizendo que eu devo desprezá-la? – Dionísio rebateu.
– Não. O que quero dizer é que você faz todos os caprichos dela. A leva para sair, compra
presentes e faz todas as vontades da garota. Ela te vê apenas como um escravo particular, apenas isso.
A sinceridade de seu pai o fez perder parte da fome que sentia até dois minutos antes.
Dionísio nada declarou, apenas continuou a preparar seu prato.
– Eu já te avisei inúmeras vezes que essa moça não é mulher para você – seu pai seguiu
com o discurso. – Ela tem um caráter duvidoso. Sou vivido, sei reconhecer uma vadia quando
coloco meus olhos nela.
– Ela não é vadia! – Dionísio retrucou. Sentiu vontade de sair da cadeira e ir comer na
sala, mas o respeito que nutria por Átila o impedia de agir.
– Provavelmente – Átila prosseguiu –, uma hora ela vai querer um desafio maior. Um
homem que a domine e seja difícil para ela. Mulheres como essa Sílvia são viciadas em emoções
fortes, amam drama. Não estou falando isso para te magoar e sim porque quero seu bem. Me
ouça, cara! Fuja dessa garota antes que ela te faça sofrer.
– Você está equivocado, pai! – Dionísio sorveu um gole de suco em seu copo – Ela não
é como você pensa.
Átila fincou o garfo numa coxa assada e a mordeu. Saboreou o delicioso pedaço de ave derreter
em suas mandíbulas enquanto a triturava com os dentes. Engoliu o alimento e voltou a argumentar:
– Creio que, algum dia, acontecerá de você ferir alguma garota também. No jogo do amor,
sempre há um lado mais fraco, aquele que ama mais e outro que domina. Você se ilude demais e
depois reage contra as próprias mentiras quando eles se quebram. Você ainda vai errar e muito.
Sei disso... e quando conhecer essa infeliz, irá magoá-la. Espero que, quando isso ocorrer – sor-
veu um pouco de sua limonada –, você não venha a machucar tanto o coração dela. Sim, isso
é uma hipótese. Não que eu o esteja incentivando a isso, mas nós seres humanos temos dessas
coisas. Uns poderão errar conosco e, sem querer ou não, também poderemos errar com as pes-
soas. Por mais incrível que pareça, essa mulher irá te amar como nenhuma das outras foi capaz
um dia. Nesse momento, entenderá o que estou querendo dizer.

Três batidas na porta do quarto fizeram Dionísio levantar a cabeça da almofada. Ele se
desligou de suas recordações e lançou um olhar na direção da porta. Foi assim que viu Kamille
sorrindo para ele. A menina portava um livro de capa branca preso em seus finos braços.
– Já são mais de meia-noite – o homem se assentou no colchão e retirou parte do cobertor
que o cobria. – Por que está acordada até esta hora?
A criança se achegou para perto do irmão e estendeu o livro para ele. Dionísio pegou o
impresso e baixou os olhos para ler o título.
– É o Pequeno Príncipe? – desatou a rir
– Continua a ler para mim! – Kamille também riu, inocentemente – Minha mãe começou
a ler no ano passado e nunca mais terminou – ela fez cara de triste.
– Tudo bem, sua mala sem alça! – Dionísio aceitou.

170
William R. Silva

Kamille pulou em cima da cama e deitou sobre o peito do irmão. O homem abriu o livro,
encontrou a página marcada e iniciou a leitura.
– Capítulo quatorze... – ele começou a contar a história –, o quinto planeta era muito
curioso. Era o menor de todos. Tinha o espaço suficiente para um acendedor de lampiões...
Em menos de dez minutos, os ruídos de Kamille em estado de sono profundo foram ouvi-
dos pelo rapaz. Dionísio reparou na garota dormindo, colocou o livro na mesa ao lado da cama
e deu uma risada. Desse modo, ficou a afagar os cabelos da garotinha. Na proporção em que
acariciava a irmã, voltava a pensar sobre seu passado.

(Meados de 2006)

As duas beatas ajudavam na faxina da sacristia, embora pouco estivessem atentas ao di-
álogo que o garoto tinha com o Padre. A visita dos Silverato era comum, estavam acostumadas
a ver, tanto o pai quanto o filho, visitar a igreja nos fins de semana e tagarelar com o reverendo.
As duas senhoras esfregavam um tecido embebido com cera e enrolado em suas respectivas
vassouras. Seguiam a encerar o chão de madeira enquanto conversavam baixo entre si.
As sandálias de Jerônimo pisoteavam no assoalho conforme o som que produziam ecoava
naquela parte do templo. O padre se interrompeu, tirou um quadro da parede e começou a passar
um pano úmido sobre o vidro com a face de cristo até ver a superfície polida cintilar.
O ancião satisfeito com o trabalho, ergueu a moldura e a reencaixou na parede. Enfim,
perguntou-lhe:
– Sabe qual é um dos maiores perigos quando se pensa obsessivamente em vingança? –
desafixou outro quadro.
– Não – respondeu Dionísio atrás dele. Carregava o balde com água e auxiliava seu con-
selheiro na tarefa – Qual seria?
O padre tomou o balde do garoto, mergulhou o tecido na água e o retirou.
– O risco que se corre quando se odeia demais... – o senhor falou, encarando o interlocutor
no momento em que torcia a flanela a fim de torná-la menos encharcada – É que você pode vir
a ser tão cruel quanto aqueles que te prejudicaram.
As sobrancelhas do adolescente se arquearam.
– Sério?
– Exato! – Jerônimo esfregou o pano no quadro de um anjo seminu – E esse sentimento
ruim o vai dominando tão intensamente que você não irá sentir seu coração se encher de malda-
de. Se tornará um ser ruim sem se dar conta disso. Irá perder a honra.
Ele entregou o quadro para o ajudante para que o mesmo o coloque de volta no lugar.
Dionísio assim o fez.
– É isso que você quer, Dionísio? – Jerônimo sorriu com o canto a boca. Rugas surgiram
em sua testa – Se transformar num covarde sem caráter assim como os alunos que o machucaram?

É isso que você quer, Dionísio? Se transformar num covarde sem caráter assim como os
alunos que o machucaram? A voz do conselheiro religioso ecoou repetidas vezes em seu íntimo.

171
A Coragem

O padre estava certo. Sempre esteve. Dionísio virou o rosto, sugou todo o ar e o soltou com uma
pesada sensação de tormento. Seu pai era sábio, o líder católico também. Será que um dia teria
pelo menos um quarto da sabedoria que os dois possuíam? Perdeu-se em seus pensamentos até
que a garota o acordou de seu transe.
Kamille levou as pernas até a barriga de Dionísio e roncou mais alto. Ele riu discretamen-
te e a mirou com carinho. Passado o momento, ergueu a criança e a acomodou com cuidado em
seu ombro. Saiu da cama, passou pelo corredor e levou a menina até o quarto dela. Pôs a irmã
adormecida em cima do lençol, ajeitou sua cabeça no travesseiro e a cobriu. Abaixou a face e a
beijou na bochecha. Caminhou até a janela e esquadrinhou a noite deserta.
– Já chega! – murmurou – Não odiarei mais aqueles que me espancaram. Acabou! – sus-
pirou no segundo em que pensou em Ana Júlia. Poderia pelo menos tê-la escutado. O tempo
passou, é um homem formado, não se trata mais de brigas de colegiais. A partir deste dia, estava
disposto a colocar uma pedra no assunto – Acabou! Não quero mais viver com esses sentimentos
negativos – notou que o desabafo interior retirava parte do peso de sua alma. Observou a lua
cintilante e refez seu juramento com toda a força do seu coração. – Eu os perdoou! Ana, Roberto,
Paulo... João. Eu perdoo todos vocês.
Ele se sentou no chão do quarto e sentiu lágrimas escorrerem. Olhou de relance para a
cama. Kamille continuava adormecida. Suas mágoas lhe faziam mal. Tal fato estava o matando
por dentro, depois disso se sentia livre. Irá dar uma oportunidade para que Ana Júlia possa es-
clarecer sua versão da história. Deve isso a ela. Seus inimigos, de agora em diante, serão apenas
páginas arrancadas da história de sua vida. Nada além de páginas sujas e lançadas no lixo. Tinha
de fazer isto, pelo bem de si mesmo.

43

A PSIQUIATRA

Realinópolis-MG
(No sítio de Átila)

O forte barulho do antigo relógio preso à parede pareceu fazer as paredes tremerem quan-
do soou as quatro badaladas. Thales Delone, portando seu copo cheio de whisky, lançou seu
olhar curioso na relíquia e começou a estudá-la. Os algarismos romanos confeccionados por
peças de metal, a madeira polida e envernizada, o pêndulo, outrora oscilante, descansando no
ornamento. Assim como o relógio, muitos dos móveis também eram de materiais desgastados.
O proprietário do sítio fez questão de conservar todos os velhos adornos da modesta casa. Tudo
ali remetia a lembranças do século passado.
– O que achou do sítio? – a voz de Átila disparou de outro cômodo junto ao som de suas

172
William R. Silva

pisadas se arrastando pelo assoalho. Ele então surgiu de uma das divisórias do aposento com
uma sacola em mãos – É bem aconchegante, não acha? – rompeu o lacre e jogou algumas rações
no aquário enquanto apreciava os peixes coloridos subirem ligeiros para a superfície.
Thales tomou um gole da bebida.
– Não afirmo que desejaria morar em um lugar assim – caminhou até a varanda, sentindo
com prazer o aroma de grama com terra molhada –, mas para relaxar e curtir os finais de semana
não há nada melhor.
O homem de cabelos longos colocou a embalagem sobre a mesa no centro da sala e se
uniu ao visitante. Pensativos, concentraram-se em alguns cavalos comendo no pasto e demais
peculiaridades naturais do terreno. Há uma longa distância, um minúsculo Cross Fox, que mais
se assemelhava a um ponto amarelo se movendo, surgiu no início da estrada de terra.
– E seu filho? Teve notícias dele? – Thales cortou o instante de silencio, fixo no automó-
vel que avançava pela pista despavimentada.
– No início, me ligava de duas a três vezes por mês para saber como estou, meus negó-
cios, a cidade e outros assuntos – Átila sentiu um sorriso saltar-lhe dos lábios. – Mas, depois
de certo tempo, passou a ligar uma vez por mês. Por mim, tudo bem, desejo muito que tudo dê
certo para ele.
Mais um vez, Thales experimentou outra dose da bebida. Átila enterrou as mãos nos bol-
sos da calça e seguiu para o lado de fora. Ele saltou os três degraus e atingiu o solo. Sentiu um
monte macio envolvendo seu sapato quando seu pé direito se afundou num monte de esterco.
Imediatamente, subiu o calcanhar e baixou os olhos. Franziu a testa ao notar a sujeira de fezes
esverdeada na sola.
– Parece que os cavalos daqui resolveram te oferecer um presente – Thales brincou.
O homem mais velho riu e se apressou até uma torneira. Abriu-a e, com o braço apoiado
na parede, deixou a água escorrer sobre o calço flexionado até ver o estrume ser removido.
– Grande Nessahen! – Thales exclamou, tornando a inspirar o aroma puro do campo. Não
sente saudades dos velhos tempos? – seu coração se encheu de orgulho – Sou muito grato por
tudo o que vivi e aprendi com você e o Sílvio.
Nelson fechou a torneira e por uma curta fração de segundos, prendeu sua visão no Cross
Fox. O carro atravessou a porteira e ocupou o solo da propriedade.
– Senhor Travis – ele se virou para o amigo na varanda. Deslizou o sapato na grama vi-
sando limpar os últimos resquícios de sujeira –, é verdade que pensei que pudesse me distanciar
do nosso passado. Contudo, estava errado, uma prova disso é que aqui estamos nós – fitou o
hóspede de forma amistosa.
Thales agitou o copo fazendo os cubos de gelo se chocarem entre si. Olhou para o antigo
tutor e aquiesceu. O Cross Fox, produzindo um ronco, finalmente alcançou a fachada da peque-
na morada e freou. Nelson Átila, na expectativa de ver a motorista descer, deteve-se defronte
ao automóvel. A porta se abriu. A figura de uma mulher elegante, de porte médio, usando uma
calça preta e um blazer cinza, projetou-se diante dos dois homens.
– Seja bem-vinda, senhorita Elyane Schustner! – o anfitrião a segurou, ajudando-a descer.
A mulher, cujos fios de seus cabelos castanhos caíam-lhe sobre a lente de seus óculos,
parou ante Átila. Retirou a bolsa do carro e bateu a porta com um movimento brusco. Então,
falou educadamente:

173
A Coragem

– Como vai você, senhor Silverato?


– Bem, na medida do possível – o homem se mostrou contente. – Entre! – apontou para a
entrada do casebre – Thales estava mesmo precisando de alguém para ajudá-lo a tomar o whisky!
Ela sorriu e foi atrás do amigo. Antes de entrar, admirou a paisagem. Dois cavalos se
alimentavam no pasto. Gostou bastante de ver a harmonia de cores presentes no local.
– Lugar agradável! – confessou ela no instante em que segurou um copo com pedras de
gelo que Nélson lhe oferecia.
Átila ergueu a garrafa de Gold Label e começou a derramar o líquido no copo dela, fa-
zendo os cubos emergirem.
– Obrigada! – a mulher agradeceu. Ela transitou pela sala, estudando alguns detalhes da
residência – Pelo que me disse ao telefone, vocês afirmam com toda certeza que Ernesto Rodri-
gues está vivo, ou entendi errado? – inquiriu a elegante senhorita, dirigindo-se a Thales.
– Sim – Thales anuiu com a cabeça –, aquele cadáver que foi encontrado em Barbacena
não era o dele. Isso está mais que óbvio.
A psiquiatra pousou os olhos nele, ergueu o copo na direção dos lábios e degustou parte
do conteúdo.
– Estão se esquecendo de uma parte da história – ela discordou. – O exame de DNA
deu positivo. Os médicos atestaram que aquele corpo era mesmo dele. O que têm a me dizer a
respeito disso?
– Doutora – Átila fez ambos se voltarem para ele –, você é médica de saúde mental e sabe
melhor que ninguém que existem muitos profissionais que falsificam documentos a preços de
mercado. Sem contar que tratou do Ernesto durante algum tempo e, como percebeu, ele é um
homem de grande capacidade intelectual. O que te faz pensar que tudo não se passou de uma
tática bem arquitetada para enganar as autoridades?
– Faz sentido... – Elyane concordou. Bebeu outro gole – E é por isso que fui chamada até
aqui – sorriu, triunfante. – Vocês querem informações sobre o mais enigmático dos meus pacientes.
A face dos dois homens se inundaram de expectativas.
– Espero que possa nos ajudar, doutora – Thales comentou. – Toda e qualquer informação
é crucial – descansou seu copo na mesa.
A psiquiatra aquiesceu.
– Solicitei os documentos de diagnósticos que eu e os demais profissionais da área envia-
mos para os arquivos do manicômio judiciário – a médica declarou. – Dentro de alguns meses,
estarão em minhas mãos. Tentei acelerar o processo, mas serviço público vocês sabem como é.
– Entendo perfeitamente que esses documentos são importantes – Thales continuou –, po-
rém, também deve ter visto algum ponto importante na personalidade dele. Conversas, desenhos na
parede, anotações em seus livros que ele abandonou na cadeia, alguma pista ele deve ter deixado.
A mulher revirou os olhos, pensativa.
– Sim, só que infelizmente os pertences dele que sobraram só chegarão junto com os
documentos. E não se esqueça que a maioria deles foi queimada no incêndio – esclareceu ela,
fitando-os com um expressão preocupada. – O que posso dizer é que as informações verbais que
tenho sãos as mesmas que lhes disse quando faziam suas visitas. Ernesto se achava o salvador
do mundo, um ser especial e não enxergava maldade em seus atos. Faz tudo de ruim, pois, na
mente sádica dele, está predestinado a proteger a humanidade.

174
William R. Silva

O proprietário do sítio entregou a garrafa para Thales para que ele torne a encher seu copo
que havia se esvaziado. Feito isso, disse:
– E é isso que me preocupa, a mente daquele homem é como se fosse um porão escuro,
repleto de sujeiras, tralhas e objetos perigosos.
O semblante de Elyane caiu em desânimo. Sentiu seu corpo cansado e se sentou na poltrona.
– Lamento não poder ajudá-los!
Thales também se afundou no sofá. Ele analisou a fisionomia amargurada do seu antigo
mentor e se voltou para Elyane.
– Sabemos disso! – declarou – Mesmo assim, sua ajuda é de suma importância.
O som de relincho anunciou a aproximação de um cavalo na janela. Elyane lançou os
olhos no relógio para ter noção do tempo. Todos se silenciaram, meditando sobre o assunto. O
garanhão seguiu. Thales conseguiu avistar o tronco do animal assim que o mesmo atravessou a
entrada do rancho.
– Às vezes, ele dizia coisas desconexas, outras falava de modo persuasivo e inteligente...
– ela interrompeu o silêncio. A dupla não esboçou qualquer reação, embora tenham se virado
para a relatora. Mesmo assim, ela prosseguiu – O máximo que consegui perceber é que ele es-
condia algo. Um plano nefasto, uma objetivo que fazia questão de guardar na mente. É bastante
provável que vocês cinco devam ter percebido isso quando iam visitá-lo.
Surpreendentemente, os dois homens arquearam suas sobrancelhas e sentiram suas bocas
se entreabrirem no mesmo instante. De modo inesperado, ambos indagaram em uníssono:
– Cinco!?
Elyane viu que sua confissão fez com que a dupla saísse da inércia. Ela então levantou os
óculos e reforçou suas últimas palavras:
– Sim, vocês cinco. Por quê?
O semblante de Thales ficou carregado.
– Espere um pouco! Eu, o Átila, Sílvio Koren, Thomas Bruso. No total, contabilizamos
quatro. Nenhum parente do Ernesto ia visitá-lo além de nós. Isso eu garanto! Quem seria esse
quinto homem, então?
– Verdade! – a voz de Átila saiu esperançosa – Esse quinto homem pode nos dar uma
pista, você lembra como é a fisionomia dele?
A mulher abaixou a cabeça e se pôs a massagear o couro cabeludo. Foi acessando vários
rostos masculinos escondidos em setores remotos da sua mente. Recordou-se de um dos visitan-
tes que não se parecia com Silvio, Thomas e nenhum dos dois ao seu lado.
– Um homem alto, magro, de traços finos, cabelo parcialmente grisalho, aparentando ter
bem mais que quarenta anos – disse, convicta –, fisionomia limpa e sempre bem vestido. Ele falava
muito bem, assemelhava-se bastante a um desses empresários, políticos ou talvez as duas coisas.
Thales saltou do sofá, ansioso.
– E qual era o nome dele?
– Infelizmente, não me lembro mais – Elyane respondeu. – Faz muito tempo que o vi pela
última vez. Mas, por outro lado...
Átila pareceu aflito.
– Por outro lado o quê? Continue por favor!
A médica suspirou.

175
A Coragem

– As informações dele, sua idade, nome, endereço e tudo mais deverá estar escrito naque-
les documentos. As fichas de visitas com certeza chegarão inclusas no envelope que solicitei.
Eles se sentiram aliviados com o esclarecimento.
– Assim que receber os arquivos, por favor, nos avise imediatamente! – Átila pediu.
A mulher concordou.
– Fique tranquilo! Assim farei.

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A FESTA DE DEBUTANTE

Realinópolis-MG
(Mansão da Família Tavares)

8 de novembro de 2014.

Os inocentes olhos de Kamille se espicharam de curiosidade quando a pequena se deparou


com a linda decoração na entrada da propriedade. Seus sapatos repicavam no carpete com os rápidos
movimentos de suas pernas, a pressa para descer a deixava cada vez mais impaciente. Grande parte das
vagas do estacionamento estava ocupada, o Honda de Dionísio avançava lento a procura de um espaço
para se acomodar. Ele rapidamente desviou sua atenção da condução do automotor e observou, não
muito distante de si, um gracioso arco de flores dando as boas-vindas a todos que chegavam. Silhuetas
humanas iam e vinham nos entornos da mansão. A festa já estava bem movimentada. Atrás do orna-
mento, esparramava-se um longo tapete vermelho direcionando os visitantes ao conjunto de mesas,
buffet, cabana de luzes com músicas, Dj’s e outros ambientes. Surpreso, as sobrancelhas de Dionísio
se arquearam, nunca vira tamanho luxo em toda sua vida. Mulheres com vestidos deslumbrantes,
homens de terno ou de esporte fino e as jovens debutantes desfilando. Camisas brancas e calças es-
curas dos garçons se distinguiam conforme os mesmos transitavam erguendo suas bandejas no ar.
Seguranças atentos lançavam olhares desconfiados para todos os lados. Rosane, a segunda herdeira de
Rogério Tavares, à meia-noite completará seu décimo quinto aniversário. O dia do festejo deverá ser
inesquecível. Todos os principais funcionários da sede do Banco Século estavam presentes.
– Dio! – chamou a menina – Para o carro logo. A festa já começou, sabia?
– Calma, meu anjo! – ele riu da afobação da irmã. Depois de muito custo, conseguiu
avistar um espaço entre uma Mercedes e um Voyage. Guiou o veículo até a brecha e estacionou.
O som da música e um conjunto indistinguível de inúmeras vozes ecoavam pela mansão.
O motorista se preparava para puxar o freio de mão quando Kamille abriu a porta e aterrissou
seus pés no piso concretado.

176
William R. Silva

– Para que tanta pressa? – ela se preparava para correr quando a voz do irmão a deteve. A
menina petrificou-se à sua espera – Sua desesperada! – gargalhou.
Ele saiu e alcançou a menina, ambos seguiram e atravessaram o pórtico de flores. Um
arrepio atravessou seus sentidos quando se recordou de que aquela era também a casa de Rober-
to. Como um rapaz que sempre teve tudo o que a maioria dos seres humanos sempre sonhou se
tornou alguém tão ruim? Possuía dinheiro, fora presenteado por uma boa família, era cobiçado
no colégio. Um homem assim deveria passar a vida fazendo o bem, mas seu antigo algoz mais
se assemelhava a um demônio traiçoeiro. Todavia, esquecer suas desavenças era uma de suas
prioridades de vida.
Dionísio ficou tão disperso, que nem notara que era Kamille quem o guiava no percurso.
Por educação, ele decidiu ir até o casal anfitrião para dar-lhes os cumprimentos. Segurou firme
os finos dedos da irmã e serpenteou por entre convidados, garçons e empecilhos. Seis banners
com o rosto fotogênico da aniversariante foram afixados às paredes e ao enorme muro, arranjos
com flores artificiais enfeitavam as mesas redondas. A luminosidade no exterior da propriedade
fora propositalmente escasseada para que os projetores girassem seus jogos de luzes. Os dois
abriram espaço por entre um grupo de adolescentes que dançavam e estalavam os dedos no
ritmo da melodia alta e atravessaram o hall.
Eles, por fim, encontraram o casal anfitrião e mais algumas pessoas na base da escada.
Dionísio perguntou-se se tudo o que via era mesmo uma casa ou um grande auditório cujos as-
sentos foram substituídos por móveis caros. A sala era imensa e a escada se assemelhava a um
acesso ao andar superior de um navio de luxo. Rogério ria alto enquanto conversava com outro
bancário e sua esposa amarrava um nó do vestido de uma das debutantes no mesmo instante em
que tagarelava com a mãe dela.
A mulher apertou a fita e sorriu assim que viu uma linda criança e um elegante jovem se
aproximarem. Dionísio se deteve defronte à senhorita e sua irmã deu um sorriso largo para ela.
Os dentes de Kamille se mostraram brancos como leite.
– Boa noite! – iniciou Dionísio – Essa é a minha irmã mais nova, o nome dela é Kamille
– as atenções foram direcionadas para a pequena.
A convidada e sua filha, após saudá-los, rumaram para uma das mesas e se acomodaram.
Sozinha, Tânia então sorriu para a dupla de irmãos.
– Querido, veja quem temos aqui! – ela se virou para o marido.
O homem deu três leves tapas nas costas do amigo e se distanciou. Seus olhos caíram
sobre a linda criança que alcançava a cintura do irmão em estatura.
– Sua casa é grande, hein? – Kamille comentou revirando os olhos. Os donos da casa e o ra-
paz riram instantaneamente. Ela se desprendeu e encarou a anfitriã – Quantas pessoas moram aqui?
A senhora a achou encantadora, bem parecida com sua filha Rosane com seus sete anos de
idade. A socialite deslizou as costas das mãos sobre a lisa pele da face da menina e afagou seus
cabelos. Duas moças passaram entre elas no momento em que terminou com o ato de carícia.
No mesmo instante, viram um garçom rumar para a cozinha portando uma bandeja vazia. Muitas
pessoas dialogavam ao redor da sala, mas nada que incomodasse.
– Hum... deixe eu pensar – Tânia segurou o queixo, hilária. O semblante de Kamille se encheu
de curiosidade – Sabe que eu não faço a mínima ideia! Temos muitos empregados – riu de novo.
– Quando eu crescer, vou ter uma casa assim também. E vou ser elegante igual minha

177
A Coragem

mãe – disparou, entusiasmada. – Serei uma adulta super sexy! – deu outro sorriso escancarado e
moveu o rosto lançando mexas de cabelo para trás.
O casal mais uma vez desatou a rir.
– É um prazer recebê-los aqui em minha casa, meu rapaz! – disse Rogério. Ele estendeu a mão.
Dionísio aceitou o cumprimento, satisfeito.
– Obrigado pelo convite!
Rogério e sua esposa anuíram com a cabeça.
– Espero que aproveitem o evento – o banqueiro falou.
Ele se despediu e saiu andando com a garotinha pelo hall. Seus olhos analisaram vários
rostos femininos, mas nenhum deles era o da moça que esperava. No lado de fora havia vários
brinquedos infantis, desde piscina de bolinhas até cama elástica. Resolveu levar a irmã até lá
para que ela se distraísse. Assim terá como procurar a namorada sem que precise se preocupar.
Tinha muita gente, era complicado se locomover, mas tinha pressa em ver Maria do Rosário. A
saudade já estava perturbando-lhe a calma. Faz pouco mais de dois dias que não a vê, mas na
visão dele, pareciam séculos. Sentia uma vontade descomunal de abraçá-la, sentir seu perfume.

O longo vestido decotado de renda vermelha de Ana Júlia quase arrastava no chão. Sua
silhueta se apertava no tecido deixando-o mais deslumbrante que o nascer do crepúsculo. En-
quanto rondava a mesa de buffet à procura de iguarias, escolhia com cautela o que colocar no
prato de porcelana, preocupada em não desrespeitar sua dieta. Maria do Rosário, vinha bem atrás
da amiga, com seu vestido azul de mangas longas. Embora menos extravagante, fazia-se ser tão
notada quanto a companheira. Seguindo pelo prazeroso trajeto, também se servia.
– Oh my god! – Ana sussurrou – Eu jurei que não ia exagerar, mas acho que não vou
conseguir – riu baixo e adicionou duas esfirras no prato.
– Nossa! Quanto tempo que não vou a uma festa chique assim! – Maria comentou. Ela
espetou o garfo em algo parecido com salame enrolado num pimentão e pedaços de queijo e
disse – Uma festa dessas é o sonho de toda adolescente de quinze anos!
Um senhor se aproximou e encheu seu copo de ponche, depois se afastou. No mesmo
instante, Ana se virou para trás e mirou a amiga com um quê de deboche. Maria do Rosário a
olhou paralisada, segurando seu prato, sem a compreender.
– Ah, Mari! Isso é óbvio – a loira caçoou. – Faz tempo que você não vai em festa nenhuma! –
ela riu amigavelmente e se afastou para que dois garotinhos pudessem pegar alguns doces em cima
de um grande prato de cristal. Assim que ambos se retiraram, Ana Júlia olhou para o prato da amiga e
pegou o mesmo alimento que ela. – Lembra do nosso pacto que fizemos na infância? Temos sempre
que repetir algo que a outra fez pelo menos uma vez no mês, para nos mostrarmos unidas.
Maria tirou um pouco de cabelo que caía-lhe sobre os olhos e riu alto.
– Você até hoje lembra das nossas babaquices? Só você mesmo – seguiu a sorrir.
Elas avistaram uma mesa vazia, rodearam-na e se assentaram. Dois rapazes as observam
com olhares maliciosos, Ana fingiu que não os viu. Ela vislumbrou por um breve instante a
grandiosidade do ambiente e suspirou.
– Se eu tivesse me casado com o Roberto, tudo isso seria meu também!
A morena lançou-lhe um olhar repulsivo.
– Você escapou foi de uma maldição na sua vida, Ana. Agradeça a Deus por não estar

178
William R. Silva

mais com ele! – Maria disparou – Somente Jesus cristo pode mudar esse cara, ele é um homem
ruim, não tem pena de ninguém. Um mentiroso covarde. Sem contar que vivia te traindo.
Sua amiga não quis admitir, mas tudo o que ela dizia era verdade.
– E tem mais... – Maria continuou – Só estou aqui porque você tinha dois convites e re-
solveu me trazer com você. Se não fosse por isso, nem viria.
Ana Júlia empurrou o garfo, espetou-lhe no braço e riu. Maria recuou instintivamente
quando sentiu a fincada.
– Sua mentirosa! – Ana brincou – Sei muito bem o porquê de você ter vindo. Seu namo-
rado também está na festa – viu que a companheira sorriu discretamente – Só veio porque ele te
avisou que estaria aqui. Se não fosse por esse motivo, nem viria, já que foi o Roberto quem me
deu os convites – disparou uma risada enérgica. – Sua fingida!
As duas se divertiram com o comentário, como se não houvesse mais ninguém por perto. Um
garçom parou perto da mesa e abaixou uma bandeja com quatro copos cheios de uma bebida fraca-
mente avermelhada com porções de laranja, morango e folhas de hortelã. Ana aceitou o drink, mas sua
acompanhante faz que não com um movimento de cabeça. Ele deixou um dos copos sobre a mesa.
– É verdade, sua chata! Você acertou! – Maria brincou, vendo o homem partir para a mesa
seguinte – Ele trabalha para o dono dessa casa.
– Finalmente vou conhecer seu futuro esposo! – a loira comentou. Depois bebeu um pouco da
bebida – Aleluia! – ela passou a língua entre os lábios e sentiu o sabor do drink misturado com batom.

As pálpebras de Paulo Munis piscaram sem parar no instante em que ele atravessou a
cabana com suas luzes intermitentes. Alguns jovens dançavam entusiasmados e o DJ, com a
ponta dos dedos, rodopiava um disco de vinil num grande aparelho, produzindo vários sons
semelhantes a chicotadas no ritmo da melodia. O som alto das batidas eletrônicas ficou abafado
assim que o rapaz alcançou o lado de fora. Ele esquadrinhou o imenso número de pessoas, viu a
aniversariante, seus pais, no entanto, nem sinal de Roberto. Queria vê-lo, precisava colocar al-
guns assuntos em dia. Paulo retirou um copo de uma bandeja que estava próxima e o segurou no
ar. Imediatamente, um homem de camisa branca ergueu uma garrafa de champagne e o serviu.
Caminhou por mais alguns metros até Tânia e sua filha. Rosane estava linda. Ela trajava um
vestido azul metálico, luvas de cetim cobriam seus antebraços, uma tiara se destacava por cima
do cabelo preso. A coroa brilhava com o mesmo vigor que o colar de brilhantes em seu pescoço.
– Olá, Tânia – Paulo fitou a mulher mais velha.
– Olá, meu querido! – Tânia imediatamente o abraçou. Tantos anos que ele era amigo de
Roberto e vinha visitá-los em sua casa, que se acostumou a tratá-lo como se fosse um membro
da família – Que bom que veio.
Ele beijou a senhora na face e se dirigiu à aniversariante.
– Você está igual a uma daquelas princesas de contos de fadas – segurou a mão da garota e
também beijou-lhe os dedos. Viu que a adolescente sorriu. – Na verdade...está mil vezes mais bo-
nita que elas. É a princesa mais linda que já se viu – ele levantou o braço da jovem e a fez rodopiar.
O rosto de Rosane se encheu de vergonha. Suas sardas tinham sido camufladas pela ma-
quiagem, mas seu rosto sereno continuava o mesmo. Paulo sabia que o sangue que corria nela
não era o mesmo que o de Roberto, mas bem que ele poderia ter herdado o carisma e a humilda-
de que a adolescente carregava em seu interior. Uma vez se perguntara se não era Roberto o ado-

179
A Coragem

tado e ela a verdadeira filha. O caráter do amigo em nada se semelhava ao do restante da família.
– Seu bobo! – ela devolveu, aparentemente alegre – Diz isso só para me agradar.
– Minha menina, como sempre modesta! – sua mãe acrescentou – Ela é uma princesa. A
nossa princesa, sempre! – Tânia segurou com suavidade o rosto da adolescente.
Paulo olhou para os lados.
– Viram o Roberto por aí? – perguntou, fitando as duas – Queria falar com ele.
Rosane acertou sua tiara e respondeu:
– Ele está no quarto se arrumando.
– Pode subir lá – Tânia adicionou – Você é de casa – riu, amigavelmente.
Ele então seguiu para o interior da mansão, cumprimentou alguns conhecidos e tomou
sua bebida num só gole. Deixou a taça vazia sobre uma mesa e disparou pelo lugar. Sorriu para
algumas senhoritas que passaram sobre ele, beijou duas garotas no rosto e avançou. Foi até a
mesa de alimentos, retirou um salgado e o lançou na boca. Enquanto ia caminhando, começou a
mastigá-lo. Alcançou o pé da escada e galgou os degraus.
Foi andando pelo corredor, estudando os velhos quadros da família presos na parede. Ele
deu de cara com o lustre, imediatamente abaixou a cabeça para se esquivar do objeto pendurado
ao teto. Faltaram alguns centímetros para que sua testa não se chocasse com uma das lâmpadas.
Ninguém havia no espaço, convidados não tinham acesso à área superior da propriedade, a não
ser que os donos da casa lhe dessem permissão, como foi o seu caso. Mas algo estranho lhe
chamou atenção, fazendo-o suavizar seus passos para que seus sapatos não façam barulho ao
tocarem no assoalho. Paulo estava ouvindo vozes ecoarem do quarto de Roberto. Não entendia
o que diziam, mas pelo timbre, sabia que era um diálogo entre homens.
Seguiu calmamente e parou ante a entrada. Encostou o ouvido direito na porta, agora con-
seguia escutar claramente a conversa. O bisbilhoteiro se abaixou e estreitou os olhos para dentro
do buraco da fechadura. Enxergou Roberto e outro rapaz. Descobriu que sabia quem era o outro
homem. Repentinamente, sua respiração parou e uma tempestade de terror congelou seus sentidos
quando enxergou um objeto de metal nas mãos do segundo sujeito sentado na cama. Neste instante,
a única parte de seu corpo que se movia era seu coração que pulsava violentamente em seu peito.

Roberto apertou o laço de sua gravata borboleta e se dirigiu à janela. Seu quarto lhe dava um
visão ampla de toda a movimentação. Olhou para baixo em busca de algum conhecido. Viu empre-
gados do banco, colegas, amigos da família. Centenas de convidados zanzavam perante a fachada da
mansão. O homem franziu o cenho e estreitou os olhos em direção ao jardim. Simulou um cálculo
mental sobre a distância do lugar até onde se encontrava os convidados. Viu que o trajeto era um
pouco longo. Sua morada era grande, o local perfeito para executar seu plano. Dez seguranças foram
contratados, com mais os dois que já faziam parte da guarda da família, somaram-se doze. Conseguiu
avistar todos, cada um em um ponto estratégico. Com certeza, estes não lhe trarão problemas. Sua
expressão denotou um ar de escárnio quando observou Rosane irromper no salão.
Furioso, saiu da sacada e marchou até a porta. Forçou a maçaneta por três vezes para se
certificar de que estava mesmo trancada. Do outro lado, Paulo recuou assustado, pensando que
a porta iria se abrir.
– Eu já fechei a porta! – assegurou João Sérgio sentado na cama – Não confia em mim, mané?
Roberto se virou para o comparsa.

180
William R. Silva

– Eu sei, brother. É melhor prevenir. Meus pais costumam entrar sem bater.
O revólver calibre trinta e oito na mão direita de João Sérgio brilhava intensamente. Ele
levantou o braço e admirou o objeto, seus olhos piscaram em reação ao brilho do metal.
– Há bem mais que duzentas pessoas aqui hoje – João afirmou, ainda fixo na peça metá-
lica. – Tem certeza de que o que pretendemos fazer não será arriscado?
– Não se preocupe! – Roberto sentiu um sorriso de certeza contornar-lhe a boca – À meia-
noite, todos estarão entretidos com o baile de debutantes. Ninguém vai perceber nada. E outra,
os seguranças também ficarão um perto do outro no momento da cerimônia. Meu pai deixou
ordens expressas para que todos fiquem em volta do círculo de convidados para que a valsa
ocorra bem. Fez isso mais por status do que por necessidade – riu, discretamente. – Pode acre-
ditar, nenhum desses homens irá interferir. Quanto aos convidados – caminhou até o ajudante –,
eles não serão empecilho. Nenhum deles irá querer andar o longo trajeto escuro até o jardim. Na
verdade, a maioria nem conhece a casa.
– E será nesse instante que irá começar a chuva de fogos de artifícios? Ótimo! – João
Sérgio esfregou o cano do revólver na testa a fim de coçar a pele – Assim ninguém irá escutar
os disparos – concordou, triunfante – Vai ser fácil!
Roberto balançou a cabeça.
– Exatamente. Você o mata, eu o ajudo a colocar o corpo no porta-malas do carro e você
vai embora e se desfaz do defunto. Mas tudo isso tem que durar menos de dez minutos. É o
tempo dos foguetes estourarem e o baile acontecer. Antes que os convidados se dispersem. Caso
contrário, alguém poderá nos descobrir.
Por detrás da parede, a respiração de Paulo se intensificou quando entendeu que os dois
planejavam um assassinato. Temeu que pudesse ser notado, mas percebeu que Roberto não es-
boçou nenhuma reação. Ele retirou os olhos do buraco da fechadura e se levantou. Com cautela,
voltou a encostar a orelha na madeira.
– Mas e o Túlio, será que ele já veio? – o homem armado perguntou – Preciso saber como
irei trazê-lo até a jardim. É obvio que ele não virá por conta própria. Mas cara... – hesitou – Tem
mesmo necessidade de mandar o infeliz para o inferno? Sei lá, poderia tentar negociar as infor-
mações com ele antes.
Os olhos de Roberto se ergueram para ele.
– Ele sabe demais. Sabe que desviei dinheiro da financeira – sua voz denotava ódio e
apreensão. – Isso significa que não só lesei meu pai, mas poderei fazer com que toda a confiança
que os investidores têm no banco seja abalada com a notícia. Por acaso você teria coragem de
investir seu dinheiro num banco no qual o presidente foi roubado pelo próprio filho?
João Sérgio meneou com a cabeça.
– Se isso vier à tona – Roberto reiterou –, além de perder a confiança da minha família,
não terei mais nenhuma chance na presidência. Sem contar no risco de ir para a cadeia. Nossas
ações vão despencar, os investidores irão limpar nosso caixa. Será como um efeito dominó – só
de pensar na hipótese, ele estremeceu. – Há muitas coisas em jogo, meu amigo. Isso porque
não incluí a impressa, que cairia em cima de nós com toda a sua força. Sabe muito bem que as
notícias correm como vento de outono.
“É o Túlio! Querem matá-lo. Então é isso!” Paulo tapou a boca temendo que seus pensa-
mentos pudessem fugir pelas cordas vocais. Olhou para o fundo do corredor, viu que continuava

181
A Coragem

só. Por sorte, o barulho da música e das pessoas não alcançava o andar superior. Voltou a se
concentrar no diálogo.
– Isso não é bom! – o marginal concordou – Você tem que se tornar o presidente. Quero
tudo o que você prometeu – ele o fitou sentindo-se vitorioso.
– Sim. E vou conseguir a qualquer custo. Irei eliminar todos que atravessarem meu cami-
nho se for preciso – Roberto parecia possuído por uma força maligna. – Seja quem for.
João Sérgio o olhou de esguelha, seus músculos se retesaram. Existia algo de sombrio
naquela confissão. O que ele quis dizer com “eliminar todos que atravessarem seu caminho”?
Coçou rapidamente a cabeça como se aquilo fosse um dispositivo para dar-lhe coragem para a
pergunta que ia fazer.
– Irá eliminar todos que atravessarem seu caminho? – João inquiriu – E se essa pessoa...
– as palavras se prenderam em sua garganta, mas o ar que saiu de seus pulmões as liberaram em
seguida – for seu próprio pai?
Roberto o mirou com uma expressão quase vazia.
– O que você acha? – a interrogação soou tão natural quanto o vento que entrou no quarto
e moveu as cortinas. Não havia sentimento algum em seu tom de voz – Tudo na vida tem seu
preço! – riu alto, como se estivesse contando uma piada bastante engraçada.
As pernas de João Sérgio o levantaram da cama, automaticamente. De pé, ele observou
perplexo o semblante do comparsa. Já cometera muitos roubos e é capaz das mais cruéis atroci-
dades em benefício próprio, mas nunca antes vira alguém cogitar a ideia de matar o próprio pai
para atingir seus objetivos. Pela primeira vez, constatou a veracidade da personalidade psicopata
do seu antigo colega de colégio. Sentiu seus lábios pressionarem, mas não disse nada.

Paulo sentiu um fio de temor percorrer-lhe a espinha e a adrenalina correr em seu sangue. Enten-
deu que, a partir daquele momento, havia uma vida em jogo e que a situação era muito mais complicada
do que ele pensava. O tempo transcorria com velocidade, cada minuto era crucial. Mas o que fazer? A
quem contar? E se relatar o que ouviu, será que alguém acreditaria? Precisava agir rápido, essa era a
hora de sair disparado e procurar ajuda. Andou pé ante pé para não provocar nenhum ruído e chegou
no topo da escada. Tinha que checar se ninguém o viu, então olhou para trás pela última vez e desceu.

45

O EQUÍVOCO

Uma sequência de imagens se revezava no telão: a aniversariante com seus pais, ela sozi-
nha na beira da piscina, quando era uma criança, segurando bonecas, indo para escola, soprando
velas de aniversário. Tânia e seu marido sempre sorridentes. Eles apareciam uma hora com um
bebê nos braços, outra abraçados a uma linda menina. Apenas um ou dois dos Slides mostra-

182
William R. Silva

vam Rosane ao lado do irmão. Túlio achou isso estranho. Ele brevemente prestou atenção nos
curiosos que assim como ele assistiam as apresentações de fotografias digitalizadas; depois
continuou a encarar a tela. Túlio sentiu suas vistas se cansarem, estreitou os óculos e pousou os
olhos sobre a mesa enfeitada logo abaixo da tela. Contemplou o enorme bolo de quatro andares,
em cuja parte mais elevada havia uma minúscula bailarina de vestido azul que girava em torno
de seu próprio eixo. Os braços da boneca estavam erguidos e a ponta de alguns dos seus dedos se
encostavam. Passou um bom tempo observando-a rodopiar lentamente. A mesa de vidro estava
completamente lotada de flores e guloseimas.
O clima era de descontração, as lindas garotas que passavam por ele agradava-lhe a visão,
a música era animada. O ambiente tinha tudo para transmitir prazer e alegria, mas por mais que
insistisse, nada tiraria seu desconforto interno. Quando acordou, fora acometido por uma sensação
ruim. Sentimentos de morte, pavor e hesitação o dominavam. Mas por quê? Tudo isso fazia sentido
ou não passava de preocupações sem fundamento? Ele tinha um segredo explosivo nas mãos, uma
granada que a qualquer hora poderá estourar. A carga que carregava era pesada demais, talvez seja
por isso. Achou que a questão iria se amenizar com o tempo. Triste engano.
Ele ergueu o braço e reparou no relógio de pulso. Faltavam mais de vinte minutos para a
meia-noite. Entendeu que não estava bem internamente, julgou que a melhor coisa que poderia
fazer era ir embora. Girou o corpo e começou a caminhar por entre os presentes. Seguiu com
os olhos fixos na saída ornamentada pela majestosa coroa de flores. Não via quase nada do que
estava no percurso, nem convidados, nem pessoas e nem decorações. No entanto, riu ao ver meia
dúzia de crianças se divertirem na piscina de bolinha.
Chegou ao estacionamento e rumou em direção a seu carro. Tateou os bolsos à procura da
chave do veículo, mas quando ia retirá-la, sentiu o celular vibrar, alguém estava ligando para ele.
Sacou o aparelho e leu o identificador. O número era desconhecido. Apressou-se e alcançou seu
Siena. De onde estava, o barulho era menos intenso e não tinha pessoas por perto.
Ele se recostou no automóvel e levou o celular até o ouvido.
– Alô! Quem fala?
– Boa noite, Túlio! – uma voz aparentemente cordial irrompeu no pequeno fone. Túlio
a notou familiar, contudo, não conseguiu associar nenhuma imagem a ela – Assim como você,
também sei dos rombos que ocorreram no banco. Nossa vida corre perigo, precisamos conversar.
– Quem é você? – Túlio indagou, aturdido – Como sabe dessas coisas? Rogério também
contratou outra pessoa para investigar os desfalques?
– Na verdade, não... – a voz parecia disfarçada – Também sou um dos funcionários do
Banco Século. Para ser sincero, descobri tudo acidentalmente. Acredite em mim, há pessoas
querendo nos aniquilar. Tenho uma plano para podermos ajudar um ao outro.
Ele engoliu em seco, mas a curiosidade para ouvir o que a voz misteriosa tinha para lhe
contar falou mais alto.
– Onde posso encontrá-lo?
– Estou aqui na festa! – a voz soou firme.
– Aqui? – Túlio quase engasgou com a própria saliva. Seus pelos se arrepiaram – Então
você estava me vigiando durante todo esse tempo?
– Sim – a voz fez uma pausa e continuou – Era arriscado conversarmos na vista de outras
pessoas. Para nossa segurança, ninguém pode nos ver juntos. Nossos inimigos estão nesta casa

183
A Coragem

nesse exato momento, eles sabem dos segredos que guardamos.


– Eles? – o rapaz magricela rebateu.
– Sim. Há mais personagens nessa história, meu amigo. Ou você acha que o Roberto
surrupiou a grana toda sozinho?
Túlio viu que os argumentos do homem desconhecido faziam sentido, então resolveu lhe
dar o benefício da dúvida. Nos últimos dias estava apavorado, mal conseguia dormir de tanto te-
mor. Almejava por alguém que pudesse socorrê-lo, que lhe inspirasse confiança. Talvez alguém
que estivesse exatamente na mesma situação que a dele fosse a melhor saída.
– Tudo bem! – ele aceitou – Onde posso encontrá-lo?
Ouviu-se um rápido ruído até que a voz voltou a falar:
– Está vendo essa trilha a sua esquerda?
Ele tirou o telefone da orelha e lançou os olhos em um vão estreito, depois recolocou o
aparelho no rosto.
– Sim. Estou.
– Não deixe ninguém te ver! – disse a voz, em tom de comando – Siga a trilha, no final
dela, bem atrás da parede da mansão, verá uma porta. Entre nela, ande alguns metros e verá a
escada que leva até o jardim. É onde estou. Não estranhe por eu conhecer bem esse caminho.
Sou amigo da família de longa data, já frequentei essa casa algumas vezes.
Túlio puxou todo o ar para dentro dos pulmões e, em seguida, o soltou. Moveu os olhos
para os lados e seguiu pelo caminho indicado.

Seus passos pareciam que iam gradativamente acelerando, Paulo precisava encontrar
Túlio para avisá-lo da cilada que arquitetaram para ele ou pelo menos ver alguém que pudes-
se ajudá-lo a socorrer a vítima. Havia muitos no caminho, a maioria levemente embriagados.
Alguns colegas de trabalho com que se deparava pelo caminho falavam alto e o segurava pelo
braço querendo puxar conversa. Ele se mostrava educado, mas se esquivava, estava fixo no seu
objetivo e nada tinha importância. Era racionalmente impossível convencer alguém de que um
dos filhos do casal que estava promovendo a festa pretendia assassinar uma pessoa nesse mesmo
instante. Por outro lado, não poderia ficar na inércia diante de tal fatalidade.
A meia-noite se aproximava, nem sinal de Túlio. Seus neurônios pareciam começar a entrar
em colapso. Toda aquela bagunça, os minutos que avançavam e a necessidade de uma solução o
descontrolava. Quando compreendeu que encontrar Túlio poderia se tornar uma tarefa complicada,
acreditou somente na possibilidade de levar alguém até o jardim para ajudá-lo a impedir o crime.
No fundo, tinha receio em tentar impedir João de cometer a atrocidade e ser morto junto à
vítima, mas se fosse lá com mais alguém, seria mais seguro. O homem viu o chefe dos seguran-
ças se preparando para organizar o espaço da valsa, pedindo educadamente para que as pessoas
liberassem o área. Decidiu que iria até ele, terá de inventar uma mentira qualquer e levará o
segurança e mais alguns de seus ajudantes até o jardim. Ia dar o primeiro passo, mas mudou
de ideia assim que enxergou Dionísio a cerca de dez metros vigiando uma menina saltitando
alegremente na cama elástica. Sim! Ele poderia muito bem auxiliá-lo no desmantelamento do
plano homicida de Roberto. Sentiu uma ponta de alívio amenizar seu estado de tensão. No tra-
balho, Dionísio e Túlio sempre vão almoçar juntos. Nas últimas semanas, Paulo concluiu que o
administrador e Túlio agiam como velhos amigos. Com certeza ele o ajudaria a salvá-lo. Havia

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William R. Silva

também a hipótese de inventar que os seguranças e testemunhas estavam a caminho assim que
estivesse frente a frente com os assassinos, mas não abriria mão da ajuda do colega de trabalho.
Paulo caminhou, parou atrás do homem e levou a mão direita até seu ombro. Dionísio se
virou espontaneamente e o fitou com uma expressão de dúvida.
– Augusto, pode me ouvir por alguns minutos? – perguntou Paulo, franzindo a testa. Ele
olhou em volta para ver se havia alguém os sondando – A situação é de urgência.
Dionísio sentiu uma onda de preocupação incomodá-lo ao mirar os olhos suplicantes e
determinados do interlocutor. O semblante do advogado estava estranho, como se ele quisesse
relatar algo extremamente avassalador. Se fosse semanas antes, teria desconfiado dele. Entretan-
to, seguiu firme com sua atitude de deixar o passado para trás.
– Do que se trata? – Dionísio revidou – É algo sério?
– Vem comigo! – Paulo gesticulou com o braço direito fazendo-o segui-lo. Notou o rapaz
se virar para a irmã na cama elástica – Não se preocupe! Ela estará segura, seu amigo Túlio é
quem corre perigo.
– O que? – Dionísio gritou – O Túlio? – ele apressou os passos. Convidados se divertiam
e bebiam seus drinks distraídos, o grupo de seguranças se arrumava em seus lugares para a
apresentação dos dançarinos.
Ninguém percebeu o teor da conversar entre Paulo e seu companheiro.

Alguns dos homens desabotoavam seus ternos para poderem ficar mais à vontade dentro
da boate improvisada, mulheres requebravam de modo não muito devasso. Meninos e meninas
também pulavam animadamente em meio ao jogo intermitente de luzes coloridas. O vulto do
garçom servindo bebidas e petiscos vez ou outra surgia fazendo-se distinguir no meio de uma
infinidades imagens embaralhadas. Uma fumaça branca exalava através do cano de uma minús-
cula mangueira no piso, fazendo todos se entusiasmarem na neblina. Com a visão distorcida, de
mãos dadas, Maria e Ana percorreram a tenda e foram para o lado de fora. Inalaram satisfeitas
o ar puro e fresco da noite.
– Por que quis sair? Estava tão bom lá dentro.
Maria do Rosário examinou a sua volta e se voltou para a amiga.
– Queria tomar um fôlego! Estava muito abafado lá dentro. Também queria ver se encon-
trava meu namorado por aqui – sentiu uma risadinha escapar-lhe dos lábios. – Estamos na festa
há quase uma hora e até agora não consegui encontrá-lo.
Dois distintos senhores, segurando suas taças, comunicavam-se na entrada da cabana e
uma moça saltou da sala enfumaçada e arrumou seu vestido. Uma turma de rapazes passou entre
elas e seguiu para o local de dança. Ana deslocou parte de sua franja para trás e analisou os
quatro homens que adentravam no lugar com seus olhos de águia.
– Pelo jeito, vou ter que arrumar um gatinho para me levar para casa hoje! – Ana sorriu –
Não estou a fim de ficar segurando vela para vocês dois, não.
Maria riu e, por segundos, ficou submersa em seus pensamentos. Sonhou acordada com
os bons momentos que tem passado na presença do sujeito que a cativou. Ela permaneceu tão
absorta em seus devaneios que sequer notou o semblante de Ana se modificar repentinamente.
Os olhos de Ana Júlia estavam escancarados. Ela acabara de avistar o último ser humano
que desejava ver naquele instante, o homem que a seduziu por vingança. Ele falava algo sério

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A Coragem

com outro homem, a dupla estava exatamente no mesmo ângulo de visão das duas. Como Maria
estava de costas para ela, não podia constatar o que estava vendo.
– É claro que não vai segurar vela. Você é linda! Eu mesma percebi vários caras com os
olhos em cima de você – gargalhou e enlaçou novamente o braço da amiga. Maria até então não
tinha reparado na sua expressão de atordoamento – Vamos dar mais uma procurada para ver se
achamos o Dionísio.
Ela tentou puxar Ana Júlia para frente, mas a mulher ficou imóvel. Maria reparou em seu
semblante, parecia que estava vendo um fantasma. Só agora ela viu que a loira estava pálida.
– O que foi? – Maria indagou, sacudindo-a – Que cara é essa?
– Lembra do tal rapaz com quem estava saindo? – os olhos da mulher de cabelos longos e
loiros continuavam inertes, somente sua boca se moveu – Que depois se revelou aquele gordinho
que ajudei a humilhar na época do colégio?
– Sim! O que tem?
– Olhe para trás. O menino idiota da escola se tornou aquele homem ali – ela apontou
discretamente para os dois sujeitos.
Seguindo a orientação de Ana, ela se virou e deu de cara com algumas pessoas saindo
da cabana. Seus olhos percorreram a direção indicada e se sentiu feliz quando viu o namorado
argumentando com um outro convidado. O assunto parecia sério.
– Que coincidência! – Maria retornou os olhos para ela – O meu namorado é amigo dele
– tentou suavizar o momento. Aquele homem de camisa azul e calça preta, o que estava com seu
ex, é ele mesmo! – seu semblante se iluminou de tamanha alegria.
Ana sentiu seus olhos se encherem de lágrimas.
– Maria, eu... eu sinto muito! – se antes ela tinha motivos para chorar, dessa vez acabara
de ganhar mais um. Sua cabeça parecia querer explodir naquele momento. O destino havia lhes
pregado uma peça. Era impressionante demais para ela poder acreditar, mas sim, era verdade. O
outro, ela conhecia, era Paulo. Realmente ela e a amiga estavam se referindo ao mesmo homem
– O Augusto, o gordinho do colégio – fez uma pausa –, o seu namorado... todos eles são a mesma
pessoa. Ele te usou para se vingar, assim como fez comigo.
O sorriso que afeiçoava o rosto de Maria do Rosário se transformou numa expressão
de incredulidade. Uma leve sensação de náusea a acometeu sem que ela pudesse controlar. A
confissão a desestabilizou, aquilo nunca antes havia se passado em seus pensamentos. Nem
mesmo em filmes e novelas ela acreditava que uma coisa dessas poderia acontecer. Tudo isso
era frustrante, odioso e, ao mesmo tempo, surpreendente demais.
– Você está falando sério? Durante esse tempo todo estávamos com o mesmo homem e
não sabíamos? – a morena sentiu vontade de correr até o traidor e xingá-lo, chorar diante dele e
estapeá-lo – Tem certeza?
Ana anuiu com a cabeça, enfurecida.
– Isso não vai ficar assim! Vamos atrás dele.
– Vamos sim. Quero ver o que esse canalha tem a dizer – Maria rugiu como um leão.
A dupla raivosa rumou em direção a Dionísio e Paulo. Conforme trafegavam perceberam
alguns homens posicionando os rojões para dar início ao festival de fogos na hora indicada e
seguranças e empregados terminando os últimos preparativos para a valsa que irá acontecer nos
minutos seguintes, mas nem se importaram com a cerimônia. Mantiveram-se fixas no objetivo.

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William R. Silva

Elas puderam claramente notar que ambos não as viram se aproximar. Mesmo assim, os dois
saíram correndo por entre os convidados e se apressaram em direção ao estacionamento.
– O que eles estão indo fazer no estacionamento? – Maria perguntou enquanto avançava
atrás de seus alvos.
– Isso não importa! – Ana gritou, determinada. Ela segurou firme o pulso da companheira
e a faz andar mais rápido – Vamos atrás desse mentiroso ordinário, nem que seja no inferno!

46

FOGOS DE ARTIFÍCIO

O sentimento de medo atacou Túlio quando um vento frio arrastou algumas pétalas de
rosas sobre os degraus revestido de madeira. Ele domou sua insegurança e prosseguiu com a
descida para o jardim. Existiam dois postes para iluminar o lugar, embora não fossem o sufi-
ciente para se sobrepor à escuridão que dominava o espaço quase por completo. Seus olhos, por
debaixo das lentes, moviam-se para todos os cantos em busca do responsável pelo telefonema.
Seus passos eram leves e pausados, terminou o trajeto e ficou parado no meio da minúscula
praça florida. O cheiro agradável dos incontáveis lírios, gérberas e outras flores agradavam-lhe
o olfato. O ar era puro e perfumado. A sonoridade da algazarra que acontecia na mansão ainda
podia ser ouvida de onde estava, embora fosse quase imperceptível.
Ele deu três passos e ficou desconfiado quando viu que tinha um carro estacionado logo
atrás de uns arbustos, aparentemente um Vectra. Não conseguiu identificar a marca pois estava
escuro. Mas por que diabos havia um carro ali?
– Ei! Estou aqui – gritou, esperando respostas – Quero ouvir o que você tem para me dizer.
– Sim, já vi você – o homem respondeu. A voz ecoou de algum canto perto da escada.
Túlio deu meia volta e avistou um silhueta humana por detrás de um pinheiro.
– O quê vo-você quer? – ele gaguejou. Começou a se questionar se aquilo não era uma
cilada. Sentiu algo errado no ar – Di-diga logo?
A silhueta começou a se mover, andou lentamente e seu rosto ficou visível perante a fraca
claridade do poste. Túlio segurou os óculos para poder enxergar melhor quem era o homem que
estava defronte a ele. Sua pulsação se intensificou, sentiu o fôlego faltar. Agora sim, aquela voz
não lhe era estranha. Ele conhecia perfeitamente o sujeito que estava ali.
– João Sério! – o grito saiu involuntariamente. Ele se afastou, planejando uma fuga.
– Sou eu! – o bandido confirmou. Ele se aproximou – Para que essa cara de espanto? É
assim que você trata um velho amigo?
– Você nunca foi meu amigo! – Túlio desconheceu a própria ousadia.
– É – o cenho de João Sérgio assumiu um aspecto diabólico. – Isso tem um fundo de
realidade – riu.

187
A Coragem

Túlio baixou os olhos e recuou com a boca escancarada quando descobriu um objeto de
metal nas mãos do assassino. Ele percebeu sua garganta querer disparar num berro de socorro,
contudo, ficou em silêncio. Ainda fixo no revólver, viu que o braço do rapaz começou a se er-
guer lentamente até que o cano do calibre trinta e oito se encontrou rente a sua testa. Em choque,
a vítima sentiu seu corpo se petrificar. Completamente em pânico, começou a caminhar para
trás até que sentiu um par de mãos tocar suas costas. Instintivamente, girou e viu um segundo
indivíduo no cenário do suposto crime. O outro era Roberto, seu eterno carrasco.
– Que pena, amigo! – Roberto zombou – Sofreu tanto por minha causa na adolescência e
agora, por injustiça do destino... – suas sobrancelhas se juntaram – vai morrer nas minhas mãos.
– Você? Agora tudo fa-faz sentido! – ele constatou que a maneira como Roberto o enca-
rava sinalizava o quanto eram mínimas suas chances de escapar vivo dali – Vo-você planejou
tudo. Querem me matar! – não havia cogitado essa possibilidade, jamais pensaria nisso. Iriam
dar cabo de sua vida no mesmo dia e lugar da festa de aniversário. Tudo girou a sua volta, seus
ossos começaram a tremer.
– Sim, senhor – disse João Sérgio, fazendo Túlio se voltar para ele e ficar novamente
defronte para o cano metálico. – Feche os olhos, vai ser um tiro só, assim você não sofre. Viu
como sou bom? – os dois homicidas deram risadas simultâneas.
Uma máscara de pavor se apoderou da face da vítima quando sentiu o gelado cano de metal
se forçar contra sua testa. Seus pulmões retiveram o ar e seus lábios se fecharam firmemente. Sua
pressão arterial aumentou. Acabou, o último segundo de sua existência terminava ali! Ele estreme-
ceu. O dedo do matador deslizava no gatilho esperando o momento certo para disparar. No entanto,
um barulho de pisadas fortes na escada fez o homicida hesitar. Alguém descia os degraus quase
tropeçando nos próprios pés. Roberto e João Sérgio imediatamente se viraram para o intruso.
– Abaixe essa arma, cara! – Paulo ordenou assim que aterrissou os pés no solo – Estou
falando sério!
– O que você está fazendo aqui? – o marginal indagou. O revólver continuava pregado
no crânio da vítima, que quase se borrava – Que palhaçada é essa, Roberto? Você não me disse
que ninguém iria vir até aqui?
Roberto rosnou.
– Eu não sei o que esse idiota veio fazer aqui.
Túlio sentiu vontade de fugir para os arbustos, mas o medo o entorpeceu. Pensou bem e
entendeu que qualquer atitude brusca de sua parte poderia fazer o assassino se assustar e atirar nele.
– Vocês estão querendo matar uma pessoa? – Paulo revidou – Isso eu não vou permitir.
Por acaso quer voltar para cadeia, João Sérgio?
O atirador se irou.
– Cale essa boca! Se continuar a falar bobagens, eu acabo com esse magrelo idiota e de-
pois faço o mesmo com você. Ninguém me impedirá disso – com mais pressão, bateu o cano na
cara de Túlio, fazendo-o se afastar, sobressaltado.
– E quem disse que ninguém vai te impedir? – desafiou alguém no topo da escada. Eles
imediatamente olharam na direção do quinto homem. Seus sapatos amassavam as pétalas espa-
lhadas quando se deslocava pelos degraus – Hoje é o aniversário da sua irmã, como pode fazer
isso? Será que nem sua família você respeita? – apesar de não poderem descobrir claramente
quem era, sua voz ressoou num timbre agressivo.

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William R. Silva

Os dois criminosos abriram ainda mais os olhos tentando identificar o injuriador. Quando
grandes faíscas zunindo alcançaram o céu escuro e se transformaram em vários círculos de fogos
coloridos, a imagem de Dionísio se distinguiu com a sessão de clarões produzidos pelos estalos. O
som suave da valsa era ouvido em baixo volume. O show pirotécnico acabara de se iniciar. Enquanto
todos na festa assistiam ao evento, o grupo de rapazes se desafiava no outro lado da mansão.
– Você continua o mesmo, Roberto. Ainda age como um covarde – Dionísio vociferou.
Mais linhas coloridas alcançavam o firmamento na medida em que ele ia descendo os degraus. A
cada estrondo de fogos, círculos amarelos, vermelhos e verdes se formavam atrás dele. Sua face
ora se clareava, ora se camuflava no escuro com o efeito dos estalos que aconteciam naquele
momento – Você não mudou nada, nunca vai mudar!
– Augusto? – Roberto o dilacerou com os olhos – O que faz aqui?
– É o cara das manobras de carros – João gritou. – Era só o que faltava.
– Ainda não me esqueci da surra que vocês me deram, seus desgraçados! – Dionísio
se descontrolou, ao ver o revólver na cara do melhor amigo. Todo o seu perdão se evaporava
naquele segundo, transformando seus sentimentos escondidos numa massa cinzenta de ódio.
Roberto e João Sérgio trocaram olhares e depois deram de ombros.
– Que surra? Do que você está falando? – Roberto quis saber.
Até Paulo emitiu um ar de estranheza quando ouviu a frase “a surra que vocês me de-
ram”. Os fogos de artifícios ainda cintilavam com seus estampidos.
– Olhe bem para mim! – Dionísio, com uma controlável sensação de receio, aproximou-
se dos dois assassinos e olhou fixamente nos olhos de Roberto – Não te lembro ninguém? Olhe
bem para o meu rosto. Não é capaz de me reconhecer? – sua voz soou mais firme.
Roberto examinou minunciosamente a fisionomia do homem diante de si.

Quatro novas fagulhas voaram ainda mais alto que as anteriores, o estrondo produziu um
festival de luzes azuis e amarelas. As damas com seus parceiros abriam caminho no ritmo da
valsa e Rosane, como uma majestade, irrompia no salão. Rogério reparou em volta para ver se
via o filho, nem sinal dele. Era o irmão da aniversariante, deveria estar ali. O anfitrião se cha-
teou, mas fingiu calma. Ele notou que sua esposa também estava desconfortável com ausência
de Roberto. Para piorar a situação, parece que até as pessoas ao redor comentavam discreta-
mente sobre o assunto. Os inúmeros convidados, seguranças e demais presentes se reuniram em
volta para acompanhar o grande momento, ninguém desconfiava do que, naquela mesma hora,
estava ocorrendo no jardim.

– Não faço a menor ideia do que você está falando, cara – Roberto fitou o desafiador e se
virou para o comparsa. – Abaixe a arma. Era só para dar um susto nele – dissimulou, descarada-
mente. – A brincadeira acabou!
João Sérgio compreendendo a estratégia, retira o objeto da cara de Túlio. A vítima se sen-
tiu imensamente agradecida por ter sido salva. Se pudesse, ajoelharia ali mesmo sob os pés dos
seus salvadores e juraria fidelidade eterna. Sentiu como se tivesse nascido de novo. Novamente,
três estouros retumbaram no céu e a forte luz clareou a face dos cinco.
– Por acaso estão me achando com cara de idiota? – Paulo os atacou – Sei muito bem que
queriam matar Túlio. Isso não era susto, não.

189
A Coragem

– Chega de besteiras! – João levou o revólver na direção de Paulo – Você fala demais. Até
parece que não nos conhece. Será que esqueceu que somos amigos de longa data?
– Não sei... – hesitou – Antes gostava da companhia de vocês, mas veja só o que se tor-
naram. Aturar traquinagens de adolescentes é uma coisa, concordar com crimes hediondos é um
assunto completamente diferente.
Dionísio observou tudo com seu semblante de raiva.
– Você é um ingrato! – Roberto esbravejou – Como pode nos acusar assim? Logo nós dois
que sempre apoiamos você. Pensei que você meu amigo, seu traíra desgraçado!
Os olhos de Paulo se firmaram nele.
– Não sou amigo de assassinos! – falou em voz alta.
João chegou mais perto.
– Vou te mandar para o inferno, seu merda! – gritou. Paulo recuou, assustado.
– Pare já com isso! – Dionísio berrou – Eu chamei a segurança, em breve todos saberão do
que vocês são capazes, seus covardes – mentiu, não viu outra forma de escapar de um provável
ataque do algoz armado. – Há anos que quero acertar as contas com vocês. Não sabe o quanto
esperei por esse reencontro – os dentes dele rangeram.
Quase todos, com exceção de Túlio, outra vez se mostraram confusos com as palavras
proferidas por Dionísio.
– Esse cara é louco! – o sujeito com o revólver bradou. Ele ergueu a face para o alto e
viu, seguida de explosões, outras das várias faíscas gigantescas e coloridas brilharem intensa-
mente por cima de suas cabeças – Nada do que ele diz faz senti... – João se calou, ficou surpreso
quando seus olhos encontraram a escada e avistaram duas mulheres aparecerem no cenário. Ele
examinou uma das mulheres e viu que uma delas era Maria do Rosário. Estava meio escuro, mas
ele poderia reconhecê-la até mesmo se estivesse coberta por lama. Pensava nela o tempo inteiro,
era a imagem mais frequente em seus sonhos. Ainda mantinha esperanças em recuperar o amor
que lhe fora tomado, mas necessitava evitar que ela descobrisse o que ele pretendia. Então, rapi-
damente, escondeu a arma dentro do paletó.
Dionísio ficou boquiaberto quando viu Ana e sua namorada juntas. O quê? Como? Elas
se conheciam? Ela sempre lhe contava sobre sua tal amiga de infância, entretanto, nunca relatou
seu nome ou como era. Quando outro clarão iluminou a modesta praça, pode-se notar a cara de
decepção que Maria tentava disfarçar. Não queria entristecê-la, nunca quis. Aquela era a mulher
que desejou a vinda inteira a seu lado. Sentiu-se sujo por tê-la enganado.
Os lábios de Roberto se escancaram numa risada, mas não por tê-las visto ali e sim por en-
tender que todo o seu plano tinha sido um fracasso. Sua reação cômica originou-se do desespero.
As duas desceram as escadas e abriram os olhos de curiosidade ao ver todos aqueles homens
reunidos. Ana mira Roberto e exclama:
– O que é isso? Clube dos Machos?
O silêncio os dominou, até que João deu o ar de sua voz.
– Mari – falou, brandamente. Ele foi até a moça – Que bom te ver aqui, meu amor!
– Meu amor? – Dionísio se pôs entre os dois – Ela é minha namorada. Que atrevimento é
esse, cara? – intimidou o rival. Mais faíscas zuniram e estampidos foram ouvidos.
– Eu não sou mais sua namorada! – Maria bradou e se distanciou dos dois.
– Sabemos de tudo o que você fez, Dio-ní-sio Au-gus-to – Ana Júlia pronunciou as sílabas

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William R. Silva

do nome para dar ênfase a sua indignação. – Você mentiu para Maria – ela avançou até o con-
quistador mentiroso. – Conta para eles, conta para todos quem é você – a moça olhou nos olhos
dele com as mãos na cintura, mordendo os lábios.
O rosto de Dionísio caiu, sentiu vergonha de encarar as mulheres.
– Contar o quê? – Roberto piscou quando outro clarão lampejou em sua face. Nem se
importou com o estampido ensurdecedor que se sucedeu.
– Lembra daquele menino gordo idiota do São Magno? – todos os olhares se voltaram
para Ana. Ela fez uma pausa e respirou profundamente – Aquele garoto que vocês espancaram
no parque? – o braço dela se ergueu e o dedo indicador foi direcionado ao sujeito que estava a
seu lado – É ele!
Foi então que Roberto começou a ver coerência nas atitudes de Dionísio. Ele se colocou
defronte ao inimigo e estreitou os olhos atônitos nele. Cético, parecia não se convencer. De
modo inesperado, uma gargalhada sinistra disparou de suas cordas vocais. João Sérgio sentiu
seu queixo cair e Paulo, pasmo, deu dois passos para trás com as mãos sobre a nuca.
– O nosso otário do colégio...voltou? – Roberto o vilipendiou – É você mesmo? – ele
andou em volta do ex-colega mudado pelo tempo e começou a examiná-lo de cima abaixo. Sua
cabeça balançava numa espécie de admiração sarcástica, enquanto isso, Dionísio o olhava de
soslaio. Então, prosseguiu – Está mais bonitão, os braços grossos como troncos de árvores, seu
corpo está repleto de músculos e, o melhor de tudo, não age mais como um imbecil – ele bateu
palmas. – Estou impressionado!
Os sentimentos de Dionísio estavam desordenados, ele não sabia se tentava se explicar para
Maria do Rosário pelo ato inescrupuloso que cometeu ou se resolvia passar a limpo a maldade que
os estudantes de seu antigo colégio lhe fizeram no passado. Desse modo, ele fitou os três e disse:
– Eu não esqueci o que vocês me fizeram! – o ódio era notável em seu timbre.
– Sim, mas ela não merecia o que você fez – Ana esbravejou. Segurou o braço da amiga.
Maria estava prestes a cair em lágrimas.
– Maria, me perdoa! – seu namorado suplicou – Não foi minha intenção! Eu quero muito
ficar com você – quis tocá-la, mas se conteve.
– Foi por causa desse babaca que você não me quis mais? – João questionou, em alto tom.
O rival o encarou, ameaçadoramente.
– Cuidado com a maneira como você fala.
O marginal então deixou seu rosto próximo do dele.
– Por quê? Acha que tenho medo de você? – João o afrontou – Pode ter mudado, ter ad-
quirido coragem, mas para mim, continua um merda – ele o empurrou.
–Tire essas mãos nojentas de mim, seu imbecil – Dionísio o impeliu de volta.
Túlio e Paulo emudeceram diante dos últimos acontecimentos, apenas assistiam tudo
como espectadores numa arquibancada de apresentação de teatro. O céu continuava a ser en-
feitado pelas sequências de estampidos e luzes. O tempo que transcorreu desde o momento em
que Túlio alcançou o jardim até culminar naquela discussão não chegou nem a dez minutos, mas
dava impressão de que se passaram horas que estavam naquele impasse.
– Vou te arrebentar a cara, seu merda! – o dedo indicador do agressor mirou o nariz de
João Sérgio.
O criminoso desejou poder sacar seu revólver e encher o crânio do inimigo de projéteis.

191
A Coragem

A situação o impedia de agir, havia muitas testemunhas e, se fizesse o que pretendia, sua amada
iria odiá-lo para sempre. Todavia, nada o impediria de agredi-lo fisicamente. Assim, João Sér-
gio subiu o braço e direcionou o punho fechado no rosto do oponente. Os olhos de Dionísio se
fixaram no ataque quando interceptou a pancada.
– Lembra das pancadas que você me deu quando eu estava caído no gramado? – a voz de
Dionísio exalava confiança. Ele torceu o braço do malfeitor e levou o joelho em seu estômago.
A força do golpe fez João perder o fôlego – Essa é a primeira parcela do que estava guardado
para você – João cambaleou para trás.
A raiva de Roberto atingiu seu limite e incontáveis centelhas resplandecentes se elevaram
no ar. A luminosidade produzida parecia ter lhe dado mais ousadia.
– Vou te mostrar com quem você está lidando! Vai embora daqui com os dentes quebra-
dos para servir de exemplo – ele retirou o paletó, lançou-o para longe e salteou para cima de
Dionísio. Os dois brilharam intensamente. Até pareceu que o barulho da explosão de um dos
fogos fora emitido pelo soco que Roberto deu no tórax do adversário.
O assalto foi certeiro, Dionísio sentiu uma dor no exato lugar onde o punho fechado o
impactou. Tudo foi tão rápido, que ninguém conseguiu raciocinar. Uma sucessão de centenas de
chiados sinalizavam os segundos finais das faíscas que continuavam a explodirem em cores no
céu. Os zunidos eram incômodos e a luz intensa parecia cegá-los. Mesmo com a visão limitada,
os socos orquestrados por Roberto foram arremetidos rumo à face do rival. Com um reflexo bem
aguçado, o adversário se esquivou de todos os ataques. De relance, o lutador viu uma brecha e
soltou seu braço em linha reta no nariz de Roberto. Sangue escorreu.
Não se escutaram mais estouros, nem a fraca música que vinha de longe. Somente olhos
arregalados e queixos caídos foram vistos. O homem atingido colocou a mão sobre o rosto e
sentiu o líquido quente escorrer entre os dedos. O agressor vitorioso se lembrou vagamente de
Murilo Dalborg golpeado por ele tempos atrás.
– Desgraçado! – o sangue de Roberto jorrou com mais intensidade – Você mexeu com o
cara errado! Esqueça seu emprego. Amanhã mesmo meu pai irá demiti-lo. Você e... – Roberto
se dirigiu a escada e reparou em Paulo e Túlio – e esses dois também. Considerem-se desempre-
gados. Estão me ouvindo?
Gotas vermelhas respingaram no solo quando o sujeito derrotado galgou os degraus dei-
xando seu rastro de sangue. João Sérgio sentiu que o cerco se fechou. O homicida contemplou seu
grande amor pela derradeira vez e também fugiu para o Vectra atrás dos arbusto. Acelerou e saiu
disparado. Antes de desaparecer definitivamente do local, Roberto tornou a encarar o grupo.
– Você vai pagar por isso, Dionísio. Pode apostar! – berrou, depois sumiu no breu.
O lutador pouco se intimidou com o aviso. Ele olhou para Maria do Rosário e correu até
ela. Observou uma lágrima deslizar na pele morena da mulher e se sentiu ainda pior. Por isso,
escorreu as costas das mãos sobre a face da amada e limpou o vestígio de choro.
– Quem é você, Dionísio? – Maria indagou fixa nos olhos dele. Seu timbre parecia mes-
clar desencanto, fúria e perplexidade – Você nunca foi quem eu pensei que era – ela puxou Ana
e começou a caminhar.
As mulheres começaram a subir os degraus lígneos. Dionísio sentia como se Maria es-
tivesse indo embora de sua vida a cada passo que dava sobre a escada. O que sentia era medo.
Não queria perdê-la. Maria se virou e reparou nele com os olhos lacrimejantes. O homem se

192
William R. Silva

sentiu mal, queria suplicar por perdão. De forma involuntária, uma frase disparou de suas cordas
vocais:
– Eu te amo, Maria! – ele próprio se espantou com o grito que dera. Jamais pensou que
seria capaz de agir daquele forma depois de tantas desilusões com o sexo oposto.
Ana sentiu um incômodo inexplicável, uma espécie de ciúmes com desespero. Sua desilu-
dida amiga parou no penúltimo degrau. Novamente se virou para o namorado.
– Não me procure mais! – Maria afirmou, friamente – Me esqueça!
– Ela não merecia isso! – Ana adicionou – Foi ela quem te socorreu quando estava ma-
chucado no parque. Justo ela. Ela não participou daquela minha brincadeira de mal gosto. Sabia,
Dionísio? Ela até tentou nos impedir – a loira atingia o coração de Dionísio como se fosse uma
faca a cortar-lhe a carne. – Não a devia ter enganado – berrou. – Não devia!
“Foi ela quem te socorreu quando estava machucado no parque”. As palavras ricoche-
tearam em sua mente como bolas de pingue-pongue. Viu as duas sumirem no breu enquanto
tentava processar a informação. Numa rápida sessão de retrocessos, reviveu toda a cena em que
o Dionísio adolescente encontrava-se espancado e estirado no gramado no dia de chuva. Visua-
lizou a poça de água, as lamúrias e as quatro pessoas se aproximarem. Túlio, dois guardas e uma
estudante de cabelos cacheados. A estudante de cabelos cacheados! Isso quer dizer que... Seu
corpo perdeu as forças, fazendo-o se sentar num banco de pedra. Seu braço se cortou num galho
espinhento, ignorou a dor. Paulo e Túlio o assistiam sem ação.
O homem no assento se esforçou para se lembrar da aparência dela. A embaçada imagem
da aluna no colégio entrou em contraste com o dia em que viu Maria do Rosário pela primeira
vez, lendo um livro no parque, os sentimentos bons que sentiu ao lado dela. Foi por isso que
gostou dela desde o primeiro dia em que a viu, ou melhor... a reviu. Todo o seu sentimento ori-
ginou-se de uma gratidão inconsciente, um misto de amor, agradecimento e atração. Maria, esse
era o nome da amiga de Ana Júlia na época do colégio, as peças se encaixaram perfeitamente.
Paulo, que agora não sabia se era considerado um aliado ou um atual desafeto, aproxi-
mou-se receoso.
– Sorte que ninguém da festa nos viu. Ainda bem que estavam todos entretidos com a
queima de fogos e a valsa.
Dionísio, ao ouvir a palavra festa, levantou-se bruscamente.
– Minha irmã! – levou a mão até a testa – Meu Deus! Ela deve estar me procurando.
Ele correu para a saída. Túlio e Paulo fizeram o mesmo.

O som orquestrado da valsa relaxava os ouvidos dos convidados, tudo parecia mágico. A
fileira de dançarinos se rompeu para que a linda jovem com seu vestido azul metálico pudesse
passar. O amor que Rosane recebia dos pais era o seu bem mais valioso, mas ela sempre sonha-
ra em um dia ter a afeição do irmão. No fundo, o admira e o respeita. Estava desapontada por
não o ver ali, apesar de não transparecer. Rogério o esperou durante alguns minutos antes que
pudesse fazer os passos da valsa com a menina, mandou procurar o filho nos cômodos da casa.
Não o encontraram. Os olhos de Tânia lacrimejaram quando viu a filha nos momentos finais da
cerimônia. O banqueiro caminhou até a aniversariante. Segurou-a pelas mãos e levantou seus
braços na altura dos ombros. Os dois começaram a rodopiar em movimentos lentos. As dezenas
de curiosos se mostraram emocionados. Assim, pai e filha dançavam no centro do círculo de

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A Coragem

convidados. A emoção que ambos sentiam se transmitia para o público como se estivesse sido
propagada pelo vento. Seu pai a liberou, a garota sorriu para ele.
A ocasião tinha tudo para se consolidar na lembrança da garota como um dos mais es-
peciais e comoventes momentos de sua existência. Infelizmente, o que ocorreria a seguir, aca-
baria por deixar uma mancha negra no seu tão esperado dia. Gritos e cochichos apavorados e
surpresos começaram a ressoar quando um rapaz alto e robusto surgiu com a mão sobre o nariz.
No braço musculoso escorriam linhas de sangue. Marcas vermelhas gotejavam no percurso. Vá-
rias pessoas cederam espaço para que Roberto, diante de olhos perplexos, semblantes confusos
e bocas entreabertas, pudesse passar. A música parou, todos se entreolharam almejando uma
explicação. Tânia e seu marido se desesperaram. Rosane entrou em choque. O homem ferido
ignorou as reações alheias e disparou rumo a entrada da mansão. Seus pais correram atrás dele.
Kamille e duas garotinhas interromperam seus saltos na cama elástica para ver o alvoroço.
Elas não compreenderam o motivo do ocorrido, então reiniciaram seu pular. O alegre trio infan-
til pouco se importava com o que acontecia no entorno, queria apenas se divertir.

47

CRIME CIBERNÉTICO

O ar estava quente e seco. Dionísio teve vontade de retirar parte de suas vestes e ficar
sem camisa no meio da rua, tamanho era o incômodo causado pelo traje que usava. Continuou a
caminhar rumo a seu destino. Meses correram sem que a chuva caísse e a capital mineira parecia
um caldeirão fervente. O homem de terno olhou para os lados, esperou dois carros seguirem e
desceu na faixa de pedestre. Atravessou o logradouro e parou na frente de uma residência de
muro verde. Tocou a campainha e aguardou por alguns segundos.
– Olá! – uma voz soou no interfone – O que deseja?
Dionísio se aproximou da caixa.
– O Túlio está? Diga a ele que é o Dionísio.
– Dionísio! – respondeu a voz, denotando alegria – Espere, vou abrir a porta!
Um rápido estralo elétrico retumbou no portão e ele se abriu. O visitante arrumou o paletó
e avançou para dentro da casa, fechando a porta atrás de si. Ao Caminhar pelo garagem, Dioní-
sio percorreu com os olhos a enorme variedade de plantas domésticas enfileiradas perto do muro
e encontrou uma simpática senhora recolhendo lixo ante a entrada da cozinha.
– Boa tarde! Como vai?
A senhora varreu um monte de terra escura misturada com pedaços de papel e plástico
para cima de uma pá e mirou o homem.
– Vou bem, meu querido! – a dona da casa sorriu. Ela despejou a sujeira na lata de lixo –
Meu menino está no quarto dele. Pode subir lá.

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William R. Silva

– Com sua licença! – Dionísio seguiu para uma pequena escada e galgou os degraus até
alcançar o cume. Deparou-se com a porta do quarto aberta e entrou.
A iluminação do quarto era insuficiente e as densas luzes azuis emitidas pelos gabinetes dos
dois computadores se destacavam no breu. Túlio estava desconectado do ambiente. Sobre a cabeça
do homem assentado, uma estante com uma enorme coleção de livros técnicos e um amontoado
de miniaturas de motos e carros organizados no compartimento superior. Uma pilha de revistas
preenchia espaço na escrivaninha e um prato com pães de queijo e uma lata de refrigerante estavam
postos sobre um pequeno raque. O visitante viu que o headphone abafava as orelhas do rapaz e as
lentes de seus óculos reluziam perante a claridade do monitor. Dionísio fitou a tela e viu que ele
escrevia códigos numa plano de fundo escurecido. As pequenas letras apresentavam cores azuis,
brancas e verdes. Os dedos de Túlio digitavam rapidamente as letras no teclado.
O punho de Dionísio se fechou e ele deu quatro pancadas na porta a fim de chamar aten-
ção. O ato surtiu efeito, pois no mesmo instante, Túlio virou para trás e sentiu um leve susto
quando seus olhos esbugalhados foram de encontro ao amigo. Túlio sorriu para o visitante e
arriou o headphone da cabeça para o pescoço.
– Dio? Que bom te ver!
O homem de terno deu cinco passos e pôs a mão direita no ombro do amigo.
– Como vão as coisas? Queria ter vindo aqui antes, mas quase não tive tempo.
– Entendo – Túlio apertou duas teclas de atalho e fechou a página na tela sem se virar para
o computador. Dionísio riu, admirado com a habilidade do sujeito nerd – A que devo o prazer
de sua visita? – o homem magro tornou a sorrir. Seus dentes adquiriram uma tonalidade azulada
quando receberam o reflexo da claridade de neon do gabinete esquerdo.
Os lábios do visitante se pressionaram e seu semblante assumiu um ar de angústia. O
episódio da madrugada do último domingo o deixou plenamente preocupado. Temia pela vida
do amigo e havia questões que ele precisava resolver com o suposto hacker.
– Eu sei de tudo, Túlio – Dionísio declarou. – Você é um desses invasores de sistemas
alheios que roubam senhas, prejudicam sistemas e causam prejuízos na rede. Um espécie de
hacker. Roberto quis te matar porque você descobriu o que não devia.
Túlio sentiu sua pulsação aumentar assim que relembrou a tentativa de assassinato que
sofrera dias antes. Apreensivo, olhou para o colega e sentiu sua boca entreabrir. Concordou que
o amigo tinha um conhecimento limitado a respeito da sua área de atuação, mas não se irritou.
Dionísio não era o primeiro e nem seria o último a cometer tais equívocos.
– Não é bem assim – Túlio revidou, educado. – Eu invado sistemas desde que tenham me
dado permissão para isso. De maneira alguma uso meus conhecimentos para atividades ilícitas.
Eu sou um hacker ético, você está me confundindo com um Cracker.
– Cracker? – o visitante se mostrou confuso – Entendi. Também conheço um pouco do
assunto. Hackers usam seus conhecimentos para ajudar. Por outro lado, há os crackers, que usam
o que sabem para cometer roubos, fraudes e prejudicar a rede. Não é isso?
Túlio riu, timidamente.
– É o que se lê nos sites de busca... – ele estendeu o prato e serviu pão de queijo ao
amigo – Aceita?
– Não. Obrigado! – Dionísio recusou.
O rapaz magro levou um pão de queijo à boca e começou a mastigar.

195
A Coragem

– Como eu ia dizendo... – continuou – Crackes cometem crimes cibernéticos. O meu


trabalho é conter esses delinquentes virtuais – ele retornou o prato para cima do raque. – Por
isso as empresas me contratam, para aprimorar suas defesas e testar a vulnerabilidade de seus
sistemas. Sou um White Hat.
– Chapéu branco em inglês?– o homem de terno indagou – O que seria?
O baixo som que era emitido do headphone quebrou parte do silêncio momentâneo entre
os dois. Túlio moveu o mouse e reduziu a intensidade do volume.
– White Hat é o que eu sou. Chapéu Branco sãos os hackers éticos – o sujeito magro
seguiu a explicar. – Por outro lado, há os Black Hats ou Chapéus Pretos. Esses são os Crackers,
os criminosos.
Dionísio sentiu suas sobrancelhas arquearem.
– Interessante!
– Ainda existe o intermediário – o jovem na cadeira rolante prosseguiu. – Os Gray Hats.
Esses tanto podem ajudar como praticar atos ilegais. Tudo vai depender de quem os contrata.
Para eles, o que importa sãos os benefícios próprios. Seja por meios honestos ou não. E foi jus-
tamente um desses que ajudou Roberto a desviar milhões em dinheiro do próprio pai.
Os olhos de Dionísio se escancaram de curiosidade, finalmente chegou no ponto que
mais lhe interessava. Ele correu até a cama e se sentou, tinha necessidade de ouvir o relato nos
mínimos detalhes.
– Então, há um terceiro envolvido nessas falcatruas, além do Roberto e do João Sérgio?
– Dionísio perguntou.
Túlio piscou e ajeitou os óculos sobre o nariz.
– Sim. E tudo indica que esse Gray Hat seja funcionário da empresa. No começo do ano,
Rogério Tavares me convocou e me contratou para um serviço em particular. Ele queria que
eu invadisse seus próprios dados bancários e rastreasse a rota que o cyber criminoso usou para
desviar aquela enorme quantia para o exterior. A princípio, eu duvidei de que alguém fosse tão
habilidoso para tal artimanha e estava certo. Por mais experiente que seja um cracker, percebi
que dificilmente alguém conseguiria desviar tanto dinheiro sem deixar rastros. E muito menos
sem ser descoberto.
Ele ergueu a lata e tomou parte do refrigerante, depois voltou a encarar Dionísio.
– O Banco Século é referência em segurança. Esse é um dos principais lemas da empresa.
Rogério temia que a informação vazasse, mesmo a quantia não sendo do banco e, sim, de sua
conta particular. Uma bomba dessas colocaria toda sua credibilidade em cheque. Muitas pessoas
poderiam associar a falha como sendo de toda a instituição. Por essa razão, ele me contratou para
que eu contivesse esse criminoso e bloqueasse suas ações.
Dionísio assentiu com a cabeça, atento.
– Eu sabia que havia algo de muito errado no ar, mas não quis tirar conclusões precipi-
tadas – Túlio declarou, no momento em que direcionou a bebida para o amigo. Dionísio dessa
vez aceitou e sorveu um gole do líquido adocicado – Intranet é como uma casa com inúmeros
vigias, cercas elétricas e redes de segurança – continuou. – Raramente alguém consegue entrar
num sistema assim sem que antes alguém lhe abra a porta e o deixe entrar.
– Você está querendo dizer que para que o Cracker possa invadir uma rede – Dionísio o
interrompeu –, a própria pessoa dona das contas tem que liberar o acesso para que o criminoso

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William R. Silva

cometa seus atos ilegais? Isto é, a própria vítima, na inocência, tem que antes aceitar um Cavalo
de Tróia ou um vírus qualquer e ter seus dados roubados?
Túlio deu um suspiro desesperado, por entender que fora a partir desse ponto da investi-
gação que sua pacata vida se transformou num inferno. Dionísio novamente bebeu outro gole
do refrigerante.
– Foi essa a primeira ironia com a qual me deparei – ele viu que Dionísio lhe ofereceu
a lata de volta, mas estava tão concentrado em sua confissão que não ingeriu o restante da be-
bida com gás. Simplesmente a segurou e a colocou em cima do móvel – Como é que Rogério
Tavares, um banqueiro conhecido em todo o país, um ícone das finanças e investimentos, iria
cair num golpe fajuto desses? Era racionalmente inacreditável que um homem desses cairia num
Trojan Horse ou qualquer outra armadilha virtual.
O homem sentado na cama parecia impressionado.
– O que quer dizer – Dionísio mirou o narrador, convicto – que não foi o nosso patrão que
permitiu que o cracker invadisse sua conta bancária. Mas foi uma pessoa bastante próxima a ele
quem acessou seu computador pessoal e instalou os dispositivos sem que ele soubesse.
O sujeito de óculos fez que sim com a cabeça.
– Para que alguém pudesse fazer isso, ele teria que ser praticamente da família. Ninguém
conseguiria ter acesso ao computador na sala da presidência e muito menos no portátil pessoal
do Rogério sem ser desmascarado, a não ser que seja alguém muito próximo. Quando cheguei a
essa conclusão, o primeiro que veio em minha mente foi o desgraçado do Roberto. Assim como
você, eu também sofri nas mãos daquele imbecil. Sabia que ele não prestava, embora duvidasse
no início que ele tivesse a coragem roubar o próprio pai.
– E o que você fez depois? – Dionísio se adiantou.
Túlio abaixou a cabeça, levantou o braço e esfregou a testa. Ele pensou por alguns segun-
dos antes de dar-lhe a resposta.
– Eu invadi contas de e-mails e perfis do Roberto em redes sociais para tentar encontrar
alguma coisa que pudesse incriminá-lo – um sentimento de vergonha importunou Túlio no ins-
tante em que fez a confissão. Sempre se orgulhara de ter usado suas habilidades a serviço do
bem, no entanto, não sabia se sua atitude realmente fora um ato aceitável ou não.
– E encontrou, não é? – o ouvinte quis saber.
Os olhos de hacker se levantaram para ele.
– O babaca não é tão esperto como Rogério. Roberto cometeu um grave erro – ele sor-
riu. – Que, para mim, foi o trunfo final. Não só constatei que fora ele quem roubou o pai, como
também sei quem é o seu ajudante. Descobri a identidade do Cracker.
– O que você está dizendo é muito sério – Dionísio franziu o cenho. – Tem como provar
essas acusações?
Túlio levantou a cabeça.
– Imprimi páginas onde o criminoso avisava Roberto sobre suas transferências. E tam-
bém, tive acesso aos anexos de comprovantes de depósitos da grana desviada que o filho do
nosso patrão conseguiu esconder no exterior. Inclusive criou uma conta e fez pagamentos ao seu
comparsa. Houveram falsificações de assinaturas e outras ilegalidades, mas tudo isso foi fácil se
comparado com a façanha maior.
Dionísio sentiu o sangue subir-lhe à cabeça, compreendia bem o que aquilo significava.

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A Coragem

Naquele segundo, entendeu que também se tornou uma das peças da perigosa trama de roubos,
traições em família e disputa de poder. Levantou-se da cama e assumiu uma expressão aflita.
Realmente não havia mais incertezas, a guerra entre ele e seus malfeitores tomara um novo
rumo. Um rumo cem vezes mais perigoso.
– Sabe o que isso quer dizer? – ele olhou para Túlio – Que assim como você, eu também
estou correndo risco de vida.
– E o Paulo também – seu amigo completou.
Os olhos de Dionísio adquiriram uma aura de ódio ao caírem sobre ele.
– Eu ainda não confio nesse cara – falou firmemente. – Não sabemos de que lado ele está.
– Mas foi ele quem te avisou que planejavam me matar na noite da festa – Túlio discor-
dou. – Isso já não é prova o suficiente de amizade?
O homem de terno franziu a testa.
– Não. Isso não é – reiterou, levemente enfurecido. – Nada me convence de que o Paulo
não esteja envolvido com aqueles dois covardes. Aquilo poderia ser muito bem uma das arti-
manhas deles. Por acaso se esqueceu de que o Paulo também ajudava aqueles malditos a nos
infernizar na escola?
Túlio suspirou e respondeu em tom de tristeza.
– Não. Não me esqueci, não.

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O ESQUADRÃO DA MORTE

São José do Buriti-MG


(Distrito de Felixlândia)

A fisionomia de Ernesto Rodrigues é constituída por um conjunto de expressões enig-


máticas. Seus diabólicos olhos azuis, com sobrancelhas quase sempre franzidas, exercem um
poder magnético. Devido a seu sorriso ser pouco decifrável, raramente consegue-se concluir
se tal reação é de contentamento ou maldade. O modo pausado e sisudo de falar, todas essas
características fazem o conjunto harmonioso desse estranho ser.
O homem indecifrável, neste instante, está submerso em seu próprio mundo e em sua do-
entia síndrome de superioridade. Sentado com as pernas dobradas, o cotovelo esquerdo escorado
no braço do sofá, mantinha sua de visão fixa na tela do monitor da TV. Os latidos do seu rot-
tweiler, o restolhar da natureza, o zumbido dos seres nativos, nada era capaz de tirar sua atenção
do documentário o qual assistia. Um som alto e estrondoso de pneus derrapando ecoou no lado
de fora. Ele não se moveu, imaginou ser turistas perambulando pelo trecho que levava ao lago.
Minutos correram até que Roberto Tavares, projetando sua sombra no tapete persa, atra-

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William R. Silva

vessou o vão da entrada do casarão. Seu sobrinho, pausando os passos, rumou até o morador
esparramado no sofá. Ernesto, intuitivamente, lançou os olhos na sombra que se movia no chão.
Ele encostou despistadamente a mão direita na calça e tateou atento o cabo de sua arma.
– Tio, sou eu, o Roberto! – disparou a voz por trás do indivíduo no sofá, fazendo o cachor-
ro no lado de fora latir com mais agressividade – Tenho boas notícias.
A postura retesada de Ernesto se desarmou assim que identificou a voz do parente. Ele
retirou a mão do coldre e se virou para o invasor:
– Deveria ter chamado, está cansado de saber que aqui estamos vinte e quatro horas por
dia alertas.
– Eu sei disso... – o visitante assentiu – compreendo!
Ernesto, inclinado para ele, franziu ainda mais a testa.
– Quais são as boas novas?
Roberto se abaixou.
– Trouxe os ajudantes que você me solicitou!
Ernesto arqueou as sobrancelhas. Seus dentes não despontaram em nenhum sorriso, mas
seus olhos se escancararam denotando um ar de satisfação. Apenas uma mísera linha de expres-
são se desenhou em seus lábios.
– Onde estão?
Roberto se endireitou.
– Estão todos no lado de fora, esperando a ordem para entrar!
Como um raio, o proprietário da casa e seu sobrinho saltaram para a janela. Ernesto estu-
dou as características de cada um dos personagens no lado de fora. Subitamente, dirigiu-se para
o rapaz, descontente.
– Negros!? – seu tio questionou, como se aquilo fosse uma afronta – Você me trouxe... negros!?
Roberto quis responder, mas uma gargalhada involuntária disparada por ele atrapalhou
suas articulações. Seu momento de descontração durou pouco, o aspecto severo com que Ernes-
to o encarou acabou por neutralizar a atitude hilária do sobrinho.
– O magro e alto é Marcos Medeiros, vulgo Picolé – seu sobrinho elucidou –, o branco,
baixinho e gordinho é o Moreira, apelidado de Bola, e o mais encorpado se chama Vanderlei
Soares, conhecido como Deco.
– E aquele moreno claro ali? – Seu tio indagou apontando para um sujeito que conversava
distraído com Olegário.
– Aquele é meu amigo do tempo de colégio, João Sérgio. Te garanto que todos eles têm
disposição para fazer o que precisa, eles são os caras certos... – Roberto riu alto –, independente
da etnia de cada um.
Ernesto assumiu uma expressão pensativa.
– Nesse ponto, você tem razão – ponderou –, são apenas ovelhas e ovelhas são úteis ao
meu propósito, mesmo que devam ser sacrificadas posteriormente. Acredito que esses serão
úteis ao meu time – o homem deu as costas e marchou para a cozinha. – Mande-os entrar! – gri-
tou no instante em que adentrou o cômodo.
Ele abriu o refrigerador e retirou algumas latas de cervejas e as colocou em um balde.
Roberto correu para a rua. Segundos depois, ele, Olegário, João Sérgio e sua gangue aparecem
na sala. No primeiro impacto, os visitantes se assustaram com os quadros e toda a decoração

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A Coragem

tenebrosa do local, mas rapidamente se acostumaram. Todos os olhares foram direcionados a


Ernesto quando ele surgiu portando o balde.
– É esse o cara? – Picolé indagou sem a menor discrição.
O portador do balde apanhou uma das cervejas e a arremessou na direção de Picolé. Com
precisão, o homem a agarrou no ar. Em seguida, deu-lhe a resposta:
– Meu nome é Ernesto!
– Sim, senhor Ernesto – o visitante desatarraxou o lacre. – Então vamos tratar de negócios
– virou a lata na boca e sorveu parte da bebida.
– Sejam bem-vindos a minha humilde residência! – ele soltou o balde sobre a mesa – Não
gosto de rodeios e creio – marchou até o sofá e se afundou no assento. – que vocês também não.
Deco caminhou até o móvel e retirou três cervejas de dentro do recipiente.
– Somos todos ouvidos! – ofereceu as latas para João Sérgio e Bola. Os dois aceitaram–
Passe as coordenas, meu chapa!
– Por hora – Ernesto iniciou –, necessitarei apenas de ajudas triviais como auxílio de um
motorista particular, ajuda para me infiltrar em lugares complicados, serviços de segurança armada,
saques em bancos e outras utilidades afins. Não se preocupem com dinheiro, isso é o de menos...
João Sérgio o cortou:
– Se estava precisando de empregados assalariados, era só consultar uma agência de em-
pregos – ingeriu a bebida –, não precisava nos trazer até aqui.
O olhar insatisfeito de Ernesto se inclinou sobre o interlocutor. Intervenções em seus
discursos era uma das coisas que o orador mais detestava. Ele viu que o rapaz pouco se impor-
tou por tê-lo desagradado, mas isso não o enfureceu tanto quanto o próprio ato praticado em si.
– Esses serviços serão apenas de fachada – reiniciou, seu tom de voz parecia mais rígi-
do –, apenas uma forma de fazer o plano correr de acordo com meus objetivos. Desse modo,
podemos despistar a polícia, meus inimigos e demais empecilhos que possam interferir no meu
objetivo principal. Seria como uma espécie de... cortina de fumaça.
– E qual seria seu objetivo principal? – Picolé levantou a sobrancelha direita.
O homem se levantou e rumou em direção a uma estante de nove nichos, localizada logo
abaixo do quadro de Napoleão Bonaparte. Suas prateleiras eram, em sua maioria, preenchida
por livros, artefatos históricos, enciclopédias e anotações em cadernos empoeirados. Entretanto,
nenhum deles o interessava, a não ser uma mala de couro legítimo colocada na parte mais ele-
vada do móvel. O instante de suspense correu rápido. Assim que Ernesto agarrou a alça, puxou
a mala e a levou até a mesa, todos entenderam o que ele pretendia.
Ele conduziu o zíper de uma extremidade a outra até poder abrir a mala. Assim que a
abriu, um amontoado de papéis, catálogos, dados estatísticos, reportagens antigas de jornais,
documentos históricos, fotografias e anotações foram vistos no interior do compartimento de
couro. Deco e Bola trocaram olhares, mas ambos deram de ombros. Ernesto esquadrinhou os
rostos confusos, tirou um mapa e o entregou a Picolé.
Picolé esticou a cartolina e correu os olhos sobre o título na parte superior dela.
– O Quartel? – ele perguntou, observando o projeto que mais lembrava um labirinto. Os
olhos curiosos de seus comparsas caíram sobre a imagem em preto e branco nas mãos dele – O
nome do lugar é O Quartel?
Deco arrancou a cartolina bruscamente das mãos do comparsa e começou a examiná-la

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William R. Silva

minunciosamente. Picolé o fitou, aborrecido.


– Por que diabos esse mapa mostra uma infinidades de setores, ligações de uma sessão a
outra, escadas que sobem e dessem e várias outras partes, mas não tem saídas, nem entradas?
– Deco exigiu uma explicação – É uma espécie de prisão onde as pessoas são lançadas e não
conseguem mais fugir?
– E também tem aquela linha férrea desenhada no entorno e aquela central – Bola adicio-
nou. – E aqueles pontos na área pintada de verde, o que são?
Ernesto se irritou com a torrente perguntas.
– Não é qualquer um que consegue ver as saídas e entradas desse lugar, somente quem o
projetou ou aqueles que o frequentam ou frequentaram. A linha férrea e os demais detalhes não
posso explicá-los. Na ocasião certa, saberão do que se trata.
– Então, pelo que entendi – João Sérgio falou –, a nossa principal missão é invadir esse
lugar. Ou estou errado?
–Talvez, meu caro! – Ernesto acentuou – Tudo vai depender dos acontecimentos que irão
se seguir. O que pretendo, é trazer os líderes do lugar até mim, depois... – seus olhos se inun-
daram de ira e compaixão – os atacaremos – apanhou algumas fotografias e as entregou para o
provável líder da quadrilha.
As fotos se espalharam na mão esquerda de Picolé em forma de leque, todas as imagens
continham rostos e nomes.
– Nélson Átila, Thomas Bruso, Thales Delone e Sílvio Koren. Quem são esses?
Ernesto deu uma risadinha sinistra.
– Esses são os líderes do Quartel. Se meu plano der certo, e com certeza dará porque
tenho as boas vibrações a meu favor, todos os quatro virão até mim. E...será nesse momento
que precisarei que façam o serviço mais importante de todos. Mandar os quatro para o inferno!
João Sérgio e seus comparsas lançaram olhares cabreiros em direção ao homem cujo
sorriso amedrontador causava arrepios. O ser enigmático então arqueou a sobrancelha e assumiu
um leve ar de aflição.
– Mas não pensem que seja uma tarefa fácil, esses caras são incrivelmente ágeis e in-
teligentes. Com o auxílio do intelecto, habilidades marciais e outros atributos, são capazes de
escapar de qualquer armadilha e revertê-la contra vocês.
O grupo de homens o encarou curioso.
– Você os conhece faz muitos anos? – indagou João.
Ernesto tornou a sorrir e fez uma confissão completamente ilógica:
– Sim, conheço-os como a palma da minha mão. Eles, em certas partes, são semelhantes
a mim. Eles são como…– suspirou – meus irmãos!
Os homens na sala trocaram olhares. Picolé questionou consigo mesmo se o contratante
não sofria de alguma doença mental.
– Se eles são como seus irmãos, como pode querer matá-lo? – inquiriu Bola. Essa era a
mesma opinião de seus comparsas.
Era uma pergunta desconfortável e pessoal, mas Ernesto lhe deu a resposta.
– Eu daria tudo para mantê-los vivos – sua voz mergulhou num timbre depressivo. – Irei
sofrer muito quando vê-los abatidos e irei rezar por eles pelo resto da minha vida. Infelizmente,
tenho uma missão divina para desempenhar na terra, preciso do Quartel para atingir minhas me-

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A Coragem

tas. Mas – novamente falou com firmeza –, além dos quatro não concordarem com meu ponto de
vista, nunca irão me ceder o controle da base secreta na velha ferrovia. Não queria, entretanto,
serei obrigado a varrê-los da face da terra.
Uma lágrima transbordou dos olhos de Ernesto. O orador parecia um desequilibrado. To-
davia, Picolé e sua gangue, de uma maneira que não podiam entender, não se sentiam capazes de
caçoar dele. Ernesto até poderia ser um insano convicto, mas sua postura destemida neutralizava
qualquer um que ousasse duvidar de sua capacidade maquiavélica.
Roberto analisou uma das fotografias e disse:
– O rosto desse homem me parece familiar!
João chegou por trás do ombro do amigo e também averiguou a imagem.
– Concordo com você, já vimos esse cara em algum lugar. Esse olhar, os cabelos negros
e longos. Eu conheço esse sujeito. Tenho certeza!
Ernesto já desconfiava.
– Talvez seja porque... – dirigiu-se à dupla – conheçam o filho dele.
– O filho dele? – os dois indagaram, simultaneamente.
O contratador afundou a mão no amontoado de papéis na mala e tirou de lá a última foto
que sobrou. Por fim, Ernesto a entregou para o sobrinho. Quando Roberto reparou no rosto
impresso no pedaço de papel, parte do ar que respirava prendeu-se em seus pulmões. Atônito,
ergueu a fotografia diante dos olhos do antigo colega de colégio.
– É o Dionísio! – João Sérgio ficou pasmo.
– Exatamente, ele será uma de nossas iscas para trazer o pai dele e os demais líderes até
nós – disse Ernesto ao ir até o sofá e se esparramar sobre ele. – Mas, antes, precisarei da ajuda
de cada um de vocês. Preciso visitar algumas pessoas, queimar alguns arquivos, desempenhar
tarefas e fazer outros trabalhos difíceis.
Todos, ainda sem entender como funcionava a mente do misterioso homem, assentiram
com a cabeça sinalizando estarem unidos na missão.

49

O DEMOLIDOR

Realinópolis
(Outubro de 2013)

Nas quatro paredes da espelunca se viam cartazes com figura de mulheres, marcas de cer-
vejas e cigarros, e um enorme calendário também enfeitava o lugar. O relógio na parte mais alta
do recinto, pouco acima da televisão no suporte, aproximava o ponteiro das horas do número
dois em algarismos romanos. O boteco não era dos mais requintados da cidade, pelo contrário,

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William R. Silva

suas paredes eram de uma pintura desbotada, as cadeiras de plástico, em sua maioria, estavam
desgastadas. Muitos dos lavradores e boias-frias das lavouras de cana e café passavam por lá
para descansar depois de árduo dia de trabalho. Dionísio e seus amigos pouco se importavam
com a condição do comércio. O referido bar, para os quatro amigos, era o ambiente predileto,
pois além de ser um local tranquilo, tinham toda a liberdade de rir, contar piadas e se divertirem.
Nenhum dos presentes se incomodava com a euforia e descontração ocasionadas pelo estado de
embriaguez da turma.
O dono do estabelecimento abriu o freezer, retirou uma cerveja e, sacando a tampinha
metálica, conduziu a garrafa até a mesa do grupo de jovens. Tiago agarrou a bebida e encheu
todos os copos em volta.
– Então quer dizer que o parceiro Dionísio vai morar na cidade grande? – ele falou, assim
que pôs a garrafa sobre a mesa – Fiquei sabendo que lá é a cidade que mais tem mulher no Brasil
– deu uma risada. – Vai se dar bem lá, cara!
O homem tomou um gole de sua cerveja e prestou atenção num grupo de três crianças que,
ao aprumar suas pipas, atravessavam a rua tropicando nas pedras. Depois, dirigiu-se a Tiago.
– Eu vou pegar geral – Dionísio gargalhou, denunciando seus primeiros sinais de embria-
guez. – Com certeza eu vou!
– Faz bem, cara, essa Realinópolis é um tédio desgraçado – César reclamou. – Ô cidade-
zinha parada!
Ricardo, que se locomovia com razoável dificuldade, após usar o banheiro, apareceu no
vão da porta do recinto. Marchou até a mesa dos companheiros, puxou sua cadeira plástica, mas
quando preparava-se para se sentar, Dionísio o interceptou.
– Rick, queria conversar com você em particular – ele encarou o amigo ainda segurando
seu pulso. – Teria como?
Ricardo franziu o cenho.
– Do que se trata?
– Ui, ui, ui! – Tiago brincou – Os dois irão trocar segredinhos, ai que fofo! – ele e César
riram alto.
Dionísio e o sujeito manco caminharam alguns metros e pararam perto de um poste.
Ricardo se recostou na extensa coluna de concreto horizontal a fim de conseguir sustento. Seu
amigo se aproximou esbaforindo seu hálito alcoolizado.
– Cara, eu sei que vai parecer loucura o que vou te dizer – Dionísio iniciou o assunto –,
mas tem que me prometer que não vai pensar que sou maluco e nem vai me criticar. Promete?
Ricardo pousou os olhos nos dois rapazes sobre a mesa e se voltou para ele.
– O que foi, Dio? – sua voz soou preocupada – O que é que está pegando?
– Lembra daquela estação de trem abandonada? – os olhos do rapaz reviraram temendo a
interferência de algum intruso – Quero que faça uma coisa para mim.
– Outra vez aquele assunto de fantasma do Negro Timbuca? – Ricardo pôs a mão na testa
e balançou a cabeça – Para com essas besteiras, cara! O Tiago disse que vocês foram lá e não
viram nada. Isso já não foi o suficiente?
– Vai me deixar falar ou não? – o interlocutor o repreendeu.
– Está certo, mano. Diga o que está pensando! – Ricardo cedeu, mais por respeito do que
por interesse.

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A Coragem

Dionísio afundou a mão no bolso da calça jeans e retirou um papel dobrado. Ele ofereceu
a dobra para Ricardo. Seu amigo segurou o papel e abriu o recado. Os olhos de Ricardo caíram
sobre as letras escritas a caneta.
– Bem-vindo ao deserto da real? – a voz de Ricardo aumentou, denotando incompreensão
– Por que me deu um papel escrito isso? – fitou o homem exigindo uma resposta que faça sentido.
O semblante de Dionísio assumiu um tom sério.
– Quero que você vá até a estação abandonada por volta das nove ou dez da noite, pode
ser mais tarde se quiser, entre na sede da antiga central e grite essa frase o mais alto que puder –
ele notou que Ricardo quis liberar uma gargalhada entre os lábios, mas a conteve. – Mas, deve
guardar segredo, não comente com ninguém sobre isso, em hipótese alguma. Entendeu?
– Sim, entendi! – concordou Ricardo, cético. Ele fitou o sujeito e preferiu considerar que
o ato de insanidade dele fora ocasionado pelo exagero de ingestão de álcool.
– Confie em mim! – Dionísio frisou – Não vou te colocar em apuros. E tem outra coisa, é
importantíssimo que não relate isso a ninguém. Deve guardar segredo. Quero que me prometa.
Ricardo concordou.
– Sim... – ele apoiou a mão sobre o ombro de Dionísio –, prometo que farei tudo o que
pediu... – continuou sem levar a conversa a sério, mas estava disposto a fazer o que prometeu.
Ricardo sempre foi de respeitar seus juramentos.

No Quartel Secreto
(13 meses depois)

A cada golpe, o saco de pancadas se adiantava meio metro e retornava para a ponta dos
pés do agressor. Diego Santorini, vulgo Jay, contando os segundos com os olhos concentrados
no cronometro do seu relógio de pulso, analisava satisfeito os pontapés e a sequência de movi-
mentos do pupilo. O treinador fez um sinal com o dedo polegar e o golpeador saiu disparado da
reta do saco de pancadas. Ele foi correndo em ziguezague, se desviando de pneus, saltando ca-
deiras e, subindo num banco alto, dependurou-se numa barra de ferro verticalmente posicionada
sobre duas hastes resistentes. Uma sessão de flexões de braços fora executada por ele.
– É isso aí, Demolidor! – Santorini comentou, satisfeito – Sua evolução está cada dia melhor.
Ricardo elevou o tórax para pouco acima da barra com a potência dos braços e depois se
soltou, despencando de pé no tapete.
– Obrigado, Jay! – ele falou, de costas para o preparador físico. Sua voz indicava cansaço,
mas ele continuou – Sabe qual a impressão que tenho?
Jay apertou as luvas de couro no pulso.
– Não sei, não. Qual é sua impressão?
– Tenho a sensação de que a vida inteira fui um de vocês – Ricardo confessou, virando o
rosto por cima do ombro. – Como se eu já tivesse nascido um membro do Quartel.
Lucas de Castro, um dos membros que atende pelo nome Skywalker, distanciou-se do
meio do grupo que assistia ao treino ou fazia outras atividades e se dirigiu até a dupla. Diante do
dois, falou cravando sua visão em Ricardo.

204
William R. Silva

– Você foi um caso raro. A maioria dos que chegam aqui rejeitam nossas doutrinas, nos
acusam de generalizadores e desaparecem por um tempo até digerir tudo. Seu amigo Max Wolf
foi um desses. Mas você – o semblante de Skywalker se iluminou – aceitou tudo logo de início,
empenhou-se de corpo e alma nos treinos e no seu desenvolvimento.
Demolidor sentiu uma onda de orgulho e gratidão envolvê-lo.
– Foi graças ao Max Wolf que cheguei até aqui, serei eternamente grato a ele por isso...
sempre. Tive muitos avanços, melhoras que jamais pensei que poderia ter.
– Tudo graças a sua força de vontade, não se esqueça disso – Jay falou. – Agora só falta
esquecer essa ideia idiota de vingança. Só assim sua evolução será completa.
– Ele tem razão, parceiro! – Skywalker salientou – Esquece o Johnny Caveira, nada trará
sua namorada de volta.
A expressão de Ricardo se modificou, transformando sua alegria em ira. Sua testa franziu
e seus punhos se fecharam.
– Serei eternamente grato a todos aqui, mas já disse que isso não é da conta de vocês! – ele
se virou para Skywalker – Preocupem-se com suas respectivas vidas! Ele é um bandido, um lixo
humano que deve ser varrido dessa cidade, junto com sua gangue.
Dois homens de ternos adentraram na sessão. Ricardo lançou os olhos sobre eles e se
afastou. Contava-se pouco menos de oito membros no setor, incluindo Santorini, Ricardo e
Skywalker. Por respeitarem a hierarquia, eles deram espaço e permitiram que a dupla de supe-
riores pudesse passar.
– Travis e Mó Humirde – Jay os saudou. – Bom vê-los aqui!
Mó Humirde é um dos membros mais antigos e de grande confiança dos mestres, ad-
ministradores e demais indivíduos de alto posto. É um sujeito que, na maioria das vezes, tem
uma fisionomia carrancuda e não tem o mínimo de reserva na hora de expor suas opiniões. É
afeiçoado por um rosto quadrado, olhos dilacerantes cor de mel e um cabelo escuro sempre
penteado para trás. Possui porte médio e, apesar de não ter um corpo atlético, conserva braços
e tórax bem modelados.
– Atitude típica de homens pouco maduros que ainda mantém um forte vínculo com sua
antiga rebeldia sem causa – Mó Humirde começou a falar, mirando Ricardo nos olhos. – É como
se o adolescente rebelde que quer desafiar o mundo ainda estivesse ativo querendo fazer revolu-
ção. Não, meu caro! O mundo não é justo, as pessoas não são justas, nem sempre o mal se ferra,
a realidade é dura e deve aceitar isso – ele marchou até o sujeito. Ricardo o fitava, sem a menor
discrição – Lembro como se fosse ontem, você chegou aqui mancando de um perna e, hoje, cor-
re quilômetros com facilidade. Adquiriu conhecimento, mas na parte emocional, pouco controle
obteve. Concentra-se tanto em revanches obsessivas que se esquece da parte mais importe a ser
aprimorada na mente de todo homem.
Ricardo gosta da atitude severa dos homens de alta patente que administram o lugar se-
creto, no fundo se espelhava neles. Por outro lado, nunca foi de se intimidar com posições de
autoridade, apesar de sempre respeitá-las. Nenhuma reação se desenhava no semblante de Tra-
vis (Thales Delone), ele somente observava o debate.
– Você não sabe o que passei e nem vivenciou as mesma experiências que as minhas, falar
é fácil! – Demolidor argumentou – Seja sincero, se fosse você no meu lugar, não iria lutar por
justiça? Não iria querer um acerto de contas?

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A Coragem

Mó Humirde deu um ligeiro sorriso movendo o canto direito dos lábios.


– Com certeza iria varrer todos os quarteirões da cidade como um cachorro louco à procura
desse marginal e iria estraçalhá-lo até deixá-lo caído ensanguentado no chão, mas... – o superior se
adianta ainda mais e para a poucos metros dele – adiantaria alguma coisa? Iria isso resolver todos os
meus problemas? É óbvio que não. A questão não é querer justiça, e sim a obsessão que você tem
nisso. Meu rapaz, você não pensa em mais nada, isso está dominando suas energias.
– Não se trata de querer justiça ou não! – Travis interveio na discussão – Você se parece
muito comigo quando eu era mais moço, era impulsivo, não conseguia controlar minha raiva
e partia para a porrada por motivos inúteis. Por isso, posso te dizer com toda propriedade que
o ódio nos torna cegos e irracionais. Você está deficiente na parte do autocontrole e necessita
trabalhar isso o quanto antes. Caso contrário, sairá prejudicado.
Ricardo, assim como todos a sua volta, permaneceu em silêncio. No fundo, compreendia
que os dois estavam certos.

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O MENINO QUE NÃO ERA MAU

Parque São Genaro


(Lembranças de maio de 2004)

23 de Novembro de 2014.

O esconderijo estava parcialmente frio e a claridade solar era insuficiente. O apertado local se
encontrava cercado pela arvoredo. Por causa da temperatura constante, o orvalho ainda se mantinha
na superfície das folhas. Somente através das frestas dos verdes galhos é que o trio conseguia ver o
movimento do outro lado da gruta. A fim de se despedir dos cúmplices, Paulo Munis se preparou
para agarrar um galho e tomou impulso para ficar de pé. Todavia, Roberto segurou-lhe o braço no
momento exato, impedindo-o de se retirar. João Sérgio, cujos olhos vermelhos pareciam estar em
chamas, deu outra tragada no cigarro de maconha e observou os colegas se estranharem.
– Onde você vai, cara? – Roberto quis saber. Seus dedos continuaram fortes no pulso
do fujão – Esqueceu do nosso trato? Logo, logo aquele gordo idiota chega aí. Se ele te ver, vai
descobrir nosso plano.
Através de uma brecha entre as herbáceas, Paulo prestou atenção em Ana Júlia aguardan-
do o aluno iludido cair na emboscada. Poderia ter desistido antes, mas era covarde demais para
ir contra a traquinagem dos três adolescentes.
– Eu não quero participar dessa palhaçada. Eu estou fora...chega! – num solavanco, puxou

206
William R. Silva

o próprio braço – Isso que estamos fazendo é cruel demais.


– Deixe de besteiras, moleque! – João Sérgio o repreendeu. Ele esticou o braço e passou
a droga para Roberto – Fica tranquilo!
O adolescente, após sugar a fumaça, levantou o queixo e a soltou. O prazer momentâneo
fez sua cabeça girar. O odor da fumaça incomodou Paulo.
– Para de besteira! – Roberto falou – Vai amarelar? – abanou a neblina com um movi-
mento de sua mão.
Paulo mostrou-se receoso e tornou a se acomodar em uma pedra. Seus colegas continua-
ram a inalar a substância.
– Isso vai dá merda – Paulo resmungou –, pode apostar!
– Fiquem em silêncio, cambada! – sussurrou Roberto. Ele apontou para outra abertura
rodeada de folhas, gravetos e cipós. Nitidamente, viram Dionísio descer a discreta trilha – Agora
que a brincadeira vai começar – ele riu baixo.

Na mansão da Família Tavares


(2014)

Há muitos anos Paulo é amigo de Roberto e seus parentes, tanto é que por um imenso
período frequentou a propriedade em seus principais eventos. Ainda adolescente, constantemen-
te passou muitos de seus fins de semanas na luxuosa residência e, assim como os patrões, os
funcionários o tratavam como se fosse um dos integrantes da família. Por um longo tempo, foi
considerado como sendo o braço direito de Roberto e, traindo a confiança de Rogério, acobertou
uma infinidade de irresponsabilidades e erros cometidos pelo confidente. Entretanto, conforme
o tempo transcorreu, começou a desconfiar do grau de periculosidade do amigo.
Suas preocupações em relação a ele eram cada vez mais perturbadoras. Sempre teve no-
ção do quanto a índole do comparsa era ruim, mas queria acreditar que tudo fora um engano.
Seus ouvidos escutaram Roberto encomendar um assassinato e seus olhos viram o ato inescru-
puloso quase ocorrer. Aquilo tudo lhe tirara o sono, precisava aceitar que o companheiro de
tantos anos era realmente um matador insensível. Queria convencer a si mesmo que o rapaz não
era capaz de eliminar membros de sua própria família para alcançar seus objetivos. Só de cogitar
essa hipótese, suas mãos tremeram no volante.
Temeroso, seguiu em linha reta até frear ante a fachada da mansão dos Tavares. Porém,
o longo portão de detalhes ornamentais barrou seu Renault Symbol. O imóvel, como qualquer
outra de alto valor, também tem seus procedimentos de segurança. Por costume, o visitante pri-
meiro tinha que dar ciência da sua presença. Assim fez. O motorista saltou e se posicionou em
um ponto estratégico exatamente no ângulo de filmagem da câmera residencial. Ele então forçou
o dedo na campainha. Segundos depois, a voz do empregado da casa ressoou pelo alto-falantes:
– Estou vendo você daqui, Paulo. Irei liberar a passagem.
– Obrigado, senhor Duarte! – retribuiu.
Soou um silvo do fone grudado a parede. Um ranger de metal sinalizou a rotação dos pe-
quenos motores que conduziam a abertura do portão. Antes mesmo de entrar em seu automóvel,

207
A Coragem

o acesso à propriedade já se achava aberto. O carro avançou para dentro. A fileira de coqueiros
parecia se mover diante do condutor. Rosane e duas amigas conversavam na beira da piscina
quando o visitante parou o Renault próximo ao trio.
– Boa tarde, Rosane! – deixou a cabeça para fora.
– Oi, Paulo! – a adolescente sorriu – Veio ver meu irmão? Ele está na sauna.
– Obrigado! – o veículo deslizou até a garagem.
Retirou-se do veículo e se aventurou pelo enorme terreno. Paulo acenou para alguns emprega-
dos e ganhou as escadas do jardim. Sentiu um frio na espinha assim que rememorou o que acontecera
ali semanas antes. Pisoteando o trecho florido, visualizou a sauna residencial. Estava razoavelmente
longe, bem atrás dos arbustos. Ele findou seus passos assim que se deparou com a vidraça do com-
partimento fechado. Estudou o interior da sauna. Junto à densa fumaça branca que embaçava o lugar,
viu que Roberto estava na companhia de uma mulher. O casal se beijava disperso e as carícias eram
mais quentes que a neblina que os cobria. Paulo acenou com a intenção de ser percebido. Quando
Roberto enfim o enxergou, soltou-se da garota e o mirou de forma desagradável.
Paulo notou que o homem teve conhecimento de sua presença, então deu meia volta e se
deteve na entrada do cômodo. Cadeiras de plástico, cabides, uns com roupas, outros sem, e uma
mesa ocupavam o centro do lado exterior. Assentou-se no momento em que aguardava o filho
do patrão se retirar do ambiente quente e confortável.
A porta da sauna se abriu. Primeiro, a linda jovem deu a graça de sua presença, fazendo com
que Paulo, mesmo tentando se esquivar, fixasse seus olhos nos perfeitos contornos da bela senhori-
ta. A jovem de biquíni o olhou de soslaio e sorriu com discrição. Ela foi até onde se encontravam as
toalhas de banho. Enquanto a mulher se enrolava na toalha, Roberto varou a divisória.
As sobrancelhas dele se ergueram quando fitou Paulo com desprezo. Calçou os pés des-
calços sobre os chinelos deixados na entrada e continuou a caminhar. Seu corpo vigoroso trans-
bordava em suor. Esfregou as vistas a fim tirar o excesso de vapor que as embaçava. Ajeitou sua
sunga e também se envolveu em outra das tolhas.
Após retirar a umidade do rosto e se vestir, fitou o advogado:
– O que você faz aqui?
Os olhos de Paulo saltaram da garota para Roberto. Assim, respondeu:
– Vim conversar com você!
– Não temos nada o que conversar – Roberto reagiu, grosseiramente. –Some da minha frente!
– Não irei embora sem antes dizer o que penso – Paulo o desafiou.
Roberto relanceou a jovem atraente.
– Kelly, nos dê licença, por favor!
A mulher cujos olhos estavam escancarados, amarrou o nó da toalha e sai apressada. As-
sim que notou a moça se distanciar, Roberto falou:
– Intrometeu-se onde não foi chamado. Sabe muito bem como sou, me conhece como
ninguém – as palavras foram cuspidas como labaredas de fogo. – Sabe o quanto eu detesto isso.
Não tinha dito para o João Sérgio matar o Túlio. Queria dar um susto nele, nada mais que isso...e
você, apareceu para atrapalhar a brincadeira, junto com o tal Dionísio.
– Deixa de besteiras! – os dentes de Paulo rangeram – Por acaso acha que sou idiota? Sei
muito bem o que pretendiam.
– Você está me acusado? – o dedo de Roberto afundou no peito de seu acusador – Está me

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chamando de assassino? É isso mesmo que eu ouvi?


– Sim – o outro afirmou.– E vou te dizer a verdade. Por muitos anos eu aceitei calado os
seus erros, maldades e...
– E participou de quase tudo e também – o playboy o cortou – lucrou com isso. Não seja
hipócrita! – seus punhos se fecharam diante de Paulo, prestes a socá-lo.
– Sim, diferente de você, tenho consciência dos meus erros – devolveu. – Só que dessa
vez, você está indo longe demais, Roberto. Seu desejo doentio pelo poder, sua obsessão pela
presidência o está tornando um ser humano cada vez pior. Já encobri muitas maldades suas, mas
uma tentativa de assassinato é algo cruel demais.
Roberto revirou os olhos para averiguar se havia alguém os escutando.
– Tentativa de assassinato? – rugiu – Cale sua boca, seu merda! Eu não pretendia matar
ninguém. Será que não entendeu? Era apenas um susto.
– Pare de mentir, cara! – o timbre de Paulo se abrandou – Eu sei de tudo!
Roberto mudou de expressão.
– Sabe o quê?
O advogado baixou os olhos por alguns instantes. Seus lábios se moveram apesar das
palavras terem dificuldade para serem ditas. Sentiu os ossos congelarem e sua pulsação acelerar.
Contudo, reuniu forças, levantou a cabeça e encarou Roberto. Sabia que era arriscado o que
estava prestes a dizer, a partir dali, colocava em risco a própria vida.
– Seu pai, bastante preocupado, uma vez me confessou que retiraram uma quantia milio-
nária da conta dele. Demorei muito a perceber isso, mas... – afastou-se.
O olhar de Roberto esfriou.
– Mas o quê?
– Juntei as peças e descobri por mim mesmo quem era o ladrão da história – o outro
prosseguiu. – No início, não queria acreditar. Mas no dia do aniversário de sua irmã, tive a feliz
conclusão – fez uma pausa e, constrangido, encheu-se de coragem e concluiu – Você tentou
matar o Túlio porque ele guarda as provas dos seus crimes.
O homem robusto, no segundo em que ouviu a revelação, imediatamente perdeu o controle.
Partiu para cima de Paulo e o segurou pela gola da camisa. Pressionando-o contra a parede, rugiu:
– Quem você pensa que é para dizer uma merda dessas? Sempre te tratei bem, te dei tudo,
transformei você no que é hoje... é assim que me retribui?
– Se eu pudesse voltar atrás, nunca teria me associado a você. Eu me arrependo profunda-
mente de ter sido influenciado durante tanto tempo – vociferou Paulo, sentindo sua coluna doer
por ser forçada contra o concreto. – Quantas maldades eu fiz por sua causa, o espancamento do
Dionísio, por exemplo. Humilhamos o coitado do Túlio durante toda a sua vida. Basta disso!
O agressor o puxou e voltou a bater com a força as costas do homem na parede. Cessando
o movimento brusco de seus braços, disse:
– Fez coisas ruins porque quis, não venha me culpar – cuspiu na face do rapaz. – Cada um
é dono de seus próprios atos. Não seja ridículo!
– Eu sempre fui seu parceiro, cara! Gosto de você, quero o seu bem. Mas se continuar as-
sim – Paulo resolveu acalmá-lo –, sua cobiça vai te destruir, sua vida arruinará, precisa parar com
essa sua ambição desenfreada – sua voz denotava um razoável receio. – Além do mais, não posso
admitir essa hipótese de que queira tentar algo contra seu próprio pai, não consigo entender isso.

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A Coragem

Roberto franziu a testa e o arremessou para longe. Paulo teve de se agarrar num dos pi-
lares para não cair.
– Agora estou me recordando, foi você... – o dono da casa andou até ele – Você ouviu a
conversa entre mim e o João Sérgio no quarto. No dia da festa daquela pirralha. É por isso que
chegou até aqui e impediu que o João matasse aquele idiota.
Paulo se endireitou e o mirou, inquisidor.
– Viu como eu estava certo? – berrou – Acabou de confessar que queria matá-lo – Paulo
cambaleou para trás. Temia um ataque, sabia que sua força muscular era inferior à do adversário.
Roberto avançou em sua direção. Enfurecido, apontou-lhe o dedo indicador na cara.
– Quando te conheci no colégio São magno, você não era nada, era um simples aluno da classe
média sem respeito algum. Por minha causa, você se tornou o que é hoje. A sua fama, as meninas que
conquistou, as festas, quase tudo de bom que rolou nos últimos dez anos de sua vida foi porque eu te
ajudei – despejou Roberto. – Graças a mim você se tornou alguém, deve-me sua lealdade e respeito.
Paulo em silêncio, sentiu as palavras lhe ferirem a alma.
– É verdade, nunca neguei esse fato, mas tive de pagar um preço alto demais – balançou a
cabeça, em sinal de decepção. – Terei que levar esse peso nas costas para sempre. Não faz ideia
do quanto me arrependo – disse, sentindo seu semblante transbordar em tristezas e remorsos.
Quando um inesperado tapa no peito de Paulo o impulsionou para trás, Roberto esbravejou:
– E vou te dar um conselho... conselho de amigo – aproximou-se, Paulo andou para trás com
medo dele –, finge que não ouviu e nem viu nada. O que eu disse naquele dia foi num momento de raiva,
não pretendo tentar nada contra meu pai. Muito menos acabar com aquele magrelo retardado.
Paulo devolvendo-lhe um ar de desprezo.
– Você está criando o próprio buraco em que irá se afundar.
O homem violento o atacou com um rápido mover de pernas. Dessa vez, por causa da
rasteira, Paulo se estatelou no chão.
– Desaparece daqui! – Roberto berrou – E não volte mais!
Com dificuldade, Paulo se reergueu. Apavorado, voltou-se para Roberto pela derradeira
vez. Quem era esse homem a sua frente? Quando foi que ele ficara assim? Ou será que aquele
sempre foi o mesmo e ele jamais fora capaz de enxergar? Só nesse instante percebeu que, duran-
te todos esses anos, nunca o conhecera de verdade.

51

RELATOS

Maria do Rosário entrou na cozinha. Assim que preparou um misto quente com queijo e
presunto, abriu a geladeira, encheu um copo com suco de laranja e se dirigiu à sala. Estava sozi-
nha em casa. Sentia-se bem assim. Acomodou-se no tapete. Sentada com as pernas cruzadas e a

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William R. Silva

coluna apoiada no sofá, mordeu um pedaço de seu lanche. Seus risos eram cada vez mais altos na
medida em que assistia a um programa de humor num dos seus canais prediletos de tv a cabo. Vez
ou outra, pensava em seus fracassos amorosos, em inúmeras ocasiões desejou chorar, mas havia
motivos piores no mundo para tal atitude. É jovem, possuiu uma família abençoada, sua vida ainda
era longa, sempre pensava nas coisas boas que Deus lhe presenteara e isso acabava por conter suas
lamúrias. Tantas decepções teve com João Sérgio. O amor que sentia por ele não era nada mais que
paixonite de adolescência. Mas o outro parecia ser diferente. Até sonhou com a ideia de se casar
com ele num futuro próximo. Grande engano. A raiva que experimentava por Dionísio era tão
intensa quanto a saudade que sentia por ele. E isso, sem dúvida, era o pior de tudo.
A campainha soou repentinamente. Seu momento de descontração foi interrompido. Mo-
veu os olhos para a janela e viu que seu pastor alemão correra para o portão e não parava de latir.
Isso é normal, Hércules sempre age dessa forma quando alguém os chama da rua. Por fim, ela
deixou o copo e o prato com o misto em cima da mesa. Endireitou a calça jeans no abdômen e
arrumou a blusa por cima do umbigo. O toque da campainha estalou de novo. Ela adentrou o
banheiro, checou os cabelos na frente do espelho, depois correu para atender a porta.
Seu bicho de estimação sossegou quando a viu passar. Maria girou a chave no trinco e
abriu a porta. Sentiu um frio na barriga no momento em que viu o indivíduo na calçada. Como
estava elegante. O homem diante de seus olhos parecia mais bonito. Aquele blazer aberto, a gra-
vata atada a seu pescoço, seus cabelos penteados brilhavam. Ele estava parado diante dela, era a
última pessoa que cogitava ver nesse dia. Custou a se recuperar do baque que sofrera por causa
das mentiras do ex-namorado e agora ele estava ali, na sua frente. Os olhos de Dionísio e os dela
se magnetizaram um no outro. Ela teve vontade de mandá-lo para o inferno, bater a porta em sua
cara. Por outro lado, também desejou ardentemente pular nos braços dele e o encher de beijos.
Mais uma vez queria se sentir protegida. Era assim que se via sempre que o abraçava. Sentia-se
segura. Não de ataques físicos, era algo diferente. Quase místico. Pensou que o havia esquecido,
mas vendo o ex-namorado ali, sentiu todas as suas emoções ressurgirem. Sua paixão ardeu com
mais intensidade. Não se sabe quanto tempo os dois ficaram quietos admirando-se mutuamente.
Horas poderiam se passar sem que percebessem.
Os lábios de Dionísio se abriram lentamente.
– Teria como conversarmos? Queria muito falar com você.
Ela deu três passos e pisou na calçada.
– O que você está fazendo aqui? – quis se mostrar irritada, mas o seu tom de voz soou
sereno – Já disse que não quero mais te ver. Me deixe em paz!
Ele se aproximou. Era estranho explicar, mas sentia a veemência dos sentimentos de Ma-
ria do Rosário só de olhar nos olhos dela.
– Me perdoa! – seus dedos deslizaram sobre a pele morena da amada – Me dá uma chance.
Escute o que tenho a dizer.
Maria ergueu o braço e afastou a mão do homem do rosto dela. Depois, bradou:
– Por favor, Dionísio! Vá embora!
– Estou te pedindo apenas uma chance! – ele implorou – Será que é pedir demais?
Ele firmou o dedo indicador no queixo da mulher e mais uma vez a encarou nos olhos. Sentiu
que a respiração de Maria aumentou o ritmo. Foi se abaixando vagarosamente até que deixou seus
lábios próximos aos dela. Suas pernas bambearam, a pulsação de ambos acelerou. Nesse instante, o

211
A Coragem

mundo deixou de existir. Quando estava prestes a beijá-la, a moça se afastou subitamente.
– Não, Dionísio! – Maria o repreendeu – Você mentiu pra mim. Nossa relação começou
com mentiras. Você foi pra cama com a... – sentiu-se constrangida – você se envolveu com a
Ana Júlia. Usou nós duas por vingança.
– Não! Isso foi um engano – Dionísio rebateu. – Por isso quero que me deixe explicar.
Eu não sabia que você era amiga da Ana. Não me recordei de você quando a vi no parque pela
primeira vez. Foi coisa do destino. Eu falo a verdade!
Maria entendeu que aquilo perduraria por horas se ela não desse o assunto por encerrado.
– Seu idiota! – gritou, irada – Não importa se era por vingança ou não – voltou para dentro
de casa. – Você me traiu. Mesmo que não fosse a Ana, com qualquer outra mulher a mentira
seria a mesma.
– Eu quis pagar o sofrimento que ela me causou com a mesma moeda – o homem falou
em tom de desespero. – Jamais faria o que fiz se não fosse por vingança. Estou arrependido, juro
que se pudesse voltar atrás, mudaria minhas atitudes.
Ela o olhou com raiva. Bem devagar, começou a fechar a porta enquanto observava o
rosto de Dionísio sumir de suas vistas.
– Eu não quero saber de nada! – a moça esbravejou – não quero te ver nunca mais! – a
porta se fechou num estrondo forte.
Um silêncio fúnebre pairou no ar. O homem sabia que a jovem estava por detrás da pare-
de. Conseguia senti-la.
– Sei que não mereço perdão. Você está certa! – ele afirmou – Irei arcar com meus erros e
não insistirei mais na nossa relação. Mas, por favor, em nome dos momentos bons que vivemos
juntos, esclareça-me apenas uma curiosidade. Há dez anos almejo saber o que aconteceu no dia
em que me espancaram no parque. Conte-me, por favor!
Dionísio sentiu suas últimas esperanças se esvaírem. No entanto, surpreendeu-se. O aces-
so milagrosamente voltou a se abrir. O rosto de Maria do Rosário reapareceu. A forma como o
fitava estava mais amigável que segundos antes.
– Obrigado por ter me socorrido! – disse a ela – Serei eternamente grato a você e ao Túlio.
Enquanto ela esteve imersa em suas lembranças, seus olhos pararam na face do homem aflito.
– Isso faz muito tempo! Não fiz nada mais que minha obrigação.
Ele a retribui com sorriso.
– Eu te imploro. Conte-me tudo!
O semblante dela caiu em tristeza. Ver a mulher naquele estado triturava seu coração.
Dionísio se enxergava como um monstro insensível por tê-la feito sofrer.
– Como disse – a mulher tornou a dizer –,está desculpado. Agora vamos cada um viver
sua vida. Foi bom enquanto durou. Mas...– sua voz quase saiu num sussurro de prantos – Vou
relatar tudo o que aconteceu naquele dia horrível. Porém, quero que prometa-me uma coisa!
O homem assentiu. Havia angústia em seu interior. Maria pensativa, baixou os olhos.
– Depois dessa conversa, quero que me esqueça de vez, para sempre. Entendeu? Cada um
viverá a sua vida.
Dionísio mostrou uma expressão bastante atordoada.
– Está bem!
– Está com tempo? Pois a história é longa.

212
William R. Silva

– Tenho todo o tempo do mundo – o rapaz respondeu. – Gostaria de me acompanhar até a


sorveteria da esquina? Compro um açaí para nós dois enquanto você me relata tudo.
A moça aquiesceu.

Como estava sentado de frente, Dionísio podia ver a circulação de automotores e pedes-
tres na rua. Revirou os olhos e constatou que o piso do estabelecimento parecia um tabuleiro
gigante. Quadrados pretos e brancos se alternavam no chão. Nenhuma das outras treze mesas es-
tava ocupada. Apenas os dois estavam presentes. Melhor assim! Nas paredes foram desenhados
sabores de sorvetes e caricaturas humanas contentes. O garçom anotou o pedido. No momento
em que o funcionário caminhou para o balão, Maria do Rosário inicia sua série de confissão.

Primeiros momentos
(17 de maio de 2004)

Rapazes e moças uniformizados marchavam em sentido à escadaria do São Magno. Quan-


do o vidro do carro onde estava deslizou, Maria observou a torrente de alunos que adentravam o
colégio para ver se conseguia avistar o rosto de Ana Júlia.
No momento em que o Siena se preparava para estacionar na calçada, finalmente viu a
colega de classe saltar do carro dos pais. Os cabelos loiros que brilhavam como cobre, faziam
com que ela se destacasse na multidão. Quando a estudante colocou os pés no primeiro degrau
da escadaria escolar, uma voz a chamou:
– Ana! Me espera!
Enquanto Maria acenava insistentemente de dentro do veículo, Ana correu contente na
direção dela.
– Maria! – ela sorriu. Suas mãos chegaram a empurrar alguns meninos para conseguir
passagem – Pensei que você não viria hoje!
A adolescente saiu do veículo com tanta rapidez, que se esqueceu de fechar a porta do Siena.
– Ei menina, não está esquecendo de nada, não? – perguntou o motorista, pondo o rosto de lado.
Maria riu, então empurrou a porta até ouvi-la bater.
– Não é disso que estava falando – seu pai insistiu.
Ela pensou por um breve instante e sorriu de novo. Deu meia volta, parou ao lado da
janela do motorista. Beijou a testa do homem no volante.
– Tchau, paizinho lindo. Deus te guarde!
O automotor se foi. As duas seguiram para o estabelecimento de ensino. Maria enroscou seus
braços nos da amiga e ambas seguiram o trajeto. Caminhando unidas, aventuram-se pelo corredor lota-
do. Ana Júlia discretamente começou a mover o rosto de um lado a outro. Sua amiga, por ter percebido
sua intenção, travou os passos. O grupo de alunos atrás delas também parou bruscamente.
– O que foi, Mari? – indagou, confusa.
Ela encarou Ana, desaprovando-a.
– Aposto que está procurando aquele delinquente do Roberto!
Ana Júlia gargalhou. Imóvel, viu que os outros a sua volta prosseguiram seus passos.

213
A Coragem

– Sim, mas o Beto não é isso aí que você disse não, tá?
– Não é, não? Seja sincera consigo mesma. Você sabe muito bem que esse cara não pres-
ta – os passos de Maria seguiram trazendo a colega consigo. – Esse menino ainda vai te trazer
problemas. Você vai ver!
– Até parece, né, Mari? Até parece! Acha que não percebo o seu jeito quando está próxima
do João Sérgio? – Ana a provocou – Não vem se fazer de santa comigo não, viu? Não vem mesmo!
Maria do Rosário tornou a interromper suas pisadas. Em seguida, arremeteu um solavan-
co no braço entrelaçado da menina de cabelos loiros. Seus braços se desuniram. Quatro meninos
resmungaram quando tiveram de parar por causa da interrupção delas.
– Ai, menina, você quase quebrou meus ossos! – a loira reclamou.
– Eu já disse que não gosto desse João – Maria titubeou. – Ele é um menino ruim.
Os rapazes continuaram o trajeto, deixando ambas para trás.
– Gosta, sim. Eu sei quando uma pessoa gosta da outra e também conheço você desde os
cinco anos de idade – intimidou Ana. Uma dúzia de alunos voltou a jorrar em torno das duas –
Não adianta tentar me enganar.
– Maninha, vamos parar com esse assunto. Que tal? – sugeriu a morena, sentindo-se
encurralada.
– Está bem, amore mio... – as pisadas se tornaram mais rápidas.
Seus braços voltaram a se cruzar. Desvencilhando-se de alunos e outros obstáculos, pros-
seguiam. Ana Júlia, então, fez cara de nojo ao reparar de longe um menino obeso e desajeitado
a contemplando com um semblante apaixonado.
– Que saco! – Ana quis se esquivar da vista dele – Aquele menino feio de novo. Ele vive
me olhando com aquela cara de babaca!
– É aquele gordinho da nossa sala que fez trabalho com você, acho que o nome dele é
Dionildo, Diovaldo, sei lá. Só sei que começa com Di, é um nome estranho... – comentou Maria,
andando depressa – Coitado! Finge que não viu, assim você não o maltrata.
– Se fosse só o nome que fosse estranho, estava bom! – disse Ana, quase a correr – esse
carinha é todo esquisito.
A morena arrastou a companheira para a sala de aula.

O funcionário da sorveteria surgiu com duas tigelas de açaí cujas fatias de bananas e
pedaços de morango quase transbordavam do recipiente. Colocou-as em cima da mesa. Ele tam-
bém deixou algumas embalagens de granola. Enfim, agradeceu e voltou para o balcão. Dionísio
examinou o creme roxo com seus enfeitas de frutas, mas só agora vira que perdeu o apetite. Nem
mesmo quis segurar a colher de plástico ao lado da bandeja.
Maria do Rosário misturou seu creme, pegou uma porção com a colher e degustou o açaí
por alguns segundos. Depois, voltou a olhá-lo, preocupada com seu ar de desgosto.
– Continue o relato, por favor! – pediu Dionísio, com uma voz cansada.
Ela tomou outra colherada. Sentiu certo pesar por estar lhe contando tais eventos.
– Não vai tomar o açaí? – Maria estranhou – Se demorar demais, ele vai derreter.
Segurou a colher e a introduziu na tigela, o homem então encarou a interlocutora e
insistiu novamente:
– Por favor, prossiga!

214
William R. Silva

– Está bem, está bem! – disse ela, soltando a colher no recipiente.


Ela respirou fundo, olhou-o com compaixão e prosseguiu o relato.

Sala de aula

Professora Lúcia andava de um lado para outro com o livro em mãos enquanto lecionava a
matéria do dia. Ana Júlia, atenta, aguardava a orientadora se distanciar para continuar a conversa
que tinha com a amiga antes do início da aula. A mulher enfim se afastou, a aluna se virou para
trás e viu Maria fazendo anotações no caderno.
– Mari... – invocou em voz baixa – Posso te contar um segredo!
A morena examinou ao redor da sala a fim de averiguar se Lúcia não as estava notando.
Teve certeza de que não corriam risco de serem advertidas. Então, decidiu dar trela à amiga.
– Diga! – ordenou com os lábios próximos ao ouvido da adolescente.
– Estou me encontrando com o Roberto quase todos os dias atrás da cantina – confessou
a garota loira. Ela mordeu os lábios para conter o riso.
– O quê? Está maluca! – exclamou Maria. Sua voz se alterou.
As duas ficaram em silêncio por notarem dois alunos que sentavam ao lado, pousarem
seus olhos sobre elas.
– Sim... – Ana disparou – E daqui cinco minutos ele vai estar me esperando. No mesmo lugar.
Maria balançou negativamente a cabeça.
– Você é muito louca, não tem nada na cabeça.
– Todos as meninas do colégio são afins dele e ele está comigo – Ana riu. – E isso que
importa. Não me preocupo de correr esse risco, na verdade, até gosto.
– Ana, você está desobedecendo seus pais. Isso não agrada a Deus, sabia? – advertiu a morena.
– Ai, menina, para de pôr Deus no meio da conversa! – a menina de cabelos loiros brincou
– Ele não tem nada com isso.
Maria do Rosário tentou se manter séria, mas não resistiu ao senso de humor da colega
de classe e começou a dar risadas tapando a boca. Sua colega imediatamente franziu o cenho.
– Droga!
– O que foi, Ana?
– Aquele gordinho está me olhando outra vez, vou ignorar – concertou-se no assento. –
Vou fingir que não estou vendo.
– Acho que ele gosta de você – Maria comentou. Quis ser irônica.
Ana Júlia deu de ombros.
– Azar é o dele! Ele que conviva com esse amor, mas longe de mim.
Ana direcionou um sorriso cínico na direção do garoto apaixonado. Em seguida, levou o dedo
até o teclado do celular. Viu que os cinco minutos já se passaram. Confessou, rindo para a cúmplice:
– Já está na hora.
Maria a reprovou com os olhos.
– Você não toma jeito mesmo, hein!
Aos risos, Ana ergueu o braço a fim de chamar a atenção da professora.

215
A Coragem

– Não mesmo! – retrucou. Ela tornou a dar de ombros.


A tutora a notou.
– Professora Lúcia, posso ir ao banheiro?
– Pode, sim, Ana Júlia – a orientadora lhe respondeu.
Ana levantou-se, varou a divisória que separava a classe do corredor. Desapareceu.
– Essa menina é maluca – Maria sussurrou. – Não tem juízo nenhum!
Minutos depois, Dionísio também quis sair da sala. Lúcia autorizou. Maria levantou a
sobrancelha quando viu o menino sair. Quando ela terminou de copiar o conteúdo do quadro, a
figura obesa e desajeitada retornou para dentro da sala, Ana Júlia surgiu bem atrás dele.
Ana Júlia com ar de deboche, puxou sua cadeira e se acomodou na carteira.
– Maria, você não sabe o que me aconteceu agora! – riu baixo – Estou segurando para não
soltar uma gargalhada.
– O quê? – os olhos de Maria quase saltaram para fora – Pegaram você é o Roberto no flagra?
– Não, menina – olhou de relance para a professora. Viu que ela esclarecia algumas dú-
vidas a uma das garotas que se sentava no fundo. Voltou-se para a amiga – Deus me livre! Sabe
aquele bobão que você afirmou gostar de mim? – movimentou os olhos na direção da mesa de
Dionísio, no outro lado.
Maria o olhou de esguelha.
– Sim. O que tem ele?
Ana Júlia enfiou os dedos dentro do uniforme, pegou um envelope e discretamente entre-
gou à amiga por debaixo da mesa.
– O mané me deu essa carta – confessou Ana. Um ligeiro riso escapou-lhe da boca. Ela a tapou.
– Eu sabia que ele gostava de você – a morena sentiu o papel com a ponta dos dedos e o agarrou.
Baixou os olhos e tateou o envelope – Até um cego repararia isso! O que vai fazer com a carta?
Ana pensou no assunto.
– Acho que vou guardar pelo resto da vida – riu. – Assim terei algo para me divertir quan-
do estiver triste – engasgou-se por conter a gargalhada que alcançou seus lábios.

– Foi nesse momento que ela teve a ideia de me enganar e marcou o encontro no parque?
– indagou Dionísio, interrompendo a confissão da relatora.
Maria correu os olhos em volta da sorveteria semivazia e observou alguns clientes que
aguardavam atendimento. Reparou no lado de fora, os carros nas ruas pareciam brotar do asfalto.
A cada minuto, havia um fluxo maior.
– Não! Na verdade – falou, compreensiva –, ela nem tinha cogitado essa ideia.
Dionísio agarrou o colher de plástico. Ergueu uma porção do creme com pedaços de fru-
tas e o levou a boca. Saboreando a mistura, prosseguiu a ouvir a narradora.

Hora do recreio

A aluna percorreu toda a escola à procura de Ana Júlia. Estava preocupada. Foi na sala de
aula das amigas, procurou na biblioteca e alguns outros setores da escola, mas não a encontrou.

216
William R. Silva

Perguntou aos colegas no pátio se algum deles a viu, no entanto, ninguém lhe deu uma resposta
útil. Quando o sinal do recreio soou, elas saíram juntas, porém, uma se perdeu da outra quando
Maria entrou no banheiro para ajeitar seus cabelos na frente do espelho. Ana Júlia disse que a
esperaria lá fora. Ao sair, Maria não mais a viu. Num rápido clique, lembrou-se do provável
lugar onde poderia encontrá-la.
Avançou pelo corredor, obstinada. Desceu as escadas, procurando-a por toda parte. Sem
ser notada, deu a volta no muro por detrás da cantina. Ela então recuou acuada. Risos, vozes e
algumas gargalhadas disparavam pelo beco. Com velocidade reduzida, continuou seus passos.
Seus olhos se espicharam assim que notou quatro alunos se divertindo. Roberto, em cima de dois
tijolos, segurando um pedaço de papel erguido diante de seus olhos, recitava frases poéticas para
o grupo a sua frente. Ana Júlia, Paulo Munis e João Sérgio, cujas mãos se pressionavam contra
a barriga, riam com tal intensidade que estavam quase a perder o fôlego.
– Seus olhos que são da cor do verde da natureza... – a voz do orador se atrapalhava em
meio à chuva de gargalhadas – Sua pele tão branca como a neve e seu jeito de ser... – viu que
João Sérgio rolou na grama. O som de suas risadas aumentou – Uma meiguice que não dá para
comparar. Sempre gostei de você, mas nunca tive coragem de me aproximar –lágrimas de riso
correram dos olhos do declamador.
– Que imbecil! – João começou a tossir. Estava parcialmente sem ar –Esse Dionísio é um
otário... muito otário! – se pôs de pé com dificuldade.
– E aí? – Ana se pronunciou – O que faço com essa carta idiota? Não sei se tenho pena ou
se começo a rir desse infeliz!
– Usa como rolo de papel higiênico – palpitou Paulo, hilário.
Maria continuava escondida.
– Boa, Paulo! – Roberto saltou do palanque improvisado – Boa ideia!
– É melhor não! – João intrometeu – É capaz de dar uma infeção no anus de quem usar.
É melhor jogar no vaso e dar descarga, é assim que se faz com as merdas, e isso que essa carta
é, um monte de merdas.
As gargalhadas reiniciaram. Maria do Rosário deu dois passos. Continuou sem ser notada.
Roberto retirou um isqueiro do bolso e, suavemente, estapeia as costas de João.
– Espera aí, mano. Tive uma ideia melhor.
– Qual? – as sobrancelhas do aluno, assim como as dos demais, arquearam-se.
– Passa o papelote aí! – Roberto fez um gesto com os dedos.
João Sérgio agarrou um bolo de papel do bolso e arremessou nas mãos do comparsa.
– Não acredito que vão fazer isso? – Ana assumiu uma postura preocupada.
Roberto levou o pedaço de papel até João, ele o segurou. O estudante indisciplinado des-
dobrou o conteúdo e despejou alguns gramas da maconha por cima do papel sobre as mãos do
colega. Diante de todos, o jovem enrolou a droga na carta até transformá-la num fino canudo.
Depois, acende e a coloca na boca.
– Eita, essa foi boa! – João comentou – Maconha com paixão, Roberto e eu vamos fumar
um baseado romântico.
Roberto sugava a fumaça, sua respiração prendeu.
– Isso não teve graça – Ana reclamou. Neste momento, toda a diversão teve fim.
Paulo meneou com a cabeça.

217
A Coragem

– Cara, a cada dia que passa, vocês estão ficando mais doidos!
Os dois fumantes revezaram o cigarro ilegal.
– O foda é que seu hálito vai ficar fedendo a isso aí! – a loira resmungou – É horrível te
beijar com esse cheiro.
Por fim, Maria do Rosário ganhou coragem e invadiu o local. Todos os olhares se volta-
ram para ela.
– Não estou achando isso legal! – repreendeu, com as mãos nas cadeiras –Vocês deveriam
respeitar os sentimentos dos outros! – os olhos de Roberto se frisaram nela, mas não se intimi-
dou – Se você não gosta do menino, não precisava fazer isso com a carta dele, era só falar que
não estava a fim, devolvê-la e pronto! E vocês dois, não deveriam fumar essa troço – encarou
a dupla de meliantes. – Isso vai dar problemas para vocês, sabiam? – raivosa, fulminou João
Sérgio com um olhar de decepção.
João caminhou até a garota.
– Calma, amorzinho! – deu um risadinha cínica – É só uma brincadeira, chuchu! – tocou
em seus cabelos. Ela deu um tapa nas mãos atrevidas.
– Não se irrite, Mari! – Ana tentou acalmá-la – Depois eu digo a ele que gostei da carta,
mas que não quero nada, que tenho namorado e tal. Ele nem vai saber que a carta dele virou
fumo. É só uma brincadeira. Relaxa, amore!
Maria tinha uma expressão tão pesada que entristeceu a amiga de cabelos loiros. Assim,
esbravejou:
– Faça o que sua consciência mandar.
Ela, enraivecida, olhou para o rosto de João Sérgio. Sentiu certa afeição no semblante
dele. A moça foi embora do lugar deixando os quatro sozinhos. Roberto franziu a testa. Ele
esperou a menina sumir e tornou a apreciar o seu fumo. Já com os olhos vermelhos, pegou na
cintura de Ana Júlia e começou a mordiscar-lhe as orelhas.
– Sua amiguinha, como sempre, bancando a certinha! – ele a apalpou.
– Verdade, ela sempre foi assim – Ana Júlia parecia preocupada. – Mas eu gosto muito dela.
– Ei, pessoal! Acabei de bolar um plano – Roberto gritou. – Que tal se pregássemos uma
peça nesse gordo babaca? Uma sacanagem bem feita. E aí? – continuou a agarrar a moça por trás.
– Como assim? – Ana Júlia se virou para o namorado.
Roberto a soltou e correu em direção aos cúmplices.
– A Ana escreve uma carta, marca um encontro com ele – todos o encaram sem piscar os
olhos. – Esperamos ele fazer outra declaração de amor. E depois, caímos todos na zoação. Que tal?
João começou a bater palma, irônico.
– Que ideia incrível!
– Pode ser! – Ana topou – Tipo, marco encontro com ele, deixo ele pensar que estou a fim
e depois caímos na risada. Mas nada de agressões! – advertiu – Será apenas brincadeirinha e só.
Sei muito bem que vocês pegam no pé dele.
– Pode deixar, filé! – Roberto a segurou pela cintura – Será somente um trote.
– Negócio fechado! – disse João Sérgio ao dar outro trago.
Paulo coçou a cabeça.
– Não sei, não – discordou, inquieto. – Acho que isso não vai prestar!
– Fica calmo, mané! – João pôs a mão direita sobre o ombro de Paulo – Não vai ser nada demais.

218
William R. Silva

– Vem todo mundo comigo! – Roberto acenou – Vamos combinar.


Maria do Rosário, ainda por trás do muro, disparou pelo corredor apertado.
– Turma de irresponsáveis! – esbravejou. Olhou para o fundo, não os viu se aproximar.
Seguiu para a sala. Estava disposta a fazer a colega desistir do ato de covardia.

52

TRISTE LEMBRANÇA

– Ei! – chamou Dionísio, acenando para o jovem que trabalha na sorveteria.


O funcionário se aproximou.
– Sim. O que deseja, amigo? – respondeu o garoto.
Dionísio levantou a tigela com o líquido derretido e a entregou para o rapaz.
– Leve esse açaí! – Dionísio ordenou – Perdi a fome.
O garçom assentiu com a cabeça e se retirou.
Maria do Rosário esperou o funcionário se distanciar. Depois, mais uma vez contemplou
o movimento de carros, comércios e pedestres no lado exterior. Tomou mais algumas colheradas
do creme com frutas e ficou a examinar a feição angustiada do seu ouvinte.
– Sei como se sente... te entendo – ela declarou timidamente. – Essas confissões devem
estar te fazendo mal. Acho melhor parar por aqui.
Dionísio encheu o peito de ânimo, refez sua postura. Atingindo-a com um olhar determi-
nado, disse com vigor:
– Não. Já que chegamos até aqui, deve ir até o fim.
Maria suspirou e deu uma ligeira arrumada nos cabelos. Assim, prosseguiu.

Incidente no parque

A mensagem no celular avisava a Maria que seu pai iria demorar a buscá-la naquele dia.
E, portanto, teria de esperar sua chegada por algum tempo na calçada do colégio. Não se im-
portava, naquele momento fora até útil que aquilo acontecesse. Sua voz interior o tempo inteiro
previa que ocorreria algo grave envolvendo sua amiga de infância e precisava ajudá-la. Sentia-
se incomodada e, em virtude disso, empenhou-se em procurar Ana Júlia. Assim como fizera no
recreio colegial, a adolescente tornou a desaparecer após o sinal de encerramento do dia letivo.
Trafegando pela calçada, estudou a fisionomia das dezenas de alunas que se esparramavam
pelas ruas e estacionamentos. Nem sombra da menina de cabelos dourados. Insistiu para que
Ana não seguisse com o plano de humilhar o garoto. Ela fingiu aceitar. O problema é que Maria

219
A Coragem

percebeu o ato de dissimulação tarde demais.


– Não acredito que ajudou aqueles canalhas a enganar aquele menino. Não posso acreditar
nisso! – Maria rosnava, enquanto descia os degraus.
Assim, ela viu, há uma razoável distância, Túlio preocupado reclinado sobre um poste.
O menino aparentava apreensão, direcionando olhares atemorizados rumo a entrada do parque
ecológico. Maria marchou apressada até onde o estudante raquítico descansava e berrou:
– Túlio... – aproximou-se – Seu nome é Túlio, não é?
O menino magricela a olhou envergonhado.
– Sim... – a beleza da adolescente o intimidou. Ele baixou os olhos –Sou eu...
– Você viu a Ana Júlia por aí? – interrogou, desesperada – É aquela loirinha da nossa
sala...olhos verdes, pele clara, a que sempre está comigo. Você a viu?
Túlio fez que sim com o mover do queixo.
– Por favor, diga-me onde ela está! – implorou, ansiosa.
O aluno a fitou por uns segundos. Abriu a boca, as palavras relutaram em sair.
– Ela entregou uma carta ao meu amigo Dionísio – ele levantou os olhos por baixo das
lentes. – Depois ele foi para o parque... Fui atrás dele, mas não consegui mais encontrá-lo.
Nesse momento, viu que a morena colocou as duas mãos sobre os lábios. Seus olhos se
esbugalharam.
– Estou preocupado com meu amigo! – confessou Túlio, encarando-a com certo temor.
O cenho da jovem franziu no segundo em que ela segurou o pulso do sujeito magro.
– Você disse que a Ana entregou um bilhete para ele, não é? – ela o puxou. Ele se desen-
costou do poste – Em seguida, ele foi para o parque?
O sujeito acanhado aquiesceu.
– Isso mesmo.
– Então eu já sei o que deve estar acontecendo – afirmou ela. – Vem comigo!
Túlio a encarou, apreensivo. Os dois saíram disparados, atravessaram a rua e partiram
para o interior da reserva ecológica. De um canto a outro, a dupla foi rodeando todo o ambiente
em busca dos estudantes. Averiguaram os bancos próximos, em volta de árvores, trilhas e toda a
vegetação, no entanto, não conseguiram ver ninguém. Subitamente, Túlio se afastou apavorado.
Há uma razoável distância, avistou Ana Júlia e três rapazes. Eles fugiam apressados pelo parque
como se fossem criminosos se safando de uma prisão em flagrante.
– Eles estão ali! – berrou Túlio. Ele apontou para longe.
Maria seguiu o dedo indicador do rapaz com os olhos e se deparou com os fugitivos.
– Ana... – correu rumo ao grupo – Ana, me espera!
Roberto e os demais rapazes estavam pálidos como a neve. Viram que a morena se apro-
ximava. Ligeiros, atravessaram a saída e se dispersaram na multidão. Ana Júlia ficou só. Quando
Maria a alcançou, observou que lágrimas caíam dos olhos da amiga. Ela se cansou, por isso, a
morena teve de recuperar o oxigênio perdido.
– O que está aconteceu, Ana? – sua voz entrecortou – Fala pra mim! – segurou-a pelas
mãos – Pode falar, somos como irmãs, lembra?
Seus olhos verdes estavam lacrimejantes e seu nariz avermelhado. Ana Júlia a fitou ator-
doada, sem ter coragem para falar. Túlio boquiaberto de cansaço por ter corrido atrás da compa-
nheira, finalmente as alcançou. Estava ávido por informações.

220
William R. Silva

– Explica para nós o que vocês fizeram – Maria alisou a face apavorada da jovem. – Pro-
meto que não vou brigar com você, eu quero te ajudar.
Ana continuava tendo seu rosto inundado de lágrimas.
– O menino da carta... eu, eu...nós... matamos ele – soluçou. – Ele morreu...
Maria e Túlio sentiram suas pernas vacilarem. O sangue de ambos gelou.
– O Beto, os amigos dele... o espancaram... ele não resistiu – Ana continuou. O choro
intenso perturbava suas cordas vocais. As frases saíam desconexas.
– O quê? – Maria quis ter certeza do que ouvira – Vocês bateram nele até a morte?
Ana concordou.
– O menino está morto... – conteve as lágrimas por um instante – Morreu, nós matamos...
ele morreu!
Túlio sentiu uma avassaladora carga emocional aperta-lhe o peito. Suas vistas embaça-
ram, sentiu enjoo e quase caiu desmaiando. Sentindo o desejo de chorar perturbar-lhe a mente,
analisou a menina loira sacudindo com a cabeça em sinal de negativa. Tentou convencer a si
mesmo de que aquela informação era mentirosa.
Maria do Rosário, bastante emocionada, também sentiu seu corpo paralisar. Seu queixo
caiu, sua face morena se tornou parcialmente pálida e seu coração aumentou o ritmo das batidas.
– Onde está o corpo? – perguntou Maria, sentindo uma lágrima escorrer em sua face –
Precisamos saber.
Ana a mirou com certo temor. Ainda aos prantos, indicou uma gruta de árvores, cipós e
outras plantas silvestres em uma parte distante da área verde.
– Por favor, Mari! Não conta pra ninguém que fomos nós – Ana implorou. – Pelo amor
de... – o ar em seu pulmão saiu descontrolado – Deus! – o desespero a deixou transtornada.
– Vai embora! – Maria ordenou, gesticulando com o braço direito – Deixa que eu resolvo tudo.
Ana assentiu com a cabeça, virou-se e correu apavorada. Maria tornou a segurar o braço
esquelético do menino amedrontado e o conduziu, a passos rápidos, até a guarita do vigia. O
guarda no assento estava com os pés estirados sobre a mesa. Ele tomava seu café e assistia a
um programa na televisão. Encontrava-se tão absorto, que não notou a dupla se achegar. Túlio,
ainda em estado de choque, deu de cara com a grade onde o rosto do guarda era visto. Entretan-
to, em razão do nervosismo, não conseguiu explicar o que necessitava ao vigia. Maria tomou a
frente. O homem na guarita a encara curioso.
– Seu guarda! – berrou. O vigia pousou os olhos sobre ela – Tem um menino morto aqui
no parque, ele é meu colega de sala, precisamos...
O sujeito fardado deu um rápido salto da cadeira e se colocou de pé antes mesmo da
menina concluir a frase.
– Morto!? – a cortou, gritando espantado.
Outro vigia surgiu pela porta e apareceu no lado de fora.
– Como assim, menina? – o segundo vigia a indagou. Seu timbre denotava urgência em
obter respostas – Teria como explicar isso melhor?
Uma fina garoa começou a despencar em cima da farda azul, fazendo o funcionário ob-
servar os pingos de chuva em sua vestimenta. Ele ergueu os olhos e examinou as pequenas
gotículas que desciam do céu. O primeiro guarda se uniu ao companheiro.
– Depois ela explica isso – falou o sujeito fardado. – Vamos atrás desse adolescente morto.

221
A Coragem

– Tem razão – o outro concordou. – Onde está o menino?


– Está lá embaixo! – avisou Maria, sentindo os pingos d’água molharem sua testa – Si-
gam-me, por favor!
A menina deu as costas e disparou de encontro ao local indicado por Ana Júlia. Os dois
guardas e Túlio a seguiram em busca do paradeiro do jovem agredido. As gotas de chuvisco se
intensificavam conforme eles avançavam pela trilha.

– Considerei, durante todos esses anos, Ana Júlia como se fosse um monstro – Dionísio
interrompeu a narração. – Uma mulher incapaz de sentimentos, que merecia sofrer, mas... –
abrandou seu tom de voz – Agora que me contou tudo isso, vejo que a imagem que criei dela
era um pouco equivocada. Mas nada disso a isentará de sua responsabilidade direta pelo que
fizeram comigo.
A mulher o admirou com um ar de satisfação.
– Fiquei muito feliz quando vimos que você estava vivo – ela disse.
A testa de Dionísio franziu.
– Ficou porque sua amiga que tanto amava não iria ser penalizada pela minha morte –
volveu, com um timbre mais firme. – Sua alegria não foi por minha causa.
Os dois ficaram mudos. Em segundos, seus olhos se cruzaram e depois se desviaram. O
período de quietude se prolongou, a moça se sentiu meio confusa. Aproveitou e consumiu o
resto do conteúdo da tigela.
– Foi pelos dois – ela quebrou o silêncio. – Tanto pelo fato da minha amiga não ser uma
assassina, quanto por você estar vivo. Acredite, eu nunca te quis mal.
Dionísio se levantou, sacou sua carteira do bolso e deixou três notas de dez sobre a mesa.
Permaneceu, por uma fração de tempo a contemplar o lindo rosto da relatora. Por um breve
instante, pensou jamais ser capaz de esquecê-la.
– Obrigado, Maria! – disse, de cabeça erguida – Você esclareceu dúvidas que há dez anos
carrego comigo.
– Não há o que agradecer, Dionísio! – os olhos de Maria brilharam intensamente.
– Até qualquer dia, foi bom te reencontrar! – a voz de Dionísio parecia desprovida de
sentimentos. Seus olhos esfriaram.
De pé, a encarou pela última vez. Ela o olha nos olhos e assim ficaram por quase dez
segundos.
– Adeus, Dio! – falou com carinho – Até qualquer dia! – ela se despediu, mas havia uma
parte de si que o desejava por perto.
Maria, nesse instante crucial, percebeu que o amava muito mais do que pensava. Negou durante
dias o próprio sentimento por estar desiludida. Mas o queria junto dela mais do que tudo na vida.
Sem muita cerimônia, o homem virou as costas e observou a movimentação na calçada.
Sua postura masculina se manteve a mesma de antes, no entanto, aquele menino fraco que fora
anos atrás insistia em perturbar-lhe o íntimo, transformando toda a situação em um insuportável
conflito interno. Naquela hora, todos os ensinamentos da vida, tudo o que aprendeu no Quartel
e sua evolução em geral queria se dissipar de sua personalidade.
Ele tinha necessidade de ficar só, sem ninguém, apenas consigo mesmo. Por isso, atraves-
sou a rua, entrou no carro e desapareceu pela via. Maria, movida por uma força desconhecida,

222
William R. Silva

saltou da cadeira e correu para a rua. Teve vontade de gritar para que ele voltasse. O automóvel
seguiu, sua voz ficou presa no coração. Ela não sabia bem o porquê, mas teve vontade de chorar.
O Honda conquistou a avenida e sumiu no horizonte.

53

MESTRES DA MORTE

Barbacena-MG

Um relâmpago estrondeou no céu escuro no instante em que a chuva jorrou em maior


quantidade na avenida. Cachoeiras densas escorriam pelo meio-fio e inundavam os bueiros. Um
ônibus avançava na grande rua quando Elyane Schustner abriu o guarda-chuvas e se protegeu
das gotas pesadas que atingiam seu jaleco. Segurou firme sua mala, levou o antebraço até o rosto
e pousou os olhos em seu relógio de pulso. Minutos se passaram da meia noite. Ela esperou o
veículo de grande porte liberar a faixa de pedestres e atravessou. A força do temporal quase a
arrastava para trás, os respingos encharcaram sua calça. Seu carro estava estacionado próximo
a uma lanchonete.
Ela seguiu mais depressa. Outra descarga elétrica disparou sua luminosidade entre as nu-
vens. Elyane se sobressaltou com o estrondo. Rápida, adentrou no Fox. O que continha sua mala
era valioso demais, antes de dar partida, averiguou se os documentos dentro dela não estavam
molhados. Neles, estão impressas coisas importantes e dados sobre o homem que, supostamente,
financiou a fuga de Ernesto. E, a partir daquelas informações, muitas dúvidas seriam esclarecidas.
A água que deslizava pelo para-brisa ofuscou-lhe a visão. Deu partida e a condução se
aventurou em meio à chuvarada. Assim que foram acionadas, as palhetas começaram a remover
insistentemente a chuva que escorria pelo vidro. Encontrava-se esgotada, não via a hora de
descansar no aconchego de seu lar. Lidar com loucos psicóticos às vezes a deixava cansada
mentalmente.
Seus pulmões expeliram um ar de cansaço e alívio quando, enfim, avistou a fachada de
sua residência. Pisou no freio e apertou o controle do portão de grade automático. Observou
que uma enxurrada transbordava de um cano em cima de sua laje. A grade se abriu e ela guiou
o veículo até sua garagem. Por meio do retrovisor, fitou os próprios olhos refletidos, pensativa.
O “caso Ernesto” fora, sem dúvida, uma das coisas mais intrigantes que aconteceram em seus
mais de quinze anos de profissão. O que havia de tão estranho naquele ser? Como foi capaz de
arquitetar uma fuga tão perfeita? Ser uma das peças desse complexo quebra-cabeças a deixava
inquieta. Despiu-se do jaleco e o arremessou no banco traseiro. Portando a preciosa mala, cami-
nhou pela garagem estreita.
Subiu a rampa e parou diante da porta. Destrancou-a e entrou na residência. Correu o dedo

223
A Coragem

na parede para acender a luz e arremessou a mala no sofá. Estava ensopada, mas decidiu comer
alguma coisa antes de se trocar. A chuvarada persistia e os raios, pouco intensos, continuavam
a estralar no céu. Rumou até a cozinha, abriu a geladeira. Ela retirou um pedaço de torta e uma
garrafa de suco diet, colocou tudo sobre um prato de vidro.
Mais uma vez, reparou na mala estirada. Aquilo a atormentava, teria que se desfazer
desses documentos o quanto antes. No dia seguinte, faria o possível para entregar tudo nas mãos
de Átila e ter sua paz restabelecida. Seguiu pelo aposento e entrou no cômodo seguinte. Assim
que apertou o botão na parede, a luz do cômodo se acendeu. Lá fora, o mais potente dos trovões
ricocheteou e um clarão se produziu. Mas não fora a descarga trovejante que a assuntou naquele
segundo. Assim que visualizou uma sombra por detrás da cortina, deu um pulo para trás e deixou
o prato despencar. Seus olhos se espicharam e sua boca entreabriu num grito instintivo de pavor.
Cacos de vidro se esparramaram próximos a seus pés.
– Quem... – sua voz entrecortou – é você?
O braço da sombra se moveu e segurou a extremidade da cortina, arrastando-a em se-
guida. Quando o longo tecido foi totalmente afastado, um homem se projetou a sua frente. A
respiração de Elyane se tornou tão rápida que ela quase se engasgou.
– Olá – o intruso a encarou com seus inesquecíveis e aterrorizantes olhos azuis. – Há
quanto tempo não nos vemos, minha psiquiatra preferida! – riu, diabolicamente.
Ela recuou, boquiaberta.
– Ernesto? Você está vivo!
O cenho do homem franziu quando outro relâmpago clareou atrás dele.
– Sim, minha querida.
O invasor caminhou até ela, pisando nos cacos espalhados no assoalho. Na defensiva,
Elyane sacou o celular do bolso.
– O que você está fazendo aqui? Afaste-se de mim! – começou a discar um número na
tela, seus dedos tremiam tanto que ela estava com dificuldade para apertar os três números –
Vou chamar a polícia!
A mulher sentiu algo tomar o telefone móvel de suas mãos bruscamente. Ela levantou os
olhos e viu Ernesto soltar o aparelho no chão e o pisotear.
– Meu Deus! – Elyane ficou ainda mais perplexa – Você quer me matar? É isso?
Ernesto riu.
– Querida amiga, saiba que nunca tive nada contra sua pessoa. Você cuidou da minha
mente, foi uma boa psiquiatra. O único problema é que você viu o que não podia ver, escutou
o que não podia escutar, sabe… o que não deveria saber. Mas não se preocupe – fitou a mulher
com um ar de benevolência –, não irei matar você.
Elyane pressentiu que as palavras de seu antigo paciente eram mentirosas. Olhou de relan-
ce para a passagem que lhe dava uma chance de fugir. Quando pareceu que seu coração iria sair
pela boca, seu instinto de sobrevivência a fez saltar em fuga. Suas pernas se desestabilizaram e
ela caiu de joelhos. Os óculos se espatifaram no tapete. O descontrole a deixou desprovida de
perspicácia, fazendo-a agir sem pensar. Suas mãos se lançaram na mesa de centro para conseguir
apoio, mas o móvel tombou e, assim como os livros e taças de cristal, viu-se cair novamente.
Quis clamar por socorro, mas sabia que, por causa da chuva, ninguém ouviria seus gritos.
Só lhe restava correr para longe. O mais que pudesse. Cravou as unhas no tapete e engatinhou

224
William R. Silva

em direção a porta. Depois de levantar os braços trêmulos, apalpou a maçaneta. Girou o metal,
mas a porta não se abriu. Estava trancada. Mas quem a trancou?
– Gostei dessas joias! Parece que irei conseguir uma boa grana com elas – uma voz mas-
culina ressoou no cômodo. Não era a de Ernesto, ela pode notar claramente. Elyane então virou
o rosto e enxergou outro criminoso saindo de seu quarto. Os fios de sua nuca se arrepiaram. O
segundo homem, sorridente, ergueu os três colares de brilhantes que segurava – Muito obrigado
pelo presente! – o bandido declarou, sarcástico.
Ernesto deu quatro passos e parou ao lado do comparsa.
– Esse é meu amigo, o nome dele é João Sérgio – disparou mais uma de suas risadas
sinistras. – O trouxe aqui para te conhecer.
De frente para eles, bastante nervosa, a médica foi tateando a parede. Ao ficar de pé,
notou que João Sérgio possuía suas chaves e algumas de suas joias. Encurralada, suplicou:
– O que vocês querem? É a mala? – indicou a mala por cima do sofá – Levem-na! – os
dois invasores continuaram sorridentes. Iria clamar por ajuda, o mais alto que pudesse. Confiar
na sorte era sua única alternativa. Quando se preparou para berrar, o punho fechado de João
Sérgio a atingiu no queixo. Ela perdeu as forças, sentiu-se zonza e despencou novamente.
– É hora de terminar o serviço, já perdemos tempo demais – Ernesto avisou em tom de
comando.
João Sérgio guardou os objetos no bolso, em seguida, enfiou a mão dentro de outra parte
do seu blazer. Lentamente, retirou uma corda semelhante a um cadarço de tênis e a balançou
para que a mulher pudesse vê-la.
Comprovando a gravidade da situação, os olhos apáticos da vítima recaíram sobre o ho-
micida. Encontrava-se estonteada demais para ter medo ou pensar em qualquer coisa que a
salvasse. O golpe deixou seus pensamentos lentos e desconexos.
– Sinto muito, senhorita. A brincadeira acabou – disse o homem ao segurar as duas extre-
midades do barbante e, sem o menor receio, entrelaçá-lo no pescoço da mulher abatida.
A ação foi tão rápida, que a psiquiatra nem mesmo conseguiu tempo para implorar por sua
vida. O laço se apertou num grito de desespero, o ar que escapava-lhe dos pulmões começou a
ficar escasso. Ela tentou um novo berro, mas a tentativa foi em vão. “Não posso morrer... Não...
não.” Os murmúrios desesperados ficaram presos em sua garganta. Quanto mais o monstro psi-
cótico puxava o laço, mais tentava se salvar do ato de crueldade. Contorceu-se, chutou móveis
e arrancou carne dos braços do homicida com suas unhas para obrigá-lo a parar. João Sérgio,
enquanto a enforcava, dava risadas abafadas como se estivesse sentindo um prazer sádico no ato.
Relâmpagos continuavam a ressoar. As mãos de Elyane perderam a firmeza e escorregaram para
cima de suas pernas bambeadas. A pele da vítima transformou-se numa massa pálida e arroxe-
ada. Suas energias estavam prestes a se esgotar, seu coração já dava os primeiros sinais de can-
saço. O corpo da mulher estrebuchou e, em poucos segundos, terminou numa matéria sem vida.
Ernesto, enquanto analisava o matador fazer o seu trabalho, viu seu semblante se conver-
ter numa postura mais branda. O ciclo de existência humana da vítima asfixiada, neste momento,
iniciava seus passos rumo ao plano superior. Desse modo, passou a murmurar algo entre os
lábios semicerrados. Era a forma de fazer sua prece. No seu ponto de vista, estava libertando a
si e ao assassino da culpa pela morte que estava ocorrendo.
João Sérgio, munido de uma doentia sensação de domínio, com as duas extremidades da

225
A Coragem

corda apertadas com firmeza, sentiu o corpo mole do cadáver deitar-se sobre suas pernas. O ma-
tador retirou a corda do pescoço com a marca roxa e reparou o ser sem vida se espatifar no chão.
– Isso é pelo bem da causa – Ernesto aumentou o tom de voz. – Que o criador receba a sua
alma no paraíso eterno – concluiu a oração.
O homicida esquadrinhou o cadáver estendido por alguns segundos e se virou para o
companheiro. A chuva tinha enfraquecido, eles nem notaram.
– E agora, como vamos sair?
Uma expressão irônica contornou metade da boca de Ernesto.
– Da mesma forma que todas as pessoas saem de suas casas – deu uma risadinha mali-
ciosa. – Esqueceu que nosso amigo Olegário roubou dela cópias das chaves dessa casa e nos
entregou? Iremos sair do mesmo modo que entramos.
– Claro que sei. Tanto é que as chaves estão comigo – João Sérgio comentou. – E se alguém
tiver nos visto entrar? Provavelmente deve ter algum bisbilhoteiro nos esperando lá fora. Não acha?
Ernesto examinou o que sobrou de Elyane para se convencer de que ela estava mesmo morta.
– Não se preocupe! – aconselhou – Sairemos de uma forma que curiosos não irão nunca
desconfiar.
– Como? – seu parceiro se mostrou cético.
Ernesto pegou a chave do Cross Fox e a ergueu diante de seus olhos.
– Fugiremos com o carro dela – pegou a mala que antes estava por cima do sofá.

54

QUEIMA DE ARQUIVOS

O vento estava frio e as gotas dos resquícios de chuva respingaram na lataria quando o
Cross Fox, espantando galhos úmidos do caminho, surgiu na área rural. O lugar tinha formas
sinuosas, o carro foi seguindo lentamente até descer um barranco. Entrou num espaço mais
largo e seu campo de visão se expandiu. Lá estava quem procurava. Observou o Gol prateado
e Olegário logo à frente de seus faróis, aguardando-o se aproximar. O solo se encontrava muito
irregular, assim precisou imprimir menos velocidade. Pedras e outros empecilhos chacoalharam
o automóvel, fazendo suas mãos tremerem na direção.
Foi levando o carro até uma grande parede de terra vermelha e estacionou logo ali. A cada
segundo, aumentavam as chances de ser alcançado pela polícia. Àquela altura, as autoridades
poderiam já estar cientes do latrocínio. Ou talvez não. Seja como for, nunca gostou de se ariscar.
Sumir com o Cross Fox e as provas o mais depressa possível seria sua mais importante priorida-
de. Depois de sair da condução roubada, os pés de Ernesto se afundaram no barro. O segurança
fez uma expressão descontente ao avistá-lo dirigindo o carro de Elyane Schustner. Uma atitude
bastante previsível para Ernesto. Limitou-se a simular não notar o desagrado do outro.

226
William R. Silva

Mesmo assim, os olhos raivosos de Olegário se cruzaram com os dele.


– Por que vocês assassinaram a doutora Elyane? Não foi esse o combinado.
Ernesto franziu a testa para ele. Em seguida, dirigiu-se ao Gol, arrancou a chave da igni-
ção e içou a tampa do porta-malas.
– Quem disse que ela está morta? Pare de besteiras! – retirou um galão de gasolina – Te-
mos pouco tempo, é preciso agir rápido. Ajude-me!
Olegário não se mexeu.
– Onde está o outro? Desembucha logo, por que eliminaram a Elyane?
Quando soltou o recipiente no chão, Ernesto ergueu seus olhos diabólicos para o segurança.
– Ele está a nossa espera lá em baixo... – girou a tampa do recipiente, não conseguiu
abri-lo – ajude aqui!
A paciência de Olegário chegou ao fim.
– Você me prometeu que não iria matar a médica, apenas retirar os documentos dela.
Quero saber a verdade, Ernesto.
– Me ajude logo – Ernesto o encarou, insistindo em forçar a abertura –, não temos mais tempo.
Ele se agachou e arrastou o galão para mais perto do automóvel de Elyane. O momento
de distração fez com que a cena de Olegário deslizando suavemente a mão para dentro do coldre
e puxando seu revólver, passasse desapercebida. Enfim, depois de tanto persistir, conseguiu
desgarrar a tampa do galão. Mas quando Ernesto se levantou para o ajudante, o grande susto fez
seus braços irem para cima. A arma do segurança estava com o cano apontado para seu nariz.
– Que palhaçada é essa? – Ernesto se irritou.
O homem armado se aproximou. Quando o cano do revólver encostou na testa de Ernesto,
a sensação gelada do metal eriçou os pelos de sua nuca.
– O que você pretende, Olegário? Perdeu o juízo?
Para ambos, o cheiro de lama que rondava ali transformou-se no odor da morte. Um dos
dois teria de ser abatido, com o rumo em que a conversa tomou, seria impossível estabelecer
uma trégua. Em verdade, sabia a real causa da morte da companheira de trabalho. Muitas das
informações perigosas que a mulher detinha Olegário também partilhava. O problema era Cláu-
dio Tedesco. Elyane já tinha o visto algumas vezes. O misterioso financiador, nas raras vezes
que visitou o presídio, ia por uma passagem secreta. Somente ele e a psiquiatra o viram no
manicômio judiciário.
Era uma “queima de arquivo”. Tudo estava claro. A hora em que Olegário começou a falar,
sua voz carregou um ar de ira, mas no seu olhar, Ernesto também vislumbrou um brilho de pavor.
– Só havia duas pessoas nesse mundo que sabiam da identidade do financiador, além de
você – os dedos do agente penitenciário deslizaram no gatilho. – A primeira pessoa era a doutora
Elyane Schustner e a outra... – fez uma pausa para respirar – sou eu. Ele sempre te disse que
jamais aceitaria ser descoberto.
– Como pode afirmar que nós a matamos? – o alvo recuou – De onde tirou uma loucura dessas?
O segurança rugiu:
– Não seja cínico! Pensa que sou otário? Se ela não estivesse morta, o Cross Fox não
estaria com você. Cometeu um erro grave, senhor Fhurer!
No primeiro momento, a ameaça causou-lhe certa sensação de medo, mas logo Ernesto
sentiu um sorriso despontar por entre seus lábios. Em breve, o jogo chegaria ao fim. Concluiu

227
A Coragem

isto quando seus olhos viram, bem atrás do homem armado, uma sombra irromper da mata es-
cura e caminhar a passas lentos. Cada vez que avançava, João Sérgio mantinha cautela para não
ser percebido. Em suas mãos, ele segurava uma barra de ferro.
Ernesto fingiu pavor, enquanto se centrava no homem que se aproximava de Olegário por trás.
– Pense bem no que vai fazer, Olegário. Ainda poderemos resolver essa situação de ma-
neira amigável.
João Sérgio parou e ergueu os braços, deixando a barra suspensa no ar.
– Adeus, velho amigo – o agente de segurança não chegou a disparar. Sua atenção se des-
viou para uma sombra que se movia sob seus pés. Era tarde demais. Esqueceu-se do revólver e
virou a face para o inimigo. Só teve a oportunidade de ver o rosto de seu assassino antes da barra
descer com intensidade sobre seu crânio. O maxilar dele se deslocou com a pancada. Olegário
oscilou de lado para outro, girou e caiu com a cara na lama.
Estudaram o cadáver por alguns segundos. Nenhum sinal de vida.
– Por que demorou tanto? – Ernesto indagou.
João Sérgio arremessou a barra para longe e abriu os braços.
– Fiz o que você pediu, vê se não enche! Vamos acabar com isso logo – chutou o cadáver.
– Já estou exausto.
Ele encarou João Sérgio com desagrado por causa da forma como falou.
– Coloque o defunto dentro do Cross Fox... – Ernesto agarrou o recipiente cheio de gaso-
lina – vamos atear fogo nele, no carro e nos papéis.

55

PATERNAL

Realinópolis-MG

Somente o tempo e a prática foram capazes de deixar Marisa mais à vontade no seu apren-
dizado materno. Nas semanas iniciais, teve medo de não ser boa o suficiente, por isso necessitou
constantemente de sua vó materna – a quem ela, durante todo a vida, considerou como mãe
– para auxiliá-la nos cuidados com o bebê. Entretanto, tudo agora não passava de lembranças
distantes. Se antes fora atemorizada por suas inseguranças quando tinha de cuidar da pequena
Victória, nos dias atuais via a atividade como a maior, e talvez sua única, alegria de viver.
Era hora de banhar e tudo estava preparado. Ela mergulhou os dedos na água morna da ba-
nheira para sentir se a temperatura estava agradável e pousou os olhos sobre a linda criança nua
sobre a cama, cujas pernas esticadas se moviam desmedidamente. Será que ela já está querendo
andar? Sair e fazer peraltices? Marisa sorriu quando pensou na possibilidade. Dia e noite sonha
em ver a criança correndo pela casa, embora até então, contentava-se com o maravilhoso sorriso

228
William R. Silva

que recebia quando a tocava. Com zelo, segurou por debaixo das axilas da garotinha.
– Três meses! – suspirou, emocionada – Como o tempo passa rápido, parece que foi on-
tem – ergueu a menina e ficou admirando-a. – Meu amorzinho! Princesinha da mamãe.
Victória sorriu. Marisa se abaixou e beijou a filha na testa. Ficou por alguns segundos
com os lábios colados na pele macia, adora sentir o cheio que exala do bebê. Aquele odor infan-
til lhe proporcionava um sensação de prazer que nunca sentira antes. Se pudesse, inalava aquele
aroma durante toda a tarde, era viciante. Ela levantou a criança e a conduziu até o banho. O ne-
ném começou a mover os braços curtos de maneira agitada e seus olhinhos azuis se espicharam
quando sentiu seu corpo entrar em contato com a água morna. Sua mãe cantava uma melodia
qualquer enquanto afundava a mão esquerda e apanhava água com as palmas e a despejava sobre
a pele da criança. Seu braço direito, sempre por baixo da nuca, para que a menina não se afogue.
Mesmo tendo a rede de proteção fixada nas extremidades da banheira, temia que Victória pu-
desse escorregar e engolir o líquido.
– Calma, meu anjo! – Marisa riu baixo, percebendo a expressão de pavor que se desenhava no
rosto da filha – A mamãe não vai deixar você se afogar! Não... não. De jeito nenhum – ela agarrou
o frasco de sabão líquido e o derramou sobre o umbigo da garota. O líquido pastoso caiu sobre ela,
então sua mãe colocou o frasco de volta e iniciou uma série de carícias espalhando o sabonete.
Escutaram-se pisadas no corredor que separava seu quarto do de seus avós. Ainda assim,
Marisa continuou sua tarefa, nada poderia interromper aquele momento sagrado. Aquela divina
conexão entre a genitora e sua cria. Ela enxaguou a pele ensaboada até ver todos os vestígios
serem removidos.
Alguém entrou e ela não se virou para ver quem era.
– Como vão as coisas, mamãe? – um timbre feminino e suave soou em seus ouvidos.
Marisa carregou a pequena até a tolha sobre a cama e a dobrou sobre ela. Com as mãos
presas no tecido, olhou para trás e sorriu quando viu a amiga. Conteve a expressão de surpresa
quando percebeu que a mulher havia adquirido alguns quilos a mais. Quando a conheceu, a
moça tinha um físico de dançarinas de programas televisivos, no entanto, a cada semana, parecia
que ela engordava com mais rapidez. Sua cintura antes bem modelada, despencava em pneus.
Os braços engrossaram e suas coxas pareciam apertadas na calça. Não que a tenha considerado
feia. O excesso de peso não atrapalhou a simetria de seu rosto, apenas nunca tinha pensado que
um dia a veria assim.
– Oi, Sílvia! – Marisa se voltou para o bebê e começou o processo de secagem – Você
esteve sumida, o que andou fazendo?
A visitante deu alguns passos e se sentou sobre a cama.
– Coisa mais linda! – Sílvia brincou. Suas mãos deslizaram sobre o umbigo da criança
fazendo com que ela disparasse uma gargalhada. Em seguida, voltou-se para a mãe – Estive num
congresso da igreja, o grupo teve várias sessões de orações. O culto dos pastores esteve ótimo.
Que pena que você não pode ir. Ah! Eu e o Geraldo encontramos uma ótima casa para alugar.
Mudamos ontem.
– Que bom! – Marisa endireitou a garota dentro do macacão rosa – E o Renatinho? Ele
tem se dado bem com o padrasto?
Sílvia colocou Victória sobre o colo e encostou sua testa na da criança.
– Fofula. Coisa gostosa! – o bebê sorriu. Ela se levantou e deixou a menina nos braços da

229
A Coragem

mãe – Sim, o Renato é um garoto muito bom. Não me dá trabalho nenhum. Deus abençoe que
ele seja assim durante toda a vida... e não siga o mau exemplo do pai – Sílvia sentiu um peso
despencar-lhe sobre as costas.
Carinhosamente, a mãe empurrou a cabeça de Victoria sobre o ombro e ela se acomodou.
As duas seguiram para a cozinha, a vó de Marisa tinha acabado de preparar um suco natural de
laranja no liquidificar. Ela encheu dois copos e entregou um para a neta e outra para a visitante.
– Obrigada, Dona Alice! – Sílvia agradeceu.
– De nada, minha filha – a senhora retribuiu e pegou a menina dos braços de Marisa –
Pode ir dar uma volta se quiser, eu fico com ela.
– Tudo bem! – Marisa concordou – Depois eu volto, amor! – beijou a bochechada menina
e saiu andando. Sílvia foi atrás dela.
Um caminhão derramava piche e os funcionários da prefeitura vinham logo atrás es-
palhando o asfalto pela rua. Marisa e Sílvia se sentaram no banco da varanda e começaram a
observar os homens na labuta.
– Finalmente você terá um rua de verdade na fachada de sua casa – Sílvia concluiu. –
Chega de cheirar poeira o ano inteiro.
As duas riram.
– Isso é verdade!
Apenas o barulho do veículo municipal e a conversa baixa dos trabalhadores eram nota-
dos enquanto eles espalhavam o material negro sobre o caminho. Imperou-se um silêncio entre
ambas nos segundos em que Marisa demorou para consertar o vestido sobre o assento.
– Amiga! – Sílvia carregou um certo receio no tom de voz – Eu sei que você não gosta
de falar disso, mas...
Os olhos atentos de Marisa se lançaram sobre ela, no fundo, já tinha noção de qual seria
o assunto que iria iniciar.
– Você não acha que já é tempo de contar a verdade a seus avós? – assim mesmo, sua
amiga prosseguiu – Já passou da hora de revelar quem é o pai da Victória. Ir atrás do Dionísio e
contar a verdade a ele, não acha? Até quando vai querer protelar?
Marisa tentou se acalmar, sabia que aquilo era uma verdade da qual nunca iria se libertar.
Contudo, seus sentimentos explodiram involuntariamente.
– Se ele quisesse saber da filha, já teria me procurado – argumentou. – Ele pouco se
importa comigo, nem sequer veio se despedir de mim quando voltou para a capital. Para ele, eu
nunca fui nada... – ela se irou – Nada!
– Mas como é que ele vai querer saber de uma filha que nem sabe que existe? – sua amiga
revidou, inconformada.
A moça se ergueu bruscamente e cruzou os braços, Sílvia a acompanhou com os olhos.
– Ele tirou minha virgindade! – Maria berrou. Sua raiva não deixou que as palavras fos-
sem contidas em sua garganta. Ela se sentiu envergonhada pensando que os trabalhadores tives-
sem ouvido sua declaração – Um homem que se deita com uma mulher deve saber que ela pode
engravidar. Ou por acaso ele não sabe?
Sílvia riu da inocência dela.
– Você não conhece os homens, querida? Eles transam com uma garota de manhã e à noite já se
esqueceram. São como animais, depois que se saciam, tudo acabou. Só voltam no dia seguinte.

230
William R. Silva

– Ou então... – Marisa deu dois passos – deitam-se com outras e se esquecem da anterior.
– Quer saber a verdade? – sua amiga continuou – Tenho quase certeza de que você não quer
que o Dionísio saiba da Victória por vingança. Eu sinto que essa foi a forma que você encontrou
para se vingar dele. Fazer ele pagar por ter brincando com aquilo que você tinha de mais valioso.
Mas, sinceramente, acho sua atitude extremamente infantil. A menina é neta do seu patrão, ele
poderia muito bem te dar uma ajuda financeira e você está esperdiçando essa oportunidade.
– Não preciso do dinheiro de ninguém! – a mulher berrou.
– Precisa, sim! – Sílvia devolveu.
Marisa, enfurecida, correu para o banco e voltou a se sentar, impaciente. Ela abaixou a
cabeça e pôs as mãos sobre a face. Deus, por que eu não consigo esquecê-lo? Ela sentiu a amiga
acariciar-lhe o couro cabeludo.
– Eu cometi muitos erros no passado. Inclusive com o pobre do Dionísio. E hoje me arre-
pendo das minhas falhas. Não me sinto no direito de julgá-lo – Sílvia falou. – Não seja tão tola
quanto eu fui! O arrependimento é uma dor que jamais se cura.
Marisa ergueu a cabeça, afastou suas mechas para trás e levantou os olhos. Viu que Sílvia
a admirava com certa emoção. Sempre que enxergava Sílvia junto a Dionísio, no tempo em que
os dois namoravam, considerava a jovem como sendo uma mulher fútil e desmiolada. Um ser que
tinha como único objetivo de vida parecer linda e chamar atenção. Hoje, a vê de outra forma, nem
parecia que aquela adolescente inconsequente de anos atrás era a mesma que estava diante de si.

Com o braço direito, Alice retirou o copo do liquidificador e começou a lavá-lo debaixo
da água corrente. Afagou as costas do bebê que dormia em seu ombro, encaixou a peça de volta
no eletrodoméstico e fechou a torneira. Revirou os olhos e notou seu marido entrar. Seu Joaquim
sempre fora um homem de economizar palavras, mas a vida toda fora um senhor dócil e de bom
coração. No entanto, desde que a neta anunciou sua gravidez e não tiveram nenhuma informação
sobre quem era o pai, ele caiu em desgosto.
O homem pousou os olhos na menina entrelaçada na bisavó.
– E o pai dela? Conseguiu descobrir? – cobrou novamente, vinha questionando à meses
a mesma pergunta e nunca se dava por satisfeito. Ele pegou um caneco e o encheu do café que
havia na cafeteira – Toda criança tem um pai – a sobrancelha dele franziu. – Ou por acaso a
menina foi gerada pelo divino espírito santo?
A Senhora com a criança se voltou para ele, irritada.
– Não se deve brincar com as coisas de nosso sagrado Jesus Cristo, sabe bem disso.
– E quem disse que o estou desrespeitando? – Joaquim rosnou –Marisa deve ter cometido
o mesmo erro que a mãe. Ambas seguiram o mesmo destino. Duas imbecis!
– Não grite! Vai acordar a menina – Alice bradou. – E outra, Marisa não é como a mãe
dela, nunca foi.
Ele sorveu um gole do conteúdo quente e a encarou, enfurecido.
– Será? E o pai dela, por que você nunca disse a Marisa que o pai dela estava vivo? Ou pior,
que o pai dela é um doente mental? Um sujeito perigoso que ficou durante anos preso numa clínica
para criminosos mentais. Vai ver que o pai da Victória seja outro desses também, não duvido nada!
A mulher correu para a porta para se certificar de que a neta não ouvira a revelação.
– Por acaso está louco, Joaquim? Depois de tantos anos, vai voltar com esse assunto de

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A Coragem

novo? Não tínhamos concordado em colocar uma pedra nesse assunto?


– Louco, eu? – o homem se virou e bateu com força o caneco sobre a mesa, gotas escuras
respingaram no móvel. Victória acordou com o barulho do baque – Agradece a Deus por eu não
ter para onde ir, caso contrário, já teria indo embora dessa casa para nunca mais voltar! – ele saiu
a andar pela casa – Nunca mais voltar! – gritou mais alto.

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O PLANO PARALELO

(Rancho Albuquerque - Aglomerado Rural)

Roberto se desviou da mesa de bilhar e escancarou a última janela antes fechada. Depois
de colocar a cabeça para fora, averiguou, desconfiado, todo o território. Estudou a mata escura,
a porteira construída entre dois grossos tronos e tudo o que conseguiu avistar em seu campo de
visão. Está num bem imobiliário da família e teme que algum conhecido venha bisbilhotá-lo. Sa-
bia que seus parentes não pisavam naquelas terras há anos. Apenas ele usa o lugar para promover
suas famosas esbórnias com os ex-colegas da faculdade e outros eventos de sua predileção. Mas
tinha de manter a reunião em total sigilo. Nada e nem ninguém poderá servir-lhe de empecilho.
Ele então saiu da janela, caminhou até a adega, retirou uma garrafa de conhaque impor-
tando e marchou até a mesa de madeira laqueada. Deslizou os dedos sobre a superfície polida
e posicionou as quatro taças. Notou que os convidados pararam para ver o que ele pretendia.
Com o braço erguido, Roberto levantou a garrafa na direção da lâmpada e fez o vidro cintilar na
claridade. Então, vangloriou-se:
– Cognac Hennessy! – ele direcionou o bico rumo ao nariz e cheirou o aroma da bebida
destilada – Isso aqui é para poucos! Essa belezura veio direto da França.
Bola coçou a pelugem de sua barba e olhou para o sujeito de esguelha.
– Para mim, é uma bebida como qualquer outra.
Picolé tratou a atitude do anfitrião com um total desdém.
– O que tem demais se é francesa ou brasileira? Álcool é álcool – dito isso, esparramou-se,
com os braços abertos, no sofá no canto da sala.
O homem com a garrafa pousou os olhos no questionador e meneou com a cabeça.
– Não é, não! – um meio sorriso contornou-lhe a boca – Tenho certeza de que você nunca
experimentou um conhaque desses na vida. O preço que paguei nele é bem mais que a quantia
que vocês retiram de um caixa eletrônico depois de estraçalhado pelas dinamites – riu.
Deco se recostou na parede, cruzou os braços e, por detrás da janela de grade, observou
o grupo de garotas pular na piscina e se divertir. Cada uma era mais bela que a outra, não apa-
rentavam ter mais que vinte e cinco anos. Copos com drinks, cascos de cervejas e frascos de

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energéticos e uísque se espalhavam em volta delas.


João Sérgio entrou na sala, caminhou até a sacada e admirou as mulheres por alguns ins-
tantes. Viram-nas rir, tagarelar e brincar como crianças dentro da piscina. Uma delas virava uma
garrafa de Champanhe na boca, empurrando toda a bebida para a garganta.
– Prostitutas? – ele se voltou para Roberto que estava preenchendo as taças com o con-
teúdo da garrafa.
Roberto parou com a garrafa no ar e riu alto.
– Quando se nasce numa família milionária como a minha, é complicado descobrir quem
é prostituta e quem não é – terminou de encher o último copo. – Nem toda mulher é prostituta,
mas toda prostituta... é mulher. Sacou o trocadilho? Hein? – gargalhou, mas logo voltou a seu
estado normal quando percebeu que todos na sala continuaram sérios – Qual é, rapaziada? E o
senso de humor de vocês onde foi parar?
O rosto de Picolé contraiu.
– Você nos trouxe para esse sítio porque queria nos contratar para um serviço extra – endi-
reitou-se no sofá e lançou seu olhar incrédulo sobre Roberto – ou para ouvir suas piadas idiotas?
– É isso ai! – Deco incluiu – Você e o João Sérgio já sabem do assunto, mas nós... – desu-
niu os braços – nós, não. Vamos, explique de uma vez por todas qual é a parada!
Bola agarrou uma das taças e a ergueu diante dos olhos, não pronunciou uma só palavra.
Todavia, a expressão que esboçou quando mirou o contratante já demonstrava que ele desejava
o mesmo que os companheiros.
Roberto descansou a garrafa sobre a mesa, segurou outra das taças com a ponta dos dedos
e a carregou rumo à boca. Tomou o conhaque num só gole. Aquela era a terceira ou quarta be-
bida diferente que ingeria na noite. Suas atitudes iam se tornando mais extravagantes conforme
os primeiros sinais de embriaguez começavam a extasiá-lo. Ao devolver o copo à mesa, fitou o
meliante sentado no sofá e ordenou:
– Tudo bem! Então vamos ao que interessa. Picolé, levante-se e desloque a almofada
desse sofá!
Picolé considerou aquela ordem estranha. Seus companheiros também. Reparou em Ro-
berto e o percebeu parcialmente alterado, mas fez o que o atual chefe pediu. Todos os presentes
ficaram atentos a seus movimentos. Quando removeu a almofada do lugar, não só os seus olhos,
mas os dos três bandidos se escancaram. Cerca de duzentos a trezentos montes de cédulas de
reais estavam amontoados dentro do caixote escondido no interior do assento.
– Isso não é nem um décimo do montante que tenho desviado na suíça – Roberto confes-
sou – E eu estou disposto a dividir tudo com vocês.
– Minha nossa, será que não estou sonhando? – pasmo, Bola ajoelhou-se sobre o montante
– É muita grana isso aqui – suas mãos ávidas tatearam a caixa recheada.
João Sérgio também caiu de joelhos e escorregou as palmas das mãos sobre as cédulas,
com olhos surpresos, tentava raciocinar de onde teriam saído tantos maços e como conseguiram
conduzi-los até ali. Nunca em toda a sua vida criminosa tinha visto tanto dinheiro. Queria mes-
mo se certificar de que tudo aquilo era real.
– Como conseguiu isso? – João perguntou, incrédulo. O grupo também se voltou para ele.
Roberto arqueou as sobrancelhas e depois riu com um ar de superioridade.
– Por acaso se esqueceram de que sou filho de um banqueiro?

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A Coragem

Um vento frio soprou pela fresta da janela, Picolé sentiu um frescor agradável quando a
brisa tocou-lhe a face. Mas sua intuição quis perturbar-lhe a mente. Compreendia que teria que
pagar um alto preço pela quantia. Nunca fora um homem de se iludir com promessas fáceis, seu
passado pobre e sofrido no morro do Igarapés lhe proporcionou uma mente astuta e precavida.
– Sabe por que meu apelido é Picolé? – indagou, enquanto observava a dupla retirar as
cédulas de dentro do sofá. Depois, voltou-se para o homem a seu lado.
A testa de Roberto franziu, denotando pouco interesse pela resposta.
– É um apelido engraçado!
– Semanas depois que completei meus sete anos de idade – o marginal prosseguiu –, meu
pai me acordava todos os dias às seis horas da manhã para me obrigar a vender picolé nos arre-
dores da favela onde nasci. E quando eu insistia para poder dormir mais algumas horas, sabe o
que fazia? – ele parou o relato, quando notou os olhos de todos os presentes vidrados nele – Ele
sacava a cinta, retirava a manta que me cobria e iniciava uma série de chicotadas nas minhas cos-
tas. Desde dessa época, descobri uma lição que me guiou durante toda a vida – seus olhos negros
e cruéis semicerraram em Roberto. – Que um negrinho ferrado como eu, nunca ganharia nada
de ninguém de graça, tudo teria seu preço. Então, nos diga de uma vez. O que temos que fazer?
– No início, você nos convocou para prestar serviços ao seu tio – Deco adicionou. – Agora
está agindo nas costas dele. Por quê?
Os dois homens também pararam com as cédulas nas mãos, exigindo uma explicação.
– E quem disse que estou agindo pelas costas dele? – Roberto se irou – a ajuda que quero
de vocês, não diz respeito ao Ernesto. Assim que fizeram o que preciso, voltarão a trabalhar no
time do meu tio.
– Não sou leal a times – Picolé interferiu. – Sou leal a quem paga mais. O problema é que
estamos achando tudo isso... – ele fez uma pausa – bondade demais da sua parte, se é que você
me compreende.
– Já estou me cansando dessa lenga lenga, playboy – Bola falou.– Explique de um vez
qual é a tarefa.
Roberto andou até a mesa, encheu a sua taça com mais do conhaque francês e distribuiu
uma a uma as taças nas mãos de seus respectivos donos. Bola e seu ajudante pararam o que
estavam fazendo para recebê-las.
– O que eu quero que vocês façam? – ele sorriu com o canto da boca e seus olhos assumi-
ram um teor macabro – Quero que sequestrem uma pessoa pra mim. Mas não é só isso, haverá
outra incumbência ainda mais trabalhosa na operação. João Sérgio – fitou o velho conhecido –,
está mesmo disposto a fazer o combinado? Ter certeza?
João Sérgio massageou a testa, transmitindo aflição no olhar. Num longo suspiro, respondeu:
– Sim. Não se preocupe comigo.
O grupo se voltou para Roberto, aguardando mais esclarecimentos. As taças estavam
dependuradas nas mãos dos bandidos, mas continuavam cheias. Estavam tão entretidos na con-
versa que até então não tinham bebido nada.
Roberto parou para reparar nas formosas curvas de uma das garota que se divertia na
piscina. Depois, virou-se para o grupo.
– Não quero entrar em detalhes agora. Isso deve ser feito com cautela. Amanhã, quando
elas não estiverem mais aqui, retornaremos ao assunto. A única coisa que lhes ordeno que façam

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William R. Silva

hoje, é aprender bem como chegar nesse sítio e que também passeiem por essa casa de campo.
Estudem seus móveis e suas paredes de madeira. Pois será esse o lugar que irão usar para exe-
cutar o plano – agarrou a garrafa com uma mão e sua taça com a outra. Deu um sorriso largo
e disse – Recolham o dinheiro, dividam-no entre vocês...– o homem embriagado atravessou e
seguiu em direção às jovens – Vamos nos divertir, rapaziada! Tem uma garota para cada um de
vocês – disparou-se uma gargalhada.
Enquanto os outros dois, após descansarem suas taças no chão, arregaçavam o estofado
para retirar as cédulas para enfiá-las dentro de sacolas, Picolé reparou que Deco, com uma ex-
pressão fechada e insatisfeita, havia parado diante da janela. Deixou João e Bola incumbidos da
tarefa e foi até o comparsa.
– Deco – disse, imobilizando-se ao lado dele –, você não confia nesse cara, não é?
Lá em baixo, viram Roberto deixar a garrafa e a taça de lado, despir-se e saltar para den-
tro da piscina. Quando ele agarrou uma das garotas por trás, tanto a mulher enlaçada quanto as
demais começara a rir exaltadas.
– Não... eu não confio nele – Deco prestou atenção no companheiro por alguns instantes,
depois se voltou para o grupo animado. Roberto agora beijava a moça na medida em que suas
mãos corriam pelo corpo dela – Picolé, eu sinto muito, mas... dependendo de qual for o serviço
– ele fitou Picolé nos olhos –, não irei ajudá-los nessa.
Os braços de Picolé se abriram no mesmo momento em que as sobrancelhas dele arquearam.
– Vai recuar agora, mano? Olha só a bolada! – ele indicou os dois homens ajoelhados
retirando o dinheiro – Eu também não confio nesse riquinho de merda, mas com a grana que ele
está nos pagando, poderemos resolver nossa vida. Montar um negócio, sei lá. Será a nossa saída
triunfal dessa vida de crimes. Por que isso agora?
Dentro dos olhos de Deco, conseguia-se enxergar temor e desconfiança. Denotando afli-
ção, mordeu os lábios e, mais uma vez, fitou Bola e João Sérgio de relance para ter certeza de
que eles não estava ouvindo a conversa.
– É que... – Deco virou a taça na boca, engolindo parte da bebida – estou com um pres-
sentimento ruim.
Na beirada da piscina, Roberto passou a abraçar duas garotas ao mesmo tempo. Enquanto
ele falava algo no ouvido delas e as acariciava, ambas as jovens riam-se das obscenidades. Uma
delas olhou para cima. Foi então que Roberto berrou:
– Ei caramba! Acham que vou dar conta delas sozinho? – e assim, na área exterior de lazer,
iniciou-se uma nova torrente de gargalhadas – Irão descer logo ou vão ficar aí perdendo tempo?
Picolé deu uma última olhada no rapaz ao seu lado.
– O que você tem é medo. Você está fraquejando, Deco. Está ficando frouxo... – insultou
-o. Deu as costas e falou – Nem parece o cara que eu conheci anos atrás. Se quer dar para trás,
que vá! Quanto menos gente para dividir a grana, melhor – dirigiu-se aos dois ajudantes no sofá.
Sem revidar, Deco continuou a provar seu conhaque. Pensativo, ficou no mesmo lugar,
assistindo Roberto e suas convidadas curtirem a festa particular.

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A Coragem

57

A PROPOSTA

Como qualquer grande cidade metropolitana, Belo Horizonte reserva perigos para aqueles
que se aventuram a desafiar suas vias durante a madrugada. Os riscos de assalto, para Dionísio,
estavam todos sendo completamente ignorados. Poderia ter seu dinheiro, objetos de valor ou até
mesmo o próprio carro furtado, mas nada disso o importava. Pelo menos não naquele instante. Ele
vai conduzindo seu Honda Civic pelas avenidas do centro da cidade. Mais uma vez, uma sucessão
de aflições norteavam seus pensamentos. Repousou a cabeça no travesseiro por diversas vezes, não
conseguiu dormir. Levantou-se, entrou em seu veículo e saiu pelas ruas sem destino.
Ele acreditou que sua desforra contra Roberto e seus cúmplices chegaria ao fim, no entan-
to, sua raiva continuava latente. Está apaixonado por Maria e, como outrora em sua adolescên-
cia, desejava arrancar esse sentimento do seu coração. A moça não o quer mais, está magoada
com o que ele fez. E com razão, ele nunca se queixou disso. Não quer mais sofrer por mulheres
como sofreu no passado, prometeu a si mesmo que não iria mais rastejar por ninguém. Mesmo
que seus sentimentos por ela sejam fortes, está trabalhando seus impulsos para esquecê-la. Sabe
como ninguém a importância do desapego e se empenha em praticá-lo, seja por força psicológi-
ca, religiosa ou autoconhecimento.
Suas mãos giravam o volante para esquerda, outrora para à direita, sem direção. O pé
esquerdo deslizava no acelerador, mas não tinha pressa. Ele não avistava semáforos, faixas,
calçadas, comércios e os demais cenários urbanos e, sim, um filme que se passava lentamente
diante de seus olhos. O Dionísio obeso sozinho chorando no quarto, a aluna Ana Júlia recebendo
a carta, seu pai, Realinópolis, os olhos esperançosos de Catarina sonhando com um futuro pro-
missor, jovem, cheia de vida, desejando apenas ser feliz, nada mais que isso.
A longa avenida estava quase vazia, poucos nas calçadas, a maioria excluídos da socie-
dade, drogados e bêbados, pessoas em condições normais eram minoria. O motorista não se
importava, queria apenas esfriar a cabeça. Os flashbacks voltaram a lampejar em sua mente,
pensou em Ricardo e as amizades valiosas que conquistou. Sílvia, a traidora. Ele também se
tornara um traidor. Que moral ele tinha para condená-la? Visualizou Marisa, sentiu um pesar
ao se lembrar dela. Tão simples, tão humilde, a usou como um objeto, para seu mero prazer e
a descartou, nem se deu ao trabalho de se despedir da moça. Ana Júlia. Sentiu-se transtornado
quando pensou nela. Um misto de ódio com atração. Mas também a usou, agora não se via supe-
rior a ela. O Quartel. Os momentos felizes que presenciou lá, todas as coisas boas que aprendeu.
Thomas Bruso, Sílvio, Thales e as pessoas fantásticas com quem teve o prazer de conviver.
Sentiu-se sujo, sem honra, é assim que se enxerga nesse momento: um desonrado, indigno de
receber a glória da humanidade. Será que ainda era digno do amor de Deus? Seu rosto se en-
tristeceu quando pensou no criador. Padre Jerônimo sempre falava da paixão que o senhor tem

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William R. Silva

por nós, independente de nossos pecados. O ancião sempre lhe ensinava sobre honra. Mas que
honra ele tinha naquele momento? Na visão dele, falhou como Max Wolf, falhou como filho de
Átila, errou consigo mesmo.
Conforme seguia seu rumo sem paradeiro, contemplava a enorme passarela por cima de
sua cabeça. Ele examinou toda a sua estrutura e percebeu que um bar foi construído poucos
metros abaixou dela. O condutor guiou o veículo até o recinto, estacionou, abriu a porta e tocou
os pés na calçada. Sentiu algo horripilante quando começou a caminhar, instintivamente olhou
para trás, nada viu. Por uma rápida fração de segundos achou que estivesse sendo observado.
Continuou a seguir para o bar. O estabelecimento era simples e pequeno, nele estavam dois ho-
mens, um adolescente e uma mulher, todos bebendo cervejas em torno da mesa, tagarelando às
gargalhadas. Um andarilho com roupas em trapos também comia algo no balcão.
O novo cliente se achegou e descansou o braço no balcão. O dono do bar o encarou e
indagou, educadamente:
– O que vai querer, meu amigo?
Dionísio pensou por um segundo e fitou o freezer.
– Uma long neck, por favor!
O comerciante puxou a porta do refrigerador, mas interrompeu a tarefa.
– De qual tipo você quer?
– Qualquer uma! – Dionísio respondeu, num tom monocórdio.
O homem retirou a garrafa e a entregou. Dionísio lhe pagou, recebeu o troco e voltou para
o lado de fora. Um vento gélido soprou-lhe a face e um arrepio tomou conta de seus sentidos,
novamente pressentiu que alguém o vigiava. Continuava sem ver ninguém. Ele segurou parte do
tecido da camisa e o sobrepôs à tampa da garrafa, removendo-a. O barulho da tampinha de metal
tilintando no asfalto foi ouvido por ele quando pisou o primeiro degrau da passarela e iniciou
sua subida. A música que tocava no bar era desagradável, desejava ficar só. Alcançou o cume e
foi caminhando pela base alta de concreto. Cessou os passos e ficou de frente para a paisagem
noturna. Soltou os braços no corrimão e começou a observar o cenário diante de seus olhos: a
interminável avenida que sumia no horizonte, prédios e todo o aglomerado urbano. Vez ou outra
um carro, moto ou ônibus percorria os logradouros, poucas janelas residenciais com as luzes
acesas, mendigos dormindo na porta de uma lanchonete. Ergueu a garrafa e ingeriu um pouco
da bebida, sentiu uma sensação agradável refrescar-lhe a boca, descer pela garganta e atingir o
estômago. Tornou a admirar a paisagem, já passava das duas da madrugada.
O incômodo teimava em continuar, não entendia como, mas alguma coisa o avisava de
que estava sendo monitorado. Bebeu mais da cerveja, levou a mão esquerda na reta da cintura e
cerrou o punho. Suas suspeitas foram reais, havia sim quem o seguia durante todo esse tempo,
uma sensação de alerta o envolveu. Seu corpo se tornou rígido. Imediatamente, lançou um olhar
desafiador em direção ao acesso oposto da passarela. Estava escuro, tinha pouco iluminação,
mas a mínima claridade, era o suficiente para que se enxergasse um misterioso homem de so-
bretudo andando lentamente no piso de metal. Dionísio virou a long neck na boca e tomou todo
o seu conteúdo. A sombra estava cada vez mais próxima. Nenhum sentimento de medo o aco-
meteu, era um lutador treinado. O que sentia não era temor, mas sim desejo de se autodefender.
Com os olhos fixos no indivíduo misterioso, arremessou a garrafa para longe. Escutou o vidro
se quebrar em estilhaços, mas nem se deu ao trabalho de ver onde caíram.

237
A Coragem

Quanto mais perto o estranho ficava, maior era o estado de tensão. Dionísio arqueou as so-
brancelhas e orientou sua posição de combate. Tentando identificar aquele rosto que se destacava na
claridade escassa, o lutador flexionou as pernas, levou a mão direita fechada na altura do ombro e a
esquerda na direção da cintura. Aos poucos, a face masculina com pelugens finas de barbas, queixo
triangular, olhos claros e um sorriso atemorizante iam se projetando com a incidência da luz.
– Quem é você? – Dionísio gritou, quando viu as características físicas do homem – O
que você quer comigo?
Ele notou um meio sorriso se distinguir nos lábios do homem.
– Quem sou eu? – uma ruga surgiu na testa do estranho quando ele falou – Sei que não
me conhece, mas, com certeza, já deve ter ouvido falar muito sobre mim, senhor Dionísio. Ou
seria... – aproximou-se – Max Wolf? Não é esse seu codinome?
No susto, Dionísio recuou e apertou ainda mais os dedos cerrados.
– Como sabe disso? É um membro do Quartel? Não me lembro de você.
– Sei muito mais de você do que possa imaginar – o estranho prosseguiu. – Não só você,
mas seu pai, o Quartel e seus líderes. Resumindo... eu não só fiz parte do Quartel como também
ajudei a fundá-lo.
– Qual é o seu nome? Ou melhor... qual é o seu codinome quarteliano?
O desconhecido deu cinco passos.
– Era conhecido como Fuhrer, mas meu nome de batismo...é Ernesto... Ernesto Rodri-
gues Tavares.
As mãos do lutador se abriram e seus braços lentamente desceram até a altura dos bolsos
da calça, ele desfez toda sua posição de combate e esticou as pernas. Sentindo sua boca se es-
cancarar, começou a examinar o homem no mesmo tempo em que se recordava das histórias que
ouvira sobre ele no período em que frequentou o lugar escondido na antiga ferrovia.
– Então é você! Um dos fundadores do Quartel... – seu timbre mesclava perplexidade e
um pequena dose de receio – O terceiro da hierarquia. O famoso mestre que enlouqueceu.
Os olhos de Ernesto se tornaram duros quando sentiu seu cenho franzir.
– Enlouqueci? É isso que eles dizem sobre mim? – o tom da pergunta indicou mais indig-
nação do que curiosidade – Não, meu caro. O que chamam de loucura, eu digo que é estado de
lucidez, o que dizem ser revolta, eu entendo como ação e reação, o que consideram maldade, eu
afirmo que é uma necessidade. Nem sempre o que dizem ser justo é a verdadeira justiça! – ar-
gumentou, convicto – Somos privilegiados, temos uma responsabilidade com o criador e com a
espécie. O mundo se rege através da evolução, o planeta depende disso. Não sei o que andaram
te falando, mas assim como você, sou um agente de mudança.
– Agente de mudança? – Dionísio questionou.
– Sim... – a fisionomia do mestre se iluminou – exatamente! Veja essa cidade, quantos
vivem aqui? Acredito que supere a cifra de dois milhões. Baseado nessa estimativa, diga-me
quantos desses seres humanos deixarão um legado à humanidade quando morrerem? Quais fa-
rão a diferença no mundo? O número daqueles que irão lutar pelos seus ideais e por aquilo que
acreditam? Quantos deles? Me fale! – ele frisou mirando o ouvinte –Posso te responder sem
medo de errar, esses não irão chegar nem a cinco por cento. Agentes de mudanças são pessoas
que fazem a engrenagem girar, as coisas acontecerem, seja através da ciência, da tecnologia, de
descobertas importantes ou qualquer outra manifestação suprema de inteligência humana. São

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esses que a natureza seleciona para perpetuar a espécie, para reinventar e construir coisas boas –
sorriu, vitorioso. – Todo o resto inútil e nocivo deve ser eliminado ou, na melhor das hipóteses,
servir apenas como escravos para alimentar o sistema.
– E eu sou um? – Dionísio quis saber, incrédulo – Como foi que chegou a essa conclusão?
Ernesto disparou outra gargalhada sinistra.
– É simples. O sangue que corre nas suas veias. Seu desenvolvimento no Quartel foi um
dos melhores. Em menos de doze meses de frequência, conseguiu avanços que a maioria não
foi capaz em anos. Durante o tempo que permaneceu como membro, foi um dos que mais se
destacou. Você carrega a maestria na genética, é um líder nato e tem um potencial enorme a ser
desenvolvido. A virtude que chamamos de coragem e sua existência são quase sinônimos. Há
tempos venho te analisando.
– Ainda não entendi onde você quer chegar, poderia ser mais específico? – o rapaz come-
çava a se cansar daquele conversa insana.
O mestre novamente desatou a rir, arrogantemente.
– Estou te dando o privilégio de ser juntar a mim, ao grupo da raça superior, dos vencedores.
Você é um homem de grandes habilidades, persistência e inteligência, não deve esperdiçar esse dom,
tem de usá-lo para o bem da humanidade. Una-se a mim! Venha fazer parte dos meus projetos!
– Você chama esse objetivo doentio de projeto? – Dionísio revidou com um quê de iro-
nia– Pelo que ouvi falar, você diz que negros, homossexuais, doentes mentais, marginais e todos
as outras pessoas, que na sua visão são estorvos, devem ser aniquilados. Não me faça rir! – ele
rosnou – Não há nada de evolução nesse seu projeto preconceituoso e demoníaco. Quem é você
para decidir quem vive e quem não? Por um acaso acha que é Deus?
O rosto do insano assumiu um ar de descontentamento.
– Deus é o nosso grande pai e a natureza, a matéria prima que ele elaborou para nos transformar
no que somos. Mas as coisas não são bem assim, meu ingênuo garoto – Ernesto discordou. – Enquanto
o altíssimo nos dá a força regente interior, a essência, a natureza traz a parte física, a carne. A mistura
de ambos resulta na maior de todas as criações: o homem! – ele fez uma pausa e continuou – Veja só
as igrejas, muitas dizem servirem ao senhor, mas na realidade, servem a si mesmas. Não estão oran-
do por amor ao pai celeste e, sim, visando que seus anseios sejam acalentados, suas vontades sejam
atendidas e seus sonhos sejam realizados. Se Deus fosse um mendigo, tenho certeza que muitos não
o amariam. Se os fiéis o idolatram, é porque ele é um ser grandioso e poderoso. No final das contas,
tudo se resume ao egoísmo humano, ao jogo de interesses. Repare bem nessas pessoas que se dizem
religiosas e bondosas, garanto que grande parte delas torce o nariz quando vê um miserável passando
fome nas ruas. A ética religiosa para muitos é somente quando lhes convém.
– E você se acha superior a eles? – Dionísio riu – Cara, não me leve a mal, mas você
precisa urgentemente de um profissional de saúde mental.
Os olhos de Ernesto ferveram em ira, mas ele decidiu ignorar o comentário.
– O que quero que entenda é que servir a Deus é estar disposto a se sacrificar, a fazer o que
deve ser feito. Todos querem as bênçãos, mas ninguém quer as dificuldades. Seres humanos são
mesquinhos, preguiçosos e acomodados, querem apenas a bonança, mas choram feito crianças
em épocas de tempestades. E é isso que quero, servi-lo de verdade, fazer a minha parte, construir
um mundo justo e melhor para as futuras gerações – o lunático viu nobreza em seu discurso. –
Sem crimes, sem perversão, corrupção, desigualdade e nenhuma outra praga da humanidade. E

239
A Coragem

para isso, temos que sacrificar seres errantes e aqueles que não servem para nada.
Dionísio caminhou e parou rente ao interlocutor.
– Você é um doente mental... é um risco para a sociedade com essas suas ideias desuma-
nas. Não importa a cor, a opção sexual ou qualquer outra característica que julgue, todos têm
direito a viver, todos são importantes para o mundo, cada um da sua maneira, mas são. E eu vou
te dizer uma coisa... e guarda bem isso – seu semblante se tornou rígido como uma rocha e sua
voz soou grave. – Enquanto eu estiver nessa cidade... não irei permitir que faça essas atrocida-
des. Nem que, para isso, tenha que te arrebentar a cara.
O homem sentiu seus dentes se forçarem uns contra os outros quando os rangeu.
– Pelo jeito, não te falaram o suficiente sobre mim. Creio que tenha coragem o bastante
para aguentar as consequências de seus atos! Você é apenas um calouro diante de mim. Muitas
das habilidades que você aprendeu, já as superei. Está tão certo assim de que pode me desafiar?
Dionísio se virou lentamente para ele.
– Muito mais do que você imagina!
Ernesto lançou-lhe um olhar sombrio, depois tirou um pedaço de papel do bolso.
– Vou desconsiderar sua afronta, pois acabamos de nos conhecer e te darei um tempo para
pensar – ele estendeu o braço mostrando o papel entre os dedos. – Esse é meu número de contato.
Dionísio pegou o papel e o atirou no chão.
– Não tenho nada a tratar com você. O meu recado, já está dado.
Ernesto deu as costas e iniciou seus passos.
– Estou te dando uma chance de se unir aos vencedores, meu rapaz! Aproveite!
– Saiba que, a partir de agora, os líderes do Quartel virão até aqui te procurar e a justiça tam-
bém – Dionísio gritou, enquanto via o homem ganhar distância. – Sei muito bem que tem um crime
a responder, farei questão de colaborar para seu retorno à prisão. De onde nunca deveria ter saído.
Ernesto interrompeu os passos, ainda de costas.
– Eu sei disso e estou preparado, ando sempre preparado... – o mestre virou o rosto e disse,
com os lábios por cima do ombro – Tenho uma ligeira impressão de que nos encontraremos de
novo! E isso, independe de você querer ou não. Vou indo, adeus... filho de Nessahen! – prosse-
guiu com a caminhada. – Nos vemos por aí!
A última frase penetrou nos ouvidos de Dionísio como furadeira perfurando concreto. Sua
boca entreabriu involuntariamente, sentiu-se zonzo e começou a respirar com mais velocidade.
Mal pode acreditar no que acabara de escutar. Via Ernesto ir embora, descer a escada e desapa-
recer, mas nada fazia, encontrava-se imóvel, em estado de choque. Suas pernas pareciam ter se
petrificado. Não conseguiu pensar em nada, muito menos se mover. Um carro estacionou na rua,
Ernesto entrou nele. O automóvel ganhou a avenida e desapareceu.
– Átila é Nessahen, meu pai é o grande criador do Quartel? O mestre primeiro – repetiu,
tentando convencer a si mesmo de que aquilo não fora um delírio. – Mas por que ele nunca me
disse, por quê? Ele teve tantos anos para dizer e nunca disse, como pode, como? Meu pai é Nes-
sahen... é Nessahen – Dionísio murmurou, incansável.
Sentiu lágrimas quererem escorrer de seus olhos, era orgulho demais, admiração. Seu pai era o
grande e venerado mestre. A alma do lugar secreto. Emocionado, ele se abaixou, pegou o papel caído
e o colocou no bolso. Após ter ouvido aquela revelação, estava decidido a encontrar Ernesto de novo.

240
William R. Silva

III

A RETALIAÇÃO

58

O ENIGMA

O sol já começava a se esconder quando o cavalo, quase desequilibrando o homem que


o montava, saltou da estrada e invadiu mata adentro. Os cabelos de Átila voavam com a força
do vento. Fios caíam-lhe sobre as pálpebras. As ferraduras do equino pareceram triturar pedras
e gravetos tamanha a pressão das patas. O Quartel não estava longe. Do seu sítio, cruzou uma
enorme extensão de terra até alcançar as divisas que dão início à antiga ferrovia. Nélson Átila
sabia muito bem que o lugar secreto não tinha o acesso liberado àquela hora. Entretanto, a si-
tuação era de urgência, teria de correr esse risco. Somente membros de alta patente possuíam o
privilégio de entrar pelo acesso principal antes do escurecer. Átila, apesar de anos de afastamen-
to, ainda era um deles.

241
A Coragem

Um barranco surgiu, a montaria deu um pulo ainda mais alto que o anterior e caiu a trote
no terreno arenoso. Poeira se espalhou no ar. Enfim, desceu sobre a linha férrea. Árvores e vege-
tais se moveram em seu campo de visão. Conforme se desvencilhava dos inúmeros empecilhos,
o cavalo produzia um barulho de tilintar de metais ao atritar suas ferraduras nos trilhos. Não
muito longe, a imagem da central foi se materializando a sua frente.
Ele então puxou as rédeas e interrompeu os trotes. Apeou. Em seguida, afixou as rédeas
em um bastão de bronze ramificado fundido ao solo. O cavalo relinchou e enfiou o focinho
numa moita e moveu as mandíbulas. Mastigou grama com um apetite voraz. O homem esqua-
drinhou toda a selva à procura de algum curioso. Ninguém fora encontrado. Na cela, havia um
jornal preso com um barbante. Átila o desamarrou e o trouxe consigo. Novamente, olhou em
volta e penetrou o interior da construção. O odor de mofo e sujeira embrulhou-lhe o estômago
no momento em que passeou pela pocilga. Por segurança, era necessário manter a imundície,
para que assim não atiçasse a curiosidade de bisbilhoteiros. Mas, para ele, aquela bagunça e mal
cheiro eram exagerados demais. Pela última vez, rolou os olhos para os cantos para ter certeza
de que não estava sendo observado.
Desse modo, deteve-se perto da porta de aço camuflada e gritou:
– Nessahen, administração. Bem-vindo ao deserto da real!
Mesmo estando claro, conseguiu ver algumas fagulhas de luzes escaparem de uma parte
escura lotada de entulhos. A porta se escancarou e a pequena escada surgiu perante o visitante.
Há anos não visitava o centro de treinamento que ajudou a fundar. Orgulho, receio, admiração,
regresso e triunfo, vários sentimentos se misturaram. Cruzou a entrada e pisou devagar nos de-
graus. Em meio a sequência de portas, rumou até a que lhe interessava. Apertou a mão aberta no
leitor. Tendo suas digitais imediatamente verificadas pelo sistema, o acesso se liberou. Irrompeu
a passagem e seguiu caminho.
Enquanto se aventurava pelo corredor, foi observando a circulação de jovens nas salas.
Estantes de livros, ringues, mesas, cadeiras, rapazes rindo, lendo, lutando. Cada cômodo era um
cenário oposto do anterior. Tinha pressa, apertou o passo. Os cenários se modificaram com mais
velocidade. Resolveu não perder tempo vendo a arquitetura.
Ao chegar no setor desejado, estudou a entrada. Embora os anos tenham se passado, ain-
da era capaz de se lembrar de qual era a senha. Levantou os dedos para digitar na caixa fixa a
parede, mas quando ia teclar o primeiro número, a porta se abriu sorrateiramente. Pouco depois,
a figura de um homem alto, careca e de olhar duro emergiu ante o visitante. Depois de remover
uma mecha do rosto, Átila sorriu para o velho companheiro.
– Poupou-me do trabalho de digitar o código! – disse – Obrigado, senhor Thomas Bruso.
Seu antigo pupilo o fitou com orgulho e lhe estendeu a mão. O visitante a apertou com firmeza.
– Não acreditei quando o vi pelas câmeras de segurança. Parece mentira! Decidiu re-
tornar ao grupo?
Nélson balançou a cabeça em negativa.
– Estão todos aí?
Thomas aquiesceu.
– Sim, estão – deu as costas. – Venha!
Os dois partiram para dentro do setor. A porta bateu e o trinco se anexou novamente.
Nélson ficou satisfeito por notar que todo o equipamento era de primeira linha. Principalmente

242
William R. Silva

os computadores e televisores. Correu os olhos nos monitores e analisou as imagens produzidas


pelas câmeras instaladas nos contornos da cidade de Realinópolis. Galgaram uma pequena esca-
da e foram parar na ala da administração.
Logo na entrada, avistou Sílvio Koren apoiado a sua inseparável bengala, reclinado num
velho e bem conservado arquivo de aço com quatro gavetas. Assim que pôs os olhos no antigo
membro, Koren comentou, irônico:
– Sentiu saudades? Já vou avisando, se quer beijos e abraços, de mim não vai ter – sorriu.
Nélson também riu para a criatura cômica.
– Como vai você, velho maluco?
As pernas cruzadas de Travis Bickle estavam estiradas sobre a mesa e suas nádegas bem
confortáveis num assento de couro. Uma única TV de plasma de cinquenta polegadas estava fixa
à parede branca. Nela, não passavam imagens do município, mas sim o esboço de um enorme
mapa do estado de Minas Gerais com um ponto vermelho no centro piscando intermitente e um
pequeno quadrado transmitindo ao vivo a movimentação no corredores do Quartel. Abaixo da
grande tela via-se um enorme teclado.
Os sapatos de Nessahen pareceram deslizar no tapete azul e macio quando ele se moveu
em direção aos presentes e os cumprimentou com a velha saudação produzindo um “V” com
dois do seus dedos encostados no peito. Todos lhe retribuíram, ainda surpresos. O visitante deu
uma leve estudada no ambiente. Três quadros adornavam a parede. Um com a gravura de solda-
dos em marcha, outro com o símbolo da equipe Homens de Honra e o terceiro com uma pintura
da fachada da Central Ferroviária. Cada membro do conselho possuía um computador portátil.
O de Sílvio Koren se encontravam a seu lado, em cima de uma mesinha de madeira.
Assim que viu os últimos integrantes da reunião surgirem, Travis tirou os pés de cima do
móvel e se endireitou.
– Pensei que não viesse mais, Nessahen!
Sílvio roçou a barba escassa e o fitou, confuso.
– Você sabia que ele viria?
A dúvida de Thomas era a mesma. Em virtude disso, Thales virou o centro das atenções.
– Sim – Thales confessou. – Essa foi a razão de eu ter pedido para esperarem um tempo
para começarmos a reunião.
Thomas arrastou uma das cadeiras e se arrumou em um dos lugares vagos da mesa. Che-
cou seu computador e disse:
– Se veio até aqui – fitou Átila – é por que o assunto deve ser muito sério.
Nélson Átila retirou um jornal de suas vestes e o entregou nas mãos de Thales, os outros
os acompanharam com os olhos atentos.
– Leia a página quinze! Esse é um jornal que circula em Barbacena.
Os olhos desconfiados de Thales miraram-no por alguns segundos, depois caíram sobre o
impresso. Revirou as folhas até alcançar a página indicada. Leu, boquiaberto:
– Elyane Schustner, renomada psiquiatra é encontrada morta em sua residência?
O grupo se calou, como se precisasse de um tempo para ruminar a informação. Aquilo os
deixou atônitos. Thomas tomou a publicação para si e averiguou a notícia.
– Só há um homem que poderia ter feito isso – Sílvio rodopiou seu objeto de apoio – e
sabemos bem que é.

243
A Coragem

Thomas tirou as vistas do jornal e se fixou no homem com a bengala.


– Mas ele não fez isso sozinho. Tenho quase certeza de que o Ernesto, a essas horas, já
tenha reunido sua trupe de mercenários.
Os três admitiram a hipótese com um gesto de cabeça. Thales dirigiu-se a Nélson.
– Seu filho nos enviou uma mensagem avisando que tinha se encontrado com o Ernesto
na noite passada. E com certeza deve tê-lo avisando também. Pelo menos, já sabemos onde está
nosso velho companheiro desequilibrado.
– Onde ele está ou onde estava? Talvez, o encontro dele com o filho do Átila seja apenas uma isca
para nos fisgar – Thomas concluiu. – Dionísio o viu, mas nada garante que hoje ele ainda esteja por lá.
Sílvio bufou antes de falar.
– Minha vontade era partir para a capital e procurar por esse maldito em todos os cantos
da cidade. Mas como iríamos fazer isso? Belo Horizonte é infinitamente maior que a nossa cida-
dezinha. E Ernesto é um cara safo, sequer deixou nenhuma pista do seu paradeiro. Como disse
o Travis, ainda é cedo para um ataque e isso pode muito bem ser uma armadilha. Com certeza,
ele quer nos trazer para seu campo de batalha, onde ele é mais forte.
Nélson fez sinal de concordância.
– Exatamente! E é por isso, que quero fazer um pedido a vocês.
– Um pedido? – Thomas emendou – então diga!
Doutrinador (Thomas) e os demais esperaram a resposta.
– Antes de dizer – disse Nessahen –, tenho mais duas coisas para lhes contar. Na mesma
semana, um corpo de um homem foi encontrado carbonizado em um matagal em Barbacena. E
a vítima era um dos seguranças do manicômio judiciário. O homem que o matou foi o mesmo
que sufocou a Elyane.
As sobrancelhas de Sílvio se arquearam.
– Como sabe que o assassino foi o mesmo?
Mais um vez, Nélson afundou os dedos para dentro do bolso da calça e tirou um pedaço
de papel dobrado.
– Eu imprimi isto antes de vir para cá – dessa vez, entregou o papel a Sílvio Koren. – Ole-
gário foi queimado dentro de um carro. E esse carro... – viu o homem encostar a bengala num
canto e começar a desdobrar o papel – era o da psiquiatra.
Todos o encararam pasmos. Terminando de desdobrar o papel, Sílvio leu a página e,
segundos depois, declarou:
– Sim... – lançou a página na mesa para que os outros pudessem ver – Átila tem razão.
Ao ver Thomas pegar o fragmento de jornal, Nélson falou:
– Para concluir meu ponto de vista, leia a notícia que está atrás da página!
– O que diz? – Thales ficou curioso.
O homem careca começou a recitar:
– Cláudio Tedesco, empresário de grande prestígio, pretende construir uma de suas filiais
aqui em Realinópolis.
Travis Bickle interveio:
– O que há de errado nisso, Átila? Pelo que sei, você e o Cláudio foram grandes amigos
no passado. Ele nunca foi problema para nós. Nossa pior ameaça era o Carlos, o irmão dele.
– E todos sabemos que Carlos está morto – Doutrinador completou. – E quem morreu não retorna.

244
William R. Silva

A sensação de incerteza que incomodava Átila pairou no ar.


– Eis o problema. Acredito que, nesse caso, o nosso defunto submergiu das profundezas
do inferno e voltou para a sua desforra.
Subitamente, Thales se pôs de pé.
– Isso é impossível. Eu o vi morrer e você também.
Átila andou até mais um dos lugares vazios, puxou a cadeira e se sentou. Colocou o coto-
velo sobre a mesa e acariciou o queixo, com a cabeça baixa.
– Tenho algumas desconfianças, mas não posso provar nada agora. Caso consiga ter a
certeza de tudo o que suspeito, serei capaz de ligar todas as peças desse quebra-cabeças. O mis-
terioso homem que visitava Ernesto na prisão, os Tedesco. O plano para invadir o quartel e os
assassinatos em Barbacena. Tudo isso me fez chegar a uma conclusão. Mas antes de colocar as
cartas na mesa, preciso de provas para saber se estou mesmo certo.
– Você disse que queria nos pedir algo – Koren comentou –, o que é?
Ergueu o rosto para o indagador. Depois de arrumar a gola de suas vestes, Nessahen deu
um suspiro e concluiu:
– Quero que fiquem aqui e aguardem meu retorno! Vou até a capital. Só assim poderei
descobrir a verdade. Quando eu voltar, prometo que lhes conto tudo. Posso contar com a cola-
boração de vocês?
Silvio e Thales trocaram olhares.
– Não iremos questioná-lo por isso, mestre Nessahen – Thomas discursou. – Espero que
saiba o que está fazendo.

59

POR UM TRIZ

Em que situação havia manuseado uma arma de fogo pela última vez, perguntou-se Dioní-
sio. Certamente deveria ter sido numa tarde de treinamento externo com os membros do Quartel
secreto. O cursos de tiros sempre eram ministrados na densa mata que circula as imediações do
lugar escondido. Entretanto, não foi lá que aprendera a atirar. Anos atrás, antes mesmo de descobrir
a velha ferrovia, seu pai lhe ensinara tudo o que conhecia a respeito de armas e a melhor forma de
utilizá-las. Havia sido uma experiência interessante e, ao mesmo tempo, dolorosa. Colocar seus
dedos sobre um gatilho costumava ativar sua memória, trazendo-lhe angustiantes acontecimentos
passados à tona. Repetidas vezes, durante as fases de treinamento, sentia a sensação de culpa o
envolver. A cada disparo, visualizava o Dionísio amedrontado tentando assassinar os colegas de
colégio. Apesar de tudo, sempre se saiu bem nos testes. O porquê, nem mesmo ele entendia.
Um ar sôfrego fugiu de seus lábios entreabertos e atiçou sua circulação assim que se
dirigiu a uma das gavetas do seu guarda roupas. Depois de puxá-la, ele então retirou uma caixa

245
A Coragem

de madeira protegida por um cadeado e a arrastou até o tapete. Seu molho de chaves chacoalhou
em sua mão direita e ele escolheu a menor delas. A caixa foi destrancada. Havia documentos e
cédulas de dólares, seu revólver calibre vinte e dois se camuflava por debaixo delas. Qualquer
risco de alguém vê-lo com aquilo era nulo. Ninguém, além dele, estava em casa. Um problema
a menos para aporrinhá-lo.
Conferiu o coldre na cinta e enfiou o revólver dentro. Guardou a caixa, empurrou a gaveta e se
levantou. Sua camisa desceu bem abaixo da cintura e o objeto metálico ficou oculto pela vestimenta.
Ninguém saberia que estava armado. Era o momento de sair, havia alguém lá fora a sua espera.
Tempos antes, alguém lhe fizera um telefonema. O homem no outro lado da linha não se
identificou, apenas disse que dentro de alguns minutos estaria na rua em que Dionísio mora. O as-
sunto era urgente, a voz misteriosa não dera mais nenhum detalhe e simplesmente encerrou a ligação.
Ele relanceou o relógio na parede de seu quarto e viu que se aproximava de uma da ma-
nhã. Intrigado, começou a raciocinar sobre o que tal pessoa queria àquela hora. Poderia ser uma
cilada de Ernesto. Também estava na mira de Roberto e seu amigo marginal. Assim como Túlio,
sabia sobre o rombo milionário no banco. Seria aquilo uma cilada para acabar com sua vida? A
pergunta se fizera incontáveis vezes em seus pensamentos.
O que está prestes a fazer pode colocar sua vida em risco, mas sua curiosidade lhe im-
pulsionava. Não havia outra alternativa, só existia uma maneira de descobrir do que a referida
convocação se tratava. Seguiu para a portão de saída de sua morada e o destrancou. Sentiu uma
brisa tenebrosa mover os poucos fios de cabelo em sua testa. Cabreiro, caminhou até a calçada
e espiou a calmaria noturna. Foi então que se sobressaltou e deu um salto para trás quando o
celular em seu bolso vibrou novamente. Assim que arrancou o telefone do bolso, conferiu o
número no visor. Depois de levar o aparelho até o ouvido direito, disse com uma voz impactante:
– Já estou aqui fora – sentiu-se bastante tenso, mas fez o possível para fingir segurança. –
Ainda não chegou? – retornou seus passos.
– Estou chegando agora – disse o outro na linha. – Espere-me, por favor!
A chamada foi finalizada assim que dois faróis jogaram seus fachos luminosos na rua
escura. Dionísio rapidamente ergueu as mãos sobre o rosto para proteger os olhos da clarida-
de forte. Era um Renault Symbol. O automóvel foi se aproximando. O homem extremamente
alerta, notando o Renault se aproximar, deslizou os dedos sobre a calça e tateou seu revólver.
Sentia-se cada vez mais tenso.
Ante qualquer movimento suspeito, sacará a arma e a fará disparar. Começou a respirar
mais depressa, sentindo o tórax inflar. Seus olhos se espicharam atentos ao ver a porta do moto-
rista se abrir. No asfalto, viu uma sombra se mover. Já bastante nervoso, tornou a apertar o cabo
de metal preso no coldre e preparou para se defender. O rosto do homem que saiu do carro co-
meçou a se torna distinguível através da luz do poste. Ao ver quem era, Dionísio imediatamente
desistiu de fazer o que pretendia.
– Paulo Munis? – questionou, atônito – O que você quer comigo?
Paulo aquiesceu. Seu semblante carregava uma grande carga de aflição.
– Sim, sou eu. Peço desculpas por ter te ligado a essas horas, mas o assunto é de extrema
urgência. Um dia a mais que eu esperasse para lhe passar essas informações, poderia custar
nossas vidas – Paulo levantou o braço direito e lhe mostrou um envelope. – A única forma de eu
lhe entregar isso era pessoalmente, por isso tive de vir até sua casa.

246
William R. Silva

Dionísio examinou o envelope nas mãos do advogado, não o pegou.


– Que história é essa de custar nossas vidas?
– Exatamente! – Paulo respondeu – a minha, a sua, a do Túlio... seu pai e os...
– Meu pai? – Dionísio o questionou, surpreso.
Uma máscara de medo assombrou a face de Paulo quando seus olhos reviraram insistentemente
pelos arredores da rua deserta. Apreensivo, estudou as casas e condomínios da vizinhança à procura de
algo que nem mesmo ele sabia. Visivelmente paranoico, virou-se para o rapaz e continuou:
– É melhor conversarmos dentro da sua casa. Acredito que seja mais seguro.
Dionísio pareceu ligeiramente aborrecido.
– Somente amigos são bem-vindos à minha casa – franziu o cenho – e você não é um deles.
Paulo insistiu.
– Estamos correndo perigo de vida. Será que não me entendeu? – as palavras pesaram em
sua garganta – Cara, eu sei que me odeia por causa do que eu te fiz e não tiro sua razão. Mas o
assunto é de grande importância, tem que confiar em mim.
Suspirou por alguns segundos e mirou o desafeto nos olhos. Dionísio permaneceu com
sua postura implacável. Por mais que quisesse, não conseguia acreditar nas palavras que ouvia.
Assim, indagou:
– Por que eu deveria confiar em você?
O outro chegou a pensar em algum bom argumento para convencer Dionísio da gravidade
da situação, porém, não disse nada. Uma sensação estranha fez com que um frio atravessasse
sua espinha. E a paz noturna foi interrompida por um barulho repentino. Um continuo roncar de
motor se propagou na via. O som foi aumentando gradativamente. Sem compreenderem como,
ambos se sentiram paralisados. Logo que viram uma moto com seu rastro luminoso se aproxi-
mar, previram uma espécie de perigo anunciado.
Aquilo era estranho, os dois trocaram olhares. Quanto mais perto a motocicleta se encon-
trava, mais atormentado Paulo ficava. O coração de Dionísio acelerou. O som do arranque que
ressoou da moto o fez se assustar bruscamente. O piloto não tinha pressa, a máquina se movia
lenta e suave no asfalto. Tudo isso a tornava ainda mais atemorizante. O motoqueiro finalmente
deu meio giro no guidom e parou há poucos metros dos dois. O homem montado usava jaqueta
e calça pretas, sapatos bem engraxados e aparentava ser magro. Um olhar duro e demoníaco
despontava por entre a viseira de seu capacete. O desconhecido rolou os olhos ora para Dionísio,
ora para Paulo como se os estivesse estudando. O suspense pairou no ar.
Paulo lançou um olhar investigativo na direção do condutor do veículo de duas rodas
visando enxergar quem era, mas não foi capaz de identificar nada. Mesmo assim, seus braços e
pernas tremeram instantaneamente quando sua boca abriu num grito:
– Ele vai nos matar!
Numa reação de susto, Paulo largou o envelope e saltou para trás do seu carro estaciona-
do. Antes mesmo que o cérebro de Dionísio pudesse processar a frase, o braço direito do mo-
toqueiro se ergueu. Nesse instante, uma pistola Tauros reluziu no punho do assassino. Tudo foi
tão rápido que Dionísio nem percebeu quando ele mesmo também se jogou no chão bem atrás
do Renault e se agachou junto a Paulo. O motoqueiro deu um disparo. No som de um estalo, um
projétil zuniu e perfurou o vidro do carona.
O homem ajoelhado se desesperou

247
A Coragem

– Merda! O que vamos fazer, Dionísio? E agora?


Outro estrondo retumbou, um novo projétil atravessou o para-brisas e varou o banco de
passageiro. Os dois começaram a engatinhar imaginando uma rota de fuga. Teriam que agir de-
pressa. Suas vidas estavam em jogo. Um terceiro tiro é disparado. Paulo titubeou, queria correr
para longe, embora estivesse bloqueado. Os disparos cessaram no momento em que o advogado
se abaixou e viu que o atirador rumava em direção a eles. Sentiu um fio de súplica lhe sufocar a
garganta. Não queria morrer.
Sentindo os joelhos arderem, Dionísio pensou rápido e enfim apanhou seu revólver.
– Desgraçado! – esbravejou, no encalço do atirador – Se acha que vai me pegar, está
muito enganado.
Mais um tiro estilhaçou um dos faróis do carro que servia de escudo. Assim que ouviu o
cacos de plásticos se espalharem, Paulo pressionou as orelhas de tanto pavor. Dionísio se arras-
tou e, com dificuldade, conseguiu enxergar a silhueta humana. Firmou o calibre vinte e dois no
punho, respirou fundo e subitamente levantou a cabeça e o braço por cima do capo e disparou
uma rajada rumo ao criminoso.
O motoqueiro não imaginava que havia mais alguém armado além dele. Isso o pegou
desprevenido. Surpreendeu-se quando viu que a rajada dilacerou sua pele, causando-lhe dor nos
ossos. Os disparos cessaram, o homem de capacete sentiu sangue jorrar pela manga da jaqueta.
Viu-se em desvantagem.
O atirador imediatamente montou em sua moto. Gotas de sangue continuavam a gotejar
do seu braço. Ligeiro, ele deu partida, a moto disparou em fuga. Possesso e ainda com o revólver
em riste, Dionísio ficou de pé e avançou na captura do homicida. Enquanto corria pela rua atrás
da moto desgovernada, seus dedos nervosos disparavam vários tiros na direção do sujeito que
tentou tirar sua vida minutos antes.
O motoqueiro conseguiu escapar. Complemente fora de si, Dionísio gritou:
– Covarde desgraçado! Maldito! – deu mais dois disparos – Maldito!
Os joelhos de Paulo latejavam, havia forçado-os na calçada para poder se locomover. Sem
se erguer completamente, rastejou até o farol traseiro e observou Dionísio de costas.
– O motoqueiro fugiu? – quis saber – Conseguiu abater ele?
Ruídos repentinos sinalizaram o movimento de janelas se abrirem, rostos de moradores
se projetaram de algumas das frestas das casas. Até no prédio mais alto de um dos condomínios
foi possível notar a sombra de alguém atônito. Muitos na vizinhança se assustaram. Apesar de
ser madrugada, os sons mortíferos os tiraram de suas camas. Dionísio tremia, arfante. Desprezou
totalmente a hipótese de estar sendo observado e se enfureceu. Sentiu suas vistas escurecerem e
sua pulsação se agitou. Respirando ofegante, recolocou a arma no coldre e rumou até o sujeito
debruçado ao lado do veículo.
Quando compreendeu o estado no qual o rapaz se encontrava, Paulo imediatamente se
aprumou e perguntou, com os olhos arregalados:
– Por que está me olhando assim?
O semblante de Dionísio se contraiu. Seus músculos explodiram numa potente carga de
agressividade e suas mãos agarraram a gola da camisa do colega de trabalho. Paulo sentiu o
fôlego começar a faltar ao perceber que o tecido do colarinho apertava-lhe o pescoço. Tentou
empurrar o agressor para longe, embora soubesse que não tinha força para tal atitude. Quis

248
William R. Silva

clamar por misericórdia, sua voz não saiu. Viu seu corpo ser erguido pelos braços troncudos e
sentiu suas costas baterem com violência por cima do capô do Renault.
Vendo que Dionísio estava descontrolado, enxergou o punho fechado dele pairar no ar.
Nesse momento, Paulo entendeu que o homem planejava espancá-lo.
– Esse era o plano, seu desgraçado? – o agressor rosnou – Não mudou nada, me trouxe
até aqui com objetivo de me matar? Confesse! – tornou a fazer a cabeça da vítima colidir com a
lataria do automóvel – Você é comparsa daquele marginal que fugiu na moto, não é?
Um soco atingiu o canto esquerdo do queixo de Paulo.
– Por que está... – a dor que Paulo sentiu foi tão lancinante, que uma leve sensação nau-
seante quase enfraqueceu seus sentidos – Por que está agindo assim?
– Você está junto com Roberto nessa? Diga! – o espancador lhe deu outro murro – En-
ganou o Túlio, mas comigo o assunto é outro. Nunca acreditei na sua conversa de bom moço.
Nunca! – berrou.
Recebeu outra pancada no nariz, cuspindo sangue, a vítima pestanejou:
– Pare, pelo amor de Deus! – as palavras saíam com dificuldade – Não tenho nada a ver com isso.
Dionísio soltou a camisa e voltou a espancar o rapaz. Sangue começou a ensopar o maxi-
lar do sujeito agredido.
– Não, Dionísio! – insistiu Paulo, ao levar outro soco e sentir o gosto quente do líquido
pastoso escorrer-lhe pela boca – Dê-me a chance de me explicar!
Mais um vez, o indivíduo furioso o puxou pela camisa e o arremessou no asfalto. Paulo
caiu de bruços no chão duro. Apalpou o solo tentando se reerguer, não teve forças. De novo,
despencou com a cara no asfalto. Empregando bastante esforço, virou a face para trás. Instantes
depois, enxergou o espancador partir para cima dele e iniciar uma sessão de chutes em suas
pernas e abdômen. A cada golpe que o acometia, Paulo berrava de dor.
– Lembra disso? Lembra, seu covarde? – vociferou Dionísio enquanto continuava com os
pontapés – Eu esperei dez anos para me vingar da surra que você me deu, dez anos, seu ordinário!
– Pelo amor de Deus... – a vítima nocauteada chorava de dor – Eu não tenho nada a ver
com esse bandido que tentou nos eliminar. Eu juro!
O homem espancado tentou se levantar, mas assim que ganhou outro golpe no canto do
queixo, tornou a cair de costas.
Dionísio se abaixou, pôs a vítima de frente e agarrou-lhe o pulso.
– Diga logo, quem te mandou fazer essa armadilha pra mim? Eu sei muito bem que aque-
les tiros não eram para acertar você. Fez-me vir até aqui para que pudessem me matar. Por um
acaso acha que sou idiota? Confessa logo, era esse o plano?
– Não, Dionísio! Ele está do nosso lado! – gritou alguém, o mais alto que pode.
Ele, ainda segurando firmemente o braço da vítima estirada, lançou seus olhos em direção
ao início da rua. Seu cenho franziu. Mais confuso que antes, viu Túlio emergir na escuridão e
correr desesperado para contê-lo.
Túlio os alcançou e segurou no ombro do amigo. O sujeito magro não precisou empregar
muita força para impedir os ataques, uma vez que seu amigo jamais iria querer machucá-lo.
Paulo desmaiou nos braços do seu algoz. Perturbado, Dionísio fitou o melhor amigo. A possi-
bilidade de ter cometido uma injustiça começou a deixá-lo num estado de desespero interior.
Túlio analisou o homem desacordado.

249
A Coragem

– Ele não é nosso verdadeiro inimigo, Dio – falou, cansado e assustado. – Está aqui para
nos ajudar. Temos provas o suficiente para te provar que estou falando a verdade.

60

EVIDÊNCIAS

Hospital: sala de espera

A sensação de culpa lhe estraçalhava a alma. O fato deixava Dionísio cada vez mais
apreensivo. Túlio também aguardava informações sobre a vítima lesionada. Paulo estava sendo
atendido, talvez esteja com alguma contusão ou pior, uma fratura. O paciente não queria preju-
dicá-lo, não havia mais nenhuma dúvida disso. A surra que lhe dera, agora parecia doer muito
mais em seu agressor. Toda vez que se recorda dos socos e pontapés que dera no sujeito abatido,
o remorso o corrói como uma agulha rasgando-lhe a pele. Agora tem certeza de que Paulo,
na época em que ele foi embora com o pai, foi até sua casa pedir desculpas por ter ajudado os
colegas a espancá-lo no parque. Assim que se viram a sós e os médicos se distanciaram com o
paciente, Túlio remontou toda a história que Maria Clara lhe contará anos antes. Deu todos os
detalhes sobre o dia em que ele, Maria do Rosário e a vítima foram visitar sua mãe.
Enquanto esperavam notícias sobre o atendimento médico, remoía interiormente a bru-
talidade que cometeu. Prestou atenção ao redor e viu que um homem e uma mulher também se
assentaram na sala de espera. O casal começou a assistir a um programa de Tv. Notou que ambos
possuíam um semblante preocupado. E como não teriam? Estavam em um hospital!
– Eu devia tê-lo deixado entrar na minha casa! – resmungou – Se eu não estivesse armado,
estaríamos os dois mortos. Eu deveria ter ouvindo, eu deveria – por um segundo, sentiu raiva
de si mesmo.
Túlio zanzava inquieto de um lado para outro, sem se desgrudar do envelope. Desde que se
pós entre o agressor e a vítima para impedir uma futura tragédia, não se desprendeu dos papéis.
Só agora Dionísio caiu em si a respeito das tais provas. Examinou a sala de espera e per-
guntou, ao ver o homem raquítico vir em sua direção:
– E o conteúdo desse envelope? Tem como me explicar do que se trata?
Três médicos que tagarelavam em baixo tom passaram perto deles. Túlio observou os
profissionais de saúde se distanciarem. Em seguida, respondeu:
– Irei te explicar, acalme-se! Queria muito que o Paulo estivesse aqui conosco para poder-
mos discutir sobre o assunto – sentou-se ao lado do amigo.
Dionísio virou o rosto para ele.
– Por que você mesmo não me ligou e marcou o encontro?
Túlio tateou o envelope, pensativo.

250
William R. Silva

– É verdade – concordou, sem encarar o homem a seu lado –, eu mesmo poderia ter te
convocado. Ou pelo menos podia ter pedido a ele que me esperasse para poder irmos juntos até
lá. Estávamos tão atordoados com o que descobrimos, que agimos por impulso, sem pensar nos
reveses do plano. Apesar de que... – sua voz soou atordoada. Fez uma pausa e respirou intensa-
mente – Se não fosse por você estar armado, o motoqueiro poderia ter matado vocês.
Dionísio, por um breve instante, calou-se. Outra vez fora acometido pelo seu arrependi-
mento. Finalmente queixou-se em voz baixa:
– Ernesto ou Roberto? Qual dos dois teria tentado nos matar?
Aquilo era mais um desabafo do que um questionamento. Ainda assim, Túlio concertou
os óculos, virou-se para o sujeito arrependido e revelou:
– Na verdade, tudo indica que o assassino que tentou dar cabo da vida de vocês foi envia-
do pelos dois. Ernesto e Roberto talvez estejam trabalhando juntos nisso.
Dionísio deu um salto da cadeira e berrou, surpreso:
– O quê? Como você sabe do Ernesto?
A atendente que trabalhava na recepção e o casal o fitaram com olhares de reprovação.
Constrangeu-se ao ver um placa que pedia silêncio fixada ao lado da televisão presa no suporte.
Estava em um hospital. O barulho no estabelecimento não só era proibido, como também falta
de educação.
Túlio esclareceu, friamente:
– O Ernesto é tio do Roberto.
A revelação caiu como uma bomba nos ouvidos de Dionísio. Seus olhos se esbugalham.
Fez o que pode para não cometer outra gafe, por isso tornou a se assentar, pasmo.
– Ambos querem eliminar seu pai e os líderes de um tal lugar chamado Quartel – o outro
prosseguiu, erguendo o envelope. – Mas não é só isso, tem mais coisas complicadas envolvendo
esse quebra-cabeças.
Dionísio ficou meio zonzo com toda aquele revelação. Com medo de que seu estado de
surpresa e perplexidade novamente perturbasse a calma do ambiente, indagou em baixo tom:
– Como descobriu tudo isso, Túlio? O Quartel, Ernesto, sobre os Líderes e tudo mais.
Isso é incrível! Me diga como essas informações chegaram até você! Também já frequentou o
Quartel escondido na cidade de Realinópolis?
Túlio balançou a cabeça em negativa.
– Não, nunca ouvi falar dessa cidade.
O homem robusto se mostrou apreensivo.
– Então como pode ter descoberto isso tudo? Não consigo entender!
Túlio entendeu que não podia mais protelar, teria de contar a verdade.
– A situação é crítica. Acho melhor não esperar o Paulo se recuperar – o rapaz de óculos
se levantou. – Vem comigo!
Ele se pôs de pé e iniciou seus passos atrás do sujeito magro. Seguiram pelo passadiço.
Uma serviçal empurrando um carrinho de transporte de alimentos passou por entre eles e entrou
num dos quartos. Mais adiante, um funcionário segurava um dos braços de um idoso para que o
médico, portando um aparelho aferidor, pudesse lhe medir a pressão arterial. Dois homens, que
tudo indicava serem parentes do doente, acompanhavam o procedimento. Nenhum deles notou
a presença dos visitantes, mas Dionísio sentia-se como se fosse um réu em dia de julgamento.

251
A Coragem

Parecia que todos o encaravam de modo acusador. A sensação de culpa lhe forneceu algumas
doses de paranoia. Achava que o tempo todo seria julgado pelo ato brutal que cometeu. Alguns
vizinhos haviam surgido na janela por causa dos disparos no momento em que o atirador fugiu.
Será que algum deles viu sua atitude descontrolada?
Túlio avisou, enquanto avançavam pelo corredor:
– É melhor permanecermos dentro do edifício do hospital. Ainda é noite, melhor não
ariscarmos.
Dionísio assentiu com a cabeça e ambos alcançaram a escadaria que leva ao andar térreo.
Assim foram descendo os degraus em espiral. Serpentearam em silêncio até que conseguiram
avistar a entrada do refeitório. Apenas uma funcionária atendia no balcão. O espaço estava
vazio. A dupla rumou em sentido a uma das mesas. Túlio arrastou uma cadeira e se acomodou
nela, Dionísio também se assentou de frente para ele. O homem mais magro então fez um sinal
para a moça e disse:
– Traga-me dois refrigerantes e dois pastéis.
Rapidamente, a mulher abriu o freezer e retirou as duas garrafas. Túlio pousou os olhos
no envelope retangular e o jogou sobre a mesa. Segundos depois, a funcionária deixou o pedido
em cima da mesa.
Dionísio abriu o refrigerante e sorveu um gole. Só então olhou para o envelope.
– Lembra que te disse que estava rastreando as atividades do Roberto em seus compu-
tadores? – Túlio refrescou-lhe a memória – Mesmo depois de conseguir as provas de que ele
estava roubando o próprio pai, continuei com as investigações. Depois do dia em que o João
tentou atirar em mim, tive que fazer isso para saber dos passos deles e me proteger... – pensou
um pouco e disse – ou melhor, nos proteger.
Dionísio pareceu curioso.
– Nesse envelope – Túlio reiniciou o relato –, tem várias conversas entre ele e o João
Sérgio feitas por e-mail e em redes sociais. Tem muita informação útil para colocá-los na cadeia
e, o melhor, salvar nossa vida. A minha, a sua, do seu pai, dos amigos dele... e de outras pessoas.
Dionísio apanhou o envelope. Após puxar os papéis de seu interior, começou a revirar os
olhos sobre as impressões. Túlio observou o companheiro se entreter na leitura dos documentos.

De: Roberto Albuquerque Tavares <robertoAT@hotmail.com>


Para: João Sérgio Abramovich <JSAbramovich@yahoo.com>
Enviadas: Sexta-Feira, 7 de novembro de 2014
Assunto: Transferências Bancárias.

Possuo milhões depositados na suíça. Não se preocupe, João Sérgio! Diga ao


Picolé que tanto eu, quanto o Ernesto, temos grana o suficiente para pagar
nossas encomendas. Quero o Túlio e aquele traidor do Paulo mortos. Ambos
sabem demais e podem atrapalhar nossos planos.

Em anexo, seguem os comprovantes de depósitos e movimentações bancárias.

Re: Transferências Bancárias 8 de novembro

252
William R. Silva

Esta ok, Parceiro ! Quanto a isso, não se preocupe.

Mudando de assunto. Seu tio Ernesto sabe que você esta nos contratando para
serviços a parte? E o tal Dionísio?
Ele é o filho do tal Átila que o Ernesto quer ver na cova. O que faremos com ele?

Dionísio percorreu as letras semiborradas com os dedos em busca do resto do diálogo.


Não o encontrou. Em razão disso, perguntou, ansioso:
– Por que o arquivo está pela metade?
Túlio virou a garrafa na boca e tomou um pouco do seu conteúdo. Retornou a bebida na
mesa e explicou:
– A maioria das conversas estão incompletas ou cortadas em alguns trechos. Mas, pelo
pouco que se vê, pode-se considerar o suficiente para o que precisamos.
Enquanto mordiscava um pedaço do seu pastel, observou Dionísio estudar os papéis seguintes.

João Sérgio Abramovich 24/10/2014 20:20


Qual era mesmo o nome dos caras?

Roberto Albuquerque 24/10/2014 20:22


Não me lembro bem. Só sei que meu tio
Ernesto quer sumir com eles do mapa.

João Sérgio Abramovich 24/10/2014 20:26


Pelo jeito não vai ser fácil, se não a grana que
ele vai nos pagar não seria tão alta.
Mudando de assunto, existe mesmo esse
tal quartel escondido?
Cara, na bora, isso parece coisa de maluco.

Roberto Albuquerque 24/10/2014 20:30


Existe sim. Em uma cidade no
interior do nosso estado. Pode acreditar!

Uma dupla de enfermeiras invadiu o enorme salão e se sentou numa das mesas. Por um
breve instante, elas prestaram atenção no rapaz que segurava um amontoado de papéis e no
outro que estava próximo a ele, depois fizeram seus pedidos a atendente. Túlio as olhou de
relance e continuou a comer seu pastel. O lanche do amigo se mantinha inalterado na bandeja.
Dionísio estudou outra página, depois outra... e outra. A cada revelação, seu rosto se contraía
de surpresa e raiva.
– Marginais ordinários! – Dionísio subitamente se pôs de pé. Seu amigo sobressaltou-se
com a reação repentina – Esses desgraçados não são gente, são monstros! Eu já tinha dito a
meu pai que o Ernesto estava nessa cidade, mas não sabia que tinha uma gangue junto com ele.

253
A Coragem

Fique aqui! – empurrou a cadeira – Vou dar um jeito de colocar meu pai a par de tudo o que
está acontecendo.
Túlio permaneceu em silêncio, imaginando como aquele menino fraco e recluso de anos
antes se transformou nesse ser destemido que aprendera a admirar.

61

O GÊNIO DO MAL

Banco Século
(Sala da Presidência)

4 de Dezembro de 2014.

Por um longo instante, Rogério esqueceu a pilha de contratos sobre a mesa e conservou
a caneta imóvel entre os dedos. Seus olhos pararam ante a tela do computador portátil, mas
nenhuma atenção dera às transações on-line que ali se efetuavam. Pensativo, balançou-se sobre
a cadeira. Mais que meio ano se passou desde que convocara Túlio para investigar o furto mi-
lionário do qual foi vítima. Contratou o hacker em vão, deu-lhe um bom cargo e ótimo salário.
Cedeu privilégios e nenhum resultado ele trouxe. Como profissional, o TI é excelente, mas não
fora para isso que o trouxe para sua instituição. Soltou a caneta e a viu rolar sobre a mesa e des-
pencar silenciosa por cima do tapete. Seus dedos deslizaram pelos papéis. Havia muito trabalho
para ser feito, embora estivesse a procrastiná-lo.
Será que Túlio não estaria escondendo algo? Tem desconfianças de que ele tinha a res-
posta para sua dúvida. Um homem medroso e recluso não era digno de receber tal incumbência.
O que havia feito foi um grande erro! Suspirou, decepcionado. Se ele realmente possuía a res-
posta, com certeza, era algo sério demais. Uma corda imaginária o trouxe para o tempo presente
quando o telefone no canto da mesa chamou. Franziu a testa. Ordenou à secretária que ninguém
o perturbasse, não estava com ânimo para receber sócios e funcionários. Mesmo assim, levou o
telefone até o ouvido e indagou, irritado:
– O que você quer, Janine?
– Dr. Rogério – a voz da secretária emitiu-se pelo fone –, tem um homem querendo con-
servar com o senhor. Disse que é um velho amigo.
Enquanto voltava a checar as informações no monitor, Rogério respondeu, truculento:
– Eu disse que não queria ser incomodado. Será que não fui claro?
– Sim, senhor – a mulher na linha hesitou –, mas o sujeito é insistente. Ele me deu certeza
de que o atenderia. O nome dele é...

254
William R. Silva

Rogério a cortou:
– Mande-o voltar outro dia! – reuniu alguns dos papéis e os apanhou para observá-los –,
diga a ele que não posso receber visitas hoje. Estou muito ocupado.
– Sim, senhor! Vou avisá-lo – a voz concordou, num suspiro afoito.
Ele conectou o telefone no gancho. Enfim, resolveu concentrar-se em suas tarefas. Não
prosseguiu, a interrupção era muito incomum para passar desapercebida. Sua secretária jamais
desobedeceu a uma ordem, a não ser em casos urgentes. Casos urgentes? Uma curiosidade súbita
o acometeu e o fez voltar atrás em sua decisão. Contrariando-se, novamente sacou o aparelho e
discou os números do ramal. Esperou a secretária aceitar a chamada, nem sinal da voz dela. Foi
nesse instante que a porta dupla se abriu e um homem de cabelos longos irrompeu apressado na
sala. Estupefato, Rogério imediatamente olhou na direção do invasor. Nunca ninguém entrara em
sua sala sem permissão, nem mesmo seus funcionários de confiança, esposa ou filhos. Quase acio-
nou o alarme para que os seguranças viessem, mas decidiu não agir. Os traços do visitante eram
familiares, já o conhecia há muitos anos. Dali em diante, sentiu que a situação estava sob controle.
Janine surgiu arfando, logo atrás do intruso.
– Desculpe, senhor! – a mulher se mostrou bastante desorientada – Eu disse a ele que não
queria ser incomodado, mas ele invadiu sua sala contra minha vontade.
Na mesma hora, o presidente riu baixo e guardou o aparelho em seu lugar de origem.
– Pode se retirar, Janine! Deixe que eu resolvo tudo.
Ela estranhou a reação de alegria do patrão, mas saiu sem protestar. O homem caminhou
até a Rogério e declarou, determinado:
– Peço desculpas pela falta de respeito, mas o assunto é importante.
O presidente tornou a sorrir.
– Nélson Átila, para vê-lo aqui depois de tantos anos, creio que o que tem a me dizer seja
realmente sério. É um imenso prazer recebê-lo! – mostrou-lhe a cadeira logo a sua frente – Sen-
te-se, por favor!
Átila deu um ligeiro sorriso e lhe estendeu a mão.
– O prazer é todo meu, caro amigo. Pena que... – após a troca de cumprimentos, seu timbre
soou mais grave –, o assunto que tenho a tratar não seja lá tão agradável quanto nosso reencontro.
O semblante do homem carregava um pesado ar de preocupação. Rogério assumiu uma ex-
pressão de curiosidade assim que suas sobrancelhas se ergueram. Já sabia qual era o assunto. Não
existia outro motivo para que Nélson invadisse seu escritório da forma que fez. Assim, questionou:
– É sobre meu irmão, não é? Encontraram-no? Ele aprontou de novo?
Nélson Átila concordou e descansou a mão direita sobre o encosto da cadeira giratória.
Não se sentou. Observou em volta e deu de cara com o grande cifrão desenhado na moeda de
ouro. Muitos anos se foram desde o derradeiro dia em que pisara ali. A sala ainda mantinha seu
requinte e classe. As vidraças cuja maravilhosa cidade era pano de fundo, fizeram seus olhos se
prenderem na paisagem. De relance, conseguiu enxergar um avião ao longe cingir seu rastro de
fumaça pela imensidão do espaço.
O banqueiro então disse:
– É melhor eu pedir um café, acredito que essa conversa será longa.
– Não se incomode! – o amigo declarou – Seria bom deixarmos a formalidades para outra
ocasião. Assim evitamos futuras interrupções.

255
A Coragem

Rogério aceitou a objeção. Endireitou-se na cadeira, conferiu o nó de sua gravata e deu


sequência ao assunto:
– Contratei detetives para encontrar o paradeiro do Ernesto. Planejava oferecer ajuda a
ele. Eu nunca acreditei na hipótese de que estivesse morto, embora ele nunca tivesse pedido
minha ajuda. Por acaso sabe onde ele está?
– Sim – a resposta de Átila foi seca.
Subitamente, o banqueiro se pôs de pé.
– Onde? Você já entrou em contato com ele?
Átila esclareceu, com veemência:
– Não o encontrei, mas meu filho Dionísio, sim. Ou melhor, Ernesto foi atrás dele.
Uma expressão de desagrado enrugou a testa de Rogério.
– Seu filho? – rosnou – E por que não a mim ou Roberto? Somos a família dele.
– Também estranhei a princípio – falou o outro –, mas depois que Dionísio me explicou
tudo, entendi o que ele pretendia. Lembra do projeto Quartel? A antiga fortaleza?
O presidente fez que sim com a cabeça.
– Eu ajudei a financiar o projeto, como é que eu iria esquecer. Ele ainda planeja tentar
algo contra vocês?
Assim que suas mãos fizeram a cadeira girar com um movimento despretensioso, Átila
respondeu:
– Não só continua com esse objetivo como também quis fazer a cabeça do meu filho para
que o seguisse nesse plano idiota. Ernesto queria recrutá-lo para invadir a base secreta e se juntar
a seu clã de retardados.
Seu ouvinte assumiu uma posição retesada. Compreendeu que respirava mais depressa
que o normal. Fitou o homem a sua frente e declarou:
– Sinto que há algo de muito sério para me dizer. O que é? Sabe bem que nunca gostei de
rodeis. E pelo que sei, você também, não.
Os olhos de Átila ficaram frios como gelo. Adiar a verdade não lhe traria nenhum efeito
positivo. Então, falou:
– Seu filho Roberto está envolvido com Ernesto. Conhece o local onde seu irmão está
escondido e pretende ajudá-lo em seus planos.
Sentiu as vistas escurecerem. Em razão disso, Rogério rapidamente tirou um lenço do
blazer e o passou sobre a testa. O ar condicionado impedia que o calor pairasse sobre a sala
e o ambiente estava arejado. Não foi a temperatura que o fez transpirar, mas sim o estado de
tensão que a informação lhe causou. Engoliu em seco o próprio desgosto, lançou-lhe um olhar
de desaprovação e revidou:
– Por acaso está querendo me dizer que meu filho é cúmplice de um assassino?
O teor da conversa se tornou mais complexo. Nélson esperava que tal esclarecimento o
deixasse atordoado. Ninguém em sã consciência receberia bem a revelação de que o próprio
filho estaria envolvido com criminosos. Girou o assento e se acomodou sobre ele. Segurando o
queixo, Átila encarou o descrente e disse:
– Sabe que tenho muito respeito por você e pela sua empresa, tanto é que tenho ações e
outros investimentos nela. Mas, tenho como provar que estou sendo verdadeiro.
Como se estivesse com vergonha de encarar o visitante, Rogério deu as costas e correu os

256
William R. Silva

olhos sobre a logomarca do Banco Século. Nem percebeu quando foi que as lágrimas saltaram-
lhe dos olhos. Em seu íntimo, sabia como ninguém que aquela hipótese poderia ser muito bem
verdadeira, tanto ele quanto a esposa desconheciam o real caráter do filho. Isso já lhe roubara
muitas noites de sono.
Logo após um silencio passageiro, Rogério começou a desabafar:
– Desde criança, Roberto sempre apresentou comportamentos estranhos. Cresceu egoísta,
cheio de desejos e caprichos – ainda de costas, deu um longo suspiro. – Após seu nascimento, Tânia
teve uma infeção uterina e não pode ter mais filhos – Rogério sentiu seu coração apertar. – Por isso
lhe proporcionamos todos os mimos que uma criança jamais poderia ter. Nós destruímos nosso filho!
O homem de cabelos longos tentou tranquilizá-lo:
– Sinto muito!
Rogério seguiu:
– Não precisa se desculpar! – tornou a pegar o lenço, mas dessa vez foi para secar as lágri-
mas em sua face – Anos depois, resolvemos adotar uma garotinha recém-nascida. Poucas horas
depois que o bebê fora rejeitado pelos pais, minha mulher e eu corremos para nos oferecer ao
processo de adoção – dizer aquilo o deixou feliz. – Rosane recebeu nosso sobrenome. Pensamos
que isso deixaria o coração do Roberto mais brando – balançou a cabeça, angustiado. – Triste
engano! Pelo contrário, isso fez com que ele se transformasse num adolescente ainda mais cruel,
chegando ao ponto de tentar... – não conseguiu prosseguir com a confissão.
Átila o incentivou:
– Não tenha medo de desabar, caro amigo! Sabe muito bem que sei guardar segredos.
Ele, enfim, girou o corpo e voltou a fitar o rosto de Nélson. Tornou a se afundar em seu
assento e pousou as mãos sobre a mesa. Suas pálpebras estavam cansadas e sua expressão apre-
sentava um quê de decepção. Então, disse:
– Tudo bem! Vou lhe contar.

Mansão da Família Tavares


(2000)

Era uma tranquila tarde de domingo como qualquer outra. Na sacada, Rogério se achava
distraído ante sua mesinha de ferro. Ele folheava seu periódico de economia e notícias acerca
do mercado financeiro. O céu azulado repleto de nuvens cinzentas se sobrepunha à sua cabeça.
Tirou os olhos da leitura e inspirou o aroma das flores. Tinham várias delas nos arredores do
lugar. Sua esposa adora flores e faz questão de decorar todas as partes da propriedade com elas.
Gostava da paisagem florida com suas cores vivas, trazia-lhe paz de espírito.
Sentiu um sorriso contente saltar-lhe dos lábios quando avistou ao longe, próxima à pisci-
na, a linda criança ruiva brincando com a babá. Rosane tinha pouco mais que um ano de idade.
Observou a menina se erguer com dificuldade sobre uma espreguiçadeira e se locomover por um
curto espaço até perder o equilíbrio e despencar sobre o piso.
Ele novamente riu baixo, viu que a babá correu para socorrê-la. Seus olhos retornaram
para as páginas da revista. Seguiu com o que fazia. Passaram-se alguns minutos. Suas vistas se

257
A Coragem

cansaram, só então se lembrou que estava sem suas lentes de leitura. Foi quando interrompeu
o estudo para apanhar o estojo e retirar seus óculos é que vislumbrou algo estranho. Na mesma
hora voltou a espiar a área de lazer e viu que Roberto, então com treze anos, estava parado ao
lado da criança. Era a primeira vez que via os dois filhos sozinhos. Sentiu-se esperançoso, aqui-
lo poderia ser o primeiro sinal de que Roberto começava a sentir certa afeição pela irmãzinha.
Sorridente, empenhou-se em observar a cena.
Notou que o adolescente segurou a menina pelo braço e a deitou sobre o ombro. O peito
de Rogério explodiu em alegria. Finalmente teriam seus filhos unidos. Do dia em que trouxe
o bebê para sua casa até o presente momento, o rapaz nunca aceitara a irmã adotiva. Sempre a
desprezou, mas agora se via um fio de esperança.
Não foi bem assim. Compreendeu quando pressentiu uma energia ruim pairar sobre sua
cabeça. De modo inexplicável, sentiu como se uma mão imaginária apertasse o coração. Ficou
atento. Sem ação, prestou atenção na cena do garoto agarrado à criança se dirigindo à piscina.
Roberto parou diante do enorme tanque e ergueu a garotinha. Foi nesse momento que Rogério
levantou da cadeira. Seus olhos se esbugalharam. Com os batimentos acelerados, gritou:
– Roberto, não faça isso!
O menino nada ouviu. Deu dois passos e pairou com a pequena Rosane no ar. O homem
quis observar o filho por mais alguns segundos, não acreditava que o rapaz fosse capaz de tal
atrocidade. Onde estava a babá? Por que não havia empregados por perto? Pensou, irritado.
– Tire ela daí! – berrou com mais força – Pare com isso, já!
Roberto continuou sem escutá-lo. Será que ele vai mesmo fazer isso? Uma parte de si não
queria acreditar naquilo. Quando as mãos do pequeno assassino a soltaram, a imagem da criança
despencando parecia ter passado em câmera lenta. Gotas de água respingaram e o corpo frágil
de Rosane mergulhou. Rogério viu o mundo girar a sua volta e suas pernas tremeram. Uma onda
de pânico abalou seu sistema nervoso a ponto de ele querer saltar os mais de seis metros que o
separavam do solo e avançar na sua missão de salvamento. Chegou a simular a hipótese, mas era
óbvio que a queda só iria piorar as coisas. O baque poderia lhe causar uma fratura. Quando re-
cuperou a consciência, já estava a correr pelos cômodos da mansão. Arfando, o pai desesperado
começou a tropeçar em móveis, chutar enfeites e descer as escadas quase a perder o equilíbrio.
– Meu Deus! Não tire ela de mim! – sussurrou enquanto avançava pela sala – Por favor, senhor!
Precisava ser rápido, antes que fosse tarde demais. Duas faxineiras limpavam os móveis
do hall quando o homem passou como um raio por entre elas. As duas trocaram olhares e par-
tiram atrás do patrão.
– Estou indo, meu anjo, aguente firme! – suspirou, no instante em que saiu da mansão
e se encontrou na área externa. O fato de o próprio filho ter sido o causador do incidente, por
enquanto não era o foco de suas preocupações. Sua mente se concentrava apenas em retirar a
criança de sua situação de afogamento. Reteve o ar e correu com mais rapidez.
Uma das mulheres berrou, conforme seguia o homem:
– O que foi, seu Rogério?
Não obteve resposta. Na verdade, ele nem as havia notado.
O jardineiro que aparava a grama com o cortador elétrico desligou a máquina e suspendeu
o trabalho ao avistar as três pessoas correrem pela propriedade. Rogério retirou o blazer e o
arremessou sobre o gramado. O jardineiro mirou a vestes na grama e depois se atentou para o

258
William R. Silva

dono da casa desabotoando a camisa enquanto corria desesperado.


– O que está acontecendo? – perguntou, vendo as duas empregadas indo atrás do homem.
– Não sabemos – as duas responderam em coro.
Suas forças já estavam se esgotando. Rogério sabia que o vigor de sua juventude havia
se dissipado há alguns anos, suas pernas começavam a lhe trair. Faltava pouco, mesmo com o
cansaço, tinha de aguentar. Um ponta de alívio fez sua respiração sair com mais força assim que
avistou a babá com as mãos sobre o tórax da criança inconsciente estirada no piso. As roupas de
ambas estavam ensopadas. Uma poça de água escorria em torno delas. A mulher massageava-
lhe o peito, fazendo o possível para segurar as próprias emoções. Roberto, sem esboçar qualquer
reação, estava de pé ao lado das duas.
Os minúsculos lábios roxos de Rosane expeliram a água retida em seus pulmões e ela
imediatamente recuperou o fôlego. Após um rápido engasgo, a criança voltou a respirar. Sem
forças, Rogério caiu de joelhos perante as duas e bateu com as palmas no chão para evitar que
seu próprio corpo despencasse esgotado. As empregadas chegaram logo em seguida.
A babá, com a criança salva em seus braços, encarou o patrão e começou a falar, em prantos:
– Eu não sei o que aconteceu! Eu precisei ir à cozinha buscar a mamadeira dela e ele... –
ela levantou a cabeça e se virou para Roberto – disse que cuidaria dela pra mim. Juro que não
sei o que aconteceu.
O rapaz se defendeu:
– Fui brincar com minha irmã e ela caiu, foi um acidente!
Os olhos de Rogério ferveram como água em ebulição. Sentiu que tudo escurecia a sua
frente em virtude da fúria que lhe atravessou o corpo. Sabia que o filho mentia descaradamente e
aquilo foi o estopim. Suas energias voltaram como num passe de mágica e suas pernas ganharam
mais força. Pôs-se de pé e fitou a face do mentiroso.
– Acidente? – rugiu. Seus braços se lançaram em direção ao filho. Ele o agarrou pela gola
da camisa e começou sacudi-lo – Seu ordinário! – berrou, descontrolado. Roberto tentou se safar
da represália, mas não conseguiu – Você tentou matá-la, moleque desgraçado!
– Eu não fiz nada! – o menino rebateu, contorcendo-se – Ela que caiu sozinha.
O jardineiro irrompeu no local e tentou apartar a briga. Rogério se virou para ele.
– Não se meta! Suma daqui, vá fazer o seu trabalho!
O funcionário ficou imóvel. A babá carregou Rosane e se afastou. As duas serviçais con-
tinuaram onde estavam. No limite da paciência, seu pai perdeu o controle. Roberto recebeu um
bofetada tão forte no rosto que ficou tonto e caiu sentado. A face de Rogério se avermelhou.
– Seu maldito! Você é um demônio! É isso que você é.
A forma monstruosa como o filho o olhou naquele instante nunca mais saiu de sua mente.

Nélson observou o amigo e conseguiu sentir o desgosto que lhe assolava a alma.
– E o que vocês fizeram depois? Contou à sua esposa?
Após esfregar a testa, Rogério respondeu, inconformado:
– Minha esposa Tânia não acreditou no que eu disse. Preferiu aceitar a mentira do Rober-
to. Na época, eu sugeri que o levássemos a um psicólogo, mas ela discordou. Brigamos por três
dias seguidos. Havia muitos assuntos para eu resolver no banco, passava muito mais tempo no
trabalho. O que me fez esquecer do assunto. Grande erro!

259
A Coragem

O banqueiro notou que o amigo não havia se abalado com a história que acabara de lhe
contar. Átila apenas arqueou a sobrancelha e disse:
– Seu filho arquitetou um plano para que ele e seus colegas enganassem e espancassem
meu filho Dionísio. Sei que é duro te dizer isso, mas eu tenho certeza de que o que viu foi real.
O que viu foi um tentativa explicita de afogamento.
Os olhos tristes de Rogério se levantaram para ele.
– O que você acha que ele pretende ao se associar ao lunático do Ernesto?
Átila se pôs de pé. Relutou em revelar que Roberto havia enviado um assassino para aten-
tar contra a vida de um jovem, entre outras atrocidades. Percebeu que Rogério estava bastante
atordoado para ouvir mais revelações pesadas como as anteriores. Se contasse que o filho lhe
roubou, era bem capaz de o homem enfartar. Resolveu que iria contar-lhe o resto das informa-
ções em um momento oportuno. Sabia de tudo, pois Dionísio passou-lhe todas as informações
antes mesmo de ter saído de Realinópolis e ido viajar para a capital mineira.
– Se quer um conselho – Átila o mirou, com veemência –, é melhor tomar cuidado! Escute
com atenção o que vou lhe dizer. Jamais ande sozinho. Contrate seguranças de confiança para
você, sua esposa e filha. Onde quer que vocês forem. Quando dirigir, saia com escolta!
A imagem confiante de empreendedor de sucesso voltou a se projetar ante o enorme
cifrão dourado. O homem sentado à mesa, nem parecia mais aquele pai angustiado de minutos
antes. Ele encarou Átila e falou, determinado:
– Está bem! Farei o que você me diz.

62

MUDANÇA DE CURSO

10 de Dezembro de 2014.

Seus chinelos pesaram por causa da lama que se prendeu nas solas. Mesmo assim, Ernes-
to, guiando o bico da mangueira, continuou a regar suas plantas e passear pelo solo enlameado.
O jato espirrava uma chuva artificial que, ao cair sobre os pés de couve, moviam as grandes fo-
lhas verdes com os pesados pingos d’água. Para qualquer outro, esta poderia ser uma atividade
banal, mas para si, era uma das coisas mais gratificantes para se fazer no pacato povoado. Só
quem um dia teve a liberdade negada sabe o quão valiosa é a natureza. Coisas simples como a
quentura solar se derramando sobre o rosto, cheiro de poeira, frutos e legumes colhidos na hora,
eram o suficiente para lhe proporcionar bons momentos de felicidade.
Mas tinha uma missão. Ou melhor, seu propósito de vida e, dele, jamais poderá se des-
vincular. Salvar o mundo é humanamente impossível para um só homem. Por outro lado, com-
preende que seus atos irão abrir caminho para uma grande mudança. Por isso precisará agir. E

260
William R. Silva

a hora estava próxima. Um sorriso correu por seus lábios involuntariamente ao se lembrar que
estava próximo daquilo que tanto almejou.
Passando por entre as laranjeiras, regulou o jato e molhou suas fileiras de alfaces. Prosse-
guiu seus passos pela área de hortaliças. Pensou em Olegário, seu leal segurança, ou pelo menos
parecia ser. Tentou de todas as maneiras poupá-lo, contudo, o próprio o forçou a eliminá-lo. Sua
consciência o perturbou durante alguns dias depois de ter matado seu antigo ajudante. No fundo,
o homem ainda lhe trazia muita serventia. O arrastar de correntes fez Ernesto sair de seus deva-
neios. Seu cachorro zanzava em torno do tronco da maior árvore do lugar. Não ia muito longe,
pois a corrente que apertava em seu pescoço o impedia de se locomover.
O homem deu uma rápida fitada no animal agitado sem lhe dar a menor importância.
Inclinou-se para transitar por debaixo da videira. Adora colher suas uvas quando estas estão ma-
duras, não queria danificá-las. Seu celular vibrou. Faz tanto tempo não recebia uma ligação que
aquilo o fez mudar imediatamente seu estado emocional. De júbilo a desconfiança. As únicas
pessoas que poderiam ser eram seu sobrinho ou Cláudio Tedesco, pelo menos assim pensava. O
número era desconhecido. Depois de atender a chamada, quase caiu para trás quando a voz no
outro lado da linha se identificou.
– Max Wolf! A que devo a honra? – respondeu, satisfeito – Não esperava receber um
telefonema seu tão cedo. O que quer? Resolveu se aliar a mim?
A voz de Dionísio ressoou estridente.
– Como você pode ser tão ingênuo a ponto de deixar um cartão com o número do seu
telefone! E se eu chamar a polícia para rastreá-lo?
Após fechar a torneira e largar a mangueira no chão arenoso, Ernesto caminhou até seu
animal de estimação e se agachou perto dele. Depois, respondeu:
– Faça um teste, meu caro amigo! Garanto-lhe que não dará em nada.
Dionísio demorou uns segundos para retornar, como se estivesse pensando no que dizer.
Então, sua voz voltou a chiar:
– Que se dane! Não foi para isso que o contatei.
– Não? – o lunático deslizou as mãos sobre a mandíbula do seu rottweiler. Nosferato lam-
beu seus dedos – Então pare de gastar meu tempo, jogue logo as cartas na mesa!
Dionísio falou:
– Só estou te ligando para avisar que sei de tudo, Ernesto.
Ele ajeitou o aparelho na orelha. As palavras o deixaram curioso. Em virtude disso, dis-
tanciou-se do animal e se sentou em uma cadeira perto da horta.
– Sabe de tudo, o quê?
– Sei do seu plano para atacar os líderes do Quartel secreto.
Ernesto pigarreou.
– E daí?
– Sei também que você está ajudando Roberto a roubar o próprio pai. Também sei que foi
um de seus homens que tentou matar a mim e o Paulo Munis.
Quase disparou uma gargalhada súbita quando ouviu a revelação. Era uma acusação
grave demais para levá-la a sério. Mas o tom acusar que Dionísio carregava na voz guardava
raiva. E isso o deixou na dúvida. Depois de franzir a sobrancelha, escolheu dar ao acusador uma
chance de se explicar.

261
A Coragem

– Roberto roubar o pai? O que você está querendo dizer com isso?
– Não se faça de ingênuo! – o ameaçador na linha o atacou – Só estou te ligando para avisar
que usarei todos os recursos disponíveis para colocar você, seu sobrinho e os marginais que estão
ao seu comando atrás das grades. Não estou sozinho nessa, temos provas o suficiente para ferrar
vocês. Eu vou pegar todos vocês, Ernesto! Nem que seja a última coisa que eu faça na vida.
Começou a sentir fragmentos de verdade no modo como Dionísio falava. Por mais que achas-
se tudo aquilo um absurdo, não considerava impossível a possibilidade de o sobrinho ser um assas-
sino. Ernesto é capaz de sentir maldade em alguém com um simples cruzar de olhares, e a alma de
Roberto, desde sua infância, sempre fora evolvida por uma aura sóbria. Foi por isso que, por toda a
vida, o jovem se dera muito melhor com o tio do que com o próprio pai. Mas acusá-lo de roubar a
família, seria aquilo verdade? Se assim fosse, Ernesto também iria se sentir traído por ele.
– Consegue provar o que diz?
– Provar? – o homem na linha explodiu de raiva – Seu cinismo já está me deixando ner-
voso. Só estou te ligando para avisar que iremos atrás de todos vocês, seus assassinos covardes.
Está ouvindo, seu doente mental?
Um raiva repentina espalhou-se pelo semblante de Ernesto.
– Como ousa falar assim comigo, moleque?
– O recado foi dado, adeus! – A chamada foi finalizada. Mesmo assim, Ernesto se pôs de
pé e começou a berrar:
– Espere! Dionísio, não desligue! Eu preciso saber dessa história com mais detalhes.
Enfurecido, arremessou o celular para longe, fazendo-o despencar sobre a plantação de
repolho. Nem quis saber onde o aparelho caíra. Simplesmente marchou até a sua sala e ficou a
andar de um lado para outro.
– Que história é essa? Roberto está roubando o meu irmão? – murmurou enquanto va-
gueava pela casa – Usou os homens que contratei para serviços pessoais? – ficou cada vez mais
impaciente – Será isso mesmo verdade?
Sentiu a presença de alguém que se aproximava, mas sequer teve oportunidade de sacar a
arma da cintura para intimidar o intruso. Se fosse para atacá-lo, o mesmo já o teria feito. Apenas
escutou o homem dizer atrás dele:
– Tudo o que ouviu pelo telefone é verdade.
Ernesto imediatamente girou no calcanhar e encontrou a pessoa misteriosa logo na en-
trada. Quando foi que o visitante entrara em sua casa e quanto tempo estava bisbilhotando sua
conversa, era complicado calcular. Em outras circunstâncias, Ernesto poderia ter se zangado
com a invasão, mas suas preocupações e sua fome por informação falaram mais alto.
– Deco – sua sobrancelha direita se ergueu –, o que faz aqui a essas horas?
Seu aliado contratado cruzou os braços e encostou-se a parede.
– Toda a história que você ouviu é verídica, mas a história não termina por aí.
Ernesto ficou boquiaberto.
– É? E o que você sabe?
Deco mordeu os lábios.
– É melhor não enrolar e ir direto ao que interessa – respirou fundo, antes de terminar. –
Roberto nos reuniu para assassinar o pai dele.
O estômago de Ernesto revirou. Sentiu como se estivesse levando um choque de vários

262
William R. Silva

volts e fosse arremessado a léguas de distância. Teve pressa de sentar no sofá para poder rumi-
nar melhor toda as informações que recebeu nos últimos cinco minutos. Meio cético, encarou o
homem com um ar que misturava firmeza e perplexidade.
– Se o que declarou é verdade, por que está me contando tudo?
Depois de outro longo suspiro, Deco concluiu:
– Porque nunca gostei do seu sobrinho. Desde a primeira vez que o vi, notei que ele não
era de confiança. Quem não guarda amor por seu próprio pai não é amigo de ninguém.
Ernesto precisava de algo bastante coeso para crer nas palavras dele, por mais que tudo
indicasse que tanto Deco quanto Dionísio estavam sendo sinceros.
– Preciso de provas.
Os braços do homem se descruzaram quando ele encarou Ernesto fixamente.
– E você as terá. Mas, para isso, terá de vir comigo.

63

O FUHRER

O horizonte estava escuro, sem os seus comuns pontos de estrelas brilhantes e o sopro
noturno começava a abafar a grande metrópole. Michael correu até a varanda e deu uma ave-
riguada na rua para ver a movimentação. Seu apartamento de luxo se encontrava num bairro
nobre. Melhor visão não havia. O imóvel foi um dos presentes que ganhara de Roberto em troca
de seu trabalho sujo como cracker. Os dias que passara trancado em seu quarto em frente ao
computador, invadindo o sistema bancário, renderam-lhe boas recompensas. Nada tinha a se
queixar. Poderia ter gastado bem mais tempo. Quando o filho do patrão conseguiu descobrir
secretamente dados e senhas importantes por meio do seu acesso privilegiado aos negócios de
Rogério, praticar os golpes ficara menos trabalhoso.
Havia acabado de se banhar e enfiar-se em seus trajes. Eram vinte e uma horas. Era tarde,
Roberto já deveria ter chegado. Observou a movimentação na calçada, nem sinal do filho do
patrão. Retornou para dentro de seu apartamento. Rumou em direção ao quarto, juntou seus
últimos pertences e os amontoou no interior da mala.
Só depois de ter arrastado a mala pesada até a sala é que escutou alguém bater na porta. Di-
rigiu-se à maçaneta e a destrancou. Roberto disparou como um raio para dentro. Caso não estivesse
acostumado, Michael com certeza teria se assustado com a atitude do parceiro de trambiques.
O homem foi em direção à mala, Michael indagou, seguindo-o:
– Por qual lado da via você entrou?
Roberto deu três leves chutes na mala encostada no sofá para checar se estava mesmo
lotada. Em seguida, explicou:
– Não usei meu outro carro, peguei um taxi – ele o encarou. – Não quero chamar atenção

263
A Coragem

– o homem parrudo sacou a carteira, abriu-a e retirou um tanto de cédulas de cem e cinquenta
dólares. Contou as notas deslizando-as sobre os dedos e as entregou a Michael.
– Assim que chegar à Suíça, quero que me inteire de todos os detalhes da transação.
Entendido? – Roberto enfiou a mão em outra parte da calça e retirou um passaporte. Depois
caminhou até a janela para observar os logradouros.
Michael se surpreendeu.
– Conseguiu mesmo um passaporte para mim? Como?
Roberto se virou para o rapaz.
– Nesse país, dinheiro faz milagres! – riu baixo e lançou o documento em direção ao
cracker, que o agarrou no ar.
Após conferir a autenticidade do passaporte, Michael o guardou dentro da camisa. Prestou
atenção no homem de costas examinando a paisagem. Seus pensamentos divagaram sobre o que
se passava no interior daquele criatura nebulosa que se prostrava na janela. Relutante com sua
própria hesitação, perguntou:
– Vai mesmo fazer o que pretende? Perdão pela intromissão, mas, cara, isso é loucura.
Pense bem... vai mesmo assassinar seu pró...
Sem encará-lo, Roberto o cortou, num tom áspero cuja voz grave fez o jovem estremecer:
– Isso não é da sua conta! Faça o que tem que ser feito!
Michael sugou o ar, prendeu por um breve instante e o liberou. Queria pelo menos ter
noção de com quem estava lidando. Será que toda riqueza do mundo valeria a pena? Era tarde
demais para reconsiderar. Para o caminho que trilhou, não havia mais retorno. Passeou por entre
os sofás, a mesinha de centro e rumou para o espaço onde repousava sua mala.
O visitante então se virou e disse:
– Vou indo – sorriu com o canto da boca e dirigiu-se até o colega que erguia a mala com
dificuldade. Depois de dar dois suaves tapas nos ombros de Michael, falou: – Boa viagem, meu
amigo! Quando voltar, irá me ver sentado na cadeira da presidência – sorriu pela última vez.
Girou nos calcanhares e parou ante a saída – Ah! – tornou a dizer – deixe o carro no lugar que te
orientei e já sabe... nunca estive aqui!
O cracker devolveu:
– Sei como proceder, não se preocupe!
Roberto varou a porta e seus passos rápidos entoaram pelo corredor durante uma curta fra-
ção de segundos. Mais uma vez os pensamentos de incerteza tentaram imobilizá-lo, causando-
lhe um incômodo na garganta. Domou suas perturbações e seguiu com o plano. O que haveria
de fazer a essas alturas? Estava dentro de uma bolha de perigos, quanto mais longe da situação
ficar, menores serão as chances de ser descoberto por seus crimes. Assim, arrancou o molho de
chaves dependurado na parede e sussurrou:
– É agora ou nunca!
Ele afivelou o cinto antes frouxo, apertou o punho na alça da mala e saiu do apartamento.
Meteu a chave no trinco e trancou a moradia. Começou a andar pelo passadiço. Seus passos
largos o levaram para o elevador. Quando o compartimento subiu, colocou a mala no lado de
dentro e entrou logo em seguida. Acionou o botão que leva à garagem e esperou por uns instan-
tes. O cubículo se fechou e começou a descer, suave.
Enquanto se movia para baixo, o dono da mala refrescava a mente sonhando com os mi-

264
William R. Silva

lhões em dinheiro que iria adquirir em poucos meses. Mulheres, transatlânticos, bebidas caras,
status e uma vida de luxos. Finalmente será rico! Como nunca pensou um dia ser.
Em menos de um minuto, chegou no fim do percurso. Saiu do elevador e seguiu pelo
estacionamento. Foi serpenteando por entre colunas e automóveis. Pensou estar sozinho, mas
por um breve momento, vislumbrou uma sombra se mover entre três pilares e desaparecer atrás
de um carro. Assustou-se. Logo ignorou o que sentiu. Poderia ter sido uma eventual crise de
consciência. Delírio. Muitas vantagens lhe foram oferecidas, mas a carga de responsabilidades e
riscos que adquiriu em meio a toda essa trama o estava deixando paranoico. Segurou com força
a mala e continuou a ir em sentido a seu carro.
O tempo não pode ser perdido. Seu avião irá decolar em poucas horas. Terá que entregar o
veículo e se dirigir ao aeroporto o mais rápido possível. Sua face se movimentava de uma lado para
outro, atento a cada ruído. Penetrou na curva de coluna, desceu a rampa e prosseguiu entre o amontoado
de motos e veículos estacionados. Enfim, encontrou o admirável automotor: o BMW que Roberto lhe
cedeu por alguns dias. O jovem ricaço sempre se dava ao luxo de possuir mais de três carros, embora
o BMW fosse o seu favorito. Agora este estava em seu poder. Selecionou a chave correta no meio de
várias outras e a introduziu na porta. Não chegou a entrar, uma voz sussurrou por trás dele:
– Onde ele está?
Com o braço parado portando a chave encaixada, o homem com a mala devolveu, alerta:
– Ele quem?
Escutou pisadas fortes produzirem eco no local estreito, o sujeito desconhecido havia se apro-
ximado. O cracker sentiu um frio na barriga, temendo um ataque covarde. Então, o outro respondeu:
– Estou falando do meu sobrinho Roberto... Roberto Albuquerque Tavares. Onde está?
Foi nesse instante que Michael se virou para se defrontar com o suposto investigador.
– Sobrinho? – escancarou os olhos e sua respiração entrecortou – Você é o tal Ernesto?
O homem de olhos azulados causou-lhe pavor quando respondeu:
– Sim! Mas não vim me apresentar. Onde está meu sobrinho?
– Ele já se foi – Michael respondeu, com grosseria. – Não tenho que te dar satisfação de nada.
Quando foi abrir o carro, sentiu as mãos de Ernesto agarrem a parte de trás da gola de sua camisa
e o puxar. Sobressaltado, o rapaz se desprendeu da mala, girou o braço direito e bateu no detentor com o
cotovelo. Sentindo o baque, Ernesto o soltou. Muitas histórias tinha ouvido a respeito de Ernesto. Seus
delírios, atrocidades e loucuras. Roberto costumava comentar mais sobre as façanhas do tio do que de
qualquer outro de sua família. Michael tinha plena consciência de que a presença de Ernesto ali não
simbolizava coisa boa. Ele então deu um passo retrógrado e puxou um pequeno punhal de lâmina afiada
do cinto. Olhando nos olhos do inimigo, ergueu o objeto cortante visando intimidá-lo.
– O que quer de mim?
Ernesto achou hilária a cena do ameaçador com a faca na mão.
– Quero a verdade... – arqueou as sobrancelhas – O que Roberto pretende fazer hoje à
noite? Conte-me tudo!
O homem com a faca agora deu uma passo para frente e deixou a ponta fina rente o nariz
do algoz. Ernesto baixou os olhos na arma branca e zombou:
– Pensa que vai me intimidar com esse brinquedinho? Se me conhecesse, jamais ousaria.
– Você fala demais! – assim, o cracker avançou e tentou furar-lhe a garganta. Ernesto só
precisou mover o pescoço para se proteger.

265
A Coragem

Outra vez, o portador da faca tornou a avançar. Ernesto deu um passo para trás, parecia
divertir-se com as tentativas. Insistente, Michael rodopiou o braço, guiando a lâmina na direção
do estranho homem. Falhou novamente.
– Quer brincar? – o cracker desceu a lâmina na direção do peito do inimigo e o encarou
com um ar intimidador – Acha que não tenho coragem o suficiente?
Assim que Ernesto avançou um passo, a ponta se afundou no tecido de sua blusa. Irônico,
ele incentivou:
– Vamos lá! – o magnetismo horripilante que Ernesto manifestou no olhar o atemorizou – Acabe
logo com isso! – a ousadia deixou Michael sem ação. Aproveitou-se do descuido, com astúcia, Ernesto
agarrou-lhe o punho e torceu o braço. Tudo foi tão rápido, que o jovem não teve tempo de revidar. Ao
ver sua mão ser virada para trás, o corpo de Michael fez o mesmo movimento. A dor sentida foi tão
forte, que a faca se soltou. Um tilintar de metal ressoou pela longo estacionamento.
– Seguranças! Alguém... – o rapaz detido clamou, em voz alta – Ladrão! Um bandido quer
me roubar! Socorro!
Mantendo o controle da situação, Ernesto se abaixou e apanhou o objeto no chão. Uma
vez com o punhal em mãos, laçou o braço no pescoço de Michael. Pressionou a ponta da arma
por debaixo do queixo da vítima e ordenou:
– Conte-me o que o Roberto pretende fazer, quero saber de tudo!
Ernesto o trouxe consigo e se recostou numa das grossas colunas. Observou os entornos e
causou-lhe um pequeno corte na garganta.
– Estou falando sério! Diga logo, seu imbecil!
Sentindo o fio deslizar pela sua pele e desenhar uma nova linha vermelha em seu rosto,
Michael se viu encurralado. Rendido, estudou em volta em busca de uma alma bondosa que
pudesse lhe prestar socorro. Não havia ninguém. Então, falou:
– Está bem! Eu conto... eu conto.

64

O IMPREVISTO

O descuido e a afobação fez com que Roberto se esquecesse de sua pasta de documentos
no assento do Taxi. No momento em que o motorista devolveu-lhe os pertences na entrada do
edifício, saiu como um louco atrás de Michael antes que ele partisse. Os papéis eram importan-
tes para à transação. O cracker teria de viajar com eles para que toda a movimentação financeira
desse certo. Caso contrário, todo o trabalho seria perdido. O elevador demorou tempo demais.
Como um raio, subiu as escadarias. Quase socou a porta do apartamento, mas Michael não es-
tava mais lá. Assim, na esperança de encontrá-lo na garagem do prédio, zarpou para o elevador
que, naquele segundo, tinha acabado de abrir as portas.

266
William R. Silva

Parando no último ponto, Roberto disparou pelo estacionamento. Fazendo o barulho de


seus passos produzirem eco, o homem só faltava pular os carros estacionados para poder chegar
a seu destino mais depressa. A pasta com os documentos estava firme em seus dedos suados.
Conforme passeava pela garagem, esforçava-se para se lembrar de qual era o lugar que vira seu
parceiro de golpes estacionar o BMW pela última vez.
– Será que ele já foi? – sussurrou para si mesmo. Checou as horas no celular, franzindo a
testa – Talvez ainda dê tempo de alcançá-lo.
O som de ronco de motor o fez parar e olhar para o lado. O alarme do prédio também
começou a ressoar, isso acontece sempre que algum condómino se retira da garagem. Será que
o motorista era quem estava procurando? Mais para cima, Roberto observou um grande portão
automático se içar. Um Corola passou por ele, subiu a rampa e foi para a rua. O acesso se fechou.
Não era o cracker.
Seguiu em frente. Já estava perto de onde o colega de trambiques costuma guardar o
veículo, por isso, acelerou-se.
– Michael – chamou, enquanto vagueava em torno dos veículos. – Esqueci de te entregar
alguns documentos. Liguei para você, por que não me atendeu?
Desceu a rampa. Encontrou seu BMW. Fez uma careta quando viu que a chave do veículo
estava encaixada na porta. Por que esse idiota deixou a chave ali? Pensou, irritado.
– Michael... – sua voz fez eco – onde está você? Não temos tempo para brincadeiras.
No instante em que avistou manchas de sangue no piso, começou a andar mais devagar.
Sentiu algo estranho no ar.
– Que droga é essa? – revirou os olhos em busca de alguma coisa suspeita. Foi para trás do
BMW e rodeou dois dos carros que estavam próximos ao seu – Michael... Cadê você?
– Ro... ber...to – uma voz apática o invocou – est...tou aqui.
Seguindo a emissão, Roberto correu em direção a um dos pilares. Quando se deparou com
a horrenda imagem, deixou a pasta despencar. Pondo as mãos sobre a cabeça, bradou:
– Quem fez isso? Quem? – seu estômago começou a embrulhar, vê-lo naquele estado era
demasiado ruim. O homem estirado lembrava fielmente a um personagem de filmes de terror.
Michael, cuja mão direita tentava estancar um violento sangramento na garganta, encontrava-se
encostado na base de concreto. Também havia sangue jorrando do nariz e da boca da vítima.
– Diga! – abaixou-se, ficando de frente para o sujeito esfaqueado – Quem fez isso, Michael?
A boca do cracker se abriu com dificuldade. Depois de expelir mais uma leva de sangue, revelou:
– Seu... ti... tio. Ernes... to... – engasgou. Mais do líquido vermelho escorreu por seu quei-
xo – eu con... tei tudo a ele.
Após ouvir a confissão, Roberto se levantou atordoado.
– Seu imbecil – esbravejou, andando de um lado para outro. Esfregando a testa, fitou-o
colérico – Não era para ter feito isso. E agora? Você estragou tudo. Deveria ter morrido e levado
o segredo com você para a cova – deu um violento chute no para-choque de um dos carros.
O rosto do jovem ferido se contorceu.
– Eu... eu não.... tive escolha... – a hemorragia se intensificou.
Ele tinha ciência de que Ernesto não possuía um caráter exemplar e uma sanidade mental
confiável, mas uma coisa não havia como negar: seu tio possuía obsessão por dogmas religiosos e
nutria grande afeição pelo irmão mais velho. Agora que o aparente lunático descobriu que haviam

267
A Coragem

armado uma cilada para Rogério, não ficará de braços cruzados. O que acontecerá a partir de agora?
Caso seja desmascarado, tudo o que planejou durante tanto tempo será em vão. Não só seus rombos
milionários nas finanças do pai, mas também várias outras falcatruas envolvendo pessoas influen-
tes e remessas para o exterior seriam reveladas. Cairá num efeito dominó. Mas existia uma maneira
de esconder todos os seus crimes. Será um modo desesperado, cruel e de difícil execução, mas
ainda tinha uma chance. Se agir da forma correta, de monstro, poderá se tornar herói. Suas palavras
teriam muito mais valia do que as de Ernesto, mas, para isso, teria que tirar algumas testemunhas
da jogada. Ignorando o homem ensanguentado, agachou-se para recuperar a pasta.
– Vou ter que mudar meus planos a partir de agora – rapidamente, começou a ir em dire-
ção ao seu BMW.
– Rober... to... – Michael tentou gritar para ele – me ajuda... por favor... ajuda.
O homem parou e, num giro, olhou o jovem agonizando pela derradeira vez.
– Sinto muito – um sorriso cruel despontou-lhe dos lábios –, tenho assuntos mais impor-
tantes para tratar. Foi bom trabalhar com você, amigo – prosseguiu os passos. – Adeus!
Desencaixou a chave, abriu a porta do BMW e entrou. Os pneus cantaram quando o ve-
ículo disparou pelas curvas da garagem e seguiu a toda velocidade rumo da saída automático.
– É hora do lobo caçar ovelhas – proferiu, vendo o portão de aço subir. Deverá correr contra o
tempo, ambiciona chegar no local do crime antes do tio e, talvez, antes dos próprios sequestradores.

65

PAIXÃO FATAL

Os postes luminosos cintilavam com a decoração de Natal. Cada um dos coqueiros enfei-
tados também alumiavam todo o percurso. Era, de longe, uma das noites mais maravilhosas dos
últimos onze meses. Maria do Rosário, enquanto transitava pela estrada luzente, agarrou seu cader-
no forçando-o contra o busto e verificou a alça de sua mochila estampada presa às costas. Ao sair
da faculdade, quis dar uma conferida para ver como estava a praça. O lugar a fazia se sentir feliz.
Sempre dedicou algumas de suas horas noturnas para passear nas redondezas nessa época do ano.
Suspendeu os passos assim que avistou o lindo trenó vermelho cujas nove renas se liga-
vam através das cordas presas ao meio de transporte. Todas estavam paralisadas com as patas
dianteiras no ar. O que mais lhe chamou atenção fora o focinho de um dos animais que emitia
uma luz vermelha intermitente. O grande Papai Noel de plástico sentado no transporte movia as
sobrancelhas e a barba postiça como se simulasse um comando para que os animais levantassem
voo e seguissem para o céu. Os seres fictícios lhe devolviam boas recordações.
Ela, há muito tempo, convenceu-se de que tudo não se passava de lendas, mas a sensação
que a acometia na infância quando ouvia aquelas histórias fantasiosas ainda parecia presente em
seu coração. Como era legal ser criança! Refletiu. Nessa época tudo parecia melhor, as pessoas,

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William R. Silva

o mundo... o amor. Suspirou angustiadamente quando se lembrou de tal sentimento.


Como esse ano pode ter sido tão agitado? Sem dúvida, os últimos meses foram os momen-
tos mais especiais, surpreendentes e complicados de toda sua vida. Jamais sonhou em conviver
com tantos acontecimentos simultâneos. O destino enlaçou a ela, Ana Júlia e Dionísio de um
modo difícil de desatar. Faz dias que Ana não entra em contato. Sua amiga queria ficar longe de
tudo por uns dias e foi-se para a casa dos tios. Era melhor assim! Maria ainda se sentia confusa
sobre a relação dela com Dionísio.
Maria se desligou dos seus pensamentos íntimos e voltou a se concentrar no ambiente
quando viu crianças que correram e passaram por ela. A mulher girou o corpo. Observou o
grupo de peraltas que pulava em volta do trenó e sorriu. Retornou a sua posição e prosseguiu
com o passeio. Seus olhos se espicharam ao se depararem com um glamoroso anjo portando sua
grande corneta presa à cabeça. A escultura celeste era feita de fios de luzes verdes. Havia outra
escultura idêntica a poucos metros da primeira. Sentiu vontade de se aproximar, assim fez. Ficou
por um breve segundo admirando as asas incandescentes.
De repetente, faíscas se acenderam por cima de sua cabeça e, em milésimos de segundos,
as fagulhas começaram a correr por entre os fios e galhos causando uma fantástica mistura de
cores luminosas. Maria ergueu a cabeça e se sentiu enfeitiçada pelo que assistia. Pessoas próxi-
mas ao local filmavam e comentavam entusiasmadas conforme se deparavam com a cena. Que-
ria que Dionísio estivesse ali. Sentiu-se constrangida consigo mesma quando tal pensamento a
acometeu. De certa forma, não era de todo mau. Isso acontecia com frequência. A saudade era
cada vez mais forte, embora não quisesse se convencer disso.
Deu sequência ao passeio. Na medida em que andava, ficava ainda mais contente com a
magia da ornamentação natalina. Começou a estudar a movimentação humana e achar graça do
que presenciava. Duas moças faziam poses no segundo em que um rapaz lhes tirava fotogra-
fias. No minúsculo lago, quatro jatos cuspiam água para cima. Uma árvore de natal brilhava no
centro da superfície aquática. O senhor na barraquinha de pipoca entregava a mercadoria a uma
garotinha. Os pais da criança estavam de pé atrás dela. Maria verificou as horas no relógio de
seu celular. Era tarde, logo sua mãe entraria em contado para saber notícias suas. O modo como
sua família a trata a irrita profundamente, apesar de amá-los mais que tudo na vida. Mas não era
provável que ali houvesse perigo, muitos visitantes eram vistos dando voltas na praça. Concluiu
que poderia circular pelo local por mais algum tempo.
– Maria! – uma voz sorrateira disparou bem atrás dela.
Ela cerrou os braços em seu caderno e se enrijeceu. Embora não existissem motivos para
se preocupar, aquele timbre lhe causou arrepios. Lentamente, ela se virou e deu de cara com um
homem parado, logo abaixo do jogo de luzes.
Maria fingiu gostar de tê-lo visto.
– João Sérgio, que bom te ver! Há quanto tempo está me seguindo?
Esperou um casal de idosos que estava por perto se afastar, uma mulher também passou
andando na frente dos dois e sumiu de vista. Depois de dar alguns passos e parar diante da jo-
vem, o homem disse:
– Eu tinha certeza que te veria aqui, Maria – sorriu. – Lembra quando eu te trazia aqui
para vermos o festival de luzes?
Em verdade, ela havia se esquecido de tudo o que a fazia se ligar a João Sérgio, mas pare-

269
A Coragem

ce que o rapaz se negava a todo custo a se convencer disso. Maria não se lembrava e nem fazia
questão de lembrar. Por educação, respondeu:
– Isso faz muito tempo, João!
Ele tentou esconder o sentimento de decepção que lhe preencheu o semblante.
– João? – indagou, cabisbaixo – Não me chama mais de Jó.
Os lábios da jovem se pressionaram de aflição. Ficou em silêncio.
– Queria ter uma conversa com você – João declarou. – Por favor, dê-me essa honra. Em
nome de tudo de bom que vivemos juntos. Prometo que será a última vez.
Ela o olhou nos olhos procurando sinceridade nas palavras ditas por ele.
– Jura que, depois disso, me deixará em paz?
Levantou o braço direito e segurou a mão da moça. Então, deu um sorriso e respondeu:
– Sim, Maria. Eu prometo! – a mão dele se soltou – Vem comigo, eu te levo para casa.
Assim conversamos melhor. Pode ser?
Maria concordou.
Seus pais e seu irmão mais velho a proibiram de ter contato com o referido marginal.
E por que haveriam eles de lhe negar alguma coisa? Já era adulta e sabia se defender sozinha.
Terão de entender isso de uma vez por todas. Estava farta do zelo exagerado que seus familiares
tinham com ela. Que mal o homem poderia lhe fazer? Não viu risco algum em aceitar o convite.
Os dois caminharam até onde se encontrava o Vectra estacionado. Entraram no veículo e
seguiram para longe da praça.
– O que queria conversar comigo? – quis saber Maria. Ela estudou o percurso do carro
para averiguar se estavam mesmo seguindo pelo caminho de sua casa.
O Vectra começou a descer uma extensa rua. João Sérgio a encarou e respondeu:
– Estou te levando para casa! Esqueceu? Lá conversaremos.
Depois de um tempo, já estavam próximos do lugar. Maria se viu mais aliviada por isso.
O medo de que algo pudesse lhe ocorrer era fora de cogitação. A única vontade que nutria era
o desejo de se afastar do homem obsessivo o mais rápido possível. Seus dedos se moviam por
causa da ansiedade que a incomodava. Queria descer logo. Encontravam-se três quarteirões
abaixo quando o motorista freou. Por que ele parou ali? João sabia que aquela não era a rua onde
ela morava. Fez isso de propósito. Relutante, Maria avisou:
– Minha casa não é aqui. Você errou de rua!
O homem na direção tornou a fitá-la, amistosamente.
– Eu sei. Mas acho melhor que seus familiares não nos vejam juntos.
Ela apanhou o caderno e pegou sua bolsa no banco traseiro.
– Fale logo o que quer dizer! Já está tarde, preciso ir.
João Sérgio admirou a fisionomia feminina da jovem que há muitos anos lhe jurara amor eterno.
Sonhava em tê-la em seus braços novamente. Deu um ligeiro suspiro e iniciou com voz branda:
– Hoje irei fazer algo que irá mudar minha vida – viu que a moça começou a lhe ceder
atenção. Ele continuou – Terei um emprego digno, uma vida honesta e justa. Irei largar de vez
essa vida criminosa.
Os olhos dela faiscaram de alegria.
– Que bom! Eu sabia que Deus tinha um bom plano para sua vida!
Era algo incômodo vê-la e não poder senti-la. Olhar seus lábios e não poder beijá-los.

270
William R. Silva

Queria possuí-la. Passar seus braços em volta dela. “Por que esse maldito amor não sai de
mim?”, João Sérgio já estava farto da carga desse desejo, quase a enlouquecer. O ar lhe faltou,
sua pulsação havia acelerado. Os meses se passaram, mas a paixão que sentia o destruía por
dentro. Dia e noite, sentia como se uma faca lhe dilacerasse o peito.
– Esquece aquele idiota do Dionísio – a voz dele saiu com um leve tom de desespero –,
ele não é homem para você. Fica comigo!
Maria imediatamente colocou as mãos sobre a cabeça e esfregou os cabelos.
– Meu Deus! – ela reclamou, de cabeça baixa – Você nunca desiste?
Ele a segurou pelo braço. Quando Maria ergueu os olhos, observou uma expressão dia-
bólica em João Sérgio.
– Aquele cara é um idiota! – João bradou – Eu fiquei cinco anos esperando para poder te
encontrar de novo. Não é justo me trocar por aquele ex-gordo imbecil.
Maria constatou algo de insano na atitude dele.
– Você está ficando louco, Jó! Isso que você sente não é amor. Você está doente. – mos-
trou-se bastante atordoada.
Não tinha notado a alteração de seu estado emocional, por isso, simulou estar calmo para
não deixá-la atemorizada. O homem retirou a mão dos braços da moça e inquiriu:
– Um dia você me amou também, não foi?
Ela balançou a cabeça. Receosa, esclareceu:
– Nunca amei você de verdade – antes mesmo de terminar o que disse, arrependeu-se das
próprias palavras. – O que rolou entre nós... – sentiu certo pesar, mas teria de ir até o fim – foi
um namorico de adolescente. Coisa de menina. Só isso!
Um paulada que acertou em cheio seu crânio. Foi assim que João Sérgio se sentiu após ouvir
a confissão. Dizem que a verdade machuca, mas o que o incomodou era uma dor sobre-humana. A
expressão do homem mudou completamente e uma carga de ira o dominou por completo.
– E aquele babaca – gritou –, o que sente por ele?
Maria do Rosário recuou, apavorada. Sempre soube que era um homem extremamente
agressivo, mas ele nunca agiu assim na presença dela. Pelo contrário, na época em que ficavam
juntos, apresentava-se dócil e carinhoso.
– Já chega, João! – ela abriu a porta do carro – Vou embora!
João Sérgio a agarrou no pulso com firmeza, impedindo-a de sair.
– Me deixa! – Maria saltou para fora, desprendendo-se do homem agressivo.
Movido por impulso, João Sérgio puxou a trava, saiu do carro e correu atrás da moça.
Maria não se virou para trás, entretanto sabia que estava sendo perseguida.
– Mari, me espera! – ele gritou, enquanto a via fugir.
– Você enlouqueceu, Jó – as pisadas da mulher se tornaram mais fortes. – Deixe-me em paz!
No fim da rua, tinha um bar e pessoas conversavam e bebiam lá dentro. Suas pernas tremeram,
ela observou que, por causa do nervosismo, estava com problemas para respirar. O coração aumen-
tou a velocidade de seus batimentos. Maria só precisava correr o mais que pudesse e estaria salva. Ou
gritar. Mas houve um imprevisto, os passos do seu perseguidor eram mais ágeis. Enfim, João a al-
cançou e puxou com força a alça de sua bolsa. Depois, agarrou-a pelo braço. O caderno caiu no chão
de asfalto e Maria o encarou com os olhos escancarados. O rosto antes moreno, tornou-se pálido.
Ela tentou puxar a mochila de volta, mas não adiantou. Teve esperança de que alguém

271
A Coragem

viesse para socorrê-la. Ninguém apareceu. Apenas um automóvel trafegou nas proximidades.
– Eu vou gritar! – ela ameaçou, com uma voz pávida.
O bandido assumiu um semblante nefasto. Numa velocidade a qual nem mesmo ele con-
seguiu calcular, seu braço direito se ergueu e uma pancada atingiu em cheio a nuca da mulher
detida. O mundo girou diante dos olhos de Maria do Rosário. Ela então sentiu como se tivesse
perdido a noção de realidade, estonteou e perdeu o equilíbrio. Antes de a vítima cair desmaiada
no asfalto, João a segurou e a arrastou até o carro. Abriu rapidamente a porta de trás e a arremes-
sou para dentro. Fechou a porta, correu para o lado do motorista e entrou no Vectra. Conectou a
chave na ignição e saiu cantando pneus.
– Não era para ser assim! – sussurrou, ao vê-la inconsciente pelo retrovisor dianteiro –
Mas foi você quem escolheu.
O condutor em fuga olhou de relance no retrovisor, constatou que havia alguns homens
correndo atrás do seu carro. Acelerou e deixou as testemunhas para trás. Virou à direita e dis-
parou. O único perigo era o fato de alguém ter anotado sua placa, o que era meio difícil. Mas,
há essas horas, muitos já saberiam de seu sequestro. Poderia ter colocado tudo a perder. Não
se importou. Se pudesse, correria com mais velocidade, mas poderia ser pego pela polícia. O
telefone em seu bolso tocou. Ele se certificou de que não estava mais sendo seguido, tirou uma
das mãos do volante e atendeu:
– Diga!
– Estamos prestes a concluir o plano – falou Picolé, do outro lado da linha –, fique atento,
mano! Fique atento!
– Pode deixar! – desligou o aparelho e o lançou no assento a seu lado. Ele olhou rapida-
mente para a mulher e acelerou bruscamente. O corpo amolecido tombou.
– Já estou indo, mas antes... preciso amarrar essa mocinha e colocá-la no porta-malas –
sorriu, maliciosamente.

66

JURAMENTO SAGRADO

Tentou de diversas maneiras descobrir o paradeiro do antigo pupilo. Só que o jogo virou,
Ernesto o encontrou primeiro. Em verdade, nunca o temeu, mas era necessário ter cautela ao li-
dar com o estranho homem. Nélson Átila tem uma perfeita compreensão das demências do velho
discípulo. O fanatismo religioso que ele nutre e sua errônea forma de temer o poder de Deus fora
a saída que escolheu para se proteger de um possível ataque traiçoeiro. Marcou de se reunir com
Ernesto na larga escadaria de uma Igreja. Sabia que seu inimigo declarado jamais tentaria algo
contra ele diante de um lugar que considera sagrado.
O templo, assim como todas as construções importantes da cidade, também estava com

272
William R. Silva

decorações natalinas. As três torres, as portas e janelas em forma de arcos eram o que mais lem-
brava a catedral do Padre Jerônimo. Levou alguns instantes para observar o vai e vem de fiéis.
Muitos deles portavam terços, bíblias e rosas.
Subiu mais três degraus, virou-se e se sentou no piso de pedra. Dezembro costuma ser um
mês encantador para muitos, mas para Nélson, trazia-lhe lembranças melancólicas de um passa-
do remoto. Poupou-se de pensamentos tristes. Tornou a se centrar em seu objetivo. Horas antes,
Ernesto entrou em contato, disse que precisava de sua ajuda para um assunto bastante urgente.
Caso de vida e morte, afirmara ele. Não ficou curioso sobre como o antigo e desequilibrado
pupilo descobrira seu número de telefone.
Ele observou a movimentação de veículos e habitantes. Milhares de minúsculos pontos de
luz se espalhavam no horizonte colorindo a visão noturna do bairro. Abrupto, levantou-se assim
que viu um estranho, que o reconheceu logo de início, se aproximar. Seus olhos e os de Ernesto
se cruzaram quando o viu pisar levemente degrau por degrau. Nélson manteve-se de pé diante
das três torres reluzente, esperando-o sem demonstrar reação.
Ernesto finalmente pôs os pés no último degrau que os separava e parou diante do ve-
lho mestre. Sem nada dizer, observou o homem de cabelos longos. Alguns anos transcorreram
desde que se viram pela derradeira vez. Por isso, estudou alguns sinais de envelhecimento na
fisionomia de Átila, que já começava a sofrer os primeiros encargos da idade. Será que continua
sendo o lutador habilidoso que aprendeu a admirar? Agora não era momento para tirar a prova.
Os dois continuaram a se encarar, silenciosos. O semblante de Ernesto guardava um misto de
saudosismo e crueldade. Seu traje era composto por uma calça e uma camisa escura que lhe
dava um tom ainda mais tétrico. Assim, o cenho do lunático franziu e seus olhos azuis cintilaram
quando ele resolveu falar:
– Lembra que um dia te disse que sairia daquela maldita prisão? – um sorriso brotou em
seus lábios.
Átila lançou-lhe um olhar desdenhoso.
– É para isso que me chamou até aqui?
A face de Ernesto mudou de expressão.
– Não – mordeu os lábios, pensativo. – Quero lhe propor uma trégua. Vamos esquecer
nossas diferenças, pelo menos até conseguirmos fazer o que pretendo.
– Como soube que eu estava na capital? – Nélson franziu a testa.
O ex-pupilo sorriu para ele.
– Eu sei de tudo, sou quase onisciente – gargalhou.
Três moças e dois meninos passaram perto deles e os fizeram se calar. O grupo desceu a
escadaria e seguiu pela rua. Novamente a sós, Átila indagou:
– Sem rodeios, fale logo o que está acontecendo?
– Meu irmão Rogério... – Ernesto suspirou – Ele será sequestrado e vão tentar assassiná-lo
daqui há poucas horas. Sei que você e ele são bons amigos. Você é o único com habilidades
suficientes para me ajudar a salvá-lo.
– Impossível – volveu Átila. – Rogério está rodeado de seguranças, não será tão fácil
sequestrá-lo assim.
O homem de vestes escuras discordou:
– Você me conhece e sabe que as duas coisas que mais valorizo no mundo são minha

273
A Coragem

família e minha fé. Se não percebeu – abriu os braços –, estamos em uma igreja. O que preciso
fazer para confiar em mim?
Depois de indicar a entrada do templo, Nélson o mirou.
– Quero que jure em nome de Deus! Enquanto não fizer isto, nada que disser será válido
– se havia melhor maneira de fazer Ernesto dizer a verdade, não conhecia. Caso sua estratégia
não funcionasse, estaria convicto de que corria perigo.
Ernesto se irou:
– Nessahen, não temos tempo para isso!
Nélson persistiu:
– Entre na igreja e se ajoelhe! Prometa no altar que não tentará nada contra mim durante
os próximos cinco dias. Muito menos irá armar ciladas.
Enfim, Ernesto ficou impaciente.
– Está bem! Farei o que você quer, mas quero que me dê sua palavra de que não chamará
a polícia. Resolveremos sozinhos o caso.
– Seja como quiser! – Atila aceitou.

67

A TRÉGUA

Sua irmã e Maria Clara terem viajado para outro estado foi a melhor coisa que lhe ocor-
reu. Isso deixou Dionísio bem mais tranquilo para ruminar os episódios desagradáveis que o
acometeram semanas antes. Elas se hospedaram no apartamento de uma amiga de sua mãe. Irão
passar os últimos dias do ano nas praias do Rio de Janeiro. Jamais se perdoaria se alguém fizesse
mal a elas. Longe de casa, estavam mais seguras. Poderá até ser um temor sem fontes reais. Não
importa. Se não fosse por sua perícia, teria sido morto na porta de casa. Cuidar de si mesmo
era uma tarefa menos árdua do que zelar pela proteção de duas mulheres, sendo uma dela uma
criança que de nada compreenderia de toda a situação.
Outro acesso de culpa quis pesar sobre suas costas. Será que sua volta não estaria trazen-
do problemas para sua família? Mal teve oportunidade de se desculpar com Paulo e mais uma
perturbação o pegava desprevenido. O surgimento de Ernesto, a vinda de seu pai para a cidade.
O que mais o futuro lhe reservava?
Tudo mudou, em especial os problemas que agora tem de enfrentar. Se antes tinha de lidar
com a constante ameaça de humilhações e agressões físicas, dessa vez era obrigado a proteger a
própria vida. Conviver com suas próprias fraquezas era bem mais fácil quando seus reais inimi-
gos não eram assassinos perigosos. Encontrava-se paranoico. Qualquer ruído ou movimentação
diferente no lado de fora era motivo para deixá-lo em alerta. As portas de sua casa estavam todas
trancadas. O calibre vinte e dois não saía de sua cintura, nem mesmo quando dormia.

274
William R. Silva

Seus inimigos se transformaram em monstros ardilosos, era necessário preparar corpo e


mente para um possível confronto. Intensificou seus treinos na academia. Por já ter tirado férias
do seu curso de pós graduação, além do trabalho, todo o tempo disponível é gasto aprimorando
seu condicionamento físico. Adquiriu um saco de pancadas e o fixou no teto da garagem. Dia
após dia, dá socos e pontapés no pesado objeto cilíndrico.
Era isto o que fazia nesse exato momento. Cada pancada acompanhava seus pensamentos
aflitivos. Seus pés empurravam com força o saco de boxe, fazendo-o se mover rapidamente de
um lado a outro. Depois de três chutes em sequência, girou o calcanhar, levantou a perna direita,
dobrou o joelho e bateu com potência no tecido. O saco de pancadas por pouco não se desafixou do
gancho. Sentiu o suor quente escorregar em sua pele e um gosto salgado penetrar em seus lábios.
Estabeleceu outra posição de luta e preparou-se para outra sessão de golpes. Subiu a perna, mas
antes que pudesse concluir a pancada, o ruído da campainha disparou causando eco.
Quem seria a essas horas? O estado de alerta atiçou seus batimentos. O toque da campainha res-
soou por mais duas vezes. Sem remover o suor que deslizava-lhe sobre o rosto, alcançou sua camiseta
estendida no varal. Enquanto a vestia, avançou para atender o visitante. Parou ante a porta. Deu uma dis-
creta conferida no coldre e o escondeu por entre a camisa. Com a mão presa ao cabo da arma, agachou-
se e estreitou a visão na brecha para ver quem era. Respirou com mais suavidade assim que enxergou a
pessoa que o aguardava no outro lado do muro. Era seu pai! Mal pode acreditar. Sua felicidade foi tão
intensa que todas as suas preocupações, medos e desconfianças pareceram evaporar.
Ele imediatamente abriu a porta e correu para saudá-lo. Nélson Átila trajava uma roupa
folgada composta por uma camisa de mangas compridas e uma calça social. Embora também
estivesse satisfeito por rever o filho, o homem apenas o encarou, sem palavras. Um meio sorriso
despontou em seus lábios. Dionísio sentiu vontade de lhe dar um abraço, mas a postura severa
do pai o neutralizou. Assim, parou diante dele e disse:
– Senti sua falta.
O rosto de Átila permaneceu inalterado. Dionísio previu alguma coisa estranha. Só então
concluiu que o homem não estava para boas-vindas. Apreensivo, perguntou:
– Está acontecendo alguma coisa?
Antes de obter a resposta, Dionísio sentiu seu sangue subir no momento em que avistou
uma sombra vir em direção aos dois. Foi então que viu que mais alguém fazia companhia ao pai.
Quando seus olhos se abriram espantados, Átila tentou acalmá-lo:
– Não tema, filho! Ele está aqui para nos ajudar.
O filho de Átila ficou imóvel, na espera de ver as características da tenebrosa figura que
emergiu do nada. Em meio à luz noturna, iluminou-se uma face bronzeada cujos olhos azuis
emitiam uma aura sombria. Dionísio reconheceu aquela fisionomia de imediato. No reflexo do
susto, seus músculos se retesaram, preparando-se para um possível ataque.
– É o Ernesto? – por um momento, questionou se aquilo não seria um pesadelo.
Ernesto sorriu para o jovem desconfiado.
– Bom te ver, querido principiante.
Ele fitou o pai, exigindo uma explicação lógica para o que via.
– Por que esse homem está com você? Por acaso se esqueceu de quem ele é?
Os fios negros se moveram na testa de Átila com a força da brisa que soprou em seu rosto.
Ele removeu parte do seus cabelos dos lábios finos e franziu o cenho.

275
A Coragem

– Não faça perguntas! – ele o mirou, severo – Escute o que tenho a dizer.
O mais moço dos três fitou a face de Ernesto, intimidando-o.
– Esse homem quer matar você, pai. Como pode se aliar a esse demente?
Ernesto fingiu não se importar com a grosseria.
– Não irei pedir para confiar nele – Nélson o repreendeu –, mas confie em mim. Preciso
que nos ajude! Há uma pessoa correndo risco de morte.
O grande respeito e temor que Dionísio nutria pelo pai quase se esvaiu naquele instante.
– E por que eu deveria? – revidou, estarrecido – Esse demente é perigoso! Contratou pes-
soas para matar você. Ele quer nos destruir. O que significa isso, pai? Por acaso perdeu o juízo?
Ignorando a postura recusante do desafeto, Ernesto adicionou:
– Você conhece essa região melhor do que nós dois, queremos que nos guie. O local que
teremos de ir é um pouco distante daqui.
– Escute o que ele diz, filho – seu pai também insistiu. – Você precisa nos ajudar a encontrar
o caminho mais rápido. Sem sua ajuda, é bem provável que teremos dificuldade de achar o lugar.
O rapaz deu dois passos e parou com o rosto quase junto ao de Ernesto.
– Você e seu sobrinho são da mesma laia, não confio em você – virou-se para o pai. –
Senhor Nessahen, mestre primeiro do quartel – Átila ficou surpreso ao vê-lo o chamar pelo co-
dinome –, não compactuo com assassinos. Se quer se unir a esse insano, não me envolva nisso.
Caminhou de volta para entrada de sua casa. Nélson Átila confessou, antes que ele tor-
nasse a abrir a porta:
– Roberto, João Sérgio e sua gangue irão sequestrar seu patrão Rogério. Planejam acabar
com a vida dele antes do amanhecer.
Um mistura de incredulidade e espanto se espalhou no semblante de Dionísio quando ele
se voltou para o pai.
– O quê?

68

SOB PRESSÃO

Enquanto dirigia seu Land Rover, Rogério Tavares proseava com sua filha através do
dispositivo de bluethoot.
– Papi, onde você esteve a noite toda?
O homem na direção deu um sorriso afetuoso, como se estivesse frente a frente com a adoles-
cente. Deslizou um pouco mais para o canto e parou depois de avistar o sinalizador ficar vermelho.
– Minha princesa, todos os finais de ano, eu me reúno com vários empresários para dis-
cutir sobre negócios, trocar experiências – ele seguiu com o diálogo. – Faço isso há muitas
décadas, bem antes de você nascer. Esqueceu?

276
William R. Silva

O risinho de Rosane entoou pelo alto-falante. Então, respondeu:


– É mesmo! Tinha me esquecido. Mas vê se não demora, estou aqui na internet estudando
um bom lugar para eu, você e a mamãe passarmos o fim de ano. Você me prometeu que esse ano
iria me deixar escolher. Lembra?
O sinal abriu. Após o ronco do motor, tornou a percorrer os acessos da cidade. Ultrapas-
sou um ônibus, ligou a seta e desceu à esquerda. Só depois, voltou a falar:
– Eu sei disso, Rosane! – tornou a rir.
Saiu dos limites da cidade vizinha e conquistou o trecho da rodovia.
– Estou te esperando, papito! – a voz de Rosane assumiu um timbre manhoso – Vê-se não
demora. Vou ficar acordada até você chegar.
Passou a marcha, aumentou a velocidade e disse:
– Está bem, meu anjo! Nos vemos mais tarde.
A voz da moça chiou alegre.
– Até logo, então! Amo você!
O adaptador soou um bip, sinalizando o encerramento da chamada. Rogério se sentiu
contente por ouvir aquela linda voz. O amor que Rosane tinha por ele lhe fazia bem. Sem querer,
surgiu um paralelo em sua mente, fazendo uma sutil comparação entre a filha e Roberto. Quanta
diferença havia entre os dois? Se o seu unigênito tivesse pelo menos um terço da personalidade
dócil da menina, seria um ser humano infinitamente melhor.
Pensar nisso o deixava desconsertado. Deseja ardentemente que Roberto mude seu jeito
de ser, mas isso é um desejo quase nulo. Evitou se lastimar por isso. Mudou o foco de seus
pensamentos para outro assunto qualquer. A noite fora bastante gratificante com seus colegas
empreendedores, não desejava se sentir mal.
Levou o dedo ao display e subiu o volume da música. O som de Jazz apaziguou seus
sentidos. Em razão disso, o ar escapou de seus pulmões de modo mais prazeroso e a viagem
ficou mais agradável. Não via a hora de chegar em seu lar. Conforme o Land Rover ia ganhando
distância, Rogério confortavelmente movia a cabeça de um lado para outro no ritmo da melodia.
Seguiria assim por todo o percurso, mas sua situação de regozijo não durou. Ao visualizar
algo suspeito na rodovia, a descontração dera lugar a uma curiosidade súbita. Então levantou as
sobrancelhas e estreitou a visão. Fixou, longínqua, uma mancha embaçada no asfalto. Queria
saber do que se tratava, por isso, foi diminuindo a velocidade. Bastou menos de um quilômetro
para que a mancha adquirisse formas e se transformasse ante a visão do motorista. Rogério
freou no susto, os faróis haviam tornado visível um tronco de árvore caído sobre a pista. Seu
carro deslizou vagamente até que as rodas cessaram a rotação. Observou a madeira seca trancar
a passagem e resmungou:
– Como essa coisa veio parar aqui?
Ele abriu a porta e saiu. Poderia aguardar mais motoristas para ajudá-lo a remover o em-
pecilho, entretanto; não queria esperar. Dobrou os joelhos, abraçou o tronco e o ergueu. Gemeu
quando arremessou o pedaço de lenha no matagal.
O terno que trajava desarrumou-se. Esticou as abas e dobrou o colarinho. Quando se mo-
veu para retornar ao carro, seu corpo congelou de susto. Tinha dado de frente com dois homens
estranhos. Quando e de onde eles surgiram? O modo como os dois se encontravam diante do
Land Rover já denotava que não estavam ali para brincadeiras. Sem nada a dizer, estudou os des-

277
A Coragem

conhecidos de cima a baixo. Um era alto, magro e o outro tinha uma estatura baixa e um pouco
roliça. Os dois suspeitos não foram parar ali por meio de truques mágicos. Era óbvio que esta-
vam escondidos por detrás das árvores do acostamento. Foi induzido a cair numa armadilha, era
isso o que dizia sua voz interior. Firme e encarando cada um deles nos olhos, Rogério indagou:
– Quem são vocês?
O mais magro dos dois escancarou um sorriso.
– Olá, senhor! Será que poderíamos ter uma conversa?
O outro, um homem rechonchudo, conservava um rosto menos aterrorizante que o do
companheiro, embora também desagradável. Este abriu o lado do condutor e fez um gesto para
que Rogério adentrasse no próprio carro.
– Entre, amigo! – um contentamento cínico despontou no semblante do estranho – Vamos
dar uma volta.
O olhar de Rogério saltou da porta aberta e se centrou no homem alto.
– O que o faz pensar que aceitarei um passeio com vocês?
O desconhecido segurou a parte inferior de sua camisa e puxou o tecido para cima. Por
baixo de suas vestes, enganchado a sua cinta, Rogério conseguiu vislumbrar com clareza o cabo
de um revólver. O brilho do metal deixou-o boquiaberto. Depois disso, o bandido deu uma
risadinha e respondeu:
– Você não tem escolha.

69

O CATIVO

Sobre a mira de armas, o motorista seguia o itinerário forçado. Assim que se viu ameaçado
de morte, Rogério compreendeu que cometera um grave erro ao descumprir o conselho de Nélson
Átila. Sua escolta de seguranças esteve o tempo inteiro consigo durante a semana, só que esta noite,
resolveu dispensá-los. Pelo menos uma vez no ano, não queria ser o famoso banqueiro das colunas
dos periódicos de economia e revistas de finanças. Almejava esquecer de suas responsabilidades,
problemas e encargos que seus negócios o obrigava a arcar. Sentir-se um homem normal, do tipo
de vida simples, que se assenta com os amigos numa tarde de sexta-feira para consumir bebidas e
jogar conversa fora. Isso era tudo que desejava ser, nem que fosse por poucas horas.
Entretanto, sua vontade de liberdade transformou-se numa prisão temporária. Tinha que
pensar numa forma de escapar dos captores. Quanto mais o tempo corria, mais seu destino se tor-
nava incerto. Talvez um diálogo com os sequestradores poderia surtir efeito. Procurou algo de útil
para lhes dizer, mas nenhuma ideia pairou por sua mente. De relance, mirou o retrovisor central.
Viu que o rosto monstruoso do homem no banco de trás o fitava a todo momento, já o outro no lado
do carona limitava-se a manusear o cabo de seu revólver. Os bandidos quase não se pronunciavam

278
William R. Silva

e isso o perturbava. A única coisa que ouvia dos dois era a direção que deveria seguir.
Diante disso, só lhe restava pensar numa fuga. Mas como? Gritar por socorro? Frear o ve-
ículo bruscamente? Provocar um acidente? Qualquer que fosse a estratégia, sua vida estaria em
risco. Vez ou outra, o sentimento de medo o assolava, mas não o bastante para desestabilizá-lo.
Domando os próprios temores, o refém lançou um olhar rápido no retrovisor central e fitou o
sequestrador no banco de trás.
– Para onde estão me levando?
O bandido ao seu lado apontou o cano do revólver na direção do condutor e bradou:
– Cale sua boca, velhote! Apenas dirija.
Sentiu algo errado no ar. Existia uma pergunta que necessitava ser respondida. Como é
que descobriram que, nesse mesmo dia, estaria desprotegido? Com certeza, os dois homens já
tinham ciência de quando e onde encontrá-lo. Não teve dúvidas de que alguém muito próximo
serviu-lhes de informante. Mas quem seria o traidor? Um sócio? Um concorrente?
– Vocês acham que irão sair ilesos disso? – Rogério os desafiou – Por acaso sabem quem sou eu?
Os dentes claros do homem negro cintilaram por entre seus lábios quando ele sorriu. Em
seguida, respondeu:
– Se não soubéssemos quem você é, não estaríamos te sequestrando – ambos os marginais
dispararam uma gargalhada.
O Land Rover ia percorrendo a rodovia. Os três ocupantes do carro se calaram quando
avistaram um caminhão quilômetros à frente. Uma espécie de surto repentino se apoderou da
mente de Rogério enquanto ele avistava o meio de transporte cada vez mais próximo. E se os
fizesse colidir com o veículo de grande porte? De uma vez por todas, daria fim a esse inferno!
Morreriam todos de uma vez. Ele e os malditos que o ameaçavam. A ideia se mostrou absurda,
por isso, tornou a deixar a razão guiar seus sentidos. Se viu numa distância segura, deu seta,
girou para direita e forçou o pé no pedal. O automóvel disparou como uma flecha ao lado do
caminhão, ultrapassou-o e retornou para a pista. O caminhão encolheu pelo retrovisor até que se
transformou em um ponto luminoso e desapareceu de sua visão.
– Logo verá uma estrada a sua direita! – um dos homens deu o comando – É para lá que deverá ir.
Nem se deu ao trabalho de descobrir de quem viera a ordem. Reduziu. Sem pestanejar, suas
mãos guiaram o volante na direção que o homem lhe obrigou. Entraram numa estrada de terra com
iluminação escassa. Aspirou o ar empoeirado enquanto avançava para não sabia onde. O empresário
decidiu que, de agora em diante, teria ainda mais calma. Estava acostumado a lidar com momentos
de pressão. Controlar uma corporação bilionária proporcionou-lhe tais vantagens emocionais. Por
mais que a situação estivesse ruim, deveria centrar-se no fator principal: ainda estava vivo e inteiro.
Enquanto fosse essa a sua realidade, continuaria havendo uma saída. Buscando força interior, lem-
brou-se do rosto da filha adolescente. Jurou para si mesmo que voltaria a vê-la antes do amanhecer.
O celular de um dos passageiros apitou. O raptor no banco traseiro então ergueu o re-
vólver e verificou a tela do aparelho. Pelo espelho, Rogério pode notar que o homem lera uma
mensagem qualquer. O bandido falou para seu ajudante:
– Eles já estão a caminho – reparou na via despavimentada.
Eles? O motorista sentiu um suor frio escorrer pela pele. Quer dizer que havia outros?
Quantos homens foram contratados para o seu suposto sequestro? Rogério outra vez acessou a
memória para pensar se, em algum momento, teria feito inimigos. Talvez não. Tinha dinheiro,

279
A Coragem

fama e prestígio. Motivos não faltavam para que pessoas ficassem no seu encalço. O sucesso
tem seu preço! Suspirou aflito quando se lembrou da velha frase dita pelo seu falecido pai. A
imagem de Ernesto veio de súbito em sua mente. Teria sido seu irmão?
O outro sequestrador encarou Rogério com um ar irônico e, ao mesmo tempo, intimidador.
– Preste atenção nessa estrada. Esse lugar não te lembra nada?
Realmente, o local por onde estavam trafegando era meio familiar. Onde estava? Onde?
Tinha certeza absoluta que já passara ali por diversas vezes. O que importa? A verdade é que
estava sendo levado para um cativeiro. Apesar de saber que não ia funcionar, tentou suborná-los:
– O que vocês querem, dinheiro? Eu posso lhes dar tanto quanto quiserem.
Ambos os sequestradores trocaram olhares.
– É melhor não trocar o certo pelo duvidoso – disse um dos raptores. – Você é um ban-
queiro, meu amigo. Homens como você são tão bons com dinheiro quanto o são ao lidar com
pessoas. Não iremos cair na sua lábia.
Quando pequenas cercas de madeira e arame farpado surgiram do nada e começaram a
margear o trecho, o Land Rover trepidou ao passar por cima de cascalhos e algumas deforma-
ções na estrada. Seus faróis clarearam mato alto, árvores de troncos finos e grossos, minúsculos
buracos. Em virtude disso, concluiu que invadiam uma área rural. Rogério investigou o lugar
para ver se conseguia se recordar de algo. As lembranças permaneceram vagas. O olhar dele e o
do homem no banco de trás se cruzaram pelo retrovisor.
– Agora vire à esquerda.
Cumprindo a determinação, o Land Rover fez o trajeto. Avistaram morros e barrancos
em volta da rua de terra estreita. O condutor e os dois homens se viram no breu, a luz dos faróis
transformou-se na única fonte de claridade disponível. Avistou um sítio vizinho, depois outro e
outro. Todos aparentemente vazios.
Árvores e cercados pareceram sombras fantasmagóricas ao passarem depressa por eles. A
claridade dos faróis cortava um longo trecho e tornou visível a porteira de mais um dos sítios da
região. Mas aquele possuía alguma coisa diferente guardada em suas lembranças. Foi então que
suas mãos começaram a tremer no volante. Suas pernas se enrijeceram. Tudo agora fazia senti-
do. A boca de Rogério se escancarou. Sabia para onde estavam indo. Mas será? Sentiu náusea.
O captor que estava mais próximo, aumentando o seu clima de terror, volveu:
– E aí, coroa? Conseguiu descobrir para onde estamos indo?
Sim! Ele descobriu. O sítio para onde seguia era um ambiente que já lhe trouxera mui-
tos momentos de felicidade. O cercado de madeira, a porteira bem cuidada, as gigantescas
mangueiras guardando a entrada. Ultrapassando os limites da porteira e adentrando no lugar,
lá estava a maravilhosa casa de campo. Ao redor, só grama, árvores, plantes silvestres e mata.
Muitos anos se passaram desde que apareceu por ali pela última vez, mas não havia dúvidas,
aquele sítio era o seu. O que comprara para relaxar com a família nos finais de semana, antes
mesmo de Rosane nascer.

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William R. Silva

70

EM APUROS

Despertou-se do desmaio em um lugar estranho e desconfortável. Sentindo sua cabeça


latejar, abriu os olhos lentamente. Mal pode enxergar. Para onde quer que se voltasse, avistava
apenas escuridão. Suas mãos amarradas deslizaram por uma espécie de carpete macio. Quanto
tempo esteve inconsciente? Não havia como saber. Seus ossos ardiam em dor, como se seu
corpo, por um longo período, tivesse sido acometido por pancadas violentas e movimentos brus-
cos. Nem mesmo tinha noção do tempo. O rosto de Maria do Rosário forçava-se contra algo de
metal. Ela quis esticar as pernas, seus pés bateram numa massa rígida. Ergueu-se um pouco, sua
testa colidiu com uma tampa. A dor a fez se deitar de novo. Bastante assustada, passou os dedos
de um lado a outro e assim constatou que estava em algum compartimento fechado. Ousou afas-
tar as pernas, mas não obteve êxito. Os pés também estavam presos por cordas.
Como foi parar ali? Remontou suas últimas lembranças e os acontecimentos anteriores
foram surgindo em sua memória. O momento em que passeava no parque até a hora em que
foi raptada, tudo ficou nítido em sua mente. Nada mais conseguiu recordar depois que recebeu
o golpe na cabeça. Foi sequestrada, só poderia ser isto. Estava dentro de um porta-malas? O
entendimento veio como um lampejo. Se bem que tal informação não lhe garantia muitas vanta-
gens. Considerou-se uma estúpida. Teve ódio de si mesma por ter aceitado carona do marginal.
Pensou ter notado bondade em João Sérgio. Gostava dele, queria vê-lo feliz. Acreditava que
pudessem ser bons amigos. E o que ele lhe fez? Agrediu-a. Maria do Rosário desejou chorar,
mas concordava que não adiantaria. O que fazer?
– Meu querido Deus, não me deixe morrer! – suplicou.
Moveu-se, posicionou as coxas unidas e ficou de barriga para cima. Os longos cabelos
negros encaracolados se enroscaram em sua face. Cuspiu alguns fios assim que os sentiu nos
lábios. Começou a esmurrar a tampa, incansável.
– Socorro! Alguém me ajuda!
Fechou o punho atado e espancou a lataria com mais raiva.
– Tem alguém aí? – gritou com mais força – Estou presa! Socorro!
Foi então que ouviu passos de alguém se aproximarem. Seus dedos ficaram doloridos,
virou-se para usar os cotovelos. Depois de dar três cotoveladas na lataria, voltou a clamar, o
mais alto que pode:
– Me ajudem! Socorro!
Escutou um ligeiro som de alarmes. O barulho de pisadas no lado de fora retornou. O
suspense e o terror rebateram-se em seu coração alvoroçado. Ouviu-se um clique, seguido de um
ranger metálico. Um fio de luz atingiu-lhe a visão quando a tampa se abriu. Ela tentou avistar
quem era a pessoa que a içou, mas só vislumbrou uma silhueta na paisagem embaçada. O vento
gelado da madrugada arrepiou-lhe a pele. Alguns instantes se passaram até que recuperasse a vi-

281
A Coragem

são. Maria do Rosário encolheu-se e, em seguida, fitou o rosto do homem a encarando. Poderia
ter sido grata por terem aberto o porta-malas que lhe servia de cativeiro, ao invés disso, sua boca
irrompeu num sussurro agoniado:
– João Sérgio! Pelo amor de Deus, me solte!
Como se estivesse divertindo-se com a cena, o homem disparou uma gargalhada longa e
jogou o facho da lanterna por cima do rosto dela. Maria ergueu os punhos atados para se proteger
da claridade intensa. Depois, notou que ele enterrou a mão direita no bolso da jaqueta e, de lá,
retirou um punhal e o ergueu no ar.
– Não faça isso! Por favor... – mais um vez, Maria suplicou. Sem piscar, fitou o fio metá-
lico, temendo ser ferida por ele – Não me mate!
João conduziu a lâmina afiada até os pés dela. Maria fechou os olhos e se encolheu temen-
do receber algum tipo de golpe cortante. Nada sentiu. Sua pele continuava intacta. Calmamente,
ela tornou a reparar em João Sérgio. Uma chama de esperança se acendeu assim que ela notou
que o homem começou a cortar as cordas que prendiam-lhe as pernas. Ambos os pés ficaram
soltos. Será que ele iria mesmo libertá-la? Preferiu pensar que aquilo seria uma verdade, por
isso, levantou os pulsos grudados.
– Meus braços. Por favor, desamarre-os também! Sei que você não é esse monstro peri-
goso que meus pais tanto falavam.
Assim que recolocou o punhal em suas vestes, João Sérgio assumiu um ar perverso.
– Era isso o que seus pais falavam de mim?
Fora uma grande estupidez ter tocado no assunto. Isso ela notou logo de imediato. En-
tretanto, não teria como reverter o erro. Com pulsos ainda amarrados, obrigou-se a continuar:
– Sim! Mas sei que eles estavam errados... eu sei.
Ele avançou para cima dela e a agarrou pela camisa. Maria viu seu corpo ser puxado e,
sem qualquer cuidado, ser arremessado para fora. Esteve próxima de se estatelar quando esta-
cionou no solo duro. Exageradamente nervosa, Maria foi pega por uma repentina e passageira
crise de vertigem. Tal reação originou-se de um estado de pavor ou seriam resquícios da dor
da pancada que recebeu na nuca? Pouco importa. Tinha de saber, antes de tudo, em que lugar
estava. Seus olhos medrosos e lacrimejados estudaram o lugar, nada encontrou de familiar. So-
mente silhuetas de árvores e vegetação exibiam-se no fundo escuro. Estava totalmente a mercê
da sorte. E também da sua fé.
Sentiu o vapor quente que exalava dos lábios de João quando ele sussurrou nos ouvidos dela:
– Talvez seus pais tivessem mesmo razão – riu, cruelmente. – Devo mesmo ser esse
mostro que eles dizem – a puxou para trás num solavanco. A moça quase tropicou nos próprios
pés – Vamos, tem uma pessoa esperando por você.
Ela se virou para ele com uma expressão carregada de pavor.
– Me esperando? Quem está me esperando?
O mal caráter segurou o queixo de Maria, virou-lhe a face e a fez encará-lo nos olhos.
– Calma, meu amor! – notou que ela já não conseguia mais conter o terror – Vou levar você
até o seu... – os lábios dele se aproximaram, prestes a beijá-la. Falou, em baixo tom – o seu amante.
Sem ação, a mulher, com seus incontáveis fios de cabelos derramamos sobre a face, fitou
o homem com um ar confuso.

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William R. Silva

71

O SALTO MORTAL

Banco Século
(Rancho Albuquerque - Aglomerado Rural)

O aglomerado rural, um conjunto de chácaras particulares, tornou-se um negócio bastante rentá-


vel por causa do comercio de aluguéis. Durante eventos festivos como natal e réveillon, época bastante
movimentada, o valor dos aluguéis triplicam. Mas para Rogério, a aquisição não fora motivada para
obtenção de renda extra e, sim, para o próprio lazer. Quando adquiriu um desses espaços privados, que-
ria tê-lo como uma espécie de refúgio. Onde tivesse meios de escapar da grande turbulência dos centros
urbanos. Desejava, quando mais jovem, passar momentos de tranquilidade e curtir finais de semanas
com a noiva, parentes e amigos. Também gostava de usar o lugar para pôr os estudos em dia.
Entretanto, jamais imaginaria que, no futuro, o lugar seria seu cativeiro. Era meio de
semana e isto transformava a situação ruim em algo ainda mais inquietante. Rogério, depois de
descer do Land Rover e ser obrigado a seguir a pé, não se cansava de analisar cada detalhe a sua
volta. Imaginava-se como um viajante do tempo. Revendo tudo o que, um dia, fez parte de um
passado imensamente nostálgico. A casa de campo estava ali. Do mesmo modo que a deixou
épocas atrás. Quantos anos se passaram desde o dia em que pisou ali pela última vez?
Todas as propriedades do aglomerado eram de alto valor. Provavelmente, a maioria delas possuía
um rígido esquema de segurança para conter roubos ou demais tentativas criminosas. Ali, havia sim
uma rede de monitoramento. Contudo, esses sistemas só estavam inseridos nos terrenos vizinhos. Nada
garantia que teria tais recursos para onde estava indo. Depois de tanto tempo sem visitar o local, não
tinha conhecimento de como andava o monitoramento na área pela qual era forçado a se locomover.
Olhou para baixo e observou a sombra dos sequestradores se moverem atrás dele. Por meio dos
contornos, Rogério vislumbrou o desenho de um revólver nas mãos de uma das silhuetas disformes.
Também existia outra preocupação ainda mais estarrecedora: o território que lhe pertence é o mais
distante e isolado. Seu sítio guarda uma extensa área coberta por vegetação protegida por leis de pre-
servação. Foi um de seus desejos da época, queria ter bastante espaço com ar puro para poder circular.
Infelizmente, tinha motivos de sobra para ficar mais abalado, pois as câmeras de monitoração, se caso
estiver funcionando alguma, não filmarão por debaixo das árvores e da mata densa.
Carros de luxos circulando por lá também era algo comum. Nenhuma das prováveis redes
de vigilância iria investigar a presença do Land Rover ali. Não tinha movimentação em nenhuma
das demais chácaras. Talvez estivesse mesmo perdido. O percurso despavimentado e os espaços de
lazer estavam praticamente vazios. Poderia até haver caseiros por perto, mas nem eles notariam o
perigo anunciado. A probabilidade de ser salvo por alguém era mínima. Mesmo que, porventura,
algum veículo cruzasse com eles, jamais desconfiariam de que se tratava de um ato criminoso.
Outro fator pesou em suas constatações. De algum forma os sequestradores tiveram acesso

283
A Coragem

fácil ao atravessarem a divisa. Já estiveram lá antes. Teve certeza. Além de saberem chegar no lugar
com mais facilidade que ele, também não tiveram problemas em qual caminho seguir. Será que
esses homens eram conhecidos de seu filho? Durante muito tempo, Roberto exigiu receber as cha-
ves e o comando da propriedade. Era ele quem mais usava o local para promover suas esbórnias.
Logo, sua dedução se mostrou irreal. Rogério estudou ambos os sequestradores de cima
abaixo quando os viu pela primeira vez. Concluiu que homens como eles não se assemelhavam
com o tipo de pessoas com quem Roberto costumava se relacionar. Outras explicações poderiam
ser plausíveis. Ambos poderiam ter sido seguranças, garçons ou algum profissional contratado
para trabalhar em alguns dos festejos que o filho organizava. A dúvida o aterrorizou, mas não
tanto quanto os dois sujeitos armados que caminhavam atrás dele.
O trajeto foi curto, apesar de ter rendido tempo o suficiente para refletir. Pensou em tudo
o que se lembrava a respeito do seu futuro cativeiro. Novamente, analisou a casa de campo. O
lustre preso ao teto a iluminava. A madeira da fachada estava bem conservada, com uma cor
bastante viva. Deparando-se com a entrada da sua antiga e conservada casa de férias, sentiu um
revólver deslizar por sua coluna. Assim, um dos patifes reclamou:
– Ande mais depressa! Está muito devagar.
Aquilo o fez gelar. Então, seus passos se tornaram mais largos. Tinha esquecido das pisadas
e sombras se movendo logo atrás dele, todavia, a voz tenebrosa lhe trouxe novamente ao pesadelo.
E sem saber de qual dos dois era, um braço se esticou por cima de seu ombro. Fitou-o,
tentando entender o porquê da atitude.
– Destranque a porta e entre! – a voz o obrigou.
Quando viu que o homem lhe oferecia uma chave, Rogério se espantou. Como ele havia
conseguido aquela chave? Essa seria mais uma pergunta sem respostas. Após pegar a chave,
abriu o acesso e os três penetraram no interior da cabana.
Sentiu lágrimas jorrar quando começou a examinar os móveis e o cenário. A lareira, os
sofás, cadeiras, o assoalho e adornos bem cuidados. Tudo permanecia igual como deixou, desde
os móveis até as paredes e o teto. Nada foi removido e nem modificado. Queria olhar tudo de
uma maneira nostálgica e feliz, porém, pensamentos inoportunos e perturbadores o incomodou
neste instante. Por que ainda não o mataram? Qual era o sentido de trazê-lo ali?
– Por que eles ainda não chegaram, Picolé? – um deles indagou.
Picolé? As sobrancelhas de Rogério se arquearam quando ouviu o homem falar. Quem em
sua sã consciência teria um nome assim? Era bizarro, pensou.
– Logo eles estarão aqui – o que tinha um timbre mais grave respondeu. – Tenha paciência, mané!
Negava-se a olhar para trás, encarar aqueles homens o fazia se sentir pior.
– Ei, velhote – o outro falou. – Suba a escada e vá para o quarto.
Era impossível questioná-los. Rogério pôs os pés no primeiro degrau da escada de mogno
e começou a galgá-la. Os dois acompanhantes fizeram o mesmo. Alcançaram o andar de cima e
se dirigiram para o aposento. O refém tentou acalmar-se. Era preciso.
Ao entrar no seu antigo dormitório, encantou-se com o que viu. Contemplou a paisagem
por trás das janelas de vidro. Lá fora, as árvores e a vegetação davam forma à paisagem noturna.
Reparou na cama cujos lençóis estavam limpos e aparentemente cheirosos. Ver aquilo lhe trouxe
uma sensação agradável. Bastou um flash em sua memória para se lembrar das vezes em que
dormira nela com a esposa. Dois jovens sonhando com um futuro e uma família próspera. O que

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William R. Silva

eles mais desejaram se concretizou. Era injusto morrer ali. Conquistou tudo o que um homem
poderia querer. Não irá se entregar! Nunca! Falou consigo.
– É agora que vocês irão me assassinar? – quando deu por si, já tinha feito a pergunta.
– Cale a boca, velho – a voz rude bradou – Quem dita as regras aqui somos nós.
Velho? Foram várias as vezes que os marginais o chamou assim, mas só agora se irritou. Ainda
estava em forma. Rogério é um homem que sempre primou pela saúde, pratica exercícios físicos regu-
larmente e não havia chegado aos sessenta anos. Não era nenhum jovem, mas estava em boas condições.
– Não... não vai morrer agora... – o que não tinha falado antes, completou – ficaremos
esperando a segunda pessoa que virá te fazer companhia – riu baixo.
Foi meio sem sentido o que viu logo em seguida. Num móvel perto da cama, junto ao
abajur, descansava uma garrafa de champagne aberta e duas taças preenchidas pela metade.
– Fique de pé perante as janelas e não tente fazer besteiras, está ouvindo? – Picolé falou.
O refém nada disse. Ficou a reparar sua velha cama com um semblante mórbido. Rolou os
olhos para o espelho na porta do guarda-roupas e, pelo reflexo, comprovou que os dois raptores dei-
xaram de vigiá-lo. O mais alto e negro retirou sua jaqueta, jogou-a no chão e começou a vasculhar
gavetas a procura de coisas de valor. Percebeu que o mesmo estava com um dos braços enfaixados.
O que será que acontecera com ele? Fitou o menor e mais gordo. Este, digitava no celular.
– Para quem está ligando? – um deles perguntou ao outro.
Rogério fitou o lado esquerdo e viu uma foto antiga dele junto a Tânia. Também se recor-
dou da filha. Sentiu uma suave paz interior o envolver. E assim, a energia repentina foi aumen-
tando gradativamente. Aquilo foi como uma luz que, de forma milagrosa, acendeu-se em sua
mente. Fazendo com que acordasse para uma possibilidade de fuga. Estava tudo tão nítido, que
se achou um grande palerma por não ter percebido a hipótese antes.
Existia uma chance de sobreviver! Uma única chance! Franziu o cenho. A hipótese ati-
çou-lhe o instinto de sobrevivência. Voltará a ver sua família de novo. Custe o que custar!
Imediatamente, seu coração começou a pulsar forte quando tornou a reparar na janela. Quantos
metros de altura do quarto até o solo? Pensou consigo.
– Quero saber o porquê de tanta demora – respondeu o homem com celular – eles já de-
veriam estar aqui. Quero terminar isso logo.
O peito de Rogério se movia com mais rapidez por causa de sua respiração acelerada.
Outra vez, prestou atenção na conversa dos dois.
– Deixe de ser medroso, Bola – disse o mais alto – daqui a pouco eles estarão chegando.
Venha cá, me ajude aqui. – puxou algumas gavetas.
Ao cumprir a determinação, o homem guardou o celular e foi auxiliar o comparsa no
furto. Escancararam as portas dos guarda-roupa, arrancando roupas e sapatos de dentro do mó-
vel. Se as peças eram dele ou do filho, pouco importava. O homem negro achou um relógio de
pulso. Estudou o ornamento e o guardou no bolso. Foi a única coisa valiosa que eles roubaram
até então. Despistadamente, Rogério colocou a perna direita na frente da outra. Mas a ansiedade
aumentou, fazendo-o recuar. Seria isso uma boa ideia?
Constatou que os ladrões continuavam entretidos na tarefa. Nenhum deles o observava.
Coragem e medo fizeram seu corpo culminar numa sequência de reações nervosas, fazendo seus
pulmões quase saltarem pela boca. Que altura irá despencar? Matutou novamente. E se quebrar
um membro? Ou morrer com o impacto? Mesmo assim, não deu importância para seus questio-

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A Coragem

namentos. Se não pular, será pior, ficará ali aguardando a hora de sua morte.
Era agora ou nunca! Esvaziou a mente. E seus pés se moveram ligeiros levando-o em di-
reção a vidraça. Sua respiração falhou e suas pernas trêmulas correram o quanto pode. “Eu vou
conseguir! ...Eu vou!”, dizia a si mesmo, bufando. Só teria de aguentar mais um pouco. Quando
Picolé e Bola ouviram o som de pisadas apressadas, já era tarde demais para impedi-lo.
Picolé, no susto, apontou o revólver no rumo do fugitivo.
– Pare, já! – o gritou seguiu-se de um disparo. Mas a rajada passou de raspão no ombro
de Rogério, que ganhava cada vez mais impulso. Bola tentou impedi-lo, mas seu peso e o modo
desajeitado que fez para se locomover acabou fazendo-o tropicar e se levantar por duas vezes no
tapete. Ouviu-se o clack da madeira se quebrar. Em seguida, assistiram, boquiabertos, a pancada
humana se chocar contra a janela. Fragmentos de vidro explodiram no ar, produzindo uma chuva
de cristais cintilantes. Em meio aos estilhaços, avistaram o corpo de Rogério voar para fora...
E, nos centésimos de segundos que durou a queda, as pernas e braços de Rogério sacudiram-se
frenéticos e o céu, a mata...e o mundo pareceu girar. O chão ficou cada vez mais próximo quando, por
fim, mergulhou em cima de um amontoado de palha seca. Pouco depois de espatifar-se, vários cacos
de vidros e peças de madeira se espalharam ao seu redor, num eco de ruídos quase surdos.
Lá em cima, em pé diante da janela destruída, Picolé gritou:
– Velho desgraçado – deu dois disparos no fugitivo – Bola, vá atrás desse ordinário. Rápido!
O barulho de arma de fogo mais uma vez cortou o silêncio, depois outro e... outro.
Rogério sentiu os malditos e horripilantes dedos da morte querer agarrá-lo quando seus pés se
afundaram no monte de folhas. Levantou-se afoito, mas suas pernas se perderam novamente. No
alto da janela estilhaçada, o homicida ainda praguejava, insistindo em disparar.
Enfim, Rogério sentiu terra firme e se levantou num salto. Tudo indicava que nenhuma
bala o atingira. E se atingiu, o sangue quente o impediu de senti-las. Movido pela adrenalina e
bastante desnorteado, correu para um vão de troncos e escorregou num barranco. Foi descendo
até se chocar contra uma grande raiz.
– Eu consegui... – sua voz saiu quase rouca. Colocou-se de pé e disparou pela mata – con-
segui... – desviando-se de obstáculos, fugiu o mais depressa que pode.

72

O ANTI-HERÓI

(Minutos antes)

Quanto mais o alto Dionísio chegava, mais íngreme o morro se transformava. Foi subindo
a ladeira, agarrando-se no que achava pela frente. Ora puxando ramos, ora empurrando pés de
mamona, abria espaço na trilha escura. Para evitar um suposto deslize de terras, pisava divagar

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William R. Silva

conforme ia avançando. Tinha ciência de que desbravar a mata o faria correr o risco de ser ata-
cado por cobras, seres peçonhentos ou tropeçar num buraco qualquer. Fossem qual fossem os
perigos, nada disso o desanimava de seu objetivo.
Vendo-o subir, Ernesto gritou:
– Tem certeza que por esse caminho é mais seguro?
– A questão não é o caminho... mas sim você – Dionísio berrou de volta. – Preciso saber
se não nos trouxe aqui para uma cilada.
Nélson expulsou carrapichos de suas roupas, inclusive sua calça que estava infestada
deles. Depois, limitou-se a dizer:
– Ele insiste em não acreditar nas suas boas intenções – ao retirar as últimas sementes
espinhosas de suas vestes, Átila se virou para Ernesto. – Será que ainda não se deu conta disso?
Ernesto, pouco se importando com as palavras do velho mentor, virou-se para o automó-
vel ao seu lado. Seus olhos piscaram assim que se encontraram com as luzes dos faróis. Quando
suas mãos içaram a tampa do porta-malas, um ar frio soprou-lhe a pele e folhas rodopiavam no
solo despavimentado.
– Já ia me esquecendo dessa belezinha... – deu uma gargalhada ligeira. Depois que apanhou
alguma coisa no porta-malas, Nélson e Dionísio pararam o que estavam fazendo para observá-lo.
O homem a seu lado desconfiou de um possível traição, por isso, tateou sua arma no col-
dre para usá-la em caso emergencial.
– O que está procurando ai?
– Fiquem calmos! – e assim, Ernesto retirou uma espécie de espada, com uma lâmina fina
e pontiaguda, de dentro do porta-malas. Erguendo-a para que a avistassem, finalizou – Trouxe
essa relíquia comigo. Sabia que iria precisar dela.
Átila ficou mais tranquilo ao ver aquilo.
– Bem... creio que essa lâmina nos será útil na travessia.
– Exato – Ernesto o fitou, satisfeito –, ela nos dará duas vantagens: cortar empecilhos na
mata para ganharmos caminho e, a melhor, poderei enterrá-la na garganta de nossos inimigos –
riu alto. – Com essa espada, nos três encontraremos esses malditos com mais rapidez.
O semblante de Átila pareceu reprová-lo.
– Nós três? Você se enganou nas contas. Dionísio não irá conosco. Ele ficará aqui. So-
mente eu e você vamos enfrentar aqueles marginais.
Enquanto manejava a lâmina fazendo-a reluzir, Ernesto não teve clareza o suficiente para
entender o que Átila quis dizer. Encarando-o, sinalizou tal fato com um singelo franzir de testa.
– Que conversa é essa, pai? – cada vez mais ganhando altura, Dionísio também o estranhou.
Então, o mais velho do trio parou perto do carro estacionado. Quando Dionísio tornou a
reparar lá embaixo e se deparou com o conhecido olhar autoritário do pai, ouviu-o dizer:
– Filho, você ficará aí, dando-nos cobertura. Já nos ajudou bastante, não quero que
venha conosco.
Os argumentos não convenceram Dionísio nem um pouco. Foi fácil notar que Nélson
duvidava da capacidade dele em lidar com a situação. Ou queria apenas poupá-lo do perigo? Há
muito deixou de ser o adolescente obeso de dezesseis anos. A criatura insegura e fraca emocio-
nalmente. Já se via capaz de tomar suas próprias decisões. Será que seu pai e tutor se esquecera
de que agora era um homem formado?

287
A Coragem

– Não irei cumprir suas ordens, senhor Nessahen – Dionísio o desafiou. Sua voz não só
soou alta, como também pesada – De maneira alguma deixarei você se arriscar sozinho – con-
tinuou a subir, decidido.
Nélson não levou meio segundo para se encontrar do outro lado da cerca quando saltou
sobre ela. Mais uma vez, ergueu o rosto para Dionísio. Vendo-o já quase no topo, insistiu:
– Isto não é um pedido... é uma ordem! – Nélson procurou algo a que se agarrar – nunca
antes enfrentou uma tarefa desse nível. É arriscado pra você – o outro fingiu não ouvi-lo, inves-
tindo na empreitada.
Ernesto detestava admitir, mas sabia que precisava de ambos.
– Não seja tolo, Nessahen! Ele terá mais utilidade trabalhando ao nosso lado, do que
parado sem agir. Deixei-o ir conosco!
Iniciando a rude escalada, Átila mirou Ernesto nos olhos
– Quem prometeu te ajudar fui eu, não ele. Quero-o longe disso!
Dionísio ainda a desprezar seus comandos e prestes a chegar a seu objetivo, contra-argumentou:
– Então é isso? Disseram-me que precisavam de mim, pois não sabiam como chegar até
essa parte da região. E eu os ajudei... – pisou numa pedra, fazendo-a rolar morro abaixo. Assim,
continuou – Pai, você me obrigou a confiar nesse assassino transtornado... – parou e mais um
vez e olhou para baixo. Notou o descontentamento de Ernesto ao ouvir o que havia dito – Assim
eu fiz... – voltou a observar o pai – Agora está me pedindo para deixá-lo sozinho enquanto colo-
ca sua vida em risco? Não sou mais nenhum menino, sei muito bem me proteger. Não tente me
impedir! Irei ajudá-los a enfrentar essa gangue maldita, quer você queira... quer não.
Foi a primeira vez que Átila fora encurralado pelas atitudes firmes do herdeiro. Nesse ins-
tante, teve certeza de que lhe dera uma boa educação. Os treinos, as lições de vida, os conselhos
e o rígido tratamento que ofereceu a Dionísio, transformou-o num homem de verdade. Mas era
compreensível que preferisse que, diante da situação, o menino gordinho e medroso estivesse ali
para que pudesse domá-lo. Esse, pelo menos, o obedeceria.
No entanto, este era demasiado teimoso para obedecê-lo agora. Átila sentiu vontade de
estapeá-lo. Com Dionísio participando da ação de salvamento, não teria como agir com frieza.
Irá temer que lhe acontecesse alguma coisa grave. O filho, assim como ele, possuía a coragem
inerente dos Silverato, porém ainda não tinha as habilidades necessárias para lidar com bandidos
perigosos. Ou será que tem? Afinal, o jovem não era tão diferente dele em sua juventude. Desde
o começo, sabia que incluir o Silverato mais moço na operação não era uma atitude sensata. E
que escolha tinham? Confiar em mapas e GPS era sinônimo de perda de tempo. Um segundo a
mais de atraso, faria toda a diferença na hora de alcançar a gangue de sequestradores.
Foi então que a voz de Átila retornou, num tom mais pesado:
– Dionísio, quer mesmo criar um atrito entre nós dois?
O homem em cima do morro retribuiu-lhe, sem o menor receio.
– Jamais desejei isso, pai... mas se assim for, aceitarei esse fardo.
Ernesto, de súbito, interrompeu a discussão familiar:
– Tem mais uma coisa que ainda não avisei a vocês...
Chegando no ponto mais alto do morro, Dionísio indagou:
– E o que é? – o grito que deu mostrou desagradado, por mais que se esforçasse, não era capaz
de confiar no mestre insano. Fez um passeio rápido para reconhecer o território. Frustrou-se ao ver que

288
William R. Silva

existia uma enorme barreira natural cuja mata virgem o impedia de enxergar mais longe.
– Meu irmão não foi a única vítima a ser trazida pra cá – Ernesto viu que ambos ficaram per-
plexos com a revelação. – Há uma mulher com eles. Ela também é uma das peças do quebra-cabeças.
Enquanto o que estava observando-os de lá de cima ainda lhe prestava atenção com um ar
de espanto, Átila o mirou, irritado.
– E por que não nos disse isso antes?
E o que mudaria se são um ou dois reféns? Dionísio assim matutou. Já estava envolvido
de corpo e alma na tarefa. A única coisa que necessitava para comprovar de que Ernesto falava
a verdade era conseguir observar tudo a distância para bolarem uma estratégia. Aproximar-se de
uma só vez da área do crime os faria cair numa armadilha. Para ganhar uma melhor visibilidade
da área, agarrou-se num galho para subir numa grande árvore.
– E quem é essa mulher, você a conhece? – indagou, enquanto agia como um macaco
habilidoso, indo de galho em galho.
– Sei que deveria ter-lhes contado antes, mas o que importa? – Ernesto devolveu – Vamos
nos preocupar com o meu irmão, é por ele que os chamei aqui. Ela é segundo plano.
O modo como Nélson o encarou fez Ernesto perceber a intensidade da fúria que ele sentiu
ao ouvir aquilo.
– Vidas humanas possuem o mesmo valor, independente de quem seja – seu antigo mestre
despejou. – O que aconteceu com você, Fuhrer? Que monstro se tornou? É difícil acreditar que
um dia foi aquele rapaz que aprendi a admirar. Iremos salvar os dois reféns... – segurou num
caule, buscando impulso – e não se fala mais nisso.
Ernesto apenas o reparou, com uma expressão de desagrado. E; de repente, quando uma
inesperada sequência de estrondos ressoaram, os três, cada um em sua posição, sobressaltaram-
se com os ruídos. Primeiro ouviu-se estilhaços, depois disparos de armas de fogo. Com os ner-
vos à flor da pele, Dionísio elevou-se de um galho a outro para subir mais depressa.
Ernesto imediatamente pulou para o outro lado, gritando:
– É barulho de vidros se quebrando... e disparos de armas de fogo – começou a escalar.
Ele agiu tão rápido, que em poucos segundos já estava prestes a alcançar Átila.
E mais tiros trovejaram, até que, por fim, o silêncio voltou a reinar, deixando-os em dú-
vida sobre o que teria sido aquilo.
– Droga! Precisamos ir depressa – Nélson então berrou para o filho. – Dionísio, consegue
ver alguma coisa daí de cima?
Já na parte superior da árvore, Dionísio limpou resquícios de vegetais e terra que grudaram
em suas roupas. Feito isso, apalpou sua pochete, abriu-a e sacou o binóculo de visão noturna.
Encaixou-o no rosto e, por entre galhos e folhas, olhou através do visor. Enfim, conseguiu o que
queria. Fixo no horizonte, as lentes se depararam com a escuridão noturna, a vegetação junto a um
bambuzal e, em meio a paisagem, pode notar claramente a fachada da casa de campo cintilando
debaixo das luzes. Constatou que entre eles e o cativeiro, havia um árduo trajeto a percorrer.
– Estou vendo... estou vendo a casa de campo... – quando percebeu algo estranho, comen-
tou, surpreso – Então é isso? Caramba!
A ansiedade fez com que Ernesto começasse a subir depressa que antes, como uma a
serpente rastejante.
– Está enxergando alguma movimentação lá dentro?

289
A Coragem

– Os tiros cessaram! Está vendo algum cadáver na cabana? Diga logo o que está aconte-
cendo – Átila adicionou. Enfrentar o solo íngreme não era tão fácil quanto fora para seu jovem
filho. Levará mais tempo do que imaginava para atingir o cume. Olhou para baixo. Espantou-se
ao perceber o vigor do antigo discípulo, estava quase sendo alcançado por ele.
– Uma das janelas do andar de cima está destruída – Dionísio deu um zoom nas lentes –,
mas não vejo ninguém lá dentro.
– Tem certeza? – seu pai gritou de volta. Sabia que a qualquer hora se iniciariam os ata-
ques, assim, tirou a arma do coldre, preparando-se para a ação.
Lá em cima, Dionísio mudou de um galho para outro com cautela para evitar uma
queda acidental.
– Não... só estou vendo a casa de campo... espere um pouco – volveu Dionísio. Outra
coisa também chamou-lhe a atenção. Em um ponto distante da cena, avistou uma claridade se
mover na penumbra. O que seria aquilo? Ou melhor, quem? – Tem alguém caminhando com
uma lanterna. Acho que está rolando uma perseguição.
– Precisamos agir depressa – Átila falou, ao se ver ultrapassado por Ernesto. Sem desanimar,
continuou: – Se alguns desses tiros tiverem acertado Rogério e a refém, todo nosso esforço será em vão.
Sem esperar pelos dois, Dionísio desceu rapidamente, atingindo o chão num salto.
– Encontro com vocês depois – avançou para dentro da escuridão da mata. – Vou atrás
daquele rastro.
Átila agarrou-se no tronco de uma das mamonas. Enfurecido com a atitude imprudente
do filho, berrou ao máximo:
– Não, Dionísio... – tentou subir mais depressa – espere! Espere! – quando voltou a olhar
para onde o filho estava, viu que ele já tinha desaparecido – É perigoso! Volte, seu imbecil!
Ninguém o ouviu responder.
– Moleque idiota – Ernesto também puxou sua pistola carregada. – Não faça isso, espere por nós!

73

A REVANCHE

Os pulsos atados faziam-na gemer de dor. Através da violência, Maria do Rosário era
obrigada a invadir os logradouros escuros. João Sérgio, guiando-se pela sua lanterna, caminhava
nervoso. Por um longo período andaram em círculos até encontrarem uma trilha. O objetivo dele
era levar Maria até o sítio de Rogério, mas sem estacionar seu carro na entrada da propriedade.
Deixou o Vectra longe da cena do crime. Isso o impedirá de correr riscos de ser identificado,
caso alguma coisa der errado.
Lágrimas pesavam nas pálpebras de Maria. Evitava, mesmo diante das ameaças, mostrar-
se fraca. Sabia que se safar da mira do marginal era quase impossível, porém, sua fé permanecia.

290
William R. Silva

Cada vez que um trecho se tornava visível, observava os arredores visando um fuga emergencial.
Seus pais e seu irmão, a essas horas, estariam todos preocupados com o seu paradeiro. Neles e
em suas preces, estavam depositadas todas as suas esperanças. Seu irmão era uma autoridade
policial, poderia encontrá-la até no fim do mundo. Ou será que não? E se não chegarem a tempo?
Às vezes, João Sérgio a empurrava, quase fazendo-a perder o sustento, para que andasse
mais depressa. Com nada mais que as pernas livres, seguia-o sem rumo. Enquanto ela e seu rap-
tor vagavam pelas sombras, suplicava para que Deus a protegesse do mal. Reprimindo o choro,
tentava a sua maneira controlar seu desespero. Suor e saliva embebiam o tecido em seus lábios.
Queria gritar, o mais alto que sua garganta aguentasse. Mas do que adiantaria o esforço uma vez
que o som seria abafado pela mordaça?
Ela notou que estavam numa área rodeada por bananeiras e árvores de dorsos finos. João
Sérgio deslizou o bico de metal por sua coluna. Maria logo se viu aterrorizada pela hipótese de
vir a receber um tiro. Sua pulsação se agitou, aquilo não deveria estar acontecendo. O que ela lhe
fez para merecer tal covardia? Movida por um ímpeto de coragem, travou os passos.
O homem atrás dela, interrompeu a caminhada abruptamente.
– O que está pretendendo fazer? Continue a andar!
Maria se virou e encarou o rosto sombrio.
– Quer me desafiar, é? – João deu uma risadinha zombeteira. Ela insistiu em não se mo-
ver, fitando-o. No semblante da refém, havia uma mistura de ousadia e terror. Novamente, ele a
ameaçou – Continue andando! Pare de fazer birras!
Mesmo sendo confrontado, o sequestrador não se intimidou. Ele então arqueou as sobran-
celhas e prendeu a lanterna numa galha em cima de sua cabeça.
– Mulher teimosa, acha que vai me comover? – o facho se projetou ante a face de ambos.
Ele então prosseguiu – Quer saber por que a trouxe até aqui... eu sei que é isso, vejo no seu olhar
– deixou seu rosto próximo ao dela – Tudo poderia ter sido diferente, Maria. Nossa história, eu,
você. Foi você quem escolheu esse destino! A culpa é toda sua!
Minha culpa? Escolher meu destino? As interrogações sussurram nos pensamentos dela. A
vítima o mirou nos olhos, respirando com voracidade. Juraria que naquele segundo o rapaz ergue-
ria o braço para fuzilá-la. Para sua surpresa, nenhuma atitude extrema fora tomada pelo bandido.
Somente a mão esquerda dele dirigiu-se em direção a sua face. Sentimentos confusos rondaram a
mente de Maria quando João Sérgio começou a acariciar as maçãs de suas bochechas.
– Não era para ter sido assim... não era – ele balançou a cabeça, agressivo. Segundos
depois, o homem massageou o rosto como se estivesse tendo uma crise de consciência. A ex-
pressão no semblante do captor se tornou diferente, Maria percebeu.
Por um momento, João pareceu inofensivo. Os olhos desconfiados da mulher contida
desceram para observar o revólver na mão do raptor, depois miraram a expressão complexa
estampada no rosto dele. O sujeito a sua frente encontrava-se anestesiado por efeito de alguma
substância qualquer. Sua repentina mudança de humor fora, para ela, bastante duvidosa. Afinal,
o que ele pretendia com esse suposto teatro de bondades?
João contemplou a face morena de modo afetuoso. Mesmo com medo e amarrada, a moça
se apresentava bastante atraente. Ele perguntou a si mesmo se sabia o que realmente estava
fazendo. Sonhava que ela vivesse a seu lado. O medo de perdê-la tornou-se algo muito além
do que ele podia suportar. Trouxe-a até ali, não poderia mais voltar atrás. O plano deveria ser

291
A Coragem

seguido. Seus companheiros estavam a sua espera. Maria do Rosário será uma das peças fun-
damentais para camuflar o real motivo dos delitos que, em breve, iriam praticar. Hesitar, a essa
altura, trará muitos prejuízos.
– Quero te contar uma coisa... vou te dar mais alguns minutos de vida, em nome dos
momentos especiais que passamos juntos. Vou te contar, Mari... algo que nunca lhe relatei antes
– ele escorregou as costas das mãos sobre afeição lacrimejante da moça. Depois de afagá-la, vol-
tou a dizer – Sabia que a época que vivemos juntos foram os únicos anos que fui realmente feliz?
Maria sentiu emoção nas palavras ditas por ele. Outra lágrima desceu por sua pele. O sem-
blante dela, outrora de pavor, encheu-se de compaixão. Esperançosa, cogitou na possibilidade
de ele a deixar viver.
– Minha vida pessoal, naquela época, era um inferno... – a fala de João Sérgio assumiu
um tom depressivo – Meu pai era um homem ruim. Ele bebia muito e maltratava a minha mãe
na minha frente – dessa vez, foi João Sérgio quem quis chorar. Maria ficou perplexa. Nunca
tinha ouvido tais confissões do antigo namorado. O homem continuou – Eu o vi bater nela várias
vezes. Minha mãe, Maria... minha mãe...
Maria lançou-lhe um olhar triste e seus lábios se pressionaram por baixo do pano. O relato
a comoveu. João Sérgio assim prosseguiu:
– Um belo dia, descobrimos que meu pai havia gastado todos os nossos recursos finan-
ceiros em jogatinas, mulheres e viagens caras. Por isso, o maldito desapareceu do mapa e minha
mãe caiu em depressão – o homem suspirou. Lembrar da história o desestabilizava – O banco
tomou nossa casa hipotecada. Tivemos de vender nossos carros e outros bens para podermos
arcar com as dívidas. Ficamos falidos. Nossos amigos da sociedade viraram as costas para nós.
Ainda não bastasse toda essa desgraça, num maldito dia, quando cheguei do colégio... – ele
bateu o punho fechado em sua própria testa – Encontrei minha mãe morta estirada no tapete
do quarto e caixas de remédios a sua volta – o homem se alterou. – Acredita nisso? – berrou,
enfurecido – Você acredita?
O rosto da mulher encurralada assumiu uma expressão embasbacada.
– Depois disso, passei a viver com meus avós cujos recursos eram escassos. Eles mal
tinham dinheiro para cobrir os próprios gastos, imagina cuidar de mim. Por causa das revira-
voltas que sofri, passei a odiar tudo e a todos – a agressividade de João entoou de suas cordas
vocais. – O tempo todo queria surrar alguém. Eu pensava que as pessoas teriam de pagar pelo
meu sofrimento, o mundo tinha que pagar. Sentia muito ódio... muito mais do que eu podia con-
trolar. E assim eu fiquei durante meses. Mas... – sorriu, timidamente – conforme ia aprendendo
a te admirar, a reparar em você, coisas boas foram brotando dentro de mim. Algo que nem eu
mesmo sabia ser capaz de sentir. No dia em que te beijei pela primeira vez... – ele interrompeu
o relato e ergueu o braço.
Sem compreender, Maria do Rosário viu que o lenço que tapava sua boca foi retirado. Ela
deu um longo suspiro, mas nada disse. Apenas o fitou, espantada.
– Na primeira vez que a senti em meus braços – o homem prosseguiu –, percebi que ainda
existia uma chance para minha vida. Que tudo poderia ser melhor – dedicou outro sorriso a ela.
– Você foi, durante todos esses anos, a luz do meu caminho, Maria. A única coisa que me dava
forças para seguir em frente.
O medo que se apossara de Maria do Rosário minutos antes, evaporou-se.

292
William R. Silva

– Não sabia disso – ela o encarou, compreensiva. – Por que nunca me contou nada?
Os dedos de João Sérgio deslizaram sobre o queixo dela.
– Essa vida me envergonhava. Não queria que você soubesse que eu... – hesitou – que eu
estava pobre. Por isso entrei no mundo do crime, para poder manter meu padrão de vida.
Sua vida ainda estava por um fio. A raiva por ter sido agredida e sequestrada era latente
em seu interior. Mas ela não podia demonstrar o que sentia, assim, manteve sua postura branda
para tentar acalmá-lo.
– Quem disse que eu me importava com isso, Jó?
Ele respondeu:
– Eu sei que não. Mas minha situação era humilhante demais.
Maria baixou os olhos para os braços atados.
– Esqueça isso, Jó! O passado é imutável. O que importa é o presente. Nunca é tarde para
recomeçar. Por favor, não me deixe pensar que meus pais estavam certos a respeito de você!
Mostre-me que você é um homem bom – ela lhe mostrou os pulsos unidos. – Por favor, solte-
me! Prometo que não irei te denunciar à polícia.
Os lábios, a face e a voz dela o deixou fraco, sensibilizado. Era tarde demais para se arre-
pender. Tinha de cumprir sua parte no trato. O sequestrador recordou-se das promessas de Ro-
berto. O mesmo lhe prometeu que iria transformá-lo num homem de negócios. Seria respeitado
e, para sempre, iria se afastar de sua vergonhosa vida de crimes. Um futuro de glória o esperava.
E, além disso, ela não o quer. Nada que fizesse para obter seu amor adiantaria. O incô-
modo que o perturbava era intenso. Estava doente de paixão. Precisava se livrar dessa maldita
dor. A dor de amor. Os desejos carnais e afetivos que nutria por ela transformou-se em sua pior
prisão. A morte dela, seria sua verdadeira liberdade. E era isso que iria fazer, o processo não
tem mais volta!
Ele então a segurou com firmeza e encostou o revólver na testa dela. Imediatamente,
transformou-se de novo na criatura maléfica. Desse modo, começou a falar, agressivamente:
– Não... você não vai sair viva daqui.
Maria não soube quando perdeu a calma, mas quando deu por si, gritou colérica:
– Que se dane o que você passou ou deixou de passar... eu não tenho culpa! Eu não te-
nho culpa! – transbordou-se em soluços agonizantes – Me deixa ir, pelo amor de Deus! Eu não
aguento mais isso...
Nem mesmo a choradeira repentina fez o coração de João Sérgio se compadecer. Pelo
contrário, aquilo fez uma onda de fúria percorrer seus músculos. Poderia ter a matado ali mesmo
se quisesse. Mas isso botaria tudo a perder. Teria de leva até seu destino viva. Sua mão então
explodiu numa bofetada na cara de Maria do Rosário. Ela titubeou, zonza, quando uma dor se
espalhou pelo crânio. Por pouco, não se esborrachou na palha seca.
Ele então a agarrou pelos cabelos e disse:
– Suas lágrimas não irão mais adiantar – num rápido movimento, voltou a fechar-lhe
a boca com a fenda. Ela se enrijeceu, amedrontada. Tamanha foi a pressa que ela começou a
respirar que, por um instante, pensou que desmaiaria. Ele tornou a dizer: – você mesma quem
cavou sua cova. É sua culpa.... sua...
Sons imprevisíveis de palhas sendo movimentadas cortou o clima de tensão entre os dois.
Logo desconfiaram que algo os rondava. As sobrancelhas do agressor se arquearam. João in-

293
A Coragem

vestigou ao redor para ver se encontrava o intruso. Vislumbrou uma sombra oscilar, foi nesse
instante que concordou que havia alguém por trás dos troncos nodosos.
– Quem está aí? Bola... Picolé... São vocês?

João Sérgio errou em ambos os palpites. Era um velho inimigo quem os sondava. Fi-
nalmente encontrei um dos desgraçados! Em seu lugar secreto, pensou Dionísio, determinado.
Através do facho de luz, avistava apenas o rosto de um dos homens que mais odiava. O caule
grosso e as extensas folhagens de bananeiras fez com que a segunda pessoa ficasse invisível.
Quem mais lhe importava era João Sérgio, e ele era visto nitidamente.
A sorte o trouxe até o bandido. Quando reparou a claridade se locomover no breu, soube
que ali estaria alguém. A distância não tinha sido tão curta quanto imaginava, mas chegou a
tempo. Assim que ouviu vozes e observou os sinais luminosos, logo soube que havia encontrado
uns dos sequestradores. Perdeu-se do pai e de Ernesto, por isso, conformou-se com a hipótese de
ter de resolver o problema sozinho.
Teria de ter muito cuidado dali em diante. Criando uma estratégia de defesa, camuflou-se
atrás das sombras silvestres e estudou o lugar. Assim, Dionísio se adiantou para expandir seu
campo de visão. Embora ainda não conseguisse ver quem estava junto ao marginal, julgou ser
um de seus comparsas.
João Sérgio retesou-se. Se fossem seus ajudantes, os mesmos já teriam se identificado.
Era hora de usar a refém. Espiou os possíveis paradeiros do bisbilhoteiro e ameaçou:
– Quem é você? Dê as caras! Se não se identificar, eu mato ela!
“Ela?” A testa de Dionísio franziu, pasmo. Achou que estivesse entendido errado. Uma mu-
lher? Foi então que entendeu que as palavras de Ernesto faziam sentido. Andou de lado e se abai-
xou. Arrastou-se até um local mais escuro, palhas reviraram quando ele as moveu com os sapatos.
– Estou avisando, vou atirar na moça! – o monstro puxou a mulher pelos braços e a colo-
cou na sua frente. Depois, ficou do lado dela, ameaçando disparar.
Os contornos femininos entraram em foco por meio do facho de luz. Pânico, surpresa e incom-
preensão se colidiram em Dionísio, resultando numa ligeira sensação de náusea. Com os ossos pa-
ralisados, seus neurônios irromperam numa corrente de pensamentos confusos. Será que está tendo
alucinações? Isso não pode ser real! Os negros cabelos escorrendo-lhe sobre a testa, as formas de seu
corpo, aquele olhar. Congelada, completamente à mercê da sorte. Por que ela? Jamais havia pensado
numa coisa dessas. Que loucura era aquela? Era ela, Maria do Rosário, esta era a refém.
O aspirante a herói sentiu como se sua cabeça estivesse suspensa no ar. O que avistava,
além de ser totalmente imprevisível, envolvia emoções que acabaria por interferir em suas ati-
tudes de agora em diante.
– O que diabos está acontecendo aqui? – Dionísio resmungou baixinho. Era óbvio que a
mulher fora trazida até ali contra sua vontade. E se tudo for uma armadilha? Sentiu-se enganado.
Cogitou na possibilidade de Ernesto ter consciência do fato de que a refém era sua ex namorada.
Se realmente foi ludibriado pelo mestre insano, então seu pai também estava em perigo. Eles fo-
ram para lá para impedir que fizessem mal a Rogério, mas nada souberam sobre o fato de Maria
do Rosário ter sido incluída no crime. O fato foi revelado apenas no último momento antes do
massacre se iniciar. Por quê?
Esforçou-se para readquirir a tranquilidade perdida, num suspiro abafado. Concentrar-

294
William R. Silva

se na solução do problema era crucial. Embora estivesse completamente desorientado, terá de


elaborar uma forma de salvá-la. O tempo e energias disponíveis teriam de ser canalizados para
a tarefa. Deverá agir na primeira oportunidade.
– Ande logo! O tempo está se esgotando! – o bandido avisou – É melhor sair da toca se
não quiser ver o crânio dela estourar.
Ele observou João Sérgio com a arma forçada contra o queixo da refém. O melhor a se fazer,
era tentar atingir o rival com um tiro distante. Atento, Dionísio levantou o cano da arma, mirando-a
no rumo do sequestrador. Mas uma voz interior o fez hesitar. Será que seria uma boa ideia?
Com o braço em riste, João Sérgio girou em torno de si mesmo, procurando por alguma
movimentação na selva. Quando terminou de girar e parou com revólver no rumo da testa de
Maria, ameaçou:
– É a última vez, vai dar as caras ou não? – moveu o dedo no gatilho, prestes a disparar.
Em pratos, a refém mordeu os lábios.
Sem se dar conta, João havia parado de costas para o refúgio do adversário. Foi a deixa
que Dionísio precisava. Em seu esconderijo, não teve mais tempo para pensar. Controlou a
ansiedade e, ligeiro, guardou o calibre vinte e dois em seu coldre. Uma descarga de adrenalina
fez as pernas de Dionísio saltarem, fazendo-o voar por entre as bananeiras e se jogar para cima
do bandido. Quando o peso se impactou sobre a coluna de João Sérgio, este caiu de cara num
monte de palhas. Com a pancada, a arma escapuliu da mão do raptor e rolou para dentro de um
aglomerado de matéria seca.
– Quero ver se tu é macho agora – Dionísio segurou-o pelos cabelos. Eram curtos, mas
o suficiente para serem agarrados – Quero ver bancar o valentão agora, seu covarde maldito!
Reconheceu aquela voz. Será ele mesmo? João, numa reação improvável, desatou a rir.
Ignorando a dor que o inundava por dentro, fez sua provocação:
– Veio salvar sua vadiazinha? – o bandido rendido cravou os dedos no amontoado de
palha, tentando recuperar seu revólver. Era complicado agir, uma vez que a massa pesada em
cima de seu dorso, travava parte de seus movimentos.
Aliviada com o salvamento inesperado, Maria observou seu salvador desmontar o agres-
sor. Vendo-o em ação, sentiu-se como se estivesse sido acordada de um pesadelo. Dionísio,
persistente na imobilização, vociferou:
– Vou arrebentar sua cara, seu desgraçado! – afundou a cabeça do bandido no monte,
batendo-a várias vezes contra o solo empalhado.
Quando viu que sua arma estava inacessível, o marginal encurralado mudou de tática.
Ao invés de procurar seu instrumento mortal, apanhou um galho. Girando o braço, acertou uma
pancada na cara do desafeto. A dor súbita fez Dionísio se lançar para trás, desorientado.
Ao se ver livre, João se virou e encarou o homem de frente:
– Dionísio... – encarou-o, com um ar irônico. Como ele os encontrou? Será que o viu se-
questrar Maria e os seguiu até o sítio? Sorridente, revirou os olhos em busca de sua arma. Ainda
tinha esperanças de poder encontrá-la – Pensa que tenho medo de você?
Estonteado, Dionísio demorou alguns segundos para se recuperar. Observando Maria ain-
da em estado de choque, questionou-o:
– Por que trouxe ela pra cá? Qual era o plano de vocês?
João se colocou de pé.

295
A Coragem

– Você é um merda, Dionísio! – gargalhou – Acha que tenho medo de você? – Munido com a
galha seca, investiu para cima do rival e tentou outro golpe em sua cabeça. Dionísio se esquivou.
Usando ambas as mãos, o agressor empunhou o pedaço de lenha com mais firmeza. Di-
vertindo-se com o duelo, zombou:
– Eu o espanquei uma vez, posso muito bem fazer isso de novo.
Depois de fechar as mãos e deixá-las rentes ao ombro, Dionísio formulou sua posição de
combate. Convicto, devolveu:
– Não vai, não... e sabe por quê? – partiu para o ataque – Dessa vez, você está sozinho
– o porrete bambeou nos dedos de João Sergio assim que o punho cerrado o atingiu em cheio.
Explodindo de ira, Dionísio bradava – agora é um contra um, seu covarde maldito! – prosseguiu
com as investidas, dando mais dois socos na face inimiga. O bandido, cambaleante, trançava de
um lado para outro. A cada cacetada que ganhava, agia como se fosse um bêbado desorientado,
defendendo-se de golpes dos quais mal podia ver de onde e quando surgiam.
E as pancadas de Dionísio não terminaram. Deu-lhe um chute no estômago, disparou
uma porrada no nariz... outra acertou-o no queixo. Os golpes cegaram João Sérgio. Este, com
o pedaço de lenha, tentava revidar por várias vezes sem a menor coordenação motora. O galho
seco silvava, mas nunca acertava o alvo.
– Quem é o otário agora? – o vencedor do combate deu-lhe um tapa na palma da mão,
fazendo o pedaço de árvore se soltar. Em seguida, levantou a perna e atingiu a panturrilha do
adversário desnorteado. Por um momento, Dionísio se esqueceu completamente da presença da
mulher que assistia a cena, do porquê estava ali. Chutou a cara de João, fazendo-o se lançar para
trás guinchando de dor. Espancá-lo era a única coisa que importava. O outrora aluno gordinho e
humilhado queria vê-lo no chão, sangrando, sem forças. Só assim sua vingança se consolidava.
Maria esbugalhou os olhos quando enxergou Dionísio juntar as mãos, subir os braços e des-
cer os punhos unidos sobre o ombro do rival. João Sérgio vacilou para os lados em busca de apoio.
– Seu verme – Dionísio berrou –, lixo humano.
Segurando a barriga e sem fôlego, o bandido agredido recuou, agarrando-se num longo
ramo. A nódoa do tronco impregnou-se em sua pele assim que escorregou sobre a casca lisa
e ficou de joelhos. Ousou se firmar na bananeira para se reerguer, mas os ossos doloridas não
responderam seus comandos. Levantou o rosto, viu apenas um par de pernas a sua frente.
– Viu como é bom ser espancado? – a voz de Dionísio ressoou em seus ouvidos como
agulha cortante – Agora você já tem noção do mal que me fez.
Ao sentir um líquido pastoso preencher-lhe o céu da boca, João Sérgio imediatamente
cuspiu. Sangue e saliva atingiram o chão. Seus dedos se apertaram numa das grandes folhas.
Mais uma vez tentou se colocar de pé, suas pernas fracas recusaram-se a mover. De cabeça bai-
xa, João Sérgio soltou outra de suas gargalhadas.
– Você está morto, Dionísio – seu maxilar ardia por causar do esforço que fazia para rir,
mesmo assim; não parou – se eu não te matar, os outros irão...
O pé direito de Dionísio colidiu contra o queixo do homem ajoelhado. Enfraquecido, João
desabou. Desprovido de piedade, o lutador pisou sobre a nuca do oponente nocauteado, fazendo
a cabeça imóvel se enterrar no solo macio.
– Vou te matar... seu maldito – uma energia maligna fez Dionísio se esquecer de sua honra
e seus valores. Seu demônio interior pareceu querer dominá-lo – morra maldito..., morra!

296
William R. Silva

Maria do Rosário compreendeu que aquilo iria sufocar a vítima. Por temer que o homem
que amava se transformasse num assassino impiedoso, fez a única coisa que poderia naquele
instante: jogou-se na frente dele.
Só então que Dionísio se lembrou da presença feminina no lugar. A voz de Maria do
Rosário estava abafada, mas não teve problemas para entender o que ela suplicava. Meu Deus,
o que estou fazendo? Ele se assuntou com a própria atitude. O sentimento que nutria pela moça,
abrandou-lhe as emoções. Subitamente, tirou o pé de cima da cabeça imóvel.
Ele segurou a mulher. Afoito, desatou as cordas que prendiam-lhe os pulsos, retirou o
lenço e os dois se abraçaram. Quis beijá-la, mas Maria só conseguia chorar e tremer.
– Finalmente, acabou esse pesadelo! – ela soluçou – Obrigada por vim me salvar, meu
amor... obrigada.
Enfim, ele a tocou no rosto, beijando-a repetidas vezes.
– Acabou... não tenha medo... estou aqui para te proteger.
Continuaram a se beijar por mais alguns segundos.
– Vou amarrar esse desgraçado – ele a soltou e fitou o homem estirado. – Iremos entre-
gá-lo para a polícia.
Limpando as lágrimas do rosto, Maria observou Dionísio retirar as cordas dela e, logo em
seguida, amarrar o corpo esparramado. Inconsciente, João Sérgio sequer se moveu quando os
primeiros nós começaram a apertá-lo.

74

NA TRILHA DA MORTE

Folhas grandes, galhos carregados, plantas silvestres e pedaços de lenha se distinguiam


como manchas no escuro. E a madrugada, chegava com seu ar congelante. Arrastando-se com
uma das suas pernas mancas, Rogério coxeava no breu. A queda pareceu não ter lhe causado
nenhuma lesão, mas por um longo caminho, trafegou com dificuldades sentindo um incomodo
na coxa esquerda. Levou um bom tempo para parar e analisar o ferimento, já que temia ser cap-
turado. Quando enfim massageou a perna, sentiu sangue quente escorrer. Foi nesse momento
que descobriu que os disparos de Picolé acertara o alvo. Como é que não notara isto antes? O
terror que o abalou e a velocidade com que se arrastou o impediu de perceber a dor. Se é que
sentia alguma. Isso não deverá impedir-lhe a fuga, obstinado, foi em frente.
O vagante respirava num murmúrio ofegante. Seu coração disparava. Por causa da visão
limitada e sua dificuldade de locomoção, arrebentava barreiras de plantas com a pressão do peito
e chutava raízes. A qualquer instante, os assassinos poderão surgir pela esquerda, pela direita
ou até mesmo saltando de uma árvore. Quando encontrá-lo, irão sem dúvida dar sequência ao
sequestro ou..., suou frio quando pensou na segunda hipótese: matá-lo de uma vez. Enganar a si

297
A Coragem

mesmo era inútil, suas chances de sair vivo desse lugar eram mínimas.
Onde quer que vá, a travessia trazia-lhe sensações de terror. Parou para tomar fôlego. Deu
um suspiro agoniado e seguiu caminho. O medo da morte ora era esquecido, ora abalava seu
estado emocional. Mais uma vez pensou na esposa e na filha adotiva. Sentiu o coração pesado
ao pensar em Roberto. Por que, mesmo numa situação tão crítica, não encontrava algo de bom
em seu coração quando se lembra dele? Será nunca o amou? Este não era o momento mais pro-
pício para pensar no assunto, mas vez ou outra um sentimento de remorso o incomodava. Nunca
quis mal ao filho, embora acabasse de ter certeza da verdade que sempre quis ignorar: seu amor
por Rosane sempre foi muito maior se comparado com o que tem pelo unigênito. Prometeu a si
mesmo que se escapar desse tormento, irá mudar sua postura em relação ao isso. Se escapar...
O desespero o dominou assim que tropeçou em algo rígido e despencou com a cara num
amontoado de matéria orgânica. A perna alvejada latejou. Quanto tempo levaria para o san-
gue parar de escorrer? Pensou, aflito. Imediatamente, tentou se levantar. Sentiu algo viscoso
escorrer-lhe pelos dedos e um cheiro de manga podre espalhou-se no ar. Com o tato, percebeu
que estava diante da raiz de uma mangueira. Ergueu os olhos e percebeu as formas do enorme
tronco. Como não havia o enxergado antes?
De joelhos, Rogério recordou decepcionado sobre o fato de não ter voltado a visitar sua
propriedade mais vezes. Podia ter tirado alguns dia para conhecer a região, passear pelo mata ao
redor do sítio. Se ao mesmo possuísse uma noção mental sobre onde se encontrava, poderia ser
menos complicada uma estratégia de fuga.
O susto passou, na verdade, nem teve tempo para isso. Esfregou as mãos imundas na
própria roupa, removendo a podridão. Também deslizou os dedos na perna ferida, procurando
tatear a carne perfurada. Sentiu mais sangue jorrar lentamente.
Quanto ainda terá que percorrer até encontrar a estrada? Ouviu o ruído de água corrente,
chiado de grilos e sapos. Moscas subiram zunido. Concentrou-se ainda mais no lugar. Só então
entendeu que havia caído numa parte baixa do terreno. Perto de um pequeno lago. Exausto, viu
lágrimas involuntárias encheram suas pálpebras.
– Meu Deus, por que estão fazendo isso comigo? – lastimou-se, num tom carregado de
revolta. Sem se render, fez sua mão encontrar um ramo firme de cipó. Agarrou-se nele e adquiriu
impulso. Com a força dos braços, foi pisando devagar, reerguendo-se.
Contudo, o mal maior havia seguido seu rastro. A constatação se tornou real, assim que
observou um facho de luz incidir longínquo. A selva que o circulava ficou parcialmente visível.
Por sorte, a claridade não o alcançou, apesar de que para isso acontecer será questão de tempo.
Encolheu-se onde estava para que o portador da lanterna não o veja. Ligeiro, saltou para trás de
um amontoado de galhos desprendida, escondendo-se.
Um som de pisadas se aproximou. Rogério começou a respirar com mais intensidade.
Estreitando sua visão por entre a fenda, notou que o perseguidor estava cada vez mais perto.
Concluiu ser um dos assassinos. Não havia dúvidas. Quando a silhueta do homem entrou em
foco, sons de asas batendo ressoaram. Apesar de não tê-las vistos, sabia que pássaros voaram
naquele momento.
Abruptamente, uma voz conhecida se pronunciou:
– Ei, velhote, apareça! Sei que está por aqui...
O banqueiro nem se mexeu.

298
William R. Silva

– Não estou para brincadeiras, chega de se esconder. – gritou-lhe o perseguidor. Sua víti-
ma continuou no lugar, imóvel. Então, disparou-se um tiro.
Fugir para longe! Foi o máximo que Rogério conseguiu pensar ao ouvir o estalo. Saiu em
disparada, estraçalhando plantas silvestres, quebrando galhos.
Mas suas pernas mancas não o levaram muito longe. Teve de parar para reabastecer o
fôlego. Quase a desmaiar de cansaço, virou o rosto para trás. Não enxergou ninguém. O bandido
sumiu, nada de fachos de lanterna. Nem disparos. Será que o captor o perdeu de vista? Obteve
a resposta quando sentiu um calafrio. Novamente, escutou passos se aproximarem. O maldito
desligou a lanterna!
– Pensou que não iríamos te alcançar, não é? – o meliante riu alto.
Em busca do autor da voz, Rogério girou e ele tomou um susto intenso com a imagem do
homem baixo e meio obeso apontando uma arma para sua cara. A lanterna que o outro portava
se acendeu e sua face se iluminou. O rosto do matador possuía um que de maldade. E agora? O
que fazer? Comprovou que ter medo já não teria mais nenhuma utilidade.
– Quem te contratou? – Rogério quis saber, mirando-o – Já que vai fazer essa besteira,
pelo menos me dê esse direito!
O homicida se adiantou, fazendo sua arma reluzir.
– O que isso importa?
– Diga-me – Rogério insistiu.
Fitando-o nos olhos, Bola bradou:
– Não te direi nada... – deixou a arma rente a testa da vítima – Chega de enrolação... – sem
disparar, os dedos do assassino deslizaram levemente no gatilho.
A única coisa que restava a Rogério era esperar o abraço da morte. Quis gritar, clamar por
sua vida. E o que isso adiantaria? Todas as tentativas se esgotaram. Chorar? Nunca. Irá morrer
como um homem. Uniu as pálpebras lentamente, fazendo seus olhos se fecharem. Esperou o
estalo, respirando cada vez mais depressa.
Mas, nada aconteceu. Seu crânio permaneceu intacto, embora ainda sentisse o peso do
metal encostado em sua testa. Voltando a encarar o bandido, viu que ele estava com um sem-
blante diferente.
E o olhar de Bola não estava mais posto sobre ele. Ao invés disso, o matador observava
uma movimentação estranha na selva escura. Tinha alguém vindo na direção dos dois, o assas-
sino descobriu isso quando vislumbrou vultos se movimentarem por entre um tronco e outro.
– Eu já o vi – Bola moveu o braço para outro rumo. – Saia daí, agora!
Rogério ficou confuso.
– Com quem você está falando?
O bandido irritadiço se voltou para ele.
– Fique quieto, velho!
– Que pena, você me encontrou! – o sujeito misterioso caçoou. O matagal se rompeu e um
espaço se abriu para que o homem pudesse passar. Bola mirou a lanterna na silhueta e começou
a estudar as características físicas do inimigo. Quando o facho incidiu no rosto do homem, viu-o
com um brilho audacioso no olhar. Os cabelos dele eram grandes, pouco abaixo do ombro.
– Átila? – Rogério reconheceu aquela voz. Desejou olhar para trás, mas teve medo de
receber um balaço na testa – É você?

299
A Coragem

Nélson Átila adiantou-se. Parou e também apontou sua pistola para o inimigo. O sequestra-
dor nunca tinha o visto pessoalmente, embora já soubesse quem ele era. Mesmo assim, incitou-o:
– Então, você é o famoso Átila... – gargalhou – Muito prazer em conhecer... – de repente,
uma outra sombra emergiu da escuridão e se projetou bem atrás de Bola. Quando algo lhe atin-
giu pelas costas, gritou de dor – Arrrrg!
Rogério ficou estático e o ar teve dificuldade de sair de seus pulmões.
– Meu Deus... o que foi isso?
O rosto do outrora matador se contorceu e uma mancha de sangue sujou sua camisa. De-
pois de sentir uma barra pontiaguda atravessar-lhe o peito, Bola guinchou. Baixou os olhos para
o objeto pontiagudo, desmoronando. Soltou seu revólver, depois a lanterna e, cuspindo mais
sangue, ficou de joelhos.
Átila observou o espeto cravado nas costas do moribundo.
– Seu imbecil, não era para ter matado ele – irritou-se ao ver o morto despencar.
– Não me venha com lições de moral – Ernesto contra-atacou. Assim, segurou o cabo do
espeto metálico e o puxou. A vítima estrebuchou assim que a peça foi arrancada de seu dorso.
Incrédulo, Rogério contemplou a fisionomia do homem que salvou-lhe a vida. Muitos
anos se foram desde o dia em que o viu pela última vez. Era mesmo seu meio irmão? Mal acre-
ditava. Depois do curto período que levou assimilar a situação, a boca de Rogério se irrompeu
num grito de surpresa:
– Ernesto? – rastejou até o irmão – É você mesmo?
Ernesto espetou a espada no chão de terra e o acolheu de modo bastante fraternal. O abra-
ço durou tempo suficiente para deixá-los bastante emocionados.
– Quanto tempo – o banqueiro deu um sorriso cansado –, pensei que nosso reencontro
seria um pouco melhor que esse.
Os dedos dele massagearam a pele facial de Ernesto para que pudesse examiná-lo com
mais cuidado. O tom enigmático daqueles olhos azuis que tanto gostava de admirar persistia
firme. Seu coração se inundou num mar de remorsos. Tinha deixado-o desamparado na prisão
manicomial. Nunca mais quis saber notícias dele. Deveria ter feito mais pelo irmão mais novo.
Mas, para sua alegria, nada havia de acusador no semblante daquele que fez parte de sua história
de vida. Parecia que o irmão o amava ainda mais, apesar de tudo.
– O que aconteceu com você, irmão? – o empresário quis saber, aflito – Não eram para
as coisas serem assim. Você virá comigo. Precisamos embora daqui! Meus dois filhos e minha
esposa devem estar preocupados.
Ernesto e Nélson trocaram olhares de cumplicidade. Desse modo, compreenderam que
Rogério ainda desconhecia o fato de que o próprio filho estava envolvido na trama.
– Eu errei com você, Ernesto – o irmão mais velho balançou a cabeça. Sua voz saiu
rouca – deveria tê-lo visitado na cadeia, tê-lo ouvido – sentiu uma lágrima escorrer. – Quando
soube que você havia matado uma pessoa, tive medo de me aproximar, temia que isso pudesse
sujar... – envergonhou-se em dizer, mas prosseguiu – pudesse sujar minha reputação. Você me
perdoa por isso?
Compreensivo, Ernesto o acalmou:
– Eu entendo o seu lado. Nunca o odiei por isso. Sucesso, poder e prestígio. Foi essa a
herança que seu pai lhe deixou. É sua obrigação zelar pela honra da família. Não o culpo!

300
William R. Silva

– Nosso pai, você quis dizer – Rogério o corrigiu.


Ernesto sentiu um impulso de raiva e mágoa crescer em seu âmago.
– Seu pai! Não meu... – vociferou – você sabe muito bem disso, Rogério.
– E o que importa? – o banqueiro o questionou – Para mim isso nunca importou.
Ernesto suspirou, pensar no passado não lhe fazia bem.
– Para você, não... mas para mim, sempre fez uma grande diferença – apertou os punhos
e franziu a testa. – Sou filho do pecado.
– Pare de dizer besteiras! – o homem de cabelos grisalhos falou– Esqueça isso, deixe de
lado esses seus delírios de salvar a humanidade, missão sagrada! Eu tenho recursos o suficiente
para te ajudar, venha conosco!
Os olhos azuis de Ernesto, depois de tantos anos, mostraram uma leve dose de serenidade.
– Ninguém nunca vai entender. Se faço o que faço, é por que quero um mundo melhor.
Não espero ser compreendido, mas sim, venerado – deu as costas. – Sinto-me muito feliz em
te rever, Rogério. Desejo-lhe todas as bênçãos do mundo, mas nossos caminhos são opostos.
Adeus, querido irmão! – afastou-se.
Segurando a perna molestada, Rogério avançou três passos longos. Ao lado de Ernesto, suplicou:
– Fique conosco... irei ajudá-lo no que precisar. Não faça isso!
Ernesto havia se esquecido de Átila, só voltou a se lembrar da presença dele ali quando a
voz do seu respeitado mestre e, ao mesmo tempo inimigo, ecoou sorrateira:
– Acha mesmo que conseguirá sair livre daqui?
Sem se virar para ele, o lunático respondeu:
– Esqueça nossas picuinhas, Nessahen! Vá atrás de seu filho. Ele deve estar necessitando
de sua ajuda. Vai mesmo perder seu tempo tentando me interceptar?
– Não o impedirei de ir... – Átila devolveu – Cumprirei minha palavra, mas saiba, que essa
história não termina aqui. Vamos caçá-lo até o fim!
Ernesto o olhou de lado, com o rosto por cima do ombro.
– Desse momento em diante, tudo voltará ao normal entre nós dois. É será assim que as
coisas irão continuar, Nessahen. Esteja preparado!
– Cada um escolhe seu caminho – Átila concordou. – Você escolheu o pior deles. Boa
sorte sua jornada, meu caro! Pois vai precisar.
Ernesto deu um risada quando sua mão apertou o cabo da lâmina ensanguentada, mas sem
explicar o motivo, não a levou consigo. A espada continuou no lugar. Após afastar dois ramos
grossos de guaimbê e produzir uma brecha para passar, o fugitivo respondeu, voltando a falar
com sua antiga frieza interior:
– Digo o mesmo para você – seguiu a caminhar. – Cuidem-se!
O homem ferido quis impedir o irmão de partir, mas continuou imóvel.
– Volte, irmão! Eu posso ajudar você. Limpar seu nome...
– Sua vida está salva, Rogério – Ernesto entrou numa trilha, mas não ficou totalmente
invisível quando parou de caminhar. – Tenho mais um assunto para tratar. Tem uma pessoa
que me deve explicações. Cuide bem da sua esposa e sua filha. Elas, e somente elas, são sua
verdadeira fortuna.
Rogério apenas o observou desaparecer, emudecido.
– Você está ferido... – Nélson retirou o celular da jaqueta. Ernesto estava distante e Rogé-

301
A Coragem

rio a salvo, já era hora de quebrar a promessa. Assim, declarou – Vou chamar ajuda!
– Espere! – Rogério respondeu, observando o lugar que o irmão estava antes. Se estivesse
em condições, correria atrás dele. Mas, de que isso adiantaria? Conhece bem a teimosia de Er-
nesto. Conformado, virou-se para Átila – Dê-me o celular! Vou ligar para meu convênio médico,
o que tenho é o melhor e mais caro do país... a polícia também deve ser contatada.
Átila entregou-lhe o aparelho.
– Quanto tempo o resgate demorará para nos encontrar?
– Não sei... talvez uns quarenta minutos... ou uma hora – Rogério respondeu, digitando o
número emergencial.

75

O SANGUINÁRIO

Um muro de rochas úmidas barrou-lhe a passagem. Sem vacilar, Ernesto agarrou uma
das pedras e pisou por cima de outra. Pé por pé, foi se firmando sempre que encontrava uma
base sólida para seguir com a escalada. O trajeto estava ruim, mesmo assim, transitar no escuro,
para ele, ainda era uma grande vantagem. Sua audição funcionava como um radar ante sinais
de perigo. Mais assassinos circulavam a reserva, teria de ter toda atenção possível para não cair
numa armadilha. Contudo, o temor da morte não importava. Já enfrentou episódios semelhantes
em outras fases de sua vida.
Sua subida no muro pétreo já estava quase no fim. Qualquer que fosse o obstáculo, estava
determinado a enfrentá-lo. Está completamente furioso com as atitudes do sobrinho. Prometeu
a si mesmo que as coisas não ficariam como estavam. Seus planos seriam adiados. Esqueceria
o Quartel e seus inimigos declarados. Acertar as contas com Roberto, agora, era sua prioridade.
As palmas de suas mãos deslizaram na base de rochas e finalmente chegou ao cume. Tirou
a arma da cinta e aventurou-se na mata. O som de água corrente alcançou seus ouvidos, embora
não soubesse por onde a fonte escorria. Foi em frente, enfrentando insetos, plantas nativas, ra-
mos finos e animais noturnos.
Conforme penetrava na escuridão da floresta, revivia trechos horripilantes de seu passado
sombrio. O excesso de cautela fazia seu braço direito direcionar sua pistola Beretta nove mi-
límetros para qualquer mancha que se movesse nas sombras. Mesmo o tímido chacoalhar das
grandes folhas das heliconias que dançaram com a ação de uma gamba, fizera-o dar um passo
para trás e quase disparar. Sentiu-se um tolo. Esperou o animal fugir e continuou os passos.
Logo adiante, rompeu uma barreira de tumbérgias com a força dos dedos e esparramou
os fragmentos verdes. Adquirindo passagem, encontrou o que almejava. Avistou riscos de luzes
brotarem das fendas. Um poste clareava nas proximidades. A casa de campo estava próxima, lá
havia a única fonte de iluminação. Todo o resto do território será indistinguível até o nascer do sol.

302
William R. Silva

Guiando-se pelo rastro de claridade, começou a pisar com mais calma para não chamar
atenção. Espantou moscas com um ligeiro sacudir de mãos e afastou caules moles. Teve cala-
frios, interrompeu a travessia. Sua intuição para o perigo ativou-se. Prevendo uma armadilha,
rodopiou e viu um vulto mover na luminosidade escassa. Galhos de uma das árvores se balan-
çaram, depois se aquietaram novamente. Ernesto, com o braço em riste, foi para mais perto,
prestes a atirar se as folhas voltassem a se mexer. Tinha um homem encolhido entre as galhos da
goiabeira. Avistou-o logo de cara. Curvou-se para cima quando bradou:
– Acabou a brincadeira. Desça logo daí!
Encurralado, o tocaieiro então se revelou na escuridão e saltou do pé de goiaba. Por causa
da força do impacto, o tronco oscilou e folhas mortas se desprenderam. Picolé se ergueu, mas
quando se preparava para sacar seu revólver, Ernesto o interceptou:
– Tire as mãos daí! – adiantou-se, deixando sua mira a meio metro do homem negro –
levante as mãos!
Com os braços erguidos, Picolé bradou:
– Deixe de besteiras! Estamos do mesmo lado ou não?
Depois de chegar mais perto do homem rendido, Ernesto apalpou-lhe a cintura e de lá,
arrancou o revólver dele.
– Você cometeu crimes a mando do meu sobrinho. Assim como ele, traiu minha confiança.
– Pare de besteiras! – o bandido falou – Você tem como provar o que diz?
Os olhos de Ernesto analisaram o braço enfaixado de Picolé, depois subiram para encarar
o rosto dele.
– Essa faixa que está usando no braço... – guardou a arma de Picolé dentro da jaqueta,
enquanto mirava a sua na direção do mesmo – Você recebeu um tiro no braço e foi Dionísio
quem deu. Tentou eliminá-lo a mando do meu sobrinho.
O homem negro e magro deu uma risada longa.
– Os outros me pagam... e eu faço o serviço. E é assim que as coisas funcionam. Falando
nisso, o que faz aqui? – de fato, ter encontrado Ernesto ali não o deixou embasbacado, mas a
curiosidade o incomodou.
Uma linha de ira se desenhou por cima da testa de Ernesto.
– O homem que sequestrou para matar é meu irmão – sua voz transbordou de raiva – não
se faça de desentendido!
Gravetos se quebraram quando Picolé pisoteou o solo espesso e ficou mais próximo. Com
um ar sarcástico, revidou:
– E quem te disse que me importo com isso?
O modo como foi respondido o desagradou tanto, que Ernesto mordeu os lábios para se
controlar. Por uns poucos segundos, teve de conter o desejo de presenteá-lo com um balázio na
testa. Contendo-se, continuou a falar:
– E o fato de Roberto tê-los contratado para assassinar o próprio pai dele, isso não pre-
ocupa? – o vapor gelado que subia do riacho próximo esfriou a pele de ambos. Ernesto sentiu
seus pelos arrepiarem. Não sabia se era por causa da temperatura ou pela sua suspeita de, além
do que está a sua frente, ter outro à espreita de atacá-lo. Espiou em volta e finalizou: – Você não
teme confiar num homem assim?
Dessa vez, Picolé não demonstrou nenhum sinal de sarcasmo. Sério, respondeu:

303
A Coragem

– Não há novidades nisso. Eu já sabia de tudo quando aceitei o serviço.


Ernesto afastou-se, fugindo da penumbra. Empurrou pedaços de lenhas e vegetais. Entrou
na área iluminada, fazendo seu rosto ficar visível. Encarando a desagradável face negra, falou:
– Mas eu os havia contratado para trabalhar para mim. Jamais deveriam ter ajudado meu
sobrinho nessa sandice. Isso foi quase traição.
Picolé se calou, pensou no assunto e devolveu:
– É verdade... mas seu sobrinho nos convenceu a ajudá-lo. Nos pagou uma boa quantia
para concluir a tarefa e ainda teria mais depois de completarmos a missão. Estando tudo termi-
nado, voltaríamos para sua equipe.
Ernesto o mirou com os olhos em chamas.
– Eu costumo não ser piedoso com quem trai minha confiança, mas te darei um segunda
chance. Eu o desarmei, não é? Posso devolver seu brinquedo se aceitar minha proposta.
– E qual seria? – respondeu o outro.
– Ajude-me a dar uma lição no meu sobrinho – Ernesto reparou em volta. – É a sua melhor
opção. Bola está morto, mas você ainda poderá se dar bem. A escolha é sua!
– O quê? – o rosto de Picolé se tornou incrédulo – Pegaram o Bola?
Ernesto ia dizer algo, contudo, o rumorejar repentino de folhas o impediu de falar. Sobres-
saltaram-se. Sua atenção e a de Picolé foram redobradas. O rumor da presença de mais alguém
por perto os deixou exageradamente tensos. Tanto um quanto o outro, voltaram-se para todas as
direções em busca do ser misterioso.
Presumindo um ataque surpresa, Picolé pediu, aos berros:
– Ernesto, devolva minha arma! – esticou a mão pedinte, mas nada foi lhe entregue – Eu
aceito sua proposta! – gritou ainda mais alto, ao sentir o indivíduo se aproximar – Por favor,
passe-a para mim, agora!
Ernesto ignorou o pedido. Por enquanto, nem sinal da pessoa misteriosa, apesar dos pas-
sos ressoarem cada vez mais nítidos. Não podiam vê-la, só ouvi-la. Tinha dificuldade de agir.
Atirar para onde? Em quem? O estado de dúvida o deixou atordoado. Qual dos dois o novo
aliado ajudaria? Contra quem virá o provável ataque?
– Me dê essa arma logo – Picolé implorou. – Ernesto...
Lentamente, viram uma brecha se abrir entre a mata alta. Por meio do atalho, as formas
de uma figura grande e musculosa surgiram na escuridão, como um fantasma para assombrá-los.
– Devolva-me, depressa! Ernesto, jogue a arma pra mim... – Picolé insistia, mas o homem
continuava a ignorá-lo.
– Não vou me arriscar... – disse-lhe Ernesto – isso pode muito bem ser uma armadilha
para me cercar.
– Não faça isso, Ernesto.... devolva-me ... – Picolé sentiu um estranho temor. De algum
modo, soube que as coisas mudariam de rumo a partir dali.
O forte temor estimulou sua frequência cardíaca. E, antes que o outro irrompesse a barrei-
ra vegetal, Picolé girou no calcanhar, já vislumbrando o brilho metálico. O assassino misterioso
foi ágil e disparou na direção dele, fazendo o projétil penetrar-lhe o ombro. Soltou um gemido
rouco ao sentir a clavícula latejar. Os ataques não pararam por ali, Picolé dessa vez berrou de
dor quando ganhou uma nova rajada no abdômen. Tentando se manter em pé, encorajou-se para
poder enxergar o atirador de frente, obtendo uma terrível surpresa ao reconhecê-lo.

304
William R. Silva

– Você? Mas... por quê? – mirando o matador com os olhos esbugalhados, o acusou,
colérico – Seu traidor maldito! Desgraçado!
Ernesto, no mesmo instante, correu e se conteve atrás de um grosso tronco. Começou a
respirar mais depressa, centrado na aproximação do homicida. Espiando por entre uma fenda,
assistiu a horrível cena da vítima sendo alvejada.
– Filho da puta! – Picolé esbravejou. Cambaleou para trás e, com as poucas energias que
lhe restavam, segurou-se num galho seco que se quebrou. Não soube em que momento caiu de
joelhes, mas quando viu, já estava agachado.
Desatando a rir, o atirador enfim deu as caras. Fitando a vítima nos olhos, declarou:
– Não preciso mais da sua ajuda – o monstro então se aproximou e encostou o revólver
na testa do ex-aliado.
Esvaindo-lhe as forças, a vítima o amaldiçoou:
– Irá pagar por isso… seu desgraçado! – dito isso, obteve o tiro de misericórdia, estou-
rando-lhe o crânio.
Perplexo, Ernesto viu o falecido despencar com a cara no chão. Estreitou mais a visão
para poder avistar as características do matador. Não é possível! Assustou-se de novo. Os olhos
dele se escancararam, sua boca entreabriu. Só podia ser o Roberto. O que seu sobrinho fazia
ali? Ernesto se encontrou completamente sem ação. Existia algo errado. Por que razão Roberto
estaria na chácara? Mais do que tudo, o sobrinho precisaria de um álibi para se safar da acusação
de parricídio. Ele estar no local do crime não fazia o menor sentido.
Roberto afastou obstáculos e chutou o finado por duas vezes. O corpo ensanguentado
sequer reagiu.
– Tio... – começou a pisar devagar – onde está você? Não quero lhe fazer mal.
Por de trás do tronco, o homem respondeu:
– Estou muito decepcionado com você, meu caro! Pensei que fosse mais sensato. Eu o
admirava. Via muita perspicácia em você. Sabia disso?
Roberto seguiu caminhando, calmamente.
– Sei que jamais vai me perdoar por isso, mas me deixe explicar!
Ernesto conferiu a arma de Picolé que estava oculta em sua jaqueta. Depois, segurou
firme na sua com ambas as mãos.
– Você se tornou um parricida. Sabe o que isso quer dizer? – rosnou – Quer dizer que
amaldiçoou sua alma. Nenhum homem deve atentar contra o próprio pai. Isso é o maior dos
pecados. Condenou-se ao inferno, eternamente!
O sobrinho gargalhou.
– Nunca acreditei nessas superstições religiosas. O único deus que sigo – ele se aproxi-
mou do esconderijo – é a riqueza. É isso que move a fé dos homens. Todo o resto são histórias
que foram criadas para fazerem pobres e miseráveis acreditarem que possuem algo de especial.
Se fiz o que fiz, foi para proteger o legado da família.
– Proteger o legado da família? – o outro estudou em volta, em busca de outra linha de
fuga – Proteger de quê?
O timbre de Roberto se alterou:
– Meus antepassados ergueram o nosso império bilionário. Um império que deveria ser
transmitido de uma geração para outra. Tudo deveria ser entregue a mim, o herdeiro de sangue –

305
A Coragem

devagar, ia se achegando para mais perto do tio. – Mas veja o que seu amado irmão fez? Preferiu
colocar estranhos no controle do banco ao invés de me inserir no lugar que era meu por direito.
Sem contar aquela filha ilegítima! Até você tem mais direitos do que ela. Meu pai já até insinuou
que preferia ver a sonsa da Rosane na presidência do que eu – mostrou-se ainda mais enérgico. –
Eu não posso admitir isso. Nunca! – Roberto deu um grito engasgado – Ele sempre preferiu ela
a mim. Eu não fui nada mais que um estorvo na vida dele.
Ernesto devolveu, enfurecido:
– Que se dane seus argumentos! Pare de agir como um bebê chorão! Além de tentar fazer
tal atrocidade, também atrapalhou meus planos quando convenceu meus capangas a ajudá-lo
nesse plano ridículo. De agora em diante, entrou na lista dos meus inimigos.
Roberto concluiu que seu discurso não surtiria efeito, então, decidiu partir para a guerra.
– Então é assim que vai ser? – volveu – Vim propor uma trégua... mas vejo que de nada irá adiantar.
Quando finalmente encontrou a árvore que o tio usava como escudo, Roberto abriu um
sorriso e apontou o revólver no rumo do local. Foi indo vagarosamente até que chegou disparando.
– Droga! – reclamou, assim que os três tiros que deu atingiram o tronco. Ernesto havia
sumindo dali. Ou será que tinha enxergado o lugar errado?
Quando uma rajada inimiga zuniu em sua direção, Roberto saltou para dentro de uma
moita. Escondido, procurou a origem do ataque.
– Quer mesmo brincar de gato e rato?
De algum lugar, a voz sussurrou:
– Não se compare a gatos e ratos, Roberto. Ambos são muito mais confiáveis do que você.
Foi se arrastando pela moita até encontrar uma trilha de matagal. Ficou bastante satisfeito
ao vislumbrar o verdadeiro paradeiro do tio. Ernesto zanzava de uma árvore a outra e camuflava-
se na selva, visando confundi-lo no confronto. Roberto adquiriu uma ótima vantagem. Agora via
todos os movimentos do pistoleiro e podia calcular os próximos.
De caçador, Ernesto transformou-se na caça. Concluiu isso quando escutou um disparo
em sua direção. Rápido, correu para o tronco seguinte. Onde ele está? Onde?
– Maldito! – gritou, apontando para todas as direções. Ele efetuou mais um disparo nas
proximidades. Mais três foram ouvidos em resposta. Assim que saltou para a vegetação mais
densa, vociferou – Seu covarde. Acha que vai se esconder de mim por muito tempo?
O revólver do inimigo voltou a dar sua sequência de estouros.
Ernesto escapou deles, ligeiro. Tropeçou em qualquer coisa firme, manchou a roupa no lodo
quando, sem cair, desequilibrou-se. Também espetou-se com espinhos de uma das planas nativas.
Mais adiante, ouviu-se um som de água ricocheteando nas rochas. A fonte estava próxima. E real-
mente estava, pois, ao atravessar uma passagem estreita, deparou-se com uma barranco alto. Lá em
baixo, uma cachoeira jorrava de uma nascente e transbordava-se na lagoa logo abaixo de seus pés.
Dali não podia fugir, a não ser pular. Constatou isso ao perceber que alguém vinha em sua direção.
Era tarde demais! Ernesto perturbou-se com o fato de dar a batalha como perdida.
Quando sentiu o sobrinho se aproximar por trás dele, Ernesto argumentou:
– Atirar pelas costas não é um ato honroso. Vai mesmo fazer isso?
Assim que dirigiu o revólver no rumo das costas do tio, o homicida indagou:
– Meu pai ainda vive?
Após um longo suspiro, Ernesto respondeu:

306
William R. Silva

– Sim, salvei-lhe a vida.


– E contou toda a verdade para ele? – empurrou-o, fazendo com que Ernesto desse um
passo à frente. Estava prestes a cair.
Ele olhou Roberto por cima do ombro.
– Não... ele não sabe de nada.
Então, Roberto deu uma risadinha cínica e declarou:
– Ótimo. Ainda tenho chance de sair inocente nessa história – sem a menor culpa, fez um
novo disparo atingir as costas de Ernesto.
Ernesto pareceu perder o fôlego ao sentir a rajada queimar-lhe o ombro esquerdo.
– Eu... jamais deveria... – massageou a parte atingida, fazendo sua mão se encharcar de
sangue – ter confiado... em você... – antes que mais tiros o atingissem, Ernesto se jogou na lagoa.
Gotas respingaram assim que despencou por cima do pequeno lago.
Foi então que Roberto tentou acertá-lo novamente, mas nada aconteceu. Puxou várias
vezes o gatilho, a arma só estralava.
– Merda, não era para essas munições terem acabado – curioso, tirou sua pequena lanterna
do bolso e começou a clarear a lagoa, em busca de sua vítima. Entreviu uma silhueta se mover
por baixo d’água e depois, desaparecer – Ele não vai resistir, logo, logo morrerá à míngua – um
meio sorriso surgiu entre seus lábios.
Alegrou-se ao constatar que quase todos que podiam incriminá-lo já estavam fora de cena,
mas ainda restavam mais alguns.
– É hora de partir para o próximo nível – deu as costas e seguiu para a casa de campo.

76

O RECUO

Enquanto Rogério se inclinava sobre a grande raiz tabular de uma figueira, seu velho amigo
fazia sua ronda. Por onde Nélson passava seguindo-se de seus golpes de espada, ramos e folhagens
se dilaceravam e bichos, escapuliam ligeiros e sumiam na selva. E, ao progredir em suas investidas,
suas mãos se apertavam firmes na espada de Ernesto, proferindo-a com vigor em cada obstáculo que
brotava na escuridão. Cortava tudo o que via, desde caules grossos até frutos apodrecidos.
– Será que o tiroteio realmente terminou? – o homem esparramado na raiz, perguntou.
Átila parou para descansar. Depois de segurar a aba de sua jaqueta, chacoalhou os bolsos fe-
chados, certificando-se de que suas munições reservas estavam bem guardadas. Então, respondeu:
– Talvez sim, talvez não – continuou a lacerar plantas e demais vegetais que serviam-lhe de
entraves. Como já havia lhe ocorrido repetidas vezes, mais uma vez sentiu o coração apertado. Será
que um desses disparos haviam acertado o filho? Jamais se perdoará caso algum mal lhe aconteça.
Rogério apalpou a perna, mais sangue escorreu-lhe sobre os dedos. Será que a ajuda irá

307
A Coragem

demorar mais do que havíamos calculado? Pensou. A equipe, junta a seu reforço policial, iria
gastar um bom tempo para resgatá-los. O pior já passou, tinha de resistir. Sua outra mão deslizou
pela casca rija. Ao sentir o que procurava, apanhou o revólver que fora posto ao seu lado.
– O tal Bola quase tirou minha vida com essa arma – ergueu-a diante dos olhos, fazendo o
metal cintilar a luz da lanterna que era projetada em sua direção.– Agora ela me protege – fitou
Átila e indagou: – Será que o outro sequestrador também foi pego?
Átila pensou por um momento.
– Pela quantidade de tiros que ouvimos – espetou a espada num grosso tronco. O cabo
bamboleou quando afundou-se na casca – é bem provável que, a essas horas, também já esteja
nos quintos dos infernos.
Sua consciência tornou a perturbar-lhe a paz. Era de Dioniso que desejava notícias. Que
se dane os bandidos! Que se dane Ernesto! Maldita hora em que o irresponsável invadiu a mata,
deixando ele e Ernesto para trás. Sussurrou para si mesmo. Por que não os esperou? Tinha mais
raiva de tê-lo deixado ir do que do ato de teimosia propriamente dito. Podia ter feito qualquer
coisa para contê-lo. Gritado mais forte, ameaçado ou, quando nada resolvesse, dado um tiro no
ar. Por mais que quisesse não se lembrar do filho, a imagem de Dionísio vinha e voltava em
sua mente. Era tolice enganar a sim mesmo. Havia, sim, chances de o filho ter sido alvejado.
Estar morto. Bem próximo, houve um confronto mortal. Foram várias disparos. Ouviu-os com
clareza. Tentou ligar para o celular dele, mas a ligação não foi atendida.
– Estou preocupado com o Ernesto – Rogério se endireitou no assento desconfortável –,
ele também pode ter sido uma das vítimas.
O homem de cabelos longos o cortou:
– Ou um dos assassinos.
Rogério achou mais viável não discutir sobre o assunto. Deitou-se, observando o céu por
entre um vão de galhos carregados.
Depois de arrancar a espada e tornar a empunhá-la, Átila comentou:
– Vamos esperar aqui por um tempo – reiniciou sua tarefa, cortando mais uma das raízes.
Aquilo era mais uma terapia do que necessidade. Era verdade que tinha de abrir caminho para
trafegarem, mas; se fazia isso, escolheu fazer para não ficar parado. A tarefa é um modo de conter
sua angustia interior. Preocupar-se com o filho estava consumindo-o por dentro. Enquanto estiver
se exercitando, ficará com a mente ocupada. Reparou no amigo encolhido na pé da árvore e disse:
– assim que tivermos certeza de que não há mais perigo, partiremos para sua casa de campo.
Rogério sacudiu a cabeça.
– Mas creio que não é bom demorar muito – respirou fundo –, pois é lá que a ambulância
e os policiais irão nos encontrar.
– Sim. Esperaremos apenas tempo suficiente para comprovar que não há mais troca de
tiros – Nélson prosseguiu com a poda. A cada espadada, um suor descia-lhe sobre a testa. Deu
uma, depois outra, arrancando galhos, cipós e vegetais do caminho – Assim que eles chegarem,
você vai para o atendimento. E eu e os polícias procuraremos por meu filho e a outra refém.
Esperar o amanhecer para agir seria irresponsabilidade da minha parte.
– Sim.... – o banqueiro concordou – tinha me esquecido dessa pobre moça. Que Deus os
proteja de todo o mal!

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William R. Silva

77

O ATAQUE FINAL

Corujas espiãs com suas imagens fantasmagóricas, ramos carregados que lembravam de-
dos prestes a agarrá-los. Cordas de cipós que os enlaçavam como demônios querendo puxá-los
para o mundo dos mortos. Vez ou outra, também se assustava com as pancadas de galhos que
rebatiam em seus rostos. Um a um, os elementos da selva se assemelhavam a criaturas horripi-
lantes. Era como se estivessem atravessando uma espécie de túnel do terror, como os que via no
parque de diversões.
Maria do Rosário tinha vontade fechar os olhos, fingir que tudo não se passava de uma pe-
sadelo. O escuro por si só já era uma convincente fonte de pavor, evitava ao máximo assustar-se
com coisas inúteis. Enquanto avançavam na trilha, seus dedos se apertaram na mão de Dionísio.
Cada novo obstáculo a fazia transporta-se novamente para seu trailer de terror. Os passos
acelerados avançavam no mesmo ritmo de sua respiração. Mas por que haveria de temer? Dio-
nísio estava ali para protegê-la. Ele a salvou uma vez e fará isso quantas vezes for necessário.
Pelos menos assim imagina.
O percurso se formava diante de seus olhos conforme a luz incidia no decorrer da tri-
lha. Seu protetor surrupiou a lanterna de João Sérgio para que pudessem usá-la na travessia.
Lembrou-se do homem largado no bananal a própria sorte. Por que diabos ainda pensava nele?
Talvez tivesse pena dele, apesar da raiva que nutria por ele por causa das atrocidades que sofreu.
Muitos anos na prisão ele esperou para reencontrá-la. Quando ele foi preso, eles ainda estavam
namorando. Para ela tudo tinha terminado, mas para João Sérgio, não. E o que ela poderia ter fei-
to? Fosse o que fosse, o maldito sequestrador não deveria tê-la tratado da forma como a tratou.
Sentiram mais folhagens roçar-lhes a face e gravetos e raízes engastalhavam-se em suas
pernas. Dionísio removeu empecilhos com a força do braço, quebrou pedaços de lenha podre e
as lançou para longe. Começaram a ir mais depressa.
– Como foi que você veio parar aqui? – ainda que apressados, Dionísio tirou a dúvida que
tanto o incomodava.
O estridular de grilos e outras interrupções sonoras fizeram um coro com o barulho da
mata pisoteada. Com um motivo aparente, Maria se constrangeu com a pergunta. O que pensará
dela quando disser a verdade? Calou-se, mantendo a resposta no ar.
O homem insistiu, guiando-a.
– Não vai me responder?
Ela chegou a abrir os lábios, mas as palavras se perderam. Se contasse o que lhe ocorreu,
Dionísio a acusaria de tola. Ou ingênua. Talvez as duas coisas. Quando os dois vislumbraram
uma claridade oscilar, desligaram-se imediatamente do diálogo e, num movimento brusco, Dio-
nísio os fez parar.
– O que é dessa vez? – Maria se apavorou.

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A Coragem

Ele a encarou. Subiu o dedo indicador e o posicionou ante os lábios, fazendo-a ficar em
silêncio.
– Preste atenção – falou com uma voz tão baixa que Maria por pouco não ouviu. – está
vendo aquilo? – apontou para longe.
Apagou-se a lanterna e tudo se escureceu ao redor deles. Somente a claridade longínqua
permaneceu. Não soube por que não tinha notado aquilo antes. Maria deu um suspiro fundo e
pesado ao observar que, por entre a barreira de árvores e plantas selvagens, encontrava-se a
entrada dos fundos de um grande sítio.
Ele achegou os lábios na orelha esquerda da namorada e falou num sopro:
– Fique calma! Vamos ter que passar por dentro daquela casa. Meu carro está estacionado
do outro lado do terreno dela.
Maria analisou os contornos do local e depois sussurrou, voltando seus olhos medrosos para ele:
– E se tiver mais bandidos lá?
Em resposta, ele sacou o revólver calibre vinte e dois, fazendo-a afastar-se instintivamen-
te. A dolorosa experiência que teve nas últimas horas já foi o suficiente para deixá-la bastante
traumatizada com armas de fogo. Ouviu Dionísio falar, fitando-a:
– Se mais alguém quiser nos fazer mal, eu enterro uma bala na testa dele – então começa-
ram a andar calmamente. Enquanto rodeavam árvores, Dionísio conduzia a mira para qualquer
direção atrás de possíveis contratempos.
Seguiram caminho, passando por uma aleia de bambus para que assim, pudessem alcan-
çar a cerca que os separava da propriedade. Sorrateiro, Dionísio agachou-se e a puxou para baixo
da cerca. Quando atravessaram para o outro lado, as costas de ambos quase se cortaram com a
linha de arame farpado.
Levantando-se devagar, puderam observar melhor a área da chácara. Era um lugar per-
feito para momentos românticos e férias de família. Maria concordou. Coqueiros cujas extre-
midades balançavam-se uma rede, um jardim decorado com estátuas de golfinhos e esculturas
de pedra. Mesas e assentos feitos com peças de árvores cortadas. A grama era tão verde que
brilhava intensamente com a claridade.
– Vamos! – o homem armado estudou ao redor e segurou as mãos de Maria com firmeza.
Correram pela grama do jardim, circularam a piscina e se depararam com a porta dos fundos
casa de férias aberta.
Quando pisaram no assoalho e começaram a transitar pelo lugar, Dionísio sentiu as mãos
de Maria tremerem. Segurou-a com mais vigor, apertando-lhe os dedos. Vasculhou cada cô-
modo com um olhar atento. Considerando lugar vazio, guardou a revólver de volta no coldre.
– Fique calma! Eu disse que está tudo bem – atravessaram uma passagem e encontraram
o pequeno salão. Desviaram-se de uma mesa de sinuca com bolas espalhadas por cima do forro
verde. A cerca de três metros do bilhar, avistaram um enorme barzinho contendo vários tipos de
bebidas destiladas. Sofás, uma mesa e cadeira. Quadros e vasos decoravam o ambiente. Foram
para o cômodo seguinte.
Acreditando-se que não haviam ameaças, os passos de ambos ficaram mais rápidos. Ma-
ria olhou para o alto e viu um rato caminhar pelo teto. O medo ainda a perturbava. Assim que
viram marcas de sapatos no chão, pararam para examiná-las.
– Droga! – Dionísio bradou, ao se ver na iminência do perigo. Imediatamente preocupou-

310
William R. Silva

se com seu pai. Será que estava vivo? E Rogério, será que já haviam-no encontrado? Precisava
ter certeza de que tudo estava bem. Procurando por mais evidências criminosas ou sinais de
combate, largou a mão da mulher que o acompanhava e ficou a andar em círculos.
–Vamos sair daqui logo, pelo amor de Deus... – Maria implorou.
– Espere um pouco – Ele então analisou a escada e descobriu mais evidências. Os degraus
também estavam com mais marcas de terra em forma de solas. Dirigiu um olhar ligeiro para
uma singela mesa ao lado da escada. Nela, viu uma garrafa de bebidas e uma taça preenchida.
– Tem mais alguém aqui... – Dionísio concluiu – tenho certeza...
– Sim, ela já sabe – a voz masculina que penetrou nos ouvidos de Dionísio atiçou-lhe a
pulsação e fez seu corpo se enrijecer como uma animal pronto para o ataque. Virando-se para o
inimigo, ergueu o punho fechado para golpear-lhe a fronte.
Porém, desistiu de atacá-lo. Roberto sorriu para ele e levantou os braços. Na extremidades
de suas mãos, Dionísio vislumbrou o vaso de porcelana que o brutamontes segurava.
– Vá se ferrar! – disse Roberto assim que despencou o vaso, fazendo-o se chocar contra o
crânio do intruso e quebra-se em pedaços. O estardalhaço fez com que a vítima golpeada cam-
baleasse em busca de alguma para se apoiar.
O berro que Maria deu após ter observado Dionísio receber a pancada foi tão longo e
alto, que se sentiu exausta segundos depois. O choque, embora não fosse suficiente para fazê-lo
desmaiar, deixou Dionísio sem ação. Tudo a sua volta, por causa do impacto da dor, pareceu
rodopiar. Desequilibrando-se, colocou a mão na cabeça e massageou a área golpeada. Tropeçou
num móvel e escorregou, caindo no pé da escada. Era o segundo golpe que recebia ali num curto
prazo de tempo, custou a se recuperar.
Segurando no corrimão, Dionísio ajoelhou sobre os cacos. Então, voltou-se para Roberto e falou:
– Por que não me ataca como homem, seu covarde desgraçado?
O agressor arrancou um taco da parede.
– Não era para você estar aqui, Dionísio! – reclamou, furioso – Agora os dois terão de
morrer. Os dois... você – empunhou o taco com ambas as mãos – e essa sonsa da Maria. Não os
deixarei escapar vivos daqui!
Sem dizer uma só palavra, Dionísio reuniu suas forças para contra-atacar. Ele avançou
sobre o algoz, chutando-lhe a barriga. Roberto deu um solavanco para trás com o movimento
brusco e, quando viu o rival partir para o segundo ataque, ganhou um soco no queixo. A inves-
tida foi rápida, fazendo-o desfazer-se do taco.
– Isso é o melhor que pode fazer? – Roberto riu, massageando o maxilar dolorido.
Apavorada, Maria movia o rosto, olhando de um lado para outro. Sem saber como agir.
– Não, otário! Posso fazer muito mais que isso – pelo modo como salteou, Dionísio pare-
cia ter êxito no próximo golpe, mas o pé do adversário que o atingiu bem na boca do estômago
pegou-o desprevenido. E o impacto foi forte, fazendo Dionísio cair de costas sobre uma mesa,
destruindo-a com seu peso.
Tateando o tapete, tentou se levantar, mas tornou a despencar ao sentir uma forte pisada
sobre sua coluna. Roberto deu-lhe mais um chute, depois outro... e outro. Mesmo se esforçando
para se reerguer, os golpes que desnorteavam Dionísio o impedia de reagir. Divertindo-se com
o ato covarde, o homem não parava de espancar o oponente estirado.
O acesso de terror fez Maria apanhar uma cadeira e arremetê-la sobre a coluna do espan-

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A Coragem

cador. Quando sentiu o impacto da cadeira que se partiu em seu dorso, Roberto esqueceu-se de
dar sequência a suas investidas para se virar e encarar a mulher.
– Sua idiota! – ele a agarrou pelo braço e o torceu. A mulher gemeu de dor. Rendendo-a,
ele disse – vou te mostrar com quem está se metendo – então deu-lhe um soco no canto esquerdo
do rosto. Em seguida, puxou-a pelo cabelo e bateu com sua cara no chão – Vadia desgraçada!
Quis sufocá-la naquele instante. E poderia ter conseguido, mas o braço de Dionísio que o
envolveu pelo pescoço, fê-lo parar.
– Seu covarde maldito... – Dionísio forçou o outro braço em sua nuca – Vou te ensinar o
que acontece com quem bate em mulher – arfando como um touro bravo, começou a arrastá-lo.
Maria, parcialmente aturdida, começou a chorar. Sentindo-se mal, olhou para o rosto do
homem sendo arrastado, debatendo-se.
Com o impulso, os homens atracados derrubaram adornos decorativos, cadeiras e vários
objetos foram quebrados. O arrastão só terminou quando invadiram a cozinha e viram panelas,
frigideiras e tampas metálicas caírem sobre eles, tilintando numa sessão de ruídos intermináveis.
Roberto insistia em se debater, mas o sufocamento era cada vez pior. Arriscou bater na
barriga dele com o cotovelo, deu-lhe um pisão no pé. Nada adiantou.
– Vou te matar, seu desgraçado! – Dionísio ameaçou, apertando mais o braço e forçando
a cabeça da sua vítima para frente.
– Pare com isso, maldito! – o adversário rendido bradou, com uma voz rouca. Não iria de-
sistir! Em busca de alguma coisa para se defender, Roberto apalpou uma da gavetas inferiores do
armário e a abriu. Tateando os talheres, sentiu um cabo com a ponta dos dedos e o agarrou. Só se
deu conta de que havia achado um garfo de duas pontas quando o cravou no braço do detentor.
O espasmo de dor causado pelo garfo enfiado em sua carne fez Dionísio berrar, libertan-
do-o. Sangue vivo escorreu por sua pele.
Fora de alcance, o homem livre, recuperando o fôlego, rastejou-se pelo cômodo e alcan-
çou o fogão.
– Não tenho medo de você, seu merda! – Roberto proferiu a ofensa ao se virar para o
adversário – Você vai morrer – segurou a alça do forno, flexionou as pernas e se ergueu.
– Você não é um ser humano, Roberto – Dionísio agarrou o cabo e arrancou o garfo.
Sentiu os ossos arderem. Gotas de sangue pingaram no piso – você é um mostro. Uma criatura
da pior espécie.
Fitando-o com um ar de prepotência, Roberto puxou outra gaveta, estudou o interior dela
e retirou uma faca afiada.
– Isso teria de acontecer de uma forma ou de outra, não é, gordinho idiota? – posicionou a
ponta da faca na direção do adversário – o destino quis que nos enfrentássemos de novo.
Dionísio franziu a testa e suspirou. Seu sangue continuava a jorrar.
– Chega! – apalpou o coldre e agarrou um cabo – Seu lugar é na cadeia. Irá pagar pelo
horrível e vergonhoso crime que cometeu.
Sendo auxiliado apenas pela faca como meio de proteção, Roberto abriu mais os olhos
ao ver Dionísio sacar a arma e mirar-lhe o rosto. Maldita hora em que as munições de sua pis-
tola se esgotaram! Pensou, rangendo os dentes. Havia partido apressado para a casa de campo
na esperança de encontrar alguma arma. Nem que fosse uma espingarda velha com cartuchos.
Jurava que seu pai, em tempos remotos, escondera uma ali. Vasculhou vários lugares, mas nada

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William R. Silva

encontrou. Agora estava à mercê da sorte.


– Então atire! – Roberto o desafiou – Duvido que tenha coragem.

78

A RETALIAÇÃO

Com a atenção fixa no revólver engatilhado, Roberto blefou:


– Acha mesmo que temo a morte?
Os anos mudaram, mas o embate era o mesmo. Diante da circunstância decisiva, o tempo
perdeu o sentido, fazendo passado e presente se unirem num só momento. A cena no parque
ecológico, o garoto nervoso. O menino prestes a matá-lo. O aluno covarde estava outra vez na
mira de Dionísio. E o simples mover de dedos colocaria fim aquela guerra atemporal. Entretan-
to, sua consciência moral pesava sobre suas decisões: O que valeria se vingar assim? Matá-lo
nessas condições o faria diferente dele? Seus dedos hesitaram, apesar da tentação que o rondava.
Mirando-o, declarou:
– Um animal como você não merece viver livre... – o homem armado declarou – Você é
um monstro... um mostro assassino. Tentou matar a mim, seu amigo Paulo, o Túlio e... – rangeu
os dentes – seu próprio pai... Como pode ser tão sujo? Você me dá nojo.
Roberto soltou uma risada, apertando a faca entre os dedos.
– Não se faça de inocente! Você tentou matar a mim e aos meus colegas de escola... –
mais risos irônicos – deixe de hipocrisias! Você acha que tem moral para me julgar?
Os semblante de Dionísio sinalizou um misto de vergonha e culpa.
– A situação era diferente – mordeu os lábios, apreensivo.– Eu estava abalado emocional-
mente. Movido pelos impulsos.
– E o que importa o motivo quando tudo leva ao mesmo fim? – Roberto rebateu, com um
timbre irado – Aprenda uma coisa, seu idiota – franziu o cenho para ele. – A vida é um jogo. E esse
jogo, nem sempre tem regras justas e agradáveis. Você acha que as pessoas no mundo lá fora são
melhores do que eu? Não, elas não são. Sabe por quê? Porque todos matam uns aos outros todos os
dias, de maneira sutil ou não. Os políticos corruptos que roubam verbas públicas e deixam milhões
de pessoas morrerem por falta de saneamento, alimentação e desprovidos de remédios e atendimento
médico. Um magnata rico que gasta milhões de dólares com luxos extravagantes e desnecessários
enquanto uma população enorme de seres humanos padecem de fome em diversas partes do planeta.
Os mendigos famintos que imploram por comida nas ruas dos quais todos ignoram deixando-os se
dizimar de fome. O preconceito, a ganância e o egoísmo dos seres humanas que, lentamente, des-
troem uns aos outros durante todo o tempo. Todos somos cruéis, mesmo que não admitamos isso.
Ninguém pode me julgar! Ninguém – gritou, ainda mais furioso. – Nem mesmo você, seu verme.
Dionísio então se aproximou dele e afirmou:

313
A Coragem

– Seus argumentos são ridículos. Você é patético! Há sim quem pode te julgar e você será
julgado. Seja pela lei de Deus... seja pela justiça dos homens.
O outro desatou a rir, mudando de expressão.
– Deus? Que Deus? Nunca depositei fé nesse Deus e... – ergueu a faca – caso ele realmen-
te exista, creio que já tenha abandando a humanidade, tamanha a decepção que teve com sua
criação falha. Ele não se importa mais com você, meu amigo, e nem com ninguém.
– Engano seu – o mirador devolveu. – E o fato de eu estar vivo é a maior prova disso. Mas
não me importo com suas opiniões. Cale-se e fique de joelhos!
– Por que não me mata logo? – Roberto o instigou – Acaba de uma vez com essa droga!
O coração de Dionísio bombeava violentamente. Atirar ou não? Estourar o crânio de seu
pior inimigo era um desejo tentador. Mas a ideia era constrangedora. Não era um assassino, nun-
ca foi. Lembrou-se de súbito de Maria, ela estava sozinha na sala. Machucada e desorientada.
Precisava protegê-la. Assim, salientou:
– Ajoelhe-se e coloque as mãos na cabeça, agora!
Indomável, Roberto continuava com um ar sarcástico. De relance, levantou os olhos e viu
que, em cima de sua cabeça, um conjunto de panelas dependurava-se no teto. Voltando a fitar
seu algoz, questionou-o:
– Quer que eu seja preso? – afastou-se para perto da saída – Que provas terá contra mim?
Acha que irão acreditar em você?
–Eu falei para se ajoelhar – Dionísio frisou, enfurecido. – Obedeça logo!
– Vá para o inferno! – depois de proferir a injúria, Roberto bateu com força numa das
louças suspensas. O paneleiro se desprendeu, despencando-se sobre o adversário.
A visão de Dionísio ficou bloqueada quando frigideiras e panelas atingiram-lhe a na face
e, logo em seguida, quicaram no chão. Ruídos de metal ecoaram. Tropeçou nelas, equilibrou-se
novamente. Assim que olhou para onde estava Roberto, constatou que o mesmo não estava mais
no lugar. Observando-o fugir e sem pensar duas vezes, deu dois disparos. Mas o alvo já tinha
escapado da mira. Como resultado, o primeiro projétil danificou a lataria do fogão e o segundo
deixou uma lasca na parede de madeira. Chutou as louças do caminho e foi no encalço do rival.
– Socorro! – o clamor feminino fez Dionísio acelerar-se.
Quando retornou a sala, presenciou uma cena que o deixou atônito. Maria, com um sem-
blante de terror, transformou-se num escudo para Roberto. Um dos braços do monstro forçava o
queixo da refém e, com o outro, erguia a faca rumo à garganta dela.
– Pronto! Peguei sua namoradinha – Roberto riu ao puxá-la para trás.– Se quiser que ela
viva, desfaça-se do revólver.
– Pelo amor de Deus, Dio... – a longa cabeleira espalhou-se sobre o rosto da namorada,
mas Dionísio pode ver claramente seu estado de horror – Não deixe ele me matar!
Tinha uma mira boa, mas seria bom o suficiente para atingir Roberto e deixar Maria ilesa?
Se errar, será para sempre culpado pela morte da mulher que ama. Isso seria uma dor insuportá-
vel demais para aguentar. Por isso, Dionísio achou prudente não correr tal risco.
– O que me garante que vai cumprir sua palavra?
– Faça o que estou mandando, rápido! Pensa que estou brincando? – Roberto acentuou.
Com a faca, retirou mechas do rosto da vítima em prantos.
– Por favor, Dio... – travada, Maria congelou, pálida. Respirando ofegante, ela fitava Dio-

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nísio com olhos bem abertos e cheios de lágrimas – Não deixe ele me fazer mal!
Nunca desejou tanto a presença de Átila. Numa das épocas mais cruéis de sua vida, ele
lhe serviu de herói, bem que podia fazer o mesmo neste momento crítico. Pensou Dionísio.
Ernesto também seria uma boa ajuda, embora a ideia parecesse absurda demais para ele. Entre-
tanto, nenhum dos dois estava presente. Nem mesmo sabia se eles ainda estavam vivos. E agora,
como deverá proceder?
– Está bem... – Dionísio, fitando-os, foi até a janela – Farei o que você deseja – abaixou
o braço armado e, com o dedo, moveu o dedal serrilhado, liberando o tambor. Feito isso, retirou
todos os cartuchos. Então, abriu a mão para mostrá-lo as balas e as arremessou para fora – Já fiz
o que pediu. Solte-a! – lançou o revólver para debaixo da escada.
– Tudo bem... – o detentor deu uma risada demorada e libertou a mulher. Agindo rápido
e com requintes de crueldade, agarrou o pulso da refém e fez o corpo dela girar, colocando-a
de frente para ele. Quando os olhos estupefatos de Maria se cruzaram com os do assassino, ele
enterrou-lhe a faca no abdômen, fazendo-a gritar ao sentir o gume dilacerar sua carne. Mesmo
se quisesse, Maria não saberia descrever o que sentiu.
– Mariiiia... – antes de ela despencar, Dionísio correu para socorrê-la. Ela ficou esmore-
cida, suas pernas perderam o sustento. Vendo-a sem forças, Roberto a empurrou, fazendo-a cair
nos braços do namorado. Ele se deitou com ela no assoalho no mesmo segundo.
– Ela não vai durar muito – o esfaqueador disse, friamente. – Mas não se preocupe! Você
será o próximo.
Meu Deus, o que eu fiz? Lamuriou-se o amante desafortunado. O mundo perdeu o senti-
do. Os minutos pararam. Tudo foi passando em câmera lenta, semelhante a um pesadelo do qual
não conseguia despertar. Dionísio, contendo suas lágrimas, afagou a face imóvel. Observando-a
inconsciente em seu colo, quis beijá-la, dar-lhe um abraço. Reanimá-la. Esticada, Maria o mirava
com um olhar sem vitalidade. Mas ainda não estava morta. Ela respirava, podia sentir. Analisou a
faca cravada na cintura dela, envolta por uma extensa mancha de sangue. E o sangue escorria com
intensidade, bem mais que seu ferimento no braço. Quanto tempo ela vai aguentar? O pânico quis
tirar-lhe as esperanças. No fundo, sabia o quanto hemorragias como estas eram graves. Não, meu
Deus... não a leve! Deixe-a viver! Eu imploro! Dionísio suplicava, em sussurros agoniados. Tantas
foram as noites em que desejou tê-la de novo. Ele a amava, um amor maduro e real, como nunca
havia amado antes. Será que era essa sua sina, sofrer de amor para sempre?
Ouviu-se uma leve risada, depois uma mais alta e, por fim, uma gargalhada que pareceu durar
uma eternidade. O homicida não parava de rir. Seus sons hilários causavam eco. Com uma expressão
raivosa, Dionísio levantou a cabeça e observou Roberto, de pé, divertindo-se com suas dores.
– Sabe, Dionísio – o esfaqueador o mirou, cessando as risadas –, quando te vi no autódro-
mo e te encontrei lá outras vezes, cheguei a respeitá-lo. Considerava-o alguém de valor. Jamais
imaginava que no passado fora aquele gordo idiota. Mas errei! E errei feio. Você é e sempre será
um derrotado – retornou ao seu tom hilário. – Irá sofrer nas minhas mãos até a morte, essa é sua
sina – e as risadas não findaram.– O destino é algo engraçado, não acha?
Ódio. Tanto ódio que Dionísio sentia, que percebeu uma energia ruim se formar em seu
âmago. E essa energia explodiu, enrijecendo seus músculos, aumentando sua respiração, atiçan-
do seus batimentos. Transformando-o numa máquina de destruição. Queria socar Roberto, como
nunca antes quis na vida, se é que isso era possível. Pensava que tinha raiva dele o bastante, mas

315
A Coragem

agora via que os sentimentos que nutria a respeito de seu algoz, até então, era só uma pequena
faísca se comparada com intensidade da fúria que o assolava neste instante.
– Você é um homem pobre, Roberto – Dionísio afirmou, numa torrente de emoções. – Pobre
de espírito... pobre de amor... podre de alma – carregou Maria e, com muito zelo, estendeu-a num sofá.
– Pelo contrário, amigo. Tudo o que estou fazendo é para me tornar mais rico. De um
modo que você jamais será um dia – Roberto estralou os dedos uns nos outros, aquecendo-se
para um futuro combate. – Fique tranquilo, não terá tempo de lamentar a morte dela. Logo logo
estarão juntos numa cova rasa.
Devagar, Dionísio foi se levantando, fitando a figura odiosa a sua frente. Fechou os pu-
nhos, usando uma expressão de raiva.
– Esse confronto teria de acontecer, não é? – o homicida o encarou, obstinado – De um
jeito ou de outro.
Numa explosão de fúria, Dionísio descreveu um semicírculo com o punho, dirigindo-o na
cara de Roberto. A pancada fez o homem girar, tropeçar e deslizar para cima de uma poltrona,
que tombou de lado. Mas o contra-ataque foi veloz, mais do que Dionísio poderia calcular. Sem
tempo de reagir, viu o oponente se virar rapidamente e agarrá-lo pela cintura. Sendo impelido,
Dionísio não foi capaz de resistir a toda a potência que Roberto empregou para empurrá-lo. No
efeito da voraz investida, os dois se chocaram contra um velho armário adega que se dividiu em
pedaços, fazendo-os se esparramarem no chão junto a madeira, taças, copos e garrafas que se
destruíram com a colisão. Um cheiro indistinguível e incomodo de bebidas misturadas pairou no
ar, e a camisa de Dionísio se encharcou na poça de líquidos e cacos.
Levou dois socos na face enquanto tentava tirar Roberto de cima de si. Antes de receber
um terceiro golpe, Dionísio impeliu a perna contra o rival, lançando-o para longe. Avistou Ro-
berto invadir o cômodo seguinte e dar de costas com a mesa de sinuca. Dionísio, sequer tinha
se aprumado quando foi para cima do inimigo. Meio engatinhando, meio em pé, concentrou
toda sua energia num salto, caindo com as mãos batendo no peito do adversário. Com a pressão,
Roberto despencou sobre a mesa de bilhar, derramando algumas das bolas no piso.
E, aos sons das bolas quicando e rolando no assoalho, Dionísio remeteu vários murros
no rosto do opoente. Embora Roberto tentasse se defender, todos os golpes que ele dava surtia
o efeito desejado.
– Vou acabar com você... – a fúria dominou Dionísio a tal ponto, que seus punhos pare-
cerem ganhar vontade própria – desgraçado.... covarde... – a cara de Roberto começou a sangrar
conforme recebia as pancadas alternadas – assassino!
Roberto, cujos dentes assumiram uma cor avermelhada, numa atitude de desespero, apa-
nhou uma das poucas bolas restantes da mesa e a lançou com toda força no opoente. Quando
sentiu a peça redonda e dura se chocar contra sua testa, o lutador se jogou para trás, desconcer-
tado. Aproveitando-se da brecha, Roberto segurou-o pela camisa e deu-lhe duas joelhadas na
barriga. Depois, arremessou-o na direção de um mesa redonda. Dionísio se atrapalhou com as
cadeiras ao se esbarrar na mesa para se reerguer.
Ao avançar com ferocidade, Roberto tentou infligir-lhe uma pancada na região do
queixo. Conjuntamente com a investida, Dionísio também ergueu o braço, bloqueando-o.
Os punhos de ambos se revezaram em golpes, acertando cada qual o rosto inimigo. E assim
seguiu o combate até que, por fim, um chute certeiro que Dionísio deu na barriga do algoz

316
William R. Silva

provocou-lhe um recuo.
Mas o rival partiu para cima, investindo-se numa revanche. Dionísio se abaixou, ob-
servando o braço rodopiar sobre seu dorso. Subindo o punho direito, proferiu um vigoroso
soco de baixo para cima. Segundos depois de a cacetada dilacerar-lhe o queixo, Roberto de-
sorientou-se, cambaleando cerca de dois metros para trás, até bater as costas com toda força
numa das janelas.
Os primeiros sinais de cansaço já se transmitiam através da respiração de Dionísio, que
não parava de bufar. Mas suas forças ainda não se esvaíram e sua fúria; também não. Quando
analisou a situação do homem nocauteado, surpreendeu-se com seu estado. Quando foi que o
deixou assim? Roberto lutava para se manter em pé. O assassino massageou o maxilar dolori-
do e viu sangue deslizar por entre os dedos. O sangue também escorria por seus lábios. Suas
pálpebras, boca e nariz também sangravam. Exausto, Roberto também levantou os olhos para
o adversário. Sentiu-se pasmo ao ver que o outro tinha menos ferimentos que ele.
E o confronto não terminou ali. A criatura musculosa e cruel, sequer teve chance de
se esquivar ao ver o lutador correr em sua direção. O corpo de Dionísio girou diante de seus
olhos, produzindo um chute avassalador na direção do busto do adversário. A janela se rom-
peu, fazendo agressor e mártir, junto a pedaços de vidro e lascas de madeira, voarem para o
lado de fora.
O dois gladiadores então rolaram na grama. Em razão da queda, cada um deles deslizou
para lados opostos. Roberto se chocou contra uma estátua de concreto e, o outro, escorregou
uns instantes a mais até encontrar-se na borda da piscina. Ambos os homens demandaram
alguns segundos para se recuperarem. Foi então que as mãos doloridas de Roberto se segura-
ram-se num dos braços da estátua de concreto. Suas forças, por enquanto, não se esgotaram
por completo, mas precisou de muito mais empenho do que imaginava para se colocar nova-
mente de pé.
Dionísio também tentou se levantar, mas suas pernas vacilaram. Assim, despencou de
novo com a cara no piso. Precisava resistir! É a sua obrigação. E se Maria não aguentar aos
ferimentos? Se seu pai também estiver necessitando dele, a beira da morte? Tinha de vencer
por eles. Graças a esses sentimentos, o desejo de aniquilar de vez seu algoz potencializou-se.
Diferente da empreitada inicial, agora empregou mais força para se aprumar. Pondo-se em
pé, viu uma poça de sangue se formar no lugar em que estava deitado. Mais gotas pingaram.
– Morra... seu... desgra... ça...do – escutou-se uma voz fraca dizer. Ao olhar para cima,
avistou Roberto jogando o próprio peso contra uma das enormes estátuas de concreto.
Quando finalmente conseguiu arrancar a estátua do solo, Roberto caiu sobre o gramado. O
pesado boneco de concreto escorregou mais rápido do que se podia esperar. Por sorte, Dionísio
se desvencilhou no momento certo. A estátua continuou a rolar, até que se afundou na piscina,
transbordando água para em todas as direções.
O homem esparramado no gramado, ao ver que seu objetivo fracassou, ergueu-se imediatamen-
te. O ar saía-lhe dos pulmões com dificuldade. Isso podia se notar à distância. Por isso, juntando as
poucas energias que ainda lhe restavam, avançou, descendo com toda velocidade no rumo do oponente.
O outro lutador também foi ao seu encontro. E, na colisão, tanto um quanto outro dispararam
os punhos cerrados em direções contrárias. Algo inesperado aconteceu: somente Roberto fora
atingido na boca. Outro golpe sequencial o atingiu na coxa, fazendo-o ficar de joelhos. Dio-

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A Coragem

nísio, vendo-o rendido, arremeteu-lhe um último pontapé no crânio, lançando-o no chão, bem
ao lado da piscina.
Dionísio então montou sobre ele, já espancando-o. O derrotado, cuja cara oscilava de
um lado para outro na medida em que levava várias cacetadas, começou a murmurar de dor.
Roberto não via mais a vegetação ao redor, nem o céu, as flores e as decorações do jardim,
só enxergava as mãos fechadas arrebentando-lhe os ossos faciais. A quantidade de sangue
em seu rosto aumentou. O espancador viu um de seus dentes serem arrancados. Vencido, o
oponente recebia passivamente as bordoadas. Aos poucos, a exaustão foi fazendo Dionísio
recuperar a razão. Os golpes prosseguiram até que notou que o inimigo não mais reagia.
Chega, Dionísio! Quer se tornar um assassino? Você quer? Uma voz intrometida sussur-
rou em seus ouvidos. Parou a mão fechada no ar ao escutá-la. Em virtude disso, sentiu um temor
estranho o envolver. Um vento, um medo... uma preocupação inexplicável. Sem fôlego, olhou
ao redor. Só encontrou a penumbra. A voz parecia de seu pai ou do Padre Jerônimo? Porém,
tinha algo de feminino naquela voz. Seria Maria ou... Catarina? Catarina? Mortos não retornam.
Será que estava ficando louco?
Tornou a procurar o dono da voz por toda a parte, ninguém viu. Apenas o silêncio noturno
o rodeava. Seria essa a voz da consciência? Quando voltou a encarar Roberto, saiu de cima dele
ao ver seu estado. A face do homem espancado estava desfigurada. Suor e sangue não paravam
de escorrer.
– Maria – sussurrou –, eu vou... vou te salvar – tentou se manter em pé. Não conseguiu.
Engatinhou até o gramado. Respirava muito rápido. Tudo nele doía. Quis subir de pressa, mas
a fraqueza o fez despencar.
O confronto roubara-lhe todas as energias. Mas qualquer que fosse a dificuldade, tinha
de voltar para o lado de dentro. Maria estava lá, entre a vida e a morte. Tinha que fazer alguma
coisa. Já que era complicado ficar de pé, foi se arrastando.
– Ma...ria – dizia para si mesmo em voz baixa. – Aguente... aguente... estou chegando... –
seus dedos se afundavam no solo arrancando grama com as unhas conforme se puxava para cima.
Não entendeu bem o porquê, mas um desejo súbito de olhar para trás o incomodou. Virou
o rosto. Olhando para baixo, viu que Roberto continuava estirado, sem se mover.
Esqueceu-se dele. E deu sequência à sua trajetória rastejante. No entanto, o cansaço não o
deixou prosseguir, lentamente, sua cabeça foi se deitando no gramado...
Acordou atordoado. Mesmo compreendendo que não possuía mais forças, tentou colo-
car-se em pé. Suas pernas não obedeceram, novamente, caiu de joelhos. Seguiu engatinhando,
passou pelo piso concretado, indo até a porta. Entrou, rastejando-se.
– Maria! – voltou a sussurrar – Tenho que salvá-la. Chamar um médico. Qualquer coisa –
com muito custo, alcançou a mesa de bilhar. Segurou firme na mesa, mas desmoronou quando
sua mão deslizou. Ficou ali, esparramado. Imóvel. Estava fraco... muito fraco.
– Maria, aguente! – muitas ideias ruins vieram a sua mente. Dessa vez, desmaiou...

***

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William R. Silva

Quando abriu os olhos, quis se mexer, mas algo o travava. Tinha um travesseiro sobre
sua nuca. Debaixo de si, havia uma cama confortável. Moveu-se, revirando os olhos, procuran-
do discernir a situação. Que lugar é esse? O que está acontecendo? O teto tremia, e sua maca
também. O lugar estava em movimento, concluiu. Lançou um olhar no próprio corpo reclinado.
Uma grossa cinta prendia-o na cama, os braços e pernas também estavam atados. Ao redor,
havia cones, extintores, gavetas e quites de primeiros socorros.
– Onde estou? – perguntou para ninguém em especial. O compartimento não parava de
trepidar. A velocidade parecia aumentar a cada segundo.
– Acalme-se – disse-lhe alguém. – Você está dentro de uma ambulância.
Isso fez com que o paciente se agitasse. Ele moveu a cabeça na almofada, em busca
do dono da voz. Átila estava logo a seu lado, bem no assento de passageiro. Aquilo deixou
Dionísio extremamente feliz. Teria lhe dado um abraço apertado, se tivesse condições de se
destravar da maca.
Contudo, seu êxtase durou pouco. O pai estava bem. Mas haviam mais pessoas de quem exigia
notícias. No momento em que se lembrou de Maria do Rosário, um nó se formou em sua garganta.
– Maria... o que aconteceu com ela, pai? Me diz, pelo amor de Deus! A moça esfaquea-
da... onde ela está?
Atrás dele, um enfermeiro respondeu:
– Fique calmo, senhor – o homem de uniforme azul surgiu logo a sua frente. – A jovem já
está sendo atendida na outra ambulância. Ela vai sobreviver.
O alívio fez o paciente se deitar com mais tranquilidade. Tudo se tornou menos doloroso.
Entretanto, ainda restavam outras perguntas. Ou melhor, várias delas. Limitou-se à mais importante:
– E o meu patrão? Conseguiram salvá-lo?
O transporte emergencial deu uma oscilada brusca assim que passou por alguma defor-
mação na pista.
– Sim, filho – Nélson o tranquilizou. – Ambos estão bem! – sorriu para ele – Parabéns,
Max Wolf, mostrou-me que é um bom quarteliano de nível 4. Você teve um bom desempenho!
Dionísio deu um suspiro demorado.
– Espero que o mostro do Roberto pague pelos crimes que cometeu. Tanto ele, quanto o
covarde do João Sérgio.
A ambulância entrou numa curva. Depois, sentiram-na subir.
– Não, Dionísio – disse-lhe o pai. – Ernesto e tal João Sérgio desapareceram. E o Roberto....
O homem na maca, interrompeu:
– Não me diga que aquele canalha conseguiu fugir?
Nélson balançou a cabeça em negativa.
– Na verdade... quando encontramos o Roberto próximo a piscina, vimos que ele estava
morto... com um tiro na cabeça.
Dionísio procurou algo para dizer, mas duas dúvidas súbitas o deixaram incomodado.
Quem teria feito isso? Será que irão culpá-lo?

319
A Coragem

79

O COMPROMISSO

Hospital: Recepção
(Dois dias depois)

Os minutos de espera duravam uma eternidade. Os ponteiros do relógio na parede, para


ele, pareciam mais lentos do que o normal, prestes a parar. Dionísio estava impaciente e isto era
bastante visível. Seus braços se encontravam cruzados e toda a sua atenção se concentrava na
mulher atrás do balcão. Prestava atenção em todos as suas ações, sem piscar. Tinha pressa, mas
a jovem nem se dera conta disso. E se percebeu, não deu muita importância.
Ela digitava nos teclados com tanta lentidão, que Dionísio teve vontade de se sentar no
lugar dela e terminar ele mesmo a tarefa. O homem afoito virou o rosto. Atrás dele, havia tam-
bém mais meia dúzias de visitantes aguardando atendimento. Todos, tão impacientes quanto
ele. Tentou reunir toda a calma que lhe restava num suspiro longo e abafado. Quanto tempo
mais ainda deveria esperar? Sabia que Maria estava bem. Salva de qualquer perigo. Contudo, os
últimas acontecimentos haviam criado alguns temores irreais em sua mente. Queria estar perto
dela todo o tempo, protegê-la de ameaças.
A moça da recepção tirou os olhos da tela do computador e o mirou.
– O que você é da paciente?
Ele descruzou os braços e colocou o cotovelo no balcão, exausto.
– Sou... o noivo dela – dizer isso o deixou feliz. Tão feliz a ponto de esquecer a irritação
anterior por causa do tempo de espera. Retirou o braço do apoio e aprumou-se. A alegria estam-
pada no rosto de Dionísio pareceu contagiar a mulher atrás da divisa, pois pouco antes da jovem
continuar o registro, ela lhe sorriu de volta.
Concluindo o último procedimento, ela entregou-lhe os documentos. Depois, falou:
– Ela está no quinto andar – puxou um dos crachás de visitantes e o ofereceu a Dionísio.
– Sala treze.
Ele pegou a identificação e a agradeceu. Colocou a corda do crachá no pescoço e atra-
vessou a roleta. Transitando pelo largo corredor, notou que suas pernas caminhavam depressa,
como se estivessem agindo por conta própria. Deparou-se com pessoas no caminho, cumpri-
mentou-as educadamente e prosseguiu.
Deu de cara com duas enfermeiras empurrando uma maca e médicos, pedindo para que
todos liberassem a passagem. Passaram por ele, ligeiros. A ansiedade de Dionísio era tamanha
que só quando a maca já estava a metros de distância, é que percebeu que nela havia um paciente
em estado crítico. Se o perguntasse sobre as características físicas e o sexo do paciente, era certo
de que não saberia perceber.

320
William R. Silva

O grupo com o enfermo se enfiou dentro do elevador emergencial. Tinha pessoas na espe-
ra para entrar nos elevadores comuns. Dionísio viu que os outros dois também estavam em uso.
Achou melhor subir pela escada. Na financeira onde trabalha, na maioria das vezes, gostava de
usar essa alternativa para ir para o andar seguinte.
Galgou em espiral. O trajeto foi rápido. Sem nenhum sinal de cansaço, saltou o último
degrau. Conforme ia se adiantando, contava os números das portas que passavam por seu campo
de visão. Número dez, onze, doze. Sentiu o coração saltar. Mas, quando se achegou próxima a
sala seguinte, parou bruscamente. Esquecera-se de que tinha mais um visitantes além dele acom-
panhado Maria neste mesmo dia. Mal conseguiu acreditar no que via. Esperava qualquer pessoa,
menos ela. O mais cruel e avassalador mostro de seu passado.
Seu olhar se tornou mais firme. Imobilizou-se vendo a mulher se aproximar. Os cabelos
louros e escorridos para baixo dos ombros, o rosto rosado e aqueles mesmos olhos verdes, de-
moníacos e sedutores. Tudo nela estava mais belo, para seu espanto.
Quando ficaram um de frente para o outro, ela puxou assunto:
– Nós duas conversamos bastante ... inclusive sobre você – toda a sua arrogância de mu-
lher fatal havia se esvaído. Por isso, Dionísio a achou estranha. Ela continuou – apesar de tudo o
que aconteceu – dessa vez, Ana sorriu com mais vontade –, a Maria está muito feliz. Fazia anos
que eu não a via assim.
Ele respondeu com uma expressão neutra:
– Que bom! Fico feliz por isso.
O acanhamento de Ana perante Dionísio era muito mais chocante do que inesperado. Jamais
pensou que um dia a veria agir assim. O modo com que ela o encarava carregava certa dose de
culpa. Ela queria lhe dizer alguma coisa, mas tinha dificuldade para expressar. Sentia isso no ar.
Dionísio não quis mais continuar com a conversa. Sentia-se desajeitado, tanto quanto ela.
– Foi bom te ver, Ana – começou a andar. – Até mais!
Quando passou por ela, a mulher girou nos calcanhares e pediu:
– Você me perdoa?
O tom melancólico que escapou junto a voz dela o fez parar. O que diabos está aconte-
cendo com essa mulher? Aquela definitivamente não era a Ana Júlia que conhecia, ou melhor,
que pensava conhecer.
– No momento em que confrontei você no parque ecológico – virou-se para encará-la –,
pus um fim definitivo nessa história.
Mesmo assim, ela insistiu:
– Pelo que te fiz na época da escola. Por ter te enganado, ter ajudado aqueles idiotas a
espancar você. Pelo sofrimento que lhe causei, você me perdoa?
– Eu também cometi erros, Ana – ele falou, compreensivo. – Todos nós cometemos. Eu
já te disse, isso não me incomoda mais. Te dou minha palavra.
Ana Júlia teve vontade de abraçá-lo, mas nada fez. Limitou-se apenas a dizer, contente:
– A Maria é uma das melhores pessoas que já conheci na vida. Seja um bom homem para
ela! Ela merece ser feliz.
Surpreso com a própria atitude, ele estendeu sua mão para Ana. A jovem atraente aceitou
o sinal de amizade, num demorado aperto de mãos. Ambos trocaram sorrisos afetuosos. Ainda
a considera como uma das mulheres mais lindas que já conhecera, mas ela não lhe exercia tanta

321
A Coragem

fascinação como antes. Era apenas uma mulher comum, como qualquer outra.
– Tenha um ótimo dia! – concluiu, ao sentir os dedos de Ana tocarem os dele. Dedos lisos
e agradáveis.
Ela devolveu, bem mais animada do que no início do reencontro:
– Desejo o mesmo para você.
Enfim, Dionísio seguiu seu itinerário, sentindo os olhos de Ana Júlia ainda postos sobre
ele. Quando entrou no quarto seguinte, viu a sogra descansando ao lado da filha. Maria encon-
trava-se inclinada sobre o leito, digitando no display do seu celular.
Dionísio, devagar, aproximou-se e parou atrás da paciente. Ela nem o notou. Chegou mais
perto e disse no ouvido esquerdo dela, em voz baixa:
– Posso saber com quem a mocinha está conversando aí?
Maria tirou a cabeça do travesseiro, virou o corpo e apoiou as mãos no canto da cama para
poder vê-lo de frente.
– Meu amor – os olhos dela reluziram –, por que você demorou? Acredita que a Ana Júlia
estava agora a pouco conversando aqui comigo?
As mãos grossas de Dionísio deslizaram sobre os cabelos negros e ondulados. Ela deixou
o aparelho de lado, fitando-o afetuosa.
– Eu sei – Dionísio respondeu – eu encontrei com ela no corredor.
– E como foi? – Maria ficou curiosa – Você ainda sente raiva dela?
Dionísio não tinha a menor vontade de dar explicações a respeito do assunto. Quando Rita
acordou e o viu, teve uma estratégia perfeita para não tocar no assunto.
– Olá, dona Rita! – Dionísio cumprimentou a sogra – como vai a senhora?
A mulher se pôs de pé.
– Estou bem, meu querido genro – Rita ficou contente em vê-lo. Depois de ajeitar os
lençóis do leito e checar a posição da filha no colchão, levantou os braços e espreguiçou-se num
bocejo longo. Então, disse – Vou deixá-los a sós, minha filha. Quero dar uma volta.
Maria falou, com carinho:
– Está bem, mãezinha!
Rita, antes de sair, dirigiu um sorriso de afeto para Dionísio. Quando Maria viu que a mãe
tinha sumido de vista, falou, risonha:
– Ela está encantada com você. Contei tudo a ela... a maneira como me salvou... como nós
conhecemos. Ou melhor, quase tudo, no caso de você e a Ana Júlia, os problemas do colégio,
eu omiti – ela gargalhou.
O visitante puxou a poltrona para mais perto e sentou-se ao lado do leito.
– É melhor assim! – segurou na mão dela – Vamos começar tudo do zero. Esquecer mi-
nhas burradas do passado.
Maria apertou um botão ao lado da cama e o colchão desceu alguns centímetros, nive-
lando-a a altura do assento do namorado. Ela então se moveu e deitou por cima das pernas de
Dionísio, que imediatamente começou a afagar-lhe os cabelos.
– Foi Deus quem te levou àquele sítio!
Dionísio se abaixou, dando leves beijos na testa da paciente.
– Esqueça isso! – seus lábios se tocaram – O pesadelo já passou.
– E o João Sérgio... o que será que deve ter acontecido com ele?

322
William R. Silva

As mãos de ambos se uniram, fechando-se uma na outra.


– Ninguém tem notícias desse desgraçado... – a voz dele se alterou – Nem dele, nem do Ernesto.
Os olhos dela se levantaram para ele.
– Quem é Ernesto?
Ela não sabe do Ernesto – pensou Dionísio –, nem dos outros assassinos que Átila, Ro-
gério e o transtornado Ernesto tiveram de enfrentar. Ela não tem nenhum conhecimento de que
Roberto planejava dar cabo da vida do próprio pai para ficar com o império bilionário da família.
Nem mesmo faz a menor ideia de que seria usada como uma das peças para justificar o crime.
Uma simulação bem arquitetada de latrocínio. O plano seria assassiná-la junto a Rogério. Co-
locar os dois na cama e atirar neles. Assim, seriam tidos como amantes, mortos por assaltantes.
A bomba iria explodir na manhã seguinte à tragédia. Nas versões dos telejornais e dos
impressos de grande circulação, se sustentaria uma única versão. Tudo sairia conforme os se-
questradores haviam planejado. Nenhuma culpa cairia sobre Roberto, estaria livre de qualquer
acusação. O álibi perfeito: O banqueiro precisava de um lugar aconchegante e escondido para se
encontrar com a amante. Isso justificaria a estada das duas vítimas na chácara. Feito isso, todo
o resto ficaria fácil.
Maria do Rosário, depois de morta, teria toda sua honra jogada no lixo, injustamente.
Todos iriam considerá-la como uma mulher dissimulada que se vende a homens poderosos.
Desse modo, João Sérgio se vingaria da rejeição que sofrera. Não havia dúvidas de que, caso
o plano desse certo, seria difícil provar o contrário. Nem mesmo o próprio Dionísio acreditaria
na inocência dela.
E isso o deixou com vergonha de si mesmo. Mas a verdade maior em toda a história, era a
mais bizarra e surpreendente de todas. Foi graças a Ernesto que a vida dela e a de Rogério foram
salvas. Incluindo-se sua própria vida, a de Túlio e do Paulo também.
– Dio, posso te dizer uma coisa?
– Pode sim... – ele respondeu, ainda pensativo.
Ela o fitou por alguns segundos.
– Eu te amo!
Ouvindo isto, Dionísio se desconectou de suas preocupações e sentiu o momento com
mais intensidade. Segurou-a no queixo e lhe deu um beijo tão longo, que quase se esqueceram
de que estavam num quarto de hospital.
– Eu também – os beijos seguiram, um após outro.
Ela pressionou o rosto contra o peito avantajado do namorado e colocou os braços em
volta dos seus quadris, apertando-o.
– Obrigada por ter me salvado! – sussurrou aliviada.
Dionísio tirou alguns fios que estavam sobre o rosto dela.
– Amanhã irei viajar para a cidade do meu pai – ele notou que ela não gostou da notícia, mas pros-
seguiu. – Tenho alguns assuntos a tratar com ele e mais alguns velhos conhecidos.
– Você tinha dito que iria passar o fim de semana comigo – ela esfregou o rosto na camisa dele,
como se fosse um travesseiro macio.
– Meu patrão me deu uma semana de folga. Antes da quarta-feira já estarei de volta – mostrou-se
contente. – Prometo que semana que vem eu compenso minha ausência.
Maria se soltou e voltou a se deitar no leito.

323
A Coragem

– Está bem... – falou, meio zangada.


Ele quis rir da atitude dela, embora tenha a considerado infantil.
– Mas antes... – enfiou a mão dentro do bolso da calça – tenho uma coisa para te entregar.
– Não quero presentes – Maria enterrou a cara no travesseiro, fingindo querer dormir.
Divertindo-se com a atitude pueril, Dionísio pegou no pulso dela. Maria abriu um dos olhos, por
mera curiosidade. E quando viu que o homem segurava uma pequena caixa de cor preta, deu um salto
da cama, pasma.
– Meu Deus! – tapou a boca, emocionada.
O noivo abriu a caixa e de lá, tirou duas alianças.
– Há muitos anos, tinha comprado esses anéis de compromisso, porém, para a pessoa errada – ele
puxou-lhe o dedo indicador e encaixou a aliança nele. – Agora a entrego para a pessoa certa.
Rir, chorar, agradecer. Ela realmente não sabia como agir, mas a alegria estava estampada em seu
semblante. Isso podia se perceber com facilidade. Maria começou a acariciar o dedo, sentindo prazer ao
tocar na aliança. Encontrava-se completamente sem palavras.
Dionísio também encaixou seu par no dedo. Levantou-se e avisou, contente:
– Espere por mim!
Alisando o anel, ela o mirou afetuosamente.
– Está bem! Agora tenho certeza de que você irá voltar – riu.

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William R. Silva

EPÍLOGO

Uma larga camada vermelha que riscava o céu, anunciava que o sol já se recolhia para
o nascer da noite. As nuvens, aos poucos, transfiguravam-se em rastros invisíveis dando lugar
a escuridão que lá se instalava. Na área urbana, onde a raça humana pode modificar o cenário,
luzes domésticas e a iluminação pública se ascendiam gradativamente, transformando os incal-
culáveis edifícios e construções, num conjunto de pequenos pontos incandescentes. E os olhos
de Cláudio Tedesco estavam perdidos na paisagem. Observava cada detalhe do crepúsculo e,
ao mesmo tempo, não se ligava a nada. Estático, levou os braços para trás, apertando os dedos.
Assim ficou, entretido em seus próprios pensamentos.
O tom grisalho de seus cabelos volumosos, cujo tamanho alcançava-lhe a nuca, cintila-
vam como prata diante da claridade. E os escassos fios de sua franja acentuavam seu rosto trian-
gular. Desgrudou os braços, deixando-os folgados. Depois desabotoou o terno de linho. Seu cor-
po ficou mais à vontade para se refrescar do calor. Deixou o blazer ao lado da piscina. Inspirou
o ar agradável que circulava no aposento, depois liberou-o numa bufada demorada. Assistir ao
espetáculo do anoitecer era um hábito que recarregava suas energias. Isso era bom... muito bom.
Através de um reflexo na vidraça, avistou alguém se aproximar. Foi assim que um homem
alto e corpulento parou bem atrás dele e falou com sua voz grave:
– Descobri mais informações sobre as mortes que ocorreram na chácara do irmão do Er-
nesto – notou que o homem nem se moveu, mas pode perceber o interesse dele no assunto. – O
Silverato havia ficado com o carro do Ernesto, mas entregou o veículo para as autoridades dois
dias depois. O que acha disso?
Cláudio Tedesco deu outro longo suspiro, fazendo um leve sorriso ampliar suas rugas faciais.
– É muito cedo para tirar conclusões precipitadas – respondeu-lhe, ainda de costas. – Pre-
firo analisar os últimos acontecimentos de maneira fria e racional.
A testa do homem se enrugou assim que a franziu.
– Mas o carro era propriedade das empresas Tedesco. Nélson Átila é um homem astuto,
logo ele irá descobrir toda a verdade sobre você. Isso não te preocupa?
Quando o olhos de Cláudio retornaram para a imagem refletida, ele estudou o rosto qua-
drado por alguns instantes.
– Não... nem um pouco. Isso teria de acontecer de uma forma ou de outra, não acha?
O homem encorpado tirou um lenço e limpou o suor da testa. Fez isso tanto para tranqui-
lizar-se quanto para se refrescar do calor.
– Se você mandou assassinar a tal doutora Elyana e o agente penitenciário para eliminar
provas, que sentido terá em deixar Átila descobri-lo? – guardou o lenço no bolso – Depois de
tanto trabalho, não posso acreditar que irá deixar tudo a perder...
– Existe uma diferença entre os funcionários do manicômio judiciário e o nosso velho
inimigo cabeludo – Cláudio refutou-o. – Eles tinham provas reais que poderiam me prejudicar.

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A Coragem

Já o Átila, não. O máximo que ele terá serão conclusões hipotéticas.


O outro hesitou por um momento, mas resolveu perguntar o que tanto queria:
– E o que faremos agora que Ernesto está morto? Acredito que isso deva preocupá-lo.
Cláudio abaixou a cabeça, pensativo.
– Santiago, meu fiel e leal companheiro de tantos anos. Sabia que, quanto mais perguntas
fazemos, menos respostas conseguimos encontrar? – ergueu a face para céu como se quisesse
enxergar algo além.
Aquilo não acalentou os anseios de Santiago.
– Sem o Ernesto, é bem provável que teremos de recomeçar tudo do zero.
– Ele está certo... – dessa vez, foi uma mulher quem respondeu – Deveríamos ter agido
antes. Perdemos tempo demais.
Cláudio imediatamente girou nos calcanhares e encontrou os olhos de serpente fitando-o.
Com aqueles lentes, a irmã parecia um misto de anjo e demônio. O cabelo rastafári estava mais
denso, mas foi a cara emburrada dela que mais lhe chamou atenção. Como não havia a notado
antes? Ela deveria ter chegado silenciosa. Sequer tinha reparado sua sombra se refletir na vidraça.
– Olá, Cris! – sorriu com o canto da boca – Já voltou de Paris? Pensei que ficaria mais
tempo por lá.
Cristina, vendo-o arquear as sobrancelhas, continuou a dizer:
– Você cometeu uma grande besteira! Deveria ter deixado Ernesto atacar aquela droga de
ferrovia na forma como ele tinha planejado. Você sabe que nunca gostei daquele demente, mas
não há como negar a importância dele na missão – seu tom era cada vez mais irritadiço. – Mas,
agora está tudo perdido. Ernesto está morto. Morto!
Cláudio se limitou a mirá-los com um aspecto inalterado, deixando Santiago e a questionadora
à espera do seu pronunciamento. Assim, dirigiu-se a mesa com taças e uma garrafa a repousar sobre
ela. Quando seus olhos voltaram a contemplar a dupla curiosa, comentou, num tom enigmático:
– Queridos irmãos, nem sempre morrer significa perder a vida – encheu sua taça com o
líquido espumante. – Tudo é questão de interpretação.
Cristina dirigiu-lhe um olhar vazio. Fazer enigmas era uma das manias preferidas do
irmão e também o que ela mais detestava.
– Não estou compreendendo... o que quis dizer?
Cláudio, depois de tomar um gole da bebida, virou-se e novamente parou para observar
o horizonte noturno. Desejou ter visto o céu se escurecer totalmente, mas a noite já havia caído
sem que ele percebesse. Após um riso curto e abafado, explicou:
– Há casos em que não devemos interpretar uma palavra em seu sentido real. É bem
verdade que Ernesto morreu... – girou de volta para eles – mas não da maneira que vocês ima-
ginam – fez uma pausa para dar outro gole, semicerrando os olhos. – Muitas vezes, uma morte
é apenas simbólica.
O silêncio se instalou por tempo suficiente para que Santiago e Cristina captassem a mensagem.
– Então quer dizer que... – surpreendeu-se a mulher.
– Ernesto está vivo? – o homem grande e forte acrescentou, descrente – É isso que está
querendo nos dizer?
Depois de erguer a taça, Cláudio prestou atenção na espuma que subia borbulhando para
a superfície.

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William R. Silva

– Tão vivo quanto nós três – engoliu tudo num longo gole.
Cristina, abalada com a revelação, sentou-se bruscamente sobre uma das poltronas, fazen-
do o móvel oscilar com o impacto.
– Disseram que ele foi morto pelo sobrinho. Então, essa notícia é falsa?
Tanto ela quanto Santiago ficaram ávidos por resposta.
– Sim – Cláudio respondeu –, ele levou um tiro, mas sobreviveu.
A mulher de dreads mordeu os lábios.
– Se o que você diz é verdade, temos outro problema – ela falou, ainda a ruminar a in-
formação. – Os capangas que o Ernesto arranjou para enfrentar os guardiões do Quartel secreto
estão todos mortos. Iremos precisar de tempo para que ele possa reunir um novo grupo.
– Ernesto escolhera errado seus aliados – disse-lhe o irmão. Este, por um momento, pa-
receu se esquecer de que estava a segurar uma taça vazia – Isso não há como negar. O pior de
todos foi o imbecil do sobrinho dele que quase colocou tudo a perder. Porém, ainda tenho outra
carta na manga, bem melhor que a anterior para lhes ser sincero – fitou o homem. – Santiago,
você se lembra da tal gangue dos Caveiras?
– Os Caveiras? – Santiago replicou, escancarando os olhos.
Cristina examinou a expressão facial do irmão e depois a de Santiago, procurando alguma
sensatez naquelas palavras.
– Quem são os Caveiras?
Antes que Cláudio pudesse pensar numa explicação, Santiago deu-lhe a resposta:
– É um grupo de marginais que aterroriza Realinópolis, uma espécie de traficantes de
armas e drogas que, nos últimos dois anos, transformaram-se numa perigosa facção. São ver-
dadeiras escórias. Os homens do Quartel, a polícia e as autoridades já tentaram colocá-los atrás
das grandes, mas eles são astutos. Escondem-se como camaleões. São homens perigosos, uma
ameaça não só para seus inimigos, mas também para aqueles que contratarem seus serviços.
Envolver-se com esses caras é suicídio.
A mulher enrolou um dos grossos fios de dreads nos dedos e o soltou. Depois de pensar
no assunto, deu seu parecer:
– Meu querido irmão insano – os olhos de serpente miraram Cláudio enquanto o mesmo
colocava a taça vazia sobre a mesa. – E o que te faz pensar que é seguro contatar esses caras?
E se eles descobrirem o que está escondido no Quartel secreto? Isso já passou pela sua cabeça?
– Ela tem razão – a voz grave de Santiago tornou a entoar. – De acordo com os últimos
dados que os espiões do Ernesto enviaram para ele, esses tais Caveiras são gente da pior espécie.
Quando descobrirem a fortuna que poderão lucrar se agirem sozinhos, não pensarão duas vezes
antes de nos apunhalar.
– É aí que está a parte mais divertida da história – Cláudio Tedesco esparramou-se no
sofá, abrindo as pernas e estendendo um dos braços sobre o encosto. – Eles sequer irão perceber
que estão trabalhando pra nós. Na verdade... nem chegarão a nos conhecer – encarou-os com
um ar sombrio.
Sua irmã e Santiago trocaram olhares intrigados. Não disseram uma única palavra, mas
sabiam bem o que aquilo queria dizer.

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