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Marcos Antonio Mattedi, Ana Paula Pereira

VIVENDO COM A MORTE: o processamento do


morrer na sociedade moderna

Marcos Antonio Mattedi*


Ana Paula Pereira**

CONSIDERAÇÕES INICIAIS rer, ou seja, apesar desse contínuo afastamento, au-


menta o interesse popular sobre a morte, com ima-
A morte constitui uma experiência ampla- gens que a retratam na televisão, nos jornais e em
mente conhecida. Afinal, aproximadamente sessenta websities. Por que, na sociedade moderna, a morte
milhões de pessoas morrem anualmente, o que re- é considerada mais como uma condição variável do
presenta quase 1% da população mundial. Morre- que uma condição constante da existência huma-
se por causas diversas: epidemias, guerras, fome, na? Que tipo de estratégias sociais foram postas em
acidentes, doenças, catástrofes etc. Parece mesmo operação para enfrentar a morte de forma objetiva e

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que cada época pode ser definida por uma forma de deslocar o sofrimento para a esfera privada da famí-
morrer típica, como, por exemplo, a peste e a cólera lia e dos amigos? Quais os efeitos desse tipo de
na Idade Média, a morte por tuberculose no Perío- processamento sobre a atuação dos indivíduos?
do Romântico, o câncer na Sociedade Industrial e a Há várias maneiras de lidar com o fato de
AIDS na Sociedade Pós-industrial (Bayard, 1996, que todos vamos morrer. Do ponto de vista socioló-
p. 36). Muito embora a morte seja uma experiência gico, a morte pode ser descrita como o núcleo de
Morte: experiência ubíqua, quanto mais conhecemos a morte, mais a um complexo cultural que envolve técnicas, costu-
ubíqua afastamos de nosso cotidiano. A questão mais para- mes e valores. Isso significa que, para habituar-se à
doxal relacionada com a morte, no entanto, está re- morte, cada sociedade, cada comunidade, cada gru-
Processamento
moderno do morrer lacionada com o processamento moderno do mor- po social, à sua própria maneira, acabou desenvol-
vendo dispositivos de suportes sociopsicológicos
* Professor-Doutor do Mestrado em Desenvolvimento
Regional e Diretor do Instituto de Pesquisas Sociais da para conviver com a idéia de finitude. Com isso, a
Universidade Regional de Blumenau. Rua Victor Konder, morte foi se transformando numa experiência
n. 140, Campus I. Cep: 89.012-900. Blumenau-SC –
Brasil. mam@furb.br institucionalizada socialmente, cercada de ritos,
** Graduanda em Psicologia e Pesquisadora do Programa hábitos e técnicas. Assim, do ponto de vista com-
de Iniciação Científica – PIPe da Universidade Regional
de Blumenau. anafofix@hotmail.com parativo, podemos encontrar sistemas mortuários

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que se baseiam em técnicas como embalsamento, municação de massa, por exemplo, difundem um
cremação, enterro, ou até mesmo abandono do volume crescente de informações especializadas
corpo morto, bem como em cosmologias que sus- sobre os riscos associados ao fumo, à alimentação
tentam a transcendência, a reencarnação etc. Por- e à vida sedentária, etc. Assim, ao mesmo tempo
tanto, enquanto em alguns grupos sociais a morte em que a organização moderna da morte procura
é encarada com serenidade, em outros pode gerar evitar que sua inevitável recorrência desestabilize
inconformismo e dor; enquanto, para alguns, a a rotina produtiva dos indivíduos, ela força esses
morte é vista como uma punição, para outros pode mesmos indivíduos a pensarem na morte indire-
representar uma redenção; enquanto, para alguns, tamente, ao se tornarem responsáveis pela saúde
a morte é vista como um fim, para outros pode do corpo. A conseqüência é, por um lado, que a
constituir, simplesmente, o começo. É por isso que morte é processada subjetivamente como uma fa-
a morte e suas respectivas formas de processamento lha técnica ou um acidente e, por outro, como uma
compreendem um aspecto fundamental do pro- espécie de punição por uma vida desregrada. O
cesso de socialização humana. resultado não deixa de ser paradoxal, pois a preo-
Na sociedade moderna, a morte é organizada cupação contínua com a preservação da vida torna
socialmente de forma objetiva. Esse processo de a morte ainda mais angustiante.
objetivação do morrer é resultado da convergência Considerando esses fatores, argumentamos
de duas transformações que se encontram interliga- que a forma como a morte é processada socialmen-
das: por um lado, do encontro das racionalidades te é o resultado de como os grupos sociais dão
científicas das áreas médicas e mercantil, bem como sentido à vida. Mais precisamente, neste artigo,
da indústria funerária; por outro, do declínio pro- sustentamos que a forma como nos relacionamos
gressivo da religião no processamento da morte na com a morte, na sociedade moderna, é uma conse-
modernidade. Assim, a morte converte-se num pon- qüência de como nos relacionamos com a vida.
to de passagem de uma extensa rede de conheci- Isso significa que quanto menos problemática se
mentos sociotécnicos, para o qual convergem as torna a morte socialmente, mais responsabilidade
intervenções especializadas, operadas por médicos, assumem os indivíduos no processamento do cui-
enfermeiros, psicólogos, atendentes funerários e, dado com o corpo. Para desenvolver esse argumen-
inclusive, cientistas sociais, que organizam o sig- to, o presente texto foi dividido em cinco partes:
nificado moderno do morrer (Cf. Willmott, 2000). depois desta breve introdução, analisaremos como
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Com isso, a experiência emocional da morte é a morte foi interpretada na teoria social, com o
transferida para a esfera privada. Mais precisamen- objetivo de entender o seu processamento social;
te, é circunscrita ao grupo familiar e dos amigos. O em seguida, trataremos das transformações do
significado dessa sanitarização efetuada pela morrer, provocadas pelo processo de
medicalização, mercantilização e privatização da individualização; na quarta parte, apresentaremos
morte é tornar o morrer invisível, ou, pelo menos, um modelo para interpretar a organização da mor-
o minimante disruptivo da rotina cotidiana. te na modernidade, a partir da aplicação da teoria
Contudo, a diminuição da vulnerabilidade Actor Net Theory (ANT); e, por último, apresenta-
social proporcionada pela organização moderna do remos algumas conclusões.
morrer não significa, evidentemente, que a morte
não seja problemática para o indivíduo. A profu-
são de conhecimentos e técnicas médicas sobre a EXPERIMENTANDO E REPRESENTANDO A
saúde e o prolongamento da vida humana, associ- MORTE NO OCIDENTE
ados à intensificação da individualização, fez com
que os indivíduos passassem a se preocupar com Apesar de a morte constituir uma condição
a morte ao longo de toda a vida. Os meios de co- inexorável de todos os indivíduos, cada período

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histórico construiu e estabeleceu dispositivos nos com relação à morte, da Idade Média até a Ida-
psicossociais que permitem a convivência com a de Moderna.
intranscendência humana. Essa afirmação está di- Nesse percurso, inúmeras características
retamente vinculada à seguinte questão: como os culturais, comportamentais e sociais que conver-
indivíduos conseguiram e conseguem conduzir suas giam para moldar o processamento da morte fo-
vidas, sabendo que irão morrer? Em resposta a essa ram identificadas e sistematizadas em cinco gran-
questão, alguns autores, como Philippe Ariès e des representações que organizam teoricamente a
Norbert Elias, apresentam um conjunto sistemati- forma como a morte foi experienciada e represen-
zado de interpretações sobre os processos de expe- tada em diferentes épocas. Essas representações
rimentação e representação da morte nas socieda- consistem especificamente em: morte domada,
des ocidentais. Embora esses autores apresentem morte de si mesmo, morte longa e próxima, morte
interpretações que divergem entre si, eles diagnos- do outro e morte invertida.
ticam em comum o caráter problemático da morte Morte domada consiste na imagem que ca-
nas sociedades modernas, mais precisamente o ca- racterizava a morte na alta Idade Média, quando:
ráter problemático da morte nos século XX e XXI.
... a morte, tal como a vida, não eram atos indivi-
duais, mas um ato coletivo. Por essa razão, à se-
melhança de cada grande passagem de vida, ela
Morte invertida era celebrada por uma cerimônia sempre mais
ou menos solene, que tinha por finalidade mar-
car a solidariedade do indivíduo com a sua li-
Ao longo do desenvolvimento das civiliza- nhagem e sua comunidade. (Ariès, 1982, p.658)
ções, as atitudes dos homens no processamento
da morte podem ser consideradas as que mais têm Estava sempre associada a causas mal co-
sofrido alteração no seu significado. Philippe Ariès nhecidas, como intervenções sobrenaturais e pos-
(1981, 1982) ilustra esse argumento, ao apresentar sibilidade de prolongar a vida após morte, mas o
duas obras, intituladas O homem diante da morte processamento da morte, que envolvia cuidados
e a A história da morte no Ocidente: da idade mé- com o corpo moribundo e morto, estava sob o do-
dia aos nossos dias, construídas com base na in- mínio dos indivíduos. Por isso, pode ser conside-
vestigação de poemas, romances e textos literários rada domada.
como, por exemplo, O Rei Arthur e os Cavaleiros Morte de si mesmo constitui uma represen-

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da Távola Redonda, de Thomas Mallory, as narra- tação que deve ser entendida “a partir do desloca-
tivas de La Fontaine e a Odisséia de Homero, bem mento do sentido de destino coletivo, para o des-
como na investigação de documentos históricos, tino individual” (1982, p. 661), o que leva o indi-
como as escrituras sagradas, documentos jurídi- víduo a se preocupar com a sua própria morte e,
cos, relatos de concílio (o concílio de Braga, no conseqüentemente, com o que o espera após a
ano de 563), códigos antigos, registros paroquiais, morte. Nessa época de conversões, de penitências
testamentos, iconografias, registros de cemitérios espetaculares, de mecenatos prodigiosos e empre-
e outros. Essas fontes serviram de material endimentos lucrativos, o triunfo do individualis-
investigativo, permitindo ao autor observar, sob mo refletia o surgimento de um sentimento de ape-
um ponto de vista histórico, aspectos que estavam go à vida, o que levava os indivíduos a uma preo-
em jogo no processamento da morte e que lhe pro- cupação com o momento após a morte.
piciaram configurar as representações sobre o mor- Morte longa e próxima é aquela que sugere
rer em diferentes momentos da história. Ou seja, a vida no corpo morto. Essa representação é resulta-
evidência de seu trabalho está relacionada à busca do de significativas modificações nos costumes
dos elementos que pudessem descrever historica- vividos, nas idéias e, sobretudo, nos segredos do
mente as alterações nos comportamentos huma- imaginário. Essas mudanças, somadas a outros

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fatores, geraram “uma imensa inversão – longín- corpo, promoções de saúde – não permitem muito
qua e imperfeita – esboçada nas representações da espaço para a morte atuar de outro modo que não
morte” (p. 664). O que a morte tinha de próxima, seja de forma escondida, pelo fato que, nas socieda-
familiar e domada foi se afastando, dando espaço des modernas, ela se tornou uma ameaça ao bem
para uma morte que gerava angústias e medo. Nes- estar subjetivo. Portanto, morte invertida consiste
se período de “crescimento racional, do progresso fundamentalmente em “a morte que se esconde”
da ciência e de suas aplicações técnicas, da fé no (Ariès, 1982, p. 612).
progresso e o seu triunfo sobre a natureza” (Áries,
1982, p. 664), as dúvidas com relação à morte se
concentravam na possibilidade de ser enterrado Morte ocultada
vivo. Afinal, o corpo da pessoa morta apresenta
excrementos, crescimento de unhas e cabelos, e, Norbert Elias (2001), em seu livro A Solidão
portanto, corria-se o perigo de enterrar os ditos dos Moribundos, apresenta uma análise do pro-
mortos ainda vivos. As explicações de caráter reli- cesso de envelhecimento e de morte nas socieda-
gioso perdiam seu poder, gerando suspeita nos des ocidentais contrapondo a interpretação das
indivíduos quanto à efetiva morte do corpo, o que atitudes do homem com relação à morte proposta
levou a aumentar o tempo das celebrações do mor- por Ariès. Para Elias, “Ariès entende a história
to para quarenta e oito horas. puramente como descrição. Acumula imagens e
Morte do outro consiste na transferência da mais imagens e assim, em amplas pinceladas,
preocupação do medo da própria morte para a pre- mostra a mudança total. Isso é bom e estimulante,
ocupação e medo da morte do outro. Esse outro, mas não explica nada” (2001, p. 19).
considerado o ser amado, “que encontrou seu lu- A análise e a critica de Elias são fundamen-
gar na família ‘nuclear’, remodelada pela nova fun- tadas especificamente, a partir do que o autor cha-
ção de afetividade absoluta” (1982, p. 665), torna a ma de “impulso civilizatório”, mais conhecido tam-
morte um ato necessariamente familiar. A morte bém como as transformações no curso do desen-
do outro transforma as cerimônias de cortejo do volvimento social de diversas sociedades em dife-
corpo morto, que antes significavam uma barreira rentes épocas. Para o autor, o saber sobre a morte
para o excesso de emoção, em “cerimônias desti- tem mudado à medida que as transformações na
tuídas de ritualismo e reinventadas como expres- direção do desenvolvimento social têm ocorrido
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são espontânea da dor dos sobreviventes” (p. 666). e, para ilustrar esse argumento, ele caracteriza e
Porém essa forma de conceber a morte lamentava a localiza o processamento da morte em dois mo-
separação entre corpo e história de vida passada, e mentos. Primeiramente, focaliza as atitudes frente
não mais o fato de morrer, o que tornou a morte a esse processo nas sociedades tradicionais e, em
um ato belo, pois havia a possibilidade de reen- seguida, essas atitudes nas sociedades modernas.
contrar, no além, a família e os outros amados. Essa divisão, bastante conhecida entre sociedade
Morte invertida constitui “uma forma absolu- tradicional e sociedade moderna – demarcada prin-
tamente nova de morrer, que surgiu durante o século cipalmente pelo estabelecimento do Estado-nação,
XX, em algumas zonas mais industrializadas, pelo surgimento da ciência e pela propagação do
urbanizadas e tecnicamente adiantadas no mundo conhecimento científico, como impulso para a
ocidental” (p. 612). Aqui, a morte se apresenta como individuação – contribui para delimitar as dife-
a retirada do indivíduo do seu cotidiano, levado para rentes formas de morrer nas sociedades tradicio-
as organizações especializadas de tratamento de do- nais e modernas.
enças, para impedimento da morte e prolongamento Nas sociedades tradicionais, algumas carac-
da vida. A entrada da racionalidade científica na ori- terísticas especificas da dinâmica social, como, por
entação da vida – medicalização, cuidados com o exemplo, os ritos de passagem, as crenças no so-

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brenatural e a organização pública das relações, passam a operar e a reconfigurar a forma como os
conferiam à morte – como também a outros acon- indivíduos se relacionam com a vida e, conseqüen-
tecimentos, como nascimentos e adoecimentos – temente, com a morte. Mais especificamente, essa
um caráter mais coletivo e, portanto, mais públi- forma de se relacionar com a vida e com a morte
co. O desconhecimento coletivo do conjunto de tem se caracterizado principalmente pela saída de
causas orgânicas que provocavam as doenças e a cena da morte, ou seja, pelo recalcamento da morte
morte bem como a falta de controle técnico sobre a num duplo sentido. Isso ocorre tanto num plano
vida e a morte permitiram aos indivíduos dessas individual, “no mesmo sentido de Freud que se
sociedades conceberem a morte como conseqüên- refere a um grupo de mecanismos psicológicos de
cia de motivos sobrenaturais. Isso não significa, defesa socialmente instalados, pelas quais as expe-
segundo o autor, que esses indivíduos se compor- riências de infâncias excessivamente dolorosas, so-
tassem de forma serena, calma ou pacífica, espe- bretudo conflitos na primeira infância e a culpa,
rando pela morte. Afinal, os ritos para bloqueiam o acesso à memória” (Elias, 2001, p.16),
processamento da morte, ou as fantasias coletivas, quanto num plano social, que está diretamente liga-
foram inventadas para dar-lhe significado, pois, do ao recalcamento individual, em que
“junto com a previsão de seu próprio fim, prova-
velmente ocorreu desde o início uma tentativa de ... a mudança de comportamento social referida
ao falarmos do “recalcamento” da morte nesse
suprimir esse conhecimento indesejado e encobri- sentido é um aspecto do impulso civilizador. Em
lo” (Elias, 2001, p. 43). seu curso os aspectos elementares da vida huma-
na, que quase sempre significam perigo para a
No que se refere às atitudes com relação à vida comunitária e para o próprio indivíduo, são
regulados de maneira mais equilibrada, mais
morte nas sociedades modernas, alguns episódios inescapável e mais diferenciada pelas regras soci-
devem ser ressaltados, pelo fato de terem contribu- ais e também pela consciência (Elias, 2001, p.18).
ído decisivamente para tornar a morte uma ameaça,
tanto para o desenvolvimento produtivo e econô- Nesse sentido, o recalcamento da morte
mico das cidades, quanto para o próprio bem-estar constitui o resultado da ação excludente com rela-
dos indivíduos. Esses episódios consistiram, espe- ção à morte nas sociedades modernas, pelo seu
cificamente, no desenvolvimento das cidades, no contínuo processo de ocultações, caracterizadas
aumento populacional e no surgimento e na proli- basicamente pelo demarcado afastamento entre vi-
feração de doenças e pestes. Esses acontecimentos vos e moribundos, a partir das rotinas

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favoreceram o surgimento de demandas emergenciais institucionalizantes dos serviços de amparo à vida.
de controle estritamente técnico e especializado, o Para o autor, essas ocultações da morte devem ser
que permitia, cada vez mais, a aplicação da entendidas, portanto, a partir de alguns aspectos
racionalidade para combater e dissipar essas deman- específicos que caracterizam as sociedades moder-
das. Assim, nas sociedades modernas, o nas e seu impulso civilizatório, tais como:
! A aplicação do estoque social de conhecimentos
... conhecimento das causas das doenças, do en- relativos à doença, em função do que Max Weber
velhecimento e da morte tornou-se mais seguro
e abrangente. O controle das grandes epidemias chamou de desencantamento do mundo ou pro-
fatais é apenas um dos muitos exemplos de como cesso de racionalização, no qual “uma das mu-
a expansão do conhecimento congruente com a
realidade desempenhou um papel na mudança danças por ele acarretadas é o aumento do co-
dos sentimentos e comportamentos humanos nhecimento social orientado para os fatos, co-
(Elias, 2001, p. 88).
nhecimento capaz de conferir uma sensação de
Nessa trajetória de consolidação da socieda- segurança” (Elias, 2001, p. 89).
de moderna, saúde e morte tornaram-se objetos de ! O aumento da expectativa de vida, em função do

investigação das áreas de amparo técnico-especi- elevado uso do padrão de higiene, o que levou a
alizado, e, portanto, novas formas de perceber e agir conceber a morte “como o estágio final de um

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processo natural, experiência que ganhou signi- A individualização e o processo de segrega-


ficação pelo progresso na ciência médica” (p. 55) ção da morte
! O grau relativamente alto de pacificação interna,

em que a proteção contra a violência contribui Essas interpretações do processamento do


para que os indivíduos visem, cada vez mais, a morrer sugerem que as estratégias psicossociais de
uma morte pacífica, resultado de doenças e enfra- “inversão” e “ocultamento”, postas em operação
quecimento causado pela velhice. Entretanto, é na sociedade moderna, separam a morte da vida.
preciso ressaltar que “o grau relativamente alto de Segundo Áries e Elias, a diminuição da influência
proteção contra a violência causada por terceiros dos costumes e dos preceitos preestabelecidos na
e tratamento da morte violenta como algo excep- vida moderna permitiu a institucionalização de
cional e criminoso não surgem da visão pessoal dispositivos que encobrem a manifestação pública
das pessoas envolvidas, mas de uma organização da morte. Assim, a inevitabilidade da morte bioló-
muito especifica da sociedade” (p. 57) gica teria deixado de ser um problema público e
! O alto grau e padrão específico de individualização, teria se convertido num problema de ordem priva-
em que “a imagem da morte na memória está da. Nas sociedades tradicionais, a morte podia ser
muito próxima de sua imagem de si e dos seres experimentada publicamente ou compartilhada
humanos prevalecentes em sua sociedade” (Elias, coletivamente, porque a morte do outro era “vivi-
2001, p. 61). Em sociedades mais desenvolvi- da” como a morte de si mesmo. Com o processo
das, as pessoas, em geral, se vêem como seres de diferenciação social que caracteriza o desenvol-
individuais, independentes; portanto, cada um vimento da sociedade moderna, esse processo de
existe para si, e predomina a idéia de que cada identificação não seria mais possível, porque o
pessoa deve ter um sentido exclusivamente seu morrer tornou-se objeto de intervenção especializa-
com relação ao que ocorre no plano social, psi- da. Nessa perspectiva, para negar a morte, ou me-
cológico e individual. Isso contribui para o fato lhor, para encobri-la socialmente, essas formas de
de que se morre em isolamento, o que equivale à mediação do morrer deslocaram o morrer para esfera
ênfase no sentimento que predomina nas socie- íntima. Contudo, essas interpretações baseiam-se,
dades modernas: que se vive só. metodologicamente, na comparação entre as estraté-
Esses aspectos das sociedades modernas gias de processamento do morrer nas sociedades tra-
contribuíram para a ocultação da morte e, conse- dicionais e as formas de processamento do morrer
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qüentemente, para a sua caracterização em morte nas sociedades modernas. No entanto, deixam em
significativa – que corresponde à morte daquele aberto, por um lado, a questão da reatualização das
indivíduo que foi capaz de formular objetivos e tradições e, por outro, as mutações da própria
alcançá-los, planejar tarefas e concretizá-las – e modernidade. Ou seja, não se trata somente de des-
morte sem sentido – daquele indivíduo que não crever as diferenças de processamento do morrer em
conseguiu, por motivos próprios, alcançar seus termos de mudança de um modo de vida comunitá-
objetivos e concretizar suas tarefas. Assim, o autor rio, baseado na identidade, para um societário, base-
conclui que todas as suas afirmações sobre a mor- ado na impessoalidade das relações, mas como se
te lhe possibilitam afirmar que as atitudes atuais reproduz essa forma impessoal de morrer.
com relação ao morrer não são inalteráveis, ou muito Com o envelhecimento da modernidade,
menos acidentais, mas produto da soma de carac- verifica-se o enfraquecimento da capacidade de as
terísticas particulares das sociedades modernas, instituições ordenarem as relações sociais, de onde
num estágio particular de desenvolvimento. os indivíduos extraíam suas referências para guiar
suas ações frente à morte. Isso esta associado à
dissolução das certezas que marcaram a organiza-
ção da vida na “sociedade industrial”, para as con-

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dições de incerteza que caracterizam a “sociedade sou a ser assimilada por estratégias de remoção
do risco”. Na passagem do que se convencionou sistemática, que acabaram “segregando a experiên-
chamar de “modernização simples” para a “mo- cia”, pela ocultação da experiência da morte.
dernização reflexiva”, a autoconfrontação dos pro- A segregação da experiência serve para con-
blemas sociais não pode mais ser enfrentada satis- ter muitas formas de ansiedade que, de outra ma-
fatoriamente por meio da utilização das estratégias neira, ameaçariam a segurança ontológica – mas a
que caracterizaram a sociedade industrial, pois as um custo considerável. Questões e dúvidas exis-
fontes de significado – como, por exemplo, a clas- tenciais fazem surgir algumas das ansiedades mais
se social, a família nuclear, o Estado-nação, a ciên- básicas que os homens podem enfrentar. Em ge-
cia positiva etc. – enfrentam um processo de ral, nas condições da modernidade, tais questões
exaustão e desintegração da capacidade de não devem ser enfrentadas diretamente; elas são
ordenamento da vida social. Uma das conseqüên- institucionalmente “postas de lado”, em vez de
cias mais marcantes diz respeito ao processo de serem manejadas dentro da personalidade do in-
“individualização”, no qual o indivíduo torna-se divíduo. No que diz respeito ao controle da ansie-
responsável pela composição e manutenção de sua dade, essa situação tem implicações paradoxais.
própria autobiografia, recorrendo a diversos esti- De um lado, em circunstâncias normais, o indiví-
los de vida, subculturas, ligações sociais e identi- duo está relativamente protegido de questões que,
dades pessoais. Mais precisamente: de outra maneira, se colocariam como questões
perturbadoras. De outro, quando acontecem mo-
... individualização significa que a biografia pes- mentos decisivos ou outros tipos de crises pesso-
soal está à margem das pautas prévias e encon-
tra-se aberta a situações: cada qual tem que ele- ais, a sensação de segurança ontológica provavel-
ger como atuar. Diminui o aspecto de vida real- mente sofre tensão imediata (Cf. Giddens, 2002).
mente alternativo e aumenta o aspecto
autoproduzido, a margem das alternativas. A segregação da experiência torna a morte
Individualização das condições de vida signifi-
ca, pois, que a biografia se torna autoreferida; o um acontecimento completamente estranho à vida.
que esta dado socialmente se torna em biografia Isso explica, em certa medida, por que a morte
produzida por si mesmo e que continua a produ-
zi-la (Beck, 1996, p. 135). aparece publicamente na sociedade somente como
um espetáculo mediado pelos meios de comuni-
O reconhecimento dessas ambivalências da cação de massa. De fato, quanto mais profundo o
modernidade chamou a atenção dos analistas so- processo de individualização, menor a importân-

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ciais para os efeitos da individualização sobre o cia pública da morte.
processamento do morrer. No movimento parado- A “segregação da experiência” neutraliza o
xal de desintegração e reincorporação que caracte- morrer pelo uso reflexivo do ambiente mais amplo
riza a individualização, as transições existenciais que caracteriza a sociedade moderna e, assim, con-
mais cruciais como, por exemplo, o nascimento, a trola os efeitos disruptivos, a preocupação e as
adolescência, o casamento e, principalmente, a ameaças provocadas pelo contato direto com a
morte tornam-se fonte de muita instabilidade para morte. Como observa Giddens a esse respeito, a
as rotinas sociais escoradas no monitoramento re- questão não é só que, hoje, a morte seja rotineira-
flexivo da existência. Giddens caracteriza a estabi- mente oculta à vista. Além disso, a morte tornou-
lidade cotidiana como “segurança ontológica”, que, se uma questão técnica, sua determinação deixada
em seu ponto de vista, “depende de uma exclusão nas mãos da profissão médica. O que a morte é
institucional em relação à vida social de questões torna-se uma questão de decidir em que momento
existenciais fundamentais que apresentam dilemas uma pessoa deve ser tratada como tendo morrido,
morais centrais para os homens” (Giddens, 2002, em relação à cessação de vários tipos de funções
p. 145). Contudo, com a remoção dos suportes corporais. A morte continua a ser o grande fator
tradicionais de processamento da morte, ela pas- extrínseco da existência humana; não pode ser

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trazida, como tal, para dentro dos sistemas inter- somente para o individuo, mas também para a fa-
namente referidos da modernidade. Mas todos os mília, o Estado, o mercado etc. Assim, podemos
tipos de acontecimentos que levam à morte e os afirmar que, se é verdade que a experiência da
que estão envolvidos no processo de morrer po- morte é ocultada pelo processo segregação da ex-
dem ser, assim, incorporados. A morte torna-se periência, essa segregação não constitui uma ope-
um ponto zero – é nem mais nem menos que o ração isolada, mas o resultado da intervenção de
momento em que o controle humano sobre a exis- diversas lógicas que se complementam e se con-
tência encontra um limite exterior (Cf. 2002). trapõem simultaneamente. A confluência desses
Assim, o processo de individualização cria diversos interesses e lógicas é justaposta pela cria-
uma dupla segregação da experiência do morrer. ção e reprodução contínua da rede, ao mesmo tempo
Por um lado, no plano social e mais evidente, a social e técnica, de processamento da morte. É a
morte é encoberta, para que os indivíduos vivam configuração dessa rede que emerge somente quan-
normalmente e, por outro, mais sutil, opera-se uma do a morte ocorre que faz com que a experiência
separação no interior mesmo das instituições mé- do morrer seja ocultada. Portanto, podemos afir-
dicas, como na segregação entre doentes em fase mar que a segregação da experiência da morte não
terminal e os demais doentes. é causa do processo de ocultação da morte, mas a
Desse ponto de vista, o processamento da conseqüência de como a rede de processamento
morte revela-se paradoxal: como a morte vem sen- da morte está organizada sociotecnicamente.
do sistematicamente segregada da experiência coti-
diana, o morrer não pode ser considerado como
um elemento constitutivo na produção das A rede de organização da morte na socieda-
autobrigrafias modernas. Assim, o processamento de moderna
moderno da morte parece negar a tese de que quan-
to mais as sociedades se modernizam, mais os indi- Como vimos anteriormente, na sociedade
víduos adquirem capacidade de refletir sobre as moderna, a morte se dispersa numa rede bastante
condições de sua existência e, assim, modificá-las. extensa de relações heterogêneas que organizam o
Ao contrário, quanto mais a modernização envelhe- processamento social por meio do deslocamento
ce, ou se moderniza a sociedade moderna, mais para a esfera privada, o que provoca uma segrega-
empecilhos encontram os indivíduos para proces- ção da experiência. Essa rede de processamento é
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sar os momentos cruciais da existência, pois se dis- constituída por, pelo menos, cinco atores sociais
solvem as bases sociais de experiência. Segundo predominantes, que traduzem o significado mo-
esse argumento, à medida que a individualização derno do morrer: a família, a religião, o estado, o
liberta os indivíduos das estruturas sociais, mais mercado e a ciência. Cada um desses pontos da
dificuldade eles encontram para processar a mor- rede de processamento constitui, em si mesmo,
te. Portanto, apesar de a morte ter se tornado uma um ator e uma rede, tendendo a traduzir a morte
certeza objetiva, a segregação da experiência torna segundo seus próprios propósitos. Assim, por
a morte um evento indeterminável individualmen- exemplo, o ator-família é composto pela rede de
te: sabemos que morreremos, porém nossa morte parentes e amigos próximos, que é mediada pela
pode ser adiada pela forma como monitoramos afetividade. Para os membros dessa rede, a morte é
reflexivamente nossa existência. processada como uma perda, e é por isso que se
Isso significa que a segregação da experiên- espera que um parente ou um amigo se comova na
cia da morte não é efetuada por uma instituição mediação da morte. Já o ator-religião é composto
especifica, mas pela conjunção de um conjunto pelas igrejas e seus sacerdotes, que configuram a
bastante amplo de intervenções especializadas. morte segundo a lógica espiritual e os ritos especí-
Mais precisamente, a morte não é um problema ficos de cada religião, proporcionando amparo e

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Marcos Antonio Mattedi, Ana Paula Pereira

sentido para o sentimento de perda. Para o ator- morrer. A forma como cada ator traduz e processa
estado a morte é processada burocraticamente, o a morte constitui o resultado de seu funcionamen-
que significa cuidar da manutenção da ordem, to como rede. Por um lado, esse funcionamento
observando os aspectos legais envolvidos no mor- reduz a complexidade social do morrer, subme-
rer, e é por isso que questões como heranças e tendo os demais significados da morte ao seu pró-
dívidas ganham importância nesses momentos. Para prio modo de operação. Por outro lado, devolve a
o ator-mercado, que é constituído por uma rede for- morte traduzida para a rede de processamento. As-
mada por funerárias, floriculturas, cemitérios etc., sim, por exemplo, dificilmente se identifica a pre-
a morte significa uma possibilidade de ganho, e o sença de um médico durante um funeral.
morrer é processado mercantilisticamente, segun- A associação dos diversos tipos de media-
do as expectativas de lucro. Para o ator- ção somente é possível porque se baseia num pro-
tecnocientífico, constituído pela rede de hospitais, cesso de justaposição das identidades e simplifi-
clínicas, ciências médicas, laboratórios farmacêuti- cação recíproca dos interesses. Isto significa que
cos etc., a morte é vista como uma falha técnica dos as identidades de cada ator mobilizado nessa rede
instrumentos de intervenção científica sobre a vida, de processamento do morrer são móveis. O que
pois atua procurando evitar que a morte biológica quer dizer que, ao mesmo tempo em que a atuação
ocorra. do ator-familia pode significar um aumento ou
É através da mediação circunstancial de cada diminuição do lucro para o ator-mercado, o ator-
um desses atores que a morte é ocultada, median- mercado pode amenizar, para o ator-família, o sofri-
te um processo de segregação da experiência do mento, ocupando-se das questões operacionais de

Quadro 1 - Rede de Atores

TECNOCIENTÍFICO

Hospitais
RELIGIÃO Farmácias ESTADO

Igreja Poder Público

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e Cartórios
Sacerdotes

MORTE

Parentes Funerárias
E Floriculturas
Amigos Cemitérios

FAMÍLIA MERCADO

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VIVENDO COM A MORTE: o processamento do morrer...

esquecimento do corpo, embora possa dificultar o de interpretativa. Mais precisamente, é a posição de


esquecimento pelos custos monetários envolvidos. cada ator na rede de processamento da morte que
Mas também, o ator-família pode perceber as leis possibilita a intermediação do morrer.
criadas pela municipalidade que regulamentam a atu- A amplitude e os limites da intervenção des-
ação das funerárias como uma injustiça, enquanto as sa rede de processamento tende a variar, evidente-
funerárias avaliam positivamente a atuação do ator- mente, segundo as escalas temporais e espaciais
estado. Assim, um mesmo ator é traduzido positiva consideradas na análise. Quanto mais regredimos
e negativamente ao mesmo tempo. historicamente e nos afastamos espacialmente dos
centros urbanos, menos especializada tecnicamen-
Quadro 2 - Esferas de mediação da morte
te encontra-se a rede de processamento, fazendo
SOCIOTÉCNICO
MERCADO
com que a penetração da rede se limite às esferas
mais próximas de processamento. Isso significa
ESTADO
RELIGIÃO que o morrer não pode ser igual socialmente, por-
FAMÍLIA que quanto mais recursos um ator-família possui
à sua disposição, mais distante a morte se encon-
MORTE
tra do seu cotidiano, pela intervenção dessa rede
especializada. Assim, analisando a lógica de inter-
venção da rede de processamento do morrer, pode-
EMOÇÃO se dizer que a segregação da experiência não é ho-
AMPARO ESPIRITUAL
mogênea, mas constitui uma condição variável, que
BUROCRÁTICA
depende dos recursos que o indivíduo pode mo-
MERCANTIL
bilizar para o processamento da morte; quanto mais
TECNOCIENTÍFICA
densa a rede, menos público se torna o morrer.
O processo de ocultação da morte pela segre- Isto é, a densidade da rede não se estende
gação da experiência consiste precisamente nessa homogeneamente para todos os indivíduos, mas
mediação contínua do morrer, o que vai redefinindo contrai-se em função de sua condição social.
constantemente as identidades dos atores mobiliza- Podemos notar, assim, que é somente pela
dos na rede de processamento, fazendo com que a intermediação do amparo espiritual, das garantias
morte submerja socialmente, desaparecendo da es- legais, do apoio logístico e da certeza técnica que
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fera pública coletiva e emergindo apenas individu- se efetua o processamento da morte na sociedade
almente, segundo a lógica e os interesses de atuação moderna. Suprimindo-se uma ou mais esferas, a
de cada ator que compõe a rede. Ao abordamos o morte se aproxima e se torna muito difícil de ser
processamento da morte desse ponto de vista, veri- suportada individualmente. O processamento da
ficamos que ela possui um alto grau de flexibilida- morte de um pai de família de classe média alta exige

Quadro 3 - Densidade da rede de processamento da morte

Família
Família Religião
Família Religião Estado
Família Religião Estado Mercado
Família Religião Estado Mercado Ciência
- DENSA + DENSA

328
Marcos Antonio Mattedi, Ana Paula Pereira

a mediação de uma rede muito densa; por exemplo, COMENTÁRIOS FINAIS


o simples cancelamento do fornecimento de seu pla-
no de saúde, regulado pelo ator-estado e fornecido A morte sempre foi inevitável e irreversível.
por um ator-mercado, pode desamparar toda família Pode ocorrer abruptamente como num acidente,
e dificultar o processamento da morte, fazendo com ou ir se consumando lentamente ao longo da vida.
que a presença da morte permaneça durante um pe- Em ambos os processos, o morrer constitui uma
ríodo muito mais amplo que o luto ritual. Inversa- experiência problemática para todo indivíduo. A
mente, a morte de um indigente recebe intervenção análise do processamento da morte na sociedade
somente do ator-estado e do ator-tecnocientífico, o moderna revela que a dificuldade do morrer, na
que torna o processamento da morte menos proble- modernidade, está associada à nossa dificuldade
mático, na medida em que a negociação de seu de nos separarmos da vida: a morte é representa-
significado é muito mais simples e direta. Portan- da como a parte final da vida. Para enfrentar essa
to, quanto mais nossas identidades estiverem an- dificuldade e tornar a morte menos disruptiva da
coradas socialmente, mais abrangente se torna o rotina cotidiana, ela passou a ser processada com
espaço de negociação social do morrer. a intervenção das organizações especializadas que
Essa forma de configurar a morte socialmen- caracterizam sociedade moderna. A intervenção
te desloca o foco de atenção das experiências pesso- sistemática pôs em operação uma rede sociotécnica
ais para as associações geradas pela intervenção de de processamento, que oculta a morte, segregando
instituições especializadas (hospitais, igrejas, cemi- a experiência do morrer da vida moderna. O obje-
térios etc.) e atores sociais (médicos, padres, covei- tivo mais imediato dessa forma de processamento
ros etc.). A densidade da organização da rede de foi tornar a certeza da morte um fato social
processamento da morte é uma condição que tende indeterminável existencialmente e, assim, não pro-
a variar, em função das esferas que são mobilizadas blemático para a manutenção da identidade indi-
e também da forma como estão justapostos os re- vidualizada.
cursos e as identidades para o processamento de Isso mostra que o morrer não é igual para
cada individuo que morre. Os significados da mor- todos, mas o produto dos elementos que são mo-
te constituem, assim, um processo em contínua bilizados e também da forma como eles são justa-
transformação, o que parece explicar a assimetria postos na rede de processamento da morte. A con-
detectada por Koury com relação ao processamento dição social e os valores morais farão com que pre-

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da morte no Brasil, segundo o qual se observa “tan- valeça mais determinado ator-rede em detrimento
to uma atitude radical individualista, quanto na de outro. Assim, se seguirmos o ponto de vista de
defesa de uma atitude de um passado recente per- Elias e Giddens, podemos afirmar, com alguma
dido.” (Koury, 2002, p. 72). Mas também a mobili- certeza, que a morte é ocultada, na sociedade mo-
dade das identidades pode condensar ou esgarçar a derna, por meio da intervenção de um processo
composição da rede. Um familiar, por exemplo, pode de segregação da experiência. Entretanto, a aplica-
indignar-se pela frieza como um funcionário de uma ção da noção de ator-rede nos mostrou, por outro
funerária processa o corpo morto, porém esse mes- lado, que o processo de segregação não pode ser
mo funcionário pode se sentir ofendido pelo fato considerado uma experiência homogênea. A con-
de o familiar não perceber que tratar cadáveres dia- dição social do indivíduo e as crenças morais vão
riamente pode cansar. Assim, a rede sociotécnica determinar a intensidade com que esse processo
de processamento da morte constitui-se num espaço se verifica na experiência. Portanto, podemos con-
de negociação, no qual o saber técnico e a identidade cluir que a segregação é uma função que vai de-
social de cada ator mobilizado são justapostos. pender da densidade da rede que intervém no
processamento da morte. O que significa que quanto
mais atores a morte do individuo consegue mobi-

329
VIVENDO COM A MORTE: o processamento do morrer...

lizar, mais densa é a rede de processamento e mais festando uma série de afetos negativos com relação
segregada a experiência. as pessoas que morressem. É somente porque
Percebemos assim que, ao resolver socialmen- estamos mais preocupados com a vida, que não
te o problema da morte pela organização dessa rede podemos nos preocupar com a morte.
discreta de processamento, a sociedade moderna
converteu-a numa questão individual. Numa socie-
dade individualizada e individualizadora, o morrer (Recebido para publicação em novembro de 2006)
(Aceito em julho de 2007)
deixa de ser um problema social e se converte numa
questão de estilo de vida. Assim, quando um indi-
víduo “morre”, não necessitamos mais nos preocu- REFERÊNCIAS
par em saber se ele está realmente morto ou porque
ele morreu, pois podemos contar com a intervenção ARIÈS, Philippe. A história da morte no ocidente: da idade
média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
do ator sociotécnico. que não somente justifica a con-
______. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: F. Alvez,
dição de morte, mas nos assegura também que tudo 1981, 1982. 2v.
foi feito para que sua vida fosse mantida, para nosso BAYARD, Jean Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários:
morrer é morrer? São Paulo: Paulus, 1996.
desencargo humanista, até onde suas condições so-
BECK, Ulrich. Risk society: towards a new modernity.
ciais permitiram. Também não necessitamos mais London: SAGE Publications, 1996.
nos preocupar com o que faremos com o seu corpo, ______; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Moderniza-
pois aqui entra em operação a intervenção do ator ção reflexiva. São Paulo: Ed. Universidade Estadual
Paulista.s.d.
mercado, que nos afasta das questões práticas de COLLIER, C. D. A. Tradition, modernity, and pós-
processamento do corpo como, tais como a limpeza, modernity in symbolism of death. The Sociological
Quartely, [S.l.], v. 44, n. 4, p. 727-749, 2003.
a elegância e o sepultamento; também o ator estado
ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos: seguido de
nos fornece as garantias de que a ordem de reprodu- envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001.
ção moral e da propriedade sejam mantidas; e, final-
EXIEY, Catherine. Review article: the sociology of dying,
mente, mais próximo, mais social e menos técnico, death and bereavement. Socioloy of Health & Illness, [S.l.],
v. 26, n. 1, p. 110-122, 2004.
para aqueles que possuem alguma crença espiritual,
FROGATT, Katherine. Life and death in English nursing
entra em cena o ator-religião, que dá sentido à exis- homes: sequestration or transition. Ageing and Society,
tência. Isso permite que nos ocupemos apenas com [S.l.], v. 21, p. 319-332, 2001.

as questões afetivas do morrer. GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de


CADERNO CRH, Salvador, v. 20, n. 50, p. 319-330, Maio/Ago. 2007

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.


A rede sociotécnica que organiza o KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Sociología da emo-
processamento da morte, na sociedade moderna, ção: o Brasil urbano sob a ótica do luto. Petrópolis: Vozes,
2003.
não é boa nem má. Ela permitiu que o morrer te-
MARTUCCELLI, Danilo. Sociologies de la modernité:
nha se convertido numa questão pessoal, íntima. l´itnéraire du XX siècle. Paris: Èditions Gallimard, 1999.
Assim, algumas pessoas sofrem muito com a per- MELLOR, P. A; SHILLING, C. Modernity, self-identtity
and the sequestration of death. Sociology, [S.l.], v. 27, n.
da, outras pessoas sofrem pouco; algumas pesso- 3, p. 411-431, 1993.
as choram muito, outras pessoas choram pouco. SEALE, Clive. Media construction of dying alone: a form
of “bad death”. Social Science & Medicine, [S.l.], v. 58, p.
Porém a experiência do morrer seria algo 967-974, 2004.
estranhamente diferente para a maior parte das SMITH, Warren. Organizing death: remembrance and re-
pessoas se não tivéssemos a intervenção dessa rede colletction. Organization Articles, [S.l.], v. 13, n. 2, p.
225-244, 2006.
que organiza a morte. Se fôssemos obrigados, di- WAGNER, P. Sociologia de la modernidad. Barcelona:
ante da morte de cada conhecido e (ou) familiar, a Empresa Editorial Herder, 1997.
nos ocupar de todas as questões técnicas, práti- WILLMOTT, Hugo. Death. So what? Sociology,
sequestration and emacipation. Sociological Review, [S.l.],
cas, legais e espirituais envolvidas no v. 48, n. 4, p. 469-465, 2000.
processamento da morte na sociedade moderna.
Nós, os indivíduos modernos, acabaríamos mani-

330
Marcos Antonio Mattedi, Ana Paula Pereira

VIVENDO COM A MORTE: o processamento LIVING WITH DEATH: the processing of VIVRE AVEC LA MORT: l’élaboration du
do morrer na sociedade moderna dying in the modern society mourir dans la société moderne

Marcos Antônio Mattedi Marcos Antônio Mattedi Marcos Antônio Mattedi


Ana Paula Pereira Ana Paula Pereira Ana Paula Pereira
O texto trata do processamento This paper is about the Le texte aborde le problème de
da morte na sociedade moderna; objetiva processing of the death in the modern l’élaboration de la mort dans la société
problematizar as estratégias psicossociais society; it aims to problematize the moderne; il cherche à poser le problème
empregadas na sociedade moderna para psychosocial strategies used in the des stratégies psychosociales utilisées dans
conviver com a morte. Argumenta-se que modern society to live together with la société moderne pour vivre avec la mort.
a forma como a morte é processada soci- death. It is argued that the form as death On y démontre que la manière dont la
almente na sociedade moderna é uma is processed socially in the modern mort est traitée socialement dans la société
conseqüência de como nos relacionamos society is a consequence of how we rela- moderne est une conséquence de notre
com a vida. Partindo do exame das contri- te to life. Beginning from the exam of manière d’établir des liens avec la vie. A
buições de Philippe Ariès e Norbert Elias e contributions by Philippe Ariès and partir de l’analyse des contributions
nos conceitos de individualização formu- Norbert Elias and in the individualization apportées par Philippe Ariès et Norbert
lado por Ulrich Beck e segregação da expe- concepts formulated by Ulrich Beck and Elias et des concepts d’individualisation
riência proposto por Anthony Giddens, segregation of experience proposed by énoncés par Ulrich Beck ainsi que de la
procuramos demonstrar que quanto me- Anthony Giddens, we tried to ségrégation de l’expérience proposée par
nos problemática se torna a morte social- demonstrate that the less problematic Anthony Giddens, on essaie de démontrer
mente, mais angustiante se torna seu death becomes socially, the more que moins la mort est problématique sur
processamento para o indivíduo. Para de- distressing its processing becomes for the le plan social plus son élaboration est
senvolver este argumento e mostrar como individual. To develop this argument and angoissante pour l’individu. Pour
é segregada a experiência de morte, aplica- to show how the death experience is développer cet argument et montrer
mos a noção de ator-rede que permite a segregated, we applied the actor-net combien l’expérience de la mort est
interpretação da justaposição de atores notion that allows the interpretation of discriminée, nous avons utilisé la notion
heterogêneos no processamento da morte. the heterogeneous actors’ juxtaposition d’acteur - réseau qui permet l’interprétation
in the processing of death. de la juxtaposition d’acteurs hétérogènes
dans l’élaboration de la mort.

PALAVRAS-CHAVE: morte, processamento do MOTS-CLÉS: mort, l’élaboration du mourir,


morrer, segregação da morte, ator-rede, KEYWORDS: Death, processing of dying, discrimination de la mort, acteur réseau,
sociedade moderna. segregation of death, actor-net, modern société moderne.
society.

CADERNO CRH, Salvador, v. 20, n. 50, p. 319-330, Maio/Ago. 2007


Marcos Antonio Mattedi - Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Ciências
Sociais pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Professor do Curso de Ciências Sociais e Pesquisador
do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade Regional de Blumenau – (FURB).
Estágio Pós-doutoral no Centre de Sociologie de L´innovatrion - École des Mines de Paris. Coordenador do Grupo
de Pesquisa CNPq: Núcleo de Estudos da Tecnociência – (NET).

Ana Paula Pereira - Graduanda em Psicologia e Pesquisadora do Programa de Iniciação Científica – PIPe
da Universidade Regional de Blumenau.

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