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Pontifícia Universidade Católica

do Rio Grande do Sul


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Jorge Campos da Costa - Editor-Chefe


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Jurandir Malerba
ORGANIZADOR

LIÇÕES DE
HISTÓRIA
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longo século XIX
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Coediçáo

FGV
EDITORA ediPUCRS
Porto Alegre, 2010
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Copyright © 2010 Jurandir Malerba

Direitos desta edição reservados a


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Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte,
constitui violação do copynght (Lei n° 9.610/98).

Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores.

1* edição — 2010

Preparação de originais: Luiz Alberto Monjardim


Editoração eletrónica: FA Editoração Eletrónica
Revisão: Aleidis de Beltran, Fatima Caroni e Marco Antomo Corrêa
Capa: Adriana Moreno

Ficha catalográfica elaborada pela


Biblioteca Mario Henrique Simonsen

Lições de história : o caminho da ciência no longo século XIX / Jurandir


Malerba (Org.). — Rio de Janeiro : Editora FGV, 2010.
492 p.

Coedição EdiPUCRS
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-225-0833-4
ISBN: 978-85-7430-999-6

1. Historiografia. 2. História — Séc. XIX. 3. Historiadores — Séc. XIX.


I. Malerba, Jurandir. II. Fundação Getulio Vargas.
CDD — 907.2
Sumário

Prefácio | Jurandir Malerba 7


História e historiadores no século XIX | François Dosse 15
Voltaire I Daniela Kern 33
Voltaire, História 42
Pierre Daunou | Daniela Kern 63
Daunou, Discurso de abertura do curso de história pronunciado no
Collège de France em 13 de abril de 1819 72
Jules Michelet | Lilia Moritz Schwarcz 91
Do método e do espírito: “Liberdade é liberdade” 94
Michelet, Prefácio de 1868 (História da Revolução Francesa) 98
Michelet, Do método e do espírito deste livro 100
Chateaubriand | Teresa Malatian 113
Chateaubriand, Prefácio (Études Historiques) 119
Leopold von Ranke | Julio Bentivoglio 133
Ranke, Sobre o caráter da ciência histórica 141
Gervinus | Julio Bentivoglio 155
Gervinus, Prefácio (Einleitung in die Geschichte des
Neunzehnten Jahrhunderts) 164
A história em Marx | Leandro Konder 173
Thomas Carlyle | Jurandir Malerba 191
Carlyle, Sobre a história 196
Thomas Babington Macaulay | Sérgio Campos Gonçalves 211
Macaulay, História 216
Lord Acton | Jurandir Malerba 249
Lord Acton, Do estudo da história 261
Louis Bourdeau | Marcos Antônio Lopes 287
Bourdeau, Parágrafo II — Lei geral da história: do progresso 297
Fustel de Coulanges | Temístocles Cezar 307
Fustel de Coulanges, Aula inaugural do curso de história
da Faculdade de Estrasburgo (1862) 317
Fustel de Coulanges, Regras de uma história imparcial 318
Gabriel Monod | Teresa Malatian 323
Monod, Do progresso dos estudos históricos na
França desde o século XVI 332
Ernest Lavisse | Fereza Ciistina Kirschner 353
Lavisse, Do determinismo histórico e geográfico 361
Charles Seignobos | Helenice Rodrigues da Silva 375
Seignobos, Advertência 381
Seignobos, O método histórico aplicado às ciências sociais 382
Paul Lacombe | Raimundo Barroso Cordeiro Jr. 393
I p Lacombe, O domínio da história ciência e seus limites 399
Henri Berr | José Carlos Reis 413
Berr, Erudição, filosofia da história e síntese 423
EmstTroeltsch | Sérgio da Mata 433
Troeltsch, A crise atual da história 448
Bibliografia 459
Os colaboradores 485

1
Prefácio
Jurandir Malerba

“Eu acredito que é chegada a hora de o público tomar mais gosto pela histó­
ria do que por qualquer outra leitura séria. Talvez esteja na ordem da civi­
lização que, depois de um século que sacudiu fortemente as ideias, advenha
outro que sacuda os fatos; pode ser que estejamos cansados de falar mal do
passado como de uma pessoa desconhecida; talvez seja apenas uma incli­
nação literária. A leitura dos romances de Walter Scott virou muitas imagi­
nações para essa Idade Média da qual antes nos afastávamos com desdém;
e se hoje acontece uma revolução no modo de ler e escrever a história, essas
narrativas, aparentemente frívolas, para isso contribuíram de modo singu­
lar. Foi ao sentimento de curiosidade que elas despertaram em todo tipo de
leitores por séculos, e em homens tidos por bárbaros, que devemos o sucesso
inesperado de publicações mais sisudas.,,
Augustin Thierry, Lettres sur Vhistoire de Trance (carta de 1820)
“velha sob a forma embríonáría de narrativa, durante muito tempo atra­
vancada de ficções, durante mais tempo ainda vinculada aos eventos mais
imediatamente perceptíveis, a históría é, como empresa refletida de análise,
novíssima. ”
Marc Bloch, Apologie pour Vhistoire ou Métier d’historíen

Este é um livro de história, sobre concepções de história, feito por histo­


riadores. Não se trata de qualquer história, mas de história intelectual de
um período decisivo, aquele que Eric Hobsbawm chamou de “o longo sé­
culo XIX”; nem de quaisquer concepções, mas daquelas que, no quadro
da constituição das especialidades disciplinares, caminharam no sentido
de fazer da história uma ciência; nem se reúnem aqui quaisquer historia­
dores, mas grandes mestres que deixaram um legado monumental para
o pensamento moderno. Os pioneiros na aventura de praticar história de
modo refletido; atitude novíssima, como assinalou Marc Bloch, coisa dos
últimos 200 anos, pouco mais ou menos.
8 LiçOes de história

Os historiadores dessa era épica da construção da moderna ciência


da história conceberam seu campo e praticaram seu ofício de maneiras as
mais distintas. Não obstante a multiplicidade de concepções, dois pon­
tos comuns não podem ser negligenciados quando se toma o percurso
do conhecimento histórico no período em questão. Primeiramente, sua
transformação numa disciplina acadêmica, codificada a partir de cátedras
universitárias, criadas desde a primeira metade do século XIX a partir da
Alemanha. Em segundo lugar, o “século da história” é marcado pelo incan­
descente processo de criação dos Estados nacionais na Europa; a definição
de suas fronteiras e povos, a invenção de identidades a partir da ideia de
nação, demandou como jamais o conhecimento da história, gestada sob a
égide da ciência moderna, mãe do século. Nunca antes ou depois houve
semelhante clamor social pelo campo da história, nem tamanho poder no
espectro social os historiadores.
Nesse ínterim, a história-disciplina não passaria incólume ao intenso
processo de irradiação dos principais vetores da modernidade, que colo­
caria a Europa definitivamente no epicentro do mundo: a expansão do
capitalismo industrial, a superação definitiva dos modelos políticos e ideo­
lógicos do Antigo Regime com a difusão dos cânones liberais e a consagra­
ção do paradigma de racionalidade científica, que surgiu nos primórdios
da época moderna e cujo modelo se impôs às ciências do espírito neste

n mesmo século XIX. A história profissional chega à universidade como um


vetor fundamental desse mesmo amplo movimento histórico.1
A partir das cátedras de história, no embate entre diversas, quando
não opostas, ideias de história, nosso campo paulatinamente profissionali­
zou-se. Foi na crise da Belle Époque, nos desdobramentos do imperialismo
europeu no globo, que culminariam nos graves desafios da I Guerra Mun­
dial, da Revolução Russa e da crise económica de 1929, que aqueles modos
de narrar a história, aperfeiçoados ao longo do século anterior sob a égide
da ciência e da Nação-Estado, viriam a ser veementemente impugnados, de
vários modos e em várias frentes. Porém, enquanto esse tempo de “crise da
consciência europeia” não dava sinais, a história reinou absoluta no templo
das humanidades.

Iggers, Wang e Mukherjee, 2008.


Introdução 9

Mudanças paradigmáticas e movimentos intelectuais os mais variados


— as revoluções científicas expressas nas teorias da relatividade, dos quan­
ta e do caos, a consolidação de outras especialidades como a linguística e
a psicanálise, a sociologia funcionalista, a antropologia estrutural, o pós-
estruturalismo e o pós-modernismo, entre outros — impactaram constan­
temente as fundações do conhecimento histórico ao longo do século XX,
a ponto de os mais céticos decretarem o seu “fim”. Também não faltou
quem condenasse a história como um conhecimento anacrónico, obsoleto
para a compreensão da complexa sociedade “pós-industrial”, caracterizada
pela instantaneidade da informação — sociedade globalizada, midiatiza-
da e consumidora de massa. Mas ela resistiu e, depois de tantos e tama­
nhos desafios, muito estarei enganado ou, de fato, nota-se nas sociedades
contemporâneas um novo alento na demanda social por história. Entre os
cientistas que estão a discutir os rumos do conhecimento científico, a his­
tória surge como campo de vanguarda.
No âmbito da vida cotidiana, a demanda potencial por história — que
nasce das carências fundamentais de orientação dos seres humanos no flu­
xo do tempo, as quais se articulam na forma de um interesse cognitivo pelo
passado — é hoje perceptível em indicadores não raro evidentes, como a
expansão do mercado editorial, o surgimento de veículos novos (como as
revistas de divulgação), a abertura de espaços midiáticos para a história e a
atuação profissional dos historiadores. Neste sentido, parece que a consci­
ência coletiva de nosso tempo está a exigir respostas a serem buscadas no
conhecimento presente da experiência passada. Essa demanda crescente,
no entanto, encontra o campo algo despreparado para bem responder a ela.
Nesse vácuo, não são poucos os leigos que o perceberam e que se puseram
a escrever sobre história, sem qualquer compromisso com aquela “empresa
refletida de análise” que defendia Marc Bloch: a elaboração de um conheci­
mento fundamentado em princípios teórico-metodológicos coerentes, em
pesquisa documental rigorosa, em protocolos éticos e críticos mínimos. O
grande sucesso de público que tais historiadores neófitos ocasionais even­
tualmente vêm alcançando é mais um motivo para que, neste momento de
uma nítida ebulição no campo, crucial não apenas no plano da construção
do conhecimento mas também no que tange à responsabilidade social do
historiador, nós, historiadores profissionais, assumamos a discussão sobre
os parâmetros de nossa área de atuação. Observar no tempo como nossos
10 Lições de história

antecessores discutiram essas mesmas questões em outros contextos, acre­


ditamos, será de grande valia para o debate que se inicia.
Esta antologia começou a ser desenhada há mais de 10 anos, confor­
me o exercício profissional no ensino superior nos impunha verdadeiros
malabarismos para montar e executar programas de disciplinas no âmbito
da teoria e da história da historiografia. Num currículo de história, poucas
estarão mais descobertas no que respeita a sua bibliografia básica do que
aquelas. A situação é ainda mais dramática no Brasil, onde sequer temos a
tradição dos companions e handbooks. Embora em anos mais recentes a ini­
ciativa de abnegados estudiosos aponte para uma mudança de longo prazo
nesse quadro, a realidade hoje é a de que, afora textos esparsos, publicados
em veículos amiúde de difícil acesso, muito pouco há disponível de e sobre
as matrizes do pensamento histórico do período aqui retratado. A rigor,
nossos estudantes se formam nos cursos superiores sem terem tido contato
com autores importantes, como aqueles aqui reunidos e inúmeros outros
que, por restrições óbvias de espaço, não puderam ser incluídos. Quem
trabalha na área sabe como é irrisório o material franqueado em língua
portuguesa; tirante uns poucos manuais traduzidos, a grande antologia
► \ disponível ainda é Theories ofhistory (1959), de Patrick Gardner, numa tra­
dução da Fundação Calouste Gulbenkian. Sequer foi traduzido o clássico
Fritz Stem (The vaiieties ofhistory; 1956), que vem formando gerações de
historiadores nos Estados Unidos desde sua primeira edição até hoje. Nos­
so esforço converge no sentido de atenuar esse quadro.
As grandes glosas são e serão sempre importantes para nossa forma­
ção intelectual. Porém, elas não bastam. Há que ler os originais. Esta obra
oferece uma oportunidade singular para esse contato, ao reunir peças
expressivas do pensamento histórico de cada um dos autores e, mais, em
traduções anotadas e apresentadas por grandes especialistas. Como en­
sinou Eduard Fueter (1911), é preciso ir à fonte: “não se compreenderá
bem a historiografia de outrora se não se estudar as obras mesmas dos
historiadores”.2
Nosso projeto original tinha como objetivo reunir um escol de autores
clássicos, significativo desse percurso da constituição do campo disciplinar

2 Usei aqui a tradução francesa (Fueter, 1914:2).


Introdução 11

da história no século XIX. A ideia, inspirada em Gardner e Stern, era con­


gregar reflexões seminais, produzidas ao longo do período, sobre o campo
da história e/ou o ofício de historiador. A cada um de nossos colaboradores
incumbiu fazer uma tradução anotada do texto antológico; ainda, além da
tradução e notas, que o tradutor produzisse um breve texto de caráter in­
trodutório ao autor/ensaio traduzido. Assim foi feito; a exceção ficaria por
conta de um pequeno número de grandes pensadores cuja grande parte
da obra já circula em língua portuguesa, como o caso de Marx, Nietzsche,
Weber, Croce, Simmel, Dilthey e outros. Estes autores, embora não histo­
riadores, mas filósofos de ofício, foram não obstante decisivos para a crítica
da historiografia de seu tempo e para a que se seguiu.
Como se concebeu esse movediço campo intelectual, como se prati­
cou o ofício de historiador no longo século XIX? Os textos aqui compilados
têm por objetivo indicar parte da resposta a essas questões. Nosso arco
temporal, ainda assim amplo, exclui do foco aqueles textos eminentemente
filosóficos (da filosofia da história), exclusivamente epistemológicos (da
epistemologia da história) e metodológicos. Com exceção de Voltaire, to­
dos os autores viveram, tornaram-se historiadores e escreveram no sécu­
lo XIX. Mas Voltaire não está aqui por acaso; ele tinha plena consciência
do esgotamento dos tipos de história que então se praticavam no final
do século XVIII, ora especulação metafísica sem fundamentação empírica
(que ainda vingou século XIX adentro, como bem o ilustra Hegel), ora nar­
rativas factuais sobre reinados, batalhas e armistícios. Contra esse tipo de
recitativo, Voltaire propôs e praticou uma história a um só tempo filosófica
e cultural, vetor de transformação do homem por meio de sua ilustração.
Voltaire anuncia, em alguma medida, as preocupações básicas da história
científica pela qual se lutará 50 anos depois: a explicação dos acontecimen­
tos históricos, o rigor na pesquisa documental, a busca da verdade.
Como a leitura deste livro dará a perceber, até por volta da década de
1840, principalmente na França, os historiadores estarão sob efeito dos
desdobramentos da revolução (e de sua difusão pelo continente com Na-
poleão) — e da reação a ela: a contrarrevolução, a restauração. Dentro da
atmosfera romântica das primeiras décadas, e mesmo depois ao longo do
século, o nascimento da história-disciplina é marcado pela extrema ambi­
guidade de pretender constituir-se um conhecimento científico — o que
então significava “objetivo”, “neutro”, “verdadeiro” —, mas no contexto
12 LiçOes de história

das guerras de construção dos Estados nacionais. Científica, mas apaixona­


damente partidária, de que são exemplos emblemáticos as obras de Ranke
ou Chateaubriand. Por volta de meados do século, a ideia de ciência ganha
toda sua força e impregna a história; mas uma ciência marcadamente oito­
centista, sob a luz do evolucionismo de Darwin e do positivismo comtia-
no, ávido por descortinar as leis universais do desenvolvimento humano,
similares, à luz do século, às leis da evolução da natureza. A história se
torna uma disciplina acadêmica num tal caldo de cultura, primeiramente
na Alemanha e depois em outros países; começam então a surgir revistas,
grandes eventos, associações, ao mesmo tempo que, sob patrocínio do
Estado, grandes investimentos e esforços são canalizados para a criação
de cátedras universitárias e a organização de arquivos públicos e priva­
dos. O mais interessante é que esse modelo de racionalidade produzido
no mundo ocidental irá, a partir do final do século XIX, irradiar-se por
todo o globo, alterando definitivamente as culturas históricas não oci­
dentais, como as historiografias do Oriente Médio, da Ásia (incluindo
China e Japão) e da índia.3
! Não obstante o momentâneo estranhamento entre historiadores e a
esfera pública, eco da revolução e do parto dos Estados nacionais, e apesar
de sua crescente vinculação à universidade, como todos seus pares intelec­
tuais os historiadores permanecem mergulhados nas respectivas culturas
de suas comunidades locais. No início da gestação dessa moderna his­
li toriografia, nas complexas interfaces que ela estabelece com a filosofia, a
política e a religião, a influência do movimento romântico foi decisiva para
a definição de seu perfil. Como marcou Thierry, essa presença romântica
conduziu a passagem do século das ideias para o século dos fatos. O pre­
núncio havia sido dado já no século anterior; o antídoto da universalidade
das luzes reverbera nos movimentos pré-românticos, no Sturm und Drang,
em Herder, em Goethe e Lessing.4 Ao grande interesse pelo singular, pelo
particular, pelo local, somava-se a paixão avassaladora pela verdade, ma-

3 Sato, 2006; Iggers, Wange Mukheijee, 2008; Torstendahl, 2000; Kramer e Maza, 2002; Kelley,
2003. Para uma abordagem eminememente comparativa e não eurocêntrica das diversas cul­
turas históricas abordadas, ver Woolf (2005) e seu dicionário (1998), global na melhor acepção
do termo.
4 Ver livro clássico de Meinecke (1982) e também Berlin (1976).
Introdução 13

nifesta e garantida pelo método crítico. Este será a ordem do dia dos his­
toriadores metódicos, ditos “positivistas”. Mas há outro movimento que
não se pode desconsiderar: a civilização ocidental experimenta, ao longo
do século, um dos mais traumáticos processos de desestruturação social,
com o desenvolvimento do capitalismo industrial, a migração em massa da
população rural para as cidades, a eclosão da luta de classes sob o capita­
lismo, que culminaria na “primavera dos povos” e na “comuna de Paris”.5
Marx surge como pensador e artífice desse movimento.
Os autores aqui coligidos são expressivos da trajetória da historiogra­
fia ocidental naquele longo século XIX, que reverbera nas primeiras déca­
das do século XX. Nosso intento foi coligir peças importantes do pensa­
mento historiográfico desse período, mantendo sempre plena consciência
dos limites incontornáveis à nossa intenção, estabelecidos pela irresistível
força excludente contida no conceito de “antologia”. Havíamos pensado,
de início, escrever um ensaio mais extenso sobre nosso tema, tarefa que
se tornara inócua por duas razões. Primeiramente, as introduções a cada
peça traduzida constituem um texto em muitas mãos, que fornecem um
quadro informativo e interpretativo sem precedentes. Em segundo lugar, o
capítulo com que François Dosse presenteou esta obra fornece, com raras
profundidade e elegância, uma síntese perfeita como guia de leitura ao
conjunto que se segue.
Por fim, é quase desnecessário lembrar — mas a prudência contra
a má-fé o recomenda — que jamais nos passou pela cabeça “re-habilitar”
qualquer um dos autores aqui coligidos. Entendemos ser pertinente voltar
a esses mestres — e a outros —, sine ira et studio, pois que nos legaram
lições importantes. São nossos mestres, nesse sentido. Porém, depois de
Popper e Kuhn, ninguém será ingénuo o bastante para voltar aonde esses
mestres pararam. Há muito já fomos além. Só não podemos apagar a lem­
4
brança do caminho percorrido, para nos situarmos com senso no presente,
ante os caminhos que se abrem a nossa frente.
Há um sem-número de obras de síntese, manuais e grandes balanços
da historiografia moderna. Todas essas excelentes obras de glosa, que cons­
tituem o pão de cada dia de todo docente das disciplinas teóricas e histo-

5 Sobre a “primavera dos povos”, ver Hobsbawm (1999b). Para a revolução industrial, ver Cole-
man (1992); Hobsbawm (1999).
14 LiçOes de história

riográficas, estão aí a demonstrar que, se algumas estão a nossa disposição


— nem todas em língua portuguesa —, nada similar à obra que o leitor
tem em mãos circula em nossa língua. Um projeto riscado e amadurecido
ao longo de uma década, cuja execução só logrou acontecer por força e
obra de colaboradores entusiastas, que responderam com paixão e profis­
sionalismo ao meu chamado. A cada um, minha sentida gratidão.

C
História e historiadores no século XIX*
François Dosse

Há muito tempo se estabeleceu que o século XIX foi o século da história.


Essa afirmação banal encobre, no entanto, duas realidades diferentes e
complementares. De um lado, esse é o século da história no sentido da
profissionalização da prática histórica que se dota, por toda parte na Europa,
de um programa para seu ensino, de regras metodológicas, e que rompe
com a literatura para voar com asas próprias. Esse nascimento da história
como disciplina se confunde com a grande confiança na marcha progressiva
das ciências. Os novos historiadores profissionais desejam participar dessa
marcha ativamente, ainda que ao preço de certo cientificismo. De outro
lado, foi também o século da história, pois o historiador foi encarregado
pela sociedade de enunciar o tempo laicizado, de narrar o teíos, de afirmar
a direção para a qual se dirige a humanidade. Esse magistério do futuro,
essa missão profética atribuída à história é então fortemente vivida como a
passagem da religião à disciplina histórica.
Nasceu dessa forma, entre filósofos, sociólogos e historiadores, uma
forma de religião da história à qual se atribuíam funções quase proféti­
cas, persuadidos, à época, de que se participava de uma temporalidade

* Tradução de Domitila Madureira (e-mail: domitila.madureira@gmail.com).


16 Lições de história

contendo uma direção endógena, que ia além da vontade dos agentes his­
tóricos. A história se transubstanciava assim na narrativa da marcha dos
seres humanos em direção ao melhor, ao progresso, a uma sociedade do
bem-estar para além das provações vividas. Essa história do século XIX
nasceu também dos impactos do Século das Luzes, da ascendência do rei­
no da razão entre filósofos como Kant, Hegel e Marx, que veem na história
a realização, o desdobramento mesmo da racionalidade vivenciada nessa
época. É igualmente necessário destacar, nessa emergência, o grande papel
da ruptura, da fratura decisiva, constituída em pensar e em restituir a uma
temporalidade mais longa a Revolução Francesa e seu eco internacional.
Ela não apenas vai distrair Kant de seu passeio cotidiano, porém vai balan­
çar seriamente as linhas, pois, ao sair do período revolucionário e ao fim do
período imperial, enquanto os exércitos europeus em coalizão restauraram
a monarquia, a interpretação da Revolução Francesa se torna uma questão
central. Como, efetivamente, integrar essa ruptura reivindicada que subi­
tamente aboliu instituições seculares? Foi um acidente, um parêntese que
se podia fechar, ou então o produto do movimento da sociedade, a conse­
quência de uma evolução necessária e irreversível que qualquer governo
tem que considerar, como pensavam seus adversários liberais?
Diante da fragilidade dos governos e das instituições políticas, da repe­
tição compulsiva do gesto revolucionário que opõe até mesmo os herdeiros
da revolução entre si, os historiadores reconhecem para si um magistério
formidável: aquele de enunciar a verdade da nação. Por uma reviravolta
singular, o especialista do passado faz figura de profeta. A envergadura
da tarefa, sua importância, suas consequências são poderosos estímulos
para que se renove a forma de escrever a história. Essa já não pode mais
se contentar em ser a crónica dos grandes feitos, nem a produção erudita
amadurecida longe das paixões, muito menos uma grande síntese moral.
Ela tem que articular, a fim de convencer seus leitores, o entendimento do
impulso do movimento histórico e as novas formas de licenciatura com
uma nova forma de narrativa.
É nesse contexto que nasceu na França a escola liberal e romântica, que
teve por figura máxima aquele a quem Charles Péguy chamava de o “gênio
da história”, Jules Michelet. A contribuição dessa escola pode ser declinada
em três pontos: a definição do que são o olhar e as ambições da história,
que marca uma ruptura decisiva com os conceitos e as práticas anteriores
História e historiadores no século XIX 17

— a tal ponto que se pode datar dessa época o verdadeiro “nascimento


da história”; as tentativas de casar ciência e arte, mais a vontade de nutrir
a história com filosofia dão às publicações desse período o estatuto de
obras literárias e as elevam ao nível de uma reflexão fundamental sobre
a história e a forma de se escrevê-la; o magistério então reconhecido aos
historiadores, que faz destes os artesãos da consciência nacional.
A revolução marca de fato uma ruptura fundamental na consciência
histórica. Ela produz uma modificação do regime de historicidade,1 quer
dizer, uma mudança do lugar e dos valores relativos atribuídos ao presente,
ao passado e ao futuro na percepção dos coetâneos. Até então, o passado
não tinha sido realmente pensado como ultrapassado. A história permane­
ce, essencialmente, conforme com a sua antiga concepção de magistra vi-
tae. Ela constitui um depósito de experiências sempre vividas como atuais
e, portanto, diretamente transferíveis. Numa sociedade ainda largamente
regida pelos costumes, a ideia de porvir — no sentido de abolir a configu­
ração precedente e produzir o irreversível — está pouco difundida. Assim
é concebível, no final do século XVIII, exigir pagamento de taxas e rendas
correntes séculos antes e caídas em desuso, bem como invocar a tradição
para se opor a qualquer mudança, tal como ilustrada pela defesa dos bens
comunais, em nome do costume, pelos povoados rurais. Somente parece
incontestavelmente legítimo o que sempre existiu, daí o esforço dos ge­
nealogistas principescos de recuar a origem das famílias, cuja linhagem
investigam, aos tempos imemoriais.
Nessa configuração o termo revolução continua mantendo sua acepção
astronómica. Até 1789, significa antes o retorno que a ultrapassagem, antes
um passado a ser reencontrado que um horizonte a ser atingido. É através
dessas grades que são lidas e comentadas as revoluções da Inglaterra.
A chave do paradoxo, encarnado por Edmund Burke e que conduziu
sucessivamente a apoiar os “insurgentes” americanos e a combater os
revolucionários franceses, reside nessa definição. Os americanos, conforme
Burke, combatem para restaurar direitos adquiridos dos quais foram
espoliados, enquanto os franceses querem fazer tábua rasa do passado.
Ora, para Burke, somente a primeira atitude é legítima. E quando a história

Hartog, 2003.
18 Lições de história

é solicitada para estabelecer as pretensões nobiliárquicas e combater tanto


o absolutismo quanto as ambições da burguesia, a noção que preside a
essas construções é ainda a de “revolução-restauração”. Certamente essa
ideia de história vacila no século XV1I1, à medida que se afirma a noção
de progresso, mas a história ainda é frequentemente considerada fonte de
corrupção. “Comecemos por afastar todos os fatos”, escreve Rousseau nas
primeiras páginas de seu discurso sobre as “Origens da desigualdade entre
os homens” (1754). A história não possui virtude explicativa; atravanca a
cena e evita captar as verdadeiras questões. Sébastien Mercier vê aí uma
fonte de erros, ela lhe parece um “esgoto dos esforços humanos” que exala
“um odor de cadáver”. Igualmente o passado mobilizado para reconstruir
as cenas originais é apenas um truque de perspectiva que não exige um
verdadeiro procedimento histórico.
Desse ponto de vista, a Revolução Francesa, e mais particularmente
a experiência vivida na Assembleia bem como nas ruas de Paris ou nos
campos durante o verão de 1789, abala a consciência histórica e produz
uma “revolução nas mentes”. A partir do mês de setembro de 1789, a de­
nominação Ancien regime se espalha e significa que o passado está defini­
tivamente abolido. Essa convicção está consolidada ao final das crises re­
volucionárias e na saída do período napoleônico: “as sociedades antigas se
extinguem; de suas ruínas surgem sociedades novas: leis, costumes, usos,
opiniões, e até princípios, tudo é mudado”.2 O termo recorrentemente usa­
do para designar as duas décadas que se seguiram à implosão do Ancien
regime não é outro senão abismo. A escrita da história não pode deixar de
ser afetada por essa reviravolta. Para ela também, o tempo da Revolução
é o tempo da ruptura, da invenção. O novo olhar lançado sobre o pas­
sado não basta para caracterizar a consciência histórica que se forja no
momento revolucionário. Porque o passado é considerado terminado, o
porvir aparece sob uma nova luz. Ele se torna uma promessa que cabe aos
homens concretizar. A antiga perspectiva do tempo orientado pela esca-
tologia cristã é laicizada, o progresso humano torna-se sua motriz, e o
movimento deste parece tanto inevitável quanto irreversível. Tal como des­
tacado por Chateaubriand, a história é desde então percebida como um

2 Chateaubriand, 1831:7.
História e historiadores no século XIX 19

processo cumulativo. François Guizot faz disso, em 1828, o conceito nor-


teador de sua abordagem da história. A ideia de progresso é identificada à
da própria “civilização”, constituindo-se em seu princípio dinâmico. Um
horizonte de expectativa se impõe, conduzindo, tal como o sentimento de
ruptura, a reconsiderar o passado.
A instabilidade política não é exclusiva do período revolucionário. Ela
afeta a maior parte do século XÍX, que parece revivê-la incansavelmente,
tanto e tão bem que Marx denuncia, dirigindo-se ao movimento socialista
em 1870, os “grands souvenirs” como a “infelicidade dos franceses, inclusive
dos operários” — precisa ele —, pois essas lembranças grandiosa*
obscurecem a realidade presente e evitam transformá-la. A Histoire d
France de Augustin Thierry é, toda ela, uma marcha para consagrar o povc
pois, para ele, é isso que 1789 e o Tiers état representam. Mas essa marcha
só será concluída quando as instituições políticas da França estiverem
inteiramente adequadas aos princípios liberais. Essa análise, construída
a partir do presente e que faz da luta — no caso, aquela das raças — o
motor da história e o parteiro do futuro, chama a atenção de Karl Marx.
Ele confere a Thierry o título de “pai da luta de classes na historiografia” e
suscita o interesse da historiografia marxista pelos historiadores franceses
dos anos 1820. Entretanto, se Thierry defende uma concepção agônica da
história, essa somente adquire sentido na unidade da nação.
Considerando-se a importância atribuída à história, a renovação da
historiografia é uma tarefa indispensável. Inaugurando uma postura que
será incessantemente reproduzida, os novos historiadores formulam seu
programa e, no mesmo impulso, se entregam à crítica da historiografia que
lhes precede. Michelet vive ao ritmo de sua narrativa e dos episódios que
relata. Ele está realizado ao evocar a festa da federação, abatido quando o
Terror se acelera. Em dezembro de 1852, ele somente abre seu diário para
escrever: “inteiramente absorto e sem respirar por causa do verdadeiro
núcleo do livro: novembro de 1793, a tentativa religiosa e o papado de
Robespierre”. Ele vive, como declarou, “fora do tempo”.
Essa característica náo se limita à história da Revolução Francesa.
A história de Michelet está constantemente sendo reescrita, tanto suas
interpretações estão ligadas à sua vida e sua própria evolução. Sua obra
toma por vezes a forma de autobiografia, conformemente à sua vontade de
“biografar a história, como a de um homem, como a minha”.
20 Lições de história

Mas o século XIX não cabe inteiramente nesse face a face entre história e
literatura, nem na vontade dos historiadores de usar da narrativa e de pensar
sua relação pessoal com a história, ainda que afirmem a especificidade de sua
abordagem. A originalidade dessa história também está ligada ao lugar dado
a uma segunda fonte que alimenta e marca igualmente o discurso histórico:
a filosofia. Como aliar ao mesmo tempo a preocupação erudita, a vontade de
dar vida à história e a de compreender seu movimento? Desse ponto de vista,
há de fato uma tentativa “de unificação do campo histórico” sustentada pela
ambição de produzir uma história total, quer dizer, uma história que ligue o
conjunto das dimensões sociais, pois, como afirma Michelet, “tudo influen­
cia tudo” e, portanto, nenhum elemento pode ser isolado.
Isso toma formas diferentes, conforme cada um dos autores. Em Thier-
ry, traduz-se na adoção da luta como princípio motor da história e na von­
tade, ao término de narrativas em que indivíduos desempenham um grande
papel, de se alçar ao nível coletivo e de definir tipos. Guizot, por seu lado, se
atribui o objetivo de estudar não apenas os fenômenos materiais e visíveis,
mas também de dar lugar aos “fatos morais, escondidos, que não são menos
reais”, aos fatos gerais, para os quais é impossível uma datação precisa e que
não podem ser excluídos da “história sem mutilá-la”.3 Ele dá o exemplo atra­
vés dos seus desenvolvimentos sobre a mentalidade burguesa ou sobre a luta
de classes: “o que se costuma chamar de porção filosófica da história, as rela­
ções dos acontecimentos, o elo que os une, suas causas e seus resultados, são
os fatos, é a história, tanto quanto as narrativas de batalhas e acontecimentos
visíveis”.4 A história deve, para que seja plenamente ela mesma, incorporar,
portanto, o que antes era contemplado apenas pelas preocupações da filo­
sofia. Esse desejo de compreensão global do movimento da história não está
menos presente em Quinet do que em Michelet, que dão seus primeiros
passos ao publicar traduções dos filósofos da história: Herder, no que tange
a Quinet, e Vico, no que concerne a Michelet.
A historiografia da primeira metade do século XIX se inscreve numa
relação complexa entre três polos a que podemos chamar de recursos: a
erudição, a filosofia, a literatura. Cada obra oferece delas uma trama par­
ticular. Essa configuração é fonte de riqueza, mas também de fraqueza,

3 Guizot, 1985:58.
4 Ibid.
História e historiadores no século XIX 21

posto que conduz os historiadores a se posicionarem em debates teóricos


nos quais sua prática documental não pode, sozinha, garantir sua legiti­
midade. Todavia ela se revela fundadora de um conceito que outorga aos
historiadores um papel de destaque: o de narrar a nação, de pôr ordem em
seu passado para antecipar seu futuro. Através das diferentes figuras que
elencamos, o historiador aparece tal qual um profeta.
Na virada do século, os historiadores vão, diante das necessidades de
uma verdadeira especialização, de uma profissionalização, cortar o cordão
umbilical que os unia aos literatos, e se assistirá à emergência de uma escola
dita metódica, cuja contribuição se mede hoje melhor do que então, pois
foi por muito tempo depreciada. Teve de fato um papel fundador na pro­
fissionalização dos historiadores, obtendo reconhecimento e readquirind
interesse quando esses se questionaram novamente sobre a definição de si
atividade. Suas teses epistemológicas suscitam um novo interesse, e sua pa
ticipação na Ciíé, especialmente a favor do capitão Dreyfus — em contrasn
com a neutralidade política dos Annales —, lhes é creditada no momento em
que as funções e responsabilidades sociais dos historiadores são reavaliadas.
Dessa forma, as releituras atuais dos historiadores metódicos se inscrevem
num contexto que favorece a emancipação destes em relação ao julgamento
feito pelos Annales e participam dos questionamentos contemporâneos que
os historiadores enfrentam.
O primeiro fator de desestabilização do modelo literário foi o forta­
lecimento da ciência que marcou a segunda parte do século XIX. A torre
Eiffel, construída em 1889, constitui o símbolo do triunfo do modelo cien­
tífico. É uma verdadeira coluna de Trajano erigida em honra da ciência,
na qual se podem ler em letras de ouro no grande friso do primeiro andar
— à maneira de muitas batalhas vitoriosas — os nomes dos cientistas fran­
ceses, de Lavoisier a Pasteur. Com seus 1.792 degraus, esse monumento
associa inextrincavelmente progresso, ciência e república. Os conceitos de
trabalho científico divulgados pelos pesquisadores das ciências experimen­
tais (física, química, biologia) se impõem gradativamente como modelo de
qualquer atividade de conhecimento, inclusive em matéria de literatura.
Assim é que Émile Zola sustenta que “o romancista” realiza “uma verdadei­
ra experiência, com a ajuda da observação”. Esses conceitos se assentam
sobre a confiança na experimentação e reivindicam sua filiação a Bacon,
Copérnico ou Galileu. A passagem da metafísica à física moderna, da al-
22 Lições de história

quimia à química, é concebida como universal, uma mudança necessária


que toda ciência tem que percorrer. Nessa visão grandemente indutiva da
atividade científica, a verdade decorre de observações e experimentações
repetidas que são por si mesmas “observações provocadas” (Claude Ber-
nard). É o que sustentam, igualmente, Louis Pasteur ou Marcelin Berthelot,
além de Claude Bernard. A obra deste último, Introduction à la médecine
expérimentale (1865), que foi um sucesso imediato, rejeita toda inserção do
procedimento científico em qualquer sistema filosófico.
Quadros como o que representa Jean-Martin Charcot examinando
uma paciente diante dos seus discípulos (Pierre-André Brouillet, 1887) di­
fundem a imagem de uma comunidade científica constituída, capaz de se
reproduzir. Essa situação, que contrasta com a desorganização dos estudos
de história e com a dificuldade de administrar uma prova definitiva capaz
de encerrar o debate, só pode deixar os historiadores a sonhar. A partir dos
anos 1860, as referências aos procedimentos científicos da fisiologia ou
da patologia (Hyppolite Taine) e aos da química ou da geologia (Fustel de
Coulanges) se impõem. As pretensões “cientificistas” se multiplicam e con­
vidam a romper com a dupla tradição das letras e da filosofia que condena
a historiografia à instabilidade e a reduz a ser somente um conhecimento
de fraco embasamento científico e, portanto, contestável.
Essa mutação disciplinar e científica parece ter sido, já e desde então,
concluída na outra margem do Reno. Desde 1867, Victor Duruy lança
uma pesquisa comparativa entre as instituições universitárias estrangei­
ras, em particular alemãs, e as francesas. Ela induz à criação, em julho de
1868, da École Pratique des Hautes Études. Esta tem que aclimatar os mé­
todos alemães e, especificamente, realizar seminários especializados para
garantir a transmissão dos saberes técnicos e para instaurar uma relação
dos mestres com os seus estudantes. Ela deve permitir um aprendizado
em laboratório comportando manipulações ou, no que tange à literatura,
trabalhos documentais. Desde a metade do século, Ernest Renan multipli­
ca os elogios da erudição alemã, em particular da gramática comparada e
da filologia, mas também do sistema educativo d’além-Reno. Um jogo de
espelhos se instaura, que é recomeçado por Victor Duruy, depois se gene­
raliza, nos dias que se seguem à Guerra Franco-Prussiana de 1870, quan­
do a superioridade do sistema educativo se torna uma das explicações da
derrota francesa. Para os partidários de uma reforma do sistema educati-
História e historiadores no século XIX 23

vo, a França deve, como a Prússia depois da derrota em lena (1806), ser
refundada intelectualmente.
A comparação com a Alemanha se torna um lugar-comum, e a estada
nas universidades alemãs, já estimulada por Victor Duruy, uma etapa ne­
cessária no currículo dos mais brilhantes estudantes franceses, a começar
por Ernest Lavisse, Gabriel Monod, Charles Seignobos ou Camille Jullian,
para ficarmos apenas nos historiadores. O que surpreende na Alemanha
é a luz que várias universidades irradiam, enquanto na França é apenas a
Sorbonne que tem um peso esmagador, sem que, por isso, se tenha cons­
tituído num polo inovador. Essa característica da geografia universitária
germânica é o produto paradoxal da fragmentação desse espaço, durante
a maior parte do século XIX, em uma pluralidade de Estados dos quais
cada soberano se esforçou em desenvolver um núcleo universitário. Disso
resulta um “mercado acadêmico” caracterizado pela mobilidade. Esse no-
madismo dos professores e dos estudantes em busca de melhor situação
ou de melhor formação não para de impressionar os universitários fran­
ceses seduzidos por esse liberalismo temperado, saldos de um sistema em
que a tutela do Estado e, portanto, do poder político se exerce sobre as
nomeações dos professores e pesa até na definição do programa tratado.
Ao contrário da França, onde os estudantes são ouvintes livres, onde os
cursos atraem um público com motivações variadas e onde os próprios
campos disciplinares só são definidos na ausência de ementas específicas,
as universidades alemãs operaram precocemente uma mutação discipli­
nar. Victor Duruy em 1868 e, depois, Ernest Lavisse opõem o público
das universidades alemãs ao público um tanto mundano da Sorbonne.
Além desse público assíduo que se dedica à ciência como a um sacerdó­
cio, que na descrição de Lavisse se destaca pela pobreza do vestuário, a
força da Universidade alemã reside em formar um corpo. Seignobos se
mostra atento a tudo o que facilita a formação de um sentimento de per-
tencimento a um grupo específico. Assim, ele observa que na saída dos
seminários, realizados na casa do professor, os estudantes costumam ir
juntos à cervejaria, onde se cria um laço pessoal entre os alunos de um
mesmo professor. A sociabilidade, é claro, não é o único benefício dos
seminários. Sua primeira virtude é formar os estudantes para manejar os
métodos críticos: “o seminário [...] é, na Alemanha, a verdadeira escola
dos historiadores. Aluno de um professor é não aquele que assistiu a suas
24 Lições de história

aulas, mas o que participou de seu seminário. É aí que convém procurar a


verdadeira medida do ensino atual da história”.5 Acrescentemos que esses
relatórios, tabelas e artigos evidenciam a importância dos recursos desti­
nados além-Reno à universidade, o que contrasta com a mesquinharia dos
que lhe são destinados na França.
Ademais, os historiadores alemães desempenham um papel funda­
mental na identidade nacional. Os historiadores foram os verdadeiros
promotores do novo império alemão. O editorial do número inaugural
da Revue de Schmidt (1843), da qual Leopold von Ranke é um dos fun­
dadores, publicado por ocasião do milésimo aniversário do tratado de
Verdun — celebrado pela Prússia como o certificado de nascimento da
Alemanha —, exalta Clio como “mãe e mestra” da vida política nacional.
Da mesma forma, A história romana de Berthold Georg Niebhur (1811)
tem por função mostrar aos alemães como se poderia criar o Estado de
que sentem falta. Esse papel de fermento nacional só podia fascinar os
historiadores franceses no momento em que esses ambicionam ter fun­
ção semelhante em seu próprio país. Estão também impressionados — a
despeito de numerosas críticas quanto à forma — com a força e o rigor da
historiografia alemã. Assim, Ranke é qualificado de “escravo da verdade
histórica”. Mais do que tudo, a organização e a codificação dos estudos
históricos infundem respeito aos franceses. A erudição alemã, apoiada
no domínio das ciências auxiliares (filologia, paleografia, numismática,
diplomática, entre outras), parece ser a única via para fundar a história.
Sua transmissão assegura a possibilidade dessa constituição disciplinar à
qual aspiram os reformadores franceses. Mas a história na Alemanha não
é apenas um fermento nacional, é um método.
O método histórico alemão se inscreve na continuidade da tradição
erudita do século XVIII. É redefinido por Wilhelm von Humboldt (1767-
1835), cientista e estadista, fundador da Universidade de Berlim em 1810
e irmão do geógrafo Alexander von Humboldt. De saída, sua obra A missão
do historiador (1821) reafirma o objetivo do conhecimento que, desde Tu-
cídides, funda o contrato de verdade que rege a história: “a missão do his­
toriador é expor o que se produziu”.6 Entretanto, de imediato ele precisa:

5 Seignobos, 1934:90.
6 Humboldt, 1985:67.
História e historiadores no século XIX 25

“mas o que se produziu não é visível no mundo sensível senão em parte, o


restante tem que ser sentido, concluído, adivinhado para além disso”.7
Humboldt emprega mais adiante o termo analogia. Ele inscreve a
prática historiadora numa tensão entre investigação rigorosa, imparcial e
crítica, que é um elemento constitutivo de seu ofício — sua “missão profis­
sional” —, e a necessidade de operar uma síntese que mobilize a intuição
do todo. A base estável da disciplina é fornecida pela filologia, à qual ele
consagra longos estudos. Mas é o estabelecimento da conexão (Zusamme-
nhang) que se mostra a operação mais perigosa. A história, longe de ser
concebida como uma ata do real, é apresentada como uma imitação, à
imagem da criação artística. Entretanto, destaca Humboldt, a finalidade
é diferente, já que a história é animada pela ambição de tender para o
verdadeiro. Para atingir esse objetivo, a história tem que se emancipar da
filosofia. Com Humboldt, temos o nascimento do historicismo, isto é, de
uma história ligada ao particular para tentar dar conta da ação humana.
Humboldt inspira grandemente o historiador alemão Leopold von Ranke.
Leopold von Ranke (1795-1886) é uma figura maior dentro da histo­
riografia alemã. Professor da Universidade de Berlim de 1825 a 1871, ele é,
desde 1841, o historiador oficial da Prússia. Sua obra histórica é centrada
na Reforma (especialmente na Alemanha, na França e na Inglaterra), mas
sua influência ultrapassa de muito o campo da história moderna. É líder
de uma escola, o “seminário”, no qual viriam, a partir de 1833, se iniciar
na crítica e no método históricos a maioria dos eruditos e historiadores
alemães, como Droysen, que foi seu aluno e fala da Ranke-schule (escola
de Ranke).
Como Humboldt, Ranke se recusa — em razão de suas convicções
religiosas — a inscrever a história num porvir cujas leis pudessem ser de­
finidas. De fato, o determinismo histórico que marca tanto o positivismo
de Auguste Comte quanto o devir histórico de Hegel, de quem ele é colega
na Universidade de Berlim, leva, a seu ver, a suprimir qualquer valor às
escolhas e às ações dos homens. Essas teorias que renegam a liberdade
humana lhe aparecem como “absolutamente indignas de Deus”, o livre-
arbítrio parecendo ser apenas uma “ilusão”.8 Ele rejeita a ideia de um

7 Humboldt, 1985:67.
8 Ranke, 1994:336.
26 LiçOes de história

desenvolvimento linear e ritmado pelos progressos sucessivos da humani­


dade, ideia que a experiência de inúmeras civilizações contradiz, princi­
palmente na Ásia, que “depois de períodos de altas florações caiu de novo
na barbárie”.9
Por conseguinte, o historiador deve se mostrar modesto, evitar os
raciocínios abstratos e demasiados generalizantes para se ater somente
aos fatos. Essa concepção estabelece uma separação entre a história e a
filosofia. Com Ranke, a história não é mais um gênero moralista, não é
mais magistra vitae. Ela se quer uma prática empírica e positiva ao oposto
da filosofia, destinada à teoria e à especulação. A ambição é, sem tirar
nem pôr, destronar a filosofia em benefício da história como síntese de
conhecimentos sobre os homens. É, de acordo com seus próprios termos,
uma “ciência livre e objetiva” que Ranke pretende fundar.
A corrente historicista trazida por Ranke não se resume à historiografia
de além-Reno. Johann Gustav Droysen defende, por seu lado, uma história
de reflexão em sua obra Précis de théorie de Vhistoire,10 que rompe com
a teoria do refletido, cara a Ranke. Ele problematiza a historicidade
fundamental de qualquer investigação histórica e convida o historiador a
.
enunciar explicitamente as questões que formula aos vestígios conservados,
bem como a se perguntar sobre as razões que o levaram a formulá-las.
Nessa diversidade, a historiografia alemã terça suas armas e se impõe como
referência em inúmeros setores da história. Citemos para a Antiguidade
grega e romana as obras de Friedrich August Wolf ou de August Bõckh,
que colocam a filologia a serviço da história, a de Johann Gustav Droysen
(Grécia helenística), ou a de Theodor Mommsen (Roma).
Assim, Michelet dedica a Niebhur um estudo elogioso — ainda que
crítico — em que este reduz a história de Roma ao nível das “conquistas”
alemãs, a tal ponto que, para ele, esta se afigura como “colónia germânica”.
Camille Jullian, que cita esse texto em sua coletânea sobre os historiadores
do século XIX, comenta: “esse questionamento de Michelet tem, ainda
hoje, sua razão de ser. Durante séculos, os alemães se mantiveram na
dianteira em relação a nós quanto aos estudos da história romana. [...]

9 Ranke, 1994:337.
10 Droysen, 2002.
História e historiadores no século XIX 27

[Suas] publicações das inscrições da Gália e [suas] traduções dos tratados


de direito romano reinam soberanamente em nossas escolas”.11
Podemos imaginar como a Alemanha parece, aos olhos dos historia­
dores franceses no início dos anos 1870, uma espécie de terra prometida
da história. Certamente, alguns deles se esforçam em achar também de­
feitos no sistema alemão. Depois de tudo, Lavisse observa, “nós não esta­
mos proibidos de ambicionar fazer melhor que nossos vizinhos”.12 Mas a
atração é evidente, tanto assim que os meios nacionalistas franceses não
terão palavras duras o bastante para estigmatizar essa germanofilia que eles
julgam antinatural, principalmente quando os principais nomes da escola
metódica tomam, em sua maioria, o partido de Dreyfus. Então, nesse con­
certo de louvação, Fustel de Coulanges marca sua diferença ao sustentar
que “o método a que alguns hoje chamam de alemão [...] é francês há dois
séculos”.13
Na entrada do século XX, as qualidades que um historiador deve ter
estão definidas: modéstia, prudência, erudição, recusa das paixões. Por
causa das reviravoltas políticas ocorridas, e do lento amadurecimento da
disciplina, a história ocupa um lugar central: “nosso século”, sustenta
Monod, “é o século da história”. A profissionalização dos historiadores
decorre, num primeiro momento, de uma operação de delimitação, da
definição de uma norma legítima que marque os contornos de uma co­
munidade científica que garanta a validade do saber histórico. Essa clau­
sura se efetua em dois planos: a organização do ensino e a codificação
do método.
O discurso do método histórico é delimitado em 1898 por Charles-
Victor Langlois e Charles Seignobos em Introduction aux études historiques.
Ambos são professores titulares de história e doutores em história medie­
val. O primeiro, nascido em 1863, também é chartiste. É para transmitir
as competências assim adquiridas na École des Chartes que ele se torna
professor assistente, mais tarde catedrático da Sorbonne. Em 1913, assu­
me a direção dos Arquivos Nacionais. O segundo, normalien, se torna em
1898 o substituto de Lavisse em história moderna, professor assistente em

11 Jullian, 1897:304.
12 Lavisse, 1879:48.
13 Apud Hartog (1988:340).
28 Lições de história

pedagogia da Sorbonne, antes de ser nomeado professor de metodologia


histórica em 1907. Em 1921, ele se torna catedrático de história política
da idade moderna.
À semelhança dos Handbúcher e de Grundisse alemães, a íntroduction
é um manual de metodologia, o primeiro dessa envergadura em francês
capaz de concorrer com o Compêndio da ciência histórica de Johann Gustav
Droysen, traduzido e publicado na França em 1887. As indicações são
precisas e não se dignam a entrar em considerações demasiado materiais,
tais como a recomendação de anotar de preferência em fichas, em vez de
cadernos. Além desse aspecto descritivo, que define até o estilo que con­
vém ao historiador, Langlois e Seignobos tentam reconstituir o conjunto
ias etapas da elaboração da história. Começam por expor a pesquisa das
>ntes, depois passam à apresentação das diversas críticas. A crítica externa
í de erudição determina a autenticidade do documento, define sua ori-
em e permite datá-lo ao recorrer às disciplinas auxiliares. É uma condição
necessária à história. A íntroduction dá conta das exigências do momento
sobre a classificação das fontes e prega uma divisão do trabalho entre os
eruditos encarregados de estabelecer os textos e os historiadores que de­
vem explorá-los. Ao fazer isso, esse livro define uma deontologia — uma
ética da história — e uma epistemologia.
Nos anos 1890-1910, a história metódica entra numa zona de tur­
bulência. Encontra-se aprisionada entre dois fogos: de um lado, os que
censuram seu culto da objetividade e a sua fraqueza em considerar os pro­
cessos específicos do conhecimento histórico; de outro, os que denunciam
seu enraizamento grande demais no particular e no individual, o que tem
por resultado um déficit científico. Em ambos os casos, é a definição lar­
gamente empírica das práticas históricas que é derrubada. Na Alemanha,
o debate se inicia nos anos 1890. Ele opõe, de um lado, os que são favo­
ráveis a uma mutação científica da história que deveria se operar — mais
ou menos — a partir do modelo das ciências da natureza, considerando
(de vários modos) a noção de coerção, quer para construir as leis do devir
histórico (Karl Marx), quer para definir os tipos ideais (Max Weber); de
outro lado, aqueles que definem a história como ciência do espírito (Wi-
lhem Dilthey).
No seio da comunidade de historiadores, Karl Lamprecht recomenda
precocemente o comparatismo e questiona o fundamento individual da
História e historiadores no século XIX 29

história defendido por Ranke e sua escola: “o indivíduo não possui portan­
to uma liberdade absoluta, ele se move encerrado em seu tempo [...] e tem
somente a liberdade de que dispõe o passageiro a bordo de um navio”.14
Ele pretende fundar a história sobre a noção englobante de cultura. Outros
autores, muitas vezes filósofos, insistem, ao contrário, no fato de que o
conhecimento histórico é o conhecimento de fatos idiográficos. A história
é a “ciência do individual, do que ocorre uma vez, em contraste com o
que acontece nas ciências naturais, que têm por objeto o universal, o que
ocorre sempre com as mesmas características”.15
Como Humboldt já fazia, eles dão ênfase à subjetividade em curso na
escritura da história, à compreensão (verstehen) que o diálogo entre duas
subjetividades pressupõe: a do passado, tal como transparece através dos
documentos, e a do próprio historiador. Eles aprofundam o antigo con­
ceito de hermenêutica (interpretação) e destacam que a especificidade das
“ciências da mente” diante das ciências da natureza se deve, exatamente,
à compreensão da ação humana como sendo dotada de sentido. Essa filo­
sofia crítica da história, qualificada de “historicismo”, é formulada — com
nuanças — por filósofos como Wilhem Windelband, Georg Simmel, Wi-
lhem Dilthey ou Heinrich Rickert.
Diferentemente do que ocorria nos anos 1870, agora é uma reserva
que, de preferência, se manifesta diante das teorias alemãs. Berr insiste nes­
se ponto durante sua exposição. Dessa forma, a virada do século é marcada
por uma relativa autonomização em relação à Alemanha, cujos debates
são lidos através dos enfrentamentos que opõem, na França, os durkhei-
mianos e os metódicos. Essa instrumentalização que amalgama posições
muito diferentes para reconstruir uma oposição simples entre partidários
de uma ciência monotética, calcada nas ciências da natureza, e historicistas
idiográficos foi por muito tempo capaz de encobrir a complexidade das
questões levantadas além-Reno. Daí para a frente é o estilo nacional da
historiografia, tal como se constitui no momento de fundação da disci­
plina, que se impõe e sobredetermina as trocas entre os historiadores dos
diferentes países.

14 Lamprecht, 1900:26.
15 Rickert, 1901:123.
30 Lições de história

Ora, o acontecimento maior do cenário francês é a emergência da


sociologia e, mais precisamente, da sociologia durkheimiana. Com efeito,
o projeto sociológico, como vontade de estabelecer regras do funciona­
mento social e do devir histórico, é anterior ao fim do século XIX. Esse
projeto de fazer da sociologia uma ciência inteira — Auguste Comte fa­
lava da “física social” — é aparentado com o realizado por Taine e Fus-
tel de Coulanges. Esse parentesco é aliás reivindicado por Durkheim no
prefácio do primeiro número de UAnnée Sociologique. Entre outros, Louis
Bourdeau — autor de um ensaio de 1888 intitulado Sur Vhistoire consi-
dérée comme Science positive — encarna esse horizonte cientificista. As
tomadas de posição a favor de uma história concebida como ciência do
social são então numerosas. Essa vontade comum de certos historiadores
e sociólogos de levar em consideração grupos sociais e economia é asso­
ciada muitas vezes ao engajamento ou à simpatia socialistas. Lucien Herr,
bibliotecário da Escola Normal Superior, desempenhou dessa forma um
papel importante na difusão das ideias socialistas entre várias gerações
de normaliens.
Ainda que uma sociedade francesa de sociologia tenha sido fundada
em 1872 por Littré, a emergência da sociologia é lenta. Correntes rivais se
enfrentam. Émile Durkheim, ao constituir uma verdadeira escola, conse­
gue marginalizar tanto René Worms (que sustenta uma interpretação na­
turalista, organicista dos fenômenos sociais) quanto Gabriel de Tarde (que
recusa o modelo naturalista e põe no cerne de sua abordagem a psicologia
coletiva). Professor titular de filosofia e normalien, encarregado do cur­
so de “ciência social e educação” na Universidade de Bordeaux em 1887,
Durkheim define sua própria doutrina (Les régles de la méthode sociologique),
que ele aplica à divisão do trabalho (1893) e ao suicídio (1897). Ele funda
em 1898 UAnnée sociologique, da qual participam Célestin Bouglé, Maurice
Halbwachs, Mareei Mauss, François Simiand, entre outros. Essa revista se
torna o polo de adesão a essa nova corrente que se impõe como represen­
tante da sociologia e vai contribuir na França para se ignorarem quaisquer
outras filiações da sociologia — a sociologia compreensiva alemã, a de Max
Weber, de Simmel, de Dilthey —, que assim se encontram privadas de le­
gitimação. O divórcio é óbvio entre as duas orientações, e as referências a
Weber são raras na língua francesa, contrastando com a abundante biblio-
História e historiadores no século XIX 31

grafia em língua inglesa.16 Essa situação remete à ignorância voluntária de


uma orientação da sociologia antinômica em relação à corrente durkhei-
mo-marxista dominante na época. De fato, temos aí duas vias opostas entre
a filiação positivista comtiana, cujo modelo heurístico é a física mecânica,
e a filiação da sociologia compreensiva, para a qual as ciências da mente
não podem ser dissociadas das ciências da natureza. Houve, portanto, uma
ruptura na virada do século que voltou à cena no pós-guerra entre a filoso­
fia crítica da história de Simmel, Dilthey ou Weber, e a tradição positivista
que a criticava por psicologizar as ciências históricas.17

16 Le savaní et le politique, de Max Weber, só foi traduzido para o francês em 1959 por Julien
Freund; Les essais sur la théorie de la Science, apenas em 1965; e Léthique protestante et Vesprit du
capitalisme, em 1964.
17 Mesure, 1993.
r/
Voltaire*
Daniela Kern

Filho de um burguês, o notário François Arouet (1650-1722), e de Marie


Marguerite cTAumart (c. 1660-1701), uma aristocrata, o futuro poeta, en­
saísta, romancista, contista, dramaturgo, polemista, crítico, filósofo e his­
toriador François Marie Arouet nasceu em Paris no dia 21 de novembro
de 1694.1 Em 1704 ingressou no prestigiado Collège Louis-le-Grand, um
dos melhores de Paris. Pouco depois, em 1705, conheceu, através do aba­
de Châteauneuf (1645-1708), seu padrinho, a escritora Ninon de Leclos
(1616-1705), influente cortesã à época de Luís XIV, que lhe deixou uma
significativa soma em dinheiro, 2 mil francos, para que comprasse livros.
No colégio, François aprendeu latim e teve aulas de retórica com o
jesuíta René-Joseph de Tournemine (1661-1739), correspondente do sinó-
logo jesuíta Joachin Bouvet (1643-1730), que viveu em Pequim até o final

«
* A vastidão da bibliografia sobre Voltaire ainda pode ser inferida pelo hoje clássico artigo de Barr
(1951). Limitando-nos aqui a indicar algumas obras relevantes sobre a atuação de Voltaire como
historiador, tais como o estudo pioneiro de Brumfitt (1958) e a recente análise de Volpilhac-Auger
(2009). A melhor edição das obras literárias de Voltaire continua a ser Voltaire (1958).
1A data do nascimento de Voltaire não é ponto pacífico. Ainda que hoje se aceite o dia 21 de novem­
bro de 1694, é importante lembrar que contemporâneos de Voltaire, como seus secretários Long-
champ e Wagnière, e como seu biógrafo Condorcet, além do próprio Voltaire, insistiam na data de
20 de fevereiro, alegando que nascera muito frágil e que fora batizado, por decisão da família, apenas
em novembro do mesmo ano. Ver Longchamp e Wagnière (1826:2); Condorcet (1789:3).
A 0OO 7^
34 LiçOes de história

da vida.2 Toumemine provavelmente foi o primeiro a despertar no jovem o


interesse pela cultura chinesa, que nunca iria abandoná-lo.
Em 1711 François deixou o colégio jesuíta e, indeciso quanto ao futu­
ro profissional, começou a se envolver em problemas. Já havia conhecido
anteriormente a sociedade epicurista Libertinos do Templo, através de seu
padrinho, e passou a frequentá-la. Em 1713 seu pai, insatisfeito com sua
decisão de se tornar escritor e também com sua vida social, decidiu enviá-
lo para Haia, como secretário de embaixada. Lá François arranjou novo
problema ao se apaixonar e ao tentar sequestrar e converter ao catolicis­
mo a jovem protestante Catherine Olympe Dunoyer, a “Pimpette”, uma
refugiada francesa de poucos recursos. O pai de François mais uma vez
interveio e fez com que o filho retornasse a Paris e prometesse estudar di­
reito. Mas, em vez de trabalhar como assistente de um advogado em Paris,
conforme dizia ao pai, Voltaire continuou a ocupar seu tempo com a escrita
de poemas satíricos e com uma intensa vida social.
Em 1717 o jovem François envolveu-se em um problema de maiores
dimensões, e não mais contou com a ajuda do pai: por haver escrito versos
ofensivos ao regente, Filipe, duque de Orléans (1674-1723) — lembremos
que Luís XIV morrera em 1715, e que Luís XV assumiria efetivamente o
trono apenas em 1723 —, passou 11 meses preso na Bastilha. O período
de confinamento ainda assim foi proveitoso: François começou a elaborar
o poema La Ligue e a tragédia Oedipe.
Em 1718, livre, François decidiu criar um pseudónimo que marcasse
sua autonomia e o fim do jugo paterno. Assim surgiu o nome Voltaire, cujo
sentido é controverso: anagrama de Arouet o jovem em latim, ou de Airvault,
residência da família materna em Poitou. Também em 1718 Voltaire estreou
no teatro com a tragédia Oedipe, obtendo imenso sucesso.
Voltaire continuou a trabalhar em seu mais ambicioso projeto da épo­
ca, o poema La Ligue, mais tarde intitulado Henriade. Esse poema, que pas­
sou a circular clandestinamente em 1723 — ao tratar do reino de Henri­
que IV (1553-1610), responsável pelo Édito de Nantes (1598), que pusera
fim à guerra civil religiosa travada na França entre católicos e protestan­
tes —, foi tido em alta conta por muitos de seus contemporâneos, como
Duvemet (1734-1796), que o considerava o poema épico dos franceses

2 Rowbotham, 1932:1.051.
VOLTAIRE 35

contra o fanatismo, e Condorcet (1743-1794), que nele via a mesma marca


de gênio presente na Eneida.3
Nessa época Voltaire já lia com afinco a obra do crítico protestante
Pierre Bayle (1647-1706),4 a quem deveu muitas das estratégias críticas
que haveria de adotar em seus trabalhos históricos.5 Admirador de Thomas
Morus (1478-1635) e das correções que ele fizera em obras de eruditos
como Joseph Scalinger (1540-1609), em 1692 Bayle projetou uma vasta
obra, um dicionário crítico protestante que haveria de responder ao Le
grand dictionaire historique do católico Louis Moréri (1643-1680), e que se­
ria elaborado a partir de 1696. Em seu projeto Bayle propunha a crítica dos
erros da história que então se praticava: “e que não me seja dito que nosso
século, [...] curado do espírito que reinava no precedente, olha apenas
como pedantismos os escritos daqueles que corrigem as falsidades de fato,
concernentes ou à história particular de grandes homens, ou ao nome das
cidades, ou tais outras coisas; porque [...] jamais tivemos mais apego do
que hoje a esses grandes esclarecimentos”.6 Propunha também a utilização
de novas fontes históricas a fim de tornar possível a correção dos vários ti­
pos de erros detectados no trabalho dos historiadores: “jamais a ciência do
antiquariado, quero dizer o estudo das medalhas, das inscrições, dos bai­
xos-relevos etc., fora cultivada como o é agora. A que chega ela? A melhor
estabelecer o tempo em que certos fatos particulares ocorreram; a impedir
que se tome uma cidade ou uma pessoa por uma outra; a fortificar conjec-
turas sobre certos ritos dos antigos; e a cem outras curiosidades [...]”.7 Vol­
taire lembraria dessas lições mais tarde, ao comentar os monumentos em
seu artigo Histoire, e também ao criticar com veemência a obra de Moréri.8
A relação intelectual de Voltaire com Bayle, no entanto, estava longe de ser

3Duvemet, 1786:55; Condorcet, 1789:17.


4 Para uma relação das obras de Bayle que Voltaire possuía em sua biblioteca em São Petersbur-
go, comprada por Catarina a Grande após sua morte, ver Havens e Torrey (1929:4).
5 Para um breve levantamento das referências elogiosas de Voltaire a Bayle ao longo de sua obra,
ver Haxo (1931:461). Haxo se concentra na localização de pontos de contato entre ambos até
1726 e comenta detalhadamente possíveis influências de Bayle no poema Henriade.
6 Bayle, 1692:35 (todas as citações de trechos de obras que na bibliografia se encontram em
francês ou inglês foram traduzidas pela autora).
7 Ibid., p. 35.
8 Para uma versão abreviada do dicionário, ver Moréri (1701). Voltaire não se refere, no entanto,
a essa edição em seu artigo Histoire.
36 LiçOes de história

passiva: assim como era capaz de elogiar efusivamente o grande crítico,


também era capaz de discordar dele — para Voltaire, Thomas Morus, por
exemplo, não passava de um “selvagem fanático”.9
A relativa tranquilidade da vida pública de Voltaire teve fim em 1726,
quando, mais uma vez devido a versos satíricos, brigou com o príncipe de
Rohan-Chabot (1683-1760), foi preso e forçado a buscar exílio na Ingla­
terra. Novamente Voltaire soube tirar o máximo proveito de um contra­
tempo: em sua temporada inglesa frequentou proeminentes intelectuais,
como Pope, conheceu Swift e compareceu ao enterro de Newton. O exílio
acabou em 1728, e Voltaire retornou a Paris.
Em 1731 Voltaire deu mais um passo em sua carreira de historiador,
ao publicar a Histoire de Charles XII. A história do aventureiro rei sueco,
retratado por Voltaire de modo bastante irónico, teve muitos defensores,
como Duvernet: “Voltaire preparou a história de Charles XII; história que
a posteridade olharia como um romance, se uma multidão de testemunhas
oculares dela não houvesse atestado a veracidade e a exatidão”.10 Mas tam­
bém haveria de atrair críticas no futuro, como as de Napoleão, que lera a
obra após viajar pelos lugares descritos por Voltaire e que julgara seu relato
J “fraco e impreciso”.11
Voltaire trabalhava em um ritmo intenso. Em 1732 começou a pensar
em Le siecle de Louis XIV e escreveu Za\de\ em 1733 causou polêmica com
Le temple du goúí, e em 1734 publicou as Lettres philosophiques. O escânda­
lo provocado por essa obra, que comparava a França desfavoravelmente à
Inglaterra, foi grande a ponto de forçar Voltaire a deixar Paris. Enquanto
exemplares de sua obra eram queimados, Voltaire encontrou abrigo junto
a uma velha amiga, madame du Châtelet. Os dois se tornaram amantes e
passaram os nove anos seguintes no Château de Cirey, envolvidos em estu­
dos de ciência e de filosofia.
Durante esse período Voltaire iniciou a troca de correspondência com
Frederico, o futuro rei da Prússia (1736), publicou, juntamente com ma­
dame du Châtelet (tradutora de Newton para o francês), Eléments de lo.

9 Ver Meyer (1958:67-68). Para um comentário sobre as críticas de Voltaire a Bayle e a Bernard
Fontenelle (1657-1757), escritor francês que defendia a ciência e a tradição cartesiana, ver
Brumfitt (1958:26).
10 Duvernet, 1786:62.
11 Ver Morley (1906:306-307).
VOLTAIRE 37

philosophie de Newton (1738) e causou polêmica com mais um livro que


criticava a religião, Mahomei ou le fanatisme (1741).
Em 1744 a sobrinha de Voltaire, Marie-Louise Mignot, filha de sua
irmã mais velha, Catherine, ficou viúva, e se tornou amante do tio, que já
demonstrara inclinação por ela. A relação de Voltaire com madame Denis,
como era conhecida, seria duradoura, mas não era baseada em fidelidade.
Madame Denis teria ainda vários amantes, inclusive um dos amigos de
Voltaire, Marmontel.
O auge da boa sorte de Voltaire nesse período se deu em 1745, quando
se tornou historiógrafo da França, ingressou na Académie Française e rece­
beu uma carta de gentilhomme, tudo isso porque passara a contar com amigos
poderosos no reinado de Luís XV, entre eles a própria madame de Pompa-
dour, amante do rei. Nesse mesmo ano apressou-se em publicar um poema
sobre a batalha de Fontenoy, ocorrida em 11 de maio de 1745, batalha em
que os franceses, liderados pelo marechal de Saxe (1696-1750), venceram
os ingleses inesperadamente. A pressa em aproveitar o interesse do público
pelo acontecimento,12 no entanto, fez com que Voltaire fosse obrigado a re­
visar o poema muitas vezes, de modo que, apenas naquele ano, dele foram
publicadas seis edições.13
A batalha de Fontenoy despertou grande interesse em Voltaire como
historiador, tanto que a ela ainda iria dedicar uma detalhada análise em seu
livro sobre a guerra de 1741.14 A precisão de seu poema sobre a batalha,
contudo, seria posta em dúvida por seu grande adversário, o abade Pierre-
François Guyot Desfontaines (1685-1745), professor de retórica, colabo­
rador do Journal des Sçavans e crítico contumaz de suas tragédias, naquela
que seria a última querela entre ambos. Desfontaines, odiado pelos admira-

12 A pressa se justifica: eram vários os poemas e panfletos sobre a batalha que disputavam a
atenção do público, tanto na Inglaterra quanto na França. Na Inglaterra, por exemplo, eram pu­
blicadas sátiras sobre a batalha (ver Fontenoy, a new satyric...), assim como traduções de relatos
franceses do evento (ver The Journal of the...).
13 A edição mais criticada por Desfontaines é a primeira. Ver Voltaire (1745).
14 Voltaire (1757:242) encerra o capítulo destinado à batalha de Fontenoy assim: “entramos nes­
se longo detalhamento da batalha de Fontenoy porque sua importância o merece. Esse evento
determinou o destino da guerra, pavimentou o caminho para a conquista dos Países Baixos, e
serviu como contraponto para todos os desapontamentos. A presença do rei e de seu filho, e
o perigo a que esses dois príncipes e a França estavam expostos aumentaram grandemente a
importância desse para sempre memorável dia”.
38 LiçOes de história

dores de Voltaire,15 criticou vários aspectos do poema, como a imprecisão


topográfica e, sobretudo, factual: “você se apresenta, senhor, na primeira
edição de seu poema, como historiógrafo da França. Bela amostra que o
senhor dá de seu talento para a história! O senhor adota tudo o que lhe
disseram: verdadeiro ou falso, não importa. A sua imaginação acalorada é o
seu único guia: o senhor acredita em tudo, e nada discute”.16 Desfontaines,
no entanto, morreu pouco depois da sexta edição do poema vir a lume,
em dezembro daquele ano, e Voltaire continuou a desfrutar da boa fase
literária e política.
Tudo mudou em 1747, com o incidente do jeu de la reine: após ma-
dame du Châtelet perder grande soma em dinheiro em um jogo promovi­
do pela rainha, Voltaire disse que ela perdera porque estava jogando com
“patifes”, o que foi entendido como grave insulto e rendeu a Voltaire uma
ordem real para deixar Paris.
Voltaire primeiro refugiou-se em Sceaux, na duquesa do Maine. Nesse
ínterim, madame du Châtelet morreu de parto, em 1749 (ficara grávida de
>utro amante), e Voltaire sentiu muito a perda. Após uma breve estada em
aris, decidiu se mudar para Potsdam, em 1751, a fim de encontrar Frede-
ico da Prússia. Voltaire, que acabara de publicar uma de suas obras histó­
ricas mais importantes, Le siecle de Louis XIV (1751), na corte de Frederico
escreveu, em 1752, Micromégas, uma das primeiras obras de ficção científica.
Os problemas, contudo, não tardam a aparecer. Voltaire se indispôs com
Maupertius, o presidente da Academia de Ciência de Berlim, foi por ele pro­
cessado e, em reação, escreveu a sátira Diatribe du docteur Akakia, que atacava
seu inimigo diretamente. Voltaire foi preso e, passados alguns meses, teve de
deixar Berlim em 1753.
Sua atividade como historiador se intensificou: ainda em 1753 iniciou
a publicação de uma obra histórica de fôlego, os Annales de 1'Empire. Em
1755, já instalado em sua nova residência (les Délices), perto de Genebra,
provocou mais uma vez grande repercussão com o Poeme sur le desastre de
Lisbonne. E em 1756, além de lançar outra de suas obras históricas mais
significativas, o Essai sur les moeurs, passou a colaborar com artigos para

15 Duvernet (1786:48) criticou Desfontaines nesses termos: “um dos mais desprezíveis e piores
homens pelos quais a república já fora envenenada”.
16 Desfontaines, 1745:3.
VOLTAIRE 39

a Encyclopédie. Um deles é o verbete histoire,17 em que sintetiza os temas e


pontos de vista que desenvolvera em suas obras históricas anteriores. As­
sim, Voltaire fala tanto sobre os chineses18 quanto sobre as pesquisas de an­
tiquário, tanto sobre Carlos Xll (1682-1718) e os costumes turcos19 quanto
sobre as vitórias do marechal de Saxe. Voltaire insiste na necessidade de
verificação dos fatos pelo historiador e no cuidado com relação ao uso de
fontes, ainda que ele mesmo, diferentemente de Bayle, obcecado por notas
de rodapé, não costumasse citar as suas.20 A preocupação com a veracidade
dos fatos não era exclusiva de Voltaire e se refletia em outras obras da épo­
ca, como o Traité des différentes sortes de preuves qui servent à établir la vérité
de Vhistoire (1758), de Henri Griffet (1698-1771). Obra muito bem-suce­
dida, nela o autor, organizador dos trabalhos históricos do padre Gabriel
Daniel (1649-1728), procurou classificar todos os erros que se podiam
encontrar na história (erros de datas, de fatos, de circunstâncias, de geo­
grafia). A admiração por Bayle não é ocultada: “Bayle, em seu Dictionnaire,
muitas vezes encontra o próprio m. de Thou incorrendo em erro a respeito
da data de diversos fatos memoráveis que se haviam passado em seu tem­
po, e que para ele teria sido muito fácil verificar”.21 Quanto ao cuidado de
Voltaire no que diz respeito aos fatos com os quais trabalhava, não apenas
detratores como Desfontaines o criticavam. Hume, por exemplo, em carta
enviada a um amigo, comentando a Histoire universelle (1753) de Voltaire,
não o poupou: “eu sei que não se pode confiar no autor com relação aos
fatos; mas sua visão geral é por vezes sonante, e sempre divertida”.22
Pouco depois de redigir Candide, Voltaire adquiriu em 1758 a proprie­
dade de Ferney, localizada na fronteira franco-suíça, para onde se mudou
com madame Denis. No ano seguinte Candide foi publicado com estrondo-

17 Voltaire, 1765:220-225.
18 Ver especialmente Rowbotham (1932:1053,1057 e 1063). Para uma análise da falta de orien­
tação historicista no modo como Voltaire tratava a moderna cultura chinesa, ver Rosenthal
(1958:172).
19 Ao discorrer sobre os turcos, Voltaire condenava vivamente a existência dos eunucos, de­
monstrando uma preocupação pelo tema característica dos pensadores iluministas. Cf. Goss-
man (1982:40-50).
20 Brumfitt, 1958:129.
21 Griffet, 1769:82.
22 Meyer, 1958:51.
40 LiçOes de história

so sucesso em toda a Europa, e Voltaire deu prosseguimento a seus traba­


lhos históricos, escrevendo a Histoire de la Russie sous Pierre le Grand.
A partir de 1762 uma nova etapa da vida pública de Voltaire teve iní­
cio, com o rumoroso caso Jean Calas. O comerciante protestante Jean Calas
(1698-1762), de Toulouse, em 9 de março de 1762 fora condenado pelo
assassinato do filho, Marc-Antoine, 28 anos (1732-1761). No dia seguinte,
jurando inocência até o final, foi cruelmente morto na roda. Alegou-se
que ele teria matado o filho por não concordar com sua conversão ao ca­
tolicismo. Voltaire ficou muito perturbado com a condenação e passou a
acompanhar os fatos de perto. Convencido da inocência de Calas, recebeu
em Ferney seus outros filhos, Pierre e Donat. Mais do que isso, passou a
liderar uma intensa campanha pública contra o magistrado municipal de
Toulouse, David de Beaudrigue, a quem denunciou por acusar Calas injus­
tamente, e chegou mesmo a fazer com que a viúva de Calas se apresentasse
a Luís XV, causando grande comoção na corte. Os argumentos de Voltaire,
explorados no Traité sur la tolerance (1763), eram incisivos: “mas se um
pai de família inocente é entregue às mãos do erro [...], se os árbitros de
sua vida [...] podem matar impunemente por um decreto, então o clamor
público se eleva, cada um temendo por si próprio; vemos que ninguém
tem garantia de vida diante de um tribunal erigido para zelar pela vida
dos cidadãos [...]”.23 Seus esforços foram recompensados: em fevereiro de
1765 Beaudrigue foi destituído de sua função, e em 9 de março Jean Calas,
finalmente, foi reabilitado. Ficara provado que Marc-Antoine não fora as­
sassinado, mas cometera suicídio, e que a família procurara ocultar o fato
na esperança de que ele merecesse um enterro cristão.
Os últimos anos de Voltaire, passados em Ferney, foram muito ativos:
uma celebridade europeia publicou volumosas obras como o Dictionnaire
philosophique portatif (1764), inspirado naquele de Bayle, com vários arti­
gos escritos para a Encyclopédie, e as Questions sur VEncyclopédie (1770), sua
última obra filosófica. Em 1775 suas Oeuvres completes começaram a ser
publicadas pelo editor Cramer, e em 1775 Voltaire retornou a Paris para a
estreia triunfante da tragédia Irene. Provavelmente para agradar Benjamin
Franklin (1706-1790), ingressou em 4 de abril na loja maçónica das Neuf

23 Voltaire, 1831:223-224.
VOLTAIRE 41

Soeurs, que fora fundamental para a ocorrência da revolução americana.


Em 30 de maio, no auge da fama, Voltaire faleceu, deixando para trás um
imenso legado intelectual e inúmeros seguidores.
Ainda que o futuro lhe reservasse maior fama como autor de Candi-
de do que como historiador, fato é que sua obra histórica nunca deixou
de ser estudada. Nas primeiras décadas do século XIX, P. C. F. Daunou
(1761-1840) e os outros ideólogos, por exemplo, por ela manifestavam
grande apreço. Os ingleses, por outro lado, na mesma época a criticavam
duramente: Thomas Carlyle (1795-1881) entre 1830 e 1840 atacava a
falta de fé de Voltaire, e Thomas Macaulay (1800-1859) não aceitava sua
crítica à autoridade.24 A sorte do Voltaire historiador na Inglaterra mu­
daria radicalmente a partir da metade do século XIX, como se percebe
na afirmação de H. T. Buckle (1821-1862) em sua History oj civilization
in England (1857): “fui mais minucioso ao afirmar as imensas obriga­
ções que a história deve a Voltaire porque, na Inglaterra, existe contra
ele um preconceito, que nada a não ser ignorância, ou algo pior do que
ignorância, pode desculpar; e porque, tomando-o no todo, ele é prova­
velmente o maior historiador que a Europa jamais produziu”.25 A partir
de Buckle uma série de historiadores racionalistas irá valorizar Voltaire,
como John Morley (1838-1923), que a ele dedicou uma obra em 1871,
na qual elogia efusivamente seu “novo método de escrever a história”.26
No século XX Voltaire continuará a encontrar partidários e críticos. Se
Paul Meyer nos lembra que os contemporâneos de Voltaire não o viam
como um historiador revolucionário e que essa ideia surgiu apenas na
historiografia do século XIX,27 J. J. Brumfitt em poucas palavras foi capaz
de indicar a real importância de Voltaire, ainda hoje, para o estudo da
história e de sua escrita: “seja ou não Voltaire, como alguns de seus mais
entusiasmados admiradores afirmaram, o pai da moderna escrita histó­
rica, ele é certamente o mais típico e o mais universal dos historiadores
do Iluminismo”.28

24 Newman, 1977:1349.
25 Buckle, 1862:591-592.
26 Morley, 1906:307.
27 Meyer, 1958:52.
28 Brumfitt, 1958:1.
42 Lições de história

Principais obras de Voltaire:

> Oedipe, 1718;


4- La Henriade, 1723;
4- Histoire de Charles XII, 1731;
4“ Zaire, 1732;
♦ Le temple dugout, 1733;
4- Lettres philosophiqu.es sur les anglais, 1734;
4* Eléments de la philosophie de Newton, 1738;
4- Le janatisme, ou Mahomet le prophète, 1741;
4- Remarques sur 1'histoire, 1742;
4- Nouvelles considérations sur 1'histoire, 1744;
4- Zadig, ou la destinée, 1747;
4* Le siècle de Louis XIV, 1751;
4 Micromégas, 1752;
4- Annales de VEmpire depuis Charlemagne, 1754;
♦ Essai sur 1'histoire génerale et sur les moeurs et Vespirit des nations, 1756;
4 Histoire de la guerre de 1741, 1756;
•4 Poèmes sur le desastre de Lisbonne et sur la loi naturelle, 1756;
4- Candide, 1759;
4- Histoire de la Russie sous Pierre le Grand, 1759-1763;
4- Pièces originales concernant la mort des sieurs de Calas, 1762;
4- Traité sur ía tolérance, 1763;
4- Dictionnaire philosophique portatif, 1764;
4- Précis du siècle de Louis XV, 1768;
4- Les guèbres, 1769;
4- Histoire duparlement de Paris, 1769;
4- Questions surVEncyclopédie, 1770-1772.

História29

História é o relato dos fatos tidos por verdadeiros; ao contrário da


fábula, que é o relato dos fatos tidos por falsos.
Há a história das opiniões, que nada mais é do que a coletânea dos
erros humanos; a história das artes, talvez a mais útil de todas, quando

29 Voltaire, 1765:220-225 (tradução e notas de Daniela Kern).


VOLTAIRE 43

ela acrescenta ao conhecimento da invenção e do progresso das artes a


descrição de seu mecanismo; a história natural, impropriamente chama­
da de história, e que é uma parte essencial da física.
A história dos acontecimentos divide-se em sagrada e profana. A
história sagrada é uma continuação das operações divinas e miraculosas,
por meio das quais aprouve a Deus conduzir outrora a nação judia, e
exercer hoje nossa fé. Não tratarei em absoluto desta matéria respeitável.
Os primeiros fundamentos de toda história são as narrativas dos
pais aos filhos, transmitidas de uma geração a outra; eles são apenas
prováveis em sua origem, e perdem um grau de probabilidade a cada
geração. Com o tempo, a fábula cresce, e a verdade se perde: de onde
vem que todas as origens dos povos são absurdas. Assim, os egípcios
teriam sido governados pelos deuses durante muitos séculos; em se­
guida, por semideuses; enfim, teriam tido reis durante 11.340 anos:
e o Sol, neste espaço de tempo, teria mudado quatro vezes de oriente
e de poente.
Os fenícios pretendiam estar estabelecidos em seu país há 30
mil anos; e esses 30 mil anos estariam repletos com tantos prodígios
quanto os da cronologia egípcia. Sabe-se que maravilhoso ridículo
reina na antiga história dos gregos. Os romanos, por mais sérios que
fossem, não envolveram menos em fábulas a história de seus primeiros
séculos. Esse povo tão recente, em comparação com as nações asiáti­
cas, esteve 500 anos sem historiadores. Assim, não é surpreendente
que Rômulo tenha sido o filho de Marte; que uma loba tenha sido sua
ama de leite; que tenha marchado com 20 mil homens de sua cidade,
Roma, contra 25 mil combatentes da cidade dos sabinos; que a seguir
ele tenha se tornado deus; que Tarquínio o Velho tenha cortado uma
pedra com uma navalha; e que uma vestal tenha arrastado por terra
um barco com seu cinto30 etc.
Os primeiros anais de todas as nossas nações modernas não são
menos fabulosos: as coisas prodigiosas e improváveis devem ser regis­
tradas, mas como provas da credulidade humana; elas entram na histó-
ria das opiniões.

30 As lendas de Rômulo, fundador de Roma, de Tarquínio o Velho e da vestal são narradas pelo
historiador romano Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.) em A história de Roma (Ab Urbe Condita).
44 Lições de história

Para conhecer com certeza alguma coisa da história antiga há ape­


nas um meio, é ver se restam alguns monumentos incontestáveis; te­
mos apenas três por escrito: o primeiro é a coletânea das observações
astronómicas sucessivamente feitas durante 1.900 anos na Babilónia,
enviadas por Alexandre à Grécia, e empregadas no Almagesto de Ptolo-
meu.31 Essa sequência de observações, que remonta a 2.234 anos antes
de nossa corrente era, prova invencivelmente que os babilónios exis­
tiam como povo muitos séculos antes: porque as artes nada mais são do
que a obra do tempo; e a preguiça natural aos homens os deixa milhares
de anos sem outros conhecimentos e sem outros talentos do que aque­
les de se alimentar, de se defender das injúrias do ar, e de se degolar.
Que o julguemos pelos germanos e pelos ingleses do tempo de César,
pelos tártaros de hoje, pela metade da África, e por todos os povos que
encontramos na América, excetuando sob certos aspectos os reinos do
Peru e do México, e a república de Tlaxcala.32
O segundo monumento é o eclipse central do Sol, calculado na
China 2.155 anos antes de nossa corrente era e reconhecido como ver­
dadeiro por todos os nossos astrónomos. É preciso dizer a mesma coisa
dos chineses e dos povos da Babilónia; eles já compõem sem dúvida
um vasto império civilizado. Mas o que coloca os chineses acima de
todos os povos da Terra é que nem suas leis, nem seus costumes, nem
a língua que entre eles falam os letrados, nada mudou em cerca de
4 mil anos. No entanto essa nação, a mais antiga de todos os povos que
subsistem hoje, aquela que possuiu o mais vasto e mais belo país, aque­
la que inventou quase todas as artes antes que aprendêssemos algumas
delas, sempre foi omitida, até nossos dias, em nossas pretensas histórias
universais; e quando um espanhol e um francês faziam o recenseamento
das nações, nem um nem outro deixava de chamar seu país de primeira
monarquia do mundo.

31 Cláudio Ptolomeu (c. 100-c. 170): matemático, geógrafo e astrónomo grego, autor da Grande
sintaxe matemática (140), importante obra sobre astronomia em que desenvolve o sistema geo­
cêntrico, e que será chamada pelos árabes de Almagesto.
32 Situada em território que hoje pertence ao México, era uma nação independente no período
pré-colombiano, que nunca foi dominada pelos astecas.
VOLTAIRE
45

O terceiro monumento, muito inferior aos outros dois, subsiste


nos mármores de Arundel:33 a crónica de Atenas neles foi gravada 263
anos antes de nossa era; mas ela remonta apenas a Cécrops, 1.319 anos
além do tempo em que fora gravada. Eis na história de toda a Antigui­
dade os únicos conhecimentos incontestáveis que temos.
Não é surpreendente que não se tenha nenhuma história antiga pro­
fana anterior a cerca de 3 mil anos. As revoluções deste globo, a longa e
universal ignorância dessa arte que transmite os fatos pela escrita disso
são a causa; ainda há vários povos que dela não fazem nenhum uso. Essa
arte foi comum apenas entre um número muito pequeno de nações civili­
zadas, e ainda estava em muito poucas mãos. Nada de mais raro entre os
franceses e os germanos do que saber escrever até os séculos XIII e XIV:
quase todos os atos eram atestados apenas por testemunhas. Na França
foi apenas sob Carlos VII,34 em 1454, que foram redigidos por escrito os
costumes da França. A arte de escrever era ainda mais rara entre os espa­
nhóis, e decorre disso que sua história seja tão seca e tão incerta, até os
tempos de Fernando e de Isabel. Vê-se por aí o quanto o número muito
pequeno de homens que sabem escrever pode se impor.
Há nações que subjugaram uma parte da Terra sem ter o uso dos
caracteres da escrita. Sabemos que Gengis Khan conquistou uma parte
da Ásia no começo do século XIII; mas não é nem por ele, nem pelos
tártaros que o sabemos. Sua história escrita pelos chineses, e traduzida
pelo padre Gaubil,35 diz que esses tártaros não dominavam de modo
algum a arte de escrever.
É quase certo que entre 100 nações mal havia duas que usassem
os caracteres da escrita.

33 Colecionados por Thomas Howard, conde de Arundel (1585-1646), compreendiam várias pe­
ças gregas catalogadas já em 1628; Voltaire menciona especificamente aquelas referentes às cró­
nicas de Paros (c. 260 a.C.), que contam a história de Atenas entre 1582 e 354 a.C., e que foram
publicadas pela primeira vez em 1763, em edição bilíngue (grego/latim), sob o título de Arunde-
lian marbles, Marmora Oxoniensia, pelo antiquário inglês Richard Chandler (1737-1810).
34 Com a ajuda de Joana d’Arc, Carlos VII (1403-1461) foi sagrado rei da França em 1429.
Aperfeiçoou o sistema fiscal, reestruturou os exércitos e expulsou os ingleses de quase todo o
território francês.
35 Antoine Gaubil (1689-1759): jesuíta que se instala em Pequim em 1722 e lá vive até o final da
vida, sob o nome de Sun Kiun-yung. Traduziu para o francês diversas obras chinesas, entre as
quais aquela a que Voltaire se refere, a Historie de Gentchiscan et de toute la dynastie des mongous,
ses successeurs, conquérans de la Chine (Paris, 1739).
46 LiçOes de história

Restam monumentos de uma outra espécie, que servem para cons­


tatar somente a antiguidade recuada de alguns povos que precedem to­
das as épocas conhecidas e todos os livros; são os prodígios de arquite­
tura, como as pirâmides e os palácios do Egito, que resistiram ao tempo.
Heródoto, que viveu há 2.200 anos, e que os viu, não pôde descobrir
junto aos padres egípcios em que tempo eles foram erguidos.
É difícil dar à mais antiga das pirâmides menos de 4 mil anos
de idade, mas é preciso considerar que esses esforços da ostentação
dos reis somente poderiam ter começado muito tempo depois do es­
tabelecimento das cidades. Mas, para construir cidades em um país
inundado todos os anos, teria sido necessário a princípio elevar o
terreno, fundar as cidades sobre estacas nesse terreno lodoso e torná-
las inacessíveis à inundação; seria preciso, antes de tomar esse partido
necessário, e antes de estar em situação de tentar esses grandes tra­
balhos, que os povos praticassem retiros durante a cheia do Nilo, no
meio dos rochedos que formam duas cadeias à direita e à esquerda
desse rio. Teria sido necessário que esses povos reunidos tivessem os
instrumentos da lavoura, aqueles da arquitetura, um grande conheci­
mento da agrimensura, com leis e uma civilização: tudo isso demanda
necessariamente um espaço de tempo prodigioso. Vemos pelos longos
detalhes que retardam todos os dias nossos empreendimentos, os mais
necessários e os menores, quão difícil é fazer grandes coisas, e que é
preciso não apenas uma obstinação infatigável, mas várias gerações
animadas dessa obstinação.
No entanto, que seja Menés, ou Thot, ou Quéops, ou Ramsés36 que
tenham erguido uma ou duas dessas prodigiosas massas, através delas
não seremos instruídos sobre a história do antigo Egito: a língua deste
povo está perdida. Não sabemos então outra coisa a não ser que, antes
dos mais antigos historiadores, havia do que fazer uma história antiga.
Aquela que nomeamos antiga e que é, com efeito, recente não re­
monta a mais de 3 mil anos: não temos antes desse tempo nada além de

36 Menés: faraó que unificou o alto e o baixo Egito, fundando, assim, a primeira dinastia
(c. 3100 a.C.). Thot: deus egípcio, considerado o inventor da escrita. Quéops: segundo faraó da
quarta dinastia, governou o Egito entre 2589 e 2566 a.C. Ramsés II ou o Grande: terceiro faraó
egípcio da nona dinastia, reinou entre 1279 e 1213 a.C.
VOLTAIRE 47

algumas probabilidades: apenas dois livros profanos conservaram essas


probabilidades; a crónica chinesa e a história de Heródoto. As antigas
crónicas chinesas dizem respeito apenas a esse império separado do
resto do mundo. Heródoto, mais interessante para nós, fala da Terra
então conhecida; ele encanta os gregos ao lhes recitar os nove livros
de sua história, pela novidade desse empreendimento e pelo charme
de sua dicção, e sobretudo pelas fábulas. Quase tudo o que ele conta
sobre a fé dos estrangeiros é fabuloso: mas tudo o que viu é verdadeiro.
Ficamos sabendo por meio dele, por exemplo, que extrema opulência
e que esplendor reinavam na Ásia Menor, hoje pobre e despovoada. Ele
viu em Delfos37 os presentes de ouro prodigiosos que os reis da Lídia38
haviam enviado a Delfos, e fala a ouvintes que conheciam Delfos como
ele. Ora, que espaço de tempo foi necessário transcorrer antes que os
reis da Lídia tivessem podido reunir o suficiente de tesouros supérfluos
para oferecer presentes tão consideráveis a um templo estrangeiro!
Mas quando Heródoto relata os contos que escutara, seu livro não
passa de um romance que se assemelha às fábulas do Milhão.39 É um
Candaulo40 que mostra sua mulher completamente nua a seu amigo
Giges; é essa mulher, que por modéstia deixa a Giges apenas a opção
de matar seu marido, de desposar a viúva, ou de perecer. É um oráculo
de Delfos que adivinha que ao mesmo tempo que fala, Creso,41 a 100
léguas dali, faz cozinhar uma tartaruga em um prato de bronze. Rollin,42
que repete todos os contos dessa espécie, admira a ciência do oráculo, e
a veracidade de Apoio, assim como o pudor da esposa do rei Candaulo;

37 Antiga cidade grega localizada junto ao monte Parnaso.


38 Antigo reino da Ásia Menor que se situava na atual província turca de Manisa.
39II Milione: O livro das maravilhas, relato da viagem à China escrito em 1298 e reescrito entre
1310 e 1320 por Marco Polo (1254-1324).
40 Último rei lídio (?-680 a.C.) da dinastia heráclida; segundo Heródoto, colocou o amigo Giges
secretamente no quarto da esposa para que a visse nua e desfrutasse de sua beleza. O restante
da história é resumido por Voltaire. Giges opta por matar Candaulo, iniciando assim uma nova
dinastia, a mermnada.
41 Último rei lídio (596-547 a.C.) da dinastia mermnada, tornou-se famoso pela imensa riqueza.
Foi derrotado por Ciro.
42 Charles Rollin (1661-1741): historiador francês, escreveu ao final da vida obras históricas,
como a famosa História antiga (1730-1738) e a História romana. Já em sua época, como se per­
cebe pelo irónico comentário de Voltaire, Rollin era conhecido por reunir acriticamente fatos e
mitos em suas compilações.
48 Lições de história

e sobre esse assunto propõe à civilização que impeça os jovens de se ba­


nharem no rio. O tempo é tão caro, e a história tão imensa, que é preciso
poupar aos leitores tais fábulas e tais moralidades.
A história de Ciro43 é toda desfigurada pelas tradições fabulosas. Há
a grande aparência de que esse Kiro, que chamamos de Ciro, à frente dos
povos guerreiros do Elam,44 tenha com efeito conquistado a Babilónia
amolecida pelas delícias. Mas não se sabe somente qual rei reinava então
na Babilónia; uns dizem Baltasar, outros Anabot. Heródoto faz com que
Ciro morra em uma expedição contra os massagetas.45 Xenofonte, em seu
romance moral e político,46 faz com que morra em seu leito.
Não se sabe outra coisa nessas trevas da história a não ser que des­
de muito tempo vastos impérios e tiranos houve cujo poder se fundava
na miséria pública; que a tirania chegava a despir os homens de sua
virilidade, para deles se servir em infames prazeres ao sair da infância, e
para empregá-los em sua velhice na guarda das mulheres; que a supers­
tição governava os homens; que um sonho era visto como um aviso do
céu, e que decidia a paz e a guerra etc.
À medida que Heródoto em sua história se aproxima de seu tem­
po, ele é mais instruído e mais verdadeiro. É preciso confessar que a
história começa para nós apenas com os ataques dos persas contra os
gregos. Não se encontra antes desse grande acontecimento nada além
de narrativas vagas, envolvidas por contos pueris. Heródoto torna-se
o modelo dos historiadores, quando descreve esses prodigiosos pre­
parativos de Xerxes47 para ir subjugar a Grécia e a seguir a Europa. Ele
o leva, seguido de cerca de 2 milhões de soldados, de Susa48 a Atenas.
Ele nos mostra como estavam armados os tantos povos diferentes que

43 Ciro o Grande (c. 556-530 a.C.): fundador do império persa, foi o responsável por grandes
conquistas, entre as quais a da Babilónia, em 539 a.C.
44 Região do lrã antigo ocupada pelos descendentes de Elam, primeiro filho de Sem.
45 Povo cita governado pela rainha Tomiris, a qual, segundo Heródoto, teria assassinado Ciro.
46 Voltaire refere-se à Ciropédia (A educação de Ciro), obra em que Xenofonte apresenta, sob luz
muito positiva, a vida de Ciro o Grande.
47 Rei persa (c. 519- c. 466 a.C.), filho de Dario I, travou com os gregos as guerras médicas.
Venceu a batalha das Termópilas e arrasou Atenas, mas teve sua frota destruída em Salamina.
48 Antiga capital do Elam, foi destruída por Assurbanipal em 646 a.C., transformada em capital
do império aquemênida por Dario I e ocupada por Alexandre em 331 a.C., tornando-se, a partir
de então, um centro de cultura helenística.
Voltai re 49

esse monarca arrastou consigo; nenhum foi esquecido, do fundo da


Arábia e do Egito, até para além da Bactriana49 e da extremidade se­
tentrional do mar Cáspio, país então habitado por povos poderosos, e
hoje por tártaros errantes. Todas as nações, desde o Bósforo da Trácia50
até o Ganges, estavam sob seus estandartes. Vê-se com surpresa que
esse príncipe possuía tanto território quanto o que teve o império
romano; ele tinha tudo o que pertence hoje ao grande mongol abaixo
do Ganges, toda a Pérsia, todo o país dos usbeques,51 todo o império
dos turcos, se dele se excetuar a România, e ainda possuía a Arábia.
Vê-se pela extensão de seus Estados qual é o erro dos declamadores
em verso e em prosa ao considerarem louco Alexandre, vingador da
Grécia, por haver subjugado o império do inimigo dos gregos. Ele não
foi ao Egito, a Tiro52 e à índia a não ser porque devia, uma vez que
Tiro, o Egito e a índia pertenciam à dominação que havia devastado
a Grécia.
Heródoto teve o mesmo mérito que Homero; ele foi o primeiro
historiador, assim como Homero foi o primeiro poeta épico; e todos
os dois colhiam as belezas próprias de uma arte desconhecida antes
deles. É um espetáculo admirável em Heródoto esse imperador da Ásia
e da África, que faz passar sua imensa armada sobre uma plataforma da
Ásia à Europa, que toma a Trácia, a Macedônia, a Tessália,53 a Acaia54
superior, e que entra em Atenas abandonada e deserta. Não se espera de
modo algum que os atenienses sem cidade, sem território, refugiados
nos barcos com alguns outros gregos, coloquem em fuga a numerosa frota
do grande rei, que voltem para casa como vencedores, que forcem Xerxes
a recolher ignominiosamente os restos de sua armada, e que em seguida
o proíbam por um tratado de navegar em seus mares. Essa superioridade

49 Antiga região a que hoje corresponde parte do Afeganistão, e cuja capital era Bactros.
50 Bósforo: estreito localizado na Turquia, que limita a Europa e a Ásia ligando o mar Negro
ao mar de Mármara. Trácia: antiga região do sudeste da Europa, cujo território corresponde a
partes das atuais Grécia, Turquia e Bulgária.
51 Ou seja, o Usbequistão.
52 Antiga cidade fenícia, era uma grande potência comercial na época de Alexandre e correspon­
de à atual Sur, no Líbano.
53 Região da Grécia central, conhecida na época de Homero como Eólia.
54 Região da Grécia localizada na costa norte do Peloponeso.
50 Lições de história

de um pequeno povo generoso e livre sobre toda a Ásia escrava é talvez o


que há de mais glorioso entre os homens. Ficamos sabendo também por
meio desse evento que os povos do Ocidente sempre foram melhores ma­
rinheiros do que os povos asiáticos. Quando lemos a história moderna, a
vitória de Lepanto faz lembrar aquela de Salamina,55 e comparamos dom
João da Áustria e Colonna56 a Temístocles e a Euribíades.57 Eis talvez o
único fruto que se pode tirar do conhecimento desses povos recuados.
Tucídides, sucessor de Heródoto, se limita a nos detalhar a história
da guerra do Peloponeso, país que não é maior do que uma província
da França ou da Alemanha, mas que produziu homens em todo gênero
dignos de uma reputação imortal; e como se a guerra civil, o mais hor­
rível dos flagelos, acrescentasse um novo calor e novas forças morais
ao espírito humano, é nesse tempo que todas as artes floresceram na
Grécia. É assim que eles começam a se aperfeiçoar a seguir em Roma
em outras guerras civis do tempo de César, e que renascem ainda em
nossos séculos XV e XVI da era corrente, entre os tumultos da Itália.
Após essa guerra do Peloponeso, descrita por Tucídides, vem o
tempo célebre de Alexandre, príncipe digno de ser educado por Aris-
tóteles, que funda muito mais cidades do que as que os outros des­
truíram, e que muda o comércio do universo. De seu tempo, e daquele
de seus sucessores, floresceu Cartago, e a república romana começou a
fixar nela os olhares das nações. Todo o resto está soterrado na barbárie,
os celtas, os germanos, todos os povos do Norte são desconhecidos.
A história do império romano é a que mais merece nossa atenção,
porque os romanos foram nossos mestres e nossos legisladores. Suas
leis ainda estão em vigor na maior parte de nossas províncias; sua língua
ainda se fala, e muito tempo após sua queda ela foi a única língua na

55 Batalha naval de Lepanto: em 7 de outubro de 1571 o império otomano foi derrotado em


Lepanto, na Grécia, pela Liga Santa (reino de Espanha, República de Veneza, Estados pontifícios
e cavaleiros de Malta), sob o comando de d. João da Áustria (1547-1578), estrategista militar,
filho bastardo de Carlos V, imperador do Sacro Império Romano. Batalha de Salamina: em
setembro de 480 a.C. os gregos liderados por Temístocles venceram, em Salamina, os persas
conduzidos por Xerxes.
56 Marcantonio Colonna (1535-1584): almirante italiano, foi capitão-geral da frota da Liga Santa
conduzida por d. João da Áustria na batalha de Lepanto.
57 Temístocles (c. 524-459 a.C.): homem de Estado e general ateniense, foi o responsável pt\&
estratégia que levou os gregos à vitória na batalha de Salamina. Euribíades: general espartano
que, juntamente com Temístocles, dirigiu a frota grega na batalha de Salamina.
VOLTAIRE 51

qual se redigiam os atos públicos na Itália, na Alemanha, na Espanha,


na França, na Inglaterra, na Polónia.
Com o desmembramento do império romano no Ocidente come­
ça uma nova ordem de coisas, e é o que se chama de história da Idade
Média; história bárbara de povos bárbaros que, tornados cristãos, não se
tornam melhores.
Enquanto a Europa é assim transtornada, vemos aparecer no sécu­
lo Vil os árabes, até então confinados em seus desertos. Eles estendem
seu poderio e sua dominação à alta Ásia, à África, e invadem a Espanha;
os turcos os sucedem, e estabelecem a sede de seu império em Constan­
tinopla, no meio do século XV
É no final desse século que um novo mundo é descoberto, e logo
depois a política da Europa e as artes assumem uma forma nova. A
arte da imprensa e a restauração das ciências fazem com que enfim
tenhamos histórias suficientemente fiéis, ao invés das crónicas ridículas
encerradas nos claustros desde Gregório de Tours.58 Cada nação na Eu­
ropa logo tem seus historiadores. A antiga indigência se transforma em
excesso: não há nenhuma cidade que não queira ter sua história particu­
lar. Estamos prostrados pelo peso das minúcias. Um homem que quer
se instruir é obrigado a se ater ao fio dos grandes acontecimentos, e a
descartar todos os pequenos fatos particulares que vêm atravessados;
ele colhe na multiplicidade de revoluções o espírito dos tempos e os
costumes dos povos. É preciso sobretudo se ater à história de sua pátria,
estudá-la, possuí-la, reservar para ela os detalhes, e lançar uma vista
mais geral sobre as outras nações. A história delas é interessante apenas
pelas relações que têm conosco, ou pelas grandes coisas que fizeram;
as primeiras eras desde a queda do império romano são, como se ob­
servou em outra parte, apenas aventuras bárbaras, sob nomes bárbaros,
com exceção do tempo de Carlos Magno. A Inglaterra permanece quase
isolada até o reino de Eduardo III;59 o Norte é selvagem até o século X;

58 Bispo de Tours e historiador (c. 539-594), cuja principal obra, originalmente chamada de
Dez livros de história, mais tarde recebeu o nome de História dos francos. Tal obra, que narra a
história desde o surgimento do mundo até o reinado dos francos, em 572, era muito malvista na
época de Voltaire, entre outros motivos devido ao latim em que fora escrita, considerado pouco
elegante quando comparado àquele das obras de Cícero e Virgílio.
59 Rei (1312-1377) da Inglaterra, transformou seu reino em uma grande potência militar e em
1340, ao reivindicar também o trono da França, deu início à Guerra dos Cem Anos.
52 Lições de história

a Alemanha é por muito tempo uma anarquia. As querelas dos impe­


radores e dos papas desolam por 600 anos a Itália, e é difícil perceber
a verdade através das paixões dos escritores pouco instruídos que de­
ram as crónicas informes desse tempo infeliz. A monarquia da Espanha
possui apenas um evento sob os reis visigodos, e esse evento é aquele
de sua destruição. Tudo é confusão até o reino de Isabel e Fernando. A
França até Luís XI60 está às voltas com males obscuros sob um governo
sem regra. Daniel61 bem pretendeu que os primeiros tempos da França
são mais interessantes do que aqueles de Roma: ele não percebeu que o
começo de um tão vasto império é tanto mais interessante quanto mais
débil, e que amamos ver a pequena fonte de uma torrente que inundou
a metade da Terra.
Para penetrar no labirinto tenebroso da Idade Média é preciso o
recurso aos arquivos, e deles não possuímos quase nenhum. Alguns
antigos conventos conservaram estatutos, diplomas, que contêm doa­
ções, cuja autoridade é às vezes contestada; não há ali uma coletânea
em que possamos nos esclarecer sobre a história política, e sobre o di­
reito público da Europa. A Inglaterra é, de todos os países, aquele que
tem, sem dúvida, os arquivos mais antigos e mais contínuos. Esses atos
recolhidos por Rimer, sob os auspícios da rainha Ana, começam com o
século XII e foram continuados sem interrupção até nossos dias. Eles
espalham uma grande luz sobre a história da França. Eles fazem ver, por
exemplo, que Guienne62 pertenceu aos ingleses em soberania absoluta,
quando o rei da França Carlos V63 a confiscou por um decreto, e dela

60 Rei (1423-1483) da França, sob seu reinado é encerrada a Guerra dos Cem Anos com a In­
glaterra. O Tratado de Picquigny (1475), que possibilitou tal desfecho, envolveu uma grande
soma de dinheiro para que os ingleses abandonassem a França, e é a esse evento que Voltaire
fará referência.
61 Gabriel Daniel (1649-1728): padre jesuíta e historiador francês, foi autor de vasta obra. Vol­
taire aqui se refere a sua obra mais famosa, a Histoire de France depuis Vétablissement de la mo-
narchie Jrançaise (1713).
62 Antiga província do sudoeste da França, tinha como capital a cidade de Bourdeaux e, junta-
mente com a Gasconha, formava desde o século XII o ducado de Aquitânia. Tornou-se inglesa
em 1154 e retomou à França em 1453, do modo como Voltaire irá relatar.
63 Rei (1338-1380) da França, recuperou boa parte do território que ela perdera para a Ing^“
terra após a assinatura do Tratado de Brétigny pelos reis Eduardo III da Inglaterra e João II
França, em 1360.
VOLTAIRE
53

se apodera pelas armas. Ali descobrimos que somas consideráveis, e


que espécie de tributo pagou o rei Luís XI ao rei Eduardo IV,64 que ele
poderia combater; e quanto dinheiro a rainha Elisabeth emprestou a
Henrique o Grande65 para ajudá-lo a subir ao trono etc.
Da utilidade da história. Essa vantagem consiste na comparação que
um homem de Estado, um cidadão pode fazer das leis e dos costumes
estrangeiros com aqueles de seu país: é o que estimula as nações a supe­
rarem umas às outras nas artes, no comércio, na agricultura. As grandes
faltas passadas servem muito em todo gênero. Não saberíamos mais re­
colocar diante dos olhos os crimes e infortúnios causados por querelas
absurdas. É certo que, à força de renovar a memória dessas querelas,
impedimo-las de renascer.
É por haver lido os detalhes das batalhas de Creci, de Poitiers, de
Azincourt, de Saint-Quentin,66 de Graveniles etc., que o célebre mare­
chal de Saxe67 se determinou a buscar, na medida em que podia, o que
chamou de affaires de poste. 68
Os exemplos causam um grande efeito sobre o espírito de um
príncipe que lê com atenção. Ele verá que Henrique IV empreendeu
sua grande guerra, que deveria mudar o sistema da Europa, apenas de­
pois de haver se certificado o suficiente do vigor da guerra para poder
sustentá-la por vários anos sem nenhum socorro às finanças.

64 Rei (1442-1483) da Inglaterra, foi ele o beneficiado do Tratado de Picquigny, assinado com
Luís XI da França, seu principal inimigo.
65 Henrique IV (1553-1610), rei da França. Huguenote, tomou-se rei em 1589 com o auxílio
de Elizabeth I da Inglaterra, que o apoiou no combate à Liga Católica da França, contrária a
sua coroação. Converteu-se ao catolicismo e assinou em 1598 o Édito de Nantes, assegurando
liberdade religiosa aos protestantes franceses.
66 Batalha de Creci: parte da Guerra dos Cem Anos, ocorreu em 1346 entre as tropas de Edu­
ardo III da Inglaterra e Filipe de Valois. Batalha de Poitiers: também parte da Guerra dos Cem
Anos, foi travada entre França e Inglaterra em 19 de setembro de 1356. Batalha de Azincourt:
ocorreu em 25 de outubro de 1415, no norte da França, igualmente como parte da Guerra dos
Cem Anos, e foi travada entre Henrique V da Inglaterra e as tropas comandadas por Charles I
d’Albret. Batalha de Saint-Quentin: ocorrida em 10 de agosto de 1557, resultou na vitória da
Espanha de Filipe II sobre a França.
67 Maurice de Saxe (1696-1750): filho ilegítimo de Augusto, rei da Polónia, em 1743 tomou-se
marechal da França. Um dos maiores estrategistas militares da época, deixou uma obra sobre a
arte da guerra, Mes réveries (1757).
68
Disputa de postos.
54 Lições de história

Ele verá que a rainha Elisabeth, recorrendo somente ao comércio e


a uma sábia economia, resistiu ao poderoso Filipe II,69 e que, dos navios
que ela colocou no mar contra a Invencível Armada, três quartos foram
fornecidos pelas cidades comerciais da Inglaterra.
A França não atingida sob Luís XIV, depois de nove anos da
mais infeliz guerra, mostrará evidentemente a utilidade das regiões
de fronteira que ele construiu.70 Em vão o autor das causas da queda
do império romano71 culpa Justiniano de haver tido a mesma política
de Luís XIV Ele deve culpar apenas os imperadores que negligencia­
ram esses locais fronteiriços, e que abriram as portas do império aos
bárbaros.
Enfim, a grande utilidade da história moderna, e a vantagem que
ela apresenta em relação à antiga, é ensinar a todos os potentados que
desde o século X sempre nos reunimos contra um poder demasiada­
mente preponderante. Esse sistema de equilíbrio sempre foi desconhe­
cido dos antigos, e esta é a razão dos sucessos do povo romano, que,
tendo formado uma milícia superior àquela dos outros povos, subjuga-
os um após o outro, do Tibre ao Eufrates.
Da certeza da história. Toda certeza que não é demonstração mate­
mática não passa de uma extrema probabilidade. Não há outra certeza
histórica.
Quando Marco Polo fala pela primeira vez, mas sozinho, da gran­
deza e da população da China, não foi acreditado, e não podia exigir
crédito. Os portugueses, que entraram nesse vasto império vários sécu­
los depois, começaram a tornar a coisa provável. Ela hoje é certa, dessa
certeza que nasce da disposição unânime de milhares de testemunhas
oculares de diferentes nações, sem que ninguém tenha reclamado con­
tra seu testemunho.

69 Rei (1527-1598) do então vasto império espanhol.


70 Sébastien le Preste, de Vauban (1633-1707), audacioso engenheiro militar, nomeado comissá­
rio das fortificações em 1678, sob Luís XIV, construiu mais de 160 fortes, sobretudo nas regiões
de fronteira da França, e é a isso que se refere Voltaire.
71 Aqui Voltaire critica Montesquieu (1689-1755), autor de Considérations sur les causes de la
grandeur des romains et de leur décadence (1734). Mais tarde Marmontel, amigo de Voltaire, irá
se valer dessa original aproximação entre Justiniano e Luís XIV ao conceber sua famosa peça
Bélisaire (1767).
VOLTAIRE 55

Se dois ou três historiadores somente tivessem escrito a aventura


do rei Carlos XII,72 que, se obstinando a permanecer nos Estados do
sultão seu benfeitor, contra a vontade deste, confrontou-se, com seus
domésticos, contra uma armada de janízaros73 e de tártaros, eu teria
suspenso meu julgamento; mas tendo falado com várias testemunhas
oculares, e jamais tendo ouvido alguém colocar essa ação em dúvida, é
bem necessário nela acreditar, porque, depois de tudo, se ela não é nem
sábia, nem ordinária, ela não é contrária nem às leis da natureza, nem
ao caráter do herói.
A história do homem da máscara de ferro74 teria passado em meu
espírito por um romance, se não a tivesse conhecido através do genro
do cirurgião que cuidou desse homem em sua última enfermidade. Mas
como o oficial que o vigiava então também me atestou o fato, e todos
aqueles que sobre ele deveriam estar instruídos para mim o confirma-
ram e os filhos dos ministros de Estado, depositários desse segredo,
que ainda vivem, dele estavam cientes como eu, dei a essa história um
grande grau de probabilidade, grau, no entanto, abaixo daquele que faz
crer o affaire de Bender, porque a aventura de Bender teve mais testemu­
nhas do que aquela do homem da máscara de ferro.
O que repugna ao curso ordinário da natureza não deve de modo
algum ser acreditado, a menos que seja atestado por homens animados
de espírito divino. Eis por que no artigo deste dicionário é um grande
paradoxo dizer que se deveria crer em toda Paris que afirmasse ter visto
ressuscitar um morto, como se crê em toda Paris quando diz que ga­
nhamos a batalha de Fontenoy. Parece evidente que o testemunho de
toda Paris sobre algo improvável não deveria ser igual ao testemunho
de toda Paris sobre uma coisa provável. Aí estão as primeiras noções
da santa metafísica. Este dicionário é consagrado à verdade, um artigo

72 Rei (1682-1718) da Suécia e militar talentoso, lutou contra Pedro o Grande da Rússia e Au­
gusto II da Polónia. Derrotado, refugia-se no império otomano, mais especificamente na cidade
turca de Bender, em 1709, lá permanecendo com cerca de 40 soldados até 1714. Voltaire a ele
dedicou uma de suas primeiras obras históricas, Charles XII (1731).
73 Do turco Yeni Tcheri, ou “nova força”, soldados de origem cristã que compunham a elite do
exército dos sultões otomanos e que, quando crianças, foram sequestrados, transformados em
escravos e convertidos ao Islã. Essa prática permaneceu até o início do século XX.
74 Voltaire trata disso no capítulo 25 de Le siècle de Louis XIV (1751).
56 LiçOes de história

deve corrigir o outro, e se aqui for encontrado algum erro, ele deve ser
corrigido por um homem mais esclarecido.
Incerteza da história. Distinguimos os tempos em fabulosos e his­
tóricos. Mas os tempos históricos deveriam ter sido distinguidos eles
mesmos em verdades e em fábulas. Não falo aqui das fábulas reconhe­
cidas hoje em dia como tais; não se trata, por exemplo, dos prodígios
com os quais Tito Lívio embelezou ou mimou sua históiia. Mas nos fa­
tos mais aceitos que razões haveria para duvidar? Que atentemos para
o fato de que a república romana ficou cinco séculos sem historiado­
res, e que o próprio Tito Lívio deplora a perda dos anais dos pontífices
e dos outros monumentos que pereceram quase todos no incêndio
de Roma, pleraque interiere,75 que sonhemos que nos 300 primeiros
anos a arte da escrita era muito rara, rarae per eadem têmpora litterae.76
Seria permitido então duvidar de todos os acontecimentos que não
estão na ordem ordinária das coisas humanas. Teria sido bem provável
que Rômulo, neto do rei dos sabinos, tivesse sido forçado a raptar as
sabinas para ter mulheres. A história de Lucrécio seria mesmo veros-
símil? Pode-se crer facilmente na palavra de Tito Lívio, que o rei Por-
sena77 fugiu cheio de admiração pelos romanos porque um fanático
teria querido assassiná-lo? Não seríamos levados, ao contrário, a crer
em Políbio,78 anterior a Tito Lívio em 200 anos, que diz que Porsena
subjugou os romanos? A aventura de Regulus,79 encerrado pelos car-

75 ‘
‘Quase inteira”. Citação extraída do início do Livro VI da História de Roma desde sua fundação,
de Tito Lívio, em que descreve o incêndio de Roma.
76 “E pela raridade da escrita nesse tempo recuado”, frase de Tito Lívio extraída do mesmo pa­
rágrafo mencionado na nota anterior.
77 Lars Porsena (séc. VI a.C.): rei etrusco que, em auxílio ao rei romano deposto Lucius Tar-
quinus Superbus, teria invadido Roma. Voltaire aponta uma famosa divergência quanto ao su­
cesso ou não nessa invasão existente entre os autores que tratam desse episódio (Tito Lívio e
Políbio).
78 Historiador (c. 203-120 a.C.) grego que, refém dos romanos, viveu 16 anos na Itália. Sua obra
mais importante são As histórias, em quarenta volumes, dos quais restam os cinco primeiros.
Nessa obra narra a transformação de Roma na maior potência do Mediterrâneo, abarcando o
período que vai de 264 a 146 a.C.
79 Marcus Atilius Regulus (?- c. 250 a.C.): general romano na Primeira Guerra Púnica (256 a.C.),
foi tomado como prisioneiro pelo general espartano mercenário Xantipo e conduzido a Cartago,
onde foi morto. Várias versões sobre o modo como morreu mais tarde passaram a circular ein
Roma, talvez como propaganda contra Cartago. Segundo uma delas, Regulus teria sido colo-
cado em uma cesta costurada com pontas de ferro; segundo outra, teria sido jogado em uma
masmorra escura e então, depois de ter as pálpebras cortadas, obrigado a olhar para o sol.
VOLTAIRE 57

tagineses em um tonel guarnecido de pontas de ferro, mereceria que


nela acreditássemos? Políbio, contemporâneo, dela não teria falado se
fosse verdadeira? Sobre ela não diz uma palavra. Não é uma grande
presunção que esse conto tenha sido inventado apenas longo tempo
depois para tornar os cartagineses odiosos? Abram o dicionário de
Moréri80 no artigo Régulus, ele lhes garante que o suplício desse roma­
no é reportado em Tito Lívio. No entanto, a década em que Tito Lívio
teria podido falar disso está perdida; e temos apenas o suplemento de
Freinsemius,81 e ocorre que esse dicionário citou apenas um alemão
do século XVII, acreditando citar um romano do tempo de Augusto.
Faríamos volumes imensos de todos os fatos célebres e reconhecidos
dos quais é preciso duvidar. Mas os limites deste artigo não permitem
que nos estendamos.
Os monumentos, as cerimónias anuais, as próprias medalhas são pro­
vas históricas? Somos naturalmente levados a crer que um monumen­
to erigido por uma nação para celebrar um acontecimento dele atesta
a certeza. No entanto, se esses monumentos não foram erguidos por
contemporâneos, se celebram alguns fatos pouco verossímeis, provam
outra coisa a não ser que se quis consagrar uma opinião popular?
A coluna rostrata erigida em Roma pelos contemporâneos de Dui-
lius é sem dúvida uma prova da vitória naval de Duilius.82 Mas a estátua
do augúrio Navius,83 que cortou um calhau com uma navalha, provaria
ela que Navius havia operado esse prodígio? As estátuas de Ceres e de

80
Louis Moréri (1643-1680): padre francês, autor da enciclopédia de orientação católica Le
grand dictionaire historique, ou le mélange curieux de Vhistoire sacrée et profane (1674). Obra muito
consultada e criticada no século XV1I1, dela Voltaire possuía a edição holandesa em cinco volu­
mes, de 1740, e o suplemento francês em dois volumes, de 1749.
81 Johann Freinsemius (1608-1660), literato que se tomou professor honorário na Universidade
de Heidelberg até sua morte. Seus suplementos à história romana de Tito Lívio representam
uma tentativa de preencher suas lacunas.
82 Colunas rostratas de Duilius (Columnae Rostratae Duilii): erigidas no Fórum Romano por
Caius Duilius Nepos em homenagem a sua vitória na batalha de Mylae, contra os cartagineses,
em 260 a.C. — primeira batalha naval vencida pelos romanos. Delas subsiste apenas uma.
83 Attus Navius: adivinho durante o reino de Tarquinius Priscus, quinto rei de Roma (616 -578
a.C.), opôs-se à tentativa do imperador de duplicar o número das centúrias equestres (divisão
do exército romano composta de 80 a 100 legionários, com direito a voto no senado), e para
mostrar seu poder teria cortado um calhau com uma navalha.
58 Lições de história

Triptolemo,84 em Atenas, seriam testemunhos incontestáveis de que Ce­


res teria ensinado a agricultura aos atenienses? O famoso Laocoonte,85
que subsiste até hoje tão inteiro, atesta mesmo a verdade da história do
cavalo de Troia?
As cerimónias, as festas anuais estabelecidas por toda uma nação,
não constatam melhor a origem que se lhes atribui. A festa de Árion86
conduzido sobre um golfinho celebrava-se entre os romanos como en­
tre os gregos. A do fauno evocava sua aventura com Hércules e Ônfale,87
quando esse deus, apaixonado por Ônfale, toma o leito de Hércules
pelo de sua amante.
A famosa festa das lupercais88 teria se estabelecido em honra à loba
que amamentara Rômulo e Remo. Sobre o que estaria fundada a festa de
Órion, celebrada no dia 5 dos idos89 de maio? Eis aqui. Hirieu recebeu
em sua casa Júpiter, Netuno e Mercúrio, e quando seus hóspedes foram
se despedir, esse bom homem, que não possuía mulher alguma, e que
desejava ter um filho, testemunhou sua dor aos três deuses. Não ouso
exprimir o que eles fizeram sobre a pele do boi que Hirieu lhes havia
servido como refeição;90 eles cobriram a seguir essa pele com um pouco
de terra, e disso nasceu Órion ao cabo de nove meses.

84 Ceres, a deusa romana que ensinou à humanidade a agricultura, fora muito bem recebida em
Elêusis pelos pais de Triptolemo. Em retribuição, ofereceu a Triptolemo uma carruagem com
dragões alados, para que pudesse viajar pelo mundo semeando grãos de tngo.
85 Legendário sacerdote troiano que alertou os troianos quanto ao cavalo de Troia. Irado pelo fato
de os troianos não haverem considerado seu alerta, atirou seu cajado contra o cavalo. Minerva,
que apoiava os gregos, enviou serpentes do mar que estrangularam Laocoonte e seus dois filhos.
Foi essa a cena retratada na famosa estátua de Laocoonte, do período helenístico, recuperada
pelo romano Felice de Fredi em 14 de janeiro de 1506. Tal estátua era alvo de grande atenção
no período em que Voltaire colaborava com a Enciclopédia: sobre ela escreveram Winckelmann
e Goethe, e a ela Gotthold Lessing dedicou o fundamental ensaio Laocoonte (1766).
86
Exímio tocador de lira da ilha de Lesbos, após haver seduzido um golfinho com a beleza de
sua música, teria sido transportado por ele.
87 Rainha lídia, filha de Iardanus, um deus-rio, que comprou Hércules ao deus Mercúrio e o
manteve como escravo por três anos. Com Hércules teve um filho, Lamos.
88
Denominadas lupercalia, do latim lupus (lobo) e hircus (animal impuro), festejavam-se na
Roma antiga no dia 15 de fevereiro (ante diem XV Kalendas Martias).
89
Segundo o calendário romano, nome dado ao 152 dia dos meses de 31 dias, ou ao 13° dia
dos outros meses. Os idos correspondiam ao período de lua cheia e contavam com oito dias.
Conforme o cálculo detalhadamente explicado por Diderot em sua Enciclopédia, o dia 5 dos idos
de maio corresponderia a 11 de maio.
90 Júpiter, Netuno e Mercúrio ejacularam ou urinaram sobre a pele do boi, conforme o mito.
VOLTAIRE
59

Quase todas as festas romanas, sírias, gregas, egípcias fundavam-se


sobre semelhantes contos, assim como os templos e as estátuas dos anti­
gos heróis. Eram monumentos que a credulidade consagrava ao erro.
Uma medalha, mesmo contemporânea, por vezes não é uma pro­
va. O quanto a lisonja não fez com que fossem cunhadas medalhas
sobre batalhas muito indecisas, qualificadas como vitórias, e sobre em­
preendimentos frustrados, que foram concluídos apenas na lenda. Por
último, durante a guerra de 1740 dos ingleses contra o rei da Espanha,
não se cunhou uma medalha que atestava a tomada de Cartagena pelo
almirante Vernon, enquanto na verdade esse almirante desistiu do cer­
co?91
As medalhas apenas são testemunhos irrepreensíveis quando o
acontecimento é atestado por autores contemporâneos; neste caso essas
provas se sustentam uma à outra, constatando a verdade.
Deve a história inserir discursos e fazer retratos? Se, em uma ocasião
importante, um general de exército, um homem de Estado falou de
uma maneira singular e forte que caracteriza seu gênio e aquele de seu
século, é preciso sem dúvida reportar seu discurso palavra por palavra;
tais discursos são, talvez, a parte mais útil da história. Mas por que fazer
um homem dizer o que ele não disse? Seria quase o mesmo lhe atribuir
o que não fez, é uma ficção imitada de Homero. Mas o que é ficção em
um poema torna-se a rigor mentira em um historiador. Diversos antigos
adotaram esse método; isso prova apenas que diversos antigos quiseram
exibir sua eloquência à custa da verdade.
Os retratos mostram ainda, com frequência, mais desejo de brilhar
do que de instruir: contemporâneos estão no direito de fazer o retrato
dos homens de Estado com os quais negociaram, generais sob os quais
fizeram a guerra. Mas é de se temer que o pincel seja guiado apenas
pela paixão! Parece que os retratos que se encontra em Clarendon92 são

91 Edward Vemon (1684-1757): oficial naval inglês, liderou o ataque a uma possessão espanho­
la, Cartagena, em 1741, mas a operação foi um desastre. Houve forte resistência no porto de
Cartagena, os ingleses sofreram com doenças e mau tempo, e foram obrigados a se retirar para
a Jamaica.
92 Edward Hyde, conde de Clarendon (1609-1674): historiador e homem de Estado inglês, a
partir de 1667, ano em que cai em desgraça junto ao rei da Inglaterra e em que é obrigado a
exilar-se na França, dedicou-se à escrita de History ofthe rebellion and civil wars in England, obra
60 Lições de história

feitos com mais imparcialidade, gravidade e sabedoria do que aqueles


que se leem com prazer no cardeal de Retz.
Mas desejar tomar os antigos, esforçar-se em desenvolver suas al­
mas, olhar os acontecimentos como caracteres através dos quais se pode
ler seguramente no fundo dos corações é uma empreitada bem delica­
da; é em muitos uma puerilidade.
Da máxima de Cícero concernente à história; que o historiador não
ouse dizer uma falsidade, nem esconder uma verdade. A primeira parte des­
se preceito é incontestável; é preciso examinar a outra. Se uma verdade
pode ser de alguma utilidade ao Estado, seu silêncio é condenável. Mas
suponha eu que você escreve a história de um príncipe que lhe confiou
um segredo: você deve revelá-lo? Você deve dizer à posteridade o que
você seria culpado de dizer em segredo a um único homem? O dever de
um historiador poderia se sobrepor a um dever maior?
Supondo ainda que você tenha sido testemunha de uma fraqueza
que de modo algum influenciou nos negócios públicos: você deve reve­
lar essa fraqueza? Nesse caso, a história seria uma sátira.
É preciso confessar que a maior parte dos escritores de anedotas
é mais indiscreta do que útil. Mas o que dizer desses compiladores in­
solentes, que entendem como mérito maldizer, imprimem e vendem
escândalos, como Lecausto vendia venenos?
Da história satírica. Se Plutarco repreendeu Heródoto por não
haver destacado o suficiente a glória de algumas cidades gregas e por
haver omitido vários fatos conhecidos dignos de memória, são mais re­
preensíveis hoje em dia aqueles que, sem possuir nenhum dos méritos
de Heródoto, imputam aos príncipes, às nações, ações odiosas, sem a
mais vaga aparência de prova. A guerra de 1741 foi escrita na Inglaterra.
Encontramos, nessa história, que na batalha de Fontenoy “os franceses
atiraram nos ingleses com balas envenenadas e com pedaços de vidro
venenosos, e que o duque de Cumberland enviou ao rei da França uma
garrafa cheia desses pretensos venenos encontrados nos corpos dos in­
gleses feridos”. O mesmo autor acrescenta que, devido ao fato de os

de referência sobre o tema. Voltaire despertava polêmica quando julgava os ingleses superiores
aos franceses, como neste caso em que compara um historiador inglês (Clarendon) a um his­
toriador francês (Retz).
VOLTAIRE
61

franceses terem perdido 40 mil homens nessa batalha, o parlamento


de Paris editou um decreto por meio do qual estava proibido falar no
assunto sob pena de castigos corporais.
Memórias fraudulentas, impressas há pouco, estão repletas de se­
melhantes absurdos insolentes. Ali encontramos que no cerco de Lille
os aliados jogavam bilhetes na cidade concebidos nesses termos: “fran­
ceses, consolem-se, a Maintenon93 não será sua rainha”.
Quase cada página está repleta de imposturas e de termos ofen­
sivos contra a família real e contra as principais famílias do reino, sem
alegar a mais vaga verossimilhança que pudesse conferir um mínimo
colorido a essas mentiras. Isso não é de modo algum escrever a história,
é escrever ao acaso calúnias.
Imprimiu-se na Holanda, sob o nome de história, uma infinidade
de libelos cujo estilo é tão grosseiro quanto o das injúrias, e cujos fatos
são tão falsos como mal escritos. É, diz-se, um mau fruto da excelente
árvore da liberdade. Mas se os infelizes autores dessas inépcias tiveram
a liberdade de enganar os leitores, é preciso usar aqui a liberdade de
desenganá-los.
Do método, da maneira de escrever a história, e do estilo. Tanto se dis­
se sobre esse tema, que é preciso aqui dizer muito pouco. Sabe-se bem
que o método e o estilo de Tito Lívio, sua gravidade, sua eloquência
sábia, convêm à majestade da república romana; que Tácito é mais ade­
quado para pintar os tiranos; Políbio, para dar lições de guerra; Denis
de Halicarnasso,94 para desenvolver as antiguidades.
Mas, ao nos modelarmos em geral por esses grandes mestres, te­
mos hoje um fardo mais pesado do que o deles a sustentar. Exige-se
dos historiadores modernos mais detalhes, fatos mais bem constatados,
datas precisas, autoridades, mais atenção aos costumes, às leis, aos há­
bitos, ao comércio, às finanças, à agricultura, à população. Há história,
assim como há matemáticas e física. O trajeto cresceu prodigiosamente.

gi Françoise dAubigné Scarron (1635-1719): viúva do dramaturgo Paul Scarron, recebeu em


1678 o título de marquesa de Maintenon. Exercia grande influência sobre Luís XIV e é provável
que tenha se casado em segredo com ele entre 1685 e 1686.
94 Historiador grego (60 a.C.-8 d.C.) que viveu em Roma. Publicou em 8 a.C. as Antiguidades
tomanas, que trata da história de Roma, da origem vinculada aos gregos até as Guerras Púnicas,
e é a ela que se refere Voltaire.
62 Lições de história

É tão fácil fazer uma coletânea de gazetas quanto é difícil hoje escrever
a história.
Exige-se que a história de um país estrangeiro não seja de modo
algum lançada na mesma forma que a de sua pátria.
Se você faz a história da França, não é obrigado a descrever o curso
do Sena e do Loire; mas, se você dá ao público as conquistas dos portu­
gueses na Ásia, exige-se uma topografia dos países descobertos. Deseja-
se que você conduza seu leitor pela mão ao longo da África, e das costas
da Pérsia e da índia; espera-se de você instruções sobre os hábitos, as
leis, os costumes dessas nações novas para a Europa.
Nós temos 20 histórias do estabelecimento dos portugueses nas
índias; mas nenhuma nos fez conhecer os diversos governos desse país,
suas religiões, suas antiguidades, os brâmanes, os discípulos de Jean, os
guebros, os baneanes.95 Essa reflexão pode se aplicar a quase todas as
histórias dos países estrangeiros.
Se você não tem outra coisa a nos dizer a não ser que um bárbaro
sucedeu a um outro bárbaro às margens do Oxus e do laxarte,96 em que
você é útil ao público?
O método conveniente à história de seu país não é apropriado para
escrever as descobertas do novo mundo. Você de modo algum irá escre­
ver sobre uma cidade como sobre um grande império; de modo algum
você irá narrar a vida de um particular como escreverá a histótia da
Espanha ou da Inglaterra.
Essas regras são bastante conhecidas. Mas a arte de bem escrever
a história será sempre muito rara. Sabemos bem que é preciso um
estilo grave, puro, variado, agradável. Há leis para escrever a história
como aquelas de todas as artes do espírito; muitos preceitos, e poucos
grandes artistas.

95 Voltaire interessou-se cada vez mais pelos hindus e pelos povos do Oriente Próximo ao final
da vida. Aos guebros, “adoradores de fogo”, antigos habitantes da Pérsia que seguiam a religião
reformada por Zoroastro, chegou a dedicar a tragédia Lcs guebres: ou la tolerance (1769).
96 Oxus: antigo nome grego do rio atualmente chamado Amu Darya, que corre pelo Afeganistão,
Tajiquistão, Turcomenistão e Usbequistão e que é considerado o maior da Ásia Central. laxarte:
atual rio Syr-Daria, constituía a fronteira oriental da Pérsia aquemênida.
Pierre Daunou
Daniela Kern

Pierre-Claude-François Daunou, historiador e político, nasceu, em 18 de


agosto de 1761, em Bologne-sur-mer, filho de Pierre Daunou e de Ma-
rie-Antoinette-Péronne Sauzet. Seu pai, avô e bisavô eram cirurgiões, e a
família, natural de Guyenne e originalmente protestante, teve de deixar a
França devido à revogação do Édito de Nantes pelo Édito de Fontaineble-
au, em 1685. Quando voltaram, precisaram se converter ao catolicismo.
O jovem Daunou foi enviado, quando completou sete anos, ao colé­
gio dos oratorianos, pertencente à Congregação do Oratório, fundada na
França em 1575 por São Filipe Néri, um convicto divulgador de Descartes
que defendia o estímulo ao pensamento livre. Como Daunou, aos 16 anos,
foi impedido pelo pai de estudar direito, pois a família não teria condições
de arcar com o pesado custo do curso, ele decidiu seguir a carreira religiosa
e se tornou monge junto aos oratorianos, no final de 1777. A nova condi­
ção favoreceu seus estudos, e até 1780 Daunou dedicou-se aos cursos de
letras e de teologia.
Uma vez formado, o jovem Daunou passou a trabalhar como professor
em diversos lugares: no colégio dos oratorianos em Troyes, ensinou latim;
em Soissons, lógica; na Bolonha, filosofia; e na famosa casa de estudos da
mesma ordem, em Montmorency, que manteve estreitas relações com Rous-
seau e adotou a pedagogia proposta no Émiíe, ensinou teologia e filosofia.
64 Lições de história

Não tardou para que Daunou tentasse se firmar também no meio li­
terário. Assim, em 1785 venceu o concurso da Academia de Nimes, que
ofereceu como tema o Éloge de Boileau. O elogio que Daunou escreveu so­
bre o poeta Nicolas Boileau (1636-1711), no entanto, não teve aprovação
unânime. O periódico Année Littéraire (1754-1790), fundado por um dis­
cípulo direto de Pierre Desfontaines (1685-1745), um dos grandes críticos
de Voltaire, publicou em 1787 uma forte crítica ao texto. Os argumentos
são os mais variados. O articulista, além de lamentar o excessivo apego ao
pensamento de Voltaire (Daunou, diga-se de passagem, permaneceria fiel à
filosofia voltairiana até o final da vida), questiona a estrutura da obra: “seu
plano é mal distribuído e descosido, as observações, superficiais [...]; nada
de aprofundado, nada de luminoso; seu estilo é seco e frio fi..]”.1 Questio­
na, ainda, o status do autor: “o nome do senhor Daunou não é de modo
algum ainda suficientemente importante no mundo literário para que lhe
seja dado peso e crédito”.2
Diante da polêmica que se formava, o crítico francês Jean-François de
La Harpe (1739-1803) saiu em defesa de Daunou e escreveu um elogio a sua
obra. O favor não foi esquecido: muitos anos depois, em 1826, Daunou o
retribuiria preparando uma edição anotada da obra de La Harpe.
Daunou se tomou padre ainda em 1787 e, como boa parte dos ora-
torianos, abraçou com entusiasmo a causa revolucionária, após a queda
da Bastilha, e se envolveu rapidamente com questões políticas. Em 10 de
agosto de 1789 foi eleito deputado na Convenção Nacional pelo distrito
de Boulogne, e se aliou aos girondinos. Paralelamente, foi convidado a as­
sumir o posto de vigário metropolitano do bispo de Paris. Sua carreira de
vigário, contudo, seria curta. Em 1792, por decreto da Assembleia Legisla­
tiva, a Congregação do Oratório é suprimida.
Com o fim da carreira religiosa, Daunou voltou todas as suas energias
para a política. Nesses primeiros anos de convenção defendeu veemente­
mente que ela não tivesse poderes de justiça. Derrotado, passou então a
tentar garantir o direito de ampla defesa dos acusados.
A próxima grande discussão que enfrentou foi a do julgamento de
Luís XVI. Opondo-se frontalmente a Robespierre, que defendia a morte

1 Lettre V (n. 48, 27 nov. 1787). Influence de Boileu sur la littérature française. L Année Litté­
raire..., p. 98 (todas as citações de trechos de obras que na bibliografia encontram-se em francês
ou inglês foram traduzidas pela autora).
2 Ibid., p. 108.
PlERRE DAUNOU 65

do rei, Daunou lutava por sua extradição. Seu voto foi explicado em um
documento publicado pela convenção, a Opinion de P. C. F. Daunou, sur le
jugement de Louis Capet (1793): “não lerei as páginas sangrentas de nosso
código, uma vez que vocês descartaram todas aquelas em que a humani­
dade traçara as formas protetoras da inocência. [...] Mas não é da natureza
de uma medida administrativa recorrer à pena capital. Essa pena seria útil?
A experiência dos povos que fizeram com que seu rei morresse prova o
contrário. Voto então pela deportação e pela reclusão provisória até que
se atinja a paz”.3 Ainda que seu discurso tenha causado grande impacto à
época, mais uma vez Daunou foi voto vencido. Em 21 de janeiro de 1793
Luís XVI foi morto na guilhotina.
Entre as muitas tarefas políticas que Daunou precisou cumprir na­
quele ano de 1793, uma foi bastante inusitada: juntamente com seu amigo
Joseph Lakanal (1762-1845), também deputado, foi encarregado pela con­
venção, em 12 de julho, de testar o telégrafo do abade e inventor Claude
Chappe (1763-1805). Conseguiu, com muito sucesso, enviar uma mensa­
gem para seu colega Lakanal através da linha telegráfica recém-instalada
em Paris. A convenção financiou o experimento porque precisava de meios
mais velozes de comunicação.
Ao longo do ano, após a morte do rei, o poder jacobino cresceu, os gi-
rondinos protestaram e, em 3 de outubro, 135 deputados girondinos foram
presos ou levados ao tribunal. Daunou estava entre os presos, e foi das cinco
prisões diferentes pelas quais passou que acompanhou o rápido desenrolar
dos acontecimentos: a proclamação do governo revolucionário pela conven­
ção em 10 de outubro, a morte de Maria Antonieta na guilhotina, em 16 de
outubro, e as sucessivas mortes de vários deputados condenados. A situa­
ção das prisões de Robespierre era extremamente precária, e a possibilidade
de uma morte próxima, para os presos, muito real. Enquanto aguardava,
Daunou estudou os clássicos, principalmente aqueles que, segundo a leitura
iluminista, combatiam a tirania, como Cícero e Tácito.
Daunou já estava na prisão havia quase um ano quando, em 28 de
julho de 1794, Robespierre foi morto na guilhotina. A notícia chegou

3Apud Mignet (1854:390).


66 Lições de história

aos presos de Port-Libre através de outro preso, Louis Sébastien Mercier


(1740-1814), autor do romance Uan 2440 (1771), o primeiro a mostrar
uma projeção da Paris do futuro. Mercier, que chamava Robespierre de
“sanguinocrata”, recebeu, em um bilhete embrulhado em um pedaço de
pão, a notícia. Dias depois, os presos, graças a uma petição de Daunou,
foram finalmente libertados.
Uma das primeiras iniciativas de Daunou após sair da prisão foi editar,
juntamente com Sophie Condorcet (1764-1822), a viúva, o inédito Esquisse
d’ un tableau historique du progrès de Vesprit humain, do marquês de Condor­
cet (1740-1794), filósofo e cientista político, admirador de Voltaire e uma
das vítimas do Terror, encontrado morto em sua cela em 28 de março. No
prefácio à edição, Daunou e a marquesa escreveram: “possa essa morte, que
não servirá pouco, na história, para caracterizar a época em que ocorreu,
inspirar um apego inabalável aos direitos dos quais ela foi a violação!”.4 No
ano seguinte, como secretário da convenção, cargo que ocupava desde 21
de dezembro de 1794, Daunou fez com que o Estado financiasse a edição
de 3 mil exemplares da obra de Condorcet, para que fossem distribuídos
'.os próprios membros da convenção e às instituições de ensino da Repúbli-
a.5 Em 12 de abril de 1795 apresentou ainda, na convenção, um relatório
m que justificou a edição do livro, valioso, segundo Daunou, porque os
‘alunos, ao nele estudarem a história das ciências e das artes, aprenderão
sobretudo a estimar a liberdade, a detestar e a vencer todas as tiranias”.6
Em 1795 a importância do papel de Daunou na convenção tornou-se
cada vez maior: de secretário passou a presidente (em 3 de agosto), além de
ter sido eleito membro da Comissão de Instrução Pública, e da Comissão
de Saúde Pública. Tomou-se, também, membro da Comissão dos Onze,
que apresentou o projeto de uma nova Constituição, a do ano III, em 23
de junho de 1795. Daunou desejava que a França seguisse o modelo ame­
ricano e tivesse um presidente, mas o que conseguiu de fato introduzir na
Constituição foi a lei que reorganizava o ensino público na França, segun­
do o modelo de Talleyrand (1754-1838).

4 Daunou e Condorcet, 1794:vii.


5 Sobre esse episódio, ver Koyre (1948:151).
6 Daunou, 1907:11.
PlERRE DAUNOU
67

Outro projeto importante conduzido por Daunou em 1795 foi a


criação do Institut de France, em 25 de outubro. Daunou concebeu a
estrutura do instituto e foi o relator da lei,7 mas o projeto atendia aos
anseios de um grupo maior, que provinha tanto da loja maçónica Neuf
Soeurs — muito influente no período revolucionário, à qual se haviam
associado também Voltaire, Marmontel, Volney, Benjamin Franklin e tal­
vez Condorcet — quanto da Société d’Auteuil, o renomado salão manti­
do por Anne-Catherine Helvétius (1722-1800). Eram membros do grupo
aqueles que viriam a ser conhecidos como ideólogos:8 por exemplo, Do-
minique Joseph Garat (1749-1833), escritor, político e professor de his­
tória, opositor de Robespierre, colega de Daunou na convenção; Destutt
de Tracy (1754-1836), o filósofo que criou o termo ideologia; e François
Andrieux (1759-1833), advogado e dramaturgo próximo dos girondinos
e grande admirador de Voltaire.
O Institut de Paris apresentava-se como uma instituição de pesquisa
bastante avançada: de acordo com o projeto, abrigaria cinco centros inde­
pendentes, quatro deles já existentes e um novo, o curso de ciências morais
e políticas, o primeiro curso de ciências sociais a ser criado no mundo.
Tal curso dividia-se em seis seções: análise das sensações e das ideias (De
Tracy, com base nas pesquisas realizadas nesse centro, publicaria seu Elé-
ments d’idéologie a partir de 1800); moral; ciência social e legislação (essa
era a especialidade de Daunou); economia política; história; e geografia.
Como professores foram indicados intelectuais de renome, como Cuvier,
além de, conforme já mencionado, Tracy e Daunou. No dia 3 de abril de
1796 o instituto foi inaugurado em solenidade realizada no Louvre, onde
estava instalado, e Daunou foi o responsável pelo discurso principal.
A concorrida vida política não permitiria, entretanto, que Daunou se
dedicasse muito à pesquisa. Em 1797 foi eleito presidente do Conselho dos
Quinhentos e em 1798 foi convocado pelo Diretório para organizar a nova
república romana e criar para ela uma constituição — ele havia se tomado
uma autoridade em legislação republicana e foi várias vezes consultado a

7 Essa posição pode ser encontrada em Boissier (1907:79).


8 Sobre o pensamento dos ideólogos, ver Staum (1987).
68 Lições de história

esse respeito. Daunou não teve muito tempo para trabalhar em Roma, pois
uma nova convocação do Diretório, ainda em 1798, o fez retornar a Paris.
A república romana, incipiente e frágil, foi derrubada em 1799.
Daunou, em 18 de agosto de 1798, foi novamente eleito presidente
do Conselho dos Quinhentos, a assembleia legislativa que passara a fun­
cionar em 1795. A situação política não estava tranquila. Havia ainda o
medo, entre os girondinos, de que os jacobinos tornassem ao poder por
meio de um golpe. Desse modo, um grupo de girondinos — muitos deles
ideólogos, amigos de Daunou — preparou um golpe que a princípio se
anunciava como preventivo. Em 9 de novembro de 1799, ou 18 brumá­
rio, de acordo com o calendário revolucionário, Napoleão aplicou o golpe
dentro do golpe, dissolvendo o Conselho dos Quinhentos presidido por
Daunou e substituindo o Diretório pelo Consulado.
Daunou, republicano convicto, ao que tudo indica estava ciente de toda
a trama liderada por Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1836), mas não parti­
cipou diretamente dela e, após o golpe, não escondeu, para os próximos, seu
desapontamento — ainda que em um primeiro momento tenha se envolvido
na redação da Constituição do Consulado, a chamada Constituição do ano
VIII. É importante lembrar que Daunou e Napoleão já se conheciam havia
muito tempo: chegaram a disputar, no início da década de 1790, um prémio
proposto pela Academia de Lyon com o tema “que verdades e que sentimen­
tos mais importa inculcar nos homens para a sua felicidade?”. Daquela vez
Daunou venceu. As coisas, no entanto, haviam mudado. Napoleão, que cada
vez mais centralizava o poder, tentou manter Daunou sob controle, junto de
si, como conselheiro de Estado. Daunou recusou o primeiro convite, prefe­
rindo ser presidente do Tribunat, onde entrou eleito pela maioria em lc de
janeiro de 1800. De lá Daunou passou a combater quase todos os projetos de
Napoleão, na tentativa de impor limites legais a seu poder. Em lc de janeiro
de 1801, por exemplo, combateu a criação de tribunais especiais. Desgosto­
so com a oposição, Napoleão o convidou mais uma vez para ser conselheiro
de Estado e ouviu nova recusa — ofereceu-lhe ainda o cargo de dixecíeux
généxal de Vinstruction publique, também recusado. Diante das insistentes ne­
gativas, Napoleão, irritado, rompeu com Daunou.
A reação no plano político logo se fez sentir: Napoleão, em 7 de março
de 1802, expurgou do Tribunat Daunou e 19 outros opositores, entre os
quais os ideólogos De Tracy e Benjamin Constant. O Senado tentou preser-
69
PlERRE DAUNOU

var a carreira política de Daunou ao indicá-lo como senador. Napoleão não


gostou da indicação e revidou, colocando na posição um de seus generais.
O último golpe do cônsul foi a extinção, em 1803, da classe de ciências
morais e políticas do Institut de France,9 da qual Daunou participava. Dau­
nou, muito doente e abatido, passou para a classe de história e literatura
antigas, e abandonou a política.
Napoleão, contudo, não deixou seu desafeto completamente desam­
parado, e o nomeou, em 1804, garde des archives. Na nova função Daunou
teve os desafios políticos substituídos pelos logísticos: precisava lidar com
uma formidável massa de documentação, e para tanto criou um método
próprio para a organização do material, com seções histórica, legislativa,
administrativa etc.10 Outra função para a qual Daunou fora nomeado er
3 de abril de 1810 por Napoleão foi a de censor imperial, mas novament
movido por seus princípios republicanos, recusou-se a exercê-la.
Após a queda de Napoleão, Daunou passaria por nova provação
em 1816 perdeu sua função de garde des archives, mais uma vez devidc
à perseguição política.11 No mesmo ano, em contrapartida, Daunou co­
nheceu melhor sorte ao entrar para a prestigiosa Académie des Inscrip-
tions, uma das cinco instituições que faziam parte do projeto original
do Institut de France.
Em 1818 Daunou obtém novas posições honrosas: além de ser eleito
deputado (função que tornará a exercer outras vezes), passou a dirigir o
tradicional Journal des Savants. Sua contribuição mais importante nesse ano
haveria de ser, no entanto, a publicação de Essai sur les garanties individuel-
les que reclame Vétat actuel de la société, em que reafirmou seu compromisso
com antigas bandeiras, como a defesa da inocência do réu até que fosse

9 Em Langlois (1894:512) encontramos a seguinte análise desse evento: “o império era hostil à
ciência, porque a ciência é ao mesmo tempo um resultado e uma causa inspiradora da liberda­
de”. A interpretação de Boissier e colaboradores (1907:136), um pouco posterior, vai no mesmo
sentido: “o olhar do primeiro cônsul vai além dos fatos para ver o futuro. Ele leu sem ruído
o que mais tarde poderia ter sido levado à realização com escândalo. Ele sentiu uma absoluta
discordância entre seu princípio e aquele da filosofia política”.
10 Para menção ao método de classificação de documentos elaborado por Daunou, ver Edwards
(1848).
11 As amargas reflexões de Daunou sobre sua destituição deste cargo podem ser lidas em Gerard
(1855:98-99).
70 Lições de história

provada sua culpa, e a liberdade de expressão. Esse texto e o Commentaire


sur Vesprit des Lois de Montesquieu (1806/07), de Destutt de Tracy, são con­
siderados os mais famosos tratados políticos dos ideólogos do Império e
da Restauração.
A consagração da excelente fase de Daunou viria com sua entrada
triunfal no Collège de France em 1819.12 No dia 13 de abril proferiu a
aula inaugural de seu curso de história para uma plateia repleta de nomes
reconhecidos, entre os quais seus velhos companheiros ideólogos Garat,
Andrieux e De Tracy.13
O curso de história que Daunou ministrou de 1819 a 1830, sem­
pre muito disputado, procurou sistematizar cientificamente as pesquisas
históricas levadas adiante pelos iluministas. Daunou abordou de maneira
minuciosa a interpretação dos textos dos historiadores antigos, a cronolo­
gia e a arte de escrever a história. No volume de seu curso dedicado a este
último tema,14 por exemplo, analisou os trabalhos históricos não apenas
de autores antigos, mas também dos iluministas: Voltaire (cujas opiniões
'>obre história comparou às de Heródoto), Rollin, Pére Daniel, Marmontel,
y Alembert, entre outros.15
Os comentaristas de gerações posteriores haveriam de criticar em
seus textos históricos a parcialidade, os julgamentos morais e, sobretudo,
o desprezo confesso por tiranos. É nesses termos que a relação de Dau­
nou com os grandes homens é descrita por Sainte-Beuve:16 “os grandes
homens, bem o sei, são muitas vezes sacrificados: Alexandre é incompre­
endido, ultrajado [...]; Daunou, que viu demais Napoleão, não os ama”.17
Por outro lado, algumas características extremamente avançadas de seu
posicionamento histórico passaram despercebidas. Em 1827, no Journal

12 Para uma relação dos professores que atuavam junto com Daunou no collège, ver Collège de
France (2007).
13 Taillandier, 1847:243. Uma descrição da aula inaugural pode ainda ser encontrada em Gerard
(1855:101); Thierry (1835:216-217). O artigo de Thierry fora originalmente publicado no Cen-
seur Européen de 5 de julho de 1819.
14 Daunou, 1844.
15 Para comentários sobre o conjunto do curso de história de Daunou, ver Taillandier (1847:243-
252); Sainte-Beuve (1855:55-59); Gerard (1855:149-155).
16 Sobre o modo como Sainte-Beuve critica Daunou, ver Chadboume (1965).
17 Sainte-Beuve, 1855:56.
PlERRE DAUNOU 71

des Savans, Daunou escreveu uma resenha sobre a recém-publicada obra


Lettres sur Vhistoire de France, de Augustin Thierry,18 o mesmo que elogiara
calorosamente sua aula inaugural do curso de história em 1819. Daunou
apresentou várias críticas ao conjunto de ideias de Thierry; um dos pontos
que ataca de maneira mais contundente é o conceito romântico de raça,
que começava a despontar com bastante força na Europa. Sempre fiel a
seu republicanismo, Daunou percebeu logo o perigo de uma história su­
bordinada a tal noção, como fica claro em seu comentário: “a distinção das
raças merece sem dúvida uma atenção séria [...]. Mas o curso natural das
coisas humanas produz tais movimentos e tais misturas que, após vários
séculos, é quase impossível remontar à origem das famílias [...]”. Dito de
outro modo, Daunou acreditava que o conceito de raça, ainda que útil (ele,
bem entendido, não teria como eliminar naquela época tal conceito de seu
horizonte de pensamento), não deveria determinar “com antecedência a
série e a cor de todos os fatos”.19
Depois de muito tempo, em 1830 os ares republicanos tornaram a
soprar na França, e Daunou renunciou à sua posição no Collège de Fran­
ce, devido à sobrecarga de compromissos públicos. Em 1834, renunciou
também ao cargo de deputado, uma vez que fora nomeado pelo ministro
da Instrução Pública François Guizot (1787-1874) membro da comissão
encarregada de publicar documentos inéditos da história da França. Ou­
tras distinções se sucedem, tais quais a nomeação de Daunou, no dia 16 de
março de 1838, como secretário perpétuo da Académie des Inscriptions.
Em 20 de junho de 1840 o velho Daunou, tão bem definido por Sain-
te-Beuve como um homem do século XVIII, a “medalha de uma outra
época conservada inteira na nossa”,20 após enfrentar uma longa doença,
finalmente descansou.
Principais obras de Daunou:

♦ De Vinjluence de Boileau sur la littérature jrançaise, 1787;


♦ Étendue et limites de la puissance paternelle, 1788;
> Essai historique sur la puissance temporelle des papes, 1799;

18 Sainte-Beuve (1855:53) parece ter achado a crítica de Daunou a Thierry demasiado severa.
19 Daunou, 1827:721-722.
20 Sainte-Beuve, 1855:68.
72 LiçOes de história

♦ Analyse des opinions diverses sur Vorigine de Vimprimerie, 1802;


♦ Essai sur les garanties individuelles que reclame létat actuel de la société,
1818;
♦ Cours d’études historiques, 1819-1830.

DISCURSO DE ABERTURA DO CURSO DE HISTORIA


PRONUNCIADO NO COLLÈGE DE FRANCE EM
13 DE ABRIL DE 181921

Senhores, a própria extensão do percurso em que me engajo ao co­


meçar um curso de história me pareceria assustadora, quando pudesse
dissimular para mim mesmo as dificuldades de toda ordem que nela devo
encontrar, com tão poucos meios de vencê-las. As outras ciências não co­
nhecem limites: os fatos a observar e a descobrir são inumeráveis; mas, ao
menos, todos esses fatos existem juntos, e o sistema, todo inteiro, encon-
tra-se acabado na natureza, antes de se desvelar à inteligência humana:
é, pelo contrário, a própria matéria da história civil que nasce e cresce
sucessivamente, se desenvolve ou se renova, se engrandece e por vezes
se decompõe ao atravessar os séculos. Os fatos que a física observa estão
vivos, e aqueles que a história pesquisa estão mortos, disse Volney,22 que
dava, assim, na abertura de um curso verdadeiramente normal, uma ideia
bastante justa desse gênero de estudos.23 Com efeito, senhores, a história
não ressuscita os fatos que ela se aplica a retraçar, ela marcha sobre tum­
bas, e pode nos apresentar, a bem dizer, apenas uma imensa coleção de
epitáfios. Outra vantagem que os conhecimentos físicos têm sobre ela é a

21 Daunou, 1842 (tradução e notas de Daniela Kem).


22 Constantin François de Chasseboeuf, conde de Volney (1757-1820): historiador, filósofo e
político francês, professor da École Normale (criada durante a Revolução Francesa, em 1794),
autor de obras como Les ruines, ou méditations sur les révolutions des empires (1791), fazia par­
te, assim como Daunou, do grupo de filósofos iluministas que se envolveu com a Revolução:
Condorcet, Helvétius etc. Todos eles eram grandes admiradores de Voltaire, e Volney levou essa
admiração mais longe ao cunhar seu próprio nome: Volney mistura Voltaire e Femey, a famosa
residência em que Voltaire redigiu muitos de seus manifestos em prol da tolerância, a partir da
década de 1760.
23 Volney, 1810.
PlERRE DAUNOU
73

de poder quase sempre apagar todos os traços dos erros que dissiparam,
enquanto a história tem a necessidade de conservar entre as lembranças
que reúne aquela mesma das fábulas das quais se liberta, porque o crédito
que essas fábulas obtiveram e a influência que exerceram são fatos que
não lhe é permitido omitir. Ela é, assim, de todas as ciências, a mais inde­
finida em seus objetos, a mais limitada em seus meios; aquela que menos
admite observações imediatas e métodos rigorosos; aquela que tem mais
dificuldade em superar seus erros e que menos pode simplificar-se pelos
seus progressos. É preciso convir, a luz da natureza não brilhou em abso­
luto sobre ela; sua penosa rota, na noite dos tempos passados, foi ilumi­
nada apenas pelos dias artificiais cuja luz se enfraquece, e cujo número
diminui à medida que nos distanciamos do tempo presente.
Todas essas desvantagens da história, eu as tornarei ainda mais sen­
síveis ao ensiná-la no seio de uma escola em que os outros conhecimentos
humanos se destacam ao mesmo tempo pelo vasto brilho que adquiriram
e pelas luzes que a eles acrescentam aqueles que os professam.24 Uns aper­
feiçoam os métodos, enriquecem os detalhes, estendem as aplicações das
ciências matemáticas e físicas: tanto dela esclarecem mesmo a história, ze­
losos em torná-la exata como essas próprias ciências;25 quanto obtêm, por
meio de experiências e de novas análises, os resultados mais apropriados
para confirmar, completar ou retificar as opções adquiridas; preencher, na
descrição da natureza e na teoria de suas leis, as lacunas que apenas eles
perceberam. Os outros, aplicando métodos não menos severos e não me­
nos fecundos ao estudo das línguas do Oriente e da Grécia, fazem brotar,
das profundezas da ciência gramatical, luzes vivas e puras, dignas de escla-

24 Collège de France: escola criada em Paris, no Quartier Latin, por Francisco 1 em 1530, de
orientação humanista, para competir com a Sorbonne. Seu lema é docet omnia, isto é, “ensinar
tudo”. Desde a fundação, essa escola, ainda hoje uma das mais prestigiadas da França, conta
com professores considerados brilhantes em suas especialidades. Quando Daunou assumiu a
cátedra de história e moral, passou a ser colega de cientistas renomados como Georges Curvier
(1769-1832), encarregado da cátedra de história natural entre 1800 e 1830, e pioneiro nos es­
tudos paleontológicos; e Jean-Baptiste-Joseph Delambre (1749-1822), que ocupou a cátedra de
astronomia de 1807 a 1822 e foi um dos responsáveis pelo estabelecimento do sistema métrico
decimal durante a Revolução Francesa — ele também publicaria uma Histoire de Vastronomie
modeme (1822).
25 Delambre continuava então seu curso de história da astronomia.
74 Lições de história

recer a filosofia, a literatura e, sem dúvida, também a história. Aqueles que


tratam da eloquência e da poesia, seja antiga, seja moderna, têm a revelar
segredos escondidos nas dobras mais delicadas do espírito e do coração do
homem; mas, depois de tudo, esses segredos são aqueles das artes em que
eles mesmos excelem; e por mais difícil que nos pareça a teoria, eles preci­
sam apenas, para propor melhores preceitos, lembrar do que fizeram para
oferecer modelos. Aqui então todos ampliam o caminho que percorrem e
dão a suas lições a autoridade ou de suas descobertas ou de seus exemplos.
A tarefa que me chamaram a cumprir entre eles é uma das mais honrosas
que jamais me foram impostas, mas ela é também a mais trabalhosa; e se
eu tivesse podido ser distraído do reconhecimento que devo a seus votos,
eu o teria sido pelo trabalho que, depois de os haver obtido, me impôs a
ambição de merecê-los. No entanto, senhores, a única pesquisa da qual
pude me ocupar ainda é aquela dos próprios métodos que devo seguir
para dar alguma exatidão ao ensino da história, e estou persuadido de que
esses estudos preliminares, que foram tão necessários para mim mesmo, de
modo algum seriam inúteis àqueles que me darão a honra de me escutar.
Minhas lições por muito tempo não terão outro objeto, e se dividirão em
três partes, cuja primeira dirá respeito ao exame e à escolha dos fatos; a
segunda, a sua distribuição na ordem dos tempos e dos lugares; a terceira,
enfim, à maneira de expô-los, para com eles formar ao mesmo tempo um
quadro sensível e um corpo de conhecimentos verdadeiros.
A ciência histórica não tem outra fonte a não ser os testemunhos, nem
outro instrumento que não seja a crítica aplicada a reconhecer a autenti­
cidade, o sentido preciso e a verdade de tais testemunhos. Estes, segundo
suas diferentes características, assumem os nomes de tradições, monumen­
tos, relações, e se oferecem a nós sob aspectos tão diversos que seria difícil
que formássemos um quadro sistemático de seus gêneros e de suas espé­
cies. Não podemos, contudo, nos furtar a esse trabalho, porque apenas
ele pode fornecer à crítica histórica os dados dos quais ela necessita para
se tomar uma ciência segura e completa. Ela deve ser nada mais do que o
resumo das observações que se fizeram sobre as diferentes fontes de onde
brotava o conhecimento dos fatos, sobre os sinais que os evocam, sobre
os relatos que os expõem, sobre as vias diretas ou oblíquas, esclarecidas
ou obscuras, pelas quais tantas lembranças chegam a nós. É preciso que
todas as noções que pertençam à história sejam homogéneas; umas são
PlERRE DaUNOU 75

apenas tradicionais, outras se ligam a monumentos contemporâneos ou a


relações originais. Os fatos, considerados em si mesmos, concordam mais
ou menos, seja entre si, seja com a ordem constante ou habitual das coisas
humanas; os testemunhos, por sua vez, mudam não somente de valor, mas
por assim dizer de natureza, segundo seu número, sua época, sua coerên­
cia, e segundo as faculdades, os hábitos, os interesses e o caráter moral
das testemunhas. Eis, senhores, os elementos e as circunstâncias que será
necessário levar em conta para deduzir de um quadro fiel e completo, se
possível, de todas as fontes da história as máximas que deverão nos dirigir
no exame dos fatos que ela retraça. Disso resultará uma verdadeira ciência,
comparável àquelas em que cada noção se liga por uma cadeia indissolúvel,
seja a verdades que sua própria expressão toma evidentes, seja a fenôme­
nos naturais imediatamente observados? Não devemos esperar por isso.
Mas ainda há nela exatidão para rejeitar o que é falso, distinguir o que é
provável, dar por certo apenas aquilo que é impossível colocar em dúvida;
e é ao menos a essa precisão que pode aspirar a história.
Contudo, senhores, para formar uma ciência propriamente dita, não
basta que as noções que ela deve reunir sejam exatas, é preciso também
que sejam úteis; e há ainda essa diferença entre as ciências naturais e os
estudos que vão nos ocupar, pois nas primeiras nenhuma verdade deixa
de ter importância, nenhum detalhe deixa de ter algum valor, quando é
exato; enquanto a história está sujeita a sobrecarregar-se de narrativas cuja
fidelidade não desculparia a insignificância. No que encerra e no que faz a
natureza, nada do que nos é acessível nos seria indiferente; tudo o que dela
podemos estudar toca-nos em algum ponto, e por consequência nos impor­
ta; mas, entre essas inumeráveis ações humanas que vão se sucedendo e se
repetindo no curso dos séculos, acaso não convém escolher aquelas cujo bri­
lho, objetos ou efeitos as tomam verdadeiramente memoráveis, e não temos
o direito de negligenciar as outras à proporção do que lhes falta para serem
dignas de que as consideremos como experiências? Delas há um número
bem grande cujo esquecimento de modo algum seria um dano; conhecê-las
não é se esclarecer nem mesmo se instruir; é, ao contrário, acumulá-las com
tanto esforço e tão pouco proveito que podemos comprometer a dignidade
da história e fornecer pretextos àqueles que contestam sua utilidade.
Assim como uma pessoa permanece a mesma apenas pela lembrança
do que sentiu e do que fez, a identidade permanente de um povo pressu-
76 Lições de história

põe alguns vestígios de seus anais, alguma memória dos acontecimentos


através dos quais se formou, civilizou ou depravou. Gerações que passaram
sem deixar vestígios sucederam-se sem perdurar. É ao transmitir lembran­
ças que elas se tornam uma nação que dura, e que passa de algum modo
por todas as idades da vida. Não sei, senhores, se exagero a importância do
gênero de estudos ao qual devo me consagrar; mas me parece que ele está
tão ligado aos grandes interesses e à própria vida dos corpos políticos que
poderemos quase sempre julgar o estado e o progresso deles pelos seus.
Não ignoro que filósofos com justiça célebres olharam o conhecimento dos
fatos “como sendo somente de uma necessidade conveniente, como um
dos recursos mais comuns da conversação; em uma palavra, acrescentam
eles, como uma dessas inutilidades tão necessárias que servem para preen­
cher as lacunas imensas e frequentes da sociedade”.26 Não empreenderei de
modo algum uma refutação direta dessa observação, mais difundida do que
se pensa; mas para recolher as regras a seguir na escolha dos fatos é preciso
que, após haver pesquisado as fontes da história, eu reconheça também os
diversos usos aos quais convém destiná-la; e presumo que resultará desse
exame que ela é eminentemente útil.
O gosto dos conhecimentos históricos é talvez o mais perseverante de
todos os gostos literários. Ele cresce em geral à medida que avançamos na
vida: ele se alia ao espírito de observação que se exerce no seio da sociedade
e às lembranças que dela carregamos ao nos retirarmos da vida pública;
ele é ativo ainda na idade em que qualquer outro estudo não passa de
uma fadiga impotente. Sabemos bem que esse gênero de literatura não está
sempre à prova de uma crítica exigente que discuta com rigor a verdade
e o encadeamento dos fatos, a justeza das aplicações e das consequências;
mas ele oferece ao menos quadros variados, quando não são sempre fiéis,
e um grande número de pontos luminosos, mesmo se ainda permanecem
muito obscuros. É um edifício cujas várias partes estão em ruínas, mas cujo
conjunto não é, no entanto, sem consistência. A razão desfruta da instrução
que nele recolhe, e mesmo do exame dos erros que descarta.
Quando tivermos em vista apenas os serviços que da história obtêm
quase todas as belas artes, e particularmente a arte de escrever, as ideias que

26 DAlembert (Réjlexions sur Vhistoire).


PlERRE DauNOU 77

ela lhes sugere, os grandes traços com os quais ela enriquece suas produ­
ções, quanto todos os talentos, quanto o próprio gênio ainda teria de graças
a lhe render! Com pouquíssimas exceções, os escritores mais ilustres e mais
ricos em recursos próprios são precisamente aqueles que mais se aprazem
em fazer uso dos recursos da história. Cícero, Montaigne, Montesquieu,
Voltaire27 associam a cada instante suas lembranças a seus próprios pen­
samentos, introduzem todas as suas partes em suas concepções, e a fazem
brilhar em suas obras-primas. Não é dela que a poesia toma de empréstimo
o germe ou os detalhes de suas composições mais ousadas? E, sem falar
da epopeia, cujas ficções se enlaçam de algum modo no seio da história,
acaso a cena trágica tem outra origem, e não é nos anais dos povos que ela
sabe descobrir o esboço da maior parte de seus quadros, colher os grandes
traços das figuras que ela anima, reencontrar César e Brutus, Augusto, Nero
e Tibério?28 Aqueles, então, que querem relegar a história ao grupo das

27 Marcus Tulius Cicero (103 a.C.-43 d.C.): advogado, filósofo e homem de Estado romano, foi
autor de obras como as Verrinas (sete discursos contra Verres), as Catilinárias (discursos contra
Catilina), os tratados filosóficos Re publica, De legibus, De natura, e tratados sobre oratória como
De oratore. Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592): escritor francês, consagrou o ensaio
como gênero literário por meio de sua influente obra Ensaios (1580), na qual trata também de
temas históricos. Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu (1689-1755):
filósofo francês, autor de obras importantes como Do espírito das leis (1748) e Considerações
sobre as causas da grandeza dos romanos e sua decadência (1734), esta última histórica, bastante
influente em sua época. François-Marie Arouet, conhecido como Voltaire (1694-17): uma das
principais figuras do Iluminismo francês, publicou vasta obra, dedicada às mais variadas áreas:
teatro, poesia, história, física. Seu trabalho como historiador, com obras como Charles XII, O
século de Luís XIV etc., era bastante respeitado por Daunou.
28 Gaius Julius Caesar (100-44 a.C.): estadista romano que governou Roma, a partir de 49 a.C.,
como ditador, ainda que dentro de um sistema legal republicano. Político hábil e ditador vita­
lício muito poderoso e popular, foi, no entanto, assassinado no Senado romano, em uma cons­
piração armada por Cássio e por Bruto. Marcus Junius Brutus (85-42 a.C.): sobrinho de Catão,
o Jovem, aproximou-se de César, obtendo a posição de pretor urbano (45 a.C.). Descontente
com a aspiração de César à monarquia, une-se a Cássio em um complô para assassiná-lo (44
a.C.). Quando Bruto, juntamente com Cássio, perde a batalha de Filipos para Antônio e Ota-
viano, sucessores de César, suicida-se. Caesar Augustus (63 a.C.-14 d.C.): sobrinho-neto e filho
adotivo de César, foi imperador de Roma entre 31 a.C. e 14 d.C. Conhecido como o imperador
da paz, trocou a política romana de conquistas pelo fortalecimento das fronteiras, assim como
financiou grandes obras públicas. Nero Claudius Caesar Augustus Germanicus (37-68): impe­
rador romano entre 54 e 68, filho de Agripina, que envenenou o marido, o imperador Cláudio,
para que assumisse o poder, manda assassinar a mãe em 59. Persegue os cristãos com violência
e, muito impopular, diante de uma revolta de vários governadores de província, acaba por se
suicidar. Tiberius Julius Cesar (c. 42-37 a.C.): general e diplomata sob o império de Augusto,
foi adotado pelo imperador, com cuja filha, Júlia, se casou e, por sua vez, adotou o sobrinho
78 Lições de história

coisas supérfluas de que se necessita deveriam explicar ao menos o que são


a filosofia, a eloquência, a poesia, a pintura, as letras, enfim, as artes, que
sem ela não poderiam passar.
Mas irei, sobretudo, aproximá-la da ciência dos costumes; porque a
cadeira que acabo de ocupar até aqui carregou o título de história e moral;
e o dever que mais desejo bem cumprir é estreitar a antiga união desses
dois gêneros de estudos. Não concebo de modo algum o que poderia ser a
história, nem como ela seria uma ciência, se ela não fosse a moral experi­
mental. Para compreender que, com efeito, ela não é outra coisa, bastaria
refletir sobre essas relações íntimas que acabamos de perceber entre ela e
a literatura, e que provêm, assim me parece, do fato de que elas aspiram,
uma, a desvelar o coração humano, e a outra, a pintá-lo. Todas as duas che­
gam a sentimentos morais, a ideias morais; elas tendem igualmente, cada
uma segundo o caráter e a direção de seus trabalhos, a reconhecer quais são
nossos deveres e nossos direitos.
Os conhecimentos morais se dividem em duas ordens distintas: uma
consiste apenas em observações, e às vezes mesmo em simples descrições;
a outra, ao contrário, forma um sistema ou uma série de preceitos a seguir
na conduta da vida. A primeira tem por objeto a influência que nossas
organizações e nossos hábitos exercem sobre os movimentos de nossa von­
tade, sobre o caráter de nossos costumes, sobre o curso de nossas ações:
ainda não se trata, de modo algum, do que a razão nos prescreve fazer,
mas do que nossas ideias e nossas inclinações fazem de nós; é um simples
apanhado de fenômenos morais em que, no entanto, os efeitos já são apro­
ximados a suas causas, e em que os resultados das experiências começam a
se generalizar. A segunda parte da moral tem por finalidade explicar-nos o
código das leis primitivas que a natureza nos impôs; e prescrever-nos regras
de conduta fundadas ao mesmo tempo em nossa própria condição, em
nossas relações com nossos semelhantes, em nossos interesses individuais
presentes e futuros, isto é, nos bens e nos males que nossas ações, boas ou
más, devem atrair sobre nós mesmos. Ora, a história diz respeito imedia­
tamente a um ou a outro desses dois gêneros de conhecimento, e fornece,
a bem dizer, quase todos os elementos do primeiro. Não é que o comércio

Germânico. Reinou de 14 a 37, e o final do império foi marcado por um regime de terror que
atingiu a família real e o Senado.
PlERRE DaUNOU 79

ordinário da vida não seja também um curso de experiências morais; mas,


do mesmo modo que o estudo das ciências físicas nos toma mais atentos
aos fenômenos naturais que a cada dia atingem nossos sentidos, a maior
parte dos homens tem uma necessidade semelhante de fazer, na história,
o aprendizado das observações sociais, e de aprender por meio de suas
lições a colher aquelas que devem receber alhures. Eis por que Cícero a no­
meava a mestra da vida, a ciência que ensina a viver: ela merece tanto mais
esse título quanto mais parece ordinariamente não possuir outro fim a não
ser confirmar por exemplos todos os preceitos da moral prática. Porque a
consequência mais constante de suas inumeráveis narrativas é que, entre
tantos destinos diversos, no seio dos flagelos que os vícios propagam em
tomo deles e sobre eles próprios, as sortes mais favoráveis são, no entan­
to, aquelas da virtude; que de todas as dores as suas são ainda as menos
desgastantes; que nada há de tão temerário quanto a iniquidade, de tão
perigoso quanto ser pérfido; e que os crimes mais felizes são aqueles ex­
piados apenas por remorsos funestos e pelo desgosto dos prazeres que nos
prometemos ao cometê-los.
Se os conhecimentos históricos têm tais relações com os dois ramos
da moral privada, apresentam relações mais habituais ainda com a moral
pública; mas foi imposto a esta um nome que parece destacá-la e quase
separá-la da primeira; ela foi disfarçada e praticamente desnaturada ao ser
chamada de política, e ao abranger sob esse título tantas ideias e máximas
estrangeiras sobre equidade, de modo que parece significar outra coisa que
não uma parte da ciência dos costumes. É, entretanto, senhores, o único
sentido verdadeiro e honroso que pode ter: a política é a moral dos gover­
nos, divisível, como a dos particulares, em um corpo de observações e de
experiências, e em um sistema de conselhos e de preceitos fundados sobre
a mais rigorosa justiça. Justiça e verdade são duas palavras completamente
sinónimas quando se trata de regras a seguir, seja nas relações privadas, seja
na administração dos Estados. Eis ao menos a ideia que sobre isso nos dará
o estudo da história; e é a esse gênero de consequências que chegam, no
mais das vezes, os fatos que deveremos recolher. Com efeito, senhores, a
maior parte das ações e dos acontecimentos cuja lembrança pareceu digna
de ser conservada apresenta um caráter político: em vão tentaremos nos
impedir toda consideração sobre os destinos e os interesses dos povos,
sobre o poder e os deveres daqueles que os governam; nós a isso seríamos
80 LiçOes de história

conduzidos pelo relato das guerras, das conquistas, das usurpações, dos
conflitos interiores, das revoluções, dos golpes de Estado, das catástrofes.
Sem dúvida a história deve abraçar também a origem e o desenvolvimento
das ciências, os progressos das artes, as instituições e as leis, os costumes
e os usos das nações: é mesmo verdade que esses objetos, muitas vezes
considerados acessórios, são os mais importantes de todos; mas eles es­
tão ligados também mais ou menos imediatamente às ideias políticas; de
modo que, à exceção de alguns detalhes biográficos, de ações puramente
privadas, é o quadro dos impérios e dos governos que estará sem cessar sob
nossos olhos. A matéria de nossos estudos nos está dada, não está em nosso
poder desnaturá-la ou modificá-la; e se chegarmos, com efeito, a reduzi-
la ao que não interessa de modo algum ao sistema social, conseguiremos
apenas tomá-la estéril, e substituir por pesquisas ociosas os conhecimentos
essencialmente proveitosos.
Assim, não tememos observar estudiosamente o jogo dos interesses e
das paixões políticas; desembaraçar, se nos for possível, as causas secretas dos
mais vastos movimentos; recolher, enfim, através dos séculos passados, todas
as lições da experiência, a fim de que, em nosso próprio tempo, nossa expe­
riência imediata tome-se mais real e mais instrutiva. Cabe à história começar
o que acaba o hábito dos negócios, lançar nos espíritos atentos os primeiros
elementos do conhecimento dos homens e os germes dessa verdadeira sabe­
doria que se compõe de prudência e de probidade, muito experiente para se
deixar enganar, muito esclarecida para enganar ela mesma. Os senhores hão
de reconhecer que as mais leais máximas são precisamente aquelas que a
história ensina; as melhores leis, aquelas que ela recomenda; as práticas mais
imparciais, aquelas que ela indica como mais hábeis e menos perigosas. Não
duvidemos que a arte social lhe deva uma grande parte de seus progressos:
ela revelou ao monarca esclarecido que nos governa29 os princípios dessa lei
fundamental, em que são aproveitados todos os conselhos da experiência,

29 Em plena Restauração, Daunou não deixa de se valer de ironia nesse comentário sobre Luís
XVIII (1755-1824), irmão de Luís XVI e então governante da França, ao chamá-lo de “monarca
esclarecido”. Daunou, republicano, que na Convenção de 1795 qualificara a monarquia de
“governo tão vil quanto absurdo”, fora bastante prejudicado durante o notoriamente reacioná­
rio governo de Luís XVIII, ao ser destituído, em 1816, da função de garde général des archives
du royaume. Até mesmo a sua indicação como professor do Collège de France demorou a ser
autorizada pelo rei.
PlERRE DaUNOU
81

em que a justiça e a Uberdade são apenas a dupla expressão de uma mesma


ideia, de uma única e mesma condição de associação política. Quero obser­
var aqui apenas uma das benesses dessa lei suprema: ela toma possível o en­
sino da história; ela permite relacionar e confundir o quadro dos destinos de
todos os impérios com a moral dos governos. Não haveria nem imprudência
nem coragem em censurar o que reprova a lei constitutiva do Estado em que
vivemos, a lei que, entre nós, deve reger todas as outras: cada reflexão sobre
ações desarrazoadas e tirânicas seria uma homenagem à sabedoria e à impar­
cialidade de suas máximas. Confessarei, então, que minha intenção não é de
modo algum excluir do curso que empreendo as observações políticas; mas
posso anunciar em uma única palavra quais serão constantemente suas ca-
racterísticas, espírito, sistema: porque elas terão por princípio e por limites as
disposições da carta constitucional, à qual se ligam de mais a mais as afeições,
os interesses e as esperanças de todos os franceses. De resto, não procurarei
de modo algum multiplicar essas considerações, e irei me abster sobretudo
de lhes dar extensão maior do que a que lhes é devida, após a exposição e a
discussão dos fatos; mas seria imperdoável se as evitasse, uma vez que elas
são muito frequentemente a parte mais clara e mais constante dos estudos
históricos. Sim, senhores, tal é a natureza desses estudos, nos quais em geral
os resultados úteis são ainda os menos difíceis de descobrir e de verificar: o
que não importa é precisamente o que há de mais incerto e de mais obscuro
nos anais dos povos. Quando Montesquieu recolheu os grandes traços dos
anais dos romanos, para neles tomar os textos de mais instrutivas lições, pre­
cisou bem menos de pesquisas minuciosas do que de tantas dissertações para
explicar, bem mais longamente, detalhes fúteis sobre os quais não lançaram
mais luz do que interesse.
A escolha dos fatos pressupõe então o exame não somente de sua cer­
teza ou probabilidade, mas também de sua importância; e para estabelecer
regras constantes sobre esses dois pontos, temos necessidade de reconhe­
cer quais são as fontes e quais são os usos da história. Distinguindo essas
diferentes fontes, estabeleceremos as bases da crítica histórica; e observan­
do em que consiste a utilidade do conhecimento dos fatos, determinaremos
as características filosóficas que a história deve conservar para se manter
entre as ciências morais.
Após havermos reconhecido os métodos a seguir na escolha dos fa­
tos, teremos de estudar aqueles que dizem respeito a sua classificação. Os
82 Lições de história

fatos históricos são percebidos distintamente apenas quando se fixam nos


lugares e nos tempos que lhes são próprios: se eles tomam e conservam a
dupla marca dos tempos e dos lugares, toma-se impossível coordená-los e,
consequentemente, retê-los ou mesmo bem conservá-los. Aquele que disse
pela primeira vez que a geografia e a cronologia são os dois olhos da história
encontrou a expressão mais viva de uma máxima incontestável: é verdade,
no entanto, que, tomada a rigor, essa expressão poderia parecer demasiado
exclusiva; porque são olhos também essa crítica e essa filosofia que devem
presidir, como acabamos de reconhecer, o exame e a escolha dos fatos; mas
falamos agora de sua distribuição, que, com efeito, apenas a geografia e a
cronologia podem tomar metódica.
A primeira dessas ciências associa-se à astronomia, à física e à história,
e toma mesmo qualificações diversas, conforme se apresente mais particu­
larmente sob um desses três aspectos. Vista sob o terceiro, ela se subdivide
em antiga e moderna, e compreende, de uma parte, pesquisas muitas vezes
espinhosas; de outra, um número infinito de nomenclaturas e de detalhes.
Não me engajarei, senhores, em nenhuma das diferentes partes de um tão
vasto ensinamento, porque um simples resumo seria fastidioso e supérfluo,
e um verdadeiro curso de geografia, em que todas as noções fossem estrei­
tamente encadeadas, todos os fatos esclarecidos, todas as questões discu­
tidas, assumiria uma extensão quase ilimitada e postergaria, pelo menos
em muitos anos, o estudo da história propriamente dita. Para não sair da
esfera dos conhecimentos puramente históricos, irei me limitar a retraçar a
própria história da geografia; e espero que o quadro de sua origem, de suas
tentativas, de seus fracassos, de seus progressos nos indique ao menos as
melhores direções a seguir para bem estudá-la; que ele nos trace as rotas a
percorrer nesse imenso caminho. Ao ver se formar e se desenvolver suces­
sivamente o sistema dos conhecimentos geográficos nós poderíamos não
somente dele conceber a ideia geral, representar seus principais elementos,
mas também distinguir, medir aquela entre essas noções que esclarece os
historiadores de cada século, obtendo assim dados necessários para ler com
proveito suas obras.
Irei me deter mais longamente na cronologia, muito mais negligen­
ciada talvez no ensino elementar, ainda que ela nos seja mais indispensá­
vel que a geografia, se não quisermos nos contentar com noções esparsas
e confusas, com lembranças fugidias, incompletas, incoerentes, das quais
PlERRE DAUNOU
83

não deve resultar nenhuma ciência útil, nem mesmo usual. A cronologia
pode ser dividida em três partes: uma técnica, outra sistemática, e a ter­
ceira, positiva. A primeira se liga, de uma parte, à astronomia, de outra,
às instituições que diversamente concorreram para a divisão do tempo
em diferentes séries, pequenas ou grandes, definidas e se renovando pe­
riodicamente depois de haverem atingido seu termo, ou ainda ilimitadas
e destinadas a se prolongarem no curso inteiro dos séculos. Todos esses
ciclos e todas essas eras, depois de haverem formado quadros distintos,
reuniram-se em um único quadro comparativo e geral em que deverão se
distribuir os fatos históricos; e, conforme essa distribuição seja mais ou
menos determinada por monumentos, por relações originais e precisas, a
cronologia se tornará ou constante ou problemática. Depois de havermos
exposto algumas das questões que permanecem, com efeito, difíceis de
resolver, nós nos aplicaremos a recolher indicações positivas; e se não pu­
dermos levar suficiente luz sobre as idades mais recuadas, tentaremos ao
menos vincular a cada um dos 28 séculos que transcorreram de Homero a
nossos dias o que existe de lembranças preciosas, ao mesmo tempo por sua
própria consistência e pela brilhante celebridade dos acontecimentos e das
personagens que evocam. Assim serão preenchidos não todos os pontos do
quadro de que acabo de falar, mas aqueles que podem iluminar os outros
e em tomo dos quais deverão se acumular detalhes inumeráveis de todos
os anais gerais e particulares. Virá o tempo em que verificaremos com rigor
cada um dos artigos reunidos nesse manual de história universal: enquanto
isso, ele nos servirá de guia; e se puder nos deixar entrever os traços distin­
tivos de cada época, se puder nos indicar a origem das instituições funestas
ou benemerentes, o curso dos erros ou das luzes, o progresso da desordem
ou da civilização; esboçar, enfim, a imagem dos destinos do gênero huma­
no, ele nos fará pressentir a alta importância dos estudos dos quais nos terá
traçado o plano.
Quando os fatos tiverem sido verificados com exatidão, escolhidos
com discernimento, dispostos com método; quando o historiador tiver as­
sim se tornado mestre de uma matéria sã, rica e fecunda, teremos o direito
de esperar que, por meio de um outro trabalho, ainda difícil, mas prepara­
do de modo tão feliz, ele saberá revesti-la com as formas mais convenientes
e por vezes mais brilhantes. É raro que a força do talento abandone a razão
e o verdadeiro saber. Um estilo obscuro, incorreto, sem movimento e sem
84 Lições de história

cor é, nos livros de história, o sintoma comum da confusão das ideias e


mesmo da inexatidão das pesquisas. O historiador capaz de nos instruir é
aquele que possui a arte de conservar dos fatos que expõe o interesse que
possuíam quando eram espetáculos, e que lhes devolve mesmo de modo
tão pleno essa característica que assistimos, com efeito, a todas as cenas que
nos retraça. Mas, para estudar a teoria dessa arte, teremos a princípio ne­
cessidade de uma enumeração completa de todas as diferentes formas que
foram dadas às narrativas, desde a mais árida crónica até essas produções
semirromanescas em que o escritor mescla à história suas próprias ficções,
como se ele já não encontrasse bastante delas nas várias tradições que reco­
lhe! Entre esses dois extremos se situam as narrativas que mais ou menos
admitem certos gêneros de desenvolvimentos ou ornamentos, tais como as
descrições, os retratos, os paralelos, os discursos, as observações críticas,
as considerações políticas ou morais. Distinguiremos das histórias propria­
mente ditas os resumos, os quadros ou apanhados gerais, os extratos, as
miscelâneas e as dissertações ou discussões críticas. Uma distinção ainda
mais importante é aquela que, ao tratar das fontes da história, já havíamos
estabelecido entre as relações originais ou contemporâneas e aquelas que,
compostas muito tempo depois das épocas que evocam, são com efeito
apenas coletâneas cujos materiais foram fornecidos pelas primeiras, ou por
monumentos e tradições.
Entre as relações originais, há aquelas cujo caráter e beleza de suas
formas as coloca no grupo das grandes produções da arte de escrever; tais
são as obras de Tucídides sobre a guerra do Peloponeso, de Xenofonte so­
bre a expedição de Ciro, o jovem, os comentários de César, o relato da con­
juração de Catilina por Salústio, e aqueles dos livros de Tácito que dizem
respeito a eventos ocorridos enquanto ele vivia.30 Sem dúvida, não é preciso
esperar reencontrar semelhantes relações paralelas no curso da Idade Mé­
dia; do mesmo modo, elas não são muito comuns nos séculos modernos. A
maior parte tem valor apenas em sua qualidade de fontes ou de materiais.
Mas, por mais defeituosas que sejam suas formas, é preciso recorrer a esses
textos primitivos todas as vezes que neles reste a usufruir uma verdadeira

30 Daunou se refere às seguintes obras: de Tucídides (c. 460-c. 395 a.C.), História da gieira do
Peloponeso; de Xenofonte (c. 431-355 a.C.), Ciropèdia\ de Júlio César (100-44 a.C.), Comentários
sobre a guerra gálica e Comentários sobre a guerra civil; de Salústio (86-35 a.C.), Conspiração de
Catilina: e de Tácito (c. 55-c. 120), Histórias.
PlERRE DAUNOU 85

instrução; e seremos dispensados dessas pesquisas laboriosas apenas quan­


do tiverem sido bem feitas, o que é ainda bastante raro, pelos escritores
que compuseram, nos séculos posteriores, coletâneas gerais ou particulares
de anais antigos ou modernos. Tais são, senhores, os diferentes gêneros de
produções que teremos de observar para formar alguma ideia da arte de
expor os fatos e para estabelecer, no entanto, um bem pequeno número de
regras; porque aqui as matérias são tão diversas e tão móveis que convém
deixar aos talentos e ao gênio uma grande liberdade na escolha das formas.
Tentaremos, contudo, estabelecer as mais felizes, as mais dignas de um gê­
nero de literatura de tal modo engrandecido pelos antigos que entre nós ao
menos tenha na prosa o mesmo lugar ocupado pela epopeia na poesia.
A simplicidade do estilo é a garantia da fidelidade das narrativas; é, de
todo modo, o tom necessário a um testemunho que quer se fazer acreditar;
ele desacreditaria sua posição se deixasse ver que trabalha para embelezá-
lo. A arte dos antigos é conciliar com essa característica essencial do estilo
histórico a energia das expressões, o brilho das imagens, a vivacidade dos
sentimentos. Suas narrações tão simples, tão ingénuas, produzem, no en­
tanto, os três grandes efeitos da arte de escrever: esclarecer, retratar, como­
ver. Se as observações morais ali se reduzem a sua expressão mais concisa,
é para se tornarem traços de luz tão penetrantes quanto rápidos, que per­
manecerão para sempre impressos em nossos espíritos. Se, ao contrário, os
detalhes abundam, é para que os acontecimentos reassumam suas cores na­
turais, revivam inteiros e firam nossa imaginação como no passado feriram
o olhar dos espectadores. Ali, nada de esforços, nada de artifícios para lhes
emprestar um interesse dramático que eles mesmos não teriam; mas tam­
bém não temamos que percam algo daquilo que, com efeito, têm: enquanto
for necessário que nos surpreendam por sua grandeza, nos assustem ou en­
terneçam, o historiador não amortecerá nenhum dos movimentos que lhes
pertencem, capazes de tocar nossas almas; ele não nos poupará nenhuma
das emoções que ele mesmo experimentou. Aqui, então, senhores, as re­
gras mais seguras deverão ser aprendidas nos modelos antigos; e se nos for,
contudo, permitido estender essa teoria um pouco além dos resultados que
essas obras-primas garantem, usaremos de tal direito apenas com muita
desconfiança e reserva.
Parece-me, senhores, que se chego a preencher todas as partes do
plano que acabo de colocar-lhes sob os olhos, não terei negligenciado ne-
86 Lições de história

nhuma das noções preliminares que devem servir de introdução à história,


uma vez que sucessivamente dei a conhecer as fontes, os usos, o sistema
geográfico e cronológico, as formas, enfim, e os modelos. Mas, após haver
indicado assim os métodos a seguir para bem estudá-la, restar-me-ia reco­
nhecer aquele que deverá dirigir a mim mesmo, logo que, após essas pre­
liminares, me for necessário tomar os anais de um povo antigo e moderno
como objeto particular de minhas lições. A questão é saber se o ensino da
história difere da própria história, se há algo diferente a fazer para ensinar
do que o que se faz para escrever. Sou fortemente levado a crer que, nesse
gênero, as melhores obras seriam também os melhores cursos; e se nâo
adoto esse método não é de modo algum porque não veja nele utilidade,
mas me é perfeitamente permitido ter medo do trabalho que ele me impo­
ria e que, pelo fato mesmo de que seria superior às minhas forças, iria se
tomar pouco proveitoso àqueles a quem deveria oferecê-lo.
Sim, sem dúvida o melhor curso de história que jamais se ouviu foi
aquele que Heródoto deu quando lia sua imortal obra à Grécia reunida,
mesclando, isso é verdade, a narrativas instrutivas as tradições fabulosas,
mas fixando todos os gêneros de recordações; recolhendo, por assim dizer,
todos os restos dos povos e dos séculos; contando como Homero inventa,
sempre simples e rico como ele; animando seus quadros, esclarecendo suas
narrações uma pela outra, apto a persegui-las, a interrompê-las, a retomá-
las; criando, por meio de uma obra-prima da arte de escrever, a ciência dos
lugares, dos tempos e dos fatos; e digno, por tantos títulos, de receber nos­
sas primeiras homenagens, quando entramos no caminho que seu gênio
tornou tão vasto no próprio instante em que o abriu. Mas pertence apenas
a Tucídides o destino de seguir os traços de Heródoto; e se há um gênero de
ensino ao qual possa me dedicar sem temeridade é aquele que recolhe com
zelo a instrução que os talentos distribuem, que reflete sua luz sem aspirar
a seu brilho; aquele que consiste de algum modo em estudar publicamen-
te, em prestar contas do que se fez para tentar saber; aquele, enfim, pelo
qual associamos seus auditores a suas próprias pesquisas, a suas dúvidas, a
suas tentativas e, se for cabível, aos conhecimentos que acreditamos haver
adquirido.
Aplicado à história, esse ensino me parece ter três objetos principais.
A princípio, há fatos tão bem estabelecidos e tão geralmente conhecidos
que deve bastar, me parece, evocá-los sumariamente e indicar as narrações
PlERRE DAUNOU
87

que melhor desenvolvem seus detalhes. Se não reduzirmos a um simples


manual essa parte elementar ou familiar, será necessário ou tomá-la pron­
ta, tal como existe nos livros, o que seria sempre supérfluo; ou se esforçar
para revesti-la de formas novas, o que seria sempre temerário. Mas há,
em segundo lugar, um grande número de artigos obscuros ou litigiosos
em cujo esclarecimento somos obrigados a nos deter, se quisermos real­
mente instruir. Não falo das ficções ou imposturas grosseiras depois de
muito tempo desvendadas, e com relação às quais não podemos mais ser
tentados a empreender nenhuma refutação séria: trata-se de vários pontos
ainda controvertidos, ou que teriam necessidade de sê-lo; fatos apresenta­
dos como verossímeis, ainda que indignos de qualquer crença, ou dados
como certos, ainda que dificilmente prováveis. A fim de apreciar, ao menos
dentro do possível, sua verdade ou falsidade; a fim de determinar o que
semelhantes narrativas podem merecer de confiança ou de desconfiança, é
preciso remontar às fontes, discutir os testemunhos, comparar as circuns­
tâncias, aplicar todas as regras da crítica, dando porém a essas pesquisas
apenas uma extensão proporcional à importância dos artigos que as exi­
gem. Enfim, o exame das causas e dos efeitos de todos os grandes aconteci­
mentos deve, em terceiro lugar, conduzir a observações morais e políticas,
converter os fatos em experiências, estender ou confirmar os resultados, os
conselhos, os preceitos que compõem a teoria dos costumes privados e a
das instituições públicas. Ainda uma vez, sem tais aplicações, não sei o que
restaria de útil ou mesmo de curioso na história, e eu não teria nenhuma
ideia da finalidade à qual deveria visar o ensino dessa ciência.
A mais santa das obrigações que essa nova função me impõe, e a que
me será mais cara, é pesquisar escrupulosamente a verdade e expô-la com
franqueza. Segundo Cícero, a lei suprema da história é nada dizer de falso,
e nada calar do que é verdadeiro. Voltaire julgava exagerada a segunda
parte desse preceito,31 e somos forçados a convir que sua realização pode
muitas vezes ser perigosa: mas há também outros deveres dos quais, no
entanto, não somos dispensados pelos perigos que acarretam. Ninguém
é verídico, nem razoável, nem imparcial impunemente; e quando se tem
medo de ser sincero, é preciso não se envolver na escrita da história, nem

31 Daunou refere-se ao artigo “Histoire”, de Voltaire, publicado no oitavo volume da Encyclopédie


(1765).
88 Lições de história

em seu ensino. Ao professarmos uma ciência, assumimos com essa mesma


ciência compromissos anteriores e superiores a todos os outros: devemos
apresentá-la tal como ela é, sem a alterar, sem a mutilar, sem nada omitir
do que tem de positivo, de instrutivo e de severo. Perguntamos por que os
conhecimentos morais e políticos não são exatos, e nos deixamos persuadir
de que, por sua própria natureza, carecem dos meios de se tornar assim: é
bem mais certo que raramente houve a vontade de torná-los exatos; e entre
os entraves que, de todas as partes, retardaram seu progresso convém sa­
lientar aqueles que particularmente comprimiram e deformaram a história.
Foi preciso que ela fosse circunspecta, tímida, complacente, atenta a nada
encontrar, nas coisas passadas, que ameaçassem ou comprometessem os
interesses presentes; apta, enfim, a nuançar seus relatos ao gosto dos po­
deres mais obscuros. Confesso que, entre as partes que ela abarca em sua
imensa extensão, não escolheria de preferência, como objeto de minhas
lições, aquelas cujo exame pudesse parecer mais aleatório: mas, tratando
aqueles que são ou podem ser abandonados à crítica, não me bastaria de
modo algum permitir-me qualquer disfarce, não me prescreveria nenhuma
reticência. Reclamo, em nome dos alunos que devem me escutar, a liberda­
de de jamais os enganar: dizer-lhes a verdade pura e inteira é um respeito
devido a sua idade, um dever e um direito da minha. Sei, além do mais, que
eles certamente teriam desertado de uma escola de servidão ou de mentira;
eles exigem que os esclareçamos: dignos dos destinos para os quais as leis
de sua pátria os chamam, eles vêm procurar aqui uma instrução sã que
acelere seu progresso, fecunde seus talentos e desenvolva em suas almas
sentimentos generosos.
Se pudesse, senhores, esquivar-me desses deveres, deles seria sufi­
cientemente relembrado pela memória do professor ao qual sucedo, que
todos eles tão dignamente cumpriu; que, tanto nesta cadeira quanto no tri­
bunal em que tinha um posto, não conheceu outra ciência, outra lei, outro
mestre que não fosse a verdade; que viveu apenas para lhe render homena­
gem por meio de suas ações, assim como em suas lições e em seus livros;
que jamais quis prever se ela seria para ele perigosa, que a estimava ainda
mais depois que ela lhe valeu uma honorável desgraça, e ainda combatia
por ela quando, no próprio dia de sua morte, publicava, pela primeira vez
na França, uma reclamação enérgica contra o projeto de um novo atentado
às liberdades nacionais. Não tenho necessidade de ocupar aqui seu lugar
PlERRE DAUNOU
89

para que sua memória permaneça para sempre presente: o sr. Clavier32 faz
falta todos os dias àqueles que o frequentaram, como eu, a cada dia, duran­
te vários anos. Ele muitas vezes me entreteve com essa mesma função que
acabo de assumir depois dele, e nunca previ que suas reflexões sobre seus
próprios trabalhos viessem a me servir para dirigir, um dia, os meus. Ele
de modo algum me legou sua ciência vasta e profunda, mas me deixou ver
por quais cuidados assíduos, por quais estudos ele a adquirira e continuava
a enriquecê-la. Vi, sobretudo, como ela nele se aliava a uma razão forte, a
hábitos doces, às mais honrosas afeições. Suas virtudes privadas e públicas
se confundiam a tal ponto com suas luzes, que se podia colocar em dúvida
se ele devia à natureza ou ao estudo um caráter moral ao mesmo tempo tão
simples e tão nobre. Jamais os conhecimentos históricos foram mais bem
recomendados pelas ações e hábitos de uma vida consagrada a cultivá-los;
e se é verdade, senhores, que eles tiveram tal influência sobre o espirito e o
coração daqueles que melhor sabem adquiri-los, não devemos ter medo de
fazer a mais alta ideia de sua utilidade. Não, não haverá mais exagero nos
magníficos elogios que demos à história: é verdadeiro dizer que, ao formar
homens tão virtuosos e tão benemerentes, ela é, como o afirmaram os anti­
gos, a benfeitora universal do gênero humano.

Étienne Clavier (1762-1817): magistrado e historiador, tradutor de Plutarco, Pausânias e


Pseudo-Apolodoro, autor de Histoire des premiers temps de la Grèce, depuis Inachus jusquà la chute
des Pisistratides (1809), foi titular da cátedra de história e moral do Collège de France de 1812
até sua morte, em 1817.
Br.
I
Jules Michelet
Lilia Moritz Schwarcz

“A primeira obrigação de qualquer historiador é recusar seus falsos deuses.”


J. Michelet

Jules Michelet nasceu na cidade de Paris, em agosto de 1798, no seio de


uma família de huguenotes. Seu pai, um impressor e republicano convicto,
segundo reza a bibliografia, reconhecendo o talento de Jules, e a despeito das
dificuldades financeiras do momento, o inscreveu numa escola da região, in­
vestindo na sua formação. Já em 1821 o filho era contratado como professor
de história, seguindo, de alguma maneira, as premonições do pai.
Durante os anos de 1825 e 1827 Michelet produziu um bom número
de ensaios sobre história moderna, nomeadamente a francesa. Em 1831
publicaria Introdução ã história universal, obra que anunciava seu perfil de
alguma maneira visionário. O livro indicava, de maneira precoce, uma ca-
racterística particular da historiografia que marcaria toda a obra de Miche­
let, que, muito avant la lettre, nunca se deixou levar pelo “imperialismo
dos fatos” e, ao contrário, sempre deu vazão à análise das crenças e rituais
populares. Já neste contexto o historiador sinalizava, pois, para seu viés
antirracionalista, próximo do modelo de Vico, que já havia defendido a
relevância do uso da imaginação diante da análise fria e distante.
Após os eventos de 1930, que deram início à monarquia de Luís Filipe
de Orleáns, Michelet — então reconhecido como anticlerical mas também
como um historiador patriota e liberal, identificado com a República fran­
cesa — foi alçado a uma posição mais elevada: obteve um posto na seção
92 Lições de história

de História do Arquivo Nacional, e uma nova ocupação como professor


na Sorbonne. A experiência direta com arquivos e documentos lhe seria
fundamental. Michelet, sem ser um historiador do tipo que no século XIX
seria conhecido como evenementiel, foi sempre um aficionado pelos docu­
mentos básicos e primários, e os introduziu fartamente em suas obras.
Assim, com a estabilidade que a nova situação profissional lhe propi­
ciava, Michelet começaria a trabalhar em sua obra mais importante, His-
toire de France; projeto grandioso em que o pesquisador se propunha a
recuperar o destino e o desenvolvimento da França como nação autónoma.
Michelet era, então, um jovem de 30 anos e precisaria de mais 30 para
completar a imensa tarefa.
No entanto, nesse meio-tempo, e como a empreitada era de fato longa,
o historiador não deixaria de produzir outras obras como: Oeuvres choisies
de Vico, Mémoires de Luther écrits par íui-même, e Origines du droit française.
Ainda no ano de 1838 ele foi nomeado como professor no Collège de Fran­
ce; lugar em que ocupou a cadeira de história e ética. O ano de 1839 ficaria
conhecido como o da publicação de Histoire romaine; obra que já traria cer­
to renome a nosso autor. Por sua vez, reunindo uma série de conferências,
Michelet publicaria outros dois volumes: Le prêtre, lafemme, et la famille
(1843), e Le peuple (1846). Em Le peuple, Michelet analisa as qualidades
e o que chama de “espírito da classe trabalhadora francesa”, evidenciando
perspectivas que singularizariam sua própria historiografia: a atenção às
contribuições culturais das classes populares. Nesse livro ainda, investia na
discussão acerca dos problemas que adviriam das transformações ocasio­
nadas pela industrialização e pela modernização. O historiador abordava,
dessa maneira, problemas políticos, económicos e sociais espinhosos para
a época, tendo por base as transformações motivadas pela passagem da
agricultura para a industrialização, não só na França, como na Europa. O
volume — que vendeu uma edição inteira no mesmo ano de sua publica­
ção, e foi logo vertido para o inglês — apresentava o povo como fonte de
progresso e entendia estar concentrado nele o espírito perdido de Joana
D’arc: “a nobreza da própria humanidade”.
Por outro lado, é preciso dizer que Michelet entendia a si próprio
como um defensor dileto do povo, e por isso viu e interpretou com apre­
ensão os acontecimentos de 1848. O historiador, que se recusou a aliar-se
à Segunda República de Luís Napoleão, teve suas conferências no Collège
JULES MlCHELET
93

de France suspensas, em 1851, assim como perdeu a posição que detinha


junto ao Arquivo Nacional.
Não obstante, longe dos seus afazeres diários e profissionais, Mi-
chelet parece ter aproveitado o período para concentrar-se em completar
seu projeto mais grandioso.1 Tanto que, em 1867, seus 19 volumes de
Histoire de France estavam terminados, e o resultado seria, de fato, devas­
tador. Michelet foi talvez o primeiro historiador a fazer um relato forte
e emocional sobre uma nação. Seu objetivo era concluir uma espécie de
biografia da França, mais do que a história de um personagem ou outro.
Se hoje em dia muitos críticos encontram erros e enganos nos fatos cole­
tados, e principalmente nos juízos do historiador, não há quem deixe de
mencionar a obra; tanto quando se reflete acerca da França, como quan­
do o tema concentra-se em método e metodologia da história. Além do
mais, se aos olhos de hoje os livros consagrados à Idade Média são con­
siderados os mais acabados e aqueles que apresentam maior domínio da
documentação; o relato candente sobre a França da Revolução representa
um testemunho pujante de um contexto em que todos entendiam estar
“fazendo e vivendo história”. Por isso mesmo, o resultado não poderia ser
diferente ou mostrar-se menos passional.
O texto de Michelet é marcado por um forte anticlericalismo, pela
crítica feroz à nobreza assim como às instituições monárquicas. Por outro
lado, o grande personagem que emerge de suas páginas é o povo francês,
entendido como sábio, fiel e generoso, nas mais diferentes situações em
que se viu envolvido.
Também é bastante fácil perceber como a nova República, que se se­
guiu à queda de Napoleão III, não seria bem-vista, mais uma vez, por
Michelet. Afinal, ele não receberia, novamente, seu cargo de professor no
Collège de France, assim como seria obrigado a se manter afastado de seus
demais afazeres. O historiador morreria em Hyères, em fevereiro de 1874,
ressentido com os rumos da Revolução que acreditava ter sido, de algum
modo, traída pelos eventos que a sucederam.

1 Michelet, que viveria, então, entre a França e a Itália, é também considerado o inventor do
termo Renaissance, o qual foi empregado nas obras de 1855-1858, significando a descoberta
do mundo pelo homem, no século XVI. O historiador Jakob Burckhardt, no seu The civilization
of the Renaissance in Italy (1860), ampliou a concepção de Michelet. Para ele o Renascimento
estaria localizado na Itália de Giotto e Michelangelo, e representava a época de nascimento da
modernidade.
94 Lições de história

Até o final da vida Michelet entendeu-se como um liberal que de­


fendia o convívio entre as classes sociais (e não o seu desaparecimento) e
acreditava no caráter infalível do povo, bem como de sua sabedoria. Ata­
cado por historiadores marxistas, por causa de sua fé na reconciliação das
classes, o historiador seria relido pelos fundadores dos Annales, e em espe­
cial por Lucien Febvre, que o considerou uma grande inspiração para uma
“história total”, para uma “história das mentalidades”, em tudo oposta a
um modelo fatual. Há também, na obra de Michelet, uma aposta na longue
durée. Do seu relato fazem parte eventos políticos, acontecimentos econó­
micos e sociais, mas também a cultura de uma época, com suas lendas, ri­
tuais e tradições. Aí estaria, portanto, mais do que uma narrativa previsível;
uma história feita de rupturas, sim, mas também de continuidades, dadas
pelo idioma que marca cada nação, e cujo grande intérprete, na visão de
Michelet, seria o próprio povo com suas crenças e costumes.

Do método e do espírito: "Liberdade é liberdade"

A feitura dessa obra — como certa feita disse Roland Barthes — coin­
cide com a própria vida de Michelet. A tarefa que fora iniciada em 1833
só é terminada em 1867, e o historiador morre em 1874. Dessa maneira,
pode-se dizer, sem medo de errar, que a “história” de Michelet coincide

I com a História da França que o historiador empenhara-se tanto em reali­


zar. Mas nessa grande saga, longe dos heróis ou dos bandidos, dos reis ou
dos nobres, o grande figurante é a nação francesa e seu povo. O povo e o
camponês franceses surgem na cena política e cultural nacional, para não
perderem mais seus lugares, e a Revolução é ela própria vivida como um
caso de amor. Não a revolução do terror, ou das ditaduras, consideradas
desvios enganosos. Mas a Revolução que anunciava a igualdade e a fra-
ternidade, e que efetivamente convulsionou o mundo ocidental. Aí está a
interpretação romântica desse autor que definitivamente conferiu ao povo
não só a sensibilidade, mas a generosidade e a sagacidade dos grandes
agentes históricos.
A História da Revolução Francesa foi escrita em volumes separados,
que ganharam um tom mais elevado, próprio daquele que testemunha e
procura pouco arbitrar; a despeito de não conseguir se afastar, totalmente,
da tentação. Michelet era um escritor ligeiro e se começou a tarefa em 26
JULES MlCHELET 95

de setembro de 1846, considerou-a encerrada já a 10 de fevereiro de 1847.


Foram quatro tomos, logo colocados à venda e com grande sucesso do
público leitor. Republicano por definição e coração, o historiador logo se
tornou uma espécie de escriba do evento; uma testemunha que observa­
va de lugar especial e com a ajuda dos documentos dos arquivos em que
trabalhara.
O texto que se segue apareceria originalmente, e na versão corrigida
de 1869, no começo do livro III e constitui uma importante profissão de
fé no ofício do historiador e em seus métodos. É sobre ela que passamos
a nos debruçar, sem esquecer, porém, das anotações presentes em alguns
prefácios da obra, que ajudam a entender melhor a perspectiva de Miche-
let, e suas lições como intérprete e memorialista de seu tempo, mas para
além dele. Neles o historiador recupera o que diz ser o “espírito da Revo­
lução”, quando a França teria ganhado “consciência de si mesma”, tal qual
um “clarão”. É com tal espírito, inundado pelo romantismo de época, que
Michelet menciona a noção de “alma” e saúda a chegada de “uma época de
liberdade”. É também com esse mesmo espírito que lamenta os descami­
nhos da Revolução, que seriam “a adoração da força”, e a perda da tradição;
que “escapou-lhe e esqueceu-se de si mesma”. Para se opor ao Terror o
historiador, já no prefácio de 1847, investe contra o mote da “fraternidade
ou morte”, mostrando que a verdadeira Revolução fora aquela em que a
multidão lutou pela liberdade, pela “constante troca de luzes”.
Mesmo no prefácio de 1868 o tema volta, já tendo o fantasma dos
críticos a censurá-lo. Mais uma vez, Michelet defende seu trabalho nos
arquivos, primeiro em Paris e depois em Nantes, e procura se escudar das
críticas, destacando seu perfil como pesquisador; era nos documentos que
buscava certezas da história, e não nas veleidades dos homens.
Mas o tempo é mesmo um bardo dos mais habilidosos, e o historia­
dor, por mais que quisesse, não deixava escapar as suas simpatias. Seria o
início da Revolução — essa “época santa”, sem distinção de partidos ou
classes, marcada pela “bandeira fraterna” e cujo ator era o povo — o mo­
mento selecionado por Michelet, talvez o maior admirador e propagandista
dos momentos iniciais da Revolução popular, cidadã e das ruas, que ele
próprio teve ocasião de presenciar e celebrar.
Fica quase evidente, assim, afirmar que as preciosas páginas chama­
das “Do método e do espírito deste livro” por certo se destinam a tratar
96 Lições de história

das questões metodológicas que presidiram a feitura da obra, mas também


esmiuçam o argumento que a orquestrou. É a partir do povo, da “crença
popular” e da “tradição oral” que Michelet afina seu método, clamando
para que se “ampliem as investigações”. Seria preciso ouvir, segundo o
historiador, não só “operários, mas mulheres, pessoas em idade, em sexo
e condições diversas”. Ao invés do rei e da rainha, de Voltaire e Rousseau,
agora seria a vez de dar voz a “todos os habitantes dos campos, e à maioria
das cidades”.
Michelet se opõe, dessa forma, à recusa sistemática a introduzir a
crença do povo nas interpretações históricas. De maneira veemente, afir­
ma, mais de uma vez, que é nos axiomas e provérbios do povo que estaria
concentrada a sua experiência e “verdade”. Não estaria presente nos “sá­
bios” a vivência de Dante, de Shakespeare ou mesmo de Lutero, mas no
povo que habitava as ruas das cidades e as plantações do campo. Em suas
palavras: “essa é a primeira missão da história: redescobrir por meio das
pessoas conscienciosas os grandes fatos da tradição nacional”.
Transcrever “as lições do povo”, no tempo e no país, esse, sim, seria
um olhar “da França sobre a França”: “eis o que nos pede a França, a nós,
historiadores: não que façamos a história — ela está feita nos seus pontos
essenciais, moralmente, os grandes resultados estão inscritos na consciên­
cia do povo —, mas que restabeleçamos a cadeia de fatos, das ideias de
onde saíram esses resultados”. A missão a que se destinava o historiador
não seria, pois, adivinhar, julgar ou formar crenças. “O historiador não é
Deus”, afirma Michelet, não tem poderes ilimitados. Ele é antes um “copia­
dor” privilegiado, e o “futuro dele copiará exemplos”.
E Michelet fez mais: denunciou o anacronismo presente na prática
de todo historiador — “que julga seu tempo e depois será julgado” — e
mostrou como “a história é o tempo” e como não há maneira de “ler todos
os pensamentos de hoje no passado”. Segundo ele, se a história trata pri-
vilegiadamente do “específico” e do que caracteriza cada época, deve ficar
atenta “às grandes questões que são sempre eternas” e repousam além das
conjunturas do momento. História não é tarefa que se “adivinha”, ou que é
feita “às pressas”, com teorias prévias. O trabalho do historiador é realiza­
do a partir do cotejo de documentos, e de nada adianta, ironiza Michelet,
colar “na frente, atrás, prefácios ou posfácios que com eles não mantêm
nenhuma relação”. Muito antes da era e das facilidades do computador,
JULES MlCHELET
97

Michelet faz de sua profissão de fé um clamor pela seriedade da labuta do


historiador, que seria feita de “forma paciente” e atenta aos documentos e
impasses de época.
E sua grande novidade estava justamente em não dividir, mas conci­
liar: aliar os novos dados da Revolução com os da tradição; a ciência po­
pular à ciência que entrava nos laboratórios. Metódico, Michelet enumera
nessas páginas seus grandes trunfos: o verdadeiro e forte espírito francês
que estaria no povo — nas fábulas, lendas, contos e na “poesia popular de
todas as eras, formas e espécies”. Por fim, como se estivesse redigindo um
libelo romântico, o historiador defende a ideia positiva de justiça, por con­
traposição à noção negativa de salvação, a qual, segundo ele, sempre levou
à ruína e à morte. É esse espírito que ilumina o pensador que se apresenta,
ao mesmo tempo, como historiador e escriba daquele que julga ser um
novo espírito, o alvorecer de uma nova filosofia dos povos.
É possível dizer que Michelet “foi homem de seu tempo”. Há quem
afirme que o historiador se posicionou demais, ou que omitiu quando
quis. Críticos mostraram falhas na sua cronologia, ou mesmo lacunas em
seus relatos. Por certo, as reprimendas são muitas e partem de vários lados
e ângulos, com certeza comprováveis. Não há, porém, como negar a Mi­
chelet o que é de Michelet. Foi ele o autor das páginas mais inflamadas da
história da Revolução e ao mesmo tempo o mais cético e o mais crédulo
dos seus seguidores. Cético, pois duvidou do seu devir e da França, que
não cumpriu com aquele que ele imaginou, crédulo, quando apostou que a
verdadeira Revolução é aquela liderada pelo povo e que carrega a bandeira
da liberdade.
Em tempos de tanta descrença, essas páginas de Michelet funcionam
quase como antídoto. Nada melhor do que acabar essa breve introdução
recorrendo a nosso intérprete. Foi no prefácio de 1847 que o historiador
confessou: “esses são os dias mais sagrados do mundo, dias bem-aventura­
dos para a história. Quanto a mim, tive minha recompensa, pois os relatei
[...]”. Feliz por ter assumido a liderança no relato, Michelet é eloquente ao
descrever os dias que teve o privilégio de viver e desfrutar. No entanto, é no
prefácio de 1868, já na mira dos críticos, que ele faz não tanto sua profissão
de fé, mas sua verdadeira confissão de fé: “este relato, eventualmente co­
movido demais, talvez, e tempestuoso, no entanto jamais é turvo, de modo
nenhum vago, de modo nenhum indeciso, em vãs generalidades”. Aí está o
98 Lições de história

historiador que se inscreve em seu tempo; atua de maneira quase militante;


que pensa a revolução e se propõe a avalizá-la. Nesse sentido, o trecho que
se segue é mais atual do que nunca.

PREFÁCIO DE 1868 (HISTÓRIA DA


REVOLUÇÃO FRANCESA)2

[...] Uma palavra sobre como se fez este livro. Ele nasceu no seio dos
Arquivos. Escrevi-o por seis anos (1845-1850) nesse depósito central onde
eu era chefe da seção histórica. Depois do 2 de dezembro,3 precisei ainda
de dois anos, e terminei-o nos arquivos de Nantes, bem perto da Vendeia,
de onde explorei também as preciosas coleções.
Armado das próprias atas, das peças originais e manuscritas, pude
julgar os impressos, e sobretudo as memórias que são defesas, por vezes
engenhosos pastiches (por exemplo, os que Roche fez para Levasseur).
Avaliei dia a dia Le Moniteur,4 muito seguido pelos senhores Thiers,
Lamartine e Louis Blanc.
Desde a origem, ele é arranjado e corrigido a cada noite pelos podero­
sos do dia. Antes do 2 de setembro, a Gironda o altera, e no 6, a Comuna.
Assim como em toda grande crise. As atas manuscritas das assembleias
ilustram tudo isso, desmentem Le Moniteur e seus copistas, a Histoire par-
lementaire e outras, que muitas vezes estropiam ainda mais esse Moniteur
já estropiado.
Uma raríssima vantagem que talvez nenhum arquivo do mundo apre­
sentasse no mesmo grau que eu encontrava nos nossos, para cada aconte­
cimento capital, relatos muito diversos e inúmeros detalhes que se comple­
tam e se verificam.
Para as federações, tive relatos às centenas, vindos de outras tantas
cidades e aldeias (arquivos centrais). Para as grandes tragédias da Paris

2 Michelet, 1989.
3 Trata-se de dezembro de 1851, data do golpe de Luís Bonaparte, então presidente da Repúbli­
ca, do qual resultou — dali a um ano — ele tomar-se imperador com o nome de Napoleão III.
A repressão aos republicanos fez-se por demissões, prisões, banimentos. (N. do E.)
4 Le Moniteur Universel foi o jornal oficial criado por Napoleão I e publicado pela primeira vez
em 1789, tendo durado até 1901. (N. do E.)
JULES MlCHELET
99

revolucionária, o arquivo da prefeitura abria-me sua fonte para os registros


da Comuna; e a chefatura de polícia dava-me sua variedade divergente nas
atas de nossas 48 seções.
Para o governo, para os Comités de Salvação Pública e de Segurança
Geral, tinha ante os olhos tudo o que se possui de seus registros, e neles
encontrei, dia por dia, a cronologia de suas atas.
Censuraram-me por vezes o fato de citar muito pouco. Eu teria citado
com frequência se minhas fontes ordinárias tivessem sido peças soltas. Mas
meu apoio habitual são essas grandes coleções em que tudo se segue em
uma ordem cronológica. Desde que dato um fato, pode-se reencontrá-lo
imediatamente em sua data precisa no registro, na pasta de onde o tomei.
Portanto, precisei citar poucas vezes. Para as coisas impressas e as fontes
vulgares, as notas pouco úteis têm o inconveniente de cortar o relato e o
fio das ideias. É uma vã ostentação crivar constantemente a página com
essas referências a livros conhecidos, a brochuras de pequena importância,
atraindo a atenção para isso. O que dá autoridade ao relato é sua sequência,
sua coesão, mais do que a multidão das pequenas curiosidades bibliográ­
ficas.
Para certo fato capital, meu relato, idêntico às próprias atas, é tão
imutável quanto elas. Fiz mais do que extrair; copiei de próprio punho
(e sem nisso empregar ninguém) os textos dispersos e os reuni. Daí resul­
tou uma luz, uma certeza, as quais nada mudará. Que me ataquem sobre o
sentido dos fatos, está bem. Mas em primeiro lugar terão de reconhecer que
tomam de mim os fatos que querem usar contra mim.
Aqueles que têm olhos e sabem ver observarão muito bem que este
relato, eventualmente comovido demais, talvez, e tempestuoso, no entanto
jamais é turvo, de modo nenhum vago, de modo nenhum indeciso, em vãs
generalidades. Minha própria paixão, o ardor que nele punha não se teriam
contentado com isso. Buscavam, queriam o caráter próprio, a pessoa, o
indivíduo, a vida muito especial de cada ator. As personagens aqui não são
de maneira nenhuma ideias, sistemas, sombras poéticas; cada uma delas foi
trabalhada, penetrada, até encontrar o homem íntimo. Mesmo aquelas que
são tratadas severamente, sob certos aspectos, ganham em ser conhecidas a
esse ponto, alcançadas em sua humanidade. Não favoreci de modo algum
Robespierre. Pois bem! o que disse de sua vida interior, do marceneiro,
da mansarda, do úmido patiozinho que, em sua sombria vida, colocou no
100 Lições de história

entanto um raio de luz, tudo isso tocou, e um dos meus amigos, de partido
contrário, confessou-me que ao ler verteu lágrimas.
Nenhum desses grandes atores da revolução me deixou frio. Não vivi
com eles, não acompanhei cada um deles, no fundo de seu pensamento,
em suas transformações, como companheiro fiel? Com o tempo, eu era um
dos seus, um familiar desse estranho mundo. Eu me dera olhos para ver
entre essas sombras, e creio que elas me conheciam, viam-me só, com elas
nessas galerias, nesses vastos arquivos raramente visitados. Algumas vezes
eu encontrava o marcador no lugar em que Chaumette ou um outro o pôs
no último dia. Tal frase, no rude registro dos cordeliers,5 não foi terminada,
cortada bruscamente pela morte. A poeira do tempo permanece. É bom
respirá-la, ir e vir através desses papéis, desses dossiês, desses registros.
Eles não estão mudos, e tudo isso não está tão morto quanto parece. Eu
jamais os tocava sem que certa coisa deles saísse, despertasse... É a alma.
Na verdade, eu merecia isso. Não era autor. Estava a 100 léguas de
pensar no público, no sucesso: amava, eis tudo. Ia aqui e ali, obstinado e
ávido; aspirava, escrevia essa alma trágica do passado. [...]

DO MÉTODO E DO ESPÍRITO DESTE LIVRO6

Este volume contém duas partes, de cerca de 10 meses cada uma;


seu centro, seu apogeu é o belo momento em que a França acreditou ver
o céu aberto, a última das federações, a grande Federação do Champ-de-
Mars, no 14 de julho de 1790. Assim se eleva a nossa história, cheia de
esperança e de ímpeto, até esse sonho sublime da união dos corações e dos
espíritos. Depois ela desce, pelos degraus da realidade penosa, até o dia 21
de setembro de 1791, em que essa criança crédula, o povo, abandonada
por seu tutor, que deserta e a trai, é enfim obrigada a ser homem, em que

5 Os cordeliers (franciscanos), também conhecidos como Clube dos Cordeliers ou, formalmente,
Sociedade dos Amigos dos Direitos do Homem e do Cidadão, eram uma sociedade de caráter
populista à época da Revolução Francesa. Ganharam essa alcunha porque as reuniões do clube
aconteciam no mosteiro dessa ordem. (N. do E.)
6 Esta seção consiste numa espécie de introdução ao livro III (6 de outubro de 1789-14 de julho
de 1790), onde Michelet revela os fundamentos de sua abordagem, seu entendimento sobre o
conhecimento histórico, que procura rapidamente sistematizar no “Prefácio de 1868”.
101
JULES MlCHELET

faz a primeira tentativa de um verdadeiro governo de homens: ser homem


é reger-se a si mesmo.
As duas partes do volume, o livro III e o livro IV, são assim muito diver­
sas nos temas; de um ao outro, a história muda de caráter, por uma transição
mais rápida, menos moderada do que acontece comumente no curso das coi­
sas humanas. Essa mudança não é de maneira alguma por acaso; é a própria
crise do tempo, o destino da Revolução. Portanto, dois temas e também duas
cores e duas luzes: uma brilhante de esperança; a outra, intensa, concentrada
e sombria. Tem-se a lembrança do projeto proposto por alguns cientistas
para iluminar Paris, dois faróis de luzes elétricas que, acesos sobre duas tor­
res, iluminariam, com uma meia-luz, as ruas mais escuras e mais profundas,
reforçando as luzes parciais, locais, de gás ou dos lampiões. Aí está meu livro.
Os dois faróis que iluminam suas duas faces são: as federações; os clubes,
jacobinos e cordeliers. Esses dois assuntos dominam tudo, estão representa­
dos em toda parte; nos capítulos em que deles parecemos afastar-nos mais,
voltam invencivelmente; mesmo quando não aparecem, não deixam de fazer
sentir sua presença pela cor muito diversa com que tingem os objetos, alegre
luz de um fogo de faia, brilhante como a manhã, sombrio clarão de um fogo
de hulha, cuja chama intensa, ao iluminar, aumenta a impressão da noite,
toma as trevas visíveis.
Para nós, alegre ou melancólico, luminoso ou escuro, o caminho da
história foi simples, direto; seguíamos a estrada real (essa expressão para
nós quer dizer “popular”), sem nos deixar desviar para os atalhos tentado­
res aonde vão os espíritos sutis: íamos na direção de uma luz que não vacila
jamais, cuja chama tanto menos nos devia faltar quanto era idêntica à que
trazemos em nós. Nascidos povo, íamos ao povo.
Aí está quanto à intenção. Mas a reta intenção é coisa tão poderosa
no homem, qualquer que seja sua fraqueza individual, que acreditamos,
nesta obra, ter avançado um passo na obra comum. Nesta construção pri­
meira, insuficiente, como é, há vários pontos sólidos, onde nossos colegas
de história poderão audaciosamente colocar o pé, para edificar mais alto.
Sim, que marchem sobre nós sem temor, ficaremos felizes de nisso ajudar
e de dar-lhes a mão.
Nossa única vantagem era o trabalho anterior, a acumulação paciente
das obras e dos dias; o que para outros é começo, para nós é coroamento.
Dez anos na Antiguidade, 20 anos na Idade Média, contemplamos longa-
t\
102 Lições de história

mente o fundo sobre o qual a era moderna hoje constrói. Pudemos apre­
ciar, melhor talvez do que se faz com um olhar rápido, onde está a base
sólida, onde estariam os pontos ruinosos.
A base que menos engana, estamos felizes de dizê-lo àqueles que vi­
rão depois de nós, é aquela de que os jovens eruditos mais desconfiam, e
que uma ciência perseverante acaba por descobrir tão verdadeira quanto
forte, indestrutível: a crença popular.
Verdadeira no total, embora seja, no detalhe, carregada de ornamentos
legendários, estranhos à história dos fatos. A lenda é uma outra história, a
história do coração do povo e de sua imaginação.
Demos, na cena do 6 de outubro (tomo I), um notável exemplo desses
ornamentos legendários que de maneira alguma são mentiras do povo, que
então afirma apenas o que viu com os olhos do coração.
Afastai os ornamentos; o que resta, na crença popular, especialmente
no que concerne à moralidade histórica, é profundamente justo e verda­
deiro.
Não é preciso que nossa confiança em uma cultura superior, em nos­
sas pesquisas especiais, nas descobertas sutis que acreditamos ter feito,
faça-nos desdenhar facilmente a tradição nacional. Não é preciso que levia­
namente empreendamos alterar essa tradição, criar-lhe, impor-lhe uma ou­
tra. Ensinai o povo em astronomia, em química, tanto melhor; mas quando
se trata do homem, isto é, de próprio, quando se trata de seu passado, de
moral, de coração e de honra, não receeis, homens de estudos, deixar-vos
ensinar por ele.
Quanto a nós, que de modo algum temos negligenciado os livros, e
que, ali onde os livros se calavam, temos buscado, encontrado recursos
imensos nas fontes manuscritas, não temos deixado, em toda coisa de mo­
ralidade histórica, de consultar antes de tudo a tradição oral.
E essa palavra não quer dizer para nós o testemunho interessado
de tal ou tal homem de então, de tal protagonista importante. A maior
parte dos depoimentos desse gênero tem muito a lucrar com a história
para que ela possa neles encontrar guias confiáveis. Não, quando digo
“tradição oral” entendo “tradição nacional”, aquela que permanece gene-
ralizadamente difundida na boca do povo, o que todos dizem e repetem,
os camponeses, os homens de cidade, os velhos, os homens maduros, as
mulheres, mesmo as crianças, o que podeis aprender se entrardes à noite
JULES MlCHELET
103

naquele cabaré de aldeia, o que recolhereis se, encontrando no caminho


um passante que descansa, vos puserdes a conversar sobre a chuva e o
bom tempo, depois sobre a carestia dos viveres, depois sobre o tempo do
imperador, sobre o tempo da Revolução. Anotai bem esses julgamentos;
por vezes, sobre as coisas, ele erra, mais frequentemente ignora. Sobre os
homens, não se equivoca, muito raramente se engana.7
Coisa curiosa, o mais recente dos grandes protagonistas da história,
aquele que ele viu e tocou, o imperador, é aquele que o povo mais investe e
desfigura com tradições legendárias. A crítica moral do povo, muito firme em
qualquer outra parte, aqui geralmente enfraquece: duas coisas perturbam o
equilíbrio, a glória e também a desgraça, Austerlitz e Santa Helena.8
Quanto aos homens anteriores, várias de suas coisas estão esquecidas,
a tradição enfraqueceu-se, quanto ao detalhe de seus atos. Mas, quanto ao
seu caráter, permanece um julgamento moral, idêntico em todo o povo (ou
em sua quase totalidade), julgamento muito firme e muito preciso.
Ampliai, peço-vos, essa investigação. Consultai pessoas de todos os
tipos: não são operários (vários já são antes letrados que povo), não apenas
mulheres (sua sensibilidade por vezes as desorienta), mas pessoas diversas
em idade, em sexo, em condição; afastai as oposições acessórias, tomai o
total das respostas, eis aqui o que encontrareis, o que se poderia chamar o
“catecismo histórico do povo”:
Quem conduziu a Revolução? Voltaire e Rousseau. Quem perdeu o
rei? A rainha. Quem começou a Revolução? Mirabeau. Quem foi o inimigo
da Revolução? Pitt e Coburgo, os chouans e Coblença. E ainda? Os goddem e
os carolas. Quem comprometeu a Revolução? Marat e Robespierre.9

7 Isso não contradiz em nada o que dissemos no capítulo 9 do livro IV. Ali se tratava do público,
aqui, do povo. Seria insultar a inteligência do leitor explicar a diferença.
8 A Batalha de Austerlitz — ou Batalha dos Três Imperadores — foi uma das maiores vitórias mi­
litares de Napoleão, na qual destruiu definitivamente a Terceira Coalizão que se levantara contra
o império francês. Em 2 de dezembro de 1805, sob o comando de Napoleão I, uma armada
francesa subjugou o exército austro-russo comandado pelo czar Alexandre I, numa batalha san­
grenta de quase 10 horas. Essa batalha aconteceu nas imediações de Austerlitz, cerca de 10 km
de Brno, na Morávia. A batalha de Austerlitz entrou para a história como uma obra-prima de
tática de guerra. A ilha de Santa Helena era uma colónia britânica onde os ingleses encarceraram
Napoleão após sua derrota, de onde ele não saiu até 1821, ano de sua morte. (N. do E.)
9 Sir William Pitt, ou o “segundo Pitt”, líder político inglês que inspirou e financiou as sucessivas
campanhas contra a França revolucionária e napoleônica, até sua morte em 1806. Frederico
Josias, duque de Saxe-Coburgo, foi um general austríaco nas campanhas contra a França revo-
104 Lições de história

Tal a tradição nacional, a de toda a França, podeis convencer-vos disso.


Dela retirai apenas alguns escritores doutrinários e alguns trabalhadores le­
trados que, sob a influência desses dois sistemas, e cultivados há 20 anos por
uma imprensa especial, saíram da tradição comum à massa do povo. Ao todo,
alguns milhares de homens, em Paris, em Lyon, em três ou quatro grandes
cidades; número pouco considerável, diante de 34 milhões de almas.
O catecismo histórico que acabamos de indicar é o de todos os habi­
tantes dos campos, o da maioria dos habitantes das cidades; “maioria” é impró­
prio, é preciso dizer “a quase totalidade”.
Considerai agora o inverso desse catecismo (Voltaire e Rousseau nada
fizeram, a rainha não teve nenhuma influência na sorte do rei, os padres e
os ingleses são inocentes dos males da Revolução etc.), tereis contra vós a
França.
Ao que respondereis talvez: “somos pessoas hábeis, cientistas; conhe­
cemos a França bem melhor do que ela própria se conhece”.
Tal recusa, oposta à crença do povo, espanta-me, devo confessá-lo.
Essa história, tão enraizada nele, que a viveu, a fez e a sofreu — contestar-
lhe o conhecimento parece-me, da parte dos doutos, uma pretensão pre­
sunçosa, se assim ouso falar. Deixai-lhe, senhores letrados, deixai-lhe seus
julgamentos, ele bem mereceu conservar-lhes a posse tranquila — posse
grave, importante, senhores; é seu património moral, uma parte essencial
da moralidade francesa, uma compensação considerável pelo que essa his­
tória lhe custou em sangue.
Quando o povo tira um axioma, um provérbio, de sua experiência,
ele não é dela extraído facilmente; uma coisa proverbial para ele, em me­
dicina política, que guardou de 1793, é que a sangria pouco vale, e que só
agrava a doença.

lucionáiria, e a expressão “Pitt e Coburgo” tomou-se célebre para designar as monarquias ini­
migas da Revolução e os traidores internos. Os chouans foram os contrarrevolucionários bretões
dos primeiros anos da Revolução, católicos, monarquistas, sobretudo na Vendeia. Coblença,
cidade renana alemã, foi o ponto onde os emigrados se reuniram para formar o exército que
invadiria a França em 1792. Goddem (ou les goddamns ou les goddams) é um tratamento pejo­
rativo com que os franceses se referiam aos ingleses (especialmente os da infantaria) desde a
Guerra dos Cem Anos — e em muitos outros conflitos entre Inglaterra e França desde a Idade
Média. (N. do E.)
JULES MlCHELET 105

E, não tivesse ele a experiência, o bom senso lhe diria suficientemente


que a salvação por via do extermínio não é uma salvação.
A França estava perdida, após a Salvação Pública, perdida de força e de
coração, a ponto de deixar-se tomar por aquele que quis tomá-la.
Agora, doutos senhores, contra essa crença universal, chegai com
vossos sistemas, fazei entender a esse povo que, “permutando-se a vida e
a morte incessantemente na natureza, é indiferente viver ou morrer; que,
morto um, outros chegam; que com isso a terra só floresce melhor”. Se essa
suave doutrina não encantá-lo de início, dizei-lhe com segurança que ela
corresponde inteiramente ao cristianismo; a salvação de que ele nos fala era
a Salvação Pública, o apóstolo do Terror foi aparentado a Jesus Cristo. De­
pois, tomai esse apóstolo sentimental e pastoral, dai a ele um hábito mais
celestial ainda do que aquele que usou na festa do prairial,10 e tereis muita
dificuldade em reconciliar o povo com o nome de Robespierre.
Esse povo tem a cabeça dura. É o que dizia Moisés quando, após ter
matado 20 ou 30 mil israelitas, chamava em vão pelos outros; eles faziam
ouvidos moucos.
Ou então, querei vós que eu use uma imagem muito ingénua, que
achareis chã talvez, mas que não é inexata? É a fábula de La Fontaine: o
cozinheiro, com seu facão ao lado, adula os frangos: “queridos, queridos!”.
Por mais que faça uma voz doce, os queridos não prestam atenção; um
facão não é uma isca.
Mas falemos seriamente.
Não somos de modo algum desses amigos do povo que desprezam
a opinião do povo, sorriem do preconceito popular, acreditam-se, modesta­
mente, mais sábios que todo mundo.
Todo mundo, para os hábeis e os homens de espírito, é um pobre ho­
mem de bem, que enxerga pouco, bate, tropeça, faz garatujas, não sabe
muito bem o que diz. Rápido, um bastão para esse cego, um guia, um
apoio, alguém que fale por ele.
Mas os simples, que não têm espírito, como Dante, Shakespeare e Lu-
tero, veem de maneira muito diferente esse bom homem. Reverenciam-no,
recolhem, escrevem suas palavras, mantêm-se em pé diante dele. Era a ele

10 Prairial foi o nome dado ao nono mês do calendário da Revolução Francesa: de 20 de maio a
18 de junho. (N. do E.)
106 Lições de história

que o pequeno Shakespeare ouvia, guardando cavalos, à porta do espetá­


culo; era a ele que Dante ia ouvir no mercado de Florença. O dr. Martinho
Lutero, doutor como era, fala-lhe de borla na mão, chamando-o mestre e
senhor: “herr omnes” (“senhor todo mundo”).
Todo mundo, ignorante sem dúvida das coisas da natureza (não ensi­
nará física a Galileu ou cálculo a Newton), nem por isso é juiz menos justo
nas coisas do homem. E soberano mestre em direito. Quando toma assen­
to, em seu pretório e tribunal natural, nas encruzilhadas de uma grande
cidade ou no banco de uma igreja, ou ainda em uma pedra no cruzamento
das quatro estradas, sob o olmo do julgamento,11 ele julga, sem apelo; não
há que dizer “não”. Os reis, as rainhas e os tribunos, os Mirabeau, os Ro-
bespierre comparecem modestamente. Que digo eu? O grande Napoleão
faz como fazia Lutero: põe o chapéu na mão...
Et nunc erudimini, qui judicatis terram!12 Sede julgados, juízes do mundo!
Alta e soberana justiça, semelhante à de Deus, por quase nunca dignar-
se a motivar seus julgamentos. Eles surpreendem por vezes, escandalizam.
Os escribas e os fariseus pediriam de bom grado que se interditasse tal juiz;
não sabem realmente como desculpar suas contradições: “Povo mutável!”,
dizem eles erguendo os ombros, “que, sem nenhum princípio determinado,
julga e se retrata”. Indulgente com este e severo com aquele! Justiça toda ca­
prichosa. Os sensatos, felizmente, estão aí para revisar seus julgamentos.
Capricho aos olhos da ignorância; para a ciência, justiça profunda.
Quando ele julga, tudo está acabado; cabe a vós outros, historiadores, fi­
lósofos, críticos, chicanistas, buscar, encontrar, se puderdes, o porquê. Pro­
curai; ele é sempre justo. O que aí encontrais de injusto, fracos e sutis que
sois, é a imperfeição de vosso espírito.
Assim, esse estranho juiz oferece este escândalo ao auditório: descul­
pa Mirabeau, apesar de seus vícios; condena Robespierre, apesar de suas
virtudes.
Grande rumor, muitas reclamações, ditos, contraditas, mas sim, mas
não... Vários meneiam a cabeça e dizem: “o bom homem perdeu a razão”.

11 Referência à locução francesa em que “sob o olmo” é o lugar de uma espera vã. (N. do T.)
12 Literalmente: “e agora compreendeis, ó reis; instruí-vos, vós que governais a Terra”. São pala-
vras do salmo II, versículo 10, do Livro Santo, citadas para ensinar que devemos ser humildes
e aproveitar da experiência alheia. (N. do E.)
JULES MlCHELET 107

Tomai cuidado, senhores, tomai cuidado, é o julgamento do povo, a decisão


do mestre; não a corrigiremos em nada; tratemos apenas de compreender.
Este último ponto é já bastante difícil, ative-me a isso, sabendo bem,
quando encontrava julgamentos discutidos, por vezes fatos estranhos em
que a tradição comum não parecia concordar com tais documentos im­
pressos, que raramente era preciso preferir estes últimos; as memórias são
defesas de tal causa individual, os jornais defendem do mesmo modo o
interesse dos partidos. Explorei então outras fontes, até aqui muito ne­
gligenciadas, e vi com admiração que, para subscrever os julgamentos da
ignorância popular, o que me faltara era a ciência.
Um estrondoso exemplo disso é o fato imenso das federações, com
que o povo, sobretudo o dos campos, ficou tão profundamente impressio­
nado, e que ele jamais deixa de lembrar com efusão, desde que se fale no
ano de 1790. Sem razão? As federações foram simples festas? Acreditar-se-
ia, pela pouca atenção que lhes dão então os jornais de Paris. Foram elas
festas burguesas, como depois se tentou dar a entender? Como é possível
então que a imaginação, o coração do povo ainda estejam tomados por
elas? Lede as atas das federações; comparai-as aos documentos impressos
da época, descobrireis que essas grandes reuniões armadas, sucedendo-se
durante nove meses (de novembro de 1789 a julho de 1790), tiveram o
efeito muito grave de mostrar aos aristocratas as forças imensas, invencíveis
da nação; elas lhes tiraram a esperança, fizeram-nos perder o pé, decidiram
a emigração, desataram o nó da época. As federações centrais (Lyon, Ruão,
Paris etc.), que vieram por último, fizeram comparecer apenas os represen­
tantes da Guarda Nacional; em Lyon, 50 mil homens representaram 500
mil homens. Mas as federações locais, as das pequenas cidades e aldeias,
dos vilarejos, incluíram todo mundo; pela primeira vez, o povo se viu, se
uniu em um mesmo coração.
Esse fato, imperceptível na imprensa, depois obscurecido, desfigura­
do pelos fazedores de sistemas, reaparece aqui em sua grandeza; domina,
como dissemos, a primeira metade deste volume. Nove meses da Revolu­
ção são inexplicáveis sem ele. Onde estava ele, antes de nós? Nas fontes
manuscritas, na boca e no coração do povo.
Essa é a primeira missão da história; redescobrir por meio das pes­
quisas conscienciosas os grandes fatos da tradição nacional. Esta, nos fatos
dominantes, é muito grave, muito segura, tem uma autoridade superior a
108 LiçOes de história

todas as outras. O que é um livro? É um homem. E o que é um jornal? Um


homem. Quem poderia confrontar essas vozes individuais, parciais, inte­
ressadas, com a voz da França?
A França tem o direito, se alguém pode tê-lo, de julgar em última ins­
tância seus homens e seus acontecimentos. Por quê? É que ela não é para
eles um contemplador fortuito, uma testemunha que vê de fora; ela esteve
neles, animou-os, penetrou-os de seu espírito. Eles foram em grande parte
obra sua: ela os conhece, porque os fez.
Sem negar a influência poderosa do gênio individual,13 nenhuma dú­
vida de que na ação desses homens a parte principal cabe no entanto à ação
geral do povo, do tempo, do país. A França os conhece nessa ação que foi
dela, como seu criador os conhece. Devem a ela o que foram, excetuados
tais ou tais pontos em que ela se toma seu juiz, aprova ou condena, e diz:
“nisto, não sois meus”.
Todo estudo individual é acessório e secundário diante desse profun­
do olhar da França sobre a França, dessa consciência interior que ela tem
daquilo que fez. O papel da ciência nem por isso deixa de ser grande. Do
mesmo modo como essa consciência é forte e profunda, é também obscura,
tem necessidade de que a ciência a explique. A primeira mantém e manterá
os julgamentos que fez; mas os motivos dos julgamentos, todas as peças do
processo, os raciocínios muitas vezes complicados, pelos quais o espírito
popular obtém conclusões que são chamadas de simples e ingénuas, tudo
isso apagou-se. E está aí o que a ciência está encarregada de redescobrir.
Eis o que nos pede a França, a nós, historiadores: não que façamos a
história — ela está feita nos seus pontos essenciais; moralmente, os grandes
resultados estão inscritos na consciência do povo —, mas que restabeleça­
mos a cadeia dos fatos, das ideias de onde saíram esses resultados: “não vos
peço”, diz ela, “que formeis minhas crenças, que diteis meus julgamentos;
cabe a vós recebê-los e conformar-vos a eles. O problema que vos propo­
nho é o de me dizer como cheguei a julgar assim. Agi e julguei; todos os
intermediários entre essas duas coisas pereceram em minha memória. Cabe
a vós adivinhar, meus magos! Não estivestes presentes, eu estive. Pois bem,

13 Num belíssimo artigo em que o jornal La Fratemité (outubro de 1847) coloca o verdadeiro
ideal da história, ele reduz muito, contudo, a parte do gênio individual.
JULES MlCHELET 109

quero, ordeno que me conteis o que não vistes, que me ensineis meu pen­
samento secreto, que me digais pela manhã o sonho esquecido da noite”.
Grande missão da ciência e quase divina! Ela jamais bastaria para
isso se fosse apenas ciência, livros, penas e papel. Não se adivinha uma
tal história senão ao refazê-la com o espírito e a vontade, ao revivê-la, de
modo que não seja uma história, mas uma vida, uma ação. Para redes-
cobrir e relatar o que esteve no coração do povo só há um meio: é ter o
mesmo coração.
Um coração grande como a França! O autor de tal história, se algum
dia for realizada, será, com certeza, um herói.
Que admirável equilíbrio de justiça magnânima se encontrará nesse
coração! Que sublimes balanças de ouro! Pois, afinal, ser-lhe-á necessário,
na grande justiça popular, que decide em geral, avaliar nos indivíduos a
justiça de detalhe, redescobrir em cada um, por uma benevolente equida­
de, suas circunstâncias atenuantes, e, mesmo sobre o mais culpado, condu­
zindo-o ao tribunal, dizer ainda: “foi homem também”.
Essas reflexões nos detiveram muitas vezes, muitas vezes nos fizeram
sonhar por longo tempo. Sentíamos bem demais o que nos faltava, em pu­
reza, em santidade, para atingir esse equilíbrio.
O que podemos dizer, ao menos, é que, digno ou não, nós tocamos
essa balança com mão atenta e escrupulosa.14 Jamais esquecemos que pe­
sávamos vidas de homens... de homens, ah, que viveram tão pouco. E uma
circunstância grave no destino dessa geração, que nos obriga, para sermos
justos, a nos tomar indulgentes: ela tombou em um momento único, em
que se acumularam séculos; coisa terrível, jamais vista: não mais sucessões,
não mais transições, não mais duração, não mais anos, não mais horas nem
dias, suprimido o tempo!
Alguém, em 1791, na Assembleia Nacional, lembrava 89: “sim”, como
se diz, “antes do dilúvio”. Camille Desmoulins, falando em 1794 de um ho­
mem de 92: “um patriota antigo na história da Revolução”. O mesmo, ca­
sado no final de 1790, escreve em 93: “das 60 pessoas que vieram ao meu
casamento, restam duas, Robespierre e Danton”. Ele não tinha acabado a
linha, e dos dois só restava um.

14 Nà0 temos, nesta história, nenhum interesse além da verdade. Não seguimos às cegas nenhu­
ma paixão de partido [...].
no Lições de história

Heu! unain in horam natosl... (“Nascidos na mesma hora!”).


A tentação do coração, quando se veem passar tão depressa esses
pobres efémeros sob o sopro da morte, seria tratá-los com uma extrema
indulgência. Não duvidamos que Deus tenha assim julgado, que tenha
largamente perdoado. O historiador não é Deus, não tem seus poderes
ilimitados; não pode esquecer, ao escrever o passado, que o futuro, sempre
copiador, ele copiará exemplos. Sua justiça vê-se, assim, circunscrita a uma
medida menos ampla do que aconselhava seu coração.
Está aqui o que podíamos, e o que fizemos:
Raramente apresentamos um julgamento total, indistinto, nenhum
retrato propriamente dito; todos, quase todos são injustos, resultando de
uma média que se toma em tal ou tal momento da personagem, entre o
bem e o mal, neutralizando um pelo outro e tornando ambos falsos. Julga­
mos os atos à medida que se apresentam, dia a dia e hora a hora. Datamos
nossas injustiças; e isso nos permitiu muitas vezes louvar homens que mais
tarde precisaremos condenar. O crítico esquecido e severo condena muito
frequentemente começos louváveis em vista do fim que ele conhece, que
vê por antecipação. Mas nós não queremos conhecê-lo, a esse fim; o que
quer que esse homem possa fazer amanhã, anotamos em seu benefício o
bem que hoje faz; o mal bem cedo virá: deixemos-lhe seu dia de inocência,
escrevamo-lo cuidadosamente em favor de sua memória.
Assim, detivemo-nos de bom grado sobre os começos de vários ho­
mens por quem tínhamos medíocre simpatia. Louvamos provisoriamente,
onde eram louváveis, o padre Sieyès e o padre Robespierre, o escriba Bris-
sot e outros.
Quantos homens em um homem! Como seria injusto, para essa cria­
tura móvel, estereotipar uma imagem definitiva! Rembrandt fez 30 autor­
retratos, creio, todos parecidos, todos diferentes. Segui esse método; a arte
e a justiça aconselhavam-no igualmente. Quem tiver o trabalho de acom­
panhar, nestes dois volumes, um a um os grandes protagonistas históricos,
verá que cada um deles tem toda uma galeria de esboços, corrigido cada
um em sua data, segundo as modificações físicas e morais por que passava
o indivíduo. A rainha e Mirabeau, assim, passam e repassam cinco ou seis
vezes; a cada vez, o tempo os marca com sua passagem. Marat aparece do
mesmo modo, sob diversos aspectos, muito verdadeiros, embora diferen­
tes. O tímido e sofredor Robespierre, apenas entrevisto em 1789, desenha-
JULES MlCHELET
111

mo-lo, em novembro de 1790, à noite, de perfil, na tribuna dos jacobinos;


colocamo-lo de frente (em maio de 91) na Assembleia Nacional, sob um
aspecto magistral, dogmático, já ameaçador.
Datamos assim curiosamente, minuciosamente, os homens e as ques­
tões, e os momentos de cada homem.
Dissemo-nos e repetimo-nos uma frase que permaneceu presente e
que domina este livro:
A história é o tempo.
Essa constante reflexão impediu-nos de levantar as questões antes da
hora, como muito frequentemente se faz. É tendência comum querer ler
todos os pensamentos de hoje no passado, que muitas vezes não foram
pensados. Para aqueles que têm essa fraqueza, nada é mais fácil. Toda gran­
de questão é eterna; quase impossível não encontrá-la em qualquer época.
Mas o próprio da ciência não é tomar assim esses aspectos vagos e gerais
das coisas, esses caracteres comuns dos tempos, em que eles se confundem;
ao contrário, especificar; insistir, para cada época, na questão realmente
dominante, e não ressaltar nela tal circunstância acessória, que se encontra
em outros tempos, que talvez em nossos dias se tenha tomado dominante,
mas que então não o era.
Foi injustificadamente que os autores da Histoire parlementaire, e
aqueles que a seguem de perto ou de longe, colocaram em primeira linha,
na história da Revolução, as chamadas “questões sociais”, questões eternas
entre o proprietário e o não proprietário, entre o rico e o pobre, questões
formuladas hoje, mas que na Revolução aparecem sob outras formas, ainda
vagas, obscuras, em um lugar secundário.
Esses autores exerceram uma enorme influência, tanto por uma co­
leção fácil de consultar, que parece dispensar outras, como por um jornal
digno de estima, redigido infelizmente no espírito deles, mas cuja vigorosa
moralidade compensa em parte tal defeito. O dever, só essa palavra, rara­
mente atestada em nossos dias, o dever sentido, ensinado, constitui nesse
jornal uma originalidade verdadeira.
Nada reprovamos nos modestíssimos discípulos, mais sensatos aliás
que seus mestres. Quanto a estes, não podemos deixar de admirar sua se­
gurança no absurdo, sua intrepidez de afirmação. No entanto, o dever de
que dão testemunhos ordenava, antes de assim afirmar, estudar com cons­
ciência. Não se adivinha a história. Aquele que a percorre às pressas, para
112 Lições de história

nela encontrar algumas provas de uma teoria pronta, limita em demasia


suas leituras, e nem mesmo entende o pouco que leu. É o que acontece aos
autores da Histoire parlementaire\ dos dois termos que comparam e fundem
sem julgamento, a Idade Média e a Revolução, não conhecem o primeiro, e
não compreendem o outro.
O que aconteceu quando quiseram impor à Revolução de 1789 o ca­
ráter socialista dos tempos posteriores? Nada encontrando nos documen­
tos revolucionários que reproduzem, suprem a falta colando, na frente,
atrás, prefácios ou posfácios que com eles não mantêm nenhuma relação.
Aí, sem provas, afirmam que tal foi a ideia secreta dos grandes protagonis­
tas históricos, de tal homem, de tal partido: eles pensaram isto, aquilo; não
disseram nada, é verdade, mas deveriam tê-lo dito.
Ou, então, se encontram um apoio, algumas palavras que possam, for­
çando-as, mudar em seu proveito, é no campo inimigo que vão buscá-las...
Chateaubriand
Teresa Malatian

François-René Auguste, visconde de Chateaubriand, um dos maiores es­


critores do romantismo na França, nasceu em 1768 numa família da antiga
nobreza da Bretanha.
Desde muito jovem, o gosto pela imaginação e pela aventura dire­
cionou seu interesse pela navegação e pelas viagens. Como usual entre os
membros de sua classe, ingressou na carreira das armas e, graças ao conví­
vio com o rei Luís XVI, acabou por integrar a corte em Versalhes, na qua­
lidade de capitão de cavalaria. Insatisfeito com a situação, logo retornou
ao seu regimento de infantaria em Na varra. Seus interesses diversos dire­
cionaram-se para estudos de teologia e da arte da navegação, igualmente
importantes nessa fase de sua vida.
Com os primeiros eventos da Revolução de 1789, deixou o exército
sublevado para dedicar-se a um projeto audacioso de ir em busca da passa­
gem entre o estreito de Behring e a Groenlândia. Realizou então em 1791
um périplo pela América do Norte, visitando Estados Unidos e Canadá.
Durante a travessia do oceano, suas reflexões encaminharam-se para a reli­
gião, motivado pela presença a bordo de um grupo de jovens seminaristas
que iam a Baltimore em missão. Seu testemunho relata a importância dessa
experiência mística para o posterior desenvolvimento de suas ideias.
Nos Estados Unidos, munido de uma carta de recomendação, avistou-
se com o presidente Washington, cuja simplicidade e caráter completaram
114 LiçOes de história

o conhecimento que tinha de seu papel no processo de independência da


jovem nação americana. A seguir, nas florestas do Alto Canadá, em suas
grandes extensões silenciosas, conviveu com tribos indígenas e dessa ex­
periência retiraria inspiração para escrever os romances Atala, Os natcheses,
René, além do relato Viagem a América.
Por um fragmento de jornal informou-se dos acontecimentos cada vez
mais violentos que ameaçavam a monarquia francesa e decidiu retomar à
Europa em 1792, quando os jacobinos dominaram a convenção e se inicia­
va o Terror. Engajou-se na luta contrarrevolucionária da nobreza exilada,
ocasião em que ficou gravemente ferido e doente, quase perdendo a vida.
Acabou juntando-se ao grupo dos emigrados na Inglaterra, onde, impos­
sibilitado de pegar a espada para defender o rei, armou-se da pena para
cumprir seu dever de lealdade vassálica. O Velho Mundo desabou quando
Luís XVI foi guilhotinado em 1793,1 episódio que marcou o escritor de
modo definitivo.
Nesse período de exílio, Chateaubriand, arruinado, vivia de ministrar
aulas de francês, além de trabalhar para editoras e jornais. Sua primeira
obra histórica foi então elaborada, o Essai historique, politique et moral sur
les révolutions anciennes et modemes. Escrita entre 1794 e 1797, sob o forte
impacto do exílio e da morte do rei da França, a relação da obra com o
momento vivido foi reconhecida pelo autor: “os acontecimentos corriam
mais rápido que minha pena: acontecia uma revolução que tornava erradas
todas as minhas comparações”.2 A metáfora explicativa indicava que escre-
ria como se estivesse num barco sob uma tempestade. A obra foi publicada
em Londres e reimpressa na Alemanha e Inglaterra, no que o autor deno­
minou “contrafações resumidas”. Nesses países, onde se abrigavam muitos
refugiados franceses, o interesse pela queda do Antigo Regime encontrava
audiência vasta. Embora seu valor historiográfico possa ser hoje relativiza-
do, seu caráter polêmico e partidariamente assumido fez dessa obra uma
referência importante para a historiografia da época.
Em 1800, com a ascensão de Napoleão Bonaparte ao Consulado, Cha­
teaubriand retomou à França e dele se aproximou. Data desse período a es­
crita da obra que o celebrizou, O gênio do cristianismo (1802), na qual defen-

1 Ozouf, 1999.
2 A citação foi retirada do prefácio do autor à edição de 1826 (p. xxii).
CHATE AUBRI AND 115

deu a importância da religião para a história. A obra expressava suas antigas


convicções monárquicas, mas também um sentimento religioso profundo
alimentado pela prisão e decorrente do falecimento de sua mãe durante o
período do Terror, quando perdeu também um irmão, e vários outros mem­
bros de sua família foram alcançados pela fúria jacobina. Nessa obra elabo­
rou uma visão católica do passado, oposta à teoria do progresso secular e ao
culto da razão como força motriz da história. Para isso, defendeu o papel da
emoção e da imaginação na história.
Era o momento de ir aos arquivos para resgatar as tradições france­
sas, e nessa direção recorreu ao estudo da Idade Média, da cavalaria e das
cruzadas, procedimento comum na historiografia contrarrevolucionária
em busca de referências para a nova ordem social e política que se esboça­
va e, principalmente, para a identidade da França. O estudo dos gauleses
e dos francos como os verdadeiros ancestrais dos franceses, em oposição
aos heróis da república romana, cultuados pelos revolucionários, tradu­
zia a busca dos conservadores e tradicionalistas pelo verdadeiro espírito
da França sacudida pela onda jacobina. Para Chateaubriand, o período
do Terror era a prova de que a continuidade do desenvolvimento fora
quebrada em 1789 e a nação se colocava como que em suspenso, fora do
tempo da história.
Pode-se dizer que com a Revolução Francesa ocorreu uma “redesco-
berta da história”, que dividiu a temporalidade em duas dimensões confli­
tantes, segundo as interpretações. Do presente para o futuro, era o tempo
burguês revolucionário, “confiante na razão e na capacidade dos homens
de fazerem a história”; do presente para o passado, era o tempo da resistên­
cia às mudanças bruscas e radicais, dos aristocratas pautados pelos valores
do Antigo Regime. Enquanto os revolucionários viam a história como “pro­
dução do futuro”, os conservadores a consideravam “reconstituição fiel do
passado” e conforme a tradição.3
O gênio do cristianismo vinha ao encontro dos interesses do governo de
Bonaparte, superada a onda anticlerical que varrera a França desde 1791.
A nacionalização dos bens da Igreja Católica e a Constituição Civil, que
submetia o clero ao poder laico, haviam provocado uma ruptura com o

3 Reis, 2007:207.
116 Lições de história

Vaticano. A obra de Chateaubriand expressou esse contexto em que Napo-


leão fez uma concordata com a Santa Sé em 1801, reconhecendo o catoli­
cismo como religião da maioria dos franceses, embora estabelecesse direito
de interferência do governo francês na escolha dos bispos. Por essa razão,
o escritor foi nomeado secretário da embaixada em Roma e depois ministro
em Vaiais. A permanência na capital do antigo império romano foi bastante
impressiva e permitiu-lhe realizar estudos de história e arte.
Logo, porém, como ao longo de sua vida, os embates políticos o afas­
taram do favor imperial. A condenação sumária seguida da execução clan­
destina do duque d’Enghien (1804), sob a acusação de tramar em território
alemão a restauração dos Bourbons, provocaria a ruptura definitiva com o
imperador. O desencanto levou-o a nova viagem longa, desta vez ao Orien­
te, onde visitou Grécia, Turquia, Egito e o Magreb. Dela resultou a obra Os
mártires (1809).
Durante a era napoleônica, a história foi reabilitada após o perío­
do radical da Revolução que a colocara em descrédito, porém sujeita a
censura e arbitrariedades. Chateaubriand não ficaria imune a essas res­
trições. Desde muito cedo, percebe-se nele a associação do intelectu­
al e do homem político, seja em poesias, teatro, novelas, panfletos ou
ias narrativas históricas que escreveu, assim como em Guizot, Thierry e
fhiers, historiadores liberais franceses da época, como ele jornalistas e
políticos.
Tentativas de aproximação do poder foram dificultadas pela recusa de
Chateaubriand a aderir a Napoleão, chegando a nomeá-lo por escrito pelo
nome italiano “Buonaparte”, evocando seu status de estrangeiro e usurpa­
dor do trono da França. Esse movimento de atração e repulsa entre ambos
teve em 1811 mais um episódio, quando o escritor foi indicado para o
Institut de France, mas não empossado, pois a censura barrou seu discurso
de recepção, onde criticava a tirania e a falta de liberdade, que considerava
direito inalienável do homem.
Na mesma ocasião, estando para ser publicado o livro Itinerários de
Paris a Jerusalém (1811), foi intimado pela polícia a incluir na obra um
elogio a Napoleão, para que o livro pudesse ser impresso. A censura se
tornara sua velha conhecida e novamente se fez presente no pedido de
autorização para editar na França a obra sobre as revoluções, enviado em
1812 ao diretor-geral da imprensa. A resposta transcrita a seguir dá bem a
Ch ate aubri and 117

dimensão dos percalços a que estava sujeito o trabalho do historiador em


tempos tão conturbados:

Eu colocarei na próxima terça-feira, senhor, vosso pedido sob os olhos do


ministro do Interior, mas vossa obra, feita em 1797, é bem pouco conve­
niente no momento, e se ela tivesse que ser publicada hoje pela primeira
vez eu duvido que pudesse sê-lo com o assentimento da autoridade. O sr.
é atacado por esta produção: nós não nos assemelhamos aos jornalistas que
admitem o ataque e rejeitam a defesa, e a vossa não encontrará nenhum
obstáculo da direção da imprensa para ser editada (Paris, 22-11-1812).

A decisão do ministro não confirmou os bons prognósticos, antes


consolidou o julgamento da inconveniência da obra:

Sua Excelência decidiu que a obra cuja reimpressão vós demandais, por não
ter sido publicada na França, deverá ser submetida às formalidades pres­
critas pelos decretos imperiais concernentes à imprensa. Em consequência,
senhor, vós deveis, vós ou vosso editor, fazer à direção geral da imprensa a
declaração de querer imprimi-la, e ali depositar simultaneamente a edição
da qual vós demandais a reimpressão, a fim de que ela possa passar pela
censura (Paris, 24-11-1812).

Como reconheceu Chateaubriand, o alvo da censura na obra seria


o elogio de Luís XVI, dos Bourbons, da velha monarquia e todos seus
clamores pela liberdade. À mutilação pela censura, preferiu renunciar
ao projeto de reedição da obra. Mas a era napoleônica chegaria ao fim
em 1815. Com a restauração dos Bourbons e a sagração de Luís XVIII,
neto de Luís XV e irmão do rei guilhotinado Luís XVI, a vida de Chate­
aubriand tomou novo impulso. Afinado com o novo governo, recebeu
cargos diplomáticos na Europa e chegou a ser nomeado ministro de Ne­
gócios Estrangeiros (1822-1824).
Até sua morte, em 1848, teve grande prestígio como literato e his­
toriador, exercendo seu talento nas duas modalidades que ainda não ha­
viam claramente delimitado suas fronteiras e, sobretudo, consagravam os
escritores com pendores literários, apreciados pelo grande público.
118 Lições de história

Em 1826, uma publicação de suas obras completas reuniu suas obras


históricas: Essai historique sur les révolutions, Études histonques4 e Histoire de
France.5 Em seu prefácio encontram-se as considerações metódicas apre­
sentadas nessa coletânea. Os textos trazem uma reflexão de Chateaubriand
sobre o trabalho do historiador e privilegiam os aspectos metódicos da
historiografia francesa de sua época.
No tocante à sua concepção de história, já no ensaio sobre as revolu­
ções preocupara-se em introduzir o leitor em seu método de trabalho de
historiador, anunciando-o na forma de composição do tema: a busca das
causas remotas e imediatas da revolução, o estudo das suas partes históri­
cas e políticas, o estado dos costumes e das ciências no momento, a influ­
ência ou repercussão do evento em relação ao tempo presente. Rejeitava a
história filosófica, os paradigmas temáticos do Renascimento e considerava
o século XVIII dos filósofos página a ser virada rapidamente.
A questão do método não constituía propriamente uma novidade,
desde que Mabillon, em 1681, estabelecera os princípios da crítica docu-
\ental em sua De re diplomática. A erudição metódica empreendia os pri-
eiros passos no sentido de garantir a confiabilidade das fontes. No início
o século XVIII o crescimento das publicações eruditas pelos beneditinos
Drnecia as bases para o posterior desenvolvimento da historiografia no
século XIX. A valorização dos documentos originais, cartas, ordenações
reais, e a publicação de instrumentos de análise como glossários e dicioná­
rios cada vez mais consolidavam a operação historiográfica como trabalho

4 Estudos históricos sobre a queda do império romano, o nascimento e o progresso do cristianismo e a


invasão dos bárbaros (1831). As obras de Chateaubriand foram em diversos momentos reunidas
em edição coletiva. A edição de 1839, por Firmin Didot, em cinco volumes, foi a primeira em
que seus escritos diversos e esparsos foram classificados num sistema bibliográfico composto de
partes completas e independentes entre si. A primeira delas reuniu as Obras históricas: Études
historiques, Essai historique sur les révolutions anciennes... e Histoire de France. A segunda parte
compreende suas Obras políticas: Mélanges historiques, Mélanges politiques, Opinions et discours,
Polémique. A terceira parte, Obras morais, é composta de Le geme du christianisme e Les mar-
tyrs. A quarta parte se compõe de viagens: Itinéraire de Paris à Jérusalém, Voyages en Italie, en
Amérique etc., Les natchez, Atála, Le dernier des abencerages. Na quinta parte, Obras literárias,
aparecem Essai sur Ia littérature anglaise, Le paradis perdu, Mélanges littéraires, Poésies. As obras
foram traduzidas em grego, inglês, alemão, russo, italiano e espanhol, e amplamente difundidas
nas bibliotecas europeias.
5 Analyse raisonnêe de Vhistoire de France.
Chateaubriand 119

de exegese dos textos que deveriam ser submetidos ao crivo da dúvida para
certificação de seu valor como testemunhos.6
Não pode passar desapercebida a atração sentida por Chateaubriand
pela escola histórica alemã, da qual possuía conhecimento precário. Além
dos avanços em erudição e método, encontrou ali oposição à Revolução
Francesa e aos filósofos que a legitimavam. Além de se ocupar mais da
experiência vivida dos homens do que da filosofia para ajudar a compre­
ensão da história, essa historiografia buscava no passado uma justificativa
para a permanência de instituições feudais ainda existentes à época. Com
ela Chateaubriand compartilhou a paixão pelo passado medieval e o gran­
de interesse pelas narrativas populares, pelas lendas, pela poesia antiga e
pelas gestas escandinavas como fontes históricas, alargando o horizonte do
historiador para além da história política estritamente considerada. Trata­
va-se de uma adequação da base empírica à narrativa poética, centrada na
intuição e na imaginação, que caracterizou os historiadores românticos,
também produtores de romances históricos.
Em Chateaubriand a associação entre escrita da história e a vida pú­
blica assumiu os contornos mais profundos e dramáticos, com repercussão
significativa em seu trabalho. Sua vida e sua obra retratam os tempos vio­
lentos da revolução: trauma e fragmentação social, assassinatos, oportunis­
mo e terror. Amante da aventura, de espírito romântico, leitor de novelas
de cavalaria, defensor da monarquia liberal, seus escritos revelam uma vi­
são de mundo romântica, religiosa e aristocrática da França que oscilou
entre restauração e república até a guerra franco-prussiana (1870/1871).7

PREFÁCIO (ETUDES HISTORIQUES)8

Heródoto começou sua história declarando os motivos que o fizeram


empreendê-la; Tácito explicou as razões que lhe colocaram a pena na mão.

6 Bourdé e Martin, 1983.


7 Alcaftiz, 2006.
8 Chateaubriand, 1843.
120 Lições de história

Sem ter os talentos desses historiadores, posso imitar seu exemplo; posso
dizer, como Heródoto, que escrevo para a glória de minha pátria, e porque
vi os males dos homens. Mais livre que Tácito, não amo nem temo os tira­
nos. Agora isolado sobre a Terra, não esperando nada de meus trabalhos,
encontro-me na posição mais favorável para a independência do escritor,
pois já convivo com as gerações das quais evoquei as sombras.
As sociedades antigas perecem; de suas ruínas saem sociedades no­
vas: leis, costumes, usos, hábitos, opiniões, princípios mesmo, tudo mu­
dou. Uma grande revolução aconteceu, uma grande revolução se prepara:
a França deve recompor seus anais, para colocá-los em contato com os
progressos da inteligência. Nessa necessidade de uma reconstrução sobre
um novo plano, onde buscar materiais? Quais foram os trabalhos exe­
cutados antes do nosso tempo? Que existe a louvar ou a lamentar nos
escritores da antiga escola histórica? Deve a nova escola ser inteiramente
seguida, quais são os autores mais notáveis dessa escola? Seria tudo ver­
dadeiro nas teorias religiosas, filosóficas e políticas do momento? Eis o
que me proponho examinar neste prefácio. Eu trabalhava havia anos em
uma história da França, da qual estes estudos não representam senão a
exposição, as visões gerais e os destroços. Falta minha vida à minha obra:
no caminho onde o tempo me retém, eu aponto com a mão aos jovens
viajantes as pedras que eu havia acumulado, o solo e o lugar onde eu
queria construir meu edifício.
Os antigos haviam concebido a história de modo muito diferente do
nosso; eles a consideravam um simples ensinamento, e, sob esse aspecto,
Aristóteles a colocou num patamar inferior ao da poesia: eles concediam
pouca importância à verdade material; e isso lhes bastava, ainda que hou­
vesse nela um fato verdadeiro ou falso a relatar, que esse fato oferecesse
um grande espetáculo ou uma lição de moral e de política. Liberados
dessas imensas leituras sob as quais a imaginação e a memória são igual­
mente esmagadas, eles tinham poucos documentos para consultar; suas
citações são quase nada, e quando eles remetem a uma autoridade, é qua­
se sempre sem indicação precisa. Fleródoto contentou-se em dizer em seu
primeiro livro, Clio, que escrevia conforme os historiadores da Pérsia e da
Fenícia; em seu segundo livro, Euterpe, ele falava conforme os sacerdotes
egípcios que lhe leram seus anais. Ele reproduziu um verso da Ilíada, uma
passagem da Odisseia, um fragmento de Esquilo: não fizeram falta a He-
Chateaubriand 121

ródoto outras autoridades, nem aos seus ouvintes nos Jogos Olímpicos.
Tucídides não fez uma única citação: mencionou somente alguns cantos
populares.
Tito Lívio nunca se apoiou sobre um texto: autores, os historiadores
relatam; é sua maneira de proceder. Em sua terceira Década, ele lembrou os
dizeres de Cintius Alimentus, prisioneiro de Aníbal, e de Coelius e Valerius
sobre a guerra púnica.
Em Tácito as autoridades são menos raras, ainda que bem pouco nu­
merosas; não se podem contar senão 13 referências: são elas, no primeiro
livro dos Annales, Plínio, historiador das guerras da Germânia; no quarto
livro, as Memórias de Agripina, mãe de Nero, obra cuja perda nunca será
suficientemente lamentada; no terceiro livro, Fábio Rústico, o historiador
Plínio e Cluvius; no 14c livro, Cluvius; no 15c, Plínio. No terceiro livro de
Histórias, Tácito mencionou Massala e Plínio, e remeteu às Memórias que
tinha em mãos; no quarto livro, ele se referiu aos sacerdotes egípcios; nos
Costumes dos germânicos, escreveu um verso de Virgílio modificado. Com
frequência ele dizia: “os historiadores destes tempos relatam”: temporum
illorum scriptores prodiderint; ele explicou seu sistema declarando que não
mencionava os nomes dos autores a não ser quando divergiam entre si.
Assim, duas citações vagas em Heródoto, nenhuma em Tucídides, duas
ou três em Tito Lívio e 13 em Tácito formam todo o corpo de autoridades
desses historiadores. Alguns biógrafos como Suetônio e Plutarco, sobre­
tudo, leram um pouco mais das Memórias; mas as numerosas citações são
deixadas aos compiladores, como Plínio, o naturalista, Ateneu, Macróbio e
São Clemente de Alexandria, em seus Stromateis.
Os analistas da Antiguidade não faziam entrar em seus relatos o qua­
dro dos diferentes ramos da administração; as ciências, as artes, a educação
pública eram rejeitadas do domínio da história; Clio caminhava agilmente,
desembaraçada da bagagem pesada que arrasta hoje atrás de si. Com fre­
quência o historiador era apenas um viajante relatando o que havia visto.
Agora a história é uma enciclopédia; é preciso tudo incluir nela, da astro­
nomia à química; da arte das finanças à da manufatura; do conhecimento
do pintor, do escultor e do arquiteto até a ciência do economista; do estudo
das leis eclesiásticas, civis e criminais até o das leis políticas. O historiador
moderno abandona-se ao relato de uma cena de costumes e de paixões, a
122
Lições de história

gabela9 sucede o belo ambiente; um outro imposto exige; a guerra , a na-


vegação, o comércio acorrem. Como as armas eram feitas então? De onde
se tirava a madeira de construção? Quanto valia a libra de pimenta? Tudo
estará perdido se o autor não observar que o ano começava na Páscoa e ele
o datou do lc de janeiro. Como pretender que sua palavra seja confiável,
se ele se enganou sobre a página de uma citação, ou se ele referiu mal a
edição? A sociedade permanece desconhecida, se forem ignorados a cor
dos calções do rei e o preço do marco de prata. Esse historiador deve saber
não apenas o que se passou em sua pátria, mas também nas terras vizinhas;
e entre esses detalhes é preciso que uma ideia filosófica esteja presente em
seu pensamento e lhe sirva de guia. Eis os inconvenientes da história mo­
dema: eles são tais que nos impediram talvez de ter um dia historiadores
como Tucídides, Tito Lívio e Tácito; mas não se pode evitar esses inconve­
nientes, é preciso submeter-se a eles.
O escritor chamado a pintar um dia um grande quadro de nossa história
não se limitará à procura das fontes de onde saíram imediatamente os francos
e os franceses; ele estudará os primeiros séculos das sociedades vizinhas da
França, porque os jovens povos de diversos lugares, como as crianças de di­
versos países, possuem entre si a semelhança comum que lhes dá a natureza,
e porque esses povos, nascidos de um pequeno número de famílias aliadas,
conservam em sua adolescência a marca dos cuidados matemos.
Quatro espécies de documentos contêm a história inteira das nações
na ordem sucessiva de sua idade: as poesias, as leis, as crónicas de fatos
gerais, as memórias que pintam os costumes e a vida privada. Primeiro os
homens cantam; depois escrevem.
Nós não temos mais os bardits10 que Carlos Magno fez recolher; não
nos resta senão uma ode em honra da vitória que Luís, filho de Luís, o
Gago, alcançou em 881 sobre os normandos; mas o monge de Saint-Gall e
Ermold, o Negro, escreveram inteiramente ao gosto da canção germânica.
A mitologia e as poesias escandinavas; os edda11 e as sagas; os cantos
dos scaldes, que Snorron, Saxão, o Gramático, Adam de Bremen e as crô-

9 Armazém de venda de sal. (N. do T.)


10 Canto dos bardos; canto guerreiro. (N. do T.)
11 Coleção de poemas escritos em norueguês antigo e recolhidos no manuscrito islandês Codex
Regius. Constitui a principal fonte sobre a mitologia nórdica e os heróis lendários germânicos.
(N.doT.)
Chateaubriand 123

nicas anglo-saxônicas nos conservaram; os nibelungos, ainda que de data


mais recente, suprem nossas perdas: veremos o uso que faço deles procu­
rando traçar a história dos costumes bárbaros. Quanto ao que concerne às
línguas, os evangelhos godos de Ulfilas são um tesouro.
Para o sul da França, Raynouard reabilitou a antiga língua românica
e, publicando as poesias escritas ou cantadas nessa língua, prestou um im­
portante serviço.
Fauriel, a quem devemos a bela tradução de cantos populares da Gré­
cia, deve mostrar, na formação da língua românica, os traços de línguas
antigas da Gália ainda faladas hoje: uma na Escócia, outra no país de Gales
e na Baixa Bretanha, a terceira entre os bascos. Ele anotou um poema sobre
as guerras dos árabes da Espanha e dos cristãos da Occitânia, cujo herói
é um príncipe aquitano chamado Walther: não seria ele Waiffre? Muitos
cantos rememoram as rebeliões de diversos chefes do sul da França contra
os monarcas carolíngios: isto serve cada vez mais para provar que as hos­
tilidades de Carlos Martel, Pepino e Carlos Magno, contra os príncipes da
Aquitânia, tiveram por causa uma inimizade de raça, os descendentes dos
merovíngios reinando do outro lado do Loire. Fizeram-nos esperar que
Fauriel se ocupasse de uma história dos bárbaros nas províncias meridio­
nais da França: o objeto seria digno de seu raro saber e de seus talentos.
Não é preciso se ater às leis sálica, ripuária e burgúndia para o estu­
do das leis bárbaras; devem-se considerar como capítulos de um mesmo
código nacional as leis lombardas, alemãs, bávaras, russas (estas não senão
o direito sueco), anglo-saxãs e gálicas; com as últimas pode-se reconstruir
muitas partes do primitivo edifício gaulês. Todas essas leis foram impressas
separadamente ou em diferentes coletâneas dos historiadores da França, da
Itália, da Alemanha e da Inglaterra. [...]
Entretanto, não abusemos, como estamos demasiado inclinados a
fazer, das origens escandinavas, eslavas e tudescas. Parece hoje que toda
nossa história esteja na Alemanha, que não se encontram senão lá nossas
antiguidades e os homens que as conheceram. Os 40 anos de nossa revo-
lução interromperam os estudos na França, enquanto eles continuaram nas
universidades germânicas. Os alemães conquistaram sobre nós uma parte
do tempo que nós havíamos ganhado deles. Mas se, pelo direito, pela filo-
124 Lições de história

logia e pela filosofia, eles nos superam atualmente, eles estão ainda longe
de chegar em história ao ponto em que estávamos quando nossos tumultos
explodiram.
Rendamos justiça aos sábios da Alemanha, mas saibamos que os po­
vos setentrionais são, como povos, muitos séculos mais jovens do que nós;
que nossas cartas remontam muito mais no tempo que as deles; que os
imensos trabalhos dos beneditinos de Saint-Maur e Saint-Vannes começa­
ram bem antes que os trabalhos históricos dos professores de Gottinguer,
lena, Bonn, Dresden, Weimar, Brunswick, Berlim, Viena, Bresgurg etc.; que
os eruditos franceses, superiores pela clareza e precisão aos eruditos de
além-Reno, os ultrapassam ainda pela solidez e universalidade das pes­
quisas. Os alemães não nos superam verdadeiramente senão na codifica­
ção; ainda os grandes legistas, Cujas, Domat, Dumoulin, Pothier, sejam
franceses. Nossos vizinhos têm sobre as origens das nações bárbaras algu­
mas noções particulares, que eles devem às línguas faladas na Dalmácia,
Hungria, Sérvia, Boémia, Polónia etc.; mas um espírito sadio não deve dar
muita importância a tais estudos que terminam por degenerar em uma
metafísica de gramática, que parece tanto mais maravilhosa quanto está
afogada na obscuridade.[...] Falemos do que nos pertence e indiquemos
nossas próprias riquezas. Rendamos de início uma brilhante homenagem
a essa escola dos beneditinos que nada jamais substituirá. Se eu não fosse
agora um estrangeiro no solo que me viu nascer; se eu tivesse o direito de
propor alguma coisa, eu ousaria solicitar o restabelecimento de uma ordem
que tem tantos méritos nas letras. Eu queria ver reviver a congregação de
Saint-Maur e Saint-Vannes na abadia de Saint-Denis, à sombra da igreja de
Dagoberto, junto desses túmulos cujas cinzas foram jogadas ao vento no
momento em que se dispersava a poeira do Trésor des Chartes: não eram
necessárias às crianças12 de uma liberdade sem lei e, consequentemente,
sem mãe senão bibliotecas e sepulcros vazios. [...]
E, no entanto, posto que não somos tocados senão pelos fatos, nós
deveríamos reconhecer que o passado é um fato, um fato que nada pode
destruir, enquanto o futuro, tão caro a nós, não existe. Existem para um
povo milhões de milhões de futuros possíveis. De todos esses futuros um só

12 No original, enjants de la liberté, referência ao verso da Marselhesa. (N. do T.)


Ch ATEAUBRI AND 125

acontecerá, e talvez o menos previsto. Se o passado não é nada, que é o futu­


ro senão uma sombra à beira do Letes, que não aparecerá talvez nunca neste
mundo? Nós vivemos entre um nada e uma quimera [...].

Escritores da história geral e história crítica da França,


antes da revolução

Os julgamentos são muito duros hoje sobre os escritores que traba­


lharam em nossos anais antes da revolução. Suponhamos que nossa histó­
ria geral estivesse para ser composta; que fosse preciso tirá-la de manus­
critos ou mesmo de documentos impressos; que fosse preciso desenrolar a
cronologia, discutir os fatos, estabelecer os reinos; eu sustento que, apesar
de nossa ciência inata e todo nosso saber adquirido, não colocaríamos três í
volumes em pé. Quantos entre nós poderiam decifrar uma linha das cartas
originais, quantos poderiam lê-las, mesmo com a ajuda dos alfabetos, dos
specimen efac-simile inseridos na Re diplomática de Mabillon13 e em outras
obras? Somos muito impacientes de exibir nossos pensamentos; desdenha­
mos demais nossos antecessores para nos conformar com o modesto papel
de leitores de cartulários. Se lêssemos, teríamos menos tempo para escrever, e
que furto feito à posteridade! Qualquer que seja nosso justo orgulho, ousaria
eu suplicar a nossa superioridade que não quebre muito depressa as mule­
tas sobre as quais ela se arrasta de asas dobradas? Quando, com datas bem
corretas, fatos bem exatos, impressos em belo francês num caractere bem
legível, nós compomos à vontade histórias novas, saibamos ser gratos a esses
espíritos obscuros, a esses trabalhos aos quais nos basta costurar os farrapos
de nosso gênio para pasmar o universo maravilhado. [...]
A respeito das liberdades, uma observação análoga se apresenta. Os
historiadores do século XV111 não podiam compreendê-la como nós; não
lhes faltava nem imparcialidade, nem independência, nem coragem. Mas
eles não tinham essas noções gerais das coisas que o tempo e a revolução
desenvolveram. A história faz progressos dos quais são privadas algumas

13 Jean Mabillon (1632-1707), monge beneditino e historiador francês a quem se atribui o


estatuto de fundador da paleografia e da diplomática como auxiliares importantes da pesquisa
histórica, na medida em que pretendia construir instrumentos para discernir os documentos
verdadeiros dos falsos. (N. do T.)
126 Lições de história

outras partes da inteligência letrada. A língua, quando atinge sua matu­


ridade, permanece nesse estado ou se deteriora. Podem-se fazer versos
diferentes dos de Racine, nunca melhores: a poesia tem suas fronteiras
nos limites do idioma em que é escrita e cantada. Mas a história, sem se
corromper, muda de caráter com os tempos, porque se compõe de fatos
adquiridos e verdades encontradas, porque refaz seus julgamentos por
suas experiências, porque, sendo o reflexo dos costumes e das opiniões
do homem, é suscetível do aperfeiçoamento da espécie humana. Do pon­
to de vista físico, a sociedade, com as descobertas modernas, não é mais
a sociedade sem essas descobertas; para a moral, esta sociedade, com as
ideias engrandecidas tais como estão nos dias atuais, não é mais a socie­
dade sem estas ideias: o Nilo em sua nascente não é o Nilo de sua embo­
cadura. Em uma palavra, os historiadores do século XIX nada criaram;
somente têm um mundo novo sob os olhos, e esse mundo novo lhes serve
de escala retificada para mensurar o antigo mundo.
Feita toda justiça aos homens de mérito que trataram de nossa histó­
ria geral antes da revolução, eu diria com a mesma imparcialidade que não
precisamos tomá-los por guias. Não podemos nos dispensar de recorrer
aos originais, pois esses escritores os liam de modo diferente do nosso e
com um outro espírito: eles não procuravam ali as coisas que nós procura­
mos, eles nem sequer as viam; rejeitavam precisamente o que recolhemos.
Não escolhiam, por exemplo, nas obras dos padres da Igreja senão o que
concerne ao dogma e à doutrina do cristianismo: os costumes, os usos, as
ideias não lhes pareciam ter nenhuma importância. Toda uma história nova
está escondida nos escritos dos padres; esses estudos indicarão o caminho
para ela. Não sabemos nada sobre a civilização grega e romana dos sécu­
los V, VI e VII, nem sobre a barbárie dos destruidores do mundo romano,
senão pelos escritores eclesiásticos dessa época.
Sobre nossos próprios monumentos, descobertas da mesma natureza
estão por ser feitas. Antes da revolução, não se interrogavam os manuscri­
tos apenas no tocante ao clero, aos nobres e aos reis. Nós não nos interro­
gamos senão sobre o que diz respeito aos povos e às transformações sociais;
ora, isto ficou sepultado nas cartas.
Os escritores pré-revolucionários da história crítica da França são tão
numerosos que é impossível indicá-los todos: alguns somente devem ser
assinalados como chefes de escola.
CHATEAUBRI AND 127

A Histoire de Vétablissement de la monarchie française dans les Gaulês é


uma obra sólida, com frequência atacada, nunca derrubada, mesmo por
Montesquieu, que aliás sabia poucas coisas sobre os francos. Rouba-se o
abade Dubos sem admitir o pequeno furto: seria mais leal reconhecê-lo.
O mesmo ocorre com o abade de Gourcy: sua pequena Dissertation
sur letat des personnes en France sous la première et la seconde race, coroada
pela Académie des Inscriptions, é de um método, de uma clareza e de um
saber raros. O que se escreve hoje sobre o mesmo tema em parte é furtado
do excelente trabalho de Gourcy: é acertado não refazer um trabalho árduo
tão bem feito, mas seria necessário avisar, para deixar o elogio a quem de
direito. Existem, pois, homens que estão consagrados a servir de monitores
a outros [...].
Desses detalhes resulta que duas escolas históricas se distinguem an­
tes da época da revolução: a escola do século XVIII e a escola do sécu­
lo XIX; uma erudita e religiosa, a outra crítica e filosófica: na primeira,
os beneditinos ajuntavam os fatos, e Bossuet os proclamava na Terra; na
segunda, os enciclopedistas criticavam os fatos, e Voltaire os entregava aos
debates da multidão. A Inglaterra fundou perto de nós sua escola exata,
mais desembaraçada que a nossa dos preconceitos antirreligiosos. Nossa
escola moderna do século XIX pode ser chamada de escola política: ela é
filosófica também, mas de modo diferente que a do século XVIII. Falemos
disso.

Escola histórica moderna da França

A escola moderna se divide em dois sistemas principais: no primeiro,


a história deve ser escrita sem reflexões; deve consistir na simples narrativa
dos eventos, e na pintura dos costumes; deve apresentar um quadro ingé­
nuo, variado, pleno de episódios, deixando cada leitor, segundo a natureza
de seu espírito, livre para tirar as consequências dos princípios e extrair
as verdades gerais das verdades particulares. É o que se chama de história
descritiva, por oposição à história filosófica do século passado.
No segundo sistema, é preciso narrar os fatos gerais, suprimindo neles
uma parte dos detalhes; substituir a história da espécie pela do indivíduo;
permanecer impassível diante do vício e da virtude assim como diante das ca­
tástrofes mais trágicas. É a história fatalista ou o fatalismo aplicado à história.
128 Lições de história

Vou expor minhas dúvidas sobre esses dois sistemas.


A história descritiva, levada a seus últimos limites, não entraria de­
mais na natureza da memória? O pensamento filosófico, empregado com
sobriedade, não seria necessário para dar à história sua gravidade, para
fazê-la pronunciar sentenças que são da alçada de seu último e supremo
tribunal? No grau de civilização a que chegamos, poderia a história da
espécie desaparecer inteiramente da história do indivíduo? Deveriam as ver­
dades eternas, bases da sociedade humana, se perder nos quadros que não
representam senão costumes privados?
Existem no homem dois homens: o homem de seu século e o homem
de todos os séculos: o grande pintor deve acima de tudo se fixar na semelhan­
ça deste último. Talvez hoje se valorizem demais a semelhança, e, pode-se
dizer, a cópia da fisionomia de cada época. É possível que, na história como
nas artes, representemos melhor do que faziam antigamente os costumes,
os interiores, todo o material da sociedade; mas uma figura de Rafael, com o
fundo negligenciado e flagrantes anacronismos, não apagaria as perfeições da
segunda ordem? Quando se representavam os personagens de Racine com
as perucas à moda de Luís XIV, os espectadores não ficavam nem menos
maravilhados nem menos comovidos. Por quê? Porque se via o homem no
lugar de homens. [...]
Eis o que me parece verdadeiro no sistema da história descritiva: a
história nunca é uma obra de filosofia; ela é um quadro; é preciso juntar
à narração a representação do objeto, ou seja, é preciso ao mesmo tempo
desenhar e pintar; é preciso dar aos personagens a linguagem e os senti­
mentos de seu tempo, não olhá-los através de nossas próprias opiniões,
principal causa da alteração dos fatos. Se, tomando por regra aquilo que
acreditamos da liberdade, da igualdade, da religião, de todos os princípios
políticos, aplicamos essa regra à antiga ordem das coisas, nós falseamos a
verdade, exigimos dos homens que vivem nessa ordem coisas das quais
eles nem mesmo tinham ideia. Nada estava tão mal quanto pensávamos; o
padre, o nobre, o burguês, o vassalo possuíam noções do justo e do injusto
diferentes das nossas: era um outro mundo, um mundo sem dúvida menos
próximo dos princípios gerais naturais do que o mundo presente, mas ao
qual não faltavam nem grandeza, nem força, como testemunham seus atos
e sua duração. Não nos apressemos em nos pronunciar muito desdenhosa­
mente sobre o passado: quem sabe se a sociedade desse momento, que nos
CHATEAUBRI AND 129

parecia superior (e que o foi de fato em muitos pontos) à antiga sociedade,


não parecerá a nossos sobrinhos, dentro de dois ou três séculos, aquilo que
nos parece a sociedade de dois ou três séculos anteriores ao nosso? Nos ale­
graríamos no túmulo de sermos julgados pelas gerações futuras com o mes­
mo rigor com que julgamos nossos ancestrais? O que há de bom, de sincero
na história descritiva é que ela narra os tempos tais como eles foram.
O outro sistema histórico moderno, o sistema fatalista, tem, acredito,
inconvenientes bem menos graves, porque ele separa a moral da ação hu­
mana; sob esse aspecto terei daqui a pouco ocasião de combatê-lo, falando
dos escritores de talento que o adotaram. Aqui direi somente que o sistema
que baniu o indivíduo para se ocupar apenas da espécie caiu no excesso
oposto ao sistema da história descritiva. Anular totalmente o indivíduo,
não lhe dar senão a posição de uma cifra, a qual vem numa série de um
número, é contestar-lhe o valor absoluto que ele possui, independentemen­
te de seu valor relativo. Assim como um século influi sobre um homem,
um homem influi sobre um século; e se um homem é o representante das
ideias do tempo, muito mais ainda o tempo é o representante das ideias do
homem.
O segundo sistema da história moderna tem seu lado verdadeiro, tal
como o primeiro. É certo que não se pode hoje omitir a história da espécie;
que há realmente revoluções inevitáveis porque elas não são realizadas nos
espíritos antes de serem realizadas no exterior; que a história da humanida­
de, da sociedade geral, da civilização universal, não deve ser mascarada pela
história da individualidade social, pelos eventos particulares a um século e a
um país. A perfeição seria o manejo dos três sistemas: a história filosófica,
a história particular, a história geral; admitir as reflexões, os quadros, os
grandes resultados da civilização, rejeitando dos três sistemas aquilo que
possuem de exclusivo e de sofístico.
Ademais, se é bom possuir alguns princípios fixados ao tomar da
pena, é, parece-me, uma questão ociosa perguntar como a história deve ser
escrita: cada historiador a escreve segundo seu próprio gênio; um a conta
bem, outro a pinta melhor; este aqui é sentencioso, aquele outro, indife­
rente ou patético, incrédulo ou religioso: toda matéria é boa, desde que
verdadeira. Juntar a gravidade da história ao interesse da memória, ser ao
mesmo tempo Tucídides e Plutarco, Tácito e Suetônio, Bossuet e Froissard,
e assentar os fundamentos de seu trabalho sobre os princípios gerais da
130 Lições de história

escola moderna, que maravilha! Mas e aqueles aos quais o céu não atribuiu
esse conjunto de talentos, dos quais um apenas seria suficiente para a glória
de muitos homens? Cada um escreverá como vê, como sente; não se pode
exigir do historiador senão o conhecimento dos fatos, a imparcialidade do
julgamento e o estilo, se puder.

Escola histórica da Alemanha. Filosofia da história.


A história na Inglaterra e na Itália

Próximos a nós, enquanto fundávamos nossa escola política, a Alema­


nha estabelecia suas novas doutrinas e nos ultrapassava nas altas regiões da
inteligência: ela fazia entrar a filosofia na história, não essa filosofia do sécu­
lo XVI11, que consistia em lavrar sentenças morais ou antirreligiosas, mas essa
filosofia que procura a essência dos seres; que, penetrando o envelope do
mundo sensível, procura se não há ali sob esse envelope alguma coisa mais
real, mais viva, causa dos fenômenos sociais.
Descobrir as leis que regem a espécie humana; tomar por base de
operações as três ou quatro tradições disseminadas entre todos os povos
da Terra; reconstruir a sociedade sobre essas tradições, da mesma manei­
ra que se restaura um monumento a partir de suas ruínas, seguir o desen­
volvimento das ideias e das instituições nessa sociedade; assinalar suas
transformações, indagar à história se não existe na humanidade algum
movimento natural, o qual, manifestando-se em épocas fixas nas posições
dadas, pode fazer predizer o retorno desta ou daquela revolução, como
se anuncia a reaparição dos cometas cujas curvas foram calculadas: esses
são interesses imensos. Que é o homem? De onde vem? Para onde vai?
Que veio fazer aqui? Quais são seus destinos? Os arquivos do mundo
forneceriam respostas a essas questões? Existe em cada origem nacional
uma idade religiosa? Dessa época passa-se a uma época heroica? Dessa
época heroica a uma época social? Dessa época social a uma época pro­
priamente humana? Dessa época humana a uma época filosófica? Existe
um Homero que canta em todos os países, em diferentes línguas, no ber­
ço de todos os povos? A Alemanha se divide sobre tais questões em dois
partidos: o partido filosófico e o partido histórico.
O partido filosófico-histórico, à cabeça do qual se coloca Hegel, pre­
tende que a alma universal se manifesta na humanidade por quatro modos:
Chateaubriand 131

um substantivo, idêntico, imóvel, é encontrado no Oriente; outro indivi­


dual, variado, ativo, encontra-se na Grécia; o terceiro se compõe dos dois
primeiros numa luta perpétua e existiu em Roma; o quarto sai da luta do
terceiro para harmonizar o que estava diverso: existe nas nações de origem
germânica.
Assim o Oriente, a Grécia, Roma, a Germânia oferecem as quatro for­
mas e os quatro princípios históricos da sociedade. Cada grande massa de
povos, colocados nessas categorias geográficas, tira de suas posições diver­
sas a natureza de seu gênio, o caráter de suas leis, o gênero de eventos de
sua vida social.
O partido histórico se atém somente aos fatos e rejeita toda fórmula
filosófica. Niebuhr, seu ilustre chefe, cuja perda recente foi deplorada pelo
mundo letrado, compôs a história romana que precedeu Roma; mas não
reconstruiu seu monumento ciclópico em tomo de uma ideia. Savigny, que
seguiu a história do direito romano desde sua época poética até a época fi­
losófica à qual chegamos, não procura mais o princípio abstrato que parece
ter dado a esse direito uma espécie de eternidade.
A escola filosófico-histórica de nossos vizinhos procede, como se vê,
pela síntese, e a escola puramente histórica, pela análise. Estes são os dois
métodos naturalmente aplicáveis à ideia e à forma. A escola filosófica sus­
tenta que o espírito humano cria os fatos. A escola histórica diz que o
fato coloca em movimento o espírito humano: esta última escola reconhece
ainda um encadeamento providencial na ordem dos eventos. Essas duas
escolas tomam na Alemanha o nome de sistema racional e sistema supra-
natural.
Afinadas com as duas escolas históricas, marcham duas escolas teo­
lógicas que se unem às duas primeiras segundo suas diversas afinidades.
Essas escolas teológicas são cristãs; mas uma faz sair o cristianismo da razão
pura; a outra, da revelação. Nesse país onde tantos altos estudos são leva­
dos tão longe, não ocorre a ninguém que a falta da ideia cristã na sociedade
seja uma prova dos progressos da civilização.!...]
Leopold von Ranke
Julio Bentivoglio

“Como é ambição natural de todo homem deixar atrás de


si algum registro útil de sua existência, eu tenho alimentado por
muito tempo o projeto de devotar minhas energias e minha
capacidade a este trabalho tão importante.”
Ranke, História da Reforma na Alemanha, 1847
“Parece-me risível [...] dizerem que não me interessam as questões
filosóficas ou religiosas. Foram justamente essas questões, e só elas, que me
encaminharam à história.”
Ranke, Carta a Heinrich Ritter, 1830

Franz Leopold von Ranke nasceu, em 21 de dezembro de 1795, em Wiehe


(atual Unstrut), na Turíngia, e morreu em 23 de maio de 1886 em Berlim.
Casou-se em 1843 com Helena Clarissa Graves (1808-1871) quando con­
tava 48 anos e já era renomado historiador. Iniciou seus estudos no ginásio
de Schulpforta1 — onde também estudou Fichte (1762-1814) —, man­
tendo por toda a vida suas convicções religiosas em meio a uma família de
pastores luteranos e nutrindo desde a infância grande afeição pelo estudo
das letras clássicas.
Em 1814 entrou para a Universidade de Leipzig, onde estudou teo­
logia e filologia. Apreciava o estudo de autores antigos, tendo como seus
prediletos Tucídides (460-400 a.C.), Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.) e Dionísio
de Halicarnasso (54 a.C.-8 d.C.).2 Entre seus contemporâneos, apreciava
o pensamento de Barthold Georg Niebuhr (1776-1831), Immanuel Kant
(1724-1804), Joahnn Gottlieb Fichte (1762-1814), Friedrich Schelling
(1775-1854) e Friedrich Schlegel (1772-1829). Tais simpatias dizem muito
acerca da formação e das convicções teóricas de Ranke. Em 1817, iniciou

1 Famosa escola criada no século XV, onde lecionou, por exemplo, Friedrich W. Nietzsche entre
1858 e 1864.
2 Segundo Gay (1990:71), “foi a filologia clássica, e não a história, que atraiu Ranke .
134 Lições de história

sua carreira como professor de letras clássicas no Friedrichs Gymnasium,


de Frankfurt. Ali despertaria seu interesse pelo passado e pela história.
Depois de muitos estudos e várias visitas a arquivos, redigiu sua pri­
meira obra, publicada em 1825, Geschichte der romanischen und germanis-
chen Vôlker von 1494 bis 1514 (História dos povos latinos e germânicos de 1494
a 1514), na qual demonstrou sua capacidade de investigação histórica,
usando uma variedade de fontes que incluíam memórias, diários, cartas
oessoais e formais, documentos governamentais e diplomáticos, testemu-
hos oculares.3 De maneira semelhante a Niebuhr e Johann Gustav Droy-
m (1808-1884), Ranke apoiou-se na crítica documental desenvolvida
por Friedrich A. Wolf (1759-1824) e pelo orientador de Droysen, August
Bõckh (1785-1867), e na hermenêutica romântica de Friedrich Schleier-
macher (1768-1834).4 Estava aí a base do método histórico que se consti­
tuiria a partir de então.5 Esse livro, que o alçou à carreira acadêmica, trazia
em sua introdução a tão incompreendida frase: “a história escolheu para si
o cargo de revelar o passado e instruir o futuro para o benefício das gera­
ções futuras. Para mostrar aos altos oficiais o que o presente trabalho não
pressupõe: ele busca apenas mostrar o que realmente aconteceu ’.6 A despeito
de interpretações apressadas de sua obra, Ranke jamais se limitou a produ­
zir uma história factual, meramente política ou que apregoasse que os fatos
deveriam falar por si mesmos;7 tampouco afirmou que o historiador pode­
ria anular sua subjetividade, como se verá em seu texto, mais adiante.
Recém-ingresso na Universidade de Berlim, em 1825, nomeado como
Ausserordentlicher Professor, Ranke colocou-se ao lado de seu amigo Frie­
drich Cari von Savigny (1779-1861) em oposição ao pensamento histórico
de Friedrich W Hegel (1770-1831). Embora não discordasse da existência
de uma história universal e de caráter divino, Ranke preferia valorizar o

3 Schulin, 1966:584.
4 Iggers, 1988:65.
5 Gadamer (2003:271) indica, contudo, que o caminho seguido por Ranke se inspira, mas não
se fundamenta na hermenêutica de Schleiermacher. Para ele a escola histórica buscou apoio na
“teoria romântica da individualidade”; embora os “historicistas” tomem a realidade histórica
como um texto a ser compreendido, eles procuram compreender a totalidade dos nexos da
história da humanidade, inspirando-se em Herder e Chladenius.
6 A tão citada frase “wie es eigentlich gewescnn.
7 Para muitos, como Fontana (2004:225), “a frase foi tirada do contexto injustificadamente e
interpretada como uma declaração metodológica”.
Leopold von Ranke 135

aspecto humano e singular na história, recusando-se a aceitar que ela fosse


apenas a realização de ideias. O adversário nessa disputa era Heinrich Leo
(1799-1878), e o centro da discórdia residia, sobretudo, na divergência
em torno do pensamento político e da figura histórica de Maquiavel.8 Em
Berlim, despertou-se a insaciável curiosidade arquivlstica de Ranke,9 que se
via como um Colombo da história.10 O meio universitário franqueou-lhe ar­
quivos. Passou a dedicar-se ao estudo e à pesquisa de fontes primárias — não
somente em território prussiano — e a desdenhar daqueles historiadores
que ainda se valiam de memórias, anais ou obras bibliográficas já existentes
para produzir seus trabalhos. A Universidade de Berlim, criada em 1810,
expressava o espírito da Bildung fundido ao de Wissenchaft.11 Ao contrário
das universidades antigas, que priorizavam a instrução, na futura Humboldt
Universitãt prionzava-se a pesquisa como um dos pilares para a formação.12
Em 1825 viajou para Suíça e Itália, retornando em 1827. Em 1831,
a pedido do governo prussiano fundou a revista Historisch-Politische Zeits-
chrift.13 Nela combateu o liberalismo e defendeu um pensamento monár­
quico e conservador até meados de 1836. Para Laue, os escritos dessa épo­
ca expressam seu pensamento político, que vê de um lado a sociedade e de
outro os experts em governar.14 Outro aspecto decisivo revela a leitura que
tinha, em particular, da experiência política francesa. Ranke via a Revolu­
ção Francesa como uma expressão daquela nação, e seu programa é claro e
direto: “organizemo-nos nós próprios, sem imitarmos nossos vizinhos [...]
precisamos empreender uma tarefa que nos cabe, uma tarefa bem alemã.
Temos que constituir um verdadeiro Estado alemão, que responda ao perfil

8 Iggers, 1988:66-69.
9 A este respeito ver Baur (1998).
10 Laue, 1950:34.
11 Bildung significa formação e Wissenchaft, ciência. Na Alemanha do século XIX, ambas são a
expressão máxima do espírito que animava as artes, a cultura e o pensamento. Pressupunham
a formação plena do homem e valorizavam a pesquisa e a cultura como instrumentos decisivos
para isto.Ver a respeito Gilbert (1990).
12 Iggers, 1997:24.
13 Sob a iniciativa do conde von Bernstorff, ministro do Exterior, que pretendia, sobretudo,
defender a burocracia prussiana das críticas de liberais e de partidários da esquerda. Ver Iggers
(1988:70).
14 Laue, 1950.
136 Lições de história

de nossa gente”.15 O fato é que Ranke acompanhou sem entusiasmo a po­


lítica de Otto von Bismarck. Mesmo saudando-o como um dos fundadores
do império alemão, em 1879, o fazia somente porque aquele líder havia
defendido a Europa dos males da revolução.16
Entre 1834 e 1836, Ranke redigiu seu Die rõmischen Pàpiste, ihre kirche
und ihr Staat im sechzehnten und siebzehnten Jahrhundert (História dos papas,
sua Igreja e Estado no século XVI e XVII). A despeito de o Vaticano ter proi­
bido Ranke de consultar seus arquivos em Roma, ele se valeu das corres­
pondências diplomáticas privadas feitas entre Veneza e o papado para seu
rabalho. Nesse livro, formulou o conceito de contrarreforma, e sua recep-
;ão provocou forte polêmica com a Igreja Católica e também com os pro­
testantes; para aquela, Ranke era um crítico mordaz, para estes, um crítico
muito brando do catolicismo. Essa obra complementou-se com Deutsche
Geschichte im Zeitalter der Reformation (História da Reforma na Alemanha),
escrito entre 1845 e 1847. Novamente Ranke demonstrou sua incrível ca­
pacidade de pesquisa ao examinar, em menos de dois anos, os 96 volumes
da Dieta Imperial17 em Frankfurt para explicar a Reforma religiosa alemã,
revelando o elo que havia entre as disputas políticas e religiosas.
Em 1841, Ranke tornou-se historiógrafo real da corte prussiana.
Em 1849, publicou Neun Bucher preussicher Geschichte (traduzido para
o inglês como Memoirs of the House of Brandenburg and history of Prussia,
during the Seventeenth and Eighteenth Centuries), onde examinou o Hohen-
zollern16 da Idade Média até Frederico, o Grande. Mas nessa obra não
há, como nos demais historiadores da chamada escola histórica alemã
— Droysen, Maximilian Duncker (1811-1886) ou Heinrich von Sybel
(1817-1895) —, nenhuma apologia ao Estado prussiano, nem naciona­
lismo exacerbado. Nela a Prussia não é, em momento algum, apresentada
como uma grande potência do presente e do futuro, mas apenas como
um país como outro qualquer.

15 Apud Guilland (2001:64).


16 Iggers, 1988:72.
17 Reichstag, termo que significa Dieta Imperial, é a instituição que representa o parlamento ale­
mão, remontando a Carlos Magno e ao Sacro Império Romano-Germânico no século IX.
18 Dinastia real formada na região de Brandenburgo a partir de 1415, depois sob o ducado da
Prussia a partir de 1525, originária de condes da Suábia, que governou a Prussia até o fim da
I Guerra Mundial, da qual fazia parte Frederico II.
Leopold von Ranke 137

Os seminários realizados para o futuro rei Maximiliano 11 da Baviera


em 1854 são índices preciosos a respeito do método histórico em Ranke.
Ali, como em sua preleção Sobre as afinidades e diferenças entre história e polí­
tica, desenvolveu sua “exposição mais sistemática e coerente dos princípios
historicistas na historiografia do século XIX”.19 Em um deles, professou
seu historicismo de cunho religioso, ao dizer que “cada época é imediata
a Deus” (jede Epoche ist unmittelbar zu Gott), deu ênfase às singularidades
e recusou qualquer tipo de abordagem teleológica na qual um período
provocaria o período subsequente. Assim, a Idade Média não poderia ser
vista como uma época inferior ao Renascimento, tampouco este um mero
desenvolvimento daquela.
Após sua aposentadoria, em 1871, continuou a escrever sobre uma
variedade de assuntos e, a partir de 1880, iniciou um ambicioso trabalho
em seis volumes sobre a história universal, o qual começou com o Egito anti­
go e com os hebreus. Até seu falecimento, em Berlim, no ano de 1886, havia
alcançado apenas o século XII. Subsequentemente, seus assistentes e orien-
tandos utilizaram suas notas e rascunhos para expandir a série até 1453.
Em 1865 Ranke recebeu o título de barão (Freiherr) e em 1882 se tomou
membro do Conselho Prussiano. Em 1884 foi escolhido como membro de
honra da American Historical Association, o que indica sua larga aceitação e
posterior influência nos países anglo-saxões.20
Esses breves apontamentos biográficos talvez não façam justiça àquele
que, para muitos, é considerado o maior historiador do século XIX.21 Leo­
pold von Ranke foi consagrado em vida como um dos fundadores da ciên­
cia histórica moderna, eclipsando contemporâneos talentosos como Droy-
sen ou o ganhador do prémio Nobel Theodor Mommsen (1817-1903). In­
fluenciou toda uma geração de historiadores alemães, ingleses e franceses.
Lamentável é ver que ainda hoje paira uma incompreensão a respeito de
sua obra —já várias vezes refutada —, onde se demonstra que Ranke não
era nem nunca foi um historiador positivista.22 Esse mal-entendido procu-

19 Iggers, 1988:70.
20 Gildherhus, 2007:47; Iggers, 1962.
21 Vierhaus, 1987.
22 Não foram poucos a desmitificar o equívoco: Iggers (1962); Braw (2007); Holanda (1979);
Vierhaus (1987).
138 Lições de história

ra reduzi-lo à visão caricata da tão incompreendida máxima wie es eigentlich


gewesen. Grosso modo, o fragmento refere-se ao fato de que o historiador
não deve louvar nem julgar. Um dos mais influentes teóricos do século XX,
Robin G. Collingwood (1889-1943), afirma que Ranke empregava a crítica
histórica como cerne de seu trabalho, mas não realizava uma segunda etapa
cara à filosofia positiva, ou seja, localizar uma lei geral de desenvolvimento
histórico.23 Para G. P. Gooch essa incompreensão teve um efeito benéfico:
separou, em alguma medida, o estudo do passado das paixões políticas do
presente.24 Assim, o que pode parecer ingenuidade epistemológica era, na
verdade, uma postura desafiadora para os demais historiadores alemães,
da escola histórica ou da esquerda, que desejavam uma história mais ou
menos comprometida com o poder. Marrou acertadamente observou que
a frase não significava a defesa, por parte de Ranke, da promoção de uma
ressurreição integral do passado.25 De qualquer modo, Hans-Georg Gada-
mer defende que esse autoapagamento proposto por Ranke não excluía,
em absoluto, a participação no real.26 Ou seja, o historiador pode ter cons­
ciência de seus pré-julgamentos e da interferência de sua subjetividade em
suas escolhas e ações, tanto em seu trabalho quanto na vida pública, mas
seu engajamento, ou não, é uma questão de opção. Ranke preferiu a discri­
ção e o recolhimento, dedicando-se, sobretudo, à pesquisa.
Ranke é herdeiro intelectual de Wilhelm von Humboldt (1767-1835)
e de Barthold Niebuhr, a seu modo propagadores do recurso imperativo
das fontes primárias27 em pesquisa histórica, do uso da crítica histórica
documental, bem como da defesa de uma escrita da história compromis­
sada com a verdade dos fatos, objetiva e apartidária. Isso não significou,
em nenhum momento, a recusa da imaginação em Ranke, a presença da
subjetividade ou a rejeição de uma poética da história.28 Afinal, ele via com

23 Para Collingwood (1989:133), os historiadores do século XIX teriam aceitado a primeira eta­
pa do método positivo, a recompilação de fatos, mas não a segunda, o descobrimento de leis.
24 Gooch, 1935:97.
25 Marrou [s.d.]:37.
26 Para Gadamer (2003:287), “uma vez que todos os fenômenos históricos são manifestações do
todo da vida, participar deles é participar da vida”.
27 Para Gay (1990:75), esse é um de seus méritos: com seus esforços, não deixou dúvidas quan-
to ao fato de que os documentos detêm a chave da verdade histórica, embora necessitem da
intervenção por parte do historiador que os acolhe, seleciona e analisa.
28 Ver o brilhante ensaio de Rusen (1990).
Leopold von Ranke 139

restrição o preenchimento de lacunas, mas não o recurso à imaginação.29


Valorizava, igualmente, a narrativa do historiador.30 Para ele, a história era,
ao mesmo tempo, uma ciência e uma arte, e o historiador não deveria in­
culcar nela suas posições políticas.31 Nesse sentido, afastava-se radicalmen­
te de seus contemporâneos, como Droysen, e de seus próprios discípulos
Sybel, Duncker e Heinrich von Treitschke (1834-1896). Evidentemente,
Ranke sabia da impossibilidade de uma escrita neutra, mas preconizava a
recusa a tomar-se partido.32
Para Ranke, a meta da história seria conhecer as tendências dominan­
tes de uma época; entretanto, negava a filosofia da história de Hegel por
não ver nela nada de humano, apenas a ideia divina desprovida de qual­
quer traço concreto. Apreciava ainda os romances de Walter Scott e o his­
toricismo de Herder (1744-1803). E defendia o estudo dos nexos, dos elos
que articulam quaisquer constelações de eventos.33 Por fim, não se pode
descuidar do conteúdo religioso de seus escritos, mencionado por inúme­
ros intérpretes há mais de um século. Para Ranke, dar vida ao passado seria
uma forma de encontrar-se com Deus;34 porém, se a história expressa a
obra divina, não há nele o fervor do pregador. Sua história conferia ênfase
à política, sobretudo à política internacional (Aussenpolitik). E, embora não
tenha sido o primeiro, pode-se atribuir a Ranke a institucionalização do
seminário como moderno meio de ensino universitário, disseminado pelas
universidades alemãs a partir de seus cursos.35

29 “Em Ranke, a mão modeladora do artista literário nunca se distancia do labor construtivo do
historiador” (Gay, 1990:63).
30 Para Guilland (2001:13), Ranke conferia extrema importância à forma e escrevia com viva­
cidade e graça.
31 Conta-se a anedota de que, num congresso, um colega teria dito a Ranke que, como ele,
era historiador e cristão; ao que retrucou Ranke: “sou historiador, não apologeta” (Holanda,
1979:13).
32 A este respeito ver, sobretudo, Vierhaus (1990:64-65).
33 Não resta dúvida quanto à influência da apreensão organicista, relacional do processo históri­
co, tal como proposta por Herder. Maior discussão a respeito em Baur (1998).
34 “Sobre tudo flutua a ordem divina das coisas, difícil por certo de demonstrar, mas que sempre
se pode intuir. Dentro da ordem divina, assim como na sucessão dos tempos, os indivíduos
importantes ocupam seu lugar; assim é como os há de conceber o historiador” (apud Fontana,
2004:227).
35 Nestes seminários notabilizou seu método de estudo crítico das fontes (Quellenkritik), ao
formar duas gerações de historiadores alemães. Ver Stem (1973:54).
140 Lições de história

Para Ranke, um historiador precisa de três qualidades cardeais: bom


senso, coragem e honestidade. Figura ao lado de Droysen como um aluno
ideal de Humboldt, como indicou Georg Iggers, pois tem posição seme­
lhante às do mestre em relação a temas como a natureza do pensamento
histórico, o Estado, a cultura e a dificuldade de se encontrarem leis univer­
sais para o estudo do passado. E cada um, a seu modo, enfatiza a necessi­
dade do realismo histórico e do senso de realidade.36 Tinha Herder como
referência-chave, pois este pensador “forneceu um modelo para um modo
de escrever a história que pode ser desprendido de sua base teórica formal
e julgado em seus próprios termos, como um protocolo metodológico que
pode ser partilhado por românticos, realistas e historicistas indistintamen­
te”.37 Sua compreensão da história como uma ciência rigorosa expressa
uma tensão entre uma demanda explícita por objetividade científica e a
rejeição aos julgamentos de valor e especulações metafísicas, bem como a
intromissão de questões políticas ou filosóficas na pesquisa.38 Igualmente
rejeitava “toda sorte de positivismo que reivindicasse o estabelecimento
dos fatos como a tarefa essencial do trabalho do historiador”.39
Amigo de Frederico Guilherme da Prússia e de Maximiliano da Bavie­
ra, Ranke publicou a partir de 1865 suas obras completas, atualmente com
quase 60 volumes, e pôde ver seus discípulos ocuparem cadeiras de his­
tória nas principais universidades alemãs. Combateu a revolução, o Ilumi-
nismo, o romantismo e o hegelianismo, E embora rejeitasse a ideia de pro­
gresso, não deixava de compartilhar certo otimismo em sua época, o que
não o impedia de duvidar que qualquer evento histórico pudesse ter uma
validade universal, pois, para ele, cada criação histórica era um produto
genuíno do espírito de uma nação.40 Para Ranke, a realidade não se esgo­
tava nos eventos históricos, e a imparcialidade significava reconhecer sua
posição diante das forças ativas em estudo.41 Aproximar-se de uma época
seria uma percepção espiritual, e não somente uma constatação construída
a partir dos dados encontrados na pesquisa.

36 Gilbert, 1990.
37 White, 1995:91.
38 Iggers, 1988:25.
39 Ibid.
40 Para uma síntese de suas principais concepções, ver Braw (2007).
41 Iggers, 1988:77.
Leopold von Ranke 141

Principais obras de Ranke:

♦ Geschichte der romanischen und germanischen Vòlker von 1494 bis 1514
(1824). 2v.;
♦ Die serbische Revolution. Aus serbischen Papieren und Mittheilungen
(1829);
♦ Die ròmischen Pàpste in den letzten vier Jahrhunderten (1834-1836). 2v.;
♦ Deutsche Geschichte im Zeitalter der Rejormation (1839-1847). 2v.;
♦ Neun Bucher preussischer Geschichte (1847-1848). 3v.;
*4 Franzòsische Geschichte, vornehmlich im sechzehnten und siebzehnten Jahr-
hundert (1852-1861). 5v.;
4- Englische Geschichte, vornehmlich im sechzehnten und siebzehnten Jahrhun-
dert (1859-1869). 3v.;
♦ Die deutschen Màchte und der Furstenbund (1871-1872);
4- Ursprung und Beginn der Revolutionskriege 1791 und 1792 (1875);
♦ Hardenberg und die Geschichte des preussischen Staates von 1793 bis 1813
(1877);
4- Serbien und die Turkei im neunzehnten Jahrhundert (1879);
4- Weltgeschichte — Die Ròmische Republik und ihre Weltherrschast. (1886) 2v.

SOBRE O CARÁTER DA CIÊNCIA HISTÓRICA42

A história distingue-se de todas as outras ciências por ser também


uma arte.43 A história é uma ciência ao coletar, buscar, investigar; ela é uma
arte porque recria e retrata aquilo que encontrou e reconheceu. Outras
ciências satisfazem-se simplesmente registrando o que foi encontrado; a
história requer a habilidade para recriar.
Como ciência, a história é parecida com a filosofia; e como arte, com
a poesia. A diferença é que, de acordo com suas naturezas, filosofia e poesia

42 O texto “Idee der Universalhistorie” foi pela primeira vez editado por Eberhard Kessel e pu­
blicado na Historísche Zeitschrift, CLXXVlll em 1954. A versão aqui traduzida foi publicada em
Iggers e Moltke (1973:33-46).
43 Não há dúvida quanto à influência decisiva de Humboldt nesta sentença (ver Humboldt,
2001). Compartilha dessa opinião Gervinus (2010). (N. do T.)
142 Lições de história

lidam com o reino do ideal, enquanto a história deve ater-se à realidade.44


Se alguém designasse à filosofia a tarefa de penetrar a imagem que apareceu
no tempo, isso implicaria descobrir a causalidade e conceituar o âmago da
existência: então, a filosofia da história não seria também história? Se a fi­
losofia da história pudesse atribuir à poesia a tarefa de reproduzir o vivido,
seria então história.
A história distingue-se da poesia e da filosofia não em consideração
a sua capacidade, mas pelo objeto abordado, que lhe impõe condições e
a sujeita à empiria.45 A história traz ambas juntas em um terceiro elemen­
to peculiar somente para si. Ela não é nem uma nem outra, porém exige
uma união das forças intelectuais ativas em ambas, poesia e filosofia, sob a
condição de que estas últimas sejam dirigidas através de sua relação com o
ideal em direção ao real.
Existem nações que não têm a habilidade de controlar esse elemento.
A índia teve filosofia, mas não teve história.
É estranho como entre os gregos a história desenvolveu-se quando
se emancipou da poesia. E os gregos tiveram uma teoria da história que,
conquanto marcadamente desigual à sua prática, era, não obstante, signi­
ficativa. Alguns destacaram mais o caráter científico, outros, o artístico,
mas ninguém negava a necessidade de unir os dois. Suas teorias movem-se
entre esses elementos e não se pode decidir por nenhum. Quintiliano ainda
disse: “historia est próxima poetis et quodammodo carmen solutum”.46
Nos tempos modernos, nos casos de dúvida, tem-se lidado somente
com os elementos de realidade ou então insistido na ciência como único
princípio. Têm-se ido tão longe a ponto de fazer a história diluir-se como
uma parte da filosofia.47 De qualquer modo, como foi dito, a história preci­
sa ser ciência e arte ao mesmo tempo. A história nunca é uma sem a outra.

44 A esse respeito, há profunda semelhança do pensamento de Ranke com o de Gervinus, que


escreveu seu Grundzúge em 1837. (N. do T.)
45 É este também o pensamento de Droysen (2009). Lembro, contudo, que Ranke via no fenô­
meno uma totalidade, uma realidade espiritual. (N. do T.)
46 Instituto oratoria X, I, 31: “a história é aparentada ao poema; é, por assim dizer, um poema
em prosa”. Solutum nesse contexto significa liberdade das restrições métricas (nota de Iggers e
Moltke, 1973).
47 Há aqui uma crítica direcionada a Kant e, em maior grau, a Hegel, pois Ranke tinha restrições
em relação a uma filosofia da história que procurasse aprisionar a história como também um
domínio do pensamento especulativo. Cf. Iggers, 1988. (N. do T.)
Leopold von Ranke 143

Mas é possível que uma ou outra seja mais pronunciada. Em cursos a histó­
ria pode, é claro, aparecer somente como ciência. Só por esse motivo faz-se
necessário compreender o momento para lidar com a ideia de história.
A arte repousa em si mesma: sua existência prova sua validade. Por
outro lado, a ciência pode ser totalmente desenvolvida fora de sua verda­
deira concepção e ser clara em seu núcleo.
Consequente mente, eu gostaria de iluminar a ideia de história do
mundo em algumas leituras preliminares — tratando sucessivamente do
princípio histórico, do alcance e da unidade da história mundial.

Sobre o princípio histórico

Pergunta-se sobre o que justifica os esforços dos historiadores em si.


Seu esforço é reconhecido como necessário, e pode ser vão falar a respeito
de sua utilidade, já que ninguém duvida disso. A sociedade, a inter-relação
das coisas o exigem. Mas nós precisamos nos situar em um nível mais ele­
vado. Para justificar nossa ciência contra as reivindicações da filosofia, pre­
cisamos nos reportar ao sublime; procurar um princípio do qual a história
receberia uma vida única, própria. Para encontrar esse princípio devemos
considerar a história em sua luta com a filosofia. Estamos falando daquele
tipo de filosofia que alcançou seus resultados mediante especulação e que
afirma dominar a história.
Mas quais são essas reivindicações? Fichte, 48 entre outros, expres­
sou-as assim: “se filosofar é deduzir os fenômenos que são possíveis na
experiência da unidade de seu conceito pressuposto, então está claro que
não se necessita da experiência para tudo em seu trabalho. Permanecendo
livremente dentro dos limites da filosofia sem considerar qualquer experi­
ência, deve-se estar apto a priori para descrever todos os tempos e épocas
possíveis a prioriEle exige da filosofia uma ideia unificada de toda a vida
que está dividida em várias épocas, cada qual compreensível abstratamente
ou através das outras, assim como cada uma dessas épocas especiais é no­
vamente um conceito unificado de uma era especial — que manifesta a si
mesma em um fenômeno mimético e plural.

48Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), filósofo alemão um dos representantes do romantismo.


(N. do T.)
144 Lições de história

[Fichte] investe contra o filósofo49 que, partindo de uma verdade en­


contrada em algum outro lugar e em um caminho peculiar para ele como
pensador, constrói toda a história para si: como isso deve ter ocorrido de
acordo com seu conceito de humanidade. Não satisfeito em verificar se
sua ideia está correta ou incorreta, sem se iludir sobre o curso dos eventos
que realmente ocorreram, ele intenta subordinar os múltiplos eventos à
sua ideia. Certamente, ele reconhece a verdade da história somente até
certo ponto, enquanto a subordina à sua ideia. Esta é um mero constructo
de história.
Se fosse correto esse procedimento, a história perderia toda sua inde­
pendência. Ela seria governada simplesmente por uma proposição deriva­
da da filosofia pura e sucumbiria como a verdade desta. Tudo aquilo que
é peculiarmente interessante a respeito da história universal desapareceria.
Tudo que é digno de conhecimento se reduziria a saber em que extensão os
princípios filosóficos podem ser demonstrados na história: em que exten­
são o progresso da humanidade, visto a priori, tem lugar. Mas não haveria
interesse algum em investigar os eventos que aconteceram ou mesmo em
desejar saber como os homens viveram e pensaram em determinado tem­
po. Somente a totalidade do conceito que esteve uma vez vivo na história
observável do homem poderia ser importante. Obter certeza sobre o curso
da história universal através do estudo da história não seria mais possível.
As únicas variações possíveis estariam em conceitos distorcidos,50 deduzin­
do-se o menor do maior. Isso é suficiente para dizer que a história se tornar
dependente, sem um objeto inerente e específico, e que sua fonte secaria.
Dificilmente valeria a pena devotar estudo à história, já que esta estaria
implícita no conceito filosófico.
Estas alegações foram levantadas em outras épocas pela teologia, que,
também com base naquilo que era inquestionavelmente uma incompreen­
são, queria dividir toda a história humana em poucos períodos baseados
no pecado, salvação, milénios, ou nas quatro monarquias profetizadas por
Daniel. Desse modo, procurou capturar a totalidade dos fenômenos em

49 Hegel é este filósofo. (N. do T.)


50 No original, splitting concepts. (N. do T.)
Leopoid von Ranke 145

poucas proposições contidas no Apocalipse — como a teologia interpreta­


va o Evangelho.51
De qualquer forma, a história perderia toda a base e o caráter cien­
tíficos: seria impossível falar de um princípio próprio do qual a história
derivaria sua vida.
Mas, adiantamos que a história permanece em inabalável oposição
a essas reivindicações. Realmente, até mesmo a filosofia nunca foi hábil o
suficiente para exercitar essa regra. Até onde vão os trabalhos impressos a
respeito, não encontrei filosofia alguma que tenha dado o menor sinal de
ter controlado ou que tenha sido bem-sucedida em deduzir a diversidade
de fenômenos a partir de um conceito especulativo; para a realidade dos
fatos, escapa e ilude o conceito da especulação em todos os aspectos.
Além do mais, descobrimos que a história sempre se opôs a essas
reivindicações com força plena e crescente. Assim prova o caráter único do
princípio inerente à história, oposto ao da filosofia.
Antes de conferir expressão a esse princípio, perguntamo-nos primei­
ro com que leis ele se manifesta.
Antes de tudo, a filosofia sempre volta-nos para a afirmação da ideia
suprema. A história, por outro lado, traz-nos para as condições da exis­
tência. A primeira confere importância ao interesse universal; a última, ao
particular.52 A primeira considera o desenvolvimento essencial e vê cada
particular somente como uma parte de um todo. A história volta-se com
simpatia também para o particular.53 A filosofia constantemente o rejeita:
estabelece a condição com a qual ela o aprovaria no futuro remoto. Por sua
natureza, a filosofia é profética, dirigida adiante. A história vê o bem e o
benefício naquilo que existe. Tenta compreendê-los e olha para o passado.
Certamente, nessa oposição uma ciência ataca diretamente a outra.
Quando, como vimos, a filosofia pretende tornar a história subjetiva a si,
a história, por sua vez, faz afirmações similares. Ela não quer considerar

51 Como se teologicamente a história já estivesse dada e cujo fim seria algo conhecido, tal como
na escatologia de João em seu Apocalipse. (N. do T.)
52 É evidente o afastamento em relação ao idealismo de Hegel nesse ponto. Sem contar que em
Ranke não há em nenhum momento o apelo ao conceito de destino (ver Hyppolite, 1970:48-
62). (N. do T.)
53 Ranke aqui quase reproduz o pensamento de Herder a respeito da historicidade, em contra­
posição ao de desenvolvimento teológico e necessário da humanidade. (N. do T.)
146 LiçOes de história

os resultados da filosofia como absolutos, mas somente como fenômenos


no tempo. Assume que a mais exata filosofia está contida na história da
filosofia, isto é, que a verdade absoluta reconhecível pela humanidade
é inerente às teorias que aparecem de tempo em tempo, não importa
como elas se contradizem. A história vai ainda além aqui, pois assume
que a filosofia, especialmente quando se engaja em definições, é somen­
te a manifestação do conhecimento nacional inerente à linguagem. Ela
assim nega à filosofia alguma validade e a compreende em sua outra
manifestação.54 Nisso, tanto os filósofos como os historiadores, em regra,
aceitam todos os sistemas anteriores somente como passos, apenas como
fenômenos relativos, e atribuem validade absoluta somente para seus
próprios sistemas.
Não pretendo dizer que o historiador está certo em sua visão da filo­
sofia; só quero mostrar que, a partir de uma perspectiva histórica, há um
princípio ativo que se opõe ao olhar filosófico e que constantemente se
expressa. A questão é que esse princípio é o que permanece na base daquilo
que se expressa.
Enquanto o filósofo vê a história de seu ponto privilegiado e busca a
infinitude do ser meramente em progressão, desenvolvimento e totalidade;
a história reconhece algo infinito em cada existência, em cada condição,
em cada ser; algo eterno vindo de Deus, e este é seu princípio vital.55 Como
poderia qualquer coisa existir sem uma base divina?
Consequentemente, como dissemos, a história volta-se com simpatia
para o indivíduo; portanto, insiste na validade da importância do particu­
lar. Reconhece o benefício, o ser e resiste a mudanças que negam o existir.
Até no erro ela admite uma parcela da verdade. Por esse motivo, vê nas
filosofias anteriormente rejeitadas uma parte do conhecimento eterno.
Não nos é necessário provar que o eterno reside no indivíduo. Esse
é o fundamento religioso sob o qual repousam nossos esforços. Acredita­
mos que não há nada sem Deus, e nada vive senão por meio de Deus. Li­
vrando-se das exigências de uma determinada teologia estreita, queremos,

54 No original, begreift sie unter der anderen Erscheinung — sentido pouco claro (nota 6 de Iggers
e Moltke, 1973:38).
55 A influência da teologia em Ranke é inegável, sua hermenêutica glosa com o divino. Mais a
respeito, ver Gay (1990). (N. do T.)
Leopold von Ranke 147

não obstante, professar que todos os nossos esforços provêm de uma fonte
maior, religiosa.56
Deve ser rejeitada a ideia de que mesmo os esforços históricos são
dirigidos unicamente para a busca desse princípio maior nos fenômenos.
Assim, a história aproximar-se-ia demasiado da filosofia, já que pressuporia
antes de tudo contemplar esse princípio. A história eleva, confere signifi­
cado e abarca o mundo dos fenômenos, em e por si mesma, devido àquilo
que contém. Ela devota seus esforços ao concreto, não apenas ao abstrato
que pode estar contido nisso.
Agora que justificamos nosso princípio supremo, temos de considerar
as exigências que resultam disso para a prática histórica.
1. A primeira exigência é o puro amor à verdade.57 Reconhecendo algo
sublime no evento, na condição, ou na pessoa que desejamos investigar, ad­
quirimos certo apreço por aquilo que aconteceu, passou ou surgiu. O pri­
meiro propósito é reconhecer isso. Se procurássemos antecipar esse reco­
nhecimento com nossa imaginação, contrariaríamos nosso propósito elevado
e investigaríamos somente o reflexo de nossas noções e teorias subjetivas.
Com isso, entretanto, não queremos simplesmente dizer que o indivíduo
deva permanecer atrelado à aparência, ao seu quando, onde ou como. Pois,
assim, somente tomaríamos o domínio de algo externo, apesar de nosso pró­
prio princípio nos dirigir para o interior.
2. Consequentemente, um estudo documental, penetrante e pro­
fundo faz-se necessário. Antes de tudo, esse estudo deve ser devotado ao
fenômeno em si mesmo, à sua condição, seu ambiente, principalmente
pela razão de que nós, de outra maneira, seríamos incapazes de conhecer
a sua essência, seu conteúdo; pois, em última análise, como cada unida­
de é uma unidade espiritual, ela pode somente ser apreendida através da
percepção espiritual.58 Essa percepção clara repousa sobre a aceitação das
leis, de acordo com o que a mente observadora procede com aquelas que
determinam o surgimento do objeto em observação. Aqui, já é possível ser

56 Holanda (1979) e Gay (1990) são categóricos em afirmar a influência da religiosidade no


pensamento de Ranke. (N. do T.)
57 Ranke distingue a história da ficção, a narrativa histórica como antagónica à ficcional em
relação ao princípio da referência ao real, semelhantemente a Humboldt. (N. do T.)
58 Fritz Stem (1973:56-57) analisa essa questão, relacionando-a com o círculo hermenêutico.
148 Lições de história

mais ou menos talentoso. Todo gênio repousa sobre a congruência entre o


individual e a espécie. O princípio produtivo que formou e criou a natureza
[humana] manifesta-se no indivíduo, que a reconhece, evidenciando-se e
alcançando a autocompreensão.
Esse dom é possível em maior ou menor grau e, em certa medida, to­
dos o possuem. Inteligência, coragem e honestidade para contar a verdade
sâo suficientes. Qualquer um espera descobrir e investigar, desde que a isso
tenha devotado seu esforço e se em seus estudos permanecer livre de pre­
conceitos, mantendo sua humildade. Mas o que é ausência de preconceito?
Essa questão leva-nos à terceira exigência que emite nosso princípio.
3. Um interesse universal. Existem aqueles que estão interessados so­
mente nas instituições cívicas, nas constituições, no progresso científico, na
criação artística, ou apenas em enredos políticos. A maior parte da história
até aqui tratou de guerra e paz. Mas já que esses aspectos da sociedade
encontram-se presentes não separadamente, mas juntos — certamente, de­
terminando um ao outro —, e já que, por exemplo, as atitudes da ciência59
frequentemente influenciam a política doméstica, interesse igual deve ser
devotado a todos esses fatores. Do contrário nos tomaríamos incapazes de
compreender um aspecto sem o outro e trabalharíamos ao contrário da
finalidade da cognição. Nisso reside a liberdade de preconceitos que dese­
jamos. Isso não é uma falta de interesse, mas sim um interesse em cognição
pura, despida de noções preconcebidas. Mas como? Poderia esse esforço
penetrante e essa busca da verdade apenas dissecarem a unidade do campo
em partes individuais, e com isso não nos ocuparíamos somente com séries
de fragmentos?
4. Investigação do nexo causal. Basicamente, deveríamos estar satis­
feitos com uma informação simples — satisfeitos que elas correspondam
meramente ao objeto. Nossa exigência original teria sido satisfeita se exis­
tisse ao menos uma sequência entre os vários eventos. Mas há uma conexão
entre eles. Eventos que são simultâneos tocam e afetam uns aos outros; os
que precedem determinam os que se seguem; há uma conexão interna de
causa e efeito. Embora esse nexo causal não seja designado por datas, ele

59 No original, die wissenschaftlichen Richtungen — sentido não muito claro nesse contexto (nota
9 de Iggers e Moltke, 1973:40).
Leopold von Ranke 149

existe, não obstante. Ele existe, e porque ele existe devemos tentar reorga­
nizá-lo. Esse tipo de observação da história, que deriva efeitos de causas,
chama-se pragmática;60 mas gostaríamos de compreendê-la não na maneira
usual, mas de acordo com nossos conceitos.
Desde o desenvolvimento da historiografia contemporânea, a escola
pragmática de pensamento, tal como aplicada às ações, tinha introduzido
um sistema de acordo com o qual egoísmo e sede de poder seriam a mola
principal de todas as ações.61 O que é usualmente requerido é explicar as
ações observáveis dos indivíduos como o resultado de paixões que deriva­
mos dedutivamente do nosso conceito de homem. O ponto de vista resul­
tante tem uma aparência de aridez, irreligiosidade e falta de sensibilidade
que nos conduz ao desespero. Não posso negar que o egoísmo e a sede de
poder podem ser motivos muito poderosos e tiveram grande influência,
mas nego que eles sejam os únicos.62 Antes de mais nada, temos que inves­
tigar a informação genuína tão precisamente quanto possível para determi­
nar se podemos descobrir os motivos reais. Fazer isso é bem possível, mais
do que frequentemente se pode pensar. Somente quando esse caminho não
nos conduz mais além, é-nos permitido conjecturar. Que ninguém acredite
que essa limitação pode restringir a liberdade de observação. Não! Quanto
mais documentada, mais exata e mais frutífera a pesquisa, mais livremente
pode se desdobrar a nossa arte, que só floresce no elemento da imediata e
irrefutável verdade! Motivos apenas inventados são estéreis. Os verdadei­
ros, derivados de observações pontuais, são diversos e profundos. Assim
como o conhecimento em geral, mesmo nosso pragmatismo é documen­
tal. Ele pode mesmo ser muito reticente e ainda muito essencial. Onde os
eventos falam por si, onde a composição pura manifesta a conexão, não é
necessário falar dessa vinculação detalhadamente.63

60 Ranke faz a distinção que também será feita posteriormente por Bernheim (1903) entre his­
tória genética e história prática. (N. do T.)
61 De certo modo, há uma referência implícita aos historiadores iluministas, como Voltaire,
adeptos desse modo de pensar a história. (N. do T.)
62 Agentes da história. (N. do T.)
63 Aqui fica claro onde Ranke sugere que os fatos possam falar por si e, como se pode ver, não
parece ser algo amplo, mas muito específico, que ocorre em casos particulares de grande com-
provação empírica e de evidência espiritual. (N. do T.)
150 Lições de história

5. Imparcialidade. Como uma regra, dois partidos rivais aparecem na


história mundial.64 As disputas em que esses partidos estão engajados são,
com certeza, muito diferentes, mas relacionadas intimamente. Nós sempre
vemos uma desenvolver-se da outra. Que ninguém acredite que eles serão
tão facilmente esquecidos no curso do tempo. Há no homem uma confian­
ça feliz no julgamento da história e da posteridade que é apelada mil vezes.
Mas, raramente esse julgamento é transmitido objetivamente. Não sobre­
vive conosco um interesse similar àquele do passado. Julgamos o passado
muito mais, repetidas vezes, pela situação presente. Talvez esse traço nunca
tenha sido pior que no presente, quando alguns interesses que permeiam
toda a história mundial ocupam a opinião geral e, mais do que nunca, a
dividem em muitos prós e contras.
Esse pode ser o caminho do proceder na política, mas não é verda­
deiramente histórico. Nós, que buscamos a verdade, mesmo em erro, que
vemos cada existência como permeada de vida original, devemos acima de
tudo evitar esse erro. Onde houver conflito similar, ambos partidos devem
ser vistos sobre seu próprio terreno, em seu próprio desenvolvimento, por
assim dizer, em eu próprio estado particular interior. Nós devemos com­
preendê-los, antes que julgá-los.
Poder-se-á levantar a objeção de que o escritor, também aquele que des­
creve, deve ter sua opinião, sua religião, das quais não pode se desvencilhar.
Essa objeção seria justificada se nós presumíssemos dizer quem está
correto em cada disputa.65 É muito possível que, mesmo no calor de uma
disputa, já saibamos claramente que lado apoiaríamos, em favor de qual
opinião decidiríamos. Também é possível que aquela imparcialidade que,
em um conflito entre duas opiniões divergentes, geralmente vê a verdade
no meio-termo torne-se impossível para o historiador, já que ele é defini­
tivamente muito devotado a sua própria opinião. Mas isso não é tudo que
importa. Podemos ver o erro, mas onde não há erro? Isso não nos levará a

M Partidos que expressam as forças da ordem e da desordem, “que constituem as condições


primeiras do processo do mundo” (White, 1995:181). (N. do T.)
65 Aqui se evidencia uma defesa radical pela não tomada de posição, pelo não julgamento, pela
ausência de juízos de valor em relação às ações humanas no passado, expressão da imparciali­
dade rankiana. (N. do T.)
Leopold von Ranke 151

negar as realidades da existência. Perto do bem, nós reconhecemos o mal,


mas este é um mal que é inerente à situação.
Não são opiniões que nós examinamos. Nós lidamos com a exis­
tência que tem reiteradas vezes a mais decisiva influência em disputas
políticas e religiosas. Aqui erguemo-nos para contemplar o caráter essen­
cial das oposições, dos elementos em conflito, vendo quão complexos e
entrelaçados eles são. Não nos cabe julgar erro e verdade enquanto tais.
Nós meramente observamos uma figura surgindo lado a lado com outra
figura; vida, lado a lado com vida, efeito, lado a lado com efeito contrário.
Nossa tarefa é investigá-los na base de sua existência e retratá-los com
completa objetividade.
Até o presente, dois grandes partidos engajaram-se em uma batalha
para a qual a resistência e o movimento das palavras tornaram-se um lema.
A história posiciona-se fora do partido que deseja a preservação eterna,
assim como do movimento contínuo avante. Alguns consideram ser a pre­
servação o legítimo princípio. Esses encontram uma legalidade na preser­
vação de certo status quo, de uma lei definitiva. Eles não querem perceber
que o que existe deriva da reforma pelos conflitos que destruíram o que
existia antes. Mas, por outro lado, a história cessaria. Ela alcançaria em
algum ponto o seu objetivo. Não deveria haver, por assim dizer, nenhuma
condição ilegal, nada que a razão pudesse confrontar com uma conclusão
impossível. Mas a história tampouco aceitaria a suplantação do velho, como
se fosse algo completamente morto e inutilizável, sem consideração para com
interesses locais ou particulares. Se a história evita a violência na observação,
com maior vontade evitará a violência na execução. Este destruir, mudar e
novamente demolir não é o caminho da natureza. Ela é a condição de uma
ruína interior que se manifesta dessa maneira. Ela é um organismo em con­
flito consigo mesmo, certamente curioso de se observar, mas não agradável.
A história, é claro, reconhece o princípio do movimento, mas como evolu­
ção, e não como revolução. Esta é a verdadeira razão por que reconhece o
princípio da resistência. Somente onde movimento e resistência equilibram
um ao outro sem se envolverem nessas batalhas violentas e vorazes pode a
humanidade prosperar. Somente porque a história reconhece a ambos, pode
ser justa com ambos. Não cabe à história sequer julgar em teoria o conflito
que o passado ensina. A história sabe muito bem que o conflito será decidido
de acordo com a vontade de Deus.
152 Lições de história

6. Concepção de totalidade. Assim como existe o particular, a cone­


xão entre um e outro, há também finalmente a totalidade. Se isto é uma
vida, portanto alcançamos sua aparência. Percebemos a sequência pela
qual um fator segue outro. Mas não é o bastante. Há também algo de total
em cada vida; ela começa, exerce efeitos, adquire influência, ela prossegue.
Essa totalidade é tão certa em cada momento quanto em toda expressão.
Precisamos devotar toda nossa atenção a isso. Se estamos tratando com
um povo, não estamos somente interessados nos momentos individuais de
suas expressões de vida. De preferência, tratamos da totalidade de seu de­
senvolvimento, de suas ações, suas instituições e sua literatura, a ideia nos
fala tanto que simplesmente não podemos negar nossa atenção. Quanto
mais longe vamos, mais difícil é, claro, chegar à ideia — pois aqui também
podemos realizar algo somente através da pesquisa exata, através de uma
compreensão passo a passo, e através do estudo dos documentos. Se esse
processo procede através da indução do já sabido, ele é um conhecimen­
to intuitivo (divination);66 se procede de uma prenoção, toma a forma
de proposições filosóficas abstratas. Vê-se quão infinitamente difícil são
os objetos da história universal. Que quantidade infinita de fontes! Que
diversidade de esforços! Como é difícil trabalhar apenas com o parti­
cular. Afinal, há muitas coisas que desconhecemos; então, como vamos
entender o nexo causal em todo lugar ou ir ao fundamento essencial da
totalidade? Considero impossível resolver esse problema inteiramente. Só
Deus conhece a história universal. Reconhecemos as contradições — “as
harmonias”, como disse um poeta indiano: “conhecido pelos deuses, ig­
norado pelo homem”, nós podemos apenas intuir, somente nos apro­
ximar à distância. Mas, para nós, existe claramente uma unidade, uma
progressão, um desenvolvimento.
Então, pelo caminho da história chegamos até a definição da tarefa
da filosofia. Se a filosofia é o que devia ser, se a história fosse perfeitamente
clara e completa, então elas poderiam coincidir completamente uma com
a outra. A ciência histórica imiscuiria seu sujeito de análise com o espírito
da filosofia. Se a arte histórica pode então surgir ao dar vida ao sujeito con­
creto e ao reproduzi-lo com aquela parte de força poética que não pensa

66 A divinação é uma das operações iniciais do método compreensivo, tal como se apresenta na
hermenêutica de Schleiermacher. (N. do T.)
Leopold von Ranke 153

novas coisas, mas que espelha em seu caráter verdadeiro aquilo que conse­
guiu apreender e compreender, ela iria, como dissemos no início, unir de
maneira peculiar ciência e arte ao mesmo tempo.

Do alcance da história mundial

Em três caminhos — com respeito a (1) sequência, (2) simultaneida­


de e (3) desenvolvimentos individuais.67
1. Sequência — Em resumo, a história abrangeria toda a vida da hu­
manidade surgida no tempo. Mas muito desta é também perdida e desco­
nhecida. O primeiro período de sua existência e seus elos estariam perdi­
dos sem qualquer esperança de serem encontrados novamente.
Podemos perceber que significado a história tem. Se autores de outro
tipo estão perdidos, perde-se a expressão do individual. Em um livro histó­
rico, entretanto, expressam-se não somente a existência e o olhar de um au­
tor; o livro histórico interessa-nos por causa do que contém das vidas dos
outros. Muito que era descrito foi perdido, algo que pode ter sido descrito.
Tudo isso é ameaçado pela morte. Somente aqueles que a história relembra
não estão completamente mortos; seu caráter e sua existência continuam
a existir na medida em que eles permanecem na consciência dos homens.
Somente com a extinção da memória estabelece-se a morte. 68
Somos afortunados quando vestígios documentais permanecem. Pelo
menos eles podem ser compreendidos. Mas o que acontece quando não
existe nenhum, como, por exemplo, na pré-história? Estou de acordo em
excluir esse período da história porque ele contradiz o princípio histórico,
que é a pesquisa documental.
Alguém poderia excluir por completo aquilo que comumente é to­
mado sobre a história mundial da dedução geológica e dos resultados da
história natural a respeito da primeira criação do mundo, o sistema solar e

67 Esta é uma sentença incompleta no original alemão. Nota 14 de Iggers (1988:45).


Passagem que evoca a abertura das Histórias de Heródoto: “Heródoto de Halicamasso apre­
senta aqui sua historie, para impedir que o que fizeram os homens, com o tempo, se apague
da memória e para que grandes e maravilhosas obras, produzidas tanto pelos bárbaros, quanto
pelos gregos, não cessem de ser retomadas” (apud Hartog, 1999:17). (N. do T.)
154 Lições de história

a Terra. Em nosso método, não revelamos nada sobre esses tópicos; permi­
tamo-nos confessar nossa ignorância.69
Como para os mitos, não quero negar categoricamente que eles sequer
contenham um elemento histórico ocasional. Mas a coisa mais importante
é que eles expressam o olhar de um povo sobre si mesmo, sua atitude dian­
te do mundo etc. Eles são importantes, sobretudo, como uma caractertstica
subjetiva de um povo ou como seus pensamentos foram expressos neles,
não por causa de algum fato objetivo que possam conter. Em um primeiro
aspecto eles possuem um firme fundamento e são muito confiáveis para a
pesquisa histórica, mas não em última instância.
Finalmente, não podemos devotar maior atenção àqueles povos que
ainda hoje permanecem em um tipo de estado de natureza e que nos le­
vam a supor que aquilo que eles foram desde o início mantivera-se, que a
condição pré-histórica tinha sido preservada neles. índia e China reivindi­
cam uma era de ouro e têm uma longa cronologia. Mas até o mais arguto
cronologista não pode compreendê-la. Sua antiguidade é lendária, mas sua
condição é antes um caso para a história natural.

69 Ranke prenuncia a distinção feita por Wilhelm Windelband (1848-1915) que, em discurso
famoso de 1894, insistiu na separação entre história e a história natural, aproximando esta últi-
ma das ciências naturais, devido ao seu caráter nomotético. (N. do T.)
Gervinus
Julio Bentivoglio

“A história, em suas relações com a vida ética, é inimiga natural


de todo o isolamento e de toda a virtude de célula, pois ela nos ensina
a nos observarmos sempre em comunhão com o todo em nossas
relações sociais. Ela tira de nós o proveito próprio, o egoísmo e todo
o fechamento aristocrático e orienta-nos no sentido dos antigos a
aproveitar a vida presente.”
Gervinus, Fundamentos de teoria da história, 1837

O século XIX mostrou-se notável na produção de grandes historiadores e


foi, de fato, o século da história.1 Naquele momento, graças aos esforços de
intelectuais dotados de sólida erudição e de aguda sensibilidade epistemo-
lógica, constituiu-se a ciência histórica como um domínio autónomo do
saber, apartada dos estudos filosóficos e literários.2 Essa árdua tarefa foi le­
vada adiante na Inglaterra e na França, mas foi particularmente na Prússia
que encontrou seu maior desenvolvimento, graças a nomes como Wilhelm
von Humboldt (1767-1835), Barthold Niebuhr (1776-1831), Leopold von
Ranke (1795-1886), Johann G. Droysen (1808-1884) e Georg Gottfried
Gervinus, que, entre outros, esmeraram-se na construção do discurso do
método para esse campo de estudos. É por esse motivo que Jõrn Rusen,
entre outros, identifica esse momento como o de fundação da ciência his­
tórica moderna.3
Aquela primeira geração de historiadores alemães formulou propostas
inovadoras e originais a respeito do método histórico, da crítica documen­
tal, do papel do historiador e acerca da escrita da história, produzindo fe-

V
1 É o que afirmam, entre outros, Reis (2007:36) e Iggers (1988).
<
2 Iggers, 1988, esp. cap. 5.
3 Rúsen, 2001:27; Blanke, Fleisher e Rúsen, 1984.
156 Lições de história

cundas reflexões teóricas sobre o estudo do passado.4 Daquele grupo, von


Ranke firmou-se como o grande historiador da escola histórica prussiana,
por seus méritos, mas também devido aos esforços de seus herdeiros em
preservar sua imagem como a de maior historiador do século.5 Isso, no
entanto, obliterou a importância para a história e para a historiografia da­
queles outros historiadores que, como Gervinus, deram uma contribuição
inestimável ao conhecimento histórico, sobretudo na teoria e na história
do tempo presente.
Estudioso da literatura alemã e tradutor de Shakespeare, Gervinus
foi um dos maiores historiadores prussianos em seu tempo. Coube a ele a
formulação do conceito de teoria da história (Historik), pensando-o como
um campo autónomo dos estudos históricos, apartado das narrativas sobre
o passado.6 Gervinus foi um dos pupilos de Friedrich Christoph Schlosser
(1776-1861), professor de história em Heidelberg.7 O modelo de análise
abrangente e erudita da cultura realizado por Schlosser influenciou Ger­
vinus, bem como sua aplicação da crítica histórica documental recém-de-
senvolvida por Friedrich August Wolf (1759-1824) e Niebuhr, embora,
como assinala Georg Iggers, Schlosser acabasse dissolvendo a história em
um arrazoado de julgamentos morais e pessoais.8
Na trilha do pensamento de Schiller (1759-1805) e de Hegel (1770-
1831), Gervinus acreditava na progressão da liberdade tal como manifes­
tada pelas criações espirituais no tempo e seguindo os passos de Friedrich
Schlegel (1772-1829), enfatizava a relação entre as representações literá­
rias e o desenvolvimento da história, pensando a literatura como também
o resultado de relações histórico-sociais.9 Para Gervinus, a literatura era
uma chave para se compreender o processo de formação nacional alemã,
pois promessas de emancipação política e de democratização haviam sido

4 Gooch, 1935.
5 Iggers> 1988:90.
6 A partir de então Historik passou a ser utilizado com essa acepção, ao passo que Geschichte
identificava tanto a disciplina história quanto os estudos sobre o passado. A respeito da trajetó­
ria do conceito, ver Koselleck (2004:47 e 2006).
7 Schlosser se interessava pela história recente, como atestam seu Geschichte des 18ten Jahr-
hunderts de 1823, ampliado posteriormente para seis volumes intitulados Geschichte des 18ten
Jahrhunderts und des 19ten bis zum Sturz des Jranzõsischen Kaiserreichs (1836-1848).
8 Iggers, 1988:105.
9 Thomas, 1951.
Gervinus 157

potencializadas nas obras literárias. Assim, as criações literárias seriam um


veículo privilegiado de divulgação de ideias políticas, de reivindicação de
liberdade e de invenção da nação.
A obra de Gervinus permaneceu praticamente desconhecida em ou­
tros países, salvo as traduções inglesa e francesa de sua síntese intitulada
Introdução à história do século XIX, publicada em 1853, da qual aqui se
apresenta a introdução; ou seu livro sobre a Renascença italiana. Nascido
em 20 de maio de 1805 em Darmstadt, no Grão-Ducado de Hesse, Gervi­
nus desde cedo demonstrou interesse pelos livros e pela leitura. Realizou
seus estudos secundários entre 1814 e 1819, e trabalhou como vendedor
de livros em Bonn. Cursou filologia entre 1825 e 1829 em Heidelberg e,
nos dois últimos anos do curso, trabalhou como professor de inglês na
casa de uma família tradicional da cidade. Em 1830, obteve sua habilitação
como docente e dois anos depois realizou uma longa viagem de estudos
e pesquisas pela Itália. Em 1835 conseguiu tornar-se professor particular
de história e literatura na Universidade de Heidelberg, mas foi dispensado
pelo governo de Baden daquele posto em dezembro. No ano seguinte ca­
sou-se com Viktoria Schelver (1817-1893) em Hamburgo e foi convidado
pelo filólogo Friedrich Christoph Dahlmann (1785-1860) para assumir a
cadeira de literatura e história da Universidade de Gòttingen.10 Foi ali que
percebeu pela primeira vez a necessidade de pensar as especificidades das
narrativas históricas, e suas principais ideias a esse respeito foram sinteti­
zadas em seu Fundamentos de teoria da história, publicado em 1837.11 Iggers
reconhece nesse texto a bem-sucedida tentativa de Gervinus em sublinhar
as distinções entre o método histórico e o método filosófico.
Em 14 de dezembro de 1836, Gervinus e Dahlmann, junto de ami­
gos como o orientalista Ewald, o jurista W. Albrecht, os irmãos Jacob e
Wilhelm Grimm e o médico Weber — que ficariam conhecidos como os
“Sete de Gòttingen” — organizaram e participaram ativamente de protestos
contra o rei Emst August, que havia violado a Constituição de Hanôver. Ao

10 Gòttingen era uma universidade nova e de vanguarda. Fundada em 1734, havia abraçado o
N
espírito humanista, enfatizando os estudos clássicos, a Bildung e a filologia. Opunha-se ao racio-
nalismo da universidade de Halle, que se voltava para os estudos administrativos e burocráticos,
cheia de funcionários públicos, teólogos e pastores protestantes (Ringer, 2000:35).
11 Gervinus, 1962:49-103.
158 Lições de história

lado de muitos estudantes, foram banidos e tiveram que deixar Gõttingen.


Voltou à Itália em 1838, retornando apenas em dezembro para a Alema­
nha, quando foi aceito como Privatdozent na Universidade de Heidelberg,
onde trabalhou entre 1839 e 1844. Gervinus acreditava que seus estudos
sobre a Renascença italiana seriam úteis para uma melhor compreensão
da literatura alemã, em virtude da semelhança existente no apreço pela
cultura clássica greco-romana.12 Resultado dessas reflexões é sua História
da literatura e da poesia nacional alemãs, publicada entre 1835 e 1842 em
cinco volumes.13
Em 1845, Gervinus recusou convite para lecionar em lena, universi­
dade por onde passaram todos os seus grandes mestres, como Hegel, Fichte
e Schiller. No inverno desse mesmo ano publicou A missão dos católicos ale­
mães, obra que atraiu certa atenção por tratar de assunto polêmico. A partir
de então, Gervinus começou a produzir textos onde discutia as questões
mais prementes sobre o governo prussiano e a história europeia.14
Entre 1846 e 1847, causaram sensação suas aulas sobre a política
europeia de seu tempo, no curso intitulado política das fundações his­
tóricas, ministrado em Heidelberg.15 Passou a colaborar ativamente no
Deutsche Zeitung, cujos editores eram Friedrich D. Bassermann e Karl
Mathy, escrevendo sobre política e história.16 Isso garantiu sua eleição
como deputado, em 1848, para o parlamento de Frankfurt.17 Foi eleito
ao lado de Dahlmann, Droysen, Karl Welcker, Georg Waitz, Max Dun-
cker e Rudolf Haym.18
Gervinus era ardoroso defensor do princípio constitucional e apologis­
ta do liberalismo conservador, assim como alguns integrantes da chamada
escola histórica prussiana, muitos dos quais participavam ativamente dos
debates e dos acontecimentos políticos de seu tempo, colaborando em jor-

12 Gervinus, 1893.
13 Ansel, 1990; Cari, 1969; Unger, 1935.
14 Schulze, 1930:12-13.
15 Moritz, 2005; Gervinus, 1893.
16 Húbinger, 1984.
17 Friedrich Engels dirá que Gervinus foi o autor do projeto para a Constituição do Estado ale­
mão, que previa a unificação sob a forma de uma monarquia constitucional liderada por Frede­
rico IV Não poupará críticas ao projeto político desses historiadores liberais, que anteriormente
já havia sido alvo de dura apreciação na Ideologia alemã. Cf. Engels (1983:34).
18 Iggers, 1988:91.
Gervinus 159

nais, revistas e pesquisando sobre a história contemporânea. Como indica


J. R. Armotage em biografia sumária sobre o autor, na tradução francesa da
Introdução à história do século XIX, “historiador e político, Gervinus merece
ser conhecido. Sua vida reflete a condição universal alemã do século XIX:
uma sólida erudição aliada a um gosto vivo pelo engajamento político”.19
No parlamento, integrou-se ao grupo intitulado Kleindeutsche (peque­
na Alemanha), que defendia a exclusão da Áustria e de seus territórios do
futuro Estado alemão unificado.20 Queriam o poder nas mãos dos Hohen-
zollem, mas seu titular, Frederico IV, recusou a coroa e a Constituição para
este futuro Estado alemão, atitude repetida pelo governo da Áustria e pelos
demais estados alemães.21
A geração de historiadores que sucedeu Ranke não havia seguido o
mestre em seu suposto apartidarismo, que recomendava manter distância
dos acontecimentos políticos a fim de melhor contemplar o jogo das forças
históricas.22 Engajados na causa nacionalista, aqueles jovens historiadores
encaravam com reserva essa aparente indiferença política de Ranke,23 pois
jamais tomaram o estudo do passado como fim em si mesmo; afinal, viam
a história como um meio de atuar nas necessidades políticas e éticas de seu
tempo, posicionando-se sempre à direita.24 Integraram o Partido do Cas­
sino, nome do hotel onde se encontravam em Frankfurt, combatiam o ab­
solutismo, as doutrinas socialistas e também as restrições feitas em relação
aos judeus, defendendo a liberdade de imprensa e os direitos dos cidadãos.
Destoando do grupo, Gervinus e Mommsen eram os únicos que viam com
simpatia o princípio da soberania popular. Desejavam órgãos representa­
tivos eleitos pelos distritos e a igualdade perante a lei. De qualquer modo,
Gervinus preferia a monarquia constitucional ao despotismo das massas,

19 Armotage, 1981:1.
20 Guilland, 2002:2.
21 Excluindo a representação nacional e os expedientes revolucionários, o governo prussiano
tomou a dianteira de realizar o processo de unificação utilizando-se da exaltação do espírito
nacionalista, promovendo guerras externas para efetivar a delimitação do território prussiano.
Assim, de 1864 a 1871, três batalhas foram decisivas para a formação do Estado germânico:
a Guerra dos Ducados (1864), a Guerra Austro-Prussiana (1866) e a Guerra Franco-Prussiana
(1870/1871). Mais a respeito, Farmer e Randall (2001).
22 Iggers, 1988:90.
23 Southardt, 1995.
24 Mais a respeito em Rúsen (1977).
160 Lições de história

o que revela que, embora tivesse simpatia pela democracia, não era, em si,
um democrata avant la lettre.25
Diante do fracasso das reformas e após os distúrbios ocorridos em
Heidelberg, a Assembleia Constituinte foi dissolvida, aumentando a tensão
política. No início da noite do dia 13 de maio de 1848 e durante o dia
14, pedras foram atiradas contra as janelas de muitos professores liberais,
como Hãusser, Gervinus e Welcker.26 Tais fatos pesaram em sua decisão de
deixar o país e viajar novamente à Itália. Regressou à Alemanha somente
no segundo semestre de 1849, quando publicou suas traduções e análises
da obra de William Shakespeare. Em 1850, Gervinus finalmente conseguiu
tornar-se professor efetivo em Heidelberg, universidade onde permanece­
ria até sua morte em 1871.
Em 1853 publicou-se a quarta edição de sua História da literatura e
da poesia nacional alemãs. Foi também o ano em que saiu sua Introdução ã
história do século XIX. Por causa do teor desse livro foi processado em 1854
pela corte de Mannheim. No dia 24 de fevereiro, Gervinus compareceu
perante o tribunal, que o acusava de alta traição por criticar a monarquia
constitucional e por colocar em risco a ordem pública. Lida a acusação,
Gervinus defendeu-se:

A acusação proferida contra mim é em sua natureza absurda, não importa de


qual modo seja tomada, ela é muito falha em seu objetivo (...). A acusação não
faz distinção entre os fatos objetivos apresentados em meu trabalho e as opini­
ões subjetivas, teorias e especulações. Eu apenas relatei fatos. Nada ofereci de
puramente teorético ou especulativo. [...]
Meu trabalho é somente (como toda narrativa histórica pode ser) uma jus­
tificativa para os decretos da providência, e protestar contra eles me parece
pouco piedoso tanto do ponto de vista moral quanto político. Aquilo que foi
demonstrado pelos mais memoráveis fatos da história não poderá ser alterado
no mínimo grau, pela supressão do meu trabalho ou por minha condenação.

25 Wagner, 1995.
26 Durante a revolução de 1848, Gervinus estava entre os líderes do Partido Constitucional.
Era grande orador e exercia considerável influência sobre aqueles que estavam encarregados
de confeccionar a Constituição para o império alemão, defendendo a unificação liderada pela
Prússia. Ver Hubinger (1984).
Gervinus 161

A acusação que pesa sobre minha cabeça é absurda (...). Essa acusação não é
contra a história em si, mas contra uma narrativa escrita, uma representação,
através da qual a história aparece na maneira pela qual ela é compreendida por
um ser humano.27

Gervinus enfatizou que não se poderia impor silêncio à filosofia da


história ou à história em si. Para ele, isso poderia ser feito em relação a um
panfleto político, cuja finalidade serve a um propósito particular, defendido
exclusivamente por um grupo ou uma pessoa. O mesmo não se daria com
trabalhos filosóficos ou com sua obra. Ele lamenta o episódio e novamente
adverte o tribunal de que sua acusação “tolhe o conhecimento filosófico
na Alemanha, impedindo a liberdade de pensamento, sendo possível que
a filosofia alemã não consiga superar trabalhos similares produzidos pelas
outras nações livres.28
E desabafa:

Para mim, criado sob auspícios felizes, acostumado com a independência


da investigação filosófica, absorvido pela pesquisa ativa e pelo saber, con­
victo em dedicar-me completamente à minha vocação quando trabalho
nas tarefas que se apresentam diante de mim, às quais pretendo ocupar-
me pelo resto de minha vida, para mim esta condenação pode impor uma
dura alternativa: renunciar à minha vocação ou renunciar à minha pátria,
que acredito não ter servido indignamente e espero ainda ser útil para
servir mais.29

Para Gervinus seu livro, do qual aqui se publica a introdução, não se


propunha criticar a política de seu tempo, mas apenas compreender ques­
tões históricas. Seu conteúdo, portanto, deveria ser alvo do julgamento de
historiadores, não de tribunais:30

27 Gervinus [s.d.], p. xi-xii.


28 lbid., p. xiii.
29 lbid., p. xiv.
30 “Meu livro é sobre o plano estritamente filosófico e busca compreender questões históricas
que, propriamente, julgamento de valor algum pode ser pronunciado contra, salvo por um his­
toriador confesso, de que há não mais que duas dúzias em toda a Alemanha” (lbid., p. xv).
162 Lições de história

Meu trabalho demonstra uma lei do desenvolvimento histórico, que eu não


reivindico como de minha propriedade, ou como originalmente minha,
mas que foi demonstrada há mais de dois mil anos pelo maior pensador de
todos os tempos, derivada de observações da história do Estado grego. Eu
tive a sorte de considerar o pensamento de Aristóteles e aplicá-lo à história
dos modernos Estados europeus e encontrei uma série de desenvolvimen­
tos que tomaram lugar há dois mil anos. Também verifiquei que o núcleo
da série de eventos confirmatórios desta lei (deduzidos da experiência) não
estão completamente encerrados. Como o astrónomo que, de uma fração
sabida de uma trilha de um planeta recentemente descoberto, calcula seu
curso, pretendi mostrar que estamos esperando o que ainda pode tomar
séculos para se completar.31

Em 2 de março a sentença foi pronunciada contra Gervinus, condenan­


do-o a quatro meses de prisão e ordenando que seu trabalho fosse publica-
mente destruído. Isso não o impediu, passado o episódio, de continuar suas
pesquisas sobre a história de seu tempo, publicadas entre 1855 e 1866 em
oito volumes, sob o título História do século XIX. Essa ênfase na continuidade
histórica, na integração presente-passado-futuro, evidencia a preocupação
de Gervinus com a historicidade e a consciência histórica, pois ele proble-
matizou radicalmente o momento vivido.32
Em 1857, quando o governo prussiano foi transferido de Frederico
IV para o seu irmão Guilherme, vários integrantes da escola histórica prus-
siana, entre eles Gervinus, fundaram os Anais Prussianos (Preussische Jahr-
bucher) em defesa da unificação alemã.33 Continuavam se opondo ao parti­
do da Grossdeutsche (Grande Alemanha), unificada sob a liderança austría­
ca. Colaboraram nesse periódico Heinrich von Sybel, Heinrich Treitschke
e Hermann Baumgarten, além de Wilhelm Dilthey, entre outros. Como se
vê, entre 1830 e 1871, vários historiadores alemães tiveram participação

31 Gervinus [s.d.], p. xv-xvi.


32 De acordo com Gadamer (2003, v. 2, p. 162), Gervinus alcançou plenamente a compreensão
desse fenômeno, pois “a verdade da consciência histórica parece alcançar sua perfeição quando
percebe o devir no passar e o passar no devir e quando extrai do fluir incessante das transfor­
mações a continuidade de um nexo histórico”.
33 Southardt, 1995:11-
Gervinus 163

ativa em eventos decisivos, como nunca havia ocorrido antes.34 Porém, o


comprometimento desses liberais alemães com o nacionalismo do Estado
prussiano é visto como a tragédia do liberalismo germânico. Gervinus, por
exemplo, viu com desgosto o uso do exército como instrumento da unifi­
cação nacional e como baluarte na defesa contra a revolução social. Tam­
bém rejeitou a violação da Constituição prussiana por Otto von Bismarck,
quando reformou o exército em 1862.35 Foi o único que jamais reatou com
o chanceler, mesmo após o triunfo da unificação. Gervinus acreditava que
a educação e a cultura deveriam ser responsáveis pela formação de uma
identidade nacional comum alemã, e não as armas. Seus estudos sobre a
história ou a literatura podem ser vistos como narrativas sobre a constru­
ção dessa identidade nacional alemã.
Em 1860 Gervinus publicou sua autobiografia, intitulada Vida de G. G.
Gervinus, e em 1863 tomou-se membro da Academia de Ciências da Ba vá­
ria. Entre 1866 e 1867 esteve novamente na Itália. Morreu em 18 de março
de 1871, quando havia iniciado a publicação da História da poesia alemã,
encerrada em 1874. O teólogo e filósofo Eduard Zeller proferiu um discurso
fúnebre em sua homenagem, publicado em 1877 em Leipzig.
Principais obras de Gervinus:

♦ Geschichte der poetischen National-Literatur der Deutschen (1835-1842) 5v.;


♦ Grundzuge der Historik (1837);
♦ Shakeaspeare. (1872) 3v.;
♦ Einleitung in die Geschichte des neunzehnten Jahrhunderts (1853);
♦ Geschichte des neunzehnten Jahrhunderts seit den Wiener Vertrãgen (1855-
1866) 8v.;
♦ Insurrection et régénération de la Grèce (1863);
♦ La restaurazione e il Trattato di Vienna (1864);
♦ G. G. Gervinus Leben. Von ihm selbs (1860-1893);

34 Segundo Iggers (1988:91), “a história da Alemanha e a história do liberalismo alemão não


poderiam ser escritas sem devotar considerável espaço à participação decisiva daqueles histo­
riadores”.
35 Para levar a cabo a reforma militar e o projeto de unificação alemã, Bismarck teria dito: “os
problemas de hoje não se decidem com discurso, nem tampouco com o voto das maiorias. Esse
foi o grande erro de 1848 e 1849. Decidem-se com ferro e sangue” (apud Farmer e Randall,
2001:37).
164 Lições de história

4- Hândel und Shakespeare: Zur Àsthetik der Tonkunst (1868);


4 Historiche Schriften. Geschichte der florentinischen historiographie biz zum
sechzenten Jahrhundert (1871). 2v.

PREFÁCIO (ElNLEITUNG IN DIE GESCHICHTE DES


NEUNZEHNTEN JAHRHUNDERTS)36

Objetivo e meta deste trabalho

A presente obra consiste na introdução a uma narrativa detalhada que


abrange o período entre a queda do império francês e o restabelecimento das
relações entre os Estados europeus no Congresso de Viena, até a primeira me­
tade do século atual. O objetivo da história a seguir será descobrir o propósito
e o significado fundamental dos eventos desse período.
Esse curto intervalo de tempo (não maior que o tempo médio de
uma vida humana) é marcado por eventos que, de início, estavam de todo
conectados ao passado e os quais se mantêm, até agora, seguindo um de­
senvolvimento contínuo, embora, quando tomados em conjunto, eles pa­
reçam nada mais que fragmentos cuja importância na história do mundo
somente pode ser reconhecida por sua relação com o que os precederam.
No intuito de determinar corretamente o lugar verdadeiro do episó­
dio histórico em questão, devemos abordar retroativamente os aconteci­
mentos dos últimos séculos na Europa; neles, ou mesmo em sua conexão
com tempos ainda mais remotos, é possível reconhecer o progresso e os
períodos históricos relativos ao desenvolvimento dos Estados, o início da
história moderna e, nesta, um período menor que será o objeto de nossa
narrativa detalhada. Se essa investigação inicial pudesse nos convencer de
que, apesar de todos os obstáculos e mudanças, a história, em três ou qua­
tro séculos consecutivos, segue invariavelmente na mesma direção, então
deveremos prontamente concluir que os 30 ou 40 anos que nós mesmos
testemunhamos seguiram a mesma regra. Essa conclusão não se mostrará,
portanto, descabida, se conseguirmos rastrear seu fim na variabilidade de
sua direção e, naquilo que chamamos o propósito de nossa narrativa, des-

36 Gervinus, 1853.
Gervinus 165

cobrirmos o significado de nosso tempo atual e o espírito de nossa história,


numa perspectiva conectada do presente com o passado.37
Todos os acontecimentos históricos, quando tomados em curtos pe­
ríodos de tempo, movem-se em uma direção, assemelhando-se, quanto a
seus aspectos gerais, a outros períodos igualmente curtos: eles são o resul­
tado de certas influências dominantes.
Períodos mais longos, tomados em conjunto, tomam a aparência de
constantes oscilações entre forças opostas. Eles resistem à influência de
quaisquer ideias ou quaisquer forças ou ações predominantes. Porém, na
observação do grande curso dos séculos, não podemos deixar de perceber
a alternância de vazantes e cheias de uma mesma corrente, que seguem
uma direção fixa, que se reconhece através das eras, como o avanço de um
princípio condutor.38 i
Nessa narrativa minuciosa da história contemporânea, nós devemos ú
%
perseverar, como o exige a tarefa do historiador, em compreender esses três }

movimentos numa mesma perspectiva, limitando essa reflexão introdutó­


ria unicamente à consideração daquelas ideias predominantes, que deter­
minam o caráter dos tempos. (...)

A lei do desenvolvimento histórico

A formação dos Estados da Europa, desde o início da era cristã,


apresenta-se como um evento histórico tão coeso e geral quanto aquele
dos Estados da península grega e suas colónias na Antiguidade. A mesma
ordem revela-se no curso evolutivo interno de ambos os períodos; e na
história de toda a raça humana essa lei mais uma vez pode ser observada
em suas mais amplas manifestações. Do despotismo do Oriente à aristo­ •i!!
cracia; do governo dos povos da Antiguidade e da Idade Média — fun­
dado na escravidão e servidão — à política estatal dos tempos modernos,
Íií
ora em desenvolvimento, pode-se observar um processo uniforme, que

37 Essa passagem revela o peso da filosofia da história de Hegel no pensamento de Gervinus.


(N. doT.)
38 É ahamente sugestiva essa percepção do tempo, dividindo-o no tempo curto dos aconteci­
mentos, no tempo conjuntural de uma época e no tempo longo dos séculos, articulados por um
princípio condutor; tripartição semelhante seria feita, posteriormente, por Femand Braudel.
(N. do T.)
166 Lições de história

começa na liberdade civil e de pensamento de um indivíduo e vai até a


liberdade de alguns e, poste riormente, a de muitos. Contudo, onde os
Estados chegam ao termo de sua existência, podemos perceber outra vez
que, do ponto mais elevado numa escala ascendente de desenvolvimento,
a civilização, a liberdade e o poder descendem desde os grupos maiores
até os menores, e destes a um único indivíduo. Essa lei atravessa toda a
história e pode ser observada em qualquer Estado isolado, como no gru­
po de Estados mencionados anteriormente.

O curso do desenvolvimento dos Estados na Grécia

Aristóteles, com inteligência notável, já havia discutido essa lei em


seus estudos a respeito da história da nação grega.39 Em tempos mais remo­
tos, conforme descreveu Homero, quando a população ainda era escassa,
a civilização e a riqueza — incluindo o treinamento para o uso de armas e
posses — eram restritas a poucos. Os reis patriarcas dominavam a Grécia,
sendo os únicos proprietários das bigas, os líderes das tropas militares e os
juízes dos sacrifícios e assuntos legais. Contudo, após certo tempo, quando
aumentou o número de homens instruídos e ricos, capazes de conduzir
armas, e a superioridade bélica era decidida pelos cavaleiros mais hábeis,
a ordem equestre, a aristocracia tomou-se o corpo governante do Estado,
e o poder real era ora limitado, como em Esparta, ora abolido, como em
todos os outros países. À medida que a crescente prosperidade da classe
média do povo acompanhava a degeneração da aristocracia, causada por
sua ambição egoísta e individualista e graças aos aprimoramentos na ciên­
cia bélica, e conforme a infantaria ganhava respeito e a marinha recrutava
as camadas inferiores, a supremacia do povo — forma de governo demo­
crático — começou a ocupar o lugar da aristocracia; ou melhor, à medida
que os Estados ganhavam poder e alcance, e suas políticas e modos de
guerrear se tomavam mais sistemáticos e científicos, surgiram constitui­
ções híbridas, nas quais a nobreza, a classe média e as camadas populares
mais baixas compartilharam da mesma posição social, cada qual com seus
próprios direitos.

39 Ver Aristóteles (2006, esp. livro 1). (N. do T.)


Gervinus 167

O mesmo curso de desenvolvimento nos Estados modernos

O desenvolvimento dos Estados europeus nos tempos modernos


seguiu o mesmo curso, ainda que em proporções maiores no que diz
respeito a número, espaço e tempo. No início, durante as primeiras ex­
pansões e ocupações dos povos germânicos no continente, reis patriarcas
governavam, da mesma forma que na Antiguidade, como dirigentes da
guerra e da justiça. Nesses tempos bárbaros, como nos tempos gregos,
eles fundamentavam sua autoridade em sua origem divina. Porém, mes­
mo na era cristã, houve um período em que o príncipe, denominado o
grande, reunia em sua pessoa a superioridade intelectual e o poder supre­
mo, e como tal era reconhecido por todos como líder. Com a introdução
de uma educação mais ampla, com o acúmulo de terras e com o aumento
da importância do cavalo na arte bélica, a ordem dos cavaleiros e a no­
breza feudal tomaram o poder. O poder real foi limitado, mas não abolido
— somente em casos excepcionais —, porque as grandes extensões dos
Estados modernos fizeram da monarquia um ponto de união necessário
e, além disso, as lembranças do Antigo Testamento e as tradições do im­
pério romano consagraram e deram segurança à dignidade real. Poste-
riormente, com a substituição da transferência de propriedades por troca
de valores, com o enriquecimento das cidades — graças ao comércio e às
relações de negócio — e a superioridade da infantaria suíça nas guerras,
a supremacia da nobreza feudal foi abalada. Na época em que a proprie­
dade da terra adquiriu valor de troca, quando as cidades começaram a
se enriquecer com os negócios e o comércio, e a guarda suíça adquiriu
preeminência na guerra, o domínio da nobreza feudal foi fortemente aba­
lado do século XV em diante. Iniciou-se, então, um intenso conflito, não
completamente resolvido até os dias de hoje, pelo qual a classe média
esforçou-se para tomar para si a educação, as propriedades e a influência,
enquanto as camadas populares pressionavam-na em sentido contrário.
Como resultado dessa batalha, não surgiu um regime de governo pura­
mente democrático, o que era comum nos poderes locais da Antiguidade,
mas sobrevieram constituições heterogéneas (termo já utilizado por Aris-
tóteles), consolidadas por inúmeros Estados modernos.
168 Lições de história

Tirania grega

Essas transformações internas promoveram de modo simples e fácil


a transição do domínio de um único rei para o poder oligárquico da aris­
tocracia, ao contrário da transição deste para a soberania popular, que foi
complicada e difícil. No primeiro caso, a unanimidade era alcançada den­
tro dos grupos menores, já que o indivíduo sozinho não poderia oferecer
resistência. Contudo, a unanimidade popular era em si mesma muito mais
difícil de se alcançar, pois a educação e os interesses não estavam unifor­
memente distribuídos entre a maioria, e suas possessões divididas não pu­
deram ser empregadas com tanta eficiência quanto a riqueza concentrada
nas mãos de poucas famílias. Consequentemente, a resistência também foi
notável no polo oposto: a aristocracia — proprietária de armas, castelos e
vastas porções de terras — e o poder executivo e judiciário — controlador
dos súditos — aliaram-se fortemente entre si e, por interesses comuns, com
nobres de outros países. A deterioração interna da nobreza, seus hábitos
de pilhagem e negligência, sua exploração demasiada do povo, levando ao
comprometimento do bem-estar social para proveito próprio, foram im­
prescindíveis para que os Estados gregos se encaminhassem em direção
ao governo popular. Entretanto, apesar do declínio da aristocracia, ainda
se fazia necessário um líder hábil e poderoso, como observou Aristóteles,
para ajudar as pessoas a alcançarem sua emancipação; mesmo que o pro­
pósito do novo regente pudesse ser unicamente o de tirar proveito, para
si e sua família, de sua condição de governante. Essa foi a oportunidade
para o surgimento dos governos tiranos, que por dois séculos (de 700 a.C.
a 500 a.C.) derramaram sua autoridade pelos Estados da Grécia e abriram
caminho para a democracia. Apesar de a tirania grega ter impedido por
muito tempo o governo popular, ela conseguiu não obstante fundar seus
primeiros alicerces por meio das conquistas sobre os nobres, seus princi­
pais rivais.

Absolutismo nos tempos modernos

Toda a história da transição da aristocracia para a democracia possui


um paralelo com a história da Europa moderna, com apenas uma dife­
rença: tudo na Europa se deu em proporções maiores, o que aumentou
Gervinus 169

imensamente as dificuldades e obstáculos ao desenvolvimento dos Estados


modernos. De forma semelhante em cada território, a nobreza feudal foi a
primeira a instigar a própria ruína: na Espanha, antes e durante o reinado
da dinastia de Trastâmara;40 na Alemanha, desde os tempos das dissensões
causadas pelo direito do indivíduo de declarar guerra; na Inglaterra, du­
rante a Guerra das Rosas;41 na França, em virtude dos penosos conflitos ar­
mados e disputas partidárias sob a tutela de Carlos VII.42 Porém, se nesses
tempos o poder político dos nobres foi destruído pela anarquia que vigo­
rava entre eles, o poder do monarca, que continuava a existir, por sua vez
aumentou, pois este era necessário às camadas populares mais baixas, que
começavam a adquirir influência. Outras circunstâncias peculiares aos tem­
pos modernos impuseram consideravelmente mais dificuldades ao modo
de governo popular do que na Antiguidade. A aristocracia cristã dividia-se
em duas classes distintas. Com a nova forma de religião, o cristianismo, o
cultivo do espírito e os progressos alcançados na ciência militar seguiram
caminhos diferentes. As lutas do povo não foram reprimidas apenas porque
tiveram que disputar a posse do poder com esses dois braços da aristocra­
cia; eles tiveram não apenas que testar a força das armas contra as armas
do nobre secular, mas testar igualmente seu preparo intelectual contra o
preparo do nobre espiritual. Eles promoveram uma dupla revolução contra
o poder eclesiástico e secular. Além disso, a união e a resistência popular
nos distritos vastos, mas pouco povoados, cresciam mais lentamente do
que na Antiguidade; e antes de as camadas baixas serem admitidas a lutar,
com a proteção da monarquia, contra a aristocracia, é possível encontrar
inúmeros casos isolados de insurreições de cidadãos e camponeses entre
os séculos XIII e XVI, o que inevitavelmente conduziu à sua própria ruí­
na. Contudo, no final do século XV surgiu uma cooperação entre o povo
e seu príncipe, cujo poder ilimitado o transformou no tirano dos tempos

40 Dinastia fundada em Castela por Henrique II, governou entre 1369 e 1516 e teve um novo
ramo inaugurado por Fernando de Antequera, filho de João 1 de Castela, neto de Henrique II
(Valdeón Luque, 2001). (N. do T.)
41 A Guerra das Rosas (1455-1485) foi um longo e intermitente conflito dinástico em tomo da
coroa da Inglaterra, entre as casas de York e de Lancaster, opondo famílias rivais dos descen­
dentes de Eduardo III. (N. do T.)
42 Carlos VII (1403-1461), rei da França a partir de 1422 e sucedido por Luís XI. (N. do T.)
170 Lições de história

modernos. O absolutismo moderno e a tirania da Antiguidade formam um


único fenômeno e se assemelham em diversos aspectos. A maioria desses
monarcas como Henrique VII;43 Fernando, o Católico;44 Maximiliano45 da
Áustria, de quem essa monarquia se originou, de forma destrutiva para a
nobreza; todos eles, assim como os antigos tiranos, chegaram tardiamen­
te ao trono ou pertenceram a dinastias que se tornaram muito poderosas
por meio de riquezas herdadas ou alianças matrimoniais. O exército que
servia aos monarcas assemelhava-se às guardas dos soberanos das cidades
na Grécia. As ligações políticas entre príncipes podiam ser comparadas aos
laços familiares que envolviam tiranos e déspotas de outros Estados. O
apego à ostentação, o mecenato à arte e à ciência, o emprego de pessoas
fascinadas pelos empreendimentos grandiosos foram, em ambos os casos,
os mesmos meios políticos pelos quais sustentaram seus poderes. Mas tais
fatores constituíram também as causas que enfraqueceram o autoritarismo
conquistado pelos tiranos. O fato de que o absolutismo moderno, assim
como a tirania na Antiguidade, apenas estabeleceu a transição da aristocra­
cia para a democracia é suficiente para se reconhecer a semelhança entre os
dois fenômenos. Seu destino foi cumprido: destruiu o poder do inimigo em
comum — a nobreza — e despertou a consciência de unidade no povo,
atribuindo uma dimensão nacional a suas políticas. A educação se tomou
acessível a todas as classes, e indústrias de ordens inferiores conquistaram
espaço em detrimento da violência e dos privilégios aristocráticos; estimu­
lou-se o patriotismo com o anseio pela liberdade e igualdade de direitos;
e se a democracia não se consolidou em todas as suas manifestações, pelo
menos o fez na sua essência. O absolutismo cumpriu, assim, sua missão,
não somente quando renunciou à dominação única em favor do povo e
seus representantes, mas também quando, ainda no poder, o empregou
contra tal predestinação.

43 Henrique VII (1457-1509), rei da Inglaterra a partir de 1485. Em seu reinado teve fim a
Guerra das Rosas. (N. do T.)
44 Fernando II de Aragão (1452-1516), rei de Aragão, Castela, Sicília, Nápoles e Navarra. (N.
do D
45 O autor refere-se a Maximiliano II de Habsburgo (1527-1576), rei da Boémia, Hungria e
Croácia. Imperador do Sacro Império Germânico a partir de 1564. (N. do T.)
Gervinus 171

Desenvolvimento político na história contemporânea

O ponto de vista a partir do qual se examina a chamada Idade Mo­


derna, desde a queda do império bizantino até os dias atuais, é a passagem
do governo de poucos indivíduos para o governo da maioria, sujeita ora
ao encorajamento, ora ao atraso do absolutismo. Tal fenômeno pode ser
observado em todo o período e em todo o continente. Transformações de
mesma natureza marcaram dois séculos da história grega e ainda se prolon­
garam por quatro séculos sobre o campo bem mais vasto da Europa. Todo
o período compreendido entre o hm da Idade Média e o período atual é
caracterizado por um atrito constante com as ideias democráticas, dissemi­
nadas entre os povos pela Reforma protestante e usadas como instrumento
de luta contra as instituições aristocráticas medievais. O absolutismo surgiu
em meio desses elementos conflitantes e pende ora em direção à antiga
ordem feudal, ora à nova ordem da classe média; e, apoiada por essa classe
e satisfazendo suas vontades, contribui para o enfraquecimento da aristo­
cracia. A classe média, agora sob a proteção da nobreza, resiste ao poder de
classes inferiores. Ainda assim, na época da Revolução Francesa e próximo
ao período abordado nessa narrativa histórica, todos esses poderes antagó­
nicos se digladiaram ao que parece uma última vez. A história de todas as
eras, incluindo a atual, revela nada mais que uma renovação desse conflito,
ainda sem resultados, praticado em um campo de batalha ainda mais ex­
tenso, e que será decidido pelas próximas gerações.
Uma investigação mais minuciosa dos grandes acontecimentos do úl­
timo século sempre leva o observador de volta a essa perspectiva, ao passo
que lhe mostra a relação do passado com o presente sob todos os ângulos.
A história em Marx
Leandro Konder

Segundo informação veiculada por sua filha Eleanor, Karl foi influenciado
por seu sogro, o barão Ludwig Von Westfaphalen. Karl passou da admira­
ção por Voltaire e Racine para a verdadeira devoção por Homero e Shakes-
peare. Eleanor fala dessa modificação na perspectiva de Karl como uma
manifestação de “entusiasmo pela escola romântica”.1
É possível, sem dúvida, discutir sobre o romantismo em Marx; o
exemplo, contudo, não foi bem escolhido. Homero e Shakespeare, para
Marx, não eram expressões do romantismo. Esse tipo de mal-entendido se
encontra no ensaio que David McLellan escreveu para a história do mar­
xismo, organizada por Eric J. Hobsbawm, cujo primeiro volume saiu no
Brasil em 1979.2
Diversos críticos, com bons argumentos, sempre enxergaram algum
romantismo na teoria hegeliana das contradições. Com sua teoria, o filóso­
fo dava conta de seus conflitos pessoais, internos e externos (conciliando
posições de direita e uma metodologia de esquerda), mas também dava
conta da sua atitude crítica, porém simultaneamente conservadora. As
contradições constituíam a verdadeira chave que abria a discussão fecunda
sobre os problemas do mestre e da época.

1 Kapp, 1980.
2 McLellan, 1979.
174 Lições de história

Quando Marx chegou a Berlim, em 1836, tinha 18 anos. Hegel tinha


morrido havia quatro anos, por isso o jovem estudante não teve oportuni­
dade de conhecer pessoalmente seu mestre, porém entrou em contato com
os discípulos de Hegel, que eram chamados de “a esquerda hegeliana”.3
Bruno Bauer, um dos integrantes do grupo, chegou a ser considerado
por Marx um “modelo”. Seguindo seu exemplo, Marx fez um doutora­
do para tornar-se professor universitário. Aprovado na tese, nem por isso
Marx conseguiu a cátedra ambicionada. A situação política tinha piorado e,
ao invés de Marx entrar, foi Bruno Bauer quem saiu da universidade.
Inicialmente, Marx se aproximou de Feuerbach. Depois, decepcionou-
se com esse filósofo. Com Hegel foi o contrário: no começo Marx antipatizou
com ele, porém logo se deixou fascinar pela melodia “pedregosa” do pensa­
mento hegeliano. Afastou-se dos ex-amigos Bruno Bauer (1809-1882), Ed­
gar Bauer (1820-1886), Karl Gruen (1817-1877), Max Stimer (1806-1856),
Szeliga (1816-1900) e Feuerbach (1804-1872). Desse período, a única ami­
zade que Marx preservou foi com Friedrich Engels (1820-1895).
Marx tomou-se jornalista, e conheceu Engels em Colónia. Engels era
filho de um industrial rico, que fez do filho um dirigente industrial, o que
lhe dava acesso aos recursos paternos. Os dois amigos, jovens socialis­
tas, desistiram de fazer carreira universitária. Marx escreveu trabalhos nos
quais antecipava ideias que viria a desenvolver em seguida. Entre os textos
elaborados por ele nesse período estão a Crítica ãfilosofia do direito de Hegel,
A questão judaica e um escrito que não pretendia ser publicado e, posterior-
mente, foi reconhecido como origem de ideias geniais: os Manuscritos eco­
nómico-filosóficos de 1844. Durante cerca de seis anos, Marx havia sido um
hegeliano convicto, porém agora reformulava suas posições. Com o apoio
de Engels, escreveu artigos que batiam duro nos ex-amigos de Berlim.
Em 1843/1844, sempre com o apoio de Engels, começou a elaborar
uma concepção do homem e uma concepção da história. Sua visão da
condição humana levava-o a acreditar que os homens, contraditoriamen­
te, promoviam a dominação crescente da natureza e tomavam iniciativas
oportunistas e mal orientadas e prejudicavam o sentimento de paridade
entre indivíduos e comunidades. O sujeito dominava o objeto, mas o obje­
to se vingava dele, destruindo as bases de sua autonomia.

Wheen, 2001.
A HISTÓRIA EM MARX 175

Os hegelianos, ditos de “esquerda”, só mereceram essa caracterização


no campo da religião. Para eles os indivíduos tinham acesso à liberdade
quando se transformavam em autoconsciências e essas autoconsciências
substituíam os indivíduos reais, de carne e osso.
Os hegelianos cometem um erro que não está na constatação da cisão
interna da sociedade burguesa, está no fato de, tendo enxergado um pro­
blema, terem se conformado com ele, ao invés de buscar uma solução. Eles
querem ser livres, mas não assumem resolutamente esse querer. O dilema
deles é o do bandido Vidocq: “ou você é carcereiro ou é encarcerado”.4
Juntos, Marx e Engels escreveram dois livros: o primeiro se intitulava
A Sagrada Família, que foi o nome que designava debochadamente o grupo
berlinense autonomeado como “críticos críticos”. O segundo — A ideologia
alemã — continuava a bater nos “críticos críticos” e na esperteza com que
os membros do grupo usavam conceitos importantes, porém mal utilizados,
como “novo” e “velho”, pois estava trabalhando seriamente com estes concei­
tos e os berlinenses os manipulavam sem qualquer rigor.5
Para Marx, na história, era preciso ir às últimas consequências no exa­
me do condicionamento dos sujeitos pelo objeto, mas também não abrir
mão da presença ativa do sujeito na transformação do objeto. “O mais pro­
fundo no pensamento de Hegel — escreveu Marx — está no fato de que
ele percebe a cisão da sociedade política burguesa como uma contradição;
o equívoco está no fato de que ele se contenta com a aparência de uma
solução para o problema”.6
Na ocasião em que o livro A Sagrada Família foi publicado, Marx ficou
irritado com vários aspectos maliciosos da reação dos “críticos críticos”
à publicação. Ele também não gostou de alguns excessos nos textos dos
hegelianos que faziam certa “humanização” de conceitos gerais. Acusou
Bruno Bauer de falar da Verdade como um automaton (hoje, ele diria um

4 Balzac inspirou-se em Vidocq para criar seu personagem Vautrin, que também era um ban­
dido, e tão talentoso que o romancista não conseguia fazê-lo fracassar; por isso encaminhou-o
para ser absorvido pela polícia, ocupando, como seu modelo, um alto cargo no aparelho de
repressão.
5 Há traduções recentes de três livros clássicos de Marx, lançados pela editora Boitempo: A ide­
ologia alemã (2007) tem tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavine Marto-
rano; A crítica da filosofia do direito de Hegel (2005) tem tradução de Rubens Enderle e Leonardo
de Deus; A sagrada família (2003) tem tradução de Marcelo Backes.
6 Marx-Engels Werke... v. 1, p. 279.
176 LiçOes de história

robô). A lógica da propriedade privada convergia com a da alienação. “A


propriedade privada aliena não só a individualidade dos seres humanos,
mas também a das coisas”, dizia Marx.7
Marx sustentava que o trabalhador explorado e submetido à pressão
da mais-valia era uma chave para que se compreendesse o papel da aliena­
ção, interferindo nas atividades humanas e na construção do conhecimen­
to. A sociedade não elimina a cooperação, porém seu caráter hipercompe-
titivo torna difícil convergir e completar-se na convergência. Divisão social
do trabalho e propriedade privada “são expressões idênticas”, de acordo
com Marx.8
As tensões internas na sociedade agravam a alienação, na medida em
que incorporam o Estado às condições em que as pessoas vivem. O Esta­
do, segundo Marx, é a “comunidade ilusória”:9 ele manipula as pessoas e
lhes proporciona sucedâneos de encontros humanos e ações conjuntas de
sentido libertário. A alienação se torna mais aguda, e aquilo que os seres
humanos criam, em vez de ser dominado por eles, ergue-se como um po­
der estranho no caminho de seus criadores.
Na luta para vencer as unilateralidades decorrentes da alienação, é
preciso enxergar o todo. Marx critica o ensino separado das disciplinas
que nos proporcionam contato com aspectos vivos da realidade, mas man­
tendo-os isolados uns dos outros. Quando se estuda geografia, economia,
política, direito, religião ou história tropeça-se inevitavelmente na neces­
sidade de compreender as articulações desses diversos campos, uns com
os outros.10
O conceito de alienação é um dos conceitos fundamentais da filosofia
i 11!
1:1 de Marx. Ele consta de A ideologia alemã, que só veio a ser publicada em
1932. Embora Engels tenha publicado ainda no final do século XIX as Teses
sobre Feuerbach apenas como apêndice de seu livro Ludwig Feuerbach e o
fim da filosofia clássica alemã, não é surpreendente que grande número de
“marxistas”, ao longo do século XX, tenham tido dificuldade de conhecer
o conceito. Com a demora na publicação de A ideologia alemã e dos Ma-

7 Marx-Engels Werhe... v. 2, p. 212.


8 Ibid., v. 3, p. 32.
9 Ibid., v. 3, p. 34.
10 Ibid., v. 3, p. 569.

__-
A HISTÓRIA EM MARX
177

nuscritos de 1844, Marx ficou sujeito a julgamentos teóricos arbitrários e


precipitados.
Na representação usual da história, é frequente que apareçam expli­
cações de conflitos baseadas na ideia de que grupos humanos “tomaram”
coisas uns dos outros. Os bárbaros, por exemplo, “tomaram” o império
romano. Marx se diverte com essa interpretação e se pergunta se, esgotadas
as coisas “tomáveis”, não seria necessário que se começasse a produzir?
Na perspectiva de Marx, de fato, a história tem sido o processo de
modificações nas condições de trabalho dos seres humanos. E para os seres
humanos fazerem as mudanças que consideram necessárias, eles precisam
pensar e agir historicamente.
Marx, com certeza, ultrapassava os limites da análise conjuntural e
abria caminho para uma genuína história social, isto é, para o exame apro­
fundado da transformação estrutural das sociedades. O historiador Fernand
Braudel reconheceu que Marx foi um pioneiro na análise crítica da “longa
duração”, e criou novos parâmetros para a compreensão dos movimentos
mais lentos que também compõem decisivamente o processo histórico.
Braudel admitiu: “o gênio de Marx, o segredo de seu poder prolongado,
está em que ele foi o primeiro a fabricar verdadeiros modelos sociais, e a
partir da longa duração histórica”.11
Entre as instituições que necessitavam de estudos adequados ao de­
safio da “longa duração” se incluía o cristianismo. Quando jovem, Marx
havia escrito sobre os cristãos, criticando-os duramente por suas posi­
ções políticas reacionárias, porém se esforçando para pensá-los não ape­
nas no plano de suas convicções imediatas, mas também no plano do
projeto que vinham adotando há tantos séculos. O pai de Karl era judeu;
contudo, para escapar ao risco de perseguições (os pogroms antissemi-
tas não eram raros na região),12 converteu-se ao cristianismo. Embora a

11 Braudel, 1969.
12 Pogrom é uma palavra russa que significa “pôr abaixo, destruir violentamente”. Historica­
mente, o termo se refere aos violentos ataques antissemitas tanto no império russo como em
outros países. Diz-se que o primeiro incidente dessa natureza denominado “pogrom” foi um
tumulto antissemita ocorrido na cidade russa de Odessa em 1821. A partir de então, a palavra
tomou-se de uso comum para caracterizar as grandes revoltas antissemitas que tomaram lugar
na Ucrânia e no sul da Rússia, entre 1881 e 1884. Durante o período do nazismo na Alemanha
e no Leste europeu, como na Rússia czarista, os pretextos para os pogroms eram ressentimentos
178 Lições de história

conversão fosse mais pragmática do que sincera, o menino Karl teve de


estudar a doutrina cristã.
O jovem Marx escreveu (e a frase ficou famosa): “a religião é o ópio
do povo”. Escreveu também que ela era o suspiro da criatura esmagada
num universo espiritual sem espírito; era a consciência e o sentimento
do homem que “ainda não se encontrou ou então já tornou a se perder”;
era o coração de um mundo sem coração. Mas essas imagens não tive­
ram a mesma recepção da frase anterior. Em sua maioria os intelectuais
socialistas eram contrários à religião, especialmente ao cristianismo. Em
alguns casos, eles manifestavam tendências intolerantes. Em Marx isso
não acontecia. Marx estava convencido de que, enquanto correspondesse
a uma necessidade histórica que sensibilizava os crentes, a crença não
desapareceria. Por isso, a propaganda contra a religião era inútil e resul­
tava em confusão.13
Nas condições históricas da segunda metade do século XIX, a Igreja
se mobilizava no âmbito do movimento operário, disputando a hegemonia
com os socialistas. Marx impacientava-se com essa tentativa de conquista
da hegemonia. Escreveu, então, um artigo que continha elementos de uma
polêmica áspera com os cristãos: “os princípios sociais do cristianismo pre­
gam a covardia, o autodesprezo, a auto-humilhação, a submissão, a falta
de fibra, em suma, todas as qualidades da corja”. E ainda: “os princípios
sociais do cristianismo são solertes e o proletariado é revolucionário”.14
Quando se pensa no que foram os pontificados de Gregório XVI e
Pio IX, compreende-se facilmente a exaltação do pensador socialista.
Em O Capital, se lê: “o reflexo religioso do mundo real só pode de­
saparecer quando as condições das atividades práticas cotidianas dos ho­
mens manifestarem no dia a dia relações transparentes e racionais entre os
seres humanos e deles com a natureza”.15
Para Marx, a opção por desdobramentos futuros da intervenção hu­
mana nas mudanças sociais é um elemento essencial da relação entre ser
humano e a história propriamente dita. É o movimento da história que

económicos, sociais, e políticos contra os judeus, reforçando o já tradicional antissemitismo


religioso. (N. do E.)
13 Marx-Engels Werke... v. 1, p. 378.
14 Ibid., v. 4, p. 200.
15 Ibid., v. 23, p. 4.
A HISTÓRIA EM MARX
179

permite ao homem enxergar as contradições, descrevê-las, inserir-se nelas


e também empenhar-se em superá-las. Do contrário, o homem permane­
ceria contemplativo, sem atuação própria, acumpliciado com os interesses
conservadores. Por isso, o compromisso com a luta pelo comunismo é uma
parte decisiva do pensamento de Marx.
No entanto, o conceito de comunismo traz para o estudo da obra
de Marx toda uma série de complicações ligadas às tendências “socialis­
tas libertárias” (que é como os anarquistas se chamavam).16 Para Marx, o
comunismo seria a sociedade sem Estado, portanto sem polícia. Nela, afi­
nal, desapareceriam as desigualdades sexuais que permitem a exploração
das mulheres pelos homens. Nela a cidade e o campo seriam harmónicos,
complementares. Desapareceriam as fronteiras.
Nas condições criadas pelo comunismo, o sujeito podia ser pintor de
manhã, cientista na hora do almoço, bailarino à tardinha e filósofo à noite.
Essa imagem, tão animadora, foi saudada pelos anarquistas. Marx e Engels,
porém, advertiram que isso dependeria de uma longa história, que não
oferecia garantias.
A concepção da história elaborada por Marx passou no teste decisivo,
que foi sua aplicação ao tempo presente. Dois livros, As lutas de classes na
França de 1848 a 1850 e O 18 brumário de Luís Bonaparte, analisam as con­
dições em que surgiu o fenômeno do bonapartismo, mostram como cada
grupo se dispunha a tomar o poder e como diversas classes sociais distintas
se impuseram um desgaste considerável no conflito entre elas.
Assim, dois partidos cristãos (orleanistas e legitimistas), um partido
burguês, um partido de banqueiros e um partido do lumpemproletariado17
(incluindo gigolôs e prostitutas) prepararam para um aventureiro ridículo
(Napoleão III) as condições em que ele pôde assumir o poder com am-

16 Os anarquistas falavam deles mesmos como socialistas libertários, referindo-se ao pensamen­


to de Marx como expressão de um “socialismo autoritário”.
17 Termo de origem marxista que designa a população situada abaixo do proletariado, do ponto
de vista de suas condições de trabalho e vida, constituído de elementos degradados, desclas­
sificados e não organizados do proletariado urbano, assim como aquela parcela da população
que, para garantir a sobrevivência, desenvolve atividades à margem da legalidade (delinquência,
prostituição etc.). Aparece pela primeira vez em A ideologia alemã (1845) e é aplicado e concei­
tuado em O 18 brumário de Luís Bonaparte. (N. do E.)
180 Lições de história

pio apoio da sociedade, tal como ela se encontrava naquele momento. Os


socialistas, que também estavam mergulhados na confusão, ficaram per­
plexos. E um liberal, o escritor Victor Hugo, ficou tão furioso contra Luís
Bonaparte que, como observou Marx, atribuindo ao ditador o caráter de­
moníaco, acabou por favorecer uma reputação imerecida de perspicácia e
inteligência, que Napoleão III queria cultivar.
Marx e Engels tinham respeito e apreço por alguns desses socialis­
tas, tipo Eourier, Saint-Simon, Flora Tristan e outros. Inicialmente Marx
manifestou simpatia por Proudhon. Disse que lhe deu algumas aulas so­
bre dialética. Proudhon replicou publicando um livro no qual divergia de
Marx em vários pontos. Marx se aborreceu com ele e redigiu às pressas e
em francês (para ser lido pelo mesmo público que havia lido Filosofia da
miséria, título da obra de Proudhon) A miséria da filosofia.
A posição teórica de Proudhon que teve maior repercussão foi a tese de
que “a propriedade é um roubo”. Quando Proudhon morreu em 1865, Marx
replicou essa tese (de que a propriedade é um roubo) com o argumento de
que só se podia pensar o roubo quando a propriedade já existia. Curiosa­
mente, em alguns círculos, a tese de Proudhon foi atribuída a Marx.
Com Feuerbach, as relações de Marx, menos íntimas, foram mais com­
plicadas. Feuerbach era um filósofo mais importante do que os da chamada
“esquerda hegeliana”. Marx não foi acolhido por Feuerbach como esperava.
Ideias dele, contudo, desempenharam um papel extremamente importante
no pensamento de Marx. Feuerbach ajudou-o, no início, a se debruçar com
maior atenção sobre a subjetividade humana e a se perguntar em que e de
que forma os homens, seres subjetivos e condicionados pela realidade obje­
tiva, podiam ser concretamente livres.
Depois de sua estimulante posição inicial, Feuerbach se retraiu e pas­
sou a defender um ponto de vista vacilante, que lhe valeu a crítica que
Marx lhe faz na “Tese I” das duas páginas “ad Feuerbach”.
A principal divergência filosófica entre Marx e Feuerbach estava na
posição diferente que cada um dos dois assumiu em face da questão do al­
cance da materialidade do sujeito humano. Feuerbach achava que o sujeito
e seu corpo eram regidos pelas mesmas leis implacáveis que regem o mun­
do. Embora possa haver uma grande diversidade de sentimentos podero­
sos num mesmo indivíduo, as conclusões podem legitimamente classificar
os sentimentos em uma das duas tendências que aparentavam nos guiar:
A HISTÓRIA EM MARX
181

tudo é casual, tudo é livre-arbítrio. Ou, então, tudo está prescrito e tudo
obedece ao destino (Maktub).18
Os socialistas que apareceram após a derrota dos jacobinos na Revo­
lução Francesa assumiram posições filosóficas e políticas bastante diversas.
Graco Babeuf, decepcionado com o movimento revolucionário, sustenta­
va que outras cabeças deveriam ter sido cortadas pela guilhotina. Robert
Owen, inglês, achava possível uma saída positiva e relativamente pacífica
para os problemas derivados da desigualdade, e que os cientistas poderiam
abordar onde a revolução falhara. Henri de Saint-Simon, francês, organiza­
va os recém-convertidos cristãos para cobrarem reformas administrativas
modernizadoras. E François Fourier, também francês, desiludido com a
Revolução Francesa, passou a concentrar suas esperanças na construção de
um falanstério, um prédio no qual um grupo pioneiro mostraria à humani­
dade que a vida podia ser melhor e a sociedade podia ser mais justa.19
Marx assumia um ponto de vista bastante sutil: por um lado, reiterava
sua condição de revolucionário; por outro, procurava conduzir os radicais
à flexibilidade e ao realismo das negociações imprescindíveis da ação po­
lítica. Essa combinação era difícil de ser mantida. Mesmo divergindo de
Fourier, Marx o apreciava muito por sua criatividade e chegou a dizer que
o pensador francês era tão forte na dialética quanto Hegel.
A perspectiva de Marx era visceralmente hostil a algumas cabeças
quentes da política do seu tempo. Em alguns casos, ele realmente se enco­
lerizava. Irritou-se muito com as posições de Weitling, que, como agitador
socialista, preconizava a libertação de todos os presos que estavam cum­
prindo pena nas penitenciárias, alegando que eles passariam espontanea­
mente da condição de criminosos à condição de genuínos revolucionários.
O advogado Ferdinand Lassalle, que pregava reformas moderadas, carac-
terizava a situação histórica da Europa como o confronto entre a classe
operária e todas as outras classes, que constituíam uma massa reacionária
mobilizada contra os trabalhadores. Marx também se aborreceu com a vi­
são paranoica de Lassalle.

18 Expressão de origem mulçumana, que designa o fatalismo, uma forma extremada de determi­
nismo. Quando algo acontece, é que já estava programado no além.
19 Fourier procurou esclarecer todos os elementos constitutivos do falanstério, pois acreditava
que o projeto era essencial na reanimação do socialismo, já que o fracasso da Revolução Fran­
cesa tinha desmoralizado o caminho revolucionário.
182 Lições de história

Em meio a tantas desavenças, não deixa de ser historicamente sig­


nificativo que Marx tenha mantido sempre uma atitude de admiração e
respeito por Auguste Blanqui, o revolucionário francês que passou a maior
parte de sua vida na cadeia. Blanqui foi um precursor da teoria do partido
revolucionário centralizado, no estilo leninista, que viria a ser elaborada
no século XX.
Engels, uma vez, falando por ele e, implicitamente, por Marx, entrou
em polêmica com críticos que se identificavam com os princípios do socia­
lismo libertário e da crítica ao autoritarismo; disse para eles que estavam
atribuindo uma importância excessiva à questão da autoridade. E acres­
centou: “uma revolução é a coisa mais autoritária que existe!”.20
Além das inseguranças do exilado, que nem sempre tinha dinheiro para
a alimentação da família, Marx sofreu a solidão de se ver rejeitado pela so­
ciedade em que vivia. Numa crise financeira, o casal Marx resolveu vender
abjetos que pudessem trazer-lhes algum dinheiro. Karl levou para a casa de
penhores um presente caro que sua mulher tinha recebido da família dela,
um serviço de louça de jantar. O funcionário que o atendeu achou-o “sus­
peito” e o denunciou à polícia. Marx ficou preso até o dia seguinte, quando
Jenny, sua mulher, o localizou e o libertou.
Marx não queria entrar em conflito com a Inglaterra, país onde viveu
mais da metade da sua vida. O Estado inglês, no entanto, colocou-o sob
vigilância e mandou segui-lo. Um inspetor encarregado de espioná-lo fez
um relatório que muitos anos depois foi publicado. O agente policial fez
menção ao ambiente cordial da casa, à cultura do homem de ciência e ao
excesso de fumaça de cigarros. O relatório deixa transparecer certa admi­
ração do policial ignorante pelo intelectual.21
Essa qualidade de teórico, detentor de saberes obscuros, registrada
pelo agente que o espionou, nos põe em contato com um par de catego­
rias utilizado por Marx em seu trabalho: a base e a superestrutura. Alguns
críticos sugerem que esse conceito em duplicata é mais uma imagem do
que uma ideia desenvolvida. Marx se preocupava com o que se passava no
campo da cultura. A superestrutura deveria contribuir para manter as cria­
ções culturais em uma ligação forte com a base (a estrutura económica).

20 Marx-Engels Werke... passim.


21 Kapp, 1980.
A HISTÓRIA EM MARX 183

Porém, a criação cultural não podia se deixar atrelar aos movimentos da


economia política.
Um esquema mecanicista de interpretação recíproca da base e da su­
perestrutura mostrava, cotidianamente, ao filósofo, que o maior prejuízo
acarretado ao movimento socialista pela ligação demasiado estreita entre os
dois polos era o desperdício no uso de instrumentos dialéticos para escla­
recer o que se passava historicamente.
Marx insistia em explicar sua concepção da história:

Na produção social de sua vida, os homens contraem determinadas relações


necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção, que cor­
respondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças pro­
dutivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura
económica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva a superestrutura
jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas de consciên­
cia social. O modo de produção da vida material condiciona o processo da
vida social, política e espiritual, em geral.

Este é um trecho do “Prefácio de 1859” à Contribuição à crítica da eco­


nomia política, livro que antecipava alguns temas e ideias de O capital22
E Marx prosseguia:

Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, ao contrá­


rio, o seu ser social que determina a sua consciência. Ao chegar a uma
determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da
sociedade se chocam com as relações de produção existentes, ou, o que
não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade den­
tro das quais se desenvolveram até ali. De formas de desenvolvimento das
forças produtivas, estas relações se convertem em obstáculos a elas. Abre-
se, assim, uma época de revolução social. Ao mudar a base económica, re­
voluciona-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura
erigida sobre ela.23

22 Marx, 1965.
23 Ibid.
184 Lições de história

Em conclusão, um conselho aos historiadores: “a anatomia da socie­


dade civil precisa ser procurada na economia política”.
Como todos os pensadores engajados, Marx se esforçava por in­
corporar à expressão das suas convicções elementos de símbolos que
ajudassem o pensamento a absorver tanto a teoria abstrata quanto a ex­
periência sensível concreta das pessoas capazes de construir um legíti­
mo movimento de massas. Marx, no entanto, advertia contra infiltrações
nostálgicas e escrevia: “a revolução do século XIX precisa deixar os mor­
tos enterrarem os seus mortos”. 24
Mesmo se libertando das ilusões da nostalgia, a elaboração de sím­
bolos se defrontava com a necessidade de recriar movimentos subjetivos
ligados a impasses e conflitos decorrentes da modernização do cotidiano
da sociedade. Pense-se no telefone, no telégrafo, no linotipo (agilizando a
rodução de jornais), nos cinemas, no automóvel, no avião, na iluminação
létrica nas cidades, no cimento armado nas construções e nas grandes
nudanças na sensibilidade das pessoas no final do século XIX.
Com a agitação de 1848, apareceram, no meio dos proletários in­
quietos, jovens que não tinham experiência, porém protestavam. Marx,
apontado como chefe de um partido, não se reconhecia nas ideias que lhe
eram atribuídas, sobretudo não concordava com a acusação de convocar
demagogicamente os trabalhadores. Dizia: “vocês têm pela frente 15, 20,
50 anos de guerras civis e lutas populares, não só para modificar as atu­
ais condições de trabalho, mas também para transformar suas próprias
pessoas e para se capacitarem para o exercício do poder político. Vocês
declaram: precisamos tomar o poder imediatamente, ou então vamos para
casa, dormir”.25
Revolução não se improvisa. Marx era um revolucionário que tinha
plena consciência das dificuldades que existem num processo de prepara­
ção para a revolução. Mesmo assim, quando discutiu com outros socialis­
tas, cobraram dele que fosse mais preciso na caracterização da sociedade
do futuro. A Revista Positivista foi a que lhe fez críticas mais acerbas. Marx
respondeu que não estava disposto a “preparar receitas para os caldeirões
do futuro”.26

24 Marx-Engels Werke... v. 8, p. 117.


25 Ibid., v. 8, p. 412.
26 Ibid., v. 23, p. 25.
A HISTÓRIA EM MaRX 185

Prever o futuro, como Marx sabia, é sempre uma aventura delirante.


Apesar de se recusar a ela, o filósofo se sentia solitário nessa recusa, já que
entre os revolucionários, tanto como entre os reformistas, eram frequentes
os casos em que se cedia à tentação.
O que o filósofo revolucionário podia fazer — e fez — era elaborar
uma teoria coerente e consistente, capaz de apoiar a ação sem se enfeudar
a ela e procurando preservar seu poder de criticá-la.
O conceito de práxis mostrou ser realmente imprescindível na articu­
lação da teoria com a prática, dando conta da criatividade da ação humana
tanto quanto da força da realidade objetiva. O ponto de partida era a práti­
ca, mas não a prática em geral, como se lê nos filósofos que representam o
pragmatismo. A prática essencial é aquela que articula as pessoas e a socie­
dade. Depende do seu aprofundamento decisivo para corrigir as distorções
da ideologia.27
Os seres humanos que pretendem superar a unilateralidade e as li­
mitações da ideologia são desafiados a combater a alienação. A história,
assim, tal como é feita por nós, é o campo de batalha por excelência do
confronto entre a liberdade e a necessidade.
O capital, o livro mais ambicioso de Marx, não esgotava seu projeto
revolucionário; era apenas a batalha preliminar que indicava por quais ca­
minhos a classe dos trabalhadores deveria avançar para destruir as bases do
sistema criado pela burguesia, o modo de produção capitalista.
O franco reconhecimento de que os fatos e os movimentos históricos
não cabiam na rígida ordem constituída pela chamada razão não significa­
va uma capitulação diante do irracionalismo, já que, por uma questão de
método, o não racional poderia sempre vir a ser superado e absorvido por
uma nova razão. E a nova razão não podia se fechar em face do aparente­
mente irracional. Como Marx escreveu a Kugelmann, “a história teria uma
natureza muito mística, se os acasos não desempenhassem nela nenhum
papel”.28
A mistura dos valores da vida pública e da vida privada aumentava
as dificuldades para quem se sentia comprometido com a proteção da uni-

27 Marx-Engels Werke... v. 8, p. 42.


28 lbid.,v. 33, p. 209.
186 Lições de história

dade básica da sua personalidade. Mesmo uma personalidade fortíssima


como a de Marx às vezes tropeçava nas armadilhas da ideologia. Os estu­
dantes gostam de ouvir o relato da atitude intolerante de Marx em face do
surgimento da relação amorosa de Laura, sua filha, com Paul Lafargue.29
Marx mandou uma carta para o candidato a ser seu genro, adver­
tindo-o de que devia assumir um ar “modesto e mesmo tímido” na pre­
sença de sua amada, um comportamento compatível com o meridiano de
Londres. Diz-lhe que não invocasse seu “temperamento créo/e” e evitasse
demonstrações de “uma familiaridade precoce”. Reclamou por não ter re­
cebido informações a respeito da família do jovem. E deixou transparecer
francamente sua irritação com o fato de Lafargue, como estudante, ainda
não ter se explicado a respeito de suas economias.
Marx, exilado na Inglaterra, sem dinheiro (sustentado pelo amigo En-
gels), conseguia a duras penas evitar delírios otimistas. Houve um momen­
to, porém, em que ele se entregou ao entusiasmo dos seus companheiros
e, numa carta a Engels, em 8 de outubro de 1858, previu que a revolução
no continente europeu era iminente e assumiria de imediato um caráter so­
cialista: “no continente, a revolução é iminente e logo assumirá um caráter
socialista”.30 Era, contudo, uma previsão equivocada.
Quando sua mulher morreu, Marx, pela primeira vez, saiu da Euro­
pa e foi à Argélia, onde passou poucos dias. De volta à Inglaterra, passou
por Paris, onde discutiu com os seus dois genros. Achou que ambos di­
vergiam dele, que Lafargue era “o último bakuninista” e Longuet era “o
último lassaliano”. Marx se aborreceu com os dois, sobretudo porque eles
se declaravam “marxistas”. Foi então que, em outra carta a Engels, escrita
em 11 de novembro de 1882, o filósofo disse: “o que eu sei é que eu não
sou marxista”.31
A partir de um certo ponto, Marx começa a usufruir do merecido
prestígio que lhe valia a dedicação ao socialismo durante tantos anos. Sua
relação com os dirigentes de outras tendências não era fácil. Os saint-simo-
nianos consideravam os marxistas expressões de ideias rudes. Os fourie-
ristas muitas vezes os viam como sabotadores do falanstério. Os owenistas

29 Kapp, 1980.
30 Carteggio Marx-Engels...
31 Marx-Engels Werke... v. 22, p. 69.
A HISTÓRIA EM MARX
187

ingleses consideravam-nos metafísicos. A relação com os teóricos não era


isenta de problemas, porém a relação prática com os outros grupos políti­
cos e seus dirigentes era ainda mais complicada.
Até mesmo o prestígio conquistado e o aparecimento de movimentos
de adesão às suas ideias provocavam um aumento e uma radicalização das
críticas que lhe eram feitas. Os anarquistas, em especial, tinham enormes
desconfianças da metodologia dos marxistas, e o líder dos “socialistas li­
bertários”, Bakunin, oscilou entre a admiração e o ódio por Marx. Os anar­
quistas faziam política em constante conflito com os socialistas que eram
influenciados por Marx.
Marx, sem interromper os estudos preparatórios de O capital e conti­
nuando a escrever artigos para os jornais, mantinha também uma intensa
atividade política, em torno da criação da Associação Internacional dos
Trabalhadores (que viria a ser chamada de A Primeira Internacional).32
A Primeira Internacional durou até 1872. Seus dirigentes (Marx entre
eles) chegaram a pensar em transferi-la para os Estados Unidos. Marx ti­
nha uma enorme admiração por Abraham Lincoln. Não adiantaria nada, a
Internacional estava perdida, as novas condições sociais, económicas e cul­
turais não lhe davam espaço para atuar na Europa, sob a onda de repressão
que se seguiu à derrota da Comuna de Paris, em 1871. No final do sécu­
lo XIX, a situação já estava mudando. E uma nova organização substituiu,
com vantagem, a Primeira pela Segunda Internacional, fundada em 1892.
Marx não a viu, porque tinha morrido em 1883. Engels ainda estava
vivo e teve participação destacada no evento. Os anarquistas se mobiliza­
ram contra o filósofo, atribuindo-lhe a responsabilidade pela exclusão dos
“libertários” da Primeira Internacional e, também, pela exclusão deles na
Segunda.33
Nas condições do final do século XIX (a chamada Belle Époque), foram
criados os primeiros partidos de massa na história política do Ocidente e
foi conquistado, nos pontos decisivos, o sufrágio universal que abria es­
paço para um movimento de massas fortalecido. As contradições sociais e
as lutas de classe se tornaram mais sofisticadas, mais complexas, mas não
desapareceram. As batalhas da cultura ganharam uma importância maior

32 Andreucci, 1979:15-73.
33 Ibid.
188 Lições de história

do que aquela que haviam chegado a ter no passado. A chamada “indústria


cultural”, que tratava os bens da cultura como quaisquer outras mercadorias,
começou a ganhar muito dinheiro com a produção editorial e farejou os
lucros monumentais que desejava faturar com o cinema, que estava sendo
inventado no final do século XIX.
Os adversários políticos fustigavam Marx constantemente e ele re­
trucava com fúria. Nas cartas que escrevia para Engels, apareciam sempre
expressões drásticas, adjetivos irritadíssimos. Referindo-se a Garibaldi, o
herói italiano, classificou-o como “um asno”.34 Descreveu Bakunin como
“uma massa monstruosa de carne e banha”. Liebknecht, que era um amigo
fiel e dedicado, empenhado em fazer em Berlim o que achava que Marx e
Engels queriam, é chamado “bufão” e “imbecil”.
Pouco antes de morrer, doente, Marx escreveu a Engels, em 10 de
outubro de 1882, carta falando mal de seu genro Paul Lafargue,35 e fez uma
referência infeliz e surpreendentemente preconceituosa ao bravo Lafargue:
“o método dele com sua feia ascendência negra o faz perder o senso de
pudor e resvalar para o ridículo”.36
O fato de nos defrontarmos com os excessos e explosões de raiva
da correspondência não significa que os méritos de Marx estejam sendo
negados. Através de toda a sua trajetória de lutas pela igualdade e pela
liberdade, Marx se tornou uma figura cuja grandeza dificilmente poderia
ser negada.
Embora não tenha escrito nenhum ensaio sobre problemas específi­
cos da cultura, Karl tinha uma formação cultural extremamente sofisticada.
Aproveitou muito bem a escola em Trier e a temporada em Berlim. Sua
cultura literária era impressionante. Imagino qual pode ter sido sua emo­
ção ao ler a Odisseia de Homero.37 Podemos imaginá-lo diante da cena em
que o grego Ulisses, na direção de seu navio, vê aproximar-se a zona em
que as sereias, com seu canto, atraíam os homens, os enlouqueciam e os
faziam morrer.

34 Carteggio Marx-Engels....
35 Paul Lafargue fez grande sucesso com seu livro O direito à preguiça.
36 Carteggio Marx-Engels...
37 Souvemirs sur Marx et Engels...
A HISTÓRIA EM MARX 189

Ulisses, que não admite ser excluído de nada, resolve tornar-se o úni­
co mortal que ouviu o canto das sereias e não morreu. Manda seus mari­
nheiros taparem os ouvidos com cera e manda também que eles o amar­
rem firmemente ao mastro da embarcação. Recomenda, além disso, que,
aconteça o que acontecer, eles não o desamarrem por mais que ele possa
esbravejar.
Marx, ao longo da sua caminhada, identificou-se bastante com o
Odisseu. Talvez se possa sublinhar e até desenvolver essa identificação,
observando que Ulisses precisou lutar em Troia durante 10 anos e na volta
para casa, na sua navegação para ítaca, levou outros 10 anos, porque caiu
em desgraça em face de um deus, Poseidon, que era ninguém menos que
o deus do mar. Desse modo, Ulisses podia ensinar a Marx como sobreviver
a muitos naufrágios e continuar sua participação na guerra pela liberdade
e pela justiça.
Ainda há outro ponto de contato entre o Ulisses de Homero e Karl
Marx. Capturado com seus homens por um gigantesco ciclope, que lhe
pergunta como ele se chama, o herói grego responde: “ninguém”. Depois,
aproveitando o sono do inimigo, fura-lhe o único olho. O gigante informa
aos seus parceiros que o responsável pela desgraça era Ninguém. Ulisses
tinha se inserido na história para poder vencer uma batalha desigual. A
história permite até reviravoltas como essa.
Thomas Carlyle
Jurandir Malerba

“Nenhuma prova mais lamentável pode dar um homem de sua própria


pequenez do que desdenhar do grande homem.”
Carlyle, On heroes and hero worship (1841)

Nascido em 1795 em Ecclefechan, Escócia, o historiador e ensaísta britâni­


co Thomas Carlyle foi um dos mais renomados intelectuais da época vito­
riana. Filho de um pedreiro de ofício, depois pequeno fazendeiro, Carlyle
foi criado na mais severa rotina calvinista. Aos 15 anos de idade ingressou
na Universidade de Edimburgo, concluindo seu bacharelado aos 18 anos.
Nos cinco anos seguintes, estudou para tornar-se ministro da Igreja da Es­
cócia, abandonando, porém, essa formação para dedicar-se por um curto
período ao estudo do direito.1
Carlyle lecionou na Annan Academy (1814-1816), na Kircaldy Gram-
mar School (1816-18), e no ensino privado em Edimburgo (1818-1822),
mas a docência não lhe apetecia. Nessa época trabalhou no seu livro Life of
Schiller, publicado originalmente na London Magazine nos anos 1823/1824.
Contribuiu com artigos para a Edinburgh Encyclopedia, assim como para os
periódicos Edinburgh Review e Frasefs Magazine.2 Nesta, publicou o ensaio

1 Em seu On the choice of the books, há um longo ensaio biográfico escrito por Richard Heme
Shepherd (1881). Seu maior biógrafo, James Anthony Froude, publicou também a correspon­
dência de Jane Carlyle. Ver também Collins (1971); Kaplan (1983); Lequesne (1982). Também
o verbete “Thomas Carlyle”, da Encyclopaedia Britannica (disponnível em: <www.britannica.
com/eb/article-1132/Thomas-Carlyle>).
2 Jessop, 1997
192 Lições de história

On history, em 1830. Desde 1824, dedicou-se exclusivamente ao ofício de


escritor, dirigindo sua atenção para o estudo da literatura alemã, particu­
larmente para a obra de Goethe. Carlyle praticamente introduziu a literatu­
ra e a filosofia alemãs contemporâneas para o público inglês. Sua tradução
da obra de Goethe foi incensada pela crítica especializada.
Casou-se em 1826 com Jane Baillie Welsh, a quem conheceu muito
antes da fama. Jane era filha de um homem muito culto de Heddington,
foi bem educada e diz-se ter sido uma mulher muito bonita, que veio a
ser uma exímia missivista de sua época — seu círculo de correspondentes
incluía proeminentes vitorianos. Mais tarde, Virginia Woolf viria a chamá-
la a “mais cáustica, concreta, perspicaz das mulheres”.3 Nunca preten­
deu, porém, ofuscar o brilho de seu famoso marido. Os Carlyle viveram
seus primeiros anos de casamento numa distante propriedade rural em
Dumfriesshire. Pressionados por dificuldades financeiras, os Carlyle re-
ornaram à fazenda da família de Jane em Craigenputtock, quando ele
issou a dedicar-se exclusivamente à escrita. Em sua passagem por Lon-
;es em 1831, Carlyle tornou-se muito próximo de John Stuart Mill, que
j iniciaria no estudo do filósofo e ensaísta americano Emerson. Não obs­
tante suas personalidades muito diferentes, Carlyle manteve com Emer­
son uma intensa correspondência que durou décadas.4
Depois de fracassar na obtenção de vários postos que almejava, Car­
lyle mudou-se com sua esposa para Londres definitivamente em 1834.
Embora nada tivesse ganhado com seus escritos por cerca de um ano, e
passando por situação de grave penúria, ele insistia em seu projeto de
um ambicioso livro de história sobre a Revolução Francesa. É deveras
conhecida a estória de como Carlyle teve que reescrever The French Re-
volution, cuja única cópia manuscrita ele havia enviado para seu amigo
Stuart Mill, cuja empregada a queimou por engano. Depois desse inci­
dente, Carlyle se entregou a reescrevê-lo, concluindo-o em 1837. Esse
livro significou a redenção de Carlyle, sendo aclamado pela crítica e pelo
público, o que resultou em inúmeros convites de trabalho, de modo a
pôr fim às dificuldades financeiras que marcaram o período anterior da
vida dos Carlyle.

3 Apud Larkin (1970).


4 Ne ff, 1964; Harris, 1978; Sanders e Clubbe, 1976.
T HOMAS C ARLYLE 193

De acordo com sua ideia da história como “escritura divina”, Carly-


le percebia a Revolução Francesa como um julgamento sobre a loucura
e o egoísmo da monarquia e da nobreza. Essa ideia singela foi apoiada
com um volume imenso de detalhes bem documentados e uma habili­
dade notável para caracterizar os personagens. Embora muitos leitores
se assustassem com o dramático de sua narrativa, o público rendeu-se
às arengas proféticas de Carlyle e sua sensibilidade em relação à situação
contemporânea.5
Mas seu livro de estreia foi Sartor Resartus, publicado em 1833/1834.
Meio autobiográfico, meio filosófico, esse trabalho foi escrito numa lingua­
gem enérgica e complexa, que foi posteriormente batizada de “carlylês”.6
Embora seja passível de dúvida se tudo aquilo que narra no livro foi efeti­
vamente vivido, aquela virulência na pena é certamente uma característica
do espírito sofrido e hostil de Carlyle. A época em que começa a escrever o
Sartor, por volta de 1821, coincide com aquela em que se inicia no estudo
sistemático do pensamento alemão, que permanecerá para sempre a litera­
tura que ele de longe mais apreciava. Tinha especial reverência por Goethe,
de quem publicou uma tradução de Wilhelm Meister’s apprenticeship em
1824.7 Outra obra substantiva, uma história da Revolução Francesa em
três volumes, veio a lume ainda em 1837, e uma biografia de Frederico, o
Grande, saiu entre 1858-65. Entre 1837 e 1840, Carlyle proferiu uma série
de lectures, das quais a mais famosa é On heroes, hero-worship and the heroic
in history.8 Com essa obra, sua reverência para com os fortes, os podero­
sos, particularmente quando combinada com a ideia da “missão divina”,
começava a ganhar destaque. Ele discutiu o herói como divindade (nos
mitos pagãos), como profeta (Maomé), como poeta (Dante e Shakespeare),
como pregador (Lutero e Knox), como homem de letras (Johnson e Burns)
e como rei (Cromwell e Napoleão). Dois anos depois, essa concepção do
herói foi reelaborada em Past and present, onde Carlyle contrasta o governo
sábio e forte de um abade medieval vis-à-vis a suavidade desordenada e o
caos do século XIX, pronunciando-se francamente em favor do primeiro,

5 Rosenberg, 1985.
6 Levine, 1968.
7 Harrold, 1963.
8 Há tradução brasileira (Carlyle, 1963).
194 Lições de história

não obstante o fato de ter rejeitado a cristandade dogmática e manifestado


uma especial aversão para com a Igreja Católica Romana.
O material histórico foi o principal substrato com que Carlyle pensou
a questão dos “heróis”. A partir desse espírito intuitivo ele pôde escrever
livros como The French Revolution (1837), On heroes and hero worship, Oliver
CromwelVs letters and speeches (1845), e Frederick II of Prussia (1858-65).
Porém, Carlyle nunca foi capaz de reconhecer qualquer valor no homem
comum. Aqui talvez resida — mais do que em qualquer diatribe histórica
a respeito dos evangelhos — o centro de seu embate com a cristandade,
que depositava valor demasiado nos fracos e pecadores, na avaliação incle­
mente de Carlyle. Embora guarde com Michelet a semelhança da mesma
pena inflamada, diferentemente do mestre francês tinha verdadeiro despre­
zo pelo que vinha do povo. Pode-se dizer, nesse sentido, que Carlyle é o
próprio anti-Michelet.
Não obstante, Carlyle também se opunha ao raciocínio analítico e ao
tratamento científico das questões sociais tais como praticados pelos eco­
nomistas políticos racionalistas; advogava, em seu lugar, uma abordagem
mais emocional e intuitiva dos pensadores alemães dos séculos XVIII e
XIX, tais como Richter e Goethe. Seu Sartor Resartus era uma autobiogra­
fia disfarçada, no qual ele enfrentou as tendências vigentes de ceticismo
intelectual para entregar-se a uma vida de afirmação espiritual. A primeira
parte da obra é sobre as ideias de um filósofo autodidata que acredita que
tudo pode ser explicado com base no vestuário. The French Revolution foi
escrita numa linguagem dramática que traz a história da revolução tão viva
como poucos autores jamais fizeram.9
A carreira de ensaísta de Carlyle teve início com duas peças publi­
cadas na Edinburgh Review em 1827. Ele expressava simpatia quanto à
questão das condições da classe trabalhadora em seu longo ensaio sobre o
Cartismo (1839), onde destilava um discurso ácido contra a teoria econó­
mica convencional — e onde convergiam e se mesclavam elementos an­
tagónicos, que iam de um progressismo radical à atitude reacionária, que
só uma mente brilhante e conflituosa como a de Carlyle poderia criar. Em
“The negro question” (1850), ele tratou da escravidão nas índias ocidentais

9 Ben-Israel, 1958; Ryals, 1987. Sobre o estilo narrativo de Carlyle, analisado de uma perspec-
tiva pós-moderna, ver Schoch (1999).
Thomas Carlyle 195

em termos destemperados e, para o leitor moderno, até repugnantes. O


cinismo de Carlyle para com a sociedade inglesa ficou evidente em Latter-
day pamphlets (1850). Como em seus estudos históricos, Carlyle insistia
na importância do indivíduo e levantava sérios senões à democracia, à
perseguição em massa e à política. Tais concepções acabaram por isolá-
10 das vertentes liberais e democráticas de sua época. No século XX, sua
reputação se arrefeceu, em parte por causa de sua confiança na autoridade
e sua admiração pelos líderes poderosos, que foram interpretadas como
um prenúncio do nazismo. Conta-se a estória de que, por volta do final da
11 Guerra em 1945, Gobbels teria apresentado a Hitler a obra de Carlyle
sobre Frederico, o Grande.10
Depois da morte de sua mulher em 1866, fortemente sentida, Carlyle
retirou-se da vida pública e pouco escreveu. Na verdade, jamais se recupe­
rou de tal perda. Jane registrara seus pensamentos mais amargos num diário
secreto que Carlyle depois encontrou. Mas, numa carta a Emerson, disse:
“luminosa, heroica, meiga, verdadeira e nobre foi aquele tesouro perdido
do meu coração, que fielmente me acompanhou por todos os caminhos pe­
dregosos; serei para sempre um pobre sem ela”. Ele deu os papéis e cartas
de Jane para seu amigo James Anthony Froude em 1871, que publicou o
material após a morte de Carlyle. Froude também publicou as Reminiscences
de Carlyle (1881) e uma biografia sua em quatro volumes (1882-84), consi­
deradas pela crítica como das melhores biografias escritas desde sempre na
Inglaterra.11 Carlyle foi nomeado reitor da Universidade de Edimburgo em
1866. Seu discurso de posse, depois publicado com o título sugestivo de On
the choice oj the books,12 foi marcado pelo tom da exortação moral. Em 1874
recebeu a Ordem do Mérito da Prússia. No entanto, Carlyle declinou do ba­
ronato oferecido por Disraeli. Carlyle faleceu em 5 de fevereiro de 1881 em
Londres e está enterrado em sua terra natal, em Ecclefechan.
Principais obras de Carlyle:

♦ Wilhelm Meister's apprenticeship (1824) — tradução do romance de


Goethe;

10 Grierson, 1930.
11 Froude, 1970.
12 Carlyle, 1881.
196 Lições de história

4- The life of Schiller (1825);


♦ Sartor Resartus: the life and opinions of Herr Teufelsdròckh (1836);
*4 The French Revolution: a history (1837);
4- Criticai and miscellaneous essays (1838, reeditado em 1890);
4- On heroes, hero-worship and the heroic in history (1841);
4- Past and present (1843);
4- Latter-day pamphlets (1850);.
4- Life ofJohn Sterling (1851);
4- Frederick the Great (1857-1865). 6v.;
4- Reminiscences (1881) — editado por James Anthony Froude.

Sobre a história13

Clio era representada pelos antigos como a primogénita da deusa Me­


mória, e chefe das Musas; quer consideremos as qualidades essenciais de
sua arte, quer sua prática e aceitação entre os homens, nós ainda devemos
considerar ter sido adequadamente aplicada tal dignidade. A história, que
jaz na raiz de todas as ciências, é também o primeiro produto distinto
da natureza espiritual dos homens; sua mais antiga expressão daquilo que
podemos chamar pensamento. É um olhar tanto ao antes como ao depois;
enquanto, inegavelmente, o tempo vindouro já aguarda, invisível, embora
definitivamente moldado, predeterminado e inevitável, no porvir; e apenas
pela combinação dos dois o sentido de cada um se completa. Os Livros das
Profecias, embora antigos, não são os mais antigos. Algumas nações têm
profecias, outras não: mas dentre toda a humanidade, não há tribo tão rude
que não tenha atentado a história, embora delas haja inúmeras que não
tenham aritmética suficiente para contar até cinco. A história tem sido es­
crita com fios de quipo,14 com pinturas de pena, com cintos de wampumj5

13 Publicado originalmente na Frazer’s Magazine, n. 10, 1830. Ver Carlyle (1893). Tradução e
notas de Jurandir Malerba.
14 Do espanhol quipo, do quéchua khipu: instrumento feito de uma corda principal com cordões
multicores menores atados e amarrados, usado pelos antigos habitantes do Peru (para calcular,
por exemplo).
15 Rosário de conchas polidas amarradas em cintos ou xales e usado pelos índios norte-ameri­
canos como dinheiro, ornamento ou como vestes cerimoniais.
ThOM AS C ARLYLE 197

ainda mais frequentemente com elevados de terra ou pedras monumentais,


sejam pirâmides ou obeliscos funerários; para o celta e para o copta, para
o pele vermelha tanto quanto para o branco, vidas entre duas eternidades
e prevenção contra o olvido [oblivion], de bom grado ele se uniria em clara
relação consciente, como unido já está numa obscura relação inconsciente,
com todo o futuro e todo o passado.
Um talento para a história pode-se dizer que nasça conosco, como
uma de nossas principais heranças. Num certo sentido, todos os homens
são historiadores. Não é toda memória plenamente escrita em anais, dentro
dos quais a alegria e a lamúria, a conquista e a perda de vários modos se
alternam? E, com ou sem filosofia, todas as fortunas de um pequeno reino
interior, com toda sua política, exterior e doméstica, não se mantêm inde­
levelmente registradas? Nosso próprio discurso é curiosamente histórico. A
maioria dos homens, você pode observar, fala apenas para narrar; narradores
discursam não por compartilhar o que eles pensaram, o que sói ser em geral
assunto muito pequeno, irrelevante; mas por expor o que eles viveram ou vi­
ram, isto sim assunto quase ilimitado. Suprima-se a narrativa, e então o fluxo
da conversação, mesmo entre os mais sábios, perde-se em partes separadas,
e no trivial fatalmente se esvanece. Portanto, porque nós nada fazemos senão
ordenar a história, nós pouco dizemos, senão a narramos: não só isso mãs
ainda mais, num sentido mais amplo, toda nossa vida espiritual constrói-se
desse modo. Porque, num sentido estrito, o que é todo conhecimento senão
experiência registrada e um produto da história; de que, por conseguinte,
razão e fé, não menos que ação e paixão, são elementos fundamentais?
Sob uma forma limitada, e a única praticável, aquela parte da história
que trata de ações memoráveis, em todos os tempos antigos e modernos,
classificava-se entre as artes mais elevadas, e talvez nunca tenha estado
tão elevada quanto nos dias de hoje. Pela razão de que, há muito tempo,
o fascínio da história assenta principalmente em satisfazer nosso apetite
comum pelo maravilhoso, pelo desconhecido; e seu ofício não era senão
como aquele do menestrel e do contador de estórias, ela tomou-se, além
disso, uma professora primária — e professa instruir em recompensar. Se,
com a magnificência daquele venerável caráter, ela não aprendeu algo de
sua austeridade e frieza; se na concisão lógica de um Hume16 ou de um Ro­

16 David Hume (1711-1776): filósofo, economista e historiador do Iluminismo escocês, uma


das mais importantes personagens da história do pensamento moderno. Autor de A tratise oj
198 LiçOes de história

bertson,17 o gracioso bem-estar e o jovial vigor pictórico de um Heródoto


ou de um Froissart18 não podem estar ausentes, não é aqui a questão para
nós. Basta que todos os aprendizes, todas as mentes curiosas de toda or­
dem, sejam reunidos em torno de seu pedestal, e com reverência meditem
sobre suas lições, como a verdadeira base da sabedoria. Poesia, teologia,
política, física têm seus seguidores e adversários; cada pequena corporação
suportando uma guerra ofensiva ou defensiva por seu próprio domínio es­
pecial; em vez disso, o domínio da história é um armazém livre, onde todos
esses beligerantes se encontram em paz e se abastecem; e o sentimentalista
e o utilitário, o cético e o teólogo, em uma só voz nos advertem: estudem a
história, pois ela é “a filosofia ensinando pela experiência”.
Longe esteja de nós menosprezar tal ensinamento, muita atenção ao
qual deve ser dispensada. Tampouco devemos muito rigidamente inquirir:
quanto até aqui ela ganhou? Se a maior parte dos pequenos conhecimen­
tos práticos que os homens possuem foi adquirida do estudo da história
professada, ou de outras fontes menos alardeadas, então, sendo assim, um
Marlborough pode tomar-se grande nos negócios do mundo, mesmo que
nenhuma história guarde o que ele extrai das peças de Shakespeare? Mais
ainda, se naquele mesmo aprendizado pela experiência, a filosofia histórica
já decifrou com propriedade o primeiro elemento de toda ciência nesse
gênero: qual poderá ser, então, o propósito e a significância daquela extra­
ordinária vida inconstante que ela investiga e pinta? De onde o curso dos
destinos do homem nesta Terra se origina, e para que fim ele tende? Ou,

human nature (1739) e An inquire conceming the human understanding (1748), sua History ofEn-
gland (1778), em seis volumes, é considerada um marco da historiografia inglesa.
17 William Robenson (1721-1793): clérigo e historiador escocês, foi um dos primeiros a abor­
dar a história como uma ciência empírica. Sua History of Scotland during the reigns oj Queen Mary
and KingJames VI (1759) consiste numa história factual e pragmática e foi aclamada por autores
como Edmund Burke, David Hume e outros. Foi reitor da Universidade de Edinburgo (1762) e
historiógrafo real (1764). Entre suas obras destacam-se The history oj the reign of Charles V (3v.,
1796), e History of the discovery and settlement of America (1777).
18 Jean Froissart (c.1337-1410?), cronista, poeta e cortesão francês. Embora ordenado padre,
teve uma vida mundana. Tornou-se um protégé da rainha Filipa da Inglaterra, visitou a corte de
David II da Escócia e acompanhou Eduardo, o Príncipe Negro, em sua campanha na Gasconha.
Sua crónica, que continua a de Jean le Bei, cobre a história da Europa ocidental do início do
século XIV até 1400, praticamente a primeira metade da Guerra dos Cem Anos. No mérito
literário, a crónica de Froissart é considerada muito superior a qualquer trabalho similar em
qualquer língua.
Thomas Carlyle 199

deveras, se eles possuem algum curso ou tendência, são realmente guia­


dos adiante por uma misteriosa sabedoria invisível, ou apenas vagueiam
numa cega confusão sem uma orientação reconhecível? Fundamentais em
qualquer filosofia da história, tais questões, desde a época quando analistas
monacais eram levados a respondê-las sob a luz há muito tempo extinta de
seus missais e breviários, têm sido apenas dubiamente e à distância vislum­
bradas pela maioria dos historiadores filosóficos; muitos nem sequer de
longe as contemplam.
A verdade é que duas dificuldades, nunca totalmente superáveis,
permanecem no caminho. Antes que a filosofia possa ensinar pela ex­
periência, a filosofia tem que estar em prontidão, a experiência tem que
estar reunida e registrada de forma inteligível. Agora, descurando da con­
sideração precedente, e levando-se em conta apenas a anterior, deixe-se
qualquer um — que tenha examinado a torrente dos acontecimentos hu­
manos, e quão intricada, perplexa, incomensurável, mesmo quando vista
por dentro com nossos próprios olhos, são seus movimentos mil vezes
matizados —, deixe-se qualquer um dizer se a verdadeira representação
dessa torrente é fácil ou impossível. A vida social é o ajuntamento das
vidas de todos os indivíduos que constituem a sociedade; a história é a
essência de inumeráveis biografias. Porém, se uma biografia, mesmo nos­
sa própria biografia, a estuda e resgata conforme podemos, muitos pontos
ininteligíveis para nós ainda persistem; que dirá então desse milhão de
fatos, os mesmos fatos dos quais, para nada dizer do seu propósito, nós
nada sabemos, nem podemos saber!
Tampouco propriamente nos permitirá afirmar que a condição geral
interior da vida é a mesma em todas as épocas; e que apenas os desvios
notáveis do dom comum e da sina comum, e as variações mais importantes
que a figura visível da vida de tempos em tempos experimenta, merecem
memória e registro. A condição interior da vida, deve-se afirmar, o propó­
sito consciente ou semiconsciente da humanidade, na medida em que os
homens não são meras máquinas compiladoras, nunca é a mesma em duas
épocas; nem são as variações exteriores mais importantes fáceis de se fixar,
ou sempre passíveis de representação. Qual foi o maior inovador, qual foi
o mais importante personagem na história do homem, aquele que pela pri­
meira vez conduziu exércitos sobre os Alpes e obteve as vitórias de Cannae
200 LiçOes de história

e Trazimene;19 ou o camponês anónimo que pela primeira vez forjou para si


uma espada de ferro? Quando o carvalho é derrubado, toda a floresta com
ele ecoa; mas uma centena de suas castanhas é silenciosamente plantada
por uma brisa imperceptível. Batalhas e guerras, que ao tempo estrondeiam
os ouvidos, e com prazer ou terror intoxicam os corações, desaparecem
como uma briga de bar; e, exceto algumas Maratonas20 ou Morgartens,21
são lembradas por acaso, não por merecimento. As próprias leis, as cons­
tituições políticas, não são nossa vida, mas apenas a casa para dentro da
qual nossa vida é conduzida: nem isso elas são, senão as paredes expostas
da casa; universo cujo mobiliário principal, as invenções e tradições, e os
hábitos cotidianos que regulam e suportam nossa existência não são obra
de Drácons22 e Hampdens,23 mas de marinheiros fenícios, de pedreiros ita­
lianos e metalúrgicos saxões, de filósofos, alquimistas, profetas e todo o
conjunto há muito esquecido de artistas e artesãos que pela vez primeira
conjuntamente nos ensinou como pensar e como agir, como dominar a na­
tureza física e espiritual. Nós bem poderíamos dizer que de nossa história
a parte mais importante perdeu-se sem deixar vestígio; e — como ações de
graças já foram por costume uma vez oferecidas “para mercês desconhe­
cidas” — olhar com reverência para os sombrios lugares desabitados do
passado, onde, em informe esquecimento, nossos principais benfeitores,

19 Cidades italianas por onde marchou vitorioso o exército napoleônico durante o bloqueio
continental.
20 A Batalha de Maratona (490 a.C.) foi o ápice da maior tentativa do rei Dario da Pérsia de con­
quistar o resto da Grécia e incorporá-la ao império persa, visando proteger a parte mais fraca de
sua fronteira ocidental. É basicamente conhecida graças ao legado de Heródoto.
21 Batalha de Morgarten: travada em 15 de novembro de 1315 entre a Confederação Helvética
e os exércitos da casa dos Habsburgos, liderada pelo duque Leopoldo I da Áustria. Ela marca a
independência da Suíça, constituída então apenas de três cantões: Uri, Unterwalden e Schwz,
que haviam assinado a Carta de Aliança em 1291, na qual se comprometiam a se ajudar mu-
tuamente em caso de ataques estrangeiros.
22 Draco foi o primeiro legislador da Atenas antiga, no século VII a.C., que escreveu sua primeira
Constituição.
23 John Hampden (c. 1595-1643): nascido em Londres, filho de um grande proprietário rural de
Buckinghamshire e Middlesex, era primo de Oliver Cromwell por parte de mãe. Formou-se em
direito no Magdalen College, Oxford (1610) e, depois, no Inner Temple (1613). Várias vezes
ministro do parlamento inglês, contemporâneo de outros famosos legisladores ingleses como
John Elliot e John Pym, Hampden é considerado um dos principais motivadores da guerra civil
inglesa, na qual teve ativa participação, em função das posições que assumiu em dois episódios,
em geral relacionados com a ilegalidade de impostos e leis.
Thomas Carlyle 201

com todos os seus trabalhos diligentes, mas não com o fruto deles, jazem
sepultados.
Tão imperfeita é aquela mesma experiência, pela qual deve a filosofia
ensinar. Mais ainda, mesmo em relação àquelas ocorrências que permane­
cem registradas, as quais em sua origem pareciam dignas de registro, e o
sumário das quais constitui o que nós agora chamamos história, acaso não
é inteiramente incompleto nosso entendimento delas? Será mesmo possível
representá-las como elas de fato ocorreram? A velha estória de Sir Walter
Raleigh24 olhando da janela de sua cela um tumulto da rua, que logo depois
três testemunhas reportaram de três maneiras diferentes, a dele diferindo
de todas as demais, ainda é uma verdadeira lição para nós. Considere como
é que os documentos e registros históricos se originam; mesmo registros
honestos, onde os informantes são imparciais por pessoal motivação; um
caso que, ainda que nada mais desejável, deve estar entre os mais raros. Os
reais traços dominantes de um documento histórico, aqueles movimentos
que o caracterizam essencialmente, e que por si sós merecem ser registra­
dos, não são de modo algum os primeiros a serem notados. Em primeiro
lugar, entre as várias testemunhas, que são também partes interessadas,
há apenas vaga surpresa, e medo ou esperança, e o burburinho do rumor
de milhares de línguas; até que, depois de uma temporada, o conflito de
testemunhas decantou-se em alguma questão geral; e então está assentado,
por decisão da maioria, que tal e qual “travessia do Rubicão”, “impeachment li
de Strafford”, “convenção dos notáveis” são épocas na história do mundo,
pontos cardeais sobre os quais grandes revoluções mundiais se dobram.
Suponha, contudo, que a decisão da maioria estava toda errada; que os
pontos cardeais jazem muito mais profundos; e que passaram despercebi­
dos, porque nenhum adivinho, mas apenas um mero espectador, aconte­
ceu de estar ali! Nosso relógio badala quando a hora muda; mas nenhum
martelo do cronómetro do tempo ressoa pelo universo quando há uma
mudança de uma era a outra. Os homens nada entendem do que está em
suas mãos: essa mansidão é característica de força, de modo que as causas
de maior peso podem ser também as mais silenciosas. Não é, em caso al-

24 Walter Raleigh (1552-1618): famoso explorador, cortesão, poeta e escritor inglês, responsável
pelo estabelecimento da primeira colónia inglesa na América, em 1584, onde hoje é a Carolina
do Norte.
202 Liçóes de história

gum, o autêntico tratado histórico, mas apenas algum esquema ou teoria


do tratado mais ou menos plausível, ou o resultado harmonioso de muitos
desses esquemas, cada qual variando em relação ao outro e todos variando
em relação à verdade, que não podemos jamais esperar vislumbrar.
Mais que isso, ainda que nossa faculdade de discernimento das coisas
passadas nunca tenha sido tão completa, persiste ainda uma discrepância
entre nossa maneira de observá-las e sua efetiva maneira de ocorrência. O
mais dotado dos homens pode observar, e mais ainda registrar, apenas as
séries de suas próprias impressões: sua observação, portanto, para nada di­
zer de suas outras imperfeições, deve ser sucessiva, enquanto que as coisas
acontecidas são geralmente simultâneas; as coisas feitas não formavam uma
série, mas um grupo. Não é representado, como na história escrita: eventos
reais não são de modo algum simplesmente relacionados uns aos outros
como são os pais e sua prole; cada evento singular é filho não de um, mas
de todos os outros eventos, antecedentes ou contemporâneos, e, por sua
vez, irá combinar-se com todos os outros para dar origem a um novo: tra­
ta-se de um sempre vivo, sempre atuante caos do ser, no qual forma após
forma vai tomando corpo a partir de inumeráveis elementos. E esse caos,
infinito como a habitação e a duração do homem, insondável como a alma
e o destino do homem, é que o historiador irá descrever, e cientificamente
representar, podemos assim dizer, costurando-o com as linhas singulares e
pouco compridas de que dispõe. Não obstante, toda ação, por sua própria
natureza, deve ser figurada tanto em sua largura e profundidade quanto
em seu comprimento; quer dizer, é baseada na paixão e no mistério, se
investigamos sua origem; e espalha-se por todas as mãos, transformadora
e transformada; assim como avança para sua completude — de modo que
toda narrativa é, por sua natureza, unidimensional; movimenta-se adiante
rumo a um ou a sucessivos pontos; a narrativa é linear, a ação é contínua. Ai
de nós por nossos “grilhões”, ou pequenas correntes, de “causas e efeitos”,
que nós tão assiduamente seguimos por carradas de anos e milhas quadra­
das, quando o todo é uma ampla e profunda imensidão, e cada átomo é
“encadeado” e completado com todos os demais. Em verdade, se a história
é a filosofia ensinando pela experiência, o escritor preparado para compor
a história é até aqui um homem desconhecido. A própria experiência re­
quereria todo o conhecimento para registrá-la — fosse a toda a sabedoria
necessária para tal filosofia tal como a interpretasse, para ser tida gratuita-
T HOMAS C ARLYLE 203

mente. Melhor seria que os meros historiadores mundanos baixassem suas


pretensões, mais apropriadas para a onisciência do que para a ciência hu­
mana; e, visando alcançar apenas alguma imagem das coisas vividas, cuja
imagem mesma será, na melhor das hipóteses, uma aproximação pobre,
deixassem o inescrutável sentido delas como um segredo admitido; ou, no
máximo, em reverente fé, muito diferente daquele ensino de filosofia, inter­
rompessem seus misteriosos vestígios, cujo caminho espreita-se na grande
profundeza do tempo, que a história de fato revela, mas que apenas toda a
história, na eternidade, claramente revelará.
Tais considerações realmente seriam de pouco proveito se elas, em
vez de nos ensinar vigilância e humildade reverente em nossas investiga­
ções pela história, enfraquecessem nossa estima por elas, ou nos desenco­
rajassem de incansavelmente persegui-las. Deixem-nos pesquisar mais e
mais o passado; que todos os homens o explorem, como a verdadeira fonte
do conhecimento; por cuja única luz, consciente ou inconscientemente
empregada, podem o presente e o futuro ser interpretados ou resolvidos.
Não obstante, todo o significado jaz para além de nossa compreensão; por
ora, naquele complexo manuscrito, escrito com informes e inextricavel-
mente emaranhados caracteres desconhecidos — que, mais que isso, é um
palimpsesto e teve outrora escritura profética, ainda vagamente ali legí­
vel —, é possível decifrar algumas letras, algumas palavras, bem como reu­
q.i;
nir, não uma filosofia completa, mas aqui e acolá um preceito inteligível,
disponível na prática; entenda-se bem, nesse ínterim, que é somente uma
pequena parte que nós deciframos; que ainda muito está por ser interpre­ *

tado; que a história é um manuscrito profético verdadeiro, e que não pode


ser inteiramente interpretado por homem algum.
Porém, o artista da história deve ser distinto do artesão da história;
pois aqui, como em todas as outras províncias, há artistas e artesãos; ho­
mens que trabalham mecanicamente num departamento, sem olhos para
o todo, nem percepção de que exista um todo; e homens que animam e
enobrecem o mais modesto dos departamentos com uma ideia do todo, e
via de regra sabem que somente no todo a parte pode ser verdadeiramente
compreendida. Os procedimentos e as tarefas desses dois, com relação à
história, devem ser completamente diferentes. Não que cada um não tenha
seu real valor, em seus vários graus. O simples fazendeiro pode até lavrar
seu campo, e com seu conhecimento ele tirou proveito de seu solo, e se-
204 Lições de história

meá-lo com as sementes apropriadas, ainda que as rochas profundas e as


veredas incandescentes sejam desconhecidas para ele: sua pequena colheita
pende sob e sobre o firmamento de estrelas, e desliza por entre inóspitos
espaços celestiais, entre Aires e Libra; não obstante, pare ele, ela amadurece
na estação devida, e ele a deposita no seu celeiro. Como fazendeiro, ele é
inocente ao desconsiderar esses altos prodígios; mas como pensador e leal
inquiridor da natureza ele estava errado. É mais ou menos assim também
com o historiador, que investiga algum aspecto especial da história; e que,
desta ou daquela combinação de circunstâncias, políticas, morais, econó­
micas, e das questões que ele levantou, infere que tais ou quais proprie­
dades pertencem à sociedade humana, e que semelhantes circunstâncias
vão produzir semelhantes questões; inferência que, se outros inquéritos o
confirmarem, deve ser considerada verdadeira e praticamente valiosa. Ele
somente está equivocado, como o artesão, quando imagina que essas pro­
priedades, descobertas e apreensíveis, esgotam o assunto; e não vê, a cada
passo, que este é inexaurível.
Contudo, aqueles especuladores de causa e efeito — com quem ne­
nhuma maravilha perdura maravilhosa, mas para quem todas as coisas no
Céu e na Terra devem ser computadas e “levadas em consideração”, e para
quem mesmo o desconhecido, o infinito na vida do homem, adquiriu, sob
as palavras entusiasmo, superstição, espírito do tempo e assim por diante, um
símbolo algébrico e um dado valor — têm agora seu papel na cultura eu­
ropeia; e podem ser considerados, como na maioria dos países, mesmo na
própria Inglaterra onde eles deixam-se ficar por últimos, beirando à extin­
ção. Aquele que lê o inescrutável Livro da Natureza como se ele fosse uma
escrituração de mercador é justamente suspeito de jamais ter visto aquele
livro, mas apenas algum sumário escolar dele; do qual, se tomado como o
livro real, mais erro do que discernimento suceder-se-á.
Indubitavelmente, também, é com um sentimento crescente da na­
tureza infinita da história que nos tempos atuais o velho princípio, a divi­
são do trabalho, tem sido aí tão amplamente aplicado. O historiador po­
lítico, em tempos passados praticamente o único cultivador da história,
agora encontrou vários associados que se empenham em elucidar outras
fases da vida humana, das quais, conforme aludido acima, as condições
políticas transpostas não são senão uma, e ainda que a primária, talvez
não a mais importante, de muitas combinações aparentes. Desse mesmo
ThOM AS C ARLYLE 205

historiador, além disso, em seu próprio departamento especial, coisas


novas e mais elevadas começam a ser esperadas. Desde há muito tempo,
era muito comum afirmar-se injuriosamente que ele discorria longamente
com desproporcionada predileção sobre parlamentos, campos de bata­
lhas, mais ainda sobre as antecâmaras do rei; esquecendo-se que, muito
longe dessas cenas, o fluxo poderoso do pensamento e da ação ainda des-
lanchava em seu curso magnífico, nas trevas e na luz; e em seus milhares
de vales distantes, todo um mundo de existência, com ou sem um Sol
terreno de felicidade para aquecê-lo, com ou sem um Sol paradisíaco de
santidade para purificá-lo e santificá-lo, estava florescendo e se desvane­
cendo, estivesse a “famosa vitória” ganha ou perdida. Parece ter chegado
o tempo em que muito disso pode ser corrigido; e aquele que não vê
nenhum mundo senão o das cortes e casernas; e escreve somente sobre
como soldados foram treinados e baleados, e como um ministro expulsou
o outro, e então guiou, ou ao menos segurou, algo que ele denomina o
timão do governo, mas que seria antes a torneira dos impostos, por meio
da qual, em vez de guiar, ele pode esvaziar, e quanto mais astutamente
mais próximo do abrigo — passará por um jornalista mais ou menos ins­
trutivo, mas não poderá mais ser chamado de historiador.
Entretanto, o historiador político, ainda que seu trabalho fosse execu­
tado com toda a perfeição concebível, poderia realizar apenas uma parte,
e ainda deixar espaço para numerosos seguidores. Entre estes vem princi­
palmente o historiador eclesiástico; esforçando-se, com visão católica ou
sectária, por traçar o progresso da Igreja; daquela parte das instituições
sociais que dizem respeito a nossa condição religiosa; como a outra par­
te diz respeito a nossa condição civil, ou antes, no longo termo, à nossa
condição económica. Razoavelmente conduzido, esse departamento seria
indubitavelmente o mais importante dos dois; porquanto ele nos interessa
mais para entender como foi e poderá ser promovido o bem-estar moral
do homem, do que para entender da mesma maneira seu bem-estar físico;
sendo que o último é, em última instância, o objetivo precípuo de todos os
arranjos políticos. Visto que aquele fisicamente mais feliz é o mais seguro,
o mais forte; e, em todas as formas de governo, o poder (seja o da riqueza
como nos dias de hoje, ou o das armas e aliados dos tempos antigos) é o
único signo visível e moeda de aquisição da prosperidade. Da verdadeira
prosperidade, contudo, ao menos que consideremos o prazer como seu
206 Lições de história

sinónimo, diz-se ser raramente, ou mesmo nunca, oferecida à venda no


mesmo mercado onde aquela moeda é corrente. De modo que, para real
vantagem do homem, não é sua condição exterior, visível de sua vida, mas
o interior e o espiritual os valores de maior influência; não a forma de
governo sob a qual ele vive e o poder que ele pode acumular, mas a Igreja
da qual ele participa e o grau de elevação moral que ele pode adquirir por
meio de sua instrução. A história eclesiástica, portanto, falando-se sabia-
mente, teria segredos momentosos para nos ensinar: não só isso, no seu
mais elevado grau, ela seria uma espécie de Sagrada Escritura continuada;
nossos Livros Sagrados sendo, de fato, apenas uma história da Igreja primi­
tiva, tal como originalmente se erigiu da alma do homem e simbolicamente
corporificou-se em sua vida exterior. Quão distantes nossos historiadores
eclesiásticos estão de tais padrões inatingíveis, ou mesmo abaixo de quan­
tas aproximações possíveis, nós não precisamos apontar. Do historiador da
Igreja nós temos a reclamar, como o fizemos de seu colega artesão político,
que suas investigações voltam-se mais para o mecanismo externo, os me­
ros epifenômenos e acidentes superficiais do objeto, do que para o objeto
propriamente dito: como se a Igreja jazesse em concílios de bispos, assem­
bleias ecuménicas e conclaves de cardeais, e não muito mais nos corações
dos fiéis; em cujas andanças e conversações, assim influenciadas, suas prin­
cipais manifestações deveriam ser procuradas, e seu progresso ou declínio
averiguado. A história da Igreja é a história da Igreja invisível, assim como
da visível; a última, se separada da primeira, nada mais é que um edifício
vazio; dourado, talvez, e suspenso sobre velhos dons votivos, ainda que
vãos, mais que isso, pemiciosamente sujos; escrever sua história é menos
importante do que promover sua ruína.
De um caráter menos ambicioso são as histórias que se relacionam
a especiais domínios independentes da ação humana; a ciências, artes
práticas, instituições e assim por diante; questões que não implicam um
epítome de todo o interesse e formas de vida do homem; mas nas quais,
embora cada uma seja conexa com todas as demais, o espírito de cada
qual, ao menos nos resultados materiais, deve ser em algum grau deduzido
sem uma referência tão estrita ao das outras. Mais elevado em dignidade e
dificuldade, sob esse tópico estariam nossas histórias da filosofia, das opi­
niões do homem e teorias a respeito da natureza do ser e as relações com
o universo visível e invisível: essa história, de fato, fosse ela devidamente
Thomas Carlyle 207

tratada, ou adequada para tratamento justo, seria um domínio da história


da Igreja; seu domínio lógico ou dogmático; pois a filosofia, em seu senti­
do verdadeiro, é ou deveria ser a alma, de cuja religião o culto é o corpo;
no estado são das coisas, o filósofo e o padre seriam um e o mesmo. Mas
a própria filosofia está muito distante de apresentar esse caráter; nem têm
sido seus historiadores, genericamente falando, homens que pudessem mi­
nimamente se aproximar disso. Raras vezes, desde a rude era dos magos
e druidas, aquela mesma identificação saudável entre o padre e o filósofo
aconteceu em qualquer país: mas, em vez disso, o culto das coisas divinas
e a investigação científica das coisas divinas estiveram em mãos muito dife­
rentes, sendo suas relações não amistosas, mas hostis. Nem os Brúckers25 e
os Búhles,26 para nada dizer dos inúmeros Enfields27 infelizes, foram mais
do que pobres informantes, em geral pouco inteligentes, das doutrinas pro­
feridas; sem força para descobrir como a doutrina teve origem, ou qual
referência abre para seu tempo e para seu país, para a posição espiritual
da humanidade em dado tempo em lugar. Não, tal desafio sequer se lhes
ocorre, como algo a ser tentado.
Também a arte e a literatura estão intimamente misturadas com a
religião; como se fossem fortificações e pilares por meio dos quais aquele
mais alto pináculo em nosso mundo interior pouco a pouco se conecta com
uma instância geral e a partir daí se toma acessível. Aquele que deveria
escrever uma apropriada história da poesia pintaria para nós as sucessivas
revelações que o homem recebeu do espírito da natureza; sob que aspectos
ele teria captado e se esforçado por representar algum lampejo daquela
inenarrável beleza, que a religião, em sua mais elevada sutileza, é a inspi-

25 Jacob Brúcker: nascido e falecido em Augsburgo (1696-1770), professor em lena, e pastor em


sua cidade natal. Autor de Historia philosophica doctnnae de ideis (1723) e Historia critica philoso-
phiae a mundi incunabilis ad nostra usque aetatem deducta (5v., Leipzig, 1742-1744) é considerado
o iniciador da história da filosofia.
26 Johann Gottlieb Búhle (1763-1821): filósofo e acadêmico alemão, nasceu em Brunswick
e estudou em Gôttingen, onde tomou-se professor, tendo lecionado também em Moscou e
Brunswick. Entre seus principais trabalhos destacam-se o Handbuch der Geschichte der Philoso-
phie (8v., 1796-1804) e a Geschichte der neueren Philosophie (6v., 1800-1805).
27 The history o] philosophy, Jrom the earliest times to the beginning of the present century; drawn up
Jrom Brucker‘s Historia critica philosophiae (1791), de William Enfield, foi um manual de filosofia
adotado em inúmeras universidades da Europa e dos Estados Unidos durante a primeira me-
tade do século XIX.
208 Lições de história

ração de um profeta, ainda que em um ou outro grau deva inspirar cada


cantor verdadeiro, pois seu tema jamais será tão modesto. Nós deveríamos
ver com que passos os homens ascenderam ao templo; quão perto se apro­
ximaram; por meio de que maligna casualidade, durante longos períodos,
eles se afastaram dele e rastejaram-se pelo chão sem nenhuma música no
ar, ou cegamente debateram-se rumo a outras paragens. Pois que entre
todos nossos Eichhoms28 e Wartons29 não há um tal historiador que seja
tão claro para todos. Não obstante, não nos deixem desesperar de antigas
aproximações àquela excelência. Acima de tudo, permitam-nos conservar o
ideal dela ao menos em nosso olho; pois por meio dele nós descortinamos
a chance de alcançá-la.
Nossas histórias de leis e constituições, nas quais muitos Montes-
quieu30 e Hallam31 trabalharam com denodo, são de uma natureza muito
mais simples; embora demasiado profundas se inteiramente investigadas; e
úteis, quando autênticas, mesmo se de pouca profundidade. Então temos
histórias da medicina, da matemática, astronomia, comércio, das ordens
de cavalaria, dos monastérios; e Goguets32 e Beckmanns33 avançaram com

28Johann Gottfried Eichhom (1752-1827): teólogo protestante do Iluminismo e amigo orien-


talista, professor em lena e Gõttingen, autor de extensa obra (que inclui uma Weltgeschichte, de
1819), é considerado o fundador da moderna crítica do Velho Testamento.
29 Thomas Warton, o Jovem (1728-1790): nasceu em Basingstoke, Hampshire, Inglaterra, filho
do poeta Thomas Warton, o Velho. Foi professor em Oxford e crítico e historiador literário,
além de poeta.
30 Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu (1698-1755): historiador, político e filó­
sofo iluminista francês, um dos mais conspícuos enciclopedistas, foi o formulador da moderna
tripartição dos poderes, atualmente vigente em muitas constituições nacionais. Teve formação
iluminsta com padres oratorianos, desde cedo mostrando-se crítico severo e irónico da monar­
quia absolutista decadente, assim como do próprio clero. Entre suas obras destacam-se Cartas
Persas (1721), Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos (1734) e O espírito das leis
(1748).
31 Henry Hallam (1777-1859): historiador e literato whig formado no Christ Church em Oxford.
Sua primeira grande obra, The view of the State ojEurope during the Middle Ages, foi publicada em
1818, seguida por Constitutional history oj England (1827) e Introduction to the literature of Europe
in the 15th, 16th and 17th centuries (1838/1839).
32 Antoine Yves Goguet (1716-1758): jurista, literato e historiador francês, estudou nas faculda­
des de Beauvais, de Plessis e de Harcourt, e chegou a chanceler no parlamento de Paris. Interes­
sado na história dos povos primitivos, escreveu muitos trabalhos que foram usados como fonte
para a primeira Enciclopédia Britannica. Sua obra mais conhecida é De 1'origine des loix, des arts,
et des Sciences; et de leurs progres chez les anciens peuples (3v., 1758).
33Johann Beckmann (1739-1811): cientista alemão que cunhou o termo “tecnologia”, formou-
se na universidade de Gõttingen, onde dedicou-se ao estudo de teologia, matemática, física,
Thomas Carlyle 209

aquela que pode ser considerada a mais generosa de todas as contribui­


ções, uma história das invenções. De todos cujos tipos, e muitos aqui não
enumerados, nem sequer imaginados e postos em prática, o mérito e o
plano exato, dentro de nossos presentes limites, não precisam de maior
exposição.
Desse modo, não obstante, como assinalado acima, toda ação é au­
mentada de três modos, e a soma geral da ação humana é todo um uni­
verso, com todos seus limites desconhecidos, assim a História se empenha
correndo caminho após caminho, pelo impassível, em diversas direções
e interseções, para assegurar para nós algum vislumbre do todo; em cuja
diligência, se cada historiador olhar bem ao redor de seu caminho, se­
guindo-o com o olho, e não, como é mais comum, com o nariz, ela pode
por fim provar-se não completamente malsucedida. Rogando apenas que a
ampliada divisão do trabalho não agrave aqui, nem em lugar algum, nossas
já fortes tendências mecânicas, de modo que na destreza manual por partes
nós venhamos a perder todo domínio sobre o conjunto, e na esperança de
que qualquer filosofia da história fique mais distante do que nunca — de­
sejemo-la todos sempre grande e maior sucesso.

história natural e administração e finanças públicas. Dedicando-se ao estudo de diferentes artes


e ofícios, escreveu seu Beitrãg zur Geschichte der Erfindungen (1780-1805), traduzido para o
inglês em 1797 como Histoty of inventions, discoverires and origins.
Thomas Babington Macaulay
Sérgio Campos Gonçalves

“A história, pelo menos no seu estado de perfeição ideal, é um misto


de poesia e filosofia. Imprime no espírito verdades gerais por meio da
representação viva de certos personagens e incidentes. ”l

Thomas Babington Macaulay foi um dos historiadores britânicos mais


respeitados do século XIX. Filho de mãe quacre protestante e de um
montanhês da Escócia que era partidário da reforma social e filantropo
do movimento antiescravista, Macaulay nasceu em Leicestershire, onde
revelou seu dom para as letras já na tenra idade: o prodígio lia aos três
anos, e aos oito escreveu um compêndio de história universal. Aos 18
anos, entrou para o Trinity College, em Cambridge, e, aos 23, começou
sua carreira literária no Knight’s Quarterly Magazine. Em dois anos, pas­
sou a publicar ensaios na Edinburgh Review, onde seu estilo declamatório
e sutil conquistou leitores. Aos 26 obteve sua admissão de advogado, mas
nunca exerceu a profissão. A partir de 1830, quando se tornou membro
do parlamento, Macaulay ganhou notoriedade com seus discursos a favor
dos movimentos da reforma parlamentar, contra o escravismo e pela am­
pliação da igualdade de direitos, posto que a ideia do sufrágio universal
nunca o agradou. Ensaísta eloquente, poeta e político whig, Macaulay foi
porta-voz das classes médias liberais inglesas tanto através de seus escri­
tos quanto em sua participação parlamentar.2

1 Macaulay, 1843.
2 Para traçar o perfil de Macaulay, utilizei um apanhado de ensaios biográficos: Canning (1882);
Stephen (1893); MacGregor (1901); Morison (1901); Pattison (2008); Stirling (1868); Strunk
Jr. (1895); The Dean of St. Paul’s (1862); Trevelyan (1876 e 1907); Watrous (1900).
212 Lições de história

Macaulay entrou na política pela porta da escrita. Ao passo que seus


ensaios tornaram possível que seu nome fosse votado para a Câmara dos
Comuns, a baixa câmara britânica, seus discursos o destacaram entre os
parlamentares. No entanto, sua reputação e credibilidade pública não evi­
taram que sua família estivesse à beira da falência. Como era o princi­
pal provedor da família, Macaulay aceitou servir ao Conselho Supremo
da índia, entre 1834 e 1838, no qual trabalhou na instrumentalização do
sistema educacional e na criação do código criminal, que anos depois foi
reproduzido em outras colónias britânicas.3 Crente firmemente na superio­
ridade e na integridade moral das instituições britânicas, sua participação
determinante pela presença inglesa na índia rendeu a criação dos termos
Macaulay’s children e macaulayism, que se referem aos nativos indianos que
adotam a cultura ocidental como estilo de vida, ou que se mostram in­
fluenciados pelos colonizadores.4
Ao retornar à Inglaterra, Macaulay ganhou várias posições de prestí­
gio no governo e na Universidade de Glasgow. Em 1839, voltou a ser mem­
bro do parlamento por Edimburgo e, no mesmo ano, ganhou o posto de
secretário de Guerra no gabinete do ministro Lord Melbourne. Sua estada
no gabinete o desviou do plano de produzir sua grande obra histórica, mas
Macaulay voltou a devotar seu tempo aos escritos quando o ministério de
Melbourne caiu. Em 1842, alcançou o sucesso com a publicação de uma
coleção de poemas sobre episódios heroicos da história de Roma, os quais
compusera durante sua estada na índia, intitulado Lays oj Ancient Rome.
No ano seguinte, recolheu e publicou seus Criticai and historical essays.
Em 1846, voltou a ter um cargo ministerial, mas suas atribuições leves
o permitiram trabalhar também como historiador. Perdeu sua cadeira no
parlamento nas eleições de 1847 e, no ano seguinte, publicou os dois pri­
meiros volumes de sua grande obra, The history of Englandfrom the accession
oj James the Second, que obteve estrondoso sucesso. Logo foi eleito reitor
na Universidade de Glasgow, cargo sem obrigações administrativas que
frequentemente é atribuído aos estudiosos de fama literária ou política. Em
Glasgow, Macaulay recusou o cargo de professor de história moderna para
se dedicar aos seus escritos. Ao ser aclamado pelos eleitores de Edimburgo

3 Macaulay, 1957:721-724.
4 Gilley, 1999:746-747.
Thomas Babington Macaulay 213

nas eleições de 1852, para que fosse reeleito para o parlamento, Macaulay
aceitou candidatar-se sob a condição de não fazer campanha e de não se
comprometer com nenhuma questão política. Foi eleito, apesar das con­
dições. Entretanto, devido à saúde ruim, mal permaneceu na Câmara nos
anos que se seguiram. O trabalho no parlamento evidentemente havia se
tornado pesado demais, e Macaulay deixou o cargo vago em 1856, sacrifi­
cando sua carreira política e até mesmo seu convívio social para se dedicar
à sua obra histórica. Apesar de ter sido agraciado com o título nobiliárqui­
co de barão de Rothley em 1857, raramente esteve presente na Câmara dos
Lordes, a instituição superior bretã.
Os escritos políticos de Macaulay, famosos pelo seu estilo brilhante
de prosa autoconfiante, às vezes dogmático, enfatizavam um modelo pro­
gressivo para a história britânica, em acordo com a articulação de uma
cultura provisional e da crença na liberdade de expressão. Os ensaios
que publicou, notadamente na Edinburgh Review, tornaram célebre um
homem de origem simples. Em 1855, a publicação do terceiro e quarto
volumes de sua History of England alcançou o mesmo sucesso dos volu­
mes anteriores. Nos Estados Unidos, suas vendas apenas não excederam
a Bíblia e alguns livros escolares. Posteriormente, a obra foi traduzida
para vários idiomas, como o alemão, o dinamarquês, o sueco, o italiano,
o francês, o holandês, o espanhol, o húngaro, o russo, o persa. O sucesso
foi imediato, os leitores se deixaram cativar-se pela obra histórica como
o faziam pela ficção, pois sua arte narrativa evocava a qualidade cênica e
dramática para os eventos históricos.5
O estilo empírico, formal e impositivo de Macaulay era muito admi­
rado em sua época. A escrita era clara e impressiva, com uma narrativa
poderosa e rica em detalhes. Contudo, sua perspectiva mostra-se inega­
velmente influenciada por preconceitos protestantes e com a tendência do
exagero e da pomposidade.6 Além de sua forma de escrever a história ter
sido bastante criticada por historiadores posteriores, foi acusado de mani­
pular a narrativa para conformá-la a seus pontos de vista e, portanto, de
subestimar os fatos que contrariavam suas opiniões.7 Karl Marx se refere

5 Ward et al., 2000.


6 Gilley, 1983.
7 Sobre a estilística literária de Macaulay e sua historicidade, ver Gay (1990).
214 Lições de história

a Macaulay como um “sistemático falsificador da história”, dado que “ele


minimiza tanto quanto possível os fatos que lhe convêm”.8 Ironicamente,
o próprio Macaulay havia escrito, em 1828, que “a prática de distorcer a
narrativa para conformá-la a uma teoria é um vício não tâo desconfortável
quanto pode aparecer à primeira vista aos interesses da ciência política”.9
Ao incluir em sua perspectiva histórica os fatores económicos, políti­
cos e sociais juntamente com as transformações das maneiras de compor­
tamento e de moral como os principais fatores das “revoluções silenciosas”,
Macaulay antecipou as tendências historiográficas que apenas se cristaliza­
riam um século depois no ofício do historiador.10
Na universidade, Macaulay ficou conhecido por sua proeminência ge­
nial de orador inesgotável, e isso o tornou admirado por personalidades de
destaque em sua época. Embora estivesse absolutamente em acordo com
os ideais rankianos, com sua abordagem historiográfica mais próxima do
positivismo que do empirismo puro, Macaulay apresentava um tom oti­
mista para as origens históricas da era vitoriana e do império britânico.11
Enxergava na história uma fonte valiosa de conhecimento, pois ela condu­
ziria o pensamento a um raciocínio provisional, isto é, a história forneceria
as ponderações a respeito do futuro. Em sua obra, é evidente a concepção
filosófica da história como um contínuo progresso da vida, que evoluía da
“selvageria para a humanidade”,12 e cuja narrativa servia para justificar os
ideais whigs e protestantes. É lugar-comum em sua história o delineamento
dos personagens através de uma dualidade maniqueísta, em que os whigs
liberais e protestantes aparecem como protagonistas, e os tories conserva­
dores e católicos, como antagonistas, todos articulados ao processo histó­
rico do sucesso britânico pela exclusão do catolicismo.
Como historiador, Macaulay não escapou do partidarismo. Os cinco
volumes de sua grande obra, History oj England, garantiram que seu mo­
delo progressista de interpretação o colocasse como um dos fundadores
da chamada “interpretação whig da história”, que é, em outras palavras,

8 Marx, 1906.
9 Macaulay, 1828:361.
10 Ibid., p. 363. Ver Davies (1939).
11 Powell, 2007.
12 Macaulay, 1828:362.
Thomas Babington Macaulay 215

uma historiografia que apresentava o passado inevitavelmente progressista


rumo à liberdade e à ilustração, o qual culminaria nas formas modernas da
democracia liberal e na monarquia constitucional. Macaulay foi precursor
de um modelo de interpretação histórica whíg em que é comum o enalte-
cimento da ascensão do governo constitucional, das liberdades pessoais e
do progresso científico.13
Na primeira metade do século XIX, no Reino Unido, o crescimento
do poder da classe média industrialista e de homens de negócio criou
a demanda por uma reinterpretação da história inglesa que enfatizasse
o papel da guerra civil do século XVII e da Revolução Gloriosa como a
pedra fundamental para a liberdade, a prosperidade e o progresso social
da Inglaterra. Mais que qualquer outro escritor, Macaulay advogou his-
toriograficamente em favor desse ponto de vista whíg na história bretã
e foi porta-voz do avanço material da era vitoriana à mesma proporção
que atenuou os problemas económicos e sociais oriundos da revolução
industrial.14
Combinando racionalismo e imaginação romântica, os ensaios de Ma­
caulay ajudaram a moldar a visão histórica de mundo de uma geração de
ingleses, convenientemente convictos de que suas instituições serviam aos
melhores interesses para o desenvolvimento dos países sob sua tutela. Seu
estilo narrativo claro e enfático tornou-se um exemplo a ser perseguido
pelo alto padrão jornalístico. Com Carlyle, Macaulay compartilha a honra
de figurar entre os grandes ensaístas ingleses. Enquanto Carlyle se desta­
cou por sua percepção imaginativa, Macaulay conquistou grande audiência
com seu estilo atrativo, sua narrativa ilustrada e sua precisão descritiva.15
A concepção de história de Macaulay foi seguida notadamente por
seu sobrinho, Sir George Otto Trevelyan, editor da coletânea Life and Let-
ters, que ainda é a mais completa obra sobre a vida de Macaulay, e por seu
sobrinho-neto, o historiador George Macaulay Trevelyan, que adotou o
estilo literário do tio-avô, mirando no exemplo de Macaulay em toda a sua
carreira.16

13 Gilley, 1983.
14 Nixon, 2002; Clive, 1973.
15 Fitch, 1912.
I6Adrian, 1963.
216 Lições de história

Macaulay morreu em 1859, sem nunca ter se casado e sem filhos. Dei­
xou sua History of England incompleta, cujo último volume foi publicado
após sua morte, em 1861. Seu corpo foi enterrado em Abadia de West-
minster, na cripta dos poetas, sob o epitáfio “o seu corpo jaz em paz/ mas
o seu nome viverá para sempre”.17
Principais obras de Macaulay:

♦ Criticai and historical essays contributed in the Edinburgh Review (1843);


♦ Historical essays of Thomas Babington Macaulay (1901);
♦ Lays of Ancient Rome (1842);
♦ Literary essays of Thomas Babington Macaulay (1900);
♦ The complete works (1866, 8v.);
♦ The history of England from the accession ofJames the Second (1848-1861);
♦ The miscellaneous writings and speeches of Lord Macaulay (1860).

HISTÓRIA18

Para escrever a história apropriadamente — isto é, para abreviar de­


liberações e extrair excertos dos discursos, para intercalar na devida pro­
porção epítetos de enaltecimento e abominação, para traçar as qualidades
antagónicas dos grandes homens, mostrando quantas virtudes contraditó­
rias e vícios eles reúnem, e seus prós e contras em abundância — tudo isso
é muito fácil.19 Entretanto, ser realmente um grande historiador é talvez a
mais rara das distinções intelectuais. Muitos trabalhos científicos são, ao
seu modo, absolutamente perfeitos. Há poemas que somos inclinados a
designar como impecáveis, ou como prejudicados apenas por defeitos que
em geral passam despercebidos no brilho geral da excelência. Há discursos,
em particular alguns de Demóstenes,20 nos quais seria impossível mudar
uma palavra sem que a alteração se desse para pior. Mas não conhecemos

17 Ruas, 1940:32.
18 Publicado originalmente na Edinburgh Review (n. 47, p. 331-367, 1828), em resenha ao livro
The romance of history England (London, 1828), do literário inglês Henry Neele (1798-1828).
Traduzido de Macaulay (1889). Tradução, edição e notas de Sérgio Campos Gonçalves.
19 Mantive os destaques em itálico do autor estritamente de acordo com a primeira versão do
texto, publicada na Edinburgh Review.
20 Proeminente orador e estadista ateniense (385-322 a.C.).
Thomas Babington Macaulay 217

nenhuma história que se aproxime de nossa noção de como a história deve


ser — nenhuma história que não se afaste, tanto à direita quanto à esquer­
da, da linha exata.
A causa pode ser facilmente determinada. Essa província da literatura
é uma zona litigiosa. Situa-se nos confins de dois territórios distintos. Está
sob a jurisdição de dois poderes hostis; e, como outros distritos semelhan­
temente situados, é maldefinido, malcultivado e malregulado. Em vez de
ser igualmente partilhada entre seus dois regentes, a razão e a imaginação,
cai alternadamente sob o domínio único e absoluto de um deles. É às vezes
ficção. É às vezes teoria.
A história, como se diz, é filosofia ensinada através de exemplos. Infe-
lizmente, o que a filosofia ganha em validade e profundidade, os exemplos
geralmente perdem em vivacidade. Um historiador perfeito precisa possuir
uma imaginação suficientemente poderosa para tomar sua narrativa envol­
vente e pitoresca. Contudo, ele deve controlá-la absolutamente, contentan­
do-se com os materiais que encontra e abstendo-se de suprir as deficiências
pelo acréscimo de materiais próprios. Ele deve ser um pensador profundo
e astuto. Todavia, deve possuir autocontrole suficiente para se abster de
moldar os fatos às suas hipóteses. Aqueles que podem estimar justamente
essas dificuldades quase insuperáveis não acharão estranho que todos os
escritores possam falhar, tanto na narrativa quanto no departamento espe­
culativo da história.
Pode-se colocar como uma regra geral, apesar de sujeita a ressalvas
e exceções consideráveis, que a história se inicia como romance e termina
como ensaio. Dos historiadores românticos, Heródoto é o mais antigo e o
melhor. Sua animação, sua ternura sincera, seu maravilhoso talento para a
descrição e o diálogo, e o fluxo doce e puro de sua linguagem os colocam à
frente dos narradores. Lembra-nos uma criança encantadora. Há uma graça
além do alcance da simulação em sua inaptidão, uma malícia em sua ino­
cência, uma inteligência em seu absurdo, uma eloquência insinuante em
seu ceceio.21 Não sabemos de nenhum escritor que desperte tal interesse
por si mesmo e sua obra no coração do leitor. Escreveu um livro incompa­
rável. Escreveu algo talvez melhor que a melhor história; mas não escreveu

21 De acordo com o Dicionário Houaiss (Objetiva, 2001), é a ação ou o efeito de pronunciar as


consoantes /s/ e Izl como interdentais.
218 Lições de história

uma boa história; ele é, do primeiro ao último capítulo, um inventor. Não


nos referimos aqui meramente àquelas ficções grosseiras pelas quais ele
foi repreendido pelos críticos de tempos depois. Falamos desse colorido
que é igualmente difuso sobre toda a sua narrativa e que perpetuamente
deixa o mais sagaz leitor em dúvida sobre o que rejeitar e o que acolher. As
partes mais autênticas de seu trabalho têm a mesma relação com as lendas
mais selvagens que Henrique V tem com A tempestade.22 Shakespeare nos
faz enumerações dos exércitos e dos que retornaram mortos ou feridos, as
quais, suspeitamos, não são muito menos exatas que aquelas de Heródoto.
Há passagens em Heródoto quase tão longas quanto os atos de Shakespea­
re, em que tudo é dito dramaticamente, e em que a narrativa serve apenas
às finalidades da encenação. Sem dúvida, é possível que o conteúdo de
algumas conversas tenha sido reportado ao historiador. Contudo, eventos
que aconteceram em épocas e nações tão remotas cujos detalhes nunca po­
deriam ter sido do conhecimento dele, se é que chegaram a ocorrer, são re­
latados com grande minúcia de detalhes. Consequentemente, consideran­
do o que ele registrou dos acontecimentos sobre os quais poderia estar bem
informado, somos incapazes de julgar se podemos acreditar em qualquer
coisa além do esboço despido; por exemplo, se a resposta de Gélon23 aos
embaixadores da Confederação Grega, ou se o que foi dito entre Aristides24
e Temístocles25 na sua famosa entrevista nos foram corretamente transmiti­
dos. Os grandes eventos são, sem dúvida, fielmente relatados. Assim como

22 Considerada por muitos a última peça escrita por William Shakespeare, provavelmente em
1610/1611. Embora sua primeira publicação tenha sido listada como comédia, muitos editores
modernos catalogam a peça como romance.
23 Tirano (c.540-478 a.C.) de Gela e Siracusa, colónias fundadas pelos gregos na Sicília.
24 Aristides, o Justo, general e estadista ateniense. Em 482 a.C., sofreu a pena do ostracismo,
provavelmente, por fazer oposição a Temístocles. No entanto, foi requisitado a voltar para aju­
dar a derrotar os persas nas batalhas de Salamina e Plateia. Em 478 a.C., colaborou com os alia­
dos do leste de Esparta para formar a Liga de Delos, que, aliada à cidade de Atenas, efetivamente
se tomou uma espécie de império ateniense.
25 Político e general-estrategista naval ateniense (525-460 a.C.) que liderou o Partido Democrá­
tico Ateniense. Sua principal medida foi criar uma frota naval capaz de rechaçar uma possível
invasão persa. A vitória sobre a frota persa de Xerxes I na batalha de Salamina lhe deu grande
fama. No entanto, em razão de seu caráter belicista, foi lançado no ostracismo por seus adver­
sários, que tentaram lhe imputar uma acusação de alta traição. Refugiou-se no reino persa antes
do julgamento e, ironicamente, foi aceito no reino que derrotou, pois os persas aceitavam os
homens experientes que pudessem ajudá-los na expansão de seu império.
Thomas Babington Macaulay 219

provavelmente o são muitas das circunstâncias menos importantes, mas as


quais é impossível verificar. As ficções são em muito como os fatos, e os
fatos são em muito como as ficções, de modo que, com respeito a vários
detalhes interessantes, nossa crença não é confirmada nem negada, mas
permanece em um estado inquieto e eterno de suspensão. Nós sabemos
que há uma verdade; mas não podemos decidir exatamente onde ela está.
As falhas de Heródoto são falhas de uma mente simples e imagina­
tiva. As crianças e os criados são notavelmente herodotonianos em seu
estilo de narração. Dizem tudo de maneira dramática. Qualquer um que
já teve que resolver suas disputas sabe que, mesmo quando eles não têm
intenção de enganar, seus relatos de conversas sempre requerem uma
filtragem cuidadosa.
Heródoto escreveu como era natural que devesse escrever. Ele escre­
veu para uma nação suscetível, curiosa, vigorosa, insaciavelmente desejosa
de novidade e excitação; para uma nação onde as belas-artes tinham alcan­
çado sua mais alta excelência, mas onde a filosofia ainda engatinhava. Seus
compatriotas tinham recentemente começado a cultivar a composição em
prosa. Os negócios públicos geralmente haviam sido registrados em verso.
Assim, os primeiros historiadores puderam usar, sem medo de censura, da
licença permitida a seus antecessores, os bardos.26 Os livros eram poucos.
Os acontecimentos dos tempos passados eram aprendidos pela tradição e
pelas canções populares; as maneiras dos países estrangeiros, pelos relatos
de viajantes. É sabido que o mistério que paira sobre o que é distante, tan­
to no espaço quanto no tempo, frequentemente nos impede de censurar
como aberração o que percebemos ser impossível. O que para nós é a época
das Cruzadas, a geração de Creso27 e Sólon28 era para os gregos na época de
Heródoto. A Babilónia era para eles o que Pequim era para os acadêmicos
franceses do século passado.
A obra de Heródoto foi composta para tal povo; e, se pudermos con­
fiar em um relato, não sancionado de fato por escritores de alta autoridade,
mas em si mesmo não improvável, foi composta não para ser lida, mas

26 Poetas ou cantadores de versos épicos e heroicos. O termo remete a uma tribo celta que viveu
onde hoje é a Irlanda.
27 Creso (?-546 a.C.), último rei da Lídia, morto em 546 a.C., famoso pela sua imensa riqueza.
28 Sólon (c.638-c.559 a.C.), legislador e estadista da antiga Atenas.
220 Lições de história

para ser ouvida. Não foi na circulação vagarosa de algumas cópias, as quais
apenas alguns ricos poderiam possuir, que o ambicioso autor procurou
assegurar sua recompensa. O interesse pela narrativa e a beleza do estilo
foram auxiliados pelo majestoso efeito da declamação, pelo esplendor do
espetáculo, pela forte influência da empatia. Um crítico que solicitasse au­
toridades no meio de tal cena deveria ser de uma natureza fria e cética; e
poucos críticos estavam lá. Como era o historiador, assim também eram os
ouvintes, inquisitivos, crédulos, facilmente movidos pelo temor religioso
ou pelo entusiasmo patriótico. Com igual prazer escutariam os romances
graciosos de seu próprio país. Eles agora ouviam falar da realização de
predições obscuras, da punição de crimes sobre os quais a justiça do Céu
parecia ter ignorado, de sonhos, presságios, avisos dos mortos, de prince­
sas para quem nobres pretendentes se afirmavam através de cada exercício
generoso de força e habilidade, de crianças estranhamente protegidas da
lança do assassino, para cumprir grandiosos destinos.
Como a narrativa aproximou-se da sua época, o interesse se tornou
ainda mais atraente. O cronista tinha agora que contar a história daquele
grande conflito do qual a Europa data sua supremacia intelectual e política,
uma história que, mesmo com a distância no tempo, é a mais incrível e a
mais emocionante dos anais da raça humana, uma história abundante de
tudo que é espantoso e admirável, com tudo que é patético e animado;
com caprichos gigantescos de fortunas infinitas e poder despótico, com
poderosos milagres de sabedoria, de virtude e de coragem. Qualquer coisa
que desse um forte tom de realidade à narrativa tão bem calculada para
inflamar paixões, e para lisonjear o orgulho nacional, certamente seria re­
cebida favoravelmente.
Entre o tempo em que se diz que Heródoto compôs sua história e o
final da Guerra do Peloponeso transcorreram aproximadamente 40 anos
— 40 anos coroados de grandes eventos políticos e militares. As circuns­
tâncias do período produziram um grande efeito na personalidade grega;
e em parte alguma esse efeito foi tão extraordinário como na ilustre demo­
cracia de Atenas. Um ateniense, de fato, mesmo no tempo de Heródoto,
dificilmente poderia ter escrito um livro tão romântico e eloquente como
aquele de Heródoto. Enquanto civilização avançada, os cidadãos daque­
la famosa república tornaram-se ainda menos visionários, e ainda menos
ingénuos. Ambicionaram saber, enquanto seus ancestrais contentavam-se
Thomas Babington Macaulay 221

com a dúvida; começaram a duvidar, enquanto seus ancestrais pensavam


em seu dever de acreditar. Aristófanes29 gosta de aludir a essa mudança no
espírito de sua gente. O pai e o filho, em As nuvens,30 são evidentemente
representativos das gerações às quais respectivamente pertenceram. Nada
ilustra mais claramente a natureza dessa revolução moral que o julgamento
sobre a tragédia. As leituras sobre pontos de difícil compreensão da filo­
sofia, a fina distinção do casuísmo e o deslumbrante brilho que cerca a
retórica foram substituídos pela poesia.
A lógica moderna dos gregos era, de fato, distante do absoluto. A
lógica nunca pode ser estrita onde os livros são escassos, e onde as infor­
mações são veiculadas oralmente. Somos todos cientes de quão frequente­
mente as falácias, que quando estabelecidas no papel são logo detectadas,
passam por argumentos irrefutáveis quando apresentadas com destreza no
parlamento, em um bar ou em uma conversa privada. A razão é evidente.
Nós não podemos inspecioná-las de perto o suficiente para perceber suas
imprecisões. Não podemos compará-las. Perdemos de vista uma parte do
assunto antes que outro, que deveria ser tomado em relação àquele, chegue
até nós; e, como não há registro imutável do que havia sido aceito e do que
havia sido negado, contradições diretas passam a ser aceitas com pouca
dificuldade. Quase toda a educação de um grego consistia em falar e ouvir.
Suas opiniões sobre o governo eram levantadas nos debates da assembleia.
Se desejasse estudar metafísica, ao invés de se enclausurar com um livro,
ele poderia caminhar até o mercado e procurar por um sofista. De tal modo
esses homens foram formados por esses hábitos, que mesmo a escrita ad­
quiriu um tom de conversação. Os filósofos adotaram a forma do diálogo
como o modo mais natural de comunicar o conhecimento. Suas razões têm
os méritos e os defeitos que pertencem àquela composição específica, e que
são caracterizadas mais pela rapidez e sutileza que pela profundidade e pre­
cisão. A verdade é exibida em partes e num relance. Inumeráveis conselhos
engenhosos são dados; mas nenhum sistema sólido e durável é erguido. O

29 Dramaturgo ateniense (c.447-c.385 a.C.), considerado o maior representante da comédia


antiga.
30 Nessa peça (423 a.C.), Aristófanes compara Sócrates aos sofistas, mestres da retórica, e acusa
o filósofo grego de exercer uma influência nefasta sobre a sociedade.
222 Lições de história

argumentum aà hominem,31 o argumento mais eficaz em um debate, mas ab­


solutamente inútil para uma investigação de princípios gerais, está entre os
seus recursos favoritos. Assim, apesar de que nada pode ser mais admirável
que as habilidades que Sócrates mostrava nas conversas que Platão repor­
tou ou inventou, suas vitórias, na maioria das vezes, nos parecem inúteis.
Um troféu foi levantado; mas nenhuma nova província foi incorporada aos
domínios da mente humana.
No entanto, quando milhares de intelectos ágeis e afiados foram cons­
tantemente empregados na especulação sobre as qualidades das ações e
sobre os princípios do governo, foi impossível que a história retivesse seu
caráter inteiramente. Ela tomou-se menos comentário e menos pitoresca;
mas muito mais precisa, e de certa forma mais científica.
A história de Tucídides difere daquela de Heródoto como um retrato
difere da representação de uma cena imaginária; como o Burke32 ou o FoxJJ
de Reynolds34 diferem de seu Ugolino35 ou seu Beaufort.36 No caso anterior,
o arquétipo é dado; nos últimos, é criado. Aquele que é apto a pintar o
que vê com os olhos da mente seguramente será capaz de pintar o que ele
enxerga com os olhos do corpo. Aquele que pode inventar uma história, e
contá-la bem, também será capaz de contar, de maneira interessante, uma
história que não fora inventada.

31 “Argumento contra a pessoa”. Significa uma falácia ou erro de raciocínio que é identificado
quando alguém responde a algum argumento com uma crítica contra quem apresentou o argu­
mento, isto é, questiona a pessoa que argumenta ao invés do argumento.
32 Edmund Burke (1729-1797), filósofo e político anglo-irlandês famoso por sua oratória. Autor
de An inquiry into the origin ofour ideas of the sublime and the beautiful (1757), defendeu a causa
dos colonos americanos no parlamento e também o sistema parlamentarista.
33 Trata-se do retrato de Charles James Fox (1749-1806), pintado pelo seu amigo próximo
Joshua Reynolds, em 1782. Político britânico, Fox foi um líder dos whigs na Câmara que se des­
tacou por sua campanha antiescravista, por defender a independência americana da Inglaterra
e por ser a favor dos preceitos da Revolução Francesa.
34 Sir Joshua Reynolds (1723-1792), um dos mais importantes e mais influentes pintores ingle­
ses do século XVIII. Especializado em retratos, foi um dos fundadores e primeiro presidente da
Royal Academy.
35 Em 1773, Reynolds pintou Count Ugolino and his children in the dungeon, inspirado na descri­
ção que Dante Alighieri fez de Ugolino delia Gherardesca (c. 1220-1289), comandante naval e
nobre italiano, no canto 33 de O inferno,
36 Cardinal Beaufort é o título do “retrato histórico” que Reynolds fez de Henry Beaufort (c. 1375-
1447), clérigo medieval inglês e bispo de Winchester.
Thomas Babington Macaulay 223

Alguns artistas volúveis e insatisfeitos têm influenciado outros a con­


siderarem a pintura de retrato como obra indigna de um gênio. Alguns
críticos têm falado da mesma maneira desdenhosa da história. Johnson37
trata o caso dessa forma: o historiador conta ou o que é falso ou o que é
verdadeiro. No primeiro caso, ele não é historiador; no último, ele não tem
oportunidade de mostrar suas habilidades. Para a verdade ser única, todos
que contam a verdade precisam contá-la igualmente.
Diversidade, diz-se, implica erro: a verdade é única e não admite gra­
dações. Respondemos que esse princípio apoia-se apenas em razões abs­
tratas. Quando falamos da verdade da imitação nas belas-artes, queremos
dizer uma verdade imperfeita e graduada. Nenhum desenho é exatamente
como o original; nem o desenho é proporcionalmente equilibrado como o
original. Quando Sir Thomas Lawrence38 pinta uma fidalga formosa, ele não
a contempla através de um poderoso microscópio, nem transfere à tela os
poros da pele, os vasos sanguíneos dos olhos e todas as outras belezas que
Gulliver descobriu nas damas de honra brobdingnagianas.39 Se ele tivesse
que fazer isso, o efeito não seria meramente desagradável, mas, a menos
que a escala da pintura fosse ampliada proporcionalmente, seria absoluta­
mente falso. E, apesar de tudo, um microscópio mais potente que o que ele
empregou o condenaria a inúmeras omissões. O mesmo poderia ser dito da
história. Não pode ser perfeitamente e absolutamente verdade: pois, para
ser perfeitamente e absolutamente verdade, conviria registrar toda a mais
insignificante particularidade dos mais insignificantes processos — todas
as coisas feitas e todas as palavras pronunciadas durante a época da qual se
trata. A omissão de qualquer circunstância, não importa quão insignificante,
seria um defeito. O que foi contado nos mais completos e mais exatos anais
representa uma proporção infinitamente menor daquilo que foi suprimido.

37 Samuel Johnson (1709-1784), lexicógrafo e escritor de destaque no cenário intelectual da


Inglaterra no século XVIII. Autor do Dictionary of the English language (1755) e da crítica literária
Lives of the most eminent English poets (1779-1781, 10v.), também escreveu em periódicos como
The GentlemaiTs Magazine, The Universal Chronicle e The Rambler, além de narrativas de viagem,
como A joumey to the Western Islands of Scotland (1775).
38 Considerado um dos melhores retratistas ingleses (1769-1830) de sua geração. Sucedeu Sir
Joshua Reynolds como pintor principal de George III, que lhe concedeu o título de Sir em
1815.
39 Habitantes da terra imaginária de Brobdingnag em As viagens de Gulliver (1726), de Jonathan
Swift (1667-1745).
224 Lições de história

A diferença entre o trabalho copioso de Clarendon40 e a contabilidade das


guerras civis no resumo de Goldsmith41 desaparece quando comparada com
a imensa massa de fatos que ambos igualmente silenciam.
Nenhuma pintura, então, e nenhuma história podem nos oferecer a
verdade completa: mas as melhores pinturas e as melhores histórias são
aquelas que exibem tais partes da verdade como produto realizado mais
próximo do todo. Aquele que é desprovido da arte de verificação poderia,
apresentando nada além da verdade, produzir todo o efeito da falsidade
mais bruta. Sempre acontece que um escritor conta menos verdade que
outro, meramente porque ele conta mais verdades.
A história tem seu primeiro plano e seu fundo: e é principalmente no
gerenciamento de sua perspectiva que um artista difere de outro. Alguns
eventos devem ser representados em uma escala ampliada, e outros, dimi­
nuídos; a grande maioria será obscurecida no horizonte; e uma ideia geral de
sua articulação será dada por alguns toques singelos.
A esse respeito nenhum escritor jamais se igualou a Tucídides. Ele foi
um perfeito mestre da arte da diminuição gradual. Sua história às vezes é
concisa como um diagrama cronológico; todavia sempre é clara. Às vezes é
tão pequena quanto uma das cartas de Lovelace;42 embora nunca seja proli­
xo. Ele nunca falha em resumir ou expandir nos lugares corretos.
Tucídides emprestou de Heródoto a prática de colocar os seus próprios
discursos na boca de suas personagens. Em Heródoto esse uso dificilmente é
censurável. É uma parte de seu trabalho. Mas, no geral, é incompatível com
a obra de seu sucessor, e viola não apenas a precisão da história, mas a de­
cência da ficção. Uma vez dentro de espírito de Heródoto, não encontramos
inconsistência. A probabilidade costumeira de seu drama é preservada do co­
meço ao fim. As orações deliberadas e os diálogos familiares são mantidos em
estrita harmonia. Mas os discursos de Tucídides não são nem precedidos nem
seguidos de nada com que eles concordem. A invenção é chocante quando a
verdade está em tão próxima justaposição a ela.

40 Edward Hyde (1609-1674), primeiro conde de Clarendon, historiador e estadista inglês, con­
selheiro de Charles I e de Charles II, que lhe concedeu o título nobiliárquico. Escreveu History
oj the rebellion and civil wars in England, publicada após sua morte em 1704.
41 Oliver Goldsmith (1728-1774), escritor de novelas, poesias, peças e ensaios. Inglês de origem
irlandesa, fez parte do Clube Literário fundado por Samuel Johnson e Joshua Reynolds.
42 Richard Lovelace (1618-C.1657), poeta e nobre cavaleiro inglês.
Thomas Babington Macaulay 225

Tucídides nos diz honestamente que alguns daqueles discursos são


puramente fictícios. Ele poderia ter reproduzido o conteúdo de outros cor­
retamente, mas está nítido por evidências internas que ele preservou nada
mais que o conteúdo. Em toda parte, seus hábitos peculiares de pensar e
expressar são discerníveis. Raramente peculiaridades individuais e nacio­
nais são encontradas nos sentimentos, e nunca no estilo.
i A despeito desse grande defeito, deve-se admitir que Tucídides ultra­
passou todos os seus rivais na arte da narração histórica, na arte de pro­
duzir um efeito sobre a imaginação, pela hábil seleção e organização, sem
se entregar à licença da invenção. Mas a narração, embora uma parte im­
portante do ofício do historiador, não é o todo. Acrescentar a moral a um
trabalho de ficção é tanto inútil quanto supérfluo. A ficção poderia dar um
efeito mais impressionante para o que já é sabido; mas não pode ensinar
nada de novo. Se ela nos apresenta características e séries de eventos para
os quais nossa experiência não nos fornece nada similar, ao invés de tirar
ensinamento dela, consideramo-la artificial. Nós não formamos nossas opi­
niões a partir dela; mas julgamo-la através de nossas opiniões preconcebi­
das. A ficção é, pois, essencialmente imitativa. Seu mérito consiste em sua
semelhança com um modelo com o qual já estamos familiarizados, ou ao
qual ao menos podemos imediatamente nos referir. Na ficção, os princípios
são dados para encontrar os fatos: na história, os fatos são dados para en­
contrar os princípios; e o escritor que não explica os fenômenos que expõe
faz apenas metade do seu serviço. Os fatos são meros dejetos da história. É
da verdade abstrata que os permeia e jaz latente entre eles, como o ouro em
um minério, que o conjunto deriva todo o seu valor: e as partículas precio­
sas estão geralmente combinadas de tal maneira que separá-las é uma tarefa
de máxima dificuldade.
Aqui Tucídides é falho: a deficiência, de fato, não é para ele vergo­
nhosa. Era um inevitável efeito das circunstâncias. Necessariamente, era na
natureza das coisas, em alguma parte de seu progresso através da ciência
política, que a mente humana deveria alcançar esse ponto que ela conquis­
tou em seu tempo. O conhecimento avança por etapas, e não por saltos. Os
axiomas de um clube de debate inglês seriam paradoxos impressionantes e
misteriosos aos homens políticos mais iluminados de Atenas.
Tucídides foi indubitavelmente um homem sagaz e iluminado. Isso
claramente aparece na habilidade com que examina questões práticas. Mas
226 Lições de história

o talento de decidir sobre circunstâncias de casos particulares é um dom


possuído frequentemente na mais alta perfeição por pessoas destituídas
de poder de generalização. Certamente, a espécie de disciplina pela qual
essa destreza é adquirida tende a atrofiar a mente e a torna incapaz para o
raciocínio abstrato.
Os homens de Estado gregos da época de Tucídides foram célebres por
sua sagacidade prática, sua intuição das causas, sua habilidade de planejar os
meios para a realização de suas finalidades. Essa era a mesma escola em que
provavelmente os homens adquiriram a dissimulação de Mazann,43 a ousa­
dia judiciosa de Richelieu,44 a compreensão, o tato delicado, o pressentimen­
to quase instintivo da aproximação de eventos que deram tanta autoridade ao
conselho de Shaftesbury, que “era como se um homem tivesse consultado o
oráculo divino”. Tucídides estudou nessa escola; e seu conhecimento é aque­
le que tal escola naturalmente propiciaria. Ele julga melhor circunstâncias
que princípios. Quanto mais a questão é limitada, melhor ele raciocina sobre
ela. Seu trabalho sugere várias considerações importantes com respeito aos
primeiros princípios de governo e moral, o crescimento das facções, a orga­
nização de exércitos, e as relações mútuas de comunidades. Todavia, todas
as suas observações gerais sobre esses assuntos são muito superficiais. Suas
observações mais judiciosas diferem daquelas observações de um historiador
realmente filosófico, assim como uma quantia corretamente calculada por
um contador difere de uma expressão geral descoberta por um algebrista. A
primeira é útil apenas em uma única transação; a última pode ser aplicada a
um número infinito de casos.
Receamos que essa opinião seja considerada heterodoxa. Pois, sem fa­
lar da ilusão que a visão de um caractere grego ou que o som de um diton­
go grego frequentemente produzem, há algumas peculiaridades no estilo
de Tucídides que nem minimamente lhe asseguram a reputação de quali­
dade profunda. Seu livro evidentemente é a obra de um homem e de um
estadista; e nesse aspecto apresenta um notável contraste com a prazerosa

43 Jules Mazarin (1602-1661) foi cardeal, estadista e diplomata papal aos 26 anos de idade. En­
volvido no cenário político italiano, serviu como primeiro-ministro na França a partir de 1642,
quando sucedeu seu mentor, o cardeal Richelieu.
44 Armand Jean du Plessis de Richelieu (1585-1642), cardeal-duque de Richelieu, foi primei­
ro-ministro de Luís XIII, de 1628 até sua morte. Além de ter sido uma liderança francesa na
Europa, colaborou para a construção do absolutismo na França.
Thomas Babington Macaulav 227

imaturidade de Heródoto. Por toda a parte há um tom de madura autori­


dade, de reflexão grave e melancólica, de imparcialidade e de autodomínio
habitual. Raramente se entrega aos sentimentos, rapidamente reprimidos.
Preconceitos vulgares de todo tipo, e particularmente superstições banais,
são tratados com um peculiar desprezo frio e soberbo. Seu estilo é pesado,
condensado, antitético, e frequentemente obscuro. Mas, quando olhamos
para sua filosofia política, sem considerar tais circunstâncias, achamos que
ele foi — e seria realmente um milagre que não tivesse sido — simplesmen­
te um ateniense do quinto século antes de Cristo.
Geralmente, Xenofonte45 é situado, a nosso ver sem muita razão, no
mesmo nível de Heródoto e Tucídides. Ele se parece com eles, de fato, na
pureza e na doçura do seu estilo; mas, no espírito, pouco se parece com
aquela escola subsequente de historiadores cujas obras parecem ser fábulas
compostas para uma moral, e que, em sua ânsia de nos dar conselhos e
exemplos, esquece de nos dar homens e mulheres. A educação de Ciro, se a
olharmos como uma história ou como um romance, nos parece um desem­
penho muito miserável. Anábase e Helénicas certamente constituem leitura
agradável, mas não indicam nenhuma grande potência intelectual. Os sen­
timentos de piedade e virtude que abundam em seu trabalho são aqueles de
um homem bem intencionado, um tanto tímido e de visão limitada, devoto
da constituição em vez da convicção racional. A falta de senso de Heródoto
é a de um bebê; a de Xenofonte é a de um caduco. Suas histórias sobre
sonhos, presságios e profecias apresentam um estranho contraste com as
passagens em que o astuto e incrédulo Tucídides menciona as superstições
populares. Não está totalmente claro que Xenofonte era honesto em sua
credulidade; seu fanatismo, em alguma medida, estava na política.
Políbio46 e Arriano47 nos deram conta autêntica dos fatos; e aqui aca­
bam seus méritos. Não eram homens de mentes detalhadas; não tiveram a

*5 Xenofonte (c. 427-355 a.C.), soldado, mercenário e discípulo de Sócrates. Autor de Anábase,
Helénicas, A educação de Ciro (370 a.C.), Agesilau (360 a.C.) e de obras socráticas.
46 Geógrafo e historiador grego (c. 203-120 a.C.), famoso por sua obra Histórias, que tratava do
mundo Mediterrâneo entre o período de 220 a 146 a.C.
47 Lucius Flavius Arrianus Xenofonte, ou Arriano (c. 92-c. 175), historiador romano da língua
grega, comandante militar e filósofo. Nasceu em Nicomédia, capital da província da Bitínia,
onde hoje é o noroeste da Turquia. Embora fosse cidadão romano, Arriano falava e escrevia em
grego. Seu trabalho constitui um importante relato sobre Alexandre, o Grande.
228 Lições de história

arte de contar uma história de maneira interessante. Em consequência, foram


colocados à sombra pelos escritores que, embora menos estudiosos da ver-
dade que de si mesmos, de longe compreendiam melhor a arte de produzir
impacto, como Tito Lívio48 e como Quintus Curtius.49
Contudo, Políbio e Arriano merecem grande louvor quando compa­
rados com os escritores dessa escola de que Plutarco50 pode ser conside­
rado líder. Em relação aos historiadores dessa classe, devemos confessar
que guardamos uma aversão peculiar. Eles parecem ter sido meticulosos,
embora destituídos daquelas valiosas qualidades que frequentemente são
encontradas junto com a meticulosidade, ainda que eles mesmos fossem
grandes filósofos e grandes políticos. Eles não apenas enganaram seus leito­
res em cada página, em relação a fatos particulares, mas, em geral, parecem
ter entendido mal toda a natureza do tempo sobre o qual escreveram. Da
liberdade, tal como é em pequenas democracias, do patriotismo, tal como
é em pequenas comunidades independentes de qualquer tipo, eles não ti­
nham, e poderiam ter, nenhum conhecimento empírico.
Os escritores de quem falamos deveriam ter considerado isso. Deve­
riam ter considerado que o patriotismo, tal como existiu entre os gregos,
nada teve de essencialmente e eternamente bom; que a associação exclusiva
a uma sociedade particular, apesar de ser um sentimento natural e, sob
certas restrições, bastante útil, não implica nenhuma realização extraordi­
nária no conhecimento ou na virtude; que isso, onde existiu em um grau
intenso, transformou Estados em gangues de usurpadores cuja fidelidade
mútua os tornou mais perigosos, deu à guerra um caráter da atrocidade
peculiar, e gerou aquele que é o pior de todos os males políticos: a tirania
de nações sobre nações.
Entusiasticamente ligados à boa reputação da liberdade, esses histo­
riadores se preocuparam pouco com sua definição. Os espartanos, ator­
mentados por 10 mil restrições absurdas, incapazes de se satisfazerem com
a escolha de suas esposas, seus jantares ou suas corporações, foram com­
pelidos a assumir uma maneira peculiar, e a falar em um estilo peculiar,

48 Historiador romano (59 a.C.-17 d.C.) que escreveu a monumental história de Roma, em 142

volumes, desde sua fundação em 753 a.C.


49 Quintus Curtius Rufus (? -53 d.C.), historiador romano que escreveu durante o reinado do
imperador Cláudio. Autor de História de Alexandre Magno.
50 Plutarco de Queroneia (c. 46-120 d.C.), filósofo e biógrafo grego. Estudou na Academia de
Atenas, fundada por Platão.
Thomas Babington Macaulay 229

em nome de sua liberdade. A aristocracia de Roma repetidamente fez da


liberdade um argumento para eliminar os favoritos dos povos. Em qua­
se todas as nações pequenas da Antiguidade, a liberdade era usada como
pretexto para medidas contrárias a tudo aquilo que faz a liberdade valiosa,
para medidas que reprimiam a discussão, corrompiam a administração da
justiça e desencorajavam a acumulação de propriedade. Os escritores cujas
obras estamos considerando confundiram o aspecto com a substância, e os
meios com as finalidades. A imaginação deles era inflamada pelo mistério.
Na relação dos eventos e na delineação das personagens, prestaram pouca
atenção aos fatos, aos costumes dos tempos que pretendiam tratar ou aos
princípios gerais da natureza humana. Foram fiéis apenas às suas próprias
doutrinas pueris e extravagantes.
Esses escritores, homens que não souberam o que era ter um país, ho­
mens que nunca gozaram de direitos políticos, criaram um discurso ofen­
sivo sobre patriotismo e zelo pela liberdade. O que os puritanos ingleses
fizeram pela linguagem da cristandade, o que Scuderi51 fez pelo discurso
do amor, eles fizeram pela linguagem do espírito público. Pelo exagero ha­
bitual fizeram-na vil. Pela ênfase monótona fizeram-na fraca. Maltrataram-
na até que ela se tornasse dificilmente possível de ser usada com efeito.
Tito Lívio teve algumas falhas em comum com esses escritores. Mas,
em geral, ele mesmo deve ser considerado uma classe à parte: nenhum his­
toriador com quem somos familiarizados mostrou tão completa indiferença
pela verdade. Ele parece ter se importado apenas com o efeito pitoresco
de sua obra e a honra de seu país. Por outro lado, em toda a extensão da
literatura, não encontramos exemplo de uma coisa ruim tão bem feita. O
quadro da narrativa está além da descrição vívida e graciosa. A abundância
de sentimentos interessantes e de imagens esplêndidas é quase miraculosa.
Sua mente é um solo que nunca é exaurido, uma fonte que parece nunca
gotejar. Jorra abundantemente; contudo, não dá nenhum sinal de exaustão.
Era provavelmente a essa exuberância do pensamento e da língua, sempre
fresca, sempre doce, sempre pura, frutífera, que os críticos aplicavam aque­
la expressão que tanto foi discutida: actea ubertas.52

51 Madeleine de Scudéry (1607-1701), também conhecida como Mademoiselle de Scudéry, foi


uma escritora e novelista francesa. Seu nome é encontrado grafado também como Scuderi.
52 Conforme a interpretação tradicional, essa expressão em latim foi usada no Institutio Ora-
totia, por Marcus Fabius Quintilianus (c.35-c.95), professor de retórica na Roma antiga, para
230 Lições de história

Todos os méritos e todos os defeitos de Tito Lívio tomam as cores do


caráter de sua nação. Ele foi um escritor peculiarmente romano; orgulhoso
cidadão de um povo que, de fato, tinha perdido a realidade da liberdade,
mas que ainda preservou suas formas sagradas — na verdade, súdito de
um príncipe arbitrário, mas, em sua própria avaliação, um dos senhores do
mundo, com centenas de reis abaixo dele, e apenas deuses acima dele. En­
tão, ele olhou para trás, para os tempos passados, com sentimentos muito
diferentes daqueles que foram naturalmente compartilhados por seus con­
temporâneos gregos, e que em um período anterior se generalizaram entre
os homens de letras durante todo o império romano. Ele contemplou o
passado com interesse e prazer, não porque o passado forneceu o contraste
com o presente, mas porque havia conduzido ao presente. Ele recorreu a
isso, não para perder em recordações orgulhosas o sentido de degradação
nacional, mas para seguir o processo da glória nacional. É verdadeiro que
sua veneração pela Antiguidade produziu nele alguns efeitos que foram
gerados naqueles que chegaram nela por um caminho muito diferente. Ele
tem algo de seu exagero, algo de sua expressão, algo de seu apreço por ano­
malias e lusus naturae53 na moralidade. Contudo, mesmo aqui percebemos
uma diferença. Falam com entusiasmo do patriotismo e da liberdade de
forma abstrata. Ele não parece pensar em nenhum país exceto Roma como
merecedor de afeição; nem é pela liberdade em si que ele zela, mas pela
liberdade como uma parte das instituições romanas.
Dos relatos concisos e elegantes das campanhas de César54 pouco
pode ser dito. São modelos incomparáveis de expedições militares. Mas as
histórias não o são, nem fingem sê-lo.

caracterizar o estilo da prosa de Tito Lívio. Assim, a expressão de Quintiliano faria referência à
“patavinidade”, isto é, à latinidade provinciana do modo de falar que é próprio dos moradores
de Patavium, como Tito Lívio. Muito provavelmente, é a esta interpretação que Macaulay se
referiu. Contudo, outra possibilidade de entendimento foi levantada por Steve Hays (1986:107-
116), para quem a melhor compreensão da frase de Quintiliano é a seguinte: que os escritos
de Tito Lívio são “nutritivos”, ou seja, são tão apropriados para os bons estudantes de retórica,
por fornecer um bom modelo, quanto o leite é bom para o desenvolvimento dos bebês. Hays
argumenta que a metáfora do leite, no contexto da educação, é encontrada em Quintiliano, em
vários escritores gregos do século primeiro e até na Bíblia.
53 Anormalidade, pessoa ou coisa deformada, monstruosa.
54 Gaius Julius Caesar (100-44 a.C.), general, estadista e ditador romano. Teve papel decisivo na
transformação da Roma republicana em império.
Thomas Babington Macaulay 231

Os críticos antigos colocaram Salústio53 no mesmo nível que Tito Lí-


vio; e inquestionavelmente a menor porção de seu trabalho que chegou até
nós é calculada para dar uma opinião justa de seus talentos. Mas seu estilo
não é muito aprazível: e o seu trabalho mais poderoso, o relato da conspira­
ção de Catilina,56 tem um pouco o tom de panfleto partidário, mais que de
história. É abundante em inconsistências estranhas, as quais, inexplicáveis
que são, necessariamente levantam dúvidas a respeito da imparcialidade da
narrativa. É verdade que muitas circunstâncias hoje esquecidas poderiam
ter sido familiares aos seus contemporâneos e ter tornado claras para eles as
passagens que nos parecem dúbias e complicadas. Mas um grande historia­
dor deveria lembrar que ele escreve para gerações distantes, para homens
que irão perceber as contradições aparentes, e que não possuirão nenhum
meio de reconciliá-las.
Salústio nos conta, em verdade, o que as cartas e discursos de Cícero
suficientemente provam: que algumas pessoas consideram as partes chocan­
tes e atrozes da trama como meras invenções do governo, destinadas a justifi­
car medidas inconstitucionais. Devemos confessar que somos dessa opinião.
Indubitavelmente, há um forte partido desejoso de mudar a administração.
Dos historiadores latinos, Tácito57 certamente foi o maior. De fato,
seu estilo em si não é apenas defeituoso, mas, em alguns aspectos, pe­
culiarmente inepto para a composição histórica. Ele leva sua paixão pela
realização para muito além dos limites da moderação. Conta uma bela his­
tória com primor, mas não pode contar uma simples história simplesmen­
te. Ele estimula até que os estimulantes percam sua força. Tucídides, como

55 Caio Salústio Crispo (86-34 a.C), historiador romano e um dos grandes escritores e poetas
da literatura latina. Escreveu sobre a decadência do povo romano e descreveu dois grandes
momentos do fim da república romana, a conjuração de Catilina e a guerra de Jugurta. Salústio
fez de suas narrativas um pretexto para criticar os erros políticos cometidos por aqueles que
detiveram o poder em Roma, principalmente por Cícero, seu inimigo político e pessoal.
56 Lucius Sergius Catilina (? -109 a.C), político romano. Tentou ser nomeado cônsul, sem su­
cesso. Irritado e pressionado por dívidas, iniciou uma conspiração, a conjuração de Catilina,
na qual reuniu jovens nobres falidos. Sua tentativa de assassinar os dois cônsules falhou, e sua
pretensão ao consulado não obteve sucesso.
57 Publius Comelius Tacitus (55-120), historiador romano, foi questor, pretor, cônsul e ora­
dor. Considerado um dos maiores historiadores da Antiguidade, suas principais obras foram
os Anais, onde contou a história do império romano do século primeiro, desde a chegada do
imperador Tibério ao poder, até a morte de Nero, e Histórias, em que trata da morte de Nero
até a de Domiciano.
232 Lições de história

já observamos, relaciona os acontecimentos ordinários com uma clareza


despretensiosa e a concisão de uma gazeta. Ele reserva seus grandes do­
tes descritivos para os eventos cujos menores detalhes são interessantes. A
simplicidade do ajuste dá o lustre adicional aos destaques. Há passagens
em que a narrativa de Tácito supera o que de melhor pode ser citado de
Tucídides. Mas elas não ornamentam e realçam com a mesma habilidade.
São muito mais impressionantes quando extraídas do corpo da obra a que
pertencem do que quando ocorrem no seu lugar e são lidas em conexão
com o que antecede e o que se segue.
No delineamento da personagem, Tácito não encontra rival entre
os historiadores, e seus pouquíssimos superiores estão entre dramatur­
gos e romancistas. Por delineação da personagem não queremos dizer a
prática de formular catálogos epigramáticos de qualidades boas e más, e
de anexar a elas os nomes de homens eminentes. Nenhum escritor, de
fato, fez isto mais habilmente do que Tácito; mas essa não é sua glória
particular. Todas as personagens que ocupam um grande espaço na sua
obra têm uma individualidade de caráter que parece atravessar todos os
seus trabalhos e ações. O historiador se propôs a nos tornar intimamen-
te familiarizados com um homem [Tibério] singularmente misterioso e
inescrutável, com um homem cujo verdadeiro temperamento por muito
tempo permaneceu envolvido em dobras de virtudes aparentes, e sobre
cujos atos a hipocrisia de sua juventude e o isolamento de sua velhice
lançaram um mistério singular. Ele mostraria as qualidades ilusórias do
tirano sob uma luz que pudesse torná-las transparentes e imediatamente
nos permitisse perceber a capa e os vícios que ocultava. Revelaria as fases
através das quais o primeiro magistrado de uma república, o senador
que participava livremente no debate, o nobre associado ao seus pares
nobres transformou-se em um sultão asiático; mostraria uma personagem
notável pela coragem, autodomínio e política sagaz, porém inteiramente
maculada pela “extravagância/e a insana indecência da veleidade”.58

58 No original, “tWextravagancy/ and crazy ribaldry ojfancy”\ é uma citação de Hudibras (1663-
1678), poema narrativo em forma de sátira heroica escrito por Samuel Butler (1612-1680), no
qual faz escárnio do fanatismo, pedantismo, hipocrisia e arrogância da militância puritana. É
considerado o poema burlesco mais memorável da língua inglesa e a primeira sátira inglesa que
atacou ideias em vez de personalidades.
Thomas Babington Macaulay 233

Ele assinalaria o efeito gradual do avançar da idade e da aproximação


da morte sobre seu estranho composto de força e fraqueza; para exibir o
velho soberano do mundo afundando na senilidade que, apesar de tornar
seus apetites excêntricos e seu temperamento selvagem, nunca arruinou os
poderes de sua mente austera e penetrante — consciente da falta de for­
ça, enfurecendo-se com voluptuosidade caprichosa, e no entanto, para o
último dos mais aguçados observadores, o mais astuto dos dissimuladores
e o mais terrível dos mestres. A tarefa era de uma dificuldade extrema. A
execução é quase perfeita.
O talento que é requerido para escrever a história desse modo sus­
tenta uma considerável afinidade com o talento de um grande dramaturgo.
Há uma distinção óbvia. O dramaturgo cria; o historiador apenas põe em
ordem. A diferença não é no modo de execução, mas no modo de concep­
ção. Shakespeare é guiado por um modelo que existe em sua imaginação;
Tácito, por um modelo fornecido de fora.
Nessa parte de sua arte, Tácito certamente não teve igual nem segundo
entre os historiadores antigos. Heródoto, embora tenha escrito de uma for­
ma dramática, tinha pouca genialidade dramática. Os frequentes diálogos
que apresentou deram vivacidade e movimento à sua narrativa, mas não
são visivelmente característicos. Xenofonte se compraz em contar aos seus
leitores, longamente, o que ele pensava das pessoas cujas aventuras ele re­
lata. Mas ele não lhes mostra os homens, e os deixa julgar por eles mesmos.
Os heróis de Tito Lívio são as mais insípidas de todas as criaturas, reais ou
imaginárias, os heróis de Plutarco sempre excetuados. Tucídides, embora
após longo intervalo, vem em seguida a Tácito. Seu Péricles, sua Nícias, seu
Cleion, seu Brásidas são felizmente diferenciados. As linhas são poucas, o
colorido é fraco: mas a atmosfera geral e expressão são capturadas.
Como o padre na biblioteca de dom Quixote,59 começamos a ficar
cansados de pegar os livros um por um para julgá-los separadamente e
sentimo-nos inclinados a sentenciá-los em massa. Devemos, então, em vez
de apontar os defeitos e os méritos de diferentes historiadores modernos,

59 No capítulo 6 da mais famosa obra de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), enquanto


dom Quixote repousava na cama, doente, depois de sofrer um espancamento, um padre e um
barbeiro vasculham sua biblioteca à procura das obras que teriam provocado a loucura do fidal­
go, leitor de romances de cavalaria.
234 Lições de história

declarar geralmente em que particularidades eles superaram seus predeces­


sores, e em que entendemos que eles falharam.
Certamente eles têm sido, de certo modo, muito mais estritamente
comprometidos com a verdade do que a maioria dos escritores gregos e
romanos. Eles não se sentem no direito de tornar sua narrativa interes­
sante introduzindo descrições, conversas e discursos que não existem
senão em sua própria imaginação. Esse progresso se deu gradualmente.
A história começou entre as nações modernas da Europa, assim como
começara entre os gregos, no romance. Froissart60 era nosso Heródoto. A
Itália era para a Europa o que Atenas era para a Grécia. Na Itália, conse­
quentemente, uma modalidade mais exata e mais viril da narração foi in­
troduzida logo cedo. Maquiavel61 e Guicciardini62, à imitação de Tito Lí-
vio e Tucídides, compuseram discursos para seus personagens históricos.
Mas, como o entusiasmo clássico que distinguiu a época de Lourenço63
e Leão64 gradualmente arrefeceu, essa prática foi abandonada. Desconfia­
mos que na França, em alguma medida, ela ainda se mantém. Em nosso
próprio país, um escritor que se aventurasse a isso seria ridicularizado. Se
os historiadores dos últimos dois séculos dizem mais verdades que aque­
les da Antiguidade, isso talvez possa ser posto em dúvida. Mas é quase
certo que eles contaram menos falsidades.
Na filosofia da história, os modernos ultrapassaram em muito os an­
tigos. De fato, não é estranho que os gregos e os romanos não tenham de­
senvolvido a ciência do governo ou qualquer outra ciência empírica tanto

60 Jean Froissart (c.1333-c.1405), cronista, poeta e cortesão francês. Seus escritos cobrem o
período entre 1322 e 1400, e descrevem as preparações e o progresso da primeira metade da
Guerra dos Cem Anos.
61 Niccolò Machiavelli (1469-1527), diplomata, historiador e teórico político fiorentino. Autor
do tratado O príncipe (1513), é reconhecido como o fundador da ciência política moderna.
62 Francesco Guicciardini (1483-1540), cronista e diplomata italiano. Amigo e crítico de Ma­
quiavel, é considerado o maior escritor político da Renascença italiana. Devido ao uso de do­
cumentos para a verificação em sua História da Itália (1514), é considerado o pai da história
moderna.
63 Lourenço de Mediei (1449-1492), estadista fiorentino. Foi mecenas de Leonardo da Vin-
ci (1452-1519), do pintor e escultor Michelangelo (1475-1564) e do artista Sandro Boticelli
(1444-1510).
64 Papa Leão X (1475-1521), cujo nome original é Giovanni de Mediei, foi o segundo filho de
Lourenço de Mediei. Seu pontificado, um dos mais extravagantes da Renascença, durou de
1513 até sua morte.
Thomas Babington Macaulay 235

quanto em nosso tempo; pois as ciências empíricas geralmente estão em


estado de progressão. Foram mais bem compreendidas no século XVII do
que no XVI, e no século XVIII mais do que no XVII. Mas esse aprimora -
mento constante, essa evolução natural do conhecimento não explica in­
teiramente a enorme superioridade dos escritores modernos. A diferença
não é de grau, mas de tipo. Não é meramente que novos princípios têm
sido descobertos, e sim que novas faculdades parecem ser exercidas. Não
é que em certas épocas o intelecto humano tenha feito apenas pequenos
progressos, e em outras avançado bem mais, e sim que às vezes ele deve ter
estacionado, e outras vezes, evoluído bastante. No gosto e na imaginação,
nos adornos de estilo, na arte da persuasão, na magnificência das obras
públicas, os antigos ao menos se equiparavam a nós. Eles raciocinaram tão
justamente quanto nós sobre os assuntos que requeriam pura demonstra­
ção. Mas nas ciências morais quase que não fizeram avanço algum. Durante
o longo período transcorrido entre o século XV antes da era cristã e o sécu­
lo XV depois dela houve pouco progresso perceptível. Todas as descobertas
metafísicas de todos os filósofos, desde o tempo de Sócrates até a invasão
do Norte, não se comparam em importância àquelas que têm sido feitas na
Inglaterra a cada 50 anos, desde o tempo de Elizabeth.65 Não há a menor
razão para acreditar que os pnncípios do governo, a legislação e a econo­
mia política foram mais bem compreendidos no tempo de Augusto66 do
que no tempo de Péricles. Em nosso próprio país, as sólidas doutrinas de
comércio e jurisprudência foram, no espaço de tempo de uma só geração,
vagamente sugeridas, corajosamente propostas, defendidas, sistematizadas,
adotadas por todos os pensadores de todos os partidos, citadas em assem­
bleias legislativas e incorporadas em leis e tratados.
A que se atribui essa mudança? Em parte, sem dúvida, à descoberta
da imprensa, uma descoberta que tem não apenas largamente difundido
conhecimento, mas, como já observamos, também introduzido no raciocínio
uma precisão desconhecida naquelas comunidades antigas, nas quais a in­
formação era principalmente transmitida oralmente. Suspeitamos que havia
outra causa, menos óbvia, mas ainda mais poderosa.

65 Elizabeth 1 (1533-1603), filha de Henrique VIII e sua segunda esposa, Ana Bolena (c. 1501-
1536), foi rainha da Inglaterra de 1558 a 1603.
66 Gaius Julius Caesar Octavianus (63 a.C.-14 d.C.), primeiro imperador romano.
236 Lições de história

O espírito das duas nações mais famosas da Antiguidade foi notavel­


mente exclusivo. No tempo de Homero,67 os gregos não haviam começado
a se considerar uma raça distinta. Ainda viam com certo espanto e respeito
infantis as riquezas e a sabedoria de Sidon68 e do Egito. Não é fácil determi­
nar por que causas e quão gradualmente seus sentimentos se modificaram.
A história deles, da guerra de Troia à guerra pérsica, está envolta numa obs­
curidade quebrada somente por vagos e esparsos clarões de verdade. Mas é
certo que uma grande alteração ocorreu. Passaram a considerar-se um povo
distinto. Tinham ritos religiosos comuns e princípios comuns de lei pública,
de que os estrangeiros não participavam. Em todos os seus sistemas políti­
cos, monárquico, aristocrático, e democrático, havia uma forte semelhança
familiar. Depois da retirada de Xerxes e da queda de Mardônio, o orgulho
nacional representou a completa separação entre os gregos e os bárbaros. Os
conquistadores consideravam a si próprios homens de uma raça superior,
homens que, no intercurso com as nações vizinhas, estavam para ensinar, e
não para aprender. Não procuravam nada fora deles mesmos. Não tomaram
nada emprestado. Não traduziram nada. Não podemos recordar uma única
expressão de qualquer escritor grego anterior à era de Augusto indicando
que alguma coisa que merecesse ser lida poderia ser escrita em outra língua
que não a sua própria. Os sentimentos que brotaram da glória nacional não
foram absolutamente extintos pela degradação nacional. Foram ciosamente
preservados através de eras de escravidão e desonra. A literatura de Roma,
ela mesma, foi observada com desprezo por aqueles que tinham fugido
diante de suas armas e se curvado sob seus fasces.69 Até um período bem
tardio, os gregos pareciam sentir necessidade de informação a respeito dos
seus dominadores. Com Paulo Emílio,70 Sila71 e César, estavam bem fami-

67 Poeta épico grego do século 9 a.C., a quem se atribui a autoria da Ilíada e da Odisseia.
68
Principal cidade da Fenícia no segundo milénio antes da era cristã. Na Antiguidade, foi suces­
sivamente dominada por assírios, babilónios e persas. Por volta de 330 a.C., foi conquistada por
Alexandre, o Grande. Sob domínio romano, no século I a.C., desempenhou a função de importan­
te centro de fabricação de vidro e corantes. Durante as Cruzadas, mudou de mãos várias vezes até
cair sob domínio muçulmano em 1291. Depois de 1517, passou à tutela dos otomanos.
69 Segundo o Dicionário Houaiss, “na antiga Roma, conjunto formado por feixe de varas em tomo
de um machado, que, carregado pelos lictores que acompanhavam os cônsules, representava o
direito que tinham os últimos de aplicar punições”.
70 Paulus Aemilius Veronensis (c. 1455-1529), historiador italiano.
71 Lucius Cornelius Sulla (c. 138-78 a.C.), general e estadista romano.
Thomas Babington Macaulay 237

liarizados. Mas as opiniões que eles tinham a respeito de Cícero e Virgílio72


provavelmente não eram diferentes daquelas que Boileau73 deveria ter sobre
Shakespeare. Dionísio viveu na mais esplêndida era da poesia e eloquência
latina. Foi um crítico e, à maneira de sua época, um talentoso crítico. Estu­
dou a língua de Roma, associou-se com seus homens sábios, e compilou sua
história. No entanto, ele parece ter pensado que sua literatura servia apenas
para ilustrar suas antiguidades. Suas leituras parecem ter-se limitado aos
registros públicos e a alguns poucos antigos analistas.
Os romanos se submeteram às pretensões de uma raça que despre­
zavam. Seu poeta épico, embora reclamasse para eles a preeminência nas
artes do governo e da guerra, reconhecia-lhes a inferioridade no gosto,
na eloquência e na ciência. Os homens de letras fingiam compreender a
língua grega melhor que a sua própria. Pompônio74 preferiu a honra de se
tornar um ateniense, pela naturalização intelectual, a todas as distinções
que pudessem ser adquiridas nas disputas políticas de Roma. Muitos ro­
manos eminentes parecem ter sentido o mesmo desprezo por sua língua
pátria, em comparação com o idioma grego. Tal preconceito persistiu por
muito tempo.
Mesmo os escritores latinos que não levavam tão longe essa presun­
ção viam os gregos como a única fonte de conhecimento. Do grego deri­
varam a métrica de sua poesia, e, de fato, tudo o que podia ser importado
da poesia. Do grego emprestaram os princípios e o vocabulário de sua

72 Publius Vergilius Maro (70-19 a.C.), o maior dos poetas romanos. Seu poema épico Eneida (ini­
ciado em c. 29, mas inacabado) é considerado uma das obras-primas da literatura mundial.
73 Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711), poeta e crítico literário francês. Escreveu A arte
poética (1674), um tratado didático em verso que estabelece as regras da composição poética
na tradição clássica.
74 Titus Pomponius Atticus (c. 110-32 a.C.), nobre da classe equestre, intelectual e negociante
romano. Nasceu e foi criado em Roma, mas se mudou para Atenas para se afastar da erupção
de violência causada pelo retorno de Sila e seu exército. Apaixonado pela cultura helénica, ele
próprio se apelidou de “Atticus”. Excelente estudante, fez de sua passagem pela Grécia (85-65
a.C.) um momento de imersão na filosofia e na literatura gregas, cultivando seus interesses
artísticos, antiquários, literários e filosóficos. Pompônio é recordado como grande amigo de
Cícero, que lhe dedicou um tratado sobre a amizade, De amicitia; a correspondência entre os
dois está preservada nos 16 volumes das Epistulae ad Atticum (Cartas a Ático). No ano 32, após
sofrer doente por meses, Pompônio acelerou sua própria morte ao se abster da alimentação.
Deixou uma brevíssima história de Roma, Annalis, além de uma narrativa em grego sobre o
consulado de Cícero.
238 Lições de história

filosofia. Não parecem ter dado a menor atenção à literatura de outras


nações. Os livros sagrados dos hebreus, por exemplo, livros que, consi­
derados meramente como composições humanas, são inestimáveis para a
crítica, os antiquários e os filósofos, parecem ter-lhes passado totalmente
despercebidos. As peculiaridades do judaísmo e o rápido crescimento do
cristianismo lhes atraíram a atenção. Fizeram guerra contra os judeus.
Fizeram leis contra os cristãos. Mas nunca abriram os livros de Moisés.
O fato é que parece que os gregos admiravam apenas a si próprios, e
que os romanos admiravam apenas a si mesmos e os gregos. Os literatos
afastaram-se com repugnância dos modos de pensamento e expressão
tão diferentes de tudo aquilo que eles tinham se acostumado a admirar.
O resultado foi a estreiteza e a monotonia intelectual. Suas mentes en-
dogâmicas, se pudermos assim nos expressar, foram consequentemente
amaldiçoadas com esterilidade e degeneração. Nenhuma beleza externa
ou vigor foi enxertado no estoque da decadência. Por uma atenção exclu­
siva a uma classe de fenômenos, por um gosto exclusivo por uma única
espécie de excelência, o intelecto humano atrofiou-se. Coincidências oca­
sionais se transformaram em regras gerais. Preconceitos se confundiram
com tendências naturais. Sobre o homem, como viveu num determinado
tipo de sociedade — sobre o governo, como existiu num determinado
canto do mundo, muitas observações justas foram feitas; mas do homem
como homem, ou do governo como governo, pouco se sabia. A filosofia
permanecia estacionária. As pequenas mudanças, às vezes para pior, às
vezes para melhor, foram feitas na superestrutura. Mas ninguém pensou
em examinar os fundamentos.
A apatia era quebrada por duas grandes revoluções: uma moral, e ou­
tra política; uma vinda de dentro, a outra de fora. A vitória do cristianismo
sobre o paganismo, considerada apenas sob esse aspecto, foi de grande im­
portância. Aboliu o antigo sistema moral e, com isso, muito do antigo sis­
tema da metafísica. Abasteceu o orador com novos tópicos de declamação,
e o lógico com novos pontos de controvérsia. Sobretudo, introduziu um
novo princípio, cuja operação constantemente se fez sentir em toda par­
te da sociedade. Revolveu a massa estagnada da mais interna profundeza.
Despertou todas as paixões de uma democracia tempestuosa na população
quieta e indiferente de um império que havia crescido excessivamente. O
medo da heresia fez o que o senso de opressão não poderia fazer; transfor-
Thomas Babington Macaulay 239

mou os homens, acostumados a serem passados adiante como carneiros de


tirano para tirano, em partidários ferrenhos e rebeldes obstinados.
Contudo, mesmo esse remédio não foi suficientemente forte para a do­
ença. Não impediu o império de Constantinopla de recair, após um breve
paroxismo de excitação, num um estado de estupefação que não tem para­
lelo na história. Vemos então que uma sociedade ilustrada, uma sociedade
em que se estabeleceu um intrincado e complexo sistema de jurisprudência,
em que as artes de luxo foram bem compreendidas e em que as obras dos
grandes escritores antigos foram preservadas e estudadas passou quase mil
anos sem fazer nenhuma grande descoberta na ciência ou produzir um livro
que fosse lido por alguém a não ser investigadores curiosos. Houve também
muitos tumultos, controvérsias e guerras: e essas coisas, ruins como são em
si, geralmente foram favoráveis ao progresso do intelecto.
Desse estado miserável o Império do Ocidente foi salvo pela mais
feroz e mais destruidora visita com que Deus já puniu suas criaturas — a
invasão das nações do Norte. Tal cura foi necessária para tal enfermidade.
Como fora observado, o incêndio de Londres foi uma bênção. Destruiu
a cidade, mas eliminou a praga. O mesmo poderia ser dito da tremenda
devastação dos domínios romanos. Aniquilou os recessos asquerosos onde
se escondiam as sementes de grandes enfermidades morais; limpou uma
atmosfera fatal à saúde e ao vigor da mente humana. Custaram à Europa
mil anos de barbarismo para escapar do destino da China.
A terrível purificação realizou-se finalmente, e uma segunda civiliza­
ção da humanidade iniciou-se, sob circunstâncias que proporcionaram uma
forte segurança de que não haveria retrocesso ou pausa. A Europa era agora
uma grande comunidade federal. Seus numerosos Estados estavam unidos
pelos laços confortáveis do direito internacional e de uma religião comum.
Suas instituições, seus idiomas, suas maneiras, seus gostos na literatura, suas
formas de educação eram bastante diferentes. Sua conexão era próxima o
bastante para permitir a mútua observação e aprimoramento; mas não tão
próxima para destruir os idiomas da opinião e do sentimento nacionais.
O equilíbrio da influência moral e intelectual então estabelecido
entre as nações da Europa é muito mais importante que o equilíbrio do
poder político. De fato, somos inclinados a pensar que o último é princi­
palmente valioso porque tende a manter o primeiro. Dessa forma, o mun­
do civilizado foi preservado de uma uniformidade de caráter fatal a todo
240 Lições de história

aprimoramento. Cada parte dele foi iluminada com a luz refletida de suas
outras partes. A competição tem produzido atividade onde o monopólio
poderia ter produzido letargia. O número de experimentos em ciência
moral que o especulador tem a oportunidade de testemunhar aumentou
além de todas as expectativas. A sociedade e a natureza humana, em vez
de serem consideradas de um único ponto de vista, lhe são apresentadas
sob 10 mil aspectos diferentes.Observando as maneiras das nações em
volta, estudando sua literatura, comparando-a com aquela de seu próprio
país e das repúblicas antigas, ele pode corrigir aqueles erros nos quais os
homens mais finos incorrem quando raciocinam de uma única espécie
para um gênero. Aprende a distinguir o que é local do que é universal:
o que é transitório do que é eterno; a discriminar entre as exceções e as
regras; a identificar a ação das causas perturbadoras; a separar aqueles
princípios gerais que sempre são verdadeiros e aplicáveis em toda parte
das circunstâncias acidentais com as quais, em cada comunidade, eles se
misturam, e com as quais, em uma comunidade isolada, são confundidos
pela mente mais filosófica.
Daí que, por generalização, os escritores dos tempos modernos supe­
raram em muito aqueles da Antiguidade. Os historiadores de nosso próprio
país são inigualáveis em profundidade e precisão da razão; e, mesmo nas
obras de nossos meros compiladores, frequentemente encontramos espe­
culações além do alcance de Tucídides ou Tácito.
Mas, ao mesmo tempo, deve-se admitir que eles têm falhas caracterís-
ticas, tão ligadas a seus méritos característicos, e de tal magnitude, que bem
se poderia duvidar se, no todo, esse departamento da literatura ganhou ou
perdeu durante os últimos 22 séculos.
Os melhores historiadores dos últimos tempos se deixaram seduzir
pela verdade, não por sua imaginação, mas pela sua razão. Superaram em
muito seus predecessores na arte de deduzir princípios gerais de fatos.
Mas infelizmente têm incorrido no erro de distorcer os fatos para justi­
ficar princípios gerais. Chegam à teoria através da observação de certos
fenômenos; e distorcem ou reduzem os fenômenos restantes para satis­
fazer a teoria. Para tanto não é necessário que afirmem o que é absolu­
tamente falso; pois todas as questões morais e políticas são questões de
comparação e grau. Qualquer proposição que não envolva contradição de
Thomas Babington Macaulay 241

termos pode ser verdadeira; e pode parecer demonstrada se todas as cir­


cunstâncias que aumentam a probabilidade a seu favor são estabelecidas
e reforçadas, e aquelas que levem a uma conclusão oposta são omitidas
ou desprezadas.
Essa espécie de deturpação é frequente nas mais valiosas obras dos his­
toriadores modernos. Heródoto conta sua história como uma testemunha
negligente que, inflamada por parcialidades e preconceitos, não familiarizada
com as regras de evidência estabelecidas, e não instruída a respeito das obri­
gações de seu juramento, confunde o que ela imagina com o que ela viu e
ouviu, e apresenta um monte de fatos, relatos, conjecturas e fantasias.
Os historiadores modernos da Grécia tinham o hábito de escrever
como se o mundo nada tivesse aprendido de novo nos últimos 600 anos.
Em vez de ilustrarem os eventos que narravam pela filosofia de uma era
mais esclarecida, julgavam a Antiguidade apenas por si mesma. Conside­
ravam todos os historiadores antigos como igualmente autênticos. Mal fa­
ziam qualquer distinção entre aquele que relatou os eventos que ele mesmo
presenciou e aquele que 500 anos depois compôs um romance filosófico
para uma sociedade que nesse intervalo havia passado por uma completa
transformação. Era tudo grego, e tudo verdadeiro! Os séculos que separam
Plutarco de Tucídides pareciam nada para homens que viveram numa era
tão remota. A distância no tempo produziu um erro similar àquele que às
vezes é produzido pela distância física.
A prática de distorcer a narrativa para conformá-la à teoria não é um
vício tão desfavorável quanto pode parecer à primeira vista aos interes­
ses da ciência política. Comparamos os escritores que se permitem fazer
isso aos advogados; e podemos acrescentar que suas falácias conflitantes,
assim como as dos advogados, se corrigem umas às outras. Sempre se
acreditou, nas nações mais esclarecidas, que um tribunal decidirá mais
justamente uma questão judicial após ouvir dois homens capazes de de­
baterem, tão injustamente quanto possível, os dois lados da questão; e
somos inclinados a pensar que essa opinião é correta. Às vezes, é verda­
de, a eloquência superior e a destreza farão o pior argumento parecer o
melhor; mas ao menos é certo que o juiz será compelido a contemplar
o caso sob dois aspectos diferentes. É certo que nenhuma consideração
importante passará totalmente despercebida.
242 Lições de história

Esse é o presente estado da história. O poeta laureado75 testemunha


pela Igreja da Inglaterra, Lingard76 pela Igreja de Roma. Brodie77 propôs
pôr de lado os veredictos obtidos por Hume,78 e a causa na qual Mitford79
obteve sucesso está, segundo entendemos, para ser reconsiderada. No meio
dessas disputas, entretanto, a história apropriada, se pudermos usar essa
expressão, está desaparecendo. A visão elevada, grave e imparcial de Tucí-
dides não é encontrada em parte alguma.
Enquanto nossos historiadores estão praticando todas as artes da con­
trovérsia, infelizmente negligenciam a arte da narrativa, a arte de despertar in­
teresse pelas emoções e de criar quadros para a imaginação. Que um escritor
pode produzir esses efeitos sem faltar à verdade está suficientemente provado
por várias excelentes obras bibliográficas. A imensa popularidade que livros
bem escritos desse tipo têm adquirido merece ser seriamente considerada
pelos historiadores. O Carlos XII de Voltaire,80 as Memórias de Marmontel,81
A vida de Johnson de Boswell82 e as considerações de Southey83 sobre Nelson
são lidas com deleite pelo mais frívolo e indolente. Enquanto isso, histórias
de grandes impérios, escritas por homens de habilidade eminente, repousam
sem serem lidas sobre as prateleiras de bibliotecas pomposas.

75 O título de poeta laureado é concedido na Inglaterra pelo mérito da excelência poética. Foi
criado em 1616 e formalmente estabelecido desde 1668.
76 John Lingard (1771-1851), padre católico inglês, publicou The history ojEngland,from thefirst
invasion by the Romans to the accession ojHenry VIU (1819), em oito volumes.
77 George Brodie (17867-1867), advogado e historiador escocês. Autor de A history oj the British
Empire (1822) e A constitutional history oj the British Empire (1866).
78 David Hume (1711-1776), economista, filósofo e historiador escocês. Autor de A treatise of
human nature (1739-1740), Treatise as an enquiry concerning human understanding (1758) e Dia­
logues concerning natural religion (1779). Sua History oj England (1778) é considerada um marco
da historiografia inglesa.
79 William Mitford (1744-1827), descendente de uma antiga família do norte da Inglaterra,
autor de History of Greece (1784). Foi alvo de pesadas críticas de Macaulay (1824).
80 François-Marie Arouet Voltaire (1694-1778), filósofo, dramaturgo e literário francês, foi figu­

ra central do Iluminismo. Exilado na Inglaterra em 1726, retomou à França em 1728-1729.


81 Jean-François Marmontel (1723-1799), escritor, gramático, filósofo, romancista e historiador
francês, participou do movimento Enciclopedista.
82 James Boswell (1740-1795), advogado, renomado linguista, escritor escocês e biógrafo de
Samuel Johnson. Seu nome foi incorporado à língua inglesa (Boswell, Boswellian, Boswellism)
como sinónimo de observador e biógrafo devotado.
83 Robert Southey (1774-1843), poeta laureado e historiador inglês membro do “Lake Poets".
Além de sua História do Brasil (1810), publicou diversas biografias, como The life oj Nelson
(1813), sobre Horatio Nelson (1752-1805), almirante naval inglês que derrotou as tropas de
Napoleão e foi fatalmente ferido na batalha de Trafalgar.
Thomas Babington Macaulay 243

Os escritores de história parecem nutrir um desprezo aristocrático pe­


los escritores de memórias. Eles acreditam que está abaixo da dignidade de
homens que descrevem as revoluções das nações debruçar-se sobre os de­
talhes que constituem o charme de uma biografia. As circunstâncias mais
características e interessantes são omitidas e suavizadas, pois, como sabemos,
são muito triviais para a majestade da história.
Há de se convir, supomos, que essa história seria mais divertida se
essa etiqueta fosse mais descontraída. Mas, seria menos dignificante ou me­
nos útil? O que queremos dizer quando afirmamos que um evento passado
é importante e outro insignificante? Nenhum evento passado possui qual­
quer importância intrínseca. O conhecimento dele é valioso apenas na me­
dida em que nos leva a fazer justas ponderações com respeito ao futuro.
Uma história em que cada incidente particular possivelmente é ve­
rídico pode, no seu conjunto, ser falsa. As circunstâncias que têm maior
influência sobre a felicidade da espécie humana, as mudanças das maneiras
e na moral, a passagem de comunidades da pobreza para a riqueza, do
conhecimento para a ignorância, da selvageria para a humanidade — essas
são, na maior parte, revoluções silenciosas. O progresso delas raramente é
indicado por aquilo que os historiadores se contentam em chamar de even­
tos importantes. Não são realizadas por exércitos, nem promulgadas por
senadores. Não são sancionadas por nenhum tratado, nem registradas em
nenhum arquivo. Elas se dão em cada escola, em cada igreja, atrás de 10
mil balcões, em 10 mil lares. O fluxo superior da sociedade não apresenta
nenhum critério determinado através do qual possamos conhecer a direção
em que flui o fluxo inferior. Lemos sobre derrotas e vitórias. Lemos que
as nações podem ser miseráveis em meio a vitórias e prósperas em meio a
derrotas. Lemos sobre a queda de ministros sábios e sobre a ascensão de
favoritos corruptos. Mas devemos lembrar quão mínima é a parte do bem
ou do mal realizado por um único estadista que pode contribuir para o
bem ou o mal num grande sistema social.
O bispo Watson84 compara um geólogo a um mosquito montado
sobre um elefante, formulando teorias sobre toda a estrutura interna do

84 Richard Watson (1781-1833), teólogo metodista inglês, uma das figuras mais importantes
do metodismo no século XIX. A passagem a que Macaulay se refere localiza-se no cap. 20 da
primeira parte de sua obra Theological institutes, publicada a partir de 1823.
244 Lições de história

grande animal a partir do fenômeno do couro. A comparação é injusta com


os geólogos; mas aplica-se muito bem àqueles historiadores que escrevem
como se o corpo da política fosse homogéneo, que apenas observam a su­
perfície dos fatos e nunca refletem sobre a organização poderosa e variada
que se encontra nas profundezas.
Nas obras desses escritores, a Inglaterra, ao final da Guerra dos Sete
Anos, está no mais alto estado de prosperidade. Ao final da guerra america­
na,85 está em uma condição miserável e degradada; como se o povo em geral
não fosse tão rico, tão bem governado e tão bem instruído no último período
quanto no anterior. Lemos obras intituladas histórias da Inglaterra, sob o
reinado de George II,86 em que a ascensão do metodismo não é nem mesmo
mencionada. Esperamos que esse conjunto de autores seja extinto em 100
anos. Estamos quase certos de que equívocos grosseiros prevalecem neste
momento com respeito a várias partes importantes dos nossos anais.
Em muitos aspectos, o efeito da leitura da história é análogo àquele
produzido pela viagem ao estrangeiro. O estudante, como o turista, é
transportado para um novo estado de sociedade. Vê novas modas. Ouve
novos modos de expressão. Sua mente é alargada para contemplar a am­
pla diversidade de leis, de moral e de maneiras. Mas os homens podem
viajar para longe e retornar com suas mentes tão estreitas como se nunca
tivessem saído do mercado de sua própria vila. Da mesma maneira, os
homens podem conhecer as datas de muitas batalhas e as genealogias de
muitas dinastias, e ainda assim não serem sábios. A maioria das pessoas
olha para os tempos passados como os príncipes olham para os países
estrangeiros. Mais de um estranho ilustre aportou em nossa ilha em meio
aos gritos de uma multidão, ceou com o rei, caçou com o mestre dos
cães de caça, passou em revista os guardas, empossou um cavaleiro da
Ordem da Jarreteira,87 cavalgou pela Regent Street,88 visitou Saint Paul’s89

85 Trata-se da guerra dos Estados Unidos pela sua independência do Reino Unido, entre 1775
e 1783.
86 George Augustus (1683-1760), nascido em Hanover, foi rei no Reino Unido a partir de

1727.
87 Ordem militar criada pelo rei inglês Edward III (1312-1377).
88 Ao se tornar príncipe regente com a abdicação de seu pai, o rei George III, em 1811, uma das
primeiras ações do futuro George IV foi tentar reformar o caminho para seu palácio, o Carlton
House, de acordo com sua admiração pelo planejamento urbano napoleônico de Paris. Planeja­
da pelo arquiteto John Nash (1752-1835) durante uma década, a Regent Street é um boulevard
localizado na área central de Londres.
89 Catedral anglicana do bispado de Londres que data do século XVII.
Thomas Babington Macaulay 245

e registrou suas dimensões; e então partiu pensando que viu a Inglaterra.


De fato, ele viu alguns prédios públicos, homens públicos e cerimónias
públicas. Mas ele nada sabe do vasto e complexo sistema da sociedade,
das finas sombras do caráter nacional, da operação prática do governo e
das leis. Aquele que deseja compreender essas coisas corretamente não
deve limitar suas observações a palacetes e dias solenes. Ele deve ver os
homens comuns tal qual aparecem em seus negócios habituais e em seus
prazeres cotidianos. Ele deve se misturar nas multidões dos mercados e
das cafeterias. Deve obter acesso ao convívio à mesa e ao lar doméstico.
Deve tolerar as expressões vulgares. Não deve evitar nem mesmo explorar
os recessos da miséria. Aquele que deseja entender a condição da espécie
humana nas épocas anteriores deve adotar o mesmo princípio. Se ocupar-
se apenas dos negócios públicos, das guerras, congressos e debates, seus
estudos serão tão inúteis quanto as viagens daqueles imperiais, reais e
serenos soberanos que formam seus julgamentos sobre nossa ilha tendo
assistido a umas poucas solenidades e participado de conferências for­
mais com umas poucas autoridades.
O historiador perfeito é aquele em cuja obra o caráter e o espírito de
uma época são exibidos em miniatura. Ele não relata nenhum fato, não
atribui nenhuma expressão a seus personagens que não sejam autentica­
dos pelo testemunho apropriado. Mas, pela seleção judiciosa, rejeição e
ordenação, confere verdade àquelas atrações que foram usurpadas pela fic­
ção. Em sua narrativa, uma subordinação é devidamente observada: alguns
processos são proeminentes; outros, relegados. Mas a escala na qual ele
os representa é aumentada ou diminuída, não de acordo com a dignidade
dos personagens envolvidos, mas de acordo com o grau no qual elucida a
condição da sociedade e da natureza do homem. Ele nos mostra a corte, o
acampamento e o senado. Mas também mostra a nação. Não considera ne­
nhuma anedota, nenhuma peculiaridade de costumes, nenhum provérbio
familiar como demasiado insignificante para sua observação, nem dema­
siado insignificante para ilustrar a ação das leis, da religião e da educação,
e para assinalar o progresso da mente humana. Os homens não serão me­
ramente descritos, mas se tornarão intimamente conhecidos. As mudanças
de comportamento não serão meramente indicadas por algumas frases ge­
rais ou alguns excertos de documentos estatísticos, mas por imagens apro­
priadas apresentadas em cada linha.
246 Lições de história

Se um homem, tal como supomos, deve escrever a história da Ingla­


terra, certamente ele não omitiria as batalhas, os cercos, as negociações, as
sedições, as mudanças ministeriais. Contudo, ele aí intercalaria os detalhes
que são o charme dos romances históricos. A história do governo e a histó­
ria do povo seriam apresentadas da única maneira pela qual poderiam ser
justamente apresentadas, em conjunção e relação indissociáveis.
A primeira parte de nossa história imaginária seria rica com o colo­
rido do romance, da poesia e da crónica. Deveríamos nos encontrar na
companhia de cavaleiros como aqueles de Froissart, e de peregrinos como
aqueles que partiam com Chaucer do Tabard.90 A sociedade seria mostrada
do mais alto ao mais baixo — das vestes da realeza ao antro dos foras da
lei; da cátedra do legado à fogueira da esquina onde o monge pedinte se
aquece. O renascimento das letras não seria meramente descrito em alguns
períodos magníficos. Deveríamos discernir, em incontáveis detalhes, a fer­
mentação das mentes, o apetite ávido por conhecimento, que distinguiram
o século XVI do XV. Na Reforma, deveríamos enxergar não meramente
um cisma que mudou a constituição eclesiástica da Inglaterra e as relações
mútuas das potências europeias, mas uma guerra moral que se espalhou
em cada família, que colocou o pai contra o filho e o filho contra o pai, a
mãe contra a filha e a filha contra a mãe. Henrique seria retratado com a
habilidade de Tácito. Veríamos a transformação do seu caráter desde a sua
exuberante e alegre juventude até sua brutal e despótica velhice. Veríamos
Elizabeth em todas as suas fraquezas e em todas as suas forças, cercada pe­
los elegantes favoritos em quem ela jamais acreditou e pelos velhos sábios
estadistas que ela jamais dispensou, reunindo nela mesma as qualidades
mais contraditórias — a vaidade, o capricho, a malícia mesquinha de Ana,
e o espírito altivo e resoluto de Henrique. Veríamos as fortalezas, onde os
nobres, inseguros de si, espalhavam a insegurança à sua volta, darem gra­
dualmente lugar aos salões da calma opulência, às sacadas envidraçadas de
Longleat91 e às suntuosas torres de Burleigh.92 Veríamos as vilas ampliadas,

90 Hospedaria estabelecida em 1307, situada em Southwark, Londres, onde se reuniam aqueles


que peregrinavam ao Santuário de Thomas Beckett, na Catedral de Canterbury. É famosa por
sua descrição em Canterbury Tales (1387), coleção de histórias escrita pelo filósofo e diplomata
inglês Geoffrey Chaucer (1343-1400). Foi demolida em 1873.
91 Luxuosa casa de campo elisabetana construída sobre as minas de um convento destruído por um
incêndio em 1567 e projetada em estilo renascentista italiano por Roben Smythson (1535-1614).
92 As ruínas do castelo de Burleigh, na Escócia, com suas duas famosas torres, datam dos sécu­
los XV e XVI.
Thomas Babington Macaulay 247

os desertos cultivados, os vilarejos de pescadores transformados em portos


prósperos, a refeição do camponês melhorada, e sua cabana confortavel­
mente mobilhada.
A instrução derivada da história assim escrita teria um caráter vívido e
prático. Seria aceita pela imaginação tão bem quanto pela razão. Não seria
meramente seguida na mente, mas marcada nela. Muitas verdades também
seriam aprendidas, as quais não poderiam ser aprendidas de nenhuma ou­
tra maneira. À medida que a história dos Estados é escrita de forma geral,
as maiores e mais decisivas revoluções parecem sobrevir-lhes como castigos
sobrenaturais, sem aviso ou causa. Mas o fato é que tais revoluções quase
sempre são consequências de mudanças morais pelas quais gradualmente
passaram a maioria das comunidades e que já vinham ocorrendo bem antes
que seu progresso fosse indicado por qualquer medida pública. Um conhe­
cimento íntimo da história doméstica das nações é, pois, absolutamente ne­
cessário para o prognóstico dos eventos políticos. Uma narrativa deficiente
nesse sentido é tão inútil quanto um tratamento médico que ignora todos
os sintomas presentes na fase inicial da doença e leva em conta somente os
que ocorrem quando os remédios já não fazem efeito no paciente.
Um historiador como esse que vimos tentando descrever certamente
seria um prodígio intelectual. Em sua mente, forças dificilmente compatí­
veis entre si devem combinar-se em perfeita harmonia. Logo veremos outro
Shakespeare ou outro Homero. A mais alta excelência a que poderia chegar
uma única aptidão qualquer seria menos surpreendente do que aquela feliz
e delicada combinação de qualidades. No entanto, a contemplação de mo­
delos imaginários não é uma atividade mental desagradável ou inútil. Segu­
ramente não pode produzir a perfeição; mas produz melhorias e alimenta
aquela meticulosidade liberal e generosa que não é incompatível com a
forte sensibilidade ao mérito e que, enquanto exalta nossas concepções de
arte, não nos torna injustos para com o artista.
*
Lord Acton
Jurandir Malerba

John Emerich Edward Dalberg Acton (1834-1902) atraiu a atenção de histo­


riadores e cientistas políticos ingleses e americanos no pós-Il Guerra Mundial
principalmente por causa de sua reputação de campeão da liberdade política
e religiosa, mas longe está de ser unanimidade quanto a sua efetiva contri­
buição para a historiografia do século XX. Foi ativo conselheiro do primei­
ro-ministro William Ewart Gladstone (1809-1898) sobre questões religiosas
(leia-se, católicas) e foi indicado para a Casa dos Lordes em 1869 pelos ser­
viços prestados ao partido liberal (whig) inglês. Nascido em tradicional casa
aristocrática inglesa e bávara, Lord Acton serviu por curto lapso de tempo
no parlamento por meio da intervenção de seu padrasto Lord Granville, mi­
nistro das Relações Externas da Inglaterra. De fato, Acton ficou reconhecido
por sua mente brilhante e apaixonada, manifesta em inúmeros ensaios histó­
ricos, resenhas e correspondência — e nem tanto pela longa carreira política.
Historiador autodidata, sua carreira acadêmica começou tarde, já na velhice,
como professor régio de história moderna na Universidade de Cambridge,
onde sua monumental biblioteca está hoje depositada.1
Devotando-se à história, leu incessantemente e em larga escala, e foi
reputado ser o melhor leitor de seu tempo. Mas quando instado a escrever

Pezzimenti, 2001; Butterfield, 1961:169; Woodward, 1939.


250 Lições de história

um livro para uma série histórica alemã famosa, declinou. Nunca escreveu
um livro. Até onde se sabe, jamais proferiu uma lecture até os 60 anos de
idade. Seus escritos devem ser procurados nas duas revistas que editou na
juventude (na Home and Foreign Review e na Rambler) e nos textos da ma­
turidade que publicou em vários periódicos, alguns dos quais publicados
na North Britsh Review; na Quarterly Review e, sobretudo, em The English
Historical Review. A estes, somam-se a introdução que fez à edição de Burd
de O príncipe de Maquiavel (1891) e sua leitura inaugural em Cambridge
(traduzida neste capítulo).
De modo que, não obstante o reconhecimento universal de sua enor­
me erudição e sabedoria, o valor de Acton como historiador não chega a
ser consensual. O historiador inglês Geoffrey Elton, por exemplo, coloca
Acton no “honorável esquecimento que esse monumento improdutivo
merece”. De fato, alguns dos próprios contemporâneos de Acton tinham
dificuldade em compreendê-lo.2 Mas essa não era a regra. Não poucos
autores notaram a grande lucidez de expressão e discernimento crítico
que se encontram em sua obra de juventude.3 Contudo, a pesada crítica
vinda de autoridades eclesiásticas católicas e historiadores iria afetar o
modo como escrevia. A clareza de opinião daria lugar ao estilo cifrado,
tortuoso e cheio de contorcionismos da maturidade.4 Com o passar dos
anos, Acton tendeu para um estilo defensivo, apropriado para um ho­
mem que se acreditava “absolutamente sozinho” em sua “posição ética
essencial”.5 Como afirma John Vella,6 qualquer estudo sério sobre Acton
deve levar em consideração sua trajetória intelectual, assim como seu
estilo de escrita cada vez mais cifrado.
Em um dos primeiros grandes ensaios post-mortem dedicados a Lord
Acton, o subeditor da English Historical Review Reginald Poole lembrava
que John Emerich era familiar a todas as línguas estrangeiras. De fato, aos
10 anos de idade, Acton escrevia para sua mãe relatando seus progressos
acadêmicos:

2 Chadwick, 1987:386.
3 Russel Kirk (1954:603) afirma que o primeiro Acton apresenta características de um “verda­
deiro gênio juvenil, incisivo, imaginativo, um verdadeiro mestre do ensaio”.
4 Kochan, 1954:35-36.
5 Brinton, 1919.
6 Vella, [s.d.]:256. Ver também o clássico estudo de Himmelfarb (1952).
Lord Acton 251

Eu sou um linguista completo, conhecendo perfeitamente — ou seja, capaci­


tado a falar fluentemente — o inglês, o francês, o alemão, e quase conseguindo
falar o latim. Posso falar algumas palavras de chinês, grego, italiano, espanhol
e irlandês. Também tenho conhecimentos de química, astronomia, mecânica e
muitas outras ciências, mas desconheço a botânica.7

Descontando o natural exagero juvenil, pode-se ainda assim concluir


que o garoto Acton já demonstrava um entusiasmo notável pela aprendiza­
gem. Muito desse amor ao conhecimento ao longo de sua vida permanecerá
como marca registrada, de tal modo a ser voz comum entre os sábios con­
temporâneos que Acton era um dos homens mais cultos de sua época.8
Outro aspecto que o distinguirá entre os homens de seu tempo será
seu reconhecido cosmopolitismo. Em biografia recente dedicada a escruti­
nar mais a vida do “homem” Acton do que propriamente o pensador, Ro-
land Hill conta-se entre aqueles biógrafos que defendem que o background
de nosso historiador ajuda a explicar seu perfil marcadamente cosmopolita,
que fez dele “o primeiro entre os ingleses europeus”.9 Os Acton eram uma
família de barões do Shropshire cujas propriedades ficaram para um ramo
que havia migrado para a França e se tornado católico. Na geração seguin­
te, seu patriarca mudou-se para a Itália e tornou-se primeiro-ministro de
Nápoles. A geração seguinte casou-se em França com a herdeira de um du­
que napoleônico, ele mesmo um descendente de uma família nobre alemã,
os Dalberg, da qual saíra o último arcebispo-eleitor de Mainz e depois prín­
cipe-primaz da Confederação do Reno. Lord Acton nasceu em Nápoles em
1834, mas mudou-se para a propriedade da família em Aldenham quando
da morte de seu pai logo em 1837; em 1840, sua mãe casou-se novamente,
agora com o futuro conde Dalberg, um aristocrata whig que serviria mais
tarde no gabinete do primeiro-ministro. Acton passou um ano numa escola
francesa antes de completar os estudos em Oscott e Edimburgh. Em 1850
foi para Munique para dedicar-se à educação superior privada com Ignaz
Von Dõllinger, que moldou sua mente de liberal católico e sua carreira de
historiador na avançada escola histórica alemã.

7 Apud Figgs e Lawrence (1917:1-2).


8 Poole, 1902.
9 Hill, 2000:416.
252 Lições de história

Nos anos 1850, Munique era o centro intelectual do mundo católico.


O círculo de Munique ficou conhecido como o mais avançado da Europa.
As universidades alemãs estavam demasiado pulsantes então — e Muni­
que não era exceção. Por meio de Dòllinger, Acton teve contato com os
melhores acadêmicos alemães. Durante as férias, Acton viajava com seu
preceptor pela Alemanha, Itália, França, e durante esse período formativo
fez grandes amizades com os principais intelectuais da Europa.
Sob inspiração de Dòllinger, Acton deixou-se contaminar por uma
fervorosa paixão pelo liberalismo e pelo estudo científico da história. Um
forte movimento liberal católico crescia pela Europa, particularmente na
França pós-revolucionária, onde nomes como Chateaubriand, de Maistre,
Bonald, Lamennais (não obstante sua posterior expulsão da Igreja anos mais
tarde), Lacordaire propunham, para uma geração declaradamente cética, um
catolicismo vigoroso como a melhor garantia para o desenvolvimento de
uma sociedade livre — um forte papado como fiador contra o absolutismo.
Todo esse movimento acabou contaminando os alemães. Mas enquanto os
franceses apoiavam-se fortemente no entusiasmo e na retórica, os alemães
elegeram o conhecimento científico como sua principal ferramenta. Os pes­
quisadores críticos iriam restaurar a liberdade e Cristo para o mundo. Nesse
contexto, os historiadores teriam um papel de destaque.10
Os historiadores alemães, liderados por Leopold Von Ranke, aper­
feiçoaram uma abordagem mais científica do estudo da história, tentando
purgá-la de inclinações e preconceitos. Acton viria a acreditar apaixonada­
mente na história como ciência. Para Acton, os marcos de uma nova era nos
estudos históricos foram estabelecidos por Boeckh, Niebuhr e Otto Muller;
estes não foram de menor significado para o historiador moderno do que
o trabalho de Ranke. Acton assistiu às conferências de Boeckh, de Ranke,
de Riehl, e de muitos outros mestres da mesma geração, já com certa idade
quando os ouviu. Também deleitou-se em explorar a obra de Hegel.
Acton voltou para sua propriedade na Inglaterra em 1857, aos 23
anos, para pennanecer à disposição do parlamento, onde serviu de manei­
ra bissexta durante alguns anos, e para mergulhar no jornalismo católico
liberal que em breve se mostraria desapontador. De 1858 a 1864, talvez

10 Brinion, 1919; Himmelfarb, 1952.


Lord Acton 253

seu período mais produtivo, Acton dedicou-se quase exclusivamente à ati­


vidade jornalística.
Em seu retorno da Alemanha para a Inglaterra, Acton editou sucessi­
vamente o Rambler e o Home and Foreign Review, jornais através dos quais,
como disse alguém, ele trabalhou “para converter o mundo a uma síntese de
aprendizagem, liberalismo e catolicismo”.11 Tais ideais logo o conduziriam a
um conflito com Roma. Seus jornais foram condenados oficialmente, e ele
foi forçado a suspender sua publicação. Sua longa luta contra o ultramonta-
nismo culminou na derrota total dos católicos liberais no 1 Concílio Vaticano
de 1869 a 1870, onde o jovem leigo serviu de saco de pancada aos bispos
defensores da infalibilidade do papa. Em julho de 1870, o dogma da infa­
libilidade papal foi solenemente definido na bula Pastor Aeternus. No mês
anterior, um Acton descoroçoado deixou Roma, reconhecendo a vitória dos
í\
ultramontanos. Logo após a proclamação da bula, a deflagração da guerra
franco-prussiana e a retirada da guarnição francesa de Roma levaram a uma
suspensão indefinida do Concílio Vaticano. Acton resignou-se a ter que so­
breviver com a lembrança de membro de uma igreja de cuja política corrente
ele radicalmente discordava.12 Após a declaração da infalibilidade papal pelo
concílio, Acton retirou-se da polêmica eclesiástica aberta, porém não deu o
passo decisivo seguinte, que seria abrir mão da comunhão católica. O confli­
to, entretanto, deixou nele marcas duradouras. Confirmou sua convicção de
que o poder absoluto, seja na Igreja ou no Estado, é um mal que não deve
perdurar; deu-lhe um ensejo para um plano de pesquisa sobre a história de
;|
sua Igreja, uma pesquisa que serviu para reforçar seu ódio à perseguição
religiosa em todas as suas formas.
Segundo Roland Hill, o concílio foi o grande divisor de águas na vida
de Acton e que o levou a abandonar qualquer pretensão de seguir como
intelectual católico. Sua carreira posterior, na qual ele declina de muitos
projetos como sua anunciada e nunca escrita História da liberdade, cons­
truiu-se em torno de dois temas principais. Um foi sua amizade crescente
com — e influência sobre — o todo-poderoso William Ewart Gladstone. O
segundo tema foi o endurecimento crescente do moralismo de Acton.13

11 Macdougall, 1964:18.
12 lbid. Ver também Butterfield (1946).
13 Hill, 2000:333.

r
254 Lições de história

O rigoroso moralismo é a grande problemática do pensamento de


Acton e se entrelaça com seu compromisso com a liberdade, que fez a sua
fama. Acton insiste no domínio da consciência, que demanda uma conduta
absolutamente ética, especialmente em figuras e instituições públicas, e
uma absoluta veracidade, especialmente na história. Liberdade é a condi­
ção necessária para que cada homem possa obedecer sua consciência. Tais
ideias assentam na disputa de Acton contra sua própria Igreja, que havia
suprimido a verdade histórica e perpetrado a perseguição religiosa contra
qualquer dissidência de pensamento.

História e religião

Em sua famosa lecture proferida aos estudantes de Cambridge, afirma­


va que “o primeiro dos interesses humanos é a religião, e esta é a caracte-
rística marcante dos séculos modernos”. É por isso que eles são dignos de
estudo. Não é a questão aqui se esta reivindicação exclusiva está correta ou
ião: ela é bastante para indicar a razão por que Acton chamou sua audi­
ência de Cambridge para acompanhá-lo em seu trajeto. O mesmo motivo
que o incitou quando jovem a se arriscar no mar perigoso da controvér­
sia eclesiástica o conduziu em anos posteriores a confirmar as virtudes da
história moderna. Ele abordou o assunto do ponto de vista da teologia ou
da ética; não é fácil precisar onde jaz a maior ênfase, porque as duas eram
para ele inextricavelmente associadas. Nunca falou com maior contundên­
cia do que quando, com palavras as mais simples, rogou a seus ouvintes
verem que a ação de Cristo de morrer pela humanidade não redimiu suas
falhas, mas que essas só aumentaram; que a sabedoria da lei divina aparece
não na perfeição mas na melhoria do mundo; e essa liberdade alcançada
é o resultado ético que jaz nas condições convergentes e combinadas da
civilização em marcha. Para Acton, a história é a demonstração verdadeira
da religião.
Novamente advertiu sua audiência contra as doutrinas da elegante
escola dos historiadores:

o peso da opinião é contra mim quando eu vos aconselho a nunca aviltar a


ordem moral corrente ou reduzir o padrão de retidão; mas a pôr à prova os
outros com o conceito final que governa suas próprias vidas, e para homem
Lord Acton 255

nenhum sofrer e nenhuma causa escapar à penalidade eterna a qual a his­


tória tem o poder de infligir sobre a iniquidade. A contenda pela expiação
da culpa e pela mitigação da punição é perpétua. A cada passo, nós somos
instados por argumentos que vão escusar, aliviar, confundir certo e errado, e
reduzir o homem justo ao nível do réprobo.

Sua filosofia da história

A história não era para Acton um objeto de mero interesse acadêmico.


Para com essa ideia de história que a considera, sob a luz seca da ciência,
como uma série de fenômenos capazes do descolamento do presente, sus­
cetível à análise insípida, não tinha a menor simpatia. Ainda menos consi­
derou a história uma mera forma de exposição literária. A única justifica­
tiva para o estudo da história era para Acton seu valor como um guia para
os acontecimentos do mundo cotidiano. O presente é o que é por causa do
que o passado foi. O desenvolvimento humano é uma corrente contínua
de causa e efeito. Todo o plano de ação no presente deve ser baseado num
conhecimento do modo como as coisas que nós fazemos agora estão cir­
cunscritas, limitadas pelo que os homens fizeram antes de nós. A história
se torna assim a grande mentora, uma guia para a ação.14
Acton não quer dizer com isto que nós estamos por nos transformar
em veneradores cegos do passado. Não gosta desse tipo de conservado­
rismo que obstinadamente olha para trás para venerar os “dias de glória”
passados, tanto quanto desgosta daquele revolucionismo doutrinário dos
franceses que aboliram a história. A história é um guia valioso, não so­
mente porque serve para balizar nosso campo da ação, mas porque per­
mite que nós nos beneficiemos dos erros de nossos antecessores.15 Como
Acton diz, “se o passado foi uma carga, um conhecimento do passado é a
emancipação a mais segura e a mais certa”. Além disso, o conhecimento
da história nos previne contra confundir o que é transitório e sem impor­
tância e as coisas que contam realmente; força-nos a valorizar questões

14 Poole, 1902; Butterfield, 1948.


15 Não será essa uma discussão da filosofia da história que atravessa os séculos, chegando até
os grandes teóricos atuais como Rúsen e Koselleck? Ver Oakeshott (2003); Heller (1997); Ko-
selleck (1993); Rúsen (2001).
256 Lições de historia

realmente importantes. Somente com a história nós podemos separar, no


labirinto da política atual, os interesses egoístas dos princípios sociais.16 No
sentido mais elevado, a história é para Acton uma filosofia. É a soma das
conquistas do homem; sua interpretação apropriada fornece a chave para
seu destino.

Dois princípios: liberdade e lei moral

Acton acreditava que a história poderia se tornar verdadeiramente


significativa respeitando dois princípios fundamentais: primeiramente, o
direito de todo homem à liberdade de consciência; em segundo, a auto­
ridade infalível da lei moral. Estes princípios não são injetados na massa
de detalhes históricos por algum meio esotérico, como as categorias kan­
tianas no mundo da sensação. Não são absolutos metafísicos aplicados à
história, nem regras apriorísticas a partir das quais dados históricos podem
ser racionalizados. São antes as verdades que resultam de uma indução
histórica; devem ser inferidas a partir do estudo sistemático da história.
Uma vez reconhecidos e aplicados ao curso dos eventos, estes princípios
•ervem para atribuir significado a fenômenos independentes, como as leis
la ciência moderna servem para colocar várias atividades físicas em uma
conexão ordenada. A história, assim, dá-nos conta do progresso gradual
e doloroso da raça humana rumo à liberdade e à moralidade. Um dado
evento histórico, uma vez que cada fato da evidência que pode ser conhe­
cido foi descoberto por uma investigação imparcial, deve ser julgado por
sua contribuição nesse progresso ascendente, por sua contribuição para a
liberdade ética.17

"Liberty"

A definição de liberdade de Acton é famosa: “por liberdade eu enten­


do a garantia de que cada homem deve ser protegido ao fazer aquilo que
acredita ser seu dever contra a influência da autoridade e das maiorias, cos-
tumes e opiniões”. A liberdade de consciência é para Acton o mais elevado

16 Fasnacht, 1952:21.
17 Murray, 1998; Fisher, 1920; Paul, 1913.
Lord Acton 257

ideal do progresso humano. A liberdade, nesse sentido, não é um meio para


se atingir um sistema político melhor; é em si mesma o mais alto fim de todo
esforço político.18 É justamente porque a liberdade é a meta da raça humana,
que ela se constitui no critério maior de julgamento da história. Embora essa
definição de liberdade pareça utópica em sua perfeição, Acton rebate essa
visão, já que para ele a liberdade é algo que opera aqui e agora entre nós;
jamais foi completamente realizada; tem sido objeto de perene violação e
abuso por aqueles que não a entendem. Mas persiste, e toda história registra
seu progressivo deslizamento sobre as mentes e ações humanas.19

"Moral law"

Reconhecimento do caráter evolutivo do progresso social, respeito


pela lei e pela ordem e toda nossa herança histórica, segurança das mi­
norias — tudo isso para Acton está implícito na definição de liberdade
como liberdade de consciência. Porque era um homem de profunda con­
vicção religiosa, Acton podia basear qualquer coisa no senso de certo e
errado de cada indivíduo. Se um homem é verdadeiramente moral — e
para Acton moralidade não é algo puramente intuitivo do indivíduo, mas
uma obediência ponderada a um código de leis perfeitamente defini­
do —, ele fará sua liberdade fundada numa apreciação de suas obrigações
para com a sociedade. Liberdade de consciência não implica um estado
de anarquia onde cada um segue seu próprio caminho sem consideração
a seus companheiros. Ao contrário, sua realização perfeita significaria a
realização daquele equilíbrio entre a anarquia e o despotismo que é o
objetivo de todo esforço político. A liberdade de consciência alcançaria
esse resultado porque sujeitaria toda lei moral; e a lei moral é uma norma
dada, uniforme e imutável, reconhecível por todos. Idealmente, todas
as consciências são assim guiadas pela mesma força. Essa concepção de
lei moral é a chave do pensamento de Acton. Uma vez que o significado
preciso que ele dá à moralidade é conhecido, logo sua filosofia da história
começa a se tornar clara.

18 Não cabe aqui entrar no campo da filosofia política de Acton, que não é nossa especialidade
e que exigiria muito mais deste ensaio de que ele pode oferecer.
19 Gooch, 1947:629; Chadwick, 1987:400.
258 Lições de história

O valor de um acontecimento histórico para a definição de nossa con­


duta é medido, para Acton, por seu ensinamento ético. É ofício do historia­
dor perceber que tudo que ocorreu no passado é avaliado por seu conteúdo
moral. Ele deve, em primeiro lugar, investigar minuciosamente os fatos de
um dado caso. Mas sua função não é somente a de pesquisar: o historiador
deve julgar! Ele tem como base para seu julgamento a lei moral, perfeita
e inalterável. “Opiniões mudam, modos se transformam, credos nascem e
sucumbem, mas a lei moral está escrita nas tábuas da eternidade!”
Mas qual a lei moral de Acton? O código moral de Acton é simples. “É
o código comum, mesmo ordinário para o qual eu apelo”, disse ele certa
vez. A distinção entre o bom e o mau não envolve argumentos filosóficos
sofisticados. É até certo ponto intuitiva. Nós podemos todos concordar em
que determinadas coisas são boas e outras são más. Para Acton, o código
I moral cristão resumiu tudo que era o melhor na natureza humana. Deu
forma a uma verdade eterna da religião e apenas por essa razão foi emi­
nentemente prático, algo que poderia ser uma parte real de nossas vidas.
Acton acreditou que tinha encontrado o coração da lei moral no princípio
de que a vida humana é um dom sagrado, e que deve ser tratada como tal.
' o maior dos crimes tirar-se a vida humana sem razão. Em torno deste
incípio central, Acton agrupa o resto de seus ensinamentos éticos, no
do muito simples, e resumidos nos ensinamentos de Cristo.

Contra as teorias da história de seu tempo

Com esta concepção da natureza da moralidade e de sua função na in­


terpretação da história, Acton foi, de maneira natural, frontalmente oposto
a muitas das tendências de sua época. Combateu com toda força a noção
de que a história mostra que o capaz, o poderoso, o vitorioso é sempre o
moral, e que consequentemente o que aconteceu foi ou deveria ter sido
correto. Vista sob a luz de uma lei superior de certo e de errado, a história
mostra incontáveis episódios em que o errado triunfou, mas continuou
sendo errado. É o dever do historiador, na mente de Acton, mostrar estes
incidentes, para condená-los, para exibi-los como erros a se evitar. O erro
é em si uma coisa do mal, mesmo que possa ser vitorioso. A distinção entre
bem e mal é baseada em uma lei que é anterior, superior aos acontecimen­
tos; ela não consiste no resultado daqueles acontecimentos. A concepção
Lord Acton 259

de lei moral de Acton fez com que também condenasse a inclinação de des­
culpar os erros ou toda uma época devido ao “espírito do tempo”. Épocas
diferentes não podem ter padrões morais diversas; o que é errado em uma
época deve ser errado em outra, porque a lei moral é intemporal. Acton é
um anti-Nietzsche, por assim dizer.
De fato, Acton nunca perseguiu suas ideias até seu limite lógico. Sua
vida mostra uma apreciação do caráter evolucionário da mudança, um
reconhecimento do lugar do novo na ordem das coisas. É somente uma
questão de ênfase que nos permite acreditar que ele se prendeu um pouco
mais com as coisas estabelecidas do que com coisas que estão procurando
se estabelecer, e ainda um pouco mais com o passado do que com o pre­
sente — em suma, que se ele era um liberal, era dos mais conservadores.
Apesar desta atitude de conservadorismo, as ideias de Acton são para­
doxalmente progressistas em sua essência. É porque ele tinha algo a ensinar
ao mundo que seu nome permanece. Sua influência não ficou restrita a seu
trabalho escrito. Sua influência mais poderosa foi sentida pelos homens
que estudaram com ele em Cambridge. Embora somente algumas gera­
ções de pupilos mantiveram-se em contato com ele, estes foram suficientes
para pegar a linha de seu pensamento e levá-la adiante. Tanto que, dentre
seus antigos alunos, uma escola considerável dos historiadores deixaram
registros contundentes de sua capacidade como professor. Estes homens
olharam o mundo de pontos de vista diferentes. Em muitos casos, modifi­
caram profundamente os ensinamentos de Acton. À sua ideia fundamental,
sobre a qual jaz o valor de sua contribuição para o mundo, eles aderiram
fielmente.
Como disse Acton, ao longo da história os homens incluíram sob o
termo liberdade muitos e conflitantes ideiais. Contudo, se a história sig­
nifica qualquer coisa além do conflito sem propósito de desejos cegos ou
do jogo igualmente vão que o absoluto de Hegel escolhe jogar consigo
mesmo, ela deve ser interpretada como o avanço gradual do indivíduo
rumo à expressão completa e desembaraçada de seu ser moral. Era esse o
trabalho de Acton, que nunca cessou de insistir sobre o significado verda­
deiro da história, numa época que parecia tê-lo esquecido. As descobertas
de Darwin, mal-entendidas e mal-aplicadas, serviram ao século XIX como
a prova do fato de que o sucesso se justifica sempre, não importa como
alcançado. De encontro a essa filosofia perigosa que, dos sofistas a Nie-
260 LiçOes de história

tzsche, afirmou que o poder é o direito (“might is right”), Acton sustentou


que há um certo para além das meras exigências do momento; que há um
princípio jurídico de ética por meio do qual nós podemos julgar uma ação;
e que é a missão da história ensinar esse princípio. “Eu os aconselho”, disse
a seus estudantes em Cambridge, “a nunca aviltar a ordem moral corrente
ou reduzir o padrão de retidão; mas a pôr à prova os outros com o conceito
final que governa suas próprias vidas, e para homem nenhum sofrer e ne­
nhuma causa escapar à penalidade eterna a qual a história tem o poder de
infiingir sobre a iniquidade”. Este lhe seria um justo epitáfio.

Contribuições de Lord Acton para The English Historical Review:

♦ German schools of history, v. 1, p. 7-42, 1886;


♦ Doellinger’s historical work, v. 5, p. 702-744, 1890;
4- Wilhelm von Giesebrecht, v. 5, p. 306-310, 1890;
4- R. Flint’s Historical philosophy in France and French Belgium and Switzer-
land, v. 10, p. 108-113, 1895;
4- H. C. Lea’s History of the Inquisition of the Middle Ages, v. 3, p. 773-788,
1888;
4- M. Creighton’s History of the papacy duting the penod of the Reformation,
III. IV, v. 2, p. 571-581, 1887;
E. de Broglie’s Mabillon et la Société de YAbbaye de Saint-Gennain-des-Prés,
v. 2, p. 585-592, 1888;
H. M. Stephens’s Histoiy of the French Revolution, II, v. 7, p. 382-384,
1892;
4- J. R. Seeley’s Short history of Napoleon and J. C. Ropess The First Napoleon,
v. 2, p. 593-603, 1887;
4* J. E BrighEs History of Fngland, 1837-1880, v. 3, p. 798-809, 1888;
4- J. Bryce’s American Commonwealth, v. 4, p. 388-396, 1889.

Obras e correspondência de Lord Acton:20

4- History offreedom and other essays. London, 1907;


4- Historical essays and studies. London, 1908;
4- Lectures on the French Revolution. London, 1910;
4- Lectures on modern history, London 1950;

20 Apud Kochan (1954:173 e segs.).


Lord Acton 261

4 Sendschreiben an einen deutschen Bischof des Vatikanischen Concils. Nord-


lingen, 1870;
4- Quirinus: letters from Rome on Lhe Council (authorized English transla-
tion). London, 1870;
♦ Lord Acton and his circle (Abbot Gasquet, Ed.). London, 1906;
♦ Letters to Mary Gladstone (Herbert Paul, Ed.)- London;
4- Selections from the correspondence of the First Lord Acton (Figgis and La-
wrence (Eds.). London, 1917;
4- Artigos e resenhas em The Rambler, The Home and Foreign Review, The
Chronicle e The North British Review.

DO ESTUDO DA HISTÓRIA21

Companheiros estudantes: eu hoje retorno a um momento anterior,


ao meio do século, quando eu estudava em Edimburgo e desejava arden­
temente vir para esta universidade. A três faculdades eu submeti minha
candidatura para a admissão e, porque as coisas eram então como eram,
eu fui recusado por todas. Aqui, desde o princípio, em vão eu coloquei
minhas esperanças, e aqui, em uma hora mais feliz, depois de 45 anos, elas
finalmente foram realizadas.
Primeiramente, eu desejo falar-vos daquilo que eu posso razoavel­
mente chamar unidade da história moderna, como uma fácil aproximação
às perguntas necessárias de serem encontradas no ponto de partida para
qualquer um que ocupa este lugar, o qual meu predecessor tão generosa­
mente legou a mim, no brilho esplendoroso de seu nome.
Vós frequentemente ouvis dizer que a história moderna é um as­
sunto a que não se pode consignar começo nem fim. Nenhum começo,
porque a densa teia das fortunas humanas é feita sem qualquer falha; por-

21 Dalberg-Acton (Lord Acton), 1906. Aula-magna proferida em Cambridge, em junho de 1895.


Na edição original, a extensão do corpo das notas (dispostas ao fim de cada capítulo) é cerca
de três vezes maior que o próprio corpo do texto. Para viabilizar esta edição, suprimi as notas
da primeira edição, compostas exclusivamente de referências bibliográficas e longos excertos
transcritos por Lord Acton nas línguas nativas dos autores citados. Não hâ, nesse texto de Ac­
ton, qualquer nota explicativa. Inúmeras edições contemporâneas elidem as notas. Disponível
em: <http://socserv.mcmaster.ca/econ/ugcnV3ll3/acton/modemhistory.pdf>. Acesso em: 20 jul.
2008. Tradução e notas de Jurandir Malerba.
262 Lições de história

que, tanto na sociedade como na natureza, a estrutura é contínua, e nós


podemos seguir ininterruptamente as coisas para trás, até que vagamente
espreitamos a Declaração de Independência nas florestas da Alemanha.
Nenhum fim, porque, na mesma lógica, a história feita e o fazer a história
são cientificamente inseparáveis e distintamente sem sentido.
A “política,” disse Sir John Seeley,22 “é vulgar quando não é liberaliza­
da pela história, e a história desvanece-se na mera literatura quando perde
de vista a sua relação para com a política prática”. Todos percebem o senti­
do em que isto é verdadeiro. Pois a ciência da política é uma ciência que é
depositada pelo fluxo da história, como grãos de ouro na areia de um rio; e
o conhecimento do passado, o registro das verdades reveladas pela experi­
ência, é eminentemente prático, como um instrumento de ação e um poder
que se dirige para o futuro. Na França, tal é o peso atribuído ao estudo do
!i> nosso próprio tempo que há um curso denominado história contemporâ­
nea, com seus próprios manuais. Essa é uma cátedra que, na progressiva
divisão de trabalho por meio da qual a ciência e o governo florescem, pode
algum dia vir a ser fundada neste país. Entrementes, nós acertamos ao
reconhecer os pontos onde as duas épocas divergem. Pois que o contem­
porâneo difere do moderno nisto, que muitos de seus fatos não podem ser
■>or nós definitivamente verificados. Os vivos não entregam seus segredos
om a imparcialidade dos mortos; sempre se espera uma chave, e uma ge-
ação passa antes que nós possamos garantir a exatidão. O relato ordinário
e a aparência exterior são cópias ruins da realidade, como bem sabem os
iniciados. Mesmo de uma coisa tão memorável como a guerra de 1870,23
a causa verdadeira é ainda obscura; muito do que nós acreditávamos foi
lançado ao vento nos últimos seis meses, e novas revelações de importantes
testemunhas estão prestes a serem feitas. O uso da história apoia-se muito
mais na certeza do que na abundância das informações adquiridas.

22 John Robert Seely nasceu em Londres, filho de um editor. Desde jovem interessou-se por
assuntos religiosos e históricos. Estudou na City of London School de Londres e no Christs Col-
lege de Cambridge, onde foi eleito fellow e tornou-se professor clássico de seu College. Relata a
Enciclopédia Britânica que, em 1897, a biblioteca de história da Universidade de Cambridge foi
batizada de Seeley Historical Libray em sua homenagem.
23 A Guerra Franco-Prussiana (1870/1871) foi um conflito armado entre a França de Napo-
leão III e um conjunto de Estados germânicos liderados pela Prússia, que culminou na Comuna
de Paris e na unificação da Alemanha sob Bismarck.
Lord Acton 263

Para além da questão da certeza jaz a questão da imparcialidade. O


processo por meio do qual os princípios são descobertos e apropriados é
diferente daquele pelo qual, na prática, se aplicam; e nossas mais sagradas
e mais desinteressadas convicções devem tomar forma nas plácidas regiões
do ar, acima do tumulto e da tempestade da vida ativa. Pois que um ho­
mem é justamente menosprezado quando tem uma opinião na história e
outra na política, uma fora e outra em casa, uma para a oposição e outra
para a situação. A história compele-nos a nos prendermos em questões
duradouras, e nos salva do temporário e transitório. A política e a história
são imbricadas, mas não são equivalentes. O nosso é um domínio que vai
muito além das questões do Estado, e não é sujeito à jurisdição dos gover­
nos. É nossa função manter em vista e comandar o movimento das ideias,
que são não o efeito, mas a causa de eventos públicos, e mesmo atribuir
alguma prioridade à história eclesiástica sobre a civil, uma vez que, da­
das as questões mais graves envolvidas, e as consequências vitais do erro,
abriu o caminho na pesquisa e foi a primeira a ser tratada por pensadores
e acadêmicos do mais elevado gabarito. Do mesmo modo, há sabedoria e
profundidade na filosofia que sempre considera a origem e as glórias na
história como um consistente épico. Contudo, cada estudante deve saber
que a maestria é adquirida a cada limitação superada. E confusão brota da
teoria de Montesquieu e sua escola, que, aplicando o mesmo termo a coisas
desiguais, insiste que a liberdade é a condição primitiva da raça da qual
nós descendemos. Se nós devemos explicar a mente, e não a matéria, as
ideias, e não a força, a propriedade espiritual que dá a dignidade e graça e
valor intelectual à história, e sua ação na vida ascendente do homem, então
nós não devemos estar inclinados a explicar o universal pelo nacional, e a
civilização pelo costume. Um discurso de Antígona, uma única sentença de
Sócrates, algumas linhas inscritas numa rocha aborígine antes da segunda
Guerra Púnica, as pegadas de um povo silencioso, porém profético, que ha­
bitava junto ao mar Morto, e que pereceu na queda de Jerusalém, chegam
mais próximas a nossas vidas do que a sabedoria ancestral dos bárbaros
que alimentaram seus suínos nas castanheiras hercinianas.24

2-4 A floresta herciniana (Hercynian Jorest) é uma floresta da Alemanha central que se estende
desde o Reno até as montanhas dos Cárpatos; descrita por César como a nove dias de viagem de
largura e 60 de comprimento, pertence hoje ao distrito das montanhas de Harz.
264 Lições de história

Para nosso presente propósito, então, eu defino como história moder­


na aquela que começa quatro séculos atrás, que é marcada por uma eviden­
te e inteligível linha do tempo imediatamente precedente, e apresenta em
seu curso características específicas e distintivas próprias. A idade moderna
não procedeu da medieval por uma sucessão normal, com os símbolos
externos da descendência legítima. Deserdada, fundou uma ordem nova
das coisas, sob uma lei da inovação, solapando o antigo reino da continui­
dade. Naqueles dias, Colombo subverteu as noções do mundo e inverteu
as condições da produção, da riqueza e do poder; naqueles dias, Maquiavel
liberou o governo do constrangimento da lei; Erasmo desviou a corrente da
antiga aprendizagem do profano para os canais cristãos; Lutero quebrou os
grilhões da autoridade e da tradição no elo mais forte; e Copérnico erigiu
,i; um poder invencível que cravou para sempre a marca do progresso no tem­
po por vir. A mesma livre originalidade e pouco caso para com sanções her­
dadas encontram-se tanto nos extraordinários filósofos como na descoberta
do direito divino e no imperialismo de Roma. Os efeitos semelhantes são
t visíveis em toda parte, e uma geração os observa a todos. Era um despertar
de vida nova; o mundo girando numa órbita diferente, determinada por
influências antes desconhecidas. Após muitas eras persuadidas do declínio
impetuoso e da iminente dissolução da sociedade, e governadas pelo cos­
tume e pela vontade dos mestres que jaziam em suas sepulturas, o sécu­
lo XVI irrompeu armado para a inédita experiência, e pronto para assistir
esperançoso à cena de uma mudança incalculável.
Esse movimento adiante o separa amplamente do mundo mais velho;
e a unidade do novo é manifesta no espírito universal da investigação e da
descoberta que não cessou de se operar, e suportou os esforços recorrentes
da reação, até que, pelo advento do reino das ideias gerais que nós chama­
mos revolução, ele finalmente prevaleceu. Essa sucessiva libertação e pas­
sagem gradual, para o bem e para o mal, da subordinação à independência
é um fenômeno de suma importância para nós, porque a ciência histórica
foi um de seus instrumentos. Se o passado era um obstáculo e um fardo, o
conhecimento do passado é a mais segura e certa emancipação. E sua busca
zelosa é um dos sinais que distinguem os quatro séculos a que me refiro
daqueles que vieram antes. A Idade Média, que teve bons escritores de
narrativa contemporânea, era negligente e impaciente para com o fato mais
antigo. Satisfez-se em sua ilusão, para viver em um crepúsculo de ficção,
Lord Acton 265

sob as nuvens da falsa testemunha, inventando, de acordo com a conveni­


ência, e contente por acolher o falsário e a fraude. Com o passar do tempo,
a atmosfera de mendacidade tolerada esmoreceu, até que, na Renascença, a
arte de expor a falsidade clareou as habilidosas mentes italianas. Foi então
que a história, tal como a conhecemos, começou a ser entendida, e surgiu
a ilustre dinastia de doutos a quem ainda recorremos, tanto para o método
quanto para o material. Ao contrário do mundo pré-histórico sonhado, o
nosso tempo sabe da necessidade e do dever de fazer-se mestre dos tempos
mais antigos e não perder nada de sua sabedoria ou de seus conselhos, e de
devotar suas melhores energias e riquezas à finalidade soberana de detectar
o erro e de reclamar a verdade confiada.
Nessa época da história amadurecida os homens não se sujeitaram às
condições dadas de suas vidas. Aceitando pouca coisa como certa, eles pro­
curaram conhecer o chão sobre o qual pisam, e a estrada em que viajam,
e a razão disso tudo. Sobre eles, consequentemente, o historiador obteve
um ascendência crescente. A lei da estabilidade foi superada pelo poder das
ideias, constantemente alterado e rapidamente renovado; ideias que dão
vida e movimento, que abrem as asas e atravessam mares e fronteiras, tor­
nando fútil perseguir a ordem sucessiva dos eventos na segregação de uma
nacionalidade particular. Elas nos compelem a compartilhar da existência
de sociedades mais amplas que as nossas próprias, a sermos familiares com
tipos distantes e exóticos, a determos nossa marcha sobre os cumes mais
elevados, ao longo do percurso central, a vivermos na companhia dos he­
róis, santos e homens de gênio, que nenhum país poderia produzir sozi­
nho. Não podemos arbitrariamente nos dar ao luxo de perder de vista os
grandes homens e as vidas memoráveis, e somos obrigados a colecionar ob­
jetos para contemplação tanto quanto pudermos; pois o efeito da pesquisa
implacável é constantemente reduzir o número deles. Nenhum exercício
intelectual, por exemplo, pode ser mais instigante do que prestar atenção
ao funcionamento da mente de Napoleão, o mais inteiramente conhecido,
assim como o mais hábil dos homens históricos. Em uma outra esfera, é a
visão de um mundo mais elevado que é familiar ao caráter de Fénelon, o
estimado modelo dos políticos, eclesiásticos e homens de letras, a testemu­
nha contra um século e precursor de outro, o advogado dos pobres contra a
opressão, da liberdade numa época de poder arbitrário, da tolerância numa
época de perseguição, das virtudes humanas contra os homens acostuma-
266 Liçóes de história

dos a sacrificá-las à autoridade, o homem de quem um inimigo diz que


sua inteligência era bastante para golpear o terror, e um outro, que o gênio
derramava-se em torrentes de seus olhos. Pois que as mentes superiores e
melhores sozinhas fornecem os exemplos instrutivos. Um homem de pro­
porção ordinária ou de metal inferior não sabe como pensar para além do
círculo fechado de seu pensamento, como despojar sua vontade de seus
circundantes e levantar-se acima da pressão de tempo, raça e circunstân­
cia, para escolher a estrela que guia seu curso, corrigir, e testar, e analisar
suas convicções por sua luz interior, e, com resoluta consciência e coragem
ideal, remodelar e reconstituir o caráter que o nascimento e a instrução lhe
outorgaram.
Para nós, se não fosse a busca do nível mais elevado e do horizonte
í
alargado, a história internacional seria fixada pela razão exclusiva e insular
de que os relatórios parlamentares são mais novos do que os parlamentos.
O estrangeiro não tem nenhuma estrutura mística em seu governo, e ne­
nhum arcanum imperii.25 Para ele, as fundações foram reveladas; cada moti­
vo e função do mecanismo são levados em conta tão singularmente quanto
as engrenagens de um relógio. Mas com nossa constituição indígena, feita
não com as mãos ou escrita em papel, mas reivindicando desenvolver-se
por uma lei de crescimento orgânico; com nossa descrença na virtude das
definições e princípios gerais e nossa confiança em verdades relativas, nós
não pudemos ter nada equivalente aos calorosos e prolongados debates
por meio dos quais outras comunidades patentearam os mais recônditos
segredos da ciência política a cada homem que soubesse ler. E as discussões
das assembleias constituintes, na Filadélfia, Versalhes e Paris, em Cádiz e
Bruxelas, em Genebra, Frankfurt e em Berlim, mas acima de quase tudo,
aquelas dos mais ilustrados estados da União Americana, quando eles re­
formaram suas instituições, são supremas na literatura da política, e ofere­
cem tesouros que nunca pudemos apreciar em nossa própria casa.
Aos historiadores a última parte de sua enorme matéria é preciosa
porque é inesgotável. É a melhor para se conhecer porque é a mais conheci­
da e a mais explícita. Cenas anteriores sobressaem de um fundo de obscuri­
dade. Nós logo alcançamos a esfera da ignorância desesperada e da dúvida

25 Arcana imperii. Tácito, Annales 2.36: Os segredos do governo. Os segredos de Estado.


Lord Acton 267

inútil. Mas as centenas e mesmo os milhares de modernos testemunham


contra si mesmos, e podem ser estudados em sua correspondência privada
e ser sentenciados em sua própria confissão. Suas ações são feitas à luz do
dia. Cada país abre seus arquivos e convida-nos a penetrar os mistérios do
Estado. Quando Hallam26 escreveu seu capítulo sobre James II, a França era
a única potência cujos arquivos estavam disponíveis. Roma seguiu-se, e de­
pois Haia; e vieram então os depósitos dos Estados italianos, e por último
os papéis prussianos e austríacos, e parcialmente os de Espanha.
Onde Hallam e Lingard27 eram dependentes de Barillon, seus sucesso­
res consultam a diplomacia de 10 governos. São de fato poucos os tópicos
em que os recursos tenham sido tão empregados a ponto de nos satisfazer­
mos com o trabalho feito para nós e nunca desejarmos fazê-lo outra vez.
Farte das vidas de Lutero e de Frederico, um pouco da Guerra dos Trinta
Anos, muito da revolução americana e da restauração francesa, os primei­
ros anos de Richelieu e de Mazarino, e alguns volumes do sr. Gardiner,
apresentam-se aqui e acolá como ilhas pacíficas no oceano. Eu não deveria
sequer arriscar-me a reivindicar para Ranke, o real criador do estudo heroi­
co dos registros, e o mais alerta e afortunado dos exploradores europeus,
que exista um único de seus 70 volumes que não tenha sido igualado e
em parte superado. É principalmente por meio de sua crescente influência
que nosso ramo de estudo se tornou progressivo, de modo que o melhor
dos mestres é rapidamente superado pelo melhor dos pupilos. Somente os
arquivos do Vaticano, agora acessíveis ao mundo, ocuparam 3.239 caixas
quando foram enviados à França; e não são dos mais ricos. Nós estamos
ainda no começo da era documental, que tenderá a tomar a história in­
dependente dos historiadores, a desenvolver a aprendizagem à custa da
escrita, e a realizar uma revolução também em outras ciências.
Aos homens em geral, eu justificaria a ênfase que estou dando à his­
tória moderna não ao frisar sua riqueza variada, nem a ruptura com a pre­
cedente, nem a perpetuidade da mudança e o aumento do ritmo, nem
a predominância da opinião sobre a crença, e do conhecimento sobre a
opinião; mas pelo argumento de que é uma narrativa contada sobre nós

26 Henry Hallam (1777-1859), historiador inglês formado no Christ Church, de Oxford.


27 John Lingard (1771-1851), padre católico inglês e autor de The histoiy of Englandjrom thefirst
invasion by the Romans to the accession oj Henry VIII, obra em oito volumes publicada em 1819.
268 Lições de história

mesmos, o registro de uma vida que é a nossa própria, dos esforços ain­
da não abandonados ao repouso, dos problemas que ainda complicam os
passos e afligem os corações dos homens. Cada parte dela é carregada de
lições inestimáveis que nós devemos aprender por experiência e a elevado
preço, se soubermos tirar proveito do exemplo e do ensinamento daqueles
que vieram antes de nós, em uma sociedade que muito se assemelha a essa
em que nós vivemos. Seu estudo cumpre sua finalidade mesmo se apenas
nos faz mais sábios, sem produzir livros, e nos dá o dom do pensamento
histórico, que é melhor do que a aprendizagem histórica. É um ingrediente
muito poderoso na formação do caráter e no treinamento do talento, e nos­
sos julgamentos históricos têm tanto a ver com esperanças celestiais quanto
com a conduta pública ou privada. As convicções que foram arrancadas por
í
meio de exemplos e das comparações dos tempos modernos diferem inco-
mensuravelmente em solidez e força daquelas que cada fato novo perturba,
e que são frequentemente pouco melhores do que ilusões ou preconceito
infundado.
A primeira das preocupações humanas é a religião, e ela é a caracterís-
tica marcante dos séculos modernos. Estes estão assinalados como o cenário
dos desdobramentos protestantes. Partindo de um momento de indiferen­
ça, ignorância e declínio extremos, eles foram de súbito ocupados por esse
conflito que iria devastar tanto, e do qual nenhum homem poderia ima­
ginar as infinitas consequências. A convicção dogmática — para eu evitar
falar da fé em relação a muitos personagens daqueles dias —, a convicção
dogmática emergiu para ser o centro do interesse universal, e permaneceu
até Cromwell como a influência e o motivo supremos da política pública.
Até chegar um tempo em que a intensidade do conflito prolongado e até a
energia da ousadia antagónica diminuíram um pouco, e o espírito polêmico
começou a dar espaço para o científico; e como a tempestade amainou, e a
área de questões resolvidas emergiu, muito da disputa foi abandonada ao
toque sereno e reconfortante dos historiadores, investidos como são com a
prerrogativa de redimir a causa da religião de muitas censuras injustas, e dos
males mais graves das censuras que são justas. Ranke costumava dizer que
os interesses da Igreja prevaleceram na política até a Guerra dos Sete Anos,
e marcaram uma fase da sociedade que terminou quando os anfitriões de
Brandeburgo entraram em ação em Leuthen, cantando seus hinos luteranos.
Aquela audaz proposição seria questionada mesmo se aplicada à época atual.
Lord Acton 269

Depois que Sir Robert Peei28 esfacelou seu partido, os líderes que o seguiram
declararam que nenhum papismo seria a única base sobre a qual ele poderia
ser reconstruído. Por outro lado pode ser sublinhado que, em julho de 1870,
na eclosão da guerra francesa, o único governo que insistiu na abolição do
poder temporal foi a Áustria; e nós temos testemunhado desde então a queda
de Castelar, porque tentou reconciliar a Espanha com Roma.
Logo após 1850, muitos dos homens mais inteligentes da França, per­
plexos com a estagnação do crescimento de sua própria população e com
as impressionantes estatísticas da distante Bretanha, pressagiaram o pre­
domínio da raça inglesa. Eles não previram, o que ninguém poderia então
prever, o ainda mais súbito crescimento da Prússia, ou que os três países
mais importantes do globo, ao fim do século, seriam aqueles que perten­
ciam principalmente às conquistas da Reforma. De modo que em religião,
como em tantas coisas, o produto desses séculos favoreceu os elementos
novos; e o centro de gravidade, movendo-se das nações mediterrâneas para
as oceânicas, do ramo latino para o teutônico, passou também do católico
para o protestante.
Destas controvérsias originaram-se tanto a ciência política como a ci­
ência histórica. Foi na fase puritana, antes da restauração dos Stuarts, que
a teologia, se misturando com a política, efetuou uma mudança fundamen­
tal. A Reforma essencialmente inglesa do século XVII foi menos uma rusga
entre igrejas do que entre facções, divididas frequentemente por questões
de disciplina e autorregulação mais do que pelo dogma. Os sectários não
tinham qualquer finalidade ou projeto de prevalecer sobre as nações; e
estavam preocupados com o indivíduo mais do que com a congregação,
com conventículos, não com igrejas estatais. Sua visão estreitou-se, mas sua
vista aguçou-se. Pareceu-lhes que os governos e as instituições são feitos
para passar, como coisas da Terra, enquanto as almas são imortais; que não
há mais proporção entre a liberdade e o poder do que entre a eternidade e
o tempo; que, consequentemente, a esfera do comando férreo deveria ser
restrita a limites fixos, e aquilo que tinha sido feito antes pela autoridade,
pela disciplina externa e pela violência organizada devia ser agora tentado

28 Sir Robert Peei (1788-1850), eminente político inglês que ocupou por duas vezes o cargo de
primeiro-ministro, criando, por exemplo, a polícia metropolitana de Londres (1829) — que
deu o apelido de bobby aos policiais londrinos, o qual até hoje perdura.
270 Lições de história

pela divisão do poder, e confiado ao intelecto e à consciência de homens


livres. Assim foi trocado o domínio da vontade sobre a vontade pelo do­
mínio da razão sobre a razão. Os verdadeiros apóstolos da tolerância não
são aqueles que procuraram proteção para suas próprias crenças, ou que
não tinham nenhuma para proteger; mas homens para quem, independen­
temente de sua causa, ela era um dogma político, moral e teológico, uma
questão de consciência que envolve tanto a religião quanto a política. Tal
homem era Socinus;29 e outros surgiram das facções menores — o fun­
dador independente da colónia de Rhode Island, e o patriarca quacre da
Pensilvânia. Muito da energia e do zelo que haviam trabalhado para a auto­
ridade da doutrina foi empregado para a liberdade de culto. A atmosfera foi
tomada pelo entusiasmo de um grito novo; mas a causa era ainda a mesma.
Tomou-se um motivo de orgulho que a religião era a mãe da liberdade, que
a liberdade era o fruto legítimo da religião; e esta transmutação, esta sub­
versão das formas estabelecidas da vida política pelo desenvolvimento do
pensamento religioso traz-nos ao cerne de meu argumento, à característica
significativa e central dos ciclos históricos que nos antecedem. Começan­
do com o mais forte movimento religioso e o mais refinado despotismo
jamais vistos, levou à superioridade da política sobre a divindade na vida
das nações, culminando na igual reivindicação de todo homem ser liberado
pelo homem do cumprimento do dever para com Deus — uma doutrina
carregada de tempestade e devastação, que é a essência secreta dos direitos
do homem e alma indestrutível da Revolução.
Quando consideramos o que eram as forças contrárias, sua resistência
continuada, sua recuperação frequente, os momentos críticos em que a luta
parecia para sempre sem esperança, como em 1685, em 1772 e em 1808,
não é nenhum exagero dizer que o progresso do mundo rumo à autode­
terminação estaria interrompido se não fosse pela força proporcionada pela
causa religiosa no século XVII. E esta constância do progresso, do progres­
so no sentido da liberdade organizada e segura, é o fato característico da
história moderna, e seu tributo à teoria da Providência. Muitas pessoas, es­
tou seguro, diriam que esta é uma velha história, e um lugar-comum trivial,

29 Laelius Socinus é considerado o fundador do movimento de antitrinitariano, e Faustus So­


cinus, o principal intelectual da igreja unitária (sociniana) estabelecida na Polónia. Pertencem,
respectivamente, à primeira e segunda geração de reformistas italianos.
Lord Acton 271

e reclamariam a prova de que o mundo só está progredindo em termos de


intelecto, que está ganhando em liberdade, ou que o incremento da liber­
dade é um progresso ou um ganho. Ranke, que foi meu próprio mestre, re­
jeitou essa minha; Comte, mestre de homens melhores, acreditava que nós
arrastamos uma longa corrente sob o peso recolhido da mão inoperante; e
muitos de nossos clássicos recentes — Carlyle, Newman, Froude — per­
suadiram-se de que não há nenhum progresso que justifique os caminhos
de Deus para o homem, e que a mera consolidação da liberdade é como o
movimento das criaturas cujo avanço se dá na direção de suas caudas.
Eles estimam que a precaução ansiosa contra o mau governo é um
obstáculo ao bom, e degrada a moralidade e a mente ao deixar o capaz à
mercê do incapaz, destituindo a virtude esclarecida em benefício do ho­
mem médio. Eles defendem que as coisas grandes e salutares são feitas para
a humanidade pelo poder concentrado, não pelo poder equilibrado, anula­
do e disperso; e que a teoria whig, nascida das facções em decomposição, a
teoria de que a autoridade só é legítima em virtude de seus controles, e de
que o soberano é dependente do súdito, é rebelião contra a vontade divina
manifesta ao longo de todo o curso do tempo. Eu levanto a objeção não de
que nós podemos imergir na controvérsia crucial de uma ciência que não é
idêntica à nossa, mas no sentido de tornar clara a minha intenção por meio
da contribuição decisiva da contradição expressa. Nenhum dogma político
é tão útil a meu propósito aqui quanto o axioma do historiador de fazer o
melhor que pode para o outro lado, e de evitar a obstinação ou a ênfase no
seu próprio. Como o preceito económico do laissez faire,30 o qual o século
XVIII extraiu de Colbert, foi um passo importante, senão mesmo um passo
final na construção do método. As personalidades mais fortes e impressio­
nantes, é verdade, como Macaulay, Thiers e o dois maiores escritores vivos,
Mommsen e Treitschke, projetam sua própria sombra enorme sobre seus
escritos. Esta é uma prática própria dos grandes homens, e um grande ho­
mem pode valer por muitos historiadores puros. Por outro lado, há virtude

30 Laissez-Jaire é uma corruptela da expressão em francês, laissez faire, laissez aller, laissez passer,
que significa literalmente “deixai fazer, deixai ir, deixai passar". Remete às doutrinas colbertistas
que deram origem à teoria económica clássica no século XVIII, que defendia o não intervencio­
nismo estatal nas relações comerciais internacionais, em oposição às práticas intervencionistas
do mercantilismo que então ainda se praticavam no fim do antigo regime.
272 Lições de história

na expressão de que um historiador se sai melhor quando ele não aparece.


Melhor para nós é o exemplo do bispo de Oxford, que nunca nos deixa
saber o que pensa a respeito de algo, senão o assunto de que trata; e de seu
ilustre rival francês, Fustel de Coulanges,31 que falou para uma audiência
excitada: “não imaginem que vocês estão me escutando; é a própria histó­
ria que vos fala”. Podemos não encontrar qualquer filosofia na observação
de 400 anos, tirando 3 mil. Seria uma indução imperfeita e falaciosa. Mas
espero que mesmo essa seção estreita e desedificativa da história os ajude
a ver que a ação de Cristo sobre a humanidade que ele redimiu não falha,
mas aumenta; que a sabedoria da lei divina aparece não na perfeição, mas
no aperfeiçoamento do mundo; e que essa liberdade alcançada é o único
resultado ético encontrado nas condições convergentes e combinadas da
civilização avançada. Então vocês compreenderão o que disse um filósofo
famoso: que a história é a verdadeira demonstração da religião.
Mas, que querem dizer aqueles que proclamam que a liberdade é a
vitória, o prémio e a coroa, considerando que essa é uma ideia para a qual
existem centenas de definições, e que essa riqueza de interpretação causou
mais derramamento de sangue do que qualquer coisa, exceto a teologia? Será
a democracia, como se diz na França, ou o federalismo, na América, ou a
independência nacional, segundo a visão italiana, ou o reino do mais apto,
que é o ideal dos alemães? Não sei se alguma vez entrará em minha esfera de
obrigações traçar o lento progresso dessa ideia em meio às agitadas cenas de
nossa história, e mostrar como sutis especulações sobre a natureza da consci­
ência promoveram uma concepção mais nobre e mais espiritual da liberdade
que a protege, até que o guardião dos direitos se tomasse o guardião dos
deveres que são a origem dos direitos, e aquilo que havia sido estimado como
a proteção material para os tesouros da Terra tomou-se consagrado como a
segurança para as coisas divinas. Tudo que necessitamos é um dia útil funda­
mental à história, e nossa necessidade atual poderá ser suprida sem nos de­
termos para satisfazer os filósofos. Sem inquirir até que ponto Sarasa ou Bu-
tler, Kant ou Vinet estão certos a respeito da voz infalível de Deus no homem,
podemos facilmente concordar nisso: que onde o absolutismo reinou, por
força de braços invencíveis, possessões concentradas, igrejas auxiliares e leis

31 Historiador francês, presente nesta antologia.


Lord Acton 273

inumanas, ele já não reina mais; que o comércio tendo se levantado contra
a terra, o trabalho contra à riqueza, o Estado contra as forças dominantes na
sociedade, a divisão do poder contra o Estado, o pensamento dos indivíduos
contra a prática das épocas, nem autoridades, nem minorias, nem maiorias
podem comandar a obediência implícita; e, onde houve uma experiência
longa e árdua, uma trincheira de convicção experimentada e conhecimento
acumulado, onde há um nível justo de moralidade geral, de instrução, de co­
ragem, e de autocontrole, lá, e apenas lá, poder-se-á encontrar uma sociedade
que exiba a condição de vida em direção à qual, por eliminação das falhas, o
mundo se tem movido através do espaço designado. Você sabê-lo-á por força
de sinais externos: representação, a extinção da escravidão, o domínio da
opinião etc.; e mais ainda por evidências menos aparentes: a segurança dos
grupos mais fracos e a liberdade de consciência, que, efetivamente assegura­
da, garante todo o resto.
Aqui chegamos a um ponto em que meu argumento ameaça tocar
numa contradição. Se as conquistas supremas da sociedade são frequente­
mente logradas mais por meio da violência do que pelas artes pacíficas; se
a tendência e o curso das coisas são para as convulsões e catástrofes; se o
mundo deve a liberdade de religião à revolução holandesa, o governo cons­
titucional aos ingleses, o republicanismo federal aos americanos, a igual­
dade política aos franceses e seus sucessores, o que estará reservado a nós,
dóceis e dedicados estudantes do passado absorvente? O triunfo do revo­
lucionário aniquila o historiador. Por seus autênticos expoentes, Jefferson
e Sieyes, a revolução do século passado repudia a história. Seus seguido­
res renunciaram a seu conhecimento e estavam prontos para destruir seus
registros e abolir seus inofensivos professores. Mas a verdade inesperada,
mais estranha do que a ficção, é que esta foi não a ruína, mas a renovação
da história. Diretamente e indiretamente, pelo processo de desenvolvimen­
to e pelo processo da reação, um impulso foi dado que a fez infinitamente
mais eficaz como um fator da civilização do que jamais o fora antes, e teve
início um movimento no mundo das mentes que foi mais profundo e mais
sério do que o renascimento da antiga aprendizagem. O desígnio divino
sob o qual nós vivemos e trabalhamos consiste primeiramente no rechaço
do espírito negativo que rejeitou a lei do crescimento, e em parte no esforço
para classificar e ajustar a revolução, e explicá-la por meio da ação natu­
ral das causas históricas. A linha conservadora de escritores, denominada
274 Lições de história

escola romântica ou escola histórica, estabeleceu-se na Alemanha, viu a


revolução como um episódio estranho, o erro de uma época, uma doença
a ser tratada pela investigação de sua origem, e empenhou-se em juntar os
fios rompidos e restaurar as condições normais da evolução orgânica. A
escola liberal, cujo lar era a França, explicou e justificou a revolução como
um desenvolvimento verdadeiro, o fruto maduro de toda a história.
Estes são os dois argumentos principais da geração à qual devemos
a noção e os métodos científicos que fazem a história tão diferente do que
era para os sobreviventes do último século. Rigorosamente, os inovadores
não eram superiores aos homens antigos. Muratori foi igualmente ampla­
mente lido, Tillemont igualmente exato, Liebnitz igualmente capaz, Freret
igualmente agudo, Gibbon igualmente magistral no ofício da construção
compósita. Não obstante, no segundo quarto deste século, uma nova era
começou para os historiadores.
Eu indicaria três coisas em particular, em meio a tantas, que consti­
tuem a ordem restaurada. Da incessante avalanche de novas e insuspeita-
das matérias pouco preciso falar. Por alguns anos, os arquivos secretos do
papado eram acessíveis em Paris; mas o tempo ainda não havia chegado,
e praticamente o único homem que deles se aproveitou foi mesmo o ar­
quivista. Por volta de 1830, os estudos documentais começaram em larga
escala, a Áustria liderando o caminho. Michelet, que reivindica, por volta
de 1836, ter sido o pioneiro, foi precedido por oponentes como Mackin-
tosh, Bucholtz e Mignet. Um novo e mais produtivo período começou 30
anos mais tarde, quando a guerra de 185932 revelou os espólios da Itália.
Em cada país, sucessivamente, passou a ser permitida a exploração de seus
registros, e há mais receio de afogamento do que de seca. O resultado foi
que toda uma vida dedicada à consulta da maior coleção de livros impres­
sos não bastaria para instruir um verdadeiro mestre da história moderna.
Depois passar da literatura para as fontes, de Burner para Pocock, de Ma-
caulay para Madame Campana, de Thiers à inesgotável correspondência
dos Bonaparte, ele ainda sentiria a urgente necessidade de pesquisar em
Veneza ou em Nápoles, na biblioteca de Ossuna ou no Hermitage.

32 Segunda guerra de independência italiana, também chamada de Guerra Franco-Austríaca,


Guerra Sardo-Austríaca, Guerra Austro-Piemontesa, ou ainda Guerra Austro-Franco-Sarda;
auge do processo que culminou na unificação da Itália.
Lord Acton 275

Tais assuntos não nos concernem agora. Para nosso propósito, a prin­
cipal coisa a aprender não é a arte de acumular material, mas a arte mais
sublime de investigá-lo, de discernir a verdade da falsidade, e a certeza,
da dúvida. É por meio da solidez da crítica mais do que pela plenitude da
erudição que o estudo da história fortalece, organiza e abre a mente. E a as­
censão do crítico no lugar do compilador infatigável, do artista na narrativa
colorida, o hábil retratista do personagem, o advogado persuasivo do justo,
ou de outras causas, equivalem a uma transferência de governo, a uma
mudança de dinastia, no domínio histórico. Pois o crítico é alguém que,
quando detecta uma afirmação interessante, começa por suspeitar dela. Ele
permanece em suspenso até que tenha submetido sua autoridade a três
operações. Primeiramente, ele se pergunta se leu a passagem como o autor
a escreveu. Pois que o compilador, o editor e o censor oficial ou oficioso
acima do editor usaram estranhos artifícios, e têm muito que explicar. E se
não se deve culpá-los, pode ser que o autor escreveu seu livro duas vezes,
e que você consiga descobrir a primeira versão, as variações progressivas,
as coisas adicionadas e as coisas subtraídas. Em seguida vem a questão de
onde o escritor conseguiu sua informação. Se de um escritor precedente,
isso pode ser verificado, e o inquérito tem que ser repetido. Se de papéis
inéditos, estes devem ser rastreados, e quando a fonte é alcançada, ou a
trilha desaparece, surge a questão da veracidade. O caráter do escritor res­
ponsável, sua posição, antecedentes e os motivos prováveis têm que ser
examinados; e isso é o que, num sentido diferente e adaptado da palavra,
pode ser chamado da crítica superior, em comparação com o trabalho ser­
vil e frequentemente mecânico de perseguir as declarações até sua raiz. Pois
que um historiador tem que ser considerado como uma testemunha, e não
merecer crédito a menos que sua sinceridade seja estabelecida. A máxima
de que um homem deve ser considerado inocente até que sua culpa esteja
provada não foi feita para ele.
Para nós, então, a avaliação das autoridades, o exame do testemu­
nho são mais importantes do que a descoberta potencial de uma matéria
nova. E a história moderna, que é o mais amplo campo de aplicação, não
é a melhor para aprender nosso ofício; pois que ela é demasiado vasta, e a
colheita não foi tão joeirada como na Antiguidade ou até mais adiante, nas
Cruzadas. É melhor examinar o que foi feito para as questões compactas
e circunscritas, como as fontes do Péricles de Plutarco, os dois tratados no
276 Lições de história

governo de Atenas, a origem da epístola de Diogneto, o período da vida


de Santo Antônio; e aprender com Schwegler como este trabalho analítico
começou. Mais satisfatório porque mais decisivo foi o tratamento crítico
dos escritores medievais, paralelamente a novas edições, onde um trabalho
incrível foi realizado, e cujo melhor exemplo são os prefácios do bispo
Stubbs. Um acontecimento importante nesta série foi o ataque contra Dino
Compagni, que, graças a Dante, suscitou grande polêmica entre os melho­
res acadêmicos italianos. Quando nos dizem que a Inglaterra está atrás do
Continente na faculdade crítica, devemos admitir que isso é verdadeiro
no que concerne à quantidade, mas não à qualidade do trabalho. Como
eles não mais estão vivos, mencionarei dois professores de Cambridge, Li-
ghtfoot e Hort, que eram acadêmicos críticos que nenhum francês ou ale­
mão jamais superou.
A terceira característica distintiva da geração de escritores que cava­
ram um fosso tão profundo entre a história tal como conhecida por nossos
avós e como hoje ela se nos apresenta é seu dogma da imparcialidade. Para
um homem comum a palavra significa não mais do que justiça. Ele acha
que pode proclamar os méritos de sua própria religião, de seu próspero e
ilustrado país, de seu credo político — seja democracia, monarquia liberal
ou conservadorismo histórico — sem transgressão ou ofensa, desde que
seja justo com os méritos relativos, ainda que inferiores, de outros; e nun­
ca trate os homens como santos ou como embusteiros por causa do lado
que escolheram. Não há nenhuma imparcialidade, diria esse homem, como
aquela de um juiz de enforcamento. Os homens, que, com o compasso
da crítica em suas mãos, navegaram os mares desconhecidos da pesquisa
original propuseram uma perspectiva diferente. A história, para estar acima
da evasiva ou da disputa, deve basear-se em documentos, não em opini­
ões. Eles tinham sua própria noção de autenticidade, baseada na excessiva
dificuldade de encontrar a verdade, e a dificuldade ainda maior de impri­
mi-la quando encontrada. Achavam que era possível escrever com tanto
escrúpulo, simplicidade e critério a ponto de arrastar consigo todo homem
de boa vontade e, independentemente de seus sentimentos, obter sua con­
cordância. Ideias que, na religião e na política, são verdades, em história
são forças. Elas devem ser respeitadas, mas não devem ser afirmadas. Por
força de uma suprema reserva, de muito autocontrole, de uma indiferença
oportuna e discreta, de discrição nas questões do barrete negro, a história
Lord Acton 277

pôde elevar-se acima da disputa e constituir um tribunal aceito, e o mesmo


para todos. Se os homens fossem verdadeiramente sinceros e pronuncias­
sem seus julgamentos somente pelos cânones da moralidade evidente, Ju­
liano então seria descrito nos mesmos termos por cristãos e pagãos; Lutero,
por católicos e protestantes; Washington, por whig e tory\ e Napoleão, pelo
patriota francês e pelo patriota alemão.
Falo desta escola com reverência pelo bem que ela fez, pela afirma­
ção da verdade histórica e de sua autoridade legítima sobre as mentes dos
homens. Ela fornece uma disciplina a que cada um de nós faz bem em
se submeter e talvez também bem em renunciar. Pois que ela não é toda
a verdade. O ensaio de Lanfrey sobre Carnot, as guerras da revolução de
Chuquet, as histórias militares de Rope, a Genebra na época de Calvino por
Roget fornecem exemplos de uma imparcialidade mais robusta do que eu
descrevi. Renan chama-a o luxo de uma sociedade opulenta e aristocrática,
condenada a desaparecer numa era de uma selvagem e sórdida contenda.
Em nossas universidades ela tem um refúgio magnífico e garantido; e para
servir a sua causa, que é sagrada, porque é a causa da verdade e da honra,
nós podemos importar uma proveitosa lição da região altamente não cien­
tífica da vida pública. Ali um homem não demora muito para descobrir
que é confrontado por alguns que são mais capazes e melhores do que ele
mesmo. E, a fim de compreender a força cósmica e a conexão verdadeira
das ideias, é uma fonte do poder e uma excelente escola de princípio não
descansar até que, excluindo as falácias, os preconceitos, os exageros que a
disputa perpétua e as precauções consequentes produzem, tenhamos apre­
sentado para nossos oponentes um argumento mais forte e mais impres­
sionante do que eles mesmos apresentam. Com exceção de um, ao qual
estamos chegando antes que eu os libere, não há nenhum preceito menos
fielmente observado pelos historiadores.
Ranke é o representante da época que instituiu o moderno estudo da
história. Ele o ensinou a ser crítico, incolor e novo. Nós o encontramos em
cada etapa, e ele fez mais por nós do que qualquer outro homem. Há livros
mais fortes do que qualquer um dos dele, e alguns podem tê-lo superado
no critério político, religioso, filosófico, na vivacidade da imaginação cria­
tiva, na originalidade, na elevação e na profundidade do pensamento; mas,
pela extensão do importante trabalho bem executado, por sua influência
em homens capazes e pela quantidade de conhecimento que a humanidade
278 Lições de história

recebe e emprega com o selo de sua mente nela estampado, ele permane­
ce incomparável. Eu o vi pela última vez em 1877, quando estava fraco,
magro e quase cego, mal podendo ler ou escrever. Ele expressou seu adeus
com amável emoção, e eu temi que o que eu ouviria sobre ele em seguida
seria a notícia de sua morte. Dois anos mais tarde ele começou uma história
universal que não está isenta de sinais de fraqueza, mas a qual, composta
depois dos 83 anos, e recuando, em 17 volumes, até a Idade Média, encerra
a mais extraordinária carreira vista na literatura.
Seu rumo tinha sido determinado, na juventude, por Quentin
Durward.33 O choque da descoberta de que o Luís XI de Scott era incom­
patível com o original em Commynes34 fê-lo decidir que seu objetivo a
partir de então deveria ser antes de tudo seguir, sem desviar-se, com rigo­
rosa subordinação e entrega, a orientação de suas autoridades. Ele decidiu,
com efeito, reprimir o poeta, o patriota, o partidário religioso ou políti­
co, não sustentar nenhuma causa, afastar-se de seus livros e não escrever
nada que agradasse seus próprios sentimentos ou revelasse suas convicções
pessoais. Quando um impetuoso clérigo, que, como ele, tinha escrito so­
bre a Reforma, saudou-o como um camarada, Ranke repeliu seus avanços.
“Você”, disse, “é em primeiro lugar um cristão; eu sou em primeiro lugar
um historiador. Há um golfo entre nós”. Foi o primeiro escritor eminente
que mostrou o que Michelet chamou “íe desinteressement des morts”. Foi
um triunfo moral para ele quando pôde abster-se de julgar, e mostrar que
muito pode ser dito de ambos os lados, deixando o resto à Providência. Ele
sentiria simpatia pelos dois famosos médicos de Londres de nossos dias, de
quem se diz que não conseguiam decidir-se sobre um caso e que opinavam
dubiamente. O chefe da família insistia numa opinião positiva. Responde­
ram que eram incapazes de dar-lhe uma, mas ele facilmente encontraria 50
doutores que o fariam.
Niebuhr havia chamado a atenção para o fato de que os cronistas
que escreveram antes da invenção da imprensa geralmente transcreviam

33 Quentin Durward é um romance histórico do escritor romântico inglês Walter Scott, cuja
primeira edição é de 1823 e que inaugurou o gênero do romance de cavalaria, tão popular na
primeira metade do século XIX. Trata-se da estória de um arqueiro escocês a serviço do rei da
França Luís XI.
34 Philippe de Commynes (1447-1511), autor de célebres Mcmórias que retratam as cortes eu­
ropeias na passagem para o século XVI, era oficial de Luís XI.
Lord Acton 279

um predecessor de cada vez, e pouco sabiam a respeito de analisar minu­


ciosamente ou combinar autoridades. A sugestão tomou-se luminosa nas
mãos de Ranke, e com sua luz e toque destro ele escrutinou e dissecou
os principais historiadores, de Maquiavel às Memoires dun homme d’Elat,
com um rigor nunca antes aplicado aos modernos. Mas enquanto Niebuhr
rejeitou a história tradicional, substituindo-a por uma construção própria,
a missão de Ranke foi preservar, em vez de destruir, e estabelecer os mes­
tres que, em sua esfera apropriada, ele poderia seguir. As muitas excelen­
tes dissertações nas quais ele apresentou essa arte, embora seus sucessores
na geração seguinte tivessem igualado sua habilidade e feito um trabalho
ainda mais completo, são a melhor introdução onde podemos aprender o
processo técnico por meio do qual, dentro da memória viva, o estudo da
história moderna foi renovado. Os contemporâneos de Ranke, cansados de
sua neutralidade e suspensão, e do trabalho útil porém subserviente que
foi feito pelos novatos que tomaram emprestada sua varinha de condão,
pensavam que tinham sido superestimadas estas obscuras preliminares que
um homem pode realizar sozinho no silêncio de seu quarto, com menos
demanda de atenção do público. Isso pode ser razoável em homens que
são práticos nesses detalhes técnicos fundamentais. Nós, que temos que
aprendê-los, devemos mergulhar no estudo dos grandes exemplos.
À parte o que é técnico, o método é somente a reduplicação do sen­
so comum, e é melhor adquirido observando-se seu uso pelos homens
mais hábeis em cada variedade do trabalho intelectual. Bentham reconhe­
ceu que ele aprendeu menos de sua própria profissão do que de escritores
como Linnaeus e Cullen; e Brougham recomendou o estudante de direito
a começar com Dante. Liebig descreveu sua Química orgânica como uma
aplicação das ideias encontradas na Lógica de Mill, e um ilustre médico,
cujo nome não será dito por receio de que poderia ouvir-me, leu três livros
para ampliar seus conhecimentos médicos; e estes eram Gibbon, Grote e
Mill. Diz ele: “um homem educado não pode tornar-se tal se estuda sozi­
nho, mas deve submeter-se à influência das modalidades naturais, civis, e
morais do pensamento”. Cito as palavras brilhantes do meu colega a fim de
replicá-las. Se os homens da ciência nos devem qualquer coisa, nós muito
deles podemos aprender do que é essencial. Pois eles podem mostrar como
testar a prova, como garantir a integridade e a firmeza na indução, como
restringir e empregar com segurança a hipótese e a analogia. São eles que
280 Lições de história

guardam o segredo da misteriosa propriedade da mente por meio do qual


o erro leva à verdade, e a verdade prevalece, lenta mas irrevogavelmente.
Deles é a lógica da descoberta, a demonstração do avanço do conhecimento
e o desenvolvimento das ideias, que, enquanto as necessidades e as paixões
terrenas dos homens permanecem quase inalteradas, são o mapa do pro­
gresso e a chama vital na história. E eles frequentemente nos dão conselhos
inestimáveis quando se dedicam a seus próprios assuntos e discursam para
seu próprio público. Lembremos Darwin tomando nota somente daquelas
passagens que suscitaram dificuldades ao longo de seu caminho; o filósofo
francês queixando-se que seu trabalho está parado porque ele não encon­
trou mais fatos contraditórios; Baer, para quem o erro examinado é quase
tão proveitoso quanto a verdade, pela descoberta de objeções novas; pois
que, conforme nos alerta Sir Robert Bali,35 é considerando as objeções que
nós frequentemente aprendemos. Faraday declara que, “no conhecimento,
somente deve ser reprovado e desprezado aquele que não está em perma­
nente estado da transição”. E John Hunter36 falou por todos nós quando
disse: “nunca me perguntem o que eu disse ou o que eu escrevi; mas se me
perguntarem quais são minhas opiniões atuais, eu direi”.
Desde os primeiros anos do século temos sido estimulados e enrique­
cidos por colaboradores de cada quadrante. Os juristas trouxeram-nos essa
lei do crescimento contínuo que transformou a história de uma crónica
de ocorrências casuais na imagem de algo orgânico. Por volta de 1820, os
teólogos começaram a rever suas doutrinas nas linhas do desenvolvimento,
de que Newman disse, muito depois, que a evolução tinha vindo para con-
firmá-lo. Mesmo os economistas, que eram homens práticos, dissolveram
sua ciência na história líquida, afirmando que ela não é uma disciplina
auxiliar, mas o próprio objeto de sua investigação. Os filósofos afirmam
que, logo em 1804, começaram a curvar o pescoço metafísico sob o jugo

35 Sir Robert Stawell Bali (1840-1913), astrónomo irlandês, escritor de livros de divulgação
científica, tornou-se professor de matemáticas aplicadas no Royal College of Science em Dublin,
em 1867. Em 1874 Bali foi nomeado astrónomo real da Irlanda e professor de astronomia na
• Universidade de Dublin, no Observatório Dunsink.
36 John Hunter (1728-1793), médico cirurgião escocês considerado um dos mais distintos cien­
tistas de sua época. Foi um dos pioneiros na defesa da observação cuidadosa e da aplicação do
método científico em medicina. A Hunterian Society de Londres foi assim nomeada em sua
homenagem.
Lord Acton 281

histórico. Ensinaram que a filosofia é somente a soma de todas as filosofias,


que os sistemas passam com a época cuja marca eles carregam, que o pro­
blema está em focalizar os raios da verdade errante, mas existente, e que a
história é a fonte da filosofia, senão mesmo um completo substituto para
ela. Comte começa um volume dizendo que a preponderância da história
sobre a filosofia era a característica do tempo em que ele viveu. Desde que
Cuvier reconhecera pela primeira vez a junção entre o curso da descoberta
indutiva e o curso da civilização, a ciência teve sua parcela de responsa­
bilidade em saturar a época com modos históricos de pensamento e em
sujeitar todas as coisas a essa influência para a qual os termos deprimentes
de historicismo e espírito histórico foram inventados.
Há determinadas falhas que são defeitos mentais corrigíveis, sobre
os quais devo dizer algumas palavras acusativas, porque são comuns a nós
todos. Primeiramente, o desejo de um vigoroso entendimento da sequência
e do real significado dos eventos, que seria fatal a um político prático, é a
mina para um estudante de história, que é o político com seu rosto virado
para trás. Ele brinca no estudo e não vê nada mais que a superfície sem
sentido e estéril, como geralmente fazemos. Então, temos a curiosa pro­
pensão para negligenciar, e aos poucos a esquecer, o que foi antes conhe­
cido com toda a certeza. Um exemplo ou dois explicarão minha ideia. O
mais popular escritor inglês narra como ocorreu em sua presença o batismo
do partido conservador com o nome de toiy. Era um nome ignominioso
naquele tempo, aplicado aos homens a quem o governo irlandês oferecia
a cabeça a prémio; de modo que, se eu tiver tanta certeza do progresso,
poderei ao menos complacentemente apontar para este exemplo de me­
lhoria de nossos modos. Um dia, Titus Oates perdeu a paciência com os
homens que se recusavam a acreditar nele e, após buscar na mente alguma
imprecação mordaz, começou a chamá-los de tones. O nome permaneceu;
mas sua origem, atestada por Defoe, fugiu à memória comum, como se um
partido tivesse vergonha de seu padrinho, e o outro não se importasse em
ser identificado com sua causa e caráter. Todos vocês sabem, estou certo,
a história da notícia de Trafalgar, e como, dois dias depois que ela tinha
chegado, o sr. Pitt, arrastado por uma multidão entusiástica, foi jantar na
cidade. Quando beberam à saúde do ministro que tinha salvado seu país,
ele declinou da saudação. “A Inglaterra”, disse, “salvou a si mesma por sua
própria energia; e eu espero que, depois de ter-se salvado por sua energia,
282 Lições de história

salve a Europa por meio de seu exemplo.” Em 1814, quando esta esperança
havia sido realizada, o último discurso do grande orador foi lembrado, e
uma medalha lançada, na qual aquela sentença inteira foi gravada, em qua­
tro palavras de resumido latim: Seipsam virtute, Europam exemplo. Agora,
foi justo na ocasião de sua última aparição em público que o sr. Pitt tomou
conhecimento do esmagador sucesso dos franceses na Alemanha e da ren­
dição da Áustria em Ulm. Seus amigos concluíram que a luta em terra seria
vã, e que era hora de abandonar o Continente ao conquistador e recuar
para o nosso novo império do mar. Pitt não concordou com eles. Disse que
Napoleão encontraria com um obstáculo sempre que se deparasse com
uma resistência nacional; e declarou que Espanha seria esse lugar, e que
então a Inglaterra interviria. O general Wellesley, recém-chegado da índia,
*
estava presente. Dez anos mais tarde, quando ele havia realizado aquilo que
Pitt tinha lucidamente antecipado em seus últimos dias, relatou em Paris o
[•i que eu não hesitaria em denominar a mais espantosa e profunda predição
U de toda a história política, onde tais coisas não têm sido raras.
Eu certamente nunca mais terei a oportunidade de expressar meus
l:.1
pensamentos para uma audiência como esta, e numa ocasião assim tão pri­
vilegiada um palestrante pode muito bem sentir-se tentado a refletir se ele
sabe de qualquer verdade negligenciada, de qualquer proposição cardeal que
possa servir como seu epitáfio escolhido, como um último sinal, talvez mes­
mo como uma meta. Não estou pensando naqueles brilhantes preceitos que
são a marca registrada de cada escola; ou seja — aprenda tanto escrevendo
quanto lendo; não se satisfaça com o melhor livro; procure outras luzes nos
outros; não tenha nenhum favorito; mantenha os homens e as coisas se­
parados; previna-se contra o prestígio dos grandes nomes; certifique-se de
que seus julgamentos são seus mesmos, e não fuja da discordância; nunca
confie sem testar; seja mais rigoroso com as ideias do que com as ações;
não negligencie a força da causa má ou a fraqueza da boa; nunca se deixe
surpreender pela queda de um ídolo ou pela exumação de um esqueleto;
julgue o talento no que ele tem de melhor, e o caráter, no que tem de pior;
duvide do poder mais do que do vício, e estude problemas de preferência
aos períodos; por exemplo: a origem de Lutero, a influência científica de
Bacon, os predecessores de Adam Smith, os mestres medievais de Rousseau,
a consistência de Burke, a identidade do primeiro whig. A maior parte deles,
suponho, é inquestionável e não reclama nenhum complemento. Mas o peso
Lord Acton 283

da opinião é contra mim quando eu os aconselho a nunca degradar a ordem


moral corrente ou rebaixar o padrão de retidão, mas a julgar os outros pela
máxima final que governa suas próprias vidas, e não deixar nenhum homem
e nenhuma causa escaparem à penalidade eterna que a história tem o poder
de infligir à iniquidade. A contenda pela expiação da culpa e pela mitigação
da punição é perpétua. A cada passo nos deparamos com argumentos que
vão escusar, aliviar, confundir o certo e o errado, e reduzir o homem justo
ao nível do réprobo. Os homens que tramam nos confundir e resistir a nós
são, antes de tudo, aqueles que fizeram da história aquilo que ela se tomou.
Eles estabeleceram o princípio de que somente um conservador tolo julga
o tempo atual com as ideias do passado; que somente um liberal tolo julga o
passado com as ideias do presente.
A missão dessa escola era fazer épocas distantes, especialmente a Ida­
de Média, então a mais distante de todas, inteligíveis e aceitáveis para uma
sociedade que emerge do século XV1ÍI. Havia dificuldades no caminho; e
entre outras, esta: que, no primeiro fervor das Cruzadas, os homens que to­
maram a Cruz, após receberem a comunhão, entusiasticamente dedicavam
o dia ao extermínio dos judeus. Julgá-los por um padrão fixo, chamá-los
de fanáticos sacrílegos ou hipócritas furiosos, seria dar uma vitória imere­
cida a Voltaire. Tornou-se uma regra da política elogiar o espírito quando
se não pudesse defender o feito. De modo que não temos nenhum código
comum; nossas noções morais são sempre fluidas; e devemos considerar os
tempos, a classe de onde saíram os homens, as influências circundantes, os
mestres em suas escolas, os oradores em seus púlpitos, o movimento que
eles obscuramente obedeceram, e assim por diante, até que a responsabili­
dade desapareça nos números, e não reste nenhum culpado para execução.
Um assassino não seria nenhum criminoso se seguisse o costume local; se
os vizinhos o aprovassem; se fosse encorajado por conselheiros oficiais ou
induzido pela autoridade competente; se agisse pela razão do Estado ou
pelo puro amor da religião; se se protegesse por trás da cumplicidade da
lei. A queda da moralidade era flagrante; mas os motivos eram aqueles que
nos permitiram contemplar com grande complacência o segredo de vidas
iníquas. O código, que é extremamente modificado pelo tempo e pelo lu­
gar, variará de acordo com a causa. A anistia é um artifício que nos permite
fazer exceções, alterar os pesos e as medidas, distribuir justiça desigual a
amigos e inimigos.
284 Lições de história

Isso está associado àquela filosofia que Catão atribui aos deuses. Pois
que nós temos uma teoria que justifica a Providência pelo evento; para
a qual nada é tão meritório quanto o sucesso; para a qual não pode ha­
ver vitória por uma má causa; prescrição e duração legitimam-se; e o que
quer que exista é direito e razoável; e porque Deus manifesta Seu arbítrio
por meio daquele que Ele tolera, nós devemos nos conformar ao decreto
divino, vivendo para dar forma ao futuro de acordo com a imagem ratifica­
da do passado. Outra teoria, menos confiantemente propalada, considera
a história como nossa guia, tanto mostrando os erros a evitar quanto os
exemplos a seguir. Ela desconfia das ilusões do sucesso e, embora possa
haver uma esperança do triunfo final do que é verdadeiro, senão por sua
própria atração, pela gradual extinção do erro, ela não admite nenhuma
promessa correspondente para o que é eticamente certo. Ela considera mais
perigosa a canonização do passado histórico do que a ignorância ou a ne­
gação, porque perpetua o domínio do pecado e admite a soberania do erro,
e considera que faz parte da verdadeira grandeza saber estar e cair sozinho,
estancando, por toda uma vida, a torrente contemporânea.
Ranke relata, sem adornos, que Guilherme 111 ordenou a eliminação
de um clã católico, e comenta a desculpa hesitante de seus defensores.
Mas quando ele morre e o elevam à posição de libertador internacional,
Glencoe é esquecido, a imputação de assassinato cessa, como algo indigno
de atenção. Johannes Mueller, uma grande celebridade suíça, escreve que
a Constituição britânica ocorreu a alguém, talvez a Halifax. Esta afirma­
ção rudimentar não seria aprovada por rígidos advogados como uma fiel e
oportuna indicação da evolução misteriosa das eras, desde começos obscu­
ros, que jamais havia sido profanada pela intrusa observação do homem;
mas ela é menos grotesca do que parece. Halifax era o mais original escritor
de libelos políticos na multidão panfletária entre Harrington e Bolingbroke;
e na campanha da exclusão ele produziu um quadro de demarcações que,
em substância, senão na forma, prenunciou a posição da monarquia nos
últimos reinados hanoverianos. Embora Halifax não acreditasse na trama,
insistiu em que vítimas inocentes deveriam ser sacrificadas para satisfazer
a multidão. Lord William Temple37 escreve: “nós discordamos somente em

37 Sir William Temple (1628-1699), diplomata e autor inglês.


Lord Acton 285

um ponto, que era deixar alguns padres para a lei sob a acusação de serem
padres somente, porque a Casa dos Comuns assim havia desejado; o que
eu entendi ser completamente injusto. A respeito desse ponto Lord Halifax
e eu tivemos um debate tão acirrado nos aposentos de Lord Sunderland,
que ele me disse que, se eu não cooperasse em pontos que eram tão neces­
sários para a satisfação das pessoas, ele diria a todos que eu era um papista.
E declarou que a trama deveria ser tratada como se fosse verdadeira, quer
fosse, quer não, naqueles pontos que eram geralmente mais acreditados”.
Apesar desta passagem acusatória, Macaulay, que prefere Halifax a todos os
homens de Estado de sua época, elogia-o por sua misericórdia: “sua aver­
são aos extremos, e o temperamento clemente e compassivo de que parecia
ser naturalmente dotado preservaram-no de toda participação nos piores
crimes de seu tempo”.
Se, em nossa incerteza, frequentemente erramos, às vezes pode ser
melhor correr o risco do excesso no rigor do que na indulgência, porque
então ao menos não causamos nenhum estrago por perda de princípio.
Como disse Bayle, é mais provável que os motivos secretos de uma ação
indiferente sejam maus do que bons; e esta conclusão desanimadora não
depende de teologia, porque James Mozley38 defende o cético por outro
flanco, com toda a artilharia do tratadista de Oxford. “Um cristão”, diz, “é
forçado por seu próprio credo a imaginar a maldade, e não pode libertar-
se. Ele a vê onde os outros não conseguem; seu instinto é divinamente li! ■ -i-í .

fortalecido; seu olho é sobrenaturalmente aguçado; ele tem uma percepção


espiritual e os sentidos exercitados para discernir. Ele tem a doutrina do
pecado original; essa doutrina o põe necessariamente em guarda contra
as aparências, mantém sua apreensão sob perplexidade, e o prepara para
reconhecer em qualquer lugar o que ele sabe estar em toda parte.”
Há um dito popular de madame de Stael, segundo o qual perdoamos
tudo aquilo que realmente compreendemos. O paradoxo foi judiciosamen­
te expurgado por seu descendente, o duque de Broglie, nas palavras: “pre-
cavenha-se de demasiada explicação, a fim de que não terminemos nos
desculpando demais”. A história, diz Froude, ensina que certo e errado
são distinções reais. As opiniões alteram-se, as maneiras mudam, os credos

•.? <
38 James Bovvling Mozley (1813-1878), teólogo e jornalista.

; ‘
286 Lições de história

levantam-se e caem, mas a lei moral é escrita nas tábuas da eternidade. E


se há momentos em que podemos resistir ao ensinamento de Froude, nós
raramente temos a possibilidade de resistir quando ele é defendido pelo
sr. Goldwin Smith: “uma moralidade razoável sancionará medidas fortes
nos tempos ruins; ambição egoísta, traição, assassinato, perjúrio, isso ela
jamais sancionará na pior das épocas, porque estas são as coisas que fazem
as épocas ruins —justiça foi justiça, misericórdia foi misericórdia, honra
foi honra, boa-fé foi boa-fé, verdade foi verdade, desde o começo”.
A doutrina de que, conforme diz Sir Thomas Browne,39 a moralidade
não é cambiante é assim expressa por Burke, que, quando fiel a si próprio,
é o mais inteligente de nossos instrutores: “meus princípios permitem-me
formar meu julgamento sobre os homens e as ações na história, assim como
o fazem na vida comum; e não são formados por acontecimentos e perso­
nagens, presentes ou passados. A história é mestra da prudência, não dos
princípios. Os princípios da verdadeira política são aqueles da moralidade
ampliada; e eu não admito quaisquer outros, nem agora nem nunca”.
Quaisquer que sejam as noções que um homem tenha destes últi­
mos séculos, tal e qual, essencialmente, será esse homem. Sob o nome da
história, elas abrangem os artigos de seu credo filosófico, religioso e polí­
tico. Dão sua medida; denotam seu caráter; e, como o elogio é o naufrágio
dos historiadores, suas preferências traem-no mais do que suas aversões.
A história moderna toca-nos tão de perto, é uma questão de vida e morte
tão profunda, que estamos destinados a encontrar nela nosso própro cami­
nho, devendo nosso discernimento só a nós mesmos. Os historiadores de
épocas anteriores, insuperáveis para nós em conhecimento e talento, não
podem ser nosso limite. Temos capacidade para sermos mais rigidamente
impessoais, desinteressados e justos do que eles; e para aprendermos dos
registros fidedignos e genuínos a olhar para o passado com remorso, e
para o futuro, com a esperança certa de coisas melhores; assim sendo, se
rebaixarmos nosso padrão na história, não poderemos defendê-la nem na
Igreja, nem no Estado.

39 Sir Thomas Browne (1605-1682) nasceu em Londres e foi educado na faculdade de Winches-
ter e Pembroke, Oxford. Estudou a medicina em Montpellier e em Pádua. É autor, entre outros,
de Religio medico; Pseudodoxia epidemica (vulgar errors); Hydriotaphia; Ume burial; e The garden
oj Cyrus or lhe quincuncial.
Louis Bourdeau
Marcos Antônio Lopes

“Mas eis agora a história como ciência! Trata-se imediatamente de leis, as


pessoas não entram absolutamente em linha de conta. [...] Além disso, por
que se deveriam conhecer estas leis, quando todos, há milénios, as obedecem
sem conhecê-las!”
Nietzsche

Na cultura histórica ocidental, até o século XVII, não havia uma concep­
ção de ações humanas orientadas para o futuro. A história como um tipo
de saber sobre o passado mirava sempre o presente, e os historiadores
pretendiam orientar as ações necessárias a seu mundo focando exemplos
pretéritos grandiosos, sobretudo as façanhas dos homens ilustres. Sob esse
aspecto, o início da época moderna marca a era de glória dos varões de
Plutarco, que a história ultraprogressista de Louis Bourdeau tende a rejei­
tar como um dos aspectos centrais de sua singular modernidade. Então,
o que se concebe atualmente como ações planejadas para as posteridades
sucessivas foram inovações propostas no decorrer do século XVIII, sobre­
tudo a partir de sua segunda metade. De início, objeto de reflexão isolada
por parte de algumas mentes brilhantes, a ideia de progresso integrou-se
à consciência coletiva do Ocidente, espraiando-se pelo século XIX e abar­
cando praticamente toda a reflexão teórica nos países europeus em que a
história se tornou relevante como fonte de conhecimento.1
Segundo Louis Bourdeau, Turgot teria sido o primeiro e grande arauto
da modernidade, ao abrir o caminho à escalada da ideia de progresso. A
partir de meados do século XVIII, o progresso foi a força desencadeadora

Acerca da ideia de progresso ver, entre outros, Bury (1971); Nisbet (1985); Le Goíí (1984b).
288 Lições de história

da crença numa sequência ininterrupta de desenvolvimento para as socie­


dades humanas. Impregnados desse conceito, muitos imaginaram que a
história humana, doravante orientada pela razão, se moveria no sentido de
uma marcha contínua de realizações positivas.2 Não que, para as épocas
anteriores, se negasse uma continuidade de conquistas do gênero humano,
que não se desse importância a uma cadeia solidária de avanços, parte de
heranças deixadas pelas tradições. Como disse o próprio Comte, a huma­
nidade estava mais povoada de mortos do que de vivos, e a influência dos
primeiros podia ser sentida em toda parte.3 Mas o fato é que o progressismo
determinista difundiu-se entre refonnadores sociais, filósofos, cientistas e
pensadores políticos do século XIX, possuídos por uma confiança por vezes
excessiva na possibilidade de reforma total da sociedade. Ao mesmo tempo,
descortinava-se a ideia de que a sociedade, em sua organização e evolução,
estava submetida a leis.4 Para a humanidade, agora livre da superstição e
orientada pela razão, desabrochava uma nova era de avanços irrefreáveis.
Segundo Louis Bourdeau, a experiência humana sobre a Terra era
uma história de progressos nas mais diversas áreas, uma história que avan­
çava mais célere a partir do século XVI, tendo a Europa como epicentro
de suas cruzadas civilizadoras. Bourdeau estava muito convicto acerca da
possibilidade de um progresso contínuo na história da humanidade. Nesse
sentido, o autor pode ser caracterizado como mais um dos diversos autores
de ficções filosóficas normalmente agregados no bloco dos profetas oito­
centistas. Ao que parece, ele se tinha na conta de alguém que descobriu a
chave para a explicação de um problema de complexidade colossal, o que
garante a seu livro a dignidade de filosofia da história. Atribuir-lhe o título
de o Condorcet do século XIX ou alterar o título de sua obra para Esboço
dos progressos da razão humana não é tratá-lo com ironia, mas ser coerente
com a natureza de seu empreendimento. A ideia de prosperidade alcança-

2 Meinecke, 1982.
3 Nesse espírito das tradições herdadas, o próprio Comte é apresentado por Bourdeau (1888:375)
como um legatário: “Auguste Comte sistematizou a lei indicada por Turgot, segundo a qual as
concepções gerais do espírito humano, expressas inicialmente sob a forma de símbolos teoló­
gicos, chegam em seguida a uma fase de interpretações metafísicas e se constituíam, enfim, no
estado de conhecimentos positivos. A religião, a filosofia e a ciência representavam os graus de
iniciação dos espíritos na verdade .
4 Lefebvre, 1971.
Louis Bourdeau 289

da pelo trabalho coletivo parece singularizar muito bem a sua visão sobre o
caminho a ser trilhado pelos povos. Dessa forma, qualquer descontinuida-
de dos ganhos descaracterizaria a moderna ideia de um desenvolvimento
sem escalas. Nada disso parece afetar a otimista concepção de Bourdeau.
Segundo ele, o progresso tornou-se a força desencadeadora de uma trajetó­
ria ininterrupta de desenvolvimento para as sociedades humanas.
Ao longo do século XIX, a história dominou a cena intelectual europeia
a ponto de se falar no “século da história”. Alguns autores compararam esse
seu papel de proa àquele ocupado pela filosofia no século anterior. “Tudo
toma, hoje”, declarou Chateubriand já nos inícios da quarta década do XIX,
“a forma da história: polêmica, teatro, romance, poesia”.5 Isso porque, dada
a conjunção de certas influências histórico-culturais, como o romantismo e
o nacionalismo, houve uma ebulição da pesquisa histórica, o que fez dela
uma atividade multiforme, capaz de constituir um público numeroso e di­
versificado. Mas, as correntes historiográficas quase sempre são apresentadas
de forma meio mutilada, haja vista que apenas as celebridades e, na melhor
das hipóteses, alguns de seus epígonos mais destacados aparecem represen­
tados nas visões altamente seletivas dos manuais. Pode ser esse o verdadeiro
black-out que obscurece por completo o nome e a obra de Louis Bourdeau,
representante talvez solitário do gênero história positiva em seu sentido mais
fiel e restrito.6 Isso para afirmar que o livro de Bourdeau, Lhistoire e les his­
toriem, antes que reflexões sobre uma prática ou um ofício de especialistas,
parece muito mais uma declaração filosófica jactanciosa de sua novidade,
uma aposta largamente concebida nos seguintes termos: a história é uma
ciência que deve voltar-se para o estudo do “reino humano”, cuja maior sin­
gularidade em relação ao restante da natureza é o exercício da razão. Aqui
permito-me aplicar ao autor uma imagem irónica daquele que, no sécu­
lo XIX, talvez tenha escrito mais ferozmente contra a história como progres­
so: ao cantar louvores às suas próprias descobertas (é preciso lembrar que até
aquela altura a história científica ainda não existia), Bourdeau assemelha-se
a uma daquelas “galinhas estafadas”, cacarejando demasiadamente ao redor
de um minúsculo ovo.7 Aos estudos históricos caberia, portanto, distinguir

5 Apud Carbonell (1981:120).


6 Acerca de outros sentidos da referida história positiva, ver Palmade (1988:48).
' "A objetividade e a cientifkidade da história” (Nietzsche, 2005:295).
290 Lições de história

as leis que estabelecem uma dinâmica que o autor caracteriza como a “con­
tínua metamorfose”. A história, com as suas especificidades de ciência do
homem, estaria capacitada para alcançar o sentido da história humana. O
mais curioso na concepção de Bourdeau é que há um núcleo diretor a guiar
os passos dos fenômenos estudados pela história. Essa espécie de dínamo
que desencadeia as ondas de acontecimentos é também o seu princípio di­
retor. Sim, porque a razão humana promove e orienta os fatos, sendo, pois,
o elemento que estabelece a diferença essencial entre a história dos homens
e a do mundo natural. Paralelamente ao emprego de conceitos de notável
vaguidão, como a própria ideia de história positiva, o método de Bourdeau
destoa, por exemplo, daquele proposto por Langlois-Seignobos, que inves­
tem num método associativo da erudição e da narrativa, passando muito
íll longe de julgamentos e previsões, e que só afirmam algo a partir do que está
registrado nos arquivos. Portanto, contra o império dos fatos reunidos em
vasta e confiável documentação, modelo propugnado por Ranke e acatado
por 10 entre 10 historiadores eruditos da segunda metade do século XIX,
Bourdeau opôs a supremacia das leis da história. Sua pesquisa filosófica para
o estabelecimento de leis fundamenta-se em autores de diferentes tradições
literárias, o que o afasta das formas consagradas de se fazer história em seu
próprio tempo.8 Como o comtismo, sua proposta despencou num abismo
de silêncio. De fato, em seu próprio país, poucos historiadores de ofício se
ocuparam de sua obra. Até os literatos o renegaram. Anatole France escreveu
uma elegante nota acerca de Lhistoire e les historiens, mas declarou que, entre
a verdade aí defendida pela história científica de Bourdeau e a beleza da his­
tória literária herdeira de Heródoto e de Tucídides, ficava com esta.
De fundamental na definição de Louis Bourdeau da história como
dimensão dos acontecimentos está a veemente recusa da tradicional teoria
dos grandes homens. Nesse ponto, Bourdeau lança mão de Voltaire. Numa
de suas célebres cartas, o autor de Candide havia se queixado do grosso vo­
lume de heróis existentes nos livros de história. Mas, olhando com cuida-

8 “Como bom discípulo de A. Comte, L. Bourdeau situa-se num plano filosófico. A história,
segundo ele, é a ‘ciência dos desenvolvimentos da razão’; ela tem por objeto ‘a universidade dos
fatos que a razão dirige ou da qual sofre a influência’. (...] Por outro lado, esta disciplina pode
negligenciar os acontecimentos singulares e os personagens ilustres. [...] Em síntese, trata-se de
uma filosofia da história, resolutamente determinista, que a uma só vez pretende reconstituir o
passado e prever o futuro” (Bourdé e Martin, 1997:205).
Louis Bourdeau 291

do, esses maiorais não passavam de uns tantos loucos a povoar as páginas
dos livros de maneira artificial, por absoluta falta de mérito. Esses numero­
sos arremedos e falsificações implicaram o fato de que, para canonizar os
santos, passou a ser necessária uma longa espera, para que se apagassem
todos os testemunhos das tolices que cometeram. A imagem voltairiana
dos grandes homens fabricados por engenhos de inteligência interessada é
utilizada por Bourdeau para argumentar que a história do gênero humano
deveria coincidir, tanto quanto fosse possível, com a história da humani­
dade. Nesse ponto Bourdeau saca um novo exemplo, o da carteirada que
alguns deputados norte-americanos quiseram aplicar na multidão que lhes
roubava visão privilegiada num evento público. “Deem passagem aos re­
presentantes do povo dos Estados Unidos”, diz o líder do grupo, no que
foi interpelado por um popular que o adverte discretamente nos seguintes
termos: “nós somos o povo dos Estados Unidos”. A hilaridade de tal réplica
produz um efeito de recusa às notoriedades falsificadas, para ele algo tão
contrário ao espírito da ciência histórica como um geógrafo que, ao estudar
a Terra, se dedicasse apenas à descrição das cadeias de montanhas. Ora,
reitera Bourdeau, os historiadores suprimem os exércitos e se põem a falar
dos generais. Portanto, é chegada a hora de extinguir os pontos culmi­
nantes, as celebridades artificiais, porque a humanidade só pode ser bem
representada por ela mesma. Isso porque toda a capacidade de progresso
que caracteriza a espécie humana não reside em alguns homens ilustres.9
A elaboração do progresso se faz pela indústria de uma multidão de traba­
lhadores anónimos, que se aplicam em um diversificado leque de tarefas.
E o autor conclui a sua definição de história: um grande homem poderá
ser criatura, mas não o criador de uma sociedade. A ideia de que a socie­
dade era superior ao indivíduo não foi uma descoberta de Bourdeau. Seu
rechaço ao individualismo vem de uma tradição já solidamente assentada,
da qual Comte foi um dos avalistas. A ciência nova de Comte, a sociologia,
desenvolvida em seu Curso de filosofia positiva, pretendia assegurar a feli-

9 u
...a ideia do homem comum desfrutou de um grande sucesso. Convencidos que os seres
humanos não podem fugir das leis universais de causalidade, Henry Thomas Buckle, Grant
Allen e Louis Bourdeau insistiram na força de limites externos, particularmente os geográficos,
e descreveram os seres humanos como formigas que tecem a vida social (do mesmo modo que
células reconstituem o tecido orgânico) de maneira anónima” (Loriga, 2008).
292 LiçOes de história

cidade do gênero humano pela compreensão das leis que regem a socie­
dade. A história até então fora história literária, e os historiadores apenas
narradores de fábulas. Para se tornar história científica, ela deveria estudar
as ações diárias dos homens comuns. A história, por meio da observação
positiva, ou seja, baseada numa certa teoria inovadora capaz de perceber
as alterações das sociedades no tempo, deveria ocupar-se das necessidades
dos homens porque são eles, em conjunto, os que verdadeiramente atuam
na determinação do sentido dos acontecimentos. O principal compromis­
so intelectual da história era decompor a vida coletiva em toda a sua com­
plexidade e estudá-la por peças. Essa seria a nova história, e a estatística
ocuparia nela um papel central.10
Das reflexões de Bourdeau o que fica mais evidente é a ideia de um
sentido histórico definido em termos próximos a um historicismo abso­
luto. Isso porque há uma razão humana que desequilibra tudo a favor de
uma humanidade pensante, razão que é a força motriz de uma potência
irresistível conhecida como progresso. Como creio ter afirmado, essa no­
ção dominou de tal modo o campo das ciências no século XIX, como se
tratasse de uma obsessão salutar. Ora, a ciência portava a verdade liber­
tadora, uma promessa tão garantida de um futuro radiante a ponto de
se tornar uma religiosidade substitutiva, um credo secularizado ou, nas
palavras de Nietzsche, uma “teologia disfarçada”. A maquinaria moderna,
o encurtamento das distâncias, o domínio da natureza, o enriquecimento
das sociedades, o fortalecimento do Estado,11 todos esses eram indícios de
que a história operava no sentido cumulativo. As maquinações da ciência
haviam permitido todas as excelências desses novos tempos. As tentativas
de organização racional do mundo triunfaram sem qualquer traço de ambi­
guidade. A razão promovera todas as benesses de uma forma de organização
social que não deixava dúvidas acerca de suas virtudes transformadoras. A

10 “Todo o futuro dos estudos históricos depende dessa ciência nova” (Bourdeau, 1888:289).
11 Por falar nessa palavra-chave do vocabulário oitocentista, Bourdeau (1888:161) concebeu
sua história positiva como uma “biografia das nações”, que incluiria em seu campo de pesquisa
científica desde as mais desenvolvidas às mais atrasadas dentre elas. A ele talvez não tivesse
ocorrido que o cientista também era parte do Estado-nação e compartilhava com ele uma série
de interesses. Acerca das “relações carnais” entre os historiadores e os Estados liberais emergen-
tes ao longo do século XIX, ver os comentários de Carbonell (1981) e, sobretudo, a crítica ácida
de Nietzsche (2005), contemporâneo de Bourdeau.
Louis Bourdeau 293

felicidade que a ciência poderia proporcionar à humanidade foi glorificada


por um historiador da mesma geração de Bourdeau em um livro publicado
em 1890, O futuro da ciência, apesar de a obra ter sido produzida algumas
décadas antes.12
Como creio ter afirmado, a concepção da história formulada por
Bourdeau é uma filosofia circunscrita a tais valores. O autor vai encontrar
no estudo das ideias passadas um encadeamento de tal ordem que se toma
impensável que o progresso não pudesse estar sendo preparado desde as
mais espessas noites dos tempos. Nesse ponto, revela-se todo o sentido
contido no admirável conjunto das conquistas humanas: a culminação de
todas as riquezas do espírito humano, posto que reunido num momento
de apogeu e glória. Sim, porque Bourdeau apresenta os típicos sintomas
daquela febre muito disseminada e tendente à exaltação da superioridade
do tempo presente, concebido como a cristã da onda da história, época
inequívoca de toda a culminância do gênero humano. Todas as virtudes da
espécie foram desenvolvidas e demonstradas por provas irretorquíveis, que
as novas e sobranceiras visadas sobre o passado reuniram em profusão. A
superioridade de uma época sobre todas as demais ficava tão evidente que
bastava apenas reunir alguns dados mais ilustrativos, como o depoimento
de uma pequena galeria de insuspeitas autoridades da história da filoso­
fia. Nesse plano, há uma perfeita unanimidade que autoriza ainda mais a
pensar num presente maior, vetor de um futuro ainda mais radioso do que
ele próprio.13 Ao que parece, isso foi e será possível porque há uma cons­
piração em curso, realizada com o fito de favorecer o espírito do tempo
que, por sua própria natureza, já é amplamente propício às transformações
civilizadoras. O seu olhar retrospectivo encontra e cataloga os materiais
necessários para o tipo de construção planejada.
Se a perspectiva de história desenvolvida por Bourdeau é tão resoluta­
mente teleológica, resulta também ser uma teleologia retrospectiva: o pre­
sente poderia ser apenas aquilo que é porque já determinado. Um traço de
curiosidade na reflexão de Bourdeau é a sua dinâmica dos tempos históricos.
Para informar acerca de suas percepções das alterações ocorridas numa vasta

12 De autoria de Ernest Renan, a obra foi concebida em 1848. Ver Lefebvre (1971).
13 A história filosófica concebida por Bourdeau, fiel às pegadas comtianas, permite certa previ­
são de seus acontecimentos posteriores. Chamamos isso, hoje, futurologia.
294 Lições de história

dimensão de tempo, o autor reproduz uma antiga discussão. Trata-se da con­


sagrada polêmica dos antigos e modernos, guerra intelectual desencadeada
desde a Antiguidade grega, cujo propósito era decidir a quem pertenceriam
as maiores honras da sabedoria humana.14 Segundo Bourdeau, a nova era,
quero dizer, o tempo presente só podia coincidir com a maturidade do gê­
nero humano, o que garantiria a essa unidade temporal a realização maxi­
mizada do trabalho de incontáveis gerações. Então, como competir com os
modernos, os homens da atualidade, na verdade os representantes de uma
humanidade já velha, e por isso mesmo em sua plenitude? Há aqui uma
espécie de antropomorfismo da história, porque o processo constituído por
fases bem definidas de expansão da razão assemelha-se às idades do homem,
que vão da infância à velhice, sem perder em desempenho. Por suposto, ad­
1 mite-se apenas uma evolução contínua, sem margens para interrupções.
O êxito do tempo presente é apenas a prova mais evidente dos decretos
da história, que integram um plano perfeitamente cognoscível. Na história,
há um plano de evolução que não apresenta nenhum ponto de fissura.
Essa blindagem da história desfavoreceu todas as tentativas de infiltrações
de elementos conspiradores. Portanto, as transformações são sempre de
ordem construtiva e se acumulam no sentido de alargar as conquistas já
incorporadas ao património comum. Na caminhada, não há pontos provi­
sórios que permitam variações daquela tendência que leva ao fim. Ainda
que os houvesse, o senso de oportunidade da razão, Deus ex machina, faria
a nave desviar de tais escolhos. Um tal finalismo revela os rigores deter­
minantes de uma perspectiva que só admite a progressão e que não toma
conhecimento das contradições peculiares à humanidade, de seus vícios tí­
picos, que são freios eficazes, como a desrazão, a intolerância, o fanatismo
e outras exacerbações deletérias que acabam na alteração ou bloqueio de
um percurso histórico que seria mais desejável à própria razão. Mas, dian­
te da razão como potência irrefreável, a libertação da humanidade estará
garantida. E ele concebeu uma “fórmula matemática da lei de progressão”.

14 A bibliografia acerca do tema é bastante espessa, e o assunto é tratado em textos do sécu­


lo XVI, nas obras de Maquiavel, de Montaigne, entre outros autores. Citamos, por paradigmá­
tico dos tempos modernos, o pequeno ensaio de Voltaire (1985) “Les anciens et les modemes, ou
la toilette de Madame de Pompadour'1. A seguir, alguns títulos contemporâneos que desenvolvem
a questão: Abbagnano (1997); Le Goff (1984a); Gillot (1968); Lacerda (2003).
Louis Bourdeau 295

Na reflexão de Bourdeau, a legitimidade do tempo presente como o cume


da história soa como uma das dimensões róseas da modernidade gerada
pela ciência. E, de fato, ao longo dos Oitocentos, foram poucas as mentes
que contrastaram essa onda de otimismo com o lado negro da mesma mo­
dernidade.15
Fica fácil supor que estamos diante de uma visão seletiva, alicerçada
numa percepção média do que é a história científica ao longo da segun­
da metade dos Oitocentos: um conjunto de sólidos conhecimentos pro­
porcionado por uma visão objetiva da realidade, visão capaz de gerar um
saber verdadeiro sobre o passado. Essa sabedoria histórica, pelo próprio
frescor de sua novidade, ainda não havia encontrado vagar para desconfiar
um pouco de suas convicções otimistas. Os efeitos de veracidade alcan­
çados pelos rigores dos critérios científicos aplicados por tal gênero de
história, naquela quadra, ainda não podiam atinar que a positividade do
método científico integrava um limitado arsenal de escolhas subjetivas,
datadas por um vago espírito do tempo filosófico do final dos Oitocentos.
Ora, o passado histórico, por se tratar de “matéria humana”, não permite
um conhecimento positivo. Sempre haverá comprometimentos que atua­
rão como bloqueadores de percepção: a vaguidão do próprio passado e a
subjetividade de seus intérpretes no presente, por exemplo, impedem uma
aplicação mais generosa do sine ira et studio.16 Fatos históricos são artefatos
de uma cultura, expressões de valores limitados pelas ilusões peculiares a
uma época, sociedade, intérprete... Portanto, a ciência positiva só pode­
ria produzir uma interpretação comprometida e/ou comprometedora. Isso
porque as tão almejadas objetividade e neutralidade da história positiva de
Bourdeau carregam sempre os germes que embaçam o campo da visão e
só podem levar a uma interpretação compatível com os valores culturais
do observador. Em outros termos, o sujeito do conhecimento histórico
não é nunca um registrador objetivo, neutro, e o conhecimento por ele

15 Da lavra de contemporâneos, um contraste vigoroso foi, por exemplo, estabelecido por Nie-
tzsche (2005:266) em alguns de seus textos sobre a história e os historiadores. A mero título de
ilustração, vejamos uma de suas estocadas mais agressivas contra tais concepções: “a humanida­
de não representa de maneira nenhuma uma evolução para melhor, para o que é mais forte, para
o que é mais elevado, no sentido em que se acredita agora. O ‘progresso’ é somente uma ideia
moderna, quer dizer, uma ideia falsa".
16 “Sem cólera nem parcialidade” (a expressão é de Tácito, historiador romano do século 1).
296 Lições de história

produzido pode ser muito bem definido como preconceitos de atualida­


de. Convenhamos, se, à maneira de camadas geológicas, as interpretações
tendem a se sobrepor aos fatos, por mais evidentes que tenham sido, será
bem difícil definir a legitimidade de um projeto que se fundamente em
conceitos como neutralidade, objetividade, cientificidade etc.
Sem dúvida, o lugar de elaboração de uma teoria de interpretação do
passado histórico agrega-lhe certos valores que a fará optar por isso e aqui­
lo, e rejeitar outras possibilidades, no plano de uma explicação verossímil.
Podemos denominar isso reversibilidade do passado histórico, que assume
os tons da preferência de seu intérprete, e que pode variar do mais suave
rosa panglossiano ao mais intenso negror apocalíptico. Exemplo significa­
tivo são as visões de Michelet e Tocqueville acerca das causas da Revolução
Francesa.17 Assim é que qualquer história objetiva, qualquer “história po­
sitiva”, só pode ser mais uma parte do património cultural de uma época
apaixonada pela história. Esses registros da ciência histórica à moda oito­
centista, aliás, uma historiografia pujante e extremamente diversificada,
nos chegam hoje como ressonâncias de nossas conquistas provisórias. Com
efeito, não mais focamos o presente como a síntese dos triunfos da huma­
nidade sobre si mesma e sobre o mundo natural. Há tempos, sabemos que
a história é também potência destrutiva, energia desagregadora, frequente­
mente guiada pelo egoísmo, pela intolerância, pelo utilitarismo...
“A história não é uma arte, é ciência pura.” A frase é de Fustel de
Coulanges, mas, pelo que vimos, poderia ser perfeitamente de Bourdeau,
o que demonstra tanto as diferentes percepções relativas ao conceito de
ciência quanto a diversificação dos modos de encarar um mesmo objeto.
Ora, Fustel de Coulanges integrou a primeira fila dos historiadores erudi­
tos, valentes exploradores de arquivos, que extraíam sua substância vital
do ferro-velho da história, sem jamais admitir que algo fosse acrescentado
a esse precioso material, nenhum “temperinho” sequer para apimentar o
sabor dos fatos: nem imaginação, nem conceitos superiores, nada, refor­
çava o consagrado autor de A cidade antiga. Documentos eram algo assim
como múmia em sarcófago, ou seja, objeto sagrado. Apenas seus testemu­
nhos, tratados sem mistura, possuíam credibilidade.18 Então, se de fato

17 Ver a respeito o ensaio de Shaff (1986).


18 “Pôr suas ideias no estudo dos textos é um método subjetivo [...]. Vários pensam que é útil
e bom ter preferências, ideias ‘mestras’ que dão às obras mais vida e mais encanto; é o sal que
Louis Bourdeau 297

existem tantos e diferentes modos de escrever história, conforme a máxima


de Guizot,19 a história, à maneira de Louis Bourdeau, será sem dúvida uma
curiosa variação entre os demais gêneros produzidos ao longo da segunda
metade do século XIX. Isso porque Bourdeau deduz da história aquilo que
lhe serve para a edificação de sua teoria, posto que os fatos podem ser irre­
levantes quando está em jogo uma determinada interpretação comprome­
tida com as aventuras da razão rumo à consolidação do progresso. Concluo
este ensaio parafraseando uma observação de Carbonell, quando argumen­
ta que o século XIX, por paradigmático que tenha sido como “século da
história”, talvez tenha sido mais propriamente “o século dos historiadores
no século”. Ao que tudo indica, seu programa não atraiu seguidores nem
deixou herdeiros. Nesse sentido, Bourdeau foi mais um entre tantos ou­
tros personagens isolados e esquecidos da história da historiografia, figuras
utópicas a meditar em projetos de difícil ou impossível execução. E mais
ainda nos dias que correm, quando, segundo as previsões de Nietzsche, a
história da humanidade almejada como progresso tornou-se, mais do que
antes, “uma hipótese incompleta e apenas provisória”.20

Parágrafo li — Lei geral da história:


DO PROGRESSO21

Acima das leis comuns, que organizam os fatos por séries em virtu­
de de sua semelhança, e das leis de relação, que ligam as séries umas às
outras por um vínculo de casualidade, as ciências visam estabelecer uma
lei suprema que resume as precedentes e as reduz à unidade, deixando
perceber que sua especialidade resulta da diferença dos casos em que o

comge a insipidez dos fatos. Pensar assim é enganar-se muito sobre a natureza da história. Ela
nào é uma arte, é uma ciência pura, como a física ou a geologia [...]; o melhor historiador é o
que mais se atém aos textos” (Coulanges, 2000:94).
19 “Existem cem maneiras de escrever a história.” Ver Carbonell (1981).
20 Nietzsche, 2005:288.
21 Bourdeau, 1888:355-364. O livro de Louis Bourdeau (1824-1900) foi publicado quando o
autor tinha 64 anos. Obra organizada em quatro unidades temáticas, cada qual contendo vários
capítulos, os dois trechos aqui traduzidos foram extraídos do “Quarto livro” intitulado “Lois de
rhistoire”. Trata-se mais especificamente de dois subtítulos do parágrafo II, por sua vez incluí­
dos no capítulo 2 intitulado “Indication des lois en histoire”. (N. do T.)
298 Lições de história

mesmo princípio de ação é aplicado. A lei da gravitação é um exemplo


admirável dessas generalizações suscetíveis de demonstrar um conjunto
completo de fenômenos. O espírito remonta, assim, de causa em causa,
até a uma causa simples e irredutível que tudo explica sem que tenha, ela
mesma, necessidade de explicação. A história teria igualmente que se em­
penhar em formular uma lei geral que regulasse, em sua condição mais
ampla, a totalidade dos acontecimentos humanos. Esta lei, já percebida,
será, segundo acreditamos, a lei do progresso.

História da ideia de progresso

Apenas muito tarde o espírito humano chegou a conceber com cla­


reza a ideia de progresso. Embora essa noção devesse deduzir-se do espe­
táculo de todos os êxitos realizados, das invenções da indústria, das cria­
ções artísticas, das descobertas da ciência, das aspirações da moral e dos
aperfeiçoamentos da ordem política, ela levou muito tempo para definir-se
com clareza. De início, seria preciso conceber a espécie humana como ani­
mada de uma mesma vida, que continua na sequência de gerações, ainda
que cada uma delas apenas tivesse consciência de sua própria existência.22
Além disso, seria necessário ter evoluído bastante na marcha, para reco­
nhecer que um trecho do caminho havia sido percorrido. Se o período
histórico foi muito breve, quase não se podem distinguir fases evolutivas.
O desconhecimento do passado, a insuficiência de termos comparativos, a
inclinação que os homens têm para lastimar as épocas passadas, antes que
louvar o presente, enfim, os desmentidos que a teoria do progresso parecia
receber de um grande número de fatos mal interpretados autorizaram a
considerar, por muito tempo, não apenas reservas e dúvidas relativas a ela,
mas também negações formais.23

22 Bourdeau se refere à tradicional concepção de história exemplar, ou magistra vitae, cujo in­
teresse nas ações passadas, normalmente cometidas por grandes vultos, voltava-se exclusiva­
mente para a orientação dos comportamentos no presente. Com efeito, até os meados do sécu­
lo XVIII, foram escassas as noções da história orientada para o futuro. (N. do T.)
23 Este trecho é paráfrase de uma passagem do Curso de filosofia positiva (1839), de Auguste
Comte. Mas Bourdeau é bastante crítico em relação ao mestre. Critica-o, sobretudo, por algu-
mas limitações, como ter concebido uma história bem pouco diferente dos modelos de ciência
política propostos por figuras como Aristóteles, Maquiavel e Montesquieu. De um ponto de
Louis Bourdeau 299

Os antigos mitos orientais afirmam que o gênero humano, submetido


a uma lei de contínua degenerescência, segue do bem rumo ao mal, do mal
em direção ao pior, e declina ao invés de se elevar. No Génese, a história
da humanidade começa por uma ruína e uma maldição. Expulso do pa­
raíso terrestre do qual desfrutou por breve tempo, o casal ancestral viu-se
lançado em um mundo de miséria, de trabalho e de sofrimento.24 Mais
tarde Jeová fez perecer em um dilúvio sua descendência, que se tornara
perversa, deixando viver apenas uma família para repovoar a Terra com
uma posteridade que pouco melhorou.25 O legislador místico da índia di­
vide a existência do gênero humano em quatro idades ou yougas: primeiro,
a idade da perfeição (kritayouga); segundo, a idade da fé ou do completo
cumprimento dos deveres religiosos (tretayouga); terceiro, a idade da dúvi­
da ou do declínio das crenças religiosas (dvaparayouga)\ e, quarto, a idade
da perdição (kaliyouga), que consiste nos tempos atuais.26 Hesíodo27 expôs
uma sequência análoga: as idades de ouro, de prata, de bronze e de ferro.
Na última, assistiu-se ao desaparecimento da justiça e do pudor, “deixando
aos mortais apenas as aflições que consomem e os males sem remédio”.
Apenas a esperança permaneceu no fundo da caixa de Pandora. Ovídio28
retoma e desenvolve a mesma fábula das quatro idades. Horácio29 afirma
em belos versos que o mundo piora de geração em geração...
Opiniões que contrabalançam este desencorajador pessimismo e a
crença no progresso sustentam que o mundo pouco varia em suas diferen­
tes épocas: “não há nada de novo sob o sol. [...] O que existiu outrora é o
que está por vir; o que já foi feito ainda deverá fazer-se”, diz o Eclesiastes.
Para Maquiavel30 e Vico,31 as coisas humanas fluem e recomeçam sem so­
lução de continuidade, num círculo inevitável. Desde os tempos antigos

vista estritamente temático, Comte teria sido impreciso quanto ao que entraria e quanto ao que
seria excluído em sua nova ciência. (N. do T.)
24 Génese, caps. 2 e 3.
25 Ibid., cap. 6.
26 Código das leis de Manu. Do sânscrito, Manu simboliza o primeiro homem, o progenitor da
humanidade. (N. do T.).
27 Os trabalhos e os dias.
28 Metamorfoses.
29 Odes.
30 Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio.
31 A ciência nova.
300 Lições de história

encontra-se expresso, e por vezes com uma singular exatidão, a ideia de


uma lei de progressão. O masdeísmo32 ensinava que o mal não seria eterno,
que chegaria o dia no qual Arimã, príncipe das trevas, inclinar-se-ia diante
de Ormuz, príncipe da luz, e que o primeiro deixaria de combater o segun­
do, deixando de causar o mal.33 O cristianismo compensou, pela imolação
de um deus, as faltas do mundo decaído, promulgou a boa nova e firmou a
nova lei como superior à antiga. Jesus, como havia feito Platão, assinala a
perfeição divina como o alvo das atividades dos homens.34 São Paulo soli­
cita “que acreditemos em todas as coisas”,35 e Vincent de Lérins acrescenta:
“deve-se ter progresso e não mudança. É preciso que, com as épocas e os
séculos, haja incremento de inteligência, de sabedoria e de ciência, para
cada qual como para todos”.36
Mais que todos, foram os poetas e filósofos do período greco-romano
os reveladores da ideia de progresso. “O tempo se move”, diz Esquilo, “e é
um grande mestre”.37 Em uma admirável passagem de Antígona, Sófocles
celebra com entusiasmo as conquistas realizadas pelo homem sobre a na­
tureza, apesar da ciumenta vontade dos deuses. Lucrécio consagra uma
parte do quinto livro de seu poema a expor os progressos da humanida­
de,38 e Virgílio admira a grandiosidade da ordem que guia o curso dos
séculos.39 Cícero toma a natureza humana como essencialmente progres­
siva.40 Ele percebe, como algo evidente, que o espírito humano descobre,
pela aplicação e o estudo, verdades novas, e que as noções mais recentes
são, em geral, as mais corretas.41 Plínio nota, em várias ocasiões, “quanto
a vida humana avançou”.42 Sêneca crê firmemente nos progressos futuros

32 Religião monoteísta surgida na Pérsia, fundada pelo profeta Zaratustra. (N. do T.).
33 Xaçna.
34 Mateus.
35 Epístola aos Efésios.
36 Commonitorium. Vincent de Lérins viveu na Gália ao longo da primeira metade do século V.
Em seu Commonitorium discutiu os critérios para a verificação da natureza herética ou ortodoxa
de uma doutrina teológica. Divergiu de Santo Agostinho quanto à questão da graça. (N. do T.)
37 Prometeu.
38 De rerum natura.
39 Écloga.
40 De Legibus.
41 Acadêmicas.
42 História natural.
Louis Bourdeau 301

da ciência”.43 Santo Agostinho, que propiciou a Pascal a comparação do


gênero humano com “um homem que vive sempre e que aprende continua-
mente”, preocupou-se em indicar, apesar da comparação imperfeita, que
no indivíduo a velhice acarreta o declínio, enquanto na humanidade ela é
perfeição crescente.44 São Tomás de Aquino admite o progresso como lei
geral das coisas e particularmente da ciência.45 “Parece natural”, diz ele,
“partir gradualmente do imperfeito para o perfeito”. É assim que vemos,
nas ciências especulativas, que aqueles que primeiro filosofaram ensinaram
diversas coisas imperfeitas, que foram ensinadas com maior perfeição por
seus sucessores. Assim é também nas coisas práticas, porque os primeiros
que se aplicaram a encontrar algo de útil à humanidade, não podendo
observar tudo, instituíram diversas coisas imperfeitas, pontos vulneráveis
sobre um conjunto de aspectos, e seus sucessores têm mudado e instituído
outros pontos que se afastam menos da utilidade comum”.46
A partir do século XVI1, a ideia de progresso tomou-se cada vez mais
distinta e definida. Bacon teve uma intuição muito clara, e suas duas grandes
obras abordam o desenvolvimento das ciências. Seu adágio “antiquitas saeculi
juventus mundi”47 significa que nossos antepassados mais distantes eram na
realidade, os mais jovens, os menos experientes. Somos nós, em verdade, os
antigos, mais instruídos e mais sábios que os homens do passado. “O homem”,
diz igualmente Descartes, “é uma criatura imperfeita que tende sempre a al­
guma coisa melhor e maior que ele mesmo”. Leibniz afirma a perfectibilidade
nos seguintes termos: “videtur homo ad perfectionem venire posse”*8 Enfim, para
Bossuet, “a perfeição é a razão de ser”. Esta frase resume tudo.

43 Questões naturais.
44 Cidade de Deus.
45 Suma Teológica.
46 Fábulas.
47 Novum organum. O paradoxo relativo à antiguidade do homem moderno e à mocidade do
homem amigo não era novidade nos séculos XVI e XVII. Mas foi Francis Bacon quem fixou e
consagrou, em latim, essa ideia por meio da máxima “ancient times are theyouth of the worid”, ou
“as épocas antigas são a juventude do mundo”. (N. do T.)
48 “O homem parece poder chegar à perfeição.” Segundo a concepção de Leibniz, todo progresso
tende a Deus, isto é, ao Ser Infinito, fonte de todos os seres. Nessa cadeia universal, o homem
revela, de maneira singular, a perfectibilidade de todas as criaturas, uma vez que, por si próprio, é
altamente perfectível. Ver The Boston Quartely Review (v. 5,1842), digitalizado pelo Google. Acerca
do pensamento de Leibniz, ver verbete correspondente em Huismann (2001). Para análises mais
específicas de suas obras mais importantes, ver também Huismann (2003). (N. do T.)
302 Lições de história

Entretanto, foi preciso chegar a meados do século XV1I1 para ver estas
vagas noções de progresso, tão longamente incertas e discutidas, tomarem
corpo, erigirem-se em sistema e pretenderem constituir uma lei formal. A
honra dessa orientação decisiva pertence a Turgot, que, em dois discursos
pronunciados na Sorbonne (1750), teve o mérito de expor, com uma for­
ça e uma clareza soberanas, a evolução progressiva do gênero humano.49
Ele fez a aplicação dessa evolução a todo o desenvolvimento da história, a
todos os elementos da civilização (a palavra foi criada por ele). Adotando
essas largas perspectivas, Condorcet desenvolveu-as, exagerando-as.50 Her-
der extrai da ideia de progresso toda uma filosofia da história51 e Lessing
nela encontra até a revelação religiosa.52
A teoria de uma lei de progressão entrou, daí para frente, no domí­
nio das ideias gerais. Ela é ressaltada, com uma evidência crescente, pelo
estudo de todos os tipos de acontecimentos e, quanto mais conhecemos a
história, mais sua verdade se impõe. A ciência da humanidade deve buscar
nela seu coroamento e sua realização.

Necessidade racional do progresso

Independentemente da forma com que se queira definir a razão, só


é possível concebê-la como um princípio progressivo de atividade. Força
clarividente e orientadora em relação à qual os efeitos se acumulam, ela
possui como atributo um poder indefinido de crescimento. O homem,
seguindo uma tendência de se aperfeiçoar em tudo,53 aspira sem cessar
à realização, pelo exercício de suas faculdades de ação, da plenitude de
seu ser. Ele nada pode desejar, sentir, sonhar, pensar, querer e fazer que
não implique uma ideia de aperfeiçoamento e de progresso. Sob formas
e condições infinitamente diversas, ele procura constantemente o bem-
estar para praticar as suas atividades, a felicidade por suas afeições, a be-

49 História dos progressos sucessivos do espírito humano e Esboço dos dois discursos sobre a história.
50 Esboço dos progressos do espírito humano. Comte também havia repreendido Condorcet por
expressar em sua teoria do progresso preconceitos políticos típicos da cultura de seu tempo,
portanto indignos da filosofia positiva. (N. do T.)
51 Ideias sobre a filosofia da história.
52 Educação do gênero humano.
53 Aristóteles, Política.
Louis Bourdeau 303

leza pelas criações artísticas, a verdade pelas investigações das ciências, a


perfeição por suas regras de conduta, a justiça em suas relações sociais; e
quando, no lugar desses desejados bens, ele encontra, por engano ou má
sorte, a dor, o sofrimento, a torpeza, o erro, o mal ou a iniquidade, sua ra­
zão disso se aflige como de uma perda e não se resigna a suportá-los. Ele
situa seu alvo num ponto tão elevado que não saberia atingi-lo, e pode
somente reprovar-se por isso. Daí a imensidão de nossos desejos, em cho­
cante desproporção com pequenas e rápidas alegrias, nossos sonhos de
perfeição dos quais nenhuma obra exprime o ideal, a curiosidade sempre
insaciável de nossos espíritos e as ambiciosas visões de uma perfeição
impossível. Esses instintos desmedidos, essas pretensões excessivas que
se tomam por vezes como um sinal de miséria e enfermidade são, pelo
contrário, a força e a glória de nossa natureza, uma vocação permanente
para o progresso, uma promessa e uma garantia de grandeza. Essas vastas
necessidades incitam-nos a avanços intermináveis.
Guiando a nossa vida, a razão se aplica a ampliá-la em todos os
sentidos. Ela presta ao organismo o auxílio de luzes menos limitadas que
aquelas do instinto, e busca, por artifícios criativos, as satisfações que
a natureza tornará, a um só tempo, necessárias e difíceis. Ela controla
o desejo, desembaraça seus caminhos e o ajuda a conquistar, por sabe­
doria, um pouco de felicidade. Seu gosto delicado escolherá, entre rea­
lidades imperfeitas, os elementos dispersos da beleza, combinando-os
nas obras de acordo com um ideal superior. Ávida de saber os sentidos
das coisas, ela observa, reflete, descobre a verdade por graus, e elabora
uma ideia lógica do mundo. Ciosa de depender apenas de si mesma e
de se governar por suas próprias leis, a razão liberta pouco a pouco da
tirania que fazia pesar sobre ela as condições do meio e os acidentes da
fortuna. Enfim, ela retira os seres de seu isolamento e de sua fraqueza,
indicando-lhes funções em séries hierárquicas. Assim, sempre em luta
contra as dificuldades da existência, ela direciona seus esforços, utiliza
os recursos a seu alcance, aproveita as menores vantagens, encontra os
subterfúgios, contorna ou ultrapassa os obstáculos e extrai instrutivas
lições de seus próprios erros.
Desde que a razão se exerça, ela só pode vencer. Seguindo seu desen­
volvimento normal em uma existência humana, vemo-la em constante pro-
304 Lições de história

gresso.54 Ela se encontra mais bem informada e mais segura na adolescência


do que na infância, no homem maduro do que no jovem, no ancião do que
no homem feito. Então, mesmo que o corpo perca dia a dia o seu vigor, até
as proximidades da senilidade, a razão fortalece ainda suas bases de expe­
riência e de reflexão. Apesar do enfraquecimento que experimenta com o
declínio dos órgãos, mais do que à sua própria degeneração, ela triunfa, em
parte, das leis da evolução e se enriquece até o fim.
A sucessão desses progressos, circunscrita nos indivíduos pela brevi­
dade da vida, bem como pelas lacunas e contingências de toda natureza,
jamais alcança entre eles desenvolvimentos notáveis, e ninguém chega a
tocar os limites de sua perfectibilidade; mas, na espécie, na qual progressos
de todo gênero se transmitem e se acumulam, seu virtual crescimento é ver­
dadeiramente indefinido. Devido à solidariedade que une os homens entre
si, e à transmissão que dá continuidade às gerações, os avanços de cada
um são de proveito para todos, incorporando-se no património comum e,
uma vez adquiridos, não mais se perdem. Esta acumulação de progresso é
expressa pelo termo civilisation. A humanidade civiliza-se, isto é, aumenta
o seu bem-estar com o passar do tempo, os seus prazeres, as suas luzes,
o seu poder de ação, as suas relações sociais. É como um tesouro de vida
composto de tudo aquilo que o passado encontrou de melhor, tesouro cuja
riqueza está em proporção ao número de existências que contribuíram para
formá-lo, e cuja transmissão torna sempre mais considerável a influência
exercida pelos mortos sobre os vivos.55
Além disso, o progresso resulta no desenvolvimento das ações da es­
pécie. As faculdades humanas, fortalecidas e aprimoradas por sua própria
aplicação, ganham sem cessar em amplitude, em sutileza, em capacidade
de aperfeiçoamento. O cérebro, registro organizado das experiências, guar­
da a marca das impressões recebidas, modela-se a partir de sua atividade

54 Aqui o autor também se distancia um pouco das picadas abertas por seu tutor espiritual.
Com efeito, Comte pensava numa lei de perfectibilidade relativa da espécie humana. Os limites
da progressão se verificariam a partir do estabelecimento da sociedade positiva, retratada na
terceira parte de seu Curso. Ao que parece, Bourdeau acreditou numa progressão mais alargada.
(N. do T.)
55 Essa é praticamente uma paráfrase de Comte, que havia afirmado que, na história da huma­
nidade, os mortos eram bem mais numerosos do que os vivos. Por isso mesmo, a influência dos
primeiros era sempre tão decisiva. (N. do T.)
Louis Bourdeau 305

passada e funciona cada vez melhor, com maior liberdade de ação e natu­
ralidade. Os descendentes nascem mais produtivos, mais talentosos, mais
inteligentes, mais éticos e mais sociáveis do que o foram os predecessores.
A espécie humana obedece, portanto, à lei de um contínuo crescimen­
to, de um porvir sem final previsto. O progresso é a regra dos aperfeiçoa­
mentos da razão. Não que o progresso da razão seja a única regra admissí­
vel; na natureza, o progresso está por toda parte; mas em nenhuma outra
parte ele se revela com tanta grandeza e repercussão. O mundo psíquico o
realiza, apesar da cegueira de seus atores, por meio da infalibilidade de suas
leis; o mundo animado aspira por tais leis por meio de instintos incons­
cientes; apenas a humanidade as cumpre com inteligência e moto próprio.
O progresso está para a atividade da razão como a gravitação está para os
movimentos dos corpos; e, da mesma forma que, sob a influência de suas
mútuas atrações, os astros acabam por se situar em certa ordem descreven­
do determinadas órbitas, do mesmo modo os seres dotados de razão devem
progredir com o tempo e melhorar sua condição de vida. Longe de estar
em desacordo com a ordem da natureza, seus progressos se confirmam e se
completam. Seu princípio vincula-se à lei de viver56 que rege o conjunto do
mundo animado: “o verdadeiro estado de natureza, para todos os seres, é o
ponto mais elevado de desenvolvimento que se possa atingir”.57

56 Epicuro.
57 J--B. Say. Como se pode observar, para explicar as transformações que levam ao incremento
de progresso, o autor prefere referir-se à vida intelectual, a mesma regra utilizada por Comte.
(N. do T.)
Fustel de Coulanges
Temístocles Cézar

“A história não é um divertimento ou uma distração. Não é uma arte que


vise narrar com encanto. Não se assemelha nem à eloquência nem à poesia.
Também não é um ‘anexo’ da moral. A história é uma ciência pura, que visa
encontrar fatos, descobrir verdades.”
Fustel de Coulanges1

Fustel de Coulanges é o autor de A cidade antiga.2 Provavelmente, se fizés­


semos uma enquete entre os historiadores profissionais e estudantes de
história, esta seria a resposta majoritária à pergunta sobre quem foi Fustel
de Coulanges. De fato, ele é o primeiro historiador moderno cujo nome
vem à mente quando falamos da cidade antiga como uma sociedade no
interior da qual instituições funcionam e ideias circulam. Nós pensamos
nele, antes de todos, porque, ao escolher aquele título, Fustel marcou sua
dependência em relação ao maior intérprete antigo da cidade, Aristóteles,
mesmo que tenha tomado suas distâncias em relação ao filósofo grego,
pois, embora tenha colocado a cidade como centro de sua análise, trata-se
antes da cidade antiga, e não da cidade enquanto tal, nem mesmo particu­
larmente da cidade grega.3
Apesar do reconhecimento de A cidade antiga, Fustel de Coulanges
não foi somente um historiador do mundo antigo. Ele transitou da Grécia
à França e da Antiguidade à Idade Média e à moderna. Pesquisador eru­
dito, além da investigação do passado nas fontes antigas e nos arquivos,
também se dedicou à reflexão acerca do método do fazer histórico com tal

1 Apud Hartog (1988:356-357).


2 Coulanges, 1975 e 1984.
3 A base desse argumento encontra-se em Momigliano (1977:325-343).
308 Lições de história

empenho que, mais que uma simples preocupação, para ele isso tornou-se,
com o transcorrer do tempo, uma verdadeira ruminação ou mesmo uma
obsessão.4 Ou seja, Fustel de Coulanges também refletiu sobre a história,
suas possibilidades, seus limites, sobre o que ela deveria ser — uma ciência
— e o que ela não poderia ser — arte.
Quem foi, afinal, Fustel de Coulanges? Numa-Denis Fustel de Cou­
langes nasceu em Paris no dia 18 de março de 1830. Em 1850, ingressa na
prestigiosa Escola Normal Superior para estudar história, influenciado pelas
aulas do historiador François Guizot.5 Três anos depois, parte para a Escola
Francesa de Atenas, onde redige uma monografia sobre a ilha de Quio, em
que procura reconstituir a história das suas supostas origens à atualidade.6
Retoma para a França e assume, em 1855, o cargo de professor do liceu de
Amiens e, em seguida, do liceu Saint-Louis em Paris, onde fica de 1858 a
1860. Ainda em 1858, na capital francesa, defende suas teses de doutorado:
a latina, sobre o culto de Vesta,7 e a francesa, intitulada Políbio ou a Grécia
conquistada pelos romanos.6 Entre ambas é que se gesta A cidade antiga.9
Pouco tempo depois, em 1862, Fustel de Coulanges inicia sua carreira
de professor universitário na Faculdade de Estrasburgo. Sua aula inaugu­
ral, sobretudo o fragmento relativo à teoria histórica, encontra-se traduzida
neste capítulo. Em 28 de fevereiro de 1870, volta a Paris, nomeado mestre
de conferências na Escola Normal Superior em função, segundo ele expli­
ca, da “natureza de seu trabalho e seu gosto pela ciência pura”.10 No en­
tanto, não fica muito tempo na instituição, pois em 1875 assume a cátedra
de história antiga na Sorbonne e, três anos depois, a de história medieval,
na mesma instituição. Finalmente, em 1880, Fustel de Coulanges retorna
à Escola Normal para assumir sua direção, uma tarefa, segundo ele, árdua,
que exerce até 1883, quando retoma à Sorbonne. Doente, morre, aos 59
anos, no dia 12 de setembro de 1889.

4 Hartog, 1988:103.
5 Guiraud, 1896:2.
6 Ilha do mar Egeu, próxima à atual Turquia, que disputa, com outras cidades gregas, o privilé­
gio de ter sido o local de nascimento de Homero.
7 Qui Vestae cultus in institutis veterum privates publicisque valuerit? (1858).
8 Ver Coulanges (1893).
9 Hartog, 2001:34-39.
10 Ibid., p. 54.
Fustel de Coulanges 309

A historiografia francesa do século XIX, na qual se insere a obra de


Fustel de Coulanges, é herdeira crítica do movimento intelectual que a an­
tecede e que ficou conhecido como Iluminismo, ao qual o próprio conceito
de história não fica imune.11 Logo, o contexto historiográfico setecentista é
composto por uma série de disposições teóricas cujos efeitos disseminam-
se ao longo do século seguinte. Alguns são incorporados às novas tendên­
cias, outros se tornam pontos de tensão sem resolução ou querelas que
permanecem até hoje, quando não produzem rupturas epistemológicas;
outros desses efeitos simplesmente caem no esquecimento.
É importante frisar que o século XVIII não se caracteriza unicamente
pela consolidação das Luzes ou pelo esgotamento da querela entre os an­
tigos e os modernos.12 Nele também se assiste à “era dos antiquários”, que
marca não apenas uma mudança no gosto, mas uma “revolução” no méto­
do histórico, na medida em que a partir desta figura gêmea do historiador
— o antiquário — foram fixadas normas e colocados certos problemas
metodológicos fundamentais, entre os quais as questões dos documentos
(a distinção entre fontes primárias e secundárias, e a utilidade de testemu­
nhos não escritos, por exemplo), dos modelos narrativos da história (nesse
caso, da história antiga) ou, ainda, problemas teóricos como a distinção
entre a organização e a interpretação dos fatos.13
Neste sentido, em 1762, por exemplo, encontramos no Emílio de
Rousseau a seguinte afirmação: “Tucídides” — que será um modelo para os
historiadores científicos do século XIX — “é o verdadeiro modelo de his­
toriador”, pois ele “narra os fatos sem os julgar. Ele coloca tudo aquilo que
narra diante dos olhos do leitor; longe de se interpor entre os acontecimen­
tos e os leitores, ele se subtrai; acreditamos não mais ler, acreditamos ver”.
Já o “bom Heródoto, sem retratos, sem máximas, mas agradável, ingénuo,
pleno de detalhes capazes de interessar e de causar prazer, se esses mesmos
detalhes não degenerassem frequentemente em simplicidades pueris, mais
úteis para estragar a juventude do que para formá-la”, requer “discerni­
mento” para ser lido.14

11 Koselleck, 1997:15-119.
12 Sobre a querela, ver Fumaroli (2001:7-218); Kriegel (1996b:269-280).
13 Sobre essa questão, ver Momigliano (1983:244-293); Kriegel (1996b:221-264).
14 Rousseau, 1966:311.
310 Lições de história

Por outro lado, Gabriel Bonnot, o abade de Mably, em um estudo pu­


blicado em 1783, em que trata especificamente da escrita histórica, ressalta
a capacidade que a narrativa tucidiana tinha de transpor o passado para a
visão contemporânea, porém valorizando sua dimensão estética.15 Assim, ao
se dar conta do prazer que a leitura de certos discursos de determinados
historiadores lhe causavam, Mably faz um alerta epistemológico: “cuidado
para não se introduzir o romance na história”. Contudo, a parte ficcional
do texto histórico, responsável por essa repercussão prazerosa, não causaria
perturbações aos leitores, pois, além de tomar “a verdade mais agradável à
nossa razão”, ela “anima uma narração; nós esquecemos o historiador, e nos
encontramos em comércio com os maiores homens da Antiguidade, pene­
tramos seus segredos, e suas lições se gravam mais profundamente no nosso
espírito. Eu estou presente nas deliberações e em todos os negócios; não é
mais uma narrativa, é uma ação que se passa diante de meus olhos”.16 Logo,
>ara Mably não haverá história que seja ao mesmo tempo instrutiva e aprazí­
vel, sem uma narrativa que incorpore discursos produzidos pela imaginação
do historiador. Um dos seus exemplos é Tucídides: “tente suprimi-los de sua
obra e não terá mais do que uma história sem alma”.17 Tanto Rousseau quan­
to Mably chamam a atenção para um problema teórico cuja resolução se tor­
nará, ao longo do século XIX, fundamental para Fustel de Coulanges e para
a consolidação da história como ciência: uma narrativa objetiva e neutra. O
filtro científico segregará os textos marcados pela faculdade da imaginação,
desviando-a cada vez mais para o campo da literatura e das artes.18
É, porém, com a filosofia da história de Voltaire que se inaugura um
conjunto mais preciso de proposições que, de certa forma, prenuncia os

15 Mably, 1988.
16 Ibid., p. 323-324.
17 Ibid. Para Dionisio de Halicarnasso, “desse modo Tucídides violava os critérios, estabelecidos
por ele mesmo, para justificar a inclusão de discursos na sua própria obra” (apud Ginzburg,
2002:16).
18 Neste mesmo contexto, um pouco antes e na Alemanha, Johann Martin Chladenius publica
em 1752 Allgemeine Geschichtsmssenschaft (Ciência da história), um importante tratado sobre o
método histórico, no qual lança as bases de um modelo hermenêutico para uma historiografia
cujo curso do tempo estimula sua reescritura incessantemente e também para uma certa “rela­
tividade” das interpretações históricas. Ver Chladenius (1988).
Fustel de Coulanges 311

paradigmas da escrita que se impõem no século XIX.19 Já no seu Dicionário


filosófico, de 1764, ele deixa claro o que entende por história: “ela é a nar­
ração de fatos considerados verdadeiros, ao contrário da fábula, narração
de fatos considerados falsos”.20 Além disso, no mesmo verbete, Voltaire
preocupa-se particularmente com a maneira de se escrever a história. Em
primeiro lugar, não bastaria aos historiadores modernos imitarem os anti­
gos. O fardo que eles têm a suportar é muito mais pesado do que o era para
Tito Lívio, Tácito, Políbio — objeto de tese de Fustel de Coulanges — ou
Dionísio de Halicarnasso. Dos modernos são exigidos “mais detalhes, fatos
mais constatados, datas precisas, autoridades, mais atenção aos costumes,
às leis, aos usos, ao comércio, às finanças, à agricultura, à população”.
Diante dessas dificuldades, o método mais conveniente para se escrever
a história seria aquele que levasse em consideração certas diferenças. Por
exemplo, a maneira conveniente para se escrever a “história do seu país
não é própria para descrever as descobertas do Novo Mundo”, bem como
“não se deve escrever sobre uma aldeia como se escreve sobre um império
[...] não se pode escrever a história privada de um príncipe como se foss<
a da França e a da Inglaterra”. No entanto, embora, segundo Voltaire, essa.
regras sejam bem conhecidas, “a arte de bem escrever a história sempre
será rara. Sabe-se que é necessário um estilo grave, puro, variado, agra­
dável. Existem leis para escrever a história como há para todas as artes do
espírito; como nessas, há muitos preceitos e poucos grandes artistas”.21
Essa concepção mais formal de história presente no Dicionário rela­
ciona-se à ideia de que a narrativa histórica deve preocupar-se menos com
as revoluções do trono do que com o destino dos homens. “O objetivo
deste trabalho”, lemos na introdução do Essai sur les moeurs, “não é saber
em qual ano um príncipe indigno de ser conhecido sucedeu a um príncipe
bárbaro de uma nação grosseira”; é ao “espírito, aos costumes”, enfim, ao
“gênero humano que é necessário prestar atenção na história”.22 À busca
dos costumes, tema central na história voltairiana, corresponde a tentativa

19 A expressão filosofia da história surge em 1765, quando Voltaire, sob o pseudónimo de abade
Bazin, publica em Amsterdã La philosophie de 1’histoire (ver Voltaire, 1963). Em 1774, Herder pu­
blica a crítica à filosofia voltairiana em Auch eine philosophie der geschichte (ver Herder, 1992).
20 Voltaire, 1829:191-192.
21 lbid., p. 220-223.
22 Apud Kriegel (1996a:289).
312 Lições de historia

de recuperar o passado dos povos, da civilização e da cultura. Para Voltaire,


entretanto, as nações não são iguais: as melhores, tais como as opiniões,
são aquelas que fazem progredir a razão. Voltaire situa-se, assim, próximo
daqueles que (como Condorcet, Turgot e Lessing) estabelecem as premis­
sas da ideologia do progresso e do conceito de civilização, noções funda­
mentais para a maior parte das correntes historiográficas do século XIX.
Contudo, é preciso ressaltar que, ao operar uma divisão entre civilização e
barbárie, e, no homem, a separação entre paixão e razão, Voltaire condena
à irracionalidade uma parte da história dos homens e das sociedades.23 Os
historiadores cientistas do século XIX, mas não só eles, se fazem herdeiros
dessa história filosófica. Seus modelos narrativos são influenciados, direta
ou indiretamente, por esse indiscutível alargamento do campo historiográ-
fico que aprofunda a reflexão sobre o próprio sentido da história.24
A consolidação do paradigma científico no século XIX, no entanto,
não ocorreu de modo rápido, muito menos consensual. Assim, por um
lado, não é difícil traçar um paralelo entre o que disse Luciano,25 em 165
da nossa era, e o postulado definido por Ranke, em 1824, aquele que
instruía o historiador a “mostrar como algo realmente aconteceu” (wie
es eigentlich gewesen), ou mesmo trabalhos como os de W. Humboldt,
Fustel de Coulanges, G. Monod, C. V Langlois e C. Seignobos, cujas
obras tornaram-se referências para a definição de uma história científica
(sobretudo o levantamento exaustivo de fontes e um texto objetivo). Por
outro lado, é preciso considerar que as regras e princípios metodológi­
cos que vinham sendo estabelecidos por uma disciplina que tentava se
instaurar não eram seguidos incondicionalmente.26 A vitória da ciência

23 Kriegel, 1996a:298.
24 A influência de Voltaire não se limita ao século XIX. Kriegel (1996a:292-293) chega a falar
que suas concepções equivalem “quase” ao programa dos Annales. Jacques Le Goff (1988:47-
48) confirma esta impressão ao colocar Voltaire como um dos pais da nouvellc histoire francesa,
representada pelas diversas gerações dos Annales.
25 Escreve Luciano (2001): “portanto, assim deve ser para mim o historiador: sem medo, incorrup­
tível, livre, amigo da franqueza e da verdade; como diz o poeta cómico, alguém que chame os figos
de figos e a gamela de gamela; alguém que não admita nem omita nada por ódio ou por amizade;
que a ninguém poupe, nem respeite, nem humilhe; que seja juiz equânime, benevolente com
todos até o ponto de não dar a um mais que o devido; estrangeiro nos livros, apátrida, autónomo,
sem rei, não se preocupando com o que achará este ou aquele, mas dizendo o que se passou".
26 Ranke, 1824; Humboldt, 1985; Humboldt, 1988; Langlois e Seignobos, 1992.
Fustel de Coulanges 313

foi precedida por inúmeras controvérsias, entre as quais se destacam as


formas de narrar a história.
Já no início do século XIX, a conjuntura historiográfica depara-se com
o romantismo e com o romance histórico. Walter Scott (1771-1832), René
Chateaubriand (1768-1848), Augustin Thierry (1793-1836), Prosper Ba-
rante (1782-1866) e Victor Cousin (1792-1867) são referências impor­
tantes desse movimento que, eventualmente, é denominado narrativista.
A busca pela exatidão, sem abrir mão de recursos narrativos caros aos gê­
neros ficcionais de outrora, pode servir de fio condutor para aquilo que
Mareei Gauchet chamou de “unificação da ciência histórica”, que ocorre
na primeira metade do Oitocentos.27 Pode-se dizer que historiadores, ro­
mancistas e poetas procuram, nesse período, inscrever-se em um mesmo
quadro, ou seja, aquele da pesquisa das origens, em virtude das quais cada
coisa deve ser recolocada em seu lugar.28
Paralelamente aos trabalhos dos historiadores narrativistas seguem
a passos largos aqueles que, herdeiros, porém críticos, da filosofia da
história do século XVIII, preocupam-se em conferir à história graus de
cientificidade. No entanto, ao analisarmos mais detidamente as obras de
alguns autores envolvidos nesse debate, notaremos que se trata antes de
ensaios que procuram normatizar ou estabelecer uma narrativa científica
do que propriamente uma afirmação do gênero. Não é incorreto começar
a genealogia desse tipo de investigação com Wilhelm von Humboldt.
Em 1821, ele publica um estudo onde discute o papel do historiador,
considerado por certos comentadores como o “texto fundador da história
científica”, isto é, “o primeiro trabalho teórico consequente para subtrair
o conhecimento histórico à filosofia da história, a fim de constituí-lo
como disciplina autónoma e instituir uma nova relação entre história e a
própria filosofia”.29 A primeira tarefa do historiador é “expor aquilo que
aconteceu”.30 Eco de Luciano e prenúncio de Ranke, essa fórmula traz
consigo proposições inovadoras: expor é narrar os acontecimentos que
se passaram. Assim, o que aconteceu é um dado da realidade, é o caráter
objetivo do discurso histórico, que é, entretanto, reconstruído pela sub-

27 Gauchet, 2002:9-38.
28 Flickinger, 1995:6.
29 Quillien, 1985:10.
30 Humboldt, 1985:67.
314 Lições de história

jetividade do historiador. Nesse sentido, as atividades do historiador e


do poeta são “incontestavelmente aparentadas”: tal como este, aquele se
serve da imaginação. Ou seja, o recurso que auxilia o historiador a arti­
cular os elementos de sua narrativa com o objetivo de atingir a verdade
histórica do que se passou é a imaginação. Humboldt reconhece os perigos
dessa aproximação e responde a uma possível objeção explicando que a
diferença é que a faculdade imaginativa está subordinada à experiência e à
investigação da realidade.31 Controlada, a imaginação não age livremente e
se transforma em “intuição” e “talento de coordenação”. Finalmente, para
se aproximar da verdade histórica é necessário um tipo de narrativa que
seja o produto de “investigação rigorosa, imparcial e crítica daquilo que
se passou, e a síntese do campo explorado, a intuição de tudo aquilo que
não se deixa apreender de outra maneira”.32 O historiador que atingir esse
ponto consegue “emocionar a alma, como a própria realidade o faria”.33
Por outro lado, o historiador deve narrar os acontecimentos como
parte de um todo, ou, o que seria para Humboldt a mesma coisa, expor
através de cada um deles a forma da história em geral.34 A ideia que con­
duz a esse tipo de reflexão parte da crítica à filosofia da história. Humboldt
considera o homem como um todo, e não apenas como um ser dotado
unicamente de razão. A humanidade, para ele, faz livremente sua própria
história, e não está necessariamente submetida a um pré-projeto assinado
pela razão. A história é um lugar de abertura das potencialidades presentes
na espécie humana. Esse deslocamento consiste em substituir a filosofia
da história, a pesquisa de causas finais, por uma física da história, isto é,
a pesquisa de “causas motoras”, causas verdadeiramente ativas, que nem
sempre estão ao alcance dos julgamentos de valor ou explicações racionais.
Assim sendo, para Humboldt, a fidelidade histórica é mais ameaçada pela
filosofia do que pela poética, mais acostumada a deixar ao material huma­
no sua liberdade.35

31 Humboldt, 1985:68-69.
32 Ibid., p. 69.
33 Ibid., p. 71.
34 Ibid., p. 72.
35 Ibid., p. 77.
Fustel de Coulanges 315

Essa primeira noção de história científica é ainda marcada pela disputa


entre vários campos de conhecimento, especialmente, as artes, a literatura,
a história e a filosofia. Não há nesse início, decididamente arbitrário, de ge­
nealogia rumo à ciência, vias expressas e destinos inexoráveis. A exclusão
da narrativa histórica dos domínios e injunções provenientes dos saberes
que lidam com a imaginação, com a subjetividade e com o ficcional não
era uma condição predeterminada; trata-se, acima de tudo, de uma opção
epistemológica.
Ao trabalho seminal de Humboldt sucedem-se outros que procuram
estabelecer as bases de uma narrativa histórica de caráter científico. Seria
impossível, nos limites deste texto, reproduzir a análise de todos aqueles
que se preocuparam com a narrativa histórica como um problema teórico
durante o século XIX: Ranke, Droysen (1983, 2002), com certeza, e, na
paisagem francesa, Fustel de Coulanges, que por sinal não tinha grande
admiração pelos alemães.36
Os primeiros ensaios alemães, sempre citados como marcos da histó­
ria científica, tiveram seus correspondentes mais atuantes entre os france­
ses. Entre esses, Fustel de Coulanges se destaca por reivindicar de modo
categórico a condição de ciência para a história. Na sua aula inaugural na
Faculdade de Estrasburgo, em 1862, cujo texto compõe esta antologia,
Fustel de Coulanges declara: “gostaria que fosse bem entendido que a his­
tória não é um passatempo, que ela não é feita somente para ocupar nossa
curiosidade e para preencher as casas de nossa memória. Ela é e deve ser
uma ciência”.37
O fundamento metodológico dessa concepção encontra-se na noção
de documento histórico: “a única habilidade” [do historiador], escreve
Fustel, “consiste em retirar dos documentos tudo aquilo que eles contêm
e de nada acrescentar-lhes”.38 Diferentemente da química, onde a experi­
mentação não apenas é permitida, mas requerida, ou da geometria, que é
uma ciência da dedução, Fustel de Coulanges apoia seu pressuposto epis-

36 Graceffa, 2008:94-96; Garcia, 1999:72-73.


37 Coulanges, 1901:243.
38 Coulanges, 1888:33.
316 Lições de história

temológico na comparação com a geologia, que, como a história, é uma


ciência da observação. O historiador-observador tem assim por tarefa, ex­
plica François Hartog, dissimular as ilusões e seus efeitos perniciosos sobre
o presente. Por outro lado, a condição “presentista” do historiador deve,
na metodologia fusteliana, ser não apenas recusada, mas esquecida: quanto
mais o presente é negado, mais o historiador aperfeiçoa seu método; com
efeito, para ver os fatos é preciso começar pelo fechamento dos olhos sobre
o presente. Dessa forma, a história poderia se tornar uma “ciência pura”.39
No outro texto, também aqui reproduzido, ele complementa essas
proposições com apelos à imparcialidade do historiador e ao abandono
das ideias preconcebidas e de “toda maneira de pensar que seja subjetiva”.
Essa era uma das críticas que fazia ao que chamava de método subjetivo
de Monod, que consistiria em “colocar suas ideias pessoais no estudo dos
textos e neles descobrir a cor e os sentidos que o espírito gostaria que eles
tivessem”.40
O melhor historiador é, portanto, aquele que mais consegue se abs­
trair dele mesmo, de suas opiniões pessoais e de seu próprio tempo.41 In­
fere-se a partir de tais considerações que a narrativa histórica deva ser um
reflexo dessa objetividade e isenção. François Hartog explica que, apesar
de tudo, o historiador fusteliano é um leitor, mas um leitor que se acredita
neutro, que “lê seus textos e vê seus fatos, pois ler é ver: o melhor historia­
dor sendo aquele que vê mais profundamente, mais exatamente”. Por con­
seguinte, entre o observador e aquilo que se observa, a relação se desdobra
Elí “no espaço asséptico da leitura fiel”.42 No entanto, a transição dessa leitura
historiadora para o texto deve manter e ratificar o afastamento entre o histo­
riador e seu objeto. Com efeito, se o historiador escreve, de modo nenhum
ele pode ou deve ser um escritor. Contudo, paradoxalmente, Fustel foi
reconhecido também pelo seu talento como autor, como literato, condição
que ele procurava relativizar com insistência: “eu lhes peço que, quando
escreverem alguma coisa sobre mim, não empreguem a palavra talento e

39 Hartog, 2005:147-151.
40 Coulanges, 1888:32.
41 Coulanges, 1997:282-284.
42 Hartog, 2001:152-153.
Fustel de Coulanges 317

nenhuma outra parecida; eu sou um simples trabalhador, um puro pesqui­


sador”.43 Reconhecer sua capacidade literária poderia colocar em risco seu
projeto historiográfico. Parecia mais prudente negá-la.
Fustel de Coulanges foi um dos grandes historiadores do século XIX.
Ele viveu a história como a sua vida — como muitos outros historiadores
profissionais de então — e com intensidade procurou consolidá-la como
disciplina científica. Nesse sentido, buscou incessantemente construir para
si a imagem de homem de ciência, o que não o impediu de ter posições po­
líticas e que sua obra tenha sido usada para fins políticos.44 Afinal, mesmo
que negue, a historiografia oitocentista é uma historiografia militante, que
escrevia a história em nome do futuro, e náo do presente: escrevia em nome
da nação, ou de um ponto de vista nacional.

Aula inaugural do curso de história da


Faculdade de Estrasburgo (1862)45

A história: ciência do homem

Parece-me, com efeito, que a história somente cumpre seu objetivo na


condição de abranger uma série longa de séculos. Se limitarmos seu estudo
a uma época restrita, poder-se-á fazer uma narrativa repleta de anedotas e
de detalhes que satisfarão a curiosidade de uma maneira divertida; será um
belo quadro, uma narração plena de charme; porém, tenho certa dificulda­
de para me persuadir que isto seja verdadeiramente história.
Eu gostaria, senhores, que ficasse bem entendido que a história não é
um passatempo, que ela não é feita somente para ocupar nossa curiosidade
e para preencher as casas de nossa memória.

43 Hartog, 2001:158-159.
44 Sobre o uso político da obra de Fustel de Coulanges por Charles Maurras e o movimento de
direita francês chamado Ação Francesa, ver Hartog (2001:175-195) e Valenti (2006:49-64).
45 Coulanges, 1901:243-245. Tanto para este quanto para o texto seguinte, foram selecionadas
as partes relativas à teoria e à metodologia da história, conforme sugestão que se encontra na
coletânea da historiadora francesa S.-A. Leterrier (1997).
318 Lições de história

Ela é e deve ser uma ciência. Seu objeto é seguramente um dos mais
belos que podem ser propostos ao trabalho do próprio homem, que, para
ser conhecido por inteiro, exige-lhe diversas ciências: o fisiologista estuda
seu corpo; o psicólogo e o historiador dividem-se no estudo de sua alma, o
primeiro constata o que nela há de imutável, sua natureza, suas faculdades,
sua força intelectual, sua consciência, o segundo observa aquilo que muda
e aquilo que é móvel nessa alma, as crenças, o movimento e a sucessão das
ideias, e tudo aquilo que se transforma com as ideias, quer dizer, as leis, as
instituições, a arte, a ciência.
[...] O homem não é hoje aquilo que foi há 3 mil anos, ele não pensa
mais aquilo que pensava então e não vive mais como vivia. Segue-se daí
que, para conhecer completamente esta natureza variável e perfectível, é
necessário tê-la observado em todos os períodos de sua existência; podem-
se estudar os outros seres pela simples observação; o homem somente pode
ser conhecido pela história.
Mas a história assim proposta não pode se contentar em examinar, em
detalhe, uma única época, em contar uma biografia brilhante, em escolher,
enfim, entre os eventos aqueles cuja exposição nos agradará ou nos tocará
mais. Ela tem necessidade de remontar à Antiguidade, de conhecer as insti­
tuições dos povos que não existem mais, de reavivar pelo sopro estas velhas
gerações que não são mais nem poeira. Onde os monumentos escritos lhe
faltam, é preciso que ela solicite às línguas mortas seus segredos, e que em
suas formas e em suas próprias palavras adivinhe os pensamentos dos ho­
mens que as pronunciaram. É fundamental escrutar as fábulas, os mitos, os
sonhos da imaginação, todas estas velhas falsidades sob as quais ela deve
descobrir alguma coisa de muito real: as crenças humanas. Onde o homem
passou, onde deixou algum frágil vestígio de sua vida e de sua inteligência,
aqui está a história. Ela deve abraçar todos os séculos, posto que é o livro
tradicional onde a alma humana inscreve suas variações e seus progressos.

Regras de uma história imparcial46

Seja qual for a insuficiência de documentos, é talvez em nós mesmos


que devemos procurar a principal causa dos nossos erros ou ideias inexatas

46 Coulanges, 1997.
Fustel de Coulanges 319

que fazemos da história antiga de Roma. As antigas sociedades tinham usos,


crenças, uma maneira de ser que em nada parecem com os nossos usos,
nossas crenças, a nossa maneira de pensar. Ora, é comum que o homem
somente julgue os outros segundo julgaria a si mesmo. Desde que se estuda
a história romana, cada geração a julgou segundo ela mesma. Há 300 anos,
representavam-se os cônsules de modo parecido, pela natureza de seu poder,
aos príncipes que reinavam na Europa. No século XVIII, quando os filósofos
estavam inclinados a negar o valor do fato psicológico que chamamos de
sentimento religioso, acreditava-se de bom grado que a religião romana não
passaria de uma bem-sucedida impostura dos homens de Estado. Após as
lutas da Revolução Francesa, pensamos que nossa experiência das guerras
civis nos tomaria mais fácil a noção das revoluções de Roma; o espírito dos
historiadores modernos foi dominado por esta ideia de que a história interior
de Roma devia ser parecida com aquela da Europa e da França; que a plebe
seria a comuna da Idade Média, como o patriciado seria a nobreza; que o
tribunal do povo seria a representação de uma democracia análoga àquela
que encontramos em nossa história; que os Gracos, Mários, Saturninos ou
mesmo Catilina pareceriam com nossos reformadores, como César e Augus­
to com os imperadores deste século.
De onde se segue uma perpétua ilusão. O perigo não seria grande, se se
tratasse para a ciência histórica apenas de esclarecer a continuação das guer­
ras ou a cronologia dos cônsules. Mas a história deve terminar por conhecer
as instituições, as crenças, os costumes, a vida inteira de uma sociedade,
sua maneira de pensar, os interesses que a agitam, as ideias que as dirigem.
É acerca de todos esses pontos que nossa vista encontra-se perturbada pela
preocupação do presente. Nós seremos sempre impotentes para compreen­
der os antigos, se continuarmos a estudá-los pensando em nós mesmos. De­
vemos observá-los, em si mesmos, sem nenhuma comparação conosco.
A primeira regra que devemos nos impor é, portanto, afastar toda
ideia preconcebida, toda maneira de pensar subjetiva: coisa difícil, desejo
que, talvez, seja impossível de se realizar completamente; porém, quanto
mais nos aproximarmos deste objetivo, mais nos poderemos esperar co­
nhecer e compreender os antigos. O melhor historiador da Antiguidade
será aquele que melhor conseguir abstrair-se de si mesmo, de suas ideias
pessoais e das ideias de seu tempo, para estudar a Antiguidade.47

47 Montesquieu, Considérations sur les Romains, p. XI.


320 Lições de história

Para chegar lá, a condição é manter nosso espírito e nossos olhos


igualmente presos aos textos antigos. Estudar a história de uma antiga so­
ciedade nos livros modernos, por mais notáveis que sejam vários desses
livros pelo talento e pela erudição, é sempre expor-se a fazer uma ideia ine­
xata da Antiguidade. É necessário ler os documentos antigos, lê-los todos, e
se não ousamos dizer ler somente eles, ao menos apenas a eles atribuir uma
confiança plena. Não lê-los rapidamente, mas com uma atenção escrupu­
losa, procurando em cada palavra o sentido que a língua do tempo atribuía
a cada palavra, em cada frase do pensamento do autor.
É preciso dizer como Descartes: o método histórico assemelha-se ao
menos em um ponto ao método filosófico: nós devemos acreditar apenas
naquilo que é demonstrado.
Ora, quando se trata dos antigos, não há conjuntura nem sistema
moderno que possa nos demonstrar uma verdade. As únicas provas vêm
dos próprios antigos. Os modernos podem, às vezes, nos servir de apoio; ou
estamos felizes de poder dizer que nos encontramos com grandes espíritos
e sábios como Niebuhr, Mommsen etc.; ou estamos infelizes por declarar
que nos descartamos deles; mas não importa, é preciso dizer desses eruditos
aquilo que Descartes dizia de seus mestres: “a convicção não se forma pela
fala do mestre, mas pelos documentos”.
Mas como ler os autores latinos? Muitos, quando leem Tito Lívio,
recortam pelo pensamento tudo aquilo que toca na religião, tudo aquilo
que tem relação com a superstição romana. O historiador coloca na boca
de um personagem que os auspícios são propícios ou contrários, que os
deuses estão irritados ou apaziguados, que os prodígios anunciam revés ou
sucesso, isso parece um artifício retórico. Isso procede de um método ina­
dequado. Se Tito Lívio dá tanto lugar às crenças e às superstições romanas,
nós devemos acreditar, até prova em contrário, que essas crenças eram reais
e que essas superstições eram poderosas no espírito dos romanos.
É preciso tomar à letra os textos antigos, o máximo possível. Se Tito Lívio
narra o milagre do áugure Névio, nós somos obrigados a acreditar não que o
milagre foi operado, mas que contemporâneos e todas as gerações seguintes
acreditaram nele, e isto é um fato histórico de grande consequência.48

48 Tito Lívio relata que Tarquínio, o Antigo, quinto rei romano e primeiro etrusco, em guerra
com os sabinos, indaga ao áugure Attus Navius o que fazer antes de organizar sua tropa. Este
Fustel de Coulanges 321

Quando, em outro lugar, Tito Lívio faz um general romano dizer em


um longo discurso que os deuses estão irritados contra um inimigo que
negligenciou ou violou uma lei religiosa, não diremos que Tito Lívio ima­
ginou esse discurso para embelezar um relato e fazer brilhar seu talento de
orador; nós devemos crer, salvo prova do contrário, que nesse discurso ele
reproduziu os pensamentos que eram ordinários no tempo do qual fala, e
que nisso faz ainda obra de historiador exato.
Aquilo que chamamos de espírito crítico, depois de 150 anos, foi
muito frequentemente um hábito de julgar os fatos antigos do ponto de
vista da probabilidade, isto é, do ponto de vista de sua concordância com
aquilo que nós julgamos possível ou verossímil. Concebido desta forma, o
espírito crítico não era muito mais que o ponto de vista pessoal e moderno,
substituindo-se à visão real do passado. Aplica-se assim à história o método
que convém à filosofia; julga-se segundo a consciência e a lógica das coisas,
que não eram feitas nem seguiam a lógica absoluta, nem seguiam os hábitos
da consciência moderna.
Aplicado à história, espírito crítico consiste, ao contrário, em deixar
de lado a lógica absoluta e as concepções intelectuais do presente; consiste
em tomar os textos tais como foram escritos, no sentido próprio e literal,
em interpretá-los de modo mais simples possível, em admiti-los ingenua­
mente, sem nos metermos muito. O fundo do espírito crítico, quando se
trata da história do passado, é acreditar nos antigos.
Quando eu leio os trabalhos dos modernos sobre a Antiguidade,
meu primeiro movimento, confesso, é duvidar, porque eu reconheço, com
frequência, pensamentos modernos. Porém, quando leio os antigos, meu

audaciosamente responde que, nesta matéria, nada se podia mudar nem acrescentar sem obter
a sanção dos auspícios. O rei sentiu-se agastado com a ousadia do sacerdote; e relatam que,
em escárnio pela sua ciência, lhe disse: “olha lá, adivinho, consulta entào os teus presságios e
diz-me se o que eu agora estou a pensar é possível de ser feito”. O adivinho interrogou os pres­
ságios, que lhe teriam respondido que sim. “Muito bem! — exclama o rei — Pensei eu que tu
havias de cortar esta pedra com uma navalha. Pega pois nela e faz o que essas aves te declaram
ser possível.” Então, sem sequer hesitar, Nevius, ao que dizem, cortou a pedra. A estátua deste
Attus, representando-o de cabeça coberta, erguia-se no mesmo local onde o sucesso se deu,
sobre os degraus, à esquerda, da cúria do Senado. Diz-se que também a pedra ali foi colocada,
na intenção de perpetuamente consagrar a memória deste prodígio. O certo é que a partir de
entào os áugures adquiriram tal crédito, e o seu sacerdócio tanta consideração, que nada mais
se ousou empreender, nem na guerra nem na paz, sem previamente consultá-los. Ver Tito Lívio,
História romana, 1, 36.
322 Lições de história

primeiro movimento é crer, e acredito tanto mais quanto suas ideias são
distantes das minhas.

A compreensão retrospectiva

A história não resolve as questões: ela nos ensina a examiná-las. Ela


nos instrui ao menos que é preciso empregar um meio para observar os
fatos humanos. O olhar que lançamos sobre as coisas presentes é sempre
turvado por algum interesse pessoal, algum preconceito ou alguma paixão.
Ver exatamente é quase impossível. Se, ao contrário, trata-se do passado,
nosso olhar é mais calmo e mais seguro. Nós compreendemos melhor acon­
tecimentos e revoluções em relação às quais nada temos a temer ou esperar.
Os fatos terminados apresentam-se a nós com mais clareza que aqueles em
via de se concluir. Neles vemos o começo e o fim, a causa e os efeitos, todos
os detalhes. Nós distinguimos neles o essencial do acessório. Apreendemos
o caminho, a direção e o verdadeiro sentido. Enquanto eles se realizavam,
os homens não os compreendiam; eles estavam confusos, misturados a ele­
mentos estranhos, obscurecidos por acidentes efémeros. Há sempre nos
eventos humanos uma parte que é apenas exterior e aparente; é comum
que essa parte impressione mais os olhos dos contemporâneos. É raro tam­
bém que um grande fato tenha sido realizado por aqueles mesmos que
trabalharam para produzi-los. Quase sempre cada geração engana-se sobre
seus feitos. Ela agiu sem saber claramente aquilo que fazia. Acreditava visar
um objetivo e atingiu outro. Parece que está acima das forças do espírito
humano ter a intuição clara do presente. O estudo da história deve ter ao
menos esta vantagem de nos acostumar a distinguir nos fatos e na marcha
das sociedades aquilo que é aparente daquilo que é real, aquilo que é ilusão
dos contemporâneos daquilo que é verdadeiro.
Gabriel Monod
Teresa Malatian

“Nosso século é o século da história.” A frase otimista e de efeito inserida


no manifesto de fundação da Revue Historique condensa as preocupações
e o direcionamento da vida desse historiador, considerado um dos marcos
da historiografia do século XIX, na proposta de um procedimento meto­
dológico claramente voltado para a inclusão da disciplina no campo cien­
tífico marcado pelo positivismo. Gabriel Monod (1844-1912) lançava-se
para a consagração como intelectual ainda muito jovem, aos 32 anos de
idade, na sequência de um percurso promissor iniciado na École Normale
Supérieure.
Nascido em uma família de comerciantes da Normandia, neto de pasto­
res protestantes, cresceu em ambiente propício à vida intelectual, prolonga­
do pelos estudos em Paris, onde frequentou círculos liberais e protestantes.
Essa formação seria completada com cursos de paleografia seguidos na Ale­
manha, em 1865/1866, onde viveu também a decepção com Berlim e sua
atmosfera intelectual, à qual não conseguiu adaptar-se.
Grandes eventos marcaram sua vida, em especial a Guerra Franco-
Prussiana (1870/1871),1 na qual se engajou como enfermeiro, imbuído

1 Envolveu a França e os Estados germânicos encabeçados pela Prússia. Ocorreu no contexto


da unificação do império alemão, liderada pelo chanceler Otto von Bismarck e visou à incorpo-
324 Lições de historia

do forte sentimento nacionalista que o acompanhou ao longo da vida. A


repulsa ao militarismo do império alemão, vitorioso e expansionista com
a anexação da Alsácia-Lorena, resultou na escrita do livro Alemães e fran­
ceses.2 Na denúncia do chauvinismo e na recusa à violência firmava sua
posição pacifista.
A derrota da França na guerra, porém, não abalou sua admiração
pelo desenvolvimento científico e cultural da Alemanha, que tinha como
paradigma. Separava os dois aspectos: a política militarista de Bismarck e
a sedução intelectual pela cultura germânica, partilhada por intelectuais
franceses contemporâneos, postura que lhe valeu ser conhecido como
germanófilo e atraiu-lhe a antipatia do nacionalismo francês extrema­
do, catalisado por Charles Maurras e pelo movimento radical da Action
Française.
Seu brilhantismo crescente resultou na distinção profissional. Tornou-
se diretor de estudos e logo presidente da 1V.C section da École Pratique des
Hautes Études, professor da École Normale Supérieure (1880), da Faculdade
de Letras de Paris (1904) e membro da Academia de Ciências Morais e Po­
líticas (1897). A máxima consagração veio com o Collège de France (1906),
local de enorme prestígio intelectual, ápice de sua carreira, onde ocupou a
cadeira de história geral e método histórico.
Na École des Chartes, consagrada instituição de exame e leitura crítica
de textos antigos, seguiu cursos como ouvinte e ali desenvolveu sociabili­
dades que teriam um papel preponderante em sua inserção no campo in­
telectual e político da Terceira República (1870-1940). Sob o selo da École
publicaram-se importantes estudos históricos, críticas de fontes e resenhas
de livros (Bibliothèque de 1’École des Chartes — BEC). Por esse ambiente de
estudos também ficaria marcada a formação de Monod.
Era de fato o século da história, cuja inserção no campo da ciência vi­
nha sendo almejada por historiadores imbuídos do cientificismo e ampara­
da pela participação do Estado na construção de instituições favoráveis ao
desenvolvimento do ofício do historiador que então se profissionalizava:

ração de territórios franceses a esse novo Estado. Após a derrota de Sedan, o imperador Napo-
leào 111 foi feito prisioneiro, gerando-se assim condições para a proclamação da Terceira Repú­
blica francesa.
2 Monod, 1872.
Gabriel Monod 325

bibliotecas, arquivos, museus, patrocínio para publicação de grandes co­


leções. Ampliava-se também um público consumidor de história, no con­
texto nacionalista e de expansão colonial dominado pela burguesia. Isso foi
particularmente válido para a Alemanha, onde já se instituíra uma forma­
ção específica e especializada do profissional da história e os métodos de
investigação estavam adiantados na heurística e publicação de coleções de
fontes documentais.
A inserção de Monod nesse ambiente favorável aos estudos históricos
logo daria seus resultados. Em 1876 ele lançou a revista que o consagraria
como chefe de escola historiográfica. Com um texto-manifesto intitulado
Do progresso dos estudos históricos na França desde o século XVI3 (reproduzido
na íntegra mais adiante, excetuando-se as notas de erudição), inaugurava a
Revue Historique, que se definia tanto pela oposição à já antiga de nove anos
Revue des Questions Historiques quanto pela afirmação de uma concepção
metodológica adequada às pretensões cientificistas da disciplina então em
voga: o estudo imparcial e simpático do passado. Portanto, uma revista
destinada ao combate pela modernização ou atualização da disciplina aos
paradigmas vigentes no campo da ciência positiva.
Ao se posicionar contra a Revue des Questions Historiques, a Revue His­
torique demarcava para si um território republicano e laico, porém atento
à preservação da pesquisa histórica desinteressada e científica. Na impos­
sibilidade de inaugurar um marco zero, Monod reconheceu ter nela se
inspirado ao formatar sua revista, imitando-a para melhor conhecê-la.
Por outro lado, não bastava ser contrário a um campo historiográfico,
era preciso firmar posição por meio de uma proposta efetiva que indivi­
dualizasse e distinguisse o grupo articulado por Monod e Gustave Fagniez.4
Tratava-se de reunir e dar identidade a vozes discordantes, não articuladas
em torno de um programa, porém inspiradas em Taine e Renan, que fize­
ram trabalhos de crítica histórica e apostaram no papel da dúvida cética
para a eficácia do trabalho do historiador. O papel de seus maítres à penser,
Renan, Taine e Michelet, seria explicitado posteriormente por Monod ao

3 O manifesto foi republicado na íntegra pela revista em 1978 (v. 17, n. 518).
4 Gustave Fagniez (1842-1927), um dos fundadores da Revue Historique, formou-se na École
des Chartes e seguiu cursos de Monod na École des Hautes Études. Tornou-se especialista em
história medieval e moderna e trabalhou como arquivista.
326 Lições de historia

atribuir-lhes a responsabilidade pelo essencial da obra historiográfica da


França no século XIX. Renan, pelas lições de método crítico; Taine, pela
tentativa filosófica de fazer da história uma ciência; Michelet, por deter
o segredo criador da visão e da ressurreição do passado.5 Ali claramente
expôs uma concepção de história, devedora dos três historiadores. A dis­
ciplina teria por objetivos criticar as tradições, os documentos e os fatos;
desprender a filosofia das ações humanas, descobrindo as leis científicas
que as regem; dar vida ao passado. Com isso a perspectiva aberta em 1876
consolidava-se, depurava-se.
Para bem alcançar a objetividade histórica em seu manifesto Monod
propunha uma revista que deveria colocar-se acima dos partidos políticos,
publicando estudos históricos sem preconceitos, conciliadores e estrita­
mente norteados pelo desejo de conhecimento científico. Neste aspecto,
evelava sobretudo seu descontentamento com o enfoque monarquista e
atólico da Revue des Questions Historiques, constituída como oponente.
A primeira característica comum aos membros do grupo reunido por
Monod e tidos como padrinhos da revista era o fato de terem formação e
profissão no campo da história, portanto “trabalhadores sérios”, “funcioná­
rios de Clio” saídos em grande parte da École Normale Supérieure ou da
École des Chartes. A lista de “fundadores” incluía intelectuais de diversas
tendências e alocações institucionais, entre eles Lavisse, Littré, Renan, Fus-
tel de Coulanges, Rambaud e Vidal de la Blache.
Assim o manifesto anunciava uma nova postura, a pretensão de fun­
dar uma revista que veiculasse uma história objetiva, científica, e formasse
uma escola visando firmar um paradigma para os historiadores e os que
aspiravam a sê-lo. A adesão ao método era fundamental para essa indivi­
duação no campo historiográfico da época. Um método baseado na con­
cepção da história como ciência positiva, conhecimento fundamentado em
documentos a serem criticamente analisados, para que do crivo da crítica
surgisse a verdade sob a forma de fato histórico.
Nos primeiros anos, a Revue Historique foi essencialmente uma anna
de combate, um episódio na longa batalha científica e política na França da
segunda metade do século XIX. Os sentimentos contraditórios em relação

5 Monod, 1895.
Gabriel Monod 327

à Alemanha não impediram, antes favoreceram a abertura das portas da


revista à colaboração de historiadores alemães, cuja atuação acadêmica era
admirada. Motivo a mais para Monod ser acusado de germanofilia, num
difícil percurso que procurava distinguir ciência de política.
Carbonell assinala que o intuito era “rebater o desafio alemão. Para
isso, era preciso colocar-se na escola da Alemanha, imitar o que ela pos­
suía de bom, e assim, graças ao gênio francês mantido intacto, restituir à
França o lugar que havia sido seu: o primeiro”.6 A comparação se impôs
como um desafio desde o primeiro número da revista, com o cotejamento
da historiografia da França e de além-Reno. Cinco anos haviam se passado
desde a derrota mutiladora do território nacional, e este fato espicaçava
um ajuste de contas, ao menos no plano intelectual. Ranke e Mommsen
forneciam os métodos a serem utilizados pela historiografia francesa que se
pretendesse científica: crítica interna rigorosa dos textos, reconstituições,
análises desvinculadas da filosofia e da literatura. A auto-obliteração do
historiador era a garantia de uma história confiável e neutra, voltada para
o estabelecimento do fato.
O olhar retrospectivo lançado à revista permite que se tome uma
amostra do território temático por ela visitado. No período de 1876 a
1900, por exemplo, pode-se verificar um quadro variado da distribuição
dos temas publicados pelo periódico,7 ainda que nele predominasse a his­
tória política:

♦ política interna — 21,3%;


♦ política externa e história colonial — 15,8%;
♦ história socioeconômica — 12,3%;
♦ história religiosa — 11,4%;
♦ história militar — 9,6%;
♦ outros temas — 9,6%.

Quanto à sua composição, além de resultados de pesquisas e publi­


cação crítica de fontes, a revista distinguiu-se pela publicação maciça de
resenhas críticas de alta qualidade e voltadas para temas relevantes para a

6 Carbonell, 1978:344.
7 Den Boer, 1998:334.
328 Lições de história

formação erudita do historiador. Tais aproximações com outras disciplinas


— geografia, etnografia e as ciências consideradas “auxiliares” da história
— foram particularmente sugestivas de abertura para novos campos do co­
nhecimento, mas elas não deram ensejo a qualquer tentativa de incorpora­
ção de seus conceitos e métodos pelos estudos históricos numa perspectiva
interdisciplinar. A história metódica permaneceu ocupada com o relato
do único, singular, particular, baseado na critica das fontes e na erudição8
amparada pelo método crítico das fontes.
Duas décadas depois, os princípios dessa metodologia divulgados
pela revista seriam sistematizados por dois jovens historiadores, Charles-V
Langlois e Charles Seignobos, que publicaram em 1898 a Introdução aos es­
tudos históricos. Nesse verdadeiro tratado de método, a proposta de Monod
foi de fato codificada e operacionalizada num manual para estudantes e
profissionais; e, a despeito dos paradoxos decorrentes dos posicionamen­
tos políticos da revista e de seu fundador, formou gerações de profissionais
de história até mesmo após seu decreto de decrepitude por Simiand em
1903 e pelos Annales nas décadas de 1920-1930 — revista onde se articu­
lou a nova vanguarda de outros combates pela história e pela ocupação de
postos no establishment universitário francês.9
Cabe ainda sublinhar que o comprometimento maior de Monod era
com a religiosidade na época da fundação da revista, e isso fica bastante
claro na exposição de seu manifesto inaugural. No entanto, aqui também
seu itinerário não deixou de ser acidentado. Formado no protestantismo,
passou à sedução pelo catolicismo, a que se seguiu uma crise de ceticismo
para buscar novos horizontes no hinduísmo e no misticismo esotérico de
Schopenhauer. Ainda que em 1876, ao criar a revista, estivesse próximo do
protestantismo liberal, sua posição ecuménica o identificava antes como
historiador vinculado ao cristianismo. Monod viveu uma polêmica que
dividiu opiniões a respeito das relações entre ciência e política.
Os posicionamentos políticos de Monod mantiveram-se. sempre no
campo republicano, enquanto os restauradores formavam no campo opos­
to fileiras saudosas do Antigo Regime. Mas o republicanismo não o apro-

8 Den Boer, 1998:334. A respeito do tipo de história divulgada pela Revue Historique, ver tam­
bém Dosse (1992); Bourdé e Martin (1983).
9 Ribérioux, 1992.
Gabriel Monod 329

ximou da esquerda, e o espetáculo da Comuna de Paris lhe bastara para


que temesse as sublevações populares. No entanto, sua tomada clara de
partido não o impelia à ação na política interna nos anos 1880; somente
na década seguinte seria solicitado e responderia a um apelo nacional no
caso Dreyfus. Em questão, a legitimidade do engajamento de intelectuais
no debate político que polemizou o “imperativo cívico” em torno do caso
Dreyfus. Dois modelos de eruditos então foram contestados e colocados
face a face: de um lado, o do “homem completo”, jornalista, ensaísta, cien­
tista e ator político, que na tradição iluminista estava encarregado da mis­
são de intervir no debate político; de outro, o do “especialista” preocupado
apenas com o conhecimento do real e a busca da verdade. As relações entre
saber e poder cavaram trincheiras e mobilizaram os historiadores.10
A atuação política de Monod nesse contexto é uma reviravolta. Supe­
rada a grande comoção da derrota na Guerra Franco-Prussiana, 20 anos se
passariam antes que um novo evento sacudisse a França inteira e solicitasse
dos intelectuais um engajamento contra ou a favor do caso Dreyfus.11
Monod foi então levado à primeira linha do combate que mobilizou
o nacionalismo, o antissemitismo e a situação dos direitos humanos na
França. Inicialmente descrente da inocência de Dreyfus, em 1895 mudo1
sua posição após ouvir a família do acusado, duvidando da validade de ur
processo realizado em ambiente antissemita e nacionalista inflamado.
O exame do processo convenceu-o de que este se baseava em provas
falsificadas, forjadas para atender a interesses que intitulou de “ódios religio­
sos e raciais, sob a aparência de uma simples questão de justiça a um ato de
traição à pátria”. Numa França dividida pela enorme repercussão do caso,
em carta publicada no jornal Le Temps em 6 de novembro de 1897, Monod
assumiu a defesa da inocência do acusado, reclamando a revisão do caso.

10 Ribémont, 2005.
11 O ajjaire Dreyfus consistiu num erro judiciário que resultou na condenação do capitão Alfred
Dreyfus (1859-1935). Em 1894 ele foi acusado de ter agido como espião e entregado documen­
tos secretos do Exército francês aos alemães. Julgado por traição, foi deportado para a ilha do
Diabo, na Guiana Francesa. Em 1898, o escritor Émile Zola assumiu publicamente a defesa de
Dreyfus com a denúncia intitulada J’accuset que motivou a reabertura do processo. Em Rennes,
em 1899, um novo julgamento reafirmou a condenação, desta vez a 10 anos de trabalhos força­
dos. Somente em 1906 a inocência de Dreyfus foi reconhecida, motivando sua reabilitação. O
centro do julgamento final foi a prova de perícia do dossiê que o incriminara, e nela foi conclu­
siva a constatação da falsidade dos documentos por historiadores especialmente convidados.
330 Lições de história

Um dos fundadores da Liga dos Direitos do Homem (1898), Monod


participou do julgamento de Rennes diretamente no exame dos documen­
tos. Pela imprensa, incansável, Monod publicou cartas e artigos, inclusi­
ve sob o pseudónimo de Pierre Molé (“Uma exposição imparcial do caso
Dreyfus”). Seu envolvimento com o caso Dreyfus traduz o peso que o méto­
do histórico crítico de documentos adquiriu na época do longo julgamento
iniciado em 1894 e encerrado em 1906, com a absolvição do acusado. A
École des Chartes, em especial, desempenhou nele um papel fundamental,
pois seus historiadores estiveram na linha de frente na batalha de perícias
destinadas a verificar a confiabilidade dos documentos que sustentaram a
condenação de Dreyfus como espião a serviço da Alemanha.
Por outro lado, além da validade do método rigoroso de exame
das provas, estavam em causa a própria autonomia da ciência histórica
diante da política e a legitimidade da intervenção dos historiadores no
debate político. O chamado ao “imperativo cívico” mobilizou tanto os
que acreditavam na inocência de Dreyfus e consideravam o caso um
erro judiciário quanto os situados no campo oposto. O próprio ofício do
historiador estava em causa, também, com os desdobramentos do deba­
te sobre a autonomia da disciplina e sua função social. Nesse contexto,
também a Revue Historique e a IV.C section da École Pratique des Hautes
Études passaram por forte mobilização dreyfusista. Muitos historiadores
saíram da posição de reserva, de seus redutos acadêmicos, onde separa­
vam ciência e política, para participar da batalha pela identificação das
provas do processo como verdadeiras ou forjadas.
Olhando o caso da perspectiva de Monod, é de se ressaltar que ele não
participara da École des Chartes senão como aluno ouvinte, mas ali tecera
relações com intelectuais e dela não se afastara após a criação de sua revis­
ta. Paul Meyer, codiretor da Revue, era um dos historiadores chartistas do
círculo de Monod. Além disso, Monod era bem relacionado nos meios po­
líticos, inclusive tinha contato com o ministro dos Negócios Estrangeiros.
Havia fundado em 1880 a Société Historique com a finalidade de promo­
ver discussões sobre política e filosofia. Cinco anos depois, ela já contava
com 500 membros, entre juízes, advogados, diplomatas, parlamentares e
intelectuais. Com tal rede de sociabilidade, Monod foi chamado a partici­
par do esforço de provar a inocência de Dreyfus, sendo para isso colocadas
à sua disposição cópias dos documentos fundamentais do processo. Sua
Gabriel Monod 331

estatura intelectual e reputação de respeitabilidade acabaram por colocá-


lo no centro do furacão, servindo de bússola para outros historiadores.
Do ponto de vista historiográfico, o caso Dreyfus tornou-se uma batalha
de perícia centrada na necessidade de comprovação da credibilidade dos
documentos que instruíram o processo judicial e na legitimidade do en­
gajamento de historiadores em questão que envolvia razão de Estado. O
método e a competência legítima foram então postos à prova e respaldaram
os partidários da intervenção dos historiadores na vigilância crítica sobre
os direitos humanos. Afinal, as provas apresentadas contra Dreyfus foram
consideradas frágeis e, decididamente, falsas.
O auge da participação de Monod nesse episódio ocorreu em 1898,
quando a carta de Émile Zola intitulada “Jaccuse” foi divulgada, gerando
a denúncia e o envolvimento do escritor no processo. Até 1906, quando
Dreyfus foi reabilitado, o processo mobilizou a competência profissional
dos historiadores a partir de seus títulos científicos, de seu reconhecimen­
to pelos pares e, sobretudo, do uso do método científico que se supunha
ser capaz de garantir a autonomia científica, a função cívica e nacional da
história.
Monod, que havia defendido a postura de distanciamento temporal
do historiador em relação aos eventos, jogou-se por inteiro na história de
seu tempo, na história do tempo presente, alargando assim o território
temporal pertinente ao seu ofício. Já não era possível, nesse caso, escapar
às paixões do presente, mas a confiança na lisura do método amparava a
reviravolta que unia ética e política, responsabilidade científica e de cida­
dania. A ciência histórica recebeu e aceitou a missão de encarregar-se da
vigilância cívica.
A grande comoção do caso Dreyfus foi também seguida pela mobili­
zação de intelectuais franceses, notadamente historiadores, a favor de mi­
norias perseguidas e de flagrantes violações dos direitos humanos. A histo-
ricização do caso contribuiu para que historiadores franceses se interessas­
sem por outras tragédias recentes. Foi o caso dos massacres de arménios
no império otomano, prática corrente nas últimas décadas do século XIX,
mas em especial em 1898. Mais uma vez, Monod atendeu ao apelo cívico e
coerente com a postura assumida na Liga dos Direitos do Homem e enga-
332 Lições de história

jou-se com outros historiadores no combate pela questão do Oriente, que


avaliava a situação do império otomano na perspectiva já consagrada na
época: a do “grande doente” cuja morte era esperada a qualquer momento
pelos analistas da política internacional. Monod prefaciou em 1898 a pri­
meira das muitas edições da obra de Édouard Driault, La question cTOrient,
onde a história diplomática dos anos que antecederam a I Guerra Mundial
foi sendo constantemente atualizada nas sucessivas reedições, num claro
exemplo de engajamento de historiadores na história imediata ou do tem­
po presente, ou seja, na história contemporânea.12

DO PROGRESSO DOS ESTUDOS HISTÓRICOS NA FRANÇA


DESDE O SÉCULO XVI13

No momento de empreender uma publicação que contribuirá, es­


peramos, para o progresso dos estudos históricos em nosso país, importa
determinar bem qual meta perseguimos, qual será o caráter dos trabalhos e
qual espírito inspirará nossas pesquisas.
Para precisar esses diversos pontos, nos pareceu que não seria sem
utilidade nem sem interesse lançar um olhar rápido sobre o caminho per­
corrido durante os últimos séculos pelas ciências históricas, a fim de me­
lhor apreciar o grau de desenvolvimento que elas atingiram hoje, a tarefa
que lhes resta a cumprir e o caminho que elas devem seguir.14
A história, quer a consideremos como um ramo da literatura, quer
como uma ciência, data para nós do Renascimento. Sem dúvida, a Idade
Média15 havia tido entre seus cronistas escritores notáveis, tais como Join­
ville, Villani ou Froissart, mas eles não são em sentido exato historiadores;
têm em vista antes o presente que o passado; querem mais conservar para

12 Driault, 1898; Ter Minassian, 2008; Andoniam, 1913.


13 Monod, 1876.
14 Esta exposição do progresso dos estudos históricos na França é ao mesmo tempo a introdução
e o programa de nossa revista.
15 Aqui como em outras expressões, foi feita uma atualização da grafia no que diz respeito ao
uso de maiúsculas/minúsculas, conforme as formas consagradas na atualidade no Brasil. Os
nomes próprios e toponímicos foram traduzidos sempre que se trata de referências conhecidas,
conservando-se no idioma original as demais. (N. do T.)
Gabriel Monod 333

a posteridade a lembrança dos eventos que viram e dos quais tomaram


parte do que expor para seus contemporâneos uma imagem fiel dos tempos
anteriores. Seu mérito literário consiste sobretudo na vida, no movimen­
to, na paixão que animam seus relatos, e não na arte com a qual a obra é
composta, na justa proporção de suas partes, na equidade imparcial dos
julgamentos.
Na parte de suas obras em que eles não foram testemunhas oculares,
mas narram os fatos que conheceram pelos escritores anteriores, os cronis­
tas da Idade Média são incapazes de representar os eventos e de relatá-los
de uma maneira original e pessoal; não sabem fazer outra coisa que copiar
suas fontes, ou compor com seus extratos um mosaico. Aquilo que deno­
minamos pesquisas históricas, crítica histórica, não podia existir na Idade
Média. Não poderia ocorrer ao pensamento de um homem dessa época a
ideia de buscar nas diversas obras antigas ensinamentos esparsos sobre este
ou aquele personagem, sobre este ou aquele fato, sobre esta ou aquela ins­
tituição para criar um conjunto novo, um quadro original. A curiosidade
histórica, quando a encontramos, não era senão a reunião infantil de ane­
dotas tomadas de vários lugares, reunidas mais em vista do divertimento
que da instrução, como a Otia Imperialia de Gervaise de Tilbury ou a Nugae
Curialium de Gautier Map. Existiram na Idade Média compiladores e cro­
nistas, não historiadores.
Não foi senão com o Renascimento que começaram de fato os estudos
históricos. A descoberta da imprensa mudou todas as condições do traba­
lho intelectual, facilitando a reunião de um grande número de livros, seu
emprego simultâneo e sua comparação, estabelecendo uma demarcação
sensível entre as épocas ainda bárbaras, nas quais não havia senão pesados
e grossos volumes escritos em pergaminho, e a era nova em que o pensa­
mento se difundia facilmente por toda parte, ao mesmo tempo sob uma
forma manejável e leve, graças a esta descoberta. Ao mesmo tempo que
mudavam as condições de trabalho, uma revolução lentamente preparada
desde o século XI se fazia no espírito dos homens dos séculos XV e XVI.
A Antiguidade, por muito tempo ignorada e desdenhada, foi redescoberta,
conhecida, admirada em seus monumentos, em suas instituições, em sua
história, sobretudo em suas obras literárias, que a imprensa logo colocou
em todas as mãos. A cultura eclesiástica da Idade Média deu lugar, mesmo
entre as pessoas da Igreja, a uma cultura profana e laica. O estudo do passa-
334 Lições de história

do, reservado durante muito tempo a uma minoria privilegiada, tornou-se


uma paixão universal, a principal preocupação de quase toda a sociedade.
O humanismo teve uma influência decisiva sobre o desenvolvimento
da historiografia. Esta influência se exerceu em dois sentidos opostos. En­
quanto os letrados e oradores, imitando os historiadores da Antiguidade,
substituíam as compilações sem arte da Idade Média por composições lite­
rárias, nas quais a arte se desenvolvia muitas vezes em prejuízo da verdade,
os filólogos, arqueólogos e juristas se aplicavam ao estudo das instituições,
dos costumes e dos monumentos com esta curiosidade ardente sem a qual
não existe verdadeira erudição. Foi por amor à Antiguidade que esta curio­
sidade erudita logo despertou; da Antiguidade ela se estendeu à Idade Mé­
dia, a qual, à medida que o Renascimento se desenvolvia, tornava-se cada
vez mais para os homens do século XVI como que uma segunda Antiguida­
de. Era preciso, de fato, para que o sentido histórico pudesse se desenvol­
ver, que o passado aparecesse bem claramente distinto do presente, que se
pudesse estudá-lo de um ponto de vista objetivo e como que a distância.
Na Itália, foram dois humanistas, Flávio Biondo e Aeneas Sylvius
Piccolomini, os precursores da erudição histórica. Após eles, Paul Jove e
Bembo compuseram obras em que a retórica teve mais espaço que a histó­
ria, mas que, apesar disso, passaram por modelos aos olhos de seus con­
temporâneos, enquanto eruditos como Albertini, Strada, Onofrio Panvini e
Sigonius inauguraram os estudos de arqueologia, epigrafia e numismática
pelo exame atento dos monumentos figurativos.
Enquanto na Itália a atenção dos sábios permanecia concentrada na
Antiguidade, que oferecia um campo infinito de descobertas, na Alemanha,
onde os restos da Antiguidade eram pouco numerosos e as tradições e insti­
tuições da Idade Média subsistiam mais vivas que em qualquer outro lugar,
o estudo da Idade Média andou lado a lado com o da Antiguidade. Acon­
teceu na ciência histórica o mesmo que nas belas-artes. Assim como Albert
Durer, Flolbein, Pierre Fischer, Lucas Cranach conservaram fortemente a
marca da Idade Média, mesmo que tivessem recebido o impulso vivificante
do Renascimento italiano, C. Peutinger, Tritheim, Aventino, C. Celtes, Cus-
piniano, embora humanistas e ardorosos amantes da Antiguidade, tinham
em relação às coisas da Idade Média um interesse que, naquela época, não
existia em parte alguma no mesmo grau. Desde 1474, publicou-se uma
parte da crónica de Ursperg, que foi impressa completa em 1515 por C.
Gabriel Monod 335

Peutinger. Ele editou ao mesmo tempo Jordanis e Paulo Diácono, enquanto


seu amigo Celtes compunha sua Germania illustrata e recuperava as obras
de Hroswitha e o poema intitulado Ligurinus. Depois do humanismo, a Re­
forma veio dar novo impulso às pesquisas históricas. Os centuriadores16 de
Magdebourg, ao aplicarem à história da Igreja uma crítica com frequência
temerária e apaixonada, mas vigorosa e apoiada sobre vasta erudição, não
somente criaram uma obra que marcou época na ciência histórica, mas
também provocaram a composição do mais belo monumento da erudição ;
católica do século XVI, os anais de Baronius. Pode-se considerar a crítica
teológica como o ponto de partida e a origem da crítica histórica. Esta in­
fluência da teologia sobre a história, sensível no século XVI, foi ainda mais
importante no desenvolvimento da erudição alemã do século XVIII.
A França, cujo desenvolvimento esteve no século XVI tão intimamen-
te ligado ao da Itália, demorou a se interessar pelos estudos históricos.
Enquanto para os eruditos alemães a Idade Média era a época do poder
imperial, herdeira direta do império romano, para os estudiosos franceses
a Idade Média não era senão a época da feudalidade e da barbárie; e via-se
já nascer esse desprezo por nosso passado nacional, que deveria aumentar
entre os letrados durante os séculos XVII e XVIII, contribuir para com as
violências revolucionárias e prejudicar ao mesmo tempo a ciência histórica
e o desenvolvimento político do país. Foi um humanista e italiano, Paolo
Emili, de Verona, quem ensinou aos franceses a arte de escrever a história
quando compôs, em latim, atendendo ao pedido de Luís XII, seu De rebus
gestis Francorum, onde encontramos todo o aparato retórico à maneira de
Tito Lívio que fez a reputação de Paul Jove e de Bembo. Esta história pa­
receu tão maravilhosa aos contemporâneos que, durante longos anos, nin­
guém ousou rivalizar com ele; e quando em 1576 du Haillan compôs uma
nova História da França, não fez senão traduzir Paul-Émile, intercalando
ali extratos de crónicas e de considerações políticas geralmente erróneas.
No entanto, não foi sem motivo que Augustin Thierry assinalou du Haillan

O termo está relacionado à obra Centuries de Magdebourg, a primeira história protestante da


Igreja, que utilizou a periodização em séculos como recurso indispensável para situar eventos
no passado. O início desse procedimento metodológico recua a 1559, quando historiadores
reunidos em torno de Faccius Illyricus publicaram o primeiro volume das Centuries, nome re- l!
sumido e consagrado de uma obra dividida em volumes segundo os séculos. (N. do T.)
336 Lições de história

como o primeiro escritor francês que procurou substituir a crónica pela


história; tanto isso é verdadeiro que é preciso fazer remontar aos humanis­
tas a honra desse progresso literário.
Se a literatura histórica foi lenta a se desenvolver na França, a erudi­
ção não fez progressos mais rápidos, sobretudo no que concerne à história
nacional.
De fato, foi somente na segunda metade do século XVI que a curiosi­
dade histórica despertou verdadeiramente na França. As causas deste des­
pertar são múltiplas. O movimento da Reforma foi acompanhado de uma
aceleração da atividade intelectual, de um espírito quase universal de livre
pensamento e de investigação científica; as lutas políticas forçavam todos
os que se encontravam nelas envolvidos a procurar armas na história e
na erudição; os grandes trabalhos de jurisprudência, o desenvolvimento
dos estudos jurídicos, aos quais presidiam os homens ao mesmo tempo
imbuídos da Antiguidade e versados no conhecimento das leis herdadas da
Idade Média, os impeliam ao exame das instituições nacionais da França.
Também se vê que os eruditos, que estiveram à frente por seus trabalhos
históricos ao final do século XVI, eram protestantes ou homens que per­
tenciam ao grupo dos políticos e professavam, se não o ceticismo filosófico,
ao menos as ideias galicanas17 e hostis às tendências ultramontanas; enfim,
quase todos eram jurisconsultos, homens de toga, advogados, conselhei­
ros, juízes nos parlamentos.
As obras desses diversos eruditos testemunham uma prodigiosa ati­
vidade intelectual. Todos os assuntos eram abordados, empreendimento
de uma singular audácia. Enquanto Scaliger estabelecia as bases de uma
cronologia metódica, Etienne Pasquier esboçava a história das instituições,
Fauchet submetia pioneiramente as Antiquités gauloises et françoises a uma
crítica imparcial, Bodin e La Popelinière procuravam estabelecer os princí­
pios do método e da crítica histórica.

17 O galicanismo constituiu uma tendência da Igreja Católica na França de procurar tornar-se


independente de Roma e do papa. O termo origina-se de Gália, antigo nome da França. No
contexto do absolutismo, expressou a busca de autonomia do poder real em relação à autori­
dade temporal do papado. Em 1692 o rei Luís XIV promoveu uma assembleia do clero francês
que afirmou as liberdades religiosas da Igreja em seu território. Opôs-se à autoridade do papa
e às teses ultramontanas que defendem a submissão de toda a Igreja à Santa Sé, inclusive em
assuntos temporais. (N. do T.)
Gabriel Monod 337

Esses esforços, que testemunham uma curiosidade tão inteligente,


um tão vivo ardor da erudição, eram prematuros. As paixões contempo­
râneas exerciam um império muito poderoso sobre os homens do sécu­
lo XVI para que eles pudessem julgar com imparcialidade as instituições
do passado; eles não amavam suficientemente a Idade Média para poderem
compreendê-la bem e, ao mesmo tempo, procuravam demais a justifica­
ção e a confirmação de suas ideias políticas contemporâneas. Por outro
lado, os documentos publicados eram ainda pouco numerosos, as ciências
auxiliares da história pouco desenvolvidas, a crítica muito vacilante para
que fosse possível resolver todas as questões que eles abordavam com uma
confiança juvenil. Eles queriam construir o edifício antes de colocar seus
fundamentos. Pasquier, Bodin e Hotman eram demasiado passionais; Fau-
chet e La Popelinière tinham entre as mãos materiais muito insuficientes
para poder criar obras duradouras. Eles plantaram sementes úteis, abriram
os caminhos para os historiadores futuros, não deixaram nada de defini­
tivo. Os alemães, bem inferiores nessa época aos franceses do ponto de
vista da inteligência, da originalidade e da profundidade de visão, prepara­
vam mais utilmente o terreno para as pesquisas históricas, publicando de
1566 a 1610 oito compilações de historiadores da Idade Média, enquanto a
França não havia ainda produzido senão as coletâneas de Pithou e de Bon-
gars. Também ocorreu que um erudito dinamarquês publicou em 1616, na
Holanda, a primeira obra séria sobre as origens da história da França, as
Origines francicae de J. Isaac Pontanus.
A França não tardou em ir à desforra. Enquanto na Alemanha a Guer­
ra dos Trinta Anos18 não somente convulsionava o Estado, mas também
trazia a ruína para o país inteiro e paralisava quase inteiramente o trabalho
intelectual, a França, pacificada por Henrique IV e Richelieu, entrava num
período de atividade regular e fecunda. Era necessário, porém, que um tra­
balho mais metódico desse à erudição histórica essas bases sólidas, sem as
quais todo trabalho de generalização seria prematuro. Era preciso antes de
tudo publicar textos, elucidar por uma crítica minuciosa os pontos de de-

18 A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) consistiu em diversos conflitos entre reinos europeus,
motivados por rivalidades religiosas, dinásticas, territoriais e comerciais. O Sacro Império Romano
Gennânico e a casa de Habsburgo constituíram seu centro principal, mas também foram envolvi­
dos a Suécia, os Países Baixos e a França. Terminou com a Paz de Vestfália (1648). (N. do T.)
338 Lições de história

talhe, ensinar os historiadores a se servirem de documentos. Essa foi a obra


dos eruditos do século XVII, continuada durante o século XVI11; obra que,
apesar dos progressos alcançados desde então, não está ainda hoje termi­
nada. A pacificação das paixões políticas e das paixões religiosas contribuiu
poderosamente para dar esta direção nova aos estudos históricos.
Enquanto no século XVI os historiadores se envolveram nas lutas parti­
dárias, serviram-se da erudição como arma de combate, professando mesmo
a maioria opiniões, se não heréticas, ao menos audaciosas e um pouco revo­
lucionárias, no século XVII, pelo contrário, eles trabalharam com a assistên­
cia e por assim dizer sob a direção da realeza; foram os fiéis servidores dela e
quase todos tiveram funções e um caráter oficiais.
Ao lado dessa influência monárquica e governamental que se exerceu
pelos grandes ministros do século XVII, uma outra influência agiu tam­
bém fortemente sobre a erudição histórica: a influência eclesiástica. Desde
que as guerras de religião chegaram ao fim, e que os decretos do Concílio
de Trento19 fizeram na Igreja uma reforma parcial; desde que os perigos
da anarquia democrática dos ligueurs e da anarquia aristocrática dos pro­
testantes foram afastados, a religião na França foi pacificada como tudo
mais. Tendências diversas dividiam sem dúvida o clero, mas sem causar,
ao menos até a explosão contra o jansenismo,20 graves dissidências. Todos
os membros do clero secular e do clero regular21 encontravam-se unidos
no exercício dos deveres de seu estado, no respeito pela autoridade real
e no zelo comum pelo estudo e pelos trabalhos intelectuais. Sem dúvida
eles não podiam trazer essa audácia para as pesquisas e teorias, essa inde­
pendência que torna tão interessantes e simpáticos os eruditos do sécu­
lo XVI; mas possuíam outras qualidades que faltavam a seus predecessores.

19 O Concílio de Trento (1545-1563) consistiu num dos momentos fundadores da Igreja Católica.
Foi convocado pelo papa Paulo III para garantir a unidade da fé e da disciplina eclesiástica em
reação à Reforma protestante. Também conhecido como Concílio da Contrarreforma. (N. do T.)
20 O jansenismo foi um movimento religioso e político na França e na Bélgica, nos sécu­
los XVII e XVIII, de inspiração calvinista. Expressou uma reação ao absolutismo real e a aspec­
tos da Igreja Católica, sendo seu ponto fundamental a crença de que o pecado original implicou
a corru pção irremediável da natureza humana e a inclinação do homem para o mal. (N. do T.)
21 Os membros do clero regular seguem, como o nome diz, as regras de uma ordem ou congre­
gação religiosa, vivendo em mosteiros. Já o clero secular vive no “século”, pois está submetido
apenas à autoridade de um bispo, trabalhando a serviço exclusivo de uma diocese. Vive a vida
cotidiana em contato com o mundo dos leigos. (N. do T.)
Gabriel Monod 339

Tinham a paciência, o método, o espírito de tradição que permite os vastos


e longos empreendimentos, a regularidade e a prudência no trabalho, en­
fim e sobretudo o amor e a compreensão da Idade Média, que é a grande
época da Igreja. O século XVI havia reencontrado a Antiguidade; somente
no século XVII teve início, na França ao menos, a redescoberta da Idade
Média. A história da Idade Média é em grande parte a história da Igreja Ca­
tólica; não se pode separar uma da outra, e era impossível compreendê-la
sem conhecer o direito canónico, a teologia, a disciplina eclesiástica, numa
palavra, toda a vida da igreja. Era preciso ser guiado por um verdadeiro
amor ao passado para empreender os longos e áridos trabalhos solicitados
para o escrutínio dos manuscritos e das cartas legadas pela Idade Média.
Onde se poderia encontrar esse conhecimento, essa inteligência, este amor
ao passado senão no clero? No clero regular sobretudo, cuja regra ordenava
os trabalhos do espírito entre os deveres religiosos, cujos conventos con­
servavam acumulados há séculos imensas riquezas manuscritas, e onde a
humildade e a obediência monásticas colocavam o devotamento obscuro
de todos a serviço do gênio de alguns.
De todos os lados surgiram obras: jesuítas, oratorianos, jansenistas,
beneditinos rivalizaram em ardor e atividade. Os jesuítas foram os primei­
ros com Sirmond, que publicou Idace (1611), Flodoard (1619), e a primeira
coleção dos Concílios da França (1629). O padre Denis Petau e Philippe
Labbe não estiveram abaixo em lançar glórias a sua ordem, o primeiro
como cronologista, o segundo como editor de textos. O padre Daniel, cuja
história da França é superior não somente a todas as que haviam sido com­
postas antes dele, mas também à maioria das que foram compostas depois
dele, era jesuíta. Ao mesmo tempo, às portas da França, em Anvers, os
jesuítas começavam, sob a direção de Jean Bolland, as imensas compilações
das Acta Sanctorum, cujo plano havia sido feito por Heribert de Roswey e
que continua até hoje. É muito comum depreciar-se essa compilação com-
parando-a à dos beneditinos, e é certo que estes tiveram mais cuidado ao
escolher seus textos, como também mais discrição em seus comentários.
O empreendimento colossal de Bolland e de seus colaboradores não deixa
de ser por isso um monumento de grande valor, não somente pela massa
de materiais que eles reuniram, mas também pelos trabalhos de crítica que
acompanham os textos. Sua erudição é de costume prolixa e mal ordenada;
mas apesar disso encontram-se, nos primeiros volumes, não somente um
340 Lições de história

maravilhoso conhecimento da literatura hagiográfica, mas também um sen-


so muito correto, uma liberdade de julgamento e um sábio ceticismo que
nem sempre são encontrados no mesmo grau nas obras dos beneditinos.
Por mais importante que tenha sido a obra dos jesuítas, dos orato-
rianos, do jansenista Tillemont e de alguns membros do clero secular, tais
como Pierre de Marca ou Longuerue, ela empalidece ao lado dos trabalhos
da ordem ilustre, cujo nome é suficiente para despertar a ideia de uma
erudição inesgotável e trabalhos infatigáveis. Uma ciência de beneditino,
um trabalho de beneditino, essas expressões se tornaram proverbiais; e,
ainda que uma parte da glória intelectual associada a esse nome deva ser
relacionada aos beneditinos da Idade Média, a maior parte dela recai so­
bre a congregação criada em 1627 sob a invocação de Santo Amaro, e que
tinha por sede principal a abadia de Saint-Germain-des-Prés. Não será
necessário enumerar os inumeráveis trabalhos históricos devidos aos be­
neditinos da congregação de Santo Amaro desde meados do século XVII
até o fim do XVIII. Basta lembrar os nomes de d. Ruinart, de d. Marlot,
de d. Luc d’Achery, de d. Mabillon, o historiador de sua ordem, o criador
da ciência diplomática, de d. Montfaucon, que estabeleceu os princípios
da epigrafia grega e mostrou todo o benefício que o historiador pode tirar
dos monumentos figurativos, de d. Martène e d. Durand, de d. Félibien,
de d. Martin, que tentou prematuramente tornar conhecidos os costumes,
a história e a religião dos gauleses. Não contentes de publicar as melhores
edições dos padres que se fizeram até então, e de refundar o glossário de
Du Cange e a diplomática de Mabillon, os beneditinos empreenderam
grandes compilações que são ainda hoje a base de todos nossos estudos
sobre a Idade Média: a Gallia Christiana, a Art de vérifier les dates, a cole­
ção dos historiadores da França, a história literária da França e a coleção
das histórias provinciais. Exceto a Art de vérifier les dates, nenhum desses
repertórios pôde ser por eles terminado, mas os beneditinos trabalharam
neles com uma atividade prodigiosa que em muito supera a dos eruditos
de hoje. Não admiramos nelas somente as qualidades intelectuais que
ali foram por eles desenvolvidas, sua erudição e solidez de julgamento,
mas também as raras virtudes necessárias ao cumprimento de sua tarefa,
sua modéstia, sua abnegação e essa mistura de piedade respeitosa e fir­
me independência de espírito que deu a seus trabalhos tanta gravidade e
autoridade.
Gabriel Monod 341

Enquanto a ciência eclesiástica se ilustrava assim no século XVIII, a


ciência laica não permanecia inativa. Ela tendia mesmo, sob a direção da
realeza que a havia encorajado e sustentado durante o século XVII, a se
organizar e a associar os esforços dos sábios, tendo em vista grandes empre­
endimentos análogos aos dos beneditinos. A Academie des Inscriptions et
Médailles criada por Colbert e desenvolvida por Luís XIV tomou-se, no sé­
culo XVIII, sob o nome de Academie des Inscriptions et Belles-Lettres, uma
sociedade que se ocupava sobretudo de pesquisas de filologia, literatura e
história. Encontramos entre seus membros a maior parte dos eruditos que
marcaram o século XVIII na sociedade histórica. A academia empreendeu
também grandes coleções, semelhantes às dos beneditinos, mas ela não
dispunha das mesmas facilidades nem do conjunto de devotamentos que
tais obras pressupõem. Ela teve, é verdade, Bréquigny, homem de uma in­
teligência e de uma atividade extraordinárias, digno de ser comparado a
du Cange ou a Mabillon, mas que não podia atender às múltiplas tarefas
das quais estava encarregado. Sobre ele quase sozinho repousou todo o
trabalho da coleção das ordenações, da tábua geral das cartas e diplomas,
da compilação dos diplomas, da coleção dos pergaminhos gascões.
Os trabalhos dos beneditinos e os da Academie des Inscriptions et
Belles-Lettres estão longe de representar todo o movimento histórico do
século XVIII. Dele constituem a parte mais sólida, porém não a mais bri­
lhante. O espírito aventureiro e inovador do século XVI, pacificado e com­
primido no XVII, ressurgiu no XVIII. O libertino22 Saint-Évremond foi o
primeiro a fazer da história um objeto de considerações filosóficas e morais
sobre a política, sobre as instituições, sobre o gênio dos diversos povos,
sobre o caráter dos escritores que a relatam. O protestante Louis de Beau-
fort, em suas pesquisas sobre a República romana, misturou a hipóteses
arrojadas e a teorias paradoxais visões de gênio nas quais resultados da
crítica moderna eram pressentidos e antecipados. O movimento filosófico
e as preocupações políticas que agitavam todos os espíritos agiam também

22 Charles Marguetel de Saint-Denis, senhor de Saint-Évremond (1613-1703), político e escritor


francês, pertenceu ao libertinismo, movimento cultural ocorrido no século XVII e relacionado
ao conceito de “espírito livre”, sobretudo em reação a crenças estabelecidas, de caráter religioso.
Defendeu os conceitos de liberdade de costumes, vida natural e na natureza como perfeição
divina, ausência de restrições aos instintos, busca de prazer físico, sem aceitar a noção de pe­
cado. (N. do T.)
342 Lições de história

sobre os estudos históricos e abriam-lhes novos horizontes. Buscava-se


então pela primeira vez, associar os fatos a ideias gerais; procurava-se com-
preender o desenvolvimento da civilização e suas leis. A história universal,
que com Bossuet havia permanecido fechada no quadro estreito da teolo­
gia, tornou-se para o espírito penetrante de Voltaire, em seu Ensaio sobre
os costumes, objeto de considerações apoiadas sobre uma ciência por vezes
frágil, mas cujo acerto e profundidade com frequência profética nos surpre­
endem hoje. Ao mesmo tempo, o despertar de discussões políticas deu um
interesse poderoso às questões relativas à origem das instituições francesas,
e foram transportadas para o passado todas as paixões do presente. Mon-
tesquieu foi, no século XVIII, o representante mais eminente deste espírito
novo ao mesmo tempo filosófico e político aplicado ao estudo da história
e das leis. Ele trouxe uma elevação de pensamento e uma penetração su­
periores, mas suas obras são mais adequadas a estimular e a fecundar o
espírito que a esclarecê-lo e guiá-lo com segurança. De todas essas generali­
zações, de todos esses sistemas históricos, nenhum deveria subsistir em seu
conjunto, mas todas as questões estavam colocadas, ao mesmo tempo com
maior amplitude e precisão. Após os trabalhos dos eruditos e dos filósofos,
a história aparecia como a base, o centro e o fim de todas as ciências. Todas
deveriam se servir dela e contribuir para esclarecer aquilo que faz a essên­
cia e o interesse verdadeiro da história: o desenvolvimento da humanidade
e da civilização.
A revolução e o império, que a sucedeu fatalmente, suprimiram qua­
se inteiramente os estudos históricos. A revolução, em sua cega aversão
contra todas as instituições do passado, destruindo as ordens religiosas
e as academias, paralisou subitamente todos os trabalhos de erudição. A
compilação de diplomas de Bréquigny, a teoria das leis francesas de Mlle.
de Lézardière não puderam sequer ser colocadas à venda. O governo
imperial, que, como herdeiro da Revolução, não permitia que se falasse
bem do antigo regime, e como protetor do princípio de autoridade, não
permitia também que se dissesse mal dele, não foi mais favorável aos
estudos históricos. De resto, durante esses anos trágicos de lutas intesti­
nas, de início, depois de guerras europeias, nos quais a França não teve
paz nem liberdade, não havia lugar algum para os trabalhos pacíficos e
desinteressados da erudição, assim como para as vastas concepções da
filosofia da história.
Gabriel Monod 343

O impulso dos estudos históricos só foi mais rápido e enérgico quan­


do a Restauração devolveu à França, com uma parte de suas tradições pas­
sadas, a liberdade e a paz das quais ela tinha sido privada por tão longo
tempo. O abismo cavado pela revolução e pelo império entre a antiga e a
nova França permitia julgar o passado com maior distanciamento, com
maior imparcialidade, sob um ângulo mais justo; o esforço para retornar
às tradições da monarquia legítima dava ao mesmo tempo o desejo de se
aproximar do passado e de bem compreendê-lo. De resto, um movimento
análogo se produzia em toda a Europa e vinha favorecer a corrente intelec­
tual que encaminhava os espíritos na França em direção aos estudos histó­
ricos. Ao desenvolvimento das ciências positivas, que é o caráter distintivo
de nosso século, corresponde, no domínio do que chamamos literário, o
desenvolvimento da história, que tem por objetivo submeter a um conhe­
cimento científico e mesmo às leis científicas todas as manifestações do
ser humano. As criações originais do espírito se tornaram cada vez menos
numerosas, a contemplação puramente estética das obras intelectuais foi
sempre mais descuidada para dar lugar às pesquisas históricas. História
das línguas, história das literaturas, história das instituições, história das
filosofias, história das religiões, todos os estudos que têm o homem e os
fenômenos do espírito humano por objeto assumiram um caráter histórico.
Nosso século é o século da história.
Graças aos progressos das ciências e dos métodos científicos, a his­
tória possui hoje maravilhosos meios de investigação. Pela filologia com­
parada, pela antropologia, até pela geologia, ela mergulha seus olhares em
épocas para as quais os monumentos fazem falta, assim como os textos
escritos. As ciências acessórias, a numismática, a epigrafia, a paleografia,
a diplomática, lhe fornecem documentos de uma autoridade indiscutível.
Enfim, a crítica dos textos, estabelecida sobre princípios e classificações
verdadeiramente científicos, permitem-lhe reconstituir, se não em sua
pureza primitiva, ao menos sob uma forma tão pouco alterada quanto
possível todos os escritos históricos, jurídicos, literários que não foram
conservados em manuscritos originais e autógrafos. Assim secundada,
armada de tais instrumentos, a história pode, com um método rigoroso
e uma crítica prudente, se não descobrir sempre a verdade completa, ao
menos determinar exatamente sobre cada ponto a certeza, o verossímil,
o duvidoso e o falso.
344 LiçOes de história

Foi a Alemanha que contribuiu para a maior parte do trabalho histó­


rico de nosso século. Outros países podem citar nomes de historiadores tão
brilhantes quanto os seus; nenhum poderá citá-los em tão grande número;
nenhum pode se gabar de ter feito tanto progredir a ciência. Esta superio­
ridade a Alemanha deve sem dúvida a seu gênio, essencialmente adequado
às pesquisas pacientes da erudição; ela a deve também ao pequeno desen­
volvimento que a vida pública e a vida industrial tiveram do outro lado do
Reno até uma época recente e à alta estima na qual ela sempre teve os tra­
balhos do espírito; ela a deve, sobretudo, à forte organização de suas uni­
versidades. Em lugar de desaparecer lentamente, como na França a partir
do século XVI, para não deixar subsistirem senão os colégios de instrução
secundária, o ensino superior foi, ao contrário, gradualmente modificado
segundo as necessidades do tempo, abandonando as tradições eclesiásti-
:as e teológicas da Idade Média para se abrir ao espírito livre e laico, e
:onservando a alta direção intelectual do país. Os hábitos universitários
ali se mantiveram e mesmo desenvolveram. Do mesmo modo, enquanto
na França o movimento científico e literário foi quase absolutamente es­
tranho às universidades e se concentrou na magistratura, no clero e nas
academias, na Alemanha ele se concentrou nas universidades. A teologia,
longe de ser um obstáculo aos estudos sérios, graças ao espírito de liber­
dade que ali reina, tornou-se o domínio onde a crítica se exerce com mais
minúcia e rigor. Graças às suas grandes corporações de eruditos e profes­
sores, estabeleceram-se fortes tradições científicas, hábitos universais de
método e de crítica. Pela força mesma das coisas e sem acordo prévio, a
exploração dos diversos domínios da história seguiu uma marcha regular
e sistemática e foi facilitada pelo trabalho em comum, tão fácil de se es­
tabelecer entre os professores de uma universidade, secundados por seus
alunos. Pode-se sem dúvida censurar mais de um defeito à ciência alemã
contemporânea, sua prolixidade, suas minúcias, suas sutilezas, os esforços
que ela faz muitas vezes para chegar a resultados mesquinhos, o pouco de
cuidado que ela adota para com a forma literária e que provém metade do
desdém, metade da impotência. O trabalho que ela realizou neste século
não é menos grandioso. Publicações de textos, crítica de fontes históricas,
elucidação paciente de todas as partes da história examinadas uma a uma
e sob todos os seus aspectos, nada foi negligenciado. Basta lembrar os no-
mes de Lassen, Boeckh, Niebuhr, Mommsen, Savigny, d’Eicheron, Ranke,
Gabriel Monod 345

Waitz, Pertz e Gervinus, ou lembrar as coleções do Corpus Inscriptionum,


dos Monumenta Germaniae, do Jahrbucher des Deutschen Reiches, das Chroni-
ken der Deutschen Staedte, as Fontes rerum Austtiacarum, os Schptores rerum
Prussicarum etc., e as publicações excelentes das inumeráveis sociedades
históricas que cobrem a Alemanha. Pode-se comparar a Alemanha a um
vasto laboratório histórico no qual todos os esforços são concentrados e
coordenados e onde nenhum esforço é perdido. Para apreciar ali em seu
justo valor o movimento histórico, seria preciso passar em revista todos os
demais ramos de estudos, pois o método histórico é aplicado em toda par­
te. Todas as outras ciências, filologia, direito, teologia, filosofia, se servem
da história e são solicitadas por ela a contribuir. Seria ademais bem injusto
imaginar-se, como se faz por vezes, que a ciência alemã seja desprovida de
ideias gerais e se reduza a pesquisas de curiosidade erudita. Ao contrário,
as ideias gerais ali são abundantes, somente não são fantasias literárias,
inventadas em um momento de capricho e pelo charme da imaginação;
não são sistemas e teorias destinados a agradar por sua bela aparência e sua
estrutura artística; são ideias gerais de um caráter científico, isto é, gene­
ralizações de fatos lentamente e rigorosamente estabelecidos, ou hipóteses
destinadas a explicar os fatos já conhecidos e a servir à exploração de fatos
ainda obscuros. É graças a essas ideias gerais que as ciências históricas
podem merecer realmente o nome de ciências, estabelecer bases sólidas e
realizar progressos seguros. Nenhum país contribuiu mais que a Alemanha
para dar aos estudos históricos esse caráter de rigor científico.
O desenvolvimento dos estudos históricos na França está longe de ter
alcançado a mesma regularidade. As causas devem ser procuradas, como
na Alemanha, no gênio da nação, mais espontâneo, mais impaciente, mais
inclinado às seduções da imaginação e da arte; mas também na ausência
de todo ensino superior eficaz, de toda disciplina científica geral, de toda
autoridade diretora, dessas regras de método, desses hábitos de trabalho
coletivo que toda alta educação universitária proporciona. A Academie des
Inscriptions, que sucedeu em 1816 aos beneditinos para a realização dos
grandes trabalhos que eles empreenderam — os historiadores da França,
a Gallici Christiana e a história literária; que retomou os trabalhos da antiga
academia — as tábuas cronológicas e a compilação de diplomas e cartas, e
a compilação das ordenações; que empreendeu mesmo uma coleção nova,
a dos historiadores das Cruzadas; e que outorgou prémios numerosos para
346 Lições de história

os trabalhos históricos, nunca exerceu, no entanto, influência sensível so­


bre a direção dos estudos. Nós ali ganhamos talvez em originalidade, ao
menos do ponto de vista da forma literária; ali perdemos do ponto de vista
da utilidade científica dos trabalhos de nossos historiadores. Eles são quase
todos autodidatas\ não tiveram mestres e não formaram discípulos. Impuse­
ram à história a marca de seu temperamento, de sua personalidade. São de
costume, mesmo os mais eruditos, mais literatos que sábios. A prova disso
é que não se pode vê-los retomando e remanejando as obras para colocá-las
atualizadas em relação aos progressos da ciência. Eles as reeditam com 20
anos de distância sem nada mudar nelas.23 Sint ut sunt aut non sint.24 O que
lhes importa em seus escritos são menos os fatos em si que a forma que
eles lhes deram.
A esta falta de tradições científicas e de unidade de direção, aos arre­
batamentos da imaginação vieram se juntar as paixões políticas e religiosas.
Os mais eminentes entre os historiadores deixaram-se influenciar forte­
mente em suas teorias, em suas apreciações e mesmo em sua crítica dos
fatos pelas paixões contemporâneas. Isto é bem verdadeiro para Thierry,
mas também para Guizot, para Michelet como para Thiers. O exemplo e a
lembrança do século XV11I os levou, de resto, a generalizações precipita­
das, e eles imaginavam que, uma vez terminada a revolução e, sobretudo,
a carta de 1830 proclamada, teria chegado o momento de escrever de uma
maneira definitiva a história geral da França ou mesmo, como E. Quinet,
de traçar em algumas páginas a filosofia da história da França.
Apesar desses defeitos de nossos historiadores mais ilustres, eles nos
prestaram imensos serviços. Esse sentimento artístico e literário, essa po­
tência de imaginação que os levou excessivamente a substituir com suas
impressões pessoais a realidade dos fatos permitiu-lhes ao mesmo tempo
ressuscitar o passado, dar-lhe suas verdadeiras cores, fazê-lo compreender
por assim dizer pelos olhos, dando-lhe um relevo, uma vida extraordinária.
Essas paixões políticas e religiosas, que os conduziram tantas vezes a alterar
a verdade, lhes permitiram também penetrar mais profundamente que ou-

23 Ver Michelet, Guizot e o próprio Auguste Thierry.


2-1 Diz-se do papa Clemente XIII que, ao ser instado a fazer mudanças drásticas nos estatutos da
Ordem Jesuíta, teria assim respondido: Sint ut sunt aut non sint (que seja como é, ou não seja de
modo algum). (N. do T.)
Gabriel Monod 347

tros o fizeram na alma dos homens do passado, deslindar seus sentimentos


íntimos, compreender o lado psicológico e humano da história. Esta ten­
dência a filosofar, que engendrou tantas teorias apressadas e falsas, revelou
com frequência as relações íntimas e escondidas dos eventos, e a gravidade
de fatos aparentemente insignificantes.
Aos historiadores franceses pertence, sobretudo, a glória de terem
colocado a vida na história, de terem ali buscado o homem em lugar dos
fatos, e de terem criado uma agitação intelectual fecunda pela quantidade
de pontos de vista novos, de ideias gerais, prematuras a maioria das vezes,
mas quase sempre engenhosas e interessantes, que eles divulgaram em seus
escritos. Sua influência foi imensa, e os alemães, cujo método era oposto ao
seu, foram os primeiros a reconhecê-lo.
Chateaubriand renovou a concepção que se fazia da história da França
em suas Considerações plenas de intuições de gênio; Thierry, cuja vocação
histórica foi despertada pela leitura de Chateaubriand, restituiu aos tempos
bárbaros e à Idade Média suas verdadeiras cores; Guizot procurou decom­
por em seus elementos a civilização da Europa e a da França e mostrou na
Revolução da Inglaterra o jogo das paixões políticas e religiosas; Michelet
melhor que ninguém soube fazer reviver não somente a aparência exterior
do passado, mas as paixões, os sentimentos e as ideias que agitaram os
homens; enfim, Tocqueville, em seu livro inacabado sobre O Antigo Regime
e a Revolução, apoiando suas ideias gerais sobre um estudo sério dos fatos,
modificou de alto a baixo as ideias recebidas sobre as relações que uniram
a nova França à antiga, e viu uma continuação lógica lá onde se acreditava
ver uma contradição radical. Ao lado desses Dii Majores da literatura histó­
rica na França encontramos admiráveis narradores, como Barante, Thiers e
Mignet, e um escritor mais poeta que erudito, com espírito vago e aventu­
reiro, mas que, em suas Revoluções da Itália e em seu livro sobre a Revolução
Francesa, teve verdadeiras adivinhações históricas: Edgar Quinet.
A maior dificuldade que a ciência histórica teve que enfrentar, na
França, foi a separação ou, melhor dizendo, a espécie de antagonismo que
durante muito tempo pretendeu-se estabelecer entre a literatura e a erudi­
ção. Muitos dos letrados afetaram uma espécie de desprezo pelas pesquisas
de erudição, acreditando que a imaginação, o bom senso, certa dose de
espírito filosófico e o estilo bastariam; os eruditos, por seu lado, por vezes
mostraram um desdém excessivo pela forma literária, uma aversão irracio-
348 Lições de história

nal pela ideias gerais, onde eles não queriam ver senão fantasias ou frases,
e se refugiaram com uma espécie de preconceito em minúcias e detalhes de
fatos muitas vezes sem interesse. Os homens que verdadeiramente ilustra­
ram a ciência histórica não a compreendiam assim. Augustin Thierry não
acreditava transgredir seu talento literário quando consagrava seus esforços
a classificar os documentos relativos à história do Terceiro Estado;25 Miche-
let procurava conter sua imaginação não avançando nada que não pudesse
apoiar sobre textos, e considerava os arquivos como o verdadeiro laborató­
rio do historiador; ninguém fez mais que Guizot pela publicação de textos
e documentos históricos. Mas esses homens eminentes não puderam se
opor às consequências fatais da falta de um ensino superior bem organiza­
do, no qual a juventude viesse adquirir ao mesmo tempo uma cultura geral
e hábitos de método, de crítica e de severa disciplina intelectual.
Hoje, no entanto, se a França tem a infelicidade de ver desaparece­
rem, um após outro, sem que sejam substituídos, todos os historiadores
que fizeram sua glória por seu gênio de pensadores e de escritores, temos
ao menos esta consolação de ver os sadios métodos de trabalho e de crítica
se difundirem cada vez mais, o antagonismo entre a literatura e a erudição
diminuir, e uma concepção mais justa da ciência histórica aparecer gra­
dualmente. Aproximam-se as escolas por tanto tempo rivais. Compreen­
deu-se o perigo das generalizações prematuras, dos vastos sistemas a ptiori
que têm a pretensão de tudo abarcar e de tudo explicar. Compreendeu-se
também o pequeno interesse que oferecem as pesquisas de pura curiosi­
dade, que não são guiadas por nenhuma ideia de conjunto, por nenhum
plano traçado com antecedência. Sente-se que a história deve ser objeto
de uma investigação lenta e metódica, em que se avança gradualmente do
particular ao geral, do detalhe ao conjunto; em que se esclarecem suces­
sivamente todos os pontos obscuros, a fim de ter quadros completos e de
poder estabelecer, sobre os grupos de fatos bem constatados, ideias gerais
suscetíveis de prova e verificação. É pouco provável que a segunda metade
do século veja surgir obras históricas tão deslumbrantes quanto as que ilus-

25 Terceiro Estado foi uma classificação da sociedade francesa durante o Antigo Regime, até a Revo­
lução Francesa. Indicava os que não pertenciam ao clero (Primeiro Estado) nem à nobreza (Segun­
do Estado). Trata-se de uma categoria heterogénea, tanto económica como socialmente considera­
da, incluindo a burguesia, os camponeses, artífices e operários de manufaturas. (N.do T.)
Gabriel Monod 349

traram a primeira, mas podemos afirmar que a atividade histórica será nela
fecunda. Todos os eruditos estão ao mesmo tempo persuadidos de que o
estilo e a forma literários estão longe de serem ornamentos supérfluos; que
eles acompanham quase sempre os trabalhos maduramente elaborados, e
que somente eles lhes dão um valor durável. O estilo não consiste em ar­
redondar as frases sonoras, mas em revestir o pensamento da forma que
lhe convém; a crítica histórica, assim como a história narrativa comportam
cada qual formas literárias especiais, e o talento de escrever e de compor se
exerce tanto numa como na outra. A crítica, de resto, não trabalha senão
para preparar as vias da história narrativa e mesmo, em certa medida, da
história filosófica. Nesses quadros mais vastos, o talento e o gênio podem
naturalmente se desenvolver mais amplamente.
Apesar de todos os progressos alcançados, estamos ainda, portanto,
em um período de preparação, de elaboração de materiais que mais tarde
servirão à construção de edifícios históricos mais vastos.
Os progressos alcançados até agora nada mais fizeram do que iluminar
as condições de uma investigação verdadeiramente científica, e esta investi­
gação está apenas começando. Todos os que se dedicam a ela são solidários
uns com os outros; trabalham na mesma obra, executam partes diversas do
mesmo plano, buscam o mesmo objetivo. É útil, é mesmo indispensável
que eles se sintam todos unidos, e que seus esforços sejam coordenados
para serem mais poderosos. Diversos meios podem contribuir para isso.
Um ensino superior bem organizado contribuiria mais que qualquer outra
coisa. As sociedades eruditas sérias, como as muitas que possuímos, servem
para isso poderosamente. A Revue Historique, que surge hoje, quer trabalhar
no mesmo objeto. Ela quer não apenas favorecer a publicação de trabalhos
de detalhes originais e sérios, mas também e acima de tudo servir de elo
entre todos os que consagram seus esforços à vasta e múltipla investigação
da qual a história é o objeto; fazer-lhe sentir sua solidariedade, fornecer-lhe
as informações precisas e abundantes sobre tudo o que se realiza atualmen­
te nos campos variados das ciências históricas. Queríamos contribuir para
formar pelo exemplo de um bom método os jovens que querem ingressar
na carreira histórica, encorajar e manter no bom caminho os que já nele
estão, servir a todos de centro de reunião e informação.
Há nove anos, uma revista foi fundada com intenções análogas às
nossas, a Revue des Questions Historiques. O sucesso que ela alcançou, os
350 Lições de história

felizes resultados que produziu, o proveito que nós mesmos retiramos de


sua leitura foram um estímulo para que a imitássemos. Mas ao mesmo
tempo ela se afasta muito do ideal que nos propomos, para que sua exis­
tência faça parecer a nossa inútil. Ela não foi fundada simplesmente tendo
em vista a pesquisa desinteressada e científica, mas para a defesa de cer­
tas ideias políticas e religiosas. O sentido no qual as pesquisas históricas
devem ser dirigidas é indicado com antecedência por certas ideias gerais
que, expressas ou subentendidas, parecem aceitas de antemão por todos os
colaboradores.
É sobre um princípio totalmente oposto que fundamos a Revue His-
torique. Pretendemos permanecer independentes de toda opinião política e
religiosa, e a lista de homens eminentes que aceitaram patrocinar a Revue
prova que eles creem esse programa factível. Estão longe de professar todos
as mesmas doutrinas em política e em religião, mas pensam como nós que
a história pode ser estudada em si mesma, e sem se preocupar com con­
clusões que possam dela ser tiradas a favor ou contra uma ou outra cren­
ça. Sem dúvida as opiniões particulares influem sempre, em certa medida,
sobre a maneira pela qual se estudam, se veem e se julgam os fatos ou os
homens. Mas deve-se fazer um esforço para afastar essas causas de preven­
ção e de erro para somente julgar os eventos e os personagens em si mes­
mos. Admitimos, por outro lado, opiniões e apreciações divergentes, sob
condição de que sejam apoiadas sobre provas seriamente discutidas e sobre
fatos, e que não sejam simples afirmações. Nossa Revue será um repertório
de ciência positiva e de livre discussão, mas ela se limitará ao domínio dos
fatos e permanecerá fechada às teorias políticas ou filosóficas.
Não empunhamos, portanto, nenhuma bandeira; não professaremos
nenhum credo dogmático; não nos envolveremos sob as ordens de nenhum
partido; o que não quer dizer que nosssa Revue será uma babel onde todas
as opiniões virão se manifestar. O ponto de vista estritamente científico
em que nos colocamos bastará para dar à nossa coleção a unidade de tom
e de caráter. Todos os que se colocam nesse ponto de vista experimentam
em relação ao passado um mesmo sentimento: uma simpatia respeitosa,
mas independente. O historiador não pode de fato compreender o passado
sem certa simpatia, sem esquecer seus próprios sentimentos, suas próprias
ideias, para se apropriar por um instante daqueles dos homens do pas­
sado, sem se colocar em seu lugar, sem julgar os fatos no meio em que
Gabriel Monod 351

ocorreram. Ele aborda ao mesmo tempo esse passado com um sentimento


de respeito, porque ele sente melhor que ninguém os mil laços que nos
unem aos ancestrais; ele sabe que nossa vida é formada pela deles, nossas
virtudes e nossos vícios por suas boas e más ações, que somos solidários
uns aos outros. Há algo de filial no respeito com o qual ele busca penetrar
em sua alma; ele se considera o depositário das tradições de seu povo e da
humanidade.
Ao mesmo tempo, porém, o historiador conserva a perfeita indepen­
dência de seu espírito e não abandona nada de seus direitos de crítica e de
julgamento. O tesouro das tradições antigas se compõe de elementos os
mais diversos, elas são fruto de uma sucessão de períodos diferentes, de
revoluções até, as quais, cada uma no seu tempo e por sua vez, tiveram
todas sua legitimidade e sua utilidade relativas. O historiador não é o de­
fensor de umas contra as outras; ele não pretende riscar umas da memória
dos homens para dar às outras um lugar imerecido. Ele se esforça para
encontrar suas causas, definir seu caráter, determinar seus resultados no
desenvolvimento geral da história. Ele não faz o processo da monarquia em
nome da feudalidade, nem de 1789 em nome da monarquia. Ele mostra os
laços necessários que unem a revolução ao Antigo Regime, o Antigo Regi­
me à Idade Média, a Idade Média à Antiguidade, observando sem dúvida
os erros cometidos e que é bom conhecer para que seu retorno seja evitado,
mas deve se lembrar sempre que seu papel consiste antes de tudo em com­
preender e explicar, não em louvar ou condenar.
Bem poucos historiadores se elevam, de fato, a esta imparcialidade
científica. De costume uns se fazem advogados do passado, maldizendo
cada mudança que o progresso dos tempos traz e se consumindo em la­
mentos estéreis sobre o que ele destruiu sem volta; outros, pelo contrário,
se fazem os acusadores do passado, apologistas de todas as revoltas e de
todas as revoluções, incapazes de compreender as grandezas desapare­
cidas em sua impaciência de um ideal sempre por chegar. O verdadeiro
historiador é aquele que, elevando-se acima dessas tomadas de posição
apaixonadas e exclusivas, concilia tudo o que há de legítimo no espírito
conservador com as exigências irresistíveis do movimento e do progresso.
Ele sabe que a vida e a história são uma perpétua mudança; mas que essa
mudança é sempre uma transformação de elementos antigos, jamais uma
criação inteiramente nova. Ele dá às gerações presentes o vivo sentimento,
352 Lições de história

a consciência profunda da feliz e necessária solidariedade que as une a


gerações anteriores, mas fazendo ver ao mesmo tempo que essas tradições,
que são uma força para caminhar adiante, se tornariam funestas se alguém
pretendesse ali aprisionar-se como em formas imutáveis.
Nossa época, mais que todas as outras, é adequada para esse estudo
imparcial e simpático do passado. As revoluções que abalaram e desordena­
ram o mundo moderno fizeram desaparecer das almas os respeitos supers­
ticiosos e as venerações cegas, mas elas fizeram também compreender tudo
o que um povo perde de força e vitalidade quando rompe violentamente
com o passado. No que concerne especialmente à França, os eventos dolo­
rosos, que criaram em nossa pátria os partidos hostis se apegando cada um
a uma tradição histórica especial, e os que mais recentemente mutilaram a
unidade nacional lentamente criada pelos séculos, nos colocam como que
um dever de despertar na alma da nação a consciência de si mesma pelo
conhecimento aprofundado de sua história. É por aí somente que todos
podem compreender o laço lógico que une todos os períodos do desen­
volvimento de nosso país e mesmo todas as suas revoluções; é por aí que
/ todos se sentirão os rebentos do mesmo solo, os filhos da mesma raça, não
renegando parte alguma da herança paterna, todos filhos da velha França, e
ao mesmo tempo todos da mesma maneira cidadãos da França moderna.
É assim que a história, sem se propor outro objetivo e outra finalidade
que o proveito que se tira da verdade,26 trabalha de maneira secreta e segura
para a grandeza da pátria e, ao mesmo tempo, para o progresso do gênero
humano.

26 La Popelinière (Premier livre de Videe de 1’histoire accomplie, p. 66).


Ernest Lavisse
Tereza Cristina Kirschner

Ernest Lavisse nasceu em 1842, na pequena cidade francesa Le Nou-


vion-en-Thiérarche, localizada no departamento de Aisne. Oriundo de
uma família protestante de recursos modestos, Lavisse pôde concluir sua
formação intelectual graças à obtenção de uma bolsa de estudos. Em
1862, diplomou-se na École Normale Supérieure e, em 1865, aprova­
do no concurso para professor de história, começou a lecionar no liceu
Henry IV, em Paris. O jovem professor de 26 anos chamou a atenção de
Victor Duruy, ministro da Educação de Napoleão III, que o indicou para
preceptor do príncipe, função que Lavisse exerceu entre 1868 e 1871.1
A derrota na guerra com a Prússia, em 1870, e a perda da região da Alsá-
cia-Lorena geraram um sentimento de humilhação entre os franceses, e a ques­
tão da honra nacional mobilizou muitos intelectuais. Lavisse não ficou imune a
esse sentimento e tomou-se crítico veemente da política expansionista alemã.
Como historiador, propôs-se a contribuir para a “obra de reparação.”
O avanço dos estudos históricos na Alemanha atraía os franceses.
A passagem pelas universidades alemãs foi importante para a formação

1 O ministro adotou o jovem professor como seu “filho espiritual", e os dois cultivaram uma
relação de amizade até a morte de Duruy, em 1894. Sobre a atuação de Duruy no ministério,
ver Lavisse (1895).
354 Lições de história

de historiadores como Gabriel Monod, Charles Seignobos e Camille


Julian. Lavisse também seguiu esse caminho. Em 1873, o jovem his­
toriador partiu para a Alemanha, onde aprofundou seus estudos com
Georg Waitz, ex-aluno de Leopold von Ranke e um dos colaboradores
do projeto Monumenta Germania Histórica.2 Quando retornou a Paris,
em 1873, apresentou sua tese de doutorado: A marcha de Brandenburgo;
ensaio sobre uma das origens da monarquia prussiana. Posteriormente, es­
creveria outros livros sobre a história alemã.3 O enigma da vitória alemã
foi um dos motivos que o levou a pesquisar a história desse país. A his­
tória permitiria conhecer os fundamentos do poderio alemão e revelar
os segredos da derrota francesa. Lavisse entusiasmou-se com o sistema
de ensino alemão e com o papel das universidades na formação do es­
pírito público. “As universidades e os intelectuais alemães formaram o
espírito público na Alemanha”, diria em 1881.4 Ele retornou à França
com o sonho de ver estabelecida em seu país essa íntima relação entre
:iência e patriotismo. Anos mais tarde, L. Lamounier, um de seus co­
legas, comentaria: “toda sua vida foi guiada pela mesma preocupação:
renovar os estudos históricos de maneira a torná-los um meio poderoso
de educação nacional”.5
Lavisse não se entusiasmou com a instauração da Terceira República
na França, em 1875.6 O professor mantinha esperança de ver o império
restaurado. Em 1878, entretanto, aderiu ao novo regime; parecia-lhe, en­
tão, que ele poderia evitar revoltas como a Comuna de Paris, ocorrida em
1870. Lavisse decidiu-se pela República quando ela já estava consolidada;
quando República e defesa da nação faziam parte de um mesmo ideal.
Durante a Terceira República Lavisse consolidou sua carreira uni­
versitária. Em 1876, assumiu o cargo de mestre de conferências na Éco-
le Normale Supérieure; em 1880, o de suplente de Fustel de Coulanges
na Sorbonne; e, de 1883 a 1888, foi diretor de estudos nessa univer-

2 Coleção de documentos alemães publicados a partir de 1826.


3 Estudos sobre a história da Prússia, (1879); Estudos sobre a Alemanha imperial (1881); Três impe­
radores da Alemanha (1888) e Frederico, o Grande (1891).
4 Lavisse, 1881.
5 Apud Nora (1962:73). Sobre Lavisse, ver também Delacroix, Dosse e Garcia (2007).
6 À queda do segundo império de Napoleão III, em 1870, seguiu-se a proclamação da Terceira
República, que durou até 1940.
Ernest Lavisse 355

sidade, quando então assumiu a cátedra de professor de história. Em


1893, foi indicado para a Academia Francesa e, em 1894, tornou-se
editor de La Revue de Paris. Entre 1904 e 1919, dirigiu a École Normale
Supérieure.
Ernest Lavisse faz parte da geração mais jovem de historiadores que
aderiu ao movimento iniciado em 1876 por Gabriel Monod na Revue His-
lorique.7 Nessa revista foram lançadas as bases da escola metódica francesa,
também conhecida como escola positiva, sob cuja influência desenvolveu-
se a maior parte da produção historiográfica do país entre 1880 e 1920.8
No primeiro número da revista, Monod apresentou o método que seria o
guia para a prática dos historiadores. O emprego do método da ciência
histórica é o que distinguiria os verdadeiros historiadores dos intelectuais
que escreviam história filosófica ou literária.9 Sob influência dos historia­
dores alemães, a revista propunha a utilização de técnicas rigorosas para a
elaboração de inventários das fontes e a crítica minuciosa dos documentos.
Após a derrota da França, o estudo do passado da nação tornou-se tarefa
primordial, por meio da qual se poderiam alcançar “a unidade e a força
moral”. Como afirmou Monod na apresentação do primeiro número da
Revue Historique (1876), tratava-se de “despertar na alma da nação a cons­
ciência de si própria pelo conhecimento de sua história”. A história-ciência

7 Deve-se ressaltar que a preocupação em fazer avançar os estudos históricos na França e fun­
damentá-los em fontes primárias já era uma preocupação de Guizot, Mignet, Thierry e outros,
nas décadas de 1820 e 1830.
8 O termo “positivismo” surgiu na língua francesa para designar o sistema de pensamento de
Auguste Comte e dos seguidores da “filosofia positiva”. Para os histonadores da escola meló­
dica, entretanto, um estudo positivo era aquele fundamentado em documentos autênticos, e
nâo fruto de uma reflexão especulativa. O uso da expressão “positivo” não significa, portanto,
uma filiação à filosofia positiva de Comte, pois os metódicos eram contrários a qualquer tipo de
filosofia da história. Posteriormente, a expressão “positivismo” seria empregada genericamente,
em sentido pejorativo, para designar uma corrente de pensamento que defendia a aplicação de
procedimentos elaborados nas ciências naturais a todos os domínios do saber, como única ma­
neira de se obter um conhecimento objetivo. A partir da década de 1970, foram considerados
“positivistas” os historiadores que defendiam a possibilidade de uma história “objetiva”. Sobre o
assunto, ver Carbonell (1976); Delacroix, Dosse e Garcia (1999); Noiriel (2005).
9 Na época, era usual referir-se à escola metódica como “nova escola” ou “nova história”. Os
críticos dessa nova tendência historiográfica, aqueles que repudiavam a recém-adquirida auto­
nomia da disciplina e defendiam uma história subordinada à literatura e à filosofia, falavam da
“barbárie da nova Sorbonne”, aludindo aos professores da universidade reconstruída e inaugu­
rada em 1889. Ver Mayeur (1973).
356 Lições de história

nascia na França sob o signo do patriotismo. Lucien Febvre anos mais


tarde, a definiria como a história dos vencidos de 1870.10
O ensino da história tornou-se uma das prioridades da Terceira Repú­
blica francesa, o que contribuiu para o êxito da campanha de Lavisse para
a especialização da formação dos historiadores e sua profissionalização.
Tratava-se de estabelecer uma linha de demarcação entre o profissional
da história e outros intelectuais. Foi com esse propósito que o professor
engajou-se no debate sobre a reforma do ensino que mobilizou os intelec­
tuais republicanos na década de 1880.11 Lavisse tornou-se conselheiro do
governo para assuntos educacionais.
A reforma do ensino realizada pelos republicanos foi obra de pro­
fessores universitários. Lavisse destacou-se nessa empreitada; participou
ativamente de comissões para a reforma do ensino e foi um dos redatores
da lei Poincaré, de 1896, que reformou o ensino superior e criou universi­
dades nas províncias.
No âmbito do ensino superior, criaram-se novas faculdades e discipli­
nas, e a carreira universitária foi reestruturada. A história tomou-se uma dis­
ciplina acadêmica de prestígio, e o historiador, um profissional respeitado.
Quanto ao ensino primário, este tomou-se laico, obrigatório e gratuito.
Lavisse manifestou interesse especial pelo ensino primário, que, em
sua opinião, deveria possuir um componente moral e patriótico. Era im­
portante instruir as novas gerações no amor à República, combater o obs­
curantismo clerical e estimular o patriotismo. Com esse objetivo, produziu
um manual de história, de acordo com as instruções ministeriais que orien­
tavam os programas e os manuais escolares de história, geografia e instru­
ção cívica. Seu manual (História da França) era um verdadeiro evangelho
republicano. Uma primeira versão foi publicada em 1876. Mas o verdadei­
ro manual para o ensino primário, aquele ao qual Lavisse dedicou-se de
corpo e alma, é de 1884. O prefácio ao Petit Lavisse, como ficou conhecido
o manual, é carregado de intenção patriótica: “há 100 anos a França era
governada por um rei: hoje ela é uma República, e os franceses governam-

10 Febvre, 1992a:41.
11 Lavisse, ao lado de Ernest Renan e outros intelectuais, foi membro ativo da Sociedade do
Ensino Superior e escreveu uma quantidade significativa de artigos na Reme Internationale de
VEnseignement Supéríeu, revista criada pela sociedade em 1878.
Ernest Lavisse 357

se a si próprios”. Dois textos de instrução cívica, escritos pelo autor sob o


pseudónimo de Pierre Laloi, acompanhavam o livro.12 E Buisson diretor
do ensino primário, não poupou elogios ao manual: “eis o livro de história
verdadeiramente nacional e verdadeiramente liberal que demandávamos
para ser um instrumento de educação, de educação moral”. O livro obteve
enorme sucesso e foi reeditado várias vezes. Em 1895 estava na 75a edição
e foi publicado até a década de 1960.
Lavisse defendeu uma nova pedagogia para o ensino de história. De­
nunciou a ênfase nos fatos, nos detalhes e na memorização passiva. Julgava
que as aulas deviam ser “pitorescas”, de maneira a estimular a imaginação
dos jovens.13 O Petit Lavisse continha anedotas, biografias de personagens
ilustres e, sobretudo, muitas imagens.
O patriotismo era forte no manual. No prefácio à edição de 1895,
Lavisse observou:

se o estudante não tiver a lembrança viva de nossas glórias nacionais, se


ele não souber que seus ancestrais combateram em mil campos de batalha
por causas nobres; se não aprender a quantidade de sangue e os esforços
que foram necessários para realizar a unidade de nossa pátria e retirar
em seguida, do caos de nossas instituições envelhecidas, as leis que nos
fizeram livres; se ele não se tornar um cidadão compenetrado dos seus
deveres e um soldado que ama seu fuzil, o professor terá perdido seu
tempo.14

Se, do ponto de vista teórico, Lavasse rejeitou qualquer tipo de te-


leologia, ela acabou sendo introduzida no manual pelo viés da narrativa
nacional, que se desdobra das origens gaulesas até a Terceira República, em
um movimento contínuo. A imagem da França é a de uma coletividade na
qual os particularismos regionais e as desigualdades sociais são relativiza-
dos em nome do espírito nacional. A Revolução Francesa foi recuperada,
mas enquanto a reunião dos Estados Gerais, a Declaração dos Direitos do
Homem e as festas da Federação são exaltadas, o período da convenção e

12 Laloi, 1892.
13 Lavisse, 1890.
14 Apud Nora (1962:102).
358 Lições de história

do Terror revolucionário são descritos como desvios de um processo linear


que culminaria na Terceira República. Segundo Lavisse, não se devia esti­
mular nos jovens a admiração pelas revoltas e induzi-los a “acreditar que
um bom francês deve ocupar as Tulherias pelo menos uma vez na vida,
ou duas, se possível, e depois assaltar o Palácio dos Campos Elísios ou o
Palácio Bourbon!”15
Para outro tipo de público, Lavisse empreendeu a publicação de gran­
des coleções. Com Alfred Rambaud, coordenou a História geral do século IV
aos nossos dias, publicada em 12 volumes entre 1890 e 1901. Mas o grande
empreendimento de Lavisse foi a publicação de uma grande coleção da
história da França. Comparando a situação dos estudos históricos na Ale­
manha e no seu país, o professor costumava dizer que “a história da França
está por se fazer”. Em 1892, iniciou a organização da História da França da
época galo-romana à revolução, com a colaboração de uma equipe de histo­
riadores, a maioria professores universitários formados por ele. O resulta­
do foi uma coleção de nove tomos e 17 volumes, publicada entre 1903 e
1911. Lavisse escreveu apenas os dois volumes sobre Luís XIV Embora os
historiadores da escola metódica priorizassem a nação e os fatos políticos,
militares e diplomáticos como objeto de estudo, a coleção é mais abran­
gente. A seção introdutória (quadro de geografia da França) foi escrita pelo
geógrafo Paul Vidal de la Blache, e o próprio Lavisse, nos volumes sobre
Luís XIV, dedicou algumas páginas às artes e à literatura. Numerosas notas
de rodapé indicam as fontes consultadas e sugestões de leitura.
Em 1905, Lavisse concordou em organizar outra coleção, a Histótia
da França contemporânea. Contudo, acabou deixando a direção efetiva aos
cuidados de Charles Seignobos. Em razão dos atrasos e da interrupção dos
trabalhos durante a guerra, a coleção seria publicada em nove volumes
entre 1920 e 1922, ano do falecimento de Lavisse.
Como observou Pierre Nora, o que distingue a História da França or­
ganizada por Lavisse das histórias anteriores sobre a França, e que faz dos
27 volumes um lugar de memória, é justamente a interpenetração da po-
sitividade científica e do culto obsessivo da pátria. Nela fundem-se duas
verdades que hoje parecem não ter relação, mas na época eram indissolu-

15 Lavisse, 1885:39.
Ernest Lavisse 359

velmente complemeniares.16 Enquanto verdades, legitimaram uma história


científica ao mesmo tempo engajada politicamente. Uma história na qual a
nação é ao mesmo tempo uma evidência, uma arma política, um esquema
cognitivo e um programa histórico.17 Na década de 1930, Lucien Febvre
condenou a subordinação do passado à política, que operava uma “deifica-
ção do presente por meio do passado”.18
Além de obras históricas, Lavisse escreveu dois livros sobre a refor­
ma do ensino.19 Publicou, ainda, artigos em várias revistas, como Révue
Historique, Revue des Deivc Mondes, Revue Philosophique de la France et de
PÉtranger e Revue de Paris, da qual foi editor. Sua vasta correspondência
encontra-se na Biblioteca Nacional da França.
Lavisse não deixou textos de natureza metodológica e, diferentemen­
te de alguns de seus colegas, fez restrições à excessiva especialização do
conhecimento histórico. Em sua opinião, “o grande ofício da história é
seguir a estrada humana, etapa por etapa, até alcançar a nossa.” Interes­
sava-lhe o estudo da evolução da humanidade, com base em práticas que
privilegiavam o exame de documentos existentes em arquivos e por meio
do “método histórico”. O professor orientava seus alunos nos princípios
do rigor metodológico, das técnicas da erudição e da objetividade, ou seja,
nos princípios da história-ciência.
Não se deve subestimar a contribuição de Ernest Lavisse para o avan­
ço dos estudos históricos na França, bem como para a formação e profis­
sionalização do historiador.20 Como observou Pierre Nora, a despeito de
todas as restrições que se fazem hoje à escola metódica, o respeito pelos
documentos, a precisão do vocabulário, o rigor do método são questões
que o historiador pode e deve discutir, explorar e desenvolver, mas não
pode negar. Tampouco se deve minimizar a importância da rigorosa for-

16 Nora, 1962:332
17 Hartog, 2001:15.
18 De 1892 a 1933: “Examen de conscience d’une historie et d’une histonen” (Febvre, 1992a).
19 Lavisse, 1885 e 1891.
20 Entre o período de 1874-1888 e 1909, a publicação de livros de história aumentou de 18,7%
para 30,3%, e criaram-se inúmeras sociedades de estudos históricos e revistas especializadas.
Entre 1870 e 1900, o número de disciplinas na área de história, na Sorbonne, duplicou, e entre
1880e1899 , um terço das teses de doutorado daquela universidade foi defendido por historia-
dores. Ver Boer (1998) e Noiriel (2005).
360 LiçOes de história

mação exigida do novo historiador, a qual incluía o domínio das chamadas


“ciências auxiliares”, como a paleografia, a diplomática e a filologia, além
do conhecimento de línguas antigas e estrangeiras.
Todavia, à parte o rigor e a erudição necessários ao ofício do historia­
dor, não se deve desconsiderar que uma característica do conhecimento
histórico é sua própria historicidade. Pelos mais diversos motivos, as ideias
sobre o homem, sobre o mundo e sobre a vida não cessam de se transfor­
mar. Assim, cada época suscita novas questões sobre o passado, o que,
muitas vezes, provoca uma revisão de interpretações anteriores. Como ob­
servou o historiador Reinhart Koselleck (1989), desde o momento em que
a história passou a ser escrita, passou, também, a ser revista. Esse processo
justifica a existência de um campo específico de pesquisa que é a história
da historiografia.21 Na perspectiva de uma história da historiografia, a pro­
dução intelectual de Lavisse ocupa um lugar não desprezível. Entretanto,
na medida em que havia a convicção de que as bases científicas da história
estavam lançadas, uma história da historiografia para Lavisse, como para
os metódicos em geral, correria o risco, como afirmou François Hartog
(1988), de resumir-se à enumeração dos erros de uma história pré-científi­
ca, ultrapassada. O forte apelo patriótico presente na produção historiográ-
fica de Lavisse dificultaria uma reflexão sobre a complexidade que envolve
a relação entre o presente e o passado.
O ensaio Do determismo histórico e geográfico, reproduzido a seguir,
é um comentário ao livro Da solidariedade moral, de Henri Marion,22 pro­
fessor de filosofia da Sorbonne e contemporâneo de Lavisse. O texto tra­
duz a luta dos historiadores metódicos pela autonomia de sua disciplina,
sobretudo em relação à filosofia. Nesse comentário, Lavisse expõe sua
concepção sobre a história. O historiador é apresentado como o guia que,
por meio do domínio dos documentos, detém os segredos do passado,
ocultos na abstração do filósofo. Contra a perspectiva do filósofo, Lavis­
se emprega os argumentos do historiador: a importância dos contextos
histórico e geográfico como condicionantes da ação e do pensamento;
a crítica à ideia abstrata de liberdade humana; o perigo da interferência

21 Sobre essa questão, ver Malerba (2006).


22 Ver Marion (1880).
Ernest Lavisse 361

de valores morais na interpretação dos fatos históricos; a concepção da


história como um processo evolutivo que comporta avanços e recuos; e a
noção de progresso como um perpétuo devir, teoricamente sem um final
predeterminado. Entretanto, Lavisse não exclui a possibilidade de o filó­
sofo trabalhar em colaboração com o historiador, desde que este estude
os fatos em si mesmos. O texto reflete, ainda, a inquietação de Lavisse
com a derrota francesa de 1870, e ele não hesita em assinalar a positivi-
dade da guerra para a honra nacional

Principais obras de Ernest Lavisse:

♦ Étude sur Vune des origines de la monarchie prussienne, ou la marche de


Brandenburg sous la dynastie ascanienne, 1875;
♦ Études sur 1’histoire de Prusse, 1879;
♦ Études sur VAllemagne impériale, 1881;
♦ Trois empereurs d’Allemagne, 1888;
♦ Étude sur le pouvoir Royal au temps de Charles V, 1884;
♦ Vue générale de l’histoire politique de VEurope, 1890;
♦ Louis XIV, la Fronde, le roi, Colbert. (1643-1685). In: Histoire de la Fran-
ce, 1905, t. 7, v.l;
♦ Louis XIV, la religion, les lettres et les arts, la guerre (1643-1685). In:
Histoire de la France, 1906;
♦ Histoire de France: cours élementaire, 1912.

DO DETERMINISMO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO23

Estas poucas páginas poderiam ser intituladas: “observações de um


professor de história sobre o livro do sr. Henri Marion, Da solidariedade
moraP. O professor de história lamenta encontrar um defeito nesse livro
tão bem feito: nele, a influência do meio histórico e geográfico sobre o in­
divíduo é extremamente atenuada.

23 Lavisse, 1879.
362 Lições de história

O livro divide-se em duas partes: solidariedade individual e soli­


dariedade social. A primeira é dedicada ao estudo do indivíduo a partir
do seu nascimento. No capítulo 2, que trata da “formação do caráter, do
meio físico e das condições económicas, e da primeira educação”, a influ­
ência do meio é mencionada ligeiramente, apenas em algumas linhas. O
fato de se ter “escrito muito sobre as relações entre a civilização em geral
e o meio”, como diz o sr. Marion, é motivo para que ele não insista nessas
verdades aceitas. Contudo, mesmo prescindindo de tratá-las, se o assunto
vale a pena, convém sistematizar pelo menos seus traços principais para
assinalar sua importância. O espírito do leitor guarda, assim, uma im­
pressão da ideia que está sendo apresentada. Se o objetivo é ser sucinto
ao expor uma questão importante, deve-se enfatizá-la, e não apresentá-la
de maneira superficial.
Sim, realmente se escreveu muito sobre a influência do meio, mas
nunca se escreverá o suficiente. Ela se exerce sobre todas as demais influên­
cias que atuam sobre nós. Nesse livro sobre solidariedade, de tão belas pá­
ginas, deparo-me com uma sobre a mãe-nutriz. Deve-se, porém, ressaltar:
tal meio, tal mãe. A mãe flamenga parece criar um burgomestre; a mãe ita­
liana trata o bambino como um brinquedo. Irrita-o retirando-lhe o seio para
oferecê-lo depois; oferece-o e retira-o para que ele o tome; faz cócegas para
que ele sorria, finge jogá-lo a alguém que passa. Assim é criado o senhor
Polichinelo. O meio que age diretamente sobre o indivíduo também age
indiretamente, por intermédio de todos os fatores da educação. Depois da
fase da educação, toda a vida é comandada por essa influência que restrin­
ge nossa liberdade. Nós não a sentimos tanto em um país como o nosso, de
natureza moderada; em outros, ela tem o peso da fatalidade.
É impossível conceber um estado de civilização no qual o homem te­
nha superado essa tirania. Por não estar convencido disso, o sr. Marion, na
conclusão do seu livro, apresenta uma humanidade cujos membros serão,
no futuro, igualmente respeitadores do direito.
Na segunda parte, “Da solidariedade social”, o indivíduo insere-se
na sociedade. A todas as influências que sofreu, adquiridas por meio da
educação e do hábito, acrescentam-se aquelas provenientes das relações
sociais. Nenhuma pena de moralista descreveu os efeitos da simpatia com
tanto refinamento como o sr. Marion, tanto nas suas formas mais preci-
sas quanto nas mais difusas; nem aquilo que ele denomina fenômenos de
Ernest Lavisse 363

reação, por meio dos quais se manifesta a originalidade moral. Mas o his­
toriador reivindica um espaço bem maior para os efeitos do costume, pois o
costume é o meio histórico.
Um capítulo mais longo seria necessário para descrever a influência
desse meio. Por mais difuso que seja, ele é muito forte. Isto será constatado
quando se tiver realizado a história da inteligência humana. Selecionem-se
escritores que em determinadas épocas manifestaram sua inteligência em
várias obras; apreendam-se, por meio de uma análise profunda, os móveis
de seu pensamento. Depois de multiplicarem-se estudos dessa natureza nas
mais diversas épocas, teremos alguns elementos de uma história da inteligên­
cia e, consequentemente, da moral humana. Então o poder do meio histórico
aparecerá em toda sua extensão.
A máxima — verdade aquém dos Pirineus, mentira além — é falsa, se
a tomamos no sentido absoluto que lhe deu Pascal.24 Uma montanha não é
tão poderosa, mas o tempo o é, certamente: verdade em tal século, mentira
em outro.
Quando o império romano se retirou do Ocidente e os povos bár­
baros ocuparam as províncias, um romano governava o reino da Itália de
Teodorico Cassiodoro.25 Ele aplicou toda a inteligência em suas cartas e
tratados, nos quais tratou de omni re scibili. Tudo o que a Antiguidade soube
ele sabia, e tudo era um pretexto para dizê-lo. Uma ordem para a restaura­
ção de um monumento era motivo para ele escrever uma história da arqui­
tetura. O fabrico de um instrumento de música ou de um relógio para ser
oferecido a algum rei bárbaro inspirava-o a escrever um tratado sobre mú­
sica e relojoaria. Cassiodoro conhecia os filósofos e os poetas. Era um bom
cristão com imensa erudição pagã. Introduziu no governo uma visão ampla
e liberal e seria um grande ministro se estivesse em uma grande monarquia.
Ora, esse homem dividiu um tratado em 12 capítulos, porque 12 eram as
constelações criadas por Deus; outro, em 33 capítulos, porque Jesus Cristo
viveu 33 anos. Em um tratado sobre ortografia, ele celebrou a profissão

24 Blaise Pascal (1623-1662), filósofo e matemático francês, autor das obras Pensamentos e As
provinciais. (N. do T.)
25 Teodorico (c.454-526), rei ostrogodo, venceu Odoacro em 493 e dominou a região da Itália
até sua morte. Promoveu a cultura romana na corte de Ravena. Cassiodoro (c.485-580), conse­
lheiro do rei Teodorico, é autor da obra Instituições e fundou o mosteiro Vivarium, importante
centro de copistas. (N. do T.)
364 Lições de história

divina do copista que reprimiu a artimanha do diabo com o calamus — o


instrumento utilizado pelo diabo ao atacar o Senhor durante o episódio
da Paixão —, e que escrevia com três dedos, o número de elementos da
divindade. De onde vem essa esquisitice? Quem se apodera desse espírito
e o aprisiona em formas vazias? É a influência teológica do meio histórico.
Eis um efeito intelectual desse meio.
Gregório de Tours foi um santo homem em uma triste época.26 Era
incapaz de praticar o mal; de provocar, por meio de uma má ação, qualquer
incómodo, sofrimento ou mesmo a morte. Gregório de Tours, entretanto,
julgado por nós, possui um senso moral questionável. Ele anunciou no
início do seu livro sua profissão de fé católica. Ser católico, eis para ele a
principal virtude. Ele praticava outras, mas essa era a primeira a reclamar
dos outros. Onde a encontrava, era incapaz de enxergar algum crime. Cló-
vis podia massacrar os reis, seus pais, depois de tê-los enganado por meio
das artimanhas de uma hipocrisia refinada.27 O livro que narra esses assas­
sinatos termina com uma frase célebre: “era assim que ele (Clóvis) obtinha
sucesso em tudo, pois caminhava, com as mãos puras, nas vias do Senhor.
Mas, desgraça ao príncipe que quisesse reformar o dogma da Trindade, ou
mesmo tocar nos privilégios nascentes da Igreja”. Gregório era o mais inte­
ligente dos merovíngios, sem ser mais malvado que os outros; a indignação
faz de Gegório quase um escritor, e seu retrato de Chilperico é um exemplo
de estilo.28 Ora, se o santo dignitário eclesiástico, um dos melhores e mais
instruídos homens do seu tempo, não conhecia mais a marca distintiva do
crime, como os príncipes e os grandes a conheceriam? E por que Gregório
não enxergava mais claramente o bem e o mal? Porque obedecia à influên­
cia teológica do meio histórico: eis um efeito moral desse meio.
Saltemos alguns séculos. Os filhos de Filipe, o Belo, sucediam-se sem
deixar descendentes masculinos.29 Colocou-se então a questão do direito

26 Georgius Florentius Gregorius (c.538-594), bispo de Tours a partir de 573, escreveu a famosa
História dos francos ou Dcccm libti historiarvm. (N. do T.)
27 Clóvis (c.466-511), rei franco, expandiu seus domínios sobre quase ioda a antiga província
romana da Gália. Converteu-se ao catolicismo. (N. do T.)
28 Chilperico (c. 539-584), rei merovíngio, cujos reinado e vicissitudes políticas foram narrados
e condenados por Gregório de Tours. (N. do T.)
29 Felipe IV ( 1268-1514), rei de França, conhecido como Felipe, o Belo. Seu reinado caracterizou-
se pelo fortalecimento da soberania régia, pela transferência da residência dos papas para a cidade
de Avignon, pela eliminação dos Templários e pela reorganização das finanças. (N. do T.)
Ernest Lavisse 365

das mulheres herdarem a coroa. Os partidários da exclusão das mulheres


procuraram e encontraram razões de todos os tipos. Eis uma que obteve
muito sucesso: a Escritura afirma que a flor de lis não se tece. Raciocínio:
a flor de lis é o símbolo da realeza francesa; e quem a tece?30 As mulheres.
Consequência: a coroa não podia pertencer às mulheres; ela não podia
passar por sucessão às mulheres. Quem permite e deseja que se pense as­
sim, que se distorça um texto da Escritura e dele se retire uma máxima de
direito político? É o espírito do tempo. É o meio histórico. Eis um efeito
político desse meio.
Chegamos aos tempos modernos. Saint-Simon não pode ser visto
como um admirador de Luís XIV, nem da monarquia tal como foi compre­
endida por esse monarca; entretanto, Saint-Simon declara, em um dos frag­
mentos encontrados recentemente, que se era mais livre na França como
jamais se havia sido em qualquer república, pois na França havia leis que
só podiam ser alteradas pelo príncipe no interesse de todos.31 Pode-se ima­
ginar uma ação mais singular e mais poderosa desse temível meio histórico?
O que mais poderia provocar um mergulho dentro de nós mesmos? Não
julgamos e repetimos todos os dias, como simples e naturais, coisas que
serão consideradas estranhas no século XX, e esse século não considerará
mentiras algumas das nossas verdades? Certamente sim, a menos que te­
nhamos a tola vaidade de acreditar que estamos em um ponto de chegada,
e não no perpétuo devir. Não seria difícil para um historiador com espírito
de filósofo ou para um filósofo historiador discernir em nossos axiomas
o erro de amanhã e assim organizar uma lista das bobagens do século.
O que seria, aliás, perigoso. Pelo menos um filósofo, em um livro sobre
solidariedade, deve ter em grande consideração a solidariedade histórica
que sobrecarrega não apenas os grupos sociais, mas cada um de nós. Sem
dúvida, essa solidariedade é menos tirânica para certos indivíduos do que
para outros, para certas épocas do que para outras. Sem dúvida, ela não age

30 Tradicionalmente, a flor de lis era tecida nas tapeçarias e nos mantos reais por mulheres. (N.
doT.)
31 Louis de Rouvroy, duque de Saint-Simon (1675-1755), abandonou o exército pela vida na
corte de Luís XIV, em Versalhes. Entre 1739 e 1751, escreveu suas Memórias, baseadas em suas
observações sobre a vida cortesã. O autor era hostil à política do rei, voltada para o enfraqueci­
mento da nobreza. Suas Memórias foram publicadas somente em 1879. (N. do T.)
366 Lições de história

sobre toda a nossa inteligência, sobre toda a nossa conduta. Mas, feita essa
ressalva, como ela é poderosa! Se tivéssemos vivido no tempo de Calígula,
diz o cardeal de Retz, o consulado do cavalo nos teria assombrado menos
do que imaginamos.32
Desaprovo o sr. Marion por não ter acentuado suficientemente essa
força do meio, sobretudo por não tê-la demonstrado com exemplos dispos­
tos cronologicamente. Ele nos traça a história de um indivíduo que vive em
um meio geográfico e histórico indeterminado. Eu temo que sr. Marion o
conceba mais livre do que ele é na realidade.
O sr. Marion examina em seguida o indivíduo na sociedade organi­
zada. A propósito da solidariedade no Estado, ele sublinha a importância
moral da forma de governo e insere em páginas excelentes uma passagem
notável de Stuart Mill. Mas o historiador julga que seu procedimento é ex­
tremamente abstrato. Alguns governos são comandados por determinadas
latitudes, e todos dependem do meio histórico. O historiador contesta ao
filósofo o direito de legislar sobre o governo popular e o governo abso­
luto. Governo popular e governo absoluto não existem in abstratcto; não
há dois governos populares ou absolutos que se assemelhem. Um deter­
minado governo popular surge naturalmente como término de um longo
desenvolvimento histórico anterior; é o ponto de chegada de uma marcha
contínua do privilégio em direção à igualdade; do despotismo em direção
à liberdade. Outro surge porque outras formas de governo, tentadas umas
depois das outras, foram irremediavelmente condenadas. A razão de ser
do primeiro é positiva; a do segundo, negativa. Isso vale para os governos
absolutos. A antiga monarquia francesa teve sua razão de ser. Ela nasceu de
uma necessidade percebida no primeiro dia da dinastia dos Capetos.33 Ao
contrário, a monarquia imperial romana nasceu depois que outras formas
de governo foram sucessivamente estabelecidas. Ela não teve nenhum dos
méritos da antiga monarquia francesa, nem uma existência assegurada; po­
rém, conservou uma paródia das instituições republicanas: César recusou
a faixa real, e seus sucessores sequer ousaram tornar a monarquia hereditá-

32 Jean François Paul de Gondi, cardeal de Retz, autor do século XVII, conhecido pelas suas
memórias e máximas. (N. do T.)
33 A dinastia dos Capetos ou capetiana iniciou-se com Hugo Capeto (c.938-996), rei dos fran­
cos, e compreende os reis que governaram entre 987 e 1328. (N. do T.)
Ernest Lavisse 367

ria. Eles assumiram a república e todas as suas magistraturas, as quais nun­


ca foram substituídas. Daí as revoluções periódicas. A monarquia romana
nunca possuiu essa virtude considerada um dos atributos da monarquia:
a estabilidade. Por outro lado, pode-se imaginar um governo popular no
qual os traços da monarquia sejam tão profundos que se torna difícil a
prática da liberdade. Ora, jamais um governo cuja razão de ser é negativa
exercerá sobre os costumes uma ação e efeitos da mesma natureza que um
governo cuja razão de ser é positiva. Os primeiros são aqueles que devem
ser conduzidos com mais prudência e servidos o mais desinteressadamente
possível pelas pessoas esclarecidas, precisamente porque são construídos
sobre ruínas, sem base sólida e formam o último abrigo da vida de um
povo. O sr. Marion é muito perspicaz para não ter visto, ao mesmo tempo,
“os direitos do ideal racional” e o efeito “das necessidades históricas”. Mas
ele insiste mais sobre os direitos do que sobre as necessidades. Ora, a per­
sistência de lembranças republicanas em um Estado monárquico ou a de
lembranças monárquicas em um Estado republicano não é fenômeno de
solidariedade histórica que deveria ser colocado em plena luz?
A solidariedade histórica é objeto de um capítulo e é tratada depois
da solidariedade internacional. Teria sido melhor inverter a ordem: a soli­
dariedade histórica se faz sentir no Estado, o qual sucede à família; a soli­
dariedade internacional sucede ao Estado e se faz sentir na humanidade.
Sobre esse capítulo, que é excelente, não teria nada a dizer se houvesse
encontrado maior quantidade de fatos. Desde as primeiras linhas, é visível
que se trata mais do moralista que aconselha do que do filósofo que obser­
va: “tudo o que se faz no sentido da pacificação geral é fonte de moralidade
e, ao mesmo tempo, de felicidade”. O preceito moral precede os fatos, que
são mencionados rapidamente como preterição para chegar mais depres­
sa ao belo sonho da futura paz perpétua, assunto do último capítulo. O
mesmo ocorre no que se refere à solidariedade histórica; o moralista fala
primeiro: “a mesma ilusão que é tão funesta aos indivíduos prejudica mais
ainda, e mais gravemente, as sociedades; é preciso contar com o tempo
para apagar os erros”. Mas a questão é bem discutida, do alto e com preci­
são. As aparentes contradições são resolvidas de maneira transparente.
Chegamos à conclusão. A questão do progresso moral no passado, que
é estudada em seguida, é ótima. Talvez coubesse apenas explicar melhor
as exceções; admitir, de um lado, que o progresso não é possível em todos
368 Lições de história

os lugares nem para todos, e reconhecer a fatalidade do meio, que explica


a imobilidade “das velhas sociedades do Oriente, destinadas a instituições
mortais tanto para razão como para a liberdade”; de outro lado, caberia
acentuar que em todo desenvolvimento histórico há mortes e nascimentos,
e também acidentes. Há uma mortalidade de sociedades e governos, como
também de indivíduos. Aquilo que é deixará de ser. O acidente é produzi­
do em geral por indivíduos novos. Assim ocorreu com a invasão dos bár­
baros, cuja história é preciso estudar, para que se possa compreender que é
possível haver progresso e interrupção do progresso, sem contradição com
as leis de solidariedade.
Os germânicos precipitaram a decadência romana. Eles mataram, no
Ocidente, o império que agonizava. Entre os historiadores, alguns lhes atri­
buem grandes virtudes; outros consideram sua ação nociva e responsável
pela interrupção do progresso. Os primeiros não sabem história; os segun­
dos confundem-se porque buscam causas finais. Os germânicos são ato­
res novos, simplesmente. Aqueles que confiam em Tácito esquecem que o
grande escritor traçou um retrato ideal da civitas germânica.34 O retrato, se
verdadeiro, o que provaria? Que o povo germânico permaneceu onde esta­
vam, séculos antes, os povos helénicos e latinos; a civitas homérica asseme­
lha-se muito à civitas germânica de Tácito. Esta, simplesmente, não resistiu,
eis tudo. Esses germânicos introduziram uma solidariedade histórica dife­
rente daquela que pesava sobre as populações do império. É verdade que
o caráter germânico não estava intacto. Eles viveram muito tempo em con­
tato com o império. Singular confusão. Tentaram compreender o império,
dar-lhe continuidade, mas não conseguiram. Não chegaram a conhecer as
próprias instituições que aplicavam. Nossos merovíngios nunca explicaram
bem a autoridade monárquica.35 Entretanto, reinaram; o império estava
morto; o espírito que vinha de Roma não soprava mais. E, se os merovín­
gios não aprenderam nada, os galo-romanos desaprenderam. Surgiu uma
grande obscuridade. A sociedade galo-franca se decompunha e, hesitante­
mente, procurava novas vias. Encontrou-as no feudalismo. Houve, portan­
to, um acidente que interrompeu o efeito da solidariedade histórica, causa

34 Cornellius Tacitus (c. 55-120) escreveu várias obras, entre as quais se destacam Historiae, a
história do império romano no século I, e Germania. (N. do T.)
35 Dinastia franca que governou a antiga Gália da metade do século V a 751. (N. do T.)
Ernest Lavisse 369

efetiva do progresso moral. Isso significa que ela desapareceu? Não. A so­
lidariedade histórica é muito poderosa. O fato de povos que viveram tanto
tempo sob o governo de Roma formarem hoje na Europa uma categoria à
parte, diferente em pontos essenciais dos povos germânicos ou eslavos, é
um efeito prodigioso dessa solidariedade. Tudo isso é para apoiar, como se
vê, a tese do sr. Marion: “a solidariedade compreende tanto avanços como
recuos; ela explica as interrupções, parciais ou temporárias, as grandes
quedas de determinados povos e os repentinos avanços de outros”.
A partir da prova de que houve, apesar das interrupções, um progresso
moral no passado, pode-se concluir, com grande probabilidade, a existência
de progresso moral no futuro, reservando sempre a possibilidade de graves
acidentes. É com essa disposição de espírito que o leitor chega às últimas pá­
ginas do livro. Mas eis que, de repente, encontra-se o sonho de uma humani­
dade “tão boa quanto possível, boa e feliz, pois, no limite, trata-se da mesma
coisa”. E o que se deve entender por isso é explicitado no final do texto: é a
cessação de toda injustiça, de toda violência, o hm do crime nos Estados, do
crime entre os Estados, a paz social, a paz internacional.
Na verdade, há aí um abuso da lógica. O autor tem o cuidado de
admitir que a etapa final desse progresso está longe, muito longe, e faz
algumas reservas. “O progresso só será alcançado (tanto quanto podemos
dar como realizado um ideal) no dia em que a Terra inteira estiver povoada
de homens que tiverem individualmente alcançado toda a perfeição que
comporta a natureza humana, todos unidos, todos habituados e dispostos
a se considerarem mutuamente como Rns.” Essa reserva era necessária.
Se acontecesse de uma nação, “conhecida por não lhe faltar nem orgulho
nem fé nela mesma”, como diz o sr. Marion, dar o salutar exemplo no nos­
so Ocidente de “renunciar resolutamente a todo espírito de represálias”,
eu temeria muito as ações dos vizinhos para com essa nação. Se todo o
nosso Ocidente se tornasse pacífico, eu começaria a me preocupar com as
predições que anunciam a conquista futura da Europa pela raça amarela.
Os chineses possuem ao mesmo tempo muitos canhões e muitos tanques:
duas condições da glória militar. Já não estão seduzindo o império da Ale­
manha? Os jornais militares alemães não calcularam a ajuda que poderiam
obter da China no caso de uma guerra com a Rússia? Não foi assim que se
introduziram outrora os bárbaros nos assuntos da Europa? Mas não é ne­
cessário insistir nesses temores de aparência paradoxal. Supõe-se que nós
370 Lições de história

só nos desarmaremos depois que os chineses atingirem individualmente


a perfeição. Eis-nos lançados em um futuro incerto. É ao menos possível
admitir esse futuro? Não, isso não é possível.
O progresso da civilização e o desenvolvimento das relações interna­
cionais não reduzem as causas da guerra. A mesma ciência que produz ou
melhora as indústrias criadoras, aperfeiçoa a indústria que mata. Diz-se: a
perfeição dos meios de destruição acabará por tomar a guerra impossível. É
um erro. As batalhas hoje são menos mortíferas do que as de antigamente.
Os instrumentos mais aperfeiçoados fazem com que os homens comba­
tam de mais longe e em maior número. Eis a diferença. A brevidade das
guerras, consequência desse progresso de uma natureza particular, é um
argumento a favor da guerra. Fala-se de uma guerra como de uma operação
cirúrgica necessária para restaurar a saúde. Será rápido! E pratica-se a ope­
ração. Quanto ao desenvolvimento das relações internacionais, ao mesmo
tempo que ele cria riquezas, é a causa da guerra. Esse crescimento é neces­
sariamente desigual. Provoca o ciúme das nações menos ricas, que são ao
mesmo tempo as nações mais fortes. Reflitamos bem sobre o fenômeno de
indenização de guerra, considerada como castigo ao vencido. Recentemen­
te criado, não é o último de uma série: vê-lo-emos reaparecer.
Não podemos prever o fim das batalhas. Em nenhuma outra época
houve tantos motivos para guerra como na nossa Europa de hoje. Guerras
para vingar injúrias passadas, guerras por antipatia, guerras de raças, guerras
por glória, guerras por dinheiro, até mesmo guerras de religião: nada falta.
Suponhamos que todas as questões em litígio terminem. Dever-se-iam fechar
e trancar as portas do templo de Janus? Não. Outras questões surgirão. É
impossível acreditar que não haverá mais disputas entre os homens.
Eu gostaria que o homem apóstolo do sr. Marion fizesse escola e que
seus imitadores, por sua vez, atraíssem adeptos e fundassem gerações nas
quais cada um estivesse “suficientemente persuadido das leis de solidarie­
dade para nelas se inspirar”. Demo-lhes tempo para trabalhar e não meça­
mos os séculos. Sem dúvida, eles poderão reagir contra fatalidades morais e
físicas. Há fatalidades físicas que podem ser suprimidas. Perfuram-se mon­
tanhas, separam-se istmos: é um trabalho que se expande. A não ser que o
sentimento de solidariedade esteja na numerosa família do sr. de Lesseps,36

36 Ferdinand de Lesseps, diplomata francês, mentor da ideia da construção do canal de Suez,


inaugurado em 1869. Em 1880 negociava-se a construção do canal do Panamá, também sob a
iniciativa de Lesseps. (N. do T.)
Ernest Lavisse 371

o que resta de istmos está em perigo. Mas que concurso de boa vontade
será suficiente para suprimir a ação do meio geográfico? Será possível redu­
zir a noite nos polos? Será possível atenuar o ardor do sol do equador? Terá
toda Terra a mesma capacidade de produzir? Será menos vigoroso o braço
do pomerano, que arranca seu alimento da terra; menos flexível o do india­
no, que a natureza torna sóbrio e ao mesmo tempo o sobrecarrega com seus
dons? Será possível fazer com que a terra nutridora não dê mais àqueles
que necessitam de menos? Essa eterna diferença do meio, o homem não
a suprimirá jamais. Ora, enquanto houver diferenças, haverá desentendi­
mentos. Enquanto houver desentendimentos, haverá guerra.
Além disso, essa fusão universal em uma humanidade ideal é desejá­
vel? Pode-se duvidar. Para afirmá-lo, seria necessário realizar um balanço
das perdas e dos ganhos que resultariam disso. O desenvolvimento da so­
lidariedade internacional leva a uma espécie de fusão. Se as vantagens são
visíveis, os inconvenientes também o são. As importações intelectuais e
morais são frequentemente perigosas porque o objeto importado se desna­
tura. Por exemplo, temos o hábito singular de nos apropriarmos de uma
palavra da língua alemã e depreciá-la. A palavra que designa o cavalo entre
nossos vizinhos é aplicada entre nós ao mau cavalo. Da mesma maneira,
um determinado produto alemão se deteriora em nossas mãos; um produto
francês, nas mãos de alemães. Que tristes efeitos não produziram a imita­
ção dos nossos clássicos na Alemanha!
O maior perigo de imitação internacional é enfraquecer o gênio do
imitador. A conservação dos gênios nacionais é pelo menos útil e desejá­
vel. Quanto mais originais, mais fortes. Quanto mais fortes, mais servem.
Esses indivíduos da humanidade, que são as nações, são mais ativos para
o bem da humanidade do que o seria a própria humanidade, depois de
ter absorvido os indivíduos. Trabalha-se para todos os homens, quando,
na realidade, acredita-se trabalhar apenas para o seu país. Quanto menos
se é cosmopolita, mais se ajuda o progresso geral do mundo. É assim que
se concilia o patriotismo com o amor à humanidade.
Enquanto a humanidade estiver dividida em nações, resignemo-nos
à guerra. Mas acrescento: consolemo-nos, pois a guerra não é um mal sem
compensação. O sr. Marion, a quem não escapou nenhuma objeção, discu­
te a questão. Ele sabe que a supressão da guerra suprimiria algumas “dessas
altas manifestações de nossa energia”, fonte de nossas alegrias, “as mais
372 Lições de história

vivas e mais nobres”. Ele propõe substituí-las por outras: fala de regiões
longínquas a explorar, hospitais a visitar... Trata-se de equivalentes para
a guerra? Não teríamos essas ilusões. O perigo da viagem e da visita ao
hospital é problemático: o do campo de batalha é certo. Nada mais preciso,
de contorno mais bem determinado que um furo de uma bala ou o perigo
do corte do sabre. Além disso, nem todo mundo pode ir ao polo Norte ou
visitar hospitais. Todo mundo hoje, pelo menos na França e na Alemanha,
faz a guerra. Felizmente, pois a guerra tornou-se um meio de educação
nacional.
É preciso, nos tempos felizes em que vivemos, quando a riqueza se
multiplicou e há bem-estar quase por toda parte; quando o camponês retira
a palha do teto da sua casa para colocar ardósia, quando seu leito se torna
mais macio, quando sua garagem abriga o carro que o conduz ao mesmo
mercado ao qual seu avô ia à pé, com o cesto às costas; é necessário, quan­
do essas comodidades de todo tipo facilitam e suavizam a vida, que haja,
na existência de cada um, esse momento no qual se deita sobre a terra nua
e se dobra ao peso da mochila e do fuzil. Além disso, o mundo político se
transforma. A hierarquia de nascimento e de direito divino cede em todo
o lugar, mais ou menos rapidamente, à hierarquia do mérito. O eleitor é
juiz desse mérito; o homem situado abaixo na hierarquia sabe que essa
hierarquia provém dele, procede da sua vontade; ao antigo respeito, in­
condicional, que absolutamente passou, sucedeu um respeito condicional,
a prazos renováveis. Ninguém comanda mais do alto em virtude de um
direito inato, por conseguinte superior ao consentimento; o próprio pai de
família, menos armado pela lei e desarmado pelos costumes, adoça a voz ao
falar com a criança rebelde. É por isso que é necessário que todo cidadão
ouça, pelo menos durante alguns meses da sua juventude, a voz breve e
dura de um sargento. O progresso da riqueza e das instituições democráti­
cas torna necessário o regime militar, que ensina a disciplina e torna visível
a todos um grande dever que exige grandes sacrifícios. Tomar o jovem no
momento em que se toma homem, arrancá-lo do estudo, seja ele feliz ou
não, reunir na caserna todas essas existências diversas e, quando necessá­
rio, jogá-las no campo de batalha para defender a honra e a pátria, não será
esse o único meio que nos resta de fazer sentir a todos que não estamos na
terra apenas para viver cada um à sua maneira? E, para concluir, que lição
de solidariedade!
Ernest Lavisse 373

Chega de elogiar a guerra. Não seria necessário responder ao parado­


xo da paz perpétua pelo paradoxo da beleza da guerra. Eu retomo ao livro
sobre solidariedade moral. Chamo a atenção para concluir que esse livro
sobre solidariedade termina por suprimir um conjunto de solidariedades.
É a própria solidariedade que eu defendo, contra o sr. Marion.
Sou dessa sua opinião, mais do que ele mesmo, e admira-me que ele
tenha chegado a essa conclusão singular. Será que é por que ele tomou
como objeto de seu estudo um indivíduo privilegiado, colocado em um
meio no qual o homem é mais livre? Ele conduz esse homem, de uma
nação abstrata, a uma humanidade ideal. Naturalmente ele não encontra
obstáculos no caminho. Entretanto, os obstáculos estão lá, e o historiador,
que os vê, deve mostrá-los ao filósofo.
Espero que se compreenda essa intervenção de um historiador em
matéria filosófica. Os historiadores e os filósofos de hoje existem para se
entenderem e se ajudarem. Ambos se libertaram do jugo da teologia, po­
sitiva ou natural, fonte de tantas teorias que durante longo tempo dispen­
saram historiadores ou filósofos de estudarem os fatos em si mesmos, que
são a matéria da história e da filosofia. Em muitos pontos, o acordo entre o
filósofo e o historiador é tal que as duas pessoas se confundem. Suponha-se
um filósofo que estuda a alma humana no desenvolvimento cronológico:
ele age como psicólogo e historiador. Por que tais tipos de estudos não são
desenvolvidos, eu não saberia dizê-lo. Quanta luz não brilharia!
Uma pena mais competente discutirá o valor filosófico do livro do sr.
Marion. Mas eu daria uma falsa opinião de meu julgamento se não fizesse
minhas críticas. A leitura desse livro me encantou. Compreender um livro
de filosofia é um grande encanto a que os filósofos parecem querer desa­
bituar os profanos. Contudo, quando não compreendemos um filósofo,
não nos resignamos a acreditar que seja apenas nossa culpa. É um encanto
aproveitar, sem esforço, de uma erudição tão vasta, fruto de imensa leitura;
repassar as coisas que sabemos e encontrar o novo, tanto elas são apresen­
tadas com arte; deixar-se guiar por um espírito elevado, sincero e livre. Pois
o sr. Marion pensa livremente, na verdadeira acepção da palavra, e não na
habitual. Aquilo que o vulgo entende por livre-pensador é um homem que
pensa, se assim posso dizer, contra toda autoridade que não lhe agrada.
Não há piores escravos nem piores tiranos do que esses livres-pensadores.
Eles não compreendem nada das forças históricas: eles as negam e, por
374 Lições de história

isso, se deixam com frequência esmagar por elas. O sr. Marion não pensa
contra os governos ou contra as religiões: ele pensa sobre as religiões e os
governos. Esse não é o menor dos elogios que lhe devemos, entre os quais
ficamos embaraçados de escolher. É preciso que eu diga ainda, embora se
tenha servido muito desse tipo de elogio, que esse livro faz bem. O autor
conserva, até na conclusão incómoda, uma moderação delicada; ele encara
todas as objeções; evita o absoluto, esse grande obstáculo. Essa maneira de
defender a liberdade, fazendo ver todos os limites, é a verdadeira. Ama-se
ainda mais o que nos resta, enxerga-se mais claramente. As pessoas tor­
nam-se mais dispostas a usá-la para o bem.
Charles Seignobos
Helenice Rodrigues da Silva

A “escola metódica”,1 que dominou a produção historiográfica francesa


entre 1880 e 1930, era vista, até recentemente, como “positivista”, funda­
mentalmente pedagógica e nacionalista, ignorando sua própria constru­
ção e afirmando a objetividade da história. Em outras palavras, ela seria,
segundo Lucien Febvre, a história a ser rejeitada, ou seja, “a sua própria
negação”. Distanciando-se do “providencialismo cristão”, do “progressis-
mo racionalista” e até mesmo do “finalismo marxista”, a história metódica
teria por principal objetivo não a elaboração do conhecimento, mas pôr em
prática os documentos. A concepção restrita de documentos (fontes uni­
camente escritas) limitaria a ambição da disciplina. Pretendendo atingir a
imparcialidade e a objetividade, essa ciência histórica se apresentava como
um discurso ideológico, servindo aos interesses de um regime político e
manifestando, por consequência, as aspirações de uma comunidade na­
cional. Denominada “história positivista”, essa corrente teria por ambição

1 Em geral, método histórico ou escola metódica designam uma única realidade, ou seja, uma
tendência metodológica legitimamente aceita e admitida, num determinado momento, pelos
profissionais dessa área. No entanto, algumas nuanças podem ser detectadas. “Método” é um
procedimento ou uma técnica, um conjunto de regras e práticas normativas para descobrir e
demonstrar a verdade. Já a palavra “escola” envolve a noção de redes, de amizade, de afinidades,
de ideologia, e implica a ideia de uma “filosofia” comum do ofício do historiador.
376 Lições de história

transformar a história em instrumento de uma educação cívica, aliada à


propaganda nacionalista e à Terceira República francesa.2
Gabriel Monod e, sobretudo, Charles-Victor Langlois e Charles Seig-
nobos, seus principais representantes, teriam imposto uma pesquisa cien­
tífica, distanciada de toda especulação filosófica, visando uma objetividade
absoluta. Sem dúvida, couberam a esses dois últimos historiadores a ins­
titucionalização da disciplina (notadamente o ensino da história na escola
secundária), a participação na reforma do ensino superior e a elaboração
de um inventário das fontes e da crítica dos documentos.
O primeiro grande manifesto da escola metódica encontra-se na Revue
Histoiique (1876), fundada por Gabriel Monod, que exprime sua admira­
ção pela história profissional e erudita alemã e afirma a necessidade, em
nome da ciência e do respeito à verdade, da busca pela imparcialidade.
Essa revista se inspira no trabalho de historiadores alemães, preocupados
em aplicar técnicas rigorosas ao ofício histórico.
Influenciados pela filosofia positivista, os historiadores franceses
“aderem a uma visão progressista da história, segundo a qual o historiador
trabalha a serviço do progresso do gênero humano”.3 Pouco após a derrota
da França em Sedan e a perda da Alsácia e de uma parte da Lorena, o sen­
timento nacional parece unificar o trabalho desses historiadores republica­
nos e progressistas.4
Como todo saber constituído institucionalmente, a disciplina histó­
ria é sujeita a mutações contextuais e intelectuais. Inspirados na filosofia
positivista de Auguste Comte (cientificismo) e nas mutações conjunturais
(derrota diante da Prússia), os estudos históricos franceses exprimem as
preocupações do presente. O trabalho histórico, naquele momento, visa
a despertar o espírito nacional ancorado na noção de progresso do gênero
humano. A constituição de uma verdadeira comunidade histórica unifi­
cada passaria pela adoção de um método eficaz e objetivo. Assim, a dis-

2 Com a Terceira República, no final do século XIX, a Revolução Francesa toma-se objeto de
estudo. É criado um curso na Sorbonne em 1886, dirigido por Albert Mathiez.
3 Dosse, 2000:25
« Protestante republicano, Charles Seignobos foi um dos assinantes do manifesto dos intelectu­
ais no caso Dreyfus.
Charles Seignobos 377

ciplina deveria se constituir de maneira autónoma à literatura, à filosofia


da história, a partir da crítica sistemática das fontes.
Cabe a Langlois e a Seignobos a construção desse método de elabo­
ração histórica. Entre 1880 e 1906, a escola metódica impõe suas regras e
procedimentos no campo historiográfico francês.

Estou convencido de que a revolução na concepção e no método da história


deve ser acompanhada de uma revolução no estilo histórico. A história foi
muito prejudicada por ter sido um gênero oratório. As fórmulas da eloquên­
cia não são ornamentos inofensivos; elas escondem a realidade; elas desviam
a atenção dos objetos para dirigi-la em direção às formas; elas enfraquecem
o esforço (na história, como em toda outra ciência) que consiste em se repre­
sentar as coisas e em compreender suas relações.5

A institucionalização da história, como disciplina à parte, é seguida


pela criação de revistas científicas, segundo modelos existentes na Alema­
nha, destinadas à formação de uma comunidade histórica. O ensino da
história passa a ser privilegiado na escola secundária.
Em 1898, Langlois e Seignobos expõem o discurso do método histó­
rico na obra Introdução aos estudos históricos. Ambos formados pela École
des Chartes,6 eles aliam a competência adquirida nessa escola à prática
de suas experiências, como professores na Sorbonne. Esse livro constitui
uma exposição “da teoria, dos procedimentos verdadeiramente racionais”,
segundo os autores. Manual de metodologia, a Introdução expõe a pesqui­
sa das fontes e a crítica das mesmas. A crítica externa, a “crítica erudita”,
determinaria a autenticidade do documento, definindo sua proveniência e
sua datação através de ciências auxiliares. A crítica interna teria por preo­
cupação tentar estabelecer a compreensão do documento, por meio dos
seguintes procedimentos: inicialmente, o que o autor do documento quis
dizer; em seguida, se ele acreditou no que disse; finalmente, se ele teve
razão de acreditar no que acreditou. A partir dessa operação, a dedução
ou analogia ligaria os fatos entre si. Para esses dois historiadores, os fenô-

5 Seignobos, 1906:39.
6 Fundada em 1821, é especializada no ensino aprofundado em história, filologia e paleografia
para a formação de arquivistas, bibliotecários ou professores universitários.
378 Lições de história

menos históricos são singulares. “Os fatos são únicos”, e toda a história
dos acontecimentos é, consequentemente, o encadeamento inevitável de
acidentes.
A excessiva valorização do documento, negando a pertinência da subje­
tividade na operação histórica, lhes rendeu críticas e amálgamas; após 1906,
esses historiadores passaram a ser identificados pejorativamente como “posi­
tivistas”. Uma tese publicada em 1976 por Charles Olivier Carbonell, seguida
por trabalhos de historiadores, tenta discordar da etiqueta de “ingenuidade”
atribuída a Seignobos e reabilitar alguns pontos da escola metódica.
Antoine Prost reexamina a “história metódica” à luz de novos paradig­
mas intelectuais: a perda da hegemonia dos Annales e a introdução de um
questionamento epistemológico na história.7 Em primeiro lugar, ele nega as
teses (atribuídas a Seignobos) segundo as quais a história é uma ciência ob­
y jetiva. Para Prost, o controle da subjetividade do autor não invalidava a cons­
ciência de que a história é construção. A ausência de documentos obriga o
historiador a utilizar a imaginação. A citação de Seignobos, abaixo, segundo
Prost, seria a negação mesma dessas críticas.

De fato, na ciência social, agimos, não sobre os objetos reais, mas sobre as
representações desses objetos. Não enxergamos os homens, os animais, as
casas que inventariamos, não enxergamos as instituições que descrevemos.
Somos obrigados a imaginar os homens, os objetos, os atos que estudamos.
A matéria prática da ciência social é constituída por essas imagens. São es­
sas imagens que analisamos. Algumas podem ser objetos que observamos
pessoalmente; mas uma lembrança se torna somente uma imagem. A maior
parte, aliás, nem foi obtida através da lembrança, nós a inventamos à ima­
gem de nossas lembranças, ou seja, pela analogia com imagens obtidas por
meio da lembrança.8

A designação, segundo Prost, de “positivistas” desqualificava os traba­


lhos dos “metódicos”. A utilização de noções como “fato positivo” ou “es­
tudo positivo” não significava, de maneira alguma, a adesão ao comtismo.
Na Introdução aos estudos históricos, Langlois e Seignobos precisam:

7 Prost, 1994.
8 Apud Prost (1996:170).
Charles Seignobos 379

a teoria do caráter racional da história se fundamenta na ideia de que todo


fato histórico real é ao mesmo tempo “racional”, ou seja, conforme um
plano total inteligível. [...] A teoria do progresso contínuo e necessário da
humanidade, embora adotado pelos positivistas, é somente uma hipótese
metafísica. [...] O estudo dos fatos históricos não mostra um progresso
universal e contínuo da humanidade, ele mostra progressos parciais e in­
termitentes, e não fornece nenhuma razão para atribuí-los a uma causa
permanente, inerente a um conjunto da humanidade, de preferência a uma
série de acidentes locais.9

A ascensão das ciências sociais, no final do século XIX, conduz a his­


tória e a sociologia durkheimiana a disputarem a hegemonia em termos
de cargos universitários. E, em 1894, o historiador Pierre Lacombe atribui
à história uma perspectiva sociológica: a busca de leis. Nesse sentido, os
historiadores deveriam deixar de lado o acontecimento singular para traba­
lhar com as regularidades. Para responder a Lacombe, Charles Seignobos
escreve O método histórico aplicado às ciências sociais, insistindo no fato de
que a comparação (própria ao método sociológico) permite a analogia, mas
não a similitude total.
Nesse texto, o autor precisa algumas concepções fundamentais:

4- a história não é uma ciência exata, ela é um “conhecimento através de


rastros”, ou seja, ela nunca provém de uma observação direta. Ele dis­
tingue rastros materiais e o que ele chama de rastros psicológicos. Os
documentos não correspondem ao real, mas a abstrações, são rastros
que exprimem a psicologia de seus autores, que são imagens e represen­
tações. Segundo Prost, para se construir a história, uma vez estabelecida
a autenticidade e a origem dos documentos, o historiador deve imaginar
o que seu autor traduziu;10
*4 a imaginação controlada do historiador é o suporte de sua construção,
uma vez que é impossível aplicar à história os métodos de outras ciên­
cias;

9 Apud Delacroix, Dosse e Garcia (2007:98).


10 Apud Prost (1996:149).
380 LiçOes de história

♦ ao contrário da sociologia durckheimiana, as realidades sociais são, por


essência, subjetivas. Em razão da particularidade dos fenômenos históri­
cos, é impossível a adoção de uma abordagem quantitativa.

A primeira crítica feita a Seignobos provém do sociólogo François


Simiand, que publica um artigo intitulado “Méthode historique et Sciences
sociales” na Revue de Synthèse Historique, em 1903, onde denuncia o que
ele denomina os “três ídolos da tribo dos historiadores”: o ídolo político, o
ídolo cronológico e o ídolo individual. 11
Se levarmos em conta que essa acusação se fundamenta em dados
concretos — teses sobre estudos biográficos, sobre temas políticos presen­
tes em concursos de seleção para professores secundários —, ela não deixa
de ser verdadeira. No entanto, advertem Antoine Prost e François Dosse,
por trás dessa crítica outros fatores estão em jogo. O primeiro deles deve-
se a disputas de hegemonia entre sociólogos e historiadores. A ambição
de uma síntese multidisciplinar, por parte da sociologia durkheimiana e
da geografia vidaliana,12 foi proposta pela Revue de Synthèse Historique. De
modo geral, essa proposta (do estudo das dimensões do real, da economia
às mentalidades) foi recuperada pelo projeto dos Annales.
Não sem razão, André Burguière mostra que “a originalidade do movi­
mento de Bloch e Febvre deve-se mais à maneira pela qual afirmam seu pro­
grama do que ao programa propriamente dito”,13 ou seja, a história-problema,
as pesquisas coletivas e a aproximação com as ciências sociais.
Retomando as críticas de Simiand, Lucien Febvre transforma Seig­
nobos em uma caricatura de anti-historiador, algo que não deve ser se­
guido e que representa o que há de mais abominável no trabalho do
historiador. Para os Annales, a história precisa se transformar em ciência

11 “O ídolo político, ou seja, o estudo dominante ou, pelo menos, a eterna preocupação da histó­
ria política, dos fatos políticos, das guerras etc., que acabam por conceder a esses acontecimen­
tos uma importância exagerada [...]. O ídolo individual ou o hábito inventariado de conceber
a história como uma história dos indivíduos, e não como uma história dos fatos [...). O ídolo
cronológico, ou seja, o hábito de se perder nos estudos de origens, nas investigações de diversi­
dades particulares, em vez de estudar e compreender inicialmente o tipo normal procurando-o
e determinando-o na sociedade e na época em que ele se encontra [...]” (apud Delacroix, Dosse
e Garcia, 2007:193).
12 Paul Vidal de la Blache (1845-1918), geógrafo francês, inspirou o movimento dos Annales.
13 Burguière, 1979.
Charles Seignobos 381

social, abandonando o seu isolamento no campo científico. Se a história


dos “metódicos” foi rotulada de nacional, essa nova corrente se atrelaria
ao social, rompendo com as escolhas teóricas e práticas defendidas pela
escola metódica.
Assim como Gabriel Monod e Langlois, Seignobos (membro da Liga
dos Direitos Humanos), favorável aos republicanos, defendia o poder do
Estado por ser republicano. Embora reconhecendo os méritos políticos de
Seignobos, mas condenando a instrumentalização do seu ensino da his­
tória, os Annales combatem a história política, erroneamente confundida
com a história nacional e a história-batalha.
No entanto, se esse recente “revisionismo” da obra de Charles Seig­
nobos tem o mérito de deixar de lado certos dogmatismos, em nome de
novos paradigmas históricos, por outro lado ele corre o risco de minimizar
as insuficiências e limites dessa obra, entre eles o subjetivismo expresso do
historiador, o questionamento filosófico, o abandono das ciências sociais.

ADVERTÊNCIA14

Este livro surgiu de um curso proferido durante três anos no Collège


Libre des Sciences Sociales.15 Embora inteiramente reorganizado, ele contém
ainda o rastro da sua origem; as divisões e subdivisões são muito visíveis e
explicitamente anunciadas. A linguagem é mais informal e menos severa que
de costume nos livros redigidos diretamente para leitores.
Não achei que deveria retirar essas características que me pareciam
adequadas a uma coletânea de conselhos e de indicações de método. Devo
pedir desculpas igualmente por ter discutido opiniões sem citar o texto
exato dos autores; um resumo me pareceu suficiente para o objetivo prático
que eu me propunha. Pareceu-me também inútil propor uma bibliografia
dos trabalhos sobre as ciências sociais: existe uma, bem escolhida e bem
classificada, no Catálogo bibliográfico publicado em novembro de 1899 pela
Société Nouvelle de Librairie et d’Édition.

14 Seignobos, 1909. Tradução e notas de Germaine Mandelsaft e Helenice Rodrigues da Silva.


15 Fundado em Paris no final de 1895, período de ascensão das ciências sociais, esse estabeleci­
mento tem como principal preocupação o ensino e a análise dos fatos sociais.
382 Lições de história

A primeira parte desta atual obra trata do mesmo assunto que a In­
trodução aos estudos históricos16 (edição de 1903), composta em colaboração
com meu colega e amigo Charles-Victor Langlois, a qual é um tratado su­
mário de método histórico, mas não se trata aqui de sua reprodução. Não
só resumi as partes inteiramente teóricas, abreviei aquelas que só interessa­
vam aos historiadores e introduzi exemplos extraídos das ciências sociais,
mas creio também ter retificado e completado a teoria fundamental.
A segunda parte da obra, sobre o método histórico e a história social,
é quase inteiramente nova; trata de um assunto pouco estudado até agora,
pois ocupa um terreno intermediário entre a história e as ciências sociais;
assim, destina-se ao mesmo tempo a dois públicos diferentes, mas penso
que deve interessar mais aos especialistas das ciências sociais do que aos
historiadores.

O MÉTODO HISTÓRICO APLICADO ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS

Introdução

Método histórico e ciências sociais

I. Método histórico. — Natureza da história. — Caráter indireto do


método histórico. — Operações históricas. II. Ciências sociais. — Signifi­
cado original dessa palavra. — Significado atual. — Caráter das ciências
sociais. III. Necessidade do método histórico nas ciências sociais: 1. Para
o estudo dos fenômenos atuais; 2. Para o estudo da evolução dos fenôme­
nos.
I. O método histórico é o método utilizado para constituir a história;
ele age para determinar, cientificamente, os fatos históricos, e depois para
reuni-los em um sistema científico.
Parece então, num primeiro momento, enquanto permanecermos
dentro de uma lógica formal, que existe uma ciência especial — a histó­
ria —, que essa ciência estuda uma determinada categoria de fatos — os

16 Langlois e Seignobos, 1898. Existe tradução em português (São Paulo: Renascença, 1946).
Charles Seignobos 383

fatos históricos — e que os estuda através de um método apropriado à


natureza desses fatos — da mesma maneira que existe uma ciência da quí­
mica que estuda os fatos químicos por um método químico, uma ciência
da biologia que estuda os fatos biológicos — ou (outro exemplo de uma
ciência descritiva), uma ciência da zoologia que descreve o mundo animal.
A história seria uma ciência de observação. Parece mesmo que podemos
delimitar a categoria de fatos estudados pela história; eles são sempre fatos
passados e fatos humanos. Os fatos passados relativos aos animais ou às
plantas não são mais classificados na categoria da história; a história natural
representa uma concepção completamente relegada. A história, no sentido
moderno da palavra, é reduzida ao estudo dos homens que vivem em so­
ciedade; ela é a ciência dos fatos humanos do passado.
Mas, se tentamos delimitar, na prática, o campo da história, se ten­
tamos traçar os limites entre uma ciência histórica dos fatos humanos do
passado e uma ciência atual dos fatos humanos do presente, observamos
que esse limite não pode ser estabelecido, pois na realidade não há fatos
históricos por natureza, como há fatos fisiológicos ou biológicos.
Na linguagem vernácula, a palavra “histórico” é apreendida, ainda, no
sentido antigo: digno de ser relatado; nesse sentido, se fala de um “dia his­
tórico”, de uma “palavra histórica”. Mas essa noção da história é abandona­
da; qualquer incidente passado pertence à história: o traje de um camponês
do século XVIII ou a tomada da Bastilha; e os motivos que fazem com que
um fato seja digno de ser mencionado são infinitamente variáveis.
A história abrange o estudo de todos os fatos passados, políticos, inte­
lectuais e económicos que em sua maioria passaram despercebidos. Temos,
então, a impressão de que os fatos históricos podem ser definidos: os “fa­
tos passados”, em oposição aos fatos atuais, que são o objeto das ciências
descritivas da humanidade. É justamente essa oposição que é impossível
manter na prática. Ser presente ou passado não é uma diferença de caráter
interno, que diz respeito à natureza de um fato. Trata-se somente de uma
diferença de posição em relação a um observador. A Revolução de 1830 é
para nós um fato passado, mas presente para as pessoas que a fizeram. Do
mesmo modo, a sessão de ontem, ocorrida na Câmara dos Deputados, já é
um fato passado.
Portanto, não há fatos históricos por natureza; só há fatos históricos
por posição. É histórico todo fato que não pode mais ser observado direta-
384 Lições de história

mente, pois ele deixou de existir. Não existe um caráter histórico inerente
aos fatos, somente é histórica a maneira de conhecê-los. Consequentemen­
te, a história não pode ser uma ciência, ela é, unicamente, um procedimen­
to de conhecimento.
Coloca-se, então, a pergunta preliminar a todo estudo histórico.
Como é possível conhecer um fato real que não mais existe? Por exemplo,
a tomada da Bastilha: insurgentes, todos mortos nesse momento atual, con­
seguiram retirar das mãos de soldados, também mortos, uma fortaleza que
hoje não existe mais. Ou, tomemos um exemplo económico: operários, já
mortos, dirigidos por um ministro também morto, fundaram o estabeleci­
mento dos Gobelins.17 Como explicar um fato cujos elementos não podem
mais ser observados? Como conhecer atos cujos atores e cujo teatro não
podem ser mais vistos?
Aqui está a solução para essa dificuldade. Se os atos que devem ser
:onhecidos não tivessem deixado nenhum rastro, seria impossível o conhe-
:imento dos mesmos. Mas, não raro, os fatos desaparecidos deixaram ras­
tros, por vezes diretamente, sob a forma de objetos materiais, e na maioria
das vezes indiretamente, sob a forma de escritos redigidos por pessoas que
presenciaram esses fatos.
Esses rastros são os documentos, e o método histórico consiste em
examinar os documentos para conseguir determinar os fatos antigos cujos
rastros são esses próprios documentos. Seu ponto de partida é o documen­
to estudado diretamente. Em seguida, o método retorna, através de uma
série de raciocínios complicados, ao fato antigo que deve ser conhecido.
Consequentemente, ele difere, radicalmente, de todos os outros métodos
das outras ciências. Ao invés de observar os fatos diretamente, ele opera
indiretamente pela reflexão sobre documentos. Todo conhecimento histó­
rico sendo indireto, tem-se que a história é essencialmente uma ciência de
raciocínio. Seu método é um método indireto, por meio do raciocínio.
Trata-se, evidentemente, de um método inferior, um método conve­
niente: evitamo-lo quando podemos utilizar o método normal, ou seja, a
observação direta. Ele não é utilizado em nenhuma das ciências gerais, física,
química, biologia, aquelas que buscam leis gerais, ou melhor, permanentes
dos fenômenos: nesse caso, basta experimentar e observar.

17 A Manufacture des Gobelins é um ateliê de tapeçaria criado em Paris, em 1601, e que ainda
hoje é dependente do Mobiliário Nacional e das Fábricas Nacionais de tapetes e tapeçarias.
Charles Seignobos 385

Mas, quando necessitamos conhecer uma evolução, é preciso compa­


rar os fatos passados, que não mais podemos observar, com os fatos presen­
tes, que podemos observar: somos obrigados, então, a recorrer ao método
indireto, o único capaz de alcançar os fatos passados.
Quando devemos conhecer um conjunto concreto muito extenso,
precisamos reunir informações relativas a um grande número de fatos. Por
exemplo, se se trata de procurar a totalidade dos salários em um determi­
nado país, cada um dos observadores só pode contemplar uma pequena
parte deles; desse modo, ele precisa acrescentar a seu conhecimento direto
o conhecimento dos outros observadores; ele é obrigado, então, a associar
suas observações próprias com os documentos redigidos pelos outros ob­
servadores; e para analisar esses documentos, ele deve recorrer ao método
indireto, que é o método histórico.
Assim, o método de estudo indireto por meio dos documentos — o
método histórico — é o único que pode ser utilizado em dois casos: para
alcançar uma evolução; e para alcançar um conjunto concreto.
Como todo método científico, ele inclui duas séries de operações: estu­
dar o documento para determinar quais foram os fatos particulares passados
cujo rastro constitui o documento; e, após ter estabelecido esses fatos, aglo­
merá-los numa construção metódica para descobrir suas relações mútuas.
II. Mas, como definir as ciências sociais?
De acordo com o sentido da palavra “social”, as ciências sociais18 se­
riam todas as ciências que estudam os fatos sociais, ou seja, aqueles que
acontecem na sociedade: os costumes humanos de todos os gêneros (idio­
mas, usos, alimentação, vestuário, moradia, cerimonial, lazer), os fenôme­
nos intelectuais (arte, ciência, religião, filosofia, moral), as instituições po­
líticas ou económicas.

18 Diz Seignobos: “de fato, na ciência social, operamos não somente com objetos reais, mas com
as representações que fazemos desses objetos. Não vemos nem os homens, nem os animais,
nem as casas que enumeramos, não vemos as instituições que descrevemos. Somos obrigados a
imaginar os homens, os objetos, os atos, os motivos que estudamos. São essas imagens que são
a matéria prática das ciências sociais; são essas imagens que analisamos. Algumas delas podem
ser lembranças de objetos que pessoalmente observamos; mas, uma lembrança nada mais é que
uma imagem. Aliás, a maioria delas nem mesmo foram obtidas por lembrança, nós as inventa­
mos à imagem de nossas lembranças, quer dizer, por analogia com as imagens obtidas por meio
da lembrança. (...) Para descrever o funcionamento de um sindicato, nós nos representamos os
atos e as démarches dos membros” (Apud Prost, 1996:169-170).
386 Lições de história

A partir desse sentido geral, Auguste Comte19 fabricou a palavra “so­


ciologia” para designar a ciência de todos os fenômenos de sociedade. É
o sentido dado por Herbert Spencer em Princípios de sociologia.20 Mas as
divergências quanto aos limites da sociologia entre os sociólogos que tenta­
ram cada qual impor seu ponto de vista fizeram com que a palavra perdesse
a maior parte do seu significado original, guardando somente um sentido
vago. Simmel21 (Die Probleme der Geschichtsphilosophie, 1892) tentou preci-
sá-lo, novamente, restringindo a sociologia ao estudo abstrato dos fenôme­
nos comuns a todos os tipos de sociedade.
A palavra sociologia, inventada por filósofos, corresponde a uma ten­
tativa de agrupar vários domínios de ciências que permaneceram isoladas
em uma concepção filosófica geral.
O termo “ciências sociais” entrou em uso para indicar, aproximada-
mente, o mesmo conjunto de estudos. Foi introduzido por especialistas,
sem visão de conjunto, para responder a uma necessidade prática; e foi
também por questões práticas acidentais que seu sentido foi especificado
e limitado; desse modo, só podemos compreender o sentido atual dessa
palavra a partir de sua história.
No século XVIII, o termo “social” tem ainda um sentido geral. O con-
trato social (1762) de Rousseau é, essencialmente, um contrato político.
Na primeira metade do século XIX, o sentido se restringiu: “social” se
opôs a “político”, passando a designar as instituições e os usos que não são
diretamente organizados pelo governo: família, propriedade, divisão em clas­
ses; estabeleceu-se uma oposição entre “o estado social” e o “estado político”;
e é nesse sentido que os manuais de história das instituições o utilizaram.
Por exemplo, na história de Esparta, a descrição das classes — hilo-
tas, periecos, espartanos — forma o estado “social”; o governo e o exército

19 Filósofo francês, Auguste Comte (1798-1857) cria o positivismo a partir de uma abordagem
científica, tendo por fundamento três estágios do espírito humano: o teológico ou fictício, o
metafísico ou abstrato e o positivo. Associando uma teoria progressista da históna a um interes­
se prático pelos problemas de organização social e política, Comte pretende aplicar o método
científico ao estudo da sociedade de maneira radical.
20 Filósofo e sociólogo inglês, Herbert Spencer (1820-1903) elaborou Principies ojsociology entre
1876 e 1897. Ele é conhecido como um dos maiores defensores da teoria da evolução, influen­
ciado por Darwin.
21 Sociólogo alemão, Georg Simmel (1858-1918) é autor, entre outros, de Os problemas da filo­
sofia da história, publicado em Leipzig em 1892.
Charles Seignobos 387

fazem parte do estado “político”. Nesse sentido, a história social seria o es­
tudo das classes, de seus privilégios, de seu recrutamento, de suas relações,
e a história das associações privadas, como a família.
Na segunda metade do século, a palavra tendeu a adquirir outro sen­
tido. Pouco a pouco, ela foi transportada a novos domínios de estudos da
sociedade humana, que começavam a se constituir. Vários domínios tinham
se formado antes mesmo de termos uma concepção precisa do sentido de
sociedade e de fenômenos sociais. Elas nasceram respectivamente: da histó­
ria — estudo ainda confuso dos atos e das instituições políticas, misturado
à erudição e à arqueologia; e de alguns estudos práticos que se tomaram,
pouco a pouco, históricos: a teologia se tomou história das religiões, a juris­
prudência se tomou história do direito, a retórica e a filosofia se tomaram
histórias das literaturas e das doutrinas, a arte se transformou em história
da arte. Tendo, desde o início, seus professores e seus especialistas, cada um
desses estudos tinha se organizado em uma ciência independente, com um
nome específico.
Os estudos sobre a sociedade, que foram os últimos a se organizar, no
século XIX, adotaram o nome de “sociais”, pois essa palavra ainda encon­
trava-se disponível. É por essa razão que esse termo adquiriu um sentido
tão restrito. Se, do conjunto das ciências que estudam os fenômenos so­
ciais, no sentido amplo do termo, retiramos todos os domínios de estudos
constituídos anteriormente, o resíduo (o que resta) compreende as “ciên­
cias sociais”, no sentido atual do termo.
Três grupos de estudos, de origem bem diferente, convergiram para
formar as “ciências sociais”.
Um desses grupos se constituiu através da criação de uma estatística
baseada em um método científico. Os primeiros ensaios remontam ao final
do século XVII, com os trabalhos de Petty22 e as tabelas de mortalidade.
Porém, foi preciso dispor de números suficientemente completos, re­
lativos a fenômenos bastante variados, para que surgisse a ideia de estudar,
de maneira metódica, essas séries de números e delas retirar conclusões
gerais. Esse trabalho só pôde ser iniciado quando os outros domínios já
tinham sido constituídos em histórias especiais; ele começou fora das uni-

22 O inglês William Petty (1623-1687) foi um dos precursores das ciências económicas e con­
tribuiu para a surgimento da demografia estatística.
388 Lições de história

versidades, onde essas ciências tinham se organizado. Assim que tomamos


consciência, pela primeira vez, da importância da estatística, procuramos
uma palavra para lhe dar seu lugar no conjunto da ciência. Quételet23 pu­
blicou seu tratado Sobre a possibilidade de medir a influência das causas que
modificam os elementos sociais em 1832, e seu Ensaio de física social em 1835.
Assim, a estatística entrou no grupo das ciências sociais. Quando ela se
subdividiu, o ramo principal formou a demografia, onde a palavra (ilegível)
tem o mesmo sentido restrito que a palavra “social”.
Outro grupo — o mais importante — foi formado pelo estudo dos
fenômenos e das instituições económicas (produção, trocas, repartição), tam­
bém mal delimitado no lado do consumo (alimentação, vestuário, habitação,
despesas). Por muito tempo, esse estudo foi chamado de “economia política”
(Volkmrthscha.fi), mas a significação dessa palavra tendeu a se restringir às
considerações teóricas que tinham sido a primeira forma do estudo económi­
co. Cada vez mais, a descrição dos fenômenos reais tende a se tomar a ciência
social, estabelecida por meio de um método de observação.
Esse desvio de sentido coincidiu com o aparecimento das escolas so­
cialistas e parece ter se produzido sob sua influência. A ideia fundamental,
sobretudo segundo os discípulos de Marx, é que a organização económica
constitui a base de toda a sociedade; reformar a sociedade equivale a refor­
mar o regime económico.
Todos os outros fatos sociais passam para o segundo plano, não so­
mente os fatos intelectuais ou religiosos, mas até mesmo os fatos políticos.
Mesmo se eles exigem, em primeiro lugar, uma reforma política — o su­
frágio universal —, demonstrando assim que a organização económica é
dominada pelo regime político, na linguagem dos mesmos o fato “social”
por excelência é o fato económico. É o sentido que eles conseguiram im­
por; o termo “ciências sociais” tornou-se, aproximadamente, sinónimo de
ciências económicas.
O terceiro grupo é de natureza bem diferente. Os homens que estu­
dam os fenômenos económicos foram levados a estudar, também, as teorias
e as doutrinas económicas, doutrinas essas especulativas, e doutrinas práti-

23 Lambert Adolphe Jacques Quételet (1786-1874), belga, matemático, naturalista, astrónomo


e estatístico, é considerado o precursor dos estudos demográficos. É autor de vários trabalhos
nesta última área, assim como em sociologia, matemática etc.
Charles Seignobos 389

cas, ou seja, as reformas e as revoluções económicas. Assim, um fragmento,


a história das doutrinas e dos projetos económicos, se separou da história
geral das doutrinas, até então confundida com a história da filosofia e das
ciências. Esse fragmento formou o terceiro grupo das ciências sociais.
Atualmente, as ciências sociais se constituem em: as ciências estatísti­
cas, incluindo a demografia; as ciências da vida económica; e a história das
doutrinas e das tentativas económicas.
É mais ou menos desse modo que os editores do Handwõrterbuch
der Staatswissenschaften (glossário das ciências políticas) delimitavam, em
1890, o campo de seu repertório, explicando que eles consideravam Staats
(de Estado) como sinónimo de Sozial, de acordo com o significado novo
que a palavra Staat (Estado) adquiriu depois do Staatssozialismus (Socia­
lismo de Estado) — em inglês, Mayo-Smith24 reuniu sob um nome análo­
go, statistics and sociology (1895), dois tipos de estudos: a demografia e a
economia política. Esse sentido complexo (da expressão “ciências-sócias”)
foi também o mesmo adotado na Alemanha, desde 1873, pelo Verein fur
Sozialpolitik (Associação para a Política Social), seguido de Stammhammer,
Bibliographie der Sozialpolitik, em 1896. Foi o significado dado à palavra
“social” no Museu Social do Conde de Chambrun,25 no Collège Libre des
Sciences Sociales e na École des Hautes Études en Sciences Sociales.
As ciências sociais, no sentido dado pela prática recente, se limitam,
então, a uma parte restrita dos fenômenos.
Elas constituem uma amálgama desordenada, formada pelo estudo dos
atos e das instituições económicas; pela estatística dos atos e dos produtos
humanos; e pela história das doutrinas. O único caráter comum entre elas é
o estudo dos fenômenos relativos aos interesses materiais dos homens.
Esses fenômenos, de dois tipos, correspondem às duas ciências que
constituem a amálgama: os fenômenos verdadeiramente corporais — nú­
mero, sexo, idade, saúde, doença, nascimento, morte — que são objetos

24 O americano Richmond Mayo Smith (1854-1901), professor de economia na Columbia Uni-


versity e conhecido por seus trabalhos em estatísticas, publicou Sociology and statistics (1895) e
Statistics and economics (1899).
25 Inaugurado em 1895, o objetivo desse museu era conservar e expor os documentos do pa­
vilhão de Economia Social da Exposição Universal de 1889. O conde de Chambrun, entre
outros, consagrou sua fortuna a essa fundação, que se transformou em verdadeiro instituto de
pesquisa.
390 Lições de história

da demografia; e os fenômenos económicos que consistem nas relações


entre os homens e os objetos materiais para a produção, a distribuição,
o consumo; é o domínio da ciência económica, lato sensu. O limite não
pode ser, muitas vezes, traçado com precisão. Existem fatos económicos,
inteiramente intelectuais, como as operações da bolsa, que permanecem
nas ciências sociais, pois eles têm uma relação estreita com os fenômenos
materiais da troca. Porém, o caráter geral dos fatos estudados pelas ciências
sociais consiste em fatos materiais, que procuramos apreender por meio da
observação material.
111. Podemos perceber, agora, porque o método histórico, definido
dessa maneira, é indispensável às ciências sociais, assim definidas.
1. Toda ciência social, seja a demografia, seja a ciência económica,
deve se constituir através da observação direta dos fenômenos. Mas, na
prática, a observação dos fenômenos está sempre limitada a um campo
muito restrito. Para se chegar a um conhecimento amplo, é sempre neces­
sário recorrer ao procedimento indireto, ou seja, ao documento.
Ora, o documento só pode ser estudado pelo método histórico. Quer
ele tenha sido redigido no tempo de Augusto,26 quer em 1908, o método
histórico é o mesmo, pelo menos em termos das regras fundamentais. O
método histórico é, então, necessário para se aplicar corretamente até mes­
mo aos documentos contemporâneos.
2. Toda ciência social se aplica a fenômenos que não permanecem
constantes; para entendê-los, precisamos compreender a sua evolução. Até
no que diz respeito ao fato mais simples da demografia — a cifra da popu­
lação27 —, a evolução é um elemento essencial do conhecimento científico.

26 Imperador romano que viveu entre 63 a.C. e 14 d.C.


27 Diz Seignobos: “a impressão especial produzida pelas cifras é particularmente importante nas
ciências sociais. A cifra possui um aspecto matemático que fornece a ilusão do fato científico.
Espontaneamente, tendemos a confundir ‘preciso e exato’; uma noção vaga não pode ser intei­
ramente exata, da oposição entre vaga e exata concluímos a identidade entre ‘exata’ e ‘precisa’.
Esquecemos que uma informação bem precisa é, muitas vezes, muito falsa. Se eu digo que em
Paris existem 526.637 almas, será uma cifra precisa, muito mais precisa que 2 milhões e meio
e, portanto, muito menos verdadeira. Dizemos, de maneira coloquial, ‘brutal como uma cifra’,
mais ou menos no mesmo sentido que ‘a verdade brutal’, o que subentende que a cifra é a for-
ma perfeita da verdade. Dizemos também: ‘isso são cifras’, como se toda proposição se tornasse
verdadeira desde que adquirisse uma forma aritmética. A tendência é ainda mais forte quando,
no lugar de uma cifra isolada, vemos uma série de cifras ligadas por operações de aritmética. As
operações são científicas e certas; elas inspiram uma impressão de confiança que se estende aos
Charles Seignobos 391

Essa necessidade de conhecer a evolução é ainda bem maior para a vida


económica; nenhuma organização é inteligível somente através do seu pas­
sado histórico.
É preciso, então, um estudo histórico dos fenômenos sociais anterio­
res, e esse estudo só é possível por meio de um método histórico. Assim,
é preciso, inicialmente, aplicar o método histórico às ciências sociais para
interpretar os documentos de que necessitamos, para todos os casos em que
o conhecimento só pode ser indireto — e, na prática, quase todos os fatos das
ciências sociais são coletados pelo método indireto.
Em seguida, quando os fatos são reunidos, deve-se agrupá-los seguin­
do um método idêntico ao da história, pois trata-se de formar um conjunto
com quase todos os fatos coletados através dos procedimentos históricos.

dados sobre os quais operamos; é preciso um esforço de crítica para distinguir, para admitir que
em um cálculo justo os dados podem ser falsos, o que retira todo valor aos resultados” (apud
Prost, 1996:32).
I
Paul Lacombe
Raimundo Barroso Cordeiro Jr.

A história da historiografia se propõe, entre outras coisas, a discernir os cri­


térios e a dinâmica própria da produção e autorreflexão do conhecimento
histórico. Em uma palavra, estabelecer a historicidade do produto cultural
resultante da imaginação historiadora em suas diversas formas de expres­
são, seja metodológica, narrativa ou teórica. Diante disso, como é possível
explicar a omissão ou, por vezes, a abordagem equivocada de um historia­
dor e sua obra em livros de historiografia? A forma particular e datada de
inserção institucional e das ideias defendidas na atuação intelectual do his­
toriador poderiam eventualmente servir de justificativa para uma resposta
a essa questão inicial. Entretanto, explicar a negligência a partir de uma
avaliação que infere alguma inconsistência conceituai ou fragilidade lógica
dos argumentos nem sempre é suficiente para autorizar a desconsideração
da contribuição relegada.
Essa problemática, a princípio hipotética, torna-se realidade quando
se observa a atenção dispensada pela historiografia de orientação francesa
ao historiador Paul Lacombe (1834-1919), cujo engajamento intelectual
fez dele, em seu tempo, uma referência para a teoria da história, da antro­
pologia, da sociologia e da educação. Um intelectual polemista, livre-pen­
sador preocupado com os destinos da disciplina histórica e as nascentes
ciências sociais, no momento em que esses saberes estavam em via de se
institucionalizar. Formado em história pela tradicional École des Chartes
394 Lições de história

(1859), estabelecimento de educação superior idealizado no governo de


Napoleão I, mas somente criado por ordem de Luís XVIII, em 1821, com o
objetivo de organizar e conservar os documentos confiscados pela Revolu­
ção de 1789, visando à formulação da história nacional da França, a partir
dos seus arquivos medievais.
Frequentemente ocorrem imprecisões quando historiadores da histó­
ria do século XX se referem às contribuições de Lacombe para a teoria da
história, especialmente se o objeto de crítica for o livro De l'historie consi-
dérée comme Science, publicado em 1894. Provavelmente, o primeiro desli­
ze tenha sido cometido pela tradução espanhola da editora Espasa-Calpe,
de 1948, que lhe dá o nome de Pierre Lacombe.1 Posteriormente, verifica-
se uma confusão relativa às datas limites da sua biografia. Por exemplo,
Pierre Daix informa que seu nascimento se deu em 1848 e seu falecimento
em 1921,2 contrariamente a todas as referências às suas publicações cons­
tantes do catálogo da Biblioteca Nacional da França, que mencionam as
datas de 1834 e 1919, respectivamente. Henri Berr, amigo e admirador de
Lacombe, confirma estas últimas: Lacombe teria nascido em Cahors, em 6
de janeiro de 1834, e morrido em 2 de fevereiro de 1919, na sua pequena
propriedade de Saint-Fort-sous-Lauzerte (Tarn-et-Garrone), aos 85 anos
de idade.3 Além disso, atribui-se a Lacombe certo pioneirismo no reconhe­
cimento da sociologia como ciência e de uma “necessária” subordinação
da história ao seu projeto disciplinar. Na verdade, sua expectativa era fazer
avançar a história, livrando-se da historie événementielle rumo à ciência, por
meio da parceria com a psicologia.
Henri Berr traça o perfil intelectual de Lacombe, destacando sua cria­
ção no seio de uma família republicana de livres-pensadores. Após a for­
mação básica no liceu de Cahors, frequentaria, em Paris, a Faculdade de
Direito, entre 1851 e 1854, e depois entraria na École des Chartes em
1856, sendo promovido a historiador em 1859. Lacombe colaborou em
algumas das revistas da época, principalmente aquelas contrárias às ten-

1 Nas traduções publicadas no Brasil pelas editoras Ensaio (1992) e Edusc (2003) e na tradução
brasileira do livro de François Dosse (1992), o nome do historiador também aparece grafado
como Pierre Lacombe.
2 Daix, 1999:202. Com as datas apresentadas por Daix, trata-se do bibliotecário da Biblioteca
Nacional, bibliófilo e colecionador, membro da sociedade dos amigos dos livros e da sociedade
dos bibliófilos franceses. Conferir no catálogo da Biblioteca Nacional da França.
3 Berr, 1935:57-58 (a primeira edição dessa obra data de 1921).
Paul Lacombe 395

dências conservadoras do momento político marcado pelo autoritarismo e


pela reação clerical.
No aspecto político e filosófico, Lacombe teria aos poucos se afastado
do pensamento utópico saint-simoniano e se aproximado do positivismo
comtiano, refutando o idealismo em defesa da importância criativa da eco­
nomia. Contudo,

Lacombe não foi um positivista de estrita observância, mas um positivista


francês, e na filosofia inglesa em que se relacionam Stuart Mill, Spencer e
Bain ele encontrou sua principal formação filosófica. No fim de sua vida,
quando o gosto da especulação lhe despertou uma chama suprema, ele
se informou avidamente sobre o pensamento alemão, que nunca lhe fora
familiar.4

Ao lado de sua ativa militância de escritor polêmico, suas principais


publicações são Le mariage libre (1867) e Lajamille dans la société romaine
(1889), tratado de questões relativas aos costumes, à moral, à família
e ao papel social das mulheres. Em síntese, Lacombe propõe mudan­
ças radicais na instituição do casamento, critica os fundamentos morais
da monogamia, de modo a resguardar direitos das mulheres diante do
problema francês do número imenso de crianças sem reconhecimento
de paternidade. Com esses trabalhos, torna-se referência necessária na
literatura e nos trabalhos iniciais de formulação da sociologia e da antro­
pologia, utilizando-se de modo próprio das ideias de Émile Durkheim e,
principalmente, de Mareei Mauss.
Suas obras propriamente históricas são Les armes et les armures (1867),
La petite histoire du peuple/rançais e Petite histoire d'Angletetre, depuis les origi­
nes jusqu’en 1650 (1876) e Le patriotisme (1878), nas quais Lacombe procura
pôr em prática suas ideias de uma história que ultrapassa a problemática dos
acontecimentos como objeto de estudo da história. Em vez das datas solenes
e dos nomes dos grandes heróis, apresenta as dinâmicas e instituições que
expressariam os fatos de civilização e necessidades da vida social.
Entretanto, no campo da teoria da história, é por meio de sua obra
mais densa e mais divulgada, De Vhistoire considerée comme Science, que se

4 Berr, 1935:60-61.
396 Lições de história

torna conhecido como teórico do conhecimento histórico e adepto de um


tipo de reflexão conceituai que o introduziu numa tradição intelectual que
estava se formando. Esse campo da discussão histórica, iniciado na França
com a publicação do livro de Louis Bourdeau, Lhistoire et les historiens, essai
critique sur 1’histoire considérée comme Science positive (1888), se propunha
a definir a natureza da história e as condições de possibilidade de seu es­
tatuto científico. Seguiu-se o famoso manual de metodologia, Introduction
aux études historiques (1897), dos historiadores e professores da Sorbonne
Charles-Victor Langlois e Victor Seignobos, cuja popularidade repercutiu
para além da academia francesa, reforçado pelo texto de Seignobos La mé-
thode historique apliquée aux Sciences sociales (1901). Por fim, surgem o texto
de François Simiand, intitulado “Méthode historique et Science sociale. Etude
critique d'après les ouvrages récents de M. Lacombe et de M. Seignobos”, e o
artigo de Paul Mantoux, “Histoire et sociologie”, ambos publicados em 1903
pela Revue de Synthèse Historique.
Nessa obra de maturidade, Lacombe procura discernir a existência do
homem universal e do homem temporário, estabelecendo um conjunto de
relações entre essas realidades existenciais e os chamados fatos gerais, defi­
nidos como instituições, e os fatos singulares, denominados “acontecimen­
tos”. A partir de então, vai estabelecer aquilo que pode ser caracterizado
como “fato de ciência” e “fato de opinião”. A singularidade do pensamento
desse autor reside na recusa à ideia de uma fusão imediata e necessária da
história com a nascente sociologia, na medida em que atribui importância
equivalente aos fatos de toda a natureza, desde que contenham elementos
recorrentes e permitam uma apreensão científica. Em decorrência disso, a
psicologia seria o fundamento ontológico e epistmológico do estudo das
regularidades da história.

Outro livro nessa linha, ainda que de forma mais moderada, é o de Paul
Lacombe, De Vhistoire como Science, em que se busca tal cientificidade por
outra via, a de um substrato comum explicativo a todos os atos da história,
que Lacombe crê encontrar na psicologia. Com relação às leis do desenvol­
vimento histórico, nas quais Lacombe também acredita, observa que é um
erro confundir evolução com progresso necessário.5

5 Aróstegui, 2006:116.
Paul Lacombe 397

Estas publicações refletem o esforço da intelectualidade ligada às ci­


ências humanas e sociais em geral e à história, em especial, para estabelecer
uma distinção epistemológica da história em relação à arte e à literatura. A
valorização do conteúdo inteligível do conhecimento histórico e a procura
de critérios científicos para a sua validação se ampliam e se aprofundam
nos debates sobre a sua cientificidade no século XIX. Essa atitude teórica
visava prioritariamente romper com a herança erudita e factual da história
e defini-la como um conhecimento objetivamente elaborado. A busca da
objetividade na pesquisa sobre os acontecimentos do passado, que na prá­
tica do historiador se manifesta como a declaração de fidelidade aos fatos,
orientou a discussão sobre os limites e as impossibilidades científicas das
formas de conhecimento cujo objeto de estudo é o homem, ao longo do
século XIX.
A crítica da sociologia durkheimiana a essa história metódica denun­
ciou a precariedade de um conhecimento cujas bases se firmavam na abor­
dagem do factual, do político e do individual. Dessa maneira, seu objeti­
vo principal era construir os fundamentos de uma ciência que fosse além
desses limites e que incorporasse os aspectos positivos da metodologia da
história. A revista IlAnnée Sociologique, fundada por Durkheim em 1897,
serviria de veículo desse projeto “federador” que apresenta a sociologia no
topo da pirâmide para a consolidação da ciência da sociedade, enquanto a
história seria relegada a um dos seus ramos de apoio.

A história não seria mais senão a dimensão diacrônica, útil em certos casos
para a explicação de fenômenos sociais residuais. A história promovida à
dignidade científica era de fato uma história dissipada na grande ciência
do social que lhe dava seu objeto e lhe prescrevia os meios de seu conheci­
mento. Assim pensavam no fundo não somente seus inimigos sarcásticos,
mas também seus benévolos conselheiros, os economistas e os sociólogos da
escola durkheimiana.6

Após a 11 Guerra Mundial, surge uma nova problemática que envol­


ve a história, colocando-a no centro da discussão sobre a realização de

6 Ranciére, 1994:14.
398 Lições de história

uma ciência do social e da cultura. Esse movimento intelectual, chamado


estruturalismo, formulou suas primeiras proposições baseado nos estu­
dos linguísticos, tendo como objetivo o conhecimento da estrutura do
discurso. Movidas por esse intuito, disciplinas como a etnologia, a lin­
guística e a semiótica juntaram-se para desvendar os segredos da signifi­
cação. Claude Lévi-Strauss foi um dos seus principais representantes, tra­
balhando na elaboração de uma antropologia estrutural e desenvolvendo
estudos sobre o significado das relações conscientes e inconscientes na
estruturação da cultura.
No que diz respeito à história, Lévi-Strauss considerava que sua
contribuição às ciências sociais se daria apenas por meio da explicitação
do que é contingente, constituindo-se, pois, em um conhecimento com­
plementar. A função da história seria abrir as portas da experiência social
para que a antropologia estrutural viesse a se encontrar com o incons­
ciente da cultura. Tal debate é retomado a partir dos anos 1960, quan­
do se faz sentir a influência do estruturalismo sobre as demais ciências
humanas, principalmente a história. Isso ocorreu no momento em que,
sob o comando de Fernand Braudel, se promovia a defesa da identidade
e dos interesses da história através da valorização do quantitativo nas
abordagens qualitativas do social.
Daí, portanto, pode-se vislumbrar a possibilidade de uma resposta à
questão colocada inicialmente a respeito do tratamento dado contempora­
neamente a Paul Lacombe. A revista dos Annales, tendo Braudel à frente do
seu comité editorial, publica o texto de François Simiand, Méthode histori-
que et Science sociale, mais de 50 anos depois de sua primeira divulgação.7
Essa decisão implica uma opção teórica e tática para enfrentar o projeto da
antropologia estrutural, cuja consequência imediata é o descarte da pro­
posta de Lacombe. Sem abandonar a proposta da interdisciplinaridade,

7 Simiand, 1960:83-119. Em rodapé a redação justifica: “Os Annales publicam hoje um débats et
combats que tem cinquenta anos de idade: o artigo clássico de François Simiand, publicado na
Revista de Síntese Histórica de 1903 (com a autorização da atual Revista de Síntese). Ele é bem co­
nhecido de todos aqueles que fizeram sua formação antes de 1939. Nós o publicamos pensando
sobretudo nos jovens historiadores para lhes permitir avaliar o caminho percorrido em meio
século e melhor compreender este diálogo da História e das Ciências Sociais, que permanece o
fim e a razão de ser da nossa revista. (N.D.L.R)”.
Paul Lacombe 399

Braudel restabelece a interlocução com as ciências sociais por intermédio


de Simiand, utilizando a conceituação das temporalidades como elemen­
tos definidores da identidade da história.8 Assim, o futuro epistemológico
projetado por Lacombe para a história como ciência acabou por não se rea­
lizar, devido às circunstâncias e contingências dos novos desafios lançados
no século XX, especialmente pelo aggiomamento neopositivista. Descarta­
das as condições de possibilidade de determinação do estatuto da história
científica por questões de política acadêmica, desaparecem o autor e sua
proposta, caindo assim no esquecimento a sua contribuição.
Supondo que esses fatos possam esclarecer o problema do esqueci­
mento das ideias de Paul Lacombe até este momento, e pelas razões ale­
gadas anteriormente, caberia então perguntar: por que entre os dias 24
e 26 de setembro de 2009 haverá um encontro acadêmico em Lauzerte,
com uma programação voltada para discutir a contribuição de Lacombe
para a antropologia, a sociologia e a história, destacando-o tematicamente
como republicano, livre-pensador, reformador da educação, feminista, an­
tropólogo, historiador e teórico da história? No estudo do passado, talvez
o historiador do futuro consiga inventar uma resposta para essa lembrança
do nosso presente.

O DOMÍNIO DA HISTÓRIA CIÊNCIA E SEUS LIMITES9

A história é o acúmulo de fatos heterogéneos. Por conseguinte se po­


deria dizer que contém, simultaneamente, elementos próprios do conhe­
cimento científico e elementos refratários. O que é o conhecimento cientí­
fico ou ciência? Ciência é a comprovação de semelhanças constantes entre
fenômenos de certa ordem. Se não há nenhuma semelhança reconhecível
na conduta dos homens, povos ou indivíduos, a história não se presta ao
conhecimento científico. Exame do problema. Todo homem se parece com
os outros homens e também difere deles. Todo ser humano contém ao
mesmo tempo um homem universal, um homem temporário e um indiví-

8 Braudel, 1990.
9 Lacombe, 1930:1-25.
<!
400 Lições de história

duo singular. E cada um dos seus atos está marcado por esta triplicidade.
As ações históricas, como os atos ordinários, podem ser consideradas seja
pelo aspecto que as faz semelhantes a outras, seja pelos aspectos que as
faz únicas. No primeiro caso são as instituições; no segundo caso são os
acontecimentos. O acontecimento em si é impróprio para converter-se no
objeto de um conhecimento científico, posto que não se presta à assimila­
ção, que é o primeiro passo da ciência.
Se se pergunta aos homens: o que é a história? A maioria responderia:
segundo nosso conhecimento, é tudo o que foi feito pelos nossos antepas­
sados. Em consequência, mediante a palavra história, a linguagem designa
uma realidade composta por inúmeros fenômenos. Somente outra palavra
supera esta em compreensão: a palavra natureza.
Por outra parte, a simplicidade do termo nos engana. Porque a pala­
vra é única, a realidade designada nos produz o efeito de ser homogénea,
enquanto é tão desconexa como grandiosa.
Quando se reconheceu que a palavra história é um rótulo cômodo,
ainda que equivocado, o problema de saber se a história é ou pode chegar
a ser uma ciência aparece sob uma luz nova. Sendo heterogénea a realidade
histórica, se disse que estas suas partes poderiam se prestar ao conheci­
mento científico, refutando-se outras. E se compreende que é necessário
examinar doravante a história adotando este ponto de vista.
Posto que se trata de discernir na história as partes que comportam o
conhecimento científico das outras partes que não o comportam, pelo me­
nos por hipótese, inicialmente é necessário formular uma ideia clara disto
que chamamos ciência.
Denomina-se ciência um conjunto de verdades, isto é, de proposições
que enunciam que existe uma semelhança constante entre tais e tais fenôme­
nos. Exemplo: todas as quedas de corpos sobre a superfície da Terra se
assemelham neste ponto: que o corpo cai seguindo a vertical do lugar. Por
oposição, saber que um determinado corpo, o capitel da catedral de X, caiu
destruindo muitas casas, não é próprio da ciência: é simplesmente noção
ou conhecimento da realidade.
Contudo, constatar uma semelhança não é o fim último da ciência.
Uma semelhança, com efeito, não é mais que a realidade. Para que a seme­
lhança ascenda à categoria de verdade, é necessária uma nova condição.
Retomemos o exemplo precedente: a queda semelhante dos corpos se tor-
Paul Lacombe 401

na uma verdade quando se descobre o laço que a liga a um fenômeno mais


universal: a atração universal.
Depois desta breve explicação, está claro que a quantidade de coisas
que se denomina história não é ciência. As guerras, as alianças, as revolu­
ções, os acontecimentos artísticos e literários, que formam as obras históri­
cas, são evidentemente comparáveis à queda do capitel de que falamos an-
teriormente; como ela, são fenômenos singulares, acidentes; e os acidentes
têm com a história científica que nós buscamos a mesma relação que existe
entre a queda dramática de um edifício e a teoria da gravidade.
É porque pensam unicamente nestes acidentes históricos que a maior
parte dos espíritos considera a história um simples gênero literário e a de­
clara estranha ao círculo das ciências. Têm absoluta razão, permanecendo
neste ponto de vista; mas poderiam estar errados se na história houvesse
outra coisa a mais que aquilo que veem nela.
Recordo em meu espírito a definição de ciência e me digo: se os ho­
mens, nos seus atos, na sua conduta, jamais apresentaram qualquer seme­
lhança, isto poderia ser objeto de uma proposição geral. A história será
uma ciência possível, na medida em que tais semelhanças se ofereçam. Ao
contrário, se a humanidade não tem nenhuma semelhança consigo mesma;
se a conduta de cada um dos homens se tornou completamente diferente
da conduta dos outros, a história jamais será uma ciência.
Há na humanidade qualquer consonância na sua conduta que cor­
responda a isto que chamamos de ordem na natureza, a qual não é, com
efeito, mais que uma consonância da natureza consigo mesma? Esta é a
questão.
É evidente que, fisicamente, um homem se assemelha a outro homem
e que também difere dele. Cada um, para falar como os médicos, tem a
sua idiossincrasia: mas a forma, a disposição e a função essencial dos ór­
gãos são parecidas em todos os homens. Esta semelhança tem uma grande
abrangência; e a prova é que se pode constituir, a partir desta semelhança,
uma anatomia e uma fisiologia cujas verdades formam obras bastante vo­
lumosas.
A semelhança essencial dos órgãos determina aquela das necessidades
e vontades. Quanto aos objetos que perseguem cotidianamente e em toda
parte, os homens se assemelham. A despeito do tempo e do espaço, as
intenções capitais da humanidade continuam sendo as mesmas; as neces-
402 Lições de história

sidades inelutáveis do coqDo não permitem, nem permitirão jamais, que elas
sejam diferentes senão dentro de estreitos limites. A identidade do aparelho
nervoso, em todos os homens, nos dá ainda uma semelhança capital. Todos
os homens formam suas sensações, suas percepções, recordam suas lembran­
ças e constroem, enfim, suas imaginações, seguindo modos uniformes. Há,
pois, grandes semelhanças psicológicas e grandes semelhanças corporais.
Também se pode constituir uma psicologia geral do homem cujas constata­
ções formam também volumes, como, por exemplo, a obra de Bain.10
Esforcemo-nos agora por destacar as diferenças e teremos uma contra­
prova. Eu não falo senão de diferenças psíquicas. Demos um nome conhe­
cido e, aliás, consagrado a isto que faz com que um homem seja diferente
de outro; chamemos isso de caráter. O que é o caráter? Uma observação
sobre aquilo com que se está de acordo deve ser anunciada inicialmente.
Entre os sentimentos humanos que a psicologia geral constata, não há um
que seja absolutamente estranho a um homem qualquer; e, reciprocamen-
te, o homem não experimenta nenhum sentimento que seja estranho ao
resto da espécie. Igualmente as faculdades intelectuais, de um homem a
outro, não diferem jamais senão pelo grau. O caráter consiste, pois, em
uma combinação particular de elementos comuns, combinação onde as
proporções recíprocas de elementos são únicas no mundo, mas isso é tudo.
Experimente representar um caráter e você será obrigado a empregar ex­
pressões que designem, de início, os elementos comuns — ambição, orgu­
lho, simpatia etc. —, e depois indicará, por assim dizer, a dose de cada um
deles. Finalmente, uma pintura de caráter está feita com expressões gerais,
modificadas por termos que correspondem a mais e a menos.
Fixemos este primeiro resultado: entre os homens existem traços co­
muns, uma sorte de natureza humana universal; isto está provado, inicial­
mente, pela possibilidade de formular proposições que se consideram ver­
dadeiras para todos os homens e também pela impossibilidade de formular
o que faz diferir os homens se não se usa uma linguagem onde precisamen­
te os traços comuns estejam compreendidos.
Nós colocamos frente a frente o homem universal e o homem sin­
gular, invariavelmente contidos em todo indivíduo, mas assim temos mu-

10 Alexander Bain (1818-1903), filósofo escocês partidário do empirismo e do pragmatismo, e


idealizador de uma psicologia científica. (N. do T.)
Paul Lacombe 403

tilado a realidade no interesse da exposição. Restabeleçamos agora, entre


os dois termos, um novo elemento que importa particularmente ao nosso
estudo: existe, em todo indivíduo, o homem de uma época e de um lugar
(isto está sempre unido), o homem que tem maneiras de pensar, de sentir
e de agir, nem singulares, nem gerais, mas comuns a um grupo mais ou
menos extenso: a este chamaremos homem temporal ou histórico.
Nosso século reagiu contra o precedente; este havia especulado muito
sobre o homem universal; o nosso não quis admitir senão o homem tem­
porário e local. Alguém disse: eu conheço gregos, romanos, ingleses, não
conheço o homem universal.11 A expressão fez sucesso. Se ingenuamente
quer se falar da realidade objetiva, tem-se razão, ainda que somente até
certo ponto. Neste sentido, somente existe o indivíduo; o inglês ou o grego
não têm mais substância que o homem universal. Mas se trata de verdade,
e então a expressão não tem sentido.
Moralmente falando, existe um homem universal tão incontestável
quanto o homem universal biológico, pois a existência deste comanda im­
periosamente a existência do outro; são como os dois lados, frente e verso,
de uma mesma tela.
O homem temporário, o francês ou o inglês, tem por substrato o ho­
mem universal, e este é muito mais sólido que o outro. [...]
Também o método preconizado em história é o contrapé do método
empregado pelos sábios. Existem, sem dúvida, biólogos que buscam expli­
car por que tal população apresenta traços físicos especiais, como o prog-
natismo ou a microcefalia, e eles fazem, sobre esses tipos de questões, livros
que equivalem a obras de erudição. Mas, antes de abordar esses problemas
particulares, terão de ter cuidado para adquirir um conhecimento profun­
do da organização comum e regular. Eles sabem que chegarão, talvez, à
força de conhecer o homem comum, a compreender este homem local.
Eles sabem que, nas ciências complexas, a explicação de particularidades é
diretamente insolúvel, e quem quis penetrar o segredo do restrito e do raro
de outra maneira que não fosse descendo a escada das verdades mais am-

11 Essa frase é de autoria do filósofo, moralista e contrarrevolucionário Joseph de Maistre (1753-


1821), recusando-se a acreditar na ideia de um homem universal e em uma natureza humana
abstrata. (N. do T.)
404 Lições de história

pias se expôs a certo fracasso. Os eruditos, ao contrário, se introduzem no


especial sem nenhum conhecimento geral que seja o análogo da biologia.
Diz-se que conhecemos os gregos, os romanos e os egípcios bem me-
lhor que nossos predecessores: é verdade em um sentido. A arqueologia, a
linguística, a exegese de textos fizeram grandes progressos. Nós conhecemos
melhor o material da história. É porque os nossos historiadores são muito
pitorescos. Eles têm mais cor do que aqueles dos dois últimos séculos. Mas,
quanto a ter melhor apreendido o fundo psíquico, ter desvendado o homem
mais adiante e sobretudo tomado sua justa medida, é muito discutível. Os
historiadores, os eruditos consagrados ao estudo particular de um povo nos
proporcionam geralmente esta conclusão, já expressa e amiúde difundida, de
que o seu povo foi excepcional; que ele tinha maneiras de pensar, de sentir
que não se compreendem senão pela existência de uma natureza, de um gê­
nio próprio. O romano, se a questão são os romanos, o grego, se se trata de
gregos, são de tal maneira, nos nossos eruditos, gregos e romanos, que não
são humanos. Eles não se parecem com o que vemos e tocamos; pois, faço
observar, o humano universal que age sob os nossos olhos é mais seguro que
esta humanidade especial e distante com a qual nos acalentam.
Todo ato humano leva, como o indivíduo mesmo que o produziu, o
triplo selo do universal, do temporário e do singular. [...]
Os atos que entram na história, tal como se faz ordinariamente, levam
também a tripla chancela do universal, do temporário e do singular? À
primeira vista, parece que são únicos: não há senão um Clóvis que se fez
consagrar em Reims; não há senão uma Joana D'Arc que libertou Orleáns;
não há senão um Napoleão que tenha vencido em Waterloo. Observando
o ato exemplar único como Waterloo, nós temos o ato multiplicado, o ato
extraído de um grande número de exemplares ou, como se queira, formado
sobre um tipo, sobre um mundo comum; por exemplo, o fato de comprar
e vender com a moeda de metal; hoje este fato é realizado por milhares de
pessoas; amanhã reiterado pelas mesmas ou outras e durante anos ou sé­
culos. Parece, pois, que estamos diante de uma diferença de natureza que
afeta os dois atos; e eu creio que os historiadores de um lado, os sociólogos
de outro, às vezes estão dispostos a acreditar que eles tratam efetivamente
de atos profundamente diferentes. É uma ilusão que se dissipa quando
os observamos de perto. Então percebemos que, em todas as ordens da
atividade humana, existe o aspecto universal e temporário, desde que o
Paul Lacombe 405

busquemos. Uma determinada batalha, Waterloo, da qual falei ainda agora,


única quando a consideramos de certo modo, não contém menos modali­
dades comuns, mais ou menos estendidas no tempo e no espaço, segundo
as quais as tropas foram formadas, classificadas, comandadas, dirigidas,
enfim, apresentadas ao inimigo e conduzidas no combate. Inversamente, o
ato de venda, abstratamente considerado, é uma instituição de ordem eco­
nómica comum a todos os povos da terra; mas, se chamo atenção somente
para as circunstâncias do tempo, do lugar, da pessoa que vende, daquela
que compra, do preço, do lucro ou da perda, na conjunção de tudo isso
tenho diante de mim um fato absolutamente singular.
Descobre-se finalmente que entre os historiadores e sociólogos se tra­
ta não de objetos diferentes em espécie, mas dos mesmos objetos vistos de
perspectivas diferentes: diferença de ponto de vista e, contudo, diferença
capital, quando se trata de constituir a ciência histórica.
Para maior clareza e comodidade de explicações, acredito útil, dora­
vante, denominar diferentemente o ato visto como único e o mesmo ato
visto na sua similaridade com os outros. Chamaremos um de acontecimento
e o outro de instituição.
O que se denomina uma instituição é realmente constituída por atos
humanos. A ordem de São Bento, por exemplo, merece seguramente o
nome de instituição; em que consiste essencialmente? Em monges que rea­
lizam práticas comuns; o que, em síntese, aparece como uma homogenei­
dade de conduta. O dia em que esta homogeneidade faltar, a ordem pode
existir em nome, mas não de fato; não haveria senão indivíduos realizando
atos particulares.
Leia os historiadores — digo estes de história ordinária, narrativa, pa­
rece que não há história senão nos acontecimentos; leia os sociólogos, pa­
rece que não há senão instituições. Contudo, o tecido da história apresenta
por toda parte os acontecimentos e as instituições profundamente cruzados
e entrelaçados; somente o nosso espírito os separa.
Uma instituição, de qualquer duração, tem um começo e um fim,
limites no tempo, do mesmo modo que no espaço; por exemplo, o ca­
samento romano do qual falei ainda há pouco, ou mesmo o casamento
monogâmico.
A instituição surge por um homem que começa a praticar a coisa
nova; depois, gradualmente, a uniformidade se expande. Este é um pro-
406 Lições de história

cesso testemunhado pela história e fora da história, indicado pela psico­


logia como inevitável. Não é possível que um número de homens, mesmo
bastante pequeno, tenha uma mesma ideia nova e uma mesma vontade no
mesmo preciso momento. No primeiro momento, a instituição que vai se
formar se apresenta, pois, como um fato individual — quer dizer, como
um acontecimento. Da mesma maneira, ela não morre de um golpe, mas
vai se reduzindo e termina, como começou, por ser um ato individual, um
acontecimento. Pode-se dizer, pois, que a instituição é um acontecimento
bem-sucedido.
Nós veremos que as instituições e os acontecimentos não estão so­
mente misturados, mas que são ativos em relação a uns e outros. Exemplo:
a legião romana, instituição militar, trata dos acontecimentos de guerra
posteriores à sua invenção e, em contrapartida, os acontecimentos produ­
zem nestas instituições modificações que, pouco a pouco, alteram-na até o
ponto de destruí-la. Podem-se citar milhões de exemplos desta reciproci­
dade de influência.
Nós podemos agora concluir: o acontecimento, o fato histórico visto
pelo aspecto que o torna singular, é refratário à ciência, posto que é, de
início, constatação de coisas similares. Mas, de outra parte, toda instituição
tem por ponto de partida um acontecimento — apesar de nem todos os
acontecimentos terem essa fortuna. O acontecimento que engendra uma
instituição tem por isso o direito de entrar para a história. Mas, então,
como está livre de toda consequência institucional, o acontecimento pode
ser ainda bem captado; os homens que o fizeram se guiaram para ele, em
parte por motivos temporais, cuja gravitação chega a ser manifesta. Mas o
conhecimento destes motivos, em todos os seus efeitos, marca a história
como ciência.
A história ciência apreende, pois: primeiro, as instituições, aquelas
que constituem seu principal objeto; segundo, os acontecimentos, na me­
dida em que tenham originado alguma nova instituição, na medida ainda
em que, sendo o efeito do homem temporal, revelam o poder das insti­
tuições vigentes. Repito que não há nada de decididamente rebelde senão
o fato considerado por aquilo que o faz único. Este em matéria de pura
erudição.
“Distinguir as instituições dos acontecimentos não é uma ideia nova.”
Sem dúvida: mas, acaso se tem concebido esta ideia com a clareza de-
Paul Lacombe 407

sejável? Se a diferença foi estabelecida, suas consequências rigorosas, em


todo caso, não são percebidas. Se expusermos quaisquer outras ideias, cujo
conhecimento prévio é necessário, nós mostraremos que a filosofia da his­
tória sucumbiu em suas tentativas por não ter compreendido o caráter anti-
científico do acontecimento e ter querido explicá-lo com o mesmo critério
das instituições.
A segunda operação das ciências é a investigação das causas. A cau­
sa em história, entendida cientificamente, não pode ser senão o homem
universal ou temporal. O individual não pode ser uma causa. Estando o
individual sempre presente, a história compreende elementos que não se
prestam à investigação da causa e igualmente contém elementos refratários
à assimilação. A filosofia da história ignorou a existência desses elementos
refratários e por isso fracassou.
A história nos apresenta, pois, em toda parte semelhanças a recolher,
particularidades a eliminar. Esse trabalho, bem feito, constituiria já a his­
tória sobre a base de uma ciência iniciada. Mas em toda ciência existe uma
segunda e suprema operação que é a investigação das causas.
Sempre que um fato A se apresenta imediatamente antes que outro
fato B, dizemos que A é causa de B e que B é o efeito de A. Vale observar que
isso é ainda uma semelhança, a analogia na ordem das sucessões.
O espírito humano se interessa particularmente pelas semelhanças
desse gênero porque, ao explicarem o passado, sempre permitem qualquer
tipo de previsão para o futuro.
A causa, como a compreende a história ciência, não é da mesma na­
tureza que a causa entendida no sentido da erudição. Quando pode, com
certeza, nomear os homens que cooperaram para tal acontecimento, fun­
dando ou modificando tal instituição, o erudito encontrou sua causa; e, a
seus olhos, a obra é verdadeiramente perfeita se foram determinados os
motivos dos agentes.
Os agentes reais da história são seguramente os indivíduos; na base
da história não há senão ações individuais. Estes grandes seres fictícios,
que nomeamos povo, nação, exército, corporação, se reduzem finalmente
a indivíduos; sua atividade se reduz, ela mesma, a atos individuais, mais ou
menos combinados ou similares. Tal é o aspecto exterior das coisas. Mas, é
necessário recordar, o indivíduo contém em si o individual, o temporário e
o universal, um triplo ator.
408 Lições de história

Quando ele atua individualmente, o ator histórico é, por definição,


um antecedente que não aparece senão uma vez. É impossível dizer de um
antecedente que se apresenta uma vez somente que ele é sempre seguido
do mesmo consequente. O individual não é, pois, apto a converter-se em
causa, no sentido científico da palavra.
Ao contrário, quando ele atua porque tem algo de universal, um ator
histórico tem todos os outros homens por equivalentes. E, por consequên­
cia dessa equivalência, os homens que viveram antes dele constituem, para
a investigação da causa, sempre o mesmo antecedente.
De um antecedente que se apresenta tantas vezes, é possível constatar
> dele se desprende ou não algum efeito sempre semelhante; dito de outra
naneira, o homem universal é apto a se tornar causa.
O mesmo podemos dizer do homem temporal. Ele tem suficiente
extensão para isto, embora a tenha menos que o homem universal.12
Os homens agindo sempre dessa maneira tripla, o acidente produzi­
do pelo princípio individual se encontra sempre mesclado entre as causas
científicas da história.
Observar-se-á a analogia deste resultado com o obtido no capítulo
primeiro. A história concebida à maneira ordinária compreende, no seu
círculo mal delimitado, elementos rebeldes à investigação das causas, assim
como elementos rebeldes à assimilação.
Em resumo, não há senão atos comumente realizados por um núme­
ro impreciso de homens que tenham uma causa, no sentido científico da
palavra.
Esta verdade foi ignorada por todos os que se dedicaram à filosofia da
história, e eles a ignoraram por não terem distinguido suficientemente os atos
realizados comumente, quer dizer, as instituições dos acontecimentos.

12 Dito de outra maneira, os homens, enquanto universais, são absolutamente equivalentes.


Enquanto temporários, é visível que eles se equivalem em um domínio mais ou menos extenso.
Sua semelhança faz desses homens uma espécie de causa única, mais ou menos ampla. Diz-se:
a humanidade é comparável a um homem atemporal. Nestes termos absolutos, é um erro que
produziu muitos raciocínios falsos; isso é verdade unicamente para a humanidade considerada
de certa maneira, a humanidade universal. Acrescentemos: a humanidade vista nos seus atos
temporários institucionais é comparável a um homem que viveria muitos séculos.
Paul Lacombe 409

Demonstração do seu insucesso pelo exemplo de Montesquieu

A história confirma a psicologia ao me mostrar uma multidão de ca­


sos em que os meios foram vencidos, arrastados pelas personalidades; não
se fará um longo capítulo. Limitar-me-ei a alguns exemplos. Os papas, com
alguns missionários devotados, acabaram por impor o celibato ao clero ca­
tólico, o qual o repugnava energicamente. Maomé começou por encontrar
em torno de si uma hostilidade geral e declarada; finalmente ele conseguiu
desencadear a guerra santa desse povo que não sentia, a princípio, nenhum
ardor por ela. As novidades históricas começam por um, depois por alguns,
apesar de todos. É o que os homens são no fundo bem mais indiferentes,
bem menos constantes em seus desejos e, enfim, muito mais inclinados do
que se supõe à submissão, mesmo servil. Toda a história somente testemu­
nha demais. Cem coisas insuportáveis foram suportadas e, durante séculos,
por grandes massas. Imaginamos somente que os servos, os escravos, os
sujeitados a reis despóticos e ávidos se encontrassem bem sob as moen­
das do moinho que os espremiam. Somente não tinham confianças em si
mesmos; sentiam somente a dificuldade de uma resistência cominada e se
entregavam.
Há certamente muitos casos onde o meio é indiferente, neutro; outros
onde o público mal advertido não vê o que lhe realmente concerne. Não
insistirei. Quero chegar imediatamente ao caso ou ao meio, e os chefes
estão de acordo sobre uma tarefa a realizar. Todo trabalho pode ser feito de
várias maneiras diferentes, mal, bem e entre um e outro. É aqui que, sem
contestar as faculdades morais e intelectuais dos chefes, eles têm uma in­
fluência de primeira ordem. Os meios não resistem mais, se apresentam; o
partido que vai se tirar depende do que vale aquele que comanda. A Fran­
ça do século XV queria, desejava tirar seu rei nacional de um impasse de
Bourges, levá-lo ao campo e conduzi-lo à sagração em Reims. Joana D’Arc
assume a tarefa reivindicada. O que foi particular em Joana D’Arc, quanto
às qualidades do caráter, o grau de inteligência, não contribuiu para dar
aos acontecimentos um porte que teria produzido uma série diferente de
acontecimentos?
Admito, e não é uma concessão às ideias estranhas, a existência de um
comportamento geral, provocando o aparecimento de uma Joana D’Arc.
H preciso admitir que a Joana D’Arc real trouxe em sua pessoa algo que a
410 Lições de história

ajudou na sua empresa e que, talvez, Catarina de la Rochelle, em seu lugar,


não haveria produzido um efeito exatamente igual.
O historiador que vê os acontecimentos do passado em seu resultado,
vantagem que os atores desses acontecimentos não puderam ter, é exposto
em contrapartida a uma ilusão. Ele percebe que um povo, em tal momento,
tinha uma tarefa para realizar e ela seria realizada, ele acredita que isso foi
absolutamente determinante. Exemplo: sob Carlos VII, havia que salvar a
monarquia francesa. Joana D’Arc cumpriu esse dever; tendência a acreditar
que Joana D’Arc foi provocada por alguma coisa imperiosa, quase inelu­
tável, aparência geral, a força das coisas, o gênio da França, todas essas
entidades vêm a ser o mesmo.
A história está plena, infelizmente, de tarefas indicadas e que não fo­
ram cumpridas. Em Roma, no tempo dos gregos, era preciso deter a usur­
pação da terra e a extensão perniciosa do latifúndio. Isto importava para
Roma e a humanidade mesma. Essa obra necessária fracassou.
No início de nossa Revolução Francesa, para passar da monarquia
absoluta à monarquia constitucional, era necessário encontrar, muito per­
to do velho rei, incapaz do papel, um ator que fosse indicado para isso.
Não se soube encontrá-lo. A história lógica fracassou, enquanto semelhante
transição teve êxito na Inglaterra com Guilherme de Orange; e entre nós
mesmos, com Luís Filipe. Nós poderíamos multiplicar esses exemplos ao
infinito. Em nenhuma parte, para olhos não iludidos, não se demonstra um
curso das coisas, uma necessidade de coisas suscitando precisamente tal
ator e trazendo tal desenlace.
Depois de haver dito: os grandes homens se fazem, o comportamento
os leva, e não se estava bastante seguro de ter eliminado a contingência, e
se acrescenta: os grandes homens não são senão os representantes de seu
país; eles encarnam suas ideias, suas aspirações. Aqui ainda a tese não é
falsa porque ela é exclusiva. Os atores históricos agem em parte como os
representantes de certo meio, é certo; digo mais, eles agem também como
homens universais; mas afirmar que nada de particular, de próprio neles,
não passa do papel que desempenham é ir contra a evidência. Como! Não
há nada desta individualidade única que se chama Joana D’Arc no trabalho
que Joana D’Arc realizou; nada de Maomé no que fez Maomé; e, a lógica
nos impulsiona, não há nada de Napoleão nas epopeias do Primeiro Impé­
rio: Napoleão encarnando as ideias, as aspirações de seu tempo; Napoleão
Paul Lacombe 41 1

representando puramente um não sei o quê de comum a todos, um fundo


francês; não trazendo, na execução desses desígnios franceses, uma medida
do potencial intelectual que lhe seja próprio e que influi, é preciso convir
que é duro aceitar e, contudo, é necessário até ali, ou a tese cai.
Transporte a ideia de comportamento universal à vida ordinária, apli­
que-a ao particular obscuro — e acredito que nós somos obrigados logica­
mente — e terá esta consequência: o indivíduo não é nada em seu destino;
há em torno dele uma conduta que o leva. Veremos em seguida qual é o
sentimento geral a este respeito.
Caracterizemos brevemente o erro que explode em Montesquieu e
aparece em quase todas as obras de filosofia histórica. Sobre todos os acon­
tecimentos se queria fazer uma tentativa que não teria sucesso senão com
as instituições, quero dizer, encontrar as causas científicas ou, para falar
a linguagem ordinária, as grandes causas. Sobretudo se quis eliminar as
pequenas causas. É preciso entender por estes todos os efeitos devidos à
paixão ou o interesse privado dos atores e por aqueles os efeitos devidos a
outros sentimentos ou ideias comuns às massas de homens. É justificável
o epíteto de grandes a estas últimas, que, com efeito, apresentam extensão
e duração. É fácil ver que as grandes causas respondem ao que nós chama­
mos neste livro de instituições.
São os historiadores, merecendo o título de filósofos, que escaparam
ao desejo de explicar tudo pelas grandes causas e reconhecem a parte das
pequenas. Voltaire, por exemplo, para quem este fato tem sido tratado com
altura por pessoas medíocres, e Pascal, a quem se tem seguidamente repro­
vado sua frase sobre o nariz de Cleópatra; mas nem Voltaire nem Pascal,
nem nenhum autor desse tipo, que seja de meu conhecimento, se apoiou
na distinção entre instituições e acontecimentos, isto é, entre o elemento
regular e o elemento acidental misturados na história; não que em alguns,
em Voltaire, por exemplo, esta ideia tenha sido completamente defeituosa;
mas ele não tinha a seus olhos a clareza, nem sobretudo a importância
desejadas.
O erro em que incorreram os primeiros autores da filosofia é, aliás,
mais que desculpável. Pode-se dizer que ele foi obrigatório e, nesse caso,
determinado pela natureza humana. Em uma série de fatos que nos to­
cam pessoalmente, o importante para nós é o resultado eventual, bem-
sucedido ou fracassado, feliz ou infeliz. Como espectadores desinteres-
412 Lições de história

sados, partimos ainda nos primeiros olhares sobre este tema. Ao invés
do final, os meios falam somente a nosso espírito, o resultado se dirige à
nossa sensibilidade; é a parte emocionante como a ponta de uma espada.
Naturalmente, os historiadores carregam nos seus estudos esta inclinação
de homem privado.
Outra inclinação, também naturalmente, determinou a direção final.
Somos estimulados a pensar que os fatos mais emocionantes são o que há
de mais determinado. Que uma catástrofe imprevista, uma morte surpre­
endente choca em particular, nosso espírito se recusa à ideia do acaso: ele
supõe, quase inevitavelmente, uma causa profunda. Todos nós nos pare­
cemos com madame de Sévigné, que vê a bala de Turenne vir do fundo
do tempo. Quando contemplamos estas grandes catástrofes que castigam
os povos, a tendência natural é ainda mais forte. Esta causa profunda, que
nós desejamos sempre, nos parece aqui, em relação a estes grandes seres,
rigorosamente exigível.
Para os que creem na Providência, a causa se oferece como se fosse
dela mesma; o desenho de Deus aparece, ele vem explicar a queda de Roma
a Bossuet, como ele explica tanta gente e seus infortúnios particulares. Os
que não creem mais encontram logo uma ideia sucedânea, a do mérito;
cada um faz seu destino, se diz em toda parte. Montesquieu, demonstran­
do que Roma deveria vencer por seus costumes, não faz senão justificar o
adágio popular.
Providência ou mérito, o mesmo atrativo nos liga a estas ideias. De-
sagrada-nos ser o jogo da contingência, seja individualmente ou como cor­
pos. Isto nos assegura que falta uma causa profunda para nos destruir, ao
mesmo tempo que ela nos favorece.
A falsa via onde se engajou a filosofia histórica vem manifesta quando
se considera a que segue, ao contrário, a sociologia, esta recém-chegada.
A sociologia não visa penetrar o segredo dos destinos particulares de cada
povo. Ela busca constatar as instituições, a semelhança de um povo com
outro ou sua consequência em um povo considerado. Graças à escolha de
seu objeto, a sociologia chegou a estabelecer generalidades empíricas, que
são de fato da ciência em primeiro grau. Ao contrário, a sociologia parece
ignorar bastante os acontecimentos, o acidental da história. Ela deverá ter
mais em conta e determinar com exatidão a parte da influência que os
acontecimentos exercem sobre as instituições.
Henri Berr
José Carlos Reis

No aniversário dos 80 anos de Henri Berr (1863-1954), Febvre publicou


a sua “Hommage a Henri Berf\ onde expressava a sua admiração e a sua
amizade, celebrando-o como “o embaixador da ciência”. Febvre, agrade­
cendo-lhe, recapitula as suas iniciativas de apoio aos cientistas das diversas
áreas, por promover seu encontro e a divulgação dos resultados de suas
pesquisas. Primeiro, em 1900, Berr fundou a Révue de Synthèse Historique,
que reunia membros do stablishment universitário e jovens e promissores
marginais. Para Febvre, a RSH tem na história da história um grande lugar:
foi mais que um apelo à inteligência, “uma insurreição contra tudo que
quebra, separa, corta e isola o espírito humano. Ela foi uma reunião de
homens ativos, vivos, conquistadores, um “centro de pesquisa” no sentido
mais estrito do termo, um/oyer, que aqueceu a todos que precisavam de
apoio”. Mais tarde, em 1920, Berr criou a coleção UEvolution de VHumanité,
muitas vezes imitada, que trouxe à luz uma dúzia de livros excepcionais.
Os volumes da coleção traziam os seus extensos prefácios-sínteses, que
situavam cada volume no conjunto. Depois, em 1925, criou o Centro In­
ternacional de Síntese, com o apoio da marquesa Arconati-Visconti e do
Banco Rothschild, que promovia as famosas Semanas de Síntese, onde se
encontravam matemáticos, astrónomos, físicos, biólogos, filósofos, soció-
414 Lições de história

logos e historiadores, uma reunião rica, otimista, em busca da razão crítica,


com um espírito de fidelidade quase mística à ciência.1
Febvre e Braudel fizeram de Henri Berr um dos ancestrais da Escola
dos Annales, o que pode surpreender, porque não era um historiador.
Berr foi aluno da Escola Normal, doutor em filosofia, professor de liceu,
pouco integrado às instituições universitárias. Mas, desde a sua tese de
1893, O futuro da filosofia: esboço de uma síntese dos conhecimentos fundados
na história, dava um lugar central à história entre as ciências e recusava
tanto a fragmentação do real, à qual tendiam os positivistas, quanto a
abstração filosófica, à qual tendiam os neokantianos. Ele se opunha à
história universitária dominante, cujas tentativas de síntese julgava pre­
maturas. Em sua obra A síntese em história (1911), expôs o seu conceito
de “síntese”, que iria diferenciá-lo no campo intelectual e universitário do
início do século XX. Para Burguière, a influência de Henri Berr sobre os
Annales é subestimada. Ele exerceu vários níveis de influência sobre os
fundadores: influência pessoal — o seu modelo de ação e de ética científi­
cas; influência intelectual — soube criar um clima de debate e de reflexão
teórica na RSH e nas Semanas de Síntese, que Bloch e Febvre frequenta­
vam e onde se encontrava a elite intelectual menos conformista e mais
inovadora; influência tática — os fundadores dos Annales apropriaram-se
da estratégia editorial da RSH, para mobilizar as ciências humanas e fazer
dialogar as disciplinas, e da ideia de “pesquisas coletivas”. Henri Berr co­
municou-lhes o seu “estilo de pensamento” e a sua maneira de suscitar na
inteligência universitária a necessidade de se reunir em torno da mesma
concepção de trabalho científico.2
Febvre e Bloch foram seus amigos pessoais e deixaram-se marcar por
sua personalidade moral e intelectual. Sua figura de “empresário cientí­
fico” exerceu um grande fascínio sobre os fundadores dos Annales. Berr
mobilizou a sua energia organizadora para renovar as ciências humanas e
foi um modelo para os inúmeros empreendimentos editoriais e as formas
coletivas de vida científica que os Annales criaram. Ele queria uma revista
que centralizasse as pesquisas em ciências humanas, e a RSH atraiu todos
os jovens intelectuais franceses, de antes e logo depois da I Guerra, com

1 Febvre, 1992b; Revel, 1990.


2 Burguière, 2006.
Henri Berr 415

a sua proposta de sacudir as rotinas e superar as separações do pensa­


mento universitário. Era uma revista que reunia a juventude intelectual,
que promovia a crítica ao pensamento estabelecido na universidade fran­
cesa. Para Burguière, embora fosse um líder do campo científico, Berr
não adotou a postura individualista do intelectual profeta, herdeiro das
Luzes, que faz apelo à voz da razão para mobilizar a opinião pública. Sua
postura era a do sábio na cidade: trazer aos homens do seu tempo a sua
competência de especialista para ajudá-los a decifrar a sua sociedade e
oferecer aos governos os instrumentos de conhecimento necessários à
reforma social. Não era um pensador carismático, engajado em lutas so­
ciais. O seu ideal era kantiano: a “paz perpétua” é também um problema
da ciência. Berr foi um herói, um altruísta, que queria criar uma ética
científica humanista. Seria ingénuo?
Segundo Burguière (2006), o único livro de reflexão teórica que Feb-
vre indicava aos seus alunos era A síntese em história, que, embora hoje pos­
sa ser considerado um livro sem densidade, não é ultrapassado; já tentava
discernir o que havia de autonomia e de dependência entre as ciências,
já pensava a “interdisciplinaridade”, não como uma unidade simples dos
saberes, mas antecipava o atual conceito de “complexidade”: uma unidade
das ciências que reconhece as suas autonomias e dependências. E criticava
o cientificismo ingénuo dos positivistas durkheimianos. Bloch e Febvre
retomaram a sua proposta de “interdisciplinaridade”: pesquisas coletivas,
com a colaboração entre instituições, pesquisadores e disciplinas. Mas, para
eles, Henri Berr tinha um grave “defeito”, que os fez se afastarem dele e da
RSH: era “muito teórico!” Os Annales nele se inspiraram e prosseguiram o
seu esforço, mas reorientaram o seu projeto para “exemplos e fatos”. Berr
não se abalou com a defecção dos amigos historiadores: continuou a sua
exploração dos fundamentos teóricos do conhecimento e dos dispositivos
conceituais e retirou o “historique” do título da sua revista, concedendo-
lhes, gentilmente, este espaço que a sua revista abrira.
Hoje, oito décadas mais tarde, pode-se perguntar: será que os fun­
dadores dos Annales fizeram bem em se afastar de Berr? Não teriam sido
“infiéis” e “ingratos”, tanto pessoal quanto intelectualmente? Afinal, eles
próprios o consideraram capital para a renovação da historiografia. E, de
fato, Berr foi o pai intelectual dos Annales, por várias razões:
416 Lições de história

♦ foi o inventor e defensor da “nova história”3 — fez a primeira formula­


ção da “história-problema”;
♦ foi, antes de Simiand, o primeiro a reagir contra a “história historizante”
(positivista), que confundia erudição e ciência, pois via na história algo
mais do que um pretexto para exercícios eruditos;
♦ foi o primeiro a fazer a apologia da história, que para ele devia ser a
base de uma ciência geral da humanidade, reunindo e organizando os
progressos das ciências. A seu ver, à história estava destinado o papel da
“síntese”, do balanço das experiências humanas; por isso, era a ciência
das ciências. A palavra “síntese” era a chave do seu pensamento, e a uni­
dade das ciências humanas teria como base a história e a psicologia;
♦ inaugurou a intervenção intelectual voluntarista, polêmica, que depois
foi a marca dos Annales;
♦ seu projeto científico foi um esforço construtor de uma “sociabilidade
científica”. Ele foi o primeiro a defender a “interdisciplinaridade”, a
não compartimentação das disciplinas, o comparatismo, a história ex­
plicativa;
♦ defendeu a integração à história de “novos objetos e campos” até então
não explorados, como o pensamento científico, a antropologia, o meio
ambiente;
♦ formulou a exigência de uma história total;
♦ finalmente, e mais importante, fundou a RSH, que foi o modelo e a base
de lançamento da revista Annales d’Histoire Economique e Sociale.**

Portanto, a inovação em história efetivada pelos Annales foi percebi­


da como necessária e formulada e proposta consistentemente pelo esforço
teórico de Henri Berr. Os Annales foram os realizadores do projeto da nou-
velle histoire, no sentido mais amplo, mas a sua intuição veio de teorias da
história exteriores à história: da sociologia durkheimiana e da Réviie de
Synthèse Histonque. Segundo vários autores, a Escola dos Annales come­
çou nessa publicação de Berr. Este considerava a sociologia durkheimiana

3 Ver a redefinição e ampliação do sentido da expressão nouvellc histoire proposta em Reis


(2004:65).
4 Revel, 1990; Dumoulin, 1986.
Henri Berr 417

muito a-histórica, mas com ela concordava em que não há ciência sem
generalização. Para ele, “sem teoria não há ciência, e isto valia também para
a história”. O objetivo da RSH foi promover uma discussão teórica sobre
a história-ciência, que deveria contribuir para a elaboração de uma teoria
da história afastada da filosofia da história e orientada para a observação
empírica. Sua nova teoria da história propunha:

♦ que a história se aproximasse das ciências sociais e passasse a observar


similitudes, recorrências, e não apenas singularidades;
♦ que a história deveria formular hipóteses, escolher o objeto, realizar a
análise e a síntese;
♦ que a história deveria deixar de ser só descritiva para se tornar também
explicativa;
♦ que a “síntese” deveria envolver uma equipe de cientistas sociais; ele
tentou concretizar esse projeto teórico em sua coleção LEvolution de
VHumanité, que já produzia a “nova história” econômico-social-mental,
que se afirmaria após 1930, com os Annales;
♦ a “síntese” pelo trabalho de equipe, pela colaboração entre os cientistas
sociais, e sua revista foi um centro sem fronteiras, sem limitações, onde
colaboraram todos os intelectuais envolvidos na construção do novo
ponto de vista da ciência social.

Febvre participou regularmente, através de resenhas, nas quais dialoga­


va principalmente com geógrafos. Febvre foi um colaborador constante de
Berr, não só na RSH, mas também no Centre International de Synthèse.5
Entre as propostas teóricas de Berr, algumas acabaram contribuin­
do para que os Annales se afastassem da RSH. Ele defendia uma posição
original e, naquela circunstância, problemática: a sua “história total” seria
realizada pela diminuição da separação entre as ciências sociais e pela sua
reaproximação, em outros termos, com a filosofia. Em suas obras Uavenir
de la philosophie (1899), La synthese historique (1911) e Uhisloire traditionnel-
le et la synthese historique (1915), ele apresentou algumas de suas principais
teses. Seu texto é claro, bem tecido, suas proposições são longa e vigoro­
samente demonstradas. Talvez exceda-se nas repetições de algumas ideias,

5 Chartier e Revel, 1979.


418 Lições de história

tanto para enfatizá-las quanto para não deixar dúvidas sobre elas. Seu ob­
jetivo é o mesmo dos durkheimianos: tornar a história uma ciência social,
fazendo-a passar à generalização, a partir da erudição. Mas Berr não é po­
sitivista e ainda defende a especificidade do conhecimento histórico, mais
ou menos na linha dos historistas alemães, o que o tornaria intolerável ao
grupo dos Annales, tanto pelo seu germanismo quanto pelo seu discurso
“filosófico”. Braudel considera que Berr “traiu-se”, como intelectual, ao ati­
rar-se de corpo e alma à filosofia da história.6 Mas, nem tudo que Braudel
afirmou deve ser recebido sem contestação: por que alguém pode se “trair”
ao se dedicar à filosofia da história? Afinal, dedicar-se à “filosofia” é uma
“traição intelectual”? Então, todos os filósofos são “traidores intelectuais”?
Será que é porque os maiores nomes da filosofia da história são alemães?
Mas o inventor da expressão “filosofia da história” é um ilustre e fascinante
filósofo-historiador francês, François-Marie Arouet, vulgo conde de Voltai-
re! Se considerarmos tudo o que Berr ofereceu aos fundadores dos Anna­
les, Braudel é que deveria responder à pergunta: “quem traiu a quem?”
Berr foi excluído dos Annales porque tinha um defeito: “era muito
teórico!” Contudo, foi a sua reflexão teórica que procurou aproximar a
história das ciências sociais, que ousou problematizar a epistemologia da
história tradicional, que tornou possível a Escola dos Annales! Em sua obra
La synthèse historique, ele procurou mostrar os limites da história erudita,
base da história “historizante”, e demonstrar a necessidade da síntese. Ele
argumenta: a erudição estava superavançada, mas ela não era ainda a ciên­
cia verdadeira. A erudição, quando apareceu, ganhou um staíus científico,
pois se opôs à filosofia da história e à arte. A obra histórica de um filósofo
ou artista é inverificável, incriticável, pois original, ao passo que a mono­
grafia de um erudito estabelece dados para sempre. Daí o otimismo presen­
te nos historiadores historizantes, que acreditavam poder chegar a alguma
certeza. Mas, prossegue o filósofo Berr, essa satisfação é vã, porque esses
fatos não têm valor, são apenas os materiais de uma ciência a construir. A
erudição é só um trabalho preparatório que permite a elaboração do geral.
A erudição não é um fim em si. A história não desperta o mesmo interesse
que um museu. O erudito tem medo da filosofia da história, acha cedo

6 Braudel, 1972.
Henri Berr 419

para sintetizar e considera necessário que se esgotem, primeiro, todos os


documentos, todos os materiais. Fora da erudição, evitam considerações
individuais, filosóficas, literárias, por considerá-las estéreis e perigosas.
E Berr põe a questão capital: quando terminará esse trabalho preli­
minar? Seria possível preencher empiricamente todas as lacunas? Para ele,
era preciso passar à generalização, porque uma coleção completa de fatos
não tem mais valor científico do que uma coleção de selos. Daí a neces­
sidade da síntese científica. A síntese erudita reúne os materiais e fatos; a
síntese científica deve uni-los, ligá-los a princípios explicativos. A história
se compõe de múltiplos fatos, mas estes não são a história, que não pode
se limitar ao detalhe. Transformar em regra absoluta o fato de que ela deve
se abster de buscar leis gerais é ir contra o verdadeiro objetivo da ciência.
A síntese é uma exigência intelectual que quer evitar e substituir a filosofia
da história. Mas, se a síntese histórica deve substituir a filosofia da história,
satisfazendo a mesma necessidade, ela tem características opostas à filo­
sofia da história. A síntese histórica deve ser “ciência” — ela começa pela
análise e a ultrapassa. O lugar da síntese histórica é entre dois mundos: o
da análise erudita e o da especulação a priori. A filosofia da história não
pode ser eliminada sem ser substituída e será substituída pela síntese his­
tórica científica. Esta deve se constituir como a teoria que guia o trabalho
e a construção explicativa. A história, para se tornar ciência, deve realizar
os procedimentos da ciência: estabelecer fatos particulares e extrair gene­
ralizações. O que não quer dizer que a história deva se reduzir às ciências
naturais. A ciência tem suas exigências fundamentais, e cada ciência parti­
cular tem os seus traços específicos e a sua lógica especial.7
Os “historiadores historizantes”, continua Berr, que desconfiam tanto
da síntese quanto da filosofia da história, continuam pré-científicos e pra­
ticam a história sem se interrogar sobre seus fins e meios. Até hoje, a his­
tória foi erudita: historiadores úteis, indispensáveis, amantes do detalhe,
cultores do inédito, mas que ignoram ou perderam o objetivo da pesquisa.
Fazem uma “historia historizante”: ‘uma exposição contínua no interior de
quadros empíricos e com generalidades fortuitas’'. A síntese é deixada para
mais tarde, e muitos a consideram impossível. Eles chamam a atenção para

7 Reis, 2004.
420 Lições de história

o específico dos fatos humanos, a mudança, o tempo, que escapariam às


leis científicas; mas, se a história se dedicasse apenas a recolher a mudan­
ça bruta, seria anticientífica. Como recolher todas as mudanças? E quais
as razões para recolher algumas? Essa história narrativa e descritiva, na
verdade, faz o que ela diz que não faz. Ela não se interessa por toda mu­
dança e faz escolhas. Interessa-se pelas mudanças ligadas à continuidade,
à permanência, a um desenvolvimento. Nem toda mudança é histórica. O
caos não tem história. A história é a organização dos eventos, das mudan­
ças. Logo, ela busca mudanças e permanências. O “desenvolvimento” é
histórico porque é mudança na permanência. Se a história não se resume
a similitudes e repetições, ela não é estranha a ambas: precisa delas como
de uma base. Essa “estrutura” da história, que a síntese científica deve co­
nhecer, é feita de “contingência” (simples sucessão de fatos), “necessidade”
(elementos constantemente determinados) e “lógica” (a razão individual,
que é o elemento racional da sociedade). A base da síntese histórica de Berr
suscita a questão das relações entre a liberdade individual e os limites da
racionalidade.
Foi, portanto, como filósofo que ele não só acompanhou o debate so­
bre a história como ciência social, no início do século, como contribuiu para
a construção do caminho bem-sucedido para a historiografia, que foi a Es­
cola dos Annales. Braudel (1972) avalia a importância de Henri Berr para
a criação da nouvelle histoire. Braudel rejeita a sua ligação “com a filosofia
e com a Alemanha”. Contudo, o próprio Braudel o considera um membro
antecipado do grupo dos Annales: “é para ele que se deve olhar quando
se quer saber como os Annales começaram. A Révue de Synthèse Historique
já era e ainda não era, potencialmente, os Annales d’Histoire Economique
et Sociale”. Lucien Febvre e Marc Bloch, continua Braudel, não eram filó­
sofos, e a revista que fundaram proclamou que o objetivo da história era
abarcar todas as ciências humanas, e Berr era “muito cortês para defender
este imperialismo ou mesmo concebê-lo”. Berr propunha reunir a história
e as diversas ciências sociais, que se fariam “visitas polidas”. Assim, fica
claro qual era o limite da Révue de Synthèse Historique para os Annales: Berr
era apenas um ingénuo “embaixador das ciências humanas”, não tinha um
projeto de poder, não visava a centralização institucional das ciências hu-
manas pela história, apenas promovia “controvérsias corteses”. As outras
ciências sociais não se deixaram envolver por esta estratégia de poder dos
Henri Berr 421

Annales, e a sua “proposta cortês” de “trabalhos em equipes” não obteve


reciprocidade.
Para mim, os Annales, ao se afastarem de Berr, prestaram um desser­
viço à historiografia ao separarem a pesquisa histórica da teoria da história.
Se Berr “fez uma insurreição contra tudo que quebra, separa, corta e isola
o espírito humano”, como celebra Febvre, os Annales trouxeram a divisão,
o isolamento e, finalmente, a fragmentação, a começar pelo parricídio do
seu “pai intelectual”; e talvez tenha sido este o principal “defeito” da Escola
dos Annales. Eles afastaram a história da “discussão alemã sobre a histó­
ria”, excluindo também alguns importantes teóricos da história na Fran­
ça: Aron, Marrou, Ricoeur. Braudel ainda procura desvalorizar o esforço
teórico de Berr, que, para ele, não teria contribuído para a nouvelle histoire
como teórico, mas apenas como “interlocutor, promotor e organizador de
reuniões, de encontros e de semanas de discussão”. Entretanto, foi a partir
da teórica RSH que surgiu a ideia de uma revista mais combativa, menos
filosófica, baseada em novas pesquisas concretas. Braudel afirma que foi
este desejo que levou ao nascimento dos Annales e que trouxe a ruptura
com Berr e sua revista. Braudel, finalmente, estabelece a distância entre
a Révue de Synthèse Historique e a revista Annales d’Histoire Economique et
Sociale: “não há nada de comum entre a RSH e a AHES. A Synthèse abriu-se
muito à discussão teórica, tinha muitas ideias que passavam como fantas­
mas ou nuvens. Com os Annales, está-se firme no chão. Em suas páginas,
os homens do passado e do presente aparecem com seus problemas con­
cretos, vivos. A casa do filho tem a alegria da vida, da compreensão, ataca e
discute. Annales tornou-se a casa dos historiadores novos”. De fato, o pro­
jeto dos Annales foi uma importante “revolução francesa na historiografia”.
Mas, era indispensável guilhotinar o pai? Não seria mais rico e produtivo,
moral e intelectualmente, respeitá-lo e conviver com ele? E há alguns raros
exemplos do resultado rico e produtivo que essa convivência poderia ter
produzido: as obras excelentes de Michel de Certeau e François Hartog.
Aliás, por que teriam sido acolhidos e tolerados? Dosse (1987) e Coutau-
Begarie (1983), entre outros, fizeram muito bem ao pensamento histórico
ao fazerem a crítica contundente do projeto de poder (de exclusão) dos
Annales.
Hoje, ninguém contesta que o pensamento de Henri Berr foi um espí­
rito novo que soprou sobre os estudos históricos, então em pleno positivis-
422 Lições de história

mo, embora também ele estivesse contaminado por essa atmosfera do seu
tempo. Sua influência sobre Febvre e Bloch foi considerável. Ele procurou
ultrapassar as fronteiras entre as disciplinas, preocupado em situar a his­
tória no cruzamento das ciências humanas, preparando o caminho para os
Annales. Para Febvre, o otimismo era a sua força e o seu belo segredo. Berr
não acreditava que a guerra fosse o único meio de gerar um mundo novo.
Ele acreditava na unidade humana, na humanidade, na solidariedade dos
grupos humanos, que seriam capazes de superar os conflitos e guerras do
passado. Sua ação mediadora era quase religiosa, de uma ingénua e gene­
rosa “religiosidade laica”: religava, reunia, congregava, aproximava, dia­
logava, organizava encontros, promovia debates, colóquios e seminários
pluridisciplinares.8
Hoje, em 2010, a revista Annales: Histoire, Sciences Sociales não centra­
liza mais a pesquisa histórica nem na França nem no mundo. Ironicamen­
te, a École des Hautes Études en Sciences Sociales realiza o projeto-profecia
científica de Berr: tornou-se um “Centro Internacional Inter/transdiscipli-
nar (Síntese)”! E, felizmente, a discussão teórica voltou à ordem do dia na
historiografia em novas revistas, em novas instituições, em novos autores,
e de forma interdisciplinar, reunindo, como no início do século XX, filóso­
fos, sociólogos, historiadores, antropólogos, teóricos da literatura. No exte­
rior, em revistas como History and Theory, Rethinking History, The Journal oj
Theory and Practice, Contributions to the History oj Concepts, Intellectual His­
tory Newsletter, Philosophy of History Archive, Left History, Quademi Storici; em
instituições como Wesleyan University, York University, Institut d’Histoire
du Temps Present, nas universidades de Cambridge, Oxford, Califórnia, Bo-
chum, Bielefeld, Gronigen, entre tantas; em historiadores, sociólogos e filó­
sofos como Ginzburg, Elias, Hartog, Chartier, Ankersmit, Rúsen, Koselleck,
Habermas, Ricoeur. No Brasil, em revistas como Varia Historia, Topoi, Tempo,
Anos 90, Estudos Históricos, Revista Brasileira de História, Síntese-Nova Fase,
História, Pós-História, Locus e revistas eletrónicas como História da Histo­
riografia e Cantareira; em instituições como PUC-Rio, PUC-RS, Unicamp,
Unesp, UFRGS, UFRJ, UFF, UFMG, ICHS-Ufop; em historiadores, sociólo­
gos, teóricos da literatura e filósofos como Ciro Cardoso, Jurandir Malerba,

8 Dumoulin, 1986.
Henri Berr 423

Margareth Rago, Edgar de Decca, Durval Albuquerque Jr., Manoel Salgado,


Astor Diehl, Luís Costa Lima, Norma Cortes, João Adolfo Hansen, Sérgio
Paulo Rouanet, Roberto Machado, Marilena Chauí, este que lhes envia esta
mensagem e aqueles que não mencionei, por desconhecimento ou esqueci­
mento, mas que o leitor conhece e deve acrescentar.
Para mim, Berr tinha razão: “sem teoria não há ciência, e isto vale
para a história”. Sem a sua teoria da história, aliada à dos durkheimianos,
não teria ocorrido a “revolução francesa na historiografia”.9 Sem a teoria
marxista-frankfurtiana, sem a genealogia nietzschiano-foucaultiana sem o
linguistic turn americano, sem a mise-en-intrigue ricoeuriana, sem a história
dos conceitos e os conceitos formais da temporalidade koselleckiana, sem a
teoria do poder simbólico, de Bourdieu, sem o configuracionismo socioló­
gico e o processo civilizador, de Elias, sem o jogo de escalas, de Ginzburg,
Levi e Revel, onde estaria a historiografia, hoje, no mundo pós-Annales?
A história sempre manteve ou mudou os seus “programas de pesquisa”
(paradigmas) seguindo as teorias da história exteriores ao campo historio-
gráfico. Quando irá reconhecer a sua dívida e acolher e dialogar calma e
serenamente, sem medo e sem ressentimento, com filósofos, psicanalistas,
antropólogos, teóricos da literatura, sociólogos e até físicos, biólogos e ma­
temáticos? Por exemplo, um diálogo que se anuncia: o que a história teria
a aprender com a ideia de um “tempo fractal” dos matemáticos? Este foi
o sonho de Berr para as heterogéneas comunidades científicas: diálogos,
encontros, colóquios, seminários, simpósios, congressos, conversas, dis­
cussões... Esta foi a sua importante obra: semanas, enciclopédias, coletâ­
neas, instituições interdisciplinares, revistas de síntese, que encaminhavam
e concretizavam o modo como via a necessidade de uma reformulação da
pesquisa histórica no início do século XX.

Erudição, filosofia da história e síntese10

Propõe-se, neste livro, precisar, tanto quanto for possível, a noção de


síntese em história.

9 Burke, 1991.
10 Berr, 1911. Notas do texto original.
424 Lições de história

A história, para começar este ensaio, é uma disciplina que convém


definir de forma puramente empírica: o estuclo dos fatos humanos do passado.
Elimina-se toda outra definição como tendenciosa. Assim, não se acredita
que seja necessário introduzir na definição preliminar da história a palavra
sociedade:11 isto poderia implicar prevenção a favor do ponto de vista so­
ciológico. Cabe à síntese fazer aparecer o papel da sociedade. Opomos esta
definição cuidadosamente empírica sobretudo às definições dos filósofos.
A história-disciplina, a erudição, é algo complexo, que aspira a se organizar
cientificamente. O filósofo pode, neste conjunto complexo e ainda desor­
ganizado, isolar tal elemento, e a definição filosófica da história tem o risco
de falsear a ciência da história.
Nós partimos, portanto, da erudição. O estudo analítico dos fatos
humanos do passado não somente tomou, no século XIX em geral e parti­
cularmente no último terço deste século, uma amplitude admirável, como
constituiu e fixou o seu método. Há doravante uma técnica rigorosa que
impõe procedimentos racionais para a crítica dos documentos e da deter­
minação dos fatos.12 Duas obras, nestes assuntos, têm autoridade incontes­
tada. Os srs. Langlois e Seignobos, em sua Introdução aos estudos históricos,
o sr. Bernheim, em seu Compêndio do método histórico e de filosofia da história
(Lehrbuch der historischen Methode und der Geschichtsphilophie), formularam,
os primeiros, com sóbrio vigor, o último com uma atenta minúcia, as regras
metodológicas.13 Após o que eles chamam de operações analíticas, Langlois
e Seignobos estudam as operações sintéticas, e Bernheim, após a heurística
e a crítica, chega à síntese (Auffassung).H Na parte consagrada às operações
sintéticas, os dois metodólogos franceses tratam em detalhe do agrupamen­
to dos fatos, da construção das fórmulas descritivas que permitem resumir

11 Bernheim, 1903:9.
12 É o que os alemães chamam de Methodik ou Historik. Sobre a contribuição dos franceses a esta
técnica, ver Grotenfelt (1903).
13 A 3a e a 4a edição do Método histórico, em que a expressão filosofia da história foi introduzida
no título, são de 1903 (18891*,18942*). Uma 5a e uma 6a edição revista e ampliada, que seguimos
em nossas citações, apareceram em 1908. A “Introdução” é de 1898.
14 Bernheim, 1903:246-255. Os senhores Ch. e V Mortet redigiram de forma bastante elogiável
o artigo “História” na Grande Enciclopédia (t. XX, p. 132 e segs.), distinguindo dois tipos de
sínteses, a reconstituição dos conjuntos e o estabelecimento dos fatos gerais; eles distinguem
as duas sínteses da pesquisa das causas gerais ou das leis às quais eles aplicam a velha palavra
“filosofia da história” (p. 134, 142).
Henri Berr 425

e classificar os fatos. Eles param diante dos problemas de que tratava a


antiga filosofia da história. “Com ou sem razão (sem razão, sem dúvida), a
filosofia da história, não tendo sido cultivada somente por homens bem in­
formados, prudentes, de inteligência vigorosa e sã, é desconsiderada. Que
aqueles que a temem, como aqueles que se interessam por ela, fiquem
avisados: não trataremos dela aqui. ”15
Eles se contentam em mostrar em algumas páginas “o que impediu de
atingir uma solução científica” em história. Bemheim, ao contrário, no impor­
tante capítulo que ele consagra à síntese, dá lugar à filosofia da história.16
Nós acreditamos que o trabalho dos eruditos chega normalmente a
problemas que não saberíamos evitar. Nós acreditamos que esses proble­
mas estão em relação essencialmente com a síntese. Nós acreditamos que
é preciso distinguir das operações construtivas a síntese verdadeira, ou,
para tornar mais exato o nosso pensamento, que é preciso distinguir uma
síntese erudita e uma síntese propriamente científica. E nós acreditamos,
enfim, que é preciso distinguir com não menos rigor essa síntese científica
da filosofia da história, esta sendo contestável, e aquela, legítima.
Marcar claramente os dois graus da síntese, precisar os problemas da
síntese científica e opor esta síntese à filosofia da história: eis os aspectos
diversos da tarefa que nos propomos. Para concluir, nós tentaremos resolver
uma questão que brotará do nosso trabalho. Após termos procurado as ra­
zões profundas que mantêm vivas formas de história que nada têm de cientí­
fico, nós nos perguntaremos de que maneira deverão afetá-las os progressos
da síntese, enfim, quais serão, no futuro, as formas diversas da história.

A síntese erudita

A palavra síntese tornou-se, nos últimos anos, uma palavra da moda


entre os historiadores. Como todas as palavras da moda, ela tem um em­
prego bastante vago. Ouve-se frequentemente falar sobre vários tipos de
trabalho, obras desiguais em importância, que eles são “sínteses”. Entretan­
to, é possível discernir para onde tende o uso atual.

15 "Advertência”, p. vi.
16 O capítulo 5, Auffassung (p. 562-776), contém outras subdivisões. Foi o sr. Bemheim quem
traduziu a palavra Auffassung por síntese, construção dos fatos históricos. Ver p. 186, nota 1, e
p. 566, nota 1.
426 Lições de história

E certo que essa palavra se aplique de preferência a obras que reúnem


e classificam fatos numerosos ou muito diversos, ou muito numerosos e
muito diversos ao mesmo tempo, e onde as “operações sintéticas” apre­
sentam dificuldades particulares. Mas, se o número e a diversidade dos
fatos caracterizassem essencialmente a síntese, seria difícil precisar onde ela
começa. Uma monografia que, segundo a definição de Seignobos,17 agru­
pa todos os fatos conhecidos em um campo mais ou menos estreitamente
limitado, que implica certo trabalho, mais ou menos refletido, de organiza­
ção, e que chega a uma ou a diversas fórmulas de conjunto pode ser con­
siderada já uma síntese em relação aos documentos, notas, contribuições,
memórias e dissertações que ela utiliza. Há graus infinitos de compreensão
e, em consequência, graus infinitos de síntese na produção histórica.
De fato, no uso que se tornou corrente, a palavra síntese, aplicada
aos resultados da erudição, marca menos a amplitude do trabalho do que a
sua solidez: ela se refere menos à quantidade e à diversidade dos materiais
reunidos do que ao conhecimento, à utilização dos esforços anteriores e à
preocupação da obra histórica definitiva. É uma síntese um estudo que re­
pousa sobre uma bibliografia integral e crítica do assunto e, naturalmente,
é ainda mais síntese quanto mais vasto é o tema, quando ela abranja mais
fatos na duração ou no espaço, ou ao mesmo tempo em um e em outro,
quando seja mais complexa e envolva fatos mais heterogéneos. Embora,
na escola de Fustel de Coulanges, não se tenha por demonstrado que o co­
nhecimento das obras de segunda mão seja indispensável, a síntese erudita
se funda quase sempre, atualmente, no estudo dos trabalhos anteriores tanto
quanto nas fontes originais. E quanto mais vasta é a síntese, mais o conheci­
mento das fontes originais é necessariamente reduzido a poucas coisas. “Uma
ciência tão complexa como a história, em que é preciso reunir milhões de
fatos antes de se poder formular uma conclusão, só pode se fundar num per­
pétuo recomeço. Não se faz a construção histórica com documentos, assim
como não se escreve a história com manuscritos, e pela mesma razão, que
é uma razão de tempo. Para fazer avançar a ciência, é preciso combinar os
resultados obtidos por milhares de trabalhos de detalhe.”18

17 Seignobos, 1909:99-100.
18 Langlois e Seignobos, 1992:198.
Henri Berr 427

[Para se obter a) verdade, é indispensável que esses resultados extraí­


dos de trabalhos anteriores ou já tenham passado pelo crivo da crítica ou
sejam controlados com cuidado pelo autor da síntese. As sínteses benfeitas
tendem, portanto, sobre determinados pontos, a estabelecer o definitivo, a
evitar o recomeço do trabalho. E no entanto declara-se, para toda síntese,
que ela é provisória. É que toda síntese, quanto mais benfeita, deixa apare­
cer as lacunas do conhecimento, avalia os graus de certeza, demanda uma
síntese posterior que, sem a infirmar, a completará. E assim toda síntese
benfeita ajuda a ir mais longe, é ao mesmo tempo uma conclusão/chegada
e uma etapa, um inventário e um programa.
Essa forma de conceber “as sínteses” responde a um certo estado de
espírito que se manifestou com muita clareza e energia nos últimos tempos.
Há, de forma cada vez mais sensível, uma preocupação sintética que tende
a evitar que o trabalho histórico recomece constantemente; a fazer com que
esse trabalho avance regularmente; a realizar a subordinação dos esforços
individuais ao trabalho coletivo, anónimo; enfim, a organizar, em relação
aos fatos humanos do passado, a mesma solidariedade na pesquisa experi­
mental que se impôs para os fenômenos da natureza.
Renan, em suas reflexões de 1848, vendo a necessidade do trabalho
monográfico, chegando até a desejar que “cada paralelepípedo tivesse a sua
história”, deplorava “o imenso desperdício de forças humanas”. “A meu ver,
o grande obstáculo que impede o progresso dos estudos filológicos pare­
cem ser essa dispersão do trabalho e esse isolamento das pesquisas espe­
ciais, que fazem com que os trabalhos do filólogo quase só existam para ele
e para um pequeno número de amigos que se ocupam do mesmo assunto...
Uma vida não seria suficiente para esgotar o que se deveria consultar sobre
tal ponto especial de uma ciência, que é apenas a menor parte de uma ciên­
cia mais extensa. As mesmas pesquisas recomeçam sem cessar, as monogra­
fias se acumulam a tal ponto que o seu número as anula e as torna inúteis.
Chegará uma época em que os estudos filológicos se recolherão de todos
esses trabalhos esparsos, e em que, os resultados sendo adquiridos, as mo­
nografias tornadas inúteis só serão conservadas como lembranças. Quando
o edifício estiver acabado, não há inconveniente em retirar os andaimes que
foram necessários à sua construção. Assim o praticam as ciências físicas. Os
trabalhos aprovados pela autoridade competente são feitos de uma vez por
todas e aceitos com confiança. É assim que o vasto conjunto das ciências
428 Lições de história

da natureza se construiu peça a peça e com uma admirável solidariedade


da parte de todos os trabalhadores. A delicadeza muito maior das ciências
filológicas não permitiria sem dúvida o emprego rigoroso de tal método. Eu
imagino, todavia, que só sairemos desse labirinto do trabalho individual e
isolado por uma grande organização científica, em que tudo será feito sem
poupança nem desperdício de forças e com um caráter tão definitivo que
se possa aceitar com confiança os resultados obtidos. O verdadeiro defeito
é a falta de organização e de controle. É triste imaginar que os três quartos
de coisas de detalhe que procuramos são já encontrados, enquanto tantas
outras minas em que se descobririam tesouros permanecem ainda sem tra­
balhadores, em consequência da má direção do trabalho. Se refletirmos,
veremos que é absolutamente necessário supor no futuro uma grande re­
forma do trabalho científico.”19
Hoje, incontestáveis progressos foram realizados. A elaboração defini­
tiva de um método racional foi acompanhada de um começo de organiza­
ção racional que reforça a eficácia desse método. Ninguém melhor do que
Ch. V. Langlois, com mais segurança e clareza, fez o balanço dos progressos
realizados:20 intervenção dos governos, da autoridade pública, para o cres­
cimento e melhoria dos depósitos de livros, de manuscritos, de arquivos, de
riquezas de arte, extensão das universidades e Escolas Superiores, criação
de comités e de missões científicas, atividades das academias e das socieda­
des científicas, periodicidade dos congressos nacionais e internacionais, e
associações internacionais — eis as instituições. Estas são completadas por
um grande número de iniciativas privadas e de colaborações espontâneas.
Eis os resultados capitais: multiplicação dos instrumentos bibliográficos
e das bibliografias de bibliografias, das coleções de textos, de materiais
de todo tipo, de guias analíticos e descritivos para o uso dessas coleções,

19 Uavenir de la Science: pensées de 1848, p. 122, 232, 248-249.


20 Ver Manuel de bibliographie historique, 1901-1904 (sobretudo a 2a parte: História e organiza­
ção dos estudos históricos, que não deixa de contribuir para estes progressos, e as Questões
de história e ensino (1902). Ver também Ch. e V. Mortet, artigo citado, sobretudo p. 137; G.
Desdevises du Dezert e L. Bréhier. Le travail historique (1907). Para a organização do trabalho
relativo à história moderna na França, ver o excelente opúsculo de R Caron e Ph. Sagnac Uetat
actuel des études d’histoire moderne en France (1902), e para o estado dos estudos relativos às
regiões da França, minha “Introdução geral às regiões da França”, que abre De la Gascogne, de
Barrau-Dihigo (1903).
Henri Berr 429

desenvolvimento da divulgação científica. Enfim, o fato dominante é o


aperfeiçoamento do instrumental. Efeito de uma solidariedade crescente e
criadora de uma cooperação sistemática, que tornará doravante o trabalho
individual mais fácil e mais útil.21
Um dos meios de cooperação cujo alcance aparece plenamente e que
concerne mais às revistas científicas é a crítica das novas publicações e em
particular das sínteses provisórias. É necessário que essa crítica seja impar­
cial, severa, minuciosa. Seria necessário, em relação a cada obra nova, que
juízes competentes precisassem, sem se recusar jamais, o grau de confiança
que ela deve inspirar, a parte de verdade que ela contém. Na França e na
Alemanha, sobretudo, há periódicos inteiramente ou principalmente con­
sagrados à crítica. Quando uma revista não é destinada a promover tais
estudos especiais ou a provocar tal movimento de ideias, a manter tal gê­
nero de preocupações, com mais forte razão se ela tem um conteúdo e uma
periodicidade restritos, sua contribuição em “artigos” faz avançar pouco a
ciência histórica. Também, nada é mais interessante do que ver, enquanto
se multiplicam as publicações puramente críticas ou meio bibliográficas,
meio críticas, revistas antigas abandonarem cada vez mais o livro, as co­
letâneas de memórias e documentos, os artigos propriamente ditos, para
desenvolverem, por um sentimento justo das necessidades presentes, sua
atividade crítica. Produz-se, portanto, um duplo esforço, curioso de obser­
var, de construção prudente e de crítica vigilante em que tudo é sem cessar
reposto em questão para acabar, precisamente, por não poder mais sê-lo.
Produz-se desde há pouco tempo um esforço novo, de algum modo
intensivo, pelo qual a crítica não é mais somente um auxiliar da síntese,
mas tende a tomar ela mesma uma forma sintética. Pode-se conceber e
procurou-se realizar estudos de conjunto que, por oposição às crónicas,
boletins, de um grande número de revistas ou repertórios críticos, em vez
de registrar simplesmente a produção, inventariando o trabalho feito, para
mostrar o trabalho a fazer. Onde estamos em tal ou tal domínio, para tal

21 Um exemplo de engenhosidade que se desenvolve neste sentido. Nos Arquivos Nacionais,


cada trabalhador tem um boletim de pesquisas ou uma sequência de boletins trazendo um
número único em que estão inscritas todas essas demandas: “esses boletins (há hoje mais de
34.000) são conservados; um quadro sobre as fichas dos trabalhadores, assim como um quadro
das pesquisas são mantidos com cuidado; pode-se assim beneficiar os pesquisadores novos dos
trabalhos antigos ou lhes evitar publicações que fariam duplo emprego”. Ver Ch. Schmidt. Les
sources de Vhistoire de France depuis 1789 aux Archives Nationales (1907), p. 13, nota 1.

r
430 Lições de história

ou tal período da história? Qual é o valor dos resultados obtidos? São eles
esparsos ou já mais ou menos reunidos em sínteses provisórias? Houve
alguma aliança entre os trabalhadores? Como poderíamos estreitar o acor-
do e quais lacunas importaria preencher o mais breve para que a síntese
começasse a fazer progressos?
No segundo número da Révue de Synthèse Historique, um colaborador
comentava, satisfeito, a oportunidade das “revistas gerais” que ela vinha
inaugurar, “em que cada um de nós, ele dizia, em plena consciência de
causa, com imparcialidade e de forma judiciosa, resumirá os trabalhos ver­
dadeiramente úteis e os acréscimos reais de nossos conhecimentos em seu
compartimento especial”. E ele mostrava como cada uma dessas revistas,
preciosas para um grupo de historiadores, devia contribuir, além disso,
para estabelecer o contato entre as diversas equipes especiais: “a comple­
xidade sempre crescente dos estudos históricos e a superprodução dos
trabalhos de detalhes nos obrigam, uns e outros, a nos acantonar sem­
pre mais no domínio especial que nós cultivamos. Entretanto, os estudos
históricos dos diversos tempos e dos diversos meios são solidários. Nada é
mais funesto do que se aprisionar em sua pequena propriedade e ignorar
o resto do mundo. É o modo mais seguro de mal compreender o que se
estuda com uma dedicação tão exclusiva. Como escapar a essas condições
contraditórias de um trabalho frutuoso? É ajudando-se mutuamente. Que
cada um de nós forneça aos colegas dos domínios vizinhos informações
sóbrias, mas seguras, sobre o estado e os progressos de seus estudos espe­
ciais para permitir-lhes assim manterem-se a par dos trabalhos que eles não
têm tempo de ler eles mesmos. Os príncipes e os ministros têm secretários
que pesquisam para eles os jornais e as revistas e que condensam, para uso
deles, em algumas páginas, tudo o que é útil para saberem das notícias do
dia, das descobertas, da vida diária do mundo. Sejamos os secretários uns
dos outros. Formemos uma verdadeira sociedade de socorros mútuos para
informações históricas.22

22 Estas linhas são do saudoso Jean Réville. Em sua lição de abertura do Collège de France, ele
falou também da síntese em termos excelentes (ver Revue d’Histoire des Religions, mar./avr. 1907
e Revue de Synthèse Historique, v. 14, p. 362, juin, 1907). Les Régions de Ia France, que publica a
Revue de Synthèse Historique, tem mais ou menos o mesmo caráter dessas revistas gerais. A Revue
d’Histoire Moderno et Contemporaine publicou, em seu domínio e sobre assuntos voluntariamen­
te restritos, alguns estudos críticos concebidos segundo o mesmo plano. É um trabalho análogo
ao Létat actuel..., de R Caron e Ph. Sagnac, sobretudo na segunda parte: o estado dos trabalhos
nas diversas especialidades (p. 31-88).
Henri Berr 431

Tal é o espírito novo que, doravante, anima a erudição, a pesquisa his­


tórica em seu primeiro nível. Chegaremos cada vez mais a aumentar a eficá­
cia do trabalho desenvolvendo nesse domínio, como nos outros domínios
científicos, a solidariedade, melhorando sempre o instrumental, assinalan­
do, em vez de dissimulá-las, as lacunas do conhecimento, dirigindo a ativi­
dade dos trabalhadores noviços ou isolados, aproximando umas das outras
as diversas especialidades históricas, obtendo uma melhor repartição das
tarefas individuais no campo ampliado da história.23 Vão se elaborar assim,
sim, sem descontinuidade, resultados, na medida do possível definitivos,
dos quais se enriquecerá constantemente a síntese erudita. “Os historiado­
res objetivos não buscam mais construir vastas sínteses, seguindo os irri­
tantes hábitos dos seus predecessores; eles estudam as questões por séries,
se resignam a fazer monografias mais ou menos importantes, ponto de par­
tida de sínteses futuras; e quando eles oferecem sínteses parciais, é somente
após numerosos estudos de detalhe, fazendo observar quanto a sua obra é
provisória; as sínteses mais gerais só são feitas em colaboração.”24

23 A Révue de Synthèse Historique insistiu frequentemente sobre o que ainda resta a ser feito para
a boa organização do trabalho e o aperfeiçoamento do instrumental. Ela conduziu uma ampla
pesquisa sobre o ensino superior de história (1904/1905, questionário e conclusões de Barrau-
Dihigo); publicou uma série de estudos sobre a organização dos arquivos, bibliotecas e museus;
notas sobre a organização do trabalho bibliográfico e dos congressos internacionais.
24 P. Caron e Ph. Sagnac, op. cit., p. 89-90. Nós fazemos questão de citar igualmente as pn-
meiras linhas deste opúsculo que é todo inspirado pela preocupação com a síntese erudita: “a
organização dos estudos históricos está ainda em todo lugar em um estado infantil. É de ontem
apenas que data, na França sobretudo, a história científica e objetiva. Também não é espantoso
que o trabalho não seja concebido e organizado em história como o é nas ciências físicas e
naturais. Especialização, primeiro, depois, a síntese, tal é o caminho que segue a elaboração de
todo conhecimento, mas estudos especiais e estudos sintéticos devem concorrer, combinar-se,
caminhar de alguma forma no mesmo passo, orientar-se em certas direções gerais, para que
tais grandes assuntos não sejam tratados pela metade, que tais outros não sejam estudados
diversas vezes, e que não haja tempo nem esforços perdidos. É preciso que o trabalho se torne
coletivo, que os trabalhadores, em vez de produzir isoladamente, se conheçam mais, saibam
a todo momento o que se faz ao seu lado ou longe deles, que eles sejam realmente solidários
uns com os outros, não somente em cada país, mas no mundo inteiro. É preciso também que
esta solidariedade, esta coletividade dos esforços se manifeste o mais possível por colaborações.
Na França, desde alguns anos, um movimento se produziu neste sentido, e a memória que nós
redigimos aqui, a dois, ajudados pelas informações de diversos de nossos colegas e amigos, é,
ao mesmo tempo que um exemplo, uma prova nova da necessidade do trabalho coletivo” (p. 5).
O grupo de bons historiadores — dos quais R Caron foi a alma — que criou a Révue d'Histoire
Modeme et Contemporaine (1899), o Repertoire Méthodique de VHistoire, a Bibliothèque d’Histoire
Modeme, embora especializado no tempo, influenciou amplamente o trabalho histórico, através

I
432 Lições de história

Nestas sínteses, a preocupação dominante é a qualidade dos fatos es­


tabelecidos e reunidos bem mais do que o seu modo de agrupamento.
Para a construção, nós nos servimos de quadros empíricos ou artificiais
sobre o valor dos quais nós teremos mais tarde de nos explicar. “É preciso
reconhecer”, diz Ch. V Seignobos, “que os quadros nos quais os historiado­
res organizam, conscientemente ou se conformando ao costume, os dados
fornecidos pela crítica não são todos incontestáveis. O estudo teórico dos
quadros, isto é, das maneiras mais ou menos legítimas e fecundas de agru­
par e de agenciar os dados, é uma das partes capitais e sem dúvida uma das
menos avançadas da metodologia histórica”: é que este estudo está ligado a
problemas que ultrapassam a erudição. Em definitivo, o movimento atual
de síntese erudita consiste essencialmente em organizar o trabalho analítico
e em corrigir os resultados.

de exemplos e conselhos. Ver na Révue de Synthèse Historique (1904) a nota de P. Caron sobre a
Sociedade de História Moderna: “contribuir para fixar o método em seus princípios, vulgarizar
o emprego, elaborar o plano geral da vasta pesquisa a realizar; esforçar-se para assegurar uma
boa direção ao trabalho, dar aos trabalhadores o sentimento da solidariedade que deve uni-los
e conduzi-los a praticá-la; facilitar as pesquisas, fazendo conhecer a matéria, manuscrita ou
impressa, sobre a qual eles devem tratar”: tal é a parte da tarefa que se preocupou em executar
esta viva e laboriosa sociedade. Ela publicou em 1902 um relatório que incluiu a organização
do trabalho na província. Ela tinha projetado uma “instrução destinada a facilitar os trabalhos
de história moderna na província, com conselhos e práticas e a indicação de assuntos a tratar, a
qual devia ser impressa e amplamente divulgada.
ErnstTroeltsch
Sérgio da Mata

Em 1904, um seleto grupo de estudiosos reunia-se pela primeira vez na


cidade de Heidelberg. A iniciativa partira do teólogo Adolf Deissmann e
de seu amigo, o filólogo e cientista da religião ateu Albrecht Dieterich. As
reuniões de Eranos — nome escolhido para o círculo — passaram a ser
realizadas uma vez por mês, aos sábados, entre seis da tarde e 11 da noite.
Ao anfitrião da vez cabia fazer uma exposição sobre suas próprias pesqui­
sas, publicações ou descobertas no campo dos estudos religiosos. Seguia-se
um debate entre os presentes, e somente depois os eruditos sentavam-se
à mesa para se entreter com temas certamente mais profanos. Além de
Deissmann e Dieterich, tomavam parte os historiadores Alfred von Do-
maszerwski, Erich Marcks e Eberhard Gothein, o filósofo Wilhelm Win-
delband, o jurista Georg Jellinek, os economistas políticos Karl Rathgen e
Max Weber, e, last but not least, o teólogo Ernst Troeltsch. Na biografia que
dedicou ao marido, Marie Luise Gothein escreve que “as principais figuras
dos círculos filosóficos daqueles anos” eram membros do Eranos, unidas
pelo desejo comum de “abordarem, a partir das mais distintas perspecti-
vas, o problema da religião enquanto o mais importante dos problemas
da humanidade”.1 O surgimento desse círculo ilustra bem o espírito dos

Gothein, 1931:148.
434 Lições de história

estudos sobre o fenômeno religioso na Alemanha do início do século XX.


Rigor crítico e diversidade de perspectivas eram considerados essenciais,
pouco importando se o especialista, do ponto de vista pessoal, fosse ou
não um crente.
Que os teólogos fossem considerados uma presença obrigatória nes­
sas discussões, nem mesmo um agnóstico Max Weber ousou questionar.
Numa carta enviada a Ferdinand Tònnies em março de 1909, Weber diz
que, depois de realizar estudos de psicologia da religião e de tomar parte
nos debates do Eranos, tinha como certo que no estudo de “inúmeros pro­
blemas de história cultural a cooperação dos teólogos não pode ser substi­
tuída por qualquer saber oriundo de um outsider”.2
Weber considerava a apologética e a dogmática como inúteis para o
historiador e para o cientista social. Mas não ignorava a importância dos
estudos históricos feitos por teólogos como Albrecht Ritschl (a quem cita
tantas vezes na sua Ética protestante), Rudolf Sohm (de quem tomou de
empréstimo o conceito de carisma) e, sobretudo, Ernst Troeltsch e Adolf
von Harnack.
O caso de Harnack é emblemático. Sua influência e prestígio atingi­
ram o ápice naqueles anos. Após a publicação de seu colossal Compêndio
de história dos dogmas (1885-1889), Harnack fora alçado à condição de
uma das principais estrelas do firmamento acadêmico europeu. Declinou
de um convite para lecionar em Harvard, certo de que seu lugar em Berlim
não tardaria a chegar, o que de fato se confirmou em 1888. Suas preleções
sobre A essência do cristianismo (1900) tiveram um sucesso imediato, re­
tumbante. No primeiro Congresso Internacional de História, realizado em
Roma em 1903, foi eleito vice-presidente. No ano seguinte, Harnack era
a maior atração da comitiva de cientistas alemães enviados à Exposição
Universal de Saint Louis, nos Estados Unidos.3
Harnack tinha em comum com Troeltsch pelo menos duas coisas:
ambos consideravam-se discípulos de Ritschl e viam nas complexas re­
lações entre cristianismo e história um dos maiores desafios científicos e
filosóficos de seu tempo. O historiador do cristianismo não estaria mais

2 Lepsius e Mommsen, 1994:70.


3 Todo esse prestígio ajuda a entender por que entre os alunos das suas preleções no semestre de
inverno 1909/1910 encontrava-se um jovem historiador francês de 23 anos, Marc Bloch.
Ernst Troeltsch 435

em condições de abdicar dos métodos introduzidos pela crítica filológica


e histórica. Dar as costas à ciência significaria render-se a um pensamento
religioso obscurantista e, consequentemente, abandonar o projeto de Sch-
leiermacher de conciliar vida religiosa pessoal e consciência moderna.
O mal-estar no historicismo foi captado muito precocemente nesse
campo de estudos. Como conciliar visão histórica de mundo e verdade
religiosa (situada, aos olhos do crente, para além da história)? Como evitar
que historicização e método crítico levassem, no extremo, ao mesmo resul­
tado a que chegara David Friedrich Strauss, que em sua Leben Jesu (1835)
concluía que toda a história evangélica não passara de um mito?4 Uma res­
posta consequente à questão não é dada por Harnack, que, vendo dele se
aproximar o abismo, prefere se refugiar numa apologética tradicional.5
Troeltsch fez dessa questão, da qual se esquivou Harnack, o seu pro­
grama de investigação.
Para a maioria, ele talvez não passe hoje de um nome impronunciável.
Mesmo no campo da teologia protestante liberal, Troeltsch tornou-se um
nome marginal, um “banido”.6 Seu biógrafo, Hans-Georg Drescher, afirma
que para os filósofos ele era demasiado teólogo, e para os teólogos, demasia­
do filósofo. O fato é que tanto uns quanto outros o levavam a sério. Quan­
do era ainda um jovem professor na Universidade de Heidelberg, houve
quem visse com insatisfação sua ascendência sobre a juventude. Seus es­
tudos filosóficos, histórico-religiosos e de história das ideias conquistaram
a admiração de contemporâneos igualmente brilhantes: Max Weber, Frie­
drich Meinecke, Heinrich Rickert, Max Scheler e Karl Mannheim entre eles.
Após 1918, Troeltsch foi um dos primeiros a furar o bloqueio levantado
em países como Inglaterra e França contra as “ciências do espírito” alemãs.
Em 1923, ninguém menos que Thomas Mann atribuiu o abandono de seu
“apoliticismo” e de sua crença ingénua numa suposta excepcionalidade
germânica à leitura da famosa conferência de Troeltsch sobre Direito natu­
ral e humanidade na política internacional. O mesmo escrito que detonou a
conversão do autor de A montanha mágica a um ideal europeísta ofereceu

4 Nietzsche dedicou sua pouco lembrada Primeira consideração intempestiva a um embate com as
posições do autor de A vida de Jesus.
5 Harnack, 1906:12-15.
6 Rendtorff, 1992:274.
436 Lições de história

o argumento contra o qual se voltou Cari Schmitt, outro peso-pesado da


década de 1920, em seu estudo sobre o parlamentarismo.
Como Dilthey, a quem sucedeu na Universidade de Berlim, Troeltsch
deixou uma obra extensa, difícil, multifacetada. Nossa tarefa consistirá em
convencer o leitor, nas páginas que se seguem, de que tal obra reclama,
também dele, maior atenção.
É surpreendente que, a despeito do que Wilhelm Herrmann chamou
de suas “frases-monstro”, os escritos de Troeltsch tenham feito tantos admi­
radores. Um deles, o francês Louis Dumont, não cometeu qualquer injusti­
ça ao afirmar que “as longas e complexas frases de Troeltsch dificilmente se
deixam traduzir”.7 Mas essa sisudez da escrita não emanava propriamente
da pessoa de Troeltsch. Sua “enorme vitalidade” intelectual (palavras de
Meinecke) era acompanhada, segundo o testemunho dos que o conhece­
ram, de uma rara afabilidade e de um grande senso de humor.8
Em resumo: uma personalidade singular no contexto do mandari-
nato acadêmico alemão. O que o teria conduzido à história? A resposta
está numa passagem de seu grande livro sobre o historicismo. “Wilhelm
Dilthey começou com estudos em teologia, que, nas palavras de Jacob Bur-
ckhardt, que igualmente os iniciou, não são uma preparação nada má para
a historiografia”.9 Esse caminho da teologia à história não foi exatamen­
te incomum na Alemanha. Herder, como se sabe, era pastor em Weimar.
Droysen, filho de um capelão do exército, considerava a teodiceia como a
grande tarefa do historiador. Ranke, advindo de uma família de pastores e
estudante de teologia em Leipzig, escreveu em suas memórias que via na
teologia “a maior de todas as ciências”.10
Voltemos, pois, aos anos de aprendizagem de Troeltsch.
A influência de Albrecht Ritschl foi decisiva. Num ambiente tão favorá­
vel aos estudos históricos como o proporcionado pela Universidade de Gòt-

7 Dumont, 1991:60.
8 Meinecke, 1969:234. Quem se referiu ao “delicioso humor” de Troeltsch foi Marianne Weber
(2003:336).
9 Troeltsch, 1977b:509.
10 É recorrente o mal-entendido sobre um suposto “providencialismo” na obra desses autores.
Para uma abordagem interessante, ver Howard (2000). Uma formulação original e profunda
dessa problemática está em Moyn (2003). Um estudo ainda útil é o clássico de Heine (1991).
Ernst Troeltsch 437

tingen,11 Ritschl gerara uma pequena revolução ao promover a investigação


da história do protestantismo a partir dos marcos da filosofia do idealismo
alemão. Sua tese da autonomia (Selbstàndigkeit) das ideias religiosas foi ime­
diatamente incorporada por Troeltsch. Ao mesmo tempo, Troeltsch e um
grupo de colegas radicalizavam a crítica a uma teologia estritamente dogmá­
tica e que se recusava a assimilar os avanços metodológicos produzidos no
campo da pesquisa histórica “profana”. O espírito desse grupo, que se toma­
ria conhecido como a escola da história da religião, fica evidenciado na sua
tese de fim de curso, Razão e revelação em Johann Gerhard e Melanchton. Uma
investigação sobre a história da antiga teologia protestante (1891), e sobretudo
na primeira das teses defendidas por Troeltsch em seu exame oral:

A teologia é uma disciplina histórico-religiosa, mas não como parte de uma


construção da história universal da religião, e sim enquanto determinação
do conteúdo da religião cristã através de sua comparação com as poucas
grandes religiões que conhecemos com maior exatidão.12

A teologia concebida como disciplina histórica, crítica e comparada:


não era pouco.
Depois de uma rápida passagem pela Universidade de Bonn, em 1894,
Troeltsch se transfere — por um golpe de sorte que ele qualificou de “exor­
bitante” — para Heidelberg. Situada no sudoeste alemão, a bela Heidelberg
tinha cerca de 30 mil habitantes. Com pouco mais de 40 catedráticos, sua
universidade gozava de grande prestígio e de uma sólida tradição liberal.
Ali residiam e trabalhavam homens como o físico Hermann Helmholtz e
os filósofos Kuno Fischer e Wilhelm Windelband. A cidade abrigava mo­
vimentos artísticos de vanguarda, como o que gravitava em tomo do poeta
Stefan George, fazendo por merecer o elogioso apelido de “povoado cos­
mopolita”. Na universidade, a preeminência cabia às humanidades — a
ponto de Hans Driesch ter declarado, certa vez, que em Heidelberg “as ci­
ências naturais e seus representantes eram vistos com compaixão, de cima
para baixo”.13

11 Iggers, 1982.
12 Apud Drescher (1991:74).
13 Apud Wolgast (1986:121).
438 LiçOes de história

As impressões iniciais de Troeltsch sobre a Faculdade de Teologia não


foram boas. Depois de traçar um retrato nada lisonjeiro de seus colegas
numa carta ao amigo Wilhelm Bousset, ele observa: “não faz sentido olhar
para trás, então faço do presente o que é possível fazer”. Troeltsch fez bas­
tante nas duas décadas em que permaneceu em Heidelberg, expandindo
continuamente suas áreas de interesse... e de influência.
Vivia-se em plena era de ouro da metodologia (é possível que somente
a última década do século XX tenha produzido uma onda de inquietação
teórico-metodológica similar à daqueles anos). O desafio de Troeltsch era
conciliar aggiomamento teórico e ganho de reflexividade com as preocupa­
ções últimas da teologia, que são, naturalmente, de tipo normativo. Dando
continuidade às opções assumidas em Gòttingen, ele promove uma defesa
apaixonada da aplicação do método histórico à teologia.
Uma vez assentada na crítica, na analogia e no estabelecimento de cor­
relações — vale dizer: na crítica filológica, na comparação e na contextuali-
zação —, a história da religião abrira diante de si perspectivas inteiramente
novas. Troeltsch reconhece, nesse ponto, a importância da contribuição
de Strauss. Strauss fora o primeiro a assumir de forma consequente que
os frutos da pesquisa histórico-religiosa podem, não raro, ter um gosto

m
ii
amargo. Aí reside um dilema que os teólogos, pela própria natureza de sua
ciência, cedo constataram.14 Se não nos é dado escapar à “total revolução
de nossa forma de pensar” gerada pela disseminação do método histórico
fti;. no campo das humanidades, daí resulta que o estabelecimento de verdades
ou valores duradouros torna-se cada vez mais problemático.15 Diferentemente
\p 1' de Weber e Simmel, para os quais uma vida religiosa autêntica exige o
“sacrifício do intelecto”, para Troeltsch a fé submetida à prova da crítica se
transforma, mas não é necessariamente abandonada.
O progresso da ciência demonstrara o quanto o cristianismo deve a
tradições religiosas anteriores a ele, o quanto partilhou do universo cultu­
ral em que surgiu. Depois de aberta a caixa de Pandora da crítica histórica,
a noção hegeliana de um “caráter absoluto” (Absolutheit) do cristianismo
deixava de fazer sentido. A diferença fundamental é que Troeltsch não via
no relativismo uma consequência necessária da perspectiva da escola da

II 14 Sobre a cientificidade da teologia, ver Heidegger (1978).


15 Troeltsch, 2003c:7-8.
Ernst Troeltsch 439

história da religião. “A essência de minha posição é que ela [...] contesta o


relativismo completamente, e que a supressão desse relativismo demanda a
concepção da história enquanto desdobramento da razão divina”.16 Não se
deve ler nessas palavras o indício de uma reminiscência providencialista em
Troeltsch (ele considerava o supranaturalismo coisa do passado), mas sim
uma preocupação metafísica de fundo sem a qual, como veremos adiante,
não se compreende seu caminho rumo a uma teoria do historicismo.
A origem e a essência do cristianismo nunca se dariam a conhecer
somente a partir das escrituras. Os extraordinários avanços realizados por
homens como Harnack, Robertson Smith, Paul de Lagarde, Hermann Use-
ner e Wilhelm Bousset deviam-se, em grande parte, ao diálogo mantido
com disciplinas como a ciência histórica e a psicologia. Esses avanços, por
sua vez, colocavam os teólogos diante do desafio de tentar estabelecer a
validade (a “verdade”) do próprio cristianismo. As alternativas encontradas
até então haviam se mostrado insuficientes: Schleiermacher permanecera
atado à tradição eclesiástica, a perspectiva de Hegel sucumbira à crítica de
Strauss e ao reconhecimento do caráter integralmente histórico do cristia­
nismo, e mesmo a escola de Ritschl, ao se negar a comparar o cristianismo
com outras grandes religiões, enredara-se numa espécie de “biblicismo”.
Troeltsch acreditava que o diálogo entre teologia histórica e ciência mo­
derna havia sido muitas vezes protelado por receio de que pela porta dos
fundos da crítica o ceticismo adentrasse o coração mesmo da fé.
Ainda que a face do cristianismo tenha se alterado tanto ao longo
do tempo, persistiria, subjacente a toda essa extraordinária diversidade,
um mesmo princípio, uma mesma “ideia”. Para Troeltsch a essência do
cristianismo não estaria em seu passado primordial, como acreditava Har­
nack, mas justamente nessa “ideia” objetivada das mais variadas formas
ao longo da história.17 Ele reconhece que essa essência inevitavelmente
passa a adquirir uma dimensão normativa. Mas advoga que a depuração
da essência do cristianismo deve ser obtida não por meios especulativos, e
muito menos sob o influxo de um ideal de progresso das ideias religiosas.
O caminho correto consistiria em empreender uma investigação histórica

16 Troeltsch, 2003c:20.
17 Ibid. 1913.
440 Lições de história

“sem a intromissão de nossas próprias avaliações”. Uma tarefa que deve ter
por baliza o que ele neokantianamente chama de “teleologia objetiva”.18
Troeltsch situa sua problemática na encruzilhada da tradição do idea­
lismo alemão com a démarche epistemológica de Windelband e Rickert. “A
questão de Hegel permanece”, admite ele. “Mas ela tem de ser resolvida de
uma outra forma”.19
Contra Hegel, era necessário refutar definitivamente a tese apologéti-
co-evolucionista sobre o “caráter absoluto”, bem como substituir a mística
histórico-filosófica do conceito de progresso (Fortschritt) pelo conceito his-
toricista de desenvolvimento (Entmcklung). Troeltsch se dedicou a isso em
seu livro O caráter absoluto do ciistianismo e a história das religiões, onde de­
fende uma concepção menos autocongratulatória do cristianismo — não
etnocêntrica, diríamos hoje —, e que fosse capaz, simultaneamente, de
preservar seus valores fundamentais. O desafio é tentar construir uma ter­
ceira via, uma alternativa conciliatória entre a rigidez do “absoluto” e a
fluidez extrema de um relativismo desagregador.
A fim de concretizar seu intento, Troeltsch baseia-se na extensa lite-
atura teórico-metodológica produzida na passagem do século, sobretudo
m Heinrich Rickert. Em um ponto decisivo, porém, ele se afasta de Ri­
ckert. Para Troeltsch, o “a priori lógico” deixa sem resposta uma questão
crucial: saber como o conhecimento das configurações valorativas do pas­
sado permitiria articulá-las de maneira produtiva com o presente. Como
elaborar novos padrões valorativos e normativos a partir dos padrões que
a ciência histórica identifica no passado?20
A Ilustração legou-nos uma concepção integralmente histórica das
coisas humanas. De tal forma que a história, em última análise, culminaria
na dissolução de quaisquer verdades e dogmas. Eis aí, formulado em toda
a sua rude clareza, o piincipal “problema do historicismo”, contra o qual se
debateram alguns dos principais historiadores e filósofos do século XX. Ao con­
trário de muitos deles, Troeltsch não pretende abandonar a história, e sim
— para empregar suas célebres palavras — superar a história pela história:
“para a génese de normas, valores e ideais universalmente válidos a partir

18 Troeltsch, 1977a:179.
19 Troeltsch, 1903:28.
20 Ibid., p. 26.
Ernst Troeltsch 441

da história, deve existir uma fundamentação distinta da simples derivação


a partir de uma universalidade /ática”,21 de vez que a ciência histórica não
está apta a isolar ou identificar universais similares às leis da natureza.
Depois do desmoronamento da metafísica hegeliana, a busca por con­
ceitos normativos só poderia ser levada a bom termo a partir do historica­
mente relativo. “Não temos nada a objetar à expressão 4o cristianismo é um
fenômeno relativo’. Pois relatividade e historicidade se identificam”.22 Um
fio de navalha filosófico que ele considera uma “mescla” entre absoluto e
histórico. Troeltsch acredita que o histórico-relativo

não exclui de modo algum que nestas formações individuais surjam valores
de uma orientação fundamental comum e suscetíveis de serem confrontados
entre si, e que, através dessa confrontação, dão origem a uma opção última,
fundada na verdade e na necessidade internas.23

Na prática, isso significa ater-se a um universo religioso-cultural que


nos é conhecido e dele obter uma visão de conjunto, comparativa. Esse
universo é formado pelas grandes tradições religioso-filosóficas: judaísmo,
cristianismo, islamismo, bramanismo, budismo, panteísmo monista, mís­
tica dualista e teísmo moralista. Novidades radicais não existiriam nesse
campo, pois aí assentam as matrizes principais, insuperadas, do fenômeno
religioso tal como o constatamos ao longo da história das grandes civiliza­
ções. A teoria da transformação incessante, acredita Troeltsch, reduz-se a
um preconceito que nada confirma. A persistência dessas matrizes, conclui
ele, mostra que somente uma tibieza do espírito poderia levar alguém a
tornar-se niilista. O estudo sistemático e comparado dessas tradições, a
partir de um dado critério valorativo, permitiria destilar um fim comum
e, por conseguinte, normas. Não obstante tais normas serem fruto de uma
situação histórica específica, elas constituiriam um “instrumento de desen­
volvimento posterior, e não a ideia imóvel e acabada de acordo com a qual
transcorre o processo”.24

21 Troeltsch, 1979:59.
22 Ibid., p. 74.
23 lbid., p. 77.
24 lbid., p. 82.
442 Lições de história

Entre 1905 e 1907, delineia-se, na obra de Troeltsch, a abertura


para um outro complexo de problemas: a “modernidade”. A amizade com
Max Weber e os debates comuns no Eranos certamente contribuíram para
isso. Logo após a publicação de A ética protestante e o espírito do capitalismo
(1904/1905), Weber recebeu um convite da Associação dos Historiadores
Alemães para fazer uma conferência no simpósio de abril de 1906, a se reali­
zar em Stuttgart. Por questões até hoje não suficientemente esclarecidas, We­
ber declinou do convite e pediu a Troeltsch que o representasse. Publicada a
pedido de Meinecke na Historische Zeitschrift, a versão expandida da confe­
rência de Troeltsch sobre O significado do protestantismo para o surgimento do
mundo moderno apresentava conclusões bem distintas das de Weber.
A íntima ligação entre Troeltsch e Weber naquela época (os dois rom­
periam mais tarde, durante a I Guerra) deixa-se perceber não apenas na
temática de fundo, mas também e especialmente na perspectiva analítica
adotada. Ambos pretendem construir uma abordagem histórica “objetiva”
— depurada daquilo que Rickert denomina “valorações práticas” — da tra­
jetória do protestantismo; e ambos fazem-no com o recurso a “tipos ideais”
'Weber), a “conceitos históricos gerais” (Troeltsch). Weber imaginava ver
ti muitos dos trabalhos do amigo os sinais de sua própria influência, o
ue não é improvável.25 Admitir que a recíproca era igualmente verdadeira
ião era algo que Weber fazia de bom grado.26
A conferência de Stuttgart é uma crítica devastadora ao senso comum
alemão de que o protestantismo seria superior ao catolicismo. Para Troel­
tsch, não há solução de continuidade entre o “velho” protestantismo e mo­
dernidade.27 Ainda que a doutrina protestante tenha significado um maior
acento na imanência e que o ascetismo intramundano tenha tido claras
repercussões económicas, amplas esferas da vida caíam, ainda mais po­
derosamente que antes, sob a influência da esfera religiosa. Maior rigidez
no plano moral, reavivamento de pretensões hierocráticas28 adormecidas,

25 Carta de Weber ao medievalista Georg von Below, 23 de agosto de 1905 (apud Hennis,
1996:132).
26 Como demonstrou de maneira cabal Graf (1988).
27 Troeltsch, 1951:54-81.
28 “Hierocracia” é um termo técnico usado por Weber em Economia e sociedade. Refere-se a
formas de dominação em que o poder religioso se sobrepõe ao poder político, ou o expropria,
por assim dizer.
Ernst Troeltsch 443

retrocesso no campo estético em geral, firme rejeição de quaisquer ideais


democráticos: eis aí a face verdadeira, antimoderna, do protestantismo dos
séculos XVI e XVII. A grande novidade introduzida por ele radicava-se na
esfera propriamente religiosa. As raízes da modernidade deveriam ser bus­
cadas em outro lugar.
De suma importância nesse contexto é o extenso ensaio publicado por
Troeltsch em 1907, intitulado A essência do espírito moderno.29 Partindo da
análise das forças institucionais e culturais que marcam o advento dos tem­
pos modernos, ele diagnostica os três eixos fundamentais da nova visão de
mundo: individualismo, racionalismo e ênfase na imanência (Diesseitigkeit).
O Estado se emancipara de formas de legitimação tradicionais e erigira-se
numa espécie de providência imanente, quando não em própria razão ob­
jetivada; o individualismo político e seu correlato, a noção de igualdade,
minavam os fundamentos do antigo regime; o capitalismo impunha o domí­
nio, sobre tudo e sobre todos, de um “colossal materialismo prático”. A essa
transformação estrutural seguem-se mudanças de longo alcance no plano
das ideias: secularização da esfera jurídica e transformação da ciência na for­
ça orientadora principal. Daí a centralidade da crítica e, no campo das hu­
manidades, o espectro de um relativismo histórico crescente. O esgotamento
da metafísica e a exigência de cientificidade da visão de mundo produziram,
no campo filosófico, um “ceticismo desagregador” e mesmo uma “tirania das
teorias da moda”. Nessas condições, que esperar da situação da religião no
mundo moderno? Troeltsch não partilha do ceticismo de Weber e Simmel.
As grandes instituições religiosas, estas sim, viveriam uma situação de cri­
se devido ao crescente individualismo religioso. A modernidade significara
um investimento simbólico cada vez maior na esfera da imanência, mas esta
Diesseitigkeit não significara a dissolução da religião. Nos países de maio­
ria protestante, para não dizer nos católicos, as Igrejas mantinham intocado
grande parte de seu poder. O fascínio pela mística oriental e por formas
sectárias de organização religiosa, quando não a formação de religiões de
substituição (Troeltsch as localiza no movimento socialista), mostram a que
ponto é precipitado se falar num desencantamento do mundo.30
A partir dessa problemática de fundo — a relação entre cristianismo e
modernidade —, Troeltsch se desloca gradativamente do campo da filoso-

29 Troeltsch, 2003a.
30 Para urna análise mais abrangente, ver Mata (2008b).
444 LiçOes de história

fia da religião para o da historiografia. O ponto alto dessa nova fase é atin­
gido em 1912, com a publicação de As doutrinas sociais das Igrejas e grupos
ciistãos. O ensejo para escrevê-lo havia partido de um convite de Edgar
Jaffé para que Troeltsch resenhasse um livro de Martin von Nathusius sobre
a Igreja e a “questão social” no Archiv fúr Sozialwissenschaft und Sozialpolitik.
Nos dois maciços volumes das SoziaUehren, ele articula brilhantemente a
perspectiva histórica com o método sociológico.
Troeltsch quer entender ali como a formação e trajetória histórica do
cristianismo tinham sido “determinadas sociologicamente” e como, por
outro lado, o cristianismo produziu transformações na esfera política, eco­
nómica e familiar.31 Uma problemática que continua a manter toda a sua
pertinência — pense-se nos debates em torno do islamismo nas últimas
décadas —, qual seja: a efetividade histórica de uma ética religiosa, bem
como os influxos que ela recebe do seu invólucro histórico-social.
Influenciado pelos trabalhos de Simmel, Weber e Marx, Troeltsch pre­
tende escrever uma “história da civilização eclesiástico-cristã” análoga à de
Harnack.32 Distintamente do autor da Dogmengeschichte, porém, Troeltsch
admite fazer uma pesquisa histórica fora dos padrões usuais. Ele se vê
como um não especialista, um pesquisador cujo mérito não está no tra­
balho crítico com as fontes, mas na elaboração de uma teoria das relações
entre as esferas religiosa e político-social.33
Troeltsch viu na sociologia uma possibilidade de identificar e descre­
ver, simmelianamente, as distintas formas de socialização produzidas pelo
cristianismo ao longo da história. Esforça-se ainda por dotar seu estudo
daquela aura de “objetividade” tão cara a Weber, e por elaborar de maneira
definitiva os tipos ideais weberianos de “igreja” e “seita” (aos quais acres­
centa o de “mística”). Troeltsch reconhece até mesmo o valor heurístico da
tese de Marx sobre as relações entre “infraestrutura” e “superestrutura”, o
que demonstra que a noção ritschliana de uma autonomia da esfera reli­
giosa era agora devidamente matizada (mas não abandonada) em sua obra.

31 Troeltsch, 1994:viii.
32 Troeltsch, 1925:11-12.
33 “Ich binja kein Fachmann, Quellenleser, aber nicht Quellenforscher. Fúr meine Zwecke habe ich das
Nõtige herausgebracht” (carta a Bousset, 28 de dezembro de 1917; apud Drescher, 1991:484-
485). Ver também Troeltsch (1994:15).
Ernst Troeltsch 445

O livro, imenso, escrito num estilo pesadamente analítico, foi considera­


do por Johannes Weiss ainda mais sociológico e sistemático que a Ética
protestante de Weber. Isso parece ir de encontro à opinião de Marie Luise
Gothein (1931:213), para quem Troeltsch, como outros membros do Era-
nos, teria se convertido à sociologia. Não parece ter sido esse o caso. Para
Troeltsch a sociologia estava a serviço da pesquisa histórica; seria um mé­
todo, não uma disciplina autónoma. Suas Soziallehren, ele as define como
“história”.34
Em julho de 1914, contando com o apoio nada desprezível de Har-
nack, Troeltsch é escolhido para suceder Wilhelm Dilthey na Universidade
de Berlim. Com o início de suas atividades na capital do Reich, no ano
seguinte, inicia-se a terceira e última fase de sua carreira, marcada por
estudos no terreno da teoria e filosofia da história. Na verdade, o teólo­
go Troeltsch há muito se ocupava com temas histórico-filosóficos. Desde
1909 ele gozava da rara oportunidade de lecionar não apenas na Faculdade
de Teologia, mas também na Faculdade de Filosofia de Heidelberg.
Dois problemas ocupam agora sua agenda de investigação. O primei­
ro deles era o espectro do relativismo, para o qual dois grandes nomes do
pensamento alemão chamaram a atenção em ensaios lançados quase que
simultaneamente, em 1911: Dilthey, com sua Tipologia das visões de mundo,
e Husserl, em Filosofia como ciência rigorosa. Troeltsch, como vimos, estava
atento à questão desde o início do século. O segundo problema, ainda que de
natureza distinta, potencializava o desafio colocado pelo primeiro: a guerra.
Inicialmente fascinado, como a maioria dos intelectuais alemães de
sua geração, pelas famosas “ideias de 1914”,35 Troeltsch se dá conta, bem
antes do armistício, do perigoso caminho de isolamento trilhado por seu
país. A isso soma-se uma crise de orientação sem precedentes na Alema­
nha: pessimismo generalizado, “anarquia dos valores”, surgimento de “ten­
dências ocultistas” no campo religioso e proliferação de um verdadeiro
“ódio à ciência” (Wissenschaftshass). Weber fez um contra-ataque à altura

34 Troeltsch (1913:13, nota 2) inclui as Soziallehren entre seus “historical writings". A sociologia
seria apenas “eine neuc Art zm sehen” (Troeltsch, 1925:11). Fórmula análoga havia sido emprega­
da por Simmel (1999:16). Estamos de acordo com Dumais (1992:186), para quem “ii refuse de
ctder aux visées impéiialistes de la sociologie”. Com uma ressalva: era o modelo de sociologia de
Comte e Spencer que Troeltsch repudiava, não o de Simmel e Tônnies. Ver Troeltsch (1916).
35 Dumont, 1991.
446 Lições de história

em sua famosa conferência de 1917, A ciência como vocação. De sua parte,


Troeltsch acreditava que os trabalhos de Croce, Bergson, Spengler, Husserl,
Spengler e Frobenius promoviam — cada um à sua moda — uma verda­
deira revolução na ciência.36 No círculo de Stefan George, começava-se a
produzir um modelo alternativo de historiografia. As biografias escritas
por Emst Bertram e Friedrich Gundolf viravam o paradigma dominante de
cabeça para baixo, enfatizando antes o elemento estético que o metódico,
antes a construção deliberada de mitos que o restabelecimento de uma
“verdade” inerente ao passado.
Exatamente do círculo de George partiria a primeira grande crítica ao
realismo crítico weberiano. O opúsculo A vocação da ciência foi publicado
em 1920, pouco após a morte de Weber, por Erich von Kahler. Acendeu-se
uma polêmica que se estenderia ainda por alguns anos, e Troeltsch, claro,
quis dar sua contribuição a ela. Dono de um espírito mais aberto ao diálo­
go que Weber, ele busca conciliar pontos de vista. Contra Kahler, mostra
que muitos dos críticos nada sabiam da “velha ciência”; e, com Weber,
admite que a ciência deve produzir conhecimento positivo e especializado.
“Eu me confesso aqui um partidário pleno da velha ciência, pois fora dela
nenhuma ciência existe.”37 Ele admite que, do ponto de vista filosófico,
está longe de partilhar do “ceticismo” de seu recém-falecido amigo. Nem
tudo na crítica de Kahler deveria ser jogado ao lixo. Ela podia ser lida como
um sinal de alerta, um indício de que também a “velha ciência” deve estar
disposta a se repensar. Vivia-se, de fato, uma crise do historicismo. A saída
para essa situação, no entender de Troeltsch, estava na busca por uma nova
síntese histórico-filosófica. Como os historiadores profissionais davam as
costas aos problemas do presente, o espaço era ocupado por diletantes
como Spengler. Ainda mais porque, ao aceitar a perspectiva de Rickert de
que a ciência histórica é uma ciência relativa a valores, a “anarquia dos va­
lores” reinante atingia a historiografia nos seus próprios fundamentos.38
A crise não tinha apenas implicações no campo científico: suas reper­
cussões estendiam-se à esfera prática e da vida. Isso podia ser observado

36 Troeltsch, 2003b:318.
37 Ibid., p. 341.
38 Rickert sempre foi um ponto de partida importante para Troeltsch, mesmo quando este pas-
sou a criticar o formalismo excessivo de seu sistema. Sobre Rickert, ver Mata (2006).
Ernst Troeltsch 447

no amplo prestígio de que passavam a gozar pensadores católicos e no re-


crudescimento de tendências românticas radicais, irracionalistas, tais como
o movimento Võlkisch.39
Tudo isso falava a favor, acreditava Troeltsch, de um decidido esforço
de reaproximação entre filosofia e história. Ele se entregou com todas as
suas forças a essa tarefa. Embora não tenha concluído seu projeto de siste­
matizar uma nova síntese histórico-filosófica, sua obra Der historismus und
seine Probleme (1922) constitui, para muitos, o primeiro grande clássico
sobre esse tema ainda tão envolto em controvérsias que é o historicismo.40
Uma autoridade da estatura de Ernst Schulin postula que esse livro fez de
Troeltsch “o grande construtor da ideia de historicismo”.41
Obra inacabada, o Historismus segue a mesma técnica de composição
empregada nas Soziallehren. Parte substancial do volume fora previamente
publicada em revistas. Troeltsch esperava, assim, antes da publicação defi­
nitiva, fazer correções ou ajustes no texto a partir das impressões que lhe
chegavam dos leitores, aprimorar sua argumentação e atualizar a literatura
empregada.42 Isso não o livrou, contudo, da crítica dos que se ressentiram
da falta de unidade do livro. Karl Mannheim e Georg von Below não apro­
varam o duplo caráter do Historismus: o livro pretenderia ser, ao mesmo
tempo, uma história da historiografia e uma filosofia da história.43 De nossa
parte, parece-nos estar justamente aí a sua grande originalidade.
“Totalidade individual” e “desenvolvimento”: sabemos suficientemen­
te bem que estas duas categorias centrais do saber histórico já tinham sido
plenamente elucidadas por Rickert. O mérito de Troeltsch reside no fato
de que sua crítica ao formalismo da escola neokantiana de Baden se funda,
em grande parte, numa história da historiografia e numa história da filo­
sofia da história. Fugindo da oposição kantiana clássica entre “ser” e “de-

39 Troeltsch, 2003d.
40 Para uma tentativa de defesa do historicismo, ver Mata (2008a).
41 Schulin considera menos significativos os livros de Friedrich Meinecke e Otto Hinze sobre
o tema (apud Rendtorff, 1992:272). Em 1924, Karl Mannheim (1952) via no Historismus de
Troeltsch o “ponto de partida para uma teoria do historicismo”.
42 Carta ao seu editor Paul Siebeck, 2 de janeiro de 1919 (apud Drescher, 1991:487).
43 Below, 1923. Ver também Mannheim (1952:106).
448 LiçOes de história

ver ser”, Troeltsch quer rediscutir a importância do “dever ser” (SoíZen).44


Incorporando o pensamento de Wilhem Dilthey e, tudo indica, também o
de Max Scheler, ele quer dar o devido espaço à hermenêutica e às questões
éticas no trabalho histórico. No seu entender, tais problemas só poderiam
ser resolvidos no âmbito da filosofia da história. Essa filosofia da história
não poderia seguir o modelo de Hegel. Ela não deve ser nem universal,
nem teleológica. Se quer de fato ser efetiva, ela tem de ser modesta, vale di­
zer: pensada exclusivamente a partir dos padrões (Massstàbe) vigentes em
nosso próprio círculo cultural. Seus objetivos são práticos, éticos e filosó­
fico-culturais. A essência da tarefa consiste em “dominar a pletora da vida
histórica e de conhecimento ao inserir-se nas tendências de nossa vontade
configurante”.45
Em que efetivamente consistiria o produto dessa “síntese cultural”
perseguida por Troeltsch, não o sabemos. Sua morte prematura, em janei­
ro de 1923, impossibilitou a redação do segundo volume de O historicismo
e seus problemas. Justamente quando uma proposta concreta de solução
desses problemas assumia contornos claros em sua cabeça.

A CRISE ATUAL DA HISTÓRIA46

Quando se houve falar hoje, repetidamente, de uma crise da ciên­


cia histórica, nesse caso trata-se menos de uma crise da pesquisa histórica
dos estudiosos e dos especialistas do que do pensamento histórico dos
homens em geral. As edições críticas e o trabalho com as fontes, a arte da
identificação de relações entre os eventos por meio da pesquisa e da ampla
comparação dos testemunhos, a complementação e reavivamento destes
por intermédio de uma das características gerais de um período a partir
de inúmeros exemplos da psicologia histórica ou científico-social, todos
estes se tornaram métodos e recursos de uma ciência cada vez mais exata, e
que os especialistas podem a toda hora aprender e analisar criticamente. A

44 Isso implica um questionamento profundo do preceito weberiano da “neutralidade axiológi-


ca” (Wertfreiheit) na análise histórico-social. Sobre a relação cada vez mais crítica de Troeltsch
em relação a Weber, ver Hubinger (2006:80).
45 Troeltsch, 1977b: 113.
46 Troeltsch, 1922:1-11 (seção inicial do primeiro capítulo).
Ernst Troeltsch 449

aplicação dessas técnicas aos períodos estabelecidos de formas as mais di­


versas, cada vez mais curtos e difíceis de contemplar, a contínua repetição
do mesmo trabalho por meio da utilização de tais recursos, da tentativa de
realizar uma nova interpretação ou, ainda, simplesmente, da crítica do grau
de exatidão de um predecessor, isso traz à luz uma enorme abundância de
pesquisas históricas que, de tempos em tempos, precisa ser trabalhada,
coligida e, por assim dizer, codificada em grandes compêndios. Somem-se
a isso os instrumentos das diversas línguas e filologias, da paleografia e da
diplomática, da biblioteconomia e da arquivística, das viagens e do teste­
munho ocular direto, bem como das ciências geográfica, jurídica, económi­
ca e das demais ciências auxiliares, sem as quais a interpretação das fontes
e a contemplação viva do passado não seriam possíveis.47
Crise e alteração não podem ocorrer nesse quadro enquanto se der a
devida importância à verdade, ao rigor científico e a uma exatidão o mais
próxima possível das ciências naturais, enquanto não se busquem excita­
ções da fantasia e do espírito à custa de romances mais ou menos sugesti­
vos, ou evidências incontestáveis de determinadas teses e interesses. Com
grande empenho, desde os maurinos48 e os grandes historiadores de for­
mação filológica do século XIX, a ciência histórica foi elevada a esse nível,
e suas realizações, desde então, crescem extraordinariamente em amplidão,
riqueza e rigor. Não se pode abdicar de nada disso sem que se abra mão da
grandeza da cultura científica mesma, da segurança, da clareza, do ensino

47 Ver a sistematização de todos os meios técnicos e científicos com os quais trabalha a pes­
quisa histórica no compêndio, muito utilizado pelos historiadores, de E. Bemheim (Lehrbuch
der historischen Methode und der Geschichtsphilosophie, 1908); seus correlatos francês e inglês:
Ch. V Langlois e Ch. Seignobos (Introduction aux études historiques, 1898) e E. A. Freeman
(The methods ofhistorical study, 1886); e Friedrich von Bezold (Zur Entstehungsgeschichte der
historischen Methodik, in Internationale Monatschrift VIII, 1914). Das apresentações gerais so­
bre o desenvolvimento das ciências históricas, cabe citar: Benedetto Croce (Zur Theorie und
Geschichte der Historiographie, versão alemã de Pezzo, 1915); Morit Ritter (Die Entwicklung der
Geschichtswissenschaft, 1919); Eduard Fueter (Geschichte der neueren Historiographie, 1911); G. P.
Gooch (History and historians in the 19th centuiy, 1913). Mais recentemente, e com mais ênfase
no contexto filosófico, ver Wilhelm Bauer (Einfiirung in das Studium der Geschichte, 1921). Dos
trabalhos mais antigos são ainda hoje utilizáveis: Wachler (Geschichte der historischen Forschung
und Kunst seit der Wiederherstellung der literarischen Kultur in Deutschland, 1812-1820); F X.
Wegele (Geschichte der deutschen Historiographie, 1885) é apenas erudito.
48 Ordem religiosa surgida na França no século XVII e responsável pela edição dos escritos
patrísticos. (N. do T.)
450 LiçOes de história

do ofício, sem os quais a mais elevada e nobre arte e maestria são impossí­
veis. Certamente, é de se imaginar que tenhamos chegado a um ponto em
que a tarefa de tal forma está simultaneamente aprimorada e dilatada que
ultrapassa nossas forças, e que uma grande ciência ainda passível de ser do­
minada quando de seus inícios não mais o seja, de maneira tal que repousa
hoje como um grande torso. Nas artes, da mesma forma, a tradição e a es­
tabilidade dos ofícios ao longo dos séculos, da baixa Idade Média até a Re­
volução Francesa, foram quebradas e postas abaixo, abrindo espaço para a
experimentação e a perspectiva mais pessoais ou para as demandas do mer­
cado e do jornalismo. Na própria atividade da pesquisa histórica, contudo,
tal fadiga e esmigalhamento não se fazem notar ainda. Todavia, os perigos
da especialização naturalmente aumentaram muito. Eles são inevitáveis em
toda ciência que se expande e aprofunda, e que repercute as concepções de
seus mais antigos fundadores, ainda homogéneas àquela época. Mas contra
tais perigos podem contrapor-se a vontade de concentração e a organiza­
ção planejada do trabalho. As academias e associações de historiadores, os
mestres influentes em seus seminários e círculos de alunos podem dividir
os problemas entre si e reunir pessoal. Contemplados com os elevados do­
tes da criação, os grandes mestres podem processar e dar forma à massa de
dados, e deste modo indicar os caminhos de novas áreas de trabalho. Assim
faz hoje a ciência histórica. Um homem como Mommsen era um mestre em
ambas as coisas. Não existe qualquer limitação intrínseca em se ampliar esta
sistemática sempre e cada vez mais. A redação de livros de forma arbitrária
e sem um planejamento prévio torna-se cada vez mais rara, a síntese fica
reservada aos mestres e é discutida por seus discípulos. A mera fábrica de
teses de doutorado e livros didáticos pode ser restringida, se bem que para
o talento e a dedicação nunca faltam oportunidades de trabalho, a sorte na
pesquisa e a alegria da descoberta. A ciência torna-se um tanto impessoal,
mas esta é a sua essência. O esboço e o olhar espontâneos tornam-se cada
vez mais raros, os resultados precisam ser esperados mais pacientemente.
Mas isto é inseparável de uma ciência madura e plenamente desenvolvida.
Nas ciências naturais as coisas não se dão de outro modo.
Não é aí que reside a crise. Porque não haveria como ser de outra
forma, e estes caminhos de forma alguma foram trilhados até o fim. Pode
ser difícil digerir tanto conhecimento e manter sob domínio o dilatado
material. Mas a produção sem sentido de livros e a enorme quantidade de
Ernst Troeltsch 451

escritos (Vielschreiberei) das últimas décadas já eram de toda forma desne­


cessárias. Se a juventude atual, acusada de “a-histórica”, até onde o é de
fato, se desespera com o gigantesco alimento por meio do qual deve se
sustentar, então é perfeitamente compreensível este primeiro espanto de
aprendiz. Todavia, este é o destino de todas aquelas culturas maduras ou
que envelhecem, e que reúnem em si muitas premissas. Basta confiar nos
guias certos e ter um pouco de instinto quanto ao essencial, que se pode,
apesar de tudo, sobreviver. Com isso pode e deve advir certa economia
e planejamento do desenvolvimento das forças, um desfazer-se do que é
superado e uma renúncia à equivocada ideia de um conhecimento inte­
gral da literatura. Porém, a destruição de uma sólida e abrangente forma­
ção histórica, assim como do próprio conhecimento histórico, só poderia
ser entendida como uma opção pela barbárie, e seriam exequíveis apenas
na hipótese de um retomo de todas as demais esferas da vida à barbárie.
Contudo, de maneira alguma há como se desejar e propor algo assim, tão
pouco quanto o foi o efeito do tédio de Rousseau sobre uma pseudocultu-
ra. A opção pela barbárie, que para muitos hoje nos ronda como espectro
ameaçador ou como salvação sedutora, é, onde se instala, a consequência
de amplas transformações mundiais, e não a resolução de uma juventude
afogada em livros. Ela é o epílogo melancólico e lentíssimo de culturas se­
nis, e não uma alegre redenção na força e no frescor. Precisamos continuar
a carregar nosso fardo. Podemos perceber isto e ainda assim transferir a
responsabilidade a outrem. Mas como todas as nossas aquisições e recursos
estão ali, não podemos simplesmente nos desfazer de tudo. Também nós,
das gerações mais velhas, vivenciamos e sentimos tudo isso em nossos anos
de juventude, mas finalmente conseguimos recobrar o fôlego, e as coisas
retomaram seu curso. Só que, antes, tais coisas normalmente aconteciam
em silêncio. Hoje tudo se dá de forma mais aberta e interessante, embora o
resultado, no fim das contas, também não seja muito diferente.
Se não se trata, porém, de uma verdadeira crise no campo da pesquisa
histórica, se seria um suicídio espiritual a sua demolição, tão mais grave é
a crise dos fundamentos filosóficos gerais e dos elementos constitutivos do pensa­
mento históiico, bem como da concepção dos valores históricos a partir dos
quais pensamos e construímos a teia (Zusammenhang) da história. Desde os
anos 1850, a pesquisa histórica acadêmica alemã afastou-se dos grandes e
abrangentes quadros histórico-universais, tal como ainda era comum antes
452 Lições de história

do pensamento de Ranke. Em parte a história é dividida em subdiscipli-


nas voltadas para diversas áreas e períodos, em parte a moderna história
europeia orienta-se exclusivamente para a fundação do Reich por Bismarck
numa perspectiva político-militar-diplomática. Na verdade, entretanto, há
muito os conceitos dos valores históricos da cultura europeia transforma­
ram-se a partir de dentro. Diante dessa fragmentação e esvaziamento da
representação histórica, visivelmente surgiu uma gigantesca ânsia de con­
centração da vida histórica em forças e fins uniformes, de interpenetração
dos valores históricos numa totalidade espiritual e vital. Não apenas isso:
os próprios valores históricos são novamente postos em ação e aspiram a
uma nova seleção, síntese e configuração. De um lado, Karl Marx e os que
pensam como ele lentamente esgotaram a concepção convencional da pes­
quisa histórica, pregaram novos meios de explicação e novos objetivos. O
efeito foi e é imenso, se bem que se percebem, precisamente agora, as fragi­
lidades de suas análises históricas. De outro lado, Friedrich Nietzsche não
teve uma influência menor na demolição do conjunto dos antigos valores, e
ensinou assim uma nova psicologia de entendimento da história europeia.
Tal psicologia pretende-se tão unilateral e perigosa como de fato o é, e
tornou-se também, desse ponto de vista, tremendamente influente. Então
vieram o pessimismo francês e a crítica cultural dos estetas, a que se juntou
o contra-ataque de Bergson e da juventude francesa. Na Itália, Croce deu
novos rumos à pesquisa histórica. Na Inglaterra, H. G. Wells sacudiu a
consciência histórica inglesa em seu Outline ofhistory. Ademais, advieram
influências, talvez menos intensas, mas ainda assim suficientemente for­
tes, das revigoradas história da religião e história cultural, as quais der­
rubaram a tradicional concepção histórica protestante-liberal-prussiana
ou agnóstico-nacionalista-imperialista. Ou que mostraram a relação entre
Antiguidade, época gótica49 e modernidade sob uma luz completamente
diferente, e que, sobretudo, utilizam-se da arte como chave para com­
preensão das características espirituais coletivas. Tudo isso se confronta
com um sistema de valores (Wertung) já estabelecido, com um meio sem
qualquer originalidade e energia, que, contudo, disso nada parecia per­
ceber, mas que para a juventude, em especial, se tornou cada vez mais
impotente e desinteressante.

49 Gotik no original. Compreende o período de vigência do estilo gótico, de meados do sécu­


lo XII ao fim do século XV (N. do T.).
Ernst Troeltsch 453

E então veio o grande e terrível teste de todas as teorias históricas que


haviam surgido num tempo de paz ou de prosperidade e que projetavam
seus sistemas de valores, como se fossem autoevidentes, no progresso futu­
ro. Guerra mundial e revolução foram uma lição de contemplação histórica
de uma violência terrível, avassaladora. Nós não teorizamos e construímos
mais sob a égide de uma ordem que tudo abarca e que torna inofensivas as
mais ousadas ou ambiciosas teorias, mas sim em meio à tormenta da rees-
truturação do mundo, na qual toda sentença antiga pode ser posta à prova
quanto ao seu efeito prático ou à sua ineficácia, na qual incontáveis coisas
se tornaram meras frases e papel, e que antes pareciam dotadas de uma
seriedade solene ou que de fato o eram. Porque o solo treme sob nossos pés
e ao nosso redor circulam as mais distintas possibilidades de desenvolvi­
mento ulterior, sobretudo e obviamente nos lugares onde a guerra mundial
significou, simultaneamente, uma transformação total — na Alemanha e
na Rússia.
De fato, esta é agora uma crise do pensamento histórico, e é evidente
que ela se faz sentir principalmente na juventude, que vive mais fortemente
o efeito de novas ideias e do destino do que a maioria dos mais velhos, e
que, acima de tudo, terá de dar forma a seus destinos vitais a partir desse
caos. Ao mesmo tempo, isso é para ela um problema teórico e prático, e
de uma força tão inaudita que se torna compreensível que grande parte da
juventude ignore tal problema e que nele só se vislumbre plenamente o
que há de vivaz, dinâmico, irrealista ou filosoficamente excitante. De certo,
seria um erro acreditar que os mais velhos não o percebam claramente. Mas
eles não assumiram as consequências do novo na mesma medida que a ju­
ventude. Nestas questões, sobretudo, é ela quem por direito tem a palavra
e a vocação, se não para a solução da crise, pelo menos para a exigência
apaixonada de novas soluções.
Como eu, de minha parte, penso a solução da crise, isso só será for­
mulado ao final destas páginas. Aqui no início, trata-se simplesmente de
reconhecer formalmente a crise enquanto tal, mas também de distinguir
com rigor a situação da pesquisa técnico-histórica da situação do pensa­
mento histórico-filosófico. A crise reside basicamente no segundo, e apenas
de passagem no primeiro problema. Isso significa, porém, que a situação
crítica do segundo não deve ser estendida sem mais nem menos à primei­
ra. Também naquela há muito de ultrapassado e convencional, mas, no
454 Lições de história

essencial, ela está saudável do ponto de vista científico. No segundo, pelo


contrário, dá-se uma alteração de todo o sentimento vital, e impõe-se uma
ânsia de plenitude e totalidade que, todavia, nos é imprescindível. Aqui é
preciso que algo novo seja criado a partir de um sentimento vital indepen­
dente, mas nós não queremos destruir, desprezar ou difamar nossa ciência.
A situação atual pôs abaixo tantas coisas que o desejo de notoriedade a
qualquer custo (Herostratentum) nesse campo poderia tomar-se duas vezes
mais perigoso. O rigor e a objetividade, a solidez e a honestidade da ciência
alemã serão, por muito tempo, um dos pilares da nossa posição no mundo
e uma expressão de nossa especificidade.50
Portanto, a crise reside nos elementos e nas implicações filosóficas da
pesquisa histórica, naquilo que se pode chamar sua interação com e seu sig­
nificado para a visão de mundo, embora a relação seja plenamente recípro­
ca: o significado da história para a visão de mundo e o da visão de mundo
para a história. Aquele que procura um nome para todo esse conjunto de
problemas só poderá designá-lo como o problema da filosofia da história, da
mesma maneira que se trata de designar problemas análogos das ciências
naturais como filosofia da natureza. Certamente, ambos os termos foram
estabelecidos outrora de forma unilateral para determinadas teorias (Pro-
blemlõsungen), tanto para a filosofia da natureza de Schelling e suas suces­
soras quanto para a filosofia da história hegeliana e suas congéneres. Para
muitos, ainda hoje, tais termos parecem suspeitos. Porém, não é desejável
que nos privemos de termos tão imprescindíveis, não se devendo, assim,
limitá-los unilateralmente apenas àquelas antigas teorias. Pois elas signi­
ficavam apenas uma possibilidade de solução entre muitas, de sorte que,
nessa perspectiva, ambas não são mais viáveis. O problema da filosofia da
natureza pode ser deixado de lado aqui. Mas quanto à filosofia da história
há que dizer, de antemão, que ela não pode mais ser entendida como uma
sistematização e dedução da história. O termo filosofia da história e seu
problema significam atualmente apenas, muito genericamente, as relações
da história com a visão de mundo (como já foi dito acima), os pressupostos
filosóficos e as consequências da pesquisa histórica. A questão reside exa-

50 Ver meu ensaio “Die Revolution der Wissenschaft", in Schmollers Jahrbuch, 1922. Para a expres­
são máxima desta crítica, vejam-se o livreto de Max Picard (Der letzte Mensch, 1921); e também
o singular livro de R. Pannwitz (Die Krise der europâischen Kultur, 1917).
Ernst Troeltsch 455

tamente em redescobrir uma colocação e ordenação corretas desses proble­


mas, e que sejam expressão das demandas do momento atual.51 Esse é um
problema que se formula sempre a cada mudança importante de geração,
desde que o Iluminismo, interessado fundamentalmente nas ciências natu­
rais e em rápidas soluções utilitário-práticas, deu lugar à autoconsciência
histórica e ao pensamento histórico. Desde a grande reação internacional à
Revolução Francesa e a concomitante revolução — de espécie totalmente
diferente — espiritual da filosofia e poesia alemãs clássicas, ao lado das
ciências naturais e sua forma de avaliação filosófica se impôs por toda parte
uma perspectiva ao conjunto da moderna ciência em todos os países — por
toda parte e de forma particularmente intensa onde, por quaisquer razões,
a educação convencional foi reduzida a uma autocontemplação histórica.
Isto é: tal perspectiva se faz sentir menos entre os anglo-saxões do que entre
os povos do velho continente europeu, constantemente agitados política,
social e filosoficamente; e é ainda mais intensa na terra da dura e duradoura
sina, a Alemanha.52

51 Da mesma forma que E. Spranger (Der gegenwãrtige Stand der Geisteswissenschaften und die
Schule, 1922).
52 A esse respeito, ver A. C. Bouquet (Is christianity the final religion?, 1921). Aqui, a típica expli­
cação na p. 1: "the Anglo-Saxon temperament is expansive rather than intensive, and it takes more
naturaly to missionary enterprise than to the examination of belief'. Da mesma forma Sidney Low
em seu Govemance of England (1916, p. 4): “we have had no revolution for two hundred years: vve
have not been compelled to clean the State, or examine the foundations of belief, and vve are proud
of being an illogical people. So we have carefully avoided systematization; we provide for immediate
necessities". Isso lembra o balanço de Burke em suas Reflections sobre a Revolução Francesa.
Em amplos círculos mantém-se até hoje essa tendência para a associação de historismo e livre
resignação diante de momentos de transformação. Contudo, ali se percebe o historismo na crise
do cristianismo, como mostram Bouquet e, aliás, também o Outline de Wells. Para os Estados
Unidos, ver William Adams Brown (The essence of christianity, 1904), cuja posição é próxima à
de Bouquet. Uma interessante observação sobre a posição atual dos franceses em relação à ideia
de uma crise geral da cultura pode ser encontrada em E. R. Curtius (Der Syndikalismus der Geis-
tesarbeiter in Frankreich, 1921). Segundo ele, o francês está pouco inclinado a reconhecê-la, seja
porque ele se acha o eterno cérebro do mundo, seja porque depois da guerra ele pensa apenas
em tudo reter e estabilizar e percebe a guerra como reordenação, e não como crise mundial,
seja ainda porque, por princípio, ele protege a tradição, a forma e a herança latina: “do que o
francês precisa é de um máximo de obstinação, daí a grande resistência ao bergsonianismo na
França de hoje" (aliás, depois de Bergson ter prestado os mais importantes serviços ao surgi­
mento do esprit nouveau). Contudo não se deve, além disso, esquecer os críticos radicais, de
La Rochefoucauld e Chamfort a Saint-Simon, Stendhal e os românticos modernos, pelos quais
Nietzsche deixou-se inspirar. Também nos dias de hoje, pessoas como André Gide e Romain
Rolland conhecem perfeitamente bem a crítica situação mundial. Veja-se também o ensaio de
456 Lições de história

Visto nessa perspectiva, o problema significa certamente uma questão


fundamental relativa à nossa vida espiritual atual — nada menos que o pro­
blema do assim chamado historismo, isto é, das “vantagens e desvantagens”
resultantes da historicização integral de nosso conhecimento e pensamento
para a formação de uma vida espiritual pessoal e para a criação das novas
formas de vida político-social. No século XV11I, a historicização seguiu-se
lentamente à naturalização ou, melhor dizendo, à matematização do pen­
samento, e surgiu sob a égide de necessidades práticas simultaneamente
com o Estado moderno e com a questão de sua autocompreensão e au-
tojustificação, para então ascender poderosamente com o romantismo e
determinar o pensamento moderno a partir de seus fundamentos, e até
mesmo submeter nossa concepção da natureza na forma de um conceito
geral de evolução. Ela, a historicização, tornou-se a força motriz das visões
de mundo que substituíram o dogmatismo do lluminismo e da Revolução
Francesa. De forma que existe hoje uma imensa pesquisa histórico-empí­
rica assentada na biologia dos seres vivos de nosso planeta e que inicial­
mente esforçava-se por obter uma inspiração filosófica à custa de influentes
sistemas histórico-filosóficos. No início, enquanto se tratava basicamente
do entusiasmo que temos com a pesquisa histórica, e enquanto a pesquisa
histórica significou a libertação do conceito matemático-mecânico de na­
tureza, tal historicização sem dúvida deu tremenda profundidade e ânimo
à vida espiritual em todos os campos; primeiramente ela nos ensinou a
compreender arte e literatura; e, em especial, com seu pathos, ela acom­
panhou e deu conteúdo à criação dos Estados nacionais. Mas então sua
crescente massa de dados tornou-se esmagadora; a impressão causada por
modalidades de estruturação em constante mudança e contraditórias entre
si, e as polêmicas da crítica das fontes criaram uma atmosfera cética; a rea-

Paul Valéry (“La crise de resprit”. In: Nouv. Rev. Fr., 1919), que todavia Curtius considera ser
um caso totalmente isolado. Em todo caso, uma crise do historismo foi, também na França,
uma crise do esprit nouveau da nova juventude. Esta não foi, porém, percebida como uma crise
europeia. Sobre o grande significado de Ernest Seillère e sua “filosofia do imperialismo”, ver O.
Grautoff (Zur Psychologie Frankreichs, 1922). Trata-se de um grande modelo histórico-filosófico
que representa o imperialismo moderadamente racional da história francesa com base no élan
vital de Bergson, e que gostaria de relacioná-lo culturalmente ao classicismo do século XVII.
Relacionado a isso está a rejeição de Rousseau e do romantismo como os corruptores de uma
concepção histórica sadia. Tal rejeição pressupõe uma nova consciência da filosofia da história,
se bem que, de fato, não muito profunda.
Ernst Troeltsch 457

proximação da história com as ciências naturais teve um efeito determinista


e hostil contra toda forma de grandeza e heroísmo, o parentesco de suas
grandes sínteses com as representações artísticas levou-a ao relativismo do
esteticismo, assim como a rigorosa objetividade dos estudos específicos das
fontes sucumbiu à especialização. O que antes fora uma libertação e uma
elevação tornou-se um ónus e uma fonte de desordem.
Por esses motivos, a filosofia parcial ou totalmente desvanecida desde
1848 dedicou-se, tão logo foi relativamente reavivada, aos confrontos: pri­
meiramente, com o naturalismo mecanicista; e, mais tarde, porém de ma­
neira ainda mais vigorosa, com a história. Antes difamada e praticamente
extinta, a filosofia da história despertou novamente e realiza avanços cada
vez maiores. A catástrofe mundial da grande guerra contribuiu com sua
parte. Assim, pode-se falar hoje de um evidente renascimento da filosofia
da história. É a partir dela que se obterá a resposta para nossa questão
inicial. Pois a resposta, de fato, não pode ser dada por meio de aforismos
isolados e de reflexões mais ou menos sutis sobre o tema; ela só pode ser
encontrada depois que se obtiver um domínio fundamentalmente filosófi­
co da essência da história e da questão de sua meta e conteúdo espirituais.
Trata-se então, num primeiro momento, de descrever o sentido e a
essência da própria filosofia da história, como ela chegou a essa situação e
às suas misérias. Somente a partir daí se poderão colocar e responder todas
as demais questões.
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Os colaboradores

Daniela Kern

Graduada em artes visuais (UFRGS), mestre e doutora em Letras (PUC-RS)


e doutoranda em história (PUC-RS). Pesquisadora Prodoc/Capes e pro­
fessora colaboradora do PPGAWUFRGS, é autora de E agora nós: poéti­
ca realista versus poética romântica em O Pai Goriot, de Balzac (Edunisc) e
tradutora de A distinção: a crítica social do julgamento, de Pierre Bourdieu
(Edusp/Zouk). Trabalha com história das ideias nas áreas de artes visuais,
letras e história.

François Dosse

Historiador, professor da Universidade de Paris 12, ensina também no


Institut d’Études Politiques de Paris. Pesquisador associado ao Institut
d’Histoire du Temps Présent e no Centre d’Histoire Culturelle des Socié-
tés Contemporaines da Universidade Saint-Quentin-en-Yvelines. Autor
de inúmeros livros fundamentais nas áreas de história das ideias, teoria e
história da historiografia; entre aqueles traduzidos, destacam-se: O desafio
biográfico — escrever uma vida (2009); História e ciências sociais (2004); A
história em migalhas (2003); A história (2003); História à prova do tempo
(2001); O império do sentido (2004); História do estruturalismo (2v.).
486 Lições de história

Helenice Rodrigues da Silva

Professora de história contemporânea e de epistemologia da história na Uni­


versidade Federal do Paraná e bolsista do CNPq. Trabalhou como pesquisado-
ra-associada no Laboratório Communication et Politique do CNRS, em Paris
(França). Publicou Texte, action et histoire — réjlexions sur le phénomène de Yen-
gagement (Paris: LHarmattan, 1995) e Fragmentos da história intelectual — entre
questionamentos e perspectivas (Campinas: Papirus, 2002). Organizou Travessias
e cruzamentos culturais — a mobilidade em questão (Rio de Janeiro: FGV, 2008).

José Carlos Reis

i Professor do Departamento de História da UFMG, doutor pela Université


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Catholique de Louvain (Bélgica, 1992), pós-doutor pela École des Hautes
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Études en Sciences Sociales (Paris, 1997) e pela Université Catholique de
Louvain (Bélgica, 2007). Autor, entre outros, de: As identidades do Brasil 1,
de Vamhagen a FHC (9 ed., 2007); As identidades do Brasil II, de Calmon a
Bomfim (2006); Flistória e teona: histoncismo, modernidade, temporalidade e
verdade (3 ed., 2005), A história, entre a filosofia e a ciência (3 ed., 2004); A
Escola dos Annales: a inovação em história (2 ed., 2004).

Julio Bentivoglio

Mestre em história pela Unesp e doutor em história económica pela USP


Atualmente é professor de teoria e metodologia da história na Ufes, onde
pesquisa a historiografia alemã do século XIX. Traduziu o Manual de teona
jí1 da história de Johann Droysen (2009).

Jurandir Malerba

Historiador, ensaísta e professor da PUCRS. Foi professor visitante nas


universidades de Oxford (Inglaterra) e Georgetown (EUA). Pesquisa nas
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1

áreas de história do Brasil, teoria da história e história da historiografia,
com vários trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Entre seus livros
mais recentes, destacam-se: A história escrita: teoria e história da historiogra­
fia (2006); A independência brasileira: novas dimensões (2006) e (com Carlos
Aguirre Rojas) Historiografia contemporânea em perspectiva crítica (2007). E
OS COLABORADORES 487

autor de A Corte no exílio (2000) e A história na América Latina: ensaio de


crítica historiográfica (2009; em espanhol, 2010).

Leandro Konder

Filósofo, bacharel em direito pela Uerj (1958) e doutor em filosofia pela


UFRJ (1987). Foi professor da UFF e da PUC-Rio. Atuante pensador em
diversas áreas do conhecimento, como filosofia, sociologia, literatura, his­
tória e educação, é autor de inúmeras obras, entre as quais se destacam: A
derrota da dialética; Flora Tristan — uma vida de mulher; uma paixão socia­
lista; Walter Benjamin — o marxismo da melancolia; Fourier — o socialismo
do prazer — vida e obra; O que é dialética; e O futuro da filosofia da práxis.
Escreveu também os romances A morte de Rimbaud e Bartolomeu. Em 2008,
publicou Memórias de um intelectual comunista.

Lilia Moritz Schwarcz

Professora titular no Departamento de Antropologia da USR É autora, entre


outros, de Retrato em branco e negro (1987), O espetáculo das raças (1993:
New York, 1999), As barbas do imperador (1988, Livro do Ano; Prémio Jabu­
ti; New York, 2006; Lisboa, 2006), Racismo no Brasil (2001), A longa viagem
da biblioteca dos reis (2002; Lisboa, 2008), O livro dos livros da Real Biblioteca
(2003) e O sol do Brasil (2008). Coordenou o quarto volume da História da
vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea (1998).

Marcos Antônio Lopes

Doutor em história pela USP e professo): do Departamento de Ciências


Sociais da Universidade Estadual de Londrina. Pesquisador do CNPq (Bol­
sista Produtividade em Pesquisa). Autor de Altas cavalarias: dom Quixote e
seus precursores (2006) e Antiguidades modernas: história e política em Antô­
nio Vieira (2008).

Raimundo Barroso Cordeiro Jr.

Doutor em história social pela Universidade Estadual de Campinas, con­


cluiu sua tese sobre o historiador francês Lucien Febvre em 2000. Atual-
488 Lições de história

mente é professor associado da Universidade Federal da Paraíba e profes­


sor permanente do Programa de Pós-Graduação em História (Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes). Atua na área de história, com ênfase em
historiografia francesa.

Sérgio Campos Gonçalves

Graduado em história e em comunicação social/jornalismo, e mestre em


história e cultura social na Unesp-Franca. É autor do livro Collorgate: mídia,
jornalismo e sociedade nos casos Watergate e Collor (2008).

Sérgio da Mata

Graduado e mestre em história pela UFMG. Doutor em história pela Uni­


versidade de Colónia, Alemanha. Professor adjunto do Departamento de
História da Ufop e membro do Núcleo de Estudos em História da Histo­
riografia e Modernidade dessa mesma universidade. Tem inúmeros artigos
publicados sobre história da historiografia alemã e teoria da história. Co-
organizador do livro A dinâmica do historicismo (2008). Atuou como pes­
quisador convidado no Instituto Max Weber para Estudos em Ciências da
Cultura e Ciências Sociais, da Universidade de Erfurt, Alemanha.

Temístocles Cezar

Graduado em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul


(1988), mestre em ciência política pela mesma universidade (1994) e dou­
tor em história pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Pa­
ris (2002). Bolsista do CNPq. Professor do Departamento de História da
UFRGS, desde 1994, ocupou vários cargos de coordenação em âmbito local
e nacional. Atualmente é diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Huma­
nas da UFRGS (2008). Foi professor convidado de historiografia (directeur
d’études invité) na École des Hautes Études en Sciences Sociales (2005). Tem
vários artigos e capítulos de livros publicados no Brasil e no exterior.

Teresa Malatian

Docente titular do curso de história da Unesp (Franca). Mestre em história


pela PUC-SP e doutora em história social pela USP. Autora de Os cruzados
OS COLABORADORES 489

do império (1990), Oliveira Lima e a construção da nacionalidade (2001) e


Império e missão. Um novo monarquismo brasileiro (2001). História do Brasil
e historiografia são suas principais áreas de interesse de pesquisa.

Tereza Cristina Kirschner

Graduada em ciências políticas e sociais pela PUC-Rio (1971), mestre em


sociologia pela UnB (1974) e doutora em história social pela Université de
Paris 111. Tem pós-doutorado pela Universidade Nova de Lisboa e pela Éco-
le Pratique d’Études en Sciences Sociales (2008). Suas principais áreas de
interesse são: história das ideias na época moderna, historiografia e história
do Brasil (do final do século XVIII a meados do século XIX)

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Como se praticou o ofício de historiador


no longo século XIX?
Os autores aqui reunidos são expressivos de um fazer
historiográfico monumental, e as lições desses mestres
reclamam novo diálogo com sua obra, síne iraetstudio.
Certamente, há muito já fomos além. Só não podemos
apagar a lembrança do caminho percorrido, para nos
situarmos com senso no presente, ante os caminhos
que se abrem a nossa frente.

História e historiadores no séc. XXI François Dosse


Voltaire I Pierre Daunou Daniela Kern
Jules Michelet Lilia MoritzSchwarcz
Chateaubriand I Gabriel Monod Teresa Malatian
Leopold Von Ranke I Gervinus Julio Bentivoglio
Karl Marx Leandro Konder
Thomas Carlyle I Lo rd Ac to n Jurandir Malerba
Thomas Babington Macaulay Sérgio Campos Gonçalves
Louis Bourdeau Marcos Antônio Lopes
Fustel de Coulanges Temístocles Cezar
Ernest Lavisse Tereza Cristina Kirschner \
Charles Seignobos Helenice Rodrigues da Silva
Paul Lacombe Raimundo Barroso Cordeiro Jr.
Henri Berr José Carlos Reis
Ernst Troeitsch Sérgio da Mata
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ISBN 978-85-225-0833-4

í 0. 9 788522 508334


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