MUSEU NACIONAL
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social
Thiago Braga Sá
matrícula nr. 119008359
janeiro de 2020
1.
Não é à toa, aliás, que seja justamente a noção de experiência que toma o centro
dos esforços de Lienhardt para compreender a relação dos Dinka com aquilo que o autor
chama de “Poderes”, em Divinity and Experience (Lienhard, 1961). A imagem da
antropologia que emerge desses esforços é menos uma de descrição e representação de
um funcionamento estrutural da sociedade em questão – que existiria como tal a
despeito do próprio etnógrafo – e mais a de um esforço de tradução que dê conta de
comunicar e transmitir experiências vividas e a maneira como são conceptualizadas.
Com tais esforços de tradução, aquelas estruturas que eram consideradas para a
teoria inglesa como dedutíveis naturalmente da sociedade em questão, aparecem agora
para Lienhardt – e em alguns momentos, mesmo para Evans-Pritchard – como aparatos
metodológicos de inteligibilidade entre etnógrafo e seu público leitor, entre etnógrafo e
povos estudados. É por isso que Lienhardt se permite afirmar, por exemplo, que os
Poderes da experiência religiosa entre os Dinka são “representações” (Lienhardt,
idem:147), porque a própria noção de representação aqui não aponta mais uma
passagem entre Natureza e Sociedade na organização Dinka, mas sim entre o repertório
conceitual do próprio autor e aquele de seus interlocutores. E, de fato, lidar com as
divindades Dinka como “’representações” – ou “imagens” – de certas configurações e
condensações de experiências que são, ao mesmo tempo, subjetivas e compartilhadas
não apenas permite alcançar algum grau de inteligibilidade sem cair em truísmos, mas
também desloca e desestabiliza as próprias relações entre sujeito e objeto das quais a
noção de “representação” é extraída e mobilizada.
Em outras palavras, quanto mais abstrato é o modelo construído por uma teoria,
mais distante é a própria teoria da superfície onde se desenvolvem as práticas estudadas
e, por outro lado, mais abrangente e expandido pretende ser seu poder de representação.
Quanto menos generalizado é o modelo, mais próximo ele se encontra da própria vida
das pessoas pesquisadas e, teoricamente, maior o seu poder de captar complexidades
mínimas.
É por essa perspectiva, nos parece, que o autor afirma que “social” é uma
qualidade produzida (Latour, 2005:1-6) sempre a posteriori pelas conexões entre atores
(humanos ou não-humanos): para evitar qualquer truque de perspectiva que coloque o
antropólogo ou sociólogo como detentor exclusivo do conhecimento de uma essência
presente e oculta dos fatos e relações investigados. “Social” nunca é, portanto, o ponto
de partida – um nível de generalização que posicionaria a antropóloga ou o antropólogo
“sobre” a vida das pessoas pesquisadas –, mas sim a possibilidade de um resultado que
é construído pela pesquisadora ou pesquisador quando levam-se a sério as conexões
sendo tecidas pelos povos e/ou grupos estudados, e, mais ainda, quando se leva a sério
que tais conexões têm o mesmo poder de mediação – de passagem de informação –, a
mesma efetividade que as próprias conexões produzidas pela pesquisa.
Assim, nos dois casos, tanto no da teoria etnográfica quanto no da teoria do ator-
rede, a superfície da vida, ou seja, a maneira de produzir relações das pessoas
pesquisadas é central para suas capacidades de produção de conhecimento. No entanto,
a teoria etnográfica de Malinowski realiza um movimento de descida, testa o universal
no encontro com os particulares e sobe novamente, a partir destes últimos, para alcançar
uma altura intermediária. A teoria do ator-rede busca colocar-se na mesma altura das
práticas estudadas, constrói sua eficácia não em uma generalidade de sobrevoo, mas sim
na expansão horizontal das redes que é capaz de traçar e produzir junto com as práticas
pesquisadas.
3.
4.
Pois, para voltar a Clastres (1979), é precisamente esse outro risco, o risco do
Outro, que ainda oferece à Antropologia algum tipo de abertura, uma possibilidade de
se autonomizar de sua paternidade inicial: o antropólogo ou antropóloga, afinal de
contas, é aquela pessoa que vive durante algum tempo com pessoas que a modernidade
considera como sua alteridade. E ainda que essa experiência seja inicialmente
possibilitada pela máquina de conquista do ocidente, como foi por exemplo o caso da
antropologia africanista do começo do século XX em contexto de colonização, o contato
com a diferença gera diferença, reverbera e afeta, transforma potencialmente a
antropóloga ou antropólogo. O desafio, portanto, é o de estimular essas reverberações,
tirar a ênfase da paternidade – ainda que a reconhecendo, utilizando-se das ferramentas
conceituais que ela nos herda – para tecer novas alianças laterais.
Assim, silêncio e diálogo não são opções para a antropologia, pois até colocar a
questão sob esses termos, como opções, restitui subrepticiamente o descolamento da
antropologia da vida que ela estuda. Silêncio e diálogo são, antes de tudo, forças
simultaneamente presentes no encontro antropológico – é o silêncio que, afinal de
contas, possibilita reorganizar essa prática de encontro e tradução como uma disciplina,
ou seja, como uma instituição de conhecimento razoavelmente isolável nas ciências
humanas da modernidade; e é o diálogo, afinal de contas, que garante a possibilidade do
próprio encontro.
O ponto, portanto, não é escolher entre um e outro, mas sim decidir a qual dessas
duas potências adicionamos nossa própria força. E não nos enganemos: a máquina de
dominação e violência da modernidade já demonstrou repetidas vezes que não prescide
da Antropologia para seguir funcionando. Ao dar força ao silêncio, nós, antropólogas e
antropólogos, não temos absolutamente nada a ganhar.
Bibliografia:
Goldman, Marcio. “O fim da antropologia”, in: Novos Estudos – CEBRAP, nr. 89, São
Paulo: 2011.
Evans-Pritchard, Edward E. “The Nuer of the Southern Sudan”. In: Edward E. Evans-
Pritchard e Meyer Fortes (eds.), African Political Systems. Oxford University Press,
Oxford, 1940.
Lienhardt, Godfrey. Divinity and Experience. The Religion of the Dinka. Oxford:
Oxford University Press, 1961.
________. “The Method of Field-Work and the Invisible Facts of Native Law and
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________. “What is Kinship all About?”. In: Priscilla Reining (ed.). Kinship Studies in
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Simpson, Audra. “Why White People Love Franz Boas; or, The Grammar of Indigenous
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2018.
Wagner, Roy. The Invention of Culture. Chicago: The University of Chicago Press,
1981 [1975].
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