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Este trabalho pretende ressaltar a violência devastadora que muitas vezes está
por trás do tão enaltecido amor materno. A mãe enquanto Outro Primordial e Absoluto
encarna a pura potência à qual o infans está assujeitado. A criança é objeto condensador
de gozo para a mãe, o Outro Absoluto, cujo desejo é caprichoso, sem lei, legiferante.
Isso adquire uma especificidade quando se trata do sujeito feminino. Freud define a
relação mãe/filha como sendo da ordem de uma catástrofe. Lacan avança nesta questão
e afirma que a relação de uma mãe com sua filha é devastadora, em suas palavras:
É neste campo do não-todo fálico que a devastação ganha seu lugar, ela é então
oriunda do apego indissolúvel que há entre mãe e filha, mas situada no campo do não-
todo fálico, campo em que as palavras estao excluídas. Entendo que o pai com seus
pecados e abusos sexuais não combina como segundo na devastação, porque a fantasia
da menina é a de que ele possa lhe dar o falo sob a forma de filho. O pai para a menina
não é devastador, na medida em que ele é o portador do falo e por isso sustenta a
promessa fálica, mantendo a reivindicação fálica, isto é, mantendo-a na norma fálica
sob a forma de espera do falo/filho prometido. Mas, como a sexualidade feminina não
se encerra na maternidade isso também falha e a promessa do pênis/falo é mais uma vez
impossível de cumprir. Ademais, ele não tem o corpo privado do pênis, o suporte
imaginário falo, ele não sabe desta falta marcada no corpo, e de saída não tem como
transmitir mais substância como mulher que ele não é. O segundo neste processo é
então o homem dela, que herda algo do gozo mortífero, fora do falo, que ela obteve na
relação com a mulher sua mãe.
Assim, as mulheres podem desenvolver uma agressividade desmedida contra
aquelas a quem supõem o falo. O ódio à mãe tem aqui seu reinado, pois é ela a primeira
mulher fálica, a primeira rival, mas, na maioria das vezes, esse ódio vem acompanhado
de paixão, de dependência que aniquila, de um resto pulsional não mediatizado pelo
significante falo. É o que vemos na relação de Madame Sèvigné e sua filha, ilustração
exemplar da devastação, que no caso não chega a passar pelo homem como o segundo,
pois ocorre de forma direta entre mãe e filha.
Madame de Sévigné (1626-1696) é tomada pela violência de um amor
devastador por sua filha, Madame de Grignan (1646-1705). O caso é singular, já que
temos o testemunho da mãe ela mesma, através das cartas endereçadas à filha. Essa
correspondência é tão célebre que tem a reputação de ser paradigmática dos terrores e
angústias que agitam o laço entre mãe e filha. A vastíssima correspondência mantida
por ela não tinha como único destinatário a filha, estendia-se às mais importantes
personagens da corte, tendo inclusive papel relevante nas decisões do Rei. Através da
intriga, ela manipulava os homens fazendo de seus pretendentes caros amigos. A
imaginação prodigiosa de Madame de Sèvigné dava a todos os seus atos uma
exuberância impositiva que ia ao encontro das pessoas e as trazia à força para o centro
dos seus próprios interesses.
Madame Sèvigné nasceu em 1626, após a morte de dois irmãos. Órfã de pai aos
doze meses, perdeu a mãe com seis anos; sua vinda ao mundo foi cercada de mortes.
Mal casada aos 18, viúva aos 25, foi tomada por uma seriedade mais forte do que seu
apego mundano, e fez de suas decepções de casada um calmo e sólido horror a qualquer
compromisso com outros homens, seu objeto privilegiado tornou-se a filha Madame de
Grignan. Esta foi uma adolescente a quem a mãe exibia como um falo brilhante, mas
para fazer bilhar a própria mãe que desta maneira se preservava de enfrentar uma
sexualidade considerada por ela perigosa e da qual havia renunciado após a morte do
marido, um mundano devasso. A exibição da jovem fez com que ela fosse considerada a
mais bela jovem da França e sexualmente desejada pelo Rei-Sol, comprometendo sua
reputação, o quê se somava a má fama do pai. Tomada de pânico, Sèvigné afasta a filha
casando-a as escondidas do Rei.
Madame de Grignan vai viver em Provence e perde seu primeiro filho. Mãe e
filha têm seus corpos agredidos, a filha pela perda do bebê e a mãe pelo afastamento da
filha. As cartas à filha primam por sua abundância, brilho, rara vitalidade e por só
começar após a partida da jovem condessa de Grignan: um arrancamento estranho,
inaudito, do qual sua mãe não se refez jamais. As cartas constituem a prática do
“excessivo carinho” no qual a mãe a submerge. O élan amoroso só se revelou, só
encontrou sua existência na ausência da amada, desabrochando através das cartas. A
inacessibilidade de Mme de Grignan, devido a distância, permitiu à Mme de Sévigné
manter a tensão de um amor apaixonado. Carta após carta, ela declara os redemoinhos
da loucura de seu amor, ela conhece as desordens da falta e sofre da nostalgia de um
paraíso perdido. O amor enregelado, maravilhoso, ofegante encontrou seu lugar nas
cartas regulares no ritmo de duas por semana.
Aos olhos da mãe, a filha parece estar constantemente sob ameaça de morte, o
que daria fim ao seu amor. Mme de Sévigné atravessa momentos de báscula, alarmantes,
no qual ela passa do amor habitado pela felicidade à vertigem da angústia do
desaparecimento. É torturada por um élan devorador que se quer eterno e absoluto.
Cada boa notícia desencadeia nela uma onda de lágrimas, como se tratasse de um
insulto. Ela é perseguida pela falta de sua filha como se pode ser pelo desaparecimento
de um defunto que não se pode enterrar. É um amor escrito na e pela ausência, sua
realidade está na carta: “escrever em detalhes” é o “estilo do afeto.” À sua filha ela dirá:
“ler suas cartas e lhe escrever são o primeiro interesse de minha vida” (Madame de
Sévigné 1996 tomo I 18/03/1671 p.189). Se as cartas não são respondidas ela
enlouquece; a cada carta de sua filha ela é relançada na euforia de escrever-lhe novas
cartas.
Logo após esse sonho, Mme de Sèvigné é acometida por um torcicolo que a
impede de escrever. Um reumatismo invalidante a obriga fazer do filho seu secretário,
para poder escrever suas cartas agora ditadas. Quando a filha sabe do estado da mãe
sente-se culpada e tem uma forte crise que a faz parir prematuramente.
Se antes elas se acusavam mutuamente, agora ambas se dizem culpadas uma da
doença da outra. A marquesa de Sèvigné sente-se culpada da morte do neto. Mãe e filha
passam a brigar a ponto de lhes aconselharem a não mais se falarem e menos ainda se
verem. O desentendimento é público e as acusações e queixas são idênticas as de um
casal de amantes que se separa. Madame de Grignan não aceita a separação, está
abalada com a morte do filho e sente-se injustiçada, precisa falar à mãe mais uma vez.
Não aceita a ordem da mãe para que se dedique à filha Pauline e esqueça o bebê morto.
Mme de Grignan adoece, recusando-se a se medicar, deixa-se imolar para mostrar à mãe
que seu amor excessivo é destruidor. Ela se vê definitivamente dividida entre o
excessivo amor de sua mãe, ao qual cede quando está longe do marido, e a exigência do
marido, a quem faz crer ter-se afastado de sua mãe.
“Diante do espetáculo de destruição apavorante que lhe oferece a filha como
prova da destrutividade materna, Mme de Sêvigné entenderá que só lhe resta declarar sua
impotência e admitir que a vida de sua vida não lhe pertence” (LESSANA, 2000,
p.113). Ela renuncia às suas reivindicações amorosas, distinguindo a erótica de seu
amor da erótica do amor do marido de sua filha. Madame de Grignan assume
definitivamente a família que construiu com o marido. Os corpos de mãe e filha se
separam, mas a devastação seguirá como herança dada à Pauline, filha de Mme de
Grignan. Pauline torna pública a obscenidade em que viviam sua mãe e a avó
publicando a correspondência e fazendo-se de secretária selvagem da devastação da
própria mãe.
A obscenidade desta relação se inicia quando a mãe coloca a filha em posição de
único objeto fálico colocado à frente para encobrir seu amor excluído e manter a ereção
de sua própria beleza. Através do corpo da filha, a mãe vive sua sexualidade, exibindo-a
para o mundo ao mesmo tempo em que encobre sob a capa de um excessivo amor
maternal que goza desse corpo.
Referências Bibliográficas:
Madame de Sévigné, correspondence, Paris, Galllimard, “Bibliotèque da la
Plêiade” 1996, tomo I II III. Todas as referências à correspondência são desta edição.
In: Entre mère e fille: um ravage Marie- Magdeleine Lessana.