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Motivado por uma recente polêmica internacional sobre essa questão, Luiz Fernando Dias Duarte
comenta, em sua coluna de estreia, as tensões existentes entre a faceta científica e objetivista e o
lado interpretativo e subjetivo dos vários campos do conhecimento.
A antropologia abrange desde propostas que valorizam mais o cientificismo, como a do sociólogo francês
Émile Durkheim (à esquerda), até modelos mais interpretativos, como o do sociólogo alemão Max Weber (à
direita). (fotos: Wikimedia Commons)
No começo de dezembro de 2010, um artigo publicado no The New York Times com o mesmo título acima
desencadeava uma polêmica internacional. O texto foi escrito a partir da constatação de que um
documento programático da prestigiosa Associação Antropológica Americana (AAA) deixava de mencionar a
categoria ‘ciência’ entre os objetivos da associação e levantava diversas dúvidas sobre o sentido dessa
decisão, umas mais políticas, outras mais epistemológicas.
A posterior declaração oficial da associação de que não tinha havido uma intenção específica para a
controversa ausência não amainou a celeuma.
A questão que aí se apresenta não é específica da antropologia, nem do conjunto das ciências humanas,
mas abrange todo o empreendimento em que se construiu a ambição de um conhecimento objetivo, não
mediado e sistematicamente controlado sobre a chamada ‘realidade’.
O projeto iluminista de esclarecimento racional universal permanece mais vivo do que nunca
O projeto iluminista de esclarecimento racional universal baseado na redução e controle das circunstâncias
empíricas dos fenômenos naturais começou a se institucionalizar no século 17, sobretudo a partir da
poderosa obra do físico e matemático inglês Isaac Newton (16431727).
E hoje permanece mais vivo do que nunca, alimentado pelo crescente poderio da tecnologia derivada das
ciências naturais e pela ambição de uma autonomização ilimitada da experiência humana em relação às
condições originárias da espécie.
Ocorre, porém, que, desde muito cedo, levantouse no Ocidente uma dúvida e reação a esse projeto. Essa
reação, que se pode englobar sob a rubrica de uma filosofia romântica, ponderava que a experiência
humana era muito mais complexa e mediada do que a da simples matéria, mesmo que não se
considerasse necessário recorrer a concepções de cunho religioso, sobrenatural ou extraordinário.
A mediação pela percepção subjetiva se impunha como limitação constante à ambição de um
conhecimento puramente objetivo e também como condição para uma verdadeira e profunda compreensão
das condições e do sentido da presença humana no mundo.
O nascimento das ciências humanas
As ciências humanas nasceram ao longo do século 19 como resultado da tensa imbricação entre o
empenho iluminista e a pulsão romântica.
As ciências humanas nasceram como resultado datensa imbricação entre o empenho iluminista e a pulsão
romântica
A antropologia, desde o seu início, apresenta os sinais dessa tensão de modo paradigmático, já que
compõe um leque amplo de investimentos de conhecimento e compreensão, influenciados pelas diversas
correntes filosóficas da modernidade, e em confronto com os mais variados sistemas simbólicos
alternativos.
Esse leque sempre abrangeu desde propostas mais ‘positivistas’ (que valorizavam o cientificismo), como as
que se acredita serem características do sociólogo francês Émile Durkheim (18581917) ou do cientista
social britânico Alfred RadcliffeBrown (18811955), até propostas mais ‘interpretativas’, simbólicas, como as
do sociólogo e economista político alemão Max Weber (18641920), do antropólogo britânico Edward
EvansPritchard (19021973), do antropólogo estadunidense Clifford Geertz (19262006) ou, mais
recentemente, as do antropólogo estadunidense Marshall Sahlins (1930).
Mas a tensão está presente no interior de cada corrente, de cada obra. O antropólogo polacobritânico
Bronislaw Malinowski (18841942) tanto pode ser considerado um defensor de uma visão materialista,
objetivista da tarefa antropológica, como o fundador do grande marco da metodologia compreensiva: o
‘trabalho de campo’, em que a mediação subjetiva não é um obstáculo, mas a condição mesma do saber
antropológico.
O antropólogo Bronislaw Malinowski inaugurou o uso da observação direta e subjetiva na metodologia antropológica. A foto
mostra o pesquisador com nativos nas ilhas Trobriand (Nova Guiné) durante trabalho de campo em 1918. (foto: Wikimedia
Commons)
O filósofo e economista alemão Karl Marx (18181883), o antropólogo germanoamericano Franz Boas
(18581942), o antropólogo francês Claude LéviStrauss (19082009), o filósofo francês Michel Foucault
(19261984), todos os grandes inspiradores da reflexão antropológica apresentam sinais de uma
disposição de esclarecimento objetivo entrelaçados com a consciência e explicitação das condições de
significação em que a ação e o pensamento humanos se atualizam.
Menciono aqui apenas os clássicos, mas a tensão continua a articular todos os grandes pensadores
contemporâneos, tanto mais porque as condições atuais de atividade dos antropólogos vêm favorecendo a
adoção de perspectivas mais ‘românticas’, em face dos efeitos destrutivos do projeto iluminista que se
alastram por todo o planeta.
A antropologia se construiu pelo diálogo com a alteridade cultural, por meio de uma complexa trama de
hipóteses, modelos e interpretações que tem reiteradamente reforçado a desconfiança da máquina de
achatamento do mundo implicado pela via iluminista, ‘reducionista’, ‘epifenomenista’, desenvolvimentista.
Racionalidade X subjetividade
É, assim, apenas mais um movimento dessa tensão constitutiva o fato de a AAA descrever sua tarefa como
a de ‘promover a compreensão pública da humanidade’.
Página da Associação Antropológica Americana na internet. A não inclusão da categoria 'ciência' entre os objetivos da
entidade gerou dúvidas e polêmica a respeito dessa decisão.
A locução é muito interessante. O verbo em inglês é ‘to advance’, absolutamente característico do projeto
iluminista – e, portanto, científico. Seu objeto é ‘understanding’, que traduz normalmente em inglês a
grande categoria romântica da ‘compreensão’ (Weber é particularmente conhecido pelo seu ‘método
compreensivo’ – o Verstehen alemão).
E os complementos retornam ao argumento iluminista, sublinhando que deve ser algo ‘público’, a serviço de
uma ‘humanidade’ – categorias igualmente constituídas no horizonte de afirmação da racionalidade
moderna.
Não há, portanto, muito com o que se preocupar. A antropologia continuará a ser uma ‘ciência’ e um ‘saber’,
estratégia de conhecimento e meio de compreensão. Manter essa tensão nunca foi fácil e continuará não
sendo; como um grave desafio para cada antropólogo e para toda a comunidade dos que assim se
consideram.
A antropologia continuará a ser uma ‘ciência’ e um ‘saber’, estratégia de conhecimento e meio de
compreensão
Alguns, como os “critical anthropologists” citados na denúncia do programa da AAA feita pelo NYT,
desejarão que a disciplina seja menos objetivista em nome da assunção da defesa dos interesses de seus
interlocutores mais frágeis ou subordinados. Outros, como os “pósmodernos”, desejarão que seja menos
objetivista em nome do caráter radicalmente dialogal, interconstruído, de que qualquer saber sobre o
humano se revestiria.
Mas afinal, ainda assim, todos estarão de algum modo respondendo à demanda de um ‘avanço’, de uma
iluminação, mesmo que paradoxal. Ninguém propugna um encerramento da tarefa de conhecer ou
compreender. E talvez a característica mais profunda da ciência seja essa, a de não se resignar com o já
sabido, de desconfiar das convenções vigentes e sempre ambicionar mais luz.
A preocupação deve ser ainda menor porque os cientistas ditos “hard” há muito vêm se questionando sobre
diversas facetas do projeto iluminista que os constituiu e que os sustenta fundamentalmente.
Mais ou menos próximos de fórmulas ‘românticas’, físicos, biólogos, médicos, matemáticos inquiremse
também sobre o que quer dizer ‘ciência’, ‘matéria’, ‘realidade’, sem que precisem banir essas intrigantes
categorias dos programas de suas sociedades. O reconhecimento da mediação subjetiva, seja no plano da
própria produção do conhecimento, seja no das implicações sociais do conhecimento científico, tende a se
generalizar em todas as áreas.
Se a preocupação não deve ser grande, o interesse de compreender a presente polêmica é enorme, no
entanto. Porque, mesmo que reitere um movimento de longo alcance histórico, emerge de uma forma
específica neste tempo específico – e é assim sintoma dos agenciamentos de significação que hoje nos
cercam. Uma questão de sentido, certamente; mas não apenas da antropologia.
Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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