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VIVENDO COM A MORTE: o processamento do morrer...
que se baseiam em técnicas como embalsamento, municação de massa, por exemplo, difundem um
cremação, enterro, ou até mesmo abandono do volume crescente de informações especializadas
corpo morto, bem como em cosmologias que sus- sobre os riscos associados ao fumo, à alimentação
tentam a transcendência, a reencarnação etc. Por- e à vida sedentária, etc. Assim, ao mesmo tempo
tanto, enquanto em alguns grupos sociais a morte em que a organização moderna da morte procura
é encarada com serenidade, em outros pode gerar evitar que sua inevitável recorrência desestabilize
inconformismo e dor; enquanto, para alguns, a a rotina produtiva dos indivíduos, ela força esses
morte é vista como uma punição, para outros pode mesmos indivíduos a pensarem na morte indire-
representar uma redenção; enquanto, para alguns, tamente, ao se tornarem responsáveis pela saúde
a morte é vista como um fim, para outros pode do corpo. A conseqüência é, por um lado, que a
constituir, simplesmente, o começo. É por isso que morte é processada subjetivamente como uma fa-
a morte e suas respectivas formas de processamento lha técnica ou um acidente e, por outro, como uma
compreendem um aspecto fundamental do pro- espécie de punição por uma vida desregrada. O
cesso de socialização humana. resultado não deixa de ser paradoxal, pois a preo-
Na sociedade moderna, a morte é organizada cupação contínua com a preservação da vida torna
socialmente de forma objetiva. Esse processo de a morte ainda mais angustiante.
objetivação do morrer é resultado da convergência Considerando esses fatores, argumentamos
de duas transformações que se encontram interliga- que a forma como a morte é processada socialmen-
das: por um lado, do encontro das racionalidades te é o resultado de como os grupos sociais dão
científicas das áreas médicas e mercantil, bem como sentido à vida. Mais precisamente, neste artigo,
da indústria funerária; por outro, do declínio pro- sustentamos que a forma como nos relacionamos
gressivo da religião no processamento da morte na com a morte, na sociedade moderna, é uma conse-
modernidade. Assim, a morte converte-se num pon- qüência de como nos relacionamos com a vida.
to de passagem de uma extensa rede de conheci- Isso significa que quanto menos problemática se
mentos sociotécnicos, para o qual convergem as torna a morte socialmente, mais responsabilidade
intervenções especializadas, operadas por médicos, assumem os indivíduos no processamento do cui-
enfermeiros, psicólogos, atendentes funerários e, dado com o corpo. Para desenvolver esse argumen-
inclusive, cientistas sociais, que organizam o sig- to, o presente texto foi dividido em cinco partes:
nificado moderno do morrer (Cf. Willmott, 2000). depois desta breve introdução, analisaremos como
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Com isso, a experiência emocional da morte é a morte foi interpretada na teoria social, com o
transferida para a esfera privada. Mais precisamen- objetivo de entender o seu processamento social;
te, é circunscrita ao grupo familiar e dos amigos. O em seguida, trataremos das transformações do
significado dessa sanitarização efetuada pela morrer, provocadas pelo processo de
medicalização, mercantilização e privatização da individualização; na quarta parte, apresentaremos
morte é tornar o morrer invisível, ou, pelo menos, um modelo para interpretar a organização da mor-
o minimante disruptivo da rotina cotidiana. te na modernidade, a partir da aplicação da teoria
Contudo, a diminuição da vulnerabilidade Actor Net Theory (ANT); e, por último, apresenta-
social proporcionada pela organização moderna do remos algumas conclusões.
morrer não significa, evidentemente, que a morte
não seja problemática para o indivíduo. A profu-
são de conhecimentos e técnicas médicas sobre a EXPERIMENTANDO E REPRESENTANDO A
saúde e o prolongamento da vida humana, associ- MORTE NO OCIDENTE
ados à intensificação da individualização, fez com
que os indivíduos passassem a se preocupar com Apesar de a morte constituir uma condição
a morte ao longo de toda a vida. Os meios de co- inexorável de todos os indivíduos, cada período
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histórico construiu e estabeleceu dispositivos nos com relação à morte, da Idade Média até a Ida-
psicossociais que permitem a convivência com a de Moderna.
intranscendência humana. Essa afirmação está di- Nesse percurso, inúmeras características
retamente vinculada à seguinte questão: como os culturais, comportamentais e sociais que conver-
indivíduos conseguiram e conseguem conduzir suas giam para moldar o processamento da morte fo-
vidas, sabendo que irão morrer? Em resposta a essa ram identificadas e sistematizadas em cinco gran-
questão, alguns autores, como Philippe Ariès e des representações que organizam teoricamente a
Norbert Elias, apresentam um conjunto sistemati- forma como a morte foi experienciada e represen-
zado de interpretações sobre os processos de expe- tada em diferentes épocas. Essas representações
rimentação e representação da morte nas socieda- consistem especificamente em: morte domada,
des ocidentais. Embora esses autores apresentem morte de si mesmo, morte longa e próxima, morte
interpretações que divergem entre si, eles diagnos- do outro e morte invertida.
ticam em comum o caráter problemático da morte Morte domada consiste na imagem que ca-
nas sociedades modernas, mais precisamente o ca- racterizava a morte na alta Idade Média, quando:
ráter problemático da morte nos século XX e XXI.
... a morte, tal como a vida, não eram atos indivi-
duais, mas um ato coletivo. Por essa razão, à se-
melhança de cada grande passagem de vida, ela
Morte invertida era celebrada por uma cerimônia sempre mais
ou menos solene, que tinha por finalidade mar-
car a solidariedade do indivíduo com a sua li-
Ao longo do desenvolvimento das civiliza- nhagem e sua comunidade. (Ariès, 1982, p.658)
ções, as atitudes dos homens no processamento
da morte podem ser consideradas as que mais têm Estava sempre associada a causas mal co-
sofrido alteração no seu significado. Philippe Ariès nhecidas, como intervenções sobrenaturais e pos-
(1981, 1982) ilustra esse argumento, ao apresentar sibilidade de prolongar a vida após morte, mas o
duas obras, intituladas O homem diante da morte processamento da morte, que envolvia cuidados
e a A história da morte no Ocidente: da idade mé- com o corpo moribundo e morto, estava sob o do-
dia aos nossos dias, construídas com base na in- mínio dos indivíduos. Por isso, pode ser conside-
vestigação de poemas, romances e textos literários rada domada.
como, por exemplo, O Rei Arthur e os Cavaleiros Morte de si mesmo constitui uma represen-
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fatores, geraram “uma imensa inversão – longín- corpo, promoções de saúde – não permitem muito
qua e imperfeita – esboçada nas representações da espaço para a morte atuar de outro modo que não
morte” (p. 664). O que a morte tinha de próxima, seja de forma escondida, pelo fato que, nas socieda-
familiar e domada foi se afastando, dando espaço des modernas, ela se tornou uma ameaça ao bem
para uma morte que gerava angústias e medo. Nes- estar subjetivo. Portanto, morte invertida consiste
se período de “crescimento racional, do progresso fundamentalmente em “a morte que se esconde”
da ciência e de suas aplicações técnicas, da fé no (Ariès, 1982, p. 612).
progresso e o seu triunfo sobre a natureza” (Áries,
1982, p. 664), as dúvidas com relação à morte se
concentravam na possibilidade de ser enterrado Morte ocultada
vivo. Afinal, o corpo da pessoa morta apresenta
excrementos, crescimento de unhas e cabelos, e, Norbert Elias (2001), em seu livro A Solidão
portanto, corria-se o perigo de enterrar os ditos dos Moribundos, apresenta uma análise do pro-
mortos ainda vivos. As explicações de caráter reli- cesso de envelhecimento e de morte nas socieda-
gioso perdiam seu poder, gerando suspeita nos des ocidentais contrapondo a interpretação das
indivíduos quanto à efetiva morte do corpo, o que atitudes do homem com relação à morte proposta
levou a aumentar o tempo das celebrações do mor- por Ariès. Para Elias, “Ariès entende a história
to para quarenta e oito horas. puramente como descrição. Acumula imagens e
Morte do outro consiste na transferência da mais imagens e assim, em amplas pinceladas,
preocupação do medo da própria morte para a pre- mostra a mudança total. Isso é bom e estimulante,
ocupação e medo da morte do outro. Esse outro, mas não explica nada” (2001, p. 19).
considerado o ser amado, “que encontrou seu lu- A análise e a critica de Elias são fundamen-
gar na família ‘nuclear’, remodelada pela nova fun- tadas especificamente, a partir do que o autor cha-
ção de afetividade absoluta” (1982, p. 665), torna a ma de “impulso civilizatório”, mais conhecido tam-
morte um ato necessariamente familiar. A morte bém como as transformações no curso do desen-
do outro transforma as cerimônias de cortejo do volvimento social de diversas sociedades em dife-
corpo morto, que antes significavam uma barreira rentes épocas. Para o autor, o saber sobre a morte
para o excesso de emoção, em “cerimônias desti- tem mudado à medida que as transformações na
tuídas de ritualismo e reinventadas como expres- direção do desenvolvimento social têm ocorrido
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são espontânea da dor dos sobreviventes” (p. 666). e, para ilustrar esse argumento, ele caracteriza e
Porém essa forma de conceber a morte lamentava a localiza o processamento da morte em dois mo-
separação entre corpo e história de vida passada, e mentos. Primeiramente, focaliza as atitudes frente
não mais o fato de morrer, o que tornou a morte a esse processo nas sociedades tradicionais e, em
um ato belo, pois havia a possibilidade de reen- seguida, essas atitudes nas sociedades modernas.
contrar, no além, a família e os outros amados. Essa divisão, bastante conhecida entre sociedade
Morte invertida constitui “uma forma absolu- tradicional e sociedade moderna – demarcada prin-
tamente nova de morrer, que surgiu durante o século cipalmente pelo estabelecimento do Estado-nação,
XX, em algumas zonas mais industrializadas, pelo surgimento da ciência e pela propagação do
urbanizadas e tecnicamente adiantadas no mundo conhecimento científico, como impulso para a
ocidental” (p. 612). Aqui, a morte se apresenta como individuação – contribui para delimitar as dife-
a retirada do indivíduo do seu cotidiano, levado para rentes formas de morrer nas sociedades tradicio-
as organizações especializadas de tratamento de do- nais e modernas.
enças, para impedimento da morte e prolongamento Nas sociedades tradicionais, algumas carac-
da vida. A entrada da racionalidade científica na ori- terísticas especificas da dinâmica social, como, por
entação da vida – medicalização, cuidados com o exemplo, os ritos de passagem, as crenças no so-
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brenatural e a organização pública das relações, passam a operar e a reconfigurar a forma como os
conferiam à morte – como também a outros acon- indivíduos se relacionam com a vida e, conseqüen-
tecimentos, como nascimentos e adoecimentos – temente, com a morte. Mais especificamente, essa
um caráter mais coletivo e, portanto, mais públi- forma de se relacionar com a vida e com a morte
co. O desconhecimento coletivo do conjunto de tem se caracterizado principalmente pela saída de
causas orgânicas que provocavam as doenças e a cena da morte, ou seja, pelo recalcamento da morte
morte bem como a falta de controle técnico sobre a num duplo sentido. Isso ocorre tanto num plano
vida e a morte permitiram aos indivíduos dessas individual, “no mesmo sentido de Freud que se
sociedades conceberem a morte como conseqüên- refere a um grupo de mecanismos psicológicos de
cia de motivos sobrenaturais. Isso não significa, defesa socialmente instalados, pelas quais as expe-
segundo o autor, que esses indivíduos se compor- riências de infâncias excessivamente dolorosas, so-
tassem de forma serena, calma ou pacífica, espe- bretudo conflitos na primeira infância e a culpa,
rando pela morte. Afinal, os ritos para bloqueiam o acesso à memória” (Elias, 2001, p.16),
processamento da morte, ou as fantasias coletivas, quanto num plano social, que está diretamente liga-
foram inventadas para dar-lhe significado, pois, do ao recalcamento individual, em que
“junto com a previsão de seu próprio fim, prova-
velmente ocorreu desde o início uma tentativa de ... a mudança de comportamento social referida
ao falarmos do “recalcamento” da morte nesse
suprimir esse conhecimento indesejado e encobri- sentido é um aspecto do impulso civilizador. Em
lo” (Elias, 2001, p. 43). seu curso os aspectos elementares da vida huma-
na, que quase sempre significam perigo para a
No que se refere às atitudes com relação à vida comunitária e para o próprio indivíduo, são
regulados de maneira mais equilibrada, mais
morte nas sociedades modernas, alguns episódios inescapável e mais diferenciada pelas regras soci-
devem ser ressaltados, pelo fato de terem contribu- ais e também pela consciência (Elias, 2001, p.18).
ído decisivamente para tornar a morte uma ameaça,
tanto para o desenvolvimento produtivo e econô- Nesse sentido, o recalcamento da morte
mico das cidades, quanto para o próprio bem-estar constitui o resultado da ação excludente com rela-
dos indivíduos. Esses episódios consistiram, espe- ção à morte nas sociedades modernas, pelo seu
cificamente, no desenvolvimento das cidades, no contínuo processo de ocultações, caracterizadas
aumento populacional e no surgimento e na proli- basicamente pelo demarcado afastamento entre vi-
feração de doenças e pestes. Esses acontecimentos vos e moribundos, a partir das rotinas
investigação das áreas de amparo técnico-especi- elevado uso do padrão de higiene, o que levou a
alizado, e, portanto, novas formas de perceber e agir conceber a morte “como o estágio final de um
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qüentemente, para a sua caracterização em morte nas sociedades modernas. No entanto, deixam em
significativa – que corresponde à morte daquele aberto, por um lado, a questão da reatualização das
indivíduo que foi capaz de formular objetivos e tradições e, por outro, as mutações da própria
alcançá-los, planejar tarefas e concretizá-las – e modernidade. Ou seja, não se trata somente de des-
morte sem sentido – daquele indivíduo que não crever as diferenças de processamento do morrer em
conseguiu, por motivos próprios, alcançar seus termos de mudança de um modo de vida comunitá-
objetivos e concretizar suas tarefas. Assim, o autor rio, baseado na identidade, para um societário, base-
conclui que todas as suas afirmações sobre a mor- ado na impessoalidade das relações, mas como se
te lhe possibilitam afirmar que as atitudes atuais reproduz essa forma impessoal de morrer.
com relação ao morrer não são inalteráveis, ou muito Com o envelhecimento da modernidade,
menos acidentais, mas produto da soma de carac- verifica-se o enfraquecimento da capacidade de as
terísticas particulares das sociedades modernas, instituições ordenarem as relações sociais, de onde
num estágio particular de desenvolvimento. os indivíduos extraíam suas referências para guiar
suas ações frente à morte. Isso esta associado à
dissolução das certezas que marcaram a organiza-
ção da vida na “sociedade industrial”, para as con-
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dições de incerteza que caracterizam a “sociedade sou a ser assimilada por estratégias de remoção
do risco”. Na passagem do que se convencionou sistemática, que acabaram “segregando a experiên-
chamar de “modernização simples” para a “mo- cia”, pela ocultação da experiência da morte.
dernização reflexiva”, a autoconfrontação dos pro- A segregação da experiência serve para con-
blemas sociais não pode mais ser enfrentada satis- ter muitas formas de ansiedade que, de outra ma-
fatoriamente por meio da utilização das estratégias neira, ameaçariam a segurança ontológica – mas a
que caracterizaram a sociedade industrial, pois as um custo considerável. Questões e dúvidas exis-
fontes de significado – como, por exemplo, a clas- tenciais fazem surgir algumas das ansiedades mais
se social, a família nuclear, o Estado-nação, a ciên- básicas que os homens podem enfrentar. Em ge-
cia positiva etc. – enfrentam um processo de ral, nas condições da modernidade, tais questões
exaustão e desintegração da capacidade de não devem ser enfrentadas diretamente; elas são
ordenamento da vida social. Uma das conseqüên- institucionalmente “postas de lado”, em vez de
cias mais marcantes diz respeito ao processo de serem manejadas dentro da personalidade do in-
“individualização”, no qual o indivíduo torna-se divíduo. No que diz respeito ao controle da ansie-
responsável pela composição e manutenção de sua dade, essa situação tem implicações paradoxais.
própria autobiografia, recorrendo a diversos esti- De um lado, em circunstâncias normais, o indiví-
los de vida, subculturas, ligações sociais e identi- duo está relativamente protegido de questões que,
dades pessoais. Mais precisamente: de outra maneira, se colocariam como questões
perturbadoras. De outro, quando acontecem mo-
... individualização significa que a biografia pes- mentos decisivos ou outros tipos de crises pesso-
soal está à margem das pautas prévias e encon-
tra-se aberta a situações: cada qual tem que ele- ais, a sensação de segurança ontológica provavel-
ger como atuar. Diminui o aspecto de vida real- mente sofre tensão imediata (Cf. Giddens, 2002).
mente alternativo e aumenta o aspecto
autoproduzido, a margem das alternativas. A segregação da experiência torna a morte
Individualização das condições de vida signifi-
ca, pois, que a biografia se torna autoreferida; o um acontecimento completamente estranho à vida.
que esta dado socialmente se torna em biografia Isso explica, em certa medida, por que a morte
produzida por si mesmo e que continua a produ-
zi-la (Beck, 1996, p. 135). aparece publicamente na sociedade somente como
um espetáculo mediado pelos meios de comuni-
O reconhecimento dessas ambivalências da cação de massa. De fato, quanto mais profundo o
modernidade chamou a atenção dos analistas so- processo de individualização, menor a importân-
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trazida, como tal, para dentro dos sistemas inter- somente para o individuo, mas também para a fa-
namente referidos da modernidade. Mas todos os mília, o Estado, o mercado etc. Assim, podemos
tipos de acontecimentos que levam à morte e os afirmar que, se é verdade que a experiência da
que estão envolvidos no processo de morrer po- morte é ocultada pelo processo segregação da ex-
dem ser, assim, incorporados. A morte torna-se periência, essa segregação não constitui uma ope-
um ponto zero – é nem mais nem menos que o ração isolada, mas o resultado da intervenção de
momento em que o controle humano sobre a exis- diversas lógicas que se complementam e se con-
tência encontra um limite exterior (Cf. 2002). trapõem simultaneamente. A confluência desses
Assim, o processo de individualização cria diversos interesses e lógicas é justaposta pela cria-
uma dupla segregação da experiência do morrer. ção e reprodução contínua da rede, ao mesmo tempo
Por um lado, no plano social e mais evidente, a social e técnica, de processamento da morte. É a
morte é encoberta, para que os indivíduos vivam configuração dessa rede que emerge somente quan-
normalmente e, por outro, mais sutil, opera-se uma do a morte ocorre que faz com que a experiência
separação no interior mesmo das instituições mé- do morrer seja ocultada. Portanto, podemos afir-
dicas, como na segregação entre doentes em fase mar que a segregação da experiência da morte não
terminal e os demais doentes. é causa do processo de ocultação da morte, mas a
Desse ponto de vista, o processamento da conseqüência de como a rede de processamento
morte revela-se paradoxal: como a morte vem sen- da morte está organizada sociotecnicamente.
do sistematicamente segregada da experiência coti-
diana, o morrer não pode ser considerado como
um elemento constitutivo na produção das A rede de organização da morte na socieda-
autobrigrafias modernas. Assim, o processamento de moderna
moderno da morte parece negar a tese de que quan-
to mais as sociedades se modernizam, mais os indi- Como vimos anteriormente, na sociedade
víduos adquirem capacidade de refletir sobre as moderna, a morte se dispersa numa rede bastante
condições de sua existência e, assim, modificá-las. extensa de relações heterogêneas que organizam o
Ao contrário, quanto mais a modernização envelhe- processamento social por meio do deslocamento
ce, ou se moderniza a sociedade moderna, mais para a esfera privada, o que provoca uma segrega-
empecilhos encontram os indivíduos para proces- ção da experiência. Essa rede de processamento é
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sar os momentos cruciais da existência, pois se dis- constituída por, pelo menos, cinco atores sociais
solvem as bases sociais de experiência. Segundo predominantes, que traduzem o significado mo-
esse argumento, à medida que a individualização derno do morrer: a família, a religião, o estado, o
liberta os indivíduos das estruturas sociais, mais mercado e a ciência. Cada um desses pontos da
dificuldade eles encontram para processar a mor- rede de processamento constitui, em si mesmo,
te. Portanto, apesar de a morte ter se tornado uma um ator e uma rede, tendendo a traduzir a morte
certeza objetiva, a segregação da experiência torna segundo seus próprios propósitos. Assim, por
a morte um evento indeterminável individualmen- exemplo, o ator-família é composto pela rede de
te: sabemos que morreremos, porém nossa morte parentes e amigos próximos, que é mediada pela
pode ser adiada pela forma como monitoramos afetividade. Para os membros dessa rede, a morte é
reflexivamente nossa existência. processada como uma perda, e é por isso que se
Isso significa que a segregação da experiên- espera que um parente ou um amigo se comova na
cia da morte não é efetuada por uma instituição mediação da morte. Já o ator-religião é composto
especifica, mas pela conjunção de um conjunto pelas igrejas e seus sacerdotes, que configuram a
bastante amplo de intervenções especializadas. morte segundo a lógica espiritual e os ritos especí-
Mais precisamente, a morte não é um problema ficos de cada religião, proporcionando amparo e
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sentido para o sentimento de perda. Para o ator- morrer. A forma como cada ator traduz e processa
estado a morte é processada burocraticamente, o a morte constitui o resultado de seu funcionamen-
que significa cuidar da manutenção da ordem, to como rede. Por um lado, esse funcionamento
observando os aspectos legais envolvidos no mor- reduz a complexidade social do morrer, subme-
rer, e é por isso que questões como heranças e tendo os demais significados da morte ao seu pró-
dívidas ganham importância nesses momentos. Para prio modo de operação. Por outro lado, devolve a
o ator-mercado, que é constituído por uma rede for- morte traduzida para a rede de processamento. As-
mada por funerárias, floriculturas, cemitérios etc., sim, por exemplo, dificilmente se identifica a pre-
a morte significa uma possibilidade de ganho, e o sença de um médico durante um funeral.
morrer é processado mercantilisticamente, segun- A associação dos diversos tipos de media-
do as expectativas de lucro. Para o ator- ção somente é possível porque se baseia num pro-
tecnocientífico, constituído pela rede de hospitais, cesso de justaposição das identidades e simplifi-
clínicas, ciências médicas, laboratórios farmacêuti- cação recíproca dos interesses. Isto significa que
cos etc., a morte é vista como uma falha técnica dos as identidades de cada ator mobilizado nessa rede
instrumentos de intervenção científica sobre a vida, de processamento do morrer são móveis. O que
pois atua procurando evitar que a morte biológica quer dizer que, ao mesmo tempo em que a atuação
ocorra. do ator-familia pode significar um aumento ou
É através da mediação circunstancial de cada diminuição do lucro para o ator-mercado, o ator-
um desses atores que a morte é ocultada, median- mercado pode amenizar, para o ator-família, o sofri-
te um processo de segregação da experiência do mento, ocupando-se das questões operacionais de
TECNOCIENTÍFICO
Hospitais
RELIGIÃO Farmácias ESTADO
MORTE
Parentes Funerárias
E Floriculturas
Amigos Cemitérios
FAMÍLIA MERCADO
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fera pública coletiva e emergindo apenas individu- se efetua o processamento da morte na sociedade
almente, segundo a lógica e os interesses de atuação moderna. Suprimindo-se uma ou mais esferas, a
de cada ator que compõe a rede. Ao abordamos o morte se aproxima e se torna muito difícil de ser
processamento da morte desse ponto de vista, veri- suportada individualmente. O processamento da
ficamos que ela possui um alto grau de flexibilida- morte de um pai de família de classe média alta exige
Família
Família Religião
Família Religião Estado
Família Religião Estado Mercado
Família Religião Estado Mercado Ciência
- DENSA + DENSA
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lizar, mais densa é a rede de processamento e mais festando uma série de afetos negativos com relação
segregada a experiência. as pessoas que morressem. É somente porque
Percebemos assim que, ao resolver socialmen- estamos mais preocupados com a vida, que não
te o problema da morte pela organização dessa rede podemos nos preocupar com a morte.
discreta de processamento, a sociedade moderna
converteu-a numa questão individual. Numa socie-
dade individualizada e individualizadora, o morrer (Recebido para publicação em novembro de 2006)
(Aceito em julho de 2007)
deixa de ser um problema social e se converte numa
questão de estilo de vida. Assim, quando um indi-
víduo “morre”, não necessitamos mais nos preocu- REFERÊNCIAS
par em saber se ele está realmente morto ou porque
ele morreu, pois podemos contar com a intervenção ARIÈS, Philippe. A história da morte no ocidente: da idade
média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
do ator sociotécnico. que não somente justifica a con-
______. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: F. Alvez,
dição de morte, mas nos assegura também que tudo 1981, 1982. 2v.
foi feito para que sua vida fosse mantida, para nosso BAYARD, Jean Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários:
morrer é morrer? São Paulo: Paulus, 1996.
desencargo humanista, até onde suas condições so-
BECK, Ulrich. Risk society: towards a new modernity.
ciais permitiram. Também não necessitamos mais London: SAGE Publications, 1996.
nos preocupar com o que faremos com o seu corpo, ______; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Moderniza-
pois aqui entra em operação a intervenção do ator ção reflexiva. São Paulo: Ed. Universidade Estadual
Paulista.s.d.
mercado, que nos afasta das questões práticas de COLLIER, C. D. A. Tradition, modernity, and pós-
processamento do corpo como, tais como a limpeza, modernity in symbolism of death. The Sociological
Quartely, [S.l.], v. 44, n. 4, p. 727-749, 2003.
a elegância e o sepultamento; também o ator estado
ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos: seguido de
nos fornece as garantias de que a ordem de reprodu- envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001.
ção moral e da propriedade sejam mantidas; e, final-
EXIEY, Catherine. Review article: the sociology of dying,
mente, mais próximo, mais social e menos técnico, death and bereavement. Socioloy of Health & Illness, [S.l.],
v. 26, n. 1, p. 110-122, 2004.
para aqueles que possuem alguma crença espiritual,
FROGATT, Katherine. Life and death in English nursing
entra em cena o ator-religião, que dá sentido à exis- homes: sequestration or transition. Ageing and Society,
tência. Isso permite que nos ocupemos apenas com [S.l.], v. 21, p. 319-332, 2001.
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Marcos Antonio Mattedi, Ana Paula Pereira
VIVENDO COM A MORTE: o processamento LIVING WITH DEATH: the processing of VIVRE AVEC LA MORT: l’élaboration du
do morrer na sociedade moderna dying in the modern society mourir dans la société moderne
Ana Paula Pereira - Graduanda em Psicologia e Pesquisadora do Programa de Iniciação Científica – PIPe
da Universidade Regional de Blumenau.
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