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EDIÇÃO 98 | NOVEMBRO_2014
questões cênicas
O RADICAL
Como Roberto Alvim faz teatro
MICHEL LAUB
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O dramaturgo Roberto Alvim e o radicalismo no teatro 17/01/2020 10'46
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O dramaturgo Roberto Alvim e o radicalismo no teatro 17/01/2020 10'46
“Toda obra de arte é enigma, e o enigma tem infinitas respostas”, diz o diretor Roberto Alvim, com sua característica
alternância de ênfase, jargão, coloquialidade e, às vezes, ironia FOTO: LENISE PINHEIRO_2014
N
uma segunda-feira de abril último, na saída do espetáculo de
encerramento da temporada de Tríptico Samuel Beckett no
Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, entrei na van
que transporta os espectadores do calçadão onde fica o teatro até um
ponto menos deserto, onde é possível pegar um táxi. A temporada
havia sido um sucesso, enchendo os 125 lugares do CCBB durante
três meses e reunindo de estudantes, artistas e plateias
intelectualizadas a, bem, os meus companheiros de viagem. Um
deles, um senhor com roupas, penteado e linguagem do típico
frequentador do chamado teatrão – outro nome para espetáculos de
tom digestivo e consumo rápido –, perguntou a uma senhora
igualmente estereotipada o que ela havia achado da peça, baseada nas
três obras derradeiras do escritor irlandês. “Bárbara”, ela respondeu.
“Pena que eu não entendi nada.”
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figura pública de Alvim pode sugerir pistas equivocadas. De
sua página no Facebook, repleta de adjetivos e caixas altas
apaixonadas, materializa-se o que seria o clichê do artista
verborrágico, defensivo e paranoico, uma metralhadora
permanentemente disparada pelo rancor de ser pouco reconhecido.
Sobre a crítica Barbara Heliodora, ele escreveu: “Extremamente
limitada, de uma ignorância profundamente arraigada.” Sobre o
diretor Gerald Thomas: “Doente mental […] que inventa ódios pra
gastar seu tempo de angústia estéril.” Sobre o diretor de musicais
Cláudio Botelho: “SEMPRE que sai uma matéria no jornal O Globo a
meu respeito ele expõe seu fel com uma agressividade cativante.”
Sobre uma coluna de Suzana Singer, ex-ombudsman da Folha de
S.Paulo, que defendia uma atenção maior da cobertura do jornal a
espetáculos de linguagem acessível: “É a derrocada da inteligência no
jornalismo… A proliferação do mercantilismo absoluto.” E,
finalmente, sobre alguns de seus leitores: “Me ameaçaram até de
morte hoje, aqui… É triste. Uns caras que ENTRAM no meu mural
pra xingar, desqualificar, fazer provocações mal-intencionadas… Mas
vamos em frente. Nosso interesse é unicamente a criação de mais e
melhores obras de arte.”
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imóvel que abriga o Noir tem 300 metros quadrados, e os
custos fixos ficam em torno de 9 mil reais por mês. É uma soma
razoável para quem promove apresentações gratuitas ou cobra
20 ou 30 reais por ingresso, com direito a meia-entrada, num teatro de
cinquenta lugares. Para aumentar a receita, o diretor e Juliana
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s ensaios de Terra de Ninguém ocorreram no Club Noir, de
segunda a sexta, inicialmente em sessões de quatro horas cada.
Compareci a dezenove desses encontros. Nos primeiros, Alvim
se mostrou um diretor paciente, empregando um tom gentil com
todos, de expressões como “vamos fazer o seguinte”. Às vezes, um
curioso “senhor” é usado no trato direto, denotando mais carinho ou
ironia que autoridade ou condescendência. Quando queria chamar a
atenção de um ator, levantava e ia até ele, falando tão perto e num
volume tão baixo, às vezes sussurrado, que mesmo a poucos metros
de distância não era possível entender o que era dito.
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ergunto por que Alvim mudou tudo, e ele diz que achou “arrastada”
a versão original. “Cheguei 100% convicto de que iríamos por
aquele caminho, mas por experiência sabia que eu jogaria tudo
fora.” A aparente contradição faz parte do que o diretor
chamaria, dali para a frente, de “jogo”: algo que começa, como numa
partida de sinuca, com a primeira tacada (a ideia inicial) e o
consequente e imprevisível movimento das bolas. Por enquanto, o
que importa é transmitir aos atores o entusiasmo pelo projeto, ganhar
a confiança e o envolvimento deles, dar o tempo necessário para que
todos entendam mais profundamente “o que se está fazendo na sala
de ensaio”.
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parcimoniosos dos atores, ênfase nas palavras, textos fragmentados
e/ou irredutíveis a um sentido fechado – para tanto, a
colaboração de Juliana e seu domínio virtuoso da voz foi
essencial. Em termos gerais, a pesquisadora e professora da
USP Silvia Fernandes situa a proposta do grupo numa tradição
“antiteatral”, que vai de encontro aos aspectos “espetaculares” da
encenação. A valorização da palavra “não como significado,
conteúdo, mas como sonoridade, movimento” tem origem possível
nos simbolistas da virada para o século XX, em especial o belga
Maurice Maeterlinck, e deságua em encenadores contemporâneos
como o francês Claude Régy.
C
omo todo artista que rejeita estéticas aceitas e reconhecíveis,
buscando uma inovação constante que pode beirar a utopia,
Alvim frequentemente cria e difunde uma interpretação sobre
si mesmo. De propósito ou não, os textos que escreve acabam
funcionando como defesa. Uma das críticas comuns ao Noir é a de
que o rigor formal das peças sacrificaria a comunicação com o público
(Dirceu Alves Jr., da Veja, sobre Amante, baseada em Marguerite
Duras, 2012). Ou a emoção em cena. Ou a “dimensão metafísica e
política” de certos textos (Jefferson Del Rios, do Estadão, sobre Tríptico:
Richard Maxwell, baseada no dramaturgo americano homônimo,
2010). Além disso, claro, há os ataques que soam como uma disputa
por espaço. O bate-boca com Cláudio Botelho, que dirige produções
de grande bilheteria mas pouca atenção crítica, começou com um
comentário deste sobre um “sujeito” do circuito “alternativo do
alternativo” que faria um “teatro feito para ninguém ir”. Gerald
Thomas, por sua vez, misturou o que via como omissão dos colegas
diante dos bombardeios a Gaza em agosto e o “provincianismo” da
classe, que “discute (é inacreditável) (AINDA) o teatro de Bob
Wilson” [Alvim tinha feito isso poucos dias antes] e “descobre a
PÓLVORA com décadas de atraso”, pois “Beckett pra mim é coisa do
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m Terra de Ninguém, há algo dessa descrença numa
individualidade acima ou além do que ela consegue expressar.
“Os personagens não são sujeitos”, diz Alvim. “Nós somos
linguagem. Quando muda o que é dito, muda o personagem, sua
história, suas motivações, até seu nome.” É claro que um arcabouço
teórico dessa espessura, certamente interessante no diálogo entre
artista e crítica, de nada vale se não transmitir algo relevante ao
público. Outro engano possível sobre o diretor é achar que se trata de
alguém paralisado por uma doutrina, sem vocação para traduzi-la na
prática dos ensaios ou dela fugir se necessário. Na verdade, o
processo é o inverso: “Eu gosto de dar aula, de pensar o teatro em
termos teóricos. Mas isso vem depois da prática, é uma conceituação
e sistematização de coisas que descobrimos durante o processo,
experimentando, senão vira um mero programa estético, um
panfleto.”
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m Terra de Ninguém, a chave para superar o desafio desse novo
ambiente está – sempre estará – na singularidade. Na guinada
do primeiro ensaio, porque o planejado não se afinava com o
resultado concreto, Alvim descartou alguns dos elementos (atores
imóveis, por exemplo) que seriam típicos do Noir. Precisei me
ausentar por dez dias a partir da quarta semana, e ao voltar a
abordagem tinha mudado pela segunda vez: a abertura perdera
vários de seus elementos – o cigarro aceso antes da primeira fala, os
copos servidos várias vezes – e ficara sóbria. Havia menos
deslocamentos. A atuação de Luisi, antes bastante emocional na
primeira cena, estava mais contida. Numa passagem com Caco
Ciocler, cerca de dez gestos se condensaram em três. Cortes súbitos e
vinhetas sonoras de agulha arranhada – a versão 2014 dos silêncios
pinterescos –- foram introduzidos. Depois de momentos de escuridão,
atores reaparecem em outra posição falando em outro tom. É como se
houvesse uma reaproximação da ideia original, mas sem os
penduricalhos conceituais – o tal “espelho quebrado” – que tornavam
muito visíveis os andaimes da opção minimalista.
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qui entra a etapa seguinte do “jogo”. Já há o “entendimento
primário” do que se pretende, o entusiasmo que se buscava, a
confiança no diretor, então é hora de dar o salto. Para Alvim,
isso significa que os atores agora vão “fazer o que eu mando”. A
postura do diretor muda. Com alguma intimidade/liberdade de trato
instalada, suas interferências passaram a ser menos sutis, às vezes
ríspidas. “Se você gritar no primeiro dia de ensaio, a peça não estreia.
Eles rescindem o contrato e vão embora. Grito só no fim do processo,
quando ninguém mais tem escapatória.”
Alvim ri ao dizer isso. É outro traço seu. Nas poucas vezes em que o
vi bravo nas primeiras semanas, uma rápida explosão era seguida por
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redita-se ao dramaturgo e cineasta David Mamet a seguinte
frase: “A única coisa que se pode fazer ao trabalhar com astros
é marcar a peça, deixar todos soltos e rezar para que tudo
termine bem.” Alvim escreveu a respeito em seu Facebook, depois de
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“de forma muito fácil” para Luisi). Com Ciocler, a divergência seria
quanto ao entendimento: “Ele acredita que exista um personagem,
quando nunca houve personagens. Aí surgem aquelas falsas
questões: ‘O que o meu personagem está sentindo nesta hora?’ A peça
não é isso. É um conjunto de signos articulados para promover efeitos
na sensibilidade da plateia. É como olhar para um quadro de Munch:
você se emociona com aquela forma, mas existe alguém ali?”
É
difícil dizer o que é interpretar bem. Luisi considera que a
“intuição” vem das reações que surgem – às vezes sem motivo
aparente – de uma determinada passagem do texto. Moutinho
acredita em algo que parece óbvio, mas não é: “O personagem
interpretado por uma pessoa precisa ser diferente do interpretado por
outra.” Cada ator achará seu caminho nesse labirinto subjetivo. Na
história do teatro há teorias e métodos que buscam naturalidade e
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e avaliar atuações é subjetivo, isso é ainda mais acentuado
quando se está presente nos ensaios. Meu distanciamento fica
comprometido não só porque perco a chance de me surpreender
com o trabalho pronto – ao assistir à estreia, já sabia o que ia
acontecer e tinha na memória versões com menos rigor e impacto –,
mas porque é inevitável ter algum envolvimento com o processo.
Torci para que as coisas dessem certo, mesmo sem ter saído desses
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erra de Ninguém estreou dia 19 de setembro, uma sexta-feira, às
21 horas. Por causa de um evento no Sesc, o palco só foi liberado
para ensaios 48 horas antes. É muito pouco para se adaptar as
medidas, acústica e interações com os itens da cenografia (Luisi:
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Alvim tinha brincado que gritaria “só com os técnicos” nestes últimos
momentos, “para manter todo mundo com a orelha em pé, mas sem
botar pressão no elenco”. A promessa foi solenemente descumprida, e
ele gritou (muito) com todos: “Tá muito flat!”, “Não tem amarelo
aqui!”, “De onde apareceu esta porra?” Eu estava a poucos metros
dele, e podia ouvi-lo respirando alto e resmungando para si mesmo.
Ao final, reuniu todos no palco e passou uma descompostura.
Reclamou do baixo “índice de vertigem” e encerrou dizendo que se
podia cometer qualquer pecado, “menos o do tédio”. A bronca surtiu
efeito: a segunda passagem, que terminou quinze minutos antes das
21 horas, o que é temerário quando o próprio Alvim considera uma
hora o tempo ideal de descanso para os atores (houve um atraso de
quinze minutos por conta disso), foi quase perfeita. Só pequenos
ajustes e uma baixa: a descida dos bonecos foi cancelada.
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s críticos que ouvi para esta reportagem – Jefferson Del Rios,
Valmir Santos, Helio Ponciano e Gabriela Mellão, além de
Silvia Fernandes e Luiz Fernando Ramos – foram unânimes em
apontar a diminuição do espaço (ou da repercussão) de sua atividade,
justamente quando a cena teatral paulistana vive um bom momento.
São cerca de setenta peças em cartaz a cada semana na capital, de
musicais milionários a espetáculos de pesquisa rigorosa, o que nos
últimos anos revelou grupos como Hiato, XIX de Teatro, Os Fofos e
Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Para Santos, que edita com
Maria Eugênia de Menezes o blog Teatrojornal, a discussão sobre a
área na internet não está “consolidada” como no cinema, música,
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Sesc isso ocorreu porque ‘certas convenções são difíceis de combater’]. Não é
nem sobre o público, se estivermos falando de público como
representação do senso comum. O espetáculo é sobre as forças que
habitam a obra, e sobre a singularidade da formalização cênica.” Mas
onde entra o aspecto pessoal nisso? É óbvio que estou conversando
com um ser humano, e não apenas com um artista, e o elogio
hipotético ao último fatalmente se confunde com o primeiro. Alvim
rebate: “Como pessoa, sou péssimo como todo mundo. Sou narcisista,
autocentrado. Se alguém disser que sou bonito, claro que gosto. Mas
sei onde essa reação está localizada. Não é no mesmo lugar que as
minhas reações a uma obra de arte. Por esta eu tenho um amor talvez
patológico, que não sei explicar, porque não se explica o amor, e que
me protege contra esta neurose.”
U
ma pessoa que conhece bem o diretor, cujo nome não aparece
neste texto, disse ver nele a “pureza da loucura”, que tiraria a
vaidade de seu patamar previsível, banal. Por trás da
disposição infinita em defender ideias estéticas, haveria uma espécie
de fé. Alvim tem tatuagens com referências ao Gênesis e ao lema dos
jesuítas, e pergunto se ele acredita num Ser Supremo. Ele ri: “O
senhor não está aqui na minha frente?” (O senhor, aparentemente, sou
eu, não O Senhor.) Deus seria “o outro” com quem se quer dialogar nas
peças: “Não é a persona, o conjunto de idiossincrasias que faz a
personalidade de alguém. O outro é o nada que brilha em você
porque você está vivo. Você pode chamar isso de inconsciente, de
alma, do que quiser.”
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arte. O que tenho a dar é amor – pelos atores, pelas 600 pessoas que
estarão lá, por esta peça. E o amor não é delicado. É violento, é a
espada. Quando isso é compreendido, em geral depois da estreia, eles
me agradecem.” Com uma ponta de ironia, ele segue: “Tudo tem de
ser 100%. Fazer menos desdignifica o teatro e a própria espécie
humana. Não somos a imagem e a semelhança de Deus? E Deus não é
perfeito?” Mesmo que o teatro seja essencialmente precário, e
que Terra de Ninguém só possa sobreviver aos anos nos fiapos
manipulados das memórias de cada um, a profissão aqui é a de um
perfeccionismo que, se por um lado contradiz essa fugacidade, por
outro a aceita e faz dela uma arma: “Sou casado com a Juliana há dez
anos, e o que eu sei dela? Nada. E pouco importa. Somos uma
miríade de potências que estão sendo atualizadas aqui e agora. A arte
é um instrumento para conseguir isso da maneira mais forte. E isso é
muito maior que você, muito maior que o Roberto Alvim.”
N
os próximos anos, o resultado de tamanha convicção sofrerá
uma espécie de teste. Tudo o que foi dito aqui aponta para a
mesma conclusão: Alvim já transcendeu o pequeno circuito no
qual se tornou conhecido. Aos poucos, nomes como o seu projetam
um futuro em que as principais referências do teatro em São Paulo
deixarão de ser a trindade – Zé Celso, Antunes Filho e Gerald Thomas
– que as vem monopolizando há décadas. Não haveria o risco de
institucionalizar-se nesse processo, ou mesmo virar símbolo de um
radicalismo de estimação? O mesmo que leva minha companheira de
van ao fim de Tríptico Beckett a achar “bárbaro” um texto que faz
fronteira com o ininteligível? “No horizonte contemporâneo, o único
destino fatal é se tornar uma marca”, diz Alvim. “Antes de isso
acontecer, você não é visto. Se acontece, você continua não sendo
visto.”
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Mas você não pensa em fazer algo diverso do que tem feito? “Às
vezes, claro. Montar uma ópera num teatro gigantesco, como no caso
de Artemis, ver o que dá para criar a partir disso, abrir novos
caminhos. Só que, no fim das contas, eu sou o meu sintoma, e acabo
sempre criando obras dentro do mesmo sistema estético.” E
independentemente das exigências do espaço? “Posso entrar na sala
de ensaio pensando que, o.k., vocês têm razão, vou fazer algo
diferente. Mas em algum momento o seu inconsciente, o seu sintoma,
não deixa. Você olha para o gesto de um ator e algo grita que aquilo
está errado, e as coisas tomam a forma que é a sua. Se meu ponto de
apoio fosse uma questão de mercado, a Lady Gaga ou a Madonna
dizendo que acabou a fase gótica porque agora o povo quer o estilo
puta, seria fácil. Não é o meu caso.” Numa conversa três semanas
depois da estreia de Terra de Ninguém, Ramos considerou que Alvim
se saiu bem no desafio de “montar algo grande, luxuoso”, e o
resultado foi “um Pinter como ninguém havia feito no Brasil”.
D
urante a temporada, o desafio para um diretor é evitar que, sem
as tensões da pré-estreia, o espetáculo se ressinta de um certo
relaxamento. Numa prática rara no meio teatral, Alvim obriga
os atores a ensaiar a peça antes de cada apresentação, o que pode se
estender por longos e cansativos meses. Aos 85 anos, Nathalia
Timberg cumpriu a orientação em Tríptico Beckett. Comento sobre o
chavão de que na segunda noite haveria menos concentração que na
primeira, gerando um resultado pior. “Isto me causa repugnância”,
ele se irrita. “Quem estabelece essas lendas? Cada apresentação tem
de ser melhor que a anterior. Eu não compactuo com esta classe
artística medíocre, que usa essas desculpas para justificar seus
fracassos.”
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São tantas variáveis a cada noite que concordo com o que pode soar
como boutade de Alvim: “A teoria da recepção é uma bobagem. Não
controlo nem o processo de criação, quanto mais a forma como um
indivíduo reage a ela.” Diante dessa subjetividade também radical,
para quem um diretor faz teatro? “Otimistamente para os 30% que
têm a mente aberta para dialogar, para serem atravessados por
aquilo.” E por que você faz teatro? “Para convidar as pessoas a
trilharem caminhos desconhecidos.” É preciso que elas entendam que
caminhos são esses? “Se uma peça se resumir a isso, fica estúpida,
banal. Saber como funciona o motor de um carro é apenas saber como
funciona o motor de um carro. Quando você está fazendo sexo, não
olha para o outro e diz: ‘E aí, está entendendo?’ O que eu disser a
respeito só servirá para mostrar como sou inteligente e erudito. Nada
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O dramaturgo Roberto Alvim e o radicalismo no teatro 17/01/2020 10'46
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