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Pessoalmente, acho isto excelente e muito pedagógico, pela mera razão de haver
sido exatamente assim que Jesus viveu estas realidades na sua vida espiritual pessoal. Não
quero com isto dizer que Nosso Senhor dedicasse uma ou duas horas diárias de leitura
orante das Escrituras antes de ir à sinagoga de manhã cedinho para rezar Laudes e depois,
participar da Missa na paróquia mais próxima de Nazaré, a caminho da carpintaria de seu
pai, José. Por mais charmosa que seja esta possibilidade, ela não passa de devaneio da minha
imaginação. Mas quero dizer, sim, que na vida de Nosso Senhor a lectio – sua leitura e
interpretação pessoais da Escritura – encontrava uma chave hermenêutica na liturgia – que
o punha em comunhão com toda a comunidade judaica – e que este processo, ao transformar
a compreensão de Jesus acerca de si mesmo, de seu próximo e de Deus, preparou o caminho
para a consumação de sua vida, realizada do modo mais forte possível na Eucaristia (que
prefigura e realiza o mistério de sua morte e ressurreição). Com isto, afirmo desde já que,
embora a reflexão que me foi pedida fosse sobre lectio e Eucaristia na vida monástica, para
mim era impossível não incluir o Ofício Divino, seja porque foi assim que Jesus mesmo viveu,
seja porque, no decorrer da história da espiritualidade, a liturgia sempre foi vista como uma
forma de lectio divina – nela ocorrem leituras, que são meditadas de modo orante e que para
muitos fiéis são a única oportunidade de um contato pessoal com a Palavra. Ou seja, lectio,
Ofício e Missa formam uma unidade espiritual – e portanto, existencial – e “o que Deus uniu,
o homem não separe”.
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Sem qualquer sombra de dúvida, o desejo mais profundo do coração de Jesus era o
de encarnar a Palavra do Pai, o de transformá-la em realidade da maneira mais plena, mais
bela, mais santa possível, por estar absolutamente convicto que esta é a vocação e a salvação
de cada ser humano – ele, que antes de encarnar-se, vivia “no seio do Pai” (in sinu Patris),
como nos diz S. João. Jesus tinha este grande desejo por estar convicto de que só assim cada
ser humano poderia descobrir sua identidade mais profunda, a identidade mais profunda
de cada irmão e irmã e conhecer realmente quem Deus é. E Jesus sabia que só este processo
de autoconhecimento e de teo-conhecimento poderia comunicar às pessoas o perdão e o
amor incondicionais de Deus e que são a essência mesma da Encarnação e da salvação que
vêm de Cristo.
Como Jesus fazia lectio, como ele lia pessoalmente a Palavra de Deus? Fisicamente
falando, certamente ele lia como os seus contemporâneos a liam. Os que dispunham de
meios de ter um rolo de algum livro da Bíblia, debruçavam-se sobre ela e liam-na
concomitantemente com o Talmud, a Mishná e outros livros oriundos da tradição oral
judaica. Mas não é esta leitura física, a mais importante, mas a leitura espiritual que Jesus
fazia da Bíblia. Como já disse, a Encarnação é a revelação por excelência da lectio divina de
Jesus. A leitura que Jesus fazia da Bíblia era a descoberta da sua identidade e da sua vocação
em cada página do Antigo Testamento – que a esta altura, ainda era o “Único Testamento”;
Jesus ainda estava ocupado encarnando o Novo... Os Evangelhos estão cheios de passagens
do tipo: “Isto aconteceu para que se cumprisse o que estava escrito” ou “Como está escrito
no profeta Isaías, Jeremias, Miqueias”... Tudo isto indica a intencionalidade de Jesus viver o
que a Bíblia anunciara, de pôr em prática, de cumprir o que ele estava lendo.
Mas a lectio de Jesus não se limitava ao cumprimento do que fora predito pelo Antigo
Testamento. Não. Sua leitura – amorosa, atenta, desejosa – inseria-o numa nova liberdade,
para dentro do coração do Pai, ensinando-o a pensar e amar o que seu Pai celestial pensava
e amava. Ao ler a Bíblia, Jesus aprendia a pensar com e como a Bíblia e a fazer das palavras
sagradas o seu modo natural de exprimir-se (se isto é verdade de S. Bernardo, não o seria
de Jesus?!). Era assim que Jesus se via capaz de encarnar a Palavra não apenas cumprindo-
a, mas também rompendo com ela. É este processo que vemos descrito em Mt 5: “ouvistes o
que foi dito pelos antigos: (...) Eu, porém, vos digo”. Jesus aplica este raciocínio não a um ou
outro de seus ensinamentos, mas a todo o seu sermão neste capítulo. Como novo Moisés, ele
vai além daquilo que Moisés ensinava. E sua ruptura não é um sinal de discordância, mas de
um amor maior. Todas as exigências de Jesus neste capítulo caminham não na direção de
um laxismo, mas de um compromisso mais encarnado com a Palavra de Deus – compromisso
que ele ensinava por já o haver assumido pessoalmente. Estes ensinamentos não estavam
escritos na Lei; estavam escritos apenas no seu coração. Mas eles não contradizem em nada
a Lei de Deus, antes, apontam na direção da sua plenitude. E ele chega a afirmar diversas
vezes que quem não estiver disposto a cumprir esta plenitude como ele, não pode ter parte
com ele. Para citar só mais um exemplo, ao falar do mistério do matrimônio aos fariseus,
Jesus aplica o mesmo raciocínio: “É por causa da dureza do vosso coração que Moisés
permitia que se desse carta de repúdio; mas no começo não foi sempre assim”. Como Jesus
sabia disto? Ele, que nem sequer 50 anos tinha, poderia ter visto Moisés? Ou sabido a opinião
pessoal dele a respeito? O que Jesus sabia era o que ele amava (“Amor ipse notitia est”) e
amor é a primeira – antes, é a única – condição para se fazer este tipo de lectio jesuína.
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E é exatamente esta a principal lição que devemos tirar do modo de Jesus fazer sua
lectio. Nós também, se quisermos aprender a ser verdadeiros discípulos de Jesus, monges e
monjas que seguem fielmente as suas pegadas, temos que cultivar semelhante tipo de amor.
Este amor nasce, cresce e se reproduz certamente através do contato assíduo com a Palavra
de Deus. Este tipo de amor que surge do contato íntimo, pessoal, em nossos tempos de ócio
com a Palavra de Deus certamente é fundamental em nossa vocação – mais ainda, trata-se
de uma daquelas signature activities (“atividades distintivas”) que Pe. Michael Casey
estimula que cultivemos em seus escritos, se queremos ver nossas comunidades
florescerem em número e santidade. Mas tal contato não basta. O amor que devemos nutrir
pela Palavra, a fim de a encarnarmos plenamente, deve nos levar para além da mera Palavra,
comprometendo-nos com Deus muito além do “mínimo necessário”. O amor que Jesus tinha
pela Palavra não se limitava ao desejo de cumpri-la – isto poderia ter feito dele um mero
bom fariseu, legalista, nada mais – mas estendia-se ao desejo de dar integralmente a sua vida
por amor e de comunicar este amor e salvação a todos, conferindo a todos seu perdão e sua
santidade. O amor que Jesus nutria e cultivava em sua lectio divina sempre exigia dele que
caminhasse a segunda milha, que se desfizesse também do manto e que oferecesse a outra
face. E foi isto que fez Jesus abraçar a Palavra radicalmente e dedicar-se exclusivamente à
ela, que o fez tudo deixar para dar-se totalmente à ela e que em última instância deu-lhe a
força necessária para doar a sua vida eucaristicamente, morrendo, por amor de Deus e do
próximo. Sem tal desejo de amar radicalmente a Palavra (e “o desejo de amar já é amor”,
segundo santo Agostinho), é difícil ser realmente fiel à ela. Sem um desejo de entregarmos
totalmente nossa vida em nossas comunidades, por meio de nossas vocações, mesmo
quando o sentido desta entrega não é tão claro, não é possível perseverar até a morte no
mosteiro.
Mas o contato de Jesus – e também o nosso – com a Palavra não se limita à leitura
pessoal que fazemos na lectio. A lectio certamente é insubstituível, pois possibilita uma
leitura subjetiva da Palavra de Deus, permitindo que eu me identifique como sendo o sujeito
da página sagrada. Tudo isto é preciosíssimo, grande parte da tradição patrística faz
abundante uso deste tipo de abordagem, mas isto tambémnão basta. E é aqui que entra em
cena a liturgia, o Opus Dei, “o trabalho divino”. Sabemos que, na Antiguidade, a leitura
pública da Palavra de Deus, era para a maioria dos leigos – e para muitos monges, também
– a única possibilidade de contato com a Palavra. Na liturgia, a Palavra também é lida de
modo orante, relativamente lento, e temos a oportunidade de meditá-la e dela tirar uma
lição para a nossa vida. Tudo isto é sem dúvida verdadeiro e importante. Mas tem algo a
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mais: a liturgia nos apresenta uma leitura oficial e autoritativamente interpretada da Palavra
de Deus. Se olharmos para o breviário ou o lecionário, veremos que há passagens bíblicas
que só são lidas em certas épocas do ano litúrgico – associadas explicitamente a momentos
pontuais dos mistérios da vida de Cristo. E isto é importantíssimo. Em primeiro lugar,
porque era isto o que Jesus mesmo vivia (e que a liturgia está nos mostrando). Quando ele
ia à sinagoga e ouvia a Palavra de Deus, ele a entendia como estando se cumprindo em sua
vida pessoal. É assim, por exemplo, que ele inicia seu ministério público. Ele abre o rolo do
profeta Isaías, proclama a leitura, e depois afirma solenemente: “Hoje se cumpriu esta
passagem que acabastes de escutar”. Certamente aquela não era a primeira vez que Jesus se
deparara com aquele texto. Mas foi num contexto litúrgico – numa celebração em dia de
sábado – que Jesus anunciou o seu cumprimento. E mais importante ainda, Jesus fará
questão de morrer no dia de Páscoa, encarnando do modo mais forte e absoluto possível
que a Palavra de Deus é a sua vida – temporal e eterna. Ou seja, tudo isto é importante
porque Jesus tinha consciência de que a liturgia oferecia diretrizes – antes, oferecia uma
direção – para a vivência de sua vocação (e acabo de mencionar o contexto ontológico-
litúrgico do início e do fim da vocação de Jesus). E em segundo lugar, tudo isto é importante
porque impede que a leitura que fazemos de nossa vida à luz da lectio contradiga uma
interpretação reconhecida pela Igreja como revelada. Ou seja, a leitura que eu faço de uma
passagem bíblica para a minha vida não pode ser contrária àquilo que a Igreja reconhece
como ortodoxo. Concretamente falando: nunca posso concluir, a partir da lectio, que Deus
não me chama a seguir seu Filho, a doar-me totalmente a ele, a transformar toda a minha
vida numa hóstia viva, num sacrifício racional (logikè latría, Rm 12,1) a Deus. E finalmente,
o ciclo litúrgico em si é uma leitura da Bíblia à luz dos eventos da vida de Cristo – que é o
que devemos aprender a fazer com nossa vocação pessoal. Daí se depreende que a liturgia
nos ensina a fazer lectio. E ela nos ensina exatamente por fazer lectio conosco. Certamente
ela não é a única mestra nesta arte. Mas certamente merece um dos primeiros lugares:
“Liturgia, vem mais para cima!” (cf. Lc 14,10).
Porém, ao participar da liturgia, Jesus se dava conta também do que precisava ser
cumprido em sua vida. No caso dele, ao perceber as necessidades do povo de Deus, suas
sedes, suas incoerências, ele se dava conta do que precisava de conversão na vida deles. No
nosso caso pessoal, de pobres filhos de Eva, também nos damos conta do que precisa ainda
ser cumprido, mas em nossa vida em primeiro lugar – e em segundo lugar, na vida de nossas
comunidades. A liturgia – com sua santidade oriunda dos sacramentos e dos sacramentais,
com a beleza de sua execução, inclusive artística e estética – deve servir para levantar os
nossos corações (Sursum corda!) e as nossas mentes para além dos confins intelectuais; ela
deve ser uma experiência totalizante, que envolve todos os nossos sentidos – a beleza da
igreja, a doçura dos cantos, o odor das flores e do incenso, etc. Tudo isto deve nos chamar a
um exame de consciência onde nos perguntamos se, de fato, estou vivendo o que leio e rezo
na minha lectio. Ao escutar a Escritura lida e celebrada em comunidade, ela adquire uma
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moldura mais rica do que a minha lectio me proporciona, pois na liturgia consigo ver, tocar
e ouvir aqueles irmãos e irmãs que devem ser os destinatários das boas disposições que
tomei em minha lectio. A liturgia me puxa a orelha, também, quando não estou vivendo
coerentemente o que a lectio me ensina. Oxalá que nos sintamos constrangidos ao rezarmos
o Pai Nosso e nos lembrarmos que ainda não perdoamos um irmão com o qual briguamos
hoje. Ou pelo menos um pouco envergonhados, ao ouvirmos Jesus falando ao jovem rico,
“Vai e vende todos os seus bens e dá aos pobres” e lembrarmo-nos da quantidade de coisas
desnecessárias que acumulamos em nossas celas – com ou sem permissão de nossos
superiores...
O contato com as feridas oriundas de nossas crises é vital não apenas para nós, mas
para nossas comunidades, pois nascemos todos das feridas do Ressuscitado, destas feridas
que descobrimos ao buscarmos encarnar a Palavra de Deus na lectio, na liturgia, na Missa.
Uma comunidade onde os membros não se reconhecem chagados, feridos, pecadores, nunca
conseguirá abrir-se à plenitude da revelação que a Palavra de Cristo quer nos conduzir. Daí
se depreende que, sem um amor real, encarnado aos próximos feridos mas amáveis de
nossas comunidades não é possível fazer verdadeira lectio, celebrar verdadeiro Ofício
Divino nem muito menos participar da Eucaristia como convém.
maioria das línguas latinas, ao menos – preserva este duplo significado de “sofrimento” e
“enamoramento”. Pois de fato, quem está apaixonado, está sofrendo de amor. E certamente
Jesus era um grande apaixonado – por Deus e sua Palavra (ou seja, um grande contemplativo.
Oxalá o sejamos também nós, mesmo se um pouquinho menos que ele). Pois bem. Foi este
amor apaixonado pela Palavra, com a qual ele se encontrava total e radicalmente
comprometido, que o levou à morte. E ao se deparar com esta triste realidade – a da rejeição
total da salvação por parte dos pecadores (“Veio para os que eram seus, mas os seus não o
receberam”) – Jesus não voltou atrás; antes, deu um novo passo adiante – e instituiu a
Eucaristia.
Também nós somos chamados a tomar parte nesta celebração eucarística – “Tomai
todos e comei”. Como? Através de nossa vocação, em especial, através de nossos votos. Tomai
minha Palavra e comei-a; tomai minha oração e comei-a; tomai minha entrega e comei-a;
tomai os meus votos e comei-os. Para Jesus, era esta a única maneira de verdadeiramente
cumprirmos a Palavra de Deus e de vivermos a Missa. Jesus sempre quis reduzir ao máximo
esta distância entre a Palavra e a sua encarnação total na vida prática – poderíamos dizer,
em linguagem teológica atual, entre a Palavra e o sacramento. Assim como a Eucaristia é o
memorial da Paixão, morte e Ressurreição de Jesus, nossa vida sob votos também é chamada
a ser uma contínua memoria Dei, um “fazei isto em memória de mim”, uma representificação
do mistério pascal do Senhor.
na Igreja. Cada um de nós aqui presentes é chamado a dar completamente as nossas vidas
como alimento para a vida de nossas comunidades e do mundo.
Portanto, pouco importa se fazemos nossa lectio antes ou depois da Missa e se esta
se encontra integrada ou não com algum Ofício. O que importa é que, quer leiamos, quer
rezemos, quer comunguemos ou façamos qualquer outra coisa, façamos tudo “em memória
de mim”, isto é, de Cristo. Só assim viveremos plenamente nossa vocação de sermos
encarnações vivas da Palavra de Deus no mundo de hoje, testemunhas de Seu amor e de seu
perdão incondicionais a todos. Afinal de contas, é esta a essência da lectio, do Ofício, da
Eucaristia – e de nossa vida monástica.