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Principalmente da Ética (E), do Tratado teológico-político (TTP) e do Tratado político (TP).
2
Direcionar o pensamento ao acontecimento é o que Michel Foucault chamou de “jornalismo
filosófico”. FOUCAULT, Michel. Introduction par Michel Foucault. In: Dits et écrits. Vol. II.
1976-1988. Paris: Quarto Gallimard, 2001. P. 431.
investigada surge no próprio movimento reflexivo do pensamento, e exige a mera
adequação ou consistência3.
Esse direito político coletivo, esse direito civil que chamamos de império é
geneticamente definido, isto é, continuamente constituído, pela potência da multidão4.
Cada império tem a sua forma imperial singular de regular as relações de potência
que atravessam a multidão.
Uma mesma multidão pode dar origem a diferentes impérios, conforme variem,
nas suas transformações, as formas imperiais.
3
Conferir a definição de ideia adequada em E2def4, a quarta definição da segunda parte. Quanto à
verdade conveniente de uma ideia se seguir só da sua adequação, como pensava Spinoza, nós
deixaremos isso em suspenso.
4
TP, II, §17.
2
As relações imperiais são constituídas por relações de comando e obediência e
por relações de gozo e serviço ao gozo, a partir das quais se demarcam, na multidão,
de maneira mais ou menos evidente, dois polos, o dos imperantes e o dos imperados.
– poucos imperantes (aqueles que não obedecem, mas comandam e gozam dos
benefícios da cidade);
– alguns súditos (aqueles obedientes que, no entanto, na obediência, produzem
também a sua própria utilidade);
– muitos servos (aqueles obedientes que são inúteis para si)5.
Ora, se o império de uns poucos sobre muitos se mantém, como se nota com
frequência na experiência histórica, somos levados a deduzir que há algo que
compensa a diferença de potencial entre imperantes e imperados, e a equilibra em
uma relação de dominação.
5
Conferir a diferença entre servos e súditos em TTP, XVI, §10.
6
TP, VII, §5: “Além disso, é certo, cada um prefere reger a ser regido. Ninguém, por querer, concede
o império a outro”.
7
É o que Bove conclui da diferenciação entre cidadão e súdito em TP, III, §1. BOVE, Laurent.
Introduction. In: SPINOZA, Benedictus de. Traité politique. Paris: Le Livre de Poche, 2002. P.
147, nota 3.
3
Trata-se da potência real da imaginação, mas, em seu engano8.
Bom, se não ocorre uma tal imaginação, mas, pelo contrário, se os imperados
imaginam os imperantes, não como superiores diferenciados deles, mas como seus
iguais, então, é preciso, num deslocamento do engano, que os imperados imaginem
que os imperantes imperem em nome do bem comum e da salvação de todos.
Até aí, no seu desengano, cada indivíduo, cada súdito, cada servo, está sozinho
nesse ódio. E a solidão individual dos imperados – que surge e se acentua com a
contínua e penetrante intermediação das relações entre os imperados pela instituição
imperante – ainda permite a perseverança dos impérios mais hierárquicos.
Segundo a definição spinozista, a indignação é o ódio para com alguém que fez
mal a um outro11. Na gênese da indignação, portanto, não está o mal sofrido pelo
8
Sobre a potência da imaginação, conferir o escólio de E2p17. Sobre o engano: TP, II, §11.
9
TTP, V, §9: “se uns poucos ou um só detém o império, ele deve ter algo acima da natureza humana
ou, ao menos, esforçar-se por persuadir o vulgo disso”.
10
Os cidadãos gozam de todas as comodidades de uma cidade; os súditos apenas seguem as suas leis.
TP, III, §1.
11
E3defaf20, definição dos afetos 20.
4
próprio indignado, mas o mal sofrido por um outro, um outro que o indignado
imagina ou considera como seu semelhante12.
A indignação é o ódio para com alguém que fez mal a um semelhante, e indica a
capacidade que o humano tem de ser afetado pelo sofrimento de outros humanos. A
capacidade que um indivíduo tem de se indignar, de ser afetado de indignação, de
odiar aqueles que fizeram mal aos seus semelhantes, não pressupõe sequer que o
indignado tenha sido, ele mesmo, diretamente prejudicado.
Isso que une os indignados é um ódio comum para com alguém, não
necessariamente males comuns. Ou seja, as reivindicações dos indignados podem ser
plurais. Eles se unem se essas reivindicações são dirigidas a um polo comum, no caso,
os imperantes. A pluralidade, portanto, conserva-se, na união mesma dos indignados.
12
E3p23s, escólio da proposição 23.
13
E3p27.
5
Evidentemente, assemelham-se mais, uns aos outros, na imaginação, aqueles que
têm desejos semelhantes, valores semelhantes, posses, cor, língua, religião
semelhantes etc. O parcelamento de uma sociedade ocorre, negativamente, a partir do
ódio mútuo entre as suas partes e, positivamente, das identificações internas
recíprocas dos componentes de uma parte.
Há uma evidência banal das maldades que provocam a indignação geral dos
imperados. No desengano, todos reconhecem quais são os males políticos dos
imperantes: a violação das leis da cidade, o uso arbitrário da violência, os
assassinatos, a tortura, os raptos, as espoliações, a exploração15.
14
Essa agregação, esse ligar-se dos indignados num corpo que tende a se despregar do corpo social
inteiro é o “in unum conspirare” do IIIº capítulo do Tratado político, artigo 9: “Deve-se considerar
que as coisas menos pertinentes ao direito civil são aquelas que provocam a indignação de muitos.
Com efeito, é certo que os humanos, conduzidos por sua natureza, conspiram e se ligam contra
outros, seja por causa de uma esperança ou de um medo comum, seja pelo anseio de vingar algum
dano comum.”
15
TP, IV, §4.
6
Quer dizer, enquanto os imperados se consideram reciprocamente semelhantes, e
podem ser afetados de indignação, há banalidade sempre no reconhecimento dos
males, jamais na aceitação da maldade.
Direito de guerra
16
TP, IV, §4.
17
E2def7: “Ora, se indivíduos plurais acorrem para uma única ação, de tal maneira que todos, em
conjunto, sejam a causa de um único efeito, considero-os todos, nessa medida, como uma única
coisa singular.”
7
Quando a forma imperial, na afirmação e na manutenção da ordem estabelecida e
de sua hierarquia de comandos e de serviços, não suporta mais sem se transformar a
diminuição dos males, o direito de guerra e o recurso à violência são a única
escapatória que resta aos imperantes.
18
TP, V, §2.
19
TP, IV, §6.
20
TP, II, §17.
8
O que são essa ordem da cidade e esse direito civil espontâneos que unem a parte
imperada da multidão insurrecta e a opõe à parte imperante sob um direito de guerra?
Não seriam esta ordem da cidade e este direito civil espontâneos as relações
afetivas inter-humanas, os laços afetivos e imaginários, que não são jamais
completamente destruídos, mesmo nas mudanças de regime, pois são mais
vinculantes do que a própria forma imperial21?
21
TP, VI, §2.
22
E5p42: a beatitude é a própria virtude. E E5p36cs (escólio do corolário da proposição 36 da quinta
parte): a beatitude é a liberdade.
23
TP, II, §9: sui juris esse.
24
TP, II, §11 (grifos meus): “o ser humano, à medida que é conduzido pela razão [ou seja, à medida
que busca o que lhe é verdadeiramente útil e próprio à sua conservação (TP, II, §8)], nessa medida
eu o chamo inteiramente livre, pois, nessa medida, ele é determinado a agir a partir de causas que
podem ser inteligidas pela sua natureza sozinha, apesar de ser determinado a agir necessariamente a
partir dessas causas.”
25
E5p36cs.
26
E4p51c2s (escólio do segundo corolário).
9
age por indignação não age livremente, mas é, em parte, determinado por uma
alteridade. A indignação nos captura no ódio a um outro. Enquanto indignados, ainda
estamos, por causa do ódio, presos aquilo que odiamos27.
Mas, talvez, haja algo além da indignação na insurreição. Algo que, ao invés da
tristeza, do medo e do ódio, envolva a alegria, a esperança e o amor.
Não seria isto a própria ordem espontânea da multidão livre, aquele direito civil
espontâneo – que não está fixo na lei, e que não se une e unifica, convertendo-se, num
poder centralizado – que organiza positivamente a dinâmica da insurreição, e que
constitui o fundamento mesmo das formas imperiais?
Já o império instituído por uma multidão livre enquanto livre é mais regido pela
esperança e pelo amor, do que pelo medo e pelo ódio28.
27
Na liberdade, o desejo se determina pelo bem, não pelo mal. E4p63c: “Pelo desejo [livre] que surge
da razão perseguimos diretamente o bem e [somente] indiretamente fugimos do mal”.
28
TP, V, §6: “De fato, a multidão livre é conduzida mais por esperança do que por medo; a multidão
oprimida, pelo contrário, mais por medo do que por esperança – pois, de fato, aquela cultiva a vida,
esta, pelo contrário, procura apenas evitar a morte – a multidão livre procura viver para si, a
oprimida é coagida pelo vencedor – de onde dizemos esta servir, aquela ser livre”.
10
Afeto inverso da indignação, o favor é o amor para com aquele que fez bem a um
outro que consideramos como semelhante a nós30.
O favor, numa configuração estelar, pode se dar enquanto afeto geral obsessivo da
multidão, na convergência para um único objeto, como ocorre com o amor de todos
pelo herói, considerado salvador. Mas pode, também, numa configuração trama-
urdidura, ser um afeto múltiplo e complexo, na colaboração recíproca de todos com
todos.
29
No caminho da liberdade, talvez seja preciso um certo tipo de esquecimento, isto é, uma superação
afetiva das razões da libertação.
30
E3defaf19, E3defaf20exp, E3p22s. O favor é o reconhecimento, na tradução de Tomás Tadeu.
31
E4p51.
32
E3p59.
33
E3defaf43. Em latim: humanitas.
34
E3defaf44.
35
E3p59s: generositas.
11
Insurreição: medo, ódio, mas também esperança e amor
12