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As diferenças entre o trágico e o cômico nunca foram tão bem delineadas como na
Grécia Clássica, quando a tragédia ática alcançou a forma mais perfeita e o máximo do
esplendor. Na Poética de Aristóteles, tragédia e comédia assemelham-se quando são
apresentadas como “mimesis” (1447a), e diferem porque autores cômicos “imitam” homens
piores e os trágicos os “imitam” melhores do que realmente são na realidade (1448a).
Sendo a mimesis considerada pelo filósofo como congênita à natureza humana – que com
ela se compraz e aprende –, a poesia naturalmente tomou as formas da índole particular dos
poetas: os de ânimo mais elevados mimetizavam ações nobres, através de hinos e
encômios, e os de mais baixas inclinações compunham vitupérios (1449a). Vindo à luz
através da poesia, a mesma distinção estendeu-se ao teatro: dos ditirambos em honra a
Dionísio originou-se a tragédia, e nos cantos fálicos – que também evocavam o mesmo
Deus – pode-se perceber as sementes da comédia.
Na cena teatral, a comédia apresentava o que os homens têm de ridículo,
caracterizado como “defeito, torpeza anódina e inocente”, a máscara cômica era disforme,
mas não possuía expressão de dor. Por sua vez, a tragédia ática mimetizava homens
superiores, em ações de caráter elevado, que suscitavam terror (phobos) e compaixão
(eleas), e provocavam o prazer que é próprio desses sentimentos. Sem desconsiderar que
uma localização muito rigorosa das origens seria um erro metodológico, ressalto a origem
comum da tragédia e da comédia – nos coros dionisíacos – ainda que, predominantemente,
a filosofia demonstre muito menos apreço por essa última. Se a tragédia surgiu dos
ditirambos, a comédia começou com os komoi, uma espécie de procissão jocosa, das quais
2
a mais famosa era realizada nas festas dionisíacas para celebrar a fertilidade da natureza
através de homenagens a reproduções de falos descomunais – costume ainda vivo em
algumas regiões da Grécia. Os comediantes (komazein) andavam de aldeia em aldeia por
não serem tolerados na cidade, registrou Aristóteles (1448b). Oficialmente, as
representações cômicas tiveram origem nas Dionísias Urbanas (486a.C.), em Atenas, mas
cenas pintadas em vasos revelam sua existência bem antes da data oficial.
“A tragédia surgiu do coro trágico”, pode-se ler em O nascimento da tragédia (NT
§7, p.52)1. Nietzsche interpreta a origem da tragédia no coro dos sátiros de um modo
bastante específico, tomando como arma a luta contra a idéia de naturalismo na arte. O coro
mesmo é percebido “como uma muralha viva que a tragédia estende à sua volta a fim de
isolar-se do mundo real e de salvaguardar para si o seu chão ideal e a sua liberdade poética”
(NT §7, p.54). E o faz preservando as semelhanças com os antigos coros satíricos gregos e
sua errância por terrenos mais elevados, “muito acima das sendas reais do perambular dos
mortais” (NT §7, p.54). O sátiro – “ser natural e fictício” – é percebido em relação ao
homem grego civilizado do mesmo modo que a música dionisíaca em relação à civilização.
O coro satírico suspende, eleva e supera o grego civilizado da mesma forma como a
claridade do sol faz com as luzes das lâmpadas, escreve Nietzsche.
Expressão do próprio querer, com sua errância original, o coro satírico criava um
território transcendente, distanciado da realidade cotidiana, não apenas tolerado como
“liberdade poética” e sim considerado, pelo menos por Nietzsche, a própria “essência de
toda poesia” (NT §7, p.54). O mesmo filósofo escreveu:
O êxtase do estado dionisíaco, com sua aniquilação das usuais barreiras e limites da
existência, contém, enquanto dura, um elemento letárgico no qual imerge toda
vivência pessoal do passado. Assim se separam um do outro, através esse abismo
do esquecimento, o mundo da realidade cotidiana e o da dionisíaca (NT §7, p.55).
É difícil dizer por que, a partir de uma origem comum – a experiência dionisíaca –,
o distanciamento arrebatador do mundo cotidiano prosaico gerou expressões tão diversas a
ponto de constituírem gêneros até hoje existentes, como o cômico e o trágico. Ainda de
acordo com Nietzsche, este último é, com ajuda de Apolo, a “domesticação artística do
horrível”, enquanto o primeiro seria uma “descarga da náusea do absurdo” (NT §7, p.56).
1
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Trad. J.Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras,
1992. Citarei como NT.
3
2
KLEIN, Robert. A forma e o inteligível. Trad. Cely Arena. São Paulo: Edusp, 1998. Citarei como FI.
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de espírito, mesmo o mais tosco dos “loucos” medievais podia enunciar impunemente
aquilo que tinha na cabeça. Revela-se assim um desdobramento da consciência, ao mesmo
tempo a do idiota e a do bufão que a utiliza como máscara. A dualidade cômica implica
certa ambigüidade constitutiva na figura do louco: ele é estúpido e sábio, grosseiro e sutil,
escravo das pulsões e senhor de si mesmo, menos e mais humano. O autoconhecimento
expresso com a máscara da loucura implica o conhecimento da condição humana,
considerado pelos humanistas do Renascimento como a grande tarefa da humanidade. E a
ironia distanciadora aparecia-lhes como arma para denunciar a cegueira e a loucura que
regiam as condições “normais”. Humanistas conceberam a situação do homem no mundo
sob a luz cômica de uma história de loucos. “O mundo inteiro é louco, e o louco tem por
nome Chascun, Elckerlijk, Everyman, Jedermann – o herói mergulhado em um lamaçal em
que se compraz, mas lutando desesperadamente, com o que lhe resta de lucidez, para se
desvencilhar e manter o controle” (FI, p.421). Foi grande o sucesso alcançado pela Nau dos
insensatos, de Brant, cuja idéia central é a de que estamos todos “embarcados” e a única
salvação é a sabedoria, definida como lucidez. Se nessa obra, apoiada no neoplatonismo
cristão, a loucura é condição universal da humanidade e doença ou vício necessitados de
cura, de outra perspectiva ela pode também ser percebida como expressão do avesso
inevitável – e debochado – das ambições da consciência que aspirava à totalidade. O
arrebatamento pelo burlesco permite uma apresentação mais rica da vida do que as
modalidades do “pensamento sério”, ridicularizado pelo louco. A ironia é tão múltipla que
impede, naturalmente, as conclusões (FI, p.429).
Porque os loucos não podem ser imputados pelo que dizem, a este expediente
recorreu Geer Geertsz, sob o nome de Desiderius Erasmus, ou Erasmo de Roterdam, no
Encomium, id est, Stultitiae Laus, escrito em 1508, na casa de Thomas Morus, e traduzido
como Elogio da Loucura3. No século XV, sobre a filosofia nominalista, a evasão idealista, e
sobre todas as formas de naturalismo estético, reinava “certo sentimento da opacidade do
real” (FI, p.427). Sentimento que levou a cultura humanista a adotar um fundo comum do
que pode ser chamado de cultura popular. A partir dessa perspectiva, Klein observa que
“Erasmo partilha infinitamente mais idéias e sentimentos com a gente do povo de sua época
do que um Duns Scot com a da sua” (FI, p.427). O filósofo de Roterdam desenvolve a
3
ERASMO. Elogio da Loucura. Trad. Paulo M.Oliveira. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural,
1972. Citarei como EL.
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semente de ironia contida na literatura popular que o antecedeu, ao apresentar o louco como
imagem da humanidade e o mundo como gigantesca loucura. Ao fazer Loucura pronunciar-
se na primeira pessoa, ninguém sabe se o que ela critica é criticado pelo filósofo e se seu
elogio é verdadeiro. Intelectual independente, vivendo da própria seiva, Erasmo tentou
evitar perseguições dissimulando sua opinião. Zombou dos monges, do culto mecânico, das
rezas excessivas, da idolatria e do dogmatismo degenerado em especulações vazias, sem
nunca ter se declarado inimigo da Igreja. Ao contrário, acredita na revelação através da
Bíblia e da literatura clássica, para ele não menos sacra. Segundo Carpeaux, “um semi-
vagabundo vivendo da sua pena, sem pátria como o próprio Espírito, Erasmo é também, em
certo sentido, o último dos goliardos”.4 Nas páginas de Rouanet, aparece a silhueta de um
“vagabundo exercendo sua soberania intelectual por toda a Europa, o cérebro, o coração e a
consciência do seu tempo, correspondendo-se com reis, imperadores e papas, desfechando
dardos mortíferos contra padres corruptos e reformadores fanáticos, invencível ‘campeão
da verdade’, nas palavras de Rabelais, armado apenas com as armas da razão e da ironia”.5
Na obra destinada a criticar a Igreja, mas de modo diverso do de Lutero, e
principalmente a visão escolástica da filosofia, a alegoria da loucura começa seu auto-
elogio proclamando:
Embora os homens costumem ferir minha reputação e eu saiba muito bem quanto o
meu nome soa mal aos ouvidos dos mais tolos, orgulho-me de vos dizer que esta
Loucura, sim, esta Loucura que estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e
os mortais [...] Sou eu mesma, como vedes; sim, sou eu aquela verdadeira
distribuidora de bens, a que os latinos chamam Stultitia e os gregos, Moria [...] Se
há alguém que desastradamente se tenha iludido, tomando-me por Minerva ou pela
Sabedoria, bastará olhar-me de frente, para logo me conhecer a fundo, sem que eu
me sirva das palavras, que são a imagem sincera do pensamento. Não existe em
mim simulação alguma, mostrando-me eu por fora o que sou no coração (EL, p.13-
16).
“A meu ver, loucura é o mesmo que sabedoria” (EL, p.23), revela a insensata dama,
pródiga em auto louvar-se, “só a loucura tem a virtude de prolongar a juventude e retardar
a malfadada velhice” (EL, p.27). A partir da definição dos estóicos, segundo a qual “sábio é
aquele que vive de acordo com as regras da razão, e louco, ao contrário, é o que se deixa
arrastar ao sabor de suas paixões” ( EL, p.31), Loucura afirma que Júpiter, com receio de
que a vida do homem se tornasse triste e infeliz aumentou a dose das paixões e legou à
razão apenas um cantinho na cabeça, deixando todo o resto do corpo entregue à confusão e
a desordem. E Plutão hesitou se deveria incluir a mulher no gênero dos animais racionais
ou irracionais, não porque a mulher fosse um bicho, mas por sua imensa dose de loucura.
“Se, porventura, alguma mulher meter na cabeça a idéia de passar por sábia só fará mostrar-
se duplamente louca [...] E isso porque, segundo o provérbio dos gregos, o macaco é
sempre macaco, mesmo vestido de púrpura. Assim também a mulher é sempre mulher, isto
é, sempre louca” (EL, p.32), pensava o deus. Entretanto, mesmo sendo “um animal inepto e
estúpido”, a mulher sabe, alegre e suavemente, “temperar com sua loucura o humor áspero
e triste” do homem (EL, p.32). Na misoginia aí presente, ressoam ecos do neoplatonismo
cristão que via em Eva, como alegoria do corpo e da sensibilidade, a raiz de todos os vícios
e loucuras. E das possíveis conseqüências públicas de tal posição, Erasmo – pela boca de
Loucura – defende-se antecipadamente:
Não quero, todavia, acreditar jamais que o belo sexo seja tolo ao ponto de se
aborrecer comigo pelo que eu lhe disse, pois também sou mulher, e sou Loucura.
Ao contrário, tenho a impressão de que nada pode honrar tanto as mulheres como o
associá-las à minha glória, de forma que, se julgarem direito as coisas, espero que
saibam agradecer-me pelo fato de eu as ter tornado mais felizes do que os homens
(EL, p.33).
depressa. Loucura parece assim estar presente tanto nos audaciosos e tolos quanto nos
covardes talentosos.
O texto insiste na idéia de que há algum teor de loucura no motor de toda ação
humana e de que a loucura é mais divertida e, por isso, capaz de mover o ânimo com mais
facilidade do que os discursos sóbrios. Em seu auto-elogio, Loucura ressalta que basta ela
aparecer para que as fisionomias se transformem, basta sua presença para conseguir o que
os retóricos “mais valentes” mal obtém com seus longos discursos, isto é, expulsar das
almas o tédio, o vazio e a tristeza. Se isto é ser louca, arremata a Dama, “convém-me às mil
maravilhas”. Definir – “encerrar a idéia de uma coisa nos seus justos limites” – e dividir –
“separar uma coisa em suas diversas partes” – não lhe convêm posto que seu poder
“estende-se a todo o gênero humano” (EL, p.16). Ridicularizando o estoicismo, Loucura
zomba também dos filósofos afirmando que “os bobalhões dos estóicos, que se reputam tão
próximos e afins dos deuses” (EL, p.21), a ela recorra se quiser tornar-se pai:
Dizei-me, por favor: serão, talvez, a cabeça, a cara, o peito, as mãos, as orelhas, as
partes do corpo reputadas honestas, que geram os deuses e os homens? Ora, meus
senhores, eu acho que não: o instrumento propagador do gênero humano é aquela
parte, tão deselegante e ridícula que não se pode lhe dizer o nome sem provocar o
riso. Aquela, sim, é justamente aquela a fonte sagrada de onde provêm os deuses e
os mortais (EL, p.22).
A visão do mundo como palco onde a humanidade desempenha papéis é tão antiga
quanto o próprio teatro. Platão, no Filebo (50b), menciona “a tragédia e a comédia da
vida”, onde as dores e os prazeres estão misturados; nas Sátiras de Horácio, o homem
aparece como um fantoche, e na Sátira Terceira, Livro I, pretende-se provar que quase
todos os homens são loucos; em uma das Epístolas (Ep.,80,7), Sêneca reflete sobre “esta
farsa da vida humana, que nos designa papéis, os quais desempenhamos mal”: “hic
humanae vitae mimus, qui nobis partes, quas male agamus, adsignat”6. “Quando em vida,
então em cena”, “cum in vita, tum in scena”, registrou Cícero (Cato maior, XVIII, 65)7.
Durante o século XVI, a metáfora da scena vitae reaparece, com força, como theatrum
mundi: na Alemanha, Lutero, o adversário visado por Erasmo, considerava a história como
uma espécie de comédia de Deus (Spiel Gottes); na França, Ronsard escreveu que “o
mundo é um teatro e os homens, atores. A Fortuna é diretora e prepara as roupas, e da vida
humana, os céus e os destinos são espectadores” (“Le monde est un théâtre, et les hommes
acteurs./ La Fortune est maîtresse de la scene/ Apprête les habits, et de la vie humaine/ Les
cieux et les destins en sont les spectateurs”).8 Totus mundus agit histrionem, era a divisa do
famoso Globe Theatre, onde um personagem shakespeareano comparava o mundo ao palco
e homens e mulheres a atores, “all the world’s a stage,/And all the men and women merely
players” (As you like it, II, VII, 141-142) 9. E na Espanha, no século seguinte ao de Erasmo,
o theatrum mundi é elemento fundamental nas obras de Cervantes, Baltasar Gracián e,
sobretudo, Calderón de la Barca.
No teatro do mundo, a desmedida dama descrita por Erasmo revela as máscaras e,
assim, a verdadeira face dos que sob elas se escondem e, mais ainda, a comédia e tragédia
da vida, ao mesmo tempo em que mostra a necessidade do palco e dos atores. Loucura
representa a verdade. Talvez por isso, “a loucura tem uma força maior do que a razão,
aquilo que não se pode conseguir com nenhum argumento se obtém com um chiste” ( EL,
6
SÉNÈQUE. Lettres a Lucilius. Lvcilio svo salvtem. Tome III. Trad. Henri Noblot. Paris: Les Belles Lettres,
1965; p.88.
7
CICÉRON. Caton, l’ancien (de la vieillesse). Cato Maior, de Senectude. Trad. P.Wuilleumier. Paris: Les
Belles Lettres, 1955; p.171.
8
RONSARD, apud CURTIUS, E.R. Literatura européia e Idade média latina. Trad. T. Cabral e P. Rónai. São
Paulo: Edusp, 1996; p.192-193. A tradução é de responsabilidade minha, como também o são as anteriores e
as próximas.
9
SHAKESPEARE, William. “As you like it”, em William Shakespeare. The Complete Work. New York:
Barnes & Noble, 1994; p.622.
9
BIBLIOGRAFIA:
ADORNO, Th.W. Negative Dialectics. Trad. E.B. Ashton. New York: The Seabury Press,
1979.
ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1991.
CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Volume 2. Rio de Janeiro:
Alhambra, 1985.
CICÉRON. Caton, l’ancien (de la vieillesse). Cato Maior, de Senectude. Trad.
P.Wuilleumier. Paris: Les Belles Lettres, 1955.
ERASMO. Elogio da Loucura. Trad. Paulo M. Oliveira. Coleção “Os pensadores”. São
Paulo: Abril Cultural, 1972.
HORÁCIO. Sátiras. Trad. Antônio L.Seabra. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
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