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RECONSIDERAÇÕES DE CLASSE: PRECARIEDADE COMO

PROLETARIZAÇÃO1

BRYAN D. PALMER

O pôr do indivíduo como um trabalhador, nessa


nudez, é ela própria um produto histórico.2
Karl Marx

A experiência de conflito de classe, mobilização proletária e consciência de classe


– visivelmente clara nos períodos de 1917-21, 1934-37 e 1946-48 – entrou novamente no
calendário em meados dos anos 1960, quando o Socialist Register foi fundado.
Movimentos de lideranças sindicais3 e discussões sobre o controle de trabalhadores e
trabalhadoras animavam parte considerável da esquerda no Reino Unido. Com o Partido
Trabalhista no poder, havia um empolgado debate objetivando desenvolver um programa
de avanço socialista. Este programa iria na direção oposta à inclinação reformista de
colapsar uma sensibilidade estratégica em um beco sem saída de uma política de
rendimentos.4 Nos Estados Unidos e Canadá, a crescente insatisfação em círculos de
trabalho tomaram formas variadas. Em meados dos anos 1960, uma onda de “greves
selvagens”5 foram eventualmente domadas,6 mas foram rapidamente seguidas, no início


1
Texto originalmente publicado em Socialist Register 2014 (Registering Class), London, The Merlin
Press, 2013, pp. 40-62. Tradução Renato Rodrigues da Silva.
2
MARX, Karl. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia
política. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 388.
3
Nota do tradutor: No original ‘shop steward’. Expressão que se refere a um delegado eleito por
trabalhadores e trabalhadoras pra negociar diretamente com a administração do lugar onde trabalham.
4
Ver, por exemplo, as discussões sobre “política de rendimentos” em A.J. Topham, ‘Background to the
Argument’, Ken Coates, ‘A Strategy for the Unions’, e Ralph Miliband, ‘What Does the Left Want’,
Socialist Register 1965, New York: Monthly Review Press, 1965, pp. 163-94; assim como Richard
Hyman, ‘Workers’ Control and Revolutionary Theory’, Socialist Register 1974, London: Merlin Press,
1974, pp. 241-78.
5
Nota do tradutor: No original “wildcat strike”. Expressão que se refere a greves sem aviso prévio, como
é exigido em muitas legislações. Mas “wildcat” é um termo usado pra felino de grande porte e selvagem,
o que faz referência à ideia de “selvagem”.
6
Bryan D. Palmer, ‘Wildcat Workers: The Unruly Face of Class Struggle’, Canada’s 1960s: The Ironies of
Identity in a Rebellious Era, Toronto: University of Toronto Press, 2009, pp. 211-41.
dos anos 1970, por muita discussão sobre o “blues de colarinho azul”7 nas fábricas da
General Motors com a dispersão de uma linha de montagem complexa em Lordstwon,
Ohio.8 Detroit deu a luz à Liga Revolucionária dos Trabalhadores Negros.9 Ben Hamper
identificou um fenômeno de resistência no chão de fábrica, que chamou de “Rivethead”;
este fenômeno derivaria menos de uma crença individual de fuga do trabalho e mais de
um afiado antagonismo de classe.10 Maio de 1968 testemunhou a união de trabalhadores
e trabalhadoras em grandes protestos na França,11 enquanto o governos dos conservadores
[tories] de Edward Heath no outro lado do canal [da Mancha] ruía em 1974. Uma
intensificação do conflito de classe nos quatro primeiros anos da década derrotou a
legislação anti-sindical, acabou com o congelamento de salários e desencadeou a
ocupação de fábricas por militantes, evitando o fechamento de fábricas. Duas greves de
mineradores – uma em 1972, outra em 1974 – finalmente selou o destino dos
conservadores. Elas ajudaram a trazer o Partido Trabalhista de volta ao governo, com a
retórica militante de uma “mudança fundamental no poder de classe”, proposta por
aqueles nas suas fileiras que percebiam um descompasso visível em sua liderança
morna.12

Esse “momento” da luta de classes, de 1965-75, foi possivelmente o último


momento de resistência trabalhista no clima de economia vacilante do longo boom pós-
segunda guerra que estava obviamente em desacelaração. Em meados dos anos 1970, os
termos da luta de classes haviam se transformado. Vitórias da classe trabalhadora foram
percebidas na militância extra-parlamentar da luta de classes. Também eram visíveis no


7
Nota do tradutor: No original, blue collar blues. O autor joga com o trocadilho entre blues (melancolia,
insatisfação) e o fato de trabalhadores e trabalhadoras braçais e operários serem chamados de “colarinho
azul”.
8
Barbara Garson, ‘Luddites in Lordstown’, Harper’s Magazine, June, 1972, pp. 68-73; Judson Gooding,
‘Blue-Collar Blues on the Assembly Line’, Fortune, July, 1970, pp. 112-3; Jefferson Cowie, Stayin’
Alive: The 1970s and the Last Days of the Working Class, New York and London: New Press, 2010.
9
James A. Geschwender, Class, Race, and Worker Insurgency: The League of Revolutionary Black
Workers, Cambridge: Cambridge University Press, 1977.
10
Bill Watson, ‘Counter-planning on the Shop Floor’, Radical America, May-June, 1971; and Ben Hamper,
Rivethead: Tales from the Assembly Line, Boston: Warner, 1991.
11
Daniel Singer, Prelude to Revolution: France in May 1968, Boston: South End Press, 2002; Kristin Ross,
May ’68 and Its Afterlives, Chicago: University of Chicago Press, 2002.
12
Sobre conflito de classe ver: Richard Hyman, ‘Industrial Conflict and the Political Economy’, Socialist
Register 1973, London: Merlin, 1973, pp. 101-54, que pesquisa a década de 1960 e o início da década de
1970. Sobre a greve de mineiros de 1972, E.P. Thompson, ‘A Special Case’, Writing by Candlelight,
London: Merlin, 1980, pp. 65-76. Ver também L. Panitch, Social Democracy and Industrial Militancy,
Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1976, 204-34.
lento e consistente aumento da densidade dos sindicatos. Estes viram, ao longo do tempo,
a percentagem da força de trabalho não-agricultora associadas a organizações sindicais
subirem até 35 por cento, mesmo no bastião do “excepcionalismo” ostensivo, os Estados
Unidos. Estas vitórias desaceleraram, pararam e esfarelaram.

Formações políticas de oposição – tendências militantes, coletivos anarquistas e


as vanguardas aspirantes dos “novos comunistas” – vieram à luz, fizeram suas vozes
serem ouvidas e então, com muita frequência, desintegravam-se. A cadência do conflito
de classe reduziu em um climatério que iria, ao longo das décadas, ver a participação em
sindicatos cair para um terço da porcentagem dos anos anteriores. Militantes da classe
trabalhadora em quase todos os lugares tiveram a essência da militância sugada deles e
delas, e a confiança nos círculos trabalhistas empalideceu conforme a vantagem foi
tomada por adversários de classe. De 1975 até o presente, o capital tem re-escrito o roteiro
das relações de classe no desenvolvimento das economias capitalistas no Ocidente,
usando uma série de crises que se aprofundavam para disciplinar não apenas o trabalho,
mas todas as forças dissidentes, utilizando-se da miríade de poderes do estado e
desencadeando ofensivas materiais e ideológicas de vigor sem precedentes.

O resultado: declínio no padrão de vida material da classe trabalhadora como um


todo; a domesticação de um sindicalismo combativo, substituído por um maquinário de
concessões barganhadas; uma geração de jovens trabalhadores e trabalhadoras roubadas
do seu senso de localização de classe, cujo futuro é marcado por insegurança, com
prospecção de empregos que são entendidos como precarizados. Após décadas de recuo,
as derrotas da classe trabalhadora assumiram um caráter cumulativo, e os resultados são:
uma classe frequentemente despida da sua capacidade de luta; sua liderança
progressivamente caracterizada por cautela e pela sensibilidade de um corpo burocrático
ossificado. Mas também há, em escala global, indicações de mobilizações de classe que
ameaçam romper esta estagnação. Mark Davies afirma que “duzentos milhões de
trabalhadores e trabalhadoras de fábrica chineses e chinesas, mineradores e mineradoras,
e trabalhadores e trabalhadoras da construção [civil] são a classe mais perigosa do planeta.
(Pergunte só ao Conselho de Estado de Beijing). Seu completo despertar da bolha pode
um dia determinar se uma Terra socialista é possível ou não.”13 O otimismo de David é


13
Mike Davis, ‘Spring Confronts Winter’, New Left Review, 72(November-December), 2011, p. 15. Ver
também Kwan Lee, Against the Law: Labour Protests in China’s Rustbelt and Sunbelt, Los Angeles:
University of California Press, 2007.
revigorante, mas um certo pessimismo pode também estar na ordem do dia. A consciência
de classe e o apetite pela militância no seio do proletariado chinês está sujeito a um grande
número de restrições, incluindo limitações na agência da classe trabalhadora. Estas
limitações são características das relações de classe forjadas no caldeirão do Estado
estalinista-maoísta, saindo de uma economia planejada em direção a uma integração
numa ordem global capitalista com a qual ainda precisa se alinhar totalmente.

De qualquer forma, o mundo em desenvolvimento e a natureza de suas formações


de classe certamente reforça a importância contemporânea da precariedade proletária. A
Organização Internacional do Trabalho estimou recentemente que o que pode ser
chamado de exército de reserva de trabalho é agora maior que os aproximadamente 1,4
bilhão de trabalhadores e trabalhadoras que são totalmente dependentes do trabalho
assalariado para subsistência. Esta reserva agora se estende bem além dos
aproximadamente 218 milhões de desempregados; uma crifa astronômica de 1,7 bilhões
de trabalhadores e trabalhadoras sendo designados como os e as “empregados e
empregadas vulneravelmente”. Uma porção significativa dessa reserva sem dúvidas não
tem salário, sendo composta por membros das economias marginais domésticas, que
batalham por sua existência material através de trabalhos não pagos, vasculhando [em
lixos] e outros empreendimentos ilícitos do tipo, associados com a vida nas favelas,
barrios e periferias da América Latina, Ásia e África. Frequentemente esse segmento de
despossuídos belisca sua remuneração quotidiana a partir de uma economia informal na
qual a luta pela subsistência se baseia nas armadilhas de um empreendedorismo auto-
exploratório mesquinho, como algo que se aproxima do trabalho assalariado.14 A
precariedade é axiomática. O que Davis chama de “a classe trabalhadora global informal”
– um estrato sócioeconômico que ele enxerga “sobreposta mas não-coincidente com a
população de favela” [slum] – agora ultrapassa o número de um bilhão, “tornando-se
classe social com o crescimento mais rápido, sem precedentes na terra”.15

Mas a precariedade constitui uma formação de classe separada e distinta, por si


só? Se sim, então, dentro de um espectro de possibilidades quase infinitas, empregos
precários são, em sua fragmentação, constitutivos de classes particulares e específicas.


14
Os primeiros comentários sobre a crescente importância da economia informal apareceram em Manfred
Bienefeld, ‘The Informal Sector and Peripheral Capitalism’, Bulletin of the Institute of Development
Studies, 4, 1975, pp. 53-73; e a importância do setor informal em termos da formação de classe Africana
é discutida em Bill Freund, The African Worker, Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
15
Mike Davis, Planet of Slums, New York and London: Verso, 2006, p. 178.
Essas classes então necessariamente ocupam diferentes lugares de classe, com interesses
de classe contrapostos àqueles em outros setores de trabalho. É o propósito deste artigo
sugerir que esse tipo de pensamento (que recentemente ganhou destaque) é antagônico a
elementos basilares do pensamento marxista e irá, inevitavelmente, ter consequências em
termos de luta e prática que são divisivas e contraprodutivas.16

PRECARIEDADE COMO CLASSE SOCIAL

Liderando a posição analítica que declara os trabalhadores e trabalhadoras


precarizados e precarizadas como uma nova força de classe, uma força que deve ser
levada em consideração dentro das lutas sociais de nossos tempos, está Guy Standing.
Standing, por exemplo, insiste que em nossas atuais reconfigurações de trabalho e de vida
quotidiana “o precariado está em suas fileiras da frente, mas ainda tem que achar sua voz
para trazer sua agenda à sua frente. Ele não é o ‘meio espremido’ ou a ‘subclasse’ ou ‘a
parte de baixo da classe trabalhadora’. Ele tem um conjunto distintivo de inseguranças e
terá um igualmente distinto conjunto de demandas.”17 Tais alegações se baseiam no
entendimento de que há uma nova hierarquia formativa de classes. Essa hierarquia surgiu
quando a economia global neoliberal rompeu o velho e cinzento regime fordista, com
acumulação baseada no sistema fabril e a rotina de emprego “de nove às cinco” [em
termos de horário de trabalho]. Esse sistema (fordista) era definido pelas contínuas
relações de trabalho que foram ordenadas, em parte, por proteções trabalhistas
conseguidas pelos sindicatos. Identidades enquanto classe trabalhadora foram deixadas
de lado; um senso de poder proletário como agente transformador de relações sociais de
exploração e opressão agora havia acabado.


16
Nem toda a recente literatura sobre precariedade está mal encaminhada. Apesar de abordar o tema de
uma perspectiva completamente diferente do presente artigo, abordando o precariado a partir de uma
perspectiva de estudos culturais e colocando ênfase excessiva na “economia de conhecimento”,
“indústrias criativas” e “revoluções culturais”, Andrew Ross recusa a sugestão de que o precariado é
necessariamente uma formação de classes cruzadas e que não há nada que una aqueles que trabalham em
setores como o proletariado tradicional, sindicalizado e aqueles que se encontram em empregos mais
precários. Ver seu Nice Work If You Can Get It: Life and Labor in Precarious Times, New York and
London: New York University Press, 2009.
17
Guy Standing, The Precariat: The New Dangerous Class, London and New York: Bloomsbury
Academic, 2011. Para esta citação nesse parágrafo e nos subsequentes, ver especialmente p. vii, 8-9, 154,
159, 183.
Esse é um novo capítulo do que já é um “recuo da classe”18 de três décadas. Ele
está ironicamente centrado na insistência de que as velhas estruturas e agências de classe
foram substituídas por novas, a despeito das formações de classe que são definidas pela
sua distância das estruturas de lugar de classe e das muitas desestabilizações que separam
essa nova classe precária do que costumavam ser as pedras de toque da identidade da
classe trabalhadora. Standing propõe a existência de uma escada de estratificação que
ordena as classes mais baixas da sociedade em componentes distintos: a classe
trabalhadora manual; o exército de desempregados; os desajustados [misfits] que possuem
uma existência completamente marginalizada; e o precariado composto majoritariamente
por jovens.

Para além da matriz intelectual de Standing, que possui classificações weberianas


e Lloyd Warnerianas, está um cemitério de implicações políticas, no qual estão enterradas
as possibilidades de um passado escrito como uma conclusão. Uma política trabalhista
esclerosada, de acordo com Standing, é simplesmente inadequada nos tempos modernos,
um resíduo de uma cansada social democracia, cuja afiliação com um movimento
trabalhista moribundo sendo pouco mais que uma ressaca de uma era anterior. Como um
precariado separado e liderado por jovens emerge como uma força classista distinta, de
acordo com Standing, ela irá escalar às alturas de novas mobilizações, criando lutas e
slogans correspondentes que irão deixar as velhas palavras de ordem, como
“Trabalhadores do mundo, uni-vos!”, descartadas como impedimentos inúteis. O
precariado é agora a nova classe social que é verdadeiramente perigosa, ameaçando a
ordem, um corpo de nômades encarnado sob a bandeira, “Residentes,19 Uni-vos!”.
Standing insiste que o precariado é uma única e distinta entidade de classe, relacionando
esta ao desmonte do setor público, à crescente importância e significância dos mercados
negros e às tensões geracionais associadas com seus ascendentes vivendo de subsídios
estatais (como pensões suntuosas). Standing incita esta força poderosa para uma mudança
rumo à utopia, chamando todos os advogados do multiculturalismo para se reunirem ao


18
Ver, por exemplo, Ellen Wood, The Retreat from Class: A New ‘True’ Socialism, London: Verso, 1986;
e Leo Panitch, ‘The Impasse of Working Class Politics’, Socialist Register 1985/6, London: Merlin, 1986;
assim como os artigos subsequentes em ‘The Retreat of the Intellectuals’, Socialist Register 1990,
London: Merlin, 1990.
19
Nota do tradutor: O termo original “denizens” significa algo que não é natural de algum lugar mas que
se adaptou perfeitamente a ele, criando até mesmo raízes e se reproduzindo. Pode ser usado como forma
de falar de vegetais e espécies animais, mas também para cidadãos naturalizados.
redor de seu estandarte como uma questão quase que de seleção natural. “O precariado
não é vítima, vilão ou herói”, ele escreve, “é apenas muitos de nós”.

A resposta de Standing para a crise capitalista, a intensificação da expropriação,


o desmonte dos direitos trabalhistas e o ataque ao bem estar material da classe
trabalhadora que se manifesta numa insegurança crescente sobre trabalho assalariado –
elementos que constituem uma guerra de classes de cima para baixo – é não menos que
uma ideologia. É uma ideia sedutora em sua simplificada identificação de jovens,
inquietos e inseguros e inseguras com a fundação de um novo movimento de resistência.
Contudo, a despeito de toda sua atratividade para uma classe trabalhadora global cada vez
mais volátil, o resultado final a ser atraído por esta ideologia será a fragmentação do
potencial de fusão dos despossuídos através da separação de um setor dessa classe de
todos os componentes com os quais esse contingente poderia se aliar; enfraquecendo,
portanto, as forças anticapitalistas. A sugestão de que “classe”, sua composição e sua
importância estratégica de alguma forma mudou no passado recente (porque o trabalho
não é mais seguro) representa um recuo na direção da fragmentação, ao invés de uma
resposta criativa para essa questão. Também é um argumento fundamentalmente
ahistórico, uma vez que o trabalho sempre foi um fundamento precário da vida que viveu
no fio da navalha da despossessão [dispossession].

As reivindicações de uma nova classe (o precário) emergem logicamente do “pós-


modernismo pós-marxista” que, desde os anos 1980, se deleitaram no estudo da
marginalidade, repudiando as narrativas mestras “totalizantes” da classe e da luta de
classes que empolgavam o desejo de não apenas interpretar o mundo, mas de mudá-lo. A
tragédia é que essa postura ideológica provavelmente ganhará adeptos precisamente
porque as lideranças sindicais já estabelecidas ossificaram ao ponto que não podem mais
reivindicar a sensibilidade que instigava o movimento trabalhista em seu fazer: a
compreensão de que “uma lesão em um é uma lesão em todos.” Além disso, com a
esquerda revolucionária em estado moribundo de forma geral, há poucos e preciosos
fóruns nos quais as mobilizações de classe são saudadas como passos na criação de novas
organizações, partidos e estruturas de oposição que podem verdadeiramente se tornar
“tribunais do povo”, expressões da necessidade de resistir aos avanços capitalistas em
nome de uma agenda socialista de amplo espectro. No sentido contrário, há exemplos
europeus, como Portugal e Espanha, nos quais os marginalmente, informalmente e
inseguramente empregados são uma porcentagem crescente e cada vez mais importante
da classe trabalhadora (mais de 40 por cento), apresentando iniciativas organizacionais
(como a formação do movimento Precári@s Inflexíveis) que refletem esta realidade.20

Pra quem é marxista, a existência de tais organizações dos precariamente


empregados é reconfortante. Ainda assim, não há substituto para a poderosa união de
todos os componentes da classe trabalhadora, que deve ser unida em suas lutas contra o
capitalismo e ferrenha em sua recusa à divisão, orientada pelas conveniências do
capitalismo ao invés das necessidades da humanidade socializada. Neste sentido, resistir
à ideologia da precariedade como formação de classe é um ponto de partida teórico. Para
tal, é necessário retornar aos fundamentos teóricos originais do materialismo histórico, e
formular em que medida a despossessão (da qual fluem todas as formas de inseguranças
e todas as formas de precariedade na relação assalariada) sempre foi o traço fundamental
da formação de classe ao invés de uma base material de uma classe nova e
comtemporânea, com uma agenda silenciosa a respeito da necessidade do socialismo.

DESPOSSESSÃO COMO CLASSE SOCIAL: AS ORIGENS DO MATERIALISMO


HISTÓRICO

No posfácio da segunda edição alemã de O Capital, Marx declarou que “o


movimento da sociedade capitalista, repleto de contradições, revela-se ao burguês prático,
de modo mais contundente, nas vicissitudes do ciclo periódico que a indústria moderna
perfaz e em seu ponto culminante: a crise geral. Esta já se aproxima novamente, embora
ainda se encontre em seus estágios iniciais e, graças à ubiquidade de seu cenário e à
intensidade de seus efeitos, há de inculcar a dialética até mesmo nos parvenus [novos
ricos] do novo Sacro Império Prussiano-Germânico”.21 A premissa de partida do
progresso capitalista é a destruição capitalista. “A crescente inadequação do
desenvolvimento produtivo da sociedade às suas relações de produção anteriores
manifesta-se em contradições agudas, crises, convulsões”, Marx escreveu nos


20
Ver Ricardo Antunes, ‘The Working Class Today: The New Form of Being of the Class Who Lives from
its Labour’, Workers of the World: International Journal on Strikes and Social Conflict, 1(2), January,
2012.
21
K. Marx, “Posfácio da segunda edição”, in K. Marx, O capital – Livro 1, trad. Rubens Enderle. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2013. p. 91. Citação do original em: Karl Marx, Capital: A Critical Analysis
of Capitalist Production, Volume 1, Moscow: Foreign Languages Publishing House, n.d., p. 20.
Grundrisse, concluindo que “A destruição violenta de capital, não por circunstâncias
externas a ele, mas como condição de sua autoconservação, é a forma mais contundente
em que o capital é aconselhado a se retirar e ceder espaço a um estado superior de
produção social.”22

O socialismo era necessário, argumentavam Marx e Engels, caso a humanidade


quisesse transcender a lógica destrutiva do sistema de lucro, que era “demasiado estreito
para conter as riquezas” que ele próprio criava:

E de que maneira consegue a burguesia vencer essas crises? De um lado, pela


destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas; de outro, pela
conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos. A que
leva isso? Ao preparo de crises mais extensas e mais destruidoras e à diminuição
dos meios de evitá-las.23

Formação de classe, algo sobre o qual Marx escreveu relativamente pouco, nunca
foi separável desse entendimento de capitalismo como crise. Épocas anteriores viram a
sociedade se fragmentar em “classes distintas, uma múltipla gradação de posições sociais
[...] patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos, [...] vassalos, mestre de corporações,
aprendizes, companheiros, servos”.24 O capitalismo, em contraste, “caracteriza-se por ter
simplificado os antagonismos de classe.” Sob o ímpeto revolucionário da burguesia, a
sociedade civil foi dividida em “dois campos opostos, em duas grandes classes em
confronto direto: a burguesia e o proletariado.”25 Este era, para Marx e Engels, o fato
sócio-político fundamental das relações humanas do capitalismo. A despeito da classe
trabalhadora estar pluralizada (no linguajar político da época), fragmentada por
identidades com caráter de nacionalidade, religião, moralidade e status, Marx e Engles
insistiram que os proletários, recrutados de todas as classes anteriores, estavam
finalmente sendo aproximados em uma associação inevitável pelo que lhes faltava:
propriedade. Uma expropriação original, generalizada (eventualmente através de


22
K. Marx, Grundrisse, trad. Mario Duayer e Nélio Schneider, São Paulo: Boitempo Editorial, 2011. p.
1034. A referência do original é: Marx, Grundrisse, pp. 749-50.
23
K. Marx & F. Engels, Manifesto Comunista, trad. Álvaro Pina, org. e introd. Osvaldo Coggiola, São
Paulo: Boitempo Editorial, 2005. p. 45. No original, citação de: Karl Marx and Frederick Engels,
‘Manifesto of the Communist Party’, in Karl Marx and Frederick Engels, Selected Works, Moscow:
Progress, 1968, pp. 36-46.
24
Marx e Engels, Manifesto, p. 40.
25
Marx e Engels, Manifesto, p. 41.
gerações) pela despossessão, definiu a massa da humanidade como inerentemente oposta
à poderosa e proprietária minoria, e os isolamentos da vida de trabalho dariam lugar “a
uma combinação revolucionária”. O capitalismo e a burguesia produziram “seus próprios
coveiros”. Essa reflexão é fundamental para o que Marx e Engels insistiam ser um
processo, calcado em que tudo que é sólido desmancha no ar, de homens e mulheres sendo
finalmente “compelidos a encarar sobriamente” suas “reais condições de vida.”26

Em retrospectiva, e com uma apreciação histórica da formação da classe na longue


durée, é claro que Marx e Engels escreveram em uma conjuntura específica, precedida
pela dissolução das relações feudais e seguida pela consolidação de relações sociais
capitalistas progressivamente estruturadas, das quais mercados de trabalho diferenciados
eram uma parte integral. Com efeito, a análise marxista de relações de classe
necessariamente abordam valor, extração de excedente e regimes de acumulação, mas o
processo anterior (e sempre em curso historicamente)27, do qual tudo isto é pressuposto,
é necessariamente a expropriação e, no longo termo, a continuidade da desapropriação.
Desta forma, no capítulo 23 [das edições em inglês, correspondente ao 21 das edições em
português] de O Capital, Marx declara, em sua discussão da reprodução simples e das
relações entre senhores e servos, ‘Se amanhã o senhor feudal se apropriasse da terra, dos
animais de tração, das sementes, em suma, dos meios de produção do camponês
submetido à corveia, este teria, doravante, de vender sua força de trabalho ao senhor”.
Enquanto isso, no capítulo 25 [nas edições em inglês, 23 nas edições em português], sobre
“A Lei Geral de acumulação capitalista”, Marx criticou (porém se valeu dele) o livro de
Sir Frederick Morton Eden, O estado dos pobres: ou, uma história das classes
trabalhadoras da Inglaterra (1797). Contrariamente à visão de Eden de que os
capitalistas emergentes que comandavam a produção da indústria deviam sua dispensa do
trabalho da “civilização e ordem”, Marx argumentava que

A reprodução da força de trabalho, que tem incessantemente de se incorporar ao


capital como meio de valorização, que não pode desligar-se dele e cuja submissão
ao capital só é velada pela mudança dos capitalistas individuais ao quais se vende,


26
Marx e Engels, Manifesto, p. 40, 41. No original, a citação é a apenas Marx and Engels, ‘Manifesto’. O
texto original de Brian Palmer só possui notação ao final do parágrafo, não referenciando as frases
anteriores.
27
Ver PALMER, Bryan D. ‘Social Formation and Class Formation in Nineteenth-Century North America’,
in David Levine, ed., Proletarianization and Family History, New York: Academic Press, 1984, pp. 229-
308.
constitui, na realidade, um momento da reprodução do próprio capital.
Acumulação do capital é, portanto, multiplicação do proletariado.28

Marx citou o humorista satírico, filósofo e economista político, Bernard de


Mandeville, que notou que “onde a propriedade é assegurada, seria mais fácil viver sem
dinheiro que sem os pobres; porque quem faria o trabalho?” Desapropriação, então, é a
base de toda a proletarização, que ordena a acumulação. Apenas o socialismo pode
terminar este ciclo de desapropriação/acumulação/crise/desordem, cuja resolução parcial
e temporária no capitalismo só pode acontecer através da sangria de outra etapa de
desapropriação violenta.29

DESPOSSESSÃO COMO CLASSE SOCIAL: O PASSADO É PRECARIEDADE

Da posição estratégica de Marx, informado pela ordenação metódica e clara de


evidências e outras fontes seguindo a proposta de Eden, a proletarização fluiu
historicamente, um gotejamento que começou na antiguidade e cresceu até um riacho no
século XVII. Cristopher Hill descreve as massas sem-mestre que supriram as tropas de
choque dos Diggers e Levellers na década de 1640, a população “excedente” que criou o
excedente do qual a classe capitalista iria se formar. Ele se refere a uma

fermentação e mobilidade dos invasores de florestas, dos artesãos e pedreiros


itinerantes, de desempregados de ambos os sexos em busca de trabalho, de atores,
menestréis e jograis ambulantes, bufarinheiros e charlatões, ciganos, vagabundos,
vadios, concentrando-se principalmente em Londres e nas grandes cidades, mas
também deitando ramificações em áreas de ocupação ilegal mais antiga, onde
houvesse demanda de trabalho […].30


28
Marx, Capital, p. 690.
29
No original, Marx, Capital, pp. 568, 612-6. Ver também Marx, Grundrisse, esp. pp. 483-509.
30
Christopher Hill, O mundo de ponta-cabeça. Idéias radicais durante a Revolução Francesa de 1640.
Trad. e apresentação, Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 65. No original,
Christopher Hill, The World Turned Upside Down: Radical Ideas during the English Revolution, New
York: Viking, 1972, p. 39.
Foi desse “submundo” que as tripulações de embarcações e exércitos foram recrutados, e
dos quais os assentamentos migratórios que povoou o novo mundo foi formado.31

Pela metade do século XIX, esse fluxo de desapropriação se tornou um rio


torrencial de formação de classe, nutrido por correntes submersas de cercamentos,
guerras, substituição tecnológica de trabalhos artesanais e outras forças de expropriação
e deslocamento. Marx e Engels talvez possam ser perdoados por verem proletarização
nesse tempo como um processo em amadurecimento, ao invés de um que estava de fato
apenas chegando à sua adolescência. Nas décadas seguintes, a formação de classe iria se
consolidar e se enrijecer. Contudo, esse seria um projeto extremamente desigual, e nunca
um no qual algo parecido com “estabilização” ocorreu. Desapropriação sempre foi
desordenada: o velho empurrou e sacudiu o novo, camadas de trabalho foram estruturadas
em locais aparentemente contraditórios, com suas designação indo do aristocrático
(burocrata)32 ao degradante (as classes perigosas, os resíduos).33 E complicando essa
caótica formação e re-formação da experiência de classe estava o potente elemento
disruptivo do recalcitrante lado inferior do capitalismo: a crise.

Uma classe trabalhadora concebida como forjada do processo de desapropriação


é, portanto, central, não apenas para o pensamento de Marx e Engels, mas para a
realização monumental de E. P. Thompson, A formação da classe operária inglesa, que,
em 2013, completou cinquenta anos da data de publicação original. De fato, Thompson
explorou o cadinho da formação de classe na Inglaterra no período de 1790-1830
destacando como uma massa de pessoas anteriormente empregadas de formas diversas,
nas quais variadas formas de trabalho evoluíram, se tornaram, a partir de lutas e crises,
uma classe trabalhadora. Ele se baseou em Henry Mayhew, cujos escritos sobre o


31
Idem.
32
Nota do tradutor: O original é “black-coated worker”, um termo que pode indicar tanto membros do clero
quanto trabalhadores e trabalhadoras de escritórios (um sinônimo da expressão é “pencil pusher”). A
dificuldade em traduzir esta expressão está no fato de que ela é utilizada para diferenciar quem trabalha
em escritórios de quem executa trabalhos manuais.
33
A literatura que poderia ser citada é imensa, e Londres é a grande referência entre 1850 e 1890 pelas
pesquisas sociológicas pionerias de Henry Mayhew e Charles Booth. Ver, para outro comentário útil,
Raphael Samuel, ‘Workshop of the World: Steam Power and Hand Technology in Mid-Victorian Britain’,
History Workshop Journal, 3, 1977, pp. 6-72; Gareth Stedman Jones, Outcast London: A Study in the
Relationship Between Classes inVictorian Society, Oxford: Oxford University Press, 1971; e para a
França, Louis Chevalier, Laboring Classes and Dangerous Classes in Paris During the First Half of the
Nineteenth Century, New York: Howard Fertig, 1973; Robert Stuart, Marxism at Work: Ideology, Class
and French Socialism during the Third Republic, Cambridge: Cambridge University Press, 1992, pp. 127-
79.
trabalho e os pobres em Londres emergiram aproximadamente ao mesmo tempo que os
comentários de Marx e Engels. Mayhew analisou a medida em que o mercado de trabalho
capitalista estava estruturado em uma série de formas arbitrárias. Ele [o mercado] era
dependente do trabalho que podia apenas ser conduzido sazonalmente, a depender de
modismos e acidentes, ordenado por sobretrabalho e pequenos golpes no comércio de
varejo, constantemente reconfigurado pela diluição de perícias, que viu mulheres e
crianças serem inseridas em ofícios específicos para reduzir salários, reestruturado por
inovações de gestão e de maquinaria. Recrutados para as metrópoles pela dissolução das
relações baseadas na terra e a destruição do artesanato aldeão, trabalhadores e
trabalhadoras assalariados e assalariadas lutaram através do tempo com disciplinas
impessoais de um mercado de trabalho sempre abarrotado de limitações agudas. Mayhew
concluiu que o empregamento regular estava disponível para aproximadamente 1,5
milhões de trabalhadores e trabalhadoras, enquanto trabalho de meio expediente podia
garantir uma cifra extra de outro 1,5 milhão, com mais outro 1,5 milhão que estariam
totalmente desempregados ou trabalhando ocasionalmente apenas ao desalojar aqueles
que consideravam trabalhos específicos como o seu terreno de atuação.

Isso pode parecer qualquer coisa menos um grupo coerente, as “classes


trabalhadoras” que foram descritas como um “pacote de fenômenos discretos”. Contudo,
Thompson defendeu que era uma classe trabalhadora que foi de fato formada no
caldeirão da Revolução Industrial e na contra-revolução da propriedade, ambos processos
históricos que foram ou conduzidos forçadamente ou instigados pela burguesia. Ambos
os processos também foram ou dependentes de ou dirigidos contra aqueles que eram
paulatinamente despossuídos de propriedade e poder sobre suas vidas. Classe constituía
uma “identidade de interesses... das mais diversas ocupações e níveis de concretização”,
e foi forjada no antagonismo às tentativas de transformar todos esses componentes em
“uma espécie de máquina”. Se a classe foi composta de várias partes, provenientes de
uma miríades de experiências de despossessão, as compreensões de Marx, Engels e
Thompson convergem: todas essas camadas de formação de classe foram postas juntas,
não tanto porque elas vieram ou foram integradas em uma uniformidade absoluta, mas
porque seus cursos de vida foram determinados em última instância por processos e
resultados similares.34


34
E.P. Thompson, The Making of the English Working Class, Harmondsworth: Penguin, 1968, esp. pp. 9-
11, 276-7, 887-8. Isto não nega o que Thompson iria sublinhar posteriormente, e que é congruente com
O ponto é que não há nada de novo sobre fragmentações da experiência de classe,
como uma rica historiografia revela, e como é evidente na Formação de Thompson, com
seus relatos de protoindustrialização e trabalhadores a domicílio, do campo, de ofícios em
decadência, “Rei multidão” e “Igreja multidão”, sociedades obscuras de quebradores de
máquinas, os habitantes das “Fortalezas de Satã” e artesãos metropolitanos. Classe
sempre corporificou diferenciação, insegurança e precariedade. Assim como a
precariedade é historicamente inseparável da formação de classe, há invariavelmente
diferenciações que aparentemente separam aqueles com acesso a empregos estáveis e
pagamentos seguros daqueles que precisam correr atrás de trabalho e acesso a salário.
Expropriação é, portanto, uma experiência altamente heterogênea, uma vez que nenhum
indivíduo pode ser desapropriado da mesma maneira que outro, ou viver no processo de
alienação material exatamente como outro indivíduo o faria. Ainda assim, no geral
despossessão define a proletarização. É a metafórica marca de Caim estampada em todos
os trabalhadores e trabalhadoras, independente do seu nível de emprego, taxa de
pagamento, status, nível de salário ou grau de ausência de salário regular
[wagelessness].35

Essa tem sido a premissa de muitas das análises marxistas, evidente, por exemplo,
no (admitidamente genderizado) título do estudo de Martin Glaberman sobre a classe
trabalhadora dos Estados Unidos nos anos 1960, “Seja seu pagamento alto ou baixo” [Be
His Payment High or Low]. Glaberman notou, décadas atrás, que “o que está envolvido
através das indústrias não é a substituição de homens por máquinas automatizadas, mas
o descarte dos homens, o mover de outros e ainda trazer outros para a classe trabalhadora
industrial e a reorganização do processo de trabalho”.36 Este tipo de constante


os escritos subsequentes de Michael Lebowits e David Harvey, que Marx, em sua fixação por assinalar
uma anti-estrutura contraposta à estrutura da economia política convencional falhou em teorizar
adequadamente a formação de classe como algo que não seja o objeto da apropriação acumulativa de
excedente. Ver THOMPSON, E.P. Thompson, The Poverty of Theory & Other Essays, London: Merlin,
1981, pp. 60-5; LEBOWITZ, Michael. Beyond ‘Capital’: Marx’s Political Economy of the Working
Class, Basingstoke, UK: Palgrave Macmillan, 2003; LEBOWITZ, Following Marx: Method, Critique,
and Crisis, Leiden and Boston: Brill, 2009, pp. 308-11; HARVEY, David, The Limits to Capital, Chicago:
University of Chicago Press, 1982, p.163.
35
Para uma tentativa útil de lutar com a sempre presente tensão entre “universalista” e “excepcionalista”
compreensão do trabalho, ver CHAKRABARTY, Dipesh. Rethinking Working-Class History: Bengal,
1890-1940, Princeton: Princeton University Press, 1989, esp. pp. 219-30.
36
GLABERMAN, Martin. ‘Be His Payment High or Low: The American Working Class in the Sixties’,
International Socialism, 21 (Summer), 1965, p. 18-23. Glaberman naturalmente bebeu diretamente de
Marx: “Se segue, portanto, que em proporção à acumulação do capital, a porção do trabalhador deve
crescer menos, seja seu pagamento alto ou baixo”. Capital, p. 654.
reestruturação foi precisamente o que motivou a preocupação de Harry Braverman com
a degradação do trabalho no século XX.37 Apesar de, conforme Braverman alegava, o
processo de mudança nas relações de produção ter se intensificado na era do monopólio
do século XX, este processo agiu por décadas. Ele impressionava mesmo os primeiros
capitalistas, que não podiam conceber a “economia moral” de Adam Smith. “É em vão
ler seu livro para encontrar um remédio para uma queixa que ele não poderia conceber
que poderia existir, p. ex. cem mil tecelões ou tecelãs fazendo o trabalho de cento e
cinquenta mil”, escreveu um humanizado patrão inglês no início do século XIX. A
inabilidade deste homem de entender “que os lucros de uma manufatura devem ser o que
um mestre pode extorquir dos parcos rendimentos dos pobres, mais do que de outro
mestre” o levou à ruína.38

É neste contexto que a crise capitalista se tornou algo como um manacial perpétuo
do qual brota toda forma de reflexão teórica de novas formações de classe. Por exemplo,
a crise capitalista rapidamente introduziu novas iniciativas de luta de classes por parte da
burguesia. Ela [a crise] tem frequentemente suscitado novas táticas e reavaliações
estratégicas por parte da classe trabalhadora. A afirmação ahistórica de que a
precariedade do trabalho moderno é algo dramaticamente novo, necessitando de uma
revisão de tudo que tem sido sólido na abordagem marxista de classe deve ser, contudo,
rejeitada. Reconhecer a extensão da precariedade nas tendências contemporâneas de
formação de classe global não necessita de uma ruptura política e conceitual com os
entendimentos das possibilidades de uma unidade dos despossuídos, que permanece a
única esperança para uma humanidade socialista.

EXCEDENTE PROLETÁRIO, PRECARIEDADE E PAUPERIZAÇÃO

Uma identidade de classe estável ou, dicotomicamente, uma [identidade de classe]


precária – não são os elementos definidores da diferença de classe, uma designada
proletária e a outra definida como precariado. Ao contrário, como uma profunda
estrutura, a despossessão em si é fundamental, e através da história ela tem sido uma


37
BRAVERMAN, Harry. Labor and Monopoly Capital: The Degradation of Work in the Twentieth
Century, New York and London: Monthly Review Press, 1974.
38
Citado em THOMPSON, A Formação, p. 309.
ameaça contínua que amarra exploração e opressão. Marx notou isso em O Capital,
escrevendo que o enriquecimento capitalista estava pressuposto na “condenação de uma
parte da classe trabalhadora à ociosidade forçada em razão do sobretrabalho da outra
parte”, acelerando “a produção do exército industrial de reserva num grau correspondente
ao progresso da acumulação social”. Todo proletário e proletária pode, portanto, ser
categorizado, não tanto de acordo com seu trabalho assalariado, mas com as formas
possíveis de excedente populacional, que Marx nomeou “a flutuante, a latente e a
estagnada”. Isso é o porquê de a acumulação de capital ser também a acumulação de
trabalho, mas a multiplicação maltusiana do proletariado não necessariamente significa
que a classe trabalhadora irá, em sua inteireza, ser assalariada. Como Marx escreveu:

O sedimento mais baixo da superpopulação relativa habita, por fim, a esfera do


pauperismo. [...] Basta observar superficialmente as estatísticas do pauperismo
inglês para constatar que sua massa engrossa a cada crise [...] O pauperismo
constitui o asilo para inválidos do exército trabalhador ativo e o peso morto do
exército industrial de reserva. Sua produção está incluída na produção da
superpopulação relativa, sua necessidade na necessidade dela, e juntos eles
formam uma condição de existência da produção capitalista e do
desenvolvimento da riqueza. O pauperismo pertence ao faux frais [custos mortos]
da produção capitalista [...].39

Como John Bellamy Foster, Robert W. McChesney e R. Jamil Jonna notam em


uma edição recente de Monthly Review, a forma de Marx ver a formação de classe estava
muito a frente de seu tempo, antecipando como o imperialismo moderno e a marcha
implacável da acumulação de capital em uma escala mundial resultaria numa expansão
quantitativa e transformações qualitativas do exército global de reserva de trabalho.40
Essa imensa reserva, da qual o capital extrai o sustento para seu apetite acumulativo,
agora alcança os bilhões em número, e, assim como ele cresceu, também a dimensão da
miséria dos despossuídos se expandiu, como Marx previu.41 Jan Breman, escrevendo
sobre exploração, expropriação e exclusão na Índia, declara que “um ponto de não retorno
é alcançado quando um exército de reserva esperando para ser incorporado no processo
de trabalho se torna estigmatizado como uma massa permanentemente redundante, um

39
MARX, O Capital, p. 711-12; 719.
40
FOSTER, John Bellamy Foster; McCHESNEY, Robert W.; JONNA, R. Jamil, ‘The Global Reserve
Army of Labor and the New Imperialism’, Monthly Review, 63 (November), 2011, available at
http://monthlyreview.org.
41
Marx, Capital, p. 644-5.
fardo excessivo que não pode ser incluído agora ou no futuro, na economia e sociedade.
Esta metamorfose é, ao menos na minha opinião, a crise real do capitalismo mundial”.42

O que isso sugere é que em qualquer abordagem analítica dentro dos registros
históricos da formação de classe, é obrigatório ver a proletarização como um todo. Como
indicado pelas excursões interpretativas de Michael Dening sobre a ausência de salário
regular e as de Mike Davis sobre favelização [slummification], historiadoras e
historiadores estão começando a avaliar como é imperativo não centrar nossos estudos a
respeito do trabalho na lógica das validações do capital. A classe trabalhadora não apenas
alcança visibilidade e se torna investida de relevância política na medida em que é
assalariada. A expropriação continua acontecendo, e mesmo nos violentos espasmos da
despossessão, o trabalho é necessário para a vasta maioria da humanidade,
independentemente de como ele é remunerado. Na verdade, como as feministas têm
longamente insistido acerca do trabalho reprodutivo não pago, uma perspectiva de
formação de classe ligada apenas ao salário irá inevitavelmente ser estreita de diversas
formas.43

PRECARIEDADE E O LUMPEMPROLETARIADO: A POLÍTICA DA AFILIAÇÃO


DE CLASSE

Em círculos que não foram influenciados pela abordagem de Standing para o


precariado como uma classe social separada, há um interesse congruente (apesar de
aparentemente não relacionado) na ostensiva depreciação da precariedade por Marx.
Principalmente como essa depreciação se manifestou nos comentários preconceituosos
sobre o lumpemproletariado. Não há dúvida de que, escrevendo como um vitoriano, Marx
com alguma frequência caía no lapso do julgamento moralista no que diz respeito aos
mais marginalizados e, muitas vezes, criminalizadas subculturas dos despossuídos.
Quanto mais nos distanciamos das economias capitalistas centrais das nações capitalistas


42
BREMAN, Jan. The Labouring Poor in India: Patterns of Exploitation, Subordination and Exclusion,
New York: Oxford University Press, 2003, p. 13.
43
As feministas canadenses fizeram contribuições em particular para esta literature. Ver LUXTON, Meg,
More Than a Labour of Love: Three Generations of Women’s Work in the Home, Toronto: Women’s
Press, 1980; FOX, Bonnie, Hidden in the Household:Women’s Domestic Labour Under Capitalism,
Toronto: Women’s Press, 1980; BARRETT, Michèlearrett e HAMILTON, Roberta (eds.), The Politics
of Diversity: Feminism, Marxism, and Nationalism, London and New York: Verso, 1986.
ocidentais avançadas, mais aparente é que a formação de classe geralmente é estruturada
ao redor da ausência de assalariamento e subculturas dos empregados marginalmente:
transições para dentro e para fora do “capitalismo de centavo”44, criminalidade e
existências híbridas nas quais a subsistência camponesa e o congelamento temporário da
proletarização são quase sempre rotina.

Historiadores interessados na formação de classe em escala mundial (e


especialmente a importância da ausência de salário regular no mundo em
desenvolvimento) têm confrontado o preconceito emcomentários seletivos de Marx sobre
um estrato de classe que ele estava inclinado a desmerecer como o lumpemproletariado.45
Contudo, por tudo o que Marx (e Engels) podem ser castigados por serem “politicamente
incorretos” em seus comentários sobre o lumpemproletariado, é crucial reconhecer que
este amplo termo abusivo estava situado dentro de um contexto particular e não era
necessariamente uma forma de separar uma porção dos despossuídos de outras em termos
de classe. Dado que a cunhagem de Marx do termo lumpemproletariado era tanto uma
metáfora quanto uma categoria analítica rigorosamente desenvolvida, denúncias de que
Marx errou, ao retirar do proletariado os criminalizados e os destituídos que estavam
divorciados das relações produtivas do capitalismo em desenvolvimento, podem ser
exageros. Na verdade, uma leitura atenta da obra de Marx e Engels em sua inteireza
sugerem quatro coisas.46

Primeiro, mesmo nos escritos políticos da década de 1840, nos quais não há
dúvidas de que o termo lumpemproletariado é usado para designar depreciativamente
setores dos despossuídos que juntam seu peso político ao projeto de reação e restauração
do privilégio de classe, é óbvio que o uso do prefixo lumpem é usado para expressar


44
Nota do tradutor: No original “penny capitalism”. É um termo cunhado por um antropólogo chamado
“Sol Tax”. A tradução para o espanhol é “capitalismo del centavo”.
45
Ver, por exemplo, DENNING, Michael, ‘Wageless Life’, New Left Review, 66 (November-December),
2010, p. 79-87; VAN DER LINDER, Marcel, Workers of the World: Essays Toward a Global Labor
History, Leiden and Boston: Brill, 2008, pp. 10, 22-7, 267, 298; VAN DER LINDEN, ‘Who are the
Workers of the World? Marx and Beyond’, Workers of the World: International Journal on Strikes and
Social Conflicts, 1, January, 2013, pp. 55-76. A inquietude com a aparente depreciação de Marx sobre o
lumpemproletariado tem sido evidente entre africanistas, e foi colocada de forma ostensiva em
WORSLEY, Peter, ‘Frantz Fanon and the “Lumpenproletariat”’, Socialist Register 1972, London: Merlin,
1972, p. 193- 229.
46
Ver especialmente DRAPER, Hal. ‘The Lumpen-Class versus the Proletariat’, Karl Marx’s Theory of
Revolution: The Politics of Social Classes, Volume II, New York: Monthly Review, 1978, p. 453-80. A
discussão de Draper é bem informada e inestimável, e contém muitos insights e nuances analíticas.
Entretanto, enquanto eu sou influenciado por essa obra, também parto de algumas das suas afirmações.
desvalorização ao invés de uma posição de classe mais árdua. Isto é evidente em como
Marx afixa o adjetivo lumpemproletário em Bonaparte, que é o principal objeto de
repugnância de Marx em O dezoito brumário de Luís Bonaparte e Luta de classes na
França. Bonaparte era metaforicamente castigado como o principesco “chefe do
lumpemproletariado”, um malandro que reconhecia “nessa escória, nesse dejeto, nesse
refugo de todas as classes, a única classe na qual pode se apoiar incondicionalmente”.47
Um teórico da literatura comentou que “Marx deve ter vivido a história da França entre
1848 e 1852 – a revolução marchando para trás – como lembrando uma latrina voltando
atrás.”48 Entender isso pode atenuar as formas nas quais o conhecimento acadêmico
contemporâneo avaliava o nascimento de um termo como o de lumpemproletariado, que
de fato adentrou o mundo em meio às agonias de morte da possibilidade revolucionária.
Como Hal Draper sugeriu, a utilização de Marx do prefixo “lumpen” como uma forma de
rotular um indivíduo ou um grupo social como canalha ou odioso,49 e eu sugeriria que
isso significaria que o termo é mais um adjetivo cáustico e bem menos uma rigorosa
classificação com substância analítica. Isso surge na ridicularização de Marx de um tipo
particular de meados no século XIX, uma aristocracia financeira francesa, uma devassa
camada da burguesia que é apresentada como tendo ascendido a posições altas, de
comando, parasitárias, banqueteando-se na riqueza produzida por outros e outras,
exibindo uma “demonstração desenfreada de apetites insalubres e licenciosas.” Tal
camada aristocrática, caracterizada pelo prazer se tornar “crapuleuse [crapulosa,
devassa], dinheiro, sujeira e sangue confluem”; tal para Marx “nada mais é que o
renascimento do lumpemproletariado nas camadas mais altas da sociedade burguesa”.50

Em segundo lugar, apesar de toda essa desvalorização, nas paixões seguintes à


derrota da revolução da classe trabalhadora de 1848-51, à forma de Marx de localizar
como setores dos despossuídos optaram por lutar de formas que asseguravam os
privilégios de poder e dinheiro ao invés de desafiá-los, a questão central ao abordar o
lumpemproletariado deve ser a consideração de como o mais baixo dos baixos atua em


47
MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. SCHNEIDER, Hélio (trad.). São Paulo: Boitempo
Editorial, 2011. p. 91.
48
MEHLMAN, Jeffrey. Revolution and Repetition: Marx/Hugo/Balzac. Berkeley and London: University
of California Press, 1977, pp. 24-5.
49
DRAPER, Marx’s Theory of Revolution, esp. p. 628-34.
50
MARX, Karl. As Lutas de Classe na França. SCHNEIDER, Nélio (trad.). São Paulo: Boitempo Editorial,
2012. p. 31.
momentos de luta de classes. Mesmo Fanon – cuja validação de “cafetões, hooligans,
desempregados e pequenos criminosos” como um contingente revolucionário parece estar
empatada com a abordagem menos sadia de Marx de pessoas identificadas desta forma –
entendeu que a autoridade colonial pode ser “extremamente habilidosa em usar a
ignorância e incompreensão do lumpemproletariado”. A não ser que estejam organizados
por ativistas revolucionários, Fanon temia que o lumpemproletariado “se encontraria
lutando como soldados mercenários”, lado-a-lado com as tropas da reação; e ele cita
ocasiões em Angola e no Congo nas quais foi precisamente isso o que aconteceu.51

Em terceiro lugar, mesmo quando ele está depreciando o lumpemproletariado


como uma força da reação, como nos escritos sobre a França entre 1848-51, Marx cita até
que ponto os setores dos despossuídos estavam não tanto agindo como uma classe distinta
do proletariado, mas ao invés, eram indivíduos dirigidos dessa maneira por forças
burguesas. Quando Marx escreve em As lutas de classe na França que os 24 batalhões
da Guarda Móvel foram estabelecidos pelo Governo Provisório, e que eles eram (certa ou
erradamente) compostos de homens jovens entre 15 e 20 anos de idade “oriundos, em
grande parte, do lumpemproletariado”, ele introduz essa leitura de desenvolvimento
histórico com a afirmação de que ela veio à tona por conta da necessidade burguesa.52
Como a burguesia estava além do alcance do proletariado em 1848, ela começou a
estabelecer “uma centena de obstáculos diferentes” para refrear o poder da classe
trabalhadora. Quando esses esforços falharam “consequentemente havia uma saída:
colocar uma parte do proletariado contra a outra”, uma conclusão que certamente pode
ser interpretada como o reconhecimento que Marx não considerava o lumpemproletariado
e o proletariado como irreconciliavelmente divididos, mas parte de um continuum da
mesma classe despossuída. Mas consciência de local/interesse de classe nunca é um
simples fait accompli [fato consumado]. Como esta deve ser construída, e é parte do
projeto de construir o socialismo “criar” socialistas, é possível em períodos de intensa
luta ver indivíduos atravessarem linhas de classe e agir de formas que os colocam contra


51
Citado em HALL, Stuart. et al., Policing the Crisis: Mugging, the State, and Law and Order. London:
Macmillan, 1978, p. 385, o qual tem uma discussão pertinente sobre “Os condenados da terra”, pp. 381-
9. Ver FANON, Frantz The Wretched of the Earth, New York: Grove, 1966, pp. 103-9.
52
MARX, As lutas de classe na França. p. 42.
os membros de sua própria classe. A linguagem de antagonismo é então frequentemente
bem dura, como revela a designação “pelego”53.

Em quarto lugar, apesar de Marx nunca escrever o volume decisivo sobre trabalho
que poderia ter sido ao menos abordado, se não esclarecido, o significado de
lumpemproletarização, é certamente crítico reconhecer que a perspectiva de Marx mudou
através do tempo. Sua avaliação do lumpemproletariado alcançou, certamente, seu nadir
[ponto mais baixo] com o golpe de estado de Bonaparte, orquestrado pela assim chamada
Sociedade 10 de Dezembro, composta, nas palavras de Marx, por

rebentos arruinados e aventurescos da burguesia eram ladeados por vagabundos,


soldados exonerados, ex-presidiários, escravos fugidos das galeras, gatunos,
trapaceiros, lazzaroni [lazarones], batedores de carteira, prestidigitadores,
jogadores, maquereaux [cafetões], donos de bordel, carregadores, literatos,
tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de tesouras, funileiros, mendigos, em
suma, toda essa massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para outro,
que os franceses denominam la bohème [a boemia].54

Não obstante essa retórica da repulsa, há passagens, tanto em escritos anteriores e


posteriores, distanciadas do imediatismo das decepções de Marx entre 1848-51 que
demonstram um entendimento mais analítico. Como Peter Haynes sugere, Marx
reconheceu bem as formas nas quais os despossuídos eram vitimizados pela capacidade
do capitalismo de criminalizar e punir os pobres. Em escritos mais tardios, Marx se
baseou explicitamente em Thomas More, por exemplo, cujo Utopia foi uma fonte
utilizada na escritura do Capital, e que representou os despossuídos como “levados à esta
extrema necessidade, primeiro de roubar, depois de morrer.”

A despeito de tudo o que Marx e Engels poderiam escrever na linguagem


pejorativa de seu tempo sobre o que ia ser mais tardiamente chamado de “subclasse”,55
eles também não estavam desatentos do quanto esse “resíduo” estava reciprocamente
relacionado aos altivos proletários nos quais eles baseavam sua esperança por socialismo.

53
Nota do tradutor. No original, “scab”, que quer dizer ao mesmo tempo casca de ferida e aquele que fura
greves ou que se recusa a se sindicalizar ou a acatar decisões coletivas.
54
MARX, 18 Brumário, p. 91. Sobre Marx, o lumpemproletariado e a análise econômica de O Capital, ver
DRAPER, Marx’s Theory of Revolution, pp. 469-71.
55
A “subclasse” é uma designação sociológica do começo do século XX que seria formulada por Rober
Roberts, The Classic Slum: Salford Life in the First Quarter of the Century, Manchester: Manchester
University Press, 1971. Esse conceito não está desconectado da continuidade da precariedade na vida
proletária.
A condição da classe trabalhadora na Inglaterra de Engels, em 1844, tinha muito de
condenação moral, especialmente no que diz respeito ao trabalho imigrante irlandês, mas
isso não significava que ele viu os setores mais espezinhados do proletariado como
irremediavelmente separados da classe trabalhadora. Na verdade, em um prefácio de 1892
do seu estudo em Manchester [A condição...] Engels registrou com considerável otimismo
a extensão na qual o avanço do socialismo na Inglaterra se deu em meio a um anterior
bastião de lumpremproletarização, o East End de Londres. “Este imenso fantasma da
miséria não está mais estagnado como estava há seis anos atrás”, escreveu Engels. “Ele
se livrou do seu desespero entorpecido, retornou à vida, e se tornou o lar do que agora é
chamado ‘Novo Sindicalismo’”, ele continua adicionando “o que quer dizer a organização
da grande massa de trabalhadores não-especializados.”56

Marx compreendeu bem, como Michael Denning recentemente notou, que

a economia política... não reconhece o trabalhador desocupado, o homem que


trabalha (Arbeitsmenchen), na medida em que ele está fora da relação de trabalho.
O homem que trabalha (Arbeitsmenchen), o vigarista, o mendigo, o
desempregado, o faminto, o miserável e o criminoso são figuras (Gestalten) que
não existem para ela, mas só para outros olhos, para o do médico, do juiz, do
coveiro, do admnistrador da miséria, fantasmas [situados] fora do seu domínio.57

Marx, é claro, também teve considerável empatia pelo que foi feito com os
despossuídos, como é mais evidente na sua condenação da “barbárie no tratamento dado
ao indigente” e o reconhecimento do “horror dos trabalhadores ante a escravidão da
workhouse”, que ele intitulava a “penitenciária da miséria”.58 Em seus artigos de 1842-3
para a Gazeta Renana, sobre os debates na Alemanha a respeito da lei sobre o furto de
madeira, há sobretudo uma ampla sugestão de que Marx considerava as formas nas quais
a trajetória sócio-econômica do capitalismo tendeu à direção da ampla criminalização de

56
ENGELS, Frederick. The Condition of the Working-Class in England in 1844, London: Swam
Sonnenschein, 1892. Seis anos antes, Engels havia escrito uma carta para Laura Lafargue e August Bebel
de forma a sugerir um problema em ver “carreteiros, vagabundos, espiões da polícia e falsários” como
fontes de apoio do socialismo. Ele se referiu ao “número de pobres diabos do East End que vegetavam
na fronteira entre a classe trabalhadora e o lumpem proletariado”. Engels a Laura Lafargue, 9 de fevereiro
de 1886; Engels a August Beberl, 15 de fevereiro de 1886, em MARX, Karl e ENGELS, Friederich,
Collected Works, Volume 47, 1883- 1886. New York: International, 1995, pp. 403-10. Ver, também,
JONES, Stedman. Outcast London; and Arthur Morrison, A Child of the Jago, London: Methuen, 1896.
57
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. São Paulo: Boitempo: 2004, p. 91-2.
58
MARX, Capital, p. 729. Além das passagens que podem ser citadas, ver também as discussões em “As
camadas mal remuneradas da classe trabalhadora industrial britânica”, p. 729-738; “A população
nômade”, p. 738-741; “O proletariado agrícola britânico”, p. 746-770.
comportamentos dos pobres, sendo estes comportamentos críticos para a sobrevivência
dos despossuídos. Separados primeiramente da natureza, os despossuídos então se
encontraram expropriados das proteções institucionais da sociedade civil.

Na perspectiva de Marx, a formação do Estado prosseguiu da seguinte forma: o


poder e as instituições da classe dominantes subservientes aos fins de sua autoridade
tornaram a lei em um veículo que se dirigia na direção da natureza expansiva da
despossessão, tornando o aparato de governo em um punho encouraçado de interesses
privilegiados. Como Peter Linebaugh demonstrou em meados dos anos de 1970, os
escritos de Marx sobre o furto de madeira serviram como ponto de partida para uma
discussão de formação de classe que necessita da análise da compreensão marxista do
lumpemproletariado, um termo que só pode ser interrogado quando “o princípio da
especificidade histórica” e “o conceito da luta de classes” são centrais para a análise.59
Ao discutir a questão do acesso à madeira caída na floresta, Marx alegou que “assim como
não é cabível que os ricos reivindiquem as esmolas distribuídas nas ruas, também não
podem fazer o mesmo para as esmolas da natureza”, e ele insistiu na necessidade para
um conjunto universal de “direitos consuetudinários dos pobres”.60 É desnecessário dizer
que nada do tipo foi materializado no caldeirão capitalista da formação de classe, e Marx
concluiu que o Estado se tornou um servo da propriedade.

Dessa forma Marx abordou a proletarização como um processo dual, a criação de


trabalho ao mesmo tempo “livre” e ilegal.61 Mas se há honra entre alguns ladrões, nem
todos que foram colocados além do limite da respeitabilidade exibem tais traços
admiráveis.62 Muitos acadêmicos contemporâneos romantizaram segmentos da


59
Ver MARX, Karl. ‘Proceedings of the Sixth Rhine Province Assembly. Third Article Debates on the Law
on Thefts of Wood’, in Marx and Engels, Collected Works, Volume 1: 1835-1843, Moscow: Progress,
1975, pp. 224-63; BALLVÉ, Teo. ‘Marx: Law on Thefts of Wood’, 12 July 2011, disponível em
http://territorialmasquerades.net; LINEBAUGH, Peter ‘Karl Marx, the Theft of Wood, and Working
Class Composition: A Contribution to the Current Debate’, Crime and Social Justice, 6 (Fall-Winter),
1976, pp. 5-16; SHOREOVER-MARCUSE, Erica, Emancipation and Consciousness: Dogmatic and
Dialectical Perspectives in the Early Marx, New York: Blackwell, 1986.
60
Ver também LINEBAUGH, Peter. The Magna Carta Manifesto: Liberties and Commons for All,
Berkeley: University of California Press, 2008.
61
MARX, Capital, p. 733; e VAN DER LINDEN, Workers of the World, p. 27.
62
Para uma avaliação sóbria e cautelar acerca da extensão do trabalho precário no setor informal, tão
obviamente central para o Sul Global em desenvolvimento, e relacionado com a compreensão da
lumpremproletarização, que possa talvez se provar uma “improvável fonte de resistência constante e
coerente para uma ordem injusta”, ver FREUND, African Worker, pp. 79-81; Robin Cohen and D.
Michael, ‘Revolutionary Potential of the African Lumpenproletariat: A Sceptical View’, Bulletin of the
Institute of Development Studies, 5, 1976, pp. 31-42.
sociedade, tomando-os como direcionados à incorrigibilidade e, portanto, falhando em
discerni-los. Enquanto isso, Marx reconheceu que a despossessão extrema e de longa
duração pode deformar politicamente uma seção do proletariado, reduzindo-a a um
coadjuvante da reação. Essa questão ainda estava sendo colocada na década de 1930, com
atividades e autores do Left Book Club como Wal Hannington, um membro fundador do
Partido Comunista Britânico e organizador do Movimento Nacional dos Trabalhadores
Desempregados, que perguntava de forma bem preocupada: “Há um perigo fascista entre
os desempregados?”63

Debates sobre lumpemproletarização, como discussões acerca de precariedade,


sublinham a realidade da diferenciação de status entre os despossuídos, iluminando a
importância da identificação consciente no plano das políticas de luta de classe entre os
setores da classe trabalhadora. Mesmo com a dificuldade de um projeto que una os
expropriados, muitos dos quais podem ser incorporados no edifício hegemônico e
ideológico do individualismo aquisitivo, este nunca pode ser a fundação de uma separação
materialista das camadas de despossuídos em classes.

POLÍTICA DE CLASSE E PRECARIEDADE

Expropriação não é em em si uma garantia de comportamentos que irão avançar


a humanidade. Ela é, na medida que une os despossuídos em lutas que podem conceber
uma nova ordem social, baseada não em expropriação, exploração e opressão, mas em
produções coletivas para o uso e benefício de todos e todas, que constitui a única
possibilidade para progresso significativo.

Em uma escala global, a despossessão está acelerando. Um capitalismo assolado


por crises necessariamente intensifica a expropriação e expande as fronteiras da miséria.
A necessidade de orquestrar uma resposta coletiva para esse passo cada vez mais
apressado de alienação material é a mais urgente, ainda que o pensamento analítico de
nossos tempos tendencialmente siga na direção de acentuar a fragmentação e as divisões
que incapacitam a classe trabalhadora, em todas as suas gradações, ao invés de forjá-la
em uma tribuna de luta por todos os explorados e exploradas e oprimidos e oprimidas do

63
HANNINGTON, Wal. The Problem of the Distressed Areas, London: Victor Gollancz, 1937, pp. 233-
50.
mundo. Este pensamento em sua versão mais populista, articulado mais claramente por
Guy Standing, sublinha a constelação de uma nova força de classe, o precariado.
Revisionistas radicais, empolgados pela necessidade de abordar a formação de classe em
escala global e cientes da importância da marginalização na formação do proletariado do
mundo, afastaram-se de alguns dos insights de Marx, fraturando a experiência dos que
têm salário e dos que não, questionando o que seria uma falha de Marx ao criar um sentido
de classe que está postulado em inclusão.

Esses desenvolvimentos – amplamente confinados nesse ponto em discussões


teóricas e tratados acadêmicos – são, entretanto, paralelos no mundo real de políticas e
práxis de classe através de um aprofundamento da separação estrutural e institucional de
fragmentos da classe trabalhadora. Sindicatos atrofiam, tanto em termos de capacidade
de organizar trabalho e no que diz respeito a sua disposição de apresentar uma política de
classe que ultrapassa as constrições do sindicalismo de negócio, que foca estreitamente
em jurisdições ocupacionais de empregados assalariados. A esquerda revolucionária,
nunca tão fraca no curso do último século como é agora, é uma presença tragicamente
subestimada nas relações de classe contemporâneas, e foi usurpada, como voz política
crítica, por movimentos sociais movidos por identidades que reproduzem as
fragmentações inerentes à tendência do capitalismo de dividir para melhor conquistar. E
a classe trabalhadora aparece como mais e mais fraturada, dividida contra si mesma, e
menos e menos capaz de utilizar as condições precárias de sua vida material para sustentar
estruturas de resistência.

Entender esse conjunto trágico de trajetórias paralelas é imperativo para aqueles


na esquerda socialista, assim como para aqueles trabalhando em sindicatos, movimentos
sociais, e toda a forma de campanhas que veem a si mesmas desafiando o capital e o
estado no interesse dos despossuídos, reafirmando o que há de mais sólido na tradição
socialista. O que é mais necessário do que nunca é uma política de classe que fale
diretamente para o melhoramento da humanidade através da insistência que os
expropriados são como uma só [unidade] nas suas necessidades definitivas. Os poderes
recíprocos de assalariados e pessoas sem salário regular (apesar de subjetiva e
aparentemente diferentes) devem ser organizados e utilizados para abordar as
consequências debilitantes da precariedade assim como da natureza exploradora de todas
as produções, pagamentos e proibições. Transcender uma diferença imposta e em última
instância artificial é central para quebrar as correntes que mantêm trabalhadores e
trabalhadoras separados de sua coletividade, e amarrados nos isolamentos que selam sua
subornidação. Nas palavras recentes do dissidente do leste europeu, G. M. Tamás, “Vive
la difference? No. Vive la Commune!”64

Uma vez que se apreende que todos os proletários e proletárias sofrem


precariedade, e que todos aqueles limitados pela precariedade em sua vida de trabalho são
de fato proletários e proletárias ou têm interesses que coincidem diretamente com a classe
dos despossuídos, fica claro que há possibilidades de políticas mais efetivas baseadas na
luta de classes em nossos tempos. E é de fato a luta de classes – enraizada na expropriação
e forjada na cada vez mais agitada crise do capitalismo – que permanece a base definitiva
para mudar o mundo através de uma política transformadora.


64
TAMÁS, G. M. ‘Words from Budapest’, New Left Review, 80 (March-April), 2013, p. 26.

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