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O dramaturgo Roberto Alvim e o radicalismo no teatro 17/01/2020 10'46

EDIÇÃO 98 | NOVEMBRO_2014

questões cênicas

O RADICAL
Como Roberto Alvim faz teatro
MICHEL LAUB

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“Toda obra de arte é enigma, e o enigma tem infinitas respostas”, diz o diretor Roberto Alvim, com sua característica
alternância de ênfase, jargão, coloquialidade e, às vezes, ironia FOTO: LENISE PINHEIRO_2014

N
uma segunda-feira de abril último, na saída do espetáculo de
encerramento da temporada de Tríptico Samuel Beckett no
Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, entrei na van
que transporta os espectadores do calçadão onde fica o teatro até um
ponto menos deserto, onde é possível pegar um táxi. A temporada
havia sido um sucesso, enchendo os 125 lugares do CCBB durante
três meses e reunindo de estudantes, artistas e plateias
intelectualizadas a, bem, os meus companheiros de viagem. Um
deles, um senhor com roupas, penteado e linguagem do típico
frequentador do chamado teatrão – outro nome para espetáculos de
tom digestivo e consumo rápido –, perguntou a uma senhora
igualmente estereotipada o que ela havia achado da peça, baseada nas
três obras derradeiras do escritor irlandês. “Bárbara”, ela respondeu.
“Pena que eu não entendi nada.”

Um mês e meio depois, o diretor de Tríptico Beckett, Roberto Alvim,


promove uma reunião com a equipe que trabalhará em seu novo

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projeto: a encenação de Terra de Ninguém, do inglês e prêmio Nobel


Harold Pinter. O elenco é formado por Luis Melo, Edwin Luisi, Caco
Ciocler e Pedro Henrique Moutinho. Enredo: quatro homens – dois
de 60, um de 40 e um de 30 – se reúnem num fim de noite. Pouco se
sabe sobre eles. São amigos? Amantes? Alguém fala a verdade ou é
tudo um jogo cruel de aparências? Como é comum em Pinter,
percebemos que acontece algo de errado, mas não identificamos o
que seja. Um dos temas possíveis é a morte, aqui tratada de modo
alusivo e sob diferentes pontos de vista – o da juventude, o da
velhice, o de quem fez sucesso social e material, o de quem fracassou.
Tudo é incerto no palco, até os nomes e as identidades dos
personagens, que mudam e confundem o espectador. John Gielgud, o
ator inglês lendário, que nos anos 70 integrou a primeira montagem
da peça, declarou à época: “As pessoas ficam desesperadas para saber
do que trata o texto. Acho que nem eu sei.” Já Pinter dizia que um
personagem do qual não se conhece “a experiência passada, o
comportamento presente ou as aspirações” é tão legítimo quanto um
que, “alarmantemente”, oferece isso tudo.

Para Roberto Alvim, juízos do gênero são inevitáveis. “Toda obra de


arte é enigma, e o enigma tem infinitas respostas”, ele diz, com sua
característica alternância de ênfase, jargão, coloquialidade e às vezes
ironia. “Isto é diferente de ser hermético, impenetrável, porque aí
você desiste da obra. Um artista tem a obrigação de criar signos que
induzam as pessoas a procurar seus múltiplos significados.” Na
apresentação da equipe, após café, pães de queijo e uma rápida
leitura em voz alta da peça, o diretor ouviu opiniões sobre o texto.
Edwin Luisi contou que mesmo depois de quatro leituras continuava
“confuso”. Houve um debate sobre o tom (pomposo ou poético) de
algumas palavras. Sobre as pausas (dramáticas ou cômicas) entre elas.
Sobre o tempo da ação (o que é presente e o que é passado) e o caráter
dos homens em cena. A seguir, Alvim tomou a palavra: discorreu
sobre o modernismo, a natureza do silêncio no autor inglês, a
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correspondência que trocou com ele, psicologia, política, literatura,


física, história da arte e a impossibilidade de relatarmos com precisão
a experiência. Anunciou que a abordagem do espetáculo seria
“sensorial, não intelectual”. A intenção não era fazer “narrativa
fechada”, e sim criar “instabilidade”. O espectador seria convidado a
“entrar num trem fantasma”.

A
figura pública de Alvim pode sugerir pistas equivocadas. De
sua página no Facebook, repleta de adjetivos e caixas altas
apaixonadas, materializa-se o que seria o clichê do artista
verborrágico, defensivo e paranoico, uma metralhadora
permanentemente disparada pelo rancor de ser pouco reconhecido.
Sobre a crítica Barbara Heliodora, ele escreveu: “Extremamente
limitada, de uma ignorância profundamente arraigada.” Sobre o
diretor Gerald Thomas: “Doente mental […] que inventa ódios pra
gastar seu tempo de angústia estéril.” Sobre o diretor de musicais
Cláudio Botelho: “SEMPRE que sai uma matéria no jornal O Globo a
meu respeito ele expõe seu fel com uma agressividade cativante.”
Sobre uma coluna de Suzana Singer, ex-ombudsman da Folha de
S.Paulo, que defendia uma atenção maior da cobertura do jornal a
espetáculos de linguagem acessível: “É a derrocada da inteligência no
jornalismo… A proliferação do mercantilismo absoluto.” E,
finalmente, sobre alguns de seus leitores: “Me ameaçaram até de
morte hoje, aqui… É triste. Uns caras que ENTRAM no meu mural
pra xingar, desqualificar, fazer provocações mal-intencionadas… Mas
vamos em frente. Nosso interesse é unicamente a criação de mais e
melhores obras de arte.”

O engano ocorre, em primeiro lugar, porque não falta reconhecimento


a Alvim. Suas peças foram encenadas em países como França,

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Alemanha, Espanha e México. Ele é um dos poucos brasileiros


publicados na Les Solitaires Intempestifs, uma cultuada coleção
francesa de dramaturgia contemporânea. Na crítica nacional, há
menções constantes a seu trabalho. “Um dos diretores mais
provocativos da nossa atualidade”, escreveu Marici Salomão na
revista Sala Preta. Na Cult, Welington Andrade chamou Tríptico
Beckett de “experiência cênica que não faz concessões”, “austero em
sua moldura, fervilhante no que põe em tela”. Na Folha de S.Paulo,
Luiz Fernando Ramos considerou a montagem de Aqui (2012), de
Martina Sohn Fischer, um “acontecimento extraordinário na
dramaturgia brasileira contemporânea”, e a série Peep Classic
Ésquilo (2012), com as sete tragédias do autor grego, “um projeto
ambicioso que, realizado, aproxima o teatro da grande arte”.

Também dramaturgo bissexto, encenador e professor-associado do


Departamento de Artes Cênicas da ECA/USP, Ramos talvez seja
quem mais vem acompanhando e elogiando a carreira do diretor –
julga-o o mais talentoso (junto com Georgette Fadel, da Cia. São Jorge
de Variedades) de uma geração de artistas hoje pouco acima dos 40
anos. Nascido no Rio, em 1973, Alvim estudou na Casa das Artes de
Laranjeiras e começou a aparecer ao lado de nomes como Enrique
Diaz (Companhia dos Atores). Sua trajetória na capital fluminense
incluiu montagens/adaptações de autores clássicos (Strindberg,
Nelson Rodrigues) e contemporâneos (Godard, Baudrillard). De 2001
a 2004, foi o diretor artístico do Teatro Carlos Gomes (Sala Paraíso).
Em 2005, do Teatro Ziembinski. Seus espetáculos foram recebidos
com frieza (ou hostilidade) pela crítica mais tradicional, Barbara
Heliodora à frente. “A péssima acústica da sala não é o seu maior
problema”, ela escreveu no Globo sobre Todas as Paisagens
Possíveis (2004). “Confusa o bastante para provocar reações
disparatadas na plateia, que ri muito em momentos que se supõe
serem mais sérios”, foi a sentença para Nocaute (2005).

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O caminho autoral se firmou por meio da aproximação com as artes


plásticas, a filosofia, a psicanálise, a música e a leitura de teóricos das
artes como Clement Greenberg e Paulo Sérgio Duarte. O salto rumo a
um teatro com assinatura bastante marcada seria dado já no meio da
década de 2000, quando Alvim conheceu a atriz Juliana Galdino,
reverenciada por suas atuações sob a direção de Antunes Filho. Mãe
de seu único filho (de 6 anos) e motivo da mudança do diretor para
São Paulo, ela fundou com ele o Club Noir – misto de teatro, escola,
bar e ponto de encontro na então decadente e hoje valorizada região
do Baixo Augusta. Um dos primeiros trabalhos da dupla foi O
Quarto (2008), também de Pinter. Um espetáculo estranho, com poças
d’água no palco, atores estáticos e luzes escuras que mal permitiam
ver os rostos. Impulsionado por uma resenha de Ramos na Folha, que
considerou o resultado uma “experiência limite […]. Radical e belo”,
a montagem ficou seis meses em cartaz e ganhou o Prêmio Bravo!
Bradesco Prime de Cultura. Mais tarde, trabalhos do Club Noir
arrebatariam os prêmios Governador do Estado para Cultura e
APCA, da Associação Paulista de Críticos de Arte, além de três
indicações para o Shell. Uma reportagem do mesmo jornal sobre o
Festival de Teatro de Curitiba de 2013 apontava, entre grupos jovens,
a presença de epígonos e diluidores da estética do Noir – seus cursos
e oficinas acontecem regularmente, já tendo formado centenas de
alunos, e sua metodologia, Alvim levou para aulas em Curitiba,
Bruxelas, Montevidéu, Guadalajara e Frankfurt.

O
imóvel que abriga o Noir tem 300 metros quadrados, e os
custos fixos ficam em torno de 9 mil reais por mês. É uma soma
razoável para quem promove apresentações gratuitas ou cobra
20 ou 30 reais por ingresso, com direito a meia-entrada, num teatro de
cinquenta lugares. Para aumentar a receita, o diretor e Juliana

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Galdino coordenam oficinas de dramaturgia e interpretação – a


mensalidade vai de zero (quando há patrocínio) a 500 reais. Entre
trabalhos com os alunos e os da companhia, chegou-se a encenar
dezesseis espetáculos num ano (2012). Alvim também traduz (autores
contemporâneos como o inglês Gregory Motton e o norueguês Arne
Lygre) e faz curadorias (Festival Internacional de Teatro de São José
do Rio Preto e a mostra Dramaturgias, do CCBB no Rio).
Simultaneamente à montagem do texto de Pinter, ele estreava a
ópera Artemis, de Alberto Nepomuceno, no Theatro São Pedro.

Como quase toda a verba do teatro de pesquisa, o orçamento de


grupos como o Noir depende bastante de editais públicos, sobretudo
os da lei de fomento da Prefeitura de São Paulo. Desde sua
implementação, em 2002, mais de 350 projetos foram selecionados.
Há várias companhias estáveis, com sede, que floresceram sob esse
modelo. O subsídio estatal direto, motivo de infinitos debates e alvo
costumeiro de defensores da livre-iniciativa no setor, segue o
exemplo da Alemanha, França, Itália e Inglaterra. Alternativas atuais
a ele são a Lei Rouanet, que transfere ao mercado – via renúncia fiscal
– a escolha dos espetáculos financiados, o que acaba privilegiando
musicais, comédias e montagens com o elenco global do momento, e
entidades como o Sesc, cuja verba também vem de impostos, mas que
conta com curadoria e equipes técnicas profissionalizadas. Peças
como a recente Tribos, bancada por Antônio Fagundes sem dinheiro
público, são exceções.

Inicialmente, Terra de Ninguém era uma parceria entre Alvim e o


próprio Fagundes, que desistiu por problemas de agenda. Em seu
lugar entrou José Wilker, que morreu pouco antes do início dos
ensaios, dando lugar a Edwin Luisi. De um orçamento inicial de 600
mil reais, o Sesc fez cortes e liberou 300 mil. Uma quantia alta para a
instituição, mas abaixo da média dos de grupos do mesmo porte

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contemplados pelo Fomento entre 2009 e 2013. A soma cobre de


apart-hotel para atores que não moram na capital paulista (Luis Melo
vem de Curitiba; Luisi, do Rio de Janeiro) aos copos de acrílico
usados nas apresentações. Projetos do gênero frequentemente
incluem oficinas, debates, turnês com apresentações gratuitas. Entre
um trabalho e outro, os profissionais da área podem passar meses
sem atividade, então o cálculo do ganho médio das equipes tem
resultado menor do que aparenta. O comum nas planilhas é que 60%
sejam gastos com cachês e 40% com produção. Tanto Alvim – que
também assina a cenografia e a sonoplastia – quanto o produtor
Ricardo Grasson não receberam pelo trabalho antes da estreia. Trinta
por cento da bilheteria são deles. A entrada inteira custa 50 reais, mas
o grosso vem de ingressos de estudantes (meia) e associados do Sesc
(15 reais).

O
s ensaios de Terra de Ninguém ocorreram no Club Noir, de
segunda a sexta, inicialmente em sessões de quatro horas cada.
Compareci a dezenove desses encontros. Nos primeiros, Alvim
se mostrou um diretor paciente, empregando um tom gentil com
todos, de expressões como “vamos fazer o seguinte”. Às vezes, um
curioso “senhor” é usado no trato direto, denotando mais carinho ou
ironia que autoridade ou condescendência. Quando queria chamar a
atenção de um ator, levantava e ia até ele, falando tão perto e num
volume tão baixo, às vezes sussurrado, que mesmo a poucos metros
de distância não era possível entender o que era dito.

Para quem nunca tinha acompanhado a montagem de uma peça, o


que chama a atenção logo de cara são obviedades sempre
mencionadas pelo povo do teatro: um dia nunca é igual ao outro, e os
detalhes acabam fazendo a diferença. Uma passagem excelente do

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texto pode ser seguida de outra com os atores distraídos, errando


falas que antes pareciam incorporadas. O gesto de apoiar o queixo
numa taça vazia, um assovio, a imitação de um latido, e o efeito para
quem está assistindo – o registro que a cena passa, menos ou mais
solene, cômico, natural –, mudam significativamente. No primeiro
ensaio, Alvim mostrou um livro com reproduções das pinturas de
Francis Bacon e explicou o que seria uma concepção de palco baseada
na assimetria e nos espaços presentes nas imagens. Foram
desenhadas no chão quatro figuras geométricas irregulares – e cada
ator ficaria confinado ao limite de uma delas, num jogo de
“perspectivas diversas” (um “espelho quebrado”) em que um não
olharia para o outro.

Com a iluminação focada para esse posicionamento, a cena de


abertura foi lida/interpretada. Trata-se de um diálogo entre os
personagens de Melo e Luisi. O primeiro – pobre, tagarela,
mendigando atenção e afeto – acaba de chegar à casa do último – rico,
lacônico, desprezando o puxa-saquismo do interlocutor. A fala ficou
sombria e distante, talvez porque a relação de poder entre os tipos
representados, lentamente invertida ao longo da cena, tenha se
restringido às palavras de cada um, ditas de forma mecânica naquele
estágio ainda cru dos atores. Ao final, e “só como exercício”, o diretor
propôs uma alternativa: em vez de figuras geométricas, uma poltrona
no meio do palco, iluminação mais leve e um piano baixo tocando
Schumann. O diálogo manteve a densidade, mas ganhou um registro
mais familiar, que poderia até se considerar realista/naturalista se o
original assim o fosse, ajudado por uma dinâmica de deslocamentos e
atos: Luisi começa sentado, levanta, joga um copo na parede; Melo
começa de pé, caminha até o bar, cantarola, volta fazendo uma
pequena dança/mesura, senta.

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P
ergunto por que Alvim mudou tudo, e ele diz que achou “arrastada”
a versão original. “Cheguei 100% convicto de que iríamos por
aquele caminho, mas por experiência sabia que eu jogaria tudo
fora.” A aparente contradição faz parte do que o diretor
chamaria, dali para a frente, de “jogo”: algo que começa, como numa
partida de sinuca, com a primeira tacada (a ideia inicial) e o
consequente e imprevisível movimento das bolas. Por enquanto, o
que importa é transmitir aos atores o entusiasmo pelo projeto, ganhar
a confiança e o envolvimento deles, dar o tempo necessário para que
todos entendam mais profundamente “o que se está fazendo na sala
de ensaio”.

Em dez dias, a peça está desenhada no segundo modelo de


encenação. A inversão do poder entre Luisi e Melo está mais clara.
Idem a cena que vem na sequência, quando Caco Ciocler e Pedro
Moutinho se aproximam lentamente de Melo, num discurso de boas-
vindas hostil nas entrelinhas. Ao contrário de outros diretores, que às
vezes gastam semanas só na leitura do texto, para fixar conceitos
antes das primeiras passagens no palco, Alvim prefere começar num
estágio mais avançado, já com esboços de luz e marcação espacial. Em
princípio, a relação entre suas ideias e as trazidas pela equipe é fluida:
os atores fazem sugestões, Juliana é assistente de direção e opina
bastante, mas as escolhas finais seguem os critérios de Alvim. “Não
há hierarquia vertical”, ele explica. “Por outro lado, não há hierarquia
horizontal. Não sou só eu que mando, mas também não é todo
mundo que manda. As exigências da obra, dentro do que ela propõe,
é que determinam os rumos.”

uando se comentam as peças do Club Noir, virou quase um clichê


identificar certas características: penumbra, movimentos

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Q
parcimoniosos dos atores, ênfase nas palavras, textos fragmentados
e/ou irredutíveis a um sentido fechado – para tanto, a
colaboração de Juliana e seu domínio virtuoso da voz foi
essencial. Em termos gerais, a pesquisadora e professora da
USP Silvia Fernandes situa a proposta do grupo numa tradição
“antiteatral”, que vai de encontro aos aspectos “espetaculares” da
encenação. A valorização da palavra “não como significado,
conteúdo, mas como sonoridade, movimento” tem origem possível
nos simbolistas da virada para o século XX, em especial o belga
Maurice Maeterlinck, e deságua em encenadores contemporâneos
como o francês Claude Régy.

Já Luiz Fernando Ramos aponta o diálogo de Alvim com uma


tradição antidramática, ou seja, um teatro mais abstrato, que abre
mão de prerrogativas aristotélicas/clássicas – relações de causa e
efeito, conflito, catarse no sentido atual e mais comum do termo.
Mesmo Bertolt Brecht, um artista central no século passado, ainda
estaria preso às balizas do drama. O caminho aqui é outro e, no
contexto posterior às vanguardas históricas do modernismo,
tangencia principalmente dois autores: Beckett, que substituiu a
narrativa pelo foco na “materialidade cênica”, aproximando o teatro
do que hoje se chama de instalação, e Antonin Artaud, que se
concentrou nas “novas possibilidades de existência” e sua tradução
no palco. Num mapeamento um tanto resumido e esquemático, Bob
Wilson e Gerald Thomas seriam filhos da primeira linhagem; o Living
Theatre e José Celso Martinez Corrêa, da última. Nomes como o
francês Valère Novarina fazem uma mescla contemporânea dessas
duas matrizes. Harold Pinter viria de outra linhagem, de língua
inglesa, e seria um pós-beckettiano com toques de drama.

“Quando Alvim chegou a São Paulo, eu sentia que a cena daqui


estava um pouco careta”, diz Ramos. “Havia muita influência do
Brecht, muita ideologização, talvez até por causa do processo de
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seleção das leis de incentivo, que privilegiavam grupos politicamente


mobilizados.” No panorama atual, e no sentido de promover um
encontro entre as artes plásticas e o caráter performático do teatro, o
crítico vê afinidades possíveis entre o diretor e, por exemplo, Nuno
Ramos. A isso se somam particularidades artísticas e de
temperamento: “Outro dia eu estava revendo um Roda Viva com o Zé
Celso, dos anos 80. A coisa mais parecida com aquela vitalidade que
conheci no teatro brasileiro foi o Alvim, a pessoa com gana de buscar
a polêmica, o debate.”

C
omo todo artista que rejeita estéticas aceitas e reconhecíveis,
buscando uma inovação constante que pode beirar a utopia,
Alvim frequentemente cria e difunde uma interpretação sobre
si mesmo. De propósito ou não, os textos que escreve acabam
funcionando como defesa. Uma das críticas comuns ao Noir é a de
que o rigor formal das peças sacrificaria a comunicação com o público
(Dirceu Alves Jr., da Veja, sobre Amante, baseada em Marguerite
Duras, 2012). Ou a emoção em cena. Ou a “dimensão metafísica e
política” de certos textos (Jefferson Del Rios, do Estadão, sobre Tríptico:
Richard Maxwell, baseada no dramaturgo americano homônimo,
2010). Além disso, claro, há os ataques que soam como uma disputa
por espaço. O bate-boca com Cláudio Botelho, que dirige produções
de grande bilheteria mas pouca atenção crítica, começou com um
comentário deste sobre um “sujeito” do circuito “alternativo do
alternativo” que faria um “teatro feito para ninguém ir”. Gerald
Thomas, por sua vez, misturou o que via como omissão dos colegas
diante dos bombardeios a Gaza em agosto e o “provincianismo” da
classe, que “discute (é inacreditável) (AINDA) o teatro de Bob
Wilson” [Alvim tinha feito isso poucos dias antes] e “descobre a
PÓLVORA com décadas de atraso”, pois “Beckett pra mim é coisa do

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passado” [a temporada do Tríptico havia recém-terminado, e Thomas foi


um dos encenadores históricos do irlandês no Brasil].

O conjunto de ideias surgido dos trabalhos do Noir recebeu um


nome, “Dramáticas do Transumano”, exposto num livro homônimo e
difícil, se não impenetrável para não iniciados. Alvim emprega
expressões como “morfogênese linguística de multiespécies” e cita
dezenas de referências, de Wittgenstein, Deleuze, Heidegger e Lacan,
aos “teoremas da incompletude de Gödel” e o “buraco negro toroidal
de Kerr”. O que move o autor é a ideia da singularidade, de
promover uma espécie de revolução permanente na concepção, na
técnica, na arquitetura cênica e no sentido, rejeitando os “sistemas
formais hegemônicos” naturalizados na forma como se vê teatro hoje.
Usando o vocabulário do texto, é preciso “problematizar” as noções
que temos, por exemplo, de sujeito, linguagem, tempo e espaço real e
cênico.

Gostei muito de algumas montagens do Club Noir, em especial O


Quarto e Comunicação a uma Academia (2009), esta baseada em Franz
Kafka e com uma atuação impressionante de Juliana no papel de um
macaco. Mas é um espetáculo a que não assisti, Pinokio (2011), que
mais bem ilustra a linha pós-humanista das escolhas dramatúrgicas
de Alvim. Seu texto/adaptação inverte a proposição do clássico de
Carlo Collodi, fazendo o tal questionamento do que entendemos por
“eu”: em vez de a matéria (o boneco) se angustiar com a
complexidade da vida espiritual, é o indivíduo antes complexo (uma
ideia que vem do Renascimento) que sofre ao se achatar nos limites
do próprio corpo (dor, doença). Mais ampla e metaforicamente, tais
limites são também os do discurso (voz, ideologia) num tempo de
mecanização e identidades em crise. A materialidade de imagens (a
madeira, a farpa, o tumor), aliada a uma carga poética igualmente
material (com neologismos como “satisfanar” e “musgotecido”), cria

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uma nova “realidade” (linguística e, portanto, concreta) no presente


do espetáculo. A crítica e dramaturga Christiane Riera, que elogiou a
“poesia cênica radical” da montagem, observou na Folha de S.Paulo:
“No final, olhares perplexos do público. Alguns inconformados com a
obscuridade da proposta. Aqueles que aceitaram o tormento em lidar
com um universo desconhecido refizeram a trajetória de um
Pinóquio: ‘Um eco e a vertigem. Perguntas?’”

E
m Terra de Ninguém, há algo dessa descrença numa
individualidade acima ou além do que ela consegue expressar.
“Os personagens não são sujeitos”, diz Alvim. “Nós somos
linguagem. Quando muda o que é dito, muda o personagem, sua
história, suas motivações, até seu nome.” É claro que um arcabouço
teórico dessa espessura, certamente interessante no diálogo entre
artista e crítica, de nada vale se não transmitir algo relevante ao
público. Outro engano possível sobre o diretor é achar que se trata de
alguém paralisado por uma doutrina, sem vocação para traduzi-la na
prática dos ensaios ou dela fugir se necessário. Na verdade, o
processo é o inverso: “Eu gosto de dar aula, de pensar o teatro em
termos teóricos. Mas isso vem depois da prática, é uma conceituação
e sistematização de coisas que descobrimos durante o processo,
experimentando, senão vira um mero programa estético, um
panfleto.”

No caso de Pinter, o desafio é concretizar cenicamente a


“perturbação” que suas peças causaram quando estrearam. É fazer,
nas palavras de Alvim, “o que ele faria se estivesse vivo, em São
Paulo e com 40 anos”. O dramaturgo forçou os limites da sua época,
mas hoje os limites são outros. Adaptar não se resume a trocar
referências concretas da Londres dos anos 70 por expressões como

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“aquela rua” e “aquele bar”. A tradução de Terra de Ninguém deixa as


frases mais concisas, na contramão do que usualmente ocorre ao se
verter o inglês para o português. Uma fala do personagem de Melo,
que vai irritando o de Luisi até o ponto de uma explosão, quando
menciona os olhos de sua mulher, é em parte cortada, em parte
modificada (os olhos passam a ser os dele). Medidas assim criam
elipses que deixam as reações mais abruptas, causam mais
estranheza, o que afasta a abordagem dos arcos narrativos e
justificativas arredondadas de certo realismo psicológico de matriz
americana (em especial Edward Albee), ou de um teatro do absurdo
mais previsível. Um misto de ambos pontuava montagens pinterescas
a que assisti no Brasil, como O Amante (2004), dirigida por Edi
Botelho, e Volta ao Lar (2007), encenada por Alexandre Reine:
situações de aparência familiar, burguesa, que começam a
desmoronar a partir de um gatilho inusitado (e com um pouco de
uísque, se calhar).

O risco de encenar Pinter, que Alvim superou com frescor em O


Quarto, é cair num tipo de domesticação como esse. Em Terra de
Ninguém, colaboram para o ruído em relação ao que seria uma
experiência típica do Noir a presença de atores que já fizeram muita
tevê (independentemente de seus talentos), uma sala maior e mais
“fria”, e a chancela de uma instituição que costuma promover
espetáculos culturais de “qualidade”. A rigor, o espaço do Sesc Vila
Mariana não difere de templos atuais do teatrão (mas não só do
teatrão) em São Paulo, como o do shopping Frei Caneca e o do hotel
Renaissance. “O local e as circunstâncias são muito importantes em
teatro”, afirma o diretor. “Parte da nossa estética tem a ver com as
condições físicas da sala. Não dispomos de saídas do lado do palco, e
isso determinou peças com os atores mais estáticos. A acústica do
Noir é excepcional, você estala a língua num extremo do palco e é
ouvido perfeitamente do alto da plateia, o que nos permite trabalhar

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com sutilezas de tons de voz e texturas vocais. Cabem cinquenta


pessoas, então se criam uma intimidade e uma sensação de
insegurança que ajudam a imersão na atmosfera instável dos
espetáculos. Quando você está num grupo grande ou num espaço
maior, fica menos vulnerável.”

E
m Terra de Ninguém, a chave para superar o desafio desse novo
ambiente está – sempre estará – na singularidade. Na guinada
do primeiro ensaio, porque o planejado não se afinava com o
resultado concreto, Alvim descartou alguns dos elementos (atores
imóveis, por exemplo) que seriam típicos do Noir. Precisei me
ausentar por dez dias a partir da quarta semana, e ao voltar a
abordagem tinha mudado pela segunda vez: a abertura perdera
vários de seus elementos – o cigarro aceso antes da primeira fala, os
copos servidos várias vezes – e ficara sóbria. Havia menos
deslocamentos. A atuação de Luisi, antes bastante emocional na
primeira cena, estava mais contida. Numa passagem com Caco
Ciocler, cerca de dez gestos se condensaram em três. Cortes súbitos e
vinhetas sonoras de agulha arranhada – a versão 2014 dos silêncios
pinterescos –- foram introduzidos. Depois de momentos de escuridão,
atores reaparecem em outra posição falando em outro tom. É como se
houvesse uma reaproximação da ideia original, mas sem os
penduricalhos conceituais – o tal “espelho quebrado” – que tornavam
muito visíveis os andaimes da opção minimalista.

Embora a interação entre os personagens tivesse se mantido, o ritmo


se tornou mais fragmentado. Alvim explica que ficou uns dias no Rio
e, ao voltar, reviu tudo com distanciamento e julgou as atuações
muito isoladas, com os atores “carregando seus personagens como
uma corrente” e “atirando para todos os lados sem acertar o alvo”.

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Também quis “potencializar o impacto” de certas ações, como a troca


de olhares entre Luisi e Melo, antes logo no início e agora retardada
até o décimo minuto da peça. Já o fluxo contínuo de ações não estava
trazendo o estranhamento desejável: “Quero que o público
experimente uma desorientação, não uma continuidade convencional,
e os cortes servem para isso.”

Essa nova disposição exige uma mecânica azeitada de tempos e


movimentos. Alvim agora é bastante detalhista, determinando para
onde cada um vira a cada momento, a duração de pausas sequenciais
(dez, seis e quatro segundos), a ordem do aquecimento de um
personagem (alongar, dar pulinhos) antes de correr. A fase dos atores
mais dispersos, debatendo minuciosamente pequenas escolhas do
gestual, começa a ficar para trás. Mesmo assim, há problemas. Melo
ainda não decorou o texto completo. Luisi reclama que seu trabalho
das últimas semanas foi jogado fora. Para um leigo, tudo parece
muito cru. O prazo para a estreia começa a apertar, e há necessidade
de estender os ensaios, sem poupar sábados e domingos.

A
qui entra a etapa seguinte do “jogo”. Já há o “entendimento
primário” do que se pretende, o entusiasmo que se buscava, a
confiança no diretor, então é hora de dar o salto. Para Alvim,
isso significa que os atores agora vão “fazer o que eu mando”. A
postura do diretor muda. Com alguma intimidade/liberdade de trato
instalada, suas interferências passaram a ser menos sutis, às vezes
ríspidas. “Se você gritar no primeiro dia de ensaio, a peça não estreia.
Eles rescindem o contrato e vão embora. Grito só no fim do processo,
quando ninguém mais tem escapatória.”

Alvim ri ao dizer isso. É outro traço seu. Nas poucas vezes em que o
vi bravo nas primeiras semanas, uma rápida explosão era seguida por
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piadas autoirônicas, que soam como pedido de desculpas ou medida


para desanuviar o ambiente. Mais perto da estreia, quando seu
nervosismo aumentou consideravelmente, o padrão foi seguido em
falas nas quais ele parece gostar de definir a si mesmo como
autoritário. “As pessoas precisam notar que há um grau de loucura e
violência nisso”, ele disse numa padaria próxima ao Noir, a uma
mesa de distância de onde Ciocler almoçava, e a duas do resto do
elenco. “Vou assistir a esta peça todos os dias. E vou matar quem fizer
algo que não foi estabelecido na sala de ensaio. A maioria dos atores é
como a criança que precisa de um pai que às vezes grite, às vezes faça
carinho.”

Com humor ou não, a orientação foi seguida à risca. “Não posso


admitir leviandade com a obra porque eu sei o que custou ao Pinter
escrevê-la. Se nos dispusemos a fazer isso, vamos fazer de modo
imaculado. Do modo como vejo as coisas, claro, o parâmetro sou eu.”
(Mais risos.) Houve alguma montagem em que o diretor não passou
por essa angústia e impaciência? “Não.” (Ainda mais risos.) Você tem
consciência de que, do ponto de vista dos atores, as questões são bem
mais simples – do tipo o diretor é estrela ou não, faz escândalo ou
não? “Não estou nem aí para o que pensam de mim. O que importa é
o resultado estético. O teatro é povoado por indivíduos para quem
interessam as relações pessoais. Para essa corja, os afetos são mais
importantes que a obra de arte. Por isso é que saem estas merdas,
uma atrás da outra, que estão em cartaz.”

C
redita-se ao dramaturgo e cineasta David Mamet a seguinte
frase: “A única coisa que se pode fazer ao trabalhar com astros
é marcar a peça, deixar todos soltos e rezar para que tudo
termine bem.” Alvim escreveu a respeito em seu Facebook, depois de

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um dia difícil da terceira semana: “Há nestes elencos estelares (e digo


isso no melhor sentido) uma dificuldade notória em produzir obras
de arte (posto que para tanto é preciso que caminhemos juntos numa
mesma direção), e muitas vezes […] se adota uma política de menor
dano… Mas […] a resignação não pode ser uma opção aceitável […].
É preciso que o encenador esqueça seu modo usual de trabalho […] e
redesenhe as relações que tem com os atores, percebendo,
AFIRMANDO e estimulando as especificidades do processo de cada
um.”

No caso de Melo, o “processo” inclui uma metodologia particular de


memorização. Atores costumam usar macetes para tanto. Pedro
Moutinho copia o texto à mão num caderno. Luisi relaciona iniciais
de palavras ao trecho a ser enunciado – por exemplo, “e”, “g” e “s” a
“o encanto dos rapazes, a graça que eles tinham e a sensibilidade”.
Depois da frase “Resolvi pegar o touro pelos chifres”, a seguinte (e
por causa dos chifres) tem a ver com adultério: “Propus a ela que te
traísse.” Mas isso é secundário no processo, o que preocupa a todos é
entender o que está sendo transmitido. Nesse sentido, diz Melo, é
legítimo “enrolar o diretor” para que as coisas sejam feitas do modo
que ele considera certo: primeiro chegar ao tal grau de incorporação
dos significados, o que pode tomar semanas, e só depois fixar as
palavras, cristalizando seu sentido, para dizê-las “assinando
embaixo”. O problema é que, num período tão curto de ensaios, o
ideal seria queimar etapas e chegar já no primeiro dia com tudo na
cabeça.

Outras especificidades do elenco, segundo Alvim, criaram


dificuldades iniciais. Luisi viria de um modelo de teatro onde “os
atores seguem seus impulsos o tempo todo”. Se não houver controle,
o método incentiva os outros a fazerem o mesmo, “até o ponto em
que não resta nada da peça”. Moutinho, por sua vez, teria demorado
para atingir a “verticalidade emocional” necessária (algo que surgiria
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“de forma muito fácil” para Luisi). Com Ciocler, a divergência seria
quanto ao entendimento: “Ele acredita que exista um personagem,
quando nunca houve personagens. Aí surgem aquelas falsas
questões: ‘O que o meu personagem está sentindo nesta hora?’ A peça
não é isso. É um conjunto de signos articulados para promover efeitos
na sensibilidade da plateia. É como olhar para um quadro de Munch:
você se emociona com aquela forma, mas existe alguém ali?”

Ciocler trabalhou com Alvim nas adaptações de 45 Minutos (Marcelo


Pedreira, 2011), A Construção (Kafka, 2012) e Amante. Ao contrário do
que “algumas pessoas acreditam”, referindo-se à visão de que o
diretor “não trabalha as cenas” – porque em geral passa o texto do
início ao fim, para ter uma visão do todo –, o ator vê generosidade no
método. “Não saímos do nada, pois ele nos passa um esboço”, o que
“tira da frente a preocupação de para onde se vai”. A partir daí, o
diretor “descansa” e deixa o ator “criar em cima, preencher as marcas
sugeridas, que não são definitivas”. No processo, ainda segundo
Ciocler, Alvim vai “se alimentando do que fazemos”, “devolvendo o
olhar, dizendo o que está bom ou não”, para ao final “limpar,
potencializar, recriar”. Um dia antes da estreia, Alvim considerava o
elenco “pronto”. No Facebook, escreveu que os atores são “quase
uma utopia” e estão entre “os melhores de todos os tempos”.

É
difícil dizer o que é interpretar bem. Luisi considera que a
“intuição” vem das reações que surgem – às vezes sem motivo
aparente – de uma determinada passagem do texto. Moutinho
acredita em algo que parece óbvio, mas não é: “O personagem
interpretado por uma pessoa precisa ser diferente do interpretado por
outra.” Cada ator achará seu caminho nesse labirinto subjetivo. Na
história do teatro há teorias e métodos que buscam naturalidade e

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verossimilhança (Diderot, Stanislavski), antirrealismo (Gordon Craig)


ou anti-ilusionismo (Vsevolod Meyerhold), uma autenticidade que
não está mais na interpretação, mas no homem/ator (Artaud,
performatividade). Do ponto de vista de quem assiste – seja um
diretor treinando seu elenco, seja a plateia leiga ou especialista, seja o
espetáculo realista ou não, dramático ou não –, em algum ponto tudo
se resumirá a acreditar. Isso é algo que não escolhemos, apenas
experimentamos a partir do filtro de nosso repertório, história
pessoal, gosto estético, libido, senso de humor, condição
física/psicológica no momento – não importa o que o intérprete fez
para chegar àquele resultado.

Do elenco de Terra de Ninguém, Melo é o que tem a voz mais poderosa,


um timbre grave que se mistura à ótima dicção. São atributos
treinados em anos de carreira exitosa, por certo, mas já na primeira
leitura, e mesmo com as escorregadelas inevitáveis, eles surgem sem
o auxílio de muletas gestuais e de cena. No palco, a presença opulenta
e carismática do ator contrasta com a subserviência do personagem –
e depois sublinha o contrário rancoroso ou melancólico desse registro.
Já Luisi tem qualidades diversas, em alguns aspectos opostas. Seu
porte físico é menos chamativo, mais elegante num sentido clássico, o
que combina com o único personagem aristocrático em cena, um
homem algo entediado que exerce o poder sem esforço. A segurança
inicial é minada e atinge momentos de emoção, em pelo menos dois
monólogos de alta intensidade, mas sempre há nos traços irônicos do
rosto do ator a ambiguidade de quem é e não é invulnerável. Isso
ajuda na transmissão de um senso cômico característico, responsável
por quase todas as risadas possíveis na montagem – como quando ele
enumera nomes de amigos que encontrou num jantar em Oxford
intercalando-os com uma gargalhada quebrada como um cacarejo.

Uma peça é a soma de atuações, e cabe ao diretor não permitir que

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todos se destaquem (ou se encolham) ao mesmo tempo. Alvim baixou


o tom de Luisi na primeira cena para que Melo pudesse se sobressair.
A opção por Moutinho e Ciocler nos demais papéis também foi
complementar: o primeiro com o porte físico que poderia ser o de
um pitboy, um michê violento como parece ser o seu personagem, e o
segundo mais adequado a um tipo que usa boas maneiras
hiperbólicas para intensificar a violência psicológica. Tais
características são exploradas com método: Moutinho exibe os
músculos para intimidar Melo, um personagem mais velho, depois
pode escondê-los (porque o espectador já os viu) num quimono que
talvez sugerisse delicadeza (mas não sugere, o que torna a cena
inadequada no bom sentido). O mesmo ocorre com Ciocler, cujo
sorriso e o tom de voz esganiçado anunciam algo de malévolo sob
modos de dândi (sua roupa e bengala remetem ao protagonista
de Laranja Mecânica). Ambos emprestam vigor e uma atmosfera de
ameaça física, imediata, a uma peça que poderia ter uma leitura
apenas intelectualizada. Para se ter uma ideia de como faz diferença,
vale comparar o resultado com a montagem clássica, descontos do
vídeo e das décadas à parte, em que John Gielgud brilha numa
performance escorregadia, gelatinosa, embora o restante seja um
tanto convencional. Ou com o trailer curto de uma recente versão da
Broadway, com Ian McKellen no que parece ser uma comédia flácida.

S
e avaliar atuações é subjetivo, isso é ainda mais acentuado
quando se está presente nos ensaios. Meu distanciamento fica
comprometido não só porque perco a chance de me surpreender
com o trabalho pronto – ao assistir à estreia, já sabia o que ia
acontecer e tinha na memória versões com menos rigor e impacto –,
mas porque é inevitável ter algum envolvimento com o processo.
Torci para que as coisas dessem certo, mesmo sem ter saído desses

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meses amigo de qualquer dos integrantes da equipe, porque


presenciei o esforço de todos, incluindo aí a labuta silenciosa da
produção. Assisti a debates sobre o cenário (cujo fundo é um armário
de bebidas, depois uma parede branca), sobre o material do piso (um
forro que imita mármore, em placas de 1 por 1 metro), sobre os
elementos do palco (uma escada, a estátua de um cavalo, manequins
que baixam do teto sustentados por fios), sobre a trilha sonora (além
de Schumann, há Brahms, barulho de trote equino e a canção do
desenho animado Pinóquio). Às vezes a decisão é estética (as roupas
são do estilista João Pimenta, convidado porque seus trabalhos “meio
andróginos” comporiam uma atmosfera de “sexo e violência”), às
vezes por contingências de orçamento (os copos são de acrílico
porque seria caro ter os de açúcar que quebram sem oferecer perigo).
Às vezes as referências são elevadas (uma moeda citada por Pinter
remete-se à barca dos mortos de Caronte), às vezes soam como troça
de Alvim (a peruca que Ciocler usaria, mas acabou não usando, era
inspirada no cabelo de Gary Oldman em O Quinto Elemento).

Para um leigo, os detalhes operacionais podem ser tão interessantes


quanto os estéticos. Um trajeto exato no escuro só é possível porque
há adesivos fosforescentes no palco. Atores combinam códigos para
sinalizar que esqueceram falas. Um software regula ângulos e
porcentagens de luz que “aquecem”, “esfriam” ou dão “hierarquia”
aos elementos de uma cena. Domingos Quintiliano, que desenhou o
“roteiro eletrônico” da iluminação, orienta seu assistente sobre o
momento preciso em que cada botão deve ser apertado (meio
segundo a mais numa das dezenas de operações durante o espetáculo
é uma falha visível).

Igualmente complexo é o desafio de L. P. Daniel, responsável pela


trilha e o desenho de som: numa sala muito maior que a do Noir, a
peça precisava ser microfonada. O som das vozes é captado em seis

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locais diferentes, escolhidos de acordo com a movimentação do


elenco, e retransmitido do palco (mais) e do fundo (menos). Já a
música toca atrás da plateia. Há muitas variáveis e problemas num
espetáculo assim: qualidade do equipamento, ângulo das caixas,
número de pessoas presentes, “cancelamentos” nos locais onde os
principais eixos das ondas sonoras se encontram (causando som
embolado ou supressão de graves), o atraso entre a voz do ator e sua
retransmissão.

Durante os ensaios, Moutinho é o mais quieto do elenco. Melo e Luisi


adotam um tom de provocação carinhosa entre si. Ciocler é alvo
constante de advertências e piadas também carinhosas de Alvim. O
diretor é um bom imitador (faz vozes como a de Antunes Filho), e
Juliana é contagiante quando se entusiasma (usa expressões repetidas
como “Muito bom! Muito bom!”). Todos tomam café. Todos fumam.
Fala-se bastante dos colegas de profissão, um folclore simpático sobre
estrelismo, canastrice, dinheiro, coisas que deram errado nos palcos
ou como tudo é sempre menos dramático do que parece. Uma das
histórias clássicas nessa linha, que tem versões em outras épocas e
com outros personagens, teria ocorrido na montagem de O Livro de Jó,
do Teatro da Vertigem. Por causa da nudez de Matheus Nachtergaele,
e não das falas intensas sobre um Deus caprichoso e terrível, que
marcaram um dos melhores espetáculos dos anos 90 em São Paulo,
um marido na plateia teria dito alto para a mulher: “Satisfeita,
Iolanda?”

T
erra de Ninguém estreou dia 19 de setembro, uma sexta-feira, às
21 horas. Por causa de um evento no Sesc, o palco só foi liberado
para ensaios 48 horas antes. É muito pouco para se adaptar as
medidas, acústica e interações com os itens da cenografia (Luisi:

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“Escada é sempre difícil para nós”). As placas no piso só terminam de


ser postas às 17 horas do último dia, e os manequins estão balançando
comicamente ao descer do teto. São feitas duas passagens do texto. A
primeira é desastrosa: várias luzes erradas acendem, uma lâmpada
estoura, duas “camas sonoras” entram com atraso, as marcas não
estão exatas e os atores trocam passagens do texto.

Alvim tinha brincado que gritaria “só com os técnicos” nestes últimos
momentos, “para manter todo mundo com a orelha em pé, mas sem
botar pressão no elenco”. A promessa foi solenemente descumprida, e
ele gritou (muito) com todos: “Tá muito flat!”, “Não tem amarelo
aqui!”, “De onde apareceu esta porra?” Eu estava a poucos metros
dele, e podia ouvi-lo respirando alto e resmungando para si mesmo.
Ao final, reuniu todos no palco e passou uma descompostura.
Reclamou do baixo “índice de vertigem” e encerrou dizendo que se
podia cometer qualquer pecado, “menos o do tédio”. A bronca surtiu
efeito: a segunda passagem, que terminou quinze minutos antes das
21 horas, o que é temerário quando o próprio Alvim considera uma
hora o tempo ideal de descanso para os atores (houve um atraso de
quinze minutos por conta disso), foi quase perfeita. Só pequenos
ajustes e uma baixa: a descida dos bonecos foi cancelada.

Depois da primeira apresentação, foi servido um coquetel para


convidados da equipe e do Sesc. Todos estavam sorridentes e
pareciam satisfeitos. Encontrei amigos, que deram opiniões positivas
sobre o que viram. Até o fechamento desta edição, em meados de
outubro, a cobertura da imprensa seguiu linha semelhante. O Estadão
deu capa no seu Caderno 2 para a peça, um texto assinado por
Ubiratan Brasil. Gabriela Mellão escreveu a respeito na Folha de
S.Paulo, Alvaro Machado na CartaCapital, notas saíram na Veja São
Paulo, no site do Globo e em guias impressos e digitais. Luisi e Melo
deram entrevista para o Metrópolis, da TV Cultura. Nomes conhecidos

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do teatro, como Caetano Vilela e Samir Yazbek, elogiaram a


montagem no Facebook. Welington Andrade, na Cult, escreveu que
ela “potencializa o vigor lírico-poético” do texto original, instaurando
“o halo de uma fascinante teatralidade” e conduzindo o espectador
para “uma floresta de signos tão belos quanto desafiadores”.

Se o tom foi favorável no geral, a exceção ficou por conta de uma


crítica publicada na Folha. Embora tenha avaliado o espetáculo como
“bom”, Gustavo Fioratti considerou que a “imersão completa na
sensação de sonho” teria tirado o “estranhamento que viria em gotas”
na obra de Pinter, gerando um resultado apenas “bonito, familiar e de
traços reconhecíveis”. Alvim, claro, escreveu vários posts furiosos a
respeito, mencionando o fato de que o autor do texto havia sido seu
aluno: “Eu dou aulas sobre a poética do Pinter há anos! Eu conheço
suas estratégias, eu inclusive talvez tenha até falado a VOCÊ […]
sobre elas […]. Está me tirando de ignorante (pros outros, já que vc
SABE muito bem que eu posso ser qualquer coisa, menos
ignorante!)?”

O
s críticos que ouvi para esta reportagem – Jefferson Del Rios,
Valmir Santos, Helio Ponciano e Gabriela Mellão, além de
Silvia Fernandes e Luiz Fernando Ramos – foram unânimes em
apontar a diminuição do espaço (ou da repercussão) de sua atividade,
justamente quando a cena teatral paulistana vive um bom momento.
São cerca de setenta peças em cartaz a cada semana na capital, de
musicais milionários a espetáculos de pesquisa rigorosa, o que nos
últimos anos revelou grupos como Hiato, XIX de Teatro, Os Fofos e
Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Para Santos, que edita com
Maria Eugênia de Menezes o blog Teatrojornal, a discussão sobre a
área na internet não está “consolidada” como no cinema, música,

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literatura ou artes plásticas. Grosso modo, haveria matérias com


abordagem de entretenimento (falando de atores e atrizes célebres),
serviço relativo a estreias, narrativas dos próprios artistas sobre si
mesmos – e nada disso é ruim –, mas faltaria a contrapartida de uma
crítica distanciada, regular e não impressionista, capaz de se
comunicar com o público não acadêmico.

“A crítica precisa entender que há diferença entre produto cultural e


obra de arte”, acredita Alvim. “O primeiro usa um sistema formal
reconhecível, e aí você diz se isso foi executado com habilidade. Já a
arte é sempre em cima de outros procedimentos técnicos. Não há
problema em fazer um texto positivo sobre Miss Saigon. O problema é
usar os mesmos critérios para avaliar um espetáculo artístico.
Quando falam que falta humanidade a uma peça minha, eu me
pergunto: que humanidade? A da Patricia Pillar na novela das oito?”
Para o diretor, também não há problema no fato de os jornais
dedicarem espaço a aspectos mundanos do teatro, e sim que esses
aspectos entrem no espaço da análise. “A função da crítica é formar
conceitos. Que conceitos ela cria hoje? Eles dizem: ‘A peça é incrível,
tem um humor cáustico, fulano está muito bem em cena.’ Isso é só
valoração, adjetivação. Sem criação de conceitos, uma arte não evolui.
O teatro está muito atrasado, por exemplo, em relação às artes
plásticas. Não há filósofos, pensadores promovendo discussões
importantes em cima de espetáculos.”

Pergunto se as queixas não são a puxada de brasa para a própria


sardinha tão comum entre artistas. “Elogios pelos motivos errados
são tão decepcionantes quanto críticas negativas de jornalistas
ignorantes”, Alvim responde. “O crítico não pode ser um garçom de
vaidades. O espetáculo não é sobre mim, tanto que sempre tento dar
um jeito de sair do teatro sem encontrar o público. Não é sobre os
atores, tanto que no Noir eles não voltam para receber aplausos [no

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Sesc isso ocorreu porque ‘certas convenções são difíceis de combater’]. Não é
nem sobre o público, se estivermos falando de público como
representação do senso comum. O espetáculo é sobre as forças que
habitam a obra, e sobre a singularidade da formalização cênica.” Mas
onde entra o aspecto pessoal nisso? É óbvio que estou conversando
com um ser humano, e não apenas com um artista, e o elogio
hipotético ao último fatalmente se confunde com o primeiro. Alvim
rebate: “Como pessoa, sou péssimo como todo mundo. Sou narcisista,
autocentrado. Se alguém disser que sou bonito, claro que gosto. Mas
sei onde essa reação está localizada. Não é no mesmo lugar que as
minhas reações a uma obra de arte. Por esta eu tenho um amor talvez
patológico, que não sei explicar, porque não se explica o amor, e que
me protege contra esta neurose.”

U
ma pessoa que conhece bem o diretor, cujo nome não aparece
neste texto, disse ver nele a “pureza da loucura”, que tiraria a
vaidade de seu patamar previsível, banal. Por trás da
disposição infinita em defender ideias estéticas, haveria uma espécie
de fé. Alvim tem tatuagens com referências ao Gênesis e ao lema dos
jesuítas, e pergunto se ele acredita num Ser Supremo. Ele ri: “O
senhor não está aqui na minha frente?” (O senhor, aparentemente, sou
eu, não O Senhor.) Deus seria “o outro” com quem se quer dialogar nas
peças: “Não é a persona, o conjunto de idiossincrasias que faz a
personalidade de alguém. O outro é o nada que brilha em você
porque você está vivo. Você pode chamar isso de inconsciente, de
alma, do que quiser.”

Num momento atribulado da penúltima semana, Ciocler ficou


chateado com uma bronca que tomou num ensaio. O diretor
comentou, dias mais tarde: “Delicadeza não funciona na criação de

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arte. O que tenho a dar é amor – pelos atores, pelas 600 pessoas que
estarão lá, por esta peça. E o amor não é delicado. É violento, é a
espada. Quando isso é compreendido, em geral depois da estreia, eles
me agradecem.” Com uma ponta de ironia, ele segue: “Tudo tem de
ser 100%. Fazer menos desdignifica o teatro e a própria espécie
humana. Não somos a imagem e a semelhança de Deus? E Deus não é
perfeito?” Mesmo que o teatro seja essencialmente precário, e
que Terra de Ninguém só possa sobreviver aos anos nos fiapos
manipulados das memórias de cada um, a profissão aqui é a de um
perfeccionismo que, se por um lado contradiz essa fugacidade, por
outro a aceita e faz dela uma arma: “Sou casado com a Juliana há dez
anos, e o que eu sei dela? Nada. E pouco importa. Somos uma
miríade de potências que estão sendo atualizadas aqui e agora. A arte
é um instrumento para conseguir isso da maneira mais forte. E isso é
muito maior que você, muito maior que o Roberto Alvim.”

N
os próximos anos, o resultado de tamanha convicção sofrerá
uma espécie de teste. Tudo o que foi dito aqui aponta para a
mesma conclusão: Alvim já transcendeu o pequeno circuito no
qual se tornou conhecido. Aos poucos, nomes como o seu projetam
um futuro em que as principais referências do teatro em São Paulo
deixarão de ser a trindade – Zé Celso, Antunes Filho e Gerald Thomas
– que as vem monopolizando há décadas. Não haveria o risco de
institucionalizar-se nesse processo, ou mesmo virar símbolo de um
radicalismo de estimação? O mesmo que leva minha companheira de
van ao fim de Tríptico Beckett a achar “bárbaro” um texto que faz
fronteira com o ininteligível? “No horizonte contemporâneo, o único
destino fatal é se tornar uma marca”, diz Alvim. “Antes de isso
acontecer, você não é visto. Se acontece, você continua não sendo
visto.”

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Há boatos sobre o projeto de uma grande instituição paulistana que


envolve o nome do diretor. Ele não confirma nada. Um fato, porém,
sinaliza uma possível mudança de rumos: o Noir pode fechar as
portas no fim de 2014. O diretor diz que está cansado de botar “dois
terços do que eu e a Juliana ganhamos” na estrutura da companhia.
Por e-mail, ele deu uma explicação mais detalhada: “Sem apoio de
editais públicos de fomento, fica impossível custear aquela estrutura,
que trabalha fora da lógica comercial. E há uma máfia em São Paulo
que, por questões supostamente ideológicas (são todos supostamente
‘engajados’, e dizem que nosso teatro é elitista, que nós não fazemos
teatro para o ‘povo’ (?), que nós não somos ‘de esquerda’ – e tudo isso
é MENTIRA, um discurso demagógico que traveste uma inveja
terrível, aliada a uma sórdida defesa de território e de grana…); pois
bem: esta máfia, que domina quase todos os editais, tem bloqueado
nossa companhia, apesar de toda a reverberação de nosso trabalho
(junto à crítica e ao público, que lota nossas obras pagando ingressos
de 10 reais ou gratuitamente, como fazemos sempre que temos
patrocínio).”

Seja como for, circunstâncias costumam ter papel decisivo em


guinadas biográficas e artísticas. Luiz Fernando Ramos cita uma
passagem de Nietzsche, sobre cavalos que precisam fazer a curva ao
chegar ao fim da pista, para discutir o que talvez seja um limite a que
Alvim tenha chegado. “O teatro antidramático só sobrevive até certo
ponto”, ele afirma. Como no caso das artes plásticas, que viu
movimentos de retorno à pintura nas últimas décadas, depois de
muito tempo mergulhadas em impasses conceituais referentes a
instalações e performances, às vezes é preciso retroceder. Alvim
rejeita enfaticamente a ideia: “Como se pode achar que uma poética
chegou a um esgotamento? É como ver os quadros de Pollock e dizer
que são sempre a mesma coisa. Não são. Podem até se parecer. Mas
cada um deles é uma experiência única.”

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Mas você não pensa em fazer algo diverso do que tem feito? “Às
vezes, claro. Montar uma ópera num teatro gigantesco, como no caso
de Artemis, ver o que dá para criar a partir disso, abrir novos
caminhos. Só que, no fim das contas, eu sou o meu sintoma, e acabo
sempre criando obras dentro do mesmo sistema estético.” E
independentemente das exigências do espaço? “Posso entrar na sala
de ensaio pensando que, o.k., vocês têm razão, vou fazer algo
diferente. Mas em algum momento o seu inconsciente, o seu sintoma,
não deixa. Você olha para o gesto de um ator e algo grita que aquilo
está errado, e as coisas tomam a forma que é a sua. Se meu ponto de
apoio fosse uma questão de mercado, a Lady Gaga ou a Madonna
dizendo que acabou a fase gótica porque agora o povo quer o estilo
puta, seria fácil. Não é o meu caso.” Numa conversa três semanas
depois da estreia de Terra de Ninguém, Ramos considerou que Alvim
se saiu bem no desafio de “montar algo grande, luxuoso”, e o
resultado foi “um Pinter como ninguém havia feito no Brasil”.

D
urante a temporada, o desafio para um diretor é evitar que, sem
as tensões da pré-estreia, o espetáculo se ressinta de um certo
relaxamento. Numa prática rara no meio teatral, Alvim obriga
os atores a ensaiar a peça antes de cada apresentação, o que pode se
estender por longos e cansativos meses. Aos 85 anos, Nathalia
Timberg cumpriu a orientação em Tríptico Beckett. Comento sobre o
chavão de que na segunda noite haveria menos concentração que na
primeira, gerando um resultado pior. “Isto me causa repugnância”,
ele se irrita. “Quem estabelece essas lendas? Cada apresentação tem
de ser melhor que a anterior. Eu não compactuo com esta classe
artística medíocre, que usa essas desculpas para justificar seus
fracassos.”

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Entre ensaios e espetáculos, assisti à versão final de Terra de


Ninguém cinco vezes. Uma delas foi na quarta fila, que L. P. Daniel
acredita ser o melhor lugar do Sesc Vila Mariana, com o microfone
central que fica no chão do palco na altura do meu joelho. Outra foi
na extremidade lateral da última das dezessete filas, onde o volume
do som tem pequenas variações ao longo do espetáculo. Quanto mais
para cima na sala, por causa do delay, mais se ouve um leve timbre
metálico nas vozes. Do alto, os atores são pontos pequenos, com
expressões do rosto indistinguíveis, num espaço cênico cuja
profundidade agora bem visível ajuda a passar uma solidão também
física. Na primeira fila, ao contrário, fica-se com a visão no nível ou
abaixo da linha do proscênio, com os microfones salientes na
perspectiva, e podem-se perceber detalhes de um cadarço, o brilho
nas maçãs do rosto de Luisi, fios espetados na barba de Melo. Numa
das datas (12 de outubro), fez 34,9ºC em São Paulo e o ar-
condicionado não deu conta do calor. Além disso, pelo menos três
pessoas da plateia tossiram bastante nos primeiros cinco minutos da
peça.

São tantas variáveis a cada noite que concordo com o que pode soar
como boutade de Alvim: “A teoria da recepção é uma bobagem. Não
controlo nem o processo de criação, quanto mais a forma como um
indivíduo reage a ela.” Diante dessa subjetividade também radical,
para quem um diretor faz teatro? “Otimistamente para os 30% que
têm a mente aberta para dialogar, para serem atravessados por
aquilo.” E por que você faz teatro? “Para convidar as pessoas a
trilharem caminhos desconhecidos.” É preciso que elas entendam que
caminhos são esses? “Se uma peça se resumir a isso, fica estúpida,
banal. Saber como funciona o motor de um carro é apenas saber como
funciona o motor de um carro. Quando você está fazendo sexo, não
olha para o outro e diz: ‘E aí, está entendendo?’ O que eu disser a
respeito só servirá para mostrar como sou inteligente e erudito. Nada

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disso se compara a um determinado gesto em cena, a uma textura


vocal, que provoca um efeito estético. A coisa toda não é sobre
entendimento, é sobre experienciação sensível e seus desdobramentos
imprevisíveis em nosso imaginário.”

O espetáculo que entrou em cartaz era diferente do espetáculo da


véspera e de uma semana antes: ainda mais tensionado e minimalista,
com precisão de relógio na alternância de seus brancos, pretos,
vermelhos, azuis e amarelos, seus silêncios e modulações de fala, seu
distanciamento e proximidade emocional. Nos minutos que
precedem a estreia, os gritos e a tensão são substituídos por um clima
fatalista na coxia: a hora finalmente chegou. Ouvem-se apenas um ou
outro “merda” (“boa sorte”, na gíria teatral) e o som longínquo de
alguém aquecendo a voz. Os atores estão nos camarins. Integrantes
da equipe caminham para lá e para cá em silêncio. Espio a plateia por
trás de uma cortina, as poltronas sendo lentamente ocupadas. Foram
semanas de erros, tentativas, embates, desistências, uma soma de
ideias, acaso e treino duro que tentará dar àqueles indivíduos o que
Alvim se propôs desde o início. Com os instrumentos que a
linguagem teatral oferece a um diretor, a aposta é que o ambiente da
sala mude quando a luz se apaga, depois se acende em Luisi, e a
primeira pergunta do personagem é feita: “Puro?” Melo responde:
“Sim. Puro.” E completa depois de uma pausa: “Muito amável da sua
parte.” E então a singularidade – ou como se queira chamar esta
religião – tem mais uma chance de nos tocar.

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