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Michel de Certeau

A Escrita da História
*** Yedição

Tradllçâo de:
.......
--~-- Maria de Lourdes Menezes
o GEN I Grupo Editorial Nacional reúne as editoras Guanabara Koogan, Sant os, Roca,
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com obras qu e têm sido decisi\'ils na formação acadêmica e no ape rfeiçoamento de
várias gerações de profissiona is e de: estudantes de Administração, Direito, Enfe rma-
ge m, Engenha ria. Fislolempia, Medidna, Odontologia, Educação Física e muitas outras
ciências. tendo se tornado si nôni mo de scriooadc c respeito.

Nossa missão é pro"er o melhor co metido cie ntifi co c distribuí-lo de maneira ncxí\'cl c
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ros, funcionários, colabOr;J,dorcs c acionistas. "

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Traduzido de:
L'1~ail1lre de /'Hi5toire Índice Sistemático
Copyriglll C I:ditions Gallimard, 1975
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A ESCRITA DA HI STÓR IA
ISBN 978·85-309-3573-3 Prefácio li 2" ediçno ... .. .............. . XI
Direitos exclusivos para o Brasil na língua portuguesa Escritas e Histórias. ............... . XV
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Uma editora integrante do GEN I Grupo Editorial Nacional Primeira Parte
Tran:s~ do Ouvidor. II - 6° andar - 20040·040 - Rio de Janeiro - Rj
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Quem ,·ender. expuser à venda, ocul1ar. adquirir. distribuir, ti"er em depósito ou utilizar A história. uma prática e um discurso ....... 3
obra ou fonograma reproduzidos com fraude, com a finalidade de vender, obt{'r ganho. I. Ulll indício: O tratamento da ideologia religiosa em história .. 6
vantagem, proveito, lucro direto ou indireto, para si ou para outrem. será solidariame nt e O modelo Ulllistiço" e o modelo ufokló rico": uma essência escondida .. 8
respons:i",;>I com O contrafator. nos termos dos artigos precedentes. respondendo como \O
contrafatores o importador e o distribuidor em caso de reprodução 110 exterior (art. 104 O lllodelo sociológico: a prática e o saber. ......
n
Um modelo c ultural: das '·ideias ao '"incon scien te cole tivo" 14
da Lei 11. 9.610/98).
lI. Práticas históricas e práxis social... ............... ... 18
3' ~-dição brasileira - 2011
Dos "preconceitos" históricos 3S situaçôes que eles rl"velalll 20
3' ~-di,ão brasileiral2' reimpressão - 2013
A mutação dos ~preconceitos" em obje tos de estudo .. 23
Tradução de: Maria Ik l.ou rdC5 Mcue:::c,
Revisão T~cnica: Arnol'ogd [11. A história, discursa c realidade.. .. ............. .. 26
Duas posiçôes do real 26
CI P - Brasil. Catalogação·na -fonte. O intermédio. situação da história e problema do real.. .. ............ ..
,-
-;
Sindicato Nacional dos Edi tores de Livros. Rj. 29
A relação com o outTO .. ,
Gl1le O discurso da história ..... 33
3. ed,
Iv' A história como mito ... ..................... .. ............ .. 38
Certeau. Michel de. 1925· 1986 Ide n tidade por diferenciação ..... ........... , ................ . 40
A escrita da história//l.liche1 de Certeau; tradução de Maria de I.ourdes A origem da linguagl"m: o morto e o vivo .. 40
Menezes; revisão técnica Arno Vogd. - ), ed. _ Rio de janeiro: Forense, 2013. 42
O dizer e afazer .....
Tradução de: l.&riture de I'his!oire
Inclui bibliografia 45
ISBN 978-85·309-3573-3 Capítulo [I. A OPERAÇAO H[STORIOGRÁFlCA .....
L Um lugar social .. 47
L Hi storiografia. 1. Titulo,
O não-dito ........ .................... .. ............ ,.. 47
1l ·4773. CDD: 90;.2
CDU: 82·94 A instituição histórica.. . ............. .. 51
VI A Escrita da Ilistória • "'Iichel de Certeau Indice Sistemático V II

Os historiadores na sociedade ....... ............................................... . 57 A divisão e a incerteza ............................................................. . IS'I

O que permite e o que proíbe: o lugar ...................... . 63 "Ateís m o~.fe itiçaria. mística ..................................................... 1S8
il. Uma pdtica........................................... ............................. .. 64 A raz;io de Estado ......................................................................................... . [60
A articulaçiio natureza·cultura ............ .......................... . 67 11. Urna no\";I formalidade das pdticas: a politização dos comportamentos.. . [63
O estabelecimento das fon tes ou a r<.'distribuição do espaço ..... A formalidad<.' das pr.\ticas ........................................... . [63
69
Reempregos ................................................................................................. [65
Fazer surgir diferenças: do modelo ao desvio ......................................... . 75
O trabalho sobre o limite .......................................................... . 111. A lógica do «praticante": uma alternaliva entre o dever de Estado e o
79
Profetismo.................... ............................................... ................ . 170
Crítica e história ........................................................ . 85
Entre a lei do agir e o lugar da enunciação .................... .. 170
i ll. Uma escrita ............................................................................. . 89 As wmarcas" ....................................................................... ............... . 172
A irl\'ersãoescrituraria ............................................................... . 'O Janscnistas e Jesuítas ...................................................................................... 173
A cronologia, ou a lei mascarada ................................................. 93 O dever de Eslado ............................................................................. 176
A construção desdobrada ........................................................................... . 99 Do profetismo ao radicalismo: a prática do corte ........ . l i9
O lugar do morto e o lugar do leitor .............................. . [08 IV. A ética filosófica: ~Iegalidade" e "utilidade" no século XVII [ . 183
Uma raz;io instauradora de seu folclore ............... . 185
Segunda Part<.' Ambivalência da "utilidade" ......................................... . 188
Formalidades crislãs das praticas filosóficas? .... .......... 192
1\ PI~ODUÇÃO DO TEMPO: UMA ARQUEOLOGIA RELIGIOSA V. As leis próprias do gr upo rcligioso: redução aO silêncio e
administração cultural ..................................... . lO'
INTRODUçAO: QUESTOES DE MtTODO ................................ . 11 5 Duas práticas da linguagem ........................................... . 200
Aquilo que torna pens:\\'<.'I ........................................................................ . 11 5 Escrita e oralidade ............................................................ 204
Formalidades em historiografia ....................................................................... 11 8 Um intermédio: os padres ............................................... 207
A hermellêutica derical .................................................................. . 209
Capítulo [11. A INVERSÃO DO PENSAVEI. ................................................... 125 Uma política da linguagem e do culto ........................................ .. 212
A HISTÓRiA RE LIGIOSA DO StCULO XVi i ............................... . 125
1. A religião durante a idade dássica .... .......................................................... 126 Terceira Parte
A. Equilíbrios e tensões internas (dinâmica da sociedade religiosa)...... 126
A heresia........................................... ........................... 126 OS S[STEMAS DE SENTIDO: O ESCRITO E O ORAL
Consciência religiosa coletiva e represent;lções doutrinais............... 130
Ideologia religiosa e realidade social................ 13'1 Capitulo V. ETNO-GRAF IA........................... ......................... 221
B. A vida rdigiosa na sociedad<.' do século XV ii................ ...................... 139 A ORALIDADE OU O ESPAÇO DO OUTRO: L~RY.......... .. ..................... 22 1
O oculto................................................................................ 139 A escrita e a oralidade elnológica...................... .............................. 221
Deslocamentos de uma estrutura bipolar..................... 141 Uma imagem da modernidade .................................... ............................... 223
A rdaçãocom o passado.................................... 142 A "lição de escrita" em Jean de Lér)' ( 1578)............. ................................. 22S
11. A interprclaç:io histórica ....... ................................. 144 A reprodução escri turaria ............................................................................ 23 1
A. História Msocial ~ e história religiosas.............. 144 Uma hermenêutica do outro.................................. ....................... 23S
B. Fato religioso. determinaçiio religiosa, s<.'ntido religioso... 146 A palavra erOlizada.......... ............................................................................. 246
O fato religioso.............................................................. 146 Visto elou escutado: o olho e o ou\'ido......................... ............................. 2S1
Determimlção religiosa e determinação social..... 147
Cnpílulo VI. A L1NGUAGE1'l"1 ALTERADA ........... . 261
Capitulo IV. A FORMALIDADE DAS PRÁTICAS .................. . ISO A PALAVRA DA POSSUIDA ........ . 261
DO SISTEMA RELIGIOSO A i:TICA DAS LUZES (XV II -XVIII ) .. ISO Um discurso do oUlro? .................................... ......................................... .. 263
Da religião à élica. Um deslocamento nos quadros de referência .. 151 Transgressão e inlerdiç:io ..................................... . 266
I. Da divisão das Igrejas à "Ra7.ão de Estado~ (seculo XVII) ..................... . [54 Documentos alterados: os teXIOS das possuídas ..................................... . 270
V III A Escrita da História . l\lichel de Certeau

n
"Eu é um mltro : a perversão da linguage m ........................ . 274
COIIstruç50 e de1ll0liç50 de um lugar ................... .
n
278 1
O quadro dos nomes próprios: uma toponimia "rnexida •••• 281
A mentim da interpretação ....................................................... 286
1
f
Capitulo VIL UMA VAR IANTE: A ED IFICAÇAO HAGIO·G RÁFICA .. 289 •
I. História e sociologia ..................... ...................... 200
Indicações para uma história..... ...................................... 290
Um documento sociológico... ................. . 292
Um a função dr ~vacãncian .......... . 29<1
Uma lilemtum popular? ................. .. 295
t• i
[I. A estru tum do discurso ............................................................... 2%
O herói ................................................................................... 2% ,~
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Um discurso de ~\'irtudes~ ................. ............................. 298
.~ .g
Tópica hagiogrâfica.............................. .................................. . 300 ·" -
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1[1. Uma geografia do sagrad o ............. . 301 "
A circularidadr de um tempo fechado ....................................... . 301
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a-
Uma co mposição de lu gares ................... . 302
Indicações bi bliogroificas............................... 303

Quarta parte
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AS ESCRITA FREUDIANAS
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Capitulo VIII. O QUE FREUD FEZ DA HISTÓRIA ...... . 307 .J!-'
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A PRopósrro DE UMA NEUROSE DEMONIACA NO S ~CULO XVII 307
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O histÓrico, produção da KAufklarung freudiana ......................................... 309 "l<""'""
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Para uma história do século XV iI ................................................................. .. 313
Do passado legível ao presente oculto. 316 :!. S
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Ocultar, trabalho da histó ria .......................................................................... . 320
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As substitui ções do pai ........................ . 323
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Oatoea lci ................................................ 326 <i.!!12::
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Capítul o IX. A FICÇAO DA HI ST ÓRIA ...................................................... . u.a E ';:

33 1
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A ESCRITA DE KMO ISts EO ;"·IO NOTE ls;..mn ................. .. .. .. .. . ... . .. .. ...... 33 1 0 ·::1" ~
O di sc urso de fmgmentos ou o co rpo do texto ........................................ 333
Esc re\'e r na língua do outro, ou a ficção .............................................. .
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3'12 1i;1i;,;;
Pede·se fechar os olhos .............................................................................. . 349 ;:) 'C ".3
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A tmdição da morte, ou a esc rita ............ . 35 1 z . .õ<
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O quiproquó, ou a comédia do "próprio ................. .. .. . . . 360 "< "
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O roman ce da históri a ..................................................................... 378
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DO MESMO AUTOR ....................................................................... . 385 ...:00::
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44 A E.scril ~1 da HistÔria. Michel de Certeau
-
o parêntese de uma verdade. Sem nada retirar das funções previa -
mente sublinhadas, é necessário não negligenciar aquela que liga
o dizer hi stórico ao fazer social, sem identificar o primeiro com o
segundo: ela lembra ao trabalho sua relação com a morte e com o
sentido; ela situa a verdadeira historiografia ao lado das questões Capítulo II
indi sc retas a serem abertas no imenso movimento da práxis.
A OPERAÇÃO HISTORIOGRÃFICA'

o que fabrica o historiador quando "faz história"? Para quem

trabalha? Que produz? Interrompendo sua deambulação erudi ta
pelas salas dos arquivos, por um instante ele se desprende do estu-
do monumental que o classificará entre seus pares, c, saindo para a
rua , ele se pergunta: O que é esta profissão? Eu me interrogo sobre
a enigmática relação que mantenho com a sociedade presente e
com a morte, através da mediação de at ividades técnicas.
Ce rtamente não existem considerações, por mais gerais que
sejam, nem leituras, tanto quanto se possa estendê-las, capazes de
suprimir a ptl rliCIIlaridade do lugar de onde falo e do domínio em
que realizo uma investigação. Essa marca é indelével. No diSCllrso
em que enceno aS questões globais, ela terá a forma do idiotismo:
meu patoá representa minha relação com um lugar.
Mas o gesto que liga as "ideias" aos lugares é, precisamen-
te, um gesto de historiador. Compreender, para ele, é analisar
em termos de produções localizáveis o material que cada méto-
do instaurou inicialmente segundo seus métodos de pcrtinéncia. 1

Uma parte deste estud o foi publicada em LE GO H , j.; NORA, P. raire de

/'lristoirc. Paris: Gallima rd, 1974. t. I, p. 3-41, sob o titulo MÜ)per:lt ion histo-
rique': Ele foi, aqui, re\'isto e corrigido.
2 Se o trabalho histórico se cara cteri za pela determinaçilo de lugares de per-
linências, quer di ze r, por uma tópica (como demonst rou VEYNE, Pau l.
Co mmelll 011 écril /'Mstoin', Seuil, 197 1. p. 258-273), ele não renuncia tam-
H
)
pouco a inscre\'i.'r as unidades de sentido (ou Wfa tos assim di.'tcrminados,
em rda ção de produílio. Ele se aplica, pois, em mostrar as relações entre os
produtos e os lugarrs de produção.
 46 A Escrita da Histori3 • :' Iichcl dI.' Certl.'au
Quando a história} se lorna, para o prático, o próprio objeto de Sua
reflexão, pode ele inverter o processo de compreensão que refere
um produto a um lugar? Ele seria, nesse caso, um fuj.io; cederia
a um áli bi ideológico se, para estabelecer o estatuto do seu traba-
lho, recorresse a um alhllres filosófico, a uma I'Crdade formada e
recebida fora dos ca minhos pelos quais, em história , todo sistema
de pensamento está referido a "lugares" socia is, económicos, cul-
turais etc. Semelhante dicotomia entre o que faz e o que diria do
que faz serviria, a[hís, à ideologia reinante, protegendo-a da prática
efet iva. Ela também destinaria as experiências do historiador a um
sonambul ismo teórico. Mas que isso, em história como em qual-
quer outra coisa, uma prática se m teoria desemboca necessaria -
mente, mai s dia menos dia, no dogmatismo de "valores eternos"
ou na apologia de um "i ntemporaJ': A suspei ta mio poderia, pois,
estender-se a toda análise teórica.
Nesse setor, Serge Nloscovici, Michel Foucau lt , !l'lUl Ve}'lle, e
ainda outros, atestam um despertar epislemológico,4 Este manifes-
ta na França uma urgência nova. Mas receptível é apenas a teoria
que articula uma prática, a saber, a teoria que por um lado abre as
práticas para o espaço de uma sociedade c, que, por outro lado,
organiza os procedimentos próprios de uma disciplina. Encarar
a história como uma operação sení tenta r, de maneira necessa-
r iamente lim itada, compreendê-Ia como a relação entre um lllgal'
(um recrutamento, um meio, ullla profissão etc. ), proccdimclltos
de an:ílise (uma disci plina) e a construção de um texto (uma litera -
tura). ~ admitir que ela faz parte da "realidade" da qual trata, e que
essa realidade pode ser apropriada "enquanto atividade humana':
J Urna \'C1; por to(tas, quero prccisar quc emprego a palavra hislóriu no sen-
tido dc Irisloriogmjill. Quer dizer, entendo por história uma prátic3 (uma
disci plina), seu rl.' sultado (u m discurso ) e sua rc1a ção, Cf. "Fazer histó ri a':
$IIpm, p. 21 ·54.
4 Cf. MOSCOV IS, Serge, ES$/Ii SI/ r /'hisloirc 11I1II1II;l1e til' l/ll1/1ture, Hammarion,
1968; FOUCAUl.T, Michel. I:Ardlliologie tlu s/lI'oir. G(lllilJJ;1rd, t969;
VEY N E, I'au l. CO/llIII('I!/ 011 r'cril /'hisloirc. ${'uil, 197 1,
Capitulo 11 • A Operaç:io IlistOrLog:,ifica 47
"enquanto prâtica':s Nessa perspec tiva, gostaria de mostrar que a
operação histórica se refere à combinação de um II/gar social, de
próliras "científi cas"6 e de uma escrita , Essa amí[ ise das premissas,
das quais o discurso não fala, permitirá dar COlHornos precisos às
leis silenciosas que organizam o espaço produzido como texto. A
esc rita histórica se constrói em função de lima instituição cuja or-
ganização parece inverter: COtn efeito, obedece a regras próprias
que exigem ser examinadas por elas mesmas,
I. UM LUGAR SOCIAL
Toda pesquisa historiogrâfica se art icula com um lugar de
produção socioeconómico, pol ítico e cultural. Implica um meio
de elaboração circunsc rito por determinações próprias: um:l pro-
fissão liberal, um posto de observação ou de ensino, uma categoria
de letrados etc. Ela está, pois, submetida a imposiçóes, ligada a
privilégios, enraizada em uma particularidade, É em função desse
lugar que se instauram os métodos, que se delineia lima topogra-
fia dc interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão
propost:lS, se organizam,
o não-dito
H,í quarenta anos, lima primeira crítica do "cientificismo"
desvendou na história "objetiva" a sua relação com um lugar, o do
sujeito. Analisando uma "dissolução do objeto" (R. Aron), tirou
da história o privilégio do qual se vangloriava, quando pretend ia
reconst ituir a "vcrdade" daquilo que havia acontecido. A história
"objetiva", aliás, perpetlL.wa com essa idcia de uma "verdade" um
5 l\IARX, Karl. 'lIl1\$('S sI/r PCI4crbacl!. tese I.
6 O te rmo ciClltifiC/l, bast3nt e suspeito no conjunto das "ciencias hum anas~
(onde': subst ituido pelo ter mo IImilisc), não o é men os no campo das "ci·
endas e;l:a t as~ na mcd ida em qu c remeteria a teis, I'ode-se, entretanto, dc -
tinir com esse termo a IlOssibilidade de cstabclrccr um conj unt o de regras
que pcrmit am "contro1ar~ opcrt/(àcs destinadas ir protluçrio de objetos de -
tcrminados.
48 A Esuil:l da I listÓria . ,\ljehel do: Ccrtcau
modelo tirado da filosofia de ontem ou da teologia de anteontem;
contentava -se com traduzi -la em termos de "fatos" históricos... Os
bons tempos desse positivismo estão definit ivamente acabados.
Desde en táo vcio o tempo da desconfiança. Mostrou -se que
toda interpretação histórica depende de um sistema de referência;
que esse sistema permanece uma "filosofia" implícita particu lar;
que, infilt rando-se no trabalho de análise, organ izando -o à sua
revelia, remete à "subjetividade" do autor. Vulgarizando os temas
do "h istoricismo" alemão, Raymond ArOIl ensino u a toda lima
gcmção a arte de apontar as "decisões filosófi c,lS" em fun ção das
quais se organizam os recortes de um material, os códigos do seu
deciframento e a ordem da exposiç:io! Essa "critica" representava
um esforço teórico. l" larcava uma etapa importante COIII relação a
uma situação fra ncesa, na qual prevalec iam as pesquisas positivas
e reinava o ceticismo acerca das "tipologias" alemãs. Exumava a
premissa e o inconfessável filosóficos da historiografia do século
XIX. Já remetia a uma circu lação de conceitos, quer dizer. aos des-
locamentos q ue no co rrer deste séc ulo tinham Iransportado as ca-
tegorias fi losóficas para o subsolo da história, como também para
o da exegese ou da sociologia .
Agora, sabemos a lição na ponta da língua. Os "fa los histó-
ricos" já são conslitu ídos pela introdução de um sentido na "ob-
jetividade': Eles enunciam, na linguagem da ,múli se, "escolhas que
lhes são anteriores, que não resultam, pois, da observação - e que
não são nem mesmo "verificáveis': mas apenas "falsificáveis" gra-
ças a um exame critico.' A "relatividade histórica" compõe. assim ,
7 Imrodllc/ioll li //1 plrilosophir (Ie /'his/oire. Esmi sur fes limi/es de fobja/iI,jjé
!tis/ofif/ul? Vriu, 1938; Ln Plrilasophie critique de /'Iristoire. Vriu, J 938 (rced.
1969). Sobrç as teses de R. Aron, cf. a critica de VILAR, Piern:~.l\·larx i s me
et histoire dans le dé"doppement des sciences humainnes. Studi Storiei, I,
nO5, p. [.008·1.0'13, 1960. Cf. principalmente p. 1.01 I· J .019.
8 Sobre o "principio de fal sificação'; cf. POPPER , KarL l.ogik der Porsclrrmg.
Viena, 1934 (lrad. inglesa revista e muito aumentada: '/lre Logic of scielllific
Discal·er)'. Londres: Hu tchinson, 1959), a obra de base do ~ ra( iol1a1i smo
c ritico~
Cnpilulllll • A Opcrn~.1o llrstori0tr;rjlka 49
um quadro em que, sobre O fundo de ullla totalidade da hi stória ,
se destaca lima multiplicidade de filosofia s individuais, as dos pen-
sadores que se vestem de historiadores.
O retorno às "decisões" pessoais se efet uava com base em
dois postulados. Por um lado, isolando um elemento fil osófico do
texto hi storiográfico sup"nha-se lima autonomia para a ideologia:
era a cond ição de sua ex traçii.o. Uma ordem das ideias era posta à
parte da prática histórica. Por outro lado (mas as duas operações
ca minham jUll tas), sublinhando as divergências entre os "filóso -
fos': descobertos sob suas vestes de historiadores, referindo-se ao
insondável de Slt:1 S ricas intuições, fa zia·se desses pensadores um
grupo isoláve/ de sI/a sociedatle, a pretexto de sua relação direta
com o pensamento. O recurso às opções pessoais provocava cur-
lo -circuito no papel exe rcido, sobre as ide ias, pelas localizações
sociai s .~ O plural dessas subjetividades filo sóficas tinha, desde en-
tão, como erei to discreto, conservar uma posição singular para os
intelectua is. Sendo as questões de sentido tratadas enlre eles, a ex-
plicit<lção de suas diferenças de pensamellto equiva lia a gratificar
o grupo inteiro com uma relação privilegiada com as ideias. N<lda
dos ruídos de lima fabri caçii.o, de técn icas, de imposições sociais,
de posições profi ssionais ou polít icas perturbava a paz dessa rela-
ção: um silêncio era o postulado dessa epistemologia.
R. Aron estabeleceu um estatuto rcserl'{ldo tanto para o reina -
do das ide ias quanto pa ra o rei no dos in telec tuais. A "relatividade"
não funcionava senão no interior de um campo fechado. Longe de
colocá-lo em questii.o, de fato, ela o defend ia. Apoiadas na distin-
ção entre o sábio e o politico, lll11 dos elos mais discutívei s da teo-
ria de Weber,U,l essas teses demoliam uma pretensão do saber, mas
9 Cf. GRAl\ISCI, Antonio. G/i in/d/eclrm/i e lorgwri::iollc dd/a wllrml. Tu·
rim: Einaudi, 19-19. p. 6·38.
10 Retorn ando à tese weberiana, segundo a qual "a elabora ção científica co·
meça por uma escolha que não adm ite out ra justificativa 5en:10:l s\lbjeti\'a~,
R. Aron sublinhou. ullla vez mais, em l..es C/tl{l<'$ de /a J'C'I Sée soci%giqul'
(Gallimard, 196i, p. 510), o cru zamento, em Weber, entre a "'e scolha sub·
M
jetiva" e o sistema racional de explicação Kcausal (ibid., p. 500·522). Por aí
50 A Escrila da História - t. tichel de Certcau
reforçavam o poder "isento" dos sábios. Um lugar foi posto fora
de alcance no momento em que se mostrou a fragilidade daqui lo
que se produzia nele. O privilégio negado às obras cont roláveis foi
transferido para um grupo incontrolável.
Os trabalhos mais notáveis parecem, ainda hoje, deslizar-se
dificilmente da posição vigorosa que R. Aron tomou, subst ituin -
do o privilégio silencioso de um lugar por aquele outro, triunfan-
te e discutível, de um produto. Ainda que Michel Foucault negue
toda referência à subjetividade ou ao "pensamento" de um autor,
supunha ainda, nos seus primeiros livros, 11 a autonomia do lugar
teórico onde se desenvolvem, no seu "relato", as leis segundo as
quais discursos científicos se formam e se combinam em sistemas
globais. A Arqueologia do saber ( 1969 ), sob esse ponto de vista,
marca uma ruptura, introduzindo ao mesmo tempo as técnicas de
uma disciplina e os confli tos sociais no exame de uma estrutura
epistemológica, a da história (e isso não é por acaso). Da mesma
forma , quando Paul Vcyne termina de destru ir na história o que
a passagem de R. Aron ainda lhe havia deLxado de "ciência Cau -
sal~ quando nele a fragmentação dos sistemas interpretativos em
uma poeira de percepções e de decisões pessoais não deixa mais
substituir, como fato de coerência, senão as regras de um gênero
literário, e como fato de referência, senão o prazer do historiador, 12
bem parece permanecer intacto o pressuposto de que, desde as te-
ses de 1938, negava implicitamente toda pertinência epistemoló -
gica ao exame da função social exercida pela história, pelo grupo
dos historiadores (e, mais genericamente, pelos intelectuais), pelas
ele oblilerou o efeilo. sobre o intelCClual, de se u lugar na sociedade e põde,
uma \'e1: mais, man ter Weber como o anti·""tar x.
11 Em I.cs mots cl Ics choses (Gallimard. 1966). principalmente. cujo propósito
foi depois especificado e situ:ldo. em particular n:l not;i.\"el Ulntroduction"
de I:Arclu!ologie dll s(II'oir (op. cit" p. 9·28). Cf. CERTEAU, M. de. Ü\bscm
H
I/e I'IliSfOire, 1973. p. 115-132, uLe noir solei! du langll:lge: r.t Foucault•
12 Cf. CERTEAU, M. de. Une cpistemologie de transilion: P. Veyne. Almales
E.S,C.. 1972. t.XXVII,p.131 7·1327.
Capítulo 11 . i\ Oper.lção Historiogr.ífica 51
práticas e pelas leis deste grupo. por sua intervenção no jogo das
forças públicas etc.
A instituição histórica
Esse lugar deixado em bran co ou escondido pela análi se que
exorbitou a relação de um sujeito individual com seu objeto é uma
illslit/liçâo do saber.
Ela marca a origem das "ciências" modernas. como demos-
tram no século XVII as "assembleias" de eruditos (em Sai nt-Ger-
main des Pres, por exemplo) , aS redes de correspondência e de
viagem formada s, então, por um meio de "curiosos':u ou, mais cla-
ramente, no sécu lo XVIII, os círCll los sábios e as Academias com
as qua is Leibniz tanto se preocupava. 14 Os nascimentos de "disci -
plinas" estão ligados à criação de grupos.
Dessa relação entre uma instituição socia l e a definição de
um saber, o contorno aparece, desde Bacon ou Descartes, com
13 AR It:.S, Philippe (Le Temps de /'Iristoric, r.lónaco. 1951, p. 224), C HAUNU.
I'ierre (Lil CivilisfII;o/1 de /'fllfope rlllSsique, Arthaud, 1966, p. 404·409. SO'
bre 1\ constituição atra\'cs da Europa de um pequeno mundo da pesqui s:l~)
e muitos outros também notaram o fato. Mas apenas o detalhe mostra a
que ponto esla "constituição" social marca um corte epistemológico. Por
exemplo, existe uma relação estreit:l elltre a dclimitaçtio dos cor respond(,lI'
tes (ou das viagens) e a im/tl1lrrlçllo clllrc des de uma lillguagell! erudila
(sobre essas correspondéncias, cf. GAlt=F1ER, B:ludouin de. In: _ _ Re· o
ligioll, érruJition 1'1 critique ri 111 fi/I dll XVII sifkle. P.U.F.. 1968, p. 2.9) ou
entre as ~assembleias" de quarta· feira na biblioteca Colbertina, de 1675 a
175 1, e a elaboração de uma pcsqlliSfI hiSlórica (sobre essas reuniões, cf.
DELlSLE, Lt-opold. Le Cllbinel des maJlUscfils de 111 Bibliollréqlle Nm ioml/e.
Paris. 1868, t. L, p. 476· 477).
14 D;lllicl Rache demostra a estreita conexão entre o encic/opi'dislllo (um
"complexo" de ideias), e estas i/lstil(liçócs que são as :lcademias parisienses
ou provinciais (Encydopcdisles et académicicns. In: Livre 1'1 société dlllrs la
Prllllcc du XVTII siecle. jI,'louton, 1970, li, p. 73·92), como Sergio Mor:\\'i~
liga o nascimento da elnologi:l à constituição do grupo dos "Observal eurs
H
de l'homme (ta Seiell:!" del/'I/OI/Io nei scltcceJllo. Bari: Lat('rza, 1970. p.
15 1· 172). Poder· se· iam multiplicar os exemplos.
52 1\ Escrit:l da História. 1'I'lichel de Ccrlt:au
aquilo que se chamou de "despolitização" dos sábios. É necessá rio
não entender isso como um exílio fora da sociedade 's, mas como a
fundação de "corpos", O dos "engenheiros': dos intelectuais pobres
aposentados etc. no momento em que as un iversidades se esele-
rosavam ao se fecharem. Instituições "políticas': eruditas e "ecle-
siásticas" se especializam reciprocamente. Não se trata, pois, de
uma ausência, mas de um lugar particular numa redistribuição do
espaço social. A ma neira de ullla retirada relativa dos "assuntos
públicos" e dos "assuntos religiosos" (que se organizam também
em corpos particulares), constitui -se um lugar "cien tifico': A rup-
tura que torna possível a unidade social, chamada a se transformar
na "ciência': indica uma reclassificação global em curso. Esse corle
mostra , pois, através da sua face externa em um lugar articu lado
sobre outros num conjunto novo, e, através da sua face interna, a
instauração de um saber ind issociável de uma instituição socia l.
A partir daí, esse modelo originârio se encontra por toda
parte. Ete também se demultiptica sob a forma de subgrupos ou
escolas. Daí a persistência do gesto que circunscreve uma "dou-
trina" graças a um "assento institucional': '6 A instituiç;io social
(uma sociedade de estudos de...) permanece como a condiç;io de
15 Apesar de G. Bachclard, que escrcvia: ~A comunidade científica é estabe-
lecida a llIargem d:l sociedade social" (Le Rllliol1l/lisllle Ilppliqué. P. U.E,
1966. p. 23; cf. La [orlllllliol1 fie üspri/ 5dclltifrqllC. 1965. p. 32·34). A. Koyré
retomou a mesma tesE'. mas para defender "uma vida própria. uma his·
tória im:lnente" d;1 cicndn, que "não pode ser compreendida, ~en;'io el11
função de se us próprios problemas. de sua própria história" (Persl:fCcti-
\"es sur l'histoire des sdences. in l/m/cs fl'his/oirf de la pcmée scielltifrqu/!.
G:lllim:lrd . 1973, p. 399). Parece quc e.liste aqui. em seguimento:l Weber:
I") uma co nfusão entre diferen ciação e isolamento. como se:l instaura·
ção de um lugar "próprio" não estivesse ligada a uma redistribuição ge ra l
G ciosas o rganizações do corpo. Que o d iscu rso como tal obedeça a
)
e. pOrlamo, a redefinições reciprocas: 2 um a co ncepção da ~ história das
ideias" que nega toda pertinência às divisões sociais. (IUando os r.:cortes
epistemológicos são indissociav('lmente soci:lis e intelectuais.
16 GL!::N1SSON. Jean. t'histori ographie française co ntemporaine. In: Ving/.
âll'lIllIS (I.· r«lrache Iris/orif/II/! em france. C.N. R.S.. 1965. p. xxiv. n° 3. a
propósito dos I1wl(I"'s.
Capítulo rr . A Opcnlçiio 1l;~toriogr;Ílica 53
uma linguagem científica (a revista ou o Boletim, continuação c
equivalente das correspondências de ant igamente). Desde os "Ou-
serl'ateurs de /'homme" do século XV 11I , até a criação da VIe sec-
tioll de l'fcole pratique des hautes éllldes, pela tcole des Alt/wles
( 1947), passando pelas facu ldades do seculo XIX, cada "disciplin;l"
mantém sua ambivalência de ser a lei de um grupo e a lei de lima
pesqu isa científica.
A in stillliç,io não dâ apenas lima estabilidade social a uma
"doutrina". Ela a torna possível e, sub-repticiamente, a determina.
Não que uma seja a causa da outra. Não seria su ficiente conten -
tar-se com a inversão dos termos (a infraestrutu ra tornando-se a
"causa" das ideias), supondo entre elas o tipo de relação que esta-
beleceu o pensamento liberal quando encarregou as doutrinas de
co nduzirem a história pela m;io. É, antes, necessário rec usar o iso-
lamento desses lermos e, portanto, a possibilidade de transformar
uma correlação numa relação de causa e efeito.
É um mesmo mov imento qlte organiza a sociedade e as
"ideias" que nela circulam. Ele se distribui em regimes de mani -
festações (econômica, social, científica etc.) que constituem, entre
eles, funções imbricadas, porem, diferenciadas, das quais nenhu -
ma é a realidade ou a causa das outras. Dessa maneira, os sistemas
socioeconômicos e os sistemas de si mbolizaç;io se combinam sem
se identificar nem se hier;lfquizar. Uma mudança social e, desse
ponto de vista, comparâvel a uma modificação biolôgica do corpo
humano: constitui , como ela, uma linguagem, mas adequada a ou-
tros tipos de linguagem (verbal, por exemplo). O isolamento "me-
dico" do corpo resulta de um corte interpretativo que não dá conta
das passagens da somatização à si mbolização. Inversamente, um
discurso ideológicO se aju sta a uma ordem social, da mesma forma
como cada enunciado individual se produz em função das silen -
regras próprias, isso não o impede de articu lar-se com aquilo que
não diz - com o corpo, que fala à sua maneira."
17 O psicanalista did mesmo que a p"lavra ocuh:l e que o corpo (;lla.
S4 A Escrita da História . l\líçhcl de Cnl('au
r <::Ijllllllo 1[ • A Op<'Ta.;jo Iliswriografica
Em história, é abstraia toda "doutrina" que rccollca sua rela-
ção com a sociedade. Ela nega aqui lo em função de que se elabora.
Sofre, então, os efei tos de distorção devidos ;i eliminação daquilo
que a si lu;l de fato, sem que ela o diga ou o saiba: o poder que tem
sua lógica; o lugar que sustenta e "mantém" uma disciplina no seu
desdobramento em obras sucessivas etc. O discurso "científico"
que mio fala de sua relação com o corpo social é, precisam ente.
o objeto da história. Não se poderia tratar dela sem questionar o
próprio discurso historiográfico.
Em seu Rapport général de 1965 sobre a historiografia fra n-
cesa, J. Glénisson evocou algumas das articulações disc retas entre
um saber c um lugar: o enquadramento das pesqui sas por alguns
doutores que alcançaram os postos superiores do professorado e
que "decidem carreiras universitárias"; '8 a imposiç,io exercida pelo
tabu social da tese monumental;''I o laço entre a frágil influência
da teoria marxista e o recrutamento social do "pessoal erudi to,
possuidor de cáted ras e de presidências";:ro os efeitos de lima ins-
tituição fortemente hierarquizada e centralizada sobre a evolução
científica da hislóri,l, que é de uma notável "tranquilidade" há três
quartos de século.!' t também necessário sublinhar os interesses,
exclusivamente nacionais, de uma h istoriografia voltada para as
querelas internas (luta -se contra Seignobos ou a favor de Febvre),
circunscrit a pelo chauvi nismo linguistico da cultura francesa, pri-
vilegiando as expedições às regiões mais próximas da referência
18 GL~N[SSON, J. Op. cit. p. xxvi.
t9 lbid., p. xxiv. Sobro: I.'SSI.'S dois pOntos, cf. CLARK. Terry N.; CLAJU';,
Prisci1la P. LI.' palron o: son cl.' rde: elcf de UnÍ\ws il~ française (in ReVI//.'
Fmll(/liS<! lle Sod%gic. XII , 197 1,11.19-39). eSludo pe rspicaz que apenas
Mobser\'adores eXlernos~ poderiam eS(ro:\'er. Os autores dl.'finl.'l11 o ~siste ­
l11a" por quatro ell.'l11l.'nlos essenci:lis: a centmlizaç;io do controle. o caráter
monopolista do sislcm:l, o número reslrilO dos postos illlponantl's, a mul -
tiplicação das funçõl.'s do p:ltrono.
20 GL~N I SSON, /. Op. Cil., p. xxij.:~_~iii.
21 Ibid.,p.li.
55
latina (o mundo mediterr.1nico, a Espanha, a Itália ou a América
Lat ina), limitada, além disso, nos seus meios financeiros ele.
Enlre muitos outros, esses traços remetem o "estalulo de
uma ciência" a uma situação social que é o seu Iulo-dito. t, pois,
impossível analisar o discurso histórico independentemente da
instituição em runção da qllal ele se organiza silenciosamente; ou
son har com uma renovação da disciplina, assegurada pela ún ica e
excl usiva modificação de seus conceitos, sem que intervenha uma
tran sformação das situações assentadas. Sob esse aspecto, como
indicam as pesquisas de Jlirgen Haberm'ls, uma "repolitização"
das ciências humanas se impõe: não se poderia dar conta dela ali
permitir-l he o progresso sem uma "teoria crítica" de sua situação
atual na sociedadeY
A questão que a sociologia critica de Habermas aponta j<i está,
aliás, deline'lda no discurso hi stórico. Sem esperar as denúncias do
teórico o texto aSsume, ele próprio, sua relação com a instituição.
Por exemplo, o "ós do autor rem ete a uma cOllvellção (dir-se-ia, em
semiólica, que ele remete a um "verossím il enunciati vo"). No texto
ele é a encenação de um conlrato social "entre nós': t um sujeito
plural que "sustenta" o discurso. Um "nós" se apropria da lingua-
gem pelo fato de ali ser posto como 10culor. H Por ai se verifica
22 /. I-Iaberrnas criti ca em particular. nas teorias sociológicas (e pr~'Ciso acres-
centar: ou históricas) dI.' tipo puramenle tecni co e Mgnoseológi co~ o MSU_
n
bentendido de uma nrutmlidadr anlr os valores poslulados pelo ponto
de partida epistemológico de SU:lS pesquisas (A Il~l)'tische WiSSCllschaft -
thcorie und Dialcktik. in Zl'uS'lissc. 'Dlcodor IV. Adomo zum seclt:igslcll
Gcbllrtstag. Fr:lnkfurl ·sobrc·o·i\lcno, 1963, p. 500-50 1). Cf., do mesmo
autor, as obras de base que são Zur I.ogik da So:i/llwissc/lSduifl, Túbingcn:
,\ tohr, t967, I.' Tt,c1mik uml Wissctlsdlllft /lls MI'%gi/.'. Frankfurl-sobre-o-
,\Ieno: Suhrkamp, 1968 (trad. fr. I.lI rulmiqllc I'I/lI scil'Jlce cO llmw ~idéolo ­
gic". Gallimard . 1973).
23 Sobre o papel I.' o se ntido do .'11 ou do IIÓS, lugar feito na linguagem para
aqul.'lc que se Mapropria~ dda como locutor, cf. BENVENISTE. I:mile. Pro-
bft\ml's de /iJlguisliquc gélllfm/e. Gallimard, 1966, p. 258-266.
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58 1\ EScrita da l listória • ~Iichd di.' Certcau
difere ncia e se manifesta o poder de Ulll corpo de mestres e de
letrados). Esses "métodos" esboçam um comportamento institu-
cional e as leis de um meio. Nem por isso deixam de ser cientí-
ficos. Supor uma antinomia ent re uma análise social da ciência e
sua interpretação em termos de história das ideias é a falsidade
daqueles que acreditam que a ciência é "autônoma" e que, a título
dessa dicotomia, consideram como não pertinente a análise de de-
terminações sociai s, e como estranhas ou acessórias :IS imposiçôes
q ue ela desvenda.
Essas oposições não são acidentais. Elas fazem parte da pes-
quisa. Longe de representar a inconfessável intromissão de um
estranho no Santo dos santos da vida intelectual, co nstituem a tex -
tura dos procedimentos científicos. Cada vez mais o trabalho se
articula com base em equipes, líderes, meios financeiros e, portan-
to, também pela mediação de créditos, fundamentados nos privi-
légios que proximidades sociais Oll politicas proporcionam a tal ou
qual estudo. E, igualmente, o rganizado por uma profissão que tem
suas próprias hierarquias, suas normas centralizadoras, seu tipo de
recrutamento psicossocial. 26 Apesar das tentati vas feita s para rom -
per as fronteiras, esta instalado no círculo da escrita: nessa história
que se escreve, abriga prioritariamente aqueles que escreveram, de
maneira tal que a obra de história reforçasse uma tautologia 50·
ciocultural entre seus autores (letrados), seus objetos (livros, ma -
nuscritos etc.) e seu público (cultivado). Esse trabalho está ligado
a um ensil1o, logo, às flutuações de uma clientela; às pressões que
esta exerce ao se expandir; aos reflexos de defesa, de autoridade
ou de recuo que a evolllção e os movimentos dos estudantes pro-
vocam entre os mestres; à introdução da cultura de massa numa
universidade massificada que deixa de ser um pequeno lugar de
trocas ent re pesq uisa e pedagogia. O professor é empurrado para
a vu lgarização, dest inada ao "gra nde público" (estudan te ou não),
26 Ainda não existl', infrli zml'n tl', para o rl'crUlaml'nto dos historiado res U111
l'quivall'ntc do t'studo publicado por SA1NT-MAIUIN, r-,·toniqut' dt'o I.t·s
Fe1l1elioll5 soâa/cs til' lemd gllt'weul Sdt'lIliJiqlli'. Mouton, 197 1.
Capitulo 11 • " O peraç.lo HistoriogrMic;, 59
enquanto o especialista se exil;! dos circuitos de consu mo. A pro-
dução histórica se encontra partilhada entre a obra /iteraria de
quem "constitui autoridade" e o esoterismo cientíjico de quem "faz
pesquisa ..."
Uma situação social muda ao mesmo tempo o modo de tra-
balhar e o tipo de discurso. Isso é um "bem" ou um "mal"? Antes
de mais nada, é um fato que se detecta por toda parte, mesmo
onde é silenciado. Co rrespondências ocultas se reconhecem em
coisas que começam a se mexer ou a se imobilizar juntas, em seto-
res inicialmente tidos como estranhos. É por acaso que se passa da
"história social" à "história econôm ica" durante o entreguerras,27
por volta da grande crise econômica de 1929, ou que a hiSlória cul-
tura l lev<l vantagem no momento em que se impõe por toda parte,
com os lazeres e os mnss media, a importância social , econôm ica
e política da "cultura"? É um acaso que o "atomismo histórico" de
Langlois e Se ignobos, associado explicitam ente à soc iologia base-
ada na figura do "iniciador" (Tarde) e a uma "ciência dos fatos
psíquicos" (decompondo O psiquismo em "motivos': "impulsões"
e "represcntações"),28 tenha se combinado com o liberali smo da
burguesia reinante em fins do século XIX ? I! um acaso que os es-
paços mortos da erudição - aqueles que não são nem os objetos,
nem os lugares da pesquisa - venham a ser do Lozere ao Zambese,
regiões subdesenvolvidas, de maneira que o enriquecimento eco-
nômico cria hoje triagens historiográficas sem que a origem destas
seja confessada, nem a sua pertinência assegurada?
27 Aqui,;1 data essencial é a da tese de lEFEBVRE, Gi.'orgl'. PIIJ'5Im, dll llOrd
IIr la Fmllce Pt'lIdllllllll Rél'()/ulioll. 192-1.l\la5 toda uma p]l-iadi.' de histo-
riadores marca esta viragem: Hauscr. Séc. Simi3nd i.' outros.
28 nu/ror/,lcfio/l /lIIX é/udes !tis/oril/'H'S ( 1898) pl'rmancce o grande tivro de
uma historigrafia, mesmo quc não seja mais, h~ muito tempo, aquilo qUi."
foi par.! toda uma época: a estatua do Comand3nti.'. Surprt'rndi.'nternente,
o lemos com imeresse; ele é admirâ\'C1 em clareza. I! principalmrnte no
capitulo \'ii do livro J1e nos capítulos i-iv do livro J11, todos dr\"idos a Srig-
nobos, qur sr explicitam as rderencias científicas dos autores.
60 1\ Escri ta da I-listúri;, • i\lichel dl' Cl'rleau
Da reun ião dos documentos à redação do livro. a prática his-
tórica é inteiramente relativa à estrutura da sociedade. Na França
de ontem, a existência de pequenas un idades sociais, solidamente
constitu ídas, defin iu diversos níveis da pesq uisa: arquivos circ uns-
critos aos aconteci mentos do grupo e ainda próximos dos docu-
mentos de família ; uma categoria de mecenas ou de autoridades
que se propõe a "proteção" de um patrimôn io. de clientes ou de
ideias; um recrutamento de erudi tos-letrados devotados a uma
causa e adotando com relação à sua grande ou pequena pát ria a di-
visa dos Monumenta Gemulllie: Sallct/ls amor patrie dat al1imuII/;
obras "consagradas" a assuntos de interesse local, fornece ndo lima
linguagem própria para leitores limitados, porém fieis etc.
Os estudos feitos a respeito de assu ntos mais vastos tampou-
co escapam a eSSa regra, mas n unid ade socinl da qual dependem
não é mn is do mesmo tipo: não é mais uma loca lidade, mas a ill-
tclligelltsia acadêmica. depois universitária, que se "dist ingue" ao
mesmo tempo da "pequena história': do provincianismo e da ar-
raia millda antes que, tendo aumentado seu poder com a crescente
expansão centralizadora da Universidade, imponha as normas e
os códigos do evangelismo leigo, li beral e patriótico elaborado no
séc ulo XIX pelos "burgueses co nqlli stadores~
Tanto mais que, quando Lucien Febvre, durante o entreguer-
ras, declara querer retirar da história do século XV I "o hábito" das
querelas de antanho e libertá -la. por exemplo, das categorias im -
postas pelas guerras entre católicos e protestantes,29 ele demonstra
inicialmente o esmaecimento das lutas ideológicas e sociais que,
durante o século XIX, reaproveitam as bandeiras dos "partidos" re-
ligiosos a serviço de campanhas homólogas. Na verdade, as dispu-
tas religiosas prosseguiram durante muito tempo. ainda que em
terrenos não religiosos: entre republica nos e tradicionalistas, ou
entre a escola pública e a escola "livre': Mas quando essas lutas per-
delll sua importància sociopolítica após a guerra de 19 14, quando
as forças que elas opu nham se fragme ntam em compartimen tos
29 FEBVRE, L. Ali roua rdigic llx dll XVe siec/c. SC\'pcn, 1957, p. 146.
Capitulo J t • A Operação IlislOriogr;ífica 61
diversos, quando se formam "reu ni ões" ou "frentes" com un s e a
economia organiza a li nguagem da vida francesa, tOTl/a-se possível
considerar Rabelais como cristão - quer dizer. testemu nha de um
tempo pass(/do -, libertar-se de divisões que não mais se inscrevem
no vivido de uma sociedade e, portanto. de não mais privilegiar os
Reformados, ou os Democratas cristãos na historiografia un iver-
sit ária politica ou rel igiosa. O que isso indica não são concepções
mel ho res ou mais objet ivas. Uma muda nça da sociedade perm ite
ao historiador um afastamento com relação àquilo q ue se torna,
globalmente, um passado.
Desse ponto de vista, L Febvre procede da mesma manei-
ra que os seus predecessores. Estes adotavam co mo postulados de
sua compreensão a estrutura e as "evidências" socia is de seu grupo,
com o risco de fazê-los sofrerem um desvio crítico. O fundador
dos Al1l1a/cs não faz ele a mesma coisa quando promove a Busca
c uma RecollqllistaJ{J histórica do "I-Iomem': imagem "sobera na"
no centro do universo de seu meio burguês;J! quando chama de
"h istória global" o panorama que se abre aos olhos de uma ma -
gist ratura universitária; quando, com a "mentalidade': a psicologia
coletiva" e todo o instrumental do ZlIsall/l/lel1hallg, ele situa lima
est ru tura ainda "idealista,)! que funciona como antídoto da análise
marxista, e esconde sob a homogeneidade "cultura l" os conOitos de
classe nos q uais ele mesmo se encont ra implicado?Jl Nem por ser
30 NT - Rewnquisla. no o riginal.
31 ~Tu do aquilo qur, srndo do homem, dependr do homrm, ser\'(' ao homcm.
exprime o homrm, significa a presença. a atil'idade, os gOSlos e as lllaneir:lS
de se r do ho mem': decl:lr:l ele nos Com/JIIISpor /'hl5toirc. A. Colin, t 953. p.
-128. Desdc en tão a im:lgern criada por csse otimismo conq ui stado r perdeu
a sua credibilidade,
32 Henri Berr assinalou, já em 1910, o caroter "idealiSla" da histó ri a segundo
FEBVRE. L (ReI'lIC de Sy"lhcse Historiquc. XXX. 1920, p. 15).
33 Sobrc a "teoria do ZIISIIIIIIllCl1lulI1g" flutuante e ri ca em sua obra, cf. II'IANN,
Han$ Dietcr., l.lIde ll Peb!'rc. 1.11 PC ' lSfr I'iww/e d'rm, historiel/. A. Colin,
197 1, p. 93· 1 t9. L. Febl're se refere à "cl3sse" para rx plic3 r o século XV t (cf.,
por excm plo, POlir unI' Ms/oire li pllrt emicrc, I'aris. 1963, p. 350-360. sobre
3 burguesia), mesmo que seja com muila reti cê ncia (ib id., p. 185- J99). mas
62 A Escrita da História . h licl1l'l de Cerleau
tão genial e nova sua história está menos marcada, socialmente, do
que aquelas que rejeita, mas se ele pode supeni-Ias é porque elas
correspondem a situações passadas, e porque um outro "hábito"
lhe foi imposto, de confecção, pelo lugar que ocupa nos conflitos
do seu presente.
Com ou sem o fogo que crepita nas obras de L. Febvre, a mes-
ma coisa ocorre por toda parte hoje (mesmo deixa ndo de lado o
papel das d ivagens sociais e políticas até nas publicações e nomi-
nações, onde funcionam os interditos tácitos). Sem dúvida não se
trata mais de uma guerra ent re os partidos, ou entre os grandes
corpos de antigamente (o Exército, a Universidade, a Igreja etc.);
é que a hemorragia de suas forças provoca a folclorização de seus
programas).! e as verdadeiras batalhas não se resolvem mais aí. A
Kneutralidade" remete à metamorfose das convicções em ideolo-
gias, numa sociedade tecnoc rát ica e produtivisla, anônima, que
não sabe mais designar suas escolhas nem indicar seus poderes
(para ratificá-los ou confessá- los). Assim, na Universidade coloni-
zada, corpo privado de autonomia na medida que se tornou enor-
me, entregue agora às instruções e às pressões vindas de outras par-
tes, o expansionismo cientificista ou as "c ruzadas" humanistas de
ontem são substituídas por retiradas. No que concerne :is opções,
o silêncio substitui a afirmação. O discurso assume uma cor de pa-
rede: " neutra'~ Transforma -se mesmo numa maneira de defender
lugares em vez de ser o enunciado de "causas" capazes de articular
um desejo. Ele não pode ma is falar daquilo que o determina: um
labirinto de posições a respeitar e de influências a solicitar. Aqui,
o não-dito é ao mesmo tempo o inconfessado de textos que se tor-
de não faz intervir o problema de sua própria localização social quando
analisa sua prática e seus conceitos históricos. Quanto ao antimarxisrno,
ele se manifesta. por exemplo, no resumo de Daniel Guc rin (Combllls pour
/"IJistoire, op. cit .. p. 109- (13 ), no qual, aliás. a aproximação de Michdct
com ]\-tarx é. para L. Fcbvrc, um Minccsto':
34 Cf. CERTEAU. r-,.1. de.l.1I cu/lure/IU p/urie/ 10118, 1974. p. 11 -3 4: " l.es rcvo-
lutions du cro)'abl ...·:
Capítulo 11 • A O pCr3ç-.ío Ilísloriográlica 63
naram pretextos. a exterioridade daquilo que se faz com relação
àquilo que se diz, e a eliminação de um lugar aLi de uma força que
se articula numa linguagem . Não seria isso, aliás, o que "trai" a re-
fe rência de lima historiografia "conservadora" a um " inconscien-
te': dotado de uma estabilidade mágica, e transformado em fetiche
pela necessidade que se tem, "apesar de tudo': de afirmar um poder
próprio do qual j:.i se "sabe bem" que desapareceu?JS
o que permite e o que proíbe: o lugar
Antes de saber o que a história diz de uma sociedade. é neces-
sário saber como funciona dentro dela. Estsa instituição se inscreve
num complexo que lhe permite apenas um tipo de produção e lhe
proíbe outros. Tal é a dupla função do lugar. Ele tOnla possíveis cer-
tas pesqui sas em função de conjunturas e problemáticas comuns.
MaS torna outras impossíveis; exclui do discurso aquilo que é sua
cond ição num momento dado; representa o papel de lima censura
com relação aos postulados presentes (sociais. econômicos, poli -
ticos) na análise. Sem dúvida, essa combinação entre permissão e
illterdição é o ponto cego da pesquisa histórica e a razão pela qual
ela não é compativel com qualquer coisa. ~ igualmente sobre essa
combinação que age o trabalho dest inado a modificá-la.
De toda maneira, a pesquisa está circunscrita pelo lugar que
define uma conexão do possivel e do impossível. Encara ndo-a ape-
naS como um "d izer': acaba r-se-ia por reintroduzir na história a
lenda, quer dizer, a substituição de um não-l ugar ou de um lugar
imaginário pela art iculação do discu rso com um lugar social. Pelo
contrário, a história se define inteira por uma relação da fi/lguagem
com o corpo (soc ial) e, portanto, também pela sua relação com os
limites que o corpo impõe, seja à manei ra do lugar particular de
onde se rala, seja à maneira do objeto outro (passado, morto) cio
qual se fala.
35 MANNONI. O. Jc s:lis bicn, mais quand Illcrne. 11\:_ _ . C/f/s pour
/'imagillllire ouli\utre Sctlle. Seuil. 1969, p. 9-33.
64 A Es(rila 11" Ili'16ria • ,\lichel de Co:rleau
De parte a parte, a história perma nece configurada pelo siste-
ma no qual se elabora. Hoje como ontem, é determinada por uma
fabricação localizada em tal ou qual ponto desse sistema. Também
a consideração desse lugar, no qual se produz, é a única que permite
ao saber historiogrâfico escapar da inconsciência de uma classe que
se desconheceria a si própria, como classe, nas relações de produ-
ção, e que, por isso, desconheceria a sociedade onde estâ inserida.
A articulação da história com um lugar é a condição de uma aná-
lise da sociedade. Sabe-se, aliás, que tanto no marxismo quanto no
freudismo não existe análise que não seja integralmente dependen-
te da si tuação criada por uma relação, social ou analít ica.
Levar a sério o seu lugar não é ainda explicar a história. Mas
é a condição p;1ra que alguma coisa possa ser dita sem ser nem
legendâria (ou "edificante"), nem atópica (sem pertinência). Sendo
a denegação da particu laridade do lugar o próprio princípio do
discurso ideológico, ela exclui toda teoria. Bem do que isso, ins-
talando o discurso em um não-lugar, proíbe a história de falar da
sociedade e da morte, quer dizer, proíbe-a de ser a história.
11. UMA PRÁTICA
"Fazer história" é uma prâtica. Sob esse ângulo podemos pas-
sar para uma perspecti va mais pragmâtica, considerando os cam i-
nhos que se abrem sem se prender mais à situação epistemológica
que, até aqui, foi desvendada pela sociologia da historiografia.
Na medida em que a Universidade permanece estranha à prâ-
tica e à tecnicidade,J6 nela se classifica como "ciênc ia auxiliar" tudo
o que coloca a história em relaç;io com técnicas: ontem a epigrafia,
a papirologia, a paleografia, a diplomâtica, a codicologia etc.; hoje
a musicologia, o "foldorismo': a inform.itica etc. A história não
começaria senão com a "nobre palavra" da interpretaçiío. Ela seria,
finalmente, uma ;nte de discorrer que apagaria, pudicamente, ves-
36 Cf. BON, Frédérk; BURN1ER, r.L A. Les Norl\·eurl.'l: II1/dlc(l uies. Scuil.
1971. p. ISO; CERTEf\U, ~-1. de. 1.11 CulturulIIl'ir4rid, ap. dt., p. 111 - 137;
uLes Uni\'crsités devant 13 cuhurc dc rnasse':
CapItulo 1I • A OI'l'r'I<;'\O 11i~IMi()gr,\!;c'a 65
tigios de um trabalho. Na verdade, exi ste ai uma opção decisiva. O
lugar que se dá à técnica coloca a história do lado da literatura ou
da ciência.
Se é verdade q ue a organização da história é relativa a um
lugar e a um tempo, isso ocorre, inicialmente, por causa de suas
técnicas de produção. Falando em geral, cada sociedade se pensa
"historicamente" com os instrumentos que lhe s50 próprios. Mas
o termo instrumento é equívoco. Não se trata apenas de meios.
Como Serge Moscovici demonstrou magistralmente,17 ainda que
numa perspectiva diferente, a história é mediatizada pela técni ca.
Dessa maneira se relativiza o privilégio que a história social teve
durante todo O século XIX ~ e, frequentemente, ainda em nos-
sos dias. Com a relação de uma sociedade consigo mesma, com
o "tomar-se outro" do grupo segundo llI11a dialética IlIImal/a, se
combina, central na atividade científica presente, o futllro da IU/lu -
reza que é "simultaneamente um dado e uma obra". 18
É nessa fronteira mutável, entre o dado e o criado, e finalmen-
te entre a natureza e a cultura, que ocorre a pesquisa. A biologia
descobre na "vida" uma linguagem falada antes que apareça um
locutor. A psicanálise revela no discurso a articulação de um de-
sejo constituído diferentemente do que o diz a consciência. Num
campo distinto, a ciência do meio ambiente não mais permite iso-
lar das eslmtums naturais, que transforma, a ex tensão indeflllida
das construções soc iais.
Esse imenso canteiro de obras opera uma "renovação" Ida
natureza) , provocada pela nossa intcrvenção':J9 Ele "liga diferen-
temente a humanidade e a maléria':40 De tal maneira que a ordem
social se inscreve como forma da ordem natural, e não como en-
tidade oposta a ela".41 Existe ai com que modificar profundamente
37 E>Slli sur /'histoire de la !lature. Flammarion, 1968.
38 OI'. (il., p. 20.
39 lbid.
'10 Op.dl.,p.7cll.
4[ Op. d t" p. 590.
 66 ,\ Escri ta da llistoria . ,\lichd de Ce rt cau
uma história que teve como "setor cent ral" "a história social, quer
dizer, a história dos grupos sociais e de suas relações':4! Esta jd está
se voltando pouco a pouco par,l o eeonõmico, depois para as "men-
tal idades'; osei!;lIldo assim entre os dois termos da relação que a
pesquisa privilegia cada vez mais. Os sinais se multiplicam. Uma
orientação que esboçava, no entreguerras, o interesse pela geogra -
fia e por uma "histó ri a dos homens em suas relações estreitas com
a terra"41 se acentua com os estudos sobre a construção e as com-
binações dos espaços urballos,~1 sobre a transumâneia de plantas
e seus efeitos socioeeonô mieos,~5 sobre a história das tecnieas,-16
sobre as mut ações da sexualidade, sobre a doença, a medicina e a
história do eorp047 etc.
42 o
LAIIROUSSE, Ernesl. "lntroJuctiml': In: _ _ C /-/istoirc socialc. P. U. E,
1967. p. 2.
H A expressão é Je' BRAUDEl.., Fernand. Leço/! immgurale au Col/ege de
I'rallCt', 1950. Em La Cala/ogl/e dans /'Espllg/!e mot/erne (Sel'pen, 1962, I. I,
p. 12), Pierre Vilar lembra que entre as duas guerras "as grandes questões
das quai s adivinhál'amos, mais ou menos confusamente, que viriam a do -
minar o nosso séc ulo não nos eram propostas senão atral'és das lições de
nossos mestro:s go:6grafos'":
44 Cf., particularmente, CHOAY, François. L'hisloi re et la méthode em urba -
nisme. A/males 1:'.5.C., XXV, 1970 (número espccial sob re '"Histoirc et urba-
nisation"), p. 1.143- 1.154, e também THERNSTRO""I, Stephan. Retlections
on the Nel\' Urhan HislOr)'. Dacdallls, p. 359· 376, Spring, 1971. L'Enqllêle
s/lr Ic britimelll (1I10uton, 1971 ), dirigida por Pio:rre Chaunu, é tambem um
ótimo exemplo do nOl"o in teresse dirigido 3S organizaçõcs espaciais.
45 Assim como o capitulo sobre ~a cil'ilização I'esetal ~ ('111 I.AD UR IE, F.mma-
nucl I.e Ror. Lcs PI/)'$alls d/I Lallgllrdo, Sel'l>en, 1966, p. 53-76. Este estudo
M stallrla rrl (in formações secundárias), ele os transporta de uma
muito nOI'O sobre os ufundaml'"n tos biológicos da I'ida rlll"3l mostra que os
M
,
I'egelais são "obj('tos da história pdo próprio fato de sua plasticidade, das
modificaçõcs incessantes que os homens lhes impõcn{. Infelizmente l'"le
desap~reccu da edição de bolso, Flanu1l3rion. 1969.
46 Cf. a grande I-listoirc gbréralc des Icc/miques, sob :I direção de DU1I1AS,
Mauri ce. Paris: P.V.E, 1963-1968.4 t., OU os trabalhos dc Gll..LE, Bertrand
(I.cs I/!gé/!iellrs de la RClJaisslll/ce, 196·1 etc.).
'17 Cf. o numero especial dos A/lIIales E. S. c., XXIV, nOl'embro-dezembro
1969, "Histoirc biologique et soci~té"; FOUC AU I.T, Michel. Mli5JlII/Ct' (k
Capitulo 1I • 1\ Opc raç:io Historiogdfic;1 67
Mas esses campos abertos à hi stória não podem ser apenas
objetos novos forn ecidos a uma inst ituição imutável. A própria
história entra nessa relação do disCltrso com as técnicas que o pro-
duzem . npreciso encarar como ela trata os elementos "natu rais"
para transformd -Ios em um ambiente cultural , como faz aceder à
simboli zação lit erári a as transforma ções que efetuam na relação
de uma sociedade com a sua natureza. De resíduos, de papéis, de
legumes, até mesmo das geleiras e das "neves eternas';-I8 o hi sto-
riador faz Of/l ra coisa: faz deles a história. Artifieializa a natureza.
Participa do trabalho que transforma a natureza em ambiente e,
assim , modifica a natureza do homem. Suas téc nicas o situam , pre-
cisa mente, nessa articulação. Colocando-se no nível dessa prática,
não mais se encontra a dicotomi a que opõe o /latt/ral ao social, mas
a conexão entre uma socia lizaçii.o da natureza e uma "naturaliza-
ção" (ou materialização) das relações sociais.
A artiwfação /tatureza-wltf/ra
Sem dúvida , é demasiado afi rmar que o historiador tem "o
tempo" como "material de análise" o u como "objeto específico':
Trabalha, de acordo com os seus métodos, os objetos físicos (pa-
péis, pedras, imagens, sons etc.) que dislinguem , no CO llt ;1It1ll1ll do
percebido, a organização de uma sociedade e o sistema de per-
tinências próprias de uma "ciência': Traba lha sobre um material
para transform á-lo em história. Em preende uma manipulação
que, como as outras, obedece a regras. Ma nipu lação semelhante
é aquela feila com o mineral já refinado. Transformando inicial-
mente matérias-primas (uma in formação primá ria) em produtos
região da wltura (as "wriosidades", os arquivos, as coleções etc.)
I" CIi'lique. 1>. U. E, 1963; PETE I~. jcan- I)krrc. Le Corps du délit. NOII\'e1lc
Rel'/lc de /'sYc//lUwlist'. nO 3, p. 7 J - 108, 197 1 etc.
48 LADUR1E, Emmanuell..e Ro)'. Hist();re {/11 dill1l11 (fepl/;s fim mil. FIam ·
marion, 1967.

68 A Esc rita da História · l\lichd de Ü'rlcau
pa ra outra (a história). Uma obra "histórica" participa do movi -
mento através do qual uma sociedade mod ificou sua relação com
a natureza, transformando o natural em utilitário (por exemplo, a
floresta em exploração), ou em estético (por exemplo, a montan ha
em paisage m), ou fazendo uma in stituição social passar de um es-
tatuto para outro (por exem plo, a igreja convertida em museu).
Mas o hi storiador não se content a em traduzir de uma lin-
guagem cultura l para outra, quer dizer. em transformar produções
sociais em objetos de história.
Ele pode tra.nsforma r em cultura os elementos que extrai de
campos naturais. Desde a sua docu ment ação (na qual ete introduz
ped ras, sons etc.) até o seu livro (em que plantas, micróbios, gelei-
ras adquirem o estatuto de objetos simbólicos), ele procede a um
deslocamento da articul ação natu reza/c ultura. Modifica o espaço,
da mesma for ma que o urbanista, quando integra o campo no sis-
tema de comun icação da cidade, o arquiteto quando transforma O
lago em barragem , Pierre Henry quando tran sforma o rangido de
uma poria em tema musical, e o poeta que altera as relações entre
'"'ruído" e "mensagem ..." Modi fi ca o meio ambiente através de uma
série de transformações que deslocam as fronteiras e a topografia
interna da cult ura. Ele "civiliza" a natureza - o q ue sempre signifi-
cou que a "colon iza" e altera.
Constat a-se hoje, é verdade, que um volume crescente de li -
vros históricos se torna romanesco Oll legend ário, e não mais pro-
duz essas tra nsformações nos campos da cultura. Enquanto, pelo
contrário, a "literatura" visa a um trabalho sobre a linguagem , e o
tex to põe em cena "um movimento de reorgallização, uma circula-
ção mortuária que produz d est ru indo". ~9 Isso q uer dizer que, assim,
a história deixa de ser "cie ntífi ca~ enquanto a literatura se torna tal.
Quando o historiador supõe que um passado já dado se desvenda
no seu tex to, ele se alinha com o comportamento do consumidor.
Recebe, passivamente, os objetos di stribuídos pelos produtores.
49 ROUSSEL, Ra)'n1ond. Imprwioll5 d'Afri(jllc. Gnllimnrd, 1963. p. 209. Cf.
KR ISTE VA, Julia. Sêmeiôlikê. Rcchcrchcs pOlir !/Uc srlllatllll)'se. Scuil, 1969.
p. 208·245: Kl.a productivilé dite lexlc':
Capitulo 11 • t\ Operação Hisloriográfica 69
Em história, como alhures, é científica a operação que trans-
forma o "meio" - ou que faz de uma organizaçào (social, literária
etc.) a condição e o lugar de uma trallsformação. Dentro de uma
sociedade ela se move, pois, num dos scus pontos est ratégicos, a
articulação da cultura com a natureza . Em história, ela instaura
um "governo d,l mlhtreza': de uma forma que concerne à relação
do presente com o passado - não se ndo este um "dado", mas um
produto.
Desse traço comum a toda pesquisa científica, precisamente
onde ela é uma técnica, é possível realçar as marcas. Não pretcndo
retornar aos métodos da história. Através de algumas sondagens
trata-se apenas de evocar o tipo de problema teórico que suscita,
em história, o exame de seu "aparelho" e de seus procedimentos
técnicos.
o estabelecimento das fontes 011 a redistribuição do espaço
"-
./ Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de
. / transformar em "documentos" certos objetos distribuídos de o utra
maneira . Essa nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na
realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples
fa to de recopiar, transcrever ou fotog rafar esses objetos mudando
ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto. Esse gesto consiste
em "isolar" um corpo, como se faz em fí sica, e em "desfigurar" as
coisas para constituí-las como peças que preencham lacun as de
um conjunto proposto a priori. Ele fo rma a "coleção". Constitui as
coisas em um "sistema marginal", como diz Jean Baudrillard;50 ele
as exi la da prática para estabelecê- Ias como objetos "abst ratos" de
um saber. Longe de aceitar os "dados': ele os constitu i. O material
é criado por ações combinadas, quc o recortam no unive rso do
uso, que vão procurá-lo também fora das fronteiras do uso, e que
o destinam a um recmprego coerente. E o vestígio dos atos que
50 o
Ut\UDRILI.ARD, Jean. I.a collcction. In: _ _ tc S)'5/CI1!C dC$ ol!jcc/s.
GaUilllard, 1968. p. 120- \ 50.
70 A Escrita da História . i\'lichel de Crrte;1u
modificam uma ordem recebida e uma visão socia!.'l Instauradora
de signos, expostos a tratamentos especificos, essa ruptura não é,
pois, nem apenas nem primordi almente, o efeito de um "olhar". É
necessária aí uma operação técnica .
As origens de nossos Arquivos modernos já implicam, com
efeito, a combinação de um grupo (os "eruditos"), de lugares (as
"bibliotecas") e de práticas (de cópia, de impressão, de comunica-
ção, de classificação etc.). É, em pontilhados, a indicação de um
complexo técnico, inaugu rado no Ocidente com as "coleções': reu-
nidas na Itália e, depois, na França, a partir do século XVI, e fi nan-
ciadas pelos grandes Mecenas para se apropriarem da história (os
Médicis, os duques de Milão, Carlos de Orleães e Luís XII etc.).
Nelas se conjugam a criação de um novo trabalho ("colecionar"), a
satisfação de novas necessidades (a justificação d e grupos familia-
res e políticos recentes, graças à instauração de tradições, de cartas
e de "d ireitos de propriedade" especificos), e a produção de no-
vos objetos (os documentos que se isolam, conservam e recopiam)
cujo sentido, de agora em diante, é definido pela sua relação com
o lodo (a coleção). Um a ciência que nasce ("a erudição" do século
XVII) recebe com esses "estabelecimentos de fontes" - instituições
técnicas - sua base e suas regras.
Inicialmente ligado à at ividade jurídica dos homens da pena
e da toga, advogados, funcionários, conservadores de arquivos,52
o empreendimento se faz expansionista e conquistador depois de
passar pelas mãos dos especialistas. É produtor e reprodutor. Obe-
51 Sob rssr ãngulo, os "documentos" históricos podrm ser assimilados aos
"signos icónicos" de que Umberto Eco analisa a organização: des "repro-
duzem'; diz de. "algumas condições da prrcepção comum com basr nos
códigos percrptivos normais" (Sémiologir drs messages visuds. COIIIIIIII-
niwtiolls, nO 15, p. 11 -5 1. 1970). Digamos, nesta perspectiva, que existe
trabalho cientifico onde existe mudança nos "códigos de reconhecimento"
e nos "sistemas de rxpectação':
52 Cf. ARI~S, Philippr. LI' temps de J'/ristoirr. Mónaco: t:d. du Rocher, 1954.
p. 214 -2 18.
J
Capitulo 11. A Operação Historiográfica 71
dece;\ lei da multiplicação. A partir de 1470, ele se alia à imprensa:;]
a "coleção" se torna "biblioteca'~ Colecionar, durante muito tempo,
é fabricar objetos: copiar ou imprimir, reunir, classificar... E, com
os produtos que multiplica, o colecionador se lorna um ator na
cadeia de uma história por fazer (ou por refazer), de acordo com
as novas pertinências intelectuais e soc iais. Dessa maneira, a cole-
ção, produzindo uma transformação dos instrumentos de traba-
lho, redistribui as coisas, redefine unidades de saber, instaura um
lugar de recomeço, construindo uma "máquina gigantesca" (Pierre
Chaunu) que tornará possível uma outra história.
O erudito quer totalizar as inumeráveis "raridades" que as
trajetóri as indefinidas de sua curiosidade lhe trazem e, portanto,
inventar linguagens que assegurem a compreensão delas. A julgá-
lo pela evolução de seu trabalho (passando por Peiresc e Kircher,
até Leibniz), o erudito se orienta, desde o final do século XVI, para
a il1venção metódica de novos sistemas de signos, graças a proce-
dimentos analíticos (decomposição, recomposição),S4 Ele está pos-
suído pelo sonho de uma taxonom ia totalizante e pela vontade de
criar instrumentos universais adequados a essa paixão pelo exaus-
tivo. Por intermédio da cifra, central nessa "arte do deciframento",
existem homologias entre a erudição e as matemáticas. Na verdade,
à cifra, código destinado a construir uma "ordem': se opõe, então,
o símbolo: este ligado a um texto recebido, que remete a um sentido
owlto na imagem (alegoria, brasão, emblema etc.), implica a neces-
sidade de um comentário autorizado da parte de quem é suficiente-
53 OU'\', Gilbt"rl. Les bibliothêques. In: L'Histoire et 51'S IIZctlJOdcs. Enc. Pléia-
de, 1961, p. 1066, sobre o acordo çoncluído entre Guillaume Fichrt r tr~s
impressorrs alemães com a finalidade dI' fundar a oficina tipográfica da
Sorbonnr e substi tuir a cópia de documentos que G. Fichet assrgUfava, em
parte ele mesmo, para a biblioteca do colégio da Sorbonne.
54 Para o erudito, srndo a sua "biblioteca» aquilo que t"le C01 IStill/; (e niio aqui-
lo que reçebc, como será o caso, mais ta rdr, dos "conservadorrs" das Bi-
bliotrcas criadas antes deles), ele parece ter continuidade nela, no terreno
da escritrl, entre a produção da colrção de textos e a produção de c/rlll'cs
destinadas a decodificá-las.
72 t\ Escrita li,l t-lbtóri,l • /l.lichc1 til- CC"rl c:!u
mente "sábiO" ou profundo para reconhecer esse scn tido. S5 Mas, do
ponto de vista da cifra, desde as séries de "raridades" até as lingua-
gens artificiais ou un iversais - digamos de Peiresc a Leibniz -, se os
limiares c os desvios sào numerosos, inscrevem -se, entretanto, na
linha do desenvolvimento que instaura a cOlIstmçlio tle uma lingua-
gem r, portanlo, a produção de técnicas c de objetos próprios.
O estabelecimento das fontes solicita, também, hoje, um ges-
to fundador, representado. como ontem, pela combinação de um
lugar, de um aparelho e de técnicas. Primeiro indício desse des-
locamento: não há trabalho que não tenha que utilizar de outra
mal/eira os recursos conhecidos e, por exemplo, mudar o funcio-
namento de arquivos definidos, até agora, por um uso religioso ou
"familiar':S6 Da mesma forma, a título de novas pertinências, cons-
titu i como documentos utensílios, composições cu liná rias, cantos,
imagens populares, uma disposição dos terrenos, uma topografia
urbana etc. Não se trata apenas de fazer falar esses "imensos seto-
res adormecidos da documentação"5~ e d ar voz a um sile ncio, ou
efetividade a um possível. Significa transformar alguma coisa, que
tinha sua posição e seu papel, em alguma Ol/tra coisa q ue funciona
diferentemente. Da mesma forma não se pode chamar "pesquisa"
ao estudo que adota pura e sim plesmente as classificações do on -
tem que, por exemplo, "se atêm" aos li m ites propostos pela sé rie H
dos Arquivos e q ue, portanto, niio define um campo objetivo pró-
prio. Um trabalho é "cientifico" quando opera lima retlislribuição
do espaço e consiste, primordialmente, em se dar um lugar, pelo
55 Cf. V. DAVID. Madeleine. 1.c Déb,,' mr Ics êerilurt'S cl /'Iliáogl)'plu: ,,!IX
X.VI/c 1'1 X.Vl/le siecles. Se\·pcn. 1965. p. 19·30.
56 Assim. no seu Guidl' d('$ iIr('hi\'Cs diQeé$llilJcs frolJ(lIiSCS (Centre d' Histoire
du Catholidsnll'. l)'on. 1971), jacques Gadil1e sublirna MO valor drstes ar-
quivos para a pesquisa hist6rica- notando que des permitcm a constituição
de novas wsêries- prrdosas para uma história econÔmica ou uma história
das mcnt;llidades (op. ci!.. p. 7· 14).
5i FURET, François. I~h i stoirc quantitative t't la construction du fait histo·
rique. In: lE GOI:!=, I.; NORA. I': FI/i/'C l/e flrisloin'. Galli mard, 1974. t. I. p.
49.
Capitl1lo 11 • A Opaaçào Ili'loriogrMi<.:a 73
"estabelecimento das fontes" - quer dizer, por uma açflo instaura-
dora e por técnicas transformadoras.
Os procedimentos dessa instiluição suscitam hoje problemas
mais fundamen tais do que os apontados por esses primeiros indí -
cios. Poi s cada práti ca histórica 5S n.io estabelece seu lugar senào
graças ao aparelho que C, ao mesmo tempo, a condição, o meio
e o resultado de um deslocamento. Semelhantes às fábricas do
paleolítico, os Arquivos nacionais ou municipais constituem um
segmento do "aparelho" que, ontem, determinava as operações
adequadas a um sistema de pesqu isa. Mas não se pode tentar mll -
dar a ulilização dos Arquivos sem que sua forma mude. A mesma
instituição técnica impede que sejam fornecida s respostas novas a
questões diferentes. Na verdade, a situaçiio é inversa: outros "apa-
relhos" permitem agora, .1 pesquisa, questões e respostas nov'1 5.
Certamente, uma ideologia do "fato" histórico "real" ou "verda -
deiro" pai ra ainda na atmosfe ra da época; prolifera mesmo numa
literatura sobre a hi stória. Mas é a folc\orização de prát icas anl igas:
esta palawa congelada sobrevive a bata lhas finda s: ela apenas mos-
tra o atraso das "ideias" recebidas com relação às práticas que cedo
ou tarde vão modificá-la s.
A transformação do "arqu ivístico" é o ponto de partida e a
condição de uma hislória nova. Está destinada a represen tar o
mesmo papel que;l "máquina" erudita dos seculos XVII e XVII!.
Eu não usaria senão um exemplo: a intervenção do cOl1lp/ltatlor.
François FureI demonstrou algu ns dos efeitos produzidos pela
"const it uição de novos arquivos, conservados em fitas perfuradas":
não h;í significante senão em função de uma serie, e mio com rela -
ção a uma "realidade"; não e objeto de pesquisa senão aqu ilo que
é formalmente construído, antes da programação elc. ~ Isso não é
ainda senão um elemento particular e quase um sintoma de uma
58 f:. neccssário entrndtCr po r isso não os rnétodos p:Jrticulares a tal Oll qual
histori ador. lllas como, nas ciências exatas. o (Olllple.I(Q tlc procedimentos
quc caracteri za um periodo ou um setor da pesquisa.
59 FURET. E "L'historie quantitative."M Op. clt. p. 47 ..18.
74 A Escrita da História . " tichel de Cl'rl eau
institu ição científica mais ampla. A análi se contemporânea altera
os procedimentos ligados â "análise simbólica" que prevaleceu a
partir do roma ntismo e que buscou recollllecer mil seI/tido dado
e OCIII/o: ela reencon tra a confiança na abst ração que é hoje um
conjunto formal de relações a li "estrutura':6(l Sua prática consiste
em COllstruir "modelos" propostos decisoriamenle, em "substituir
o estudo do fenôme no concreto pelo estudo de um objeto consti-
tuído por sua definição", em julgar O valor científico desse objeto
segundo o "ca mpo de questões" a que permite responder e segu n-
do as respostas que fornec e, em "fixar os limites da significabilida-
de deste modelo".61
Esse último ponto é capital em história. Pois, se é verdade
que de um modo geral a aná lise cie ntífica contemporânea preten -
de recol/s/ruir o objeto a partir de "s imu lacros" ou de "cená rios':
quer dizer, adquirir, com os modelos relacionais e as linguagens
(ou metalinguagen s) que ela produz, o meio de mult iplicar ou de
transformar sistemas con stituídos (físicos, literários ali biológi -
cos) , a h istória tende a evidencia r os "limites da significabil idade"
desses modelos ou dessas linguagens: reencontra, sob essa forma
de limi/e relativo a modelos, aquilo que ontem aparecia como um
passado relativo a uma epistemologia da origem ou do fim. Sob
esse aspecto ela parece fiel ao seu propósito fundamen tal, que sem
dltvida conti nua por defini r, mas do q ual se pode dizer, desde já,
que se liga simultaneamente ao real e à morte.
A especificação de seu papel não é determ inada pelo próprio
aparelho (o computador, por exemplo) q ue coloca a história no
conjunto das imposições e das possibilidades nascidas da institui -
ção científica presente. A elucidação do que é próprio da história
está descentrada com relação a esse aparelho: ela refl ui para o tem -
po preparatório de programação, que torna necessária a passagem
60 Cf., a esse res peito, as rcncxões agudas de i\'liçhc1 Serres, Hermes ol/lil COI/I -
I/Ilmjwlioll.l!d. de Minuil, 1968. p. 26·35.
61 Ri:GN IER, ,\ndré. Malhémalise rl es sciences de 1'I'lomme? In: RICHARD,
p,; JAU Ll N, R. Alllhropologie ct caleul, co1l. 10/18, 19i I, p. 13-3i.
Capítulo 11 . ,\ Opcraç;io Hisloriogdfica 75
pelo aparelho, e é lançada para a outra ext remidade, para o tempo
de ex ploração que os resultados obtidos expõem. Ela se cJabora em
função dos interditos que a máqu ina fixa, por objetos de pesqu isa a
co nstruir e, em fu nção daquilo que permite essa máqui na, por um
modo de tratar os produtos stalldard da informática. Mas essas
duas ope rações se articulam necessariamcnte na instituição técn i-
ca que insc revc cada pesquisa num "sistcma generaIi7.ado".
As bibliotecas de ontem exerciam, também , a fu nção de "co-
locar" a erudição dentro de um sistema de pesqu isa. Mas tratava -se
de um sistema regionaL Também os "mome ntos" cpistemológicos
(conceituação, documentação, tratamento ou interpretação), hoje
distintos no interior de um sistema gene ra lizado, pod iam estar ex-
tremamente misturados no sistema regional da erudição antiga. O
estabelecimento das fontes (pela mediaç;io de seu ap,uelho atual)
não provoca apenas uma nova repa rtiç;io das relações razãolreal
Oll cultura/ natu reza; ele é o pri ncípio de uma redistribuição epis-
temológica dos momentos da pesquisa científica.
No séc ulo XV II, a biblioteca Colbertina - ou suas homólo-
gas - era o po nto de encont ro onde se elaboravam, em comum, as
regras próprias da erudição. Uma ciência se desenvolvia em tor-
no desse aparelho, que permanece o lugar onde circu lam, ao qual
remetem e se submetem os pesquisadores. "Ir aos Arquivos" é o
enunciado de uma lei tác ita da história. Nesse lugar centra l uma
outra institu ição está sendo substi tu ída. Ela também impôe uma lei
à prática , mas uma lei diferente. Devemos, igualmente, considerar
primeiro a instituição técnica que, como um momento, o rganiza o
lugar onde ci rcula de agora em diante a pesquisa cient ífica , antes
de analisar mais de perto as trajetórias operacionais que a h istória
esboça nesse espaço novo.
Fazer surgir difere/lças: do modelo ao desvio
A ut ilização das técnicas atuais de informação leva o historia-
dor a separar aqu ilo que, em seu traba lho, até hoje esteve li gado:
a cOl/s/rllção de objetos de pesquisa e, portanto, das unidades de
compreensão; a acumulação dos "dados" (informação secu ndária,
 76 A Escrita da História . I\ lichd de Certeau
ou material refinado) e sua arrumação em lugares onde possam
ser classificados e deslocados;62 a exploração é viabilizada através
das diversas operações de que esse material é suscetível.
Nessa linha o trabalho teórico se desempenha, propriamente
fa lando, na relação entre os polos ex tremos da operação inteira:
po r um lado, a construção dos modelos; por outro lado, a atri-
buição de uma significabilid ade aos resultados obtidos ao fina l
das combi nações informáticas. A forma ma is visível dessa relação
consiste, fi nalmente, em tornar pertinentes diferenças adequadas
às unidades formais precedentemente construídas; em descobrir o
heterogellco que seja tecnicamen te utilizável. A " interpretação" an -
tiga se torna, em função do material produzido pela constituição
de séries e de suas combinações, a evidenciação dos desvios relati-
vos quanlo aos modelos.
Sem dúvida, esse esquema permanece abstrato. Muitos estu-
dos atuais tornam mais passíveis de apreensão o seu movimento e
o seu sentido. Por exemplo, a anáJise histórica não tem como resul -
tado essencial uma relação quantitativa da altura e da alfabetiza-
Ç;IO entre os recrutas de 18 19 a 1826, nem mesmo a demonstração
de uma sobrevivência do Antigo Regime na França pós- revolu-
cionária, mas as coincidências imprevistas, as incoerências ou as
ignorâncias qu e essa investigação fez aparecer. 6J O importante n;1O
é a combinação de séries, obtida graças a um isolamento prévio de
traços significantes, de acordo com modelos pré-concebidos, mas,
por um lado, a relação entre esses modelos e os limites que seu
62 Na medida em que está ligada ao uso do compllllldor, a informática oro
ganiza, enlre ~en1radasw e "saídas': a arrumação dr símbolos cm lugares
reservados n:! memória. e sua transfer~ncia para endereços convenientes,
segundo as instruções progralllâ\"eis. Ela regula as colocações e os desloca.
mentos num espaço dr informação que n:io deixa de ler analogia com as
bibliotecas de ontem.
63 LADURIE. E. Lc Ro)'; DUi\'IÜ NT, P. Quantitatil'e and C:!rlographical Ex.
ploitation of French Militar)' i\rchil'es, 1819- 1826. Dllrd(Ilrl$. p. 397.441,
prima\·era 1971; cf. LADURIE. E. te Ro)'-le Terriloire (Ie Cliisloirrtl. Galli.
ma rd, 1973. p. 38.87.
Capítulo 11 • A Operação Historiográiic;J 77
emprego sistemático faz aparecer e, por outro lado, a capacidade
de transformar esses limites em problemas tec nicamente tratáveis.
Esses dois aspectos são, aliás, coordenados, pois, se a diferença é
mallifestada graças à extensão rigorosa dos modelos constfll ídos,
ela é significaI/te graças à relação que mantém com eles a título
de desvio - e é assim que leva a um retorno aos modelos para
corrigi -los. Poder-se-ia dizer q ue a formalização da pesquisa tem,
precisamente, por objetivo produzir "erros" - insuficiênc ias, fal has
- cientificamente utilizáveis.
Esse procedimento parece inverter a história tal como se pra-
ticava no passado. Part ia-se de vestígios (manuscritos, peças raras
etc.) em número limitado e tratava-se de apagar toda a sua diver-
sidade, de unificá-la em uma compreensão coerente.&! Porém, o
valor dessa total iz.."lção indutiva dependia, então, da quantidade de
informações acumuladas. Vacilava quando sua base documental era
comprometida pelas colheitas relatadas por novas investigações. A
pesqu isa - e seu protótipo, a tese - tendia a prolongar indefinida -
mente o tempo da informação, com o fim de retardar o momento
fata!, quando elementos desconhecidos viriam minar suas bases.
Frequentemente monstruoso, desenvolvimento quantitativo da
°
caça aos documentos terminou por introduzir no próprio trabalho,
tornado intermi nável, a lei que destinava à caducidade assim que
°
terminado. Um limiar foi ultrapassado, além do qual essa situação se
inverte, passa-se a mudanças incessantes de modelos.
Com efeito, o estudo se estabelece hoje de imediato sobre
unidades definidas por ele mesmo, na medida em que se torna
e deve tornar-se capaz de fixar a priori objetos, níveis e taxono-
mias de análise. A coerênc ia é iniciaL A quantidade de informação
tratável em fun ção dessas normas tornou-se, com o computador,
indefinida. A pesqu isa muda defrollt. Apoiando-se nas totalidades
K
64 Na vrrdade. a Msintese não rra lerminal, ela se elaborava 110 decurso da
manipulação dos documentos. Ela t:!lllbém. finalmente, já se referia a um
desvio com relação às ideias preconcebidas que a prática dos lextos rc-
\"elava C desloc3\'a 30 longo de operações e que é nelas fixadas por uma
disciplina instilllcional.
 78 A Escrita da História . r-.lichcl de Certeau
I fo rmais, propostas decisoriamente, ela se volta para os desvios que
as combinações lógicas das séries revelam. Joga com os limites.
Para retornar um vocabulârio antigo, que não mais cor responde
à sua nova trajetória, poder-se-ia dizer que ela não mai s parte de
"raridades" (restos do passado) para chegar a uma síntese (com-
preensão presente), mas que parte de uma formalização (um sis-
tema presente) para dar lugar aos "restos" (ind ícios de limites e,
portanto, de um passado que é produto do trabalho).
Esse movimento é, sem dúvida, precipitado pelo emprego
dos computadores. Ele o precedeu - da mesma forma que uma
organização técnica precedeu o computador, que é um sintoma
;\ mais dela. Com efeito, é preciso constata r um fe nômeno estra-
nho na hi storiografia co ntemporánea. O historiador não é mais o
homem capaz de constituir um império. Não visa mais ao paraí-
so de uma h istória global . Ci rcula em torno das racionalizações
adq uiridas. Trabalha nas margens. Deste ponto de vista, se trans-
fo rm a num vagabundo. Numa soc iedade devotada à genera li za-
ção, dotada de poderosos meios centralizados. ele se dirige pa ra
as Marcas das grandes regiões exploradas. "Faz um desvio" para
a feitiçaria ,6s a 10ucura,66 a festa,67 a literatura popular,68 o mundo
65 Cf. MANDROU, Robert. Magislrals 1'1 sorciers 1'111 "ral1ce 1111 XVIII' sitcll',
Plon, 1968, e a abundan te liter:ltum histórica sobre o assun to.
66 Sobretudo a partir de FOUCAU LT, r-,·Iichel. HiSloiu de I" Folie ti liigl' c/as-
siq w~. Plon, 1961, rced. Gallimard, 1972.
67 Cf. em particular OZOUF, r-,·[ona. OI' Thermidor à Ilrumaire: les discours
de la Ré\"olution sur ele·rnême, in; A/I sii!çlc I/es Llllllii:rt.'S. Sevpen, 1970, p.
157-187, e LeCortege et 1:1 villc. Les itinéraires parisiens dl's fêtes rcvolu-
tionaires, in AIII/all's E. S. C , XXVI, p. 889-916, 197 1.
68 Cf. OHARUE, Paul, 1.1' Cou/e populairc frmlfuis, 1957; MANORO U, Ro-
bert, OI' [;1 culture populairl' en Francl' aux XVlle et XVIIII' si~cles, Stock,
1964; BOLL~ME, Gene\'iew, Lcs Alnllmacl,s popl/laius //lU: XVlleel XVl/Ie
sicc/es, r-.loUlon. 1969; :-'·Iaril'-I.ouise TEN~ZE, Introduction ;\ I~tlldc dr [a
littératureorale: 11' contr, in: Amlales E. S. C, XXIV, 1969, p. 1.104 - ].120,
para não falar dos trabalhos mais ~li t rr:iriosM de Mare Soria/lo (Les COII/es
de Pemmlt, Gallima rd, 1968) ou dr Mikhail I\akhlinc (wwvre de r: R(lbe-
lais ct 11/ Cltlt/lft popl/lllire... Gallimard, 1970) etc.
Capitulo I[ • A Operação Historiogr:ífica 79
esquecido dos camponeses,69 a Ocitãn ia7o etc., todas elas zonas
silenc iosas.
Esses novos objetos de estudo atestam um movimento que
se esboça, já há vários anos, nas estratégias da história. Assim,
Fernand Braudel mostrou como os estudos das "áreas culturais"
têm como vantagem situar-se, de agora em diante, nos lugares de
trânsito, onde são detectávei s os fenômenos de "fronteira", de "em-
préstimo" ou de "recusa".71 O interesse científico desses trabalhos
se prende à relação que eles mantêm com as totalidades propostas
ou supostas - "u ma coerência no espaço", "uma permanência no
tempo" -, e com as correções que permitem lhes aduzir. Sem dú-
vida, é necessário encarar dessa perspectiva muitas das pesquisas
atuais. A própria biografia assume o papel de uma distáncia e de
uma margem proporcionadas às construçôes globais. A pesquisa
se dá objetos que têm a forma de sua prática: eles lhe fornecem o
meio de fazer aparecer diferenças relativas às continuidades ou às
unidades das quais parte a análise.
o trabalho sobre o limite
Essa estratégia da prática histórica prepara-a para uma teo-
rização mais de acordo com as possibilidades oferecidas pelas
ciências da informaçào. Parece que ela especifica, cada vez. mais,
não apenas os métodos, mas a função da história no conjunto das
ciências atuais. Com efeito. seus métodos não mais consistem em
buscar objetos "autênticos" para o conhecimento; seu papel soc ial
69 Sobre os camponeses, cf.. antes de tudo, todas as publicações de E. LI' Ro)'
Ladurie, 01'. dI. Sobre os pobres, os trabalhos M jacqllrs 1.1' Goff 1', há de z
anos, as Recherches su r les paul'rrs etla pau\"rcté au "'Ioyrn Ãge, dirigidas
por Michel Molla!.
70 Cf. I.AFON·I: Robert, RClla issullcel/rl SI/d. Gallimard, 1970etc., c também
LA RZAC, André, Oécolonise r I'histoire occitane. I.cs TClllps 1II0t!erncs, p.
676·696, novembro 197 1.
71 L'histoirr des civilisations: le passê ex plique le présen t, um dos estudos me-
todológicos mais importantl's de Fl'rnand Ikaudel, retomado em I:crils SI/r
/"Ir/stviu, Flammarion, 1969, p. 255-3 14 (ver prindp.. lmente p. 292-296).
80 A Escrita da História . l\1ichel de Certeau
não é mais (exceto na literatura especu lar, dita de vulgariz.'ção)
o de prover a sociedade de representações globa is de sua gênese.
A história não mais ocupa, como no sécu lo XIX, esse lugar CCII -
tml, organizado por lima epistemologia que, perdendo a realidade
como substância ontológica, buscou reencontrá- Ia como força his-
tórica, Zeitgcist, e escondendo-se na interioridade do corpo social.
Ela não tem mais a fu nção totalizante que consistia em substituir a
filosofia no seu papel de expressar o sentido.
Intervém à maneira de uma experimentação crítica dos mode-
los sociológicos, econômicos, psicológicos ou culturais. Diz-se que
utiliza um "instrumental emprestado" (P. Vilar). ê ve rdade. Mais
precisamente, testa esse instrumental através de sua transferência
para terrenos di fe rentes, da mesma forma que se testa um carro
esporte, fazendo -o funcionar em pistas de corrid a, em velocida -
des e condições que excedam suas normas. A história se torna UI11
lugar de "controle" onde se exerce uma "função de falsificação". 7l
Nela podem ser evidenciados os limites de significabilidade relati -
vos aos "modelos" que são "experimen tados': um de cada vez, pela
história, em campos estranhos ao de sua elaboração.
A título de exemplo, esse funcionamento pode ser assinalado
em dois dos seus momentos essenciais: um visa ;\ relação com o
real através do fato histórico; o outro, o uso dos "mode/os" recebi-
dos e, portanto, a relação da história com uma razão contempo-
rânea. Dizem respeito, além disso, um à organ ização interna dos
procedimentos h istóricos; o outro à sua articulação com campos
cientificos diferentes.
I. Os fatos encontraram seu campeão, Paul Veyne, maravi-
lhoso decapitador de abstrações. Como é normal, ele carrega a
bandeira de um movimento que o precedeu. Não apenas porque
cada verdadeiro historiador permanece um poeta do detalhe e
brinca sem cessar, C0l110 o esteta , com as mil harmon ias que uma
peça rara desperta nllma rede de conhecimentos, mas sobretudo
porque os formalismos dão, hoje, uma pertinência nova ao deta-
72 Cf. srlpra , p. 57, n. 8.
Capitulo II • A Operação IlistoriogrMica 81
lhe excepciollal. Dito de outra maneira, esse retorno aos fatos não
pode ser arrolado numa c;l mpanha contra o monstro do "estrutu-
ral ismo': nem pode ser posto a serviço de uma regressão às ideo -
logias ou às práticas anteriores. Pelo contrário, ele se inscreve na
linha de análise estrutura!, mas como um desenvolvimento. Pois o
fato de que se trata, de agora em diante, não é aquele que oferece
ao saber observador a emergência de uma realidade. Combinado
com um modelo construido, ele tem a for ma de uma diferença. O
historiador não está, pois, colocado diante da alternat iva de a bolsa
ou a vida - a lei ou o fato (dois conceitos que, aliás, desaparecem
da epistemologia contemporânea7J ) . De seus próprios modelos ele
obtém a capacidade de fazer aparecer os desvios. Se, durante algum
tem po, ele esperou lima "totalização",74 e acreditou poder reconci-
liar diversos sistemas de interpretação, de modo a cobrir toda a sua
informação, agora ele se interessa prioritariamente pelas man ifes -
tações complexas dessas diferenças. Desse ponto de vista, o lugar
onde ele se estabelece pode ainda, po r analogia, trazer o venerável
nome de "fa to": o fato é a d iferença.
Da mesma forma, a relação com o real se torna uma relação
entre os termos de uma operação; Fcrnand Braudel já dava uma
73 AdOlando uma concepção prescrita das ciências e ~atas r a física é um cor-
po de lei s~ escreve ele), P. Ve yne lhe opõe uma história qu e seria "um corpo
n
de (atos (Commellf 011 rcrit /'Iris/oire.• op. d I. p. 21 -22).
7'1 Depois que Henri Serr combinou, na sua concepção de história, o método
comparativo, o primado do "social" eo "gosto permanente d as idcias gerais':
essa "totalização" representou mais UIll ret orno ao espírito de silltese e uma
reação contra a dispersão erudita da "história atomista" do que a pretensão
de instaurar Ulll discurso histórico universal. Após ~huss, Durkheim, Vi-
dai de La Blache, ela tende a faze r prevalecer a idcia de org{wizaç{io sobre
<I ideia de fato ou de a CO llleÔmí'II/O. Cf. t.'iANN. H. D.; FEBVRE, Lucien.
op. cit., p. 73·92. Em 'rhéorie el pratique de I'histoire (i n: RCVllf Historiljlle,
LXXXIX, p. 139- 170, (965), Hcn ri-Irénée Marrou retoma a ideia de uma
"histó ria gerar que resiste à espedaIi1..a ç;io dos métodos e li dÍ\'ersitic<lç;io
das cron ologias segundo os níveis: ele deseja uma "história total. que se es-
(orçaria por apreender, na sua complexidade. a meada embaraçada destas
histó rias particulari.'s" (oI'. cil. , p. (69).
82 A Escri ta da História . J\Iichd de Certeau
significação bem funcional à análise dos fenômenos de frontei-
ra. Os objetos que propunha à pesquisa eram determinados em
função de uma operação a em preender (e não de uma realidade a
obter) e com relação a modelos existcntes.'s Resultado desse em-
preendimento, o "fato" é a designação de uma relação. O aCOlHe-
cimento também pode reencontrar, desse modo, sua definição de
ser um corte. Na verdade, ele não corla mais a espessura de uma
realidade cujo solo será visível através de uma transparência da
linguagem Oll chegará por fragmentos à superfície do nosso sa-
ber. t inteiramente relativo a uma combinatória de séries racio-
nalmente isoladas, passo a passo, cujos cruzamentos, condições e
limites de validade serve para marcar?'
2. Isso já implica lima manei ra "histórica" de reempregar os
modelos tirados de outras ciências e de sit uar, com relação a elas,
uma fun ção da história. Um estudo de Pierre Vilar permite cxpli -
75 O objeto de estudo tem, em Fernand Brnudel, o significado de ser uma
Mpedrn de toque~, uma operação tática relativa a uma situação da pesquisa e
proporcionada a uma ~definição~ (da Civilização) colocada, ela mesma, não
como li majs vi.'rdadeira, mas como ~a mais fácil de mmrejnr para prosseguir
H
da melhor maneira nosso trabalho (laits sur /,hjsloirc, op. cit., p. 288-294;
o grifo é meu).
76 Parece· me que, a propósito de Paul Bois (Les PII)'smrs de /'Ouesl, MoulOI1,
1960; ed. de bolso, Flammarion, 1971), E. Le Ror Ladude coloca um pro·
blema bem próximo daquilo que ele chama a história "factual-estruturnl"·
( ~vénement et longue durée dans l'histoire socia1e: Ihemplc chouan, in: Le
Territoire d..' /'1J;Slor;el!, Gallimard, 1973, p. 169- 186). I\las aqui o aconteci·
mento me parece, ao Illesmo tempo, co mo a queslllo COIOClldl1 pclll relafllo
entre dua s séries mais rigorosamente isoladas (a infraeslrutu ra econômica
da Sarthe e a estrutura mental que dl\'ide o pais em doi s campos poHlicos),
e como o meio de responder IIrl;(IIllIIlIlo ·/I$ (para que entre elas a relação
mude, deve ler acontecido alguma coisa). Sob a forma do Mmomento~ 1790-
1799, ele serve para dcs;S'lIIr uma diferença na sua relação. O recorte mais
SiSteflll\lico das duas séries tem, em Ilois, um duplo efei to. Por um lado, o
de "faur aparecer" (como questão) uma diferença de relação, e, por outro
lado, O de fixar, para este cruzamento, o lugar daquele que, no discurso, tem
a figura histórica do acontecimento.
• NT - "el'éllemr"';lIlo·struc/uflllf~.
Capitulo I1 • A Operação Hisloriografica 83
citar esse pri ncípio. A propósito dos trabalhos de J. Marczewski e
de J. C. Toutain, ele mostrou os erros aos quais conduziria a "apli -
cação" sistemática de nossos conceitos e de nossos modelos eco-
nômicos contemporâneos ao Anti go Regime. Porém O problema
era mais amplo. Para Marczewski, o cconom ista se caracteriza pela
"construção de um sistema de referências", e o historiador é aquele
que "se serve da teoria econômica". Isso é colocar uma problemática
que faz de uma ciência o instrumento de outra e que pode se inver-
ter cont inuamente: afinal, quem "utiliza" quem? P. Vilar destruiu
tal concepção. Do seu ponto de vista, a história tinha como tarefa
analisar as "condições" nas quais esses modelos são válidos e, po r
exemplo, tornar precisos os "limites exatos das possibilidades" de
lima "econometria retrospectiva". Manifesta um heterogêneo relati-
vo aos co njuntos Iwmogcneos co nstituídos por cada disciplina. Ela
também poderá relacionar uns com os outros os limites próprios
de cada sistema ou "n ível" de análise (econômica, social etc.).n As-
sim , a história se torna lima "auxiliar': segundo uma palavra de
Pierre ChaU I1lI .78 Não que esteja "a serviço" da economia, mas a
relação que ela mantém com diversas ciências lhe permite exercer,
com referência a cada uma delas, uma função crítica necessária , e
lhe sugere também o propósito de articular em conjunto os limites
evidenciados dessa maneira.
A mesma complementa ridade se encontra em outros setores.
Em urbanismo a história poderia "fazer, através da diferença, :Ipre-
ender a especificidade do espaço que temos o direito de exigi r dos
administradores atuais"; permitir "uma crítica radical dos concei-
tos operatórios do urbanismo"; e, inversamente, com relação aos
modelos de uma nova organização espacial, dar conta de resis-
tências sociais pela análise de "estruturas profundas de evolução
7i VIlAR, Pierre. Pour une meilleure com prchcnsion entre rconolllistes et
historicns. Rfvue Histor;que, CCXXX III. p. 293-3 12,1965.
7S CHAUNU, Pierre. Histoi re quantitati\'e el histoire séricllc. Cahicrs Vilfmlo
PaU/O, Genebra, Droz, 3, p. 165-175, \964, ou H;stoire sâeuce SOcilll~, Se·
des, 197'1, p.6 1.
84 A Escrita da História. ;'I'lichel de CerteJu
lenta':w Uma tática do desvio especificaria a intervenção da histó-
ria. Por sua vez, a epistemologia das ciências parte de uma teoria
presente (na biologia, por exemplo) e reencontra a história sob
forma daquilo que lIão era esclarecido, ou pensado, ou articulado
outrora. 1IO O passado surgiu ali, inicialmente, como o "ausente': O
entendimento da história está ligado à capacidade de organizar as
diferenças ou as ausências pertillellles e hierarquizáveis porque re-
lativas às formalizações científicas atuais.
Uma observação de Georges Canguilhem sobre a hi stória das
ciências' l pode ser general izada e dar a essa posição de '"'auxiliar"
todo o se u alcance. Efetivamente, a história parece ter um objeto
flutuante cuja determinação se prende menos a uma decisão au -
tônoma do que ao seu ill/eresse e à sua imporlância para as outras
ciências. Um interesse científico "exterior" à história define os ob-
jetos que ela se dá e os objetos para onde se desloca sucessivamen -
te, segundo os campos mais decisivos (sociológico, econômico,
demográfico, cultural, psicanalítico etc) e conforme as problemá-
ticas que os organizam. Mas O historiador assume esse interesse
como uma tarefa própria no conjunto mais amplo da Pesquisa.
79 C HOAY, F. LHistoireet la méthodl.'em urbanisme. Op. cit., p. 1.15 1-1. 153
(os grifos são meus). Como sugere, por sua vez, ALEXANDElt Christo-
pher (De la syllllJese lte la forme, OUllod, 197 1, p. 6-9), é, precisa mente, gra·
ças a uma explicitação lógica, ã conslr!ll;ão atual de ~cstruturas de conjun.
H
tos~, c, portanto. a uma ~pcrda de Sua inocência intuitiva, qu e o urbaniSl3
de scobre urna pertinência nas diferenças históricas - seja para se distinguir
de concelH;ôes pass.adas, seja pJra relath'izar as SU3S, seja para articulá-las
em situações com plexas que resistem ao rigor de um modelo teórico.
80 Assim, r.,·lichel Foucau1t: ~Até o final do século XVI II, a vid3 não cxist\!,
existem apenas seres Vil'OSH (Les mo/s c/les choses, Gal1imard, t 966, p. 173),
ou François Jacob sobre ~A inexisténcia da ideia de vi da~ alé o inicio do
século XIX (Ln logiqJle du l'il'lll1/, Gal1imard, 1970, p. 103): um exemplo
entre mil.
81 CANGUI LI-I EM. G. l/mies d'his/oire rI ele philosoplJie eles sôrnces. Vrin,
t968, p. 18. Cf. as obscr\'3ções de FIC HANT, Michel. Sur i'hiSloire des
sdences. Maspero, 1969. p. 55.
Ca pitulo II • A Operação Histor~ográfic;\ 85
Criou , assim, laboratórios de experimentação epistemológica. l !
Na verdade, não pode dar uma forma objetiva a esses exa mes, a
não ser combinando os modelos com out ros setores da sua docu-
mentação sobre uma sociedade. Dai o seu paradoxo: ele aciona as
formalizações científicas que adota para experimentá-las, com os
objetos Jl(io ciel1tíficos com os qua is prat ica essa experiênci;l. A his-
tória não deixou de manter a função que exerceu durante sécu los
por "razões" bem diferentes e que convém a cada uma das ciências
constituidas: a de ser uma critica.
Crítica e história
Esse trabalho sobre o lim ite poderia ser observado alhures,
e não apenas onde recorre aos "fatos" históricos ou tratamento
de "modelos" teóricos. Desde já, entretanto, aceitas, essaS poucas
indicações nos orientam para uma definição da pesquisa inteira.
A cstratégia da prática histórica implica um estatuto da história.
Ninguém se espanlará com o fato de que a natureza de uma ciência
seja o postulado a exumar dos seus proced imcntos efetivos, e que
este seja o único meio de torná-los precisos. Na falia do que, cada
disciplina seria identificável com uma essência, do que se presu -
miria que ela se coloca em seus avatares técnicos sucessivos, que
ela sobrevive (não se sabe onde) a cada um deles, e que tem com a
prática apenas uma relação acidenlal.
O breve exame da sua prática parece permitir um;l particula -
rização de Irês aspectos conexos da história: a mutação do "senli -
do" ou do "real" na produção de desvios significmivos; a posição do
82 ~ A fie/d oftpiSlcmological fllquiryH, escrevi' LEFT, Gordon (Nis/ory Ilnd So-
ciai "flreory, University of Alabama Press, 1969, p. t ). Um exemplo típico,
e, se m duvida, excessivamente metodológico, é o estudo origin31 de l\k
LEISH, John (Evange/iml Rcligioll fl/ull'opular Edu(iltioll, Londres: :.ole-
thuen, 1969), que ~expe rimentaH, s ucessiv~mente, diversas leo ri3s (l'.·larx,
Malínowski, Freud, Parsons): ele f3z do problema histórico (as camp3nhas
escolares de Griffi th Jon es e de I-I an nah More no século XVI II) a CIlsc-swdy
melhod (op. Cil., p. 165), o meio de verificar a validade dos limites próprios
a c3da uma dessas teorias.
86 A Escrita da História . l\lichel de Cl"r!eau
particular como limite do pellsfÍvel; a composição de um lugar que
inslaura no presente a jigumçiío alllbivalellfe do passado e do futuro.
I. O primeiro aspeclo supõe uma mudança completa do
conhecimento hislórico desde há um século. Há cem anos esse
conhecimento representava uma sociedade à maneira de uma
meditação-compilação de todo o seu devir. ~ verdade que a his-
tória era fragmentada numa pluralidade de histórias (biológicas,
cconômicas.linguíslicas etc.).u Mas, entre essas positividades des-
pedaçadas, como entre os ciclos diferenciados que a caracleriza-
vam, a cada uma, o conhecimento histórico restabelecia o Meslllo
pela sua relação comum com uma evoluçiío. Esta recosturava, pois,
descontinuidades. percorrendo-as como as figura s sucessivas ou
coexistentes de um mesmo seI/tido (quer dizer, de uma orientação)
e manifestando num texto mais ou menos teleológico a unicidade
interior de uma direção ou de um devir. S4
Atualmente, o conhecimento histórico é julgado mais por sua
capacidade de medir exatamente os desvios - não apenas quanti-
tativos (curvas de população. de salários ou de publicações) , mas
quali tativos (diferenças estruturais) - com relação às construções
forma is presentcs. Em outros termos, conclui com aquilo que era
a forma do i/lcipit nos relatos h istóricos antigos: "Outrora não era
como hoje". Cultivada metodicamente. essa distância ("não era ...")
tornou -se o resultado da pesquisa, em lugar de ser seu postulado e
sua questão. Da mesma forma por hipótese, o "sentido" é elimina -
do dos campos científicos ao mesmo tempo que eles são constituí-
83 Cf. as reOexõcs análogas de FOUCAU I.T, Michel, ML Hi stoire~ (in: f..es mOf$
el /l"S clroses, op. cit., p. 378·385) sobre o laço entre a dellluhiplicação da
História em histórias positivas particulares (da natureza, da riqueza ou
da linguagem) l" sua condição comum de possibilidadl" - a historicidade ou
a finitude do homem).
84 Há muito tempo, historiadores e teóricos americanos manifestam suas re·
ticências diantl" do uso " perigoso~ das noções de Merllliug ou Significrmce
em história. Cf. GARDINER, Patrkk. 711cories oi Nistor)'. New York: 'Ihe
Frl"l" I'ress (1959), 1967, p. 7-8; DANTO, Anhur C. AIZII/)'/;((/I Philosoph)' oi
Nistor)'. Cambridge Universit)' I)ress, 1965, p. 7·9 etc.
Capitulo 11 . A O)X'ração Historiogr.ifica 87
•
dos. O conhec imento hi stórico fez su rgir não um sentido, mas as
exceções que a aplicação de modelos econômicos, demográficos ou
sociológicos faz aparecer em diversas regiões da documentação. O
trabalho consiste em produzir algo de lIegativo que seja, ao mesmo
tempo, significa/iVO. Ele é especializ'ldo na fabricaç~\O das tliferclI-
ças per/i1lentes que permitem "criar" um rigor maior nas progra-
mações e na sua exploração sistemát ica.
Próximo desse primeiro aspecto. o segundo refere-se ao ele-
mento do qual se fez, com r:lzão, a especi:llidade da história: o par-
tiCldar (que G. R. Elton distingue, com justeza, do "individual"). Se
é verdade que o particular espec ific a ao mesmo tempo a atenção
c a pesquisa históricas, isso não ocorre por se tratar de um objeto
pensado, mas, pelo cont rário, por estar no /imite do pensáve/. Não
é possível ser pensado se não for universal.
2. O historiador se instala na fronteira onde a lei de uma
inteligibilidade encontra seu limite como aquilo que deve inces-
santemente ultrapassar, deslocando-se, e aquilo que não deixa de
encontrar sob outras formas. Se a "compreensão" histórica não se
fecha na tautologia da lenda ou se refugia no ideológico, terá como
característica, não primordialmente, tornar pensáveis sêrics de da-
dos triados (ainda que isso seja a sua "base"), mas lliío renl/nciar
mmca à relaçfio que essas "regularidades" IIIm/têlll com ''partiCli/a -
ridades" que lhe escapam. O detalhe biográfico, uma toponímia
aberrante, uma baixa local de salários etc,. todas essas forma s de
exceção simbolizadas pela importância do nomc próprio em his-
tória renovam a tensão entre os sistemas explicativos e o "isso"
ainda inexpl icado. E designar isso como um "falo" não é senão um
modo de nomear o incompreendido; é um Meillcn c não um Vcrs-
tel,CII. Mas é lambém manter como necessário aquilo que é ainda
impensado.Bs
Sem dúvida é preciso ligar a essa experiência o pragmatismo
que vela em cada historiador, e que o leva tão nipido a expor a te-
85 Cf. CERTEAU, M. de. üllIsenl fie /'Ms/o;ri'. Mame, co1. MScie nces humaincs,
idéologil"S~ 1973, principalmente p. 171 55., MA ltér.ltions':
88 A Escrita da Histó ri a . ,\ lic hcl de Ccrteau
aria ao ridículo. Mas seria ilusório acreditar que a si mples menção
"é um fato" ou que o "aconteceu" equivale a uma compreensão. A
crônica ou a erudição que se contenta com adicionar partkll l ari~
dades apenas ignora a lei que a orga niza. Esse discurso, lal como
o da hagiografia ou das "c rônicas~86 não faz senão ilustrar com mil
variantes as antinomias gerais próprias a uma retórica do excep-
cionaL Cai na sensaboria da repetição. Na verdade. a particulari-
dade tem por atribu ição desempenhar sobre o fu ndo de uma for-
malização explícita; por função, introduzir al i lima interrogação;
por significação, remeter aos atos, pessoas e a tudo que perma nece
ainda exterior ao saber assim como ao discurso.
3. O lugar que a história criou, combinando o modelo com os
seus desvios, ou agindo na fron teira da regularidade, representa um
terceiro aspecto de sua definição. Mais importante que a referência
ao passado é a sua in trodução sob a forma de uma distância toma -
da. Uma falha se insinua na coerência científica de um prcsente, e
como poderia ela sê-lo, efetivamente, senão por alguma coisa de
objetivável, o passado, que tem por função significar a alteridade?
Mesmo se a etnologia substitui , parcialmente, a história nessa tarefa
de instaurar uma encenação do Olltro, no presente - razão pela qual
essas duas d isciplinas mantêm relações tão estreitas -, o passado é,
inicialmente, o meio de represwtar IIl11a diferença. A operação h is-
tórica consiste em recortar o dado segundo uma lei presente, que
se distingue do seu "outro" (passado), distanciando-se com relação
a uma situação adquirida e marcando, assim, por um discurso, a
mudança efetiva que permitiu esse distanciamento.
Assi m, a operação histórica tem um efeito duplo. Por um
lado, h istoriciza o atual. Falando mais propriamente, ela presen-
ti fica u ma situação vivida. Obriga a explicitar a relação da razão
reinante com um lllgar próprio que, por oposição a um "passado':
se torna o presente. Uma relação de reci procidade entre lei e seu
limite engendra, simul taneamente, a diferenciação de um presente
e de um passado.
86 Cf. BARTHES, Roland. SlrUClU re dI! fail diversoEssai$ critiques. Seuil, 1964,
M
•
ou inf Til , ",\ edificação hagiográfica p. 248 sS.
Capilulo 11 • t\ Ope ração Historiográfica 89
=
Mas, por outro lado, a imagem do passado man tém o seu va-
lor primeiro de representar aquilo quc falta. Com um material que,
para se r objetivo, está necessariamente aí, mas é conotativo de um
passado na medida em que, inicialmente, remete a uma ausência
e introduz também a falta de um futuro. Um grupo, sabe- se. não
pode ex primir o que tem diante de si - o que ainda falta - se não
por uma redistribuição do seu passado. Também a hi stória é sem -
pre ambivalente: o lugar que ela desti na ao passado é igualmente
um modo de dar lllgar a 11111 futllro. Da mesma maneira que vacila
entre o exotismo e a crítica, a título de uma encenação do outro,
osci la entre o conservadorismo e o utopi smo. por sua função de
significar uma falta. Sob essas formas ex tremas, torna-se. no pri -
meiro caso, legendária ou polêmica; no segundo. reacionária ou
revolucionária . Mas esses excessos não poderiam fazer esquecer
aquilo que est;i inscrito na sua prática mai s rigorosa, a de simbo-
lizar o limite e através disso tomar possível IIlIIa ultrapassagem. O
velho slogan das "lições da história" reto ma algum significado, des-
sa perspectiva , se, deixando de lado uma ideologia de herdeiros,
identificarmos a "moral da hi stória" com esse interstício criado na
atualidade pela representação de d iferenças.
111. UMA ESCR ITA
A representação - mise-cn-scClle literária - não é "histórica"
senão quando articulada com u m lugar social da operação cient i-
fica c quando institucional e tecnicamente ligada a lima prática tio
tlesvio, com relação aos modelos culturais ou teóricos contemporâ -
ncos. Não existe relato histórico no qual nào esteja ex plicitada a re-
lação com um corpo social e com uma institu ição de saber. Ainda
é necessário que exista aí "representação". O espaço de uma figura -
ção deve ser composto. Mesmo se deixa rmos de lado tudo aquilo
que se refere a um a análise estrutural do d iscurso histórico," resta
enca rar a opção que faz passar da prática investigadora à escrita .
87 A esse respeito. cf. BARTH ES. Roland Uarlhes. Le di scours de l'hisloire. in
Scfel/cf Informmiol/. VI. 4. p. 65-75, 1967; G OTTGE~·t ANS. Erhardt. Tex te
90 A Escrita da História . l\lichel de Ccrtea u
A illwrstio escriturária
o writillg,1!ll ou a co/lstrllção de lima escrita (no sentido amplo
de uma orga ni zação de significantes), é uma passagem, sob muitos
aspectos, estranha. Conduz da prática ao texto. Uma transforma-
ção assegura o trânsito, desde o indefinido da "pesqu isa" até aquilo
que H. I. Marrou chama a "servidão" da esc rita. 89 "Servidão'; com
efeito. pois a fu ndação de um espaço textual provoca uma série de
distorções com relação aos procedimentos da análise. Com o dis-
curso parece se impor uma lei contrária às regras da prática.
A primeira imposição do discurso cons iste em presc rever
como início aquilo que na realidade é um ponto de chegada. ou
mesmo um ponto de fuga da pesquisa . Enquanto esta dá os seus
primeiros passos na atualidade do lugar soci al, e do aparelho insti-
tucional ou conceitual, determinados ambos. a exposiçâo seguem
uma ordem crollológica . Toma o mais anterior como ponto de par-
tida. Tornando-se um texto, a história obedece a uma segunda im-
posição. A prioridade que a prática dá a uma tática de desvio, com
relação à base fornecida pelos modelos, parece contradita pelo le-
clwmC/lto do livro ou do artigo. Enquanto a pesquisa é interminá-
vel. o texto deve ter um fim, e esta estrutura de parada chega até a
introdução, já o rganizada pelo dever de terminar. Também o con-
junto se apresenta como uma arquitetura estável de elementos. de
regras e de conceitos históricos que constituem sistema ent re si e
cuja coerência vem de uma unidade designada pelo próprio no me
do autor. Finalment e, para ater-se a alguns exemplos, a represen-
tação escriturá ria é "plena"; preenche ou oblitera as lacunas que
constituem, ao cont rário, o próprio princípio da pesquisa, se mpre
aguçada pela falta. Dito de o utra maneira , através de um conju nto
et histoirc, catcgorics fondamcntalo.'S d 'une I'oetique gcnerative. Lillguislicll
Biblica. Bonn, n. 11. 1972, c infra, n. 106.
88 Em Ihc l'raC1ticc o!Hisfory (Nrw York: T. Y. Crowell Co .• 1970. p. 88- 141),
G. It Elton consagra a par te ce ntral de sua análise á esc rita _ IVriting.
89 MARROU, Henri- Irénée. De la COmWiSSallCC Irisforiqlle. Seui!, 1954. p. 279.
Capitulo 1i • A Oper.tçâo HistoriogrMica 91
de figura s de relatos e de nomes próprios, torna presente aquilo que
a prática percebe como seu lim ite. como exceção ou como diferen-
ça, como passa. Por esses poucos traços - a inversão da ordem. o
encerramento do texto, a substituição de um Irabalho de lacuna
por uma presença de sentido - pode-se medir a "servidão" que o
discurso impõe à pesquisa.
A escrita seria, então, a imagem invertida da prática? Teria .
como nas criptografias, nos jogos de crianças ou nas imitações de
moedas pelos falsár ios, o valor da escrita em espelho,90 ficção fabri -
cadora de enganos e de segredos, traçando a cifra de um silêncio
pela inversão de uma prática normativa e de sua cond ição social.
Assim acontece no caso dos Miroirs de /'Histoire. Certamente eles
escondem sua relação com práticas que não são mais históricas,
mas políticas e comerciais, porém , servindo-se de um passado
para negar o presente que repetem, segregam algo estranho às re-
lações sociais atuais, produzem o segredo na linguagem; seus jogos
designam um reti ro que se pode contar em lendas, invertendo as
condutas do trabalho e tomando seu lugar. A escrita em espelho
é séria por causa do que faz - dizer outra coisa pela reversão do
código das práticas -i ela é ilu sória apenas na medida em que, por
não se saber o que faz, tender-se-ia a identi fi car o seu segredo ao
que põe na linguagem e não ao que dela subtrai.
De fato. a escrita histórica - ou historiadora - permanece con-
trolada pelas práticas das quais resulta; bem mais do que isso, ela
própria é uma prática social que confere ao seu leitor um lugar bem
determinado, redistribuindo o espaço das referências simbólicas e
impondo, assim, uma "lição"; ela é didática e magisterial. Mas ao
mesmo tempo funciona como imagem invertida; dá lugar à falta e a
esconde; cri a esses relatos do passado que são o equivalente dos ce-
mitérios nas cidades; exorciza e reconhece uma presença da morte
90 Cf. L~VY. j. M. l: Í:criture em miroir dês petits écoliers. loumnl dc p$)'c/lQ.
logic No rmnlc ef Pat}lQlogique, 1935. I. XXX II. p. 443·454. e. princi palmen.
te, A)UR1AGUERRA. j. de; OIATK1NE, R.; GOBlNEAU, li . de. 1;Í;criture
em miroir, in I,n $eml/inc des Hópitnux de Paris, n. 2, p. 80·86, 1956.
 A Escrita da História • ~[ichcl clt' C<:r tc;w
92
no meio dos vivos. Representando nas duas cenas, ao mesmo tempo
contratual e legendária, escrita pcrformativa 91 e escrita em espelho,
ele tem o estatuto ambivalente de "fazer a história': como mostrou
Jean· Pierre Fayc,92e, não obstante, de "contar hi stó rias': quer dizer,
de impor as violências de um poder e de fornecer escapatórias. Ela
"i nst fui " di verti ndo, costumava-se di zer. Tornando precisos alguns
aspectos da construção historiográfica, as relações de diferença c
de continuidade, que a escrita mantém com uma disciplina de tra-
balho, podem aparecer melhor,'l mas também sua função social
como prática se evidenciará com ma ior dareza.
Efetivamente, destacando-se do trabalho cotidiano, das
eventual idades, dos con flito s, das combin ações de microdecisões
q ue caracterizam a pesquisa concreta, o discurso se situa fora da
experiência que lhe confere creditoi ele se dissocia do tempo que
passa, esquece o escoamen to dos trabalhos e dos dias para forn e-
cer "modelos" no quadro "fictíci o" do tempo passado. Mostrou -se
o que essa construção tinha de arbitrária. Problema geral. Assim ,
o "Cahier rouge" de Claude Bernard (1850- 1860) representa uma
crônica já distante da experiência efetiva em laboratório, e a teo-
ria , a llltrodllctioll à letllde de la medécille expérimelltale (1865),
é, por sua vez, deca lada, simplificadora e redutora com relação ao
"Cahier':9~ Entre milhares de outros, esse exemplo mostra a passa-
gem da prática à crônica e da crônica à didática . Só uma distorção
permite a introdução da "experiência" numa outra prática, igual-
91 Sobre a performatividade. d. illfra, p. 100 e 106. 108.
92 FAYE, Jean· Pierre. Lmrgages lo/aNlaires e 71rtiories riu réci/. Hermann,
[972.
93
Cf. /o.H NGUELEZ, Roberto. Le reelt historique: légali té et signification.
Semiolica, t. 111 , n. I, p. 20·36, 1971, c, do mes mo au tor, Suje/ el/risloire,
Ottnwa: Ed. de I'Uni\'ersi té, 1973.
94
Cf. GRMEJ<, M. D. Raisomrellu'/ll cxpt'rilllt'nlal el recllcrclré /oxic%giqucs
clrez C/Ilude BCflUlrd. Genebra: Drol, 1973. Este estudo minucioso, cujo
interesse ult ra passa ampla menh' o caso particular de Claude Bernard, per-
rnit e a aprop riação, ao vi\'o, das decalagens qu e fazem passa r da cxperibrcill
(aqu i cOl11 rolada ) 11 ~crônica~ t' da crônica ao discurso t/idtllico _ teoria ou
~história':
Capítulo 11 • t\ OllCração Historiográfica 93
mente sOdal , mas simbólica, escritu rária , que substitui a autori-
dade de um saber pelo trabalho de uma pesquisa, O que c que o
historiador fabrica quando se torna escritor? Seu próprio discurso
deve revelá-lo,
A crollologia, ou a lei mascarada
Os resultados da pesqui sa se expõe m de acordo com uma
ordem cronológi ca. Certamente, a constituição de scries, o isola-
mento de "conjunturas" globais, tanto q uanto as tcc nicas do ro-
mance ou do dnema, to rnaram fl exível a rigide1. dessa ordem,
perm itiram a instauração de quadros sincrônicos e renovaram os
meios tradicionais de fazer interagir momentOS diferentes. Não é
menos verdade q ue toda historiografia coloca um tempo das coisas
como um contraponto e a condição de um tempo diSCl/rsivo (dis-
curso "avança" mais ou menos rápido, conforme ele se retarde ou
se preci pite). Mediando esse tempo referencial , ele pode conden -
sar ou estender seu próprio tempo,9S produzi r efeitos de sentido,
rediSlribui r e codi fi car a uniformidade do tempo que corre. Essa
diferença já tem a forma de um d esdobramento. Criou o jogo e
fo rneceu a um saber a possibilidade de se produzir num "tem po
discursivo" (tempo "d iegético': diz Genette), situado a distância do
tempo "rea l': O serviço que a remissão a esse tempo referencial
presta à historiografia pode se r encarado sob diversos aspectos.
O primeiro (que se há de encontrar sob outras medidas) é
o de tornar compatíveis os COl1trários. Exemplo simples: pode-se
dizer "o tem po está bo m" ou "o tempo não está bom~ Essas duas
95 Desse ponto dI.' lIista, a historiografia pode obter maior eficácia dos meios
tecn icos ac ionados pelo ci nema. Cf., exemplo intl.'rl.'ssan tl.', ROUGET, Gil·
bert, UnI.' I.'xperil.'nce dI.' ciné ma sy nchron e au ralenti (in: L'/-loII/me, I. Xl,
n. 2, p. 11 3·117, 1971). a propósi to do Zei/reg/cr o u Mex lensor de tempo"
(Strecher ). que pe rm ite dilatar ou cont rair O tempo so noro se m ddor mâ·
10, c, portant o, retardar ou precipitar a imagem. cr. também SCHAEt=FER,
Picrre , Trailr de5 objels IIIr/5iCIIIIX, Seuil, 1966, p. 425·'126, sobre as acele-
rações ou rt'lard amenlOS que falem parte de um procedimento tradi cional
em história.
 A Escrita da His tóri;l • ~!i chd de Ccrlcólu
94
proposições não podem ser enun ciadas ao mesmo tempo, mas
apenas uma ou outra. Por outro lado, se introduz a d iferença de
tempo, de maneira a transform ar as d uas proposições em "ontem
O tempo eSlava bom" e "hoje não eS lâ~ torna -se legítimo manter
lim a e OI/Ira. Logo, os cont rários são compat íveis, no mesmo texto,
sob a cond ição de que ele seja narrativo. A temporalização cria a
possi bilidade de tornar coerentes uma "ordem" e o seu "hcterócli -
to", Com relação ao "espaço plano" de um sistema , a narrativização
cria uma "espessu ra" que permite colocar, ao fado do sistema, o seu
contrário ou o seu resto. Uma colocação em perspectiva histórica
autoriza, pois, a operação que, no mesmo lugar e no mesmo texto,
substitui a d isj unção pela conjunção, reúne enunciados co ntrários
e, mais amplamente, supera a diferença entre uma ordem c aquilo
que ela exclui. É também o instrumcnto por cxcelência dc todo
d iscurso que pretenda "comprcender" posiçõcs antinômicas (basta
que um dos termos em confl ito seja classificado como passado),
"rcduzir" o elcmen to aberrante (cste se torna um caso "particular"
que se inscreve como detalhe pos itivo nu m relato) ou a considerar
como "ausente" (num outro período) aquilo que foge a um sistema
do presente e nele assumc aspecto dc cstra nheza.
Mas essa temporalização, que se esquiva dos limites impostos
a qualquer rigor e compõc uma cena, na q ual os incompatíveis po-
dem funcionar juntos, tem como paga a sua recíproca: o relato não
pode guardar do silogis mo senão a aparência; lá o nde elc explica, é
entimemático.96 "finge" arrazoar. Na verdade. assim, preserva. nas
suas margens, mantendo a relação dc uma razão com aquilo que se
passa fora dela, a possibilidade de uma ciência ou dc um a filosofia
(ele é hcurístico ), mas como tal ocupa o lugar e oculta a ausencia
delas. Pode-se também perguntar o que autoriza a historiografia a
se constituir como síntcse dos contrários a não ser um rigor racio-
96 Roland narthes o notou em Le discol/rs de /'Irisloire, op. dt.. p. 7 t -72. Cf.
principalmente HEMPEL, C. G .• The Function ofGelleral Laws in History.
in fOl/mll1oi PlrilO$oplr)', I. XXXIX. 19·12: sobre os esboços de explicação
(expla/llllion skt'lcll) que a historiografia fornece é o estudo qu e ainda serw
de referencia.
Capitulo 11 . t\ Operação HistoriogrMica 95
•
na\. De fa to, se forem adotadas as distinções de Benvéniste entre
"discurso" e "relat077 ela é um relato que funciona, na realidade,
como diswrso organizado pelo lugar dos " interlocutores" e fun da-
mentado no lugar que se dá o "autor" com relação aos scus leitores.
O reCllrso ;\ cronologia reconhece que é o lugar da produção que
autoriza o texto, antes de qualquer o utro signo.
A cronologia ind ica um segundo aspecto do serviço que o
tcmpo presta à história. Ela é a condição de possibilidade do recor-
te em períodos. Mas ( no sentido geométrico) rebate, sobre o texto,
a imagem invertida do tempo que. na pesquisa, vai do presente
ao passado. Segue seu rastro pelo reverso. A exposição histórica
supõe a escolha de um novo "espaço vetorial" que transforma o
sentido do percurso do vetor tempo e inverte sua o rientação. So-
mente esta inversão parece tornar possível a articulação da prática
com a escrita. Ao indicar uma ambivalência do tempo,98 coloca-se
inicialmente o problema de um rc-começo: onde começa a escrita?
Ondc se estabelece para quc haja h istoriografia?
À pri meira vista. ela remete o tempo ao momcnto do desti -
natário. Constrói, assim, o lugar do leitor em 1975. Do fundo dos
tempos vcm até ele. Quer participe (ou não) dc uma temática do
progresso. faça drenagem das longas duraçõcs ou conte lima se-
quência de "cpisteme", enfim, qualquer que seja o seu conteúdo, a
historiografia trabalha para encont rar um presente que é o término
de Utn percurso, mais ou menos longo, na tmjetória cronológica (a
história de um século, de um período Oll de lima série de cidos).
O presente, postulado do discurso. torna-se a rCflda da opcração
IIENVJ:NISTE, Íinlile. probMmes de liuguisliljlu: gbrémle. Gallimard. 1966.
97
p. 253-254: no diswrso, "a instãncia está no Iric el UUII' dos interlocutores...
no seu ato da pala\T.l~ (di7.-se: o prefeito partiu Olllem); no rellllo. a instãn-
cia está constituida pelos termos... que se referem ... aos objetos ' reais: .. aos
tempos c aos lugares ·históricos: .."
Cf.. por exemplo. as obse rvações de André Viel. Du chronique au chrono-
98
logique, in: Histoirede lIo/re imllge, Mont-Blanc, 1965, p. 109- HI, sobre o
tempo não orientado e a ambivalência.
 96 A Escrit<l da l-listóri:1 • "lichcl de ü'rtcau
escriturária: o lugar de produção do texto se transforma em lugar
produzido pelo texto.
Port anto, o relato tem sua duplicidade. A cronologia da obra
de história não é senão um segmento limitado (por exemplo, des-
creve-se a evolução do Languedoc do século xv ao XVIII), colh i-
do num eixo mais amplo, que o ultrapassa, de um lado e de outro.
(O) I• I • (1975)
XV< XV« XVII' XVIII'
Por um lado, a cronologia visa ao momento presente através
de uma distãncia - a sem irreta deixada em branco, definida ape-
nas, na sua origem (do século XVIII aos nossos dias) . Por ou tro
lado, supõe lima série finita cujos termos permanecem incertos;
postula em última instância o recurso ao conceito vazio e neces-
sá rio de um po nto zero, origem (do tempo) indispens.íveJ a uma
orienlação.9\I O relato inscreve, pois, em toda a superfície da sua
organização, essa referência in ic ia l e imperceptível, que é a con-
dição de sua historicização. Permitindo à atualidade "exist ir" no
tempo c, fina lmente, simbol izar-se a si mesma, ele a estabelece
numa relação necessária com um "começo" que não é nada, Oll
que não tem outro papel senão o de ser um limite. A Colocação
do relato veicula, por toda parte, lima relação tática com algo que
n.io pode ler lugar na história - um não lugar fundador _, sem o
qual, entretanto, não haveria historiografia. A eScrita dispersa, na
encenação cronológica, a referência de todo o relato a um não dito
que co seu postulado.
Este não lugar determina o interstício entre a prática e a es-
crita. A cesura qualitativa entre lima e Oulra c, sem dúvida, ma-
99
DesSé.' ponto de \'ista, existe, na episteme grega, uma ligação entre :1 au -
scncin do zero na mn1cmatica e a ausência de urna história que pense o
passado como di(rrença. Sobre o ~conceit o~ dé' zero. d. as obse rvações d"
Frege in Lt's FomlclllclIIs (Ic I' arilhmetiq/lc, trad. CI. Imbert. Seuil, 1969. § 8
e principalmente ;4.
Capitulo II • ,\ 01li.·T;IÇjO Hi ~torjowática 97
nifestada pelo fato de que a escrita desnatura e inverte o tempo
da prática. Mas apenas urna passagem silenciosa para o limite
apresenta, efetivamente, sua diferença. Um zero do tempo articula
uma com a outra. E o limiar que conduz da fabricação do objeto a
construção do signo.
Esse nada inicial esboça o retorno disfarçado de llm passado
estranho. Poder-se-ia dizer que é o m ito, transformado em pos-
tulado da cronologia - ao mesmo tempo suprimido do relalo e
sempre considerado ineliminável. Uma relação necess;iria com
O o utro, com esse "zero" mítico, permanece inscrita no conteúdo
com todas as transformações da genealogia, com lodas as modula -
ções das histórias dinásticas ou familiares de uma política, de uma
economia Oll dc uma mcntalidade. Para que o relato "desça" alé o
presente. é preciso que ele se "poie. anteriormente, em um nada
do qual a Odissein já dava a fórmula: "ni nguem sabe por si mesmo
quem é seu pai". 'oo Banido do saber, um fantasma se insinua na
historiografia e determina-lhe a o rganização: é aquilo que mio se
sabe, aquilo que não tem nome próprio. Sob a forma de lllll passa -
do que não tem lugar designável, mas que não pode ser elimin ado.
é a lei do outro. 101
"A lei sempre tira partido daqUilo que se esc reve': U>l Se a his-
loriografia resulta de uma operação alual e localizada, enquanto
100 Od)'ssée, trad. Leconte de Lisle, I~apsodie, I, p. i.
101 Cf. a esse respeito Jean Laplanche e j. I~. I'ontalis, Fantasm" originaire,
fantasrne des origines. origine du fantasrne, in Les rcmps mMerm:s, XIX,
196-1. p. 1.832- 1.868. Esse ('studo sobre a "encenação do desejoHna S<."<Iuên-
cia de imagens esclarece, também. os probtemas expostos pelo discurso
histó rico. üO sujeito pode existir sob uma forma subjetivada. quer dizer, na
própria sintaxe da sequencia ('111 questão': "O desejo Sé' articub na frase do
fantasma, que é, esc re\"Cln os (lulores, o lugar de eleição para as operaçõcs
defensivas mais primiti\<as, tais como a autoagressão, a formaçjo de reação,
H
a projeção, a dencgação (op. cit., p. 1.868). O relato histórico apresenta.
tambem, como encenação, esses C(lracteres do fantasma.
102 BLANCI 10'1', /"I·laurice. L'Emrcrien inflni, Gallilllard, 1969, p. 625. Cf. MO-
SCHONN IC, I-Icnri. l\laurict' manchot ou l' écriture hors !angage. in Les
Clllrias dI! C/lmlin, n. 20. p. ;9-116. 15 de janeiro de 19;4.

98 t\ Escri ta da Ilislória • ,\lichd de Ccrtcau
escrita, repete um outro início. impossível de datar ou de repre-
sentar, postulado pelo desdobramento, à primeira vista simples, da
cronologia. 10) Dobra o tempo gratificante - O tempo que vem a vo-
cês, leitores, e valoriza o lugar de vocês - com a sobra de llm tempo
proibido. A ausência, pela qual começa toda literatura , inverte (c
permite ) a maneira pela qual a narrativa se preenche de sentido c
o discu rso estabelece um lugar para o destinatário. Os dois se com -
binam e vcr-se-á que a historiografia tira sua força da transforma -
ção da genealogia em mensagem e do fato de se situar "acima" do
leitor, por estar mais próxima daquilo que confere poder. O texto
rClme os contraditórios desse tempo instável. Restaura, discreta-
mente, a sua ambivalência. Revela, na surdina, o contrario do "sen -
tido" através do qual o presente pretende compreender o passado.
Na verdade, ao contrario daquilo que ela faz quando se torna a si
mesma como objeto, essa escrita não se reconhece como "t rabalho
da negação". Entretanto, ela o testemunha. A construção do sen-
tido se articula com o seu contrario. Mesmo aqui a li nguagem do
escritor "não apresenta tornando presente aquilo que mostra, mas
mostrando-o por trás de tudo, como o sentido e a ausenc ia deste
todo': 'O-I
Quando o relato é histórico, entretanto, resiste a sedução do
começo; não cede ao Eros da origem. Não tem por meta, como o
mito, encenar a autoridade necessúia e perdida sob o aspecto do
evento que não ocorreu,u)5 Ele não diz o que supõe, pois tem por
objetivo dar lugar ;\ um traimlllO. A lei transita somente através de
103 Philip Rieffill5istiu, particularmente. no recomeço e na repetição que carae·
teri7.am o "morlrl o/Iim(''' freudiano: cf. The :Illlhorit)' of the pasto in Fremi:
lhe mil1ll 0/111,> lhe mornliSI, Ncw Yor!;: Viking Pre5s, 1959; The mcaning of
hislor)' :md religion in Frcuclthoughl. in ;\'IAZLlSCH, Bruce (ed.), Psyclw.
11II111)'5iS lU/ri HiSlor)', Englel\'ood Cliffs (N.J.). 1963. p. 23-44 ete.
104 BI.ANCHOT, [I.·laurice. Le rcgine animal de I' esprit, in Critiqlle, 11.18, p.
387-405,1947, c La lilcralure clle droit fi la Illort, in CritilJllc, n. 20, p.
30-47,1948.
105 Sobre cssa concep{ão do mito, cf. Rt\BANT, Claude, LI' mythe 3 l';lI'enir
(re)comlllellce, in Espril, p. 631-643, abril 1971.
CJpitulo 1I • r\ Operaç:io HislOrlogrMica 99
um estudo particu lar, cuja organização assegura a relação entre os
termos (a origem, o presente) que permanecerá fora do campo.
A CO/lstruçeio desdobrada
Ent re os problemas que o rclato, encarado como discursi-
" idade, propõe,l06 alguns dizem respeito, mais especificamente, à
const rução da historiografia. Estes provêm de um qllerer ao qual
a temporalização fornece um quadro, permitindo manter juntas
as contradições sem ter que resolvê-Ias. Esse propósito "global i-
zante" opera em lodn parte. Remete, fmalmenle, a uma vontnde
polít ica de gerar conflitos e regulamentá-los a parti r de um só
lugar. Literalmente produz textos que, de vàrias maneiras, têm a
característica dupla de combinar uma scma"tização (a edificação
de um sistema de sentidos) com uma se/cçâo (essa triagem tem seu
início no lugar em que um presente se separa de um passado), e
de ordenar uma "inteiigibilidade" por meio de uma /lormatil'idade.
Alguns traços, que se referem, inicialmente, ao seu estatuto numa
tipologia dos discursos, e depois à organização do seu conteúdo,
vão particularizar o funcionamento da hisloriografia como mista.
Em vista de uma tipologia geral dos discursos, uma primeira
aproximação se refere ao modo pelo qual se organiza, em cada dis-
curso, a relação entre seu "conteúdo" e sua "expansão". Na /larra ção,
um e outro remetem a uma ordem de sucess50; o tempo referencial
(uma série A, 13, C. D, E etc. de momentos) pode ser, no exposto, o
objeto de omissões e de inversões suscetíveis de produzir efeitos de
sentido (por exemplo, o relato literário ou cinematográfico apre-
senta a série: E, C, A, B etc.). No discurso "lógico", o conteúdo, de-
finido pelo estatuto de verdade (elou de verificabilidade) atribuível
a enunciados, implica relações silogística s (ou "legais") entre eles,
que determinam a maneira da exposição (indução e dedução). Ele,
106 Cf. a esse respeito WE INRICH, Harald, Narrati\'e SlruklUren in Geschich·
tschreinhung, in KOSELLECK,!t; STE~-ll'EL, W. D. (cds). Gcsdlichtc.
Ereignis 1/1/(1 Erziihlllllg. ;\Iuniquc: W. Fink. 1973, p. 5 19-523.
 100 A Esçrita da Ilistória • 1\liche! de Cerleau
o discurso histórico, pretende dar um conteúdo verdadeiro (q ue
vem da veriflcabilidade), mas sob a forma de uma narração.
cont ... üdo
upans;io
narração s~rie
temporal s uc~il'idad ...
A,H,C,D... 1emporal (E,C,A ... )
di scurso histórico -\"c rdade~ Sucess h'idade temporal
discurso lógico
\·... rdad ... das prepasiçoo silogismo (indução, dNuç:lQ)
Combinando sistemas heterócl itos, esse discu rso misto (fei-
to de dois, situado entre dois) va i se construir segu indo dois mo-
vimentos contra rios: uma lIarrativização faz passar do conteúdo
à sua expa nsão, de modelos acrõnicos a uma cronologização, de
uma dout ri na a uma manifestação de tipo narrativo; inversamente,
uma semalltização do material faz passar dos elementos descritivos
a um encadeamen to sintagmatico dos enunciados e à constituição
de sequências hi stóri cas programadas. Mas esses procedimentos
geradores do tex to não poderiam ocultar o deslizamento metafóri-
co que, segu ndo a definição aristotélica, opera a "passagem de um
gênero para o outro': Indicio desse misto, a metáfora esta presente
em toda parte. Ela disfarça a explicação histórica com um caráter
entimematico. Deporta a causa li dade para a sucessividade (post
hoc, ergo propter hoc). Representa relações de coexistência como
relações de coerência etc. A plausibilidade dos enunciados se subs-
titui constantemente à sua verificabilidade. Dai a autoridade que
esse discurso necessita para se sustentar: aquilo que perde em ri-
gor deve ser compensado por um acréscimo de credibilidade.
A essa exigência pode-se acrescen tar uma outra forma de
desdobramento. Coloca-se como historiográfico o discurso que
"compreende" seu outro - a crônica, O arquivo, o docu mento _,
quer dizer, aquilo que se o rganiza em texto folheado do qual uma
metade, conti nua, se apoia sobre a outra, dissem inada, e assim se
Capítulo I!. A Operaç:io Historíográfica 101
dá O poder de dizer o que a outra significa sem o saber. Pelas "ci-
tações': pelas referências, pelas notas e por todo o aparelho de re-
metimentos permanentes a uma linguagem primeira (que Michelet
chamou "crôn ica"),I07 ele se estabelece como saber do Olltro. Ele se
constrói segundo uma problemática de processo, ou de citação. ao
mesmo tempo capaz de "fazer surgir" uma linguagem referencial
que aparece como realidade, e julgá-la a título de um sabcr. A con-
vocação do material, aliás, obedece à jurisdição que, na encenação
historiográfica, se pron uncia sobre ele. Também a estratificação do
discurso não tem a fo rma do "diálogo" ou da "colagem': Ela combi -
na no singular do saber, citando o plural dos documentos citados.
Nesse jogo, a decomposiçii.o do material (pela anál ise, ou divisão)
tem sempre como condição e limite a unicidade de lima recompo-
sição textual. Assim, a linguagem citada tcm por função comprovar
o discurso: como referencial, introduz nele um efeito de real; e por
seu esgotamento remete, discretamente, a um lugar de autoridade.
Sob esse aspecto, a est rutu ra desdobrada do discurso funciona à
maneira de lima maquinaria que extrai da citação uma verossimi-
lhança do relato e uma validade do saber. Ela produz credibilidade.
Impli ca também um funciona mento part icu lar, epistemoló-
gico e literário desses textos clivados. Por um lado. com referência
às categorias de Ka rl Popper, trata-se antes de "interpretação" do
que de "explicação': Na medida em que o discurso recebe de uma
relação interna crônica o estatuto de ser o seu saber, ele se constrói
sobre um certo número de postulados epistemológicos: a necessi-
dade de uma semantização referencial, que lhe vem da cultura; a
transcrit ibilidade das li nguagens já codificadas, das quais se faz o
intérprete; a possibilidade de constituir uma meta li nguagem da pró -
107 Esse discurso - montagem de outros discursos - se produz graças a dispos i-
th'os muito varidos: o estilo indireto (a historiografia diz que um outro dissc
que ... ), as aspas, a ilustração etc. Podc-se dizcr que o ~passadoM representado
é o cfeito da maneim pela qual o discurso administra sua relação com a
~c r6nica': Dcsse ponto dc vista, a crónica pode ser mais 011 menos trit umda.
Existem muitas maneiras de tmtá-la, desde o MresumoKquc a reduzi u a uma
M
súic de "fatos até a extraç:io d ... dados utillzá\'cis por uma história real.
l02 A Escri ta da História . I\lichcl de Certeall
pria língua dos documentos ut ilizados. Sob essas formas diversas, a
citação introduz no texto um extratexto necessário. Reciprocamen-
te, a citação e o meio de articu lar o texto com a sua exterioridade
semântica, de permitir-lhe fazer de conta que assume uma parte da
cultura e de lhe assegurar, assim, uma credibilidade referencial. Sob
esse aspecto a citação não e senão um caso particular da regra que
torna necessária, â produção da "ilusão realista", a multiplicação
dos nomes próprios, das descrições e do dêitico. I08 Também, para
não tomar senão um exemplo, os nomes próprios já têm valor de
citação. São imediatamente afiançáveis. Enquanto O romance deve,
pouco a pouco, preencher os predicados do nome próprio que ele
coloca no seu in ício (como Julien Sorel), a historiografia já o recebe
preenchido (como Robespierre) e se contenta em operar um traba-
lho com uma lingu<lgem referencial. lOII Mas essa condição externa
de um saber do outro, ou de uma heterologia, IIO tem como corolá-
rio a possibilidade para o discu rso de ser ele mesmo um equivalen-
te de um a semiótica, uma mctalinguagem de línguas naturais, logo,
um texto que supõe c manifesta a transcritibilidade de codificações
diferentes. De fato, essa metalinguagem se desenvolve no próprio
léxico dos documentos que ele decodificai não se distingue, formal -
mente (ao contrário do que ocorre em toda ciência), da língua que
interpreta. Logo. não pode controlar a distãncia do nível da análise
que pretende fazer, nem constituir como campo próprio e unívoco
108 Cf.. por exemplo, as notas de BACHElIER. J. L.. ~Su r-Nomft. in Coml/IU-
lIicnliollS, n. 419,1972; HAMON, I'hillippe. Um discours co ntraim. in
Poeriqlll', n. 16. p. 426-427, 1973. Im·ersa mente. o eu. marca essencial do
discurso fantastico (cf. TODOROV. T.llllrodllcliotl à la Litcm/llrt/ml/as·
/il/lle). deve se r evi tado; ele su primiria a nominação. logo. ~a aU$l'ncia de
nom e ( ...) provoca U[}la defla ção capital da ilusão realista" (B/\ RTHES, Ro-
land.. S/Z. Seuil, 1970. p.t02).
109 O nome pró prio permite um efeito duplo. Por um lado. significa: ~ Robes­
pierre. I'OCC sabe o que é is to': t ajiulI(lh·el. Por Olllro lado, é o objeto de
11m3 decalagem didática: kRobespierre, é outra coisa além daquilo quI' I'ocê
sabe, c cu \'ou lhe ensinar". t a baliza do acréscimo de saber a que ${" credita
III/UI compe/ência.
110 Cf. CERTEAU, M. de. ülbsem de/'lri5toirc. Mame, 1973. p. 173 SS.
Capitulo II • r\ Operação HistoriogrMica 103
os conceitos que o organizam. Ela se conta lia linguagem do seu
outro. Brinca com ela. O estatuto da meta linguagem é, pois, o pos-
tulado de um "querer compreender". ~ antes um a priori do que um
produto. A interpretação tem como ca racterística reproduzir, no
interior do seu discurso desdobrado. a relação entre um lugar do
saber e sua exterioridade.
Citando, o discu rso transforma o citado em font e de credibi-
lidade e léxico de um saber. Mas, por isso mesmo, coloca o leitor
na posição do que é citado; ele o introduz na relação entre um
saber e um não saber. Dito de outra maneira, o discurso produz
um contrato enunciativo entre o remetente e o destinatário. Fun-
ciona C01110 discurso didático, e O faz tanto melhor na medida em
que dissimule o lugar de onde fa la (ele suprim e o eu do autor), ou
se apresente sob a forma de uma linguagem referencial (é o "real"
que lhes fala), ou conte mais do que raciocine (não se discute um
relato) e na medida em que tom e os seus leitores lá onde estào
(ele fa la sua língua, ainda que de out ra maneira e melhor do que
eles). Semanticamente saturado (não tem mais falhas da inteligi-
bilidade), "comprimido" (graças a "uma diminuição máxima do
trajeto e da distância entre os focos funcionais da narrativa"), 11I e
fechado (u ma rede de catMoras e de anáforas assegura incessantes
remelimentos do texto a si mesmo, enquanto total idade orienta-
da), esse discurso não deixa escapatória. A estrutura interna do
discurso trapaceia. Produz um tipo de leitor: um destinatário cita-
do, identificado e dout rinado pelo próprio fato de estar colocado
na situaçào da crônica diante de um saber. Organizando o espaço
textual , estabelece um cont rato e organiza também o espaço social.
Desse ponto de vista, O discurso faz o que diz. É performativo. Os
artifícios da historiografia consistem em criar um diSCllrso per-
formativo fa lsificado, no qual o constativo aparente não é senão O
sign ificante do ala de palavra como ato de autoridade':m
II1 Hr\r-,'ION, Ph., op. ci t.. p. 440·441.
112 IIARTHES. It Le discoUfS/lc /'lristoirc. Op. cit.. p. 74.
104 A Escrita da História . Michel de Ce rt eall
Um terceiro aspecto do desdobramento não se refere mais
nem ao caráter misto, nem à estratificação do discurso, mas à pro -
blemática de sua manifestação, a saber, a relação entre o aconte-
cimento e o fato. A respeito de um assunto tão debatido, eu me
contento com uma indicação relativa à const rução da escrita. Des-
se ponto de vista, o acontecimento é aquele que recorta, para que
haja inteligibilidade; o fato histórico é aquele que preenche para
que haja enunciados de sentido. O primeiro condiciona a organi-
zação do discurso; o segundo fornece os significantes, destinados
a formar, de maneira narrat iva, uma série de elementos signi ficati -
vos. Em suma, o primeiro art icu la, e o segundo soletra.
Efetivamente, o que é um acontecimento senão aquilo que é
preciso supor para que a organização dos documentos seja possí-
vel? Ele é o meio pelo qual se passa da desordem à ordem . Ele não
explica, permite uma inteligibilidade. É o postulado e o po nto de
partida - mas também o ponto cego - da compreensão. " Deve ter
acontecido alguma coisa': aí, diante das constatações que possibili-
tam construir séri es de fatos ou transitar de uma regularidade para
outra. Bem longe de ser o alicerce ou a marca substancial na q ual
se apoiaria uma informação, ele é o suporte h ipotético de uma or-
denação sobre o eixo do tempo, a condição de uma classificação.
Algumas vezes ele não é mais do que uma simples localização da
desordem: então, chama-se acontecimento o que não se compre-
ende. Atravcs desse procedimento, que permite ordenar o desco -
nhecido num compartimento vazio, disposto antecipadamente
para isso e denomi nado "acontecimento': torna -se pens:ivel ltma
"razão" da história. Uma semantização plena e satu ranle C, então,
possível: os "fatos" a enunc iam, fornecendo-lhe uma li nguagem re-
ferencial; o acontecimento lhe oculta as falhas através de uma pa-
lavra própria , que se acrescenta ao relato cont ínuo e lhe mascara os
recortes. Dito de outra maneira, a arquitetura serial joga com a sua
contraditória évéllemelltielfe como com um limite que ela nomeia,
também, para se const ruir co mo di scu rso did:itico, sem interrup -
ção e sem lapsos de autoridade erudita. Esses dois elementos são
necessários um ao outro: uma estranha reciprocidade coloca cada
um dos dOis em relação com O seu olltro. Mas o texto propõe ao
CllpÍl ulo 11 . A O p craç~o I Hstoriogni.fi ca 105
mesmo tempo o preenchimento do sentido e sua condição; ele os
liga e nivela na expansão do discurso. Por isso é global , mas apenas
ao preço de uma cam uflagem dessa diferença, e graças ao sistema
que estabelece previamente, a título de um lugar adquirido, uma
autoridade capaz de "compree nder" a relação entre uma organiza-
I ção de sent ido ("fatos") e o seu limite ("o acontecimento)':
Colocando o est ranho num lugar ti til ao discurso da inteligi -
bilidade, exorcizando o incompreendido para dele fazer o meio de
uma compreensão, a historiografia, entretanto, não evita o retorno
que ela apaga da manifestação. Sem dúvida, pode-se reconhecer
esse retorno no trabalho de erosão que não cessa de minar os con -
ceitos construídos por esse discurso. Na verdade, é um movimento
l secreto no texto. Nem por isso é menos constante, tal como uma
lenta hemorragia do saber. Percebe-se isso, por exemplo, a propó -
sito da ordem que se apresenta em uma organização de unidades
históricas. A encenação escriturária está assegurada por um certo
número de recortes semâ nticos. A essas unidades François Châlet
dá o nome de "conceitos': mas conceitos "que se poderiam chamar,
por analogia com a epistemologia das ciências da natureza, catego-
r;as Itist6ricas".1Il Elas são de tipos bem diferentes, como o período,
o século etc., mas também a mentalidade, a classe social. a COltjtlll-
tura econô mica, ou a família, a cidade, a região, o povo, a Ilação,
a civilização, ou ainda a guerra, a heresia, afesta, a doença, o livro
etc., sem falar em noções tais como a Alltiguidade, o Antigo Regi-
lIIe, as Luzes etc. Frequentemente essas unidades provocam com-
binações estereot ipadas. Uma montagem sem surpresas resulta na
série: a vida - a obra - a doutrina, Oll seu equiva lente colet ivo: vida
econômica - vida social - vida intelectual. Empilham -se "níveis".
Encaixotam-se conceitos. Cada código tem sua lógica.
1t 3 CI-I ATELET. François. NIl;SS(l/Ice de I'Iristoire. 1962. p. 11 5. CC., a esse re$·
peito, PEREL1-.·IAN, Chai m, in t es Catégories em MSlo;re, Ed. de Llnstitut
de Sociologie, Uninrsité Libre de Bruxelles. 1969. p. 11 - 16.
106 A Escrita da História . /I.'I;;,~h~"~d;,~C;,~·,~,,~,;"_ __ _ _ _ _ _ _~_
Não se trata aqui de retornar às imposições sociais"4 ou às
necess idades teó ricas e práticas de programação llS que intervêm
na determinação dessas unidades, mas antes de apreender o fu n-
cionamento escrit urário. Diz-se, às vezes, que a organização desses
"conceitos" é desencadeada, quase automaticamente, pelo próprio
título do texto e que ela não é senão um quadro, mais ou menos
artificial (enfim, pouco importa!) , no qual se podem acumular os
tesouros da informação. Nessa concepção, as unidades for mam o
tabuleiro de uma exposição onde cada compartimento deve se r
preenchido. Em últim a instância, são indiferentes às riquezas das
quais são portadores: no armazém da história, apenas o conteúdo
conta, e não a apresentação (desde que ela seja clara e clássica).
Mas isso equivale a tornar inerte (ou acreditá- Ia assim) a compo-
sição historiográfica , como se ela simplesmente parasse a pesquisa
para substituí-Ia pelo momento da adição e proceder à soma do
capital adquirido. A escrita consistiria em "elaborar um fim". Na
verdade, ela não é nada disso desde que haja discurso histórico. Ela
impõe regras que, evidentemente, não são iguais às da prâtica, mas
diferentes e complementares, as regras de um texto que organiza
lugares em vista de uma produção.
Com efeito, a escrita hi stórica compõe, com um conjunto co-
erente de grandes unidades, uma estrutura anâloga à arquitetura
de lugares e de personagens numa tragédia. Mas o sistema dessa
encenação é o espaço onde o movimento da documentação, quer
dizer, das pequenas unidades, semeia a desordem nessa ordem,
escapa às divisões estabelecidas e opera uma lenta erosão dos con-
ceitos organizadores. Em termos aproximat ivos, poder-se- ia dizer
que o texto é o lugar onde se efetua um trabalho do "conteúdo"
sobre a "forma". Para retomar a palavra mais exata de Roussel, ele
"produz destruindo". Através da massa móvel e complexa que ela
joga no recorte historiográfico e que aí se move, a informação pare-
ce provocar lima lisura das divisões classificatórias que, ent reta nto,
114 Cf. 5l1prtl, ~U rn lugar social~, p. 56·70.
1\5 Cf. $uprn, uUrna pr:itica': p. 70-89.
Capi tul o 11 • A Operação Hisloriogr:ifica 107
constituem o estabelecimento do sistema tex tual. Da mesma for-
ma, o discurso não é mais "enunciado" se a orga nização estrutural
se desmorona, mas ele é histórico na medida em que um lraba lho
movimenta e corrói o aparelho conceitual, entretanto, necessário à
for mação do espaço que se abre a esse movimento.
Conslrução e erosão das unidades: toda escrita histórica com-
bina essas duas operações. t: necessârio propor uma arquitetura
econômica ou demográfica para que apareçam as dependências
que a enfraquecem, deslocam e finalm ente remetem a um outro
conjunto (social ou cultural). t: necessário recortar uma unidade
geográfica (regional ou nacional) para que se manifeste aquilo que,
de todo lado, lh e escapa. A constituição de "corpos" conceituais
por um recorte é, ao mesmo tempo, a causa e o meio de uma len-
ta hemorragia. A estrutura de uma composição não mais retém
aquilo que representa, mas deve também "enunciar" o bastante,
para que com essa fuga sejam verdadeiramente encenados - "pro -
duzidos" - o passado, o real ou a morte de qu e fa la o texto. Assim
se encontra si mbolizada a relação do discurso com aquilo que ele
designa perdendo, quer dizer, com o passado que ele não é, mas
que não seria pensável sem a escrita que articula "composições de
lugar" com uma erosão desses lugares.
A combinação de recortes (as macrou nidades) e de usuras (o
deslocame nto dos conceitos) não é, na verdade, senão um esque-
ma abstrato. Ela não se refere, alias, aestrutura do próprio discur-
so, e não descreve senão um movimento de escrita, destinado a
produzir o sentido autorizado pelo saber. Mas pode-se reconhecê-
lo até nos textos mais importantes da historiografia francesa con-
temporãnea.
Para explicar o aparecimento de uma consciência nacional da
Catalunh a - problema que faz "surgir" um estudo scioeconômico
da região -, Pierre Vilar apresenta a conexão do mercantilismo
(ao qual está ligada a formação de uma classe dirigente) e do na-
cionalismo (i nst rumento utilizado por esta classe para estabele-
cer uma dominação política). Um "lugar" econômico é a base de
uma anal ise muito rica. Mas ali se produziram infilt rações: como
108 A Escri ta da História . I\lichel de Certeau
a constatação de que o nacionalismo cresce com a consciência in -
fel iz de lima nação ameaçada. ll6 Essa intervenção de um elemen-
to heterogêneo não instaura um outro recorte conceitual, e muito
menos uma história "global': Ela desloca a encenação in icial do
texto. Exemplo entre mil do trabalho de erosão que se opera numa
composição bastante argumentada , exatamente porque ela não é
uma moldura inerte.
Erosão, ainda, o movimento que mexe a unidade beauvaisia-
na firmemente delineada pelo "estudo regional" de Pierre Goubert
e que a deixa escapa r, o ra para a Beauce o ra para a Picardia. ll7 O
trabalho que desloca o lugar e q ue o associa àquilo de que estava
separado esboça, no texto, um desaparecimento (nunca total) dos
conceitos, como se ele conduzisse a representação (se mpre manti-
da enquan to exista texto) até a beira d:l ausência que ela designa.
o lugar do mor/o C o lugar do leitor
Tercei ro paradoxo da história: a escrita põe em cena uma po-
pu l:lção de mo rtos - personagens, mentalidades ou p reços. Sob
forma s e conteúdos diferentes, ela permanece ligada à sua arqueo-
logia de inícios do século XV II ("um dos pontos zero da História
da França': di z P. Aries) 118 à "galeria de história" tal como se vê
ainda no castelo de Beauregard: 119 uma série de retratos, efígies
ou emblemas pintados nas pa redes antes de serem descritos pelo
tex to org:ln iza a relação (o muse u) e Ulll percurso (a vi sita). A his-
toriografia tem essa mesma estrutura de quadros que se :lrticulam
com uma trajetória. Ela re-presenta mortos no decorrer de um iti-
nerário narrativo.
116 VrLAR. Pierre. La Catalogllcdal1s /'fj paglJC mor/em e. Op. dI. I. I, p. 29-38.
11 7 GOUBER'C Piem:. Hemwais cf Ic BCJWl'llisis (/e 1600 a 1i30. Scvpcn. 1960,
p. 123- 138,413 ..119cIC.
118 ARJES. Philippc. Legemps dc J'Hisloirc. Op. cil. p. 255.
119 Cf. ARtES, 1'. Op. clt .. p. 195-214. sobre eSSaS "galt:rias de história" ou cole-
ções de retratos históricos.
Capitulo 11 • i\ Operação J-1istoriográfica I09
Mu itos indícios atesta m, na história , essa est rutura de "ga-
leria': Por exemplo, a multiplicação dos nomes próprios (persona-
gens, localidades, moedas etc.) e sua reduplicação no " Index dos
nomes próprios": aquilo que dessa maneira prol ifera no d iscu rso
histórico são esses elementos "com os quais não se faz nada além
de mostrar" 120 e através dos quais o dizer está no seu limite, o mais
próxi mo do mostrar. O sistema sign ifica nte, com esses nomes pró-
prios, cresceu desmesuradamente, em sua margem dêitica extre -
ma, como se a própria ausência, da qual trata, o fizesse extravasar
para o lado em que o "most rar" tende a se substituir ao "significar':
Mas ex.istem muitos outros indícios: o papel do mapa da imagem
ou do grâfico; a importância das vistas panorâmicas e das "conclu -
sões" recapituladoras, paisagens que bal izam o livro etc., e que são
elementos estranhos ao tratado de sociologia ou de fisica.
Será novamente necessário reconhecer nesses traços um a
inversão literária d e procedimentos próprios de pesquisa? Com
efeito, a prática encontra o passado sob a forma de um desvio re-
lativo a modelos presentes. Na verdade, a fun ção específica da es-
crita não é contrária, mas diferente e complementar com relação â
função da prática. Ela pode ser particularizada sob dois aspectos.
Por um lado, no sentido et nológico e quase religioso do termo, a
escrita representa o papel de um rito de sepultamento; ela exorciza
a morte introduzindo -a no di scu rso. Por outro lado, tem uma fun -
ção simbolizadom; permite a uma sociedade situar-se, dan do-lh e,
na linguagem, um passado, e abrindo assim um espaço próprio
para o presente: "marcar" um passado é dar um lugar à morte,
mas também redistribuir o espaço das possibilidades, determinar
negat ivamente aquilo que está por fazer e, consequentemente, uti-
lizar a narratividade, que enterra os mortos, como um meio de
estabelecer um lugar para os vivos. A arrumação dos ausentes é o
inverso de lima normatividade que visa ao leitor vivo, e que instau -
ra uma relação didâtica entre o remetente e o destinatário.
120 L1~V I -STRAUSS. CI:ludc. La pcusée smll·age. Plon, 1962, p. 285.:l propósito
dos nomes próprios.
 110 A Escrita da História . " tichcl de Certeau
No texto, o passado oc upa o lugar do assunto- rei. Uma con-
versão escriturária se operou. Lá, onde a pesquisa efetuou uma
crítica dos modelos presentes, a esc rita construiu um "túmulo"I!1
para O morto. O lugar feito para o passado joga, pois, aqui e hí, com
dois tipos de operação, ullla técn ica e outra escriturária. É apenas
através dessa diferença de funcionamento que pode ser reencon-
trada uma analogia entre as duas posições do passado _ na técnica
de pesquisa e na representação do texto.
A escrita não fala do passado senão para enterrá-lo. Ela é um
túmulo no duplo sentido de que, at ravés do mesmo texto, ela hon -
ra e elimina. Aq ui a linguagem tem como função introduzir no
dizer aq uilo que não se Jáz mais. Ela exorciza a morte e a coloca
no relato, que substitu i pedagogicamente alguma coisa que o leitor
deve crer e fazer. Esse processo se repete em muitas outras for-
mas não científicas, desde o elogio fúnebre, na rua, até o enterro.
Porém, diferentemente de outros "túmulos" art ísticos ou sociais,
a recondução do "morto" ou do passado, num lugar simbólico,
articula-se, aqui, com o trabalho que visa a criar, no presente, um
lugar (passado ou futuro) a preencher, um "dever-fazer': A escrita
acumula O produto desse trabalho. Através dele, li bera o presente
sem ter que nomeá-lo. Assim, pode-se dizer que ela faz mortos
para que os vivos existam. Mais exatamente, ela recebe os mortos,
fe itos por uma mudança social, a fim de que seja marcado o espaço
aberto por esse passado e para que, no entanto, permaneça pos-
sível articular o q ue surge com o que desaparece. Nomear os au-
sentes da casa e introduzi -los na linguagem escritu rária é liberar o
apartamento para os vivos, através de um ato de comu nicação, que
combina a ausência dos vivos na linguagem com a ausência dos
mortos na casa. Dessa manei ra, uma sOciedade se dâ um presente
graças a uma escrita histórica. A instauração literária desse espaço
relme, então, o trabalho que a prâtica histórica efetuou.
Substituto do ser ausente, prisão do gênio mau da morte, o
texto histórico tem um papel performati vo. A linguagem permite
a uma prática situar-se com relação ao seu olltro, o passado. Com
121 M
Desde o século XVI[. o ütombeau é um genêro literário ou lIlusical. 11
também a t ssc genêro qtH.' pertence o relato historiográfico.
Capilulo Ii • ,\ Operação Historiognifica 111
efei to, ele mesmo é uma prática. A historiografia se serve da morte
para articular uma lei (do presente). Ela não desc reve as práticas
silenciosas que a constroem , mas efetua uma nova distribuição de
práticas já semantizadas. Operação de uma outra ordem que a da
pesqu isa. Pela sua lIarratividade, ela fornece à morte uma repre-
sentação que, instalando a faha na linguagem, fo ra da existência,
tem valor de exorcismo contra a angústia. Mas, por sua performa-
tividade, preenche a lacuna que ela representa, utiliza esse lugar
para impor um querer, um saber e uma lição ao destinatário. Em
suma, a narratividade, metáfora de um performativo, encontra
apoio, precisa mente, naquilo que oculta: os mortos, dos quais fala,
se tornam o vocabulário de uma tarefa a empreender. Ambivalên -
cia da historiografia: ela é a condição de um fazer e a denegação
de uma ausência; age ora como discurso de lima lei (o dizer his-
tórico abre um presente a faze r), ora como âlibi, ilusão realista (o
efeito de real cria ficção de uma outra história). OScila entre "fazer
a história" e "contar histórias", sem ser redutível ne m a uma nem a
outra. Sem rlllvida pode-se reconhecer o mesmo desdobramento,
sob outra forma, que leva a efeito a operação bistôrica, ao mesmo
tempo, crítica e construtora: a escrita caminha entre a blasfêmia c
a curiosidade, entre aquilo que el imina, constitu indo-o como pas-
sado, e aquilo que organi za do presente, entre a privação ou a de-
sapropriação postulada pela normatividade social que ela impõe
ao leitor, oi sua revelia. Por todos esses aspectos, combinados na
encenação literária, ela simboliza o desejo que constitui a relação
com o outro. Ela é a marca dessa lei.
N;io é surpreendente que esteja em jogo, aqui, algo diferente
do destino ou das possibi lidades de uma "ciência objetiva': Na me-
dida em que nossa relação com a linguagem é sempre uma relação
com a morte, o discu rso histórico é a representação privilegiada
de uma "ciência do sujeito", e do sujeito "tomado numa divisão
constituinte" I!! - mas com a representação das relações que um
corpo social mantém com a sua lillguagem.
122 LACAN. J:lcques. J:crits. Seuil. 1966. p. 85;. Cf. op. dI" p. 859: MNâoexiste
cit'ncia do hOl11~lIl. porque o homelll da ciência não exist~, mas apenas seu
sujeito".