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Um ponto de vista sobre o século e o ciclo anarquista no ABC

Fhoutine Marie & Guilherme Falleiros

Este texto parte do princípio de que vivemos um momento de transição entre um ciclo histórico populista e
um ciclo histórico elitista no território dominado pelo Estado brasileiro. Diante disso, faz-se necessário ao
anarquismo se adaptar para melhor resistir e combater. Assim, o objetivo deste ensaio é apresentar uma visão
sobre o anarquismo no ABC um século depois do anarcossindicalismo do início do século XX. Não se trata,
portanto, de algo que pretende falar pela totalidade de anarquistas do ABC, uma vez que pessoas anarquistas
não se consideram representantes de ninguém além de si mesmas, mas de compartilhar reflexões surgidas a
partir de nossa experiência com a Casa da Lagartixa Preta “Malagueña Salerosa”.

De um ponto de vista anarquista, o movimento Diretas Já e a Constituição de 1988 – dadas as demandas pela
redemocratização e maior participação política, no primeiro caso, e dos direitos conquistados por mulheres,
indígenas e população negra, no segundo - podem ser vistos como marcos do início de um ciclo histórico
populista na república brasileira. Se considerarmos concepções anarquistas de História, como de Proudhon,
Malatesta ou mesmo Luce Fabbri, a luta entre opressores e categorias oprimidas tem recaído em ciclos
autoritários alternados que encontram ora momentos em que quem ocupa o governo está mais próximo das
elites, ora momentos em que o governo está relativamente mais próximo do povo - sem jamais abandonar
elites e desigualdades, manifestando o desejo de poder de forma hierárquica, como diria Luce Fabbri.
Populista é, neste sentido, todo o governo que se aproxima de medidas populares, movido pela volubilidade
das multidões, segundo Proudhon. Porém, não se trata de um do governo do povo e pelo povo: por ser
governo, não pode jamais abandonar uma certa elite, pois sempre corre o risco de ser substituído por uma
aliança mais estreita entre elites e soberano, o que daria uma guinada elitista ao ciclo político.

Deste modo, verifica-se em meados da segunda década do século XXI o esgotamento do populismo no
Brasil. Seus governos, mesmo nos momentos de ampliação da inclusão social no mercado (principalmente o
mercado consumidor) e na implementação de políticas reparatórias, jamais abandonaram a elite de
banqueiros, latifundiários pró-transgênicos, empreiteiros e altos dirigentes das religiões cristãs
fundamentalistas. As revoltas populares que irromperam neste momento, como as chamadas Jornadas de
Junho de 2013, embora tenham tido origens anárquicas, foram capturadas por um impulso elitista
abertamente autoritário que tomaria conta do país nos anos seguintes, consolidado na eleição presidencial de
2018 por meio do mesmo direito de voto que foi bandeira da “redemocratização” do início de ciclo anterior.

Para além da política institucional e das transformações jurídicas é possível identificar como eixo de virada
rumo ao populismo republicano também a questão trabalhista, com o que foi chamado nos anos 80 e mesmo
final dos 70 de “novo sindicalismo”. Este sindicalismo marcou a história do ABC paulista e a ascensão do
lulismo, o que, de acordo com a proposta apresentada neste texto, seria o momento máximo do que
chamamos de populismo. Vale a pena focar neste aspecto do ciclo populista para se compreender o
anarquismo no ABC após um século do evento que foi escolhido por estes mesmos “novos sindicalistas”
como o mito de origem do sindicalismo na região: a morte de Constantino Castellani.

Como mostra Jairo Costa neste volume, a União Operária de Santo André, nascida anarquista e
revolucionária, acabou sendo tomada por comunistas. Depois, na chegada das grandes empresas automotoras
em São Bernardo do Campo, surge um novo sindicato, o dos Metalúrgicos do ABC, em ruptura com a União
Operária, de Santo André. Este novo sindicato garantiu para si a mais influente força operária da época,
aquela das grandes linhas de montagem de veículos. Com a ascensão do lulismo, já bastante conciliatório na
época, os sindicalistas de Santo André aceitaram se unir ao sindicato do ABC. Esta união apontou para um
ponto de origem apaziguadora na figura de Castellani, porém dissociado de seus elementos anárquicos.

Como mostra a pesquisa de mestrado do companheiro Marcelo Parreira Vasconcellos, a consolidação do


“novo sindicalismo” no ABC contou com a exclusão de lideranças de base de fábrica que compuseram a
“oposição sindical” no início dos anos 70 e com a continuidade do respeito às instituições típica do
sindicalismo legalista, adotando um “reformismo brando" que não ameaçava nem a estrutura sindical estatal
nem o capitalismo. Estas são as bases do sindicalismo brasileiro da era populista que se iniciava, bem como
do partido que viria realizar o lulismo como expressão eleitoral máxima deste populismo através das eleições
de 2002.
Foi em contraposição a este “reformismo brando” da esquerda dominante no ABC, cujo auge foi marcado
por grandes showmícios e festas de Primeiro de Maio promovidas pelas centrais sindicais, que um coletivo
“libertário” do ABC se manifestou em 2002. Este coletivo era o Ativismo ABC, que havia sido formado
durante os protestos de rua que marcaram a virada do século, ligados à Ação Global dos Povos e à luta
contra a Área de Livre Comércio das Américas, que daria liberdade de circulação para o capital mas não para
as pessoas trabalhadoras.

[Na imagem, “Libertários do ABC” (sic) protestam diante de Lula e seus correligionários, que desciam de um
helicóptero no Paço Municipal de Santo André para a festa da CUT no Primeiro de Maio de 2002.]

Diante do “reformismo brando” que tomava conta não só do sindicalismo como forma de ação política, mas
também de toda a política do país, o Ativismo ABC acabou se voltando para uma antiga prática anarquista: a
constituição de centros sociais. Em 2003 o coletivo decidiu que, para colocar em ação as propostas políticas
em que acreditava para além do trabalhismo legalista, precisaria se dedicar à autogestão e a constituição de
um centro de cultura e de experimentação de práticas libertárias e solidárias. A Casa da Lagartixa Preta
“Malagueña Salerosa”, sediada próxima ao centro de Santo André, num antigo bairro operário que na época
já era dominado por sedes de sindicatos e partidos políticos, foi inaugurada em 2004. O espaço passou a
contar com biblioteca e horta ecológica comunitárias, oficinas de reformas e construções e atividades de
apoio mútuo e solidariedade concretas, cursos gratuitos e um “baú de dádivas” (que depois se tornaria uma
estante de dádivas) para circulação gratuita de objetos usados: enfim, uma tentativa de fuga da lógica da
propriedade e do mercado capitalistas.

Diversas das práticas realizadas na Casa da Lagartixa Preta ao longo dos últimos 15 anos podem ser
remetidas àquelas dos centros de cultura social que marcaram o anarquismo brasileiro entre os anos 30 e os
60, como o Centro de Cultura Social de São Paulo (criado em 1933 e ainda hoje em atividade) ou o Centro
de Estudos Professor José Oiticica, de 1958, no Rio de Janeiro, e mesmo as práticas de agricultura e
vegetarianismo ligadas à Nossa Chácara ou Nosso Sítio em SP, locais onde anarquistas do Brasil todo se
reuniam. Grupos de teatro, cursos livres, cinema, ecologismo, bibliotecas, estas são práticas comuns do
anarquismo do século passado e do anarquismo do século atual na Casa da Lagartixa Preta. Todavia,
consideradas as diferenças históricas, o anarquismo dos antigos centros sociais, como mostra a extensa obra
escrita pelo pedreiro anarquista Edgar Rodrigues, era muito mais ligado à questão sindical, ainda que
posicionando-se criticamente à derrota do anarcossindicalismo pelo sindicalismo comunista aliado ao
sindicalismo oficial de Getúlio Vargas, de ares fascistas. Já o anarquismo do ABC do início do século XXI
tinha perdido qualquer diálogo com o sindicalismo, visto como totalmente corrompido.
Esta recusa ao tipo de sindicalismo no qual se embasou o lulismo ajudou o Ativismo ABC e a Casa da
Lagartixa Preta a se manterem resistentes também a uma nova política de cooptação de práticas
originariamente anarquistas: a política de fomento à cultura, dos projetos artísticos financiados pelo governo,
dos "pontos de cultura” etc. Contra o financiamento estatal, o Ativismo ABC insistia numa ideia de
autogestão que pode ser dividida em duas frentes: a busca de meios de vida não-mercantis (hortas
domésticas, agroecologia, reciclagem, dádivas, conexão entre trabalho intelectual e trabalho braçal, produção
de meios mínimos de subsistência) e a manutenção de um espaço anarquista num imóvel alugado, sem os
riscos de desalojo iminente que caracterizavam muitas ocupações na época.
Paradoxalmente, a Casa da Lagartixa Preta acabou sendo beneficiada pelo momento populista contra o qual
lutava. Com a baixa inflação, o aumento do acesso à educação e a bolsas de estudo, o aumento do emprego e
a inclusão no mercado consumidor de pessoas antes marginalizadas, durante uma década a casa encontrava
facilmente público para suas atividades de arrecadação financeira para o pagamento do aluguel. Com isso, as
práticas de autogestão e apoio mútuo acabaram se tornando dependentes de um público consumidor que
frequentava as atividades da Casa da Lagartixa Preta e que era beneficiado pelas condições materiais
características deste momento populista.

Desta forma, a crise do populismo também marcou uma crise na Casa da Lagartixa Preta. Já em meio aos
protestos de 2013, diversas pessoas membros da gestão do espaço encontravam dificuldades para seguir
participando, seja por excesso de trabalho em empregos diversos, muitos em processo de precarização, seja
por falta de dinheiro, o que se agravaria nos anos seguintes. O coletivo gestor passou por mudanças drásticas
entre 2015 e 2016 e tentou se tornar mais inclusivo para aquelas pessoas que tinham dificuldades de
participar devido às diversas desigualdades que se interseccionam em cada pessoa. Assim o coletivo passou a
demandar menos responsabilidades daquelas pessoas mais afetadas por desigualdades interseccionais.

Esta situação, contudo, não serviu para solucionar as dificuldades de participação na gestão do espaço, e a
quantidade de membros do coletivo que efetivamente podiam participar dos cuidados e trabalhos necessários
não parou de cair. Enquanto isso, o público consumidor das atividades de arrecadação de verbas para o
aluguel, e mesmo o público que acessava as atividades gratuitas da casa, passou a estar mais situado naquele
campo que se consolidou com o lulismo como o da “cultura”, bastante afetado pelas práticas de assistência
estatal. Um baixo vínculo com a gestão do espaço, uma relação de consumo cultural com a casa, cada vez
mais enfraquecida economicamente, e algumas relações próximas ao assistencialismo fazem parte das atuais
dificuldades enfrentadas pela gestão da Casa da Lagartixa Preta.

Diante desta situação, a Casa da Lagartixa Preta busca hoje novas parcerias. Um século depois de Castellani,
diante do desmonte do fomento estatal à ciência e à cultura e ainda do sistema de previdência pública, de
direitos trabalhistas e dos sindicatos oficiais - jogando uma pá de cal na era populista - o sindicalismo
revolucionário volta ressurgir no ABC - agora em processo de diálogo com a Lagartixa Preta, buscando
retomar aquela relação entre a prática de centros de cultura social e o sindicalismo radical.
Este renovado sindicalismo retoma elementos do anarcossindicalismo, como a luta de trabalhadores que
sofrem da precarização e desregulamentação, o que adquire novas feições no século XXI: atendentes de call-
center, motoristas de aplicativos e de entregas, marretagem, empregadas domésticas, pessoas cronicamente
desempregadas etc.. Neste sentido, surge uma chance do espaço se tornar mais inclusivo: não só um espaço
para pessoas “trabalhadoras da cultura”, artistas, professores etc. - muitas vezes ligadas a nichos culturais
muito específicos ou “alternativos" - mas também a pessoas que trabalham nos mais diversos setores. Essas
pessoas muitas vezes não tem contato ou interesse por meios culturais menos massificados, mas mesmo
assim se encontram afetadas pelas desigualdades do mundo do trabalho.

Como mostra a pesquisa de doutorado da companheira Katiuscia Moreno Galhera, os setores de trabalho
onde há maior presença feminina, de pessoas pretas ou pardas e estrangeiras são aqueles onde há mais déficit
de organização sindical. Observa-se, a partir disto, um ponto de encontro entre as questões interseccionais
levantadas pelo Ativismo ABC e as bandeiras do sindicalismo radical internacional renovado nesta década,
com sementes brotando na região.

De todo modo, diante deste novo ciclo elitista, as atuais condições de trabalho precarizado remetem àquelas
vigentes um século atrás. Isto aponta para a reconexão entre anarquismo e sindicalismo, cujos resultados não
podemos prever, mas anunciam um novo horizonte de organização e de luta coletiva.

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