Para Wittgenstein, as interações linguísticas são como as interações de um jogo, pois
se constituem de atividades públicas, intersubjetivas, que pressupõem o uso de regras,
reações comuns, habilidades, disposições e certas capacidades geradas pelo treino de técnicas. Todo ato linguístico significativo é, portanto, uma ação normativamente orientada em um contexto pragmático e intersubjetivo. As regras de determinado jogo de linguagem constituem a gramática dos usos das palavras naquele contexto, funcionam como padrão de correção por meio do qual se pode distinguir palavras utilizadas correta ou incorretamente no interior do jogo. Em sua fase madura Wittgenstein procura estabelecer, através de análises orientadas pelo conceito de “jogos de linguagem”, uma distância entre regras e ações normativamente orientadas. Tal distância é produzida por um típico questionamento do segundo Wittgenstein, através do qual o autor opera uma multiplicação das regras necessárias para efetiva aplicação de uma regra, para a ação regrada. Wittgenstein mostra que em uma ação normativamente orientada é impossível que sempre exista uma regra sendo seguida, argumentando que, em última instância, seguimos regras injustificadamente, apenas agimos como agimos, dado o contexto pragmático-normativo em que nos inserimos. Para Wittgenstein não pode haver uma regra fundamental que orienta inequivocamente o “seguir-a-regra”, pois, regras não são auto-suficientes, isto é, não bastam para explicar e produzir corretamente ações regradas. Elas não são acompanhadas de “regras-de-aplicação” inequívocas, e portanto, sempre se pode pedir pela “regra da regra” e sempre se pode pensar em diferentes modos de aplicação de uma mesma regra. Para mostrar a distância que Wittgenstein procura estabelecer entre as regras e as ações regradas no interior de um jogo de linguagem, tomemos por exemplo os jogos 18 e 20 do Brown Book. Estamos no contexto de um canteiro de obras em que tabelas são usadas para definir os nomes de alguns objetos que devem ser trazidos pelo ajudante. No jogo 18 ensinamos um ajudante a utilizar um novo nome sem prévio treinamento; no jogo 20, a construir novas tabelas para nomeação de objetos. Tendo sido previamente familiarizado com o uso de uma regra de nomeação, isto é, neste caso, uma tabela que correlaciona as palavras “martelo”, “alicate”, “serra” e “formão” à suas respectivas figuras, o aluno pode aprender a utilizar um novo nome se adicionarmos à tabela a figura de um objeto familiar ao nosso aluno, como um tijolo, e então correlacionarmos tal figura com a palavra “tijolo”. Feito isso, poderíamos então incentivar o aluno a utilizar a nova regra, que relaciona a palavra “tijolo” à imagem desse objeto, do mesmo modo que ele fazia com as outras que já conhecia, mas sem utilizar para isso nenhum treinamento adicional àquele que ele já recebeu para o uso da tabela inicial. Faríamos isso através de incentivos, gestos de expectativa, olhares, castigos e recompensas em um esquema de tentativa e erro. Ao cabo, o aluno estaría apto a utilizar a nova palavra assim como fazia com as outras. Se analisamos tal situação pragmaticamente, percebemos que só utilizamos tais incentivos porque esperamos que o aluno seja suscetível a eles, isto é, que tenha as reações que geralmente temos quando nos encontramos em uma situação como essa. No jogo 20 as ordens serão obedecidas nos termos de uma nova tabela, que será criada pelo próprio aluno. Podemos imaginar que ensinamos o aluno a criar uma nova tabela montando as primeiras linhas de uma tabela na frente dele. Montada a primeira linha, lentamente adicionamos um elemento por vez, chamando sua atenção para a nova figura que colocaríamos debaixo da coluna em que já estaría a outra, depois faríamos o mesmo com a palavra correspondente, e então apontaríamos repetidas vezes da figura para a palavra, e da palavra para a figura. Poderíamos até mesmo guiar o dedo do aluno horizontalmente no sentido em que se deve construir as relações na tabela, em cada fileira, antes de incentivá-lo a continuar criando a sua. Todos esses gestos não são “penduricalhos” do ensino, mas são parte essencial desse treinamento. Se analisarmos esses jogos, percebemos que no jogo 18 nós tínhamos por pressuposto que o método de aplicação da tabela estava claro, pois não colocávamos em dúvida a forma como costumamos ler tabelas, isto é, da esquerda para a direita, dispondo os elementos em colunas. Ou seja, não levávamos em conta o modo como costumamos seguir e reagir àquela regra. Diante disso, alguém poderia dizer que o método de ensino no jogo 20 traz à tona a “regra implícita” que consiste no método de leitura da tabela. Mas, com a sequência desses jogos Wittgenstein não quer dar a entender que sempre existe uma regra implícita que subjaz às regras mais evidentes que seguimos em um jogo linguístico. Na verdade, ele mostra como é absurdo afirmar que uma regra está incompleta caso nenhuma outra regra seja usada para explicar como ela é aplicada. Se admitirmos essa afirmação, somos levados a sempre pedir pela “regra da regra”, desenhando um círculo vicioso ad infinitum, interpondo entre a regra e a ação regrada um abismo intransponível, buscando uma espécie de tabela definitiva e auto-suficiente que justificaria de uma vez por todas a normatividade de nosso ato linguístico. No caso do jogo 20, ao ensinar a regra da referência horizontal de leitura estamos arbitrariamente deixando de lado toda a miríade de métodos de leitura possíveis para aquela tabela (como os do jogo 21), ou seja, estamos optando por essa convenção de leitura e não “revelando” uma regra implícita, que já estaria em operação por uma suposta necessidade lógica. Wittgenstein não nega que o uso de uma regra possa ser explicado por outras, mas mostra que é impossível oferecer uma justificação última e definitiva para uma ação normativamente orientada que não consista pura e simplesmente em uma decisão arbitrária. Uma tabela sozinha pode não significar nada, se já não estiver inserida em um contexto pragmático que fornece padrões de correção de suas técnicas de aplicação. Tais padrões até podem ser descritos como outras regras, como manuais de utilização, todavia, eles não precisam sê-lo e, ademais, não pode haver sob eles um “manual dos manuais”. A inquirição pela “regra da regra” em algum momento acaba, e o ponto em que a cadeia de justificativas para é a ação. Ou seja, aquilo que supostamente poderíamos encontrar no fundo dos jogos de linguagem é o agir comum humano. Ao cabo, seguimos uma regra injustificadamente, e quando estou “seguindo-uma-regra” é logicamente impossível que existe sempre uma regra que estou seguindo.
Ana Maria Gama Florêncio - Belmira Magalhães - Helson Flávio Da Silva Sobrinho - Maria Do Socorro Aguiar de Oliveira Cavalcante - Análise Do Discurso - Fundamentos & Prática-EDUFAL (2009)