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A ÚLTIMA PORTA

Luísa Cedrim

A porta estava fechada. Sempre esteve. Sempre vai estar.


Eu repetia aquilo enquanto tentava ignorar o fato de ter sonhado com uma luz
se esgueirando pela porta do porão. Dez anos depois de pisar pela última vez naquela
casa, cada detalhe ainda bailava vívido na minha mente. Sentada sozinha num quarto
barato de hotel, eu podia lembrar o rangido do terceiro degrau da entrada. Escutava o
vento assobiar pela fresta da porta do porão mesmo sem ter nenhuma entrada de ar lá
dentro. Eu sentia o frio que fazia toda vez que eu passava em frente a ela. Podia inalar o
cheiro de morte que o porão exalava.
Algo me dizia que ter aquela porta na minha mente não era somente um sonho.
Por vinte anos eu sabia que ela estava selada por treze trincos, mas uma noite antes de
mamãe se suicidar, ela surgiu para mim completamente aberta.
Mesmo depois de desligar o telefone, as palavras ditas pela polícia ainda
flutuavam na minha mente: mãe, veneno e suicídio. Desde então, o medo passou a ser
meu fiel companheiro.
O barulho das unhas arranhando a madeira do lado de dentro da porta do porão
continuava a atormentar a minha mente desde quando eu tinha me mudado. Naquela
noite, longe da casa, o ruído açoitou os meus ouvidos e deslizou como um calafrio para
dentro do meu peito, abrindo a represa do pânico. Daquele tipo de terror que se infiltra
em cada veia, em cada músculo e desperta o instinto de que algo ruim vai acontecer.
Como se alguém te observasse em meio à escuridão.
— Inspira. Expira. Inspira, expira. Você não está na casa. Você está num hotel
na beira da rodovia, em segurança, a 150 quilômetros de distância daquele lugar —
conversava comigo mesma — Eu forçava o ar a entrar pelos meus pulmões enquanto
tentava não perceber a cama afundar aos meus pés. Tentava não olhar a imagem opaca
da mulher vestida de branco sentada ali. Os cabelos, escuros como os meus, caíam
molhados pelos ombros magros. Os olhos estavam cinzas e apavorados, fixados em algo
além deste mundo. Era um olhar que eu nunca imaginaria encontrar nos olhos da minha
mãe. As mãos arroxeadas pela morte apertavam o próprio pescoço em agonia. Da boca
aberta não saía nenhum som. Era um grito silencioso, mais aterrorizante que mil vozes.
Entrei em pânico. Eu tentava respirar e não conseguia. Tentava gritar e não podia. A
agonia tomava conta de mim como mil formigas picando todo meu corpo de uma só
vez.
Como um anjo salvador, meu celular vibrou, dissipando aquela imagem. O ar
voltou a entrar e sair pelos meus pulmões e eu pulei da cama. Encostei-me na parede
oposta e fitei o espaço onde mamãe, ou qualquer coisa que fosse aquilo, tinha estado.
Eu não ficaria ali para descobrir se ela voltaria. Joguei minha mochila no banco do
passageiro e obriguei a velha picape a correr pela estrada de volta para casa.
A volta para o inferno, é o que aquele lugar representava para mim.
No caminho, milhares de lembranças me atormentavam. Luto e medo se
misturavam. Mamãe estava morta. A única pessoa que eu tinha no mundo e eu nem
sabia se a havia perdoado. Tínhamos ido para aquela maldita casa quando eu era
criança. Ainda podia ouvir a voz dela me dizendo que escritores só precisavam de um
pouco de paz para as histórias fluírem. Não encontramos lá as suas histórias, tampouco
a paz que ela procurava. Para mim, aquela casa significava abrir mão de amigos, dos
familiares e do meu pai. Tantos anos depois de fugir daquele lugar, eu voltava
justamente para o enterro da minha mãe.
Horas se passaram num piscar de olhos e, quando dei por mim, eu lutava contra
o nó na garganta durante o enterro. As lágrimas borravam a minha visão do caixão,
deixando-me um pouco mais tranquila, mesmo que por breves segundos, de não ter que
encará-lo. Deitada ali, minha mãe não se parecia em nada com o fantasma que eu tinha
visto na noite anterior. Logo o caixão deslizou para a cova. Era cruel admitir que cada
pá de terra jogada me trazia um pouco mais de conforto. Mamãe estava ali, debaixo da
terra, não na minha cama.
Entre os apertos de mão solidários e olhares melancólicos de estranhos,
encontrei os olhos de Marianne. Ela tinha sido minha única amiga depois de nos
mudarmos para aquele fim de mundo. Ela se aproximou e ficou ali, ao meu lado,
segurando a minha mão até que tudo terminasse e todos fossem embora.
Olhando de soslaio para Marianne, lembrei de quando nos conhecemos. Era o
final da manhã quando ela estava na estrada e eu voltava da escola. Conversamos
durante o caminho até a minha casa e, no dia seguinte, lá estava ela no mesmo lugar
com uma tiara de flores para mim. Ela era uma garota de doze anos que mostrava os
dentes grandes e tortos ao sorrir. Adornava a própria cabeça com uma coroa de flores
brancas colhidas na floresta. Os cabelos estavam sempre bagunçados. Era o início da
nossa amizade que duraria os doze anos que passei naquele tormento.
Hoje, Marianne me aconselhou a voltar para a casa, tomar um banho e dormir.
Mas eu não estava com sono nem queria pôr meus pés de volta naquele lugar, sabendo
que eu teria que empacotar tudo, se realmente quisesse vender a propriedade. Eu queria
esquecer a noite anterior, a fresta de luz saindo da porta, aquele caixão e,
principalmente, os olhos cinzas de mamãe me encarando no escuro.
Depois do sepultamento, dirigi sozinha pela estrada abandonada até a velha
casa, que jazia como um túmulo, inerte ao tempo, no meio do nada. As janelas me
observavam como olhos famintos e eu sentia a porta me convidando a entrar como a
boca de uma serpente, sedenta pela vida de quem se aproximasse.
Sentei-me apreensiva e aterrorizada, olhando da picape estacionada na frente
da casa. Não queria entrar, mas ficar no meio da floresta à noite seria pior, admiti. Reuni
o máximo de coragem e subi as escadas. Os degraus de madeira rangeram. O filtro de
sonhos com pedras azuis, feito por mim e Marianne quando éramos crianças, gemia
com o balançar do vento frio. Uma tempestade se aproximava. Girei a chave e a
maçaneta rilhou.
Dentro da casa tudo estava como sempre. Era como voltar no tempo. Lá jaziam
os móveis antigos empoeirados, o lustre com várias lâmpadas queimadas, os quadros de
gente morta que pareciam nos espiar. É só uma droga de casa velha, eu repetia enquanto
subia as escadas e entrava no quarto de mamãe. Uma foto dela repousava sob a
escrivaninha e eu a observei por um momento. Havia tantas coisas entre nós que nunca
foram ditas… Lembrei do fantasma e de como ela parecia querer me dizer algo. Afastei
os pensamentos à força. Se não me falou antes, eu não queria mais ouvir, agora ela
estava morta.
Inspirei fundo e prendi o cabelo num rabo de cavalo. Abri a caixa de papelão e
comecei o trabalho: tudo que fosse pessoal iria para um galpão. Manuscritos
inacabados, fotos, roupas. Uma urgência em sair daquela casa latejava dentro de mim e
eu não queria ignorá-la. Quando comecei a descer as escadas para ir embora, percebi
algo sombrio, como se o meu mais profundo instinto dissesse que tudo estava errado,
muito errado.
Desci degrau por degrau tentando não olhar para a porta do porão, mas era
impossível. Ela estava lá, como um ímã, atraindo meus olhos. Um calafrio tomou conta
de mim.
Em frente à porta, a figura fantasmagórica que me perseguia olhava
diretamente para mim. Mamãe tinha novamente as mãos em volta do pescoço. Da boca,
o grito mudo e aterrorizante que insistia em não sair. Os olhos dela estavam presos ao
meu. Aqueles olhos cinzas.
Minhas mãos congelaram e meu coração disparou. As caixas caíram num
baque surdo. Um frio tomou conta de mim e minhas pernas começaram a tremer. Ela
estava ali. Ela estava ali novamente. Tão rápido quanto chegou, o tremor me atingiu em
cheio como um soco no estômago e eu perdi o equilíbrio. Mil vozes que pareciam sair
dos inúmeros quadros ecoaram, ordenando:
— Vá embora.
Tentei segurar no corrimão da escada, mas não consegui conter a força que
empurrava meu peito e caí. Antes mesmo de perder os sentidos, vi Marianne correr em
meu socorro. Depois disso, tudo ficou escuro.
Quando acordei, Marianne sorriu e ajudou a me recompor. Explicou que tinha
ido até lá, sozinha e à noite, só para ver se eu estava bem. Perguntou se eu tinha comido
e supôs que a falta de alimentação teria sido a causa do meu desmaio. Mas eu sabia que
não era fome, só não queria preocupá-la. Ela era uma boa amiga, no meio daquele
inferno que sempre foi estar isolada de tudo. Tinha me ajudado a escrever as cartas que
minha mãe nunca enviara para o meu pai. Tinha subido pela varanda e dormido ao meu
lado, nas noites de tempestade. Hoje, ela estava mais pálida que o normal, com olheiras
emoldurando os olhos escuros. Provavelmente de preocupação comigo. Talvez até
tivesse chorado a morte de mamãe. Quer dizer o seu suicídio. — uma voz amarga na
minha cabeça me corrigiu.
Mais tarde, sentadas na minha antiga cama, Marianne fez uma trança no meu
cabelo, como costumava fazer quando éramos crianças. Se eu não estivesse tão
perturbada com a imagem da minha mãe, que insistia em pairar na minha cabeça,
poderia ter notado o toque excessivamente frio dos dedos dela nas minhas costas. Mas a
única coisa que eu sentia era que havia alguém nos observando.
Como se toda a tristeza não pudesse se conter dentro de mim, explodi em
lágrimas contando tudo o que havia acontecido desde que eu recebera a ligação falando
do suicídio. Tão forte quanto à tempestade que caía lá fora, as palavras foram
despejadas da minha boca. Os olhos cinzas, as aparições de uma mãe fantasma, a falta
de uma voz, a ordem que eu havia recebido de sair da casa. Se eu não estivesse tão
aflita, teria visto o olhar sombrio de Marianne fixos em mim através do espelho. O olhar
que continha todo o mal.
De súbito, Marianne me agarrou pela trança e bateu minha cabeça no assoalho
do quarto. O sangue escorreu viscoso e quente, borrando a minha visão. A dor latejava
nas minhas têmporas. As forças pareciam ter ido embora e meus braços não respondiam
aos meus comandos. Eu tentava engatinhar e não conseguia. Que diabos estava
acontecendo? Por que ela estava batendo em mim?
Marianne tomou distância, com um sorriso diabólico pintado em seu rosto
outrora tão angelical. Tentei me arrastar até a cama. Do chão e com a visão turva, eu
podia ver a barra clara do vestido dela roçar em seus pés que, de tão alvos, quase eram
roxos. Meu coração parou por um segundo ou dois ao notar que eles não encostavam no
chão. Marianne estava flutuando com os braços abertos. Seus olhos estavam cinzas
como a névoa que rodeava a casa durante as noites de frio. Dentro deles, eu podia ver
todo tipo de horror.
E então, eu lembrei.
Lembrei das noites escuras em que eu, ainda criança, sentava-me sozinha na
cama esperando que o som da chuva fosse mais alto do que as vozes que gritavam na
minha mente. Lembrei dos olhos de Marianne me encarando em cada espelho da casa.
Lembrei do sussurro dela atrás do meu ouvido enquanto eu tentava ler um livro. Não
tínhamos feito juntas o filtro dos sonhos, nem as cartas, nem as coroas de flores. Eu
tinha feito sozinha. Lembrei de mamãe dizendo que Marianne não era real.
Não era do fantasma de mamãe que eu deveria ter medo, era de Marianne.
Talvez fosse isso que ela estivesse tentando me falar. A garota morta no meu porão. A
garota que arranhava a porta à noite me convidando a libertá-la.
Ela me encarou e uma onda de lembranças que não eram minhas também me
invadiu. Enxerguei pelos olhos de Marianne. Lembrei dos seus cabelos balançando na
noite fria enquanto seu corpo pendia inerte, naquele porão. Lembrei de cada tortura que
ela tinha sofrido em rituais macabros por anos. Lembrei dela morrendo, de cabeça para
baixo, vertendo o sangue pela boca e dos jogos que seu espírito maligno fez com a
mente perturbada de mamãe. Assisti à forma como ela desequilibrou o pouco de
sanidade que restava na cabeça de mamãe até a coitada achar que o suicídio seria a
melhor alternativa. Agora, Marianne me queria.
A adrenalina do terror tomou conta de mim e senti em cada músculo a torrente
de energia. Levantei-me, ainda tonta, e corri para fora do quarto. Milhares de vozes
confessavam coisas horríveis sobre as mortes que haviam acontecido naquela casa. Eu
sentia cada mão, cada pedido de ajuda segurar meu corpo. Cheguei à porta de entrada e
ela estava trancada. A maçaneta não girava. Dei socos, tentando desesperadamente sair,
mas a madeira nem se abalou. As vozes ficavam mais altas, latejando nos meus ouvidos.
Virei e deparei com Marianne vindo ao meu encontro. Os cabelos suspensos no ar. Da
boca, escorria um sangue escuro.
Gritei com toda força e corri para a cozinha. A saída dos fundos também estava
fechada e não parecia nem próximo de ceder às minhas investidas. Girei, em busca de
uma alternativa, e encontrei a porta do porão. Aquela maldita porta estava aberta. Cada
tranca. Cada maldita tranca estava destravada. Marianne e todos os outros doze espíritos
que estavam presos naquele porão agora estavam soltos, para sempre.
De repente, todas as vozes cessaram e o silêncio foi ainda mais aterrorizante.
Atrás de mim, Marianne continuava a flutuar e a me encarar com aqueles olhos vazios.
A névoa neles cedia lugar a uma escuridão profunda enquanto eu sentia minha alma se
despedaçando.
Encurralada entre o porão e Marianne, fiquei paralisada. A cada centímetro que
ela se aproximava, meu coração batia mais forte. A fisionomia dela era de uma tristeza
gélida, quase ensaiada.
— Lilian, querida. Eu posso explicar. Não era para sua mãe ter se matado. Era
para ela ter entrado no porão e tomado o meu lugar. Eu estaria livre para ir embora com
você. Você prometeu que seríamos amigas para sempre.
— Você é um demônio!
Ela abriu o sorriso com expressão maníaca. Sua voz era como a de uma
criança, mas cheia de uma doçura maquiavélica.
— Eu amo você, Lilian. Vem ficar comigo no porão.
— Me deixe em paz! — Gritei com o resto de minhas forças que havia em
mim.
— É tarde demais.
Aos poucos, os olhos dela foram escurecendo, até que se tornaram
completamente negros. Senti a minha alma sendo sugada para dentro de Marianne. Ela
era o porão em toda sua perversidade. Agora ela estava livre e eu presa àquele mundo
de maldade. Assim como seus olhos, como aquele porão, tudo ficou escuro. O vazio me
preencheu.
Eu, que sempre fugi daquele lugar, fiquei presa dentro do porão.
A porta abriria. Ela já abriu várias outras vezes. Eu tinha a certeza que alguém
viria até mim. Não importava o tempo que passasse, eu esperaria.
Enquanto isso, eu deslizava minhas unhas pela madeira escura e sussurrava por
trás dos ouvidos alheios só por diversão.
Você me ouve?

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