Вы находитесь на странице: 1из 10

A dialética materialista de Slavoj Zizek: Hegel e a radicalidade da finitude

Fernando Facó de Assis Fonseca

Uma chave de leitura indispensável para se compreender o conceito de dialética


materialista em Zizek é inverter o postulado básico da tradição que percebe a passagem
de Kant a Hegel como um momento decisivo de superação do horizonte da finitude
humana. Por esse ponto de vista, Hegel é apreendido como o expoente do idealismo
alemão que foi capaz de selar a lacuna epistêmica deixada aberta por Kant,
restabelecendo o Absoluto como a comunhão ontológica fundamental, como a unidade
prévia capaz de reunir num todo harmonioso o impasse da relação sujeito/objeto. A
dialética materialista, em contraste, apresenta uma perspectiva radicalmente distinta:
segundo Zizek, Hegel não acrescenta “nada” ao pensamento de Kant, isto é, não há
nenhum gesto a mais, positivo, em seu pensamento que sirva de pedra angular para
fundamentar a falta negligenciada por Kant; pelo contrário, o passo de Hegel não é
superar, mas reafirmar a divisão kantiana como tal. A aposta de Zizek, nesse sentido, é
que por detrás da espessa camada de interpretações acumuladas ao longo da tradição –
cujo acordo tácito entre elas é o idealismo absoluto de Hegel – reside um materialismo
latente, inconfesso, e cujas coordenadas não são outras senão a forma da crítica da razão
desde Kant.

A fim de compreender essa “reviravolta” materialista em torno de Hegel,


tomemos como ponto de partida o conceito-chave de paralaxe. A rigor, paralaxe
significa “o deslocamento aparente de um objeto (mudança de sua posição em relação
ao fundo) causado pela mudança do ponto de observação que permite uma nova linha de
visão” (Zizek, 2008, p.28). Imagine, pois, um objeto X, situado num espaço
tridimensional, cuja relação com o pano de fundo varia conforme o ponto de perspectiva
do observador. Extrapolando essa ideia para o nível filosófico, é claro nossa inclinação
imediata tende a escorregar para uma concepção substancialista da natureza de fundo
aristotélico, cuja base ontológica é derivada de uma combinação entre substâncias que
sustentam propriedades e relações. Nesse caso, teríamos o deslocamento como um
efeito puramente aparente, ao passo que o objeto X e o sujeito que se desloca seriam a
priori, isto é, entidades fixas e determinadas. Ora, esse é também o pano de fundo
contra o qual se move nosso senso comum, pautado sempre na crença ontológica de que
sujeitos e objetos possuem um núcleo fixo e invariável neles mesmos. Mas o que
aconteceria caso invertêssemos a dóxa dominante e no lugar de considerar o sujeito e/ou
o objeto como ponto de referência central, focássemos nossa atenção no próprio ato de
deslocamento? Ou seja, e se a cada instante, a cada momento em que se desloca o
observador, surgisse um novo objeto? E de forma ainda mais radical: e se esse
deslocamento produzisse além de um objeto, também um sujeito novo a cada nova linha
de visão? Não seria essa a lição hegeliana fundamental, expressa na introdução da
Fenomenologia do Espírito, segundo a qual o caminho para a verdade já é, por
definição, a própria verdade? Ou seja, não é o método enquanto caminho para o
conhecimento que produz tanto o sujeito quanto o objeto do conhecimento? Como diria
Hegel, “sujeito e objeto são inerentemente “mediados”, de modo que a mudança
“epistemológica” do ponto de vista do sujeito sempre reflete a mudança “ontológica” do
ponto de vista do objeto” (Zizek, 2008, 20). É preciso, todavia, reconhecer aqui um
ponto cego que passa totalmente despercebido pela atividade do intelecto: na medida em
que vemos sempre a partir dele, tal ponto cego é em si impossível de ser
visto/concebido. Em outras palavras, é esse ponto cego o único responsável por
condicionar todo trabalho de mediação; uma espécie de “núcleo duro” que persiste
independente dos variados esforços de apreensão conceitual. Tal excesso que
permanece irredutível ao conceito é, portanto, a própria ideia de paralaxe enquanto
efeito não mediatizável e sem o qual não há mediação possível. Para dizê-lo
diferentemente: o conceito de paralaxe é, por definição, um conceito paradoxal, que
consiste na impossibilidade inerente ao próprio conceito de se efetivar plenamente, de
forma autotransparente a si mesmo, uma vez que a diferença de deslocamento nunca
pode ser observada de um ponto de vista transcendente, privilegiado, capaz de
apreender sua própria determinação específica.

Mas como propor uma dialética – ou mais precisamente, um materialismo


dialético – a partir dessa lacuna paraláctica que se mantém imune a toda atividade de
mediação conceitual? Nesse caso os kantianos argumentariam, e com razão, que a
lacuna paraláctica estaria muito mais próxima de Kant do que de Hegel, pois expressaria
com muito mais propriedade o caráter irredutível das antinomias kantiana em vez de
uma síntese elevada como momento de superação dialética. Desse modo, a pergunta,
obviamente, é: por que então não assumir de uma vez o pensamento de Kant como
sendo a representação mais apropriada do conceito de paralaxe, deixando, desse modo,
para trás a referência central à dialética hegeliana? A resposta é simples: porque,
segundo Zizek, Kant não foi capaz de concluir a radicalidade de seu pensamento, e, por
essa razão, foi incapaz de incluir essa dimensão paraláctica no seu próprio arcabouço
teórico. Então não se trata de superação da divisão kantiana, mas essencialmente de
reafirmá-la teoricamente como tal. De maneira que, ainda que Kant tenha compreendido
o caráter insuperável da finitude humana e, portanto, intuído com originalidade o limite
paraláctico dessa mediação não mediatizável, foi Hegel quem levou essa empreitada às
últimas conseqüências. Em outras palavras, a censura de Hegel endereçada a Kant não
consiste em dizer que este tenha se limitado ao jogo de oposições finitas sendo,
portanto, incapaz de alcançar o infinito; o problema de fundo é que Kant não
reconheceu em seu próprio projeto a chave para radicalizar o horizonte da finitude
enquanto tal, e saiu, dessa maneira, em busca de um reino transcendente para além da
linha das oposições finitas.

Podemos, portanto, traçar essa relação entre Kant e Hegel levando em conta a
tensão estabelecida ente transcendência e imanência segundo o horizonte da finitude
humana. É certo que, para Kant, o traço essencial da finitude humana não consiste na
afirmação cética segundo a qual o conhecimento humano deve se resignar ao seu modo
de ser incompleto e imperfeito quando confrontado com a totalidade infinita; a tese
kantiana diz respeito a algo muito mais radical: é o horizonte da finitude humana
enquanto condição a priori e instransponível que projeta a ideia de um para além
numenal inacessível (Zizek, 2007, p.38). Ou seja, aqui há uma inversão radical em
relação à forma da metafísica pré-crítica que pensa a finitude sempre como uma
deficiência, um lapso, em relação ao absoluto. Para Kant, ao contrário, é a finitude
humana que vem antes, e o infinito passa a ser relativizado, dessubstancializado e
rebaixado ao posto de uma “simples” Ideia. O problema a partir de então é que Kant não
encontrou argumentos teóricos capazes de eliminar de uma vez por todas a referência à
dimensão numênica, sendo, pois, obrigado a sustentar numa espécie de equilíbrio frágil
a relação entre o dito e o não dito, ou seja, entre transcendência e imanência. E embora
Kant não deixe claro do que se trata efetivamente esse domínio numênico – ou seja, não
levanta em momento algum pretensões ontológicas em relação a ele – há, no entanto,
sempre uma sombra espectral dessa dimensão que se recusa a desaparecer por completa.
Nesse sentido, o caráter insuperável da finitude humana o leva naturalmente a
estabelecer uma antinomia fundamental entre duas dimensões radicalmente
assimétricas, a saber, entre númeno e fenômeno, ou ainda, entre transcendência e
imanência. Qual seria então a solução hegeliana para o impasse? O gesto de Hegel –
insisto – não se trata de modo algum em eliminar a lacuna específica da filosofia
kantiana e elevar-se (novamente) a um absoluto infinito, triunfando soberanamente
sobre o horizonte da finitude. Sua saída envolve uma estratégia muito mais simples: o
que Hegel faz no fundo é apenas deslocar o lugar das antinomias de sua referência
básica à transcendência/imanência para alojá-la enquanto uma fenda puramente
imanente, ou seja, a lacuna em Hegel passa a ser ontologicamente imanente ao
fenômeno enquanto tal. Nesse sentido, o que se torna impossível de capturar na
atividade intelectual do ser humano não é o reino numênico para além de suas
possibilidades finitas e limitadas, mas, pelo contrário, o que excede esse nível
conceitual é o próprio fenômeno na sua imediaticidade, ou seja, a própria aparência
enquanto pura aparência.

Percebe-se então que o deslocamento hegeliano consiste “simplesmente” em


reposicionar a lacuna – marca incontestável da finitude – do campo epistemológico para
sua dimensão ontológica, ou seja, passar do pressuposto do homem enquanto um ser
finito para a finitude da própria realidade enquanto tal. Segundo essa ordem de coisas,
temos, pois, uma nova configuração da relação entre transcendência e imanência: é por
ser a realidade finita – ou seja, a finitude deixa de ser epistemológica e passa a ser
ontológica – que se é obrigado a recuperar a sua completude numa ordem superior,
transcendente. E a razão pela qual se torna particularmente complicado para Kant
admitir a conversão ontológica dessa lacuna consiste basicamente no fato de que isso o
forçaria a demolir por completo seu edifício teórico, e, consequentemente, ser obrigado
a pensar uma nova teoria do sujeito constituído fenomenologicamente mediante um
materialismo radical. Ora, essa foi justamente a tarefa assumida por Hegel: o polêmico e
mal-afamado fundamento ontológico que motivou inúmeras objeções por parte dos
kantianos – pois viam nisso a expressão mais infame da negação da finitude humana –
não se trata, segundo Zizek, de uma unidade idêntica a si mesma, de um princípio Uno e
homogêneo acessível ao pensamento. Ao contrário, esse fundamento tem a ver com a
lacuna imanente à própria esfera da realidade que, por assim dizer, consiste no
contraponto mesmo da atividade do entendimento.

Somos, assim, tentados mais uma vez a arriscar mais outra interpretação da
passagem de Kant a Hegel, mas, agora, a partir da dialética entre entendimento e razão.
Para Kant, a razão não poderia jamais se sobrepor ao entendimento, já que isso
significaria a recaída numa metafísica dogmática racionalista, cujas ideias
desenvolvidas com base apenas na dedução lógica do pensamento seriam já suficientes
para garantir sua existência efetiva. Ocorre que, como não se pode simplesmente
abandonar a atividade da razão em pressupor reflexivamente as bases e os princípios
lógicos do entendimento, Kant mantém juntas essas esferas, lado a lado, mas com a
condição de não se tocarem ou se confundirem. Desse modo, a existência é uma
condição restrita ao campo do entendimento, já que é somente por meio da passividade
a priori da intuição pura que se pode de fato conhecer algo; a razão, em contrapartida,
equivaleria a uma espécie de ilusão transcendental, mas que, apesar de sua condição de
ilusão, ainda cumpre um papel indispensável, pois atua como princípio regulador do
próprio entendimento. Dito em outros termos, enquanto a razão para Kant opera
dialeticamente, podendo superar infinitamente o nível do entendimento e, dessa forma,
retroceder as suas origens (o princípio de razão suficiente), o entendimento, em
contraposição, deve operar analiticamente, através apenas de conceitos, já que não pode
ultrapassar o dado recebido pela experiência sensível. A conclusão, portanto, é que, por
essa linha de raciocínio, a razão equivaleria a um “a mais” em relação ao entendimento,
consistiria em seu excesso extraído pela autonomia do pensamento em relação à
experiência sensível. Por isso, enquanto ilusão transcendental, a razão deve ser
enquadrada numa dimensão a parte, separada por uma lacuna intransponível que
discerne radicalmente aquilo que posso efetivamente conhecer daquilo que posso
alcançar segundo a atividade lógica da razão pura.

Por outro lado, em contraste com Kant, essa relação dialética entre razão e
entendimento funciona em Hegel de maneira totalmente invertida: a travessia do
entendimento para a razão não significa aqui em um “a mais”, um excesso do
pensamento lógico sobre o entendimento; ao contrário, essa passagem corresponde a um
“a menos”, uma subtração formal que suprime o pano de fundo transcendental que
sustenta o campo do entendimento. Isso quer dizer que a razão é igual ao entendimento
menos a sua atividade transcendental, ou seja, a razão é apenas o entendimento em sua
forma pura, sem o efeito ilusório do excesso arranjado pela dedução lógica do exercício
reflexivo do intelecto. Como diz Zizek (1988):

A razão não é algo “a mais” em relação ao entendimento, um movimento, um


processo vivo que escape ao esqueleto morto das categorias do entendimento – a
razão é o próprio entendimento no que nada lhe falta, no que não existe nada
além dele: é a forma absoluta fora da qual nenhum conteúdo persiste. (p.20)

Assim, o problema pode ser exposto da seguinte forma: em Kant a razão


permanece presa à esfera da subjetividade, como um efeito de espelhamento necessário
à atividade do intelecto; já em Hegel, a razão se situa não em um para além, ou seja, ela
não cumpre a função de síntese elevada transubjetiva, mas reside, em contrapartida, no
aquém da esfera subjetiva, isto é, em um nível a-subjetivo mais elementar. Essa é a
razão pela qual Zizek associa imediatamente essa inversão dialética hegeliana, isto é, a
passagem do entendimento para razão, com aquilo que Jacques Lacan denominou,
segundo a experiência analítica, de travessia da fantasia. A fantasia, para Lacan,
representa um véu que cobre o vazio de uma impossibilidade fundamental, um anteparo
que mascara esse vazio. Ora, o equívoco das leituras críticas da psicanálise é considerar
que por trás da máscara do eu há um sentido profundo revelador de sua verdade. Para
compreender o verdadeiro sentido lacaniano do termo fantasia, temos então que justapor
dois tipos negatividade: a primeira delas é ocasionada pelo engodo da posição subjetiva
que incorpora a negatividade/finitude como contraponto à realidade exterior ilimitada,
de maneira que, mediante essa impotência inerente ao ser humano, advém
consequentemente o sentimento de uma perda originária jamais suprida. A segunda
negatividade é justamente a perda dessa perda originária: não é que o sujeito perca algo
positivo, um objeto determinado cuja falta determinará o sentido de sua existência, mas
o que ele perde é exatamente o que nunca possuiu, ou seja, ele perde a ilusão subjetiva
de que antigamente possuía algo. Sem entrar em mais detalhes, essa experiência
analítica da perda da perda é o equivalente teórico da passagem do entendimento para a
razão em Hegel.

E por isso, Zizek vai insistir que a verdade sobre a Aufhebung reside na
permanência teimosa no momento da negatividade, e isto significa a radicalidade
mesma do momento da antítese. Entretanto, podemos, antes, contrapor duas outras
leituras possíveis sobre esse tema: a primeira, a mais inconsistente, defende uma visão
teleológica da tríade hegeliana, de modo que a negação seria antes anulada que
conservada. A segunda, mais bem elaborada, defende a síntese como um retorno à tese
mantendo conservado o momento de sua negação. Essa é por exemplo a posição de
Jean-François Kérvegan (2006) :
Defendo que a Aufhebung tem aqui (e sem dúvida em geral) antes o significado
de uma regressão para o que funda uma “tese” (ou seja, que também a legitima
relativamente) do que o de uma progressão para o que a refuta: como indica a
Lógica, a progressão para o “resultado” é também uma regressão para o
fundamento” (p.94).

Uma terceira posição seria a de Zizek, que ao apostar na radicalidade da finitude,


questiona se esse primeiro momento, a tese, não seria um postulado ilusório como
contraponto lógico da antítese (Zizek, 1988):

A síntese é a antítese, e o que se passa entre as duas é apenas uma reviravolta da


perspectiva, uma constatação retroativa que a solução há de ser encontrada ali
onde se havia tão-somente o problema, de que o passe é o que se apresentou
como impasse: o performativo hegeliano faz com que o desafio de que se trate
seja, na posteridade, o que foi desde sempre (p.34).

A problemática aberta por Zizek encontra, portanto, seu equivalente na proposta


filosófica aberta pelo idealismo alemão, que levou às últimas conseqüências a pergunta
sobre a fundamentação da finitude humana sem perder de vista o virada transcendental
kantiana. Como bem expressa Frederick Beiser (2002):

“O problema maior do idealismo alemão foi como explicar o princípio do


dualismo sujeito-objeto da experiência ordinária. Paradoxalmente, tal princípio
teve de superar tanto o dualismo como igualmente demonstrar sua necessidade.
Hegel expôs todo o problema em poucas palavras quando declarou que a tarefa
da filosofia é encontrar a „identidade da identidade e da não identidade‟. Embora
essa fórmula pareça mística e metafísica, ela expressa perfeitamente bem o
principal dilema epistemológico enfrentado por todos idealistas alemães: como é
possível explicar a possibilidade do conhecimento de acordo com o princípio
idealista e ainda dar conta da realidade exterior? (p.13)

De acordo com Zizek, a chave para esclarecer o impasse do idealismo alemão só


pode ser fornecida se invertermos o obstáculo epistemológico que caracteriza a finitude
humana em condição ontológica positiva. Assim, podemos apresentar a mesma
problemática em outros termos: “como, de dentro da ordem invariante do ser positivo,
surge a primeira lacuna entre pensamento e ser, a negatividade do pensamento?” (Zizek,
2008, p.15). É preciso, pois, que a própria realidade seja ontologicamente incompleta
para que sujeito e objeto se contraponham. E essa é a verdadeira ontologia hegeliana
defendida por Zizek. Que a realidade seja incompleta ou aberta, não quer dizer que ela
corresponda a uma espécie de teologia negativa, cuja origem revela-se inalcançável,
sempre porvir. Para evitar esse equívoco, é importante estabelecer aqui a diferença
básica entre juízo negativo e juízo infinito em Kant. Segundo a forma do juízo negativo,
nega-se o predicado da sentença deixando ao sujeito da proposição uma abertura
ilimitada de possibilidades não determinadas (S não é P). Já o juízo infinito, em
contraste, em vez de negar o predicado, afirma sua própria negação – ou o não
predicado (S é não P). Zizek aproveita essa distinção para defender o estatuto
ontológico da negatividade. Por exemplo, se afirmamos “a realidade não é toda”,
estamos evidentemente sustentando com isso uma concepção de realidade cuja
totalidade revela-se através de uma negatividade infinita, em plena expansão. E como
tal, essa realidade é constantemente subtraída do nosso alcance cognitivo, driblando
astuciosamente nossas limitadas ferramentas conceituais etc. Mas, e se em vez de
negarmos a totalidade da realidade, nós afirmássemos sua negatividade constitutiva
enquanto tal, ou seja, a afirmação da realidade como não-Toda? Teríamos então uma
forma completamente distinta de negatividade, uma negatividade determinada, presente,
definida agora não em contraposição aos limites do conhecimento, mas como os
próprios limites do conhecimento. Portanto, a formulação do juízo infinito em Hegel
assume essa contradição ontológica. O juízo infinito hegeliano é pois a própria
coincidência dos opostos cujo paradoxo é inapreensível pelo padrão de funcionamento
do entendimento. Por sua articulação, elementos de naturezas totalmente incompatíveis
se fundem um no outro, provocando um sentimento de estranheza inconciliável. Eis,
portanto, alguns desses juízos que Zizek destaca ao longo da obra de Hegel: “O Espírito
é um osso”, “o eu é o dinheiro”, o “Estado é um monarca”, “Deus é Cristo” e por aí vai.
Nesse sentido é um “pedacinho do real”, um nada insignificante, insensato, que reclama
para si a suprema magnitude do universal; o todo universal e divino, na sua natureza
exuberante de sentido, é encarnado num reles objeto da esfera ôntica. De modo que a
essência do Espírito reside num osso; a do eu, no dinheiro etc. etc.

Onde, então, localizamos o sujeito meio a essa inversão dialética hegeliana que
desloca o eixo da epistemológica para ontologia transferindo a limitação constitutiva da
subjetividade para a realidade como sendo essa própria limitação? A resposta é simples:
o sujeito aqui é um outro nome para essa lacuna ontológica. Para esclarecer esse tema
com mais amplitude, façamos um breve desvio por Descartes. Podemos encontrar já no
método cartesiano o protótipo dessa lacuna: o cogito, resultado final da dúvida
hiperbólica, é a manifestação mais pura dessa negação radical, desvelado no exato
momento em que é esgotada toda e qualquer determinação positiva do ser, ou seja,
quando mais nenhum critério positivo pode o determinar. O problema de Descartes é
que, logo que ele destaca o sujeito de suas determinações ônticas, positivas, ele,
contudo, retorna imediatamente ao primado da metafísica substancialista na qual o
cogito volta a ser uma parte do ser, como substância pensante. Foi Kant quem
efetivamente radicalizou esse crack, essa ruptura decisiva com a cadeia positiva do ser,
determinando o sujeito como um órgão de referência puramente formal, como síntese a
priori de todas as representações possíveis. O fundamental aqui é: em Kant o sujeito já
não mais se inclui como uma parte do ser; o sujeito kantiano é, em última análise, o
excedente mesmo do ser, um ponto de referência não determinado, ou seja, uma
instância de mediação que, por sua vez, não pode determinar a si mesmo. O salto
hegeliano consiste então em reificar novamente esse sujeito, não como Descartes o fez,
como substância, mas agora como negatividade determinada, ou seja, como reificação
que guarda, consigo, a negatividade constitutiva do sujeito kantiano.

A conseqüência teórica disso é, mais uma vez, nada mais que a radicalização
daquilo que Kant já havia intuído. Assim, a verdadeira diferença entre Kant e Hegel é
uma diferença de ordem fundamentalmente formal: em vez de situar a lacuna entre o
sujeito e a Coisa numenal, o sujeito hegeliano coincide com a própria lacuna, ou seja,
como negatividade autorreferencial que surge da tensão imanente à própria realidade.
Dito de forma mais específica, Hegel considera a dicotomia clássica entre
essência/aparência como uma falsa dicotomia; na sua versão, a verdadeira divisão é
antes estabelecida entre a própria aparência e ela mesma: a essência, nesse caso, a
Coisa-em-si, não é mais que o efeito ilusório projetado no para-além dos limites do
conhecimento. O que se acredita ser a realidade lá fora é apenas um efeito de
espelhamento – uma produção imaginária da subjetividade quando encerrada em si
mesma (Zizek, 2008, p.101). Podemos acrescentar, seguindo essa mesma linha de
pensamento, que a tensão entre imanência e transcendência é, portanto, uma tensão
secundária se tomarmos como referência a fenda dentro da própria imanência. A
transcendência é no fundo uma ilusão de perspectiva, a forma pela qual percebemos
“erroneamente” a fenda/disparidade que é inerente à própria imanência. A mesma coisa
aplica-se à relação entre o Mesmo e o Outro: “a tensão entre o Mesmo e o Outro é
secundária em relação à não-coincidência do Mesmo consigo” (Zizek, 2011).
Bibliografia:

Beiser, F. (2002) German Idealism: The Struggle Against Subjectivism (1781-1801)


Harvard University Press: Cambridge.

Kervégan, J-F. (2006) Haveria uma vida ética? em: http://philpapers.org/rec/KERHUV

Zizek, S. (1988). O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar.

__________ (2007). Le sujet qui fâche. Paris: Flammarion.

_________ (2008). A visão em paralaxe. Editorial Boitempo: São Paulo. (E-book)

_________ (2011). Órgãos sem Corpo: Deleuze e Conseqüências. Cia. de Freud: Rio de
Janeiro.

Вам также может понравиться