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SEMPRE

PREPARADOS
Orientações para a defesa da fé

Editado por Robert R. Booth

DR. GREG L. BAHNSEN


Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
EDITORA MONERGISMO
Caixa Postal 2416
Brasília, DF, Brasil - CEP 70.842-970
www.editoramonergismo.com.br

1a edição, 2016

Tradução: Marcelo Herberts


Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto

PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS,


SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.

Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão


Almeida Corrigida e Revisada Fiel (ACF)
salvo indicação em contrário.
Dedicatória
Em memória do Dr. Greg L. Bahnsen
[17 de Setembro de 1948 ― 11 de Dezembro de 1995],
“sempre preparado” para defender a fé e
sempre preparado para encontrar seu Senhor.
Para aqueles que querem entender Van Til, seja para concordar, seja para discordar, pelo
menos duas coisas são essenciais e são com demasiada frequência negligenciadas. A
primeira é ler Van Til, a segunda é ler Greg Bahnsen.

— Dr. K. Scott Oliphant


Autor, A batalha pertence ao Senhor

Greg Bahnsen foi, antes da sua morte prematura, um dos pensadores e debatedores mais
perspicazes entre os apologistas vantilianos. “Sempre Preparados” resume bem e expõe as
passagens bíblicas que constituem o arsenal do apologista.
— Dr. John Frame
Autor, Apologética para a glória de Deus

A mente de Greg Bahsen era nada menos do que precisa. Num mundo de desordem e
confusão apologética, ele tinha o dom de discernir o que era e o que não era relevante em
uma questão. Os antigos romanos lhe teriam dito: “Rem acu tetigisti”. Ele podia “acertar o
prego na cabeça”, conjecturar de forma correta. Este volume contém inúmeros exemplos de
ele fazendo exatamente isso.

— Douglas Wilson
Autor, O ateu em delírio

Greg Bahnsen era um acadêmico brilhante. Mas essa é uma descrição inadequada do que
ele tinha a oferecer para a igreja. O valor da sua obra não era meramente acadêmico
(embora também o fosse); era intensamente prático. Sua capacidade de analisar a “lógica”
da incredulidade e demonstrar sua loucura e de apresentar o evangelho como a única
alternativa intelectualmente honesta eram sem igual. Em se tratando de apologética,
Bahnsen estava numa categoria só sua.

— Stephen C. Perks
Autor, A adoração a Baal

Não foram os escoteiros os primeiros a serem ordenados a “estar preparados”, mas os


cristãos (1 Pedro 3.15). Com a incredulidade crescendo e se tornando mais intensa,
revelando seus ferozes dentes, precisamos mais do que nunca das ferramentas encontradas
neste volume. Ao empregá-las você será capaz de remover os caninos do anticristianismo
com graça, amor e um arsenal nuclear. Leia este livro e então leia-o novamente. Você se
verá “armado até os dentes” e sempre preparado.

— Steven M. Schlissel
Pastor, Messiah’s Congregation, Brooklyn, New York
SUMÁRIO
Sumário
PREFÁCIO DO EDITOR
1. O ROUBO DA NEUTRALIDADE
2. A IMORALIDADE DA NEUTRALIDADE
3. A NATUREZA DO PENSAMENTO INCRÉDULO
4. A MENTE DO NOVO HOMEM ENRAIZADA EM CRISTO
5. REVELAÇÃO COMO O FUNDAMENTO DO CONHECIMENTO
6. RESUMO E APLICAÇÃO: A AUTORIDADE AUTOATESTADORA
DE DEUS
7. TRÊS ARGUMENTOS CONTRA O PRESSUPOSICIONALISMO
8. HUMILDE OUSADIA, NÃO ARROGÂNCIA OBSCURANTISTA
9. REVELAÇÃO INESCAPÁVEL, CONHECIMENTO INESCAPÁVEL
10. TERRENO COMUM QUE NÃO É NEUTRO
11. ONDE O PONTO DE CONTATO É, E NÃO É, ENCONTRADO
12. RESUMO GERAL: CAPÍTULOS 1-11
13. A TOLICE DA INCREDULIDADE
14. UM PROCEDIMENTO APOLOGÉTICO DE DUAS ETAPAS
15. RESPONDENDO AO TOLO
16. COSMOVISÕES EM COLISÃO
17. O PONTO DE PARTIDA ÚLTIMO: A PALAVRA DE DEUS
18. RESUMO SOBRE O MÉTODO APOLOGÉTICO: CAPÍTULOS 13-17
19. DEUS DEVE SOBERANAMENTE CONCEDER ENTENDIMENTO
20. É PRECISO CRER PARA ENTENDER
21. ESTRATÉGIA GUIADA PELA NATUREZA DA CRENÇA
22. NÃO SE DEIXANDO SEDUZIR COMO EVA
23. NÃO MENTIR PARA DEFENDER A VERDADE
24. ENCONTRANDO EFETIVAMENTE A VARIEDADE DE
OPOSIÇÕES: Resumo Geral (Capítulos 1-23) e Aplicação
25. PREPARADOS PARA ARRAZOAR
26. O CERNE DA QUESTÃO
27. RESPONDENDO OBJEÇÕES
28. FERRAMENTAS DE APOLOGÉTICA
29. APOLOGÉTICA NA PRÁTICA
30. O PROBLEMA DO MAL
31. O PROBLEMA DE CONHECER O “SOBRENATURAL”
32. O PROBLEMA DA FÉ
33. O PROBLEMA DA LINGUAGEM RELIGIOSA
34. O PROBLEMA DOS MILAGRES
PREFÁCIO DO EDITOR

O apóstolo Pedro instrui os crentes a estarem “sempre preparados[1] para


responder [dar uma defesa — apologia] com mansidão e temor a qualquer
que vos pedir a razão da esperança que há em vós” (1Pe 3.15). O Dr. Greg
Bahnsen não só estava “sempre preparado” para fazer tal defesa, como
também sempre preparado para ensinar aos outros como se preparar para essa
obra essencial. Aprouve a Deus, no mistério da sua providência, levantar esse
homem duplamente abençoado em benefício do seu povo nesta geração. Essa
mesma providência misteriosa que nos deu o Dr. Bahnsen também o chamou
para casa na idade precoce de 47 anos — ele foi para estar junto do seu
Senhor em 11 de dezembro de 1995. Dr. Bahnsen deixou em seu rastro um
legado de evangelismo apologético. Não só foi ele um dos principais
apologistas e debatedores do século 20,[2] enfrentando proeminentes
defensores ateístas, como também era ele alguém devotado para ver cristãos
de todos os níveis equipados e competentes para defender por si mesmos a fé.
A defesa da fé cristã [apologética] é responsabilidade de todo cristão.
Tal era a convicção sincera do Dr. Bahnsen, que devotou a maior parte do seu
ministério ao treinamento de homens e mulheres para essa importante tarefa.
Bahnsen era eminentemente qualificado para oferecer esse tipo de
treinamento e instrução. Em primeiro lugar, Dr. Bahnsen era um homem que
amava e estava comprometido com seu Senhor Jesus Cristo — ele fora
chamado por Deus para essa tarefa. Ele recebeu o título B.A. (magna cum
laude, filosofia) da Faculdade Westmont e então simultaneamente obteve os
graus M.Div. e Th.M. do Seminário Teológico Westminster, especializando-
se em teologia sistemática e ética. De lá ele foi para a Universidade do Sul da
Califórnia, onde recebeu seu Ph.D. em filosofia, com especialização no
campo da epistemologia (teoria do conhecimento). Sua tese foi sobre o tema
do autoengano, fazendo uma contribuição significativa para essa importante
questão apologética. Enquanto estudante de seminário, foi chamado pelo
renomado apologista Dr. Cornelius Van Til para palestrar em seu curso de
apologética. Dr. Bahnsen fez muito para explicar, aplicar e mesmo
popularizar a obra distintiva de apologética pressuposicional do Dr. Van Til.
[3]
Este volume é uma compilação de materiais produzidos pelo Dr.
Bahnsen ao longo de vários anos e se destina a introduzir os estudantes a
importantes conceitos fundacionais essenciais para a apologética bíblica. A
primeira seção, previamente publicada como plano de estudo, fornece uma
explicação passo a passo das questões chave em apologética cristã e
estabelece o suporte bíblico para o método pressuposicional. A segunda seção
deste volume oferece conselhos práticos adicionais de como abordar uma
situação apologética e fornece respostas específicas a certas questões
apologéticas, como “o problema do mal”. O livro conclui com um apêndice
dando uma exposição detalhada da defesa da fé que o apóstolo Paulo fez no
Areópago em Atenas, como registrado em Atos 17.
Todo crente pode tirar proveito deste material. Ele pode se provar
especialmente útil como livro-texto para classes de aula e igrejas. À medida
que nos tornarmos mais bem equipados para defender a fé, obteremos maior
confiança e ousadia para levar a mensagem do evangelho a todo lugar
sombrio. Nenhum desafio deve intimidar o crente enquanto ele, de forma
gentil e respeitosa, fecha a boca do incrédulo. Que Deus possa abençoar você
em seu treinamento para estar “sempre preparado”.

Seu servo e colega,

Randy Booth
Diretor da Covenant Media
Foundation
SEÇÃO UM:
O SENHORIO DE CRISTO
NO REINO DO CONHECIMENTO
1. O ROUBO DA NEUTRALIDADE

O apelo para que os cristãos se rendam à neutralidade no seu pensamento não


é incomum. No entanto, ele atinge o próprio coração da nossa fé e fidelidade
ao Senhor.
Às vezes a exigência de se assumir uma postura neutra, uma atitude não
comprometida com a veracidade da Escritura, é ouvida no âmbito da erudição
cristã (no campo da história, ciência, literatura, filosofia, seja qual for).
Professores, pesquisadores e escritores são amiúde levados a pensar que a
honestidade requer que eles deixem de lado todos os compromissos
distintamente cristãos quando estudam numa área que não está diretamente
relacionada a questões de adoração dominical. Eles raciocinam que, desde
que a verdade é verdade onde quer que seja encontrada, devemos ser capazes
de pesquisar a verdade sob a orientação dos pensadores aclamados na área,
mesmo sendo eles seculares na sua perspectiva. “É realmente necessário
manter os ensinamentos da Bíblia se você quer entender corretamente a
Guerra de 1812, a composição química da água, as peças de Shakespeare ou
as regras da lógica?” É a pergunta retórica daqueles que querem insistir na
neutralidade dos cristãos que trabalham em áreas acadêmicas.
Às vezes a demanda por neutralidade surge no reino da apologética (a
defesa da fé). Alguns apologistas nos dizem que eles perderiam toda a
audiência com o mundo incrédulo se abordassem a questão da veracidade da
Escritura com uma resposta pré-concebida para a questão. Nós devemos estar
dispostos, de acordo com essa perspectiva, a abordar o debate com os
incrédulos com uma atitude comum de neutralidade ─ uma atitude de
“ninguém sabe ainda”. Devemos assumir o mínimo possível desde o início,
assim nos é dito; e isso significa que não podemos assumir quaisquer
premissas ou ensinos cristãos da Bíblia.
Outras vezes, o apelo por neutralidade no pensamento do crente vem
com referência às escolas. Alguns cristãos sentem que não há uma real
urgência para as escolas cristãs, que a educação secular está bem até onde vai
e que ela só precisa ser suplementada com oração cristã e leitura da Bíblia em
casa. Assim, a ideia é que é possível ser neutro quando se trata de educação; a
fé cristã de uma pessoa não precisa ditar quaisquer suposições ou formas
particulares de aprender sobre o mundo e o homem. Os fatos, assim nos é
dito, são os mesmos nas escolas do Estado e nas escolas cristãs; então, por
que insistir que seus filhos sejam ensinados por crentes comprometidos em
Jesus Cristo?
Bem, então nessas e em muitas outras situações nós podemos ver que o
cristão é exortado a abrir mão das suas crenças religiosas distintivas para
temporariamente “colocá-las na prateleira” e assumir uma atitude neutra em
seu pensamento. Satanás adoraria que isso acontecesse. Mais que qualquer
outra coisa, isso impediria a conquista do mundo para a crença em Jesus
Cristo como o Senhor. Mais que qualquer outra coisa, isso tornaria os cristãos
professos impotentes no seu testemunho, sem propósito na sua caminhada e
desarmados na sua batalha com os principados e poderes deste mundo. Mais
que qualquer outra coisa, essa neutralidade impediria a santificação na vida
do cristão, pois Cristo disse que seus seguidores eram santificados
(separados) pela verdade. E declarou em seguida que “A tua palavra é a
verdade” (João 17.17).
O que quer que algumas pessoas possam dizer sobre a exigência de
neutralidade no pensamento do cristão ─ a exigência de que os crentes não
sejam separados dos outros homens por sua adesão à verdade de Deus ─, o
fato é que a Escritura difere radicalmente dela. Ao contrário da demanda da
neutralidade, a palavra de Deus exige uma fidelidade sem reservas a Deus e à
sua verdade em todos os nossos pensamentos e empreendimentos
acadêmicos. E o faz por uma boa razão.
Paulo declara infalivelmente em Colossenses 2.3-8 que “Nele [Cristo]
estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento” (NVI).
Note ele dizer que toda a sabedoria e conhecimento estão depositados na
pessoa de Cristo ─ seja sobre a Guerra de 1812, a composição química da
água, a literatura de Shakespeare ou as leis da lógica! Toda atividade
acadêmica e todo pensamento devem estar relacionados a Jesus Cristo, pois
Jesus é o caminho, a verdade e a vida (João 14.6). Assim, evitar Cristo em
seu pensamento em qualquer ponto é ser uma pessoa equivocada, mentirosa e
espiritualmente morta. Deixar de lado seus compromissos cristãos quando se
trata de defender a fé ou enviar seus filhos à escola é deliberadamente se
afastar do único caminho para a sabedoria e verdade que é encontrado em
Cristo. Temer o Senhor não é o fim ou resultado do conhecimento;
reverenciá-lo é o princípio do conhecimento (Provérbios 1.7; 9.10).
Paulo declara, então, que todo conhecimento deve estar relacionado a
Cristo, de acordo com Colossenses 2. Ele diz isso para a nossa proteção; é
muito perigoso deixar de ver a necessidade de Cristo em todos os nossos
pensamentos. Assim, Paulo chama nossa atenção para a impossibilidade da
neutralidade “para que ninguém vos engane com palavras persuasivas”. Em
vez disso, como exorta Paulo, nós devemos estar arraigados e sobreedificados
nele, e confirmados na fé, assim como fomos ensinados (v. 7). Devemos estar
pressuposicionalmente comprometidos com Cristo no mundo do pensamento
(ao invés de ser neutros) e firmemente atrelados à fé que foi ensinada; ou do
contrário a argumentação persuasiva do pensamento secular irá nos iludir.
Logo, o cristão é obrigado a pressupor a palavra de Cristo em todas as áreas
do pensamento; a alternativa a isso é o engano.
No versículo 8 de Colossenses 2 Paulo diz: “Tende cuidado, para que
ninguém vos faça presa sua,[4] por meio de filosofias e vãs sutilezas”. Ao
tentar ser neutro em seu pensamento, você é um alvo principal para ser
roubado ─ roubado pela “vã filosofia” de todos os tesouros da “sabedoria e
do conhecimento” que estão escondidos em Cristo somente (cf. v. 3, NVI).
Paulo explica que a vã filosofia é aquela que segue o mundo e não a Cristo; é
o pensamento que se submete às demandas do mundo pela neutralidade em
vez de estarmos pressuposicionalmente comprometidos com Cristo em todo o
nosso pensamento.
Você é rico em conhecimento por causa do seu compromisso com
Cristo na academia, apologética e educação, ou foi roubado pelas demandas
da neutralidade?
2. A IMORALIDADE DA
NEUTRALIDADE

Todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento devem ser encontrados


em Cristo; assim, se uma pessoa tentasse chegar à verdade à parte de um
compromisso com a autoridade epistêmica de Jesus Cristo, estaria sendo
roubada por meio da vã filosofia e enganada com palavras persuasivas (veja
Colossenses 2.3-8). Consequentemente, quando o cristão se envolve no
contexto acadêmico, apologético ou educacional, deve firmemente se recursar
a aquiescer com as demandas equivocadas da neutralidade na sua vida
intelectual; ele jamais deve consentir em renunciar às suas crenças religiosas
distintivas “por um breve momento”, como se fosse possível assim uma
pessoa chegar “imparcialmente” a um conhecimento genuíno. O princípio do
conhecimento é o temor do Senhor (Provérbios 1.7).
Tentar ser neutro nos empreendimentos intelectuais (na pesquisa, na
argumentação, no raciocínio ou no ensino) é equivalente a se esforçar para
apagar a antítese entre o cristão e o incrédulo. Cristo declarou que o primeiro
foi separado do último pela verdade da palavra de Deus (João 17.17).
Aqueles que desejam alcançar dignidade aos olhos dos intelectuais do mundo
usando a insígnia da “neutralidade” só podem fazê-lo às custas da recusa em
ser separados pela verdade de Deus. No reino intelectual eles se integram ao
mundo a tal ponto que ninguém pode dizer a diferença entre os seus
pensamentos e suposições e os pensamentos e suposições apóstatas. A linha
entre o crente e o incrédulo é obscurecida.
Essa indiscriminação na vida intelectual não só impede o conhecimento
genuíno (cf. Provérbios 1.7) e leva à vã ilusão (cf. Colossenses 2.3-8), como
é também flagrantemente imoral.
Em Efésios 4.17-18, Paulo ordena aos seguidores de Cristo que “não
andeis mais como andam também os outros gentios, na vaidade da sua mente.
Entenebrecidos no entendimento, separados da vida de Deus pela ignorância
que há neles, pela dureza do seu coração”. Os crentes cristãos não devem
andar, não devem se comportar ou viver de uma forma que imite o
comportamento daqueles que são irregenerados; especificamente, Paulo
proíbe o cristão de imitar a vaidade da mente do incrédulo. Os cristãos devem
se recusar a pensar ou raciocinar de acordo com uma mentalidade ou
perspectiva mundana. O agnosticismo culpável dos intelectuais do mundo
não deve ser reproduzido nos cristãos como sendo uma suposta neutralidade;
essa perspectiva, essa abordagem para a verdade, esse método intelectual
evidencia um entendimento obscurecido e um coração endurecido. Ele se
recusa a se curvar ao Senhorio de Jesus Cristo em todas as áreas da vida,
incluindo a academia e o mundo do pensamento.
Uma pessoa deve fazer a seguinte escolha básica no seu pensamento:
ser separada pela verdade de Deus ou ficar alienada da vida de Deus. Não é
possível ser das duas formas. Ou ela será separada, colocada em oposição ou
alienada do mundo, ou o será da palavra de Deus. Ela permanecerá em
contraste com aquele método intelectual que se recusa a seguir. Ou ela se
recusa a seguir a palavra de Deus, ou se recusa a seguir a mentalidade vã dos
gentios. Ou ela distingue a si mesma e o seu pensamento no contraste com o
mundo, ou o faz no contraste com a palavra de Deus. O contraste, a antítese,
a escolha é clara: ou ser separado pela palavra verdadeira de Deus, ou ser
alienado da vida de Deus. Ou ter “a mente de Cristo” (1 Coríntios 2.16), ou a
“vaidade da sua [gentios] mente” (Efésios 4.17). Ou “levamos cativo todo
pensamento, para torná-lo obediente a Cristo” (2 Coríntios 10.5, NVI), ou
continuamos como “inimigos no entendimento” (Colossenses 1.21).
Aqueles que seguem o princípio intelectual da neutralidade e o método
epistemológico do ambiente acadêmico incrédulo não honram o Senhorio
soberano de Deus, coisa que deveriam fazer; como resultado disso, seu
raciocínio é tornado vão (Romanos 1.21). Em Efésios 4, como vimos, Paulo
proíbe o cristão de seguir essa mentalidade vã. Paulo segue a ensinar que o
pensamento do crente é diametralmente contrário ao pensamento ignorante e
obscurecido dos gentios. “Mas vós não aprendestes assim a Cristo” (versículo
20). Enquanto os gentios são ignorantes, “a verdade… está em Jesus”
(versículo 21). Ao contrário dos gentios que estão alienados da vida de Deus,
o cristão foi despido do velho homem e renovado no espírito da sua mente
(versículos 22-23). Esse “novo homem” é distinto em virtude da santidade
proveniente da verdade (versículo 24, NVI). O cristão é completamente
diferente do mundo no que diz respeito ao intelecto e à academia; ele não
segue os métodos neutros da incredulidade, mas pela graça de Deus tem
novos compromissos, novas pressuposições no seu pensamento.
Portanto, o cristão que se esforça pela neutralidade no seu pensamento
está na verdade se esforçando para anular o fato de que é um cristão! Ao
negar seu compromisso religioso distintivo, ele é reduzido a padrões de
pensamento apóstatas e absorvido no mundo da incredulidade. Tentar
encontrar um acordo entre as demandas da neutralidade mundana
(agnosticismo) e as doutrinas da palavra de Cristo resulta na rejeição do
Senhorio distintivo de Cristo quando se eclipsa o grande abismo entre o
pensamento do velho homem e o do novo homem.
Nenhuma contemporização dessas é possível. “Ninguém pode servir a
dois senhores” (Mateus 6.24). Não deveria causar surpresa que num mundo
em que todas as coisas foram criadas por Cristo (Colossenses 1.16) e são
sustentadas pela palavra do seu poder (Hebreus 1.3), onde todo o
conhecimento está, portanto, depositado nele que é A Verdade (Colossenses
2.3, João 14.6) e deve ser o Senhor sobre todo pensamento (2 Coríntios 10.5),
a neutralidade é nada menos do que imoralidade. “Portanto qualquer que
quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus” (Tiago 4.4).
Você tem a coragem dos seus distintivos cristãos na academia, na
apologética e no ensino, ou tenta apagar o contraste entre o pensamento
cristão e o pensamento apóstata seguindo as demandas da neutralidade? Para
colocar na perspectiva bíblica, essa questão pode ser reformulada da seguinte
maneira: seu pensamento opera sob o Senhorio de Jesus Cristo, ou você se
tornou um inimigo de Deus através de padrões de pensamento neutros,
agnósticos e incrédulos? Escolha hoje a quem você vai servir!
3. A NATUREZA DO PENSAMENTO
INCRÉDULO

Nas partes I e II do presente estudo, uma discussão da demanda por


neutralidade em nossos empreendimentos acadêmicos, apologéticos ou
educacionais mostrou que essa demanda leva a infelizes resultados. Ela rouba
de uma pessoa todos os tesouros do conhecimento que existem. Em segundo
lugar, foi demonstrado que tomar uma abordagem neutra para o
conhecimento tem um caráter imoral e permite que os distintivos cristãos de
uma pessoa sejam abafados e finalmente integrados às formas rebeldes de
uma mentalidade incrédula. Finalmente, foi observado que na realidade é
impossível o cristão genuíno ser neutro na sua vida intelectual, pois essa
neutralidade num cristão demandaria um compromisso duplo: um com o
agnosticismo secular, outro com a fé salvadora (isto é, “servir a dois
senhores”).
Voltando a Efésios 4 e Colossenses 2, perguntemos qual é o verdadeiro
caráter do pensamento neutralista. Que tipo de pensamento, afinal, é esse que
não se baseia no ensino do Filho de Deus, que se abstém de pressupor as
doutrinas de Cristo?
Paulo nos diz em Efésios 4 que seguir os métodos ditados pela
perspectiva intelectual daqueles que estão fora de uma relação salvífica com
Deus é ter uma mente vã e um entendimento obscurecido (vv. 17-18). O
pensamento neutralista, então, é caracterizado por ignorância e futilidade
intelectual. Na luz de Deus somos capazes de ver a luz (cf. Salmos 36.9).
Afastar-se da dependência intelectual da luz de Deus, a verdade sobre e de
Deus, é se afastar do conhecimento para a escuridão da ignorância. Assim, se
um cristão desejasse iniciar seus empreendimentos acadêmicos a partir de
uma posição de neutralidade, estaria na realidade desejando iniciar seu
pensamento na escuridão. Ele não permitiria a palavra de Deus ser uma luz
para o seu caminho (cf. Salmos 119.105). Para andar em neutralidade ele
estaria tropeçando na escuridão. Deus certamente não é honrado por esse tipo
de pensamento, e consequentemente torna esse raciocínio vão (Romanos
1.21b). Aos olhos de Deus, neutralidade equivale a vaidade.
Essa “filosofia” que não encontra seu ponto de partida e orientação em
Cristo é mais tarde descrita por Paulo em Colossenses 2.8. De tempos em
tempos, tem sido erroneamente pensado que essa passagem condena toda e
qualquer filosofia, que o cristão deve sem exceção evitar o pensamento
filosófico como quem evita a praga. No entanto, uma leitura cuidadosa da
passagem irá evidenciar que esse não é o caso. Paulo não desaprova a
filosofia absolutamente, pois delineia algumas exceções. O que acontece é
que há um tipo particular de pensamento filosófico que Paulo despreza.
Paulo não é contra o “amor da sabedoria” (isto é, “filosofia” a partir do
grego) per se. Filosofia é algo bom desde que se possa adequadamente
encontrar genuína sabedoria ─ o que significa, para Paulo, encontrá-la em
Cristo (Colossenses 2.3).
No entanto, há um tipo de “filosofia” que não começa com a verdade de
Deus, o ensinamento de Cristo. Antes, essa filosofia busca sua orientação e
encontra sua origem nos princípios aceitos dos intelectuais do mundo ─ nas
tradições dos homens. Uma filosofia assim é o objeto da reprovação de Paulo
em Colossenses 2.8. É instrutivo para nós, especialmente se estamos
propensos a aceitar as demandas da neutralidade em nosso pensamento,
investigar as caracterizações de Paulo desse tipo de filosofia.
Paulo diz que ela é uma “vã sutileza”. Que tipo de pensamento é esse
que pode ser caracterizado como “vão”? Uma resposta pronta é encontrada
por comparação e contraste em passagens bíblicas que falam de vaidade (por
ex., Deuteronômio 32.47; Filipenses 2.16; Atos 4.25; 1 Coríntios 3.20; 1
Timóteo 1.6; 6.20; 2 Timóteo 2.15-18; Tito 1.9-10). Pensamento vão é aquele
que não está de acordo com a palavra de Deus. Um estudo similar
demonstrará que pensamento “enganoso” é um pensamento que está em
oposição à palavra de Deus (cf. Hebreus 3.12-15; Efésios 4.22; 2
Tessalonicenses 2.10-12; 2 Pedro 2.13). A “vã sutileza” contra a qual Paulo
adverte, então, é a filosofia que opera à parte da e contra a verdade de Cristo.
Note a injunção de Efésios 5.6: “Ninguém vos engane com palavras vãs”. Em
Colossenses 2.8 é dito que devemos tomar cuidado para não sermos roubados
por meio de “vãs sutilezas”.
Paulo também caracteriza esse tipo de filosofia como sendo “segundo
a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo”. Isto é, essa
filosofia põe de lado a palavra de Deus e a torna nula (cf. Marcos 7.8-13), e
faz isso partindo dos elementos de aprendizado ditados pelo mundo (isto é, os
preceitos dos homens; cf. Colossenses 2.20, 22). A filosofia que Paulo
despreza é aquele raciocínio que segue as pressuposições (os princípios
elementares) do mundo e que, por sua vez, “não [é] segundo Cristo”.
Segue a partir desses pontos que o cristão que se esforça pela
neutralidade no mundo do pensamento (1) não é afinal neutro e, portanto, (2)
está em risco de involuntariamente endossar suposições que são hostis à sua
fé cristã. Embora imagine que sua neutralidade intelectual é compatível com
uma profissão de fé cristã, esse crente está na verdade operando nos termos
da incredulidade! Se ele se recusa a pressupor a verdade de Cristo, acaba em
vez disso invariavelmente pressupondo a perspectiva do mundo. Todos os
homens têm suas pressuposições; nenhum é neutro. Devem suas
pressuposições ser os ensinos de Cristo ou as vãs sutilezas contra as quais
Paulo adverte? Escolha hoje a quem você vai servir!
4. A MENTE DO NOVO HOMEM
ENRAIZADA EM CRISTO

O crente é instruído a evitar a filosofia que está enraizada em pressuposições


mundanas, humanistas e não cristãs (Colossenses 2.8). Ao invés disso, ele é
chamado a estar enraizado em Cristo e firmado na fé (v. 7); suas
pressuposições devem ser os preceitos e as doutrinas de Cristo, não as
tradições fúteis dos homens (cf. vv. 3, 4, 22; 3.1-2). Isso impede a pretensão
de neutralidade e proíbe a sua busca. Neutralidade é, na verdade,
incredulidade ou agnosticismo velado ─ um fracasso em andar em Cristo, um
obscurecimento do compromisso e dos distintivos cristãos, uma supressão da
verdade (cf. Romanos 1.21, 25).
Assim, Paulo nos ordena a estar enraizados em Cristo e a evitar as
pressuposições do secularismo. No versículo 6 de Colossenses 2 ele explica
de forma muito simples como devemos conduzir nossa vida (incluindo
nossos empreendimentos acadêmicos) fundamentados em Cristo,
assegurando assim que nosso raciocínio seja guiado por pressuposições
cristãs. Ele diz: “Como, pois, recebestes o Senhor Jesus Cristo, assim também
andai nele”; isto é, andem em Cristo da mesma forma como o receberam. Se
fizerem isso, serão “firmados na fé, como foram ensinados” (NVI). Como,
então, você se tornou cristão? Nesses mesmos moldes você deve crescer e
amadurecer na sua caminhada cristã.
Quando alguém se torna cristão, sua fé não foi gerada pelos padrões de
pensamento da sabedoria mundana. Pela sua sabedoria, o mundo não conhece
Deus (1 Coríntios 1.21), mas considera a palavra da cruz loucura (1 Coríntios
1.18, 21b). Se uma pessoa mantém a perspectiva do mundo, então, ela nunca
verá a sabedoria de Deus pelo que ela realmente é; assim, ela nunca estará
“em Cristo Jesus”, que é feito para os crentes “sabedoria de Deus” (1
Coríntios 1.30). Daí que a fé, ao invés da visão autossuficiente, faz de você
um cristão, e essa confiança é direcionada a Cristo, não ao seu próprio
intelecto. Isso quer dizer que a forma como você recebe Cristo é se afastando
da sabedoria dos homens (a perspectiva do pensamento secular com as suas
pressuposições) e ganhar, pela iluminação do Espírito Santo, a mente de
Cristo (1 Coríntios 2.12-16). Quando alguém se torna cristão, sua fé não se
apoia na sabedoria dos homens, mas na demonstração poderosa do Espírito (1
Coríntios 2.4-5).
Além do mais, é o Espírito Santo quem faz todos os crentes dizerem
“Jesus é o Senhor” (1 Coríntios 12.3). Jesus foi crucificado, ressuscitado e
ascendido a fim de que pudesse ser confessado como o Senhor (cf. Romanos
14.9; Filipenses 2.11). Assim, Paulo pode resumir essa mensagem que deve
ser confessada se quisermos ser salvos como “Jesus é o Senhor” (Romanos
10.9). Para se tornar cristã, uma pessoa deve se submeter ao Senhorio de
Cristo; ela renuncia à autonomia e se coloca sob a autoridade do Filho de
Deus. Aquele que Paulo diz recebermos, de acordo com Colossenses 2.6, é
Cristo Jesus o Senhor. Como Senhor sobre o crente, Cristo requer que o
cristão o ame com todas as faculdades que possui (incluindo sua mente,
Mateus 22.37); todo pensamento deve ser levado cativo à obediência de
Cristo (2 Coríntios 10.5, NVI).
Consequentemente, quando Paulo nos orienta a andarmos em Cristo da
mesma forma como o recebemos, podemos ver pelo menos uma coisa: a
caminhada cristã não honra os padrões de pensamento da sabedoria mundana,
mas se submete ao Senhorio epistêmico de Cristo (isto é, à sua autoridade na
área do pensamento e do conhecimento). Deste modo uma pessoa vem à fé, e
deste modo o crente deve continuar a viver e a realizar sua vocação ─ mesmo
quando está envolvido com a academia, apologética ou educação.
Se o cristão evidenciar um compromisso com o Senhorio pessoal de
Cristo e pressupuser a palavra do Senhor, estará andando em Cristo assim
como o recebeu. Por meio disso você estará “enraizado nele” ao invés de
enraizado nas pressuposições apóstatas da filosofia mundana, e seremos
capazes de contemplar “a firmeza da vossa fé em Cristo” (Colossenses 2.5).
Essa fé firme e pressuposicional em Cristo resistirá às demandas do mundo
secular por neutralidade e rejeitará os padrões de conhecimento e verdade do
incrédulo em favor da autoridade da palavra de Cristo. Essa fé não será
saqueada de todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento que estão
escondidos em Cristo, e não será ludibriada pelas palavras persuasivas e vãs
sutilezas das filosofias seculares (vv. 3-8). Portanto, a precondição
incondicional da genuína erudição cristã é que o crente (juntamente com todo
o seu pensamento) esteja “enraizado em Cristo” (v. 7, NVI). Curiosamente, o
tempo verbal do grego para “enraizado” neste versículo sugere uma ação que
foi realizada no passado, mas continua a ter força ou efeito no presente ─ que
é precisamente o ponto de Paulo no versículo 6! Os princípios aplicáveis na
caminhada do cristão (inclusive no seu pensamento) são os mesmos que se
aplicaram na sua recepção de Cristo na conversão. O estudioso cristão,
tornando-se enraizado em Cristo ao renunciar à autoridade da sabedoria
secular para se submeter ao Senhorio de Cristo, deve realizar seus
empreendimentos acadêmicos permanecendo da mesma forma enraizado em
Cristo.
Portanto, o novo homem, o crente com uma mente renovada que foi
ensinada por Cristo, não deve mais andar na vaidade e escuridão intelectual
que caracterizam o mundo incrédulo (leia Efésios 4.17-24). O cristão tem
novos compromissos, novas pressuposições, um novo senhor, uma nova meta
e direção ─ ele é um novo homem. Essa novidade é expressa em seu
pensamento e sua erudição, pois (como em todas as demais áreas) Cristo
deve ter a preeminência no mundo do pensamento (cf. Colossenses 1.18b).
Devemos concordar com o Dr. Cornelius Van Til, quando ele diz:
É Cristo como Deus que fala na Bíblia. Portanto, a Bíblia não apela à razão
humana como fundamento para justificar o que diz. Ela vem ao ser humano
com absoluta autoridade. Sua afirmação é que a razão humana mesma deve
ser tomada no sentido que a Escritura a toma, a saber, criada por Deus e,
portanto, adequadamente sujeita à autoridade de Deus… Os dois sistemas, o
do não cristão e o do cristão, diferem pelo fato de as suas pressuposições ou
suposições básicas diferirem entre si. Sobre o fundamento não cristão o
homem é assumido como o ponto de referência final na predição… O
método reformado… começa francamente “do alto”. Ele “pressupõe” Deus.
Mas ao pressupor Deus, não pode em hipótese alguma se colocar sobre uma
base neutra com o não cristão… Os crentes em si mesmos não escolheram a
posição cristã por serem mais sábios que as outras pessoas. O que eles têm,
têm pela graça somente. Mas esse fato não significa que eles devem aceitar
como corretas, ou mesmo prováveis ou possivelmente corretas, as
problemáticas do homem caído. Porque a essência da ideia da Escritura é
que somente ela é o critério da verdade. (A Christian Theory of Knowledge,
Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1969, pp. 15, 18, 43.)
5. REVELAÇÃO COMO O
FUNDAMENTO DO CONHECIMENTO

O novo homem em Cristo tem novas pressuposições e um novo Senhor sobre


os seus pensamentos. Em vez de lutar pela neutralidade intelectual, ele está
“enraizado nele [em Cristo]”, andando da mesma forma como recebeu a
Cristo: na fé, pela iluminação do Espírito Santo, sob a autoridade suprema de
Jesus Cristo ─ e não segundo os padrões de pensamento da sabedoria
mundana. Isto é, o cristão pressupõe a palavra verdadeira de Deus como seu
padrão de verdade e orientação.
Deus diz para aplicarmos nosso coração ao seu conhecimento, se
quisermos saber a certeza das palavras da verdade (Provérbios 22.17-21). É
característico dos filósofos de hoje negar que há uma verdade absoluta, ou
negar que podemos ter certeza de conhecer a verdade; ela não existe, ou é
inacessível. No entanto, o que Deus escreveu para nós (isto é, a Escritura)
pode “fazer-te saber a certeza das palavras da verdade” (vv. 20-21). A
verdade é acessível! No entanto, para compreendê-la firmemente, devemos
atentar para a injunção do versículo 17b: “aplica o teu coração ao meu
conhecimento”. O conhecimento de Deus é primário, e o que quer que o
homem conheça, só pode estar baseado numa recepção do que Deus em
última análise e originalmente conhece. O homem deve pensar os
pensamentos de Deus depois dele, pois “na tua luz veremos a luz” (Salmos
36.9).
O testemunho de Davi era que “o Senhor meu Deus iluminará as
minhas trevas” (Salmos 18.28). Nas trevas da ignorância do homem, a
ignorância que resulta da tentativa de autossuficiência, vêm as palavras de
Deus trazendo luz e entendimento (Salmos 119.130). Assim, Agostinho
corretamente disse: “Creio para entender”. Entendimento e conhecimento da
verdade são os resultados prometidos quando o homem faz da palavra de
Deus (refletindo o conhecimento primário de Deus) seu ponto de partida
pressuposicional para todo pensamento. “Filho meu, atende à minha
sabedoria; à minha inteligência inclina o teu ouvido; para que guardes os
meus conselhos e os teus lábios observem o conhecimento” (Provérbios 5.1-
2).
Fazer da palavra de Deus sua pressuposição, seu padrão, seu instrutor
e guia, no entanto, exige renunciar à autossuficiência intelectual ─ a atitude
de que você é autônomo, capaz de alcançar conhecimento genuíno
independentemente da orientação e dos padrões de Deus. O homem que
afirma (ou busca) a neutralidade em seu pensamento não reconhece sua
completa dependência de Deus em todo conhecimento no que quer que venha
a compreender sobre o mundo. Tais homens dão a impressão (muitas vezes)
de que são cristãos somente porque, como intelectos superiores, descobriram
ou verificaram (num grau elevado ou significativo) os ensinos da Escritura.
Em vez de partirem da palavra firme de Deus como fundacional para os seus
estudos, eles querem nos fazer pensar que começam com a autossuficiência
intelectual e (usando isso como o seu ponto de partida) trabalham para uma
aceitação “racional” da Escritura. Embora os cristãos possam cair num
espírito autônomo enquanto seguem seus empreendimentos acadêmicos,
ainda assim essa atitude não é consistente com a profissão e o caráter cristão.
“O temor do Senhor é o princípio do conhecimento” (Provérbios 1.7). Todo
conhecimento começa com Deus, e, portanto, nós que desejamos ter
conhecimento devemos pressupor a palavra de Deus e renunciar à autonomia
intelectual. “Não multipliqueis palavras de altivez, nem saiam coisas
arrogantes da vossa boca; porque o Senhor é o Deus de conhecimento” (1
Samuel 2.3).
Jeová é aquele que ensina ao homem o conhecimento (Salmos 94.10).
Assim, o que quer que tenhamos, mesmo o conhecimento que temos sobre o
mundo, tem sido dado a nós por Deus. “E que tens tu que não tenhas
recebido?” (1 Coríntios 4.7) Por que então deveriam os homens se orgulhar
de uma autossuficiência intelectual? “Para que, como está escrito: Aquele que
se gloria glorie-se no Senhor” (1 Coríntios 1.31). Uma submissão humilde à
palavra de Deus deve preceder toda atividade intelectual do homem. Quando
os homens não glorificam a Deus como deveriam (curvando ante seu
Senhorio no mundo do pensamento) ou lhe dão graças (mesmo pelo
conhecimento que ele lhes concede), seus raciocínios se tornam vãos e seu
coração se obscurece (Romanos 1.21). O homem que alega “neutralidade
acadêmica” ou “autonomia filosófica” incorre no julgamento de Deus sobre
essa mesma área na qual ele se jacta ─ seu intelecto. Aqueles que se recusam
a pressupor o Senhorio epistêmico de Cristo, a verdade da Escritura como o
padrão de conhecimento e a necessidade da luz de Deus ante a qual podem
ver luz são levados a pensamentos fúteis e ao obscurecimento. Apenas
examine o tipo de material “acadêmico” que é produzido pelas universidades
do nosso país: desespero existencial, relativismo em referência à verdade,
irrelevância em estudos detalhados, “avanços” científicos desumanizadores e
uma papelada política! “Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste
mundo?” (1 Coríntios 1.20) Quando os homens não são administradores
adequados daquilo que Deus lhes concedeu (por exemplo, a capacidade
acadêmica), Deus tira até mesmo o que foi anteriormente possuído (por
exemplo, tornando essa erudição vã, isto é, “vazia”).
No entanto, como cristãos, nós ouvimos a palavra de Cristo, que é
capaz de nos converter das trevas para a luz (Atos 26.18). O único Deus sábio
(Romanos 16.27, NVI) que fez o mundo de acordo com a sabedoria (Salmos
104.24) nos dá um espírito de sabedoria e ilumina nossos olhos (Efésios 1.17-
18) para que possamos tanto conhecê-lo (em salvação) como ter
conhecimento sobre o seu mundo (em verdade). O fundamento do
conhecimento é a revelação de Deus. Você está fundamentado nela, ou está
intelectualmente à deriva?
6. RESUMO E APLICAÇÃO:
A AUTORIDADE AUTOATESTADORA
DE DEUS

O material dos últimos cinco estudos pode ser disposto no seguinte resumo
em tópicos:

1. Todo conhecimento está depositado em Cristo; o conhecimento da


verdade pelo homem depende do conhecimento prévio de Deus, começa
com o temor do Senhor e requer submissão à palavra de Deus.
2. A filosofia que não pressupõe a palavra de Deus é vã sutileza; ao
suprimir a verdade, se submeter às tradições humanas e raciocinar de
acordo com as pressuposições do mundo em vez das de Cristo, esse
pensamento leva a uma mente obscurecida e a conclusões fúteis. Deus
torna fútil a alardeada sabedoria do mundo.
3. Esforçar-se para assumir uma postura neutra entre pressupor a palavra
de Deus e não a pressupor é uma tentativa imoral de servir a dois senhores.
4. O pensamento neutralista apagaria o caráter distintivo do cristão,
obscureceria a antítese entre as mentalidades mundana e crente e ignoraria
o abismo entre o “velho homem” e o “novo homem”. O cristão que se
esforça pela neutralidade involuntariamente endossa suposições que são
hostis à sua fé.
5. O cristão é um “novo homem”, tendo uma mente renovada, novos
compromissos e uma nova direção ou meta, um novo Senhor e, portanto,
novas pressuposições no mundo do pensamento; o pensamento do crente
deve estar enraizado em Cristo (da mesma forma em que ele foi
convertido): submetendo-se ao Senhorio epistêmico de Cristo e não aos
padrões de pensamento da pseudosabedoria apóstata. O cristão renuncia à
arrogância da autonomia humana e procura amar a Deus como toda a sua
mente e raciocinar de tal maneira que Deus receba toda a glória.
6. As alternativas são, então, bastante claras: ou fundamentamos todo o
nosso pensamento na palavra de Cristo e ganhamos assim os tesouros da
sabedoria e do conhecimento, ou seguimos os ditames do pensamento
autônomo e somos assim enganados e subtraídos de um conhecimento
genuíno da verdade.
7. Portanto, a palavra de Deus (na Escritura) tem autoridade absoluta para
nós e é o critério final da verdade.

A partir do fato de que Deus é o Criador soberano dos céus e da terra, de que
o mundo e a história são somente como o plano de Deus decreta e de que o
homem é a imagem criada de Deus, devemos concluir que todo o
conhecimento que o homem tem é recebido de Deus, que é o originador de
toda a verdade e da Verdade original. Nosso conhecimento é um reflexo, uma
reconstrução receptiva do conhecimento criativo, absoluto e primário da
mente de Deus. Devemos pensar os pensamentos de Deus depois dele ─
como a primeira premissa acima o afirma. Ao reprimir a verdade sobre Deus,
então, o pensamento e os esforços de interpretação de uma pessoa serão
necessariamente mal direcionados no erro e na tolice (premissa 2). Não pode
haver meio termo; ou uma pessoa conscientemente começa com Deus em
seus pensamentos, ou não (premissa 3). Os crentes que tentam estabelecer
esse meio-termo devem então ou perder seu próprio fundamento sólido, ou
acabar operando a partir da base do incrédulo (que não é de fato um
fundamento) ─ como indicado na premissa 4. A própria natureza do que
significa ser, se tornar e viver como um cristão suficientemente estabelece
que o crente deve pressupor a verdade da palavra de Deus e abandonar
qualquer alegação pecaminosa de autossuficiência ou neutralidade (premissa
5). Assim, a pessoa é confrontada com uma escolha óbvia entre viver sob a
autoridade de Deus, ou não (premissa 6). A reflexão sobre a distinção
Criador/criatura (com a qual este parágrafo abriu) não pode deixar de nos
levar, então, à conclusão (premissa 7) de que a voz do Criador é a voz da
autoridade incontestável, absoluta; sua palavra deve ser o padrão pelo qual
julgamos todas as coisas e o ponto de partida do nosso pensamento. Esse é o
ensino inevitável da Escritura (a partir do qual os pontos acima foram
extraídos).
Os homens deveriam perceber que quando Jesus ensinava, ensinava
com autoridade autoatestadora e não como alguém cujas opiniões tinham de
ser respaldadas com a autoridade de outras considerações ou outras pessoas
(Mateus 7.29). Assim, nenhum homem tem a prerrogativa de colocar a
palavra de Cristo em dúvida. Se um homem não receber ou atentar para as
palavras de Cristo, não somente será um tolo que edifica sua vida sobre a
areia destrutiva (Mateus 7.26-27), como também será julgado por essas
mesmas palavras autoritativas (João 12.48-50). A palavra de Deus tem
autoridade suprema. “Ai daquele que contende com o seu Criador!” (Isaías
45.9)
O padrão pelo qual julgamos todos os ensinamentos deve ser essa
palavra de autoridade de Deus (1 João 4.11; Deuteronômio 13.1-4): “À lei e
ao testemunho! Se eles não falarem segundo esta palavra, é porque não há luz
neles” (Isaías 8.20). Se você não se submeter pressuposicionalmente à
palavra autoritativa e autoatestadora de Deus, será de “coração dobre” e
inconstante em todos os seus caminhos, levado pelo vento e lançado de uma
para outra parte (Tiago 1.5-8). Em vez de ser levado pelo “Vento” do
“Espírito” de Deus, você será levado em roda por todo vento de doutrina pela
engenhosidade do pensamento humanista e astúcia do erro (Efésios 4.13-14).
Portanto, devemos reter firme a confissão da nossa esperança cristã sem fazer
concessões (Hebreus 10.23). Ouça a afirmação de Deus: “eu sou o Senhor,
que falo a justiça, e anuncio coisas retas” (Isaías 45.19). Sua palavra, desde o
início, deve ser considerada autoritativamente verdadeira; não se deve vacilar
nisso. A veracidade de Deus é o padrão último para os nossos pensamentos:
“sempre seja Deus verdadeiro, e todo o homem mentiroso” (Romanos 3.4).
A palavra do Senhor é, de forma autoatestadora, verdadeira e
autoritativa. Ela é o critério que devemos usar quando julgamos todas as
outras palavras. Assim, a palavra de Deus é inexpugnável. Ela deve ser o
fundamento mais básico do nosso pensar e viver (Mateus 7.24-25). Ela é o
nosso ponto de partida pressuposicional. Todo o nosso raciocínio deve estar
subordinado à palavra de Deus, pois nenhum homem está em posição de
responder contra ela (Romanos 9.20), e quem quer que contenda com Deus
acabará tendo de responder (Jó 40.1-5). Não devem ser as opiniões mutáveis
dos homens, mas a palavra autoatestadora, autoritativa e em última análise
verídica de Deus que tem a preeminência nos nossos pensamentos, pois
“podes trovejar com voz como ele o faz?” (Jó 40.9).
SEÇÃO DOIS:
AS CONDIÇÕES NECESSÁRIAS
PARA A TAREFA APOLOGÉTICA
7. TRÊS ARGUMENTOS CONTRA O
PRESSUPOSICIONALISMO

Temos visto que a palavra de Deus é fundacional para todo conhecimento.


Ela tem autoridade epistêmica absoluta e é a pressuposição necessária de todo
conhecimento que o homem possui. Todo o nosso conhecimento deve ser
uma reconstrução receptiva dos pensamentos primários de Deus; o Senhor é o
originador de toda verdade. A palavra de Deus deve ser então tomada como o
padrão final da verdade para o homem. Aqueles que fingem autossuficiência
intelectual e se refreiam de pressupor a palavra de Cristo na Escritura são
levados à ignorância tola. Devemos começar com Cristo no mundo do
pensamento ou então renunciar a qualquer esperança de obter conhecimento
─ sobre nós mesmos, o mundo ou Deus. Esse tem sido o testemunho da
Escritura, tal como examinamos nos nossos estudos anteriores. “O temor do
Senhor é o princípio do conhecimento; os loucos desprezam a sabedoria e a
instrução” (Provérbios 1.7); “Nele [em Cristo] estão escondidos todos os
tesouros da sabedoria e do conhecimento” (Colossenses 2.3, NVI).
João Calvino reconheceu essa perspectiva bíblica e a tomou como
fundacional para as suas Institutas da Religião Cristã:

Quase toda a soma de nosso conhecimento, que de fato se deva julgar como
verdadeiro e sólido conhecimento, consta de duas partes: o conhecimento de
Deus e o conhecimento de nós mesmos. Como, porém, se entrelaçam com muitos
elos, não é fácil, entretanto, discernir qual deles precede ao outro, e ao outro
origina. Em primeiro lugar, visto que ninguém pode sequer mirar a si próprio sem
imediatamente volver o pensamento à contemplação de Deus, em quem vive e se
move… Por outro lado, é notório que o homem jamais chega ao puro
conhecimento de si mesmo até que haja antes contemplado a face de Deus, e da
visão dele desça a examinar-se a si próprio. (Vol. I, cap. I,1)

Não foi sem causa que o provérbio antigo sempre e tanto recomendou ao homem
o conhecimento de si mesmo. Ora, se por ser vergonhoso se há de ignorar
quaisquer coisas que dizem respeito ao trato da vida humana… Quanto, porém,
mais útil é o preceito, tanto mais diligentemente nos importa ver que não o
usemos de forma oposta, o que vemos ter acontecido a certos filósofos. Pois
esses, enquanto exortam o homem a que conheça a si mesmo, propõem-lhe, ao
mesmo tempo, como fim que não ignore a dignidade e excelência pessoais…
Mas, o conhecimento de nós mesmos situa-se, em primeiro lugar, nisto: que,
atentando para o que nos foi outorgado na criação, e quão benignamente Deus
continua sua graça para conosco… contudo ao mesmo tempo reflitamos que em
nós nada subsiste de próprio. Ao contrário, de pura graciosidade possuímos tudo
quanto Deus nos tem conferido, de sorte que estejamos sempre a dele depender…
é relevante reconhecermos que fomos dotados de razão e inteligência, para que,
cultivando uma vida santa e reta, avancemos rumo ao alvo proposto de uma
imortalidade bem-aventurada. (Vol. II, cap. I,1).

Essas são as palavras de abertura do Volume I e Volume II nas Institutas;


Calvino considera necessário pressupor a palavra de Deus tanto em “O
Conhecimento de Deus, o Criador” como em “O Conhecimento de Deus, o
Redentor”. Para saber qualquer coisa relativa à vida humana, quer no que
toca à criação, quer à salvação, é preciso rejeitar a autonomia promovida
pelas filosofias pagãs e se submeter à verdade de Deus e admitir total
dependência dele para a origem, orientação e capacitação do nosso uso da
razão. Em suma, Cristo deve ter a preeminência (Colossenses 1.18) ─ até
mesmo no mundo do pensamento. Com essa perspectiva, Calvino ativou a
mais importante e abençoada reforma da cultura e igreja ocidental que a
história moderna testemunhou.
Não é surpreendente que o princípio bíblico e reformado de se
pressupor a palavra e a autoridade de Cristo no mundo do pensamento e
torná-la fundacional para todo o conhecimento nos atingiria como
“dogmáticos” ou “absolutistas”. Vivemos em uma cultura que por tanto
tempo tem estado saturada com as alegações da autonomia intelectual e as
demandas por neutralidade na academia que essa perspectiva ímpia se
entranhou em nós: assim como a suposta “música das esferas”, ela é tão
constante e estamos tão acostumados com ela que não conseguimos discerni-
la. Faz parte do senso comum, e simplesmente contamos com ela.
Não é de admirar, então, que a posição epistemológica do pensamento
bíblico e reformado se apresente em absoluto contraste! Ela desafia o status
quo, exige uma reorientação da nossa vida e dos nossos pensamentos e
ameaça “virar o mundo de cabeça para baixo”. Ela parece dogmática e
absolutista porque é dogmática e absolutista. O cristão não deve ter vergonha
desse fato. Ele deve ter a humilde ousadia de dizer a um mundo perdido que a
mensagem cristã é incondicionalmente verdadeira e a pressuposição
necessária de todo pensamento (absolutista), que o evangelho de Cristo exige
arrependimento (incluindo uma “mudança da mente”) e que a palavra de
Deus tem um conteúdo doutrinário definido que é autoritativamente revelado
“diretamente do alto” (dogmática). Claro, a perspectiva bíblica não é
“dogmática e absolutista” no sentido zombeteiro frequentemente atribuído a
essas palavras. A alegação do cristão de que todo pensamento requer a
pressuposição da palavra de Cristo não é arrogante, irracional ou infundada.
Outra crítica feita contra a posição da pressuposição bíblica é que, se o
conhecimento só pode ser alcançado ao primeiro se pressupor a palavra
autoritativa de Deus, os incrédulos são privados de todo conhecimento; não
podemos dizer que eles sabem alguma coisa ─ até mesmo sobre os fatos mais
elementares da experiência ou as verdades da ciência. E isso parece
claramente absurdo, pois certamente alguns dos melhores cientistas no
mundo têm sido incrédulos. Como, então, o pressuposicionalismo explica que
os não cristãos sabem certas coisas?
Um terceiro argumento desenvolvido contra a perspectiva
pressuposicional é que ela impediria qualquer discussão ou argumentação
significativa com o incrédulo. Não haveria nenhum “terreno comum” em que
tal argumentação pudesse começar. Estando privado do conhecimento, o
incrédulo não teria nada a contribuir ou aprender de uma discussão com um
cristão. Ou seja, até que o incrédulo seja convertido, não há nenhuma
utilidade em falar com ele.
É claro, todos esses ataques à posição da epistemologia bíblica residem
ou em mal-entendidos, ou em informação incompleta. No decorrer dos
estudos subsequentes desta série vamos considerar as três principais críticas
ao pressuposicionalismo a partir da perspectiva do ensino bíblico. Restará
evidente que a posição bíblica na epistemologia não é infundada e arrogante,
que ela garante ao incrédulo, e não o priva de um conhecimento da verdade, e
que ela é a única base sobre a qual a argumentação com os incrédulos pode
ser realizada. Uma prévia do nosso tratamento pode ser dada aqui encerrando
com as palavras de Cornelius Van Til:

Os crentes não escolheram a posição cristã porque são mais sábios do que
os outros. O que eles têm, têm pela graça somente. Mas isso não significa
que eles aceitam as problemáticas do homem caído como corretas… O
homem caído busca em princípio ser uma lei para si mesmo. Mas ele não
pode levar seu princípio à sua plena expressão. Ele é refreado de fazer
isso… A despeito do que faça contra Deus, ele pode e deve agir para Deus;
assim, ele é capaz de fazer uma “contribuição positiva” à cultura humana.
(A Christian Theory of Knowledge, New Jersey: Presbyterian and
Reformed, 1969, pp. 43, 44).
8. HUMILDE OUSADIA, NÃO
ARROGÂNCIA OBSCURANTISTA

É uma pena que estudiosos, apologistas e filósofos cristãos tenham


negligenciado tanto um estudo detalhado do livro de Provérbios nas suas
tentativas de expor e trabalhar a partir de uma epistemologia bíblica (teoria
do conhecimento). O livro é cheio de alusões e insights sobre sabedoria,
instrução, tolice, entendimento, etc. Provérbios pode certamente nos ajudar
no desenvolvimento e na elaboração da abordagem pressuposicional para o
conhecimento que foi discutida nas nossas séries anteriormente.
No último estudo, ouvimos três argumentos comuns que são dirigidos
contra a posição do pressuposicionalismo bíblico. O primeiro foi que ele
equivaleria a arrogância e orgulho intelectual. Ele requer que cada
pensamento seja levado em sujeição a Cristo, pois do contrário resultará uma
ignorância tola. Ele ensina que os homens que não partem de um temor de
Deus não podem alcançar um conhecimento genuíno seja do que for. Ele
critica a atitude da neutralidade acadêmica com a palavra de Deus. Na batalha
com a incredulidade, ele requer uma rendição incondicional do não cristão e
reprova a contemporização dos pensadores cristãos que desejam tomar uma
abordagem mais “razoável” ou “iluminada”. Ora, pergunta-se, o que poderia
gerar uma perspectiva tão estrita como essa, exceto uma recomendação
indevida dos próprios pensamentos e capacidades? Uma impressionante
autoestima!
Como o pressuposicionalista deve responder? Deve defender a
arrogância obscurantista? Ou deve confessar que se aproximou
perigosamente da vertigem do autoengrandecimento? Ambas as abordagens
têm sido adotadas, de formas variadas, nos círculos cristãos nos últimos anos.
Ambas têm feito um desserviço ao testemunho cristão, uma fracassando em
evidenciar um necessário e devido fruto espiritual, outra deixando de expor o
pleno e devido rigor do pensamento bíblico. A sabedoria de Provérbios pode
nos guiar entre esses dois extremos infelizes. Lemos em Provérbios 15.32-33:

O que rejeita a instrução menospreza a própria alma, mas o que escuta a


repreensão adquire entendimento.

O temor do Senhor é a instrução da sabedoria, e precedendo a honra vai a


humildade.

Precisamos nos concentrar nos dois eixos dessa passagem.


Primeiro, o cristão deve realmente ser ousado no seu desafio a
epistemologias incrédulas e que contemporizam. (O homem que não acata a
correção de lhe ser exigido que o seu pensamento se submeta ao Senhorio de
Cristo no mundo do pensamento faz isso em prejuízo da própria alma). O
cristão deve consistentemente testemunhar a esse pensador que o
entendimento só é, de fato, possível quando a repreensão do desafio do
evangelho é acatada. Contemporizar com os padrões ou métodos incrédulos
no mundo do pensamento é fazer um grave desserviço às necessidades das
pessoas com quem falamos: querer assumir uma posição de neutralidade seria
propício a qualquer coisa, menos à saúde espiritual dos nossos ouvintes. Os
fatos devem ser apresentados sem hesitação: o raciocínio que não é elaborado
sobre a palavra pressuposta de Cristo é destinado à tolice intelectual e à morte
espiritual. A correção e a repreensão da Escritura não podem ser diluídas.
O estudioso cristão, tanto quanto qualquer crente na obra redentora e no
senhorio de Cristo, deve comunicar àqueles com quem tem contato que o
arrependimento e a fé são ordenados por Deus. O estudioso cristão deve ser
ousado aqui, “destruindo os conselhos, e toda a altivez que se levanta contra
o conhecimento de Deus” (2 Coríntios 10.5). Em defesa da fé, ele deve
proclamar com firmeza que “sempre seja Deus verdadeiro, e todo o homem
mentiroso” (Romanos 3.4). Ele deve apontar àqueles que não pressupõem a
verdade da palavra de Deus que sua mente precisa ser renovada (Efésios
4.23). Porque vivem na ignorância, esses homens devem se arrepender (Atos
17.30) ─ devem mostrar uma “mudança de mente” (como o vocábulo grego
para “arrepender” sugere) e um redirecionamento. O arrependimento é para a
crença (por ex., Mateus 21.32), e a crença ou fé precede o conhecimento (2
Pedro 1.5). O caminho da ignorância para o conhecimento é trilhado pela fé
em arrependimento. De fato, o pressuposicionalismo deveria ser apresentado
de forma corajosa no mundo do pensamento, sem desculpas pelo rigor das
suas exigências.
Além disso, há um segundo eixo na passagem de Provérbios acima
citada. Não somente deve o não pressuposicionalista receber a correção e
repreensão da palavra de Deus (ou seja, que o princípio da sabedoria é o
temor do Senhor), mas também o estudioso cristão que pressupõe a verdade
da Escritura em seus empreendimentos intelectuais deve estar plenamente
ciente de que a sabedoria que possui não é inerentemente sua, mas repousa
totalmente no temor do Senhor. Sem essa reverência, o estudioso cristão seria
tão tolo quanto todos os outros homens. Sua sabedoria não é devido à sua
capacidade mental superior e à profundidade do seu insight; antes, ela foi
dada por Deus. Já mencionamos acima que o arrependimento e a fé são
requisitos para o conhecimento. O cristão só possui um conhecimento da
verdade porque foi-lhe dada a fé como um dom (Efésios 2.8-9) e concedido o
arrependimento pelo Senhor (Atos 5.31; 11.18). Para ter fé, você deve nascer
de Deus (1 João 5.1), que dá arrependimento para um conhecimento genuíno
da verdade (2 Timóteo 2.25). O cristão só está numa posição de
conhecimento por causa da graça de Deus. Seu renascimento espiritual não é
dele próprio, mas unicamente o resultado da misericórdia de Deus (Ezequiel
11.19-20; João 1.13; Romanos 9.16). Essa regeneração graciosa lhe traz uma
nova mente.
De fato, como Paulo ensina, o cristão só recebe as coisas do Espírito ao
ser transformado da hostilidade natural para a submissão contente. O crente
tem agora a “mente de Cristo” em vez da mente tola do homem natural (1
Coríntios 2.16, no contexto). Essa é a fonte da sua sabedoria e conhecimento;
a honra de conhecer a verdade procede da graça imerecida de Deus. Portanto,
a humildade é condizente com o estudioso cristão. Em Filipenses 2, onde
Paulo nos exorta a ter “a mente de Cristo”, ele segue a caracterizar Cristo
como aquele que “humilhou-se a si mesmo”. Assim, Provérbios nos ensina
que antes dessa honra que atende a instrução da sabedoria ─ antes dessa
sabedoria que repousa no temor do Senhor ─ está a humildade. O estudioso
cristão não tem nada do que se vangloriar. Ele deve ser humilde perante o
mundo, reconhecendo que seu conhecimento depende da obra graciosa de
Deus nele.
Portanto, a epistemologia pressuposicional exige duas atitudes. Ambas
são inerentes à própria posição. Em primeiro lugar, o pressuposicionalista
deve ser ousado, pois o conhecimento é impossível à parte da pressuposição
da verdade de Deus. Em segundo, ele deve ser humilde, pois a razão pela qual
ele pressupõe a verdade de Deus (e a única forma de qualquer homem poder
chegar a essa pressuposição) reside na graça de Deus somente. O temor do
Senhor é fundacional para a sabedoria, e, portanto, o sábio deve ser humilde.
O estudioso cristão, portanto, deve evidenciar uma humilde ousadia na sua
confrontação com os outros no mundo do pensamento.

Andai com sabedoria para com os que estão de fora, remindo o tempo. A
vossa palavra seja sempre agradável, temperada com sal, para que saibais
como vos convém responder a cada um (Colossenses 4.5-6).
9. REVELAÇÃO INESCAPÁVEL,
CONHECIMENTO INESCAPÁVEL

Tendo rejeitado a acusação risível de arrogância obscurantista na


epistemologia pressuposicional, passamos a considerar um segundo tipo de
crítica que é normalmente feito contra tal posição. Uma teoria bíblica de
conhecimento proclama a absoluta necessidade da verdade revelada de Deus
como o fundamento tácito do entendimento e do conhecimento.
Contra essa perspectiva tem-se insistido que o incrédulo seria
reduzido ao nível da estupidez inescapável — privado de todo e qualquer
conhecimento. Se as pressuposições cristãs são necessárias para o
entendimento, então alegadamente o não cristão não pode entender nada! No
entanto, a partir do que vemos no mundo à nossa volta e do que lemos sobre a
história, é evidente que os incrédulos têm obtido um conhecimento sobre
muitas coisas. Assim, poderia parecer que a epistemologia pressuposicional
envolve algo que é patentemente falso, em cujo caso o pressuposicionalismo
é ele mesmo falso.
Mas o pressuposicionalismo realmente implica algo assim? Não,
longe disso. Na verdade, o pressuposicionalista alega que somente a sua
posição epistemológica garante que os incrédulos podem fazer contribuições
positivas ao edifício do conhecimento! O que o crítico erroneamente inferiu é
que se pressuposições reveladas são necessárias para o entendimento do
mundo, então os não cristãos são totalmente ignorantes, pois eles não
admitem pressuposições reveladas.
No entanto, o pressuposicionalista mantém que o incrédulo pode vir a
conhecer certas coisas (apesar da sua deliberada rejeição da verdade de
Deus) pelo simples fato de que o incrédulo tem pressuposições reveladas — e
não pode deixar de tê-las como criatura feita à imagem de Deus e vivendo no
mundo criado por Deus. Embora ele externamente e veementemente negue a
verdade de Deus, nenhum incrédulo está internamente e sinceramente
desprovido de um conhecimento de Deus. Não se trata certamente de um
conhecimento salvífico de Deus, mas mesmo como um conhecimento
condenatório a revelação natural ainda fornece um conhecimento de Deus.
Assim, de acordo com a epistemologia bíblica, embora os homens neguem o
seu Criador, eles todavia possuem um conhecimento inescapável dele; e
porque conhecem Deus (muito embora o conheçam em maldição e
reprovação), são capazes de chegar a uma compreensão limitada do mundo.
Você percebe, o incrédulo é de fato uma pessoa com uma mente
dividida. No fundo todos os homens conhecem Deus como suas criaturas,
mas como pecadores todos os homens se recusam a reconhecer seu Criador e
a viver por sua revelação. Assim, podemos dizer que os homens tanto
conhecem como não conhecem Deus; eles o conhecem em juízo e em virtude
da revelação natural, mas não o conhecem em bênçãos, a menos que isso se
dê em virtude da revelação sobrenatural e da graça salvadora. Embora
prejudicados por sua condição moral, os estudos do incrédulo não são
totalmente nulos. Ele pode obter conhecimento apesar de si próprio. Em
princípio sua incredulidade impediria o entendimento de qualquer coisa, pois
(como disse Agostinho) é preciso crer para entender. Todavia, na prática o
incrédulo é refreado de seguir de forma consistente e autodestrutiva a sua
profissão incrédula.
Se o incrédulo fosse um completo idiota, estaria livre da culpa. Mas o
ponto de Paulo em Romanos 1 é que a rebelião do incrédulo é intencional e
consciente; ele peca contra o seu melhor conhecimento e é, portanto,
“indesculpável” (vv. 20-21, NVI). E embora ele suprima esse melhor
conhecimento em injustiça (v. 18), tal conhecimento fornece um fundamento
para a sua compreensão (limitada, mas real) do mundo de Deus.
Uma afirmação da clareza e inescapabilidade da revelação natural é
algo central para a posição do pressuposicionalismo bíblico. O mundo foi
criado pela palavra de Deus (Gênesis 1.3; João 1.3; Colossenses 1.16;
Hebreus 1.2) e reflete por sua vez a mente e o caráter de Deus (Romanos
1.20). O homem foi criado à imagem de Deus (Gênesis 1.16-27) e não pode
assim escapar da presença divina. Não há nenhum lugar para o qual o homem
possa fugir para escapar da presença revelacional de Deus (Salmos 139.8). A
revelação natural de Deus se estende até ao fim do mundo (Salmos 19.1-4), e
todos os povos veem a glória de Deus (Salmos 97.6). Portanto, mesmo
vivendo em aberta rebelião (idólatra), os homens estão na condição de terem
“conhecido a Deus” (Romanos 1.21) — o Deus vivo e verdadeiro, não
meramente “um deus”. Cristo ilumina todos os homens (João 1.9), e assim
Calvino declara:
Pois sabemos que os homens têm essa qualidade única acima dos outros
animais: que são dotados de razão e inteligência e que trazem a distinção
entre certo e errado gravada na sua consciência. Não há homem, portanto,
em que certa consciência da luz eterna não haja penetrado… a luz comum
da natureza, algo bem mais singelo que a fé (Calvin’s Commentaries, tr.
T.H.L. Parker; Grand Rapids: Eerdmans 1959).

Porque o incrédulo é inconsistente na sua adesão a uma negação da verdade


de Deus, porque ele e o mundo não são o que ele professa ser, certo
conhecimento lhe é facultado. Assim, a antítese entre o crente e o incrédulo é
neste ponto absoluta apenas em princípio. Van Til corretamente observa:

O contraste absoluto entre o cristão e o não cristão no campo do


conhecimento é dito ser de princípio. É plenamente reconhecido o fato de
que, apesar desse contraste absoluto de princípio, existe um bem relativo
naqueles que são maus… Até onde os homens autoconscientemente operam
com base nesse princípio, eles não têm nenhuma noção em comum com o
crente… Mas no curso da história o homem natural não está plenamente
autoconsciente da sua própria posição… Ele tem dentro de si o
conhecimento de Deus em virtude da sua criação à imagem de Deus. Mas
essa ideia de Deus é reprimida pelo seu princípio falso, o princípio da
autonomia. Esse princípio da autonomia é, por sua vez, reprimido pelo
poder restritivo da graça comum de Deus… E pelo esforço do Espírito… a
hostilidade dos homens é em certa medida refreada… E assim eles podem
cooperar em virtude da contenção ética da graça comum (The Defense of
the Faith; Presbyterian and Reformed, 1955, pp. 67, 189-190, 194).

Por meio disso o desafio do pressuposicionalismo é ainda mais reforçado.


Todo conhecimento, mesmo o conhecimento possuído pelo incrédulo em
injustiça, deve estar baseado na verdade reconhecida sobre Deus. Logo, tanto
o conhecimento do incrédulo como a graça comum de Deus devem ser
usados, não para encorajar a neutralidade, mas para enfatizar as demandas
de Deus em cada ponto. Diz Van Til:

A graça comum não é uma dádiva de Deus pela qual seu próprio desafio de
arrependimento aos homens que pecaram contra ele está temporariamente
obscurecido. A graça comum, em vez disso, deve atender ao desafio divino
do arrependimento. Deve ser uma ferramenta pela qual o crente como servo
de Cristo pode desafiar o incrédulo ao arrependimento. Os crentes podem
objetivamente mostrar aos incrédulos que a unidade da ciência só pode ser
alcançada na base teísta cristã (ibid., p. 195).

Vemos então que a crítica esboçada no início deste estudo não prejudica, mas
serve antes para enfatizar ainda mais a força e a necessidade da epistemologia
pressuposicional.
10. TERRENO COMUM QUE NÃO É
NEUTRO

Nos dois estudos anteriores vimos que a necessidade de se pressupor a


verdade revelada de Deus para obter conhecimento de qualquer coisa ─ da
composição química da água ao caminho da salvação ─ não (1) produz
arrogância irracional ou (2) priva os incrédulos de um conhecimento do
mundo. Uma terceira acusação contra a posição epistemológica do
pressuposicionalismo cristão é que ele impede uma discussão significativa e
uma argumentação bem-sucedida com os não cristãos. Supostamente, um
pressuposicionalista nega que haja qualquer terreno comum entre os crentes e
os incrédulos, e o apologista não pode assim ter nenhum ponto de contato
com o incrédulo e nenhuma base sobre a qual transmitir ideias.
Uma resposta adequada a essa linha de ataque requer que levemos em
conta (1) o Deus que representamos, (2) o pecador a quem falamos e (3) o
contexto em que arrazoamos com ele.
O Senhor Deus é o Criador dos céus e da terra (Gênesis 1.1); nosso
entendimento deve começar aqui. Ele fez tudo (Êxodo 20.11; Neemias 9.6,
Salmos 104.24; Isaías 44.24); “nele foram criadas todas as coisas que há nos
céus e na terra, visíveis e invisíveis” (Colossenses 1.16a). Todos os homens
são criação dele, tanto o rico como o pobre (Provérbios 22.2). E “O Senhor
fez todas as coisas para atender aos seus próprios desígnios” (Provérbios
16.4): “Tudo foi criado por ele e para ele” (Colossenses 1.16b). Seu domínio
soberano se estende sobre cada coisa no mundo. Ele opera todas as coisas
segundo o conselho da sua vontade” (Efésios 1.11), e cada minuto do dia lhe
pertence (Salmos 74.16). Ele é dono de tudo na criação e cada faceta da vida
deve servi-lo. “Do Senhor é a terra e a sua plenitude, o mundo e aqueles que
nele habitam” (Salmos 24.1); Deus declara: “o que está debaixo de todos os
céus é meu” (Jó 41.11; cf. Gênesis 14.19; Êxodo 9.29; Deuteronômio 4.39;
10.14; etc.). Como Raabe confessou: “o Senhor vosso Deus é Deus em cima
nos céus e em baixo na terra” (Josué 2.11); assim, a magnificência, o poder, a
glória, a vitória e a majestade são dele, porque tudo que há nos céus e na terra
é sua possessão (1 Crônicas 29.11). O governo soberano de Deus se estende
até aos fins da terra (Salmos 59.13), sobre cada alma (Ezequiel 18.4), para
todas as gerações (Êxodo 15.18; Salmos 10.16; 145.13; 146.10). Portanto, o
Deus que criou todas as coisas domina sobre tudo (Salmos 103.19).
Em tal caso, tudo no reino criado deve servir, e ser usado para servir,
o Senhor Criador: “dele e por ele, e para ele, são todas as coisas (Romanos
11.36). Não há um só centímetro quadrado do mundo, uma só fração de
segundo do tempo, que não seja dependente de, controlado por, e
subserviente a Deus. Portanto, o homem é ordenado a fazer tudo para glória
de Deus (1 Coríntios 10.31); nosso corpo deve ser apresentado como
sacrifício vivo no serviço de Deus (Romanos 12.1). Na verdade, tudo o que
fazemos, por palavras ou por obras, entra nessa ordem (Colossenses 3.17).
Mesmo o uso da nossa razão ou mente deve estar de acordo com a direção de
Deus e ser para a sua glória (2 Coríntios 10.5), pois seu governo soberano
inclui as áreas da sabedoria e do conhecimento (Colossenses 2.3). Assim,
vemos que Deus deve ser literalmente glorificado em todas as coisas (1
Pedro 4.11). Porque tudo e cada área é criada e governada por Deus, nada
está isento da exigência de ser consagrado, ou separado, para ele ─ devemos
ser santos em “toda a [nossa] maneira de viver” (1 Pedro 1.15).
A conclusão dessa linha de pensamento é forçosamente evidente: não
pode haver nenhum terreno neutro entre o crente e o incrédulo, entre a
obediência e a rebelião, entre respeitar e abusar do que pertence a Deus (isto
é, todas as coisas). “Ninguém pode servir a dois senhores” (Mateus 6.24);
“Quem não é comigo é contra mim” (Mateus 12.30). Portanto, não há
nenhuma área no mundo, em pensamentos, em palavras ou em atos que seja
irrelevante, indiferente ou neutra em relação a Deus e suas demandas. O
cristão deve reconhecer esse fato quando lida com o incrédulo. Não há
assunto que ele possa discutir que esteja desprovido da influência da questão
religiosa ou esteja livre de um compromisso religioso. Não existe nenhuma
zona “desmilitarizada” entre o campo da incredulidade e as forças obedientes
a Cristo. Deus é dono de tudo ou de nada. Cada área da vida e cada fato é o
que é por causa do decreto soberano de Deus; assim, não há nenhum lugar
para o qual um homem possa fugir para escapar da influência, do controle e
dos requisitos de Deus. No mundo de Deus a neutralidade é impossível.
Ademais, Deus não apenas criou todas as coisas para si mesmo, e não
apenas governa sobre cada área, mas também persistente e universalmente se
revela a todos os homens. Deus nunca deixou a si mesmo sem testemunho
(Atos 14.17). Nenhum homem pode alegar ignorância do seu Criador, pois o
próprio Deus tornou manifesto a todos os homens o que se pode conhecer
dele (Romanos 1.19). De fato, seus atributos invisíveis são claramente
percebidos através do mundo criado (Romanos 1.20). Aqui, mais uma vez,
devemos concluir que não pode haver nenhum terreno neutro, nenhuma área
que deixe de exercer pressão revelacional sobre o pecador. Onde quer que
olhe, o pecador se vê confrontado pelo Deus a quem deve prestar contas. Não
pode haver uma zona de segurança na qual o pecador pode buscar refúgio. E
se houvesse, o pecador ficaria ali permanentemente para escapar do seu
Criador. Mas não há como escapar de Deus (Salmos 139.7-8).
Assim, o cristão deve se esforçar para trazer os pensadores incrédulos
à plena percepção da reivindicação abrangente de Deus sobre eles. O Deus
universalmente sustentador, universalmente reinante e universalmente
revelador do Universo não proporciona e não pode proporcionar à criação a
mais mínima área de neutralidade. Consequentemente, o crente está errado
em buscar (e em presumir achar) um tema que não desafie o incrédulo com as
demandas pressuposicionais que temos discutido nos estudos anteriores. A
esperança de que esse fato ou tópico neutro pudesse se tornar o ponto de
partida para um argumento que progressivamente convencesse o incrédulo da
verdade da palavra de Deus (gradualmente) é fútil. Cristo é o Senhor, mesmo
no mundo do pensamento. Nenhum fato, nenhuma área de conhecimento ou
sabedoria, deixa de enfatizar os requerimentos de Deus e manifestar seu
controle soberano. O ponto de partida para o entendimento não é a
neutralidade, mas a reverência pelo Senhor.
As considerações precedentes não só demonstram que não há nenhum
terreno neutro entre os crentes e os incrédulos, mas também que há sempre
presente um terreno comum entre o crente e o incrédulo. O que deve ser
mantido em mente é que esse terreno comum é terreno de Deus. Todos os
homens têm em comum o mundo criado por Deus, controlado por Deus e
constantemente revelador de Deus. Nesse caso, qualquer área da vida ou
qualquer fato pode ser usado como um ponto de contato. A negação da
neutralidade assegura, e não destrói, a comunalidade.
11. ONDE O PONTO DE CONTATO É, E
NÃO É, ENCONTRADO

Vindo à questão do terreno comum com o incrédulo, temos primeiro


considerado o Deus a quem nós representamos. Desde que Deus é o criador
de todas as coisas, desde que ele controla soberanamente todos os eventos e
desde que ele se revela claramente em cada fato da ordem criada, é
totalmente impossível que haja algum terreno neutro, algum território ou
faceta da realidade em que o homem não seja confrontado com as
reivindicações de Deus, alguma área do conhecimento em que a questão
teológica não tenha relevância. Contudo, essa perspectiva garante que há um
terreno comum entre o crente e o incrédulo ─ um terreno comum de natureza
metafísica. O mundo inteiro, o reino criado e a história pública constituem
uma comunalidade entre o cristão e o não cristão. Mas esse terreno comum
não é um terreno neutro; é o terreno de Deus. Não há nenhum lugar para estar
no mundo ─ mesmo no mundo do pensamento ─ que não seja território de
Deus.
Além de considerar o Deus a quem representamos, devemos tomar
conhecimento da pessoa a quem falamos. Em particular, devemos reconhecer
os efeitos noéticos do pecado. A queda do homem teve resultados drásticos
no mundo do pensamento; até mesmo o uso da capacidade de raciocínio do
homem se tornou depravado e frustrante. Toda a criação ficou sujeita à
vaidade (Romanos 8.20), trazendo assim confusão, ineficiência e desespero
cético no reino epistêmico. Mais ainda, a corrupção moral dominou os
pensamentos do homem (Gênesis 6.5), de modo o uso ímpio da mente do
homem se tornou exaustivo, contínuo e inescapável. O homem suprime a
verdade pela injustiça para abraçar a mentira (Romanos 1.18, 25, NVI). Na
sua pseudosabedoria, o mundo se recusa a conhecer Deus (1 Coríntios 1.21),
pois Satanás cegou os entendimentos dos incrédulos (2 Coríntios 4.4). O
homem usa sua razão não para glorificar a Deus e fazer avançar seu reino,
mas para se levantar em oposição arrogante ao conhecimento de Deus (2
Coríntios 10.5).
Quando dizemos que o pecado é ético, isso não significa que o pecado
envolveu apenas a vontade do homem e não também seu intelecto. O
pecado envolveu todos os aspectos da personalidade do homem. Todas as
reações do homem em cada relação em que Deus o colocou foram éticas,
não meramente intelectuais; o próprio intelectual é ético (Cornelius Van Til,
The Defense of the Faith. Philadelphia: Presbyterian and Reformed,1955, p.
63).

Nas suas Institutas da Religião Cristã, João Calvino observou de maneira


bastante incisiva que os filósofos precisam ver que o homem é corrupto em
todos os aspectos do seu ser ─ que a queda compreende as operações mentais
do homem tanto quanto sua volição e suas emoções.
Claro, isso enfatiza por que não podemos tentar encontrar um terreno
comum na interpretação do incrédulo ou na sua compreensão autoconsciente
das coisas, sejam elas as leis da lógica, os fatos da história ou as experiências
da personalidade humana. O não cristão busca suprimir a verdade, distorcê-la
em um esquema naturalista, evitar a interpretação de Deus que faz das coisas
e dos eventos o que eles são (determinando o fim desde o princípio, Isaías
46.10). O estudioso cristão não pode chegar a nada além de uma
concordância formal; ele não pode encontrar um entendimento
verdadeiramente comum nas palavras e opiniões do incrédulo.
Especificamente, e bem no cerne das discordâncias com os estudiosos ou
pensadores incrédulos, devemos ver que o incrédulo tem um diagnóstico
incorreto da sua situação e sua própria pessoa. O não cristão acha que seu
processo de pensamento é normal. Ele acha que sua mente é a corte final de
apelação em todas as matérias do conhecimento. Ele toma a si próprio como
o ponto de referência para toda interpretação dos fatos. Isto é, ele se tornou
epistemologicamente uma lei para si mesmo: autônomo.
Consequentemente, a depravação e suposta autonomia do pensamento
do homem impedem o cristão regenerado de buscar um terreno comum na
perspectiva autoconsciente e reconhecida do incrédulo sobre qualquer coisa.
Ao invés de concordar com a concepção, ordenação ou avaliação que o
pecador faz da sua experiência, o cristão busca seu arrependimento ─
arrependimento no mundo do pensamento. Nossa abordagem deve ser a de
Isaías 55.7: “Deixe o ímpio o seu caminho, e o homem maligno os seus
pensamentos, e se converta ao Senhor”. Um paciente moribundo pode
necessitar de uma cirurgia, mas temê-la e iludir a si próprio achando que sua
condição só pede um band-aid. Um médico que aceitasse o diagnóstico do
próprio paciente sobre si mesmo e sua condição não só seria um charlatão,
mas também mostraria não ter absolutamente nenhuma preocupação com a
verdadeira saúde e recuperação do paciente. Da mesma forma, o estudioso
cristão que realmente deseja a recuperação espiritual do pensador não
regenerado não deve permitir que o incrédulo diagnostique sua própria
condição e pensamentos e então prescreva uma cura insuficiente. O pensador
não regenerado não precisa meramente de um band-aid de informação
adicional; ele precisa da grande cirurgia interna da regeneração. Ele precisa
abandonar seus pensamentos e ser renovado no conhecimento segundo a
imagem do seu criador (Colossenses 3.10).
No entanto, ao negar um terreno comum na área não cristã da
interpretação autônoma da experiência, o pressuposicionalista não está
ensinando que não tem nenhum ponto de contato com o incrédulo. O fato de
que o incrédulo está errado nos seus esforços interpretativos autoconscientes
não significa que ele e o cristão são (epistemologicamente falando) como
barcos navegando no escuro. Pois entre o crente e o incrédulo há algo em
comum que é de grande importância; ambos são, independentemente das suas
condições de salvo e perdido, criaturas à imagem de Deus. Embora o não
regenerado precise ser renovado em relação a ela, a imagem de Deus
permanece nele. O homem não pode deixar de ser homem, e ser homem é ser
imagem de Deus. O homem é a réplica finita de Deus, sendo como ele em
cada aspecto que é apropriado à criatura para assemelhar-se ao seu Criador.
Em razão disso, nenhum homem pode escapar da face de Deus, pois a
imagem de Deus é levada junto com o homem aonde quer que vá ─ mesmo
no hades. Assim, o crente pode encontrar um ponto de contato na sua
discussão com os incrédulos bem fundo dentro deles. A criação demonstra
para todo o sempre que nenhum homem está além do toque da revelação de
Deus; os homens foram criados com a capacidade de entender e reconhecer a
voz do seu Criador. Van Til diz que estamos:

… seguros de haver um ponto de contato pelo fato de que todo homem é


feito à imagem de Deus e traz em si mesmo gravada a lei de Deus. Neste
fato sozinho (nós) podemos descansar seguros, com respeito ao problema
do ponto de contato. Pois esse fato faz os homens serem sempre acessíveis a
Deus… Assim, somente ao encontrar o ponto de contato no senso humano
de divindade que subjaz a própria concepção de autoconsciência do homem
como última é que podemos ser tanto fieis à Escritura como eficazes no
raciocínio com o homem natural (ibid., pp. 111, 112).

Vimos até então, portanto, que o pressuposicionalismo leva a sério as


doutrinas da criação, da soberania de Deus, da revelação natural, da criação
do homem à imagem de Deus e da depravação total. O pressuposicionalismo
defende que existe sem a menor sombra de dúvida um reino de terreno
comum entre os crentes e os incrédulos (terreno que é de natureza
metafísica), mas que esse terreno comum não é um terreno neutro. Ademais,
esse terreno não é encontrado na interpretação e concepção autônoma que o
homem natural faz da sua experiência ou dos fatos do mundo. Não é aí que o
cristão tem um ponto de contato, mas sim na real condição do homem como
imagem de Deus. Assim, está claro que a terceira crítica ao
pressuposicionalismo que foi ensaiada numa parte anterior nesta série é
totalmente infundada. Longe de isolar os homens em torres de pensamento
mutuamente inacessíveis, o pressuposicionalismo assegura tanto um terreno
comum como um ponto de contato entre o cristão e o não cristão. É tudo uma
questão de encontrá-los no lugar certo!
12. RESUMO GERAL: CAPÍTULOS 1-11

Será conveniente fazer uma pausa neste ponto e resumir a discussão que
fizemos nos capítulos anteriores a fim de que obtenhamos uma visão geral
concisa do nosso padrão de pensamento.
A primeira parte desta série apresentou o Senhorio de Cristo no reino
do conhecimento e aplicou essa verdade no exercício da razão do homem.
Nós concluímos com Calvino que a palavra de Deus deve ser pressuposta
para que se tenha conhecimento tanto no reino da criação como no da
redenção; todavia, como a nossa cultura está saturada com as exigências
contrárias da autonomia e da neutralidade, há uma necessidade urgente de
reforma no mundo do pensamento. Três objeções básicas ao
pressuposicionalismo na teoria do conhecimento surgem a partir de uma
cultura não reformada; essas três reclamações foram subsequentemente
consideradas para demonstrar sua invalidade, exibir a força do
pressuposicionalismo e expor aspectos adicionais desta posição.

O SENHORIO EPISTÊMICO DE CRISTO

1. O conhecimento de Deus é original, abrangente e criativo. Não há


princípios ou padrões de verdade mais elevados que ele observe e com os
quais tente fazer seus pensamentos entrarem em conformidade. Não há
mistério em torno do seu entendimento, pois este é infinito. A mente de Deus
dá diversidade e ordem a todas as coisas, garantindo assim a realidade dos
particulares (multiplicidade) e, contudo, assegurando que eles sejam
inteligíveis (unidade).
2. Todo conhecimento e sabedoria estão depositados em Cristo, a fonte,
o padrão e encarnação da verdade.
3. A palavra de Deus tem assim autoridade suprema, absoluta e
inquestionável no reino do conhecimento bem como no da moralidade.
4. Isso também significa que a palavra de Deus deve ser o padrão final
de verdade para o homem, em cujo caso ela não pode ser desafiada por algum
critério mais último.
5. Consequentemente, o ensino de Cristo na Escritura tem autoridade
autoatestadora; Cristo claramente fala com a autoridade de Deus, é o
repositório do conhecimento e não está sujeito a nenhuma autoridade ou
padrão mais básico do que ele próprio, como “o caminho, e a verdade e a
vida”. Só ele é adequado para testemunhar de si mesmo e sua palavra.

O EXERCÍCIO DA RAZÃO PELO HOMEM

1. Existe uma verdade absoluta, cujo conhecimento é acessível ao homem;


embora possa não conhecer exaustivamente, ele tem um
conhecimento adequado.
2. O conhecimento do homem deve ser uma reconstrução receptiva do
conhecimento original e criativo de Deus; para chegar a um
conhecimento da verdade, o homem deve “pensar os pensamentos de
Deus depois dele”.
a. O ponto de partida do conhecimento é, portanto, Deus; o princípio do
conhecimento é o temor do Senhor ─ exigindo, portanto, respeito e
submissão.
b. Em particular, é preciso se submeter à verdade da palavra revelada
de Deus.
c. O homem deve ser grato a Deus por tudo o que ele possui, incluindo
seu conhecimento e entendimento; tudo o que temos vem de Deus.
d. Assim, a crença precede o entendimento, e a revelação reforça a
razão; a teologia é fundacional para todas as áreas de estudo.
e. Assim também, o homem não tem a prerrogativa de colocar em
dúvida a palavra de Deus.
3. A filosofia que suprime em vez de pressupor a verdade de Deus
evidencia a escuridão de uma mente pecaminosa ─ ou seja, ela está
tanto numa rebelião epistemológica como moral contra Deus.
a. Esse pensamento é tornado louco por Deus e leva a conclusões
fúteis; ele torna o uso da razão algo impossível.
b. O pensamento que se submete aos princípios elementares (as
pressuposições) da filosofia mundana e às tradições dos homens
engana os homens com palavras persuasivas; ele os conduz à
destruição espiritual.
4. A neutralidade na academia, apologética ou educação é tanto impossível
como imoral.
a. Ninguém pode servir a dois senhores, e assim a pessoa deve escolher
entre fundamentar seus esforços intelectuais em Cristo, ou na sua
própria razão autônoma; não há meio termo entre essas duas
autoridades.
b. A neutralidade apagaria o caráter distintivo da posição do cristão e
abafaria a antítese entre o pensamento piedoso e o ímpio.
c. Um cristão que se esforça para ser neutro não apenas nega o Senhorio
de Cristo no conhecimento e perde se fundamento sólido no
raciocínio, mas também involuntariamente endossa suposições que
são hostis à sua fé.
5. O crente é um “novo homem” em Cristo, sendo renovado na mente.
a. A conversão requer arrependimento (“mudança de mente”) da
tentativa de autonomia.
b. O cristão anda pela fé, no poder regenerador e iluminador do Espírito
Santo, e não pelo intelecto autossuficiente.
c. Todos os pensamentos do crente são levados cativos e enraizados em
Cristo como seu novo Senhor. Por conseguinte, ele pressupõe a
verdade da palavra de Deus e a aplica a cada aspecto da vida
(incluindo a atividade intelectual).
d. O crente deve amar o Senhor seu Deus com toda a sua mente,
buscando em todas as coisas glorificar a Deus ─ mesmo no mundo
do pensamento.

Outros aspectos cruciais do pressuposicionalismo


1. Pela graça de Deus somente é que os homens vêm a pressupor a
verdade de Deus.
a. Porque é a verdade e a graça de Deus que nos transformam, devemos
ser ousados em nosso desafio à crença intelectual.
b. Uma vez que é a graça de Deus (e não nossa própria sabedoria) que
responde pela nossa mudança de mente, a humildade é compatível
com o estudioso cristão; não temos nada em nós mesmos de que nos
jactar.
c. Portanto, o que deve caracterizar os nossos estudos é a humilde
ousadia ─ e não a contemporização, o obscurantismo ou a
arrogância.
2. Todos os homens são “indesculpáveis” pela rebelião contra o Senhor,
pois todos os homens conhecem o Deus vivo e verdadeiro através da
sua revelação comum.
a. Apesar da sua profissão em contrário, até mesmo o incrédulo
conhece, a partir da natureza e da consciência, o que se pode
conhecer sobre Deus; Deus tem claramente se revelado a todos os
homens.
b. Todos os homens tentam suprimir esse conhecimento de Deus, como
é manifesto nos vários, multiformes e profusos esquemas de
pensamento e filosofia anticristã.
c. Mas porque o incrédulo não pode se livrar de um conhecimento de
Deus, porque continua a usar o “capital emprestado” das verdades
teístas, ele é capaz de chegar a um entendimento limitado da verdade
sobre o mundo e sobre si mesmo ─ apesar, e não por causa, da sua
tentativa de autonomia.
3. Deus criou todas as coisas para si mesmo, dirige-as para os próprios
fins soberanos dele e é dono de todas as coisas ─ em cujo caso, todas
coisas no reino criado deve lhe servir.
a. Isso impede a possibilidade de qualquer terreno neutro entre o crente
e o incrédulo, mas nos assegura de que há um terreno comum
abundante (metafisicamente falando) entre eles, desde que todos os
homens são criaturas de Deus e vivem no mundo de Deus.
b. Como criatura de Deus, criado à imagem de Deus e vivendo num
ambiente que constantemente faz a revelação de Deus ter um efeito
sobre ele, o incrédulo está sempre acessível ao evangelho. O crente
sempre tem um ponto de contato com o incrédulo: (1) ele ser à
imagem de Deus, e (2) a verdade suprimida no seu íntimo.
SEÇÃO TRÊS:
COMO DEFENDER A FÉ
13. A TOLICE DA INCREDULIDADE

A declaração e o desafio central da apologética cristã são expressos na


pergunta retórica de Paulo: “Porventura não tornou Deus louca a sabedoria
deste mundo?” (1 Coríntios 1.20). Os ataques críticos que são feitos contra a
fé cristã no mundo do pensamento não podem ser enfrentados com respostas
fragmentadas e apelos à emoção. No longo prazo o crente deve responder ao
assalto do incrédulo atacando a posição dele nos seus fundamentos. Ele deve
desafiar as pressuposições do incrédulo, perguntar se o conhecimento é
mesmo possível, tendo em vista as suposições e perspectivas do não cristão.
O cristão não pode ficar para sempre na defensiva construindo respostas
atomísticas para a variedade sem fim de críticas incrédulas; ele deve tomar a
ofensiva e mostrar ao incrédulo que ele não tem nenhum lugar inteligível
onde permanecer, nenhuma epistemologia consistente, nenhuma justificação
para o discurso significativo, nenhuma predicação ou argumentação. A
pseudosabedoria do mundo deve ser reduzida à tolice ─ em cujo caso
nenhuma das críticas do incrédulo tenha qualquer força.
Se quisermos entender como responder ao tolo, se quisermos ser
capazes de demonstrar que Deus tornou louca a pseudosabedoria do mundo,
devemos primeiro estudar a concepção bíblica do tolo e da sua tolice.
Na perspectiva bíblica, o tolo não é basicamente uma pessoa superficial
ou um analfabeto ignorante; ele pode ser muito educado e sofisticado pelos
padrões sociais. No entanto, ele é um tolo porque abandonou a fonte da
verdadeira sabedoria em Deus para confiar em seus próprios poderes
(alegadamente) intelectuais autossuficientes. Ele é impossível de ser ensinado
(Provérbios 10.8) e despreza a instrução (Provérbios 15.5); enquanto o sábio
dá ouvidos ao conselho que lhe é dado, “O caminho do insensato é reto aos
seus próprios olhos” (Provérbios 12.15). O tolo tem absoluta autoconfiança e
se imagina intelectualmente autônomo. “O que confia no seu próprio coração
é insensato” (Provérbios 28.26). Um tolo não pode pensar de si mesmo como
estando equivocado (Provérbios 17.10). Ele julga as questões de acordo com
os seus próprios padrões pré-estabelecidos de verdade e correção, e assim
seus próprios pensamentos sempre acabam no longo prazo estando corretos.
O tolo está convicto de que pode confiar em sua própria autoridade racional e
escrutínio intelectual. “… o tolo se encoleriza, e dá-se por seguro”
(Provérbios 14.16), e assim revela sua própria mente (Provérbios 29.11).
Na realidade, esse homem autônomo é enfadonho, teimoso, rude,
obstinado e estúpido. Ele se professa sábio, mas com a abertura da sua boca
fica claro que ele é (no sentido bíblico) “um tolo” ─ sua única sabedoria
consiste em manter-se em silêncio (Provérbios 17.28). “… o coração dos
tolos proclama a estultícia” (Provérbios 12.23), e o tolo expõe a sua
insensatez (Provérbios 13:16, NVI). Ele se alimenta de estultícia (Provérbios
15.14), a derrama (Provérbios 15.2) e retorna a ela como um cão volta ao seu
vômito (Provérbios 26.11). Ele é tão apaixonado por sua estultícia e tão
dedicado na preservação dela que é melhor que “Encontre-se o homem com a
ursa roubada dos filhos, mas não com o louco na sua estultícia” (Provérbios
17.12). O tolo não quer realmente encontrar a verdade; ele só quer ser
autojustificado nas suas próprias imaginações. Embora possa fingir
objetividade, “O tolo não tem prazer no entendimento, mas sim em expor os
seus pensamentos” (Provérbios 18.2, NVI). Ele está comprometido com as
suas próprias pressuposições e deseja resguardar sua autonomia. Assim, ele
não se apartará do mal (Provérbios 13.19) e, portanto, toda a sua fala
instruída revela nada mais que lábios perversos e mentirosos (Provérbios
10.18; 19.1). Ele pode falar orgulhosamente, mas “A boca do tolo é a sua
própria destruição, e os seus lábios um laço para a sua alma” (Provérbios
18.7). Ele não resistirá no julgamento de Deus (Salmos 5.5).
Como um homem se torna um tolo autoiludido e alegadamente
autônomo? O tolo despreza a sabedoria e a instrução, recusando-se a
começar seu pensamento com reverência para com o Senhor (Provérbios
1.7). Ele rejeita os mandamentos de Deus (Provérbios 10.8) e mesmo ousa
afrontar o Todo-Poderoso (Salmos 74.22; Jó 1.22). “O pensamento do tolo é
pecado” (Provérbios 24.9). O tolo não é governado pela palavra de Deus; ele
é iníquo, assim como o é seu pensamento (ou seja, pecaminoso, 1 João 3.4).
Rejeitando a lei ou a palavra de Deus, o tolo respeita em vez disso sua
própria palavra e lei (ou seja, ele é auto-nomo). A Escritura descreve as
pessoas que não conhecem Deus, seus caminhos e seus juízos como loucas
(cf. Jeremias 5.4). O tolo vive na ignorância prática de Deus, pois em seu
coração (do qual procedem as fontes da vida, Provérbios 4.23) o tolo diz que
não há Deus (Salmos 14.1; cf. Isaías 32.6). Ele vive e raciocina de maneira
ateísta ─ como se fosse seu próprio senhor. Em vez de ser espiritualmente
dirigida, a visão do tolo é terrena (Provérbios 17.24). Ele serve a criatura (por
exemplo, a autoridade da sua própria mente) em vez do Criador (Romanos
1.25).
O homem que ouve as palavras de Cristo, mas edifica sua vida sobre
uma rejeição dessa revelação é um tolo (Mateus 7.26), e o homem que
suprime a revelação geral de Deus no reino criado também é descrito como
um tolo (Romanos 1.18). É bastante claro, então, que tolo é alguém que não
faz Deus e sua revelação o ponto de partida (a pressuposição) do seu
pensamento. Os tolos desprezam a pregação da cruz, se recusam a conhecer
Deus e não podem receber a palavra de Deus (1 Coríntios 1-2). O
autoproclamado homem autônomo, o incrédulo, não se submete à palavra de
Deus ou edifica sua vida e seu pensamento nela. A descrença e a ignorância
da vontade de Deus, portanto, produzem insensatez (1 Coríntios 15.36;
Efésios 5.17).
Como resultado, o tolo não tem a concentração necessária para
encontrar sabedoria; em vão pensa que ela é facilmente dispensada ou
adquirida (Provérbios 17.16, 24). Por se gloriar no homem, o pensamento do
tolo se torna fútil e vergonhoso (1 Coríntios 3); seu coração é obscurecido e
sua mente é vã (Romanos 1.21). Por causa da sua incredulidade e rebelião
contra a palavra de Deus, o tolo não tem lábios de conhecimento (Provérbios
14:7). Na verdade, porque escolhe não reverenciar o Senhor, o tolo odeia o
conhecimento (Provérbios 1.29). O incrédulo que critica a fé cristã é esse tolo
que estivemos descrevendo acima. Ao responder ao tolo, o apologista cristão
deve ter como objetivo demonstrar que a incredulidade é, em última análise,
destrutiva de todo conhecimento. Deve ser mostrado ao tolo que sua
autonomia é hostil ao conhecimento ─ que Deus torna louca a “sabedoria” do
mundo.
14. UM PROCEDIMENTO
APOLOGÉTICO DE DUAS ETAPAS

“Onde está o sábio? Onde está o escriba? Onde está o inquiridor deste
século? Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?”

Paulo poderia sustentar sua apologética para a fé cristã sobre esse conjunto de
perguntas retóricas (1 Coríntios 1.20), sabendo que a palavra da cruz destrói a
sabedoria e mundo e aniquila seu discernimento (v. 19). O coração não
regenerado, com sua mente obscurecida, avalia o evangelho como fraqueza e
loucura (vv. 18, 23), mas na realidade ele expressa a verdadeira sabedoria e o
poder salvífico de Deus (vv. 18, 21, 24).
O que o mundo chama “loucura” é na verdade sabedoria. Por outro
lado, o que o mundo considera “sábio” é na verdade loucura. O incrédulo tem
seus padrões totalmente invertidos, e assim zomba da fé cristã ou a vê como
intelectualmente desonesta. Mas Paulo sabia que Deus podia desmascarar a
arrogância da incredulidade e expor a lamentável pretensão de conhecimento
dela. “… a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de
Deus é mais forte do que os homens” (v. 25). Embora o incrédulo veja a fé
cristã como tola e fraca, essa fé tem a força e as condições intelectuais de
expor a “sabedoria mundana” por aquilo que ela realmente é: uma completa
loucura. Deus escolheu as (chamadas) coisas loucas do mundo para que
pudesse envergonhar aqueles que se vangloriam de sua (chamada) sabedoria
(v. 27, NVI).
Em face da revelação de Deus o incrédulo é “indesculpável” (“sem
apologética”, cf. Romanos 1.20, no grego). Sua posição intelectual não tem
credenciais dignas no longo prazo. Quando é defrontado com o desafio
intelectual do evangelho tal como ele seria apresentado por Paulo, o não
regenerado é deixado sem nenhuma base. O resultado do encontro é
resumidamente expresso por Paulo quando ele declara: “Onde está o sábio?
Onde está o inquiridor deste século?”. O fato é que Deus torna louca a
sabedoria deste mundo, e assim um incrédulo genuinamente sábio é algo que
não pode ser encontrado. Jamais houve algum homem que pudesse debater e
defender adequadamente a perspectiva deste mundo (isto é, a incredulidade).
A rejeição da fé cristã é algo que não pode ser justificado, e a posição
intelectual do incrédulo não pode ser genuinamente defendida no mundo do
pensamento. As armas espirituais do apologista cristão são poderosas em
Deus… Destruindo os conselhos, e toda a altivez que se levanta contra o
conhecimento de Deus” (2 Coríntios 10.4-5). O incrédulo, como vimos no
último estudo, é na perspectiva bíblica um tolo, e como tal sua posição
equivale a um ódio ao conhecimento (Provérbios 1.22, 29). Seu ataque
intelectual ao evangelho deriva do que é falsamente chamado conhecimento
(1 Timóteo 6.20).
O apologista deve ter como objetivo envergonhar essa pretensão de
conhecimento (que é, na base, um ódio ao conhecimento); ele deve
manifestar a loucura da “sabedoria” deste mundo. Isso exige muito mais que
uma tentativa fragmentada de aduzir probabilidades vagas de evidências
isoladas em favor da racionalidade do cristianismo. Requer, em vez disso, a
demonstração exaustiva da irracionalidade do anticristianismo em contraste
com a certeza da verdade que pode ser encontrada na palavra de Deus. Dr.
Van Til escreve:

O conflito entre o teísmo cristão e seus oponentes cobre todo o campo do


conhecimento… A controvérsia fundamental do teísmo cristão é apenas
esta, que absolutamente nada pode ser conhecido a menos que Deus possa e
seja conhecido… O importante a notar é essa diferença fundamental entre o
teísmo e o antiteísmo na questão da epistemologia. Não há um só ponto no
céu ou na terra sobre o qual não haja disputa entre os dois partidos opostos
(A Survey of Christian Epistemology, den Dulk Christian Foundation, 1969,
p.116).

O método de raciocínio por pressuposição pode ser dito indireto em vez de


direto. A controvérsia entre crentes e não crentes no teísmo cristão não pode
ser definida por um apelo direto a “fatos” ou “leis” cuja natureza e
significado já sejam de mútua concordância entre as partes do debate… O
apologista cristão deve se colocar na posição do oponente, assumindo
meramente para fins de argumentação que o método deste é correto, para
mostrar ao oponente que sobre tal posição os “fatos” não são fatos e as
“leis” não são leis. Ele também deve pedir ao não cristão que se coloque,
para fins de argumentação, na posição cristã para ser-lhe mostrado que
somente sobre esta base os “fatos” e as “leis” parecem inteligíveis…
Portanto, devemos afirmar que só o cristianismo pode ser racionalmente
defendido pelos homens. E ele é absolutamente racional. É totalmente
irracional defender qualquer outra posição que não o cristianismo. Só o
cristianismo não crucifica a própria razão… A melhor e única prova,
absolutamente certa, da veracidade do cristianismo é que a menos que a sua
verdade seja pressuposta, não há prova para o que quer que seja. O
cristianismo é provado como sendo o próprio fundamento da noção mesma
de prova (The Defense of the Faith, Philadelphia: Presbyterian and
Reformed, 1955, pp. 117-118, 396).

O tolo deve ser respondido mostrando-lhe sua tolice e a necessidade do


cristianismo como a pré-condição da inteligibilidade.
Em Provérbios 26.4-5 somos instruídos acerca de como devemos
responder ao incrédulo tolo ─ como devemos demonstrar que Deus torna
louca a chamada “sabedoria” deste mundo. “Não respondas ao tolo
segundo a sua estultícia; para que também não te faças semelhante a ele.
Responde ao tolo segundo a sua estultícia, para que não seja sábio aos
seus próprios olhos”. O procedimento apologético de duas etapas
mencionado acima por Van Til é aqui descrito. Em primeiro lugar, o
incrédulo não deve ser respondido nos termos das próprias
pressuposições equivocadas dele; o apologista deve defender sua fé
trabalhando dentro das suas próprias pressuposições. Se se render às
suposições do incrédulo, o crente nunca irá efetivamente apresentar uma
razão para a esperança que há nele. Ele terá perdido a batalha desde no
início, constantemente caindo em emboscadas atrás das linhas inimigas.
Por conseguinte, a força e o desafio intelectuais do cristianismo não serão
apresentados.
Mas então, em segundo lugar, o apologista deve responder ao tolo de
acordo com as autoproclamadas pressuposições dele (isto é, segundo a sua
estultícia). Ao fazê-lo, ele tem como objetivo mostrar ao incrédulo o
resultado dessas suposições. Levadas as pressuposições da incredulidade
consistentemente aos seus devidos fins, elas tornam o raciocínio do homem
vazio e sua experiência ininteligível; levam, em suma, à destruição do
conhecimento, ao beco sem saída da futilidade epistemológica, à completa
loucura. Ao se colocar na posição do incrédulo e segui-la ao ponto de ela
tolamente minar os fatos e as leis, o apologista cristão impede o tolo de ser
sábio aos seus próprios olhos. Ele pode concluir: “Onde está o inquiridor
sábio deste século?”! Não há nenhum, pois como a história da filosofia
humanista tão claramente ilustra, Deus tornou louca a sabedoria do mundo.
Ela é frustrada pela pregação “louca” da cruz.
15. RESPONDENDO AO TOLO

Nos dois últimos estudos começamos a olhar para a apologética a partir do


ponto de vista bíblico. Foi observado que (1) a perspectiva intelectual do
incrédulo é de um “tolo” (no sentido bíblico), (2) o incrédulo proclama uma
pseudosabedoria que é na verdade um ódio ao e uma destruição do
conhecimento, (3) Deus torna louca a sabedoria do mundo e a envergonha
por meio do seu povo, que é habilitado a destruir toda altivez que se levanta
contra o conhecimento de Deus, e, (4) para dar uma resposta ao tolo, o crente
deve seguir um procedimento de duas etapas: (a) recusar-se a responder nos
termos das pressuposições do tolo, pois elas minam a posição cristã, e então
(b) responder nos termos das pressuposições do tolo para mostrar aonde elas
levam, isto é, à futilidade epistemológica.
Aqui encontramos o caminho que é prescrito para dar uma resposta a
todo homem que pede a razão da esperança que há em nós (cf. 1 Pedro 3.15).
A estratégia apologética acima apresentada satisfaz a precondição
estabelecida por Pedro para a defesa da fé, que os crentes “santifiquem
[‘separem’] Cristo como Senhor no coração”. Ao nos recusarmos a suspender
a verdade pressuposta da palavra de Deus quando argumentamos com
aqueles que criticam a fé cristã, nós reconhecemos o senhorio de Cristo sobre
o nosso pensamento. Sua palavra é a nossa autoridade última. Se fossemos
arrazoar com o incrédulo confiando nos nossos próprios poderes intelectuais
ou nos ensinos dos (assim chamados) experts (na ciência, história, lógica,
seja no que for) mais do que na veracidade da revelação de Deus,
terminaríamos o argumento (se consistente) concordando com incrédulo. Na
linguagem de Provérbios 26, responderíamos ao tolo e acabaríamos nos
fazendo semelhantes a ele.
Ademais, ao empregar o procedimento apologético delineado acima,
podemos chegar à mesma conclusão de Paulo em 1 Coríntios 1, que a
perspectiva intelectual do incrédulo é, na sua base, loucura.
Consequentemente nós podemos retoricamente perguntar: “Onde está o
sábio? Onde está o inquiridor deste século?”. A verdade do fato será
abundantemente manifesta: Deus torna louca a sabedoria deste mundo, e o
faz pela palavra da cruz. Ao demonstrar ao tolo que as suas pressuposições só
podem produzir o que é falsamente chamado de conhecimento, o crente
responde de uma forma que o tolo não pode ser sábio aos seus próprios olhos.
Através disso, esse procedimento de duas etapas na apologética
pressuposicional visa ao sucesso argumentativos sem comprometer a
fidelidade espiritual. Ele fornece um relato fundamentado da esperança cristã
e também reduz à impotência todas as posições críticas e contrárias. Deve ser
lembrado neste ponto, claro, que o apologista deve fazer esse trabalho
destrutivo “com mansidão e temor” (1 Pedro 3.15b). Um sumário útil e
instrutivo da abordagem pressuposicional para a apologética é dado em 2
Timóteo 2.23-25 (ARA).

E repele as questões insensatas e absurdas, pois sabes que só engendram


contendas. Ora, é necessário que o servo do Senhor não viva a contender, e
sim deve ser brando para com todos, apto para instruir, paciente,
disciplinando com mansidão os que se opõem, na expectativa de que Deus
lhes conceda não só o arrependimento para conhecerem plenamente a
verdade.

Primeiro, essa passagem deixa bem claro que o apologista simplesmente não
deve ter uma atitude arrogante ao lidar com os incrédulos. Ele deve ser
brando, paciente, manso e avesso a contendas. Esses atributos são
intimidadores para a maioria das pessoas que mantêm posições doutrinárias
fortes e que são diligentes na defesa dessas posições. É fácil se tornar
obstinado e zeloso em dominar seu oponente. No entanto, é a atitude oposta,
que é pacífica e branda, que demonstra que a nossa sabedoria é do alto (Tiago
3.13-17).
Em segundo lugar, essa passagem ensina que aqueles que são
desafiados a defender a sua fé não devem consentir em responder nos termos
da incredulidade tola. Paulo nos ordena a rejeitar as questões insensatas ─
isto é, as questões dadas a partir do ponto de vista do tolo. Não devemos nos
submeter à perspectiva autônoma que suprime a verdade de Deus; não
devemos acatar a demanda da neutralidade agnóstica nas nossas discussões.
A questão que segue o viés do tolo deve ser colocada de lado. Contudo, evitar
questões tolas não assume a forma do silêncio, pois a passagem acima indica
que nós devemos educar o questionador. Uma resposta deve ser dada, mas
não uma resposta que está em conformidade com as pressuposições tolas por
trás da questão. Do contrário resultará uma contenção em vez de educação.
Em terceiro lugar, é revelado que os incrédulos “se opõem”. Por suas
pressuposições tolas o incrédulo age na verdade contra si mesmo. Ele
suprime a verdade clara sobre Deus que é fundacional para um entendimento
do mundo e de si mesmo e afirma uma posição que é contrária ao seu melhor
conhecimento. Ele é intelectualmente esquizofrênico. Isso deve ficar claro
para ele.
Em quarto lugar, Paulo indica que o que o incrédulo precisa não é
simplesmente informação adicional. Em vez disso, ele precisa ter seu
pensamento totalmente modificado; ele deve passar por uma conversão para
um conhecimento genuíno da verdade. Até que essa mudança ocorra, o
incrédulo terá um conhecimento de Deus que o condena (cf. Romanos
1.18ss), mas um conhecimento genuíno ou sincero da verdade ─ um
conhecimento salvífico ─ só pode vir com a conversão. O incrédulo deve ser
ensinado a renunciar à sua autonomia dissimulada e se submeter à palavra
clara de autoridade de Deus.
Finalmente, a passagem citada acima não deixa dúvidas de qual deve
ser a fonte do sucesso apologético: a vontade soberana de Deus. Um homem
só será convertido se isso lhe for concedido por Deus. Uma vez que é Deus
quem determina o destino de todos os homens (cf. Efésios 1.1-11), é ele
também quem determina se o nosso testemunho apologético será frutífero ou
não. Assim, cabe a nós evitar qualquer tentativa de “melhorar” a abordagem
bíblica para a apologética. Nosso dever é sermos fiéis às instruções do
Senhor. Ele abençoará a obediência à sua vontade; o sucesso não virá se
contornarmos isso.
16. COSMOVISÕES EM COLISÃO

Em termos de princípio teorético e eventual aplicação, o incrédulo se opõe à


fé cristã com um sistema de pensamento inteiro e antitético ─ e não com
críticas fragmentadas simplesmente. Seu ataque não é voltado meramente a
determinados pontos aleatórios do ensino cristão, mas ao fundamento dele. A
crítica particular feita pelo incrédulo reside sobre suposições básicas e
essenciais que unificam e informam seu pensamento. É essa raiz
pressuposicional que o apologista deve ter como objetivo erradicar se a sua
defesa da fé deve ser eficaz.
Como o incrédulo tem um sistema implícito de pensamento que dirige
seu ataque à fé, o cristão jamais deve se satisfazer em defender a esperança
que há nele simplesmente amarrando junto evidências isoladas que ofereçam
uma ligeira probabilidade da veracidade da Bíblia. Cada item particular de
evidência será avaliado (tanto quanto à sua veracidade como ao seu grau de
probabilidade) pelas suposições tácitas do incrédulo; sua visão geral de
mundo e de vida fornece o contexto em que a alegação evidencial é entendida
e ponderada. O que uma pessoa pressupõe como possibilidade irá sempre
determinar como ela classifica “probabilidade”.
Por esse motivo, a estratégia apologética que vemos descrita na
Escritura requer uma argumentação no nível pressuposicional. Por exemplo,
quando Paulo esteve perante Agripa e ofereceu sua defesa da esperança que
havia nele (Atos 26.2, 6-7; cf. 1 Pedro 3.15), declarou o fato público da
ressurreição de Cristo (v. 26); contudo, deve-se observar o fundamento
pressuposicional e o contexto que Paulo forneceu para esse apelo ao fato. O
primeiro ponto que Paulo se esforçou para desenvolver na sua defesa da fé foi
uma questão pré-observacional, transcendental: o que é possível (v. 8). Deus
foi tomado como o determinador soberano do que pode e do que não pode
acontecer. Paulo então segue a explicar que o término da hostilidade à
mensagem da ressurreição requer uma submissão ao Senhorio de Cristo (vv.
9-15). Deve-se entender qual é a autoridade genuína e definitiva. Paulo então
explica que a mensagem que ele declarou requer uma “mudança de mente”
radical (arrependimento), convertendo-se das trevas para a verdadeira luz e
do poder de Satanás para Deus (vv. 18-20). O incrédulo deve renunciar ao
seu raciocínio antagonístico e abraçar um novo sistema de pensamento;
assim, seus compromissos pressuposicionais devem ser alterados.
Finalmente, Paulo situou seu apelo ao fato dentro do contexto da autoridade
que a Escritura tem de pronunciar e interpretar o que acontece na história
(vv. 22-23, 27). O fundamento último da certeza do cristão e a autoridade que
apoia a sua argumentação devem ser a palavra de Deus. Paulo só podia ir aos
fatos, então, nos termos de uma filosofia de fato que desse respaldo e de
acordo com os axiomas fundacionais da epistemologia bíblica.
Consequentemente o apologista precisa reconhecer que o debate entre o
crente e o incrédulo é fundamentalmente uma disputa ou choque entre duas
cosmovisões completas ─ entre suposições e compromissos últimos que são
contrários uns aos outros. Um incrédulo não é simplesmente um incrédulo em
pontos separados; seu antagonismo está enraizado em uma filosofia geral
(Colossenses 2.8) que é segundo a tradição do mundo; assim, ele é um
inimigo de Deus em sua mente (Colossenses 1.21; Tiago 4.4) e usa sua mente
para anular ou evitar a palavra de Deus (Marcos 7.8-13). Porque não pode
receber ou compreender as coisas do Espírito (1 Coríntios 2.14), o incrédulo
suprime a verdade (Romanos 1.18) e exalta seu raciocínio contra o
conhecimento de Deus (2 Coríntios 10.5).
Duas filosofias ou sistemas de pensamento estão em colisão: uma se
submete à autoridade da palavra de Deus como uma questão de compromisso
pressuposicional, e outra não. Os apelos ao fato serão arbitrados nos termos
das pressuposições conflitantes mantidas pelas duas filosofias; o debate entre
as duas perspectivas se reduzirá assim em último caso ao nível da autoridade
última da pessoa. Será que isso faz a argumentação terminar num empate,
com cada pessoa arbitrariamente escolhendo um ponto de partida conforme o
seu próprio gosto subjetivo? De modo algum. Ao contrário, essa situação
aponta para a grande necessidade de um método pressuposicional de defesa
da fé. O pressuposicionalista percebe que toda cadeia de argumentação deve
terminar em um ponto de partida autoautenticável; toda cosmovisão tem suas
suposições inquestionadas e inquestionáveis, seus compromissos primitivos.
Todo debate religioso se desenvolverá numa questão de autoridade última.
Em princípio as duas opções permanecerão em total e nítido contraste uma
com a outra. A esta altura somente um argumento pressuposicional poderá
resolver a tensão.
Como discutido em estudos recentes nesta série, vimos que o
procedimento pressuposicional deve envolver duas etapas: (1) uma crítica
interna do sistema do incrédulo, demonstrando que a sua perspectiva é uma
destruição insensata do conhecimento, e (2) uma apresentação humilde, mas
ousada da razão da esperança que há em nós, comunicada em termos do
compromisso pressuposicional do crente com a palavra verdadeira de Deus.
Esse procedimento pode resolver a tensão entre autoridades concorrentes e
pontos de partida conflitantes porque indaga qual posição fornece as
precondições para a observação, a razão e o discurso significativo.
A discussão apologética não termina num empate porque o cristão,
colocando-se na posição do incrédulo, pode mostrar como ela resulta na
destruição da experiência inteligível e do pensamento discursivo. Se o
incrédulo estivesse correto nas suas pressuposições, então nada, o que quer
que fosse, poderia ser entendido ou conhecido. A filosofia do incrédulo foi
afligida pela vaidade (Romanos 1.21), de modo que seu “conhecimento” é
(nos termos das suas próprias suposições) falsamente assim chamado (1
Timóteo 6.20) e é através dele que o incrédulo se opõe (2 Timóteo 2.25). Ao
contrapor seu pensamento tolo (em nome da “sabedoria”) à sabedoria do
evangelho (que rotula como “tola”), o incrédulo deve ser desmascarado nas
suas pretensões (1 Coríntios 1.18-21) e revelado como sem desculpa para o
seu ponto de vista (Romanos 1.20), mas deixado com uma mente vã,
obscurecida e ignorante que precisa ser renovada (Efésios 4.17-24, ARA).
O cristão pode então ensinar ao incrédulo que toda sabedoria e
conhecimento devem tomar Jesus Cristo como seu ponto de referência
(Colossenses 2.3, NVI). O pensamento do crente, assim como o do incrédulo,
está baseado em um ponto de partida autovalidável. Essa verdade última deve
ser uma expressão da mente de Deus; só ele fala com autoridade
inquestionável e veracidade autoatestadora. Assim Jesus categoricamente
afirmou ser a verdade (João 14.6); não existe padrão mais elevado do que a
sua palavra e pessoa divina. Cristo demonstrou que Deus e a sua palavra
devem ser o ponto de partida autoautenticável e indisputável para todo
pensamento quando ele, ao contrário de Adão, se recusou a colocar o Senhor
à prova (Mateus 4.7), prestando uma obediência implícita à lei autoritativa de
Deus (Deuteronômio 6.16). O ponto de partida do cristão, deve então ser
observado, em vez de destruir o empreendimento epistemológico fornece a
precondição para a experiência inteligível e o pensamento significativo, pois
ensina que o homem foi criado para pensar os pensamentos de Deus depois
dele e assim conhecer a verdade.
Temos visto brevemente, então, que no fim das contas a apologética
deve introduzir à argumentação pressuposicional: a destruição da filosofia do
incrédulo na sua base epistemológica e a apresentação do único fundamento
viável para o conhecimento ─ a revelação autoritativa e autoatestadora de
Deus.
17. O PONTO DE PARTIDA ÚLTIMO: A
PALAVRA DE DEUS

A discordância entre o crente e o incrédulo que dá origem à necessidade da


apologética, como vimos no último estudo, não é meramente sobre pontos
específicos, isolados. Em princípio dois sistemas filosóficos completos ou
perspectivas entram em conflito quando a veracidade da fé cristã é debatida.
É por essa razão que o apologista não pode se dar por satisfeito em
meramente argumentar sobre certos fatos (mesmo aqueles fatos muito
especiais conhecidos como “milagres”, como a ressurreição de Cristo). A
argumentação factual pode se tornar necessária, mas nunca é suficiente. O
que alguém considera factual, assim como a interpretação dos fatos aceitos,
será governado por sua subjacente filosofia de fato ─ isto é, por
pressuposições mais básicas que permeiam todas as coisas, são orientadas por
valores, criam categorias, determinam possibilidades, avaliam probabilidades,
são supra experimentais e religiosamente motivadas. É nesse nível
pressuposicional que esse trabalho crucial na defesa da fé deve, assim, ser
feito.
Isso também se manifesta de uma forma um pouco diferente. Toda
argumentação sobre as questões últimas acaba repousando finalmente no
nível das pressuposições do debatedor. Se um homem chegou à conclusão e
está comprometido com a veracidade de um certo ponto de vista P, quando
for desafiado acerca de P, oferecerá argumentação de suporte para isso, Q e
R. Mas, evidentemente, como o seu oponente irá rapidamente apontar, isso
simplesmente muda o argumento para Q e R. Por que aceitá-los? O
proponente de P é agora chamado a oferecer S, T, U e V como argumentos
para Q e R. E assim por diante, o processo segue. O processo é complicado
pelo fato de que tanto o crente como o incrédulo estarão envolvidos nessas
cadeias de argumentação. Mas toda cadeia de argumentação deve chegar a
um fim em algum lugar. As conclusões de uma pessoa nunca poderiam ser
demonstradas se fossem dependentes de um regresso infinito de justificações
argumentativas, pois nessas circunstâncias a demonstração nunca poderia ser
completada. E uma demonstração incompleta não demonstra absolutamente
nada.
No fim das contas toda argumentação termina em algum ponto de
partida logicamente primitivo, uma visão ou premissa mantida como
inquestionável. A apologética rastreia esses pontos de partida últimos ou
pressuposições. Na natureza do caso essas pressuposições são mantidas como
autoevidentes: elas são a autoridade última no ponto de vista de uma pessoa,
uma autoridade para a qual nenhuma autorização maior pode ser dada.
Assim, pois, toda argumentação apologética exigirá um fundamento final
como esse, um ponto de partida ou pressuposição última e autovalidável para
o pensamento e o compromisso. O apologista consciencioso deve estar ciente
de qual é o seu real ponto de partida.
Mas agora um problema obviamente surge. Se as cadeias de argumento
devem chegar a um fim, e se o crente e o incrédulo têm pontos de partida
conflitantes, como o debate apologético pode ser alguma vez resolvido? Uma
vez que existem diferentes autoridades primitivas no reino do pensamento, a
apologética não se reduz a uma “vontade de acreditar” cega e voluntarista? A
decisão a favor ou contra a fé não seria, no fim das contas, uma mera questão
de gosto pessoal? Bem, a resposta teria de ser sim se o apologista meramente
se contentasse com argumentos e evidências para fatos isolados,
selecionados. Mas a resposta é não se o cristão leva seu argumento além dos
“fatos e nada além dos fatos” para o nível das pressuposições autoevidentes ─
as suposições últimas que selecionam e interpretam os fatos.
Nesse nível de conflito com o incrédulo o cristão deve perguntar: qual é
realmente a pressuposição inquestionável e autoevidente? Entre o crente e o
incrédulo, quem tem realmente o ponto de partida mais certo para o
raciocínio e a experiência? Qual é esse ponto de partida pressuposicional?
Aqui o apologista cristão, defendendo suas pressuposições últimas, deve estar
preparado para argumentar pela impossibilidade do contrário ─ isto é,
argumentar que a perspectiva filosófica do incrédulo destrói o significado, a
inteligência e a própria possibilidade de conhecimento, enquanto a fé cristã
fornece a única estrutura e as únicas condições para a experiência inteligível e
a certeza racional. O apologista deve sustentar que o verdadeiro ponto de
partida do pensamento não pode ser outro que não Deus e sua palavra
revelada, pois nenhum raciocínio é possível à parte dessa autoridade última.
Aqui e somente aqui se pode encontrar o ponto de partida genuinamente
inquestionável.
Deve estar claro que essa é a perspectiva da Escritura. Nossa
pressuposição última e indisputável no pensamento e na argumentação deve
ser a palavra de Deus e não “fatos brutos” sustentados independentemente.
Cristo demonstrou que a palavra de Deus (e, portanto, o próprio ensino dele)
tem a mais alta autoridade no mundo do pensamento; ela é o ponto de partida
firme, o fundamento autovalidável e o padrão final da verdade. Como tal,
nada é mais último do que ela ou pode colocá-la em dúvida. Assim, Cristo
jamais teria consentido em colocar o Senhor Deus à prova (Mateus 4.7).
Assim também, Cristo designou a si mesmo como “a verdade” (João 14.6).
Cristo e a sua palavra permanecem firmes como o ponto de verdade em
última análise mais estabelecido e confiável; só Cristo pode designar a si
mesmo como “o Amém” (Apocalipse 3.14; cf. Isaías 65.16) e prefaciar seus
pronunciamentos com “Amém, amém te digo…” (João 3.3, 5, 11, etc.)[5].
Cristo e a sua palavra são verdadeiros de forma autoatestadora.
Sendo o próprio padrão de verdade pelo qual todas as demais
reivindicações devem ser medidas, Cristo não contou com o apoio ou a
evidência de outros para o seu ensino: Ele ensinou com autoridade
autossuficiente (Mateus 7.29). Se uma pessoa se recusasse a receber as
palavras dele, essas mesmas palavras iriam julgá-la (João 12.48-50); como
provenientes do Senhor, elas têm autoridade última e não são, portanto,
objeto de contestação (cf. Mateus 20.1-15). Cristo declarou que seria mais
tolerante com Sodoma do que com aquela cidade que não recebesse a
proclamação apostólica, pois (como ele explicou aos apóstolos), “quem vos
ouve a vós, a mim me ouve” (Lucas 10.10-16). A palavra divina é
autoritativa em si mesma, trazendo inerentemente a sua própria evidência.
Como consequência, nenhum homem tem a prerrogativa de colocá-la em
dúvida (Romanos 9.20); antes, aqueles que contendem com Deus são
chamados a responder (cf. Jó 38.1-3; 40.1-5). A veracidade de Deus deve ser
automaticamente pressuposta (Romanos 3.1), pois ele fala com clareza
inequívoca (Romanos 1.19-20; Salmos 119.130).
Cristo desdenhou daqueles que buscavam sinais além da autoridade das
palavras dele (Mateus 12.39; 16.4); ciente disso, Lucas prefaciou tal incidente
com as palavras: “Antes bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e
a guardam” (Lucas 11.28). Os apologistas devem ter em mente que Cristo
não precisa nem do testemunho nem da glória do homem (João 5.31, 41); seu
maior testemunho vem do Pai, falando na Escritura (João 5.37, 39). A recusa
dos homens de crer na palavra de Cristo não é atribuída a uma falta de
evidência factual, mas à não permanência deles nessa palavra autoevidente
de Deus (João 5.36-38). A Escritura é autoritativa em si mesma para testificar
de Cristo, pois a palavra de Deus é mais certa do que qualquer experiência de
testemunha ocular dos fatos (2 Pedro 1.16-19). Se os homens não se
submetem ao ponto de partida último e autoevidente da palavra de Deus,
tampouco serão convencidos pelo fato de uma ressurreição histórica (Lucas
16.31). Assim, quando alguns discípulos estiveram relutantes em crer no fato
da ressurreição de Cristo, ele os repreendeu não por terem falhado em
acompanhar a evidência vivenciada, mas por sua hesitação em crer nas
Escrituras (Lucas 24.24-27).
Assim, vemos que, em termos de um método biblicamente guiado, o
cerne da apologética cristã não são os simples fatos experienciados
(necessários que possam ser), mas a revelação de Deus na sua veracidade
autoatestadora. Como defensores da fé, somos obrigados a “examin[ar] os
espíritos para ver se eles procedem de Deus” (1 João 4.1, NVI); esse
discernimento e defesa são exigidos no nível do ponto de partida e das
pressuposições, como também em todos os níveis mais elevados. O padrão
final pelo qual todas as reivindicações religiosas (afirmativas ou negativas)
devem ser testadas é o ensino apostólico (1 João 4.2-3) ─ o que significa que
ele em si mesmo não é testado por nada mais último; não há nenhuma
“autoridade superior” à própria palavra autoevidente de Deus.
Portanto, quando o debate apologético é centrado (em último caso) na
questão das pressuposições conflitantes, o crente deve defender a palavra de
Deus como o ponto de partida último, a autoridade inquestionável, o
fundamento autoatestador de todo pensamento e compromisso. No nível em
que existam reivindicações conflitantes sobre qual o ponto de partida
verdadeiro e autoevidente, nossa argumentação apologética deve exigir tudo
ou nada: ou a completa rendição ao Senhorio epistêmico de Cristo
(Colossenses 2.3), ou a absoluta vaidade intelectual e o correr atrás do vento
(Eclesiastes 1.13-17). Devemos argumentar a partir da impossibilidade do
contrário. A verdade fundamental da fé cristã não pode receber uma defesa
mais definitiva ou rigorosa do que essa. As simples evidências da natureza,
personalidade, lógica ou história não são suficientes quando o debate alcança
o nível pressuposicional; elas não podem destruir toda altivez que se levanta
contra o conhecimento de Deus e exigir que todo pensamento seja levado
cativo à obediência de Cristo (cf. 2 Coríntios 10.4-5, ARA).
O incrédulo não deve ser deixado com falsas pretensões: como, por
exemplo, que seu problema é meramente uma falta de informação, ou que ele
tão somente precisa corrigir alguns dos seus silogismos, ou que sua
experiência e seus pensamento estão todos corretos naquilo que se propõem.
Na verdade, os princípios do pensamento, da razão e da realidade adotados
pelo incrédulo levariam à completa loucura e destruição intelectual (1
Coríntios 1.20; Mateus 7.26-27). É isso que deve ser salientado,
testemunhando-se assim que o contrário do cristianismo é impossível,
enquanto que, por outro lado, os dogmas da fé fornecem as precondições
necessárias da inteligibilidade e do significado. Essas são a perspectiva e o
método bíblicos.
A fonte do problema epistemológico e moral do incrédulo é que ele tem
o ponto de partida autoritativo (supostamente autoevidente) errado no seu
pensamento. Deve ser óbvio, então, que o apologista só pode ajudar o
incrédulo se o apologista estiver conscienciosamente ciente da autoridade
última correta, genuinamente autoevidente, no reino do pensamento e for fiel
em argumentar de tal forma que a sua defesa esteja enraizada nessa
pressuposição (Mateus 15.14; cf. 2 Coríntios 4.4; Efésios 4.18 com João
9.39; Atos 26.18; Salmos 119.18).
Na verdade, o que ocorre é que, como muitos serão rápidos em apontar,
esse método pressuposicional de apologética assume a veracidade da
Escritura para argumentar pela veracidade da Escritura. Isso é inevitável
quando verdades últimas estão em jogo. Contudo, não é algo prejudicial, pois
não se trata de um raciocínio em círculo plano (a saber, “a Bíblia é verdadeira
porque a Bíblia é verdadeira”). Antes, o apologista cristão simplesmente
reconhece que a verdade última ─ a que é a mais abrangente, fundamental e
necessária ─ é tal que não pode ser defendida independentemente das
precondições que lhe são inerentes. Deve-se pressupor a veracidade da
revelação de Deus para se poder mesmo raciocinar ─ mesmo quando o
raciocínio é sobre a revelação de Deus. O fato de o apologista pressupor a
palavra de Deus para manter uma discussão ou debater sobre a veracidade
dessa palavra não anula seu argumento, mas antes o ilustra.
18. RESUMO SOBRE O MÉTODO
APOLOGÉTICO: CAPÍTULOS 13-17

Com base nas seções anteriores sobre o método apologético, podemos agora
resumir a forma como devemos proceder para defender a esperança cristã que
há em nós:

A NATUREZA DA SITUAÇÃO APOLOGÉTICA

1. A controvérsia entre o crente e o incrédulo é, em princípio, uma


antítese entre dois sistemas completos de pensamento envolvendo suposições
e compromissos últimos.
2. Até mesmo as leis do pensamento e do método, além das evidências
factuais, serão aceitas e avaliadas à luz das pressuposições governantes de
uma pessoa.
3. Todas as cadeias de argumentação, especialmente sobre questões de
importância pessoal última, remontam a e dependem de pontos de partida que
são tomados como autoevidentes; assim, a circularidade no debate será
inevitável. Porém, nem todos os círculos são inteligíveis ou válidos.
4. Assim, apelos à lógica, aos fatos e à personalidade podem ser
necessários, mas não são apologeticamente adequados; o que é necessário
não são respostas fragmentadas, probabilidades ou evidências isoladas, mas
sim um ataque às pressuposições subjacentes do sistema de pensamento do
incrédulo.
5. O modo de pensar do incrédulo é caracterizado da seguinte forma:
a. Por natureza o incrédulo é a imagem de Deus e, assim,
inescapavelmente religioso; seu coração testifica continuamente,
como o faz também a revelação clara de Deus ao seu redor, a
existência e o caráter de Deus.
b. Mas o incrédulo troca a verdade por uma mentira. Ele é um tolo que
se recusa a iniciar seu pensamento com reverência pelo Senhor; ele
não construirá sobre as palavras autoevidentes de Cristo, mas
suprime a revelação inevitável de Deus na natureza.
c. Porque não tem prazer no entendimento, mas escolhe servir à criatura
em lugar do Criador, o incrédulo está autoconfiantemente
comprometido com as suas próprias formas de pensamento; estando
convencido de que não poderia estar fundamentalmente errado, ele
ostenta o pensamento perverso e desafia a palavra autoatestadora de
Deus.
d. Consequentemente, o pensamento do incrédulo resulta em
ignorância; na sua mente fútil obscurecida ele realmente odeia o
conhecimento e só pode ganhar um “conhecimento” falsamente
assim chamado.
e. Até onde ele realmente sabe alguma coisa, isso se deve à sua
dependência não reconhecida da verdade suprimida sobre Deus
dentro de si. Isso torna o incrédulo intelectualmente esquizofrênico;
pelo modo de pensar que defende, ele na verdade “se opõe a si
mesmo” e mostra a necessidade de uma radical “mudança de mente”
(arrependimento) para um conhecimento genuíno da verdade.
f. A ignorância do incrédulo é culpável porque ele é indesculpável por
sua rebelião contra a revelação de Deus; portanto ele está “sem
apologética” para os seus pensamentos.
g. Sua incredulidade não resulta de uma falta de evidência factual, mas
da sua recusa em se submeter à palavra autoritativa de Deus desde o
princípio do seu pensamento.

OS REQUISITOS DO APOLOGISTA

1. O apologista deve ter a atitude adequada; ele não deve ser arrogante ou
alguém que causa contendas, mas com humildade e respeito deve
argumentar de maneira branda e pacífica.
2. O apologista deve ter o ponto de partida adequado; ele deve tomar a
palavra de Deus como a sua pressuposição autoevidente, pensando os
pensamentos de Deus depois dele (ao invés de tentar ser neutro), e
vendo a palavra de Deus como mais certa do que até mesmo a sua
experiência pessoal dos fatos.
3. O apologista deve ter o método adequado; trabalhando sobre as
pressuposições não reconhecidas do incrédulo e estando firmemente
enraizado na sua própria, o apologista deve ter como objetivo destruir
toda a altivez que se levanta contra o conhecimento de Deus,
buscando levar todo pensamento (o seu assim como o do oponente)
cativo à obediência de Cristo.
4. O apologista deve ter a meta adequada: garantir a rendição
incondicional do incrédulo sem comprometer sua própria fidelidade.
a. A palavra da cruz deve ser usada para expor a completa
pseudosabedoria do mundo como uma tolice autodestrutiva.
b. Cristo deve ser separado como Senhor no coração, não se
reconhecendo assim nenhuma autoridade superior à palavra de Deus
e recusando-se a suspender o compromisso intelectual com a sua
verdade.

O PROCEDIMENTO PARA A DEFESA DA FÉ

1. Percebendo que o incrédulo está suprimindo a verdade em injustiça, o


apologista deve rejeitar as pressuposições tolas que estão implícitas
nas questões críticas e tentar educar seu oponente.
2. Isso envolve apresentar os fatos dentro do contexto da filosofia bíblica
de fato:
a. Deus é o determinante soberano da possibilidade e da
impossibilidade.
b. Uma recepção e compreensão adequada dos fatos requer uma
submissão ao Senhorio de Cristo.
c. Assim, os fatos só serão significativos para o incrédulo se ele tiver
uma mudança pressuposicional de mentalidade das trevas para a luz.
d. A Escritura tem autoridade para declarar o que aconteceu na história
e para interpretá-la corretamente.
3. As pressuposições adotadas pelo incrédulo devem ser vigorosamente
atacadas, perguntando-lhe se o conhecimento é possível, da seguinte
forma:
a. Para mostrar que Deus tornou louca a sabedoria do mundo, o crente
pode se colocar na posição do incrédulo e responder-lhe segundo a
sua estultícia, para que não seja sábio aos seus próprios olhos; isto é,
ele demonstra o resultado do pensamento incrédulo com as
suposições desse pensamento.
b. As afirmações do incrédulo devem ser reduzidas à impotência e à
impossibilidade por uma crítica interna do sistema dele; isto é, ele
demonstra a ignorância da incredulidade argumentando a partir da
impossibilidade de qualquer coisa contrária ao cristianismo.
4. O apologista deve apelar ao incrédulo como sendo ele a imagem de Deus
que tem uma revelação clara e inescapável de Deus, a qual lhe dá
assim um conhecimento inextirpável de Deus; esse conhecimento
pode ser exposto indicando expressões involuntárias ou apontando
para o “capital emprestado” (pressuposições não reconhecidas) que
pode ser encontrado na posição do incrédulo.
5. O apologista deve declarar a verdade autoevidente e autoritativa de Deus
como a precondição da inteligibilidade e o único caminho de
salvação do homem (de todos os efeitos do pecado, incluindo a
ignorância e a vaidade intelectual):
a. Para que não se torne como o incrédulo, o apologista não deve lhe
responder segundo a sua estultícia, mas de acordo com a palavra de
Deus.
b. O incrédulo pode ser convidado a se colocar na posição cristã para
ver que ela fornece os fundamentos necessários para a experiência
inteligível e o conhecimento factual ─ assim concluindo que só ela é
razoável de se manter e que ela é o próprio fundamento para se
provar o que quer que seja.
c. O apologista também pode explicar que a Escritura dá uma
justificativa para o estado mental (a hostilidade) do incrédulo e o
fracasso dos homens em reconhecerem a verdade necessária da
revelação de Deus; ademais, a Escritura fornece a única saída dos
efeitos dessa hostilidade e fracasso (a futilidade e a condenação).
SEÇÃO QUATRO:
AS CONDIÇÕES NECESSÁRIAS PARA O
SUCESSO APOLOGÉTICO
19. DEUS DEVE SOBERANAMENTE
CONCEDER ENTENDIMENTO

Se o cristão deve ter sucesso na defesa da fé, deve estar preparado para
colocar em dúvida a competência do pensamento do incrédulo. Ainda que o
crente não tenha as credenciais impressionantes da academia letrada
possuídas pelo incrédulo, ele é capaz de fazer isso. Os chamados “experts”
letrados criticaram nosso Senhor com respeito às suas credenciais
educacionais (João 7.14-15), mas Jesus se opôs desafiando a competência dos
seus oponentes. Porque se recusavam a fazer a vontade de Deus, não estavam
em posição de julgar o ensino dele (vv. 17, 19). O cristão, sendo habitado
pelo Espírito Santo (João 14.17) e permanecendo firme na palavra de Cristo
(João 8.31-32, NVI), conhece a verdade. Todas as coisas que dizem respeito
à vida são dadas através de um conhecimento de Deus (2 Pedro 1.3), e assim
aqueles que se recusam a reconhecer Deus e a verdade sobre ele serão
levados à futilidade e ao erro em todos os campos do pensamento (Romanos
1.18-21, ARA). Sua injustiça os cega, e consequentemente o cristão
iluminado pode desafiar o raciocínio do seu oponente. Até mesmo aos
desprezadores cultos e letrados do cristianismo pode ser apresentada, por
qualquer crente, uma apologética eficaz: “Mas Deus escolheu as coisas
loucas deste mundo para confundir as sábias” (1 Coríntios 1.27). O sucesso
apologético parte dessa confiança.
Essa confiança, no entanto, deve ser acompanhada de um método
adequadamente orientado. Em particular, o apologista deve se abster de
apelar aos princípios autônomos do pensamento secular na sua tentativa de
trazer entendimento ao incrédulo, pois o método, padrão e ponto de partida
do incrédulo são inerentemente contrários ao entendimento salvífico que o
apologista visa. Autonomia e entendimento são mutuamente exclusivos. O
sucesso apologético será impedido se o crente basear seu argumento em
pressuposições incrédulas ou na atitude de autonomia; visto que essas são as
fontes da falta de entendimento do incrédulo, elas não podem fornecer a
fortiori o caminho para o entendimento.
A raça humana inteira está morta em delitos e pecados, carecendo da
glória de Deus (Efésios 2.1, 5, ARA; Romanos 3.23; 5.15, ARA); como
resultado, ninguém busca Deus ou tem entendimento (Romanos 3.10-12). O
pecado leva o incrédulo a exaltar suas próprias imaginações e a ignorar a
revelação de Deus; assim, a razão do incrédulo é sempre desviada para
conclusões fúteis, errôneas e injustas. Em seu coração (do qual procedem as
fontes da vida) o incrédulo néscio diz que não há Deus, e assim ele não tem
conhecimento ou entendimento (Salmos 53.1-4; Romanos 3.10-12). O
homem com quem o apologista argumenta, então, carece de entendimento e
seu raciocínio é inútil. Na sua mente ele é um filho da ira (Efésios 2.3); sua
mente está em inimizade com Deus e ele é incapaz de fazer a vontade de
Deus (Romanos 8.7). As suposições intelectuais, as operações e a
competência do incrédulo que são julgadas num encontro apologético, não a
revelação de Cristo. O pensador rebelde anda de acordo com os seus próprios
pensamentos e está, assim, aprisionado na loucura que procede do seu
coração (Isaías 65.2; Marcos 7.21-22). Visto que apostata da fé, ele
inevitavelmente fala mentiras e ensina mentiras demoníacas (cf. 1 Timóteo
4.1-2; Romanos 1.25).
Essas são palavras duras e impopulares para os ouvidos modernos.
Porque os apologistas contemporâneos tantas vezes compartilham da
autonomia do pensamento secular, não estão dispostos a denunciar a loucura
que existe na sua raiz. Muitos fazem vista grossa à profunda deficiência e
injustiça na epistemologia não cristã numa tentativa de ganhar audiência e
mostrar que um acordo entre a autossuficiência intelectual e a dependência
soteriológica de Deus é possível. No entanto, é impossível se esquivar da
denúncia severa que a Bíblia faz do pensamento incrédulo e da sua exposição
da loucura do incrédulo. A antítese fundamental entre a epistemologia cristã e
a epistemologia apóstata deve ser enfatizada. Em contraste com o homem
cujos pensamento são vãos se levanta o homem que é instruído pela lei de
Deus (Salmos 94.11-12; cf. 1 Coríntios 3.20). O cristão se alegra de operar
não de acordo com a sabedoria carnal, mas (em absoluto contraste) de acordo
com a graça de Deus (2 Coríntios 1.12).
Que tipo de apologética, que não seja para compartilhar da autonomia
do pensamento incrédulo, pode ser bem-sucedida em trazer o incrédulo para
um entendimento da verdade? A resposta é que, assim como a pregação fiel,
a defesa fiel do evangelho deve estar enraizada na Palavra e no Espírito.
Deus só pode ser conhecido por uma revelação voluntária do Filho e do
Espírito de Deus (Mateus 11.27; 1 Coríntios 2.10); juntos eles lidam com a
hostilidade ética do homem à revelação de Deus e o capacitam a ter um
conhecimento salvífico do seu Criador.
O entendimento de que o incrédulo carece só pode ser fornecido se a
mente dele foi aberta (por ex., Lucas 24.45) e ele foi convencido pelo
Espírito da Verdade (João 16.8). Esse Espírito continuamente testemunha de
Cristo, conduzindo sua obra no mundo como o representante legal de Cristo
para essa defesa (isto é, o “Advogado”; João 15.26). Ou seja, o sucesso da
nossa apologética depende da obra do Espírito Santo (cf. João 3.3, 8).
Ademais, o incrédulo só pode ter Deus e conhecer a verdade se permanecer
na palavra de Cristo (João 8.31-32; 2 João 9). Até que obtenha a mente de
Cristo, ele é totalmente incapaz de conhecer as coisas do Espírito (1 Coríntios
2.14, 16). Ter a mente de Cristo requer humildade (cf. Filipenses 2.5, 8), e,
portanto, renúncia da autossuficiência a fim de obedecer a verdade de Deus.
Só se pode chegar a um conhecimento dele, que é a Verdade (João 14.6),
quando o Filho dá o entendimento que está faltando (1 João 5.20).
Portanto, o apologista é chamado a dar um testemunho fiel da verdade,
ao invés de tentar melhorar a sabedoria do Senhor por meio de argumentos
autônomos. Sendo confiante da sua capacidade de desafiar o pensamento
apóstata, o crente deve arrazoar não de acordo com os princípios do
pensamento secular, mas na verdade pressuposta da palavra de Cristo,
esperando que o poder do seu Espírito traga convicção, conversão e
entendimento. Uma apologética bem-sucedida que seja feita de acordo com a
Palavra e o Espírito de Cristo é uma função da graça de Deus e não da
sabedoria e inteligência humanas.
20. É PRECISO CRER PARA ENTENDER

O testemunho da Escritura é claro no ensino de que o homem não pode


chegar a um entendimento de Deus (e, por sua vez, do mundo de Deus) pelo
exercício da sua razão de forma independente. Uma pessoa não satisfaz
primeiro seu intelecto com certas provas autônomas de que Deus existe e tem
uma natureza particular para só então, tendo alcançado esse entendimento,
depositar a sua fé no Senhor. Antes, a reverência e a fé precedem o
entendimento ou conhecimento de Deus e de tudo o que ele fez. Conhecer
Deus na salvação e aproximar-se dele tem requisitos ou precondições
definidas. O mote da literatura de sabedoria é que “O temor (ou submissão
reverente) do Senhor é o princípio (isto é, o princípio primeiro e controlador)
do conhecimento” (Provérbios 1.7). Sobre esse versículo, Matthew Henry
apropriadamente comenta: “Para a obtenção de todo conhecimento útil, isto é
o mais necessário, que temamos a Deus; não estaremos qualificados a nos
beneficiar das instruções que nos são dadas a menos que nossa mente seja
imbuída de uma reverência sagrada a Deus e cada pensamento em nós seja
colocado em obediência a ele”.
O livro de Hebreus repetidamente toca no tema de se aproximar de
Deus ou chegar a ele (por exemplo, 4.16; 7.25; 10.22; 12.22), o que foi
possibilitado pelo ministério perfeito e pela realização da redenção por Jesus
Cristo (cf. 8.1-13). Esse benefício da Nova Aliança é resumidamente
designado como “conhece o Senhor” (v. 11; cf. João 17.3). O pré-requisito
inevitável para chegar ao Senhor em conhecimento salvífico é fixado em
Hebreus 11.6 como sendo a fé; sem ela é impossível agradar a Deus. A fé nos
capacita a nos aproximar de Deus e a conhecê-lo.
O que Deus exige dos homens é que eles tenham fé no seu Filho
messiânico (João 6.28-29), e Jesus declarou que fazer a vontade de Deus era
necessário se alguém fosse ganhar conhecimento da verdadeira revelação de
Deus (João 7.17). A partir disso é evidente que o conhecimento autônomo
não seleciona primeiro a revelação genuína de Deus para só então confiar
salvíficamente no Salvador que é ali revelado. A fé é a precondição para um
entendimento adequado. Agostinho extraiu a inferência com clareza: “O
entendimento é a recompensa da fé; portanto não procures entender para crer,
mas antes crê para entender” (Homilies on the Gospel of John 29.6). A
virtude ou retidão pessoal (isto é, a disciplina desprezada pelos loucos que
odeiam o conhecimento, Provérbios 1.7b-8, 29) é o apoio necessário para o
conhecimento; se o coração de um homem está errado, seu pensamento será
correspondentemente fútil. Assim como o conhecimento é apoiado pela
virtude, a virtude é apoiada pela fé (2 Pedro 1.5). Assim, devemos concluir
que a fé precede o entendimento versado.
Sendo esse o caso, e visto que o arrependimento é para a fé (Mateus
21.32), o apologista deve ter como objetivo trazer ao arrependimento aqueles
vivem na ignorância (Atos 17.30). O conhecimento só pode ser obtido
quando o incrédulo se arrepende e chega à fé em Cristo: à parte dessa radical
“mudança de mente” e confiante submissão à verdade de Deus, o
conhecimento é automaticamente excluído. Portanto, o sucesso apologético
depende da conversão do pecador: seu pensamento deve ser totalmente
convertido, não simplesmente suplementado com argumentos autônomos. A
fé e o arrependimento, que produzem reverência pelo Senhor, são
fundacionais para o conhecimento, e não vice-versa. O entendimento não é
obtido na sabedoria do homem, mas apenas quando essa pseudosabedoria é
abandonada em favor da verdade de Deus. O método apologético do crente
deve levar esse fato em consideração o tempo todo: se fizer isso, o apologista
será fiel e ousado para apresentar o desafio completo da argumentação
pressuposicional ao invés das tentativas fragmentadas daquelas abordagens
que não exortam o pecador a abandonar seu sistema de pensamento, com suas
suposições autônomas e metodologia fútil. O oponente do evangelho não
chegará ao conhecimento até que renuncie ao seu orgulho pecaminoso e
alegada autossuficiência intelectual ─ isto é, até que epistemologicamente se
curve perante o Senhor com fé em arrependimento.
Mas se a fé em arrependimento é necessária para que o incrédulo veja a
verdade do evangelho que defendemos, então o sucesso da nossa apologética
está nas mãos do nosso soberano Criador e Redentor. Nossa polêmica será
convincente somente na medida em que os nossos ouvintes incrédulos forem
renovados na sua mente e recriados pelo Espírito de Deus na santidade da
verdade (Efésios 4.23-24). Só então eles deixarão de andar na vaidade da sua
mente com entendimento obscurecido e ignorância (cf. vv. 17-18).
Conhecimento requer arrependimento e fé, e assim o conhecimento depende
da graça de Deus, que concede a fé como um dom (Efésios 2.8) e dá
arrependimento (Atos 5.31; 11.18). Quando o pecador é beneficiado dessas
formas pela misericórdia e amor de Deus, ele “[é revestido] do novo homem
que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o
criou” (Colossenses 3.10, ARA). A fé requer que a pessoa seja nascida de
Deus (1 João 5.1), que dá arrependimento para ela conhecer plenamente a
verdade (2 Timóteo 2.25, ARA). Para ganhar entendimento e conhecimento,
o oponente do apologista deve chegar à fé em arrependimento, e isso ocorre
não por um conhecimento superior ou raciocínio inteligente da parte do
apologista, mas pela obra graciosa de Deus no pecador tal que ele seja
capacitado a conhecer a verdade da argumentação e do testemunho fiel do
apologista (estando enraizados na palavra de Cristo e sendo poderosos de
acordo com o Espírito de Cristo).
Deus deve nos dar o sucesso em nossos esforços apologéticos. Assim
devemos “[andar] com sabedoria para com os que estão de fora”
(Colossenses 4.5), não argumentando a partir das pressuposições tolas da
incredulidade, mas de acordo com a verdade e autoridade pressuposta da
revelação sábia de Deus no evangelho. Quando fizermos isso, saberemos
como responder a cada um (v. 6), olhando a Deus em contínua oração para
que ele conceda sucesso apologético abrindo-nos porta para a palavra (vv. 2-
3). Não deve proceder da nossa boca a comunicação corrupta que caracteriza
o pensamento humanista (cf. Mateus 7.17-18), mas sim as boas palavras que
representam a mente de Deus (cf. Mateus 19.17) e que podem ministrar graça
aos nossos ouvintes (Efésios 4.29). A exemplo de Paulo, nosso discurso não
deve ser feito com as palavras persuasivas da sabedoria humana, mas com a
prova (demonstração) poderosa do Espírito (1 Coríntios 2.4), sabendo que a
fé dos nossos oponentes deve se apoiar no poder de Deus e não na sabedoria
dos homens (v. 5). Essa fé é para o entendimento. Consequentemente, o
apologista deve operar a partir da palavra pressuposta de Cristo, ser constante
na oração e olhar para Deus para que a porta seja aberta para a palavra (cf.
Atos 14.27; 1 Coríntios 16.19; 2 Coríntios 2.12) e sejam concedidos
sabedoria, pleno conhecimento e iluminação (cf. Efésios 1.16-17, ARA).
21. ESTRATÉGIA GUIADA PELA
NATUREZA DA CRENÇA

Para ter sucesso em algum empreendimento, é imperativo a pessoa saber qual


é o devido fim, objetivo ou meta desse empreendimento. O sucesso no
empreendimento não vem acidentalmente ou arbitrariamente, e, portanto,
você não pode calcular que passos tomar sem entender aonde você está indo.
O fato de que a profissão médica tem como objetivo levar saúde aos seus
pacientes tem uma importância crítica para a determinação de quais métodos
e procedimentos ela deve empregar. Um homem não saberá o que fazer na
construção da sua causa até que aprenda o que é necessário fazer para
impedir que o teto caia. Além disso, a meta do empreendimento delimita os
caminhos em que a pessoa pode com sucesso realizá-lo; por exemplo, se você
tem o objetivo de chegar à Austrália, o sucesso disso requer a exclusão da
viagem de automóvel.
Assim, para o apologista ter sucesso na defesa da fé, ele deve entender
a natureza da sua meta. O que ele almeja irá ditar o método que ele deve
seguir. Ora, a menos que o apologista esteja engajado num orgulhoso jogo
intelectual, a meta da sua defesa e discussão com o incrédulo deverá ser ver o
incrédulo chegar à crença ─ ou seja, à fé salvadora. E uma vez que
compreendamos o que a palavra de Deus ensina sobre a natureza da fé
salvadora, teremos feito um grande avanço na compreensão de qual método
de argumentação apologética deve ser seguido (em oração) para se obter
sucesso.
Não pode haver dúvida de que a Escritura nos apresenta Abraão como o
paradigma da fé. Por isso ele é chamado de o “pai de todos os que creem”
(Romanos 4.11). Somos chamados a andar nos seus passos de fé (v. 12). O
tipo de fé possuída por Abraão era aquele que não andava pela vista ou por
autossuficiência intelectual; a esperança que o raciocínio humano e a
investigação científica podiam proporcionar não era a luz guia de Abraão. Em
vez disso, Abraão creu na promessa incrível (pelos padrões humanos) de que,
conquanto fosse um idoso sem um herdeiro visível, sua semente seria
incontável (Gênesis 15.5-6). Ele “em esperança creu contra a esperança”,
todavia “conforme o que lhe fora dito” por Deus, de que ele se tornaria pai de
muitas nações (Romanos 4.18). Ao contrário das conclusões que podem ser
tiradas pelo pensamento do homem, mas de acordo com a palavra falada de
Deus ─ essa era a natureza da fé genuína. Abraão tinha de saber o que era
mais confiável, o que pressupor, que padrões orientadores seguir. Assim, ele
tão bem ilustrou que “a fé é… a convicção de fatos que se não veem”
(Hebreus 11.1, ARA). A fé não confia no pensamento autônomo do homem e
no que “vê”, mas começa com uma convicção pressuposicional da veracidade
da palavra de Deus. O que não é visto na capacidade humana é visto pela fé
que se submete à palavra autoatestadora do Senhor (Hebreus 11.27). A
essência da fé de Sara é que ela teve por fiel aquele que prometeu (Deus)
(Hebreus 11.11). Ter total dependência da veracidade de Deus e dar à sua
palavra prioridade epistêmica sobre a excogitação do homem são elementos
inerradicáveis da fé genuína.
O escopo da fé, então, não é o horizonte do que as esperanças humanas
ditam como crível. Antes, o homem de fé se submete à confiabilidade a
priori da palavra de Deus ─ assim como Abraão fez ao obedecer à ordem de
sacrificar seu único filho depois de havê-lo recebido de acordo com a
promessa. Abraão fez isso simplesmente considerando a capacidade de Deus
de até os mortos ressuscitar (Hebreus 11.17-19). Abraão não andava de
acordo com a verificação demonstrável e a visão que satisfazia a si própria;
sua fé era uma fé que colocava a capacidade e a fidelidade de Deus acima de
tudo. Ele confiou que “[não há] coisa alguma difícil ao Senhor” (Gênesis
18.14) simplesmente com base em que o próprio Deus o havia declarado. A
palavra de Deus é a sua própria autenticação; ela é autoritativa de forma
autoatestadora. Abraão creu na palavra de Deus com base nos próprios
méritos dela. Ele estava plenamente seguro e não vacilou na incredulidade,
concentrando-se na promessa de Deus (Romanos 4.20-21). Aqui há, de fato,
fé salvadora (v. 22)!
Dado esse exemplo claro, podemos entender por que a Escritura ensina
que nossa confiança deve estar exclusivamente em Deus, não colocando
nenhuma confiança na carne (cf. Filipenses 3.3). Quando um homem confia
em si mesmo ele se aparta do Senhor (Jeremias 17.5). Assim, é pura tolice os
homens confiarem em seu próprio pensamento autoproclamado autônomo
(Provérbios 28.26). A fé não pode ser plantada e crescer no solo da sabedoria
humana; ela requer, em vez disso, que se pressuponha a palavra de Deus.
Portanto, Paulo declara que seu discurso não estava enraizado em palavras
persuasivas de sabedoria humana “para que a vossa fé não se apoiasse em
sabedoria dos homens, mas no poder de Deus” (1 Coríntios 2.4-5). A fé
começa com o Senhor e se submete de todo o coração à sabedoria dele; ela é
colocada em contraposição à confiança que se tenha no próprio raciocínio ou
entendimento. O livro da verdadeira sabedoria nos exorta: “Confia no Senhor
de todo o teu coração, e não te estribes no teu próprio entendimento”
(Provérbios 3.5). Quando alguém voluntariamente limita a sua fé, arvorando-
se a questionar a capacidade ou verdade de Deus com base na argumentação
ou intelecto humanos, isso é uma séria provocação a Deus (por ex., Salmos
78.18-22). Por consequência, a fé obviamente não deve estar fundamentada
no pensamento autoconfiante do homem. Deus deve ser tomado pela sua
palavra, pois ele é a própria verdade.
Uma vez que esse é o fim que esperamos alcançar quando falamos
apologeticamente com o incrédulo, deve estar claro que a nossa defesa deve
estar enraizada na palavra pressuposta de Deus em vez de ser guiada por
argumentos engenhosos que repousem na presumida autonomia intelectual.
Não devemos, em nossa apologética, ensinar ao incrédulo que ele deve
confiar em si mesmo para (salvificamente) confiar inteiramente no Senhor!
22. NÃO SE DEIXANDO SEDUZIR
COMO EVA

Cristo é a própria sabedoria de Deus (1 Coríntios 1.24), embora o mundo da


incredulidade veja ele e o seu evangelho como loucura (v. 18). Esse fato deve
tomar posse do apologista a fim de que ele permaneça fiel às suas
pressuposições tal como encontradas na palavra revelada de Deus, não
obstante a demanda do mundo por sinais e provas filosóficas (vv. 22-23) que
atendem às suas próprias suposições e presumida autonomia no reino da
epistemologia. Ao atentar para a sua própria salvação graciosa, o apologista
pode ver a completa loucura da paixão pela sabedoria humana (v. 26). Uma
pessoa não se torna crente ao ouvir o mundo e a sua declarada autonomia
intelectual, mas ao se submeter de todo o coração ao Senhorio de Jesus Cristo
no seu pensamento e comportamento. Certamente, o cristão deve arrazoar
com aqueles que estão fora da fé, mas deve sempre lembrar que esse
raciocínio não requer que ele abandone as suas pressuposições para
desempenhar a parte enganosa de um “homem neutro” que pode de forma
autossuficiente julgar todas as reivindicações da revelação de quaisquer
deuses que possam existir.
Quando o crente encontra o incrédulo, deve fazê-lo com a sabedoria de
Deus, e não com a sabedoria mundana que é confundida por Deus (v. 27).
Daí que Paulo não foi de Atenas para Corinto com a ostentação de linguagem
ou sofisticação filosófica dos pensadores que encontrou lá (2.1, ARA). Ele
não utilizou os artigos intelectuais atenienses. Em vez disso, sua proclamação
e defesa estavam enraizadas na palavra firme de Deus (2.2-5). Sem essa
palavra ou revelação de Deus não pode haver nenhuma base teorética para a
lógica, ciência ou história; o pensamento não tem nenhum conteúdo
significativo, uso confiável ou referente e certeza objetivos à parte de pensar
os pensamentos de Deus depois dele. O sucesso apologético depende da
percepção disso. Com isso, o cristão pode ser ousado em desafiar as
pressuposições incrédulas e ser fiel em aderir à sua própria pressuposição
(permanecendo assim leal ao senhorio de Cristo no reino do pensamento). O
incrédulo só pode lutar contra o evangelho arruinando o fundamento dos seus
próprios esforços intelectuais. Para evitar o mesmo problema, o defensor da
fé deve em sua diretriz e pressuposição mais básica permanecer firme na
palavra soberana de Deus. Ele precisa argumentar a partir dessa perspectiva e
não de uma forma que lhe seja extrínseca ou contrária, nem por um só
momento cedendo às suposições do seu oponente (cf. Gálatas 2.5).
No momento em que alguém abandona o seu fundamento certo na
palavra pressuposta de Deus, sua apologética se torna infiel e precária. Uma
confrontação vívida desse fato pode ser tomada a partir do relato da queda do
homem no pecado de acordo com Gênesis 3. Mesmo no jardim o homem era
responsável por se submeter sem contestação à revelação de Deus lhe dada
pela palavra especial. A estratégia de Satanás foi então (assim como agora)
de trabalhar para minar a submissão pressuposicional do homem a essa
palavra autoritativa de Deus. Ele começou colocando a palavra em dúvida (v.
1) e então contradizendo-a abertamente (v. 4). A situação epistemológica
entrou em convulsão quando Eva começou a pensar que poderia ter um
entendimento adequado e significativo da realidade à parte da revelação de
Deus. Nesse caso ela seria livre para examinar o que Deus tinha a dizer e
poderia determinar de forma autônoma a veracidade disso à luz da hipótese
conflitante de Satanás. Eva suspendeu a ideia de pensar os pensamentos de
Deus depois dele para se tornar a autoridade superior no mundo do
pensamento. Especificamente, ela abandonou a lealdade ao seu Criador para
ser como ele (v. 5), determinando o bem e o mal por si mesma. Ela tomou a
posição de juíza “neutra” da hipótese de Deus, exaltando assim sua razão
“autônoma” sobre a palavra epistemologicamente necessária de Deus. Por
usurpar assim as prerrogativas epistêmicas do Senhor, ela mergulhou a raça
humana na ilegalidade que sempre vemos em nós no pensamento e
comportamento.
Jesus Cristo veio para expiar esses pecados (mesmo as transgressões
intelectuais contra a palavra de Deus) e para chamar os homens de volta à
firme lealdade à sua palavra revelada. O apologista não pode se fazer de
surdo a esse chamado e exigência, pensando que sem isso estará mesmo
assim defendendo o Senhor da glória. Paulo, o apóstolo de Cristo, deixa
muito claro que nós devemos aprender a lição de Adão e Eva no jardim. Em
2 Coríntios 11.3 (ARA) ele diz: “Mas receio que, assim como a serpente
enganou a Eva com a sua astúcia, assim também seja corrompida a vossa
mente e se aparte da simplicidade e pureza devidas a Cristo”. As implicações
epistemológicas da narrativa sobre a queda do homem no pecado eram por
demais evidentes para Paulo. Assim, ele temia que a igreja, a exemplo de
Eva, pudesse ser seduzida afastando-se da lealdade absoluta a Jesus Cristo. O
que se requer do cristão é uma devoção dedicada ou adesão sincera a Cristo o
Senhor; devemos estar livres da duplicidade em nosso pensamento. O homem
de coração dobre (que tenta seguir dois senhores) é inconstante em todos os
seus caminhos (Tiago 1.8), sendo levado por todo vento de doutrina (cf. v. 6).
Assim, devemos ser purificados do ânimo dobre (Tiago 4.8, ARA). Como
Paulo indica em 2 Coríntios 11, se não somos assim purificados, seremos
seduzidos pelo pensamento enganoso de Satanás (o pai de toda mentira, João
8.44) e seus ministros (v. 15). Nenhuma corrupção de fora pode ser permitida
em nosso pensamento, pois ele se tornará pervertido se nos desviarmos,
pouco que seja, da palavra de Cristo. Gênesis 3 deve tornar claro a
necessidade de um método pressuposicional na apologética.
Ao tomar essa posição na discussão com a incredulidade, podemos
muito bem ser ridicularizados como não tendo a oratória, eloquência e
retórica astuta da mente acadêmica “sofisticada” que está treinada nos
caminhos da filosofia autônoma (cf. 1 Coríntios 1.17; 2.4); quando você não
raciocina de uma forma agradável ao seu ouvinte, ele o toma como um leigo
em questões de intelecto. Contudo, permanece o fato de que somente ao
resistir ao engano a que Eva se submeteu é que nós podemos salvar o
empreendimento epistêmico; nós falamos uma sabedoria que é discernida
quando o Espírito liberta a mente dos homens da escravidão (cf. 1 Coríntios
2.6-16). Como Paulo declarou, após sua advertência sobre o engano de Eva,
“Eu posso não ser um orador eloquente; contudo tenho conhecimento” (2
Coríntios 11.6, NVI).
23. NÃO MENTIR PARA DEFENDER A
VERDADE

Uma fonte de grande decepção para o estudioso cristãos nos dias de hoje é a
recusa de muitos apologistas em levar em conta certos fatos difíceis, mas
indisputáveis ensinados na palavra de Deus. A impressão muitas vezes
passada é que esses homens, enquanto teólogos, querem admitir o que a
Escritura diz sobre a natureza do homem caído e a autoridade máxima e
necessária da revelação de Deus em qualquer campo do conhecimento; no
entanto, como apologistas, querem agir esquecendo ou temporariamente
suprimindo essas verdades. Essa duplicidade é desonrosa para o chamado do
cristão.
A fé salvadora não pode estar fundamentada na sabedoria humana ou
em pressuposições seculares: ela deve ser gerada no poder de Deus (1
Coríntios 2.4-5). Consequentemente, o apologista não fala a sabedoria deste
mundo (que se reduz a nada), mas a sabedoria de Deus (1 Coríntios 2.6-7,
ARA). O reconhecimento de Cristo como a sabedoria de Deus não deriva de
pressuposições que negam, ignoram ou minam esse fato; em vez disso, esse
reconhecimento resulta da operação interna do Espírito Santo (1 Coríntios
2.10) que sozinho pode nos capacitar a ganhar um conhecimento das coisas
de Deus (v. 12). Porque somente o Espírito de Deus sabe essas coisas (v. 11),
o cristão não confia ou fala se baseando na filosofia, história ou ciência
autônoma tal como o mundo ensina (v. 13). Seguir pressuposições seculares
incapacita a pessoa de discernir a verdade sobre Deus (v. 14), pois elas só
podem ser entendidas pela iluminação do Espírito (vv. 15-16). A
pseudosabedoria do mundo, então, é totalmente inadequada como
fundamento ou padrão para o defensor da fé cristã; ela não pode aperfeiçoar a
mente do Senhor (v. 16), mas leva em vez disso a inevitavelmente desafiar a
verdade da revelação de Deus. O sucesso apologético é impedido, portanto,
ao se depender da insensatez humana não autoritativa ou tentar satisfazê-la, a
qual está invariavelmente inclinada a crucificar o Senhor da glória em vez de
se curvar às suas exigências soberanas (cf. v. 8).
É o crente regenerado e iluminado, convertido da sua antiga forma de
viver em desobediência, quem ganha sabedoria, entendimento e
conhecimento; o pensamento correto está correlacionado com o viver correto.
Daí que a forma de vida do incrédulo é uma estrutura inadequada para o
apologista operar dentro dela. Se uma pessoa continua no pecado intelectual
─ recusando-se a submeter todo pensamento ao Senhorio de Cristo no reino
do conhecimento ─, ela nunca virá à crença salvadora. “… o apartar-se do
mal é o entendimento” (Jó 28.28, ARA), e “bom entendimento têm todos os
que cumprem os seus mandamentos” (Salmos 111.10). Consequentemente, o
apologista não pode tentar persuadir o incrédulo usando o estilo de
pensamento do incrédulo ou seus padrões de evidência e verdade, etc. Esse
procedimento simplesmente não irá conquistá-lo para Cristo, mas o
encorajará a afirmar sua própria autoridade autônoma sobre as
reinvindicações de Cristo. No entanto, a palavra firme de Deus declara que
nós só podemos conhecer Deus se guardarmos os seus mandamentos (1 João
2.3-5), e esses mandamentos incluem nossa obrigação de nos refrear de tentar
Deus (Deuteronômio 6.16) e levar cativo todo pensamento à obediência de
Cristo (2 Coríntios 10.5, ARA). Nossa sabedoria e entendimento não são
encontrados na “inteligência” do pensamento autônomo, mas na obediência à
lei de Deus (Deuteronômio 4.6). O conhecimento genuíno e a estabilidade em
face da opinião falsa estão correlacionados à maturidade espiritual na estatura
de Cristo (Efésios 4.13-14); um andar agradável e uma vida moralmente
digna é o que leva ao conhecimento genuíno (Colossenses 1.9-11).
Ora, é então francamente imoral o teólogo que vê as verdades do alto
usar um padrão duplo, admitindo essas coisas como um dogmático, mas
dando uma impressão completamente oposta no seu procedimento
apologético. O apologista não deve deixar o incrédulo supor que o
conhecimento é possível com base em pressuposições autônomas e uma vida
desobediente; a palavra de Deus jamais é verificada num contexto desses. Na
sua tentativa de fazer surgir a boa situação de um incrédulo aceitando a
palavra da Escritura, o apologista fará uso de uma mentira injustificável se
assumir ou levar o incrédulo a pensar que o conhecimento deve ser obtido à
parte de Deus ou persistindo num modo rebelde de viver e pensar. Não pode
ser ignorado que o arrependimento e a fé são necessários para um
conhecimento da verdade; não deve ser sugerido que o incrédulo não precisa
de nada mais que uma prova intelectual da veracidade de Deus de acordo
com padrões ditados pela ciência e filosofia secular. O fim digno de converter
o incrédulo não pode ser realizado com nem pode justificar o uso apologético
de meios que operem em desacordo com (ou em oposição a) o ensino da
Escritura. “Mas, se pela minha mentira abundou mais a verdade de Deus para
glória sua, por que sou eu ainda julgado também como pecador? E por que
não dizemos (como somos blasfemados, e como alguns dizem que dizemos):
Façamos males, para que venham bens? A condenação desses é justa”
(Romanos 3.7-8).
Os apologistas são proibidos de usar um método não pressuposicional
na defesa da fé sob a desculpa de que assim a verdade pode abundar. O
cristão obediente não deixa de lado a autoridade de Cristo no reino para
argumentar com base na “erudição” autônoma. Fazê-lo seria operar com uma
mentira (isto é, a mentira satânica de que o conhecimento pode ser
determinado à parte de Deus: Gênesis 3.5; cf. Romanos 1.25) para defender a
verdade! A testemunha fiel de Cristo não se portará como um descrente
(negando o Senhorio de Cristo) para torná-lo crente.
Homens maus não podem falar boas coisas (Mateus 12.34); o mau
tesouro do pensamento do incrédulo está onde está seu coração (Mateus 6.21;
Lucas 6.45), do qual procedem os pensamentos maus, enganosos e insensatos
(Mateus 15.18-19; Romanos 1.21; Jeremias 17.9). Assim, sua língua é cheia
de iniquidade e um mal irrefreável (Tiago 3.5-8); o incrédulo urde engano
com ela (Romanos 3.13-14, ARA). Ele acha que é senhor sobre os seus lábios
(Salmos 12.4), as quais levam-no a falar com falsidade (v. 2). Obviamente,
então, o apologista não deve pensar e falar à maneira do incrédulo. Em vez
disso, seus pensamentos e palavras devem estar enraizados na palavra de
Deus, que é pura e eternamente valiosa (Salmos 12.6-7). É essa palavra
somente que cala toda boca (Romanos 3.19, ARA) e deixa os homens sem
palavras (por ex., Jó 40.4). Devemos guardar o depósito apostólico (a
Escritura) nos afastando dos clamores vãos de pseudoconhecimento (1
Timóteo 6.3-5, 20; cf. 2 Timóteo 2.14-18). Diante de Deus e sua palavra todo
o mundo deve se calar (Isaías 6.5; Daniel 10.15; Habacuque, 2.20; Sofonias
1.7; Zacarias 2.13). Devemos, então, confiar em Deus e não na nossa própria
sabedoria (Isaías 50.4-9); só então é que veremos o sucesso apologético à
medida em que ele nos capacite a não sermos confundidos e não faça
ninguém capaz de contender com a nossa mensagem (Isaías 50.4-9).
Portanto, concluímos que o apologista deve ser transformado por uma mente
renovada e não deve conformar seu pensamento ao mundo (Romanos 12.2).
Ele não deve mentir ou abandonar a verdade pressuposta de Deus para
conseguir aceitação dessa verdade pelos que falam o mal.
24. ENCONTRANDO EFETIVAMENTE A
VARIEDADE DE OPOSIÇÕES: Resumo
Geral (Capítulos 1-23) e Aplicação

Constantemente surgem situações que fornecem ocasião para o cristão


defender a sua fé. A oposição ao cristianismo assume expressão prática numa
grande variedade de formas: no entretenimento e na mídia popular, na
propaganda de seitas e religiões falsas, no ensino nas escolas e faculdades,
nas observações feitas por colegas, vizinhos e amigos, para não mencionar as
tendências modernas na psicologia, política, medicina e na sociedade ─ e a
lista poderia ser facilmente multiplicada. As opiniões, suposições e
comportamentos das pessoas que entram em contato com a nossa vida são na
maior parte baseadas na hostilidade (ativa ou passiva) ao ensino da Escritura.
O crente é apologeticamente desafiado em todos os lados. Claro, sua
necessidade de defender suas crenças é grandemente aumentada na medida
em que ele inicia um testemunho evangelístico com aqueles que o rodeiam.
Assim, não há falta de oportunidade para se envolver na apologética.
Nem tampouco há uma carência dos tipos de críticas e problemas
encontrados pelo apologista cristão. Em primeiro lugar, há ataques diretos a
princípios cristãos. Alguns rejeitam Deus (ateus, agnósticos, céticos). Alguns
rejeitam a possibilidade da revelação; outros rejeitam a Bíblia como sendo a
revelação de Deus. O último grupo supostamente baseia sua resposta na
lógica (supondo encontrar contradições no sistema de doutrina da Bíblia ou
entre seus relatos registrados), ou em matérias factuais (rejeitando a precisão
textual, a veracidade histórica ou a possibilidade de milagres na Escritura),
ou em preocupações éticas (criticando as ações ou mandamentos de Deus),
ou finalmente em considerações pessoais (dizendo que a Bíblia não é do seu
agrado, não atende às suas necessidades, ou sendo indiferentes e
relativistas). Em segundo lugar, existem sistemas competindo com o
cristianismo evangélico. Alguns aceitam o deus errado (deísmo, panteísmo ou
as várias religiões do mundo). Alguns aceitam a revelação errada (intuição
interna ou sentido pessoal, opinião social ou tradição humana, ou outros
escritos sagrados). E outros aceitam a interpretação errada ou entendimento
inadequado da Bíblia (como ela sendo menos do que reivindica ser ─ não
ortodoxia moderna ─, ou como ensinando uma teologia e soteriologia
incorretas ─ as seitas).
Portanto, a oposição ao cristianismo bíblico é de muitos tipos e vem de
várias maneiras. Quando você se afasta um pouco e tem uma ideia da
intensidade e escopo dos ataques à visão de mundo e de vida cristã, pode
facilmente ser tentado a desistir de toda esperança de ser um apologista
eficaz, exclamando “quem é suficiente para essas coisas?” ─ especialmente
se você não tem um treinamento avançado nesses assuntos. No entanto, essa
atitude de desespero, essa falta de confiança, tenderia erradamente a livrá-lo
de sua responsabilidade clara e inevitável de estar preparado para dar uma
resposta a qualquer homem que peça uma defesa racional da esperança
(confiança) que há em você (1 Pedro 3.15). Bem, como então um cristão
pode cumprir essa tarefa apologética?
A resposta está no reconhecimento de que, apesar da variedade de
críticas e dos diversos modos em que elas são expressas, há um conjunto
básico e comum de circunstâncias e princípios que estão incorporados em
todo e qualquer encontro apologético. Todos os críticos têm um problema
idêntico e fundamental; o cristianismo é sempre, e a única, resposta para esse
problema. É por isso que os estudos anteriores nesta série se concentraram
nos temas centrais e nas diretrizes gerais para a apologética. Se o crente
puder penetrar no cerne da questão e compreender os princípios básicos que
atuam da interação apologética, ele estará preparado para toda a sorte de
desafio à fé. No fundo, é sempre uma questão de reconhecer o Criador
soberano que claramente se revelou, bem como a total dependência que você
tem dele até mesmo no reino do pensamento e conhecimento. As partes
anteriores desta série elaboraram e foram desenvolvidas sobre esses pontos.
Esperamos que uma breve sinopse desses estudos possa reunir tudo de
uma forma encapsulada. Começamos com o princípio fundamental que deve
guiar todo o pensamento: o senhorio de Cristo no reino do conhecimento.
Deus fala com autoridade autoatestadora, e sua revelação é o fundamento
necessário do conhecimento do homem. A tentativa de assumir uma postura
neutra com relação à revelação de Deus, então, é imoral e inevitavelmente
leva (em princípio) à desintegração do conhecimento. Consequentemente, a
Bíblia caracteriza os pensamentos do incrédulo como vãos e tolos e exige que
o crente (que é renovado na mente) se separe do mundo pela submissão à
palavra da verdade de Cristo como a autoridade última. O cristão, então, é
resgatado da futilidade epistêmica ao pressupor a palavra de Deus acima de
todas as reivindicações contrárias.
Foram então vistas certas condições que caracterizam as situações
apologéticas e tornam possível a argumentação frutífera (em humilde
ousadia) com o incrédulo. Devido à revelação inescapável de Deus, todo
incrédulo, porém, conhece Deus e assim (ao contrário dos princípios que
adota) conhece a si mesmo e o mundo em alguma medida; por conhecerem
Deus, todos os homens estão assim sem desculpa pela sua rebelião contra a
verdade de Deus. Todo o reino criado revela constantemente o Deus vivo e
verdadeiro, proporcionando assim um terreno comum abundante entre o
crente e o incrédulo. Visto que o incrédulo é sempre a imagem de Deus, e
visto que ele possui a verdade de Deus (embora suprimida), o apologista
sempre tem um ponto de contato com ele.
Como deve o cristão defender a fé, dadas as verdades acima? Em
primeiro lugar, ele deve firmemente reconhecer que a incredulidade resulta
em loucura intelectual. Dessa convicção e entendimento, o crente pode
repudiar as pressuposições do incrédulo, apresentar as reivindicações
absolutas de Cristo (mesmo no reino do pensamento) e fazer uma crítica
interna ao pensamento do incrédulo ─ mostrando-lhe aonde suas suposições
inevitavelmente levam. Deve ser mostrado ao incrédulo que ele na verdade
faz oposição a si mesmo. Essa abordagem pressuposicional é necessária,
visto que duas cosmovisões completas estão sendo colocadas uma contra a
outra ─ e não simplesmente uns poucos fatos alegados e umas poucas
aplicações da lógica. A própria possibilidade de conhecimento fora da
revelação de Deus (salvíficamente apresentada em Cristo) deve ser minada.
Desde que toda argumentação sobre as questões fundamentais da vida e da
crença se reduz à questão do ponto de partida de uma pessoa, o apologista
cristão deve se manter firme na palavra de Deus, apresentando sua natureza
autoatestadora em oposição às suposições destrutivas da incredulidade para a
epistemologia.
Ao compreender esses princípios centrais e operar com base neles, o
apologista pode ter plena confiança na sua capacidade de responder a todas as
variedades de oposição ao cristianismo. Finalmente, então, podem ser
apresentadas as condições de um tratamento apologético bem-sucedido da
incredulidade. Primeiro, o apologista deve ser fiel às suas pressuposições e se
lembrar da natureza da fé salvadora; trabalhando para uma submissão
incondicional à palavra de Deus com base nos próprios méritos dela, o crente
não se moverá para uma posição neutra ou dará a impressão enganosa de que
a autonomia pode levar a conclusões significativas e verdadeiras. Em
segundo lugar, o incrédulo deve ver que a crença é o fundamento do
entendimento; a submissão a Cristo deve fundamentar o próprio uso do
raciocínio. Finalmente, o sucesso só é possível se o próprio Deus
soberanamente garante ao incrédulo um entendimento da verdade,
iluminando sua mente, convertendo seu coração e lhe concedendo o dom da
fé.
O princípio resumido acima prepara o crente para responder a toda e
qualquer oposição à fé, independentemente da forma ou circunstância em que
ela aparece. Cada situação apologética é caracterizada pelos seguintes fatos: a
revelação de Deus é na base necessária para qualquer tipo de conhecimento,
todos os incrédulos são indesculpáveis, já que possuem e suprimem o
conhecimento de Deus, e o cristão é caracterizado pela submissão
incondicional a Cristo em todas as coisas. Esses fatos não apenas nos guiam
na forma como devemos defender a fé; eles também garantem que podemos
nos dirigir ao cerne de qualquer variedade de oposição, desmascarando-a e
apresentando as reivindicações legítimas de Cristo (2 Coríntios 10.4-5). Com
Cristo “separado como Senhor em vosso coração”, o crente está “preparado”
para qualquer desafio à fé; ele pode ter genuína esperança ou confiança em
olhar em frente para a defesa da “esperança que há em vós”. Como declara a
Escritura, “todo aquele que crer nela não será confundido” ─ não terá motivo
para se envergonhar da sua confiança e fugir em decepção (Romanos 9.33, 1
Pedro 2.6).
SEÇÃO CINCO:
RESPOSTAS A DESAFIOS
APOLOGÉTICOS
25. PREPARADOS PARA ARRAZOAR

Ela é necessária?

Um ímpeto de concordância piedosa me tomou quando pela primeira vez


ouvi alguém confiantemente dizer que “A palavra de Deus não precisa de
mais defesa do que um leão numa jaula. Apenas deixe o leão solto, e ele
cuidará de si próprio!”. Parecia haver algo muito certo nesse sentimento.
Discordar dele parecia ser quase uma irreverência.
Bem, há um elemento de verdade nessa afirmação. Deus certamente
não precisa de nada ─ muito menos dos esforços insignificantes de qualquer
homem ou mulher em particular para defender a sua palavra. Ele é o Criador
dos céus e da terra, onipotente e soberano no controle de todas as coisas. O
apóstolo Paulo, quando arrazoou com os filósofos atenienses, desenvolveu
exatamente esse ponto: ele declarou que Deus não é servido pelas mãos dos
homens “como que necessitando de alguma coisa; pois ele mesmo é quem dá
a todos a vida, e a respiração, e todas as coisas” (Atos 17.25). Se Deus
sentisse alguma vez fome, por exemplo, ele não precisaria nos dizê-lo, pois a
plenitude de toda a criação é sua (Salmos 50.12)! Ele não depende de nada
fora de si mesmo, e tudo fora dele depende dele para sua existência, suas
qualidades, capacidades, realizações e bênçãos. “Porque nele vivemos, e nos
movemos, e existimos” (Atos 17.28).
Assim, é óbvio que Deus não precisa do nosso raciocínio inadequado e
das nossas tentativas débeis de defender sua palavra. No entanto, a
observação de aparência piedosa com que começamos ainda está equivocada.
Ela sugere que não deveríamos nos preocupar com os esforços na apologética
porque Deus cuidará diretamente dessas questões. A observação é tão
equivocada quanto dizer que Deus não precisa de nós como evangelistas (ele
podia fazer mesmo as pedras clamarem, não podia?) ─ e, portanto, que os
esforços de testemunho evangelístico não são importantes. Ou uma pessoa
poderia erroneamente pensar que, como Deus tem o poder e a capacidade de
fornecer alimentos e roupa à sua família sem “ajuda de nós”, ela não precisa
ir ao trabalho amanhã.
Pensar assim é antibíblico. Isso confunde o que o próprio Deus precisa
de nós com o que Deus exige de nós. Isso assume que Deus ordena os fins,
mas não os meios para esses fins (ou pelo menos não a instrumentalidade dos
meios criados). Não há necessidade de Deus usar nosso testemunho
evangelístico, nosso trabalho diário por um salário ou a nossa defesa da fé ─
mas ele escolhe fazê-lo e nos chama a nos aplicar nessas coisas. A Bíblia nos
orienta para o trabalho, embora Deus possa dar provisão à nossa família de
outras maneiras. A Bíblia nos orienta a evangelizar, muito embora Deus
possa usar de outros meios para chamar os pecadores para si. E a Bíblia
também nos orienta a defender a fé ─ não porque Deus seria impotente sem
nós, mas porque esse é um dos seus meios ordenados de glorificar a si mesmo
e vindicar sua verdade.
Cristo fala à igreja como um todo, por meio de Judas, ordenando-nos a
“[batalhar], diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos
santos” (Judas 1.3, ARA). O ensino falso e herético estava ameaçando a
igreja e a sua compreensão da verdade do evangelho. Judas sabia muito bem
que Deus estava no controle soberano e, de fato, que a tempo Deus iria lidar
diretamente com os homens ímpios, consignando-os à condenação eterna.
Mesmo assim, Judas também insistiu que seus leitores mesmos lutassem
contra o erro dos falsos ensinos, não sentando e esperando que o próprio
Deus fosse simplesmente cuidar disso.
Paulo escreveu a Tito que é necessário que os bispos (pastores e
presbíteros) na igreja sejam especialmente aptos a refutar aqueles que se
opõem à verdade de Deus (Tito 1.9). No entanto, essa não é só a tarefa dos
homens ordenados. Todos os crentes são ordenados a também se engajar nela.
Ao se dirigir a todos os membros da congregação, Pedro escreveu a seguinte
ordem: “… santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando
sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da
esperança que há em vós, fazendo-o, todavia, com mansidão e temor …” (1
Pedro 3.15-16, ARA). É o próprio Deus, falando através das palavras
inspiradas de Pedro, quem nos chama como crentes ─ a todos e a cada um de
nós ─ a estarmos preparados para defender a fé em face dos desafios e
questões que vêm dos incrédulos ─ qualquer um deles.
A necessidade da apologética não é uma necessidade divina: Deus
certamente pode fazer sua obra sem nós. A necessidade da apologética é uma
necessidade moral: Deus escolheu fazer sua obra através de nós e nos
chamou para ela. Apologética é um talento especial de alguns crentes e um
hobby do interesse de outros; mas é uma responsabilidade que Deus ordenou
a todos os crentes.

O que ela não é


Devemos olhar para 1 Pedro 3.15 novamente e notar algumas poucas coisas
que a passagem não diz.
(1) Ela não diz que os crentes devem tomar a iniciativa e começar
discussões arrogantes com os incrédulos, dizendo-lhes que temos todas as
respostas. Nós não temos de sair à procura de alguma luta. Certamente não
devemos ostentar ou encorajar um espírito de “Vou provar isso para você”,
uma atitude que se deleita com refutações. O texto indica que nós oferecemos
uma defesa fundamentada em resposta a aqueles que pedem isso de nós, quer
o façam como um desafio aberto à integridade da palavra de Deus, quer como
uma resposta natural ao nosso testemunho evangelístico.
O texto também indica que o espírito no qual oferecemos nossa
resposta apologética é de “mansidão e temor”. Ele não é pugnaz e defensivo.
Não é um espírito de demonstração de superioridade intelectual. A tarefa da
apologética começa com humildade. Afinal, o temor do Senhor é o ponto de
partida de todo conhecimento (Provérbios 1.7). Ademais, a apologética é
realizada no serviço ao Senhor, e “E ao servo do Senhor não convém
contender, mas sim, ser manso para com todos, apto para ensinar” (2 Timóteo
2.24). A apologética não é um lugar para a flexão vã dos nossos músculos
intelectuais.
(2) Outra coisa que 1 Pedro 3.15 não diz é que os crentes são
responsáveis por persuadir qualquer um que desafie ou questione a fé deles.
Nós podemos oferecer razões sólidas para o incrédulo, mas não podemos
fazê-lo subjetivamente acreditar nessas razões. Podemos refutar a
argumentação pobre dos incrédulos, mas ainda assim não os persuadir.
Podemos calar a boca do crítico, mas só Deus pode abrir o coração. Não
temos a capacidade de regenerar o coração morto e dar visão aos olhos cegos
dos incrédulos nem é nossa responsabilidade fazê-lo. Essa é uma obra
graciosa de Deus.
É Deus quem deve iluminar os olhos do entendimento (Efésios 1.18).
“Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus,
porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se
discernem espiritualmente” (1 Coríntios 2.14). Até que Deus em sua graça
soberana mude o pecador a partir de dentro, ele não verá o reino de Deus ou
se submeterá ao Rei. Jesus ensinou isso a Nicodemos, lembrando-lhe que “o
vento [a mesma palavra grega para “Espírito”] assopra onde quer… assim é
todo aquele que é nascido do Espírito” (João 3.8). Nossa tarefa é apresentar
uma defesa e um testemunho que sejam fieis e sólidos. A tarefa da persuasão
é de Deus. É por isso que os apologistas não devem avaliar seu sucesso ou
ajustar sua mensagem considerando se o incrédulo finalmente irá concordar
ou não com eles.
(3) Ainda outra coisa que 1 Pedro 3.15 não diz é que a defesa da fé tem
uma autoridade última diferente da tarefa de expor a fé. É um erro comum
entre os evangélicos imaginar que a autoridade de Deus e da sua palavra é a
base para sua teologia e pregação, mas que a autoridade para a defesa dessa
fé deve ser algo diferente de Deus e da sua palavra ─ ou do contrário
estaríamos cometendo petição de princípio na questão levantada pelos
incrédulos. Assim, os crentes serão por vezes enganados em pensar que o que
quer que tomem como o padrão último no pensamento apologético deve ser
neutro e da concordância tanto do crente como do incrédulo; e daqui seguem
para cometer o segundo equívoco, em pensar que algo como a “razão” é esse
padrão comumente entendido e aceito.
Essas ideias estão mui obviamente em desacordo com o ensino bíblico,
no entanto. Será que a apologética tem uma autoridade epistemológica[6]
diferente da da exposição teológica? Nossa teologia está fundada na
autoridade de Cristo, falando pelo seu Espírito nas palavras da Escritura. 1
Pedro 3.15 (ARA) nos ensina que a precondição de apresentar uma defesa da
fé (apologética) é também “santificai [separai] a Cristo, como Senhor, em
vosso coração”. Seria um erro imaginar que Pedro está falando aqui do
“coração” como ele sendo nosso centro das emoções em oposição à mente
com a qual pensamos. Na terminologia bíblica o “coração” é o local do nosso
raciocínio (Romanos 1.21), meditação (Salmos 19.14), entendimento
(Provérbios 8.5), pensamento (Deuteronômio 7.17; 8.5) e crença (Romanos
10.10). É justamente aqui ─ no centro do nosso pensamento e raciocínio ─
que Cristo deve ser consagrado como Senhor, quando nos envolvemos na
discussão apologética com os incrédulos inquiridores. Assim, a teologia e a
apologética têm a mesma autoridade epistemológica ─ o mesmo Senhor
sobre todas as coisas.

Razão e raciocínio
Os crentes que almejam defender sua fé cometem um grave erro, então,
quando imaginam que algo como a “razão” deve substituir Cristo como a
autoridade última (o Senhor) em seu pensamento e sua argumentação. Eles
também incorrem num pensamento muito descuidado e confuso por causa de
mal-entendidos sobre a palavra “razão”.
Os cristãos ficam muitas vezes perplexos com a “razão”, sem saber se é
algo que eles devem abraçar ou evitar. Isso geralmente ocorre porque eles
não identificam a forma precisa em que a palavra está sendo usada.
Possivelmente ela é a palavra mais ambígua e obscura no campo da filosofia.
Por um lado, a razão pode ser pensada como uma ferramenta ─ a capacidade
intelectual ou mental do homem. Tomada nesse sentido, a razão é um dom de
Deus para o homem, na verdade parte da imagem divina. Quando Deus
convida o seu povo para “Vinde, pois, e arrazoemos” (Isaías 1.18, ARA), nós
vemos que, assim como Deus, somos capazes de estabelecer uma
comunicação e um pensamento racional. Deus nos deu nossas capacidades
mentais para lhe servir e glorificar. É parte do maior mandamento da lei que
nós devemos “[amar] o Senhor teu Deus… de todo o teu pensamento”
(Mateus 22.37).

A razão não é última


Por outro lado, a razão pode ser pensada como uma autoridade ou padrão
último e independente pelo qual o homem julga todas as alegações de
verdade, inclusive as de Deus. Nesse sentido a razão é uma lei em si mesma,
como se a mente do homem fosse autossuficiente, sem necessidade de
revelação divina. Essa atitude geralmente leva as pessoas a pensarem que
estão numa posição de pensar independentemente, de governar sua própria
vida e de julgar a credibilidade da palavra de Deus baseadas em sua própria
percepção e autoridade; mais dramaticamente, essa atitude deifica a Razão
como a deusa da Revolução Francesa. “Dizendo-se sábios, tornaram-se
loucos”, como disse Paulo (Romanos 1.22). Esse ponto de vista da razão não
reconhece que Deus é a fonte e a precondição das capacidades intelectuais do
homem ─ que a razão não faz sentido à parte da perspectiva da revelação de
Deus. Ele não reconhece o caráter soberano e transcendente do pensamento
de Deus: “Porque assim como os céus são mais altos do que a terra, assim
são… os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos”
(Isaías 55.9).

A razão como um dom de Deus


Os cristãos devem endossar o uso da razão? Dois erros iguais, mas opostos
entre si, são possíveis na resposta a essa pergunta. (1) Os crentes podem
reconhecer a conveniência do uso da razão, tomada como sua faculdade
intelectual, mas então escorregar para um endosso da razão como autonomia
intelectual. (2) Os crentes podem reconhecer a inconveniência da razão como
autonomia intelectual, mas então erroneamente pensar que isso implica
rejeitar a razão como faculdade intelectual. O primeiro grupo honra o dom da
capacidade de raciocínio do homem concedido por Deus, mas desonra Deus
através do seu racionalismo. O segundo grupo honra a autoridade última de
Deus e a necessidade de obediência em todos os aspectos da vida do homem,
mas desonra Deus através do pietismo anti-intelectual.
Paulo contrabalança ambos os erros em Colossenses 2. Ele escreve que
“em [Cristo]… todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão
ocultos” (v. 3, ARA). Assim sendo, “Tende cuidado, para que ninguém vos
faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos
homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo” (v. 8).
Essa exortação não é uma diatribe contra o uso da razão ou estudo da
filosofia.
Paulo deixa claro que os crentes têm a vantagem do melhor raciocínio e
da melhor filosofia porque Cristo é a fonte de todo o conhecimento ─ todo o
conhecimento, não apenas de sentimentos ou assuntos religiosos. Ademais, se
há muitas filosofias que não são “segundo Cristo”, há também aquela que o é.
O anti-intelectualismo joga fora o bebê com a banheira. Ele destrói a
verdadeira sabedoria em nome da tolice persistente.
Por outro lado, é igualmente claro a partir de Colossenses 2 que Paulo
não endossa o raciocínio e a filosofia que se recusam a honrar a autoridade
última do Senhor Jesus Cristo. É em Cristo que a sabedoria e o conhecimento
devem ser encontrados. Qualquer suposta sabedoria que siga as tradições dos
homens e os rudimentos do mundo ─ em vez de Cristo ─ deve ser rejeitada
como perigosa e enganosa.
A Bíblia nos ensina, portanto, que a “razão” não deve ser tomada como
uma autoridade neutra no pensamento do homem. Ela é, antes, a capacidade
intelectual com que Deus criou o homem, uma ferramenta que deve ser usada
para servir e glorificar a autoridade última, o próprio Deus.

Afiando a ferramenta
A razão devidamente compreendida (o raciocínio) deve ser endossada pelos
crentes em Cristo. Em particular, ela deve ser empregada na defesa da fé
cristã. Essa é uma das coisas que Pedro nos comunica quando escreveu que
devemos estar sempre “preparados para responder com mansidão e temor a
qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós” (1 Pedro 3.15).
Uma palavra de explicação e defesa deve ser oferecida a aqueles que
desafiam a verdade da nossa fé cristã. Nós não devemos obscurecer a glória e
veracidade de Deus respondendo aos incrédulos com apelo à “fé cega” ou a
compromissos impensados. Devemos “[destruir] argumentos e toda pretensão
que se levanta contra o conhecimento de Deus” (2 Coríntios 10.5, NVI),
percebendo o tempo todo que não podemos fazer isso a menos que nós
mesmos “[levemos] cativo todo pensamento, para torná-lo obediente a
Cristo”.
Em 1 Pedro 3.15 Pedro usa a expressão “sempre preparados”. Isso é
significativo para aqueles que desejam honrar a necessidade bíblica de se
engajar na apologética. O que o Senhor pede de nós é que estejamos
preparados para oferecer uma resposta em defesa da nossa fé sempre que
alguém nos pedir uma razão. Devemos estar “prontos” para fazê-lo ─ na
verdade, “sempre prontos”. E isso significa que é imperativo refletirmos
sobre as perguntas que os incrédulos podem provavelmente fazer e sobre os
desafios que são geralmente lançados contra o cristianismo. Devemos estudar
e nos preparar para dar razões para a nossa fé quando o infiel perguntar.
Os cristãos precisam afiar a ferramenta da sua capacidade de raciocínio
para poderem glorificar a Deus e vindicar as reivindicações do evangelho.
Devemos todos fazer os nossos melhores esforços no serviço do nosso
Salvador, que chamou a si mesmo de “a verdade” (João 14.6). Todo crente
quer ver a verdade de Cristo crida e honrada pelos outros. E é por isso que
precisamos estar “preparados para arrazoar” com os incrédulos. Este estudo e
os que se seguem pretendem nos ajudar a nos tornarmos mais bem
preparados para essa necessária tarefa.
26. O CERNE DA QUESTÃO

Saber e crer

Os cristãos são muitas vezes chamados de “crentes”, enquanto os não cristãos


são denominados “incrédulos”. A própria Escritura fala desta maneira: lemos
que “crescia mais e mais a multidão de crentes” (Atos 5.14, ARA), e que eles
não deveriam se colocar “em jugo desigual com os incrédulos” (2 Coríntios
6.14, ARA). Há claramente duas classes de pessoas que se distinguem no fato
de crer ou não. Pode ser corretamente dito que o que separa os cristãos dos
não cristãos é a questão da fé.
Os cristãos creem em certas coisas que os não cristãos não creem. Os
cristãos creem que as reivindicações de Cristo e os ensinos da Bíblia são
verdadeiros, mas os não cristãos não acreditam nessas coisas. Os cristãos têm
fé em Cristo e confiam nas suas promessas; os não cristãos não creem nele e
duvidam da sua palavra. É absolutamente natural, então, que o evangelho
possa ser chamado de “a palavra da fé” (Romanos 10.8). Tornar-se cristão
implica em você “crer em seu coração que Deus o ressuscitou [Cristo] dentre
os mortos” (v. 9, NVI); da mesma forma, “é necessário que aquele que se
aproxima de Deus creia que ele existe, e que é galardoador dos que o
buscam” (Hebreus 11.6). Os exemplos poderiam ser multiplicados. O que
separa os cristãos dos não cristãos é a questão da crença ou fé.
No entanto, num importante sentido, a diferença entre eles vai além, e
precisamos entender isso se vamos fazer um trabalho fiel na defesa da fé. O
cristão alega “crer” nos ensinos da Escritura ou ter “fé” na pessoa de Cristo[7]
porque o elemento da confiança é bastante proeminente no nosso
relacionamento com o Salvador. Mas o cristão realmente afirma mais do que
apenas crer nas reivindicações de Cristo como verdadeiras. O cristão também
afirma “saber” que essas reivindicações são verdadeiras. O que está
envolvido na fé salvadora é mais do que esperança (embora isso esteja
presente) e mais do que um compromisso da vontade (embora isso também
esteja presente). Jó confiantemente afirmou “…eu sei que o meu Redentor
vive” (Jó 19.25). João indicou que escreveu sua primeira epístola para que
aqueles “que creem no nome do Filho de Deus” “saibam que têm a vida
eterna” (1 João 5.13, NVI). Paulo declarou que Deus “deu provas” de que
Jesus há de julgar o mundo (Atos 17.31, NVI). Jesus prometeu aos seus
discípulos que “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8.32).
De que forma o conhecimento vai além da crença? Conhecimento
inclui ter uma justificação ou boa razão para apoiar o que quer que você
creia. Imagine que eu creia que uma dada cidade tem 37 milhas quadradas, e
imagine que essa afirmação se revela precisa ─ mas imagine também que só
cheguei a essa resposta por adivinhação (em vez de fazer medições, cálculos
matemáticos, consultar um almanaque, etc.). Eu creio em algo que se revelou
verdade, mas não podemos dizer que neste caso eu tinha “conhecimento”,
pois eu não tinha justificação para o que eu acreditava. Quando afirmamos
saber que algo é verdadeiro, estamos afirmando assim ter provas, evidências
adequadas ou uma boa razão para isso.
A diferença entre o cristão e o não cristão não é simplesmente que um
crê na Bíblia, e o outro não. As crenças das pessoas podem ser frívolas,
aleatórias ou tolas. O cristão também afirma que há justificação para acreditar
no que a Bíblia diz. O não cristão diz, ao contrário, que não há nenhuma
justificação (ou justificação adequada) para acreditar nas afirmações da
Bíblia ─ ou, em casos mais fortes, diz que há justificação para não acreditar
nas afirmações da Bíblia. A apologética equivale a uma investigação e um
debate sobre quem está correto nessa matéria. Ela envolve dar razões,
oferecer refutações e responder a objeções.

Cosmovisões conflitantes
Qual perspectiva é intelectualmente justificada, a do cristão ou do não
cristão? Muitos apologistas cristãos iniciantes abordam a resposta para essa
pergunta de uma forma muito simplista e ingênua, pensando que tudo o que
temos a fazer é ir atrás da evidência observável e ver qual das hipóteses é
verificada. “Afinal”, pensa-se, “é como resolvemos as divergências nos
nossos assuntos corriqueiros, assim como na ciência”.[8] Se surge uma
controvérsia sobre o preço dos ovos no supermercado, nós podemos entrar no
carro, dirigir até o estabelecimento e conferir por nós mesmos o preço dos
ovos na gôndola. Se os cientistas discordam sobre a afirmação de que fumar
causa câncer, eles podem realizar testes, fazer comparações estatísticas, etc.
Nesses casos, parece que o que fazemos no fundo é “olhar e ver” se uma
hipótese ou o seu oposto é verdadeiro. Claro, discordâncias como essa podem
ser facilmente resolvidas dessa forma somente porque as duas pessoas que
discordam acabam, todavia, concordando uma com a outra em relação a
suposições mais básicas ─ tais como a confiabilidade dos seus sentidos, a
uniformidade dos eventos naturais, a precisão na comunicação dos dados, a
honestidade dos pesquisadores, etc.
No entanto, quando a disputa é sobre questões mais fundamentais,
como acontece entre crentes e incrédulos, apelos simples à evidência
observacional não precisam ser de fato decisivos. A razão é que as crenças
mais fundamentais (ou pressuposições) de uma pessoa determinam o que ela
aceitará como evidência e determinam como essa evidência será interpretada.
Deixe-me ilustrar isso. O naturalismo e o sobrenaturalismo são perspectivas
conflitantes sobre o mundo em que vivemos e o conhecimento que o homem
tem dele. O naturalista alega que aquilo que é estudado pela ciência
empírica[9] é tudo o que existe na realidade, e que todo evento pode (em
princípio) ser explicado sem recorrer a forças fora do escopo da experiência
do homem ou fora do Universo. O sobrenaturalismo cristão, por outro lado,
acredita que existe um Deus todo-poderoso e transcendente que pode intervir
no Universo e realizar milagres que não podem ser explicados pelos
princípios comuns da experiência natural do homem. Ora, ter assim relatórios
bem certificados de um evento “milagroso” não é por si só suficiente para
mudar do naturalista ─ e por uma boa razão. As pressuposições do naturalista
irão exigir que ele dispute a alegação de que esse evento realmente
aconteceu, ou, alternativamente, o levarão a dizer que o evento está sujeito a
uma explicação natural, uma vez que aprendamos mais sobre ele. A simples
evidência não precisa desalojar sua abordagem naturalista para todas as
coisas ─ não mais que a simples evidência do globo ocular poderia alguma
vez refutar a convicção hindu de que tudo sobre a experiência temporal do
homem é maya (ilusão). Nossas pressuposições sobre a natureza da realidade
e o conhecimento controlam o que aceitamos como evidência e como a
vemos.[10]
Todo mundo tem o que se pode chamar de “cosmovisão”, uma
perspectiva em termos da qual as pessoas veem todas as coisas e entendem
suas percepções e sentimentos. Cosmovisão é uma rede de pressuposições
relacionadas em termos das quais cada aspecto da consciência e do
conhecimento do homem são interpretados. Essa cosmovisão, como
explicado acima, não é totalmente derivada da experiência humana nem pode
ser verificada ou refutada pelos procedimentos da ciência natural. Nem todo
mundo reflete explicitamente sobre o conteúdo da sua cosmovisão ou é
consistente na sua manutenção, mas todo mundo tem uma, não obstante. A
cosmovisão de uma pessoa dá a ela uma pista da natureza, estrutura e origem
da realidade. Ela lhe diz quais são os limites da possibilidade. Ela envolve
uma visão da natureza, das fontes e dos limites do conhecimento humano. Ela
inclui convicções fundamentais sobre o certo e o errado. A cosmovisão de
alguém diz algo sobre quem o homem é, qual é o seu lugar no Universo, qual
é o significado da vida, etc. As cosmovisões determinam nossa aceitação e
entendimento dos eventos na experiência humana e, assim, desempenham o
papel crucial na nossa interpretação da evidência ou nas disputas sobre
crenças fundamentais conflitantes.[11]
Vimos acima que a apologética, dada a sua natureza, envolve uma
argumentação sobre a justificação da crença ou rejeição da crença. O que
acabamos de observar é que o tratamento da questão da justificação da crença
por uma pessoa será governado pela cosmovisão ou pressuposições
subjacentes dela. A apologética eficaz necessariamente nos leva a desafiar e
debater com o incrédulo no nível das suas suposições ou compromissos mais
básicos sobre a realidade, o conhecimento e a ética. Nossa abordagem para a
defesa da fé será superficial e ineficaz se pensarmos que o incrédulo
simplesmente carece de informação ou precisa receber evidência
observacional.[12]
A Bíblia nos ensina que as perspectivas mental e espiritual dos crentes
e dos incrédulos diferem radicalmente uma da outra. Em princípio, e de
acordo com o que eles professam, as cosmovisões básicas ─ as
pressuposições fundamentais ─ do cristão e do não cristão conflitam uma
com a outra em todos os pontos.[13] A depravação pecaminosa que permeia
todo o homem não regenerado atinge seu intelecto tanto quanto qualquer
outra coisa. “Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois
não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser (Romanos 8.7). A
descrição que Paulo faz da mente incrédula em Efésios 4.17-19 é explícita.
Os incrédulos andam na vaidade da sua mente, obscurecidos no
entendimento, na ignorância e com um coração endurecido. “Dizendo-se
sábios, tornaram-se loucos” (Romanos 1.22). Por outro lado, é dito que os
crentes são transformados pela renovação da sua mente (Romanos 12.2; cf.
Efésios 4.23-24). Eles agora têm a mente de Cristo (1 Coríntios 2.16) e levam
cativo todo pensamento à obediência dele (2 Coríntios 10.5, ARA). Não é
surpreendente, portanto, que os crentes e os incrédulos ─ com suas condições
de coração e cosmovisões conflitantes ─ não partilhem realmente de uma
visão comum do conhecimento, da lógica, evidência, linguagem ou verdade.
Pilatos arrogantemente perguntou: “Que é a verdade?” (João 18.38). Agripa
diferiu de Paulo sobre o que é “crível” (Atos 26.8). O que os incrédulos
chamam de “conhecimento”, os crentes evitam como sendo
“pseudoconhecimento” (1 Timóteo 6.20). O que os crentes chamam de
sabedoria, os incrédulos chamam de loucura (1 Coríntios 1.18-2.5).

A impossibilidade do contrário
Se o modo como as pessoas raciocinam e interpretam a evidência é
determinado por suas cosmovisões pressupostas, e se as cosmovisões do
crente e do incrédulo estão, em princípio, em completo desacordo uma com a
outra, como a discordância entre eles sobre a justificação das afirmações
bíblicas pode ser resolvida? Pode parecer que toda argumentação racional é
impedida, visto que os apelos à evidência e à lógica serão controlados pelas
respectivas cosmovisões conflitantes do crente e do incrédulo. Mas não é este
o caso.
Cosmovisões diferentes podem ser comparadas uma com a outra nos
termos da importante questão filosófica sobre as “precondições de
inteligibilidade” para suposições importantes como a universalidade das leis
da lógica, a uniformidade da natureza e a realidade dos absolutos morais.
Podemos examinar uma cosmovisão e perguntar se o retrato que ela faz da
natureza, do homem, do conhecimento, etc. fornece uma perspectiva em
termos da qual a lógica, a ciência e a ética podem fazer sentido. Não é
compatível com as práticas da ciência natural acreditar que todos os eventos
são aleatórios e imprevisíveis, por exemplo. Não é compatível com a
exigência de honestidade na pesquisa científica nenhum princípio moral
expressar algo mais que um sentimento ou preferência pessoal. Além disso,
se há contradições internas na cosmovisão de uma pessoa, essa cosmovisão
não fornece as precondições que dão sentido à experiência do homem. Por
exemplo, se os dogmas políticos de uma pessoa respeitam a dignidade dos
homens de fazerem suas próprias escolhas, embora as teorias psicológicas
dela rejeitem o livre-arbítrio dos homens, há um defeito interno na
cosmovisão dessa pessoa.
A alegação do cristão é que todas as cosmovisões não cristãs estão
cercadas de contradições internas, bem como de crenças que impedem a
lógica, a ciência ou a ética serem inteligíveis. Por outro lado, a cosmovisão
cristã (tomada a partir da autorrevelação de Deus na Escritura) exige o nosso
compromisso intelectual porque ela fornece as precondições de
inteligibilidade para o raciocínio, a experiência e a dignidade do homem.
Em termos bíblicos, o que o apologista cristão faz é demonstrar aos
incrédulos que, por causa da sua rejeição da verdade revelada de Deus, eles
“se tornaram nulos em seus próprios raciocínios” (Romanos 1.21, ARA). Por
meio da sua perspectiva tola eles acabam opondo a si mesmos (2 Timóteo
2.25). Eles seguem uma concepção de conhecimento que não merece tal
nome (1 Timóteo 6.20). Sua filosofia e suas pressuposições roubam de uma
pessoa o conhecimento (Colossenses 2.3, 8), deixando-a na ignorância
(Efésios 4.17-18; Atos 17.23). O objetivo do apologista é destruir o
raciocínio deles (2 Coríntios 10.5) e desafiá-los no espírito de Paulo: “Onde
está o sábio? […] Onde está o inquiridor deste século? Porventura não tornou
Deus louca a sabedoria deste mundo?” (1 Coríntios 1.20).
De várias formas, o argumento fundamental desenvolvido pelo
apologista cristão é que a cosmovisão cristã é verdadeira por causa da
impossibilidade do contrário. Quando a perspectiva da revelação de Deus é
rejeitada, o incrédulo é deixado na ignorância tola porque sua filosofia não
fornece as precondições do conhecimento e da experiência significativa. Em
outras palavras, a prova de que o cristianismo é verdadeiro é que se ele não o
fosse, não seríamos capazes de provar nada.
O que o incrédulo precisa é nada menos do que uma mudança radical
de mente ─ de arrependimento (Atos 17.30). Ele precisa mudar sua
cosmovisão fundamental e se submeter à revelação de Deus para que
qualquer conhecimento ou experiência façam sentido. Ele ao mesmo tempo
precisa se arrepender da sua rebelião espiritual e do seu pecado contra Deus.
Por causa da condição do seu coração, ele não pode ver a verdade ou
conhecer Deus de uma forma salvadora.

Autoengano
Até que o coração do pecador seja regenerado e sua perspectiva básica
mudada, ele continuará a resistir ao conhecimento de Deus. Como acabamos
de dizer, dada a sua cosmovisão defeituosa e atitude espiritual, o incrédulo
não pode justificar o conhecimento, seja qual for, e não pode vir a conhecer
Deus de uma forma salvadora. Isso não significa, no entanto, que os
incrédulos não têm qualquer conhecimento e, muito menos, que eles não
conhecem Deus. O que dissemos é que eles não podem justificar o que sabem
(nos termos da sua cosmovisão incrédula) e não podem conhecer Deus de
uma forma salvadora. A Bíblia indica que os incrédulos, apesar disso,
conhecem Deus ─ mas é um conhecimento em condenação, um
conhecimento que os capacita a saber de coisas sobre si mesmos e o mundo
ao seu redor, muito embora eles suprimam a verdade de Deus que torna tal
conhecimento possível.
De acordo com Romanos 1.18-21, os incrédulos realmente conhecem
Deus no íntimo do seu coração (v. 21). De fato, o que se pode conhecer de
Deus é evidente dentro deles, e por isso eles são indesculpáveis por sua
incredulidade professa (vv. 19-20). Visto que ele não está longe de cada um
de nós, até mesmo os filósofos pagãos não podem deixar de conhecê-lo (cf.
Atos 17.27-28). Os incrédulos “suprimem a verdade pela injustiça”
(Romanos 1.18, NVI). Eles são culpados de autoengano. Embora num
sentido eles mui sinceramente neguem conhecer Deus ou ser persuadidos
pela sua revelação, eles estão, contudo, enganados nessa negação. Na
verdade, eles conhecem Deus, são persuadidos pela sua revelação de si
mesmo e fazem agora o que podem para manter essa verdade fora de vista e
evitar de lidar honestamente com seu Criador e Juiz. A racionalização e
qualquer número de artifícios intelectuais serão arrolados para eles
convencerem a si mesmos e os outros de que não se deve acreditar na
revelação que Deus faz de si mesmo. Desse modo os incrédulos, que
genuinamente conhecem Deus (em condenação), trabalham duro ─ ainda que
habitualmente (e, neste sentido, inconscientemente) ─ para enganarem a si
mesmos a fim de acreditar que não creem em Deus ou nas verdades reveladas
sobre ele.
É o conhecimento de Deus que todos os incrédulos têm inevitavelmente
dentro de si que lhes torna possível conhecer outras coisas sobre si mesmos
ou sobre o mundo. Porque conhecem Deus, eles têm um argumento para as
leis da lógica, para a uniformidade da natureza, para a dignidade do homem e
para os absolutos éticos. Consequentemente eles podem aspirar à ciência e a
outros aspectos da vida com alguma medida de sucesso ─ muito embora não
possam justificar esse sucesso (não possam fornecer as precondições para a
inteligibilidade da lógica, ciência ou ética). Por essa razão, cada pedaço do
conhecimento do incrédulo é uma evidência que apoia a verdade da revelação
de Deus e um indiciamento adicional contra a incredulidade no dia do
julgamento.
A tarefa da apologética é despir o incrédulo da sua máscara, mostrar-
lhe que ele realmente conhece Deus o tempo todo, mas suprime a verdade em
injustiça, e que o conhecimento seria impossível de outra forma. A
apologética, conduzida dessa forma, vai ao cerne da questão. Ela desafia o
cerne da perspectiva filosófica do incrédulo e confronta o autoengano que
domina o coração pessoal do incrédulo.
27. RESPONDENDO OBJEÇÕES

Sob ataque

Os cristãos no mundo antigo sabiam o que era ser alvo de acusações e


ridicularizações por causa das suas convicções e práticas religiosas. O relato
da ressurreição de Jesus foi tomado como um desvario (Lucas 24.11), uma
mentira (Mateus 28.13-15), uma impossibilidade (Atos 26.8). Por pregarem
isso, crentes foram presos pelos judeus (Atos 4.2-3) e escarnecidos pelos
filósofos gregos (Atos 17.32). No dia de Pentecostes os discípulos foram
acusados de estarem bêbados (Atos 2.13). Estêvão foi acusado de se opor à
revelação anterior (Atos 6.11-14). Paulo foi acusado de introduzir novos
deuses (Atos 17.18-20). A igreja foi acusada de insurreição política (Atos
17.6-7). Especialistas contradiziam abertamente o que os cristãos ensinavam
(Atos 13.45) e dolosamente vilipendiaram suas pessoas (Atos 14.2). Assim,
por um lado, a mensagem cristã era um tropeço para os judeus e loucura para
os gregos (1 Coríntios 1.23).
Por outro lado, os primeiros cristãos tinham de se resguardar contra o
tipo errado de aceitação positiva do que proclamavam. Os apóstolos foram
confundidos com deuses por defensores da religião pagã (Atos 14.11-13),
receberam louvor indesejável de adivinhos (Atos 16.16-18) e tiveram sua
mensagem absorvida por legalistas heréticos (Atos 15.1, 5). Crentes do
século XX podem simpatizar com os seus irmãos do mundo antigo. Nossa fé
cristã continua a ver a mesma variedade de tentativas de se lhe opor e miná-
la.
Há um grande número de formas em que as reivindicações de verdade
cristãs estão sob ataque hoje. Elas são desafiadas quanto à sua
significabilidade. A possibilidade de milagres, de revelação e de encarnação
são questionadas. É lançada dúvida sobre a divindade de Cristo ou sobre a
existência de Deus. A exatidão histórica ou científica da Bíblia é atacada. O
ensino bíblico é rejeitado por não ser logicamente coerente. A vida consciente
após a morte física, a condenação eterna e uma futura ressurreição não são
prontamente aceitas. O caminho da salvação é visto como desagradável ou
desnecessário. A natureza de Deus e o caminho da salvação são falsificados
por escolas heréticas de pensamento. Sistemas religiosos concorrentes são
contrapostos ao cristianismo ─ ou alguns tentam assimilá-lo em suas próprias
formas de pensamento. A ética da Escritura é criticada. A adequação
psicológica ou política do cristianismo é menosprezada.
Essas e muitas, muitas outras linhas de ataque são dirigidas contra o
cristianismo bíblico. É trabalho da apologética refutá-las e demonstrar a
veracidade da cosmovisão e proclamação cristãs ─ “destruindo os conselhos,
e toda a altivez que se levanta contra o conhecimento de Deus” (2 Coríntios
10.5).

A estrada baixa
Ao estudar as objeções dos incrédulos e nos preparar para arrazoar com eles,
nós tomamos a estrada alta da apologética, o caminho da obediência à
orientação do nosso Senhor e Salvador. Sua reivindicação categórica foi: “Eu
sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim”
(João 14.6). O apologista responde às objeções dos incrédulos de uma forma
que apresente a verdade objetiva do cristianismo e o caráter exclusivo do
sistema. Ele oferece razões para a crença, vindicando a cosmovisão cristã
contra sistemas concorrentes de pensamento e de vida.
Nem todos os crentes (ou cristãos professos) optam por seguir essa
estrada alta. Frequentemente tem acontecido que aqueles que falam pela fé
cristã se contentam com muito menos (especialmente, mas não
exclusivamente, no século atual). Eles se contentam com muito menos do que
a apologética ao reduzirem o compromisso cristão ao subjetivismo. É
certamente verdade que o cristianismo nos traz uma sensação de paz e
confiança pessoal perante Deus, e essa experiência interior de fé sendo certa e
nós mesmos vindo a estar bem com Deus (cf. o testemunho do Espírito,
Romanos 8.16) não podem ser adequadamente transmitidas em palavras. No
entanto, apelos a esse sentimento interior não constituem um argumento que
deverá persuadir os outros da veracidade do cristianismo.
Há uma importante diferença entre confiança e certeza,[14] assim como
há uma importante diferença entre aceitabilidade subjetiva e verdade objetiva.
Confiança é uma propriedade psicológica, um sentimento de convicção de
que uma proposição é verdadeira. Muitas pessoas, no entanto, se sentem
muito confiantes de coisas que se provam notoriamente falsas; todavia, a
confiança dos outros acaba sendo confiável. Assim, o melhor que podemos
dizer é que a presença de convicção psicológica não é um indicador adequado
de quem possui ou não a verdade. A certeza ─ em oposição à confiança ─ é
tecnicamente a propriedade de uma proposição (ou conjunto de proposições),
não de uma pessoa. A certeza de uma proposição é a propriedade de que ela
não pode deixar de ser verdadeira. A verdade do cristianismo não é
simplesmente uma qualidade autobiográfica, dizendo-nos algo sobre a sua
aceitabilidade por esta ou aquela pessoa individual. O apologista defende a
verdade objetiva da fé. Isto é, o apologista mantém que a verdade dela tem
uma natureza pública, aberta à inspeção e independente do que alguém pensa
ou sente sobre ela (positiva ou negativamente).
Outra estrada baixa que alguns cristãos professos seguem em resposta
às objeções incrédulas à fé é a estrada do relativismo. Isso está, em muitos
casos, intimamente aliado ao subjetivismo, mas constitui um erro distinto em
si mesmo. O subjetivista suprime ou nega a natureza pública da verdade
cristã, mas ainda distingue a verdade do erro; ele acredita que o cristianismo é
verdadeiro ─ e baseia isso em sentimentos indisputados ─ e, por outro lado,
acredita que o ponto de vista não cristão é falso.
O relativismo, por outro lado, acredita que todas as crenças e
convicções (ou todas as crenças religiosas, seja como for) são condicionadas
por fatores culturais e preconceitos individuais de tal forma que não pode
haver qualquer verdade absoluta (não qualificada). Se o cristão proclama que
Deus é uma pessoa, mas os hindus ensinam que a realidade suprema é
impessoal, e se o cristão adverte que todos os homens responderão a Deus
pelos seus pecados um dia, mas o líder de alguma seita insiste que Deus
jamais puniria alguém por maldades cometidas ─ o relativista diria que essas
discordâncias não podem ser resolvidas. O que é “verdade para você” não é
necessariamente “verdade para mim”.[15] O relativismo é hipócrita ou
autocontraditório. Às vezes as pessoas agem com relativismo, mas não é
realmente como querem agir. Quando as coisas vão mal, elas querem insistir
que algumas coisas são absolutamente verdadeiras, embora outras não o
sejam ─ e, claro, elas serão julgadas conforme onde demarcarem a linha,
como se a verdade pudesse ser mera questão de conveniência pessoal! Outras
vezes as pessoas se contradizem ao insistir que absolutamente não existe
nenhuma verdade absoluta ─ fornecendo, assim, no que dizem a própria base
para rejeitar o que dizem.
O cristianismo não reivindica ser relativamente verdadeiro, mas
absoluta e universalmente verdadeiro. Além disso, como sistema religioso,
reivindica ser exclusivamente verdadeiro.[16] Isso é, naturalmente, bastante
ofensivo em uma era pluralista e democrática. “Todo mundo tem o direito de
acreditar no que quiser sobre Deus”, as pessoas irão nos lembrar. Mas não é
esse o ponto. O direito de acreditar em alguma coisa não traduz isso em algo
verdadeiro. Algumas perspectivas religiosas ensinam que há uma variedade
de formas de se chegar a Deus ou servi-lo (como pessoa ou objeto) ─ muitos
caminhos para o topo da montanha. O cristianismo não é uma delas, no
entanto. As abordagens ecléticas e variadas da religião podem desejar
incorporar o cristianismo entre as suas opções religiosas (mais uma de
muitas), mas pela sua própria natureza o cristianismo não pode ser assimilado
nas perspectivas delas. O cristianismo afirma que somente Cristo é o
Salvador divino, afirma que somente através dele alguém pode estar bem
com Deus e afirma que aquilo que nós cremos sobre Deus está restrito ao que
ele revela sobre si mesmo (excluindo assim a imaginação humana).

A estrada alta da argumentação santificada


Em oposição às estradas baixas do subjetivismo, relativismo e ecletismo, as
páginas do Novo Testamento nos mostram cristãos que responderam às
objeções e desafios dos incrédulos com argumentos apologéticos para a
verdade da fé. O próprio termo “apologética” (encontrado em 1 Pedro 3.15)
era usado no mundo antigo para a defesa que uma pessoa acusada oferecia
em um tribunal de justiça. O subjetivismo, relativismo e ecletismo não fariam
absolutamente nenhum bem para um réu que estivesse defendendo a sua
inocência. Os primeiros cristãos insistiram nas reivindicações de verdade e
foram capazes de defendê-las, apresentando de maneira clara a verdade de
Cristo em antítese às ideias errôneas que a contradiziam. E eles fizeram isso
quer tendo sido antes pescadores, quer coletores de impostos, quer estudantes
acadêmicos da lei.
Observe como o Novo Testamento descreve a proclamação e defesa da
fé cristã pelos seus primeiros adeptos:

Pedro proclamou “Saiba pois com certeza toda a casa de Israel que a esse
Jesus, a quem vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo” (Atos 2.36).

“Saulo, porém, se esforçava muito mais, e confundia os judeus que


habitavam em Damasco, provando que aquele era o Cristo” (Atos 9.22).

“Paulo, segundo o seu costume, foi procurá-los e, por três sábados,


arrazoou com eles acerca das Escrituras” (Atos 17.2, ARA).

“Por isso, discutia na sinagoga com judeus e com gregos tementes a Deus,
bem como[17] na praça principal, todos os dias, com aqueles que por ali se
encontravam [incluindo] alguns filósofos epicureus e estoicos…” (Atos
17.17-18, NVI).

“E todos os sábados disputava na sinagoga, e convencia a judeus e gregos”


(Atos 18.4).

“Durante três meses, Paulo frequentou a sinagoga, onde falava


ousadamente, dissertando e persuadindo com respeito ao reino de Deus…
[e mais tarde] passando a discorrer diariamente na escola de Tirano” (Atos
19.8-9, ARA).

Quando são levantadas objeções ao cristianismo, é nossa obrigação


apresentar respostas fundamentadas em defesa. Devemos argumentar com
aqueles que se opõem à verdade da palavra de Deus.
Oferecer argumentos a favor de certas conclusões não deve ser
confundido com ser “argumentativo” ou contencioso na atitude. A Bíblia nos
exorta ao primeiro, embora nos proíba do segundo. Apresentar uma razão
para a esperança que há em nós não requer que o façamos de uma forma
ofensiva ou arrogante.[18] Assim, cristãos bem-intencionados que dizem que
“não devemos discutir com as pessoas se quisermos ser como Cristo” têm
algo valioso a dizer, mas não o estão fazendo de uma forma clara e correta.
Discutir não é em si mesmo errado. Os apóstolos se envolveram de forma
bastante evidente em discussões com incrédulos. No entanto, os apóstolos
também tinham conhecimento de um temperamento e de uma forma de
comunicação que desonra o Senhor. Eles podiam falar de “perversas
contendas” ─ ou, como uma tradução coloca, “atritos constantes entre
pessoas que têm a mente corrompida” (1 Timóteo 6.5). A injunção moral
categórica para aqueles que seriam professores cristãos é que eles “[devem
instruir] com mansidão os que resistem, a ver se porventura Deus lhes dará
arrependimento para conhecerem a verdade” (2 Timóteo 2.25). Portanto, “ao
servo do Senhor não convém contender” (v. 24). Discutir em favor da fé
cristã pode e deve ser feito de uma maneira consistente com a piedade cristã.
A resposta apropriada aos críticos da fé, então, é arrazoar com eles,
refutar objeções, provar conclusões, oferecer argumentos. Vamos entender
mais precisamente o que isso envolve. A palavra grega usada para
“provando” em Atos 9.22 é usada para “juntar as coisas”, como alguém faz
com inferências ou ao demonstrar conclusões a partir de premissas.
Num argumento a verdade de uma proposição é afirmada com base na
verdade de outras proposições (premissas). Diz-se que a conclusão é inferida
─ “segue” ─ das premissas oferecidas. Isso não é a mesma coisa que uma
declaração condicional, que segue o formato “se… então”. “Se o Popeye é
um marinheiro, então ele é um bêbado” é uma declaração condicional, mas
não um argumento ─ visto que nenhuma proposição está sendo afirmada
como seguindo da evidência fornecida em outra proposição ou conjunto de
proposições. Mas se alguém afirma que “Popeye é um bêbado porque é
marinheiro”, está fazendo um argumento (um muito pobre), baseando uma
conclusão em outras premissas (neste caso, uma dessas premissas é suprimida
ou não mencionada).
Deve também ser notado aqui que um argumento não é o mesmo que
uma explicação. A presença da palavra “porque” no exemplo anterior pode
ser enganosa se não tivermos cuidado. A palavra “porque” amiúde expressa
uma conexão causal entre duas coisas ou eventos, em vez de dar uma razão
(dar fundamentos para acreditar em algo). “O pão não cresceu porque Betty
não adicionou o fermento” é uma explicação causal, não um argumento. A
proposição seguinte a “porque” não tem por objetivo estabelecer a verdade
da proposição precedente.
Na apologética, nossa tarefa é analisar os argumentos que são
desenvolvidos pelos incrédulos contra a verdade do cristianismo e produzir
argumentos sólidos em favor dela. Isso exigirá uma compreensão de como a
verdade de uma proposição pode estar baseada na verdade de outras ─ uma
compreensão das relações empíricas (evidência) e relações conceituais
(lógica). Fazemos uso da nossa capacidade santificada de arrazoar e debater,
usando as ferramentas lógicas e empíricas de raciocínio que Deus nos
concedeu, e oferecemos justificativa para crer que o cristianismo deve ser
verdadeiro e para rejeitar a perspectiva conflitante dos incrédulos.

Identificando o verdadeiro réu


A última observação destaca o fato de que a apologética tem uma natureza
tanto defensiva quanto ofensiva; ela não só responde às críticas, mas também
apresenta seu próprio desafio ao pensamento dos incrédulos. Na verdade, a
apologética deve realçar a ironia do fato de que aqueles que exigem uma
defesa para Deus são, por meio disso, aqueles que no fim das contas mais
mostram ter necessidade de uma defesa filosófica e pessoal.
Os incrédulos tomam sua autonomia intelectual como algo tão certo
que acham difícil acreditar que não estão, epistemológica ou moralmente, em
nenhuma posição de questionar Deus e a sua palavra revelada. Isso é bem
descrito por C. S. Lewis:

O julgamento pode até acabar na absolvição de Deus. Mas o importante é


que o homem está na tribuna, e Deus no banco dos réus.[19]

Deus, em sua Santa Palavra, revelou a falta de santidade dessa atitude. “Não
tentareis o Senhor vosso Deus” (Deuteronômio 6.16), conforme decretou
Moisés. Quando Satanás tentou Jesus para fazer isso ─ pressionar Deus a
oferecer prova da veracidade da sua palavra (como citada por Satanás) ─
Jesus repreendeu Satanás, “o acusador”, com essas mesmas palavras do
Antigo Testamento. Ele declarou: “Também está escrito: Não tentarás o
Senhor teu Deus” (Mateus 4.7). Não é a integridade, veracidade e
conhecimento de Deus que são de algum modo suspeitos, realmente, mas sim
aqueles que o acusam e exigem provas para satisfazer a sua própria maneira
de pensar ou viver.
Ao responder as objeções dos incrédulos, o apologista não deve perder
de vista essa profunda verdade. Compete a nós oferecer uma defesa
fundamentada ao incrédulo, lidando de uma forma honesta e detalhada com
as críticas que ele possa ter. A apologética cristã não é servida pelo
obscurantismo e por generalidades. Porém, ao mesmo tempo, nossos
argumentos apologéticos devem servir para demonstrar que o incrédulo não
tem nenhum fundamento intelectual sobre o qual pode manter oposição à
revelação de Deus. Nossa argumentação deve acabar mostrando que as
pressuposições (a cosmovisão) do incrédulo levariam consistentemente à
loucura e à destruição do conhecimento. Nesse caso, e dado o estilo de vida
pecaminoso do incrédulo, é o incrédulo realmente ─ e não Deus ─ quem está
afinal “no banco dos réus”, tanto epistemologicamente como moralmente.
28. FERRAMENTAS DE APOLOGÉTICA

Não se pode esperar que um exército trave uma batalha bem-sucedida se os


seus soldados não estão familiarizados com as várias armas que têm à sua
disposição para lidar com o inimigo. Assim também, um construtor não pode
construir ou reformar uma casa se não souber que tipos de ferramentas de
carpinteiro e de hidráulico lhe estão disponíveis e como deve usá-las. Da
mesma forma, os cristãos que querem defender a fé devem se preparar para
responder às críticas dos incrédulos familiarizando-se com as “ferramentas”
de raciocínio e argumentação que podem ser listadas na apologética.

Sendo racional, em sentido geral

“Deus não foi tão parcimonioso com os homens para fazê-los tão somente
criaturas de duas pernas, deixando para Aristóteles torná-los racionais.”
Assim escreveu John Locke (1632-1704).[20]

O gracejo se refere à famosa obra de Aristóteles sobre lógica e silogismo,


Organon (“O Instrumento” ou “ferramenta” de conhecimento), em que o
antigo filósofo estabelece regras de raciocínio e distingue entre formas
corretas e incorretas de argumentação. Locke não estava convencido do
benefício epistemológico da forma silogística de raciocínio (a saber, premissa
maior, premissa menor, conclusão deduzida) explorada por Aristóteles.
Locke teria sido muito mais feliz com Novum Organum (“Novo
Instrumento”) de Francis Bacon, que foi publicado em 1620 e explorou as
regras do raciocínio científico ou indutivo ─ que foi mais tarde melhorado
com o “Sistema de Lógica” (1843) de John Stuart Mill, cujo entendimento
próprio das ferramentas da racionalidade foi por sua vez ampliado e
melhorado por estudos do século XX sobre lógica, argumento e método.
Locke era, claro, o famoso filósofo sócio-político inglês que foi autor
dos “Dois Tratados sobre o Governo”, bem como um estudante do processo
humano de conhecimento que se tornou conhecido com o pai do “empirismo
britânico”. Ele foi criado num lar puritano e viveu até os acontecimentos que
deflagraram a Assembleia de Westminster. Foi contemporâneo de Milton,
Newton e Boyle ─ e a exemplo desses grandes homens das letras,
abertamente professava a fé cristã, tendo alta consideração pela Bíblia.

A Sagrada Escritura é para mim, e sempre o será, o guia constante do meu


assentimento; e sempre atentarei para ela como contendo a verdade infalível
em relação às coisas que são do mais alto interesse… Onde possa eu querer
a evidência das coisas, ali estará o fundamento suficiente para a minha
crença, pois Deus o disse; e deixarei e condenarei qualquer opinião minha
tão logo me seja mostrado que ela é contrária a qualquer revelação da
Sagrada Escritura.[21]

Aos 63 anos de idade, no ano de 1695, Locke lançou um tratado intitulado “A


Razoabilidade do Cristianismo como entregue nas Escrituras”.[22]
Cinco anos antes (1690) Locke havia pulicado sua obra mais conhecida
sobre a teoria do conhecimento, “Ensaio acerca do Entendimento Humano”.
Nela ele lamentou o fato de a palavra “razão” ser muitas vezes usada como se
fosse oposta à “fé”. Ele escreveu que, na sua opinião, a fé não deveria ser
provida de nada “exceto a boa razão”, dispensando assim qualquer tensão
entre elas. Locke insistiu que crer nas coisas arbitrariamente, à parte da razão,
era insultar nosso Criador. Assim sendo, os cristãos eram chamados a
entender, aperfeiçoar e treinar sua faculdade de raciocínio. Com isso, nós
certamente devemos concordar ─ mesmo não podendo seguir completamente
a epistemologia ou as conclusões teológicas de Locke. Certamente devemos
dominar a diferença entre as formas confiáveis e não confiáveis de raciocínio
se quisermos honrar a Cristo e nos tornar eficazes no serviço a ele.
Deus quer que sejamos racionais: exercitar e aperfeiçoar nossa
capacidade de raciocínio entendendo, expondo e defendendo as verdades da
Escritura. E como Locke observou, essa capacidade de raciocínio não começa
ou termina com o ensino de Aristóteles. Ser racional é um traço muito mais
amplo do que o uso de silogismos (embora eles certamente tenham o seu
papel nisso). O tipo de racionalidade ou raciocínio que vamos empregar na
defesa da fé cristã envolve não apenas o estudo da lógica formal (padrões ou
formas abstratas de inferência), mas também uma atenção para as falácias
informais na linguagem comum, o uso do raciocínio indutivo,[23] a
manipulação da evidência empírica na história, ciência, linguística, etc.,[24] e
especialmente uma reflexão sobre as demandas de uma cosmovisão adequada
em termos da qual todo pensamento faz sentido.[25]
De fato, Deus não foi “parcimonioso” na sua provisão de várias
ferramentas que os defensores da fé podem usar para confrontar cosmovisões
opostas e refutar a argumentação daqueles que desafiam as Escrituras. Essas
ferramentas também são úteis na formulação coerente e apresentação da
cosmovisão cristã com base nos ensinamentos da Bíblia. Ao explorar essas
ferramentas de racionalidade (ou as formas conspícuas em que elas são
violadas), podemos melhorar nossa capacidade de apresentar uma resposta
para a esperança que há em nós como crentes, bem como obter uma
compreensão sobre os erros elementares no raciocínio que são amiúde
cometidos pelos incrédulos.

Conjectura preconceituosa
Muitas vezes vamos descobrir que os incrédulos, tanto instruídos como não
instruídos, tomam a ofensiva contra o cristianismo antes de terem se
familiarizado com o que estão falando. No lugar da pesquisa e da avaliação
honesta das evidências disponíveis sobre algum aspecto da Bíblia, muitos
incrédulos optam pela conjectura pessoal sobre o que lhes “parece provável”.
Por exemplo, desde que a Bíblia foi supostamente escrita tantas
centenas de anos atrás, “parece provável” para muitos incrédulos que nós não
podemos confiar no texto da Bíblia que temos em nossas mãos hoje.
Certamente os escribas alteraram e suplementaram o texto original a tal ponto
que não podemos estar certos do que foi realmente escrito por Moisés,
Jeremias, João ou Paulo (se é que esses personagens realmente foram os
autores); até onde sabemos, o que lemos nas nossas Bíblias veio da pena de
algum monge da “idade das trevas”! Esse tipo de crítica ignorante parece ser
intelectualmente sofisticado para alguns incrédulos. Afinal de contas, na
nossa experiência humana natural, mensagens que são passadas de um
locutor para outro geralmente ficam truncadas, distorcidas ou aumentadas,
não é o mesmo?
Para os incrédulos que raciocinam dessa forma (sobre este ou muitos
outros assuntos relacionados à Bíblia), não devemos cansar de apontar que
eles estão se baseando na conjectura, não na pesquisa. Pode “parecer
provável” que o texto bíblico não seria mais confiável ou autêntico depois de
todos esses anos, mas essa “probabilidade” é uma avaliação que se baseia no
preconceito. O primeiro preconceito é a suposição de que o texto bíblico não
é diferente de qualquer outro documento escrito que encontramos em nossa
experiência humana natural ao longo da história ─ o que, claro, é uma
petição de princípio no próprio fundamento daquilo que o crente e o
incrédulo estão argumentando! Se a Bíblia é, como ela afirma, a palavra
inspirada do Deus Todo-Poderoso, a história da sua transmissão textual pode
muito bem ser totalmente diferente da de outros documentos humanos, já que
Deus teria ordenado que seu texto fosse preservado com maior integridade do
que o texto dos livros comuns.
A segunda indicação de preconceito é que o incrédulo não oferece
qualquer evidência concreta de que (digamos) algum monge medieval
adulterou o texto antes de nós hoje. Esse tipo de observação é simples e
arbitrariamente levantado como uma hipótese que deve ser endossada pela
sua “probabilidade” em vez de suas credenciais empíricas. Claro, se
queremos seguir por esse caminho, poderíamos ─ com igual arbitrariedade ─
conjecturar que as palavras que nos chegaram como sendo de Paulo foram na
verdade escritas não anos depois, mas anos antes da época de Paulo! A
arbitrariedade é um amigo volúvel do estudioso. Livres de qualquer demanda
por evidência, poderíamos acreditar em qualquer número de coisas
conflitantes.
A terceira indicação de preconceito na crítica do incrédulo é que ele
não leva em conta a evidência real que está publicamente disponível sobre o
texto da Escritura. Se o crítico tivesse separado um tempo para considerar
esse aspecto, não teria feito a estranha avaliação de que o texto bíblico não é
confiável. Isso me influenciou sobremaneira após ter feito um curso avançado
sobre Platão na pós-graduação, um curso que levou em conta a crítica textual
do corpo literário das obras de Platão. Nosso mais antigo manuscrito
existente de uma obra de Platão data bem antes de 900 D. C. (“Oxford B”,
encontrado num monastério de Patmos por E. B. Clarke), e devemos lembrar
que Platão é pensado como tendo escrito cerca de 350 anos antes de Cristo ─
deixando-nos assim com uma diferença de mais de doze séculos. Por
contraste, os primeiros fragmentos do Novo Testamento datam menos de 50
anos após a escrita original; a maior parte dos nossos manuscritos existentes
mais importantes remontam a 200-300 anos após a composição original. O
texto do Novo Testamento é notavelmente uniforme e bem estabelecido. A
confiabilidade do texto do Antigo Testamento foi demonstrada pela
descoberta dos Manuscritos do Mar Morto.
A precisão e autenticidade geral do texto bíblico é bem conhecida dos
estudiosos. Frederick Kenyon concluiu: “O cristão pode tomar a Bíblia inteira
em suas mãos e dizer sem medo ou hesitação que defende estar nela a
verdadeira Palavra de Deus, transmitida sem nenhuma perda essencial de
geração a geração, ao longo dos séculos”.[26] Avaliações como essa de
estudiosos competentes poderiam ser facilmente multiplicadas ─ o que
apenas acaba mostrando o preconceito que opera no pensamento dos
incrédulos que descuidadamente criticam a Bíblia por “muito provavelmente”
ter um texto duvidoso.
Quando defendemos a nossa fé cristã, então, devemos estar
constantemente atentos com a forma como o raciocínio dos incrédulos
repousa sobre a conjectura preconceituosa. Ele surge repetidamente. Já ouvi
até mesmo algumas pessoas vociferarem a opinião radical de que “nós não
temos nenhuma base histórica ou literária para acreditar que Jesus até mesmo
existiu”! Você consegue identificar as indicações óbvias de preconceito aqui?
Essa crítica simplesmente toma como certo que a Bíblia mesma não deve ser
tomada, de nenhuma forma, como uma fonte literária de informação histórica
─ contrariando a prática geral de até mesmo historiadores incrédulos do
mundo antigo. Ademais, essa crítica não mostra familiaridade com as alusões
seculares a Jesus na literatura antiga ─ como a referência feita pelo
historiador romano Tácito a “Christus” que sofreu “a penalidade extrema…
nas mãos de um de nossos procuradores, Pôncio Pilatos” (Anais 15.44), ou a
referência do historiador judeu Josefo a Tiago “o irmão de Jesus, que é
chamado Cristo” (Antiguidades 20:9), etc. Críticas como essa acabam
normalmente nos dizendo mais sobre o crítico (por ex., seus preconceitos, o
que ele não está lendo) do que sobre o objeto da sua crítica.
Houve uma época em que os críticos ridicularizavam o Antigo
Testamento por ele mencionar uma tribo de pessoas, os hititas, que (ainda)
era desconhecida fora da Bíblia; essas falhas presumidas no registro bíblico
eram consideradas uma razão para torná-lo inútil como um documento
histórico ─ até que monumentos e artefatos hititas começaram a ser
descobertos por aí ─ Archemish por arqueólogos, começando em 1871. A
civilização hitita é hoje uma das culturas mais bem conhecidas do mundo
antigo!
A arqueologia tem vez após vez provado ser inimiga dos críticos da
Bíblia, desenterrando seus preconceitos negativos e confirmando a precisão
das Escrituras em particularidades históricas. H. M. Orlinsky escreveu:

“Cada vez mais a antiga visão de que os dados bíblicos eram suspeitos e até
prováveis de serem falsos, a não ser que corroborados por fatos
extrabíblicos, está dando lugar a uma visão que sustenta que, em geral, os
relatos bíblicos são mais prováveis de serem verdadeiros do que
falsos…”[27]

Até mesmo um árbitro tão antipático como a revista Time, em um artigo


intitulado “Quão verdadeira é a Bíblia?”, teve de admitir:

“Depois de mais de dois séculos enfrentando as mais pesadas armas


científicas que poderiam ser mobilizadas, a Bíblia sobreviveu ─ e talvez
seja melhor para o cerco. Mesmo nos próprios termos dos críticos ─ o fato
histórico ─, as Escrituras parecem mais aceitáveis agora do que eram
quando os racionalistas começaram o ataque”.[28]

O simples ponto que eu quero desenvolver aqui é que os apologistas precisam


estar preparados para expor as conjecturas preconceituosas dos incrédulos
quando elas aparecerem. Muitas das preconcepções negativas mantidas por
aqueles que criticam a Bíblia ou o cristianismo se provam arbitrárias ou
constrangedoras, quando colocadas contra a parede; essa pressão deve ser
humilde, mas aplicada com confiança. Há um grande número de pessoas que
rejeitam as Escrituras com base em coisas, no fim das contas, sobre as quais
não estão realmente familiarizadas ou não são versadas. Devemos apontar
quão insensato é se basear no preconceito e na conjectura em qualquer área ─
mas especialmente quando se trata de questões de consequências eternas.
Quanto mais as pessoas conhecerem “os fatos” sobre o texto e os relatos
históricos da Bíblia, menos provável será rejeitarem o livro.

Predisposição filosófica indisputada


Outra ferramenta que o apologista pode usar ao argumentar com aqueles que
são críticos da mensagem bíblica é expor os pré-compromissos filosóficos do
crítico que foram tomados como certos ao invés de abertamente debatidos e
defendidos. Aqui está ainda outro indicador amplo de como os incrédulos
falham em serem racionais na sua abordagem.
Considere o seguinte. Mesmo que suficiente evidência externa e
corroborante a partir da crítica textual, da arqueologia e das ciências
relacionadas estivesse disponível para autenticar todos os dados ordinários
(linguísticos, culturais, cronológicos, etc.) que encontramos na literatura da
Escritura, ainda restariam características importantes ─ na verdade, as
características mais importantes ─ da narrativa bíblica nas quais os incrédulos
conscientes acabariam intelectualmente tropeçando. Não apenas lemos sobre
os hititas, sobre lugares elevados, casas, batalhas militares, migrações e
casamentos na Bíblia, mas também nos deparamos com curas, ferros de
machado flutuantes, carros de fogo, água transformada em vinho, nascimento
virginal e ressurreições. Quando os incrédulos leem sobre eventos milagrosos
na Bíblia, sua primeira inclinação é dizer que essas coisas não podem
acontecer, desacreditando assim o relatório escrito delas. “Todos nós
sabemos que as pessoas não podem andar sobre a água; assim, essa história
deve ter sido inventada”.
Cada um de nós está familiarizado com essa linha de raciocínio. Nós
mesmos a seguimos no caixa do supermercado quando vemos a fantástica
manchete do tabloide (“Mulher dá à luz a seu próprio pai!”). O argumento
implícito é que essas coisas são impossíveis e, portanto, não poderiam ter
acontecido. Os incrédulos descartam de antemão a possibilidade de eventos
milagrosos e, à luz dessa premissa implícita, lançam um olhar duvidoso sobre
a narrativa bíblica. “Jesus não ressuscitou dos mortos porque todos nós
sabemos que mortos não ressuscitam”. Os incrédulos facilmente assumem
que as pessoas que vivem no século XX iluminado, científico, não podem
aceitar as superstições, mitos e contos de fada da Bíblia. Afinal de contas, nós
usamos refrigeradores e computadores hoje!
Para conduzir seu pensamento de forma totalmente racional, no entanto,
os incrédulos que duvidam da narrativa bíblica dos milagres devem fazer uma
pausa para reconhecer e escrutinar sua premissa-controle. “Nós sabemos que
milagres são impossíveis.” Nós sabemos isso? Os incrédulos acham que
sabem que esses eventos não podem ocorrer porque, tendo uma perspectiva
científica, estão convencidos de que toda a natureza opera de uma forma
previsível, legiforme. “Os milagres seriam contrários às regularidades da
nossa experiência ordinária, não seriam previsíveis”, protestam eles ─ ao que
o apologista astuto deve responder: “Mas não é esse justamente o ponto?”. Se
os milagres não fossem extraordinários, não seriam milagres.
A predisposição do incrédulo contra eventos extraordinários precisa ser
desafiada pelos seus fundamentos racionais. Será que o incrédulo sabe que
toda a natureza opera de maneira legiforme? Que nunca pode haver
exceções? É muita coisa para saber, envolvendo percepções sobre a própria
natureza da realidade e os limites metafísicos da possibilidade. Que
justificação o incrédulo tem para os seus pontos de vista aqui? Se, em vez
disso, a cosmovisão cristã é verdadeira, os milagres não são de antemão um
problema filosófico; um Criador e Governador todo-poderoso do mundo
certamente poderia fazer coisas que estão além das regularidades ordinárias
da experiência humana e lhe são contrárias ─ como ressuscitar mortos.
Rejeitar a Bíblia por causa do seu relato de milagres é, assim, filosoficamente
uma petição de princípio.
O problema aqui não é que os críticos do cristianismo têm
pressuposições filosóficas que eles trazem para as evidências e usam no seu
raciocínio. Isso é inevitável, para qualquer um ─ quer incrédulo, quer crente.
A ideia de que nós podemos ser caracterizados pela neutralidade filosófica na
academia e na argumentação é ingênua e irrealista; de fato, eu argumentaria
que ela é impossível. O problema não é que os incrédulos têm suas
pressuposições, mas sim que eles frequentemente não reconhecem essas
pressuposições por aquilo que são e não oferecem nenhuma garantia ou
defesa para elas ─ especialmente em contraposição às pressuposições
conflitantes das outras pessoas (como os cristãos).
Obviamente, os crentes e os incrédulos abordam o registro bíblico dos
milagres com diferentes suposições de controle sobre o que é possível, sobre
a existência e o poder de Deus, sobre a intervenção de Deus no mundo, etc.
Parte da tarefa da apologética é revelar o caráter e a função dessas
pressuposições conflitantes na discussão entre os cristãos e os não cristãos. O
debate não deve, claro, terminar nesse ponto, como se ficássemos num
impasse intelectual insolúvel em meio a perspectivas filosóficas últimas. O
passo seguinte envolve argumentação e comparação acerca das
pressuposições (ou cosmovisões) opostas do crente e do incrédulo, levando-
nos assim para mais perto do cerne da apologética filosófica como discutido
em estudos anteriores. Somente a cosmovisão cristã dá sentido à lógica,
ciência, moralidade, etc., para as quais ambos os lados da disputa apelam ─
para não dizer que só ela, de fato, dá sentido ao próprio processo de
raciocínio e argumentação.

Pecados intelectuais-chave
A primeira ferramenta de raciocínio apologético que temos considerado é a
de apontar para a conjectura preconceituosa em que os incrédulos facilmente
caem quando procuram uma maneira de questionar a verdade do cristianismo.
Uma segunda ferramenta a ser usada na apologética é expor a predisposição
filosófica indisputada que está geralmente embalada na crítica gerada pelos
incrédulos.
Ao utilizar artifícios como esses, o apologista procura desvelar as
“pressuposições” do incrédulo que determinam (involuntariamente ou às
vezes conscientemente) as conclusões que ele irá alcançar. Estamos
constantemente à procura de suposições cruciais e indisputadas.
Em outros momentos o apologista terá de desafiar não simplesmente a
natureza das pressuposições do incrédulo, mas o fato de que essas
pressuposições são arbitrárias ou inconsistentes. Na verdade, esses são
precisamente os dois pecados-chave para qualquer estudioso: a arbitrariedade
no seu pensamento ou a incoerência entre diferentes aspectos do seu
pensamento (e da sua viva). Os defensores da fé jamais devem se cansar de
apontar isso.
Se as pessoas são autorizadas a acreditar simplesmente em qualquer
coisa que quiserem com base na pura conveniência, tradição ou preconceito,
elas abandonaram o curso da racionalidade, que exige ter uma boa razão para
as coisas em que acreditamos e fazemos. Por outro lado, se as pessoas são
autorizadas a afirmar (ou a confiar em) certas premissas, só para mais tarde
abandonar ou contradizer essas mesmas premissas, elas violaram as
exigências fundamentais do raciocínio sólido. Em ambos os casos o
pensamento e as crenças de uma pessoa se tornam imprevisíveis e não
confiáveis.

Pressuposições que não são compatíveis umas com as outras


Quando falamos com os incrédulos sobre suas visões ─ especialmente sua
cosmovisão ─ devemos ser especialmente sensíveis para ouvir ou discernir
quais são as suposições-controle deles sobre a natureza da realidade
(metafísica), sobre a natureza do conhecimento (epistemologia) e sobre o que
é certo ou errado no comportamento humano (ética).
Embora nem todo mundo pense de forma clara e específica sobre essas
questões no abstrato (de acordo com princípios subjacentes), e embora nem
todo mundo seja capaz de afirmar abertamente e explicitamente quais são as
suas suposições operantes, todo mundo utiliza alguma perspectiva básica
sobre a realidade, o conhecimento e a conduta. Como podemos dizer, todo
mundo “faz” filosofia, mas nem todo mundo a faz bem ─ nem todo mundo
reflete autoconscientemente sobre essas questões e procura ter uma
perspectiva coerente e consistente.
Assim, os cristãos devem aprender a ouvir atentamente o que os críticos
da fé estão dizendo e procurar identificar o que está sendo simplesmente
assumido pelo crítico. Devemos apontar e então analisar e criticar as
pressuposições dos nossos oponentes. Pela própria natureza do caso, o
conflito entre o incrédulo obstinado e o crente fiel se reduzirá a uma questão
envolvendo suas diferentes pressuposições.
Quando identificamos as pressuposições do incrédulo, vemos caso após
caso (na verdade em todos os casos, em última análise) que o incrédulo tem
uma tensão não gerenciada e insolúvel entre as suas suposições operantes.
Suas crenças básicas sobre a realidade, ou sobre o conhecimento, ou sobre a
ética não são compatíveis umas com as outras ─ não funcionam
harmoniosamente umas com as outras ou se contradizem diretamente.
Consideremos abaixo uma série de exemplos simples disso.
(1) Tensão dentro da perspectiva ética de uma pessoa: Imagine que o
seu vizinho expressa uma perspectiva que pode ser resumida nas palavras de
um conhecido comercial de cerveja: “Só se vive uma vez na vida; assim, vá
atrás de todo prazer que puder obter!”. Isto é, o prazer é o valor principal na
vida, e não nenhuma prestação de contas pela nossa conduta após esta vida.
Por outro lado, imagine que esse mesmo vizinho expressa indignação sobre
uma ocorrência bem documentada de brutalidade policial, ou sobre a
opressão e invasão de uma nação mais fraca por algum tirano, ou sobre penas
leves contra estupradores, ou sobre subornos aceitos por oficiais do governo,
ou sobre ódio e discriminação racial, etc. (faça a sua escolha). Estas duas
visões ─ que o prazer é o valor mais elevado, mas a brutalidade (etc.) deve
ser condenada ─ expõe uma tenção conceitual dentro do pensamento do seu
vizinho. Ele não está sendo consistente. Afinal, se policiais, estupradores,
tiranos (etc.) obtêm prazer com o que estão fazendo para os outros, eles
devem, na hipótese do seu vizinho (“ir atrás de todo prazer que puder obter”),
exercer essas mesmas atividades contra as quais seu vizinho se volta e
condena.
(2) Tensão dentro da perspectiva epistemológica de uma pessoa:
Imagine que você tem um amigo que é crítico da sua fé cristã, dizendo que
você é supersticioso e crédulo. De acordo com ele, não devemos acreditar em
nada que não seja verificado (ou verificável) pela observação ou, mais
amplamente, pelas nossas percepções sensoriais: traduzindo em miúdos, “ver
para crer”. O problema dos cristãos, no entender dele, é que eles creem em
coisas simplesmente com base na suposta autoridade de Deus (falando na
Bíblia). Então você discute isso melhor com o seu amigo. Você pergunta
como ele veio a ser da opinião de que o conhecimento está limitado à
observação. Ele explica que esteve fazendo um curso na faculdade local (ou
lendo um livro na biblioteca), e o professor (autor) o convenceu de que, para
determinar o que acreditar neste mundo, só podemos confiar em nossos
sentidos. Você localiza a tensão imediatamente! Seu amigo critica os cristãos
por crerem em coisas não pela verificação observacional, mas sob a
autoridade de outrem (Deus) ─ e, todavia, ele próprio veio a crer no que faz
não pela verificação observacional, mas sob a autoridade de outrem (seu
professor)!
Na verdade, a tensão no pensamento dele é ainda pior.
Independentemente de como ele chegou à sua visão de que o conhecimento
está limitado à observação, essa visão em si é autocontraditória. Imagine
algumas coisas que nós conhecemos e podemos verificar pelo uso dos nossos
sentidos. Eu sei que há um pássaro cantando do lado de fora da minha janela.
Eu sei que o fogo é quente. Eu sei que a malária é aliviada pelo quinino. Eu
sei que meu filho cortou a grama. E eu sei dessas coisas porque as percebi
(ou poderia tê-las percebido) com os meus próprios sentidos. Ora, o que dizer
disso? Seu amigo alega saber que o conhecimento está limitado à observação.
Será que ele tem alguma percepção sensorial dessa pretensa verdade (como
tenho quando vejo meu filho cortando a grama)? É claro que não. Ele não
poderia “observar” uma limitação conceitual, muito menos uma limitação
universal. Ele não “viu” que todo conhecimento está limitado ao que nós
podemos ver. Portanto, há uma contradição insolúvel no pensamento do seu
amigo.
(3) Tensão dentro da perspectiva metafísica de uma pessoa: Imagine
que seu professor na escola ensina uma visão behaviorista do homem,
alegando que todo comportamento humano é determinado por fatores
antecedentes (particularmente condicionamentos estímulo-resposta) e será
previsível se conhecermos todos esses fatores. Em última análise e em
princípio, argumenta o professor, o livre-arbítrio humano é uma ilusão. Todos
nós pensamos e fazemos o que fomos condicionados a pensar e a fazer, dados
os vários fatores do nosso ambiente. Imagine também que quando chega a
hora de você realizar o exame final no curso desse professor, você trapaceia
no exame e é flagrado pelo professor. Ele fica indignado e insiste em aplicar
uma punição severa (digamos, ser reprovado no curso). Se ele faz isso, expõe
um conflito aberto nas suas visões da natureza humana, não é mesmo? Ao
punir você, ele assume que você era livre para escolher a forma como lidar
com o teste: você poderia estudar muito e se preparar para responder às
questões sozinho, ou poderia mais eficientemente “pegar carona” no esforço
despendido no teste pelo estudante de cujo papel você copiou. Se você não
poderia deixar de fazer o que fez ─ dado o seu condicionamento prévio e as
variáveis do seu ambiente ─, não teria sentido puni-lo por fazer o que
previsivelmente fez. No entanto, isso é precisamente o que o professor
ensinou a você na sala de aula sobre a natureza humana, em primeiro lugar.
(4) Tensão entre a epistemologia e a metafísica de uma pessoa: Imagine
que você tenha um colega de trabalho que se formou na faculdade e se
imagina um intelectual em matéria de religião. De acordo com ele, não existe
nenhum Deus e nenhum reino espiritual (ou eventos espirituais, forças
espirituais), qualquer que seja. Este mundo físico é tudo o que existe na
realidade. Além disso, esse colega acha intelectualmente impossível aceitar a
perspectiva cristã porque ela contém o que ele considera contradições lógicas
em si (digamos, que Deus é um, mas também três, ou que Deus é amoroso e
todo-poderoso, mas há mal no mundo). De acordo com ele, nada que
possamos conhecer como sendo verdadeiro pode conflitar com as leis da
lógica. O problema velado no pensamento do nosso colega é que sua visão da
realidade (metafísica) não é compatível absolutamente com sua visão do
conhecimento (epistemologia). Ele não pode estar simultaneamente e
consistentemente comprometido com as leis da lógica e com a visão de que a
realidade tem uma natureza unicamente física. E a razão é óbvia: as “leis da
lógica” não têm uma natureza física. Você não pode tocar ou saborear uma lei
da lógica; tampouco pode identificar essa lei com um instrumento sofisticado
desenvolvido por um físico. As leis da lógica não são físicas, e assim, a partir
da perspectiva do seu colega, as leis da lógica não são de forma alguma reais.

Falácias lógicas comuns


Acabamos de mencionar as leis da lógica (e como o materialismo as
impossibilita).[29] Porque as leis da lógica são tão importantes para a
argumentação e o raciocínio ─ precisamente do que a apologética trata, como
dissemos antes ─, devemos fazer uma pausa agora para nos familiarizar com
algumas das diretrizes mais comuns para o raciocínio. Uma defesa eficaz da
fé exigirá um uso hábil da lógica para enfrentar os desafios dos incrédulos e
refutar seus argumentos, bem como para fazer uma crítica interna da própria
perspectiva básica do incrédulo.
Lógica é o estudo das linhas corretas (confiáveis) e incorretas (não
confiáveis) do raciocínio ou da argumentação. O lógico está preocupado em
aprender que (a) tipos de premissas ou (b) padrões de inferência podem ser
invocadas que levem à verdade nas conclusões de uma pessoa. Quando
consideramos os tipos de premissas que são utilizadas num argumento
formulado em uma conversa informal (nas “línguas naturais” como o inglês,
alemão, chinês, etc.), diz-se que estamos lidando com a lógica informal ─ não
porque ela é de alguma forma casual, mas porque ela não se preocupa com as
linguagens “formais” (sistemas de símbolos, conectivos, etc.). A lógica
formal, como o próprio nome indica, está preocupada com as formas de
argumentação ou padrões de raciocínio (onde os predicados ou premissas
foram despidos do seu conteúdo particular e tornados abstratos ao se lhes
atribuir um sinal ou símbolo formal, como se faz na álgebra).
As falácias informais apontam para a não confiabilidade de certos tipos
de premissas em garantir a verdade das conclusões delas inferidas. Algumas
das falácias informais mais frequentes no raciocínio seriam as seguintes:

(1) Apoiar a conclusão no apelo ao sentimento popular;


(2) Apoiar a conclusão no apelo à emoção (pena, medo, etc.);
(3) Apoiar a conclusão no apelo contra (ou a favor de) uma pessoa,
autoridade, circunstâncias ou história de alguém que defende
determinada tese;
(4) Apoiar a conclusão no apelo a premissas que provam (no mínimo) algo
totalmente diferente;
(5) Apoiar a conclusão no apelo à ausência (ou ignorância) de premissas que
provam o contrário.

Em cada um dos tipos anteriores de raciocínio falacioso (1-5) a verdade


da premissa (ou premissas) usada num argumento é irrelevante para a
verdade da conclusão proposta. Mesmo admitindo a(s) premissa(s), a
conclusão não precisa necessariamente seguir dela(s); consequentemente,
essas linhas de pensamento não são confiáveis. Em outras formas de
raciocínio falacioso (6-10), a verdade da conclusão não segue confiavelmente
da(s) premissa(s) por causa do pensamento ambíguo ou confuso. Aqui estão
alguns exemplos comuns:

(6) Apoiar a conclusão no apelo a uma premissa (ou premissas) onde os


termos não estão sendo usados no mesmo sentido, ou onde questões
de gramática ou ênfase tornam o sentido (e, portanto, a verdade) da(s)
premissa(s) incerto;
(7) Apoiar a conclusão no apelo a uma premissa que é meramente a
reafirmação da conclusão ou assume a conclusão como certa;
(8) Apoiar a conclusão no apelo a uma premissa que é afirmada de maneira
excessivamente geral (que não reconhece qualificações importantes,
ou que é conhecida como verdadeira apenas num número limitado ou
conjunto atípico de casos);
(9) Apoiar a conclusão no apelo a uma premissa (ou premissas) de forma
que confunda os atributos das “partes” de algo com os atributos do
“todo”;
(10) Apoiar a conclusão no apelo a uma premissa (ou premissas) de forma
que confunda as conexões causal e temporal entre os eventos,
confunda diferentes tipos de “causação” ou ignore a complexidade das
causas para algo.

Finalmente, há os tipos de falácias informais no raciocínio (11-15)


que traem a parcialidade na mente ou no método da pessoa que propõe o
argumento em questão ou uma distorção dos fatos. Alguns exemplos disso
são:

(11) Apoiar a conclusão na incapacidade de alguém de oferecer uma só


resposta simples ou clara para uma pergunta complexa (levantando
mais de um problema), uma pergunta ardilosa (emocionalmente
carregada) ou uma pergunta enganosa (criando uma impressão falsa
ou desviando a atenção do assunto específico);
(12) Apoiar a conclusão numa escolha forçada entre duas alternativas que
são erroneamente apresentadas como as únicas opções;
(13) Apoiar a conclusão numa linha de raciocínio que evidencia o uso de um
padrão duplo ou alegação especial;
(14) Apoiar a conclusão numa comparação errada entre duas coisas (que se
parecem uma com a outra, mas num sentido irrelevante ou
insignificante);
(15) Apoiar a conclusão no equívoco de tratar atributos concretos ou séries
de eventos específicos como se fossem entidades em si mesmos
(abstração ou hipostatização metafórica).

Além dos quinze tipos acima de falácias informais no raciocínio, os


cristãos que desejam defender a fé de forma eficaz devem estar
familiarizados com as falácias formais comuns que são cometidas no
raciocínio e também com as linhas positivas mais eficazes ou frequentes de
argumentação que estão disponíveis. Por exemplo:

(16) A falácia de afirmar o consequente é cometida quando alguém afirma


uma premissa condicional (Se P, então Q), afirma o que está implicado (Q) e
conclui que isso prova o que leva a essa implicação (P). Esse padrão de
raciocínio não é confiável, como podemos ver a partir destes exemplos: “Se
Milton escreveu Hamlet, então Milton é um grande autor. Mas Milton é
realmente um grande autor. Portanto ele escreveu Hamlet”.
(17) A falácia de negar o antecedente é cometida quando alguém afirma
uma premissa condicional (Se P, então Q), nega a premissa da qual a
implicação é extraída (P) e conclui que o que foi dito estar implicado (Q) não
deve proceder. Esse padrão de raciocínio é tão inconfiável quanto aquele que
acabamos de examinar. Tome um exemplo: “Se Castro atirou em Kennedy,
então Castro é um canalha. Mas Castro não atirou em Kennedy. Portanto ele
não é um canalha”.
(18) Uma forma muito valiosa de argumentação, conhecida como
“silogismo disjuntivo”, segue da seguinte maneira: você primeiro demonstra
a premissa de que (pelo menos) uma de duas proposições é verdadeira: P ou
Q. A seguir, prova que uma dessas proposições não é verdadeira (isto é,
demonstra não Q). A partir dessas duas premissas, pode-se validamente
inferir que a proposição P deve ser verdadeira. Exemplo: “Samantha
envenenou o chá, ou seu marido cometeu suicídio. Mas Samantha não
envenenou o chá. Portanto seu marido deve ter cometido suicídio”.
(19) Outra linha persuasiva de raciocínio (quando usada com cautela) é
conhecida como argumentar “a fortiori” ─ argumentar do caso menor para o
caso maior. Se alguém entende corretamente a natureza da grandeza que é
dito ser aumentada, o raciocínio do caso menor para o caso maior pode ser
muito penetrante. “Se Deus considera aqueles que nunca ouviram o
evangelho responsáveis, quanto mais julgará com severidade aqueles que
ouviram o evangelho, e abertamente o repudiaram.”
(20) Talvez a ferramenta mais poderosa de refutação que o apologista
pode usar é a linha de argumento conhecida como “reductio ad absurdum” ─
o projeto de reduzir a premissa particular ou posição geral do seu oponente ao
absurdo. Ao utilizar esse tipo de argumento, seu objetivo é mostrar que a
premissa do oponente implica uma conclusão que é sabidamente falsa. Sendo
este o caso, a premissa em questão também deve ser falsa. (Essa é uma regra
na lógica formal conhecida como “modus tollens”: a partir de “Se P, então Q”
e da adição de “não Q”, resulta necessariamente a conclusão “não P”.) Aqui
está um exemplo: “Se não há nenhum princípio moral universal (como
defende o relativista), então é inválido uma cultura condenar as atividades de
outra cultura. Mas, certamente, é moralmente adequado condenarmos na
Alemanha as atrocidades nazistas contra os judeus (ou na Índia na
incineração forçada de uma viúva na pira do funeral do seu marido, etc.).
Portanto o relativismo não é verdadeiro”.

Comportamento que trai a crença declarada


Finalmente, para destacar uma ferramenta que é útil e necessária para o
apologista cristão, devemos mencionar que não é uma marca de racionalidade
a pessoa afirmar uma coisa, mas então viver o contrário dela. Isso pode ser
considerado um tipo de hipocrisia moral, mas é igualmente uma forma de
irracionalidade ou inconsistência ou tensão no raciocínio ─ visto que uma
crença está operando quando a pessoa afirma linguisticamente uma posição,
mas uma crença conflitante é evidente quando essa pessoa se comporta de
uma forma contrária a essa posição.
A vida do incrédulo está repleta dessa inconsistência. Ele irá pressupor
a dignidade humana e comparecerá a um funeral para homenagear um
parente ou amigo falecido, mesmo tendo antes argumentado que o homem
não é, em princípio, diferente de qualquer outro produto da evolução como
um cavalo ou cachorro. O incrédulo insistirá que o homem não passa de um
complexo de fatores bioquímicos controlados pelas leis da física ─ e em
seguida beijará sua esposa e seus filhos quando chegar em casa, como se
tivessem amor uns pelos outros. Ele argumentará que nas relações sexuais
“vale tudo” (não há absolutos morais) ─, mas então condena de forma
indignada molestadores de crianças ou repudia moralmente a necrofilia. Ele
irá sugerir que as coisas que acontecem no Universo acontecem
aleatoriamente ─ por “acaso” ─, mas então se voltará e buscará
regularidades, explicações legiformes de eventos e a uniformidade ou
previsibilidade nas coisas estudadas pela ciência natural. O não cristão não
tem uma cosmovisão viável, e expõe a fraqueza dela toda vez que se volta
para a sua vida.

Recapitulação
Deus não foi “parcimonioso” na sua provisão a nós de uma variedade de
ferramentas eficazes para responder às críticas dos incrédulos e refutar as
alegações das suas cosmovisões conflitantes. Ao lidar com o incrédulo, o
cristão deve estar alerta para apontar, no crítico,
(1) suas conjecturas preconceituosas,
(2) sua predisposição filosófica indisputada,
(3) pressuposições que não são compatíveis umas com as outras,
(4) falácias lógicas, e
(5) o comportamento que trai suas crenças declaradas.
Ao fazer isso, realizamos uma das tarefas-chave da apologética:
refutar desafios e oferecer uma crítica interna da posição a partir da qual
essas críticas surgem.
29. APOLOGÉTICA NA PRÁTICA

É hora de fornecer uma ilustração concreta ou aplicação prática dos


princípios e ferramentas para a defesa da fé cristã que foram discutidos em
nossos estudos anteriores. Manuais de treinamento sobre combate a incêndios
não apagam incêndios; mas o combate real a incêndios, sim. E quando tudo
foi dito e feito, não é a teoria de apologética que irá defender a fé e calar a
boca dos críticos. Só a prática da apologética poderá fazer isso.

Revisão

Vamos resumir o que foi dito até agora sobre a forma de abordar a tarefa da
apologética.
1. Engajar-se na apologética é uma necessidade moral para todos os crentes;
nós devemos estar “sempre preparados” para oferecer uma resposta
para a esperança que há em nós (1 Pedro 3.15);
2. Para evitar mal-entendidos, apontamos que a apologética não é:
(a) pugnaz,
(b) uma questão de persuasão ou
(c) baseada numa autoridade última diferente da teologia.
3. Para o cristão, a “razão” deve ser usada como uma ferramenta, não como
a autoridade última, em nosso pensamento.
4. Nossa reivindicação ante o mundo é que os crentes “sabem” que a Bíblia é
verdadeira ─ nós temos uma justificação adequada para acreditar nas
suas reivindicações.
5. O conflito entre crentes e incrédulos está em última análise nas suas
diferentes cosmovisões ─ estruturas de pressuposições em termos das
quais toda experiência é interpretada e o raciocínio guiado.
6. Consequentemente, precisamos argumentar a partir da “impossibilidade
do contrário”, mostrando que somente o cristianismo fornece as
precondições de inteligibilidade para o raciocínio e a experiência do
homem. Se o cristianismo não fosse verdadeiro, o incrédulo não
poderia provar ou entender nada.
7. Os incrédulos são autoenganados: eles conhecem a verdade sobre Deus,
mas a suprimem (racionalizando a evidência clara dentro e ao redor
deles).
8. O verdadeiro réu, intelectualmente e moralmente, é o incrédulo ─ não
Deus.
9. Há uma grande variedade de diferentes tipos de ataques contra o
cristianismo, e eles não podem ser tratados adequadamente por
defesas que repousem no:
(a) subjetivismo,
(b) relativismo ou
(c) ecletismo.
10. O apologista deve usar a argumentação. A argumentação santificada não
precisa ser contenciosa; descobrimos que a argumentação santificada
com os incrédulos é justificada pelo exemplo bíblico.
11. Uma argumentação afirma a verdade de uma proposição com base na de
outras.
12. A racionalidade na argumentação é mais ampla do que simplesmente
usar as regras de dedução silogística.
13. Deus quer que dominemos as ferramentas da racionalidade na defesa da
fé. Nossa tarefa é refutar os desafios dos incrédulos e oferecer uma
crítica interna da posição a partir da qual esses desafios surgem.
14. Os dois pecados intelectuais-chave que são cometidos pelas pessoas são:
(a) inconsistência e
(b) arbitrariedade.
15. Ao lidar com o incrédulo, o cristão deve estar alerta para apontar, no
crítico,
(a) suas conjecturas preconceituosas,
(b) sua predisposição filosófica indisputada,
(c) pressuposições que não são compatíveis umas com as outras,
(d) falácias lógicas e o comportamento que trai suas crenças
declaradas.

Procurando um incêndio para combater (Bertrand Russell)


Seria instrutivo e útil para os leitores podermos tomar a abordagem para a
apologética acima desenvolvida para colocá-la em uso num caso concreto.
Precisamos de um incêndio para apagar, seguindo as diretrizes do nosso
manual anterior de combate a incêndios.
Uma excelente oportunidade de praticar nossa defesa da fé cristã é
fornecida por um dos mais notáveis filósofos britânicos do século XX:
Bertrand Russell. Russell nos ofereceu um exemplo claro e incisivo de
desafio intelectual à veracidade da fé cristã ao escrever um artigo que
especificamente se destinava a mostrar que não devemos acreditar no
cristianismo. O título do seu famoso ensaio era “Por que não sou cristão”.[30]
Bertrand Russell (1872-1970) estudou matemática e filosofia na
Universidade de Cambridge e iniciou ali sua carreira de professor. Como
filósofo, escreveu obras respeitadas (sobre Leibniz, sobre a filosofia da
matemática e a teoria dos conjuntos, sobre a metafísica da mente e da
matéria, sobre problemas epistemológicos) e foi influente nos
desenvolvimentos da filosofia da linguagem no século XX. Ele também
escreveu extensivamente numa veia mais popular na literatura, educação e
política. A controvérsia o rodeava. Ele foi demitido pela Trinity College por
atividades pacifistas em 1916; foi preso em 1961 em conexão com uma
campanha pelo desarmamento nuclear. Suas visões sobre a moralidade sexual
contribuíram para a anulação da sua nomeação para ensinar na Universidade
da Cidade de Nova York em 1940. No entanto, Russell era altamente
respeitado como estudioso. Em 1944 ele voltou a ensinar em Cambridge, e
em 1950 se tornou o beneficiário do Prêmio Nobel de Literatura.
Apesar de toda a sua estatura como filósofo, não se pode dizer que
Russell tenha sido seguro de si e consistente nos seus pontos de vista sobre
realidade ou conhecimento. Nos primeiros anos ele adotou o idealismo
hegeliano ensinado por F. H. Bradley. Influenciado por G. E. Moore, mudou
para uma teoria platônica das ideias. Desafiado por Ludwig Wittgenstein de
que a matemática consiste meramente de tautologias, ele se voltou para o
atomismo metafísico e linguístico. Adotou o realismo extremo de Alexius
Meinong, para só mais tarde se voltar para o construcionismo lógico. Então,
seguindo a orientação de William James, Russell abandonou o dualismo
mente-matéria em favor da teoria do monismo neutro. Por fim, Russell
propôs o materialismo com fervor, apesar de sua insatisfação com seu
atomismo lógico anterior tê-lo deixado sem um relato metafísico alternativo
do objeto das nossas experiências empíricas. Lutando com problemas
filosóficos não muito diferentes daqueles que frustraram David Hume, Russel
reconheceu em seus últimos anos que a busca pela certeza é um fracasso.
Essa breve história da evolução filosófica de Russell é ensaiada para
que o leitor possa avaliar corretamente a força e a autoridade da plataforma
intelectual a partir da qual Russell ousaria criticar a fé cristã. O brilhantismo
de Russell não está em dúvida; ele era um homem talentoso e inteligente.
Mas a troco de quê? Ao criticar os cristãos por suas visões da realidade
última, de como sabemos o que sabemos e de como devemos viver a nossa
vida, tinha Bertrand Russell uma alternativa defensável a partir da qual lançar
seus ataques? De modo nenhum. Ele não podia dar uma justificativa da
realidade e saber ─ tendo como fundamento e de acordo com os critérios do
seu próprio raciocínio autônomo ─ qual delas era convincente, razoável e
segura. Ele não podia dizer com certeza o que era verdade sobre a realidade e
o conhecimento, mas estava, não obstante, firmemente convencido de que o
cristianismo era falso! Russell estava disparando uma arma descarregada.
Bertrand Russell não fazia segredo do fato de que intelectual e
pessoalmente desdenhava da religião em geral e do cristianismo em
particular. No prefácio ao livro dos seus ensaios críticos sobre o tema da
religião, ele escreveu: “Estou firmemente convencido de que as religiões são
nocivas, tanto quanto estou de que são falsas”.[31] Ele repetidamente acusa de
uma forma ou de outra que um homem livre que exerce sua capacidade de
raciocínio não pode se submeter a dogmas religiosos. Ele argumentou que a
religião era um obstáculo para a civilização, que ela não podia curar nossos
problemas e que nós não sobrevivemos à morte.
Somos apresentados a uma expressão desafiadora de materialismo
metafísico ─ talvez o ensaio mais notório de Russell para um público leitor
popular ─ no artigo (publicado pela primeira vez em 1903) intitulado “A
Adoração de um Homem Livre”. Ali ele conclui: “Breve e impotente é a vida
do homem; sobre ele e toda a sua raça cai lenta e certa a ruína negra e
impiedosa. Cega para o bem e o mal, desatenta à destruição, segue a matéria
onipotente o seu curso implacável”. Em face desse niilismo e subjetivismo
ético, Russell, todavia, chama os homens a um revigoramento da adoração do
homem livre: “adorar no santuário que suas próprias mãos construíram; não
intimidado pelo império do acaso…”.[32]
Esperançosamente a contradição descarada na filosofia de vida de
Russell já é evidente para o leitor. Ele afirma que nossos ideais e valores não
são objetivos e apoiados pela natureza da realidade; de fato, que eles são
fugazes e condenados à destruição. Por outro lado, bem ao contrário disso,
Russell nos encoraja a afirmar os nossos valores autônomos em face de um
Universo que não tem valores ─ a agir como se eles realmente equivalessem
a algo digno, fossem racionais e não meramente resultado do acaso. Mas,
acima de tudo, que sentido Russell poderia esperar dar a um valor imaterial
(um ideal) em face de uma “matéria onipotente” que é cega para os valores?
Russell só conseguiu dar um tiro no próprio pé.

Por que Russell disse que não poderia ser cristão


O ensaio “Por que não sou cristão” é o texto de uma palestra que Russell
realizou na Sociedade Secular Nacional em Londres em 6 de março de 1927.
É justo reconhecer, como Russell comentou, que restrições de tempo o
impediram de entrar em grandes detalhes ou dizer tanto quanto gostaria sobre
as questões que ele levantou na palestra. No entanto, o que ele disse já é
bastante suficiente para encontrarmos falhas.
Em termos gerais, Russell argumentou que não poderia ser cristão
porque:
(1) a Igreja Católica Romana está enganada ao dizer que a existência de
Deus pode ser provada pela razão pura;
(2) defeitos sérios no caráter e ensino de Jesus mostram que ele não era o
melhor e mais sábios dos homens, mas de fato moralmente inferior a
Buda e Sócrates;
(3) as pessoas aceitam a religião por motivos emocionais, particularmente
com base no medo, o que “não é digno de seres humanos que se
respeitam”; e que a religião cristã “foi e ainda é o principal inimigo do
progresso moral no mundo”.

Tensões internas
O que é extraordinário sobre esse rosário de queixas contra o cristianismo é a
inconsistência e a arbitrariedade de Russell. A segunda razão oferecida acima
pressupõe algum padrão absoluto de sabedoria moral pelo qual alguém
poderia nivelar Jesus como inferior ou superior aos outros. Da mesma forma,
a terceira razão pressupõe um critério fixo para o que é ou não é “digno” de
seres humanos que se respeitam. Então, novamente, a queixa expressa na
quarta razão não faz nenhum sentido a menos que seja objetivamente errado
ser um inimigo do “progresso moral”; na verdade, a própria ideia de
“progresso” moral assume um ponto de referência estabelecido para a
moralidade pelo qual se pode avaliar o progresso.
Ora, se Russell estivesse raciocinando e falando nos termos da
cosmovisão cristã, sua tentativa de avaliar a sabedoria moral, a dignidade
humana e o progresso moral ─ bem como de julgar negativamente
deficiências nessas matérias ─ seria compreensível e esperada. Os cristãos
têm um padrão de moralidade universal, objetivo e absoluto na palavra
revelada de Deus. Mas obviamente Russell não quis falar como se tivesse
adotado perspectivas e premissas cristãs! Com que base, então, poderia
Russell emitir suas avaliações e julgamentos morais? Em termos de qual
visão da realidade e do conhecimento ele assumiu que havia qualquer coisa
como um critério objetivo de moralidade do qual poderia considerar Cristo,
os cristãos e a igreja como estando aquém?
Russell foi embaraçosamente arbitrário a esse respeito. Ele
simplesmente assumiu, como uma predisposição filosófica indisputada, que
havia um padrão moral para aplicar e que ele poderia presumir ser o porta-
voz e juiz a aplicá-lo. Poderíamos facilmente rebater Russell ao simplesmente
dizer que ele escolheu arbitrariamente o padrão errado de moralidade. Por
questão de justiça, os oponentes de Russell devem poder usar tanta
arbitrariedade como ele na escolha de um padrão moral, e podem então
escolher um padrão diferente do dele. E assim o argumento dele cai por terra.
Ao assumir a prerrogativa de emitir julgamentos morais, Russell
evidenciou que suas próprias pressuposições não são compatíveis umas com
as outras. Ao oferecer um juízo de valor condenatório contra o cristianismo,
Russell se envolveu num comportamento que traiu suas crenças professas em
outro lugar. Em sua palestra, Russell professou que este era um mundo de
acaso que não mostra nenhuma evidência de desígnio, onde as “leis” não são
nada mais do que médias estatísticas que descrevem o que aconteceu. Ele
professou que o mundo físico pode ter sempre existido e que a inteligência e
a vida humana surgiram da forma explicada por Darwin (seleção natural
evolucionista). Nossos valores e esperanças são o que “nossa inteligência
pode criar”. Permanece o fato de que, segundo “as leis ordinárias da ciência,
você tem de supor que a vida humana… neste planeta se extinguirá no devido
tempo”.
Isso simplesmente equivale a dizer que os valores humanos são
subjetivos, fugazes e autocriados. Em suma, são relativos. Mantendo esse
tipo de visão de valores morais, Russell foi totalmente inconsistente ao agir
como se pudesse assumir um tipo completamente diferente de visão de
valores, declarando uma avaliação moral absoluta de Cristo ou dos cristãos.
Um aspecto da rede de crenças de Russell tornou um outro aspecto do seu
conjunto de crenças ininteligível.
O mesmo tipo de tensão interna dentro das crenças de Russell é
evidente acima no que ele tinha a dizer sobre as “leis” da ciência. Por um
lado, essas leis são meramente descrições do que aconteceu no passado, diz
Russell. Por outro lado, Russell falou das leis da ciência como fornecendo
uma base para projetar o que vai acontecer no futuro, a saber, a decadência do
sistema solar. Esse tipo de dança dialética entre visões conflitantes da lei
científica (falando epistemologicamente) ou entre visões conflitantes da
natureza do cosmo físico (falando metafisicamente) é característico do
pensamento incrédulo. Esse pensamento não está em harmonia consigo
mesmo e é, portanto, irracional.

“Razão pura”
Na primeira razão dada por Russell para o porquê de não ser cristão, ele
aludiu ao dogma da Igreja Católica Romana de que “a existência de Deus
pode ser provada pela razão pura”.[33] Ele então se volta para alguns dos
argumentos mais populares apresentados para a existência de Deus que estão
(supostamente) baseados nessa “razão pura” e facilmente descobre serem
insatisfatórios. Não é necessário dizer, claro, que Russell pensava estar
derrotando esses argumentos de razão pura por meio da sua própria razão
pura (superior). Russell não discordava de Roma em que o homem pode
provar coisas com a sua “razão natural” (à parte da obra sobrenatural da
graça). De fato, ao final da sua palestra, ele conclamou seus ouvintes a “uma
perspectiva destemida e inteligência livre”. Russell simplesmente discordava
que a razão pura levasse alguém a Deus. De diferentes formas, e com
diferentes conclusões finais, tanto a Igreja Romana como Russell
encorajavam os homens a exercerem sua capacidade de raciocínio
autonomamente ─ à parte do fundamento e das restrições da revelação divina.
O apologista cristão não deve deixar de expor esse compromisso com a
“razão pura” por conta da predisposição filosófica indisputada que isso
representa. Ao longo de sua palestra, Russell simplesmente toma como certo
que a razão autônoma permite ao homem saber coisas. Ele fala livremente do
seu “conhecimento do que os átomos realmente fazem”, do que “a ciência
pode nos ensinar” e de “certas falácias bem definidas” cometidas em
argumentos cristãos, etc. Mas isso simplesmente não é aceitável. Como
filósofo, Russell deu a si mesmo um passe livre; ele hipocritamente deixou de
ser tão autocrítico no seu raciocínio quanto rogou que os outros o fossem
consigo mesmos.
O problema persistente que Russell simplesmente não enfrentou é que,
com base no raciocínio autônomo, o homem não pode dar uma explicação
adequada e racional do conhecimento que adquirimos através da ciência e da
lógica. O procedimento científico assume que o mundo natural opera de
maneira uniforme, em cujo caso nosso conhecimento observacional de casos
passados fornece uma base para predizer o que vai acontecer em casos
futuros. No entanto, a razão autônoma não tem base alguma para acreditar
que o mundo natural irá operar de maneira uniforme. O próprio Russell
afirmou (às vezes) que este é um Universo do acaso. Ele jamais poderia
reconciliar essa visão da natureza sendo aleatória com sua visão de que a
natureza é uniforme (como a “ciência” pode nos ensinar”).
Assim acontece com o conhecimento e uso das leis da lógica (em
termos das quais Russell definitivamente insistiu que as falácias devem ser
evitadas). As leis da lógica não são objetos físicos no mundo natural; elas não
são observadas pelos sentidos do homem. Além do mais, as leis da lógica são
universais e imutáveis ─ ou do contrário elas se reduzem a preferências
relativistas para o pensamento em vez de requisitos prescritivos. No entanto,
o raciocínio autônomo de Russell não poderia explicar ou justificar essas
características das leis lógicas. A razão pura de um indivíduo está limitada ao
escopo do uso e das experiências dela, em cujo caso ela não pode se
pronunciar sobre o que é universalmente verdadeiro (descritivamente). Por
outro lado, a razão pura de um indivíduo não está em nenhuma posição de
ditar (prescritivamente) leis universais do pensamento ou nos assegurar de
que essas estipulações para a mente se provarão de alguma forma aplicáveis
ao mundo do pensamento ou da matéria fora da mente do indivíduo.[34]
A cosmovisão de Russell, mesmo à parte das suas tensões internas, não
poderia fornecer um fundamento para a inteligibilidade da ciência ou da
lógica. A razão “pura” de Russell não poderia justificar o conhecimento que
os homens prontamente ganham no Universo de Deus, um Universo
soberanamente controlado (e por isso uniforme) e interpretado à luz da mente
revelada do Criador (e por isso existem leis imateriais do pensamento que são
universais).

Conjectura preconceituosa e falácias lógicas


Devemos notar, por fim, que a posição de Russell contra ser cristão está
sujeita à crítica por causa de sua dependência da conjectura preconceituosa e
de falácias lógicas. Sendo esse o caso, não se pode pensar que Russell
demonstrou suas conclusões ou deu uma boa razão para a sua rejeição do
cristianismo.
É de espantar, por exemplo, que o mesmo Russell que poderia ser cheio
de escárnio com cristãos do passado por causa da ignorância e falta de
erudição deles poderia sair a dizer algo tão ignorante e impreciso como isto:
“Historicamente é bastante duvidoso que Cristo tenha mesmo existido, e se
de fato existiu, não sabemos nada sobre ele”. Mesmo ignorando as
referências seculares a Cristo no mundo antigo, a observação de Russell
simplesmente ignora os documentos do Novo Testamento como testemunhos
iniciais e autênticos da pessoa histórica de Jesus. Dada a relativa pouca idade
desses documentos e o número relativamente grande deles, se Russell
“duvidava” da existência de Jesus Cristo, ele deve ou ter aplicado um
evidente padrão duplo em seu raciocínio histórico, ou sido um agnóstico
sobre virtualmente toda a história antiga. Qualquer que seja o caso, obtemos
uma percepção da natureza preconceituosa do pensamento de Russell quando
se tratava de considerar a religião cristã.
Talvez a falácia lógica mais óbvia na palestra de Russell aparece na
forma como ele prontamente se desloca de uma avaliação das crenças cristãs
para uma crítica aos crentes cristãos. E ele deve ter sabido mais. Bem no
início da sua palestra, Russell disse: “Por cristão, não me refiro a qualquer
pessoa que tente viver de maneira decente e de acordo com sua ótica. Acho
que você deve ter certa quantidade de crenças definidas antes de se achar no
direito de se chamar cristão”. Isto é, o objeto da crítica de Russell deveria ser,
pelo próprio testemunho de Russell, não o estilo de vida dos indivíduos, mas
as reivindicações doutrinárias que são essenciais para o cristianismo como
um sistema de pensamento. A abertura da sua palestra foca na sua
insatisfação com essas crenças (a existência de Deus, a imortalidade, Cristo
como o melhor dos homens).
No entanto, mais para o final da sua palestra, a discussão de Russell faz
uma inflexão para falaciosamente argumentar contra os defeitos pessoais dos
cristãos (impingir regras restritivas contrárias à felicidade humana) e a
suposta gênese psicológica das suas crenças (na emoção e no medo). Isto é,
ele cede à falácia de argumentar ad hominem. Ainda se o que Russel tivesse a
dizer nessas questões fosse justo e preciso (não é), permaneceria o fato de
que Russell desceu para o nível de argumentar contra uma reivindicação de
verdade com base em seu desgosto pessoal e psicologização daqueles que
pessoalmente professam essa reivindicação. Em outros cenários, Russell o
filósofo teria sido o primeiro a criticar um estudante por fazer algo assim.
Isso não é nada menos que uma falácia lógica vergonhosa.
Observe brevemente outros defeitos na linha de pensamento de Russell
aqui. Ele presumiu saber a motivação de uma pessoa em se tornar cristã ─
muito embora a epistemologia de Russell não desse a ele nenhuma garantia
para achar que poderia discernir essas coisas (sobretudo com facilidade e à
distância). Ademais, Russell presumiu saber a motivação de toda uma classe
de pessoas (incluindo aquelas que viveram há muito tempo) baseado numa
amostra muito, muito pequena da sua própria experiência atual. Essas são
pouco mais do que generalizações precipitadas e infundadas que só nos falam
(se mesmo isso) do estado de mente e dos sentimentos de Russell na sua
antipatia óbvia e emocional com os cristãos.
Mas então isso nos deixa face a face com uma falácia final e
devastadora no argumento de Russell contra o cristianismo ─ o uso de
padrões duplos (e de alegação especial implícita) no seu raciocínio. Russell
queria criticar os cristãos pelo fator emocional em seu compromisso de fé, e,
no entanto, o próprio Russell evidenciava um fator emocional semelhante em
seu próprio compromisso pessoal anticristão. Na verdade, Russell
abertamente apelou aos sentimentos emocionais de coragem, orgulho,
liberdade e autoestima como base para a sua audiência evitar de ser cristã!
Da mesma forma, Russell tentou repreender os cristãos pela sua
“perversidade” (como se pudesse existir algo assim dentro da cosmovisão de
Russell) ─ pela sua crueldade, guerras, inquisições, etc. Russell não parou
nem um momento, no entanto, para refletir na violência e crueldade muito
maiores cometidas por não cristãos ao longo da história. Gengis Khan, Vlad o
Empalador, Marquês de Sade e toda uma hoste de outros açougueiros não
eram conhecidos na história por sua profissão cristã, afinal de contas! Isso é
tudo convenientemente varrido para debaixo do tapete no desdém hipócrita
de Russell pelos erros morais da igreja cristã.
O ensaio de Russell “Por que não sou cristão” nos revela que até
mesmo a elite intelectual deste mundo é refutada pelos seus próprios erros na
oposição à verdade da fé cristã. Não há credibilidade num desafio ao
cristianismo que evidencie conjectura preconceituosa, falácias lógicas,
predisposição filosófica indisputada, um comportamento que traia crenças
declaradas e pressuposições que não são compatíveis umas com as outras.
Por que Russel não foi cristão? Dado o seu esforço fraco nas críticas,
teríamos de concluir que não foi por razões intelectuais.
30. O PROBLEMA DO MAL

Passemos agora a examinar alguns dos tipos mais básicos e recorrentes de


objeções que são levantadas contra a fé cristã por aqueles que discordam da
cosmovisão cristã ─ seus antagonistas intelectuais, escarnecedores cultos ou
religiões concorrentes. Nosso objetivo será de sugerir como um método
pressuposicional de apologética poderia responder a esses tipos de
argumentos contra o cristianismo (ou contra alternativas a ele) como uma
filosofia de vida, conhecimento e realidade.
Talvez o desafio mais intenso, penoso e persistente que os crentes
ouvem sobre a verdade da mensagem cristã vem sob a forma do que é
chamado de “o problema do mal”. O sofrimento e o mal que vemos por toda
parte parece clamar contra a existência de Deus ─ ao menos de um Deus que
é tanto benevolente como todo-poderoso. Esse é considerado por muitos
como sendo o mais difícil de todos os problemas que o apologista enfrenta,
não só por causa da aparente dificuldade lógica dentro da perspectiva cristã,
mas também por causa da perplexidade pessoal que qualquer ser humano
sensível sentirá quando confrontado com a terrível miséria e maldade que
podem ser encontradas no mundo. A desumanidade do homem com o homem
é notória em todas as épocas da história e em todas as nações do mundo. Há
uma longa história de opressão, indignidade, brutalidade, tortura e tirania.
Encontramos guerra e assassinato, ganância e luxúria, desonestidade e
mentiras. Encontramos medo e ódio, infidelidade e crueldade, pobreza e
hostilidade racial. Além disso, mesmo no mundo natural, nos deparamos com
tanta dor e sofrimento aparentemente desnecessários ─ defeitos congênitos,
parasitas, ataques de animais violentos, mutações causadas por radiação,
doenças debilitantes, câncer mortal, fome, ferimentos terríveis, tufões,
terremotos e outros desastres naturais.
Quando o incrédulo olha para esse infeliz “vale de lágrimas”, sente que
há uma forte razão para duvidar da bondade de Deus. Por que deveria existir
tanta miséria? Por que ela deveria ser distribuída de uma forma tão
aparentemente injusta? É isso que você permitiria, caso fosse Deus e pudesse
impedi-lo?
Levando o mal a sério
É importante que o cristão reconheça ─ de fato, insista sobre ─ a realidade e
gravidade do mal. O assunto do mal não é simplesmente um jogo intelectual
de salão, uma questão indiferente, uma forma relativista ou caprichosa de
querer ver as coisas de determinada maneira. O mal é real. O mal é feio.
Só quando trazemos uma carga emocional e somos intelectualmente
sensíveis acerca da existência do mal é que podemos apreciar a profundidade
do problema que os incrédulos têm com a cosmovisão cristã ─ mas,
igualmente, podemos perceber por que o problema do mal acaba confirmando
a perspectiva cristã ao invés de enfraquecê-la.
Quando falamos sobre o mal com os incrédulos, é crucial que ambos os
lados “joguem pra valer”. O mal deve ser levado a sério “como perverso”.
Uma passagem bem conhecida da pena do romancista russo Fiódor
Dostoievsky mexe de imediato com as nossas emoções e nos faz insistir
sobre a perversidade dos homens, por exemplo, de homens que são cruéis
com criancinhas. Ela é encontrada em seu romance Irmãos Karamázov.[35]
Ivan faz sua queixa a Aliócha:

“Compara-se por vezes a crueldade do homem com a dos animais


selvagens; mas isso é uma grande injustiça e ofensa para com estes. Uma
fera jamais pode ser tão cruel como o homem, tão artisticamente cruel…
No entanto, tenho ainda melhor, Aliócha, a propósito de crianças russas.
Havia uma menina de cinco anos que era odiada por seu pai e sua mãe…
Você percebe, tenho de repeti-lo, é uma característica especial de muitas
pessoas esse prazer de torturar crianças, e somente as crianças… É
exatamente a condição de indefesa que seduz o torturador; exatamente a
confiança angélica da criança que não tem refúgio nem a quem se dirigir
que excita os maus instintos dele…
Essa pobre criança de 5 anos era sujeita a toda forma possível de tortura por
aqueles pais instruídos. Açoitavam-na, espezinhavam-na sem razão até seu
corpo ficar coberto de equimoses. Imaginaram por fim um refinamento de
crueldade: pelas noites glaciais, no inverno, encerravam a menina na
privada, sob pretexto de que ela não pedia a tempo, à noite, para ir ali…
Esfregavam-lhe no rosto e enchiam a boca dela com excrementos, e era sua
mãe, sua própria mãe quem fazia isso. E essa mãe podia dormir tranquila,
insensível aos gemidos da pobre criança! Pode você entender por que uma
pequena criatura, que sequer consegue compreender o que lhe acontece,
deve bater com seus pequeninos punhos no coração dolorido, no frio e na
escuridão, e derramar suas lágrimas não ressentidas para o gentil e querido
Deus protegê-la? … Entende você por que essa infâmia deve ser e é
permitida? O mundo inteiro de conhecimento não faz jus à oração dessa
criança ao ‘gentil e querido Deus’! …
Imagine que os destinos da humanidade estejam entre tuas mãos e que, para
tornar as pessoas definitivamente felizes, proporcionar-lhes afinal a paz e o
repouso, seja essencial e inevitável torturar até a morte uma pequena
criatura apenas ─ aquela criança que batia no peito com seu pequeno punho,
por exemplo ─ e basear sobre suas lágrimas não vingativas a felicidade
futura. Consentiria você, nestas condições, em edificar semelhante
felicidade? Responda-me, e responda sem mentir.”
“Não, não consentiria,” disse Aliócha suavemente.

Incidentes e solilóquios como este poderiam ser multiplicados vezes sem


conta. Eles provocam uma indignação moral em nós. Eles também provocam
uma indignação moral no incrédulo ─ e esse fato não deve ser
desconsiderado pelo apologista.
Certa vez quando estive fazendo um programa de rádio com a
participação dos ouvintes, uma pessoa ligou e foi muito sarcástica com a
minha declaração de que nós devemos cultuar e adorar a Deus. O ouvinte
queria saber como alguém poderia adorar um Deus que permitia o abuso
sexual e a mutilação de um bebê, como ele havia testemunhado em certas
fotografias de um tribunal no julgamento de algum exemplar horrível da
humanidade. A descrição foi repugnante e certamente provocou repulsa em
todos os que a ouviram. Eu sabia que o ouvinte queria forçar sua hostilidade
ao cristianismo duramente sobre mim, mas fiquei na verdade feliz por ele ter
ficado tão irado. Ele estava levando o mal a sério. Sua condenação ao abuso
de crianças não era simplesmente uma questão de preferência pessoal para
ele. Por essa razão, percebi que não seria difícil mostrar por que o problema
do mal não é realmente um problema para o crente – mas sim para o
incrédulo. Mais tarde falaremos mais sobre isso.

O mal como um problema lógico


Nem sempre o “problema” do mal foi bem compreendido pelos apologistas
cristãos. Às vezes eles reduzem a dificuldade do desafio do incrédulo ao
cristianismo concebendo o problema do mal como sendo simplesmente a
apresentação raivosa de evidências contrárias à suposta bondade de Deus. É
como se os crentes professassem a bondade de Deus, mas os incrédulos
tivessem seus contraexemplos. Quem desenvolve o melhor argumento a
partir dos fatos ao nosso redor? O problema é apresentado (erroneamente)
como uma questão de quem tem evidências mais significativas para o seu
lado do desacordo.
Por exemplo, lemos um apologista popular dizer o seguinte sobre o
problema do mal: “Mas em última análise, a evidência para a existência do
bem (Deus) não está viciada pela anomalia do mal”. E por que não? “O mal
permanece um mistério que causa perplexidade, mas a força do mistério não
é suficiente para exigir que joguemos fora a evidência positiva para Deus,
para a realidade do bem… Embora não possamos explicar a existência do
mal, essa não é uma razão para desconsiderarmos a evidência positiva para
Deus”.[36] Isso subestima seriamente a natureza do problema do mal. Não é
simplesmente uma questão de pesar a evidência positiva contra a evidência
negativa para a bondade no mundo de Deus ou no plano de Deus (digamos,
para a redenção, etc.). O problema do mal é um desafio muito mais sério para
a fé cristã do que isso.
O problema do mal equivale à acusação de que existe uma incoerência
lógica dentro da perspectiva cristã ─ independentemente de quanto mal exista
no Universo em comparação com quanta bondade pode ser encontrada. Se o
cristianismo é logicamente incoerente, nenhuma quantidade de evidência
positiva e factual poderá salvar sua verdade. A inconsistência interna por si
só tornaria a fé cristã intelectualmente inaceitável, mesmo admitindo que
pudesse haver uma grande quantidade de indicativos ou evidências em nossa
experiência para a existência da bondade ou para Deus de outra forma
consideradas.
O filósofo escocês do século XVIII David Hume expressou o problema
do mal de maneira forte e desafiadora: “ [Deus] quer impedir o mal, mas não
é capaz? Então ele é impotente. Ele é capaz, mas não está disposto? Então ele
é malévolo. Ele tanto é capaz como está disposto? De onde, então, vem o
mal?”.[37] O que Hume estava argumentando é que o cristão não pode
logicamente aceitar estas três premissas: Deus é onipotente, Deus é
onibenevolente e, no entanto, existe mal no mundo. Se Deus é onipotente,
deve ser capaz de impedir ou eliminar o mal, se o quiser. Se Deus é
onibenevolente, certamente quer impedir ou eliminar o mal. No entanto, é
inegável que o mal existe.
George Smith afirma o problema da seguinte forma em seu livro
“Ateísmo: O Argumento contra Deus” [Atheism: The Case Against God]:[38]
“Em resumo, o problema do mal é este: … Se Deus sabe que existe mal, mas
não pode impedi-lo, ele não é onipotente. Se Deus sabe que existe mal e pode
impedi-lo, mas não deseja fazê-lo, ele não é onibenevolente”. Smith pensa
que os cristãos não podem logicamente ter ambas as coisas: Deus é
totalmente bom assim como totalmente poderoso.
Portanto, a acusação que os incrédulos fazem é que a cosmovisão cristã
é incoerente; ela adota premissas que são incompatíveis entre si, dada a
existência de mal neste mundo. O incrédulo argumenta que mesmo se fosse
aceitar as premissas da teologia cristã (independentemente da evidência a
favor ou contra elas individualmente), essas premissas não seriam
compatíveis umas com as outras. O problema do cristianismo é interno ─ um
defeito lógico que até mesmo o crente deve reconhecer, contanto que admita
realisticamente a presença de mal no mundo. Esse mal, pensa-se, é
incompatível ou com a bondade de Deus, ou com o poder de Deus.

Para quem o mal é logicamente um problema?


Deve ser óbvio, após uma reflexão, que nenhum “problema do mal” pode
pressionar os crentes cristãos a menos que alguém possa legitimamente
afirmar a existência de mal neste mundo. Não há nem mesmo aparentemente
um problema lógico se tivermos de lidar com somente estas duas premissas:

1. Deus é totalmente bom.


2. Deus é totalmente poderoso.

Essas duas premissas não criam em si mesmas nenhuma contradição. O


problema só surge quando adicionamos a premissa:

3. O mal existe (acontece).

Assim, é crucial para o argumento do incrédulo contra o cristianismo estar


numa posição de afirmar que existe mal no mundo ─ apontar para algo e ter o
direito de avaliá-lo como um exemplo de mal. Se é o caso de que nada mau
existe ou sequer acontece ─ isto é, que o que as pessoas inicialmente
acreditam ser mau não pode ser razoavelmente considerado um “mal” ─, não
há nada inconsistente com a teologia cristã e que exija uma resposta.
O que o incrédulo quer dizer com “bom”, ou por qual padrão o
incrédulo determina o que conta como “bom” (de modo que o “mal” é,
portanto, definido ou identificado)? Quais são os pressupostos em termos dos
quais o incrédulo faz qualquer julgamento moral?
Talvez o incrédulo considere “bom” qualquer coisa que evoca a
aprovação pública. Porém, nesse caso a declaração “A vasta maioria da
comunidade entusiasticamente aprovou e tomou parte no ato mau” nunca
poderia fazer sentido. O fato de um grande número de pessoas se sentir de
uma certa forma não convence (ou não deveria racionalmente convencer)
ninguém de que esse sentimento (sobre a bondade ou maldade de algo) está
correto. A ética não se reduz a estatística, afinal de contas. Normalmente as
pessoas pensam na bondade de uma coisa como sendo aquilo que evoca a sua
aprovação ─ em vez de a aprovação delas constituir a bondade dessa coisa!
Até mesmo os incrédulos falam e agem como se houvesse traços pessoais,
ações ou coisas que possuem a propriedade da bondade (ou maldade)
independentemente das atitudes, crenças ou sentimentos que as pessoas
possam ter sobre esses traços, ações ou coisas.[39]
Há ainda outros problemas em considerar “bom” qualquer coisa que
evoca a aprovação do indivíduo (em vez do público em geral). Isso não só
igualmente reduz ao subjetivismo, como também absurdamente implica que
dois indivíduos não podem fazer julgamentos éticos idênticos. Quando Bill
dissesse “Ajudar os órfãos é bom”, ele não estaria dizendo a mesma coisa que
Ted ao dizer “Ajudar os órfãos é bom”. A declaração de Bill significa
“Ajudar os órfãos evoca a aprovação de Bill”, enquanto que a declaração de
Ted significaria “Ajudar os órgãos evoca a aprovação de Ted” ─ que são
duas coisas totalmente diferentes. Essa visão não só tornaria impossível duas
pessoas fazerem julgamentos éticos idênticos, como também implicaria
(absurdamente) que os próprios julgamentos éticos de uma pessoa nunca
poderiam estar equivocados, a menos que sucedesse de ela interpretar mal os
seus próprios sentimentos![40]
O incrédulo pode se voltar, então, para um entendimento instrumental
ou consequencial do que constitui a bondade (ou maldade) objetiva. Por
exemplo, uma ação ou traço é bom se tende a atingir um determinado fim,
como a maior felicidade do maior número de pessoas. A irrelevância de tal
noção para fazer determinações éticas é que precisaríamos ser capazes de
estimar e comparar felicidades, bem como ser capazes de calcular todas as
consequências de qualquer dada ação ou traço. Isso é simplesmente
impossível para mentes finitas (mesmo com a ajuda de computadores).
Porém, mais devastadora é a observação de que o bem só pode ser tomado
como sendo o que promove a felicidade geral se for antecedentemente o caso
de que a felicidade generalizada é em si mesma “boa”. Qualquer teoria de
ética que foque na bondade de alcançar um determinado fim (ou
consequência) só fará sentido se ela puder provar que o fim escolhido (ou a
consequência) é bom (boa) de buscar e promover. As teorias instrumentais de
bondade devem finalmente abordar a questão da bondade intrínseca para que
possam determinar corretamente quais devem ser suas metas.
Filosoficamente falando, o problema do mal acaba sendo, portanto, um
problema para o próprio incrédulo. Para usar o argumento a partir do mal
contra a cosmovisão cristã, ele deve primeiro ser capaz de mostrar que seus
julgamentos sobre a existência do mal são significativos ─ o que é
precisamente o que sua cosmovisão incrédula é incapaz de fazer.

O incrédulo leva o mal a sério, então?


Os incrédulos se queixam de que certos fatos evidentes sobre a experiência
humana são inconsistentes com as crenças teológicas do cristão sobre a
bondade e o poder de Deus. Essa queixa requer que o não cristão afirme a
existência de mal neste mundo. O que, no entanto, foi pressuposto aqui?
Tanto o crente como o incrédulo vão querer insistir que certas coisas
são más, por exemplo os casos de abuso de crianças (como os já
mencionados). E vão falar como se levassem esses julgamentos morais a
sério e não simplesmente como expressões de preferência, gosto pessoal ou
opinião subjetiva. Eles vão insistir que essas coisas são verdadeiramente ─
objetivamente, intrinsecamente ─ más. Até mesmo os incrédulos podem ficar
abalados na sua defesa fácil e simplista do relativismo em face de atrocidades
morais como guerra, estupro e tortura.
Mas a questão, logicamente falando, é como o incrédulo pode dar
sentido a levar o mal a sério ─ e não simplesmente como algo inconveniente
ou desagradável, ou contrário aos seus desejos. Que filosofia de valor ou
moralidade o incrédulo pode oferecer que tornará significativo condenar
alguma atrocidade como objetivamente má? A indignação moral que é
expressa pelos incrédulos quando eles se deparam com as coisas más que
transpiram neste mundo não é compatível com as teorias de ética que os
incrédulos defendem, teorias que se provam arbitrárias ou subjetivas ou de
caráter meramente utilitário ou relativista. Na cosmovisão do incrédulo, não
há nenhuma boa razão para dizer que alguma coisa tem uma natureza má,
mas apenas a partir do sentimento ou da escolha pessoal.
É por isso que me sinto encorajado quando vejo incrédulos, por uma
questão de princípio, ficando muito indignados com alguma ação má. Essa
indignação exige que a pessoa recorra ao caráter absoluto, imutável e bom de
Deus para ter sentido filosófico. A expressão de indignação moral não passa
de uma evidência pessoal de que os incrédulos conhecem esse Deus no fundo
do seu coração. Eles se recusam a permitir que os julgamentos sobre o mal
sejam reduzidos ao subjetivismo.
Quando o crente desafia o incrédulo sobre esse ponto, o incrédulo
provavelmente muda de atitude e tenta argumentar que o mal está, em última
análise, baseado nas escolhas e no raciocínio humano ─ sendo assim relativo
ao indivíduo ou à cultura. E nesse ponto o crente deve enfatizar a incoerência
lógica dentro do conjunto de crenças do incrédulo. Por um lado, ele acredita e
fala como se alguma atividade (por ex., o abuso de crianças) fosse em si
mesmo errada, mas por outro lado acredita e fala como se essa atividade só
fosse errada se o indivíduo (ou a cultura) escolhesse algum valor que é
inconsistente com ela (por ex., o prazer, a maior felicidade para o maior
número de pessoas, a liberdade). Quando o incrédulo professa que as pessoas
determinam os valores éticos por si mesmas, está implicitamente defendendo
que aqueles que cometem o mal não estão realmente fazendo nada mau,
tendo em vista os valores que eles escolheram para si mesmos. Dessa forma,
o incrédulo que está indignado com a maldade fornece as próprias premissas
que filosoficamente sancionam e permitem esse comportamento, embora ao
mesmo tempo o incrédulo queira insistir que esse comportamento não é
permitido ─ é “mau”.
O que descobrimos, então, é que o incrédulo deve secretamente
depender da cosmovisão cristã para dar sentido ao seu argumento a partir da
existência do mal que é motivado contra a cosmovisão cristã! O antiteísmo
pressupõe o teísmo para fazer seu argumento.
O problema do mal é, portanto, um problema lógico para o incrédulo
em vez de para o crente. Como cristão, posso dar pleno sentido à minha
condenação e repulsa moral do abuso de crianças. O não cristão não pode.
Isso não significa que eu posso explicar por que Deus faz o que faz ao
planejar a miséria e a maldade neste mundo. Significa simplesmente que o
ultraje moral é consistente com a cosmovisão do cristão, com suas
pressuposições básicas sobre a realidade, o conhecimento e a ética. A
cosmovisão (de qualquer variedade) do não cristão não pode, em último caso,
justificar esse ultraje moral. Ela não pode explicar a natureza objetiva e
imutável de noções morais como bem ou mal. Assim, o problema do mal é
precisamente um problema filosófico para a incredulidade. Os incrédulos
seriam obrigados a apelar à própria coisa contra a qual argumentam (um
senso divino, transcendente de ética) para o seu argumento ser garantido.

Resolvendo o alegado paradoxo


O incrédulo poderia neste ponto protestar dizendo que mesmo que, como não
cristão, ele não possa significativamente explicar ou dar sentido para a visão
de que o mal objetivamente existe, ainda resta, todavia, um paradoxo no
conjunto de crenças que constitui a cosmovisão do próprio cristão. Dados os
seus compromissos e a sua filosofia básica, o cristão certamente pode alegar,
e alega, que o mal é real; e, contudo, o cristão também acredita em coisas
sobre o caráter de Deus que juntas parecem incompatíveis com a existência
do mal. O incrédulo poderia argumentar que independentemente da
inadequação ética da sua própria cosmovisão, o cristão ainda está ─ nos
próprios termos do cristão ─ bloqueado numa posição logicamente
incoerente ao manter as três proposições seguintes:

1. Deus é onibenevolente.
2. Deus é todo-poderoso.
3. O mal existe.

No entanto, o crítico ignora aqui uma forma perfeitamente razoável de


concordar com todas essas três proposições.
Se o cristão pressupõe que Deus é perfeitamente e totalmente bom ─
como a Escritura nos exige pressupor ─, ele está comprometido em avaliar
tudo dentro da sua experiência à luz dessa pressuposição. Por conseguinte,
quando o cristão observa coisas ou eventos maus no mundo, ele pode e deve
manter consistência com sua pressuposição sobre a bondade de Deus
inferindo agora que Deus tem moralmente uma boa razão para o mal que
existe. Deus certamente deve ser todo-poderoso para ser Deus; não devemos
pensar que ele seja sobrepujado ou frustrado pelo mal no Universo. E Deus
certamente é bom, o cristão irá professar ─ de modo que qualquer mal que
encontramos deve ser compatível com a bondade de Deus. Isso quer dizer
que Deus planejou os eventos maus por razões que são moralmente
recomendáveis e boas. Dito de outra forma, o aparente paradoxo criado pelas
três proposições acima é facilmente resolvido adicionando esta quarta
premissa a eles:

4. Deus tem uma razão moralmente suficiente para o mal que existe.

Quando todas essas quatro premissas são mantidas, nenhuma contradição


lógica pode ser encontrada, nem mesmo uma aparente. Faz parte,
precisamente, da caminhada na fé e do crescimento na santificação do cristão
extrair a proposição 4 como uma conclusão das proposições 1-3.
Pense em Abraão quando Deus lhe ordenou sacrificar seu único filho.
Pense em Jó quando ele perdeu tudo o que dava prazer e felicidade à sua
vida. Em cada caso Deus tinha uma razão perfeitamente boa para a miséria
humana envolvida. Era uma marca ou façanha da fé eles não vacilarem na sua
convicção da bondade de Deus, apesar de não serem capazes de ver ou
entender por que Deus estava lhes fazendo aquilo. De fato, mesmo no caso do
maior crime em toda a história ─ a crucificação do Senhor da glória ─, o
cristão professa que a bondade de Deus não era inconsistente com o que as
mãos de homens iníquos fizeram. O assassinato de Cristo foi algo mau?
Certamente. Deus teve uma razão moralmente suficiente para ele? Tão certo
quanto. Com Abraão, nós declaramos: “Não faria justiça o Juiz de toda a
terra?” (Gênesis 18.25). E essa bondade de Deus está além de desafio: “Seja
Deus verdadeiro, e mentiroso, todo homem” (Romanos 3.4, ARA).

O problema não é lógico, mas psicológico


Acontece que o problema do mal não é uma dificuldade lógica, afinal. Se
Deus tem uma razão moralmente suficiente para o mal que existe, como a
Bíblia ensina, sua bondade e poder não são desafiados pela realidade dos
eventos e coisas más na experiência humana. O único problema lógico que
surge em conexão com as discussões sobre o mal é a incapacidade filosófica
do incrédulo de justificar a objetividade dos seus juízos morais.
O problema que os homens têm com Deus quando se encontram face a
face com o mal no mundo não é lógico ou filosófico; é mais psicológico.
Podemos achar emocionalmente muito difícil ter fé em Deus e confiar na sua
bondade e poder quando não nos é dada a razão por que coisas ruins
acontecem a nós e a outros. Instintivamente pensamos com nós mesmos “por
que essa coisa terrível aconteceu?”. Os incrédulos internamente também
gritam por uma resposta a essa pergunta. Mas Deus não fornece sempre (na
verdade, raramente) uma explicação aos seres humanos para o mal que eles
vivenciam ou observam. “As coisas encobertas pertencem ao Senhor nosso
Deus” (Deuteronômio 29.29). Poderíamos não ser capazes de compreender os
caminhos sábios e misteriosos de Deus, ainda que ele nos os revelasse (cf.
Isaías 55.9). Contudo, permanece o fato de que ele não nos disse por que a
miséria, o sofrimento e a injustiça fazem parte do seu plano para a história e
para nossa vida individual.
Assim, então, a Bíblia nos convida a confiar em que Deus tem uma
razão moralmente suficiente para o mal que pode ser encontrado neste
mundo, mas ela não nos diz qual é essa razão suficiente. O crente muitas
vezes luta com essa situação, andando pela fé e não pelo que vê. O incrédulo,
porém, acha a situação intolerável para o seu orgulho, sentimentos ou
racionalidade. Ele se recusa a confiar em Deus. Ele não crerá que Deus tem
uma razão moralmente suficiente para o mal que existe, a menos que lhe seja
dada essa razão para o seu próprio exame e avaliação. Traduzindo em
miúdos, o incrédulo não irá confiar em Deus a menos que Deus se subordine
à autoridade intelectual e avaliação moral do incrédulo ─ a menos que Deus
consinta em trocar de lugar com o pecador.
O problema do mal se resume à questão de saber se uma pessoa deve
ter fé em Deus e na sua palavra ou deve, em vez disso, depositar fé no seu
próprio pensamento e valores humanos. O problema do mal se torna em
última análise uma questão de autoridade última na vida de uma pessoa. E
nesse sentido, a forma como os incrédulos lutam com o problema do mal não
passa de um testemunho contínuo da forma como o mal entrou na história
humana em primeiro lugar. A Bíblia indica que o pecado e todas as misérias
que o acompanham entraram neste mundo pela primeira transgressão de
Adão e Eva. E a questão com a qual Adão e Eva foram confrontados outrora
foi precisamente a questão que os incrédulos enfrentam hoje; devemos ter fé
na palavra de Deus simplesmente no seu assim-disse, ou devemos avaliar
Deus e sua palavra com base em nossa própria autoridade moral e intelectual
última?
Deus ordenou a Adão e Eva não comerem de certa árvore, testando-os
para ver se tentariam definir o bem e o mal por si mesmos. Satanás veio e
desafiou a bondade e verdade de Deus, sugerindo que Deus tinha motivos
ignóbeis para impedir Adão e Eva de se deleitar com a árvore. E nesse ponto
o curso inteiro da história humana dependia de se Adão e Eva iriam confiar
na bondade de Deus e pressupô-la. Como isso não aconteceu, a raça humana
tem sido visitada com tormentos demais e muito dolorosos para contabilizar.
Quando os incrédulos se recusam a aceitar a bondade de Deus com base em
sua própria autorrevelação, simplesmente perpetuam a fonte de todos os
nossos infortúnios humanos. Em vez de resolver o problema do mal, eles são
parte do problema.
Portanto, não se deve pensar que “o problema do mal” é qualquer coisa
como uma base intelectual para a falta de fé em Deus. É, antes, simplesmente
a expressão pessoal dessa falta de fé. O que descobrimos é que os incrédulos
que desafiam a fé cristã acabam raciocinando em círculo. Porque carecem da
fé em Deus, eles começam com o argumento de que o mal é incompatível
com a bondade e o poder de Deus. Quando lhes é apresentada uma solução
logicamente adequada e biblicamente sustentada para o problema do mal (a
saber, Deus tem uma razão moralmente suficiente, mas oculta para o mal que
existe), eles se recusam a aceitá-la novamente por causa de sua falta de fé em
Deus. Eles prefeririam ficar incapazes de dar uma justificativa para qualquer
espécie de julgamento moral (sobre coisas sendo boas ou más) do que se
submeter à autoridade moral definitiva e incontestável de Deus. Esse é um
preço muito alto a pagar, tanto filosófica como pessoalmente.
31. O PROBLEMA DE CONHECER O
“SOBRENATURAL”

A fé cristã, conforme definida pela revelação bíblica, ensina uma série de


coisas que não estão restritas ao reino da experiência temporal do homem ─
coisas sobre um Deus invisível, sua natureza triúna, a origem do Universo, a
regularidade da ordem criada, anjos, milagres, a vida após a morte, etc. Esses
são precisamente os tipos de afirmações que os incrédulos mais
frequentemente consideram objetáveis.
A objeção é que essas afirmações são sobre questões transcendentes ─
coisas que vão além da experiência humana cotidiana. O Criador triúno existe
além da ordem temporal; a vida após a morte não faz parte das nossas
observações ordinárias neste mundo, etc. Se o incrédulo está acostumado a
pensar que as pessoas só podem conhecer coisas baseadas no e pertencentes
ao “aqui e agora”, as afirmações do cristão sobre o transcendente são uma
afronta intelectual.

A afronta ao transcendente
Aqueles que não são cristãos muitas vezes irão assumir que o mundo natural
é tudo o que há, em cujo caso ninguém pode conhecer coisas sobre o
“sobrenatural” (o que quer que ultrapasse os limites da natureza). Nos
círculos filosóficos, as discussões e debates sobre essas questões caem dentro
da área de estudo conhecida como “metafísica”. Como se poderia esperar,
essa divisão da investigação filosófica é geralmente um foco de controvérsia
entre escolas de pensamento conflitantes. Mais recentemente, o
empreendimento inteiro da metafísica se tornou ele mesmo foco de
controvérsia.
Ao longo dos dois últimos séculos se desenvolveu uma mentalidade
que é hostil a qualquer afirmação filosófica que tenha um caráter metafísico.
Está claro para a maioria dos estudantes que a antipatia pela fé cristã tem sido
o fato primário e motivador nesses ataques. Contudo, essa crítica tem sido
generalizada na forma de um antagonismo penetrante com quaisquer
afirmações que sejam similarmente “metafísicas”. Essa atitude antimetafísica
foi um dos ingredientes cruciais que moldaram a cultura e a história ao longo
dos últimos duzentos anos. Ela alterou os pontos de vista comuns sobre o
homem e a ética, gerou uma reformulação radical das crenças religiosas e
afetou significativamente perspectivas que vão da política à pedagogia.
Consequentemente, uma grande parte das questões ou desafios céticos que
são dirigidos contra a fé cristã estão enraizados na ou são coloridos por esse
espírito negativo em relação à metafísica.

Definindo o metafísico
Antes que possamos nos debruçar sobre os argumentos antimetafísicos que
são comumente ouvidos hoje em dia, seria útil entender melhor o que se
entende por “metafísica”. Essa é uma palavra técnica que raramente é usada
fora dos círculos acadêmicos; ela não deve nem mesmo fazer parte do
vocabulário da maioria dos cristãos. Não obstante, a concepção da metafísica
e a reação a ela que pode ser encontrada nos círculos acadêmicos
definitivamente irá tocar e ter um impacto na vida do crente ─ em termos dos
ataques populares à fé que ele deve responder ou até mesmo em termos da
forma como a religião cristã é retratada e apresentada no púlpito.
Frequentemente é dito que a metafísica é o estudo do “ser”. Mais
revelador seria se escrevêssemos que a metafísica estuda o “ser” ─ isto é,
questões sobre a existência (“ser ou não ser”). A metafísica pergunta “o que é
que existe?” E que tipos de coisas existem? Assim, o metafísico está
interessado em saber sobre distinções fundamentais (isto é, as classes básicas
das coisas que existem) e similaridades importantes (isto é, a natureza
essencial dos membros dessas classes). Ele busca as explicações ou causas
finais para a existência e a natureza das coisas. Ele quer entender os limites
da realidade possível, os modos de existir e as inter-relações das coisas
existentes.
Deveria ser óbvio então, ainda que de forma elementar, que o
cristianismo propõe uma série de afirmações metafísicas definidas.

Distinções fundamentais
A Escritura nos ensina que “há um só Deus, o Pai, de quem é tudo… e um só
Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas” (1 Coríntios 8.6). Todas
as coisas, de todos os tipos, foram criadas por ele (João 1.3; Colossenses
1.16). Mas ele é antes de todas as coisas, e por meio dele todas as coisas
subsistem (João 1.1; Colossenses 1.17). Ele mantém ou sustenta todas as
coisas pela palavra do seu poder (Hebreus 1.3). Portanto, existir é ser divino
ou criado. Em Deus vivemos, e nos movemos, e existimos (Atos 17.28). Ele,
no entanto, tem a vida em si mesmo (João 5.26; Êxodo 3.14). O Deus vivo e
verdadeiro confere a unidade distinguível ou natureza comum às coisas
(Gênesis 2.19), categorizando as coisas ao colocar sua interpretação sobre
elas (por ex., Gênesis 1.5, 8, 10, 17; 2.9). É também ele quem faz com que as
coisas sejam diferentes umas das outras (1 Coríntios 4.7; Êxodo 11.7;
Romanos 9.21; 1 Coríntios 12.4-6; 15.38-41). A similaridade e a distinção,
então, resultam da obra criativa e providencial de Deus. Tanto a existência
como a natureza das coisas encontram sua explicação nele ─ quer ocasional
(Efésios 1.11), quer teleológica (Efésios 1.11). Deus é a fonte de toda
possibilidade (Isaías 43.10; 44.6; 65.11) e, assim, por sua própria vontade e
decreto define os limites da realidade possível.

Uma metafísica abrangente


“Metafísica” também pode ser visto como uma tentativa de expressar o
esquema inteiro da realidade ─ de todas as coisas existentes. O metafísico
deve resolver relatos conflitantes sobre a verdadeira natureza do mundo (em
contraste com as meras aparências), e ele faz isso em termos de uma estrutura
conceitual última. A metafísica tenta dar sentido ao mundo como um todo ao
articular e aplicar um conjunto de paradigmas centrais, reguladores,
organizadores característicos. Esses princípios regem ou orientam a maneira
como uma pessoa inter-relaciona e interpreta as diferentes partes da sua vida
e experiência. Todo mundo usa algum sistema de generalidades últimas sobre
a realidade, de critérios de avaliação e de relacionamentos estruturantes. Não
poderíamos pensar ou dar sentido a coisa alguma sem alguma visão coerente
da natureza e estrutura geral da realidade.
Ao invés de lidar com apenas um departamento distinguível de estudo
ou área limitada da experiência humana (por ex., biologia, história,
astronomia), a metafísica é abrangente ─ preocupada com e relevante para o
mundo inteiro. Por essa razão, as visões metafísicas de uma pessoa irão afetar
todas as demais investigações em que ela possa se envolver, iluminando uma
ampla gama de assuntos e formando os “princípios primeiros” para outras
disciplinas intelectuais.

A metafísica cristã
A fé cristã, por esse motivo, também compreende um sistema metafísico. A
Escritura ensina que todas as coisas são de Deus, são por Deus e são para
Deus (Romanos 11.36). Devemos pensar os pensamentos de Deus depois
dele (Provérbios 22.17-21; João 8.31-32). Desta forma podemos compreender
e interpretar o mundo como um todo. A palavra de Deus nos dá luz (Salmos
119.130), e o próprio Cristo é o gerador da vida que dá luz aos homens (João
1.4) e em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão
ocultos (Colossenses 2.3, ARA). Assim, podemos discernir a verdadeira
natureza da realidade em termos da palavra de Cristo: “na tua luz veremos a
luz” (Salmos 36.9).
A Bíblia apresenta um esquema metafísico definido. Ela começa com
Deus que é um espírito puro, pessoal, infinitamente perfeito (Êxodo 15.11;
Malaquias 2.10; João 4.24). O Deus triúno (2 Coríntios 13.14) é único em sua
natureza e obras (Salmos 86.9), autoexistente (Êxodo 3.14; João 5.26;
Gálatas 4.8-9), eterno (Salmos 90.2), imutável (Malaquias 3.6) e onipresente
(Salmos 139.7-10). Tudo o mais que existe foi criado a partir do nada
(Colossenses 1.16-17; Hebreus 11.3), seja o mundo material (Gênesis 1.1;
Êxodo 20.11), seja o reino dos espíritos (Salmos 148.2, 5), seja o homem. O
homem foi criado à imagem de Deus (Gênesis 1.27), um ser que exibe tanto
um caráter material, como imaterial (Mateus 10.28), sobrevivendo
corporalmente à morte (Eclesiastes 12.7; Romanos 2.7) com consciência
pessoal de Deus (2 Coríntios 5.8) e aguardando a ressurreição corporal (1
Coríntios 6.14; 15.42-44).
Na criação, Deus fez todas as coisas de acordo com a sua sabedoria
insondável (Salmos 104.24; Isaías 40.28), atribuindo a todas as coisas a
natureza definida delas (Isaías 40.26; 46.9-10). Deus também determina todas
as coisas com sua sabedoria (Efésios 1.11) ─ preservando (Neemias 9.6),
governando (Salmos 103.19) e predeterminando a natureza e o curso de todas
as coisas, sendo assim capaz de realizar milagres (Salmos 72.18). O decreto
pelo qual Deus providencialmente ordena os eventos históricos é eterno,
eficaz, incondicional, imutável e abrangente (por ex., Isaías 46.10; Atos 2.23;
Efésios 3.9-11).
Essas verdades são paradigmáticas para o crente; são princípios últimos
da realidade objetiva, devendo ser distinguidas das ilusões apresentadas em
visões de mundo contrárias. O que o mundo incrédulo vê como sabedoria é
na verdade loucura (1 Coríntios 1.18-25). Visto que os entendimentos dos
incrédulos estão cegos (2 Coríntios 4.4), eles erram segundo a fé descrita
acima, tendo, portanto, apenas o que é “falsamente chamado conhecimento”
(1 Timóteo 6.20-21, NVI). Por exemplo, apoiando-se na aparência de total
regularidade, uma metafísica incrédula não ensina que Cristo voltará a
intervir no processo cósmico para julgar os homens e determinar seu destino
eterno (cf. 2 Pedro 3.3-7).

Distinguindo a aparência da realidade


Portanto, a Bíblia distingue a aparência da realidade e fornece uma estrutura
conceitual última que dá sentido ao mundo como um todo. A metafísica
bíblica afeta nossa perspectiva e nossas conclusões em cada campo de estudo
ou empreendimento e serve como o único fundamento para todas as
disciplinas, da ciência à ética (Provérbios 1.7; Mateus 7.24-27).

Questões últimas
Assim, a “metafísica” estuda questões ou assuntos como a natureza da
existência, os tipos de coisas que existem, as classes das coisas existentes, os
limites da possibilidade, o esquema último das coisas, a realidade versus a
aparência e a estrutura conceitual abrangente usada para dar sentido ao
mundo como um todo. Não é difícil entender, então, como o termo
“metafísica” veio para conotar o estudo do que está “além do reino físico”. A
simples inspeção ocular de situações isoladas e específicas no mundo físico
não pode responder questões metafísicas como aquelas recém enumeradas. A
experiência pessoal limitada de um indivíduo não pode garantir uma estrutura
abrangendo todo tipo de coisa que possa existir. A experiência empírica nos
dá meramente uma aparência das coisas; a experiência empírica não pode por
si só corrigir ilusões ou nos levar além da aparência para qualquer mundo ou
reino da realidade que exista por trás. E ela tampouco pode determinar os
limites do possível. Uma experiência particular do mundo físico não lida com
o mundo como um todo. E a natureza da existência tampouco se manifesta na
simples percepção sensorial de qualquer objeto físico ou de um conjunto
deles.

Realidade suprassensível
Consequentemente, a metafísica estuda em última análise a realidade não
sensível ou suprassensível. Dada a natureza do caso, o metafísico examina
questões que transcendem a natureza física ou questões removidas de
experiências sensoriais específicas. E, no entanto, é alegado que os resultados
da metafísica nos dão declarações inteligíveis e informativas sobre a
realidade. Isto é, a metafísica faz afirmações que têm conteúdo substantivo,
mas que não são totalmente dependentes da ou restritas à experiência
empírica (observação, sensação).
Por essa razão, os meios pelos quais as reivindicações metafísicas são
intelectualmente apoiadas não se limitam à observação natural e à
experimentação científica. Aqui reside a ofensa da metafísica à mente
moderna.[41] A metafísica presume dizer-nos algo sobre o mundo objetivo que
nós não percebemos diretamente na experiência comum e que não pode ser
verificado através dos métodos da ciência natural.
Claro, a antipatia com a metafísica é ainda mais pronunciada no caso do
cristianismo porque suas reivindicações sobre o esquema inteiro das coisas
incluem declarações sobre a existência e o caráter de Deus, sobre a origem e
a natureza do mundo, bem como sobre a natureza e o destino do homem.
Esses ensinos não se originam na experiência direta e ocular do mundo físico,
mas transcendem sensações específicas e derivam da revelação divina. Eles
não são verificados empiricamente de forma ponto a ponto. A Escritura faz
pronunciamentos absolutos sobre a natureza do mundo real como um todo. A
doutrina bíblica apresenta verdades que não são circunscritas ou limitadas
pela experiência pessoal e que não são qualificadas ou relativizadas pela
própria maneira de um indivíduo olhar para as coisas. Essas reivindicações
autoritárias sobre essas questões difíceis e de grande alcance são ofensivas
para o estado de espírito cético e os preconceitos religiosos dos dias atuais. A
era moderna tem um espírito contrário a reivindicações filosóficas
(especialmente religiosas) que falem de qualquer coisa sobrenatural, qualquer
coisa “além do físico”, qualquer coisa metafísica.
Motivações puras?
Seria proveitoso fazer uma pausa e refletir sobre um comentário perspicaz
feito por um autor recente na área da metafísica filosófica. W. H. Walsh
escreveu: “Devemos reconhecer que a reação contra [a metafísica] tem
sido… de fato tão violenta a ponto de sugerir que as questões envolvidas na
controvérsia devem ser algo mais do que acadêmicas”.[42] Precisamente. As
questões são de fato mais do que acadêmicas. São uma questão de vida e
morte ─ vida e morte eternas. Cristo disse: “E a vida eterna é esta: que te
conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem
enviaste” (João 17.3). No entanto, se o incrédulo pode permanecer na
alegação de que esse Deus não pode ser conhecido porque nada que
transcenda o físico (nada “metafísico”) pode ser conhecido, a questão do
destino eterno não é levantada. Os homens, assim, podem pensar e agir como
querem, sem se distrair com questões sobre a sua natureza e destino.
Os homens vão, por assim dizer, construir um telhado sobre a sua
cabeça na esperança de manter do lado de fora qualquer revelação inquietante
de um Deus transcendente. A perspectiva antimetafísica da era moderna
funciona simplesmente como um telhado ideológico protetor para o
incrédulo. O fato é que não se pode evitar os compromissos metafísicos. A
própria negação da possibilidade de o conhecimento transcender a
experiência é em si mesma um julgamento metafísico. Assim, a questão não é
se devemos ter crenças metafísicas, mas sim, em última análise, qual tipo de
metafísica devemos afirmar. Ao considerar essa questão, lembre-se da
observação franca de Friedrich Nietzsche:

O que nos incita a olhar todos os filósofos de uma só vez, com


desconfiança, e troça, é… [que] eles todos reagem como se tivessem
descoberto e alcançado suas opiniões reais através do autodesenvolvimento
de uma dialética pura, fria e indiferente com o divino…; quando no fundo
essa é apenas uma suposição, um palpite, na verdade um tipo de
“inspiração” ─ mais frequentemente um desejo do coração que foi filtrado e
tornado abstrato ─ que eles defendem com razões que buscaram após o fato.
São todos defensores [advogados pagos] que se ressentem desse nome, e na
maior parte das vezes porta-vozes astutos dos seus preconceitos que
batizaram como “verdades”… Gradualmente se tornou claro para mim o
que toda grande filosofia tem sido: a saber, a confissão pessoal do seu autor
e uma espécie de livro de memórias involuntário e inconsciente; também,
que as intenções morais (ou imorais) em toda filosofia constituem o germe
real da vida a partir do qual toda a planta cresceu.[43]

O apóstolo Paulo nos ensina que todos os incrédulos (incluindo Nietzsche)


“suprimem a verdade pela injustiça” (Romanos 1.18, NVI); eles tentam
esconder a verdade sobre Deus de si mesmos por causa da sua vida imoral.
“A mentalidade da carne é inimiga de Deus” (Romanos 8.7, NVI) e “[pensa]
coisas terrenas” (Filipenses 3.18-19). Aqueles que são inimigos na sua mente
pelas suas obras más (Colossenses 1.21) e são loucos em seu raciocínio
(Romanos 1.21-22; 1 Coríntios 1.20) são conduzidos particularmente a uma
metafísica antibíblica (por exemplo, “Todas as suas [do ímpio] cogitações são
que não há Deus”, Salmos 10.4) ─ disfarçadas como uma postura
antimetafísica em geral.

O argumento contra a metafísica


A razão filosófica mais comum desenvolvida pelos incrédulos, de Kant aos
positivistas lógicos do nosso século, para o antagonismo às reivindicações
metafísicas é de forma bastante simples a alegação de que a “razão pura”, à
parte da experiência dos sentidos, não pode fornecer conhecimento factual.
As declarações metafísicas falam de uma realidade suprassensível que não é
diretamente experimentada ou verificada pela ciência natural; pode-se dizer,
então, sem rodeios que a metafísica é uma espécie de “notícias de nenhum
lugar”. Aqueles que são antagonistas à metafísica argumentam que todas as
declarações informativas ou factuais sobre o mundo objetivo devem ser
derivadas empiricamente (com base na experiência, observação, sensação) e,
portanto, o conhecimento humano não pode transcender a experiência
particular, física, ou a aparência dos sentidos.
De acordo com Kant, as discussões metafísicas se ocupam com
definições puramente verbais e suas implicações lógicas; portanto, são
arbitrárias, suspensas no céu e resultam em divergências insolúveis. As
declarações metafísicas não têm nenhum significado real. Por natureza, o
conhecimento humano é dependente dos sentidos, e assim o raciocínio jamais
pode conduzir alguém a conclusões que se apliquem fora do reino empírico.

Positivismo lógico
Os positivistas lógicos intensificaram a crítica de Kant. Para eles as
afirmações metafísicas não eram apenas definições vazias sem significância
(sem referentes existenciais), eram literalmente sem sentido. Porque as
afirmações metafísicas não podiam ser submetidas ao teste crítico da
experiência dos sentidos, conclui-se que elas não tinham sentido.
Assim, pois, os oponentes da metafísica (e, desse modo, da teologia da
Bíblia) veem o raciocínio metafísico como estando em conflito com a ciência
empírica como a única forma de se adquirir conhecimento. Enquanto o
cientista chega a verdades contingentes sobre a forma como as coisas
aparecem aos nossos sentidos, o metafísico visa a verdades absolutas ou
necessárias sobre a realidade que de alguma forma está por trás dessas
aparências. Um abismo se coloca entre as verdades do fato empírico (às quais
se chega com base na informação dos sentidos) e as verdades da razão
especulativa (que só poderiam ser convenções verbais arbitrárias ou conceitos
organizados que são inaplicáveis fora da esfera da experiência). Nesse caso,
de acordo com o dogma moderno, todas as declarações significativas e
informativas sobre o mundo eram consideradas de natureza empírica.
O argumento contra as afirmações metafísicas, então, pode ser
resumido da seguinte forma:

(1) não pode haver uma fonte não empírica de conhecimento ou informação
sobre a realidade, e
(2) é ilegítimo fazer inferências a partir do que é percebido pelos sentidos
sobre o que deve se situar fora da experiência.

Em suma, só podemos saber como factualmente significante o que podemos


experimentar diretamente com os nossos sentidos ─ o que anula a
significabilidade das afirmações metafísicas e a possibilidade do
conhecimento metafísico.

Padrões duplos e petição de princípio


Podemos começar nossa resposta considerando (2) acima. Devemos primeiro
perguntar por que os metafísicos (e os teólogos) não devem raciocinar a partir
do que é conhecido na experiência sensorial para algo que está além da
sensação. Afinal, não é isso precisamente o que os cientistas empíricos fazem
todos os dias? Eles continuamente raciocinam do visto para o não visto (por
exemplo, ao falarem de partículas subatômicas, forças gravitacionais
computacionais, alertarem contra a radiação simplesmente com base em seus
efeitos, prescreverem remédios para uma infecção invisível com base numa
febre observada, etc.). Certamente parece um capricho daqueles que possuem
tendências antimetafísicas proibir o teólogo de fazer o que é permitido ao
cientista! Essa inconsistência trai uma mente que se predispôs a certos tipos
de conclusão sobre a realidade. O que seria esperado é que todo mundo
jogasse de acordo com as mesmas regras.
Além disso, é importante notar que o ponto (2) acima não é de fato
relevante para fazer um argumento contra a metafísica bíblica. O cristianismo
não vê suas reivindicações metafísicas (teológicas, sobrenaturais) como
tentativas não guiadas ou arbitrárias de tentar raciocinar do mundo visto para
o mundo não visto ─ projeções não justificadas da natureza para o que está
além dela. Em primeiro lugar, o cristão afirma que Deus criou este mundo
para refletir sua glória e ser um constante testemunho dele e seu caráter. Deus
também criou o homem como sua própria imagem, determinou a forma como
o homem pensaria e aprenderia sobre o mundo e coordenou a mente do
homem e o mundo objetivo para que o homem inevitavelmente conhecesse o
Criador sobrenatural pelo conduto do reino criado. O próprio Deus pretendeu
e tornou inevitável que o homem aprendesse sobre o Criador a partir do
mundo à sua volta. Isso equivale a Deus vindo ao homem por meio da ordem
temporal e empírica e não ao homem tateando em direção a Deus. Isso
equivale a dizer que o mundo natural em si não é aleatório e sem uma pista
quanto ao seu significado último, deixando o homem na especulação
arbitrária e em projeções metafísicas.
Além do mais, dados os efeitos intelectualmente corruptores da queda
do homem no pecado e a rebelião contra Deus, a mente do homem não foi
deixada para conhecer a Deus com base na própria experiência e
interpretação autônoma do mundo pelo homem. Deus se comprometeu a
tornar a si mesmo conhecido ao homem por meio da revelação verbal ─
usando palavras (escolhidas por Deus) que são exatamente apropriadas para a
mente do homem (criado por Deus) chegar a conclusões corretas sobre seu
Criador, Juiz e Redentor.
A teologia cristã não é resultado de uma exploração autossuficiente e de
uma argumentação a partir da experiência empírica bruta e autônoma do
homem acerca de um deus que está além e por trás da experiência. Pelo
contrário, o cristão afirma, com base na declaração da Escritura, que os
nossos princípios teológicos residem na autorrevelação do Criador
transcendente. A teologia não opera do homem para Deus, mas de Deus para
o homem (via revelação verbal, infalível; cf. 2 Pedro 1.21).
Portanto, a polêmica antimetafísica ─ já vista como arbitrária e
inconsistente ─ comete uma petição de princípio fundamental. Se o Deus
retratado na Bíblia realmente existe, não há nenhuma razão para excluir a
possibilidade de que o homem, que vive no reino da “natureza”, obtenha um
conhecimento do “sobrenatural”. Deus criou e controla todas as coisas, de
acordo com o relato bíblico. Dada essa perspectiva, Deus certamente pode
suscitar que o homem aprenda a verdade sobre ele tanto pela ordem criada
como por um conjunto de mensagens divinamente inspiradas. Quando o
incrédulo defende que nada na experiência temporal, limitada e natural do
homem pode proporcionar um conhecimento do metafísico ou do
sobrenatural, ele está simplesmente usando uma forma indireta de dizer que o
relato bíblico de um Deus que se faz claramente conhecido na ordem criada e
na Escritura está equivocado.
Essa petição de princípio é por vezes velada no incrédulo, pela sua
tendência de reformular a natureza da verdade teológica para ela ser
antropocêntrica e enraizada inicialmente na experiência humana, empírica.
No entanto, o próprio ponto de divergência entre o crente e o incrédulo se
resume à afirmação de que o ensino cristão está enraizado na autorrevelação
da verdade de Deus tal como encontrada no mundo à nossa volta e na palavra
escrita. Não há nenhuma razão para pensar que a teologia está
intelectualmente obrigada a se desenvolver sobre o fundamento da
experiência sensorial humana, a menos que se esteja pressupondo de antemão
que todo conhecimento deve em última análise derivar de procedimentos
empíricos. Mas é exatamente esse o ponto da controvérsia. A polêmica
antimetafísica não é uma razão que justifica rejeitar o cristianismo; é
simplesmente uma reformulação da própria rejeição.

Autoengano filosófico
Somos levados, então, para o número (1) acima, o primeiro passo
fundamental no argumento contra a metafísica. O que devemos fazer com a
afirmação de que “todo conhecimento significante sobre o mundo objetivo é
de natureza empírica”? A resposta mais óbvia e filosoficamente significante
seria que se a declaração anterior fosse verdadeira, então ─ com base na sua
alegação ─ jamais poderíamos saber que ela é verdadeira. Por quê?
Simplesmente porque a declaração em questão não é ela mesma conhecida
como resultado da experiência e de testes empíricos. Portanto, de acordo com
suas próprias normas rigorosas, a declaração não poderia equivaler a um
conhecimento significante sobre o mundo objetivo. Ela simplesmente reflete
o viés subjetivo (talvez sem sentido!) de quem a profere. Logo, o
antimetafísico não só tem suas próprias conclusões preconcebidas
(pressuposições), mas também se verifica que ele não pode viver de acordo
com elas (cf. Romanos 2.1). Com base nas suas próprias suposições, ele
refuta a si mesmo (cf. 2 Timóteo 2.25). Nas palavras de Paulo acerca
daqueles que suprimem a verdade de Deus em injustiça, “seus pensamentos
tornaram-se fúteis” (Romanos 1.21, NVI)!

Dificuldades adicionais
Há mais outras dificuldades com a posição expressa por (1). Nós podemos
facilmente ver que ela equivale a uma pressuposição para o incrédulo. Que
evidência ou base racional existe para a posição de que todo conhecimento
deve ser de natureza empírica? Essa não é uma conclusão mantida por outro
raciocínio, e a premissa não admite verificação empírica, visto que lida com o
que é universalmente ou necessariamente o caso (e não com uma verdade
histórica ou contingente). Além disso, a própria declaração impede qualquer
outro tipo de verificação ou suporte que não seja a evidência ou garantias
empíricas. Assim, o oponente antimetafísico da fé cristã mantém esse dogma
de forma pressuposicional ─ como algo que controla a investigação, em vez
de ser resultado da investigação.
Essa pressuposição antimetafísica, contudo, tem resultados
devastadores. Note que se todo conhecimento deve ser de natureza empírica,
a uniformidade da natureza não pode ser conhecida como verdadeira. E sem o
conhecimento e a segurança de que o futuro será como o passado (por ex., se
o sal se dissolveu em água na quarta-feira, ele fará o mesmo, e não explodirá,
na água na sexta-feira), não poderíamos fazer projeções e generalizações
empíricas ─ em cujo caso o empreendimento inteiro da ciência natural seria
minado.
Sem previsibilidade
Os cientistas não poderiam chegar a mesmo uma conclusão confiável,
racionalmente justificada sobre futuras interações químicas, sobre a rotação
da Terra, sobre a estabilidade de uma ponte, sobre os efeitos medicinais de
uma droga ou sobre qualquer outra coisa. Toda e qualquer premissa que
entrasse em seu raciocínio sobre uma situação específica num momento
específico e num lugar específico teria de ser individualmente confirmada de
forma empírica.
Nada experimentado no passado poderia se tornar uma base para
expectativas sobre como as coisas poderiam acontecer no presente ou no
futuro. Sem certas crenças sobre a natureza da realidade e da história ─
crenças que são de caráter supraempírico ─, o processo de raciocínio e
aprendizado empírico se tornaria impossível.
Nesse ponto podemos ser ainda mais enfáticos, argumentando que se
uma pessoa pressupõe que todo conhecimento deve ser de natureza empírica,
ela não apenas mina a ciência e refuta a si mesma, como de fato destrói toda
argumentação e raciocínio. Engajar-se na avaliação de argumentos é
reconhecer e utilizar proposições, critérios, regras e relações lógicas, etc. No
entanto, coisas tais como essas (proposições, relações, regras) não são
entidades empíricas que podem ser descobertas por um dos cinco sentidos.
De acordo com o dogma do empirismo, não faria sentido falar dessas
coisas ─ não faria sentido, por exemplo, falar da validade e invalidade em um
argumento, tampouco falar sobre premissas e conclusões. Tudo que você
teria seria um evento eletroquímico contingente no cérebro físico de um
estudioso seguido contingentemente por outro.
Se esses eventos são pensados como seguindo um padrão, devemos
(novamente) observar que sobre bases empíricas, não se tem uma justificativa
para falar de um tal “padrão”; só eventos específicos são experienciados ou
observados. Ademais, mesmo se houvesse um padrão nos eventos
eletroquímicos do cérebro, ele seria acidental e não uma questão de atender
às regras da lógica. Na verdade, as “regras da lógica” seriam na melhor das
hipóteses imperativos pessoais expressos como a preferência subjetiva de
uma pessoa para pessoa. Em tal caso não haveria absolutamente nenhum
ponto para argumentar e raciocinar. Um evento eletroquímico no cérebro não
pode ser significativamente dito como “válido” ou “inválido”.

Naturalismo versus sobrenaturalismo como cosmovisões


Já foi dito o suficiente para deixar claro que tipo de situação temos quando
um incrédulo argumenta contra a reivindicação de conhecimento do cristão
sobre o “sobrenatural” ─ quando o incrédulo assume uma posição
antimetafísica contra a fé. O crente defende, com base na revelação infalível
do Criador transcendente, certas coisas sobre a realidade invisível (por ex., a
existência de Deus, a providência, a vida após a morte, etc.). O conhecimento
dessas matérias não é problemático dentro da cosmovisão do cristão: Deus
sabe todas as coisas, tendo criado tudo de acordo com o seu sábio conselho e
determinado as naturezas individuais de cada coisa; por sua vez, ele criou o
homem à sua própria imagem, capaz de pensar os pensamentos de Deus
depois dele com base na revelação, tanto geral (na natureza) como especial
(na Escritura). Assim, o homem tem a capacidade racional e espiritual de
aprender e compreender verdades sobre a realidade que transcendem sua
experiência temporal, empírica ─ verdades que são reveladas pelo seu
Criador. É evidente que o cristão defende a possibilidade do conhecimento
metafísico, portanto, ao apelar a certas verdades metafísicas sobre Deus, o
homem e o mundo. Ele raciocina pressuposicionalmente, argumentando com
base nas próprias premissas metafísicas que o incrédulo alega serem
impossíveis de conhecer em virtude da sua natureza metafísica.
No entanto, o incrédulo antimetafísico tem seus próprios compromissos
metafísicos aos quais está pressuposicionalmente comprometido e aos quais
apela nos seus argumentos (por ex., somente particulares ou individuais
sensíveis existem). Seu ateísmo materialista e naturalista é tomado como uma
verdade definitiva sobre a realidade, caracterizando universalmente a
natureza da existência, orientando-nos sobre como discernir a aparência da
realidade e repousando em considerações intelectuais que nos levam para
além da simples observação ou experiência sensorial. Essa perspectiva “deste
mundo” do incrédulo é uma opinião metafísica tanto quanto o é o ponto de
vista “de outro mundo” que ele atribui ao cristão.
O que é flagrantemente óbvio, então, é que o incrédulo repousa em e
apela a uma posição metafísica para provar que nenhuma posição metafísica
pode ser conhecida como verdadeira! Ele irônica e inconsistentemente
mantém que ninguém pode conhecer verdades metafísicas e, no entanto, ele
próprio tem conhecimento metafísico suficiente para declarar que o
cristianismo está errado!
O que ocorre é que duas filosofias pressuposicionais completas se
colocam uma contra a outra quando o antimetafísico argumenta com o
cristão. As afirmações metafísicas do cristianismo são baseadas na
autorrevelação de Deus. Ademais, elas são consistentes com as suposições da
ciência, com o raciocínio lógico e com a inteligibilidade da experiência
humana. Por outro lado, o incrédulo que alega que o conhecimento metafísico
é impossível raciocina com base em pressuposições que são arbitrariamente
aplicadas, autorrefutáveis, incapazes de passar pelo crivo das suas próprias
exigências e que minam a ciência e a argumentação ─ na verdade minam a
utilidade dos próprios procedimentos empíricos que são tornados o
fundamento de todo conhecimento!
Isso simplesmente equivale a dizer que a posição antimetafísica tem
como resultado a total revogação não simplesmente do conhecimento
metafísico, mas de todo conhecimento, seja qual for. Para argumentar contra
a fé, o incrédulo deve cometer suicídio intelectual ─ destruindo o próprio
raciocínio que ele fingiria estar usando contra a verdade de Deus! Esse é um
preço pessoal e filosófico muito alto a pagar por preconceitos e
pressuposições que uma pessoa espera formarem um teto para protegê-la da
revelação de Deus.
32. O PROBLEMA DA FÉ

O compromisso cristão sacrifica a fé?

De acordo com uma antiga anedota, “Fé é acreditar no que você sabe que não
é verdade”. Não é difícil ver por que algo assim seria dito. A tendência para
as pessoas ─ quer acreditem em afirmações fantásticas sobre visitantes
extraterrestres, quer acreditem em alegações patéticas sobre a honra de um
político desacreditado ─ que tenham evidências ou argumentos escassos para
apoiar suas convicções pessoais é facilmente ceder à afirmação de que elas
“simplesmente têm fé” de que o que acreditam é verdade,[44] mesmo havendo,
para outros, muito boas razões para não acreditar nisso. As pessoas deveriam
saber que o que elas dizem não é verdade, mas mesmo assim persistem em
acreditar nisso ─ em nome da “fé”.
Essa concepção da fé como um compromisso pessoal cego é um dos
principais obstáculos que se colocam no caminho dos incrédulos quando se
trata de dar um ouvido honesto ao cristianismo. Eles têm uma dificuldade
feroz e fundamental de se tornar cristãos porque, eles imaginam, a fé religiosa
os obriga a sacrificar a razão completamente e a confiar cegamente em
alguma pretensa revelação de maneira arbitrária, sem discernimento.
No seu “Dicionário de Filosofia”, Peter Angeles oferece duas
definições de “fé”, entre outras: “crença em algo apesar da evidência em
contrário” e “crença em algo mesmo na falta de evidência”.[45] Dado qualquer
um desses entendimentos populares do termo ─ pelos quais o que o cristão
chama de “fé” é concebido como contrário à razão, ou pelo menos sem razões
─, o cristianismo aparenta ser bastante racional. “Fé” se torna um chavão
para o ato de colocar seu intelecto em confusão, suspender uma atitude
cautelosa e crítica para com as coisas e fazer um compromisso pessoal sem
evidência sólida.

Variedades de irracionalismo
O cristianismo é acusado de irracionalidade por muitas pessoas, mas nem
todos os críticos querem dizer a mesma coisa. Algumas distinções devem ser
estabelecidas para uma maior clareza.
Algumas pessoas contrapõem a fé cristã com a razão porque sentem
que os ensinamentos da Bíblia são em si mesmos irracionais. Por exemplo,
algumas pessoas consideram a ideia de Deus se tornando homem (a
encarnação) uma noção contraditória; para elas, o conceito de Deus-homem é
incoerente, uma (alegada) violação de certas leis lógicas elementares que
todos os homens reconhecem. Quando acusam o cristianismo de ser
irracional, é nesse sentido que elas querem dizer que seus dogmas são
ilógicos.
Outras pessoas acreditam que não há absolutamente nenhuma
comprovação empírica (observacional) para certas reivindicações históricas
grandiosas encontradas na Bíblia: por exemplo, que o Sol ficou parado, que
Jesus multiplicou os pães ou que homens levantaram dos mortos. Se a fé
cristã requer afirmar esses tipos de temas não factuais (como lhes parecem
ser), as pessoas considerarão o cristianismo como contrário à razão.
Os dois tipos anteriores de críticos querem acusar o cristianismo de
irracionalidade por causa de imperfeições intelectuais específicas dentro do
conjunto de proposições que os crentes afirmam ─ quer imperfeições lógicas,
quer imperfeições empíricas. Esses tipos de ataques a especificidades bíblicas
requerem que os apologistas ofereçam respostas focadas que lidem com os
detalhes de cada diferente desafio ─ pelo menos façam isso no início da
resposta a essas acusações do incrédulo. (Questões pressuposicionais, em
última análise, precisarão ser abordadas e discutidas, é claro.) Mas nossa
preocupação atual está realmente numa versão mais devastadora da alegação
de que o cristianismo é irracional.

Afirmando o absurdo
Muito mais intelectualmente viciada é classe de críticos que julgam a fé cristã
como irracional porque concebem os cristãos como pessoas dedicadas a
acreditar no absurdo (por causa da absurdidade da fé cristã). Como vistos
pelos críticos, os crentes religiosos se glorificam no fato de que o objeto da
sua fé não tem suporte racional, é aparentemente falso e deve ser aprovado a
despeito do bom senso e de razões contrárias. Alguns incrédulos têm dado a
impressão ─ não sem a “ajuda” condenável de muitos teólogos modernos ─
de que o cristianismo é indiferente à lógica, ciência, evidência ou (até
mesmo) à verdade.
Algumas pessoas têm sido enganadas a ponto de sentir que os cristãos
realmente elevam o valor da fé pessoal na proporção direta ao grau em que
ela deve ser duvidosa, cega ou mística.[46] Da mesma forma, se pensa que os
crentes degradam o valor da fé na medida em que ela esteja em sintonia com
a boa razão. Em “O Anticristo: Uma Tentativa de Crítica do Cristianismo”
[The Antichrist: Attempt at a Critique of Christianity] (1895), Friedrich
Nietzsche expressou seu escárnio com essa atitude dizendo “Os meios da fé
não querem saber o que é verdade”.
No entanto, todas as críticas que seguem nessa linha fluem de um erro
fundamental em relação à natureza da fé cristã. Como J. Gresham Machen
corajosamente colocou em seu livro “Que é a fé?”, “cremos que o
cristianismo não floresce nas trevas, mas na luz”. Machen escreveu que “um
dos meios que o Espírito usará” para trazer um reavivamento da religião
cristã “é um despertar do intelecto”. Ele resistiu fervorosamente “à oposição
falsa e desastrosa que foi criada entre conhecimento e fé”, argumentando que
“em nenhum ponto a fé é independente do conhecimento sobre o qual está
logicamente baseada”. Refletindo na famosa declaração bíblica sobre a fé em
Hebreus 11.1 (“a prova das coisas que se não veem”), Machen declarou: “A
fé não precisa ser humilde demais ou apologética demais perante o tribunal
da razão; a fé cristã é uma coisa absolutamente razoável”.[47]
Independentemente do que certos porta-vozes equivocados possam
dizer ─ quer sejam entusiastas, místicos, emocionalistas, voluntaristas,
fideístas ─ a própria Bíblia (o guia e padrão do cristianismo) não é
indiferente às tolices lógicas ou erros factuais. A religião cristã não coloca a
“fé” contra a razão, a evidência ou (acima de tudo) a verdade.
Foi apenas para vindicar a verdade das suas alegações e concepções
religiosas que Moises desafiou os magos da corte do Faraó e Elias competiu
com os sacerdotes de Baal, e zombou deles, no Monte Carmelo. Os profetas
do Antigo Testamento sabiam que suas palavras seriam demonstradas
verdadeiras quando seus prognósticos ou previsões fossem cumpridos na
história para que todos pudessem ver. Quando Cristo apareceu, ele mesmo
afirmou ser “a Verdade”! Sua ressurreição foi um milagre e sinal poderoso,
fornecendo evidência para a veracidade das suas afirmações e para a
mensagem apostólica. A despeito do que judeus e gregos pudessem pensar,
escreveu Paulo, o evangelho é de fato a própria sabedoria de Deus que destrói
a arrogância da filosofia mundana (1 Coríntios 1.18-25). Ele disse que
aqueles que se opõem ao evangelho são os que têm apenas algo que é
“falsamente chamado conhecimento” (1 Timóteo 6.20, NVI).
Por causa dessa atitude, Paulo estava ansioso para “arrazoar” (disputar,
debater) diariamente na praça com os filósofos em Atenas (Atos 17.17-18).
Ele não hesitou em fazer sua argumentação perante o tribunal ateniense que
julgava professores novos e controversos, declarando: “Esse, pois, que vós
honrais, não o conhecendo, é o que eu vos anuncio” (v. 23).[48] Claramente,
ele não estava promovendo o valor dos absurdos! Na verdade, se as
afirmações cardeais da fé fossem comprovadamente falsas, Paulo teria sido
obrigado a admitir que nossa fé religiosa é equivocada e vã (por ex., 1
Coríntios 15.14).
A própria atitude de Pedro, mesmo como um pescador sem instrução,
foi tornada inequivocadamente clara quando ele afirmou com confiança que
“[não estivemos] seguindo fábulas engenhosamente inventadas” (2 Pedro
1.16) ─ assim como quando exigiu que todo crente estivesse pronto para
apresentar uma defesa fundamentada para a esperança que havia nele (1
Pedro 3.15). Jesus categoricamente ensinou a palavra de Deus na Escritura:
“a tua palavra é a verdade” (João 17.17). A perspectiva ousada da Bíblia
sustenta que no grande dia final do juízo, a razão pela qual os homens serão
condenados por Deus é que eles preferiram acreditar “em mentira” (Romanos
1.25) ao invés de confiar nas afirmações do próprio Filho de Deus.
Consequentemente, quando os incrédulos repudiam o cristianismo por
sua suposta meta da irracionalidade religiosa, o apologista deve
decisivamente corrigir essa concepção equivocada. A fé cristã não visa a
afirmar o que é absurdo, jubilando na irracionalidade. Esse pensamento
interpreta mal a natureza da fé como apresentada pela Bíblia. A noção cristã
de fé ─ diferentemente da maioria das outras religiões ─ não é um salto
arbitrário de emoção, uma tentativa cega de compromisso, colocando o
intelecto em espera. Para o cristão, a fé (ou crença) está bem fundamentada.
Na verdade, como cristãos, afirmamos que o conteúdo da nossa fé é o
que qualquer pessoa razoável deveria endossar, não só porque ela está em
total acordo com a lógica e os fatos (quando devidamente considerados), mas
também porque sem a cosmovisão cristã a própria “razão” se torna arbitrária
ou sem sentido ─ se torna ininteligível.
Fé versus prova
Outros oponentes da fé cristã, como mais uma classe de críticos em adição a
aqueles considerados em nosso último estudo, protestam contra a presença de
absolutamente qualquer atitude de fé (ou confiança) no sistema de
pensamento de uma pessoa. Eles defendem, de forma arrogante, se não
ingênua, que não acreditarão em nada que não lhes tenha sido primeiro
totalmente provado. Eles são conduzidos pela prova, não pela fé!
Eles gostam de pensar que deles é o espírito de René Descartes (1596-
1650), o erudito francês e teórico do conhecimento que se tornou o primeiro
filósofo da “Era da Razão”. Descartes se preocupava em que os homens
deveriam se esforçar para compreender e seguir um método confiável e
adequado para chegarem às suas crenças.[49] De acordo com o modo de
pensar de Descartes, esse método seria o de criticar e duvidar de tudo o que
ele pudesse, não aceitando como verdadeiro nada que não fosse claramente
reconhecido como tal (coisas que são autoevidentes) ou que não fosse
completamente apoiado por outras verdades fundacionais claras e distintas.
Descartes procurou duvidar de todo pensamento que lhe viesse à cabeça
(por ex., ele realmente está comendo uma maçã, ou apenas sonhando que faz
isso?) até chegar a algo que fosse indubitável. A dúvida sistemática lhe
abriria a porta para a certeza final.[50] Contudo, Descartes reconheceu que não
poderia, em última análise, duvidar de todas as coisas. O indubitável acabaria
sendo o ponto de parada do seu método ─ e o ponto de partida teórico para
todos os outros raciocínios.
Os macacos modernos de Descartes que afirmam duvidar
absolutamente de tudo e não aceitar nada, exceto mediante prova, agem ou
falam como tolos arrogantes. Ninguém pode duvidar de tudo. Ninguém. Se
uma pessoa realmente fosse duvidar de tudo ─ da sua memória das
experiências passadas, das suas sensações atuais, das “conexões” entre as
experiências, dos significados das suas palavras, dos princípios pelos quais
raciocina ─ ela não estaria de fato “pensando” (muito menos duvidando), e
não haveria “ela” para pensar ou não. Um conjunto fundamental (logicamente
básico) de crenças ─ uma fé ─ é inescapável para qualquer um.
Os homens só conseguem iludir a si mesmos quando dizem que não
aceitarão nada sem provas ou demonstrações ─ que não admitem nenhum
lugar para a “fé” na sua perspectiva ou no seu viver. Assim, esses incrédulos
que criticam os cristãos por apelarem à “fé” são hipócritas intelectuais ─
homens que não podem viver e não vivem segundos os seus próprios padrões
declarados de raciocínio.

“Sem suposições” não faz sentido


A atitude que finge que não deve haver nenhum elemento dentro do
compromisso cristão que não tenha sido provado de maneira independente é
ilustrada pela declaração de C. Gore: “Parece-me que o caminho certo para
quem não pode aceitar a mera voz da autoridade, mas sente a obrigação
imperativa de ‘enfrentar os argumentos’ e pensar de maneira livre é começar
do início e ver até onde pode reconstruir suas crenças religiosas passo a passo
sobre um fundamento seguro, na medida do possível sem quaisquer
suposições preliminares…”.[51] Aqui nos é dito que devemos examinar as
hipóteses religiosas desde o início sem suposições preliminares ─ sem
pressuposições.
Claro, isso é literalmente impossível. Não pode ser feita uma
demonstração completa de cada uma de nossas crenças por meio de outras
crenças independentes. Quando eu demonstro a verdade de que o gelo derrete
à temperatura ambiente, faço uso de certos padrões e procedimentos de
demonstração. Mas pode ser feita a pergunta se escolhi os critérios corretos
para usar na demonstração da minha conclusão. Além disso, posso ter eu
certeza de que usei corretamente os padrões e procedimentos escolhidos?
Para prosseguir “sem suposições”, eu precisaria demonstrar que meus
métodos de demonstração são os corretos e que minha execução desses
métodos foi impecável. Mas isso exigirá uma argumentação ou prova
adicional sobre a prova usada para a veracidade e validade da minha
demonstração original. E assim por diante seguiríamos.
Se nenhum ponto de partida pode ser assumido numa demonstração,
nenhuma demonstração pode iniciar ─ ou terminar, dependendo de como
você olha para isso.
Se um incrédulo considera o cristianismo irracional pelo simples fato
de este permitir que algo seja aceito sem uma demonstração independente, o
incrédulo em questão é irrealista e deve ser pressionado para ver que ele
acaba refutando a si mesmo (não simplesmente os cristãos) nos termos desses
valores e exigências. Assim, a atitude incrédula dele é que acaba por ser a
verdadeira atitude irracional, pois inconsistentemente requer algo dos seus
oponentes que ela mesma não está em condições de oferecer. Uma atitude
como essa torna impossível o conhecimento do que quer que seja para
criaturas finitas e falhas ─ e se mostra assim supremamente irracional.

O tipo de evidência na qual a fé se apoia


O problema com a fé cristã, então, não pode ser que ela envolve
compromissos pressuposicionais. Assim, passemos a considerar uma última
categoria de incrédulos que criticam a “fé” cristã como irracional. Esses
críticos reconhecem que os crentes têm evidências e raciocínios que arrolam
em suporte às suas crenças e admitem que ninguém ─ nem mesmo os céticos
religiosos ─ podem proceder intelectualmente sem suposições nem provar
tudo em que acreditam por considerações independentes. Ao que eles
objetam, no entanto, é ao tipo de evidência a que os cristãos apelam e ao tipo
de pressuposições em termos das quais eles raciocinam. Em suma, eles
objetam à ideia de acreditar em algo com base na autoridade pessoal de Deus
e não com base nas normas impessoais e universalmente aceitas da
observação, lógica, utilidade, etc.
Os cristãos podem ter evidências, então, para a sua fé, mas se trata
totalmente do tipo errado de evidência, diz o incrédulo. Por exemplo, em seu
livro francamente intitulado “Religião sem Revelação”, Julian Huxley diz:
“Creio firmemente que o método científico, embora seja lento e nunca afirme
levar à completa verdade, é o único método que a longo prazo dará
fundamentos satisfatórios para as crenças” e “com toda a certeza, não
sabemos nada além deste mundo e da experiência natural”.[52] Para Huxley, a
fé cristã não deveria estar fundamentada na autoridade revelada (já que todo
conhecimento metafísico é impedido por decreto), mas na autoridade da
ciência natural.
O que Huxley abertamente expõe aqui é o seu próprio compromisso
de fé com seu preconceito contra o cristianismo. Tendo dito, por um lado,
que o método científico não pode dar a verdade completa, ele dá meia-volta
e, por outro lado, baseado na autoridade do alegado método científico,
descarta completamente saber qualquer coisa além do mundo natural! Por que
Huxley descarta o tipo de evidência oferecida pelos cristãos para a sua fé
(revelação de Deus)? Por causa da sua própria fé e devoção à ciência natural.
Em “Deus e a Filosofia”, Antony Flew também expressa a crítica do
incrédulo à fé cristã por esta se apoiar na autoridade. “Não pode ser permitido
aqui um apelo à autoridade como algo final e primordial. Pois o que está
precisamente em questão é o status e a autoridade de todas as autoridades
religiosas… [É] inerentemente impossível que a fé ou a autoridade sirvam
elas mesmas de credenciais últimas da revelação”.[53] O ensino da Escritura
não pode ser aceito sob a autoridade de um Deus que ali fala, diz Flew,
porque é precisamente essa autoridade que está em discussão pelo incrédulo.
Isso só pode significar, então, que Flew determinou de antemão que
Deus não pode ser a autoridade última. Para ele, sempre deve haver algo
independente de Deus que seja mais autoritativo e em termos do que a
autoridade de Deus pode ser aceita. Nem pode a autoridade de Deus ser
inescapável e autovalidável, de acordo com Flew: “o filósofo que examina
um conceito não está nesse momento o empregando; por mais que em outras
circunstâncias ele possa desejar ou precise fazê-lo”.[54]
Será que Flew está realmente fingindo que ele mesmo, como filósofo,
estrita e simplesmente adere a este pré-requisito geral ─ que não podemos
examinar algo enquanto simultaneamente o empregamos? Isso simplesmente
não acontece, e Flew deveria saber mais. Aqueles que examinam e discutem
sobre a lógica simultaneamente empregam essa mesma lógica em seus
exames. Aqueles que examinam e avaliam os poderes e a confiabilidade do
globo ocular simultaneamente empregam seus globos oculares.
Rejeitar e automaticamente impedir a possibilidade de que os cristãos
examinem e discutam sobre a autoridade da revelação de Deus enquanto
simultaneamente empregam (assumindo, aplicando) a autoridade da
revelação de Deus é pouco mais que um preconceito arbitrário da parte de
Flew.
Flew simplesmente não permitirá o pensamento de que a autoridade
de Deus é autovalidável. O que é notável na recusa dele ou de qualquer outro
incrédulo em se submeter na fé à autoridade de Deus com base nessa mesma
autoridade é que ele, desse modo, só revela estar comprometido de antemão
contra o ensino cristão. Ou seja, isso revela um óbvio compromisso de fé
pessoal com a proposição de que não pode haver um Deus que fala com uma
voz de autoridade inescapável, última e autovalidável sobre o homem e seu
pensamento.[55]
Para Flew, Deus não pode ter esse tipo de autoridade final, mas
apenas uma autoridade que seja primeiro autorizada pelo raciocínio do
homem. No fim das contas, Flew e outros incrédulos insistem que o homem
não deve ser reduzido a curvar-se em abjeta dependência do seu Criador
como a autoridade final. Pode haver outras autoridades autovalidáveis
reconhecidas ou consideradas como uma possibilidade, mas não Deus. Eles
só irão tolerar o Criador em seu pensamento nos termos ditados pela criatura
─ particularmente se ele jamais confrontar os homens com a inescapabilidade
racional e a autoridade última do Criador deles!
Como Van Til observa: “O homem natural assume então que tem o
critério final da verdade dentro de si. Toda forma de autoridade que chegue a
ele deve se justificar pelos padrões inerentes ao homem e operativos à parte
da autoridade que fala”.[56] Em outro lugar ele havia observado que “Se nós é
que devemos determinar os fundamentos da autoridade, não aceitamos mais a
autoridade na autoridade”.[57] Isso simplesmente significa que o incrédulo não
permitirá que Deus seja e fale como Deus ─ seja a autoridade última e
autoautenticável. Essa posição e privilégio serão atribuídos pelo incrédulo a
outra coisa, algo que seja parte da criação (como a experiência, o raciocínio
do homem)[58] e assim será tratado implicitamente como um ídolo. “… e
adoraram e serviram a coisas e seres criados, em lugar do Criador” (Romanos
1.25, NVI).
O ponto principal, então, é que criticar a “fé” irracional do cristão é
nada mais do que expressar uma fé religiosa diferente ─ uma fé que de uma
forma ou de outra adota a autossuficiência e autoridade última da mente e do
raciocínio humanos. Essa é de fato uma “fé” irracional”, dada a história e
experiência tristes da humanidade ─ assim como as tensões racionais não
resolvidas dentro da filosofia e ciência autônomas.
33. O PROBLEMA DA LINGUAGEM
RELIGIOSA

O falar de Deus é significativo?


Nos círculos filosóficos durante grande parte do século XX, duas questões
que dominaram as discussões na filosofia da religião ─ e, portanto, duas das
polêmicas mais populares contra a credibilidade intelectual do compromisso
cristão ─ se centraram na significabilidade do discurso religioso.
O discurso religioso envolve falar sobre Deus, imortalidade, milagres,
salvação, oração, valores, ética, etc. Falar da existência ou dos atributos de
Deus, por exemplo, é fazer declarações religiosas. Toda religião que é
promulgada publicamente deve em alguma medida usar o discurso religioso.
E os cristãos em particular se engajam extensivamente em declarações sobre
Deus e sua fé; afinal, o cristianismo é preeminentemente uma religião de
revelação verbal de Deus e uma profissão pessoal de fé. Assim, os cristãos
estão sempre falando “religiosamente” ─ em sermões, orações, confissões,
lições didáticas, catecismos, testemunhos pessoais, cânticos, exclamações,
conselho e encorajamento, etc.
O desafio feito por muitos filósofos modernos é que falar desse jeito
não é realmente significativo (em qualquer sentido cognitivo), ainda que
tenha a aparência enganosa de o ser. Por muitos e muitos anos pode ter
parecido que, quando os cristãos usavam a linguagem em relação a Deus e à
salvação, era possível dar bastante sentido ao que eles estavam dizendo. Nem
todo mundo acreditava que o que os cristãos declaravam era verdadeiro,
claro, mas ao menos se pensava que o falar de Deus por parte dos crentes
fazia (ou implicava) afirmações que carregavam um significado
racionalmente inteligível, se não espiritualmente intoxicante. Mas isso não é
assim, segundo muitos filósofos da época recente.

Pior do que falso


A magnitude da acusação que foi feita contra a inteligibilidade do
cristianismo deve ser apreciada pelos crentes. Quando filósofos alegam que o
falar de Deus é sem sentido, estão dizendo algo muito mais forte e muito mais
devastador do que dizer que a fala sobre Deus é falsa. Sua crítica é que as
declarações religiosas nem mesmo se qualificam como falsas (ou
verdadeiras), pois não equivalem a uma fala que faz sentido cognitivo ─ que
busca transmitir informação ─ em primeiro lugar. (Pense nisso da seguinte
forma: uma coisa é criticar o Chicago Cubs por não ter ganhado o
campeonato de 1991, e outra totalmente diferente é acusar que o Cubs, para
início de conversa, não é nem mesmo uma equipe de baseball.)
Portanto, a linguagem religiosa, muitos acusariam, é simplesmente sem
sentido. “Nevou em Dallas no verão passado” é uma sentença significativa,
mas falsa. Ela faz uma afirmação cognitivamente significativa, mas que está
errada. Porém, “Soma último galanteio neve” não faz realmente nenhuma
afirmação inteligível, mas é simplesmente sem sentido (em qualquer leitura
normal), não transmitindo nada que possa ser verdadeiro ou falso.
Assim também, muitos críticos alegam que as declarações do
cristianismo não estão sujeitas à condição de ou verdadeiras, ou falsas. Elas
não fazem nenhuma alegação significante sobre o mundo (ou sobre o mundo
da experiência humana, de qualquer forma). Assim, elas são cognitivamente
sem sentido, de uma das seguintes formas.
A declaração de uma exclamação como “Ai!” não é nem verdadeira,
nem falsa (ela não afirma nada), mas tem meramente uma função linguística
expressiva. Muitos defendem que a linguagem religiosa deveria ser
interpretada da mesma forma, como uma fala emotiva em vez de informativa.
Outros foram mais longe. Para eles, a fala sobre Deus não faz
absolutamente nenhuma diferença prática para as observações ou operações
de uma pessoa sobre o mundo físico. Isto é, as reivindicações feitas pelos
crentes religiosos e as contra-reivindicações feitas pelos seus oponentes não
têm nenhum “valor de caixa” conflitante e distinto no domínio público.
Crentes e incrédulos percebem e fazem exatamente as mesmas coisas.
Consequentemente, suas respectivas interpretações ou explicações do que
eles percebem e fazem são tomadas como totalmente sem sentido ─ uma
diferença que “não faz nenhuma diferença”. Uma fala vazia.
Outros foram ainda mais longe que isso. O discurso religioso é para
eles simplesmente ininteligível, uma tagarelice supersticiosa que não pode
ser traduzida racionalmente. Quando as pessoas falam sobre Deus, vida após
a morte, milagres ou salvação, estão envolvidas em uma espécie de ritual
linguístico que é aprendido por imitação e transmitido sem compreensão
cognitiva. Isso explica por que os não iniciados ─ os incrédulos ─ não podem
ter as declarações religiosas “colocadas em sua própria língua”, não
“compreendem”, não se sentem intelectualmente compelidos a afirmar o que
os crentes dizem e, de fato, ligam muito pouco para isso, afinal. É apenas um
balbucio sem sentido.

(1) Verificacionismo
Como indicado acima, a significabilidade da linguagem religiosa tem estado
sob ataque de duas formas nos círculos filosóficos durante este século.
Precisamos olhar para cada uma delas. A primeira pode ser designada como o
desafio “verificacionista” ao discurso religioso, e a segunda designada como
o desafio “falsificacionista”. Nem uma, nem outra se mostrou bem-sucedida.
Na primeira parte deste século uma escola de pensamento conhecida
como positivismo lógico zelosamente promoveu a ciência empírica e
menosprezou qualquer tipo de metafísica. De acordo com os positivistas,
qualquer proposição poderia ser testada quanto à significabilidade aplicando-
lhe o “princípio da verificação”.
O positivismo lógico reconhecia dois tipos diferentes de sentenças
significativas. Determinadas sentenças numa língua seriam conhecidas como
verdadeiras ao se fazer simplesmente uma análise lógica e linguística delas
(por exemplo: “todos os solteiros não são casados” pode ser verificado por
uma referência a leis da lógica e definições semânticas). No entanto, essas
verdades (chamadas “analíticas”) são desprovidas de informação significante
sobre o mundo da experiência ou observação, e assim são triviais. Para que
uma sentença nos diga algo interessante ou tenha um componente factual, sua
verdade deve ser verificável olhando para além da lógica e do significado as
observações ou experiências da pessoa no mundo. Assim, uma sentença
significante (não trivial) só é significativa, de acordo com o verificacionista,
se puder ser confirmada empiricamente; sua verdade ou falsidade faria uma
diferença em nossa experiência do mundo. Sentenças significativas deveriam
ser traduzíveis ou em termos de observação somente (descrições da
experiência imediata), ou num procedimento usado para confirmar a sentença
empiricamente.
O efeito da aplicação do princípio da verificação, concluíram os
positivistas, seria, a partir de um ponto de vista científico, a rejeição de todas
as reivindicações metafísicas (incluindo a teologia) e todas as reivindicações
éticas como absurdas. Visto que a linguagem religiosa dos cristãos está cheia
de termos que não são tomados da observação (por ex., Deus, onipotência,
pecado, expiação) e de afirmações para as quais não há meios empíricos de
confirmação (por ex., Deus é triúno, Jesus intercede pelos santos), o princípio
da verificação do positivismo lógico parecia descartar a significabilidade do
que os cristãos diziam.

O que vale para um, vale para o outro


No entanto, como se verifica, o efeito de aplicar o princípio da verificação de
significabilidade foi muito diferente do que os positivistas lógicos tinham
previsto e pretendido. O resultado de aplicar o critério da verificação de
forma generalizada foi, na verdade, mais do que constrangedor para os
críticos da linguagem religiosa.
Como você pode ver, o positivista lógico ─ assim como o cristão ─ tem
uma visão particular do mundo, do homem e da realidade como um todo. E
essa perspectiva leva o positivista lógico ─ assim como o cristão ─ a
endossar e seguir certos padrões ou regras para o raciocínio e comportamento
humanos. Para o positivista lógico, não existe uma realidade sobrenatural, e o
homem é só mais um componente aleatório do mundo físico (embora
incrivelmente ─ quase miraculosamente! ─ complexo). Dada essa
perspectiva, os homens são obrigados a viver e a falar de certa maneira. Falar
sobre pessoas, coisas ou eventos que transcendam o mundo físico deve ser
proibido; essa fala não deve sequer ser aceita como significativa.
Por outro lado, o cristão ─ como temos indicado ─ também tem
convicções sobre a natureza da realidade (por ex., Deus é um espírito que
criou o mundo) em termos das quais os homens são obrigados a viver e a
falar de certa maneira (por ex., oferecendo louvor ao seu Criador por todas
coisas, não falando como se existisse algo mais certo ou autoritativo do que o
Criador, etc.).
Em suma, tanto o positivista lógico como o cristão têm cosmovisões.
Ora, seria possível o princípio da verificação desqualificar a significabilidade
da cosmovisão do cristão como uma cosmovisão e não danificar igualmente
a cosmovisão do positivista como também uma cosmovisão? De modo
nenhum. Por mais estritamente empírico que o positivista lógico possa querer
ser (em relação estreita com os detalhes observacionais), até ele não pode
deixar de usar noções filosóficas ou princípios abstratos em seu raciocínio e
teorização.
O componente-chave no desafio verificacionista à linguagem religiosa
era naturalmente o princípio da verificação em si. Esse padrão ou regra era
crucial para a cosmovisão do positivista lógico. Consequentemente, o
apologista cristão deve perguntar se o princípio da verificação em si é ou (1)
uma verdade trivial da lógica e semântica, ou (2) uma sentença que pode ser
confirmada empiricamente. Claramente, a resposta é não para ambas as
opções ─ em cujo caso, o desafio verificacionista ao cristianismo mina a si
mesmo (se é que mina alguma coisa).
Essa resposta ao princípio da verificação, usado como uma arma contra
a linguagem religiosa e a inteligibilidade do cristianismo em particular, revela
que o verificacionismo não era nada mais que uma racionalização do
preconceito religioso. E esse preconceito contra o falar de Deus era tão
escancaradamente tolo que se autodestruiu; ele descartou sua própria
significabilidade ao longo do caminho.

A fé dedicada do positivista
Apesar de toda a sua hostilidade intelectual à religião e ao cristianismo, o
verificacionista era claramente tão “religioso” em sua devoção às suas
pressuposições subjacentes quanto qualquer devoto do cristianismo.
Para o positivismo lógico, a prática da ciência natural, com seus
resultados impressionantes, era perfeitamente aceitável do jeito que se dava;
sua autoridade e supremacia eram tomadas como certas ─ da mesma forma
que o cristão toma a autoridade última da Bíblia como certa. A ciência natural
não pedia uma apreciação crítica e possível correção ou reforma mais do que
o cristão pensaria que a Bíblia tem erros a serem corrigidos. Em vez disso, de
acordo com o positivismo lógico, a única coisa que a ciência natural exigia
era ter suas bases empíricas elucidadas ─ o que o princípio da verificação
tentou fazer. Da mesma forma, o cristão simplesmente sente que a Bíblia
precisa ser elucidada e explicada, pois seu valor e sua verdade devem ser
óbvios para qualquer ouvinte honesto.
O positivismo lógico era, ironicamente, muito parecido com uma fé
religiosa ─ uma fé na ciência natural (que poderia ser chamada de
“cientificismo”). Isso se tornou muito aparente quando a tentativa positivista
de elucidar o fundamento estritamente empírico da ciência natural fracassou
pelo caráter autorrefutável do princípio da verificação. Quando a elucidação
falhou, o positivista lógico não renunciou à sua fé original na ciência natural.
Ele agiu como um “verdadeiro crente”. Ele manteve esse compromisso com a
ciência, a despeito dos seus problemas filosóficos.
Claro, essa fé dedicada do positivista lógico na ciência natural não tinha
sido adquirida através da aplicação rigorosa de algo tal como o método
científico. O compromisso com a autoridade precípua da ciência natural não
era cientificamente fundamentado. Era um salto de fé pessoal.

Muito restritivo embora muito inclusivo


A outra coisa constrangedora sobre usar o princípio da verificação para
desafiar a significabilidade de qualquer língua sobre metafísica, teologia ou
ética é que o princípio era simultaneamente muito estreito e ainda assim
muito amplo!
Em primeiro lugar, ele era muito estreito ou restritivo porque
descartava sentenças que qualquer pessoa razoável, mesmo os positivistas,
estaria disposta a afirmar como significativas (como “Há um passado”, “Toda
pessoa tem uma mãe”).
Ademais, o princípio da verificação teria resultado em julgar o
resultado pretendido da ciência natural ─ o queridinho dos positivistas
lógicos! ─ como sem sentido. É característico da ciência natural pretender
fazer declarações universalmente quantificadas (tais como “Todas as baleias
são mamíferos”) ou generalizar leis que também são de caráter universal (tais
como “Em todos os casos, a água se expande ao congelar”). Por causa do seu
caráter universal, no entanto, nenhuma declaração desse tipo pode ser
plenamente verificada por qualquer pessoa finita ou grupo finito de
pesquisadores. Nesse caso, as generalizações científicas cairiam no limbo da
falta de sentido.
Também se provou impossível para os positivistas lógicos dedicados
reduzir de forma bem-sucedida até mesmo sentenças mais simples de
observação totalmente na forma de relatos de dados dos sentidos. “Uma maçã
está sobre a mesa” se tornou algo parecido com “Um conjunto de qualidades
[a, b, c…] está em x;y;z [especificações tridimensionais] em t [especificação
temporal]”. Até mesmo os famosos esforços de Rudolf Carnap de realizar
esse tipo de tradução reducionista ficaram sobrecarregados com a linguagem
da lógica e matemática (por ex., “conjuntos”) e com a linguagem sobre a
localização (por ex., “está em”), expressões indefinidas e estranhas que não
expressavam os dados dos sentidos.
Assim, o princípio da verificação não se mostrou, em última análise,
amigável para os que o defendiam, uma vez que excluía expressões e
generalizações que eles desejariam manter como significativas. Os
positivistas lógicos têm uma fé dedicada na ciência natural, e, contudo, o
próprio princípio da verificação deles teria tornado sem sentido o programa,
os procedimentos e os resultados da ciência natural. De forma conspícua, o
princípio da verificação se tornou demasiadamente restritivo para o
positivista.
Por outro lado, porém, havia um sentido em que o princípio da
verificação se revelava embaraçosamente aberto, permitindo a muitas
expressões o status privilegiado de serem qualificadas como significativas.
Isso tornava o princípio demasiadamente inclusivo.
A. J. Ayer foi talvez o positivista lógico mais conhecido do mundo inglês. Na
primeira edição do seu famoso livro “Linguagem, Verdade e Lógica”, Ayer
defendeu que uma sentença é significativa quando, em conjunção com outras
premissas, pode-se deduzir uma declaração de observação que não poderia ter
sido derivada somente das outras premissas.[59] Isso era totalmente inútil.
Com um pouco de imaginação, um lógico poderia usar esse critério e mostrar
que absolutamente qualquer declaração pode passar no teste[60] ─ em cujo
caso o critério de verificabilidade de Ayer permite que todas as declarações
sejam consideradas significativas.

Mantendo a fé
Não surpreenderá o leitor que Ayer tentou remediar essa situação revisando o
critério de verificabilidade na segunda edição do seu famoso livro. Essa
manobra revela que Ayer não era um estudioso imparcial, buscando seguir de
uma forma neutra a evidência aonde quer que ela levasse. Ele tinha uma
conclusão particular em mente desde o início, desejando assim moldar e
revisar seus princípios adotados até que (esperançosamente) eles provassem o
que ele originalmente queria. Os incrédulos não são muito sutis sobre deixar
suas próprias pressuposições e preconceitos religiosos à mostra. Eles também
“mantém a fé”!
Ayer agora permitia que as declarações fossem verificadas direta ou
indiretamente. Mas mais importante, ele também prescreveu que as
premissas que são conjugadas com qualquer declaração de teste para deduzir
alguma outra declaração de observação devem incluir apenas declarações de
observação, verdades analíticas ou declarações independentemente
verificáveis.[61] Isso não ajudou. Com base na abordagem revisada de Ayer,
um lógico inteligente ainda pode mostrar que qualquer declaração de teste ou
sua negação pode ser verificável (direta ou indiretamente)[62] ─ tornando
assim todas as declarações mais uma vez significativas.
O que descobrimos, então, é que o “verificacionismo” simplesmente
não poderia afirmar sua própria posição de forma convincente. O princípio da
verificação do significado cognitivo era autodestrutível; além disso, era
simultaneamente muito restritivo e também muito inclusivo.
Consequentemente, o verificacionismo nunca esteve em condições de
desafiar com êxito a significabilidade do discurso religioso.

(2) Falsificacionismo
A segunda maneira pela qual os filósofos incrédulos tentaram criticar a
significabilidade da linguagem religiosa no século XX pode ser chamada de
“falsificacionismo”. Os falsificacionistas eram tão dedicados à autoridade da
ciência natural quanto os positivistas lógicos. Entretanto, os falsificacionistas
estavam dolorosamente cientes do fracasso dos positivistas lógicos em
formular convincentemente o princípio da verificação do significado ou
salvar a si mesmos da sua aplicação fatal.
Ainda assim, eles queriam garantir a posição honrosa da ciência natural
e distingui-la claramente de modos de pensar desacreditados, como
superstição, mágica, metafísica e religião. A linguagem da religião (etc.), de
acordo com o falsificacionista, não pertence ao domínio da “ciência genuína”.
A ciência está ligada a uma base empírica ou compromisso processual que
não caracteriza a religião. A partir de uma análise, diz o falsificacionista, a
conversa religiosa dos crentes revela em último caso não fazer sentido.
Para o falsificacionista, o que torna a ciência genuína “científica” é que
as teorias que ela irá afirmar serão em princípio falseáveis por meio de
métodos empíricos. Essa é uma condição necessária para uma abordagem
verdadeiramente científica acerca do que os homens racionais irão acreditar.
Consequentemente, se alguma teoria ou afirmação não é empiricamente
falseável, esse defeito por si só já é suficiente para descartá-la como
cognitivamente sem sentido. De acordo com o falsificacionista, uma
afirmação significativa na ciência deve estar sujeita à refutação (em teoria).
Isso não significa que as afirmações científicas devam ser refutadas para
serem “científicas” (o que tornaria todas as afirmações científicas falsas por
definição!) ─ mas que elas devem ser empiricamente refutáveis em alguma
circunstância concebível.
A grande vantagem de tomar essa abordagem, se você defende a
supremacia da ciência natural e seus procedimentos, é que as generalizações
que o cientista almeja (por ex., “todos os planetas giram em torno de um
eixo”) não são descartadas como sem sentido em virtude de não serem
totalmente verificáveis. As generalizações da ciência natural, mesmo aquelas
que são verdadeiras, estarão sempre abertas à refutação ou falsificação (por
ex., apenas para o caso de encontrarmos alguma vez um planeta que não gira
em torno de um eixo). A incompletude da indução não mais é um golpe
contra a significabilidade ou caráter científico de uma generalização empírica
sobre o mundo natural.

O famoso desafio de Flew


Talvez a mais bem conhecida crítica à linguagem religiosa na segunda
metade do século XX tenha vindo da pena engenhosa do filósofo inglês
Antony Flew e atacado a significabilidade do discurso religioso a partir da
perspectiva do falsificacionismo. Flew desenvolveu seu ponto repetindo uma
parábola contada certa vez por John Wisdom, comentando então sobre o
defeito das declarações teológicas que a parábola ilustrava.
Era uma vez dois exploradores que chegaram a uma clareira na floresta. Na
clareira estavam crescendo muitas flores e ervas daninhas. Um dos
exploradores diz: “Algum jardineiro deve estar cuidado desse terreno”. O
outro discorda: “Não há nenhum jardineiro”. Então eles montaram suas
barracas e ajustaram o relógio. Nenhum jardineiro é alguma vez visto. “Mas
talvez seja um jardineiro invisível”. Então instalam uma cerca de arame
farpado. Eles a eletrificam. Patrulham com sabujos… Mas nenhum grito a
sugerir que algum intruso recebeu um choque. Nenhum movimento da
cerca a trair algum alpinista invisível. Os sabujos nunca latem. Mesmo
assim o crente não está convencido. “Mas há um jardineiro invisível,
intangível, insensível a choques elétricos, um jardineiro que não tem odor e
não faz som, um jardineiro que vem secretamente para cuidar do jardim que
ele ama”. Então o cético perde a paciência: “Mas o que resta da sua
afirmação original? De que modo o que você chama de um jardineiro
invisível, intangível, eternamente imperceptível difere de um jardineiro
imaginário ou mesmo de nenhum jardineiro?[63]

Tendo contado a história, Flew segue seu comentário fazendo uma forte
crítica à linguagem religiosa: alguém pode dissipar a afirmação dele
completamente sem perceber que ele fez isso. Alguém pode acabar por
dissipar sua afirmação completamente sem sequer perceber que o fez. Uma
hipótese audaciosa pode, então, ser destruída pouco a pouco, uma morte por
mil qualificações.

E é nisso que, parece-me, está o perigo peculiar, o mal endêmico, da


declaração teológica… Pois se a declaração é de fato uma afirmação, ela
será necessariamente equivalente a uma negação da negação dessa
afirmação. E qualquer coisa que pese contra a afirmação ou que induza o
orador a retirá-la e admitir que ela estava equivocada precisa ser parte (ou o
todo) do significado da negação dessa afirmação… E se não há nada que
uma suposta afirmação negue, não há nada que ela também afirme: sendo
assim, ela não é realmente uma afirmação.[64]

Flew suspeitava do discurso religioso porque notou que os crentes eram


propensos a se manter apegados às suas convicções mesmo quando estavam
cientes de aparentes evidências contrárias a essas crenças. Eles qualificam e
defendem, então qualificam e defendem um pouco mais. Começaria a parecer
que eles resguardam suas reivindicações teológicas contra todas e quaisquer
objeções ou refutações. Mas assim sendo, isso tornaria as convicções
religiosas impermeáveis à falsificação ─ tornaria a linguagem religiosa
compatível com todos os estados de coisas possíveis no mundo. Visto que o
falar de Deus não equivaleria a negar nada, não haveria nada intelectualmente
em jogo nas declarações teológicas. E assim, sendo não falseáveis, elas não
equivaleriam a afirmações genuínas ou significativas em primeiro lugar,
sugeriu Flew. Este é o problema com a linguagem religiosa.

Convicções fortes são, por sua própria natureza, não cognitivas?


Muitos autores subsequentes que refletiram sobre a crítica de Flew à
significabilidade do discurso religioso observaram, de uma forma ou de
outra, que ele falhou em distinguir adequadamente entre uma proposição
logicamente resistente à falsificação e a pessoa que acredita nessa proposição
psicologicamente resistindo à sua falsificação.
Uma proposição ou afirmação linguística que seja logicamente
compatível com todos e quaisquer estados de coisas pode, de fato, ser
considerada uma proposição que resiste à falsificação; como Flew
corretamente observou, na teoria então nada pode possivelmente contradizer
a proposição. Ela deve ser julgada como vazia. Mas uma pessoa pode resistir
a ser persuadida de que sua crença foi falseada por evidência contrária
mesmo quando a proposição em que ela acredita contradiz (descarta)
logicamente certos estados de coisas. Ele deveria ser simplesmente julgada
como obstinada.
Flew confundiu uma característica do comportamento humano
(defender diligentemente as próprias crenças) com uma característica
conceitual de algumas declarações linguísticas (logicamente nunca
precisando de uma defesa). E ao fazê-lo, ele aparentemente não notou que sua
polêmica contra o discurso “religioso” era na verdade uma polêmica contra
todo discurso “comprometido” ─ as declarações e respostas linguísticas das
pessoas que mantêm certas crenças dogmaticamente.
Se pensarmos nisso por um momento, é óbvio que as pessoas podem
manter, e de fato mantêm, convicções fortes sobre uma série de coisas e não
simplesmente sobre tópicos religiosos (estreitamente compreendidos). Às
vezes, crenças sobre eventos históricos são fervorosamente apresentadas e
defendidas (por exemplo, que Lee Harvey Oswald não agiu sozinho no
assassinato do presidente Kennedy). Às vezes, crenças sobre matérias
científicas são zelosamente defendidas (por exemplo, que os implantes
mamários de silicone não causam câncer, etc.). Praticamente qualquer tipo de
crença pode ser mantida de forma tenaz e defendida em grande extensão ─ da
mecânica de automóveis à honra da família. Parte do que significa dizer que
as pessoas mantêm suas convicções “fortemente” é precisamente que elas
resistem a ter essas convicções refutadas. Isso implica que a convicção deve
ser não cognitiva?
Ora, os cientistas frequentemente mostram uma teimosia intelectual
acerca das suas teorias sobre o mundo natural. Eles podem estar bastante
comprometidos com as conclusões a que chegam e as quais publicam.
Quando uma evidência ou raciocínio são defendidos contrariamente às suas
visões, eles defendem ou qualificam essas visões e muitas vezes “batem o pé”
contra a refutação.[65] Geralmente isso não é tomado como um sinal de que
suas teorias científicas devem ser vazias de qualquer reivindicação
significativa sobre o mundo ─ sendo assim cognitivamente sem sentido. Isso
geralmente é tomado apenas como a marca de uma crença profundamente
arraigada sobre a qual estão fortemente persuadidos (ou ao menos são
pessoalmente motivados). O status lógico da crença em questão não é afetado
pela conduta pessoal do indivíduo que a propõe ou defende (isto é, o grau da
disposição dele em abandonar a crença).
Uma vez que os cientistas naturais ─ e qualquer pessoa que tenha
convicções fortes sobre qualquer coisa ─ se comportam exatamente da
mesma forma que os crentes religiosos, a crítica de Flew da significabilidade
cognitiva da linguagem religiosa deveria, com justiça, ser aplicada à
linguagem da ciência natural também. O discurso científico que resiste à
refutação, que é o que costuma acontecer, seria consignado ao status de falta
de sentido cognitivo. Não era isso o que Flew pretendia fazer! Na verdade,
em se tratando de qualquer assunto, o único discurso “significativo”, de
acordo com a linha de pensamento de Flew, seria o discurso daqueles que são
hesitantes, questionadores ou incertos ─ o que é certamente uma avaliação
irracional.

O mito um por um
O comentário de Antony Flew sobre a parábola do jardineiro invisível obtém
sua persuasão do mito de que as crenças mantidas pelas pessoas são aceitas
ou rejeitadas à luz da evidência empírica uma a uma. Isto é, pensa-se
(erroneamente) que nós observacionalmente testamos e racionalmente
avaliamos apenas uma crença individual de cada vez. Supostamente o
estudioso cientificamente orientado toma uma única proposição como isolada
de qualquer outra proposição que ele afirmaria ser verdadeira e a compara
então com a evidência empírica que está disponível (ainda que a relevância e
a força dessa evidência sejam independentemente e indiscutivelmente
estabelecidas de antemão).
Essa, porém, não é de fato uma descrição precisa da forma como as
pessoas realmente chegam às crenças ou as testam à luz da evidência
empírica. Ademais, de um ponto de vista conceitual, o retrato do escrutínio
de crenças uma a uma para a falsificação empírica é totalmente artificial e
impossível.
As crenças que as pessoas mantêm estão sempre ligadas a outras
crenças por relações concernentes ao significado linguístico, à ordem lógica,
à dependência evidencial, à explicação causal, a autoconcepções e
concepções indexicais, etc. Afirmar “Vejo uma joaninha na rosa” é afirmar e
assumir uma série de coisas simultaneamente ─ algumas bastante óbvias (por
ex., sobre o uso de palavras em português, sobre a identidade pessoal, sobre
um evento perceptivo, sobre categorias de insetos e flores, sobre relações
físicas), outras mais sutis (por ex., sobre a competência linguística,
entomológica e botânica da pessoa, sobre a normalidade dos seus olhos e
tronco encefálico, sobre teorias de refração da luz, sobre gramática e
semântica compartilhada, sobre a realidade do mundo externo, sobre as leis
da lógica, etc.).
A rede de todas essas crenças em conjunto encontra o tribunal de
qualquer experiência empírica.[66] Quando é detectado um conflito entre essa
rede de crenças e a experiência empírica, tudo o que sabemos é que precisará
ser feito algum tipo de ajuste nas crenças para restaurar a ordem ou
consistência. Mas não há maneira de determinar de antemão que mudança
específica uma pessoa vai escolher para eliminar o conflito dentro do seu
pensamento.
Se Sam diz que viu uma joaninha na rosa, mas todos os seus amigos
dizem que não viram uma joaninha, de quais crenças ele abrirá mão? Há toda
uma série de possibilidades. Talvez seus amigos não saibam a diferença entre
pulgões e joaninhas. Talvez haja uma mancha nos óculos dele. Talvez a
iluminação seja inadequada. Talvez ele não entenda o uso da palavra em
português “rosa”. Talvez seus amigos estejam consumindo drogas. Talvez
estiveram olhando para uma rosa diferente. Talvez a joaninha tenha
rapidamente voado embora. Talvez ele esteja sonhando. Talvez nossos
sentidos nos enganem. Talvez só os “puros de coração” podem ver joaninhas
mansas, e os amigos dele são perversos… Há tantas possibilidades de corrigir
suposições anteriores, indo desde o que parece razoável até ao que parece
fanático ou extremo. O ponto é, simplesmente, que o que a contra-evidência
da observação de Sam vai falsear é algo ambíguo e incerto.
Lembre-se da história do psiquiatra que estava tratando um homem que
acreditava estar morto. Aconselhar o pobre homem sobre sua neurose parecia
não levar a lugar algum. Finalmente um dia o psiquiatra decidiu usar um teste
empírico para convencer o paciente do seu erro. Ele perguntou ao homem se
mortos sangram, ao que o homem respondeu “não”. Então o psiquiatra picou
um dedo do homem com um alfinete e pediu para o homem prestar atenção:
ele estava sangrando, logo não poderia estar morto. E a isso o paciente
respondeu que ele, então, deveria ter estado errado: mortos sangram sim! O
psiquiatra nessa piada erroneamente pensou que o dedo sangrando seria uma
contra-evidência que falsearia uma crença específica do paciente (a saber,
que ele estava morto), quando na verdade era igualmente possível ela falsear
uma crença relacionada (a saber, que mortos não sangram).
Visto que a experiência ou evidência empírica nunca falseiam de forma
decisiva qualquer crença específica na rede de convicções de uma pessoa,
sucede que é possível (mesmo que pareça irracional para os outros) uma
pessoa escolher tratar quaisquer de suas crenças ─ sobre o que quer que seja
─ como convicções centrais em relação às quais qualquer outra crença deve
primeiro se submeter quando uma contra-evidência é oferecida. Ou seja, dado
o fato de que toda uma rede de crenças, em vez de crenças individuais
isoladas, satisfaz o teste da evidência observacional, então qualquer crença
pode ser tratada como não falseável. Isso é uma característica de todas as
crenças. A falseabilidade não é inerentemente uma característica de qualquer
crença específica ou crença sobre qualquer assunto específico. Isso é tão
verdade para as crenças “religiosas” (estritamente entendidas) quanto para as
crenças sobre o mundo natural.
O falsificacionista não relegará com sucesso a linguagem religiosa à
desgraça da falta de sentido, a menos que o faça às custas de consignar todo
discurso à mesma desgraça. Embora possa haver algo de errado ou fanático
na maneira particular em que um crente resguarda suas convicções da
refutação, esse fato ainda assim não impugna a significabilidade da sua
linguagem religiosa. Ela é simplesmente a linguagem da convicção forte e da
crença firmemente entrincheirada ─ a linguagem da pressuposição.

Flew também tem suas pressuposições


Todo pensador concede status preferencial a algumas de suas crenças e às
afirmações linguísticas que as expressam. Essas convicções privilegiadas são
“centrais” para a sua “teia de crenças”, sendo tratadas como imunes à revisão
─ até que a própria rede de convicções seja alterada.[67] Essas crenças centrais
têm significância cognitiva (isto é, não são simplesmente verdades
estipuladas em virtude das definições e da lógica), e, todavia, resistem à
falsificação empírica em um grau ou outro (dependendo de quão fixas e
centrais são no sistema).[68] A realidade da natureza e do comportamento
humanos deve ser reconhecida: nossos pensamentos, raciocínio e conduta são
governados por convicções pressuposicionais que são questões de profunda
preocupação pessoal, que estão longe de serem vazias ou triviais e às quais
buscamos intelectualmente nos agarrar e defender “até o fim”.
Por mais irreligioso que Antony Flew possa ser como pessoa, ele
também possui compromissos fundamentais aos quais “religiosamente”
adere. Ele tenta alinhar seu pensamento e sua vida a essas pressuposições
pessoais ─ o que significa que, ao ser confrontado com o que parece ser
contra-evidência, ele qualificará e defenderá a linguagem pela qual expressa
essas pressuposições. Ele trata as declarações sobre elas como não falseáveis!
Como apontado por John Frame, “tanto Flew como o cristão estão no mesmo
barco”. Cada qual tem suas pressuposições para as quais acreditam haver
extensa evidência, e cada qual faria mudanças extensivas dentro dos seus
respectivos sistemas de pensamento para resguardar essas pressuposições ─
compromissos do coração e convicções governantes da vida ─ da refutação.
Frame ilustra isso por meio de uma paródia inteligente que reverte o
ponto da famosa parábola de Flew:
Era uma vez dois exploradores que chegaram a uma clareira na floresta. Um
homem estava lá puxando ervas daninhas, aplicando fertilizante e podando
os galhos. O homem se voltou para os exploradores e se apresentou como o
jardineiro real. Um explorador apertou a mão e trocou gentilezas. O outro
ignorou o jardineiro e se virou: “Não pode haver jardineiro nesta parte da
floresta”, disse ele; “deve ser algum truque”. Eles acampam. Todos os dias
o jardineiro chega e cuida do terreno. Logo o terreno irrompe com flores
perfeitamente arranjadas. “Ele só está fazendo isso porque estamos aqui ─
para nos enganar e fazer pensar que esse é um jardim real”. O jardineiro os
leva a um palácio real, introduz os exploradores a uma fila de oficiais que
verificam o estado do jardineiro. Então o cético tenta um último recurso:
“Nossos sentidos estão nos enganando. Não há nem jardineiro, nem flores,
nem palácio, nem oficiais. Ainda é tudo uma farsa!”. Então o crente perde a
paciência: “Mas o que resta da sua afirmação original? De que modo essa
miragem, como você a chama, difere de um jardineiro real?”.[69]

Como o desafio dos positivistas lógicos, o desafio falsificacionista de Flew à


significabilidade cognitiva da linguagem religiosa foi um fracasso. Na
tentativa de desacreditar a cosmovisão da fé cristã, ele (como os positivistas)
acabou desacreditando a significabilidade de toda linguagem, incluindo a
linguagem da ciência e o discurso sobre suas próprias convicções mais
estimadas. A autorrefutação é a refutação mais dolorosa de todas.
Assim, podemos concluir nossa resposta. A alegação de “problemas”
com a significabilidade da linguagem religiosa que foi apresentada tanto por
verificacionistas como falsificacionistas neste século acabou revelando, na
verdade, as inconsistências e preconceitos religiosos dos críticos do
cristianismo.
34. O PROBLEMA DOS MILAGRES

Com frequência a mente moderna acha abominável a ocorrência ─ ou mesmo


a possibilidade ─ de milagres. Os milagres abalariam nossas visões simplistas
(e impersonalistas) da previsibilidade e uniformidade do mundo à nossa
volta. Os milagres indicariam que há um reino de mistério inescrutável para a
(alegada) autonomia da mente do homem. Os milagres testemunhariam um
Poder transcendente e autoconsciente no Universo que os incrédulos acham
inquietante. Assim, em vez de examinar se os milagres de fato ocorreram ou
de levar a sério seus relatos e seu significado, é melhor, pensam os
incrédulos, descartar sua possibilidade de antemão.
Assim, ouviremos críticos do cristianismo dizerem coisas como:
“Como alguém que sabe um pouquinho de ciência de ensino médio pode
acreditar que uma virgem pode conceber uma criança, um homem pode andar
sobre a água, uma tempestade pode ser acalmada com uma ordem, um cego
ou aleijado pode ser instantaneamente curado ou um cadáver pode
ressuscitar? O mundo moderno sabe mais! As reivindicações de milagre do
cristianismo são evidências da sua irracionalidade e seu caráter
supersticioso”. Diante dessa zombaria e provocação, os cristãos por vezes se
acovardam em silêncio, quando na verdade o crítico é quem deveria ser
intelectualmente envergonhado ─ envergonhado por sua ignorância histórica,
bem como pelos defeitos lógicos no seu pensamento.

Difamando o passado
No desafio hipotético à credibilidade do cristianismo que é expresso cima
(que busca ser representativo dos comentários e da mentalidade negativa real
dos incrédulos que encontramos), você notará que há uma suposição não
questionada e arrogante de que uma mentalidade crítica sobre os milagres é
propriedade exclusiva do “mundo moderno”. Com sarcasmo o filósofo David
Hume observou que constitui uma forte presunção contra todos os relatos
sobrenaturais e milagrosos eles serem vistos abundar principalmente entre as
nações bárbaras e ignorantes; ou se aconteceu de algum povo civilizado já
admitir qualquer deles, poder-se-ia verificar que esse povo os recebera de
ancestrais ignorantes e bárbaros…[70]
Vez após outra você encontrará não cristãos que simplesmente tomam
como certo que as pessoas no mundo antigo acreditavam que os milagres
ocorriam, a bem da verdade, porque elas (a) eram muito cientificamente
estúpidas para saber mais, (b) eram crédulas e ingênuas e/ou (c) eram
fascinadas e ávidas por encontrar, em qualquer lugar que pudessem, vestígios
de magia na sua experiência.
Evidentemente, nessas três classes deveríamos nos perguntar se o
mundo moderno iluminado tem algum motivo para se orgulhar, realmente.
Não é nem um pouco difícil localizar hoje pessoas cientificamente estúpidas,
mesmo graduados na faculdade. Veja-os tentar “consertar” coisas com um
martelo, lidar com uma barata indesejada ou racionalizar seu tabagismo; ouça
suas receitas caseiras para a ressaca. E o que dizer da credulidade e magia!
Em nosso mundo moderno “ó-que-inteligente”, você já ouviu falar de
esquemas de investimento “enriqueça rapidamente”, modismos de dieta,
febre de loteria ou da maravilha dos cristais (ou pirâmides, etc.)?
Ou ouça todos aqueles artistas respeitados em programas de
entretenimento da TV falando a audiências grandes e atentas sobre “a sua
vida anterior”, ou sobre o poder de cura da meditação, ou sobre o “karma
social” e a “mãe terra”, ou sobre a “face humana” da tirania comunista em
nosso século, etc. Dificilmente essas são evidências de uma mente crítica ou
racionalidade superior.

Acredite ou não, o ceticismo está aí

As pessoas de pensamento lúcido devem se acautelar de generalizações


descuidadas e convenientes sobre, ou comparações entre, uma era (ou
cultura) e outra.
Mais ainda, elas devem evitar de manifestar o tipo de ignorância
histórica que imagina que as pessoas que viveram antes da nossa era moderna
iluminada nunca tinham, em geral, um espírito crítico ou eram prontamente
enganadas (ou mais facilmente do que nós) para aceitar estórias de milagres.
Afinal, qual é a fonte da expressão ocasionalmente ainda usada em nossos
dias “ele é apenas um Tomé duvidoso”? Você se lembra de Tomé, chamado
Dídimo (o “Gêmeo”), do relato do evangelho de João da ressurreição de
Cristo (João 20.24-29)? No decurso da história subsequente ele veio a ser
chamado de “o Tomé desconfiado” só por causa da sua mentalidade cética
em relação a um dos maiores milagres na Bíblia. Tomé não aceitaria
prontamente o testemunho dos outros apóstolos de que tinham visto o
Salvador ressurreto.
E ele não estava sozinho nesse espírito de incredulidade. Mesmo
aqueles que encontraram Cristo pessoalmente depois que ele ressuscitou dos
mortos não estavam esperando animadamente ou pulando entusiasmados pela
oportunidade de crer que um milagre havia ocorrido. Dois discípulos na
estrada para Emaús (Lucas 24.13-31) assim como Maria Madalena (João
20.1, 11-16) estavam tão pouco inclinados a crer nesse milagre que nem
sequer reconheceram Jesus quando o viram. (A psicologia da Gestalt nos
ajuda a entender esse tipo de experiência, que todos nós já tivemos ao “ver”
uma pessoa que conhecemos, mas não a reconhecer “fora do contexto
normal” ou num cenário inesperado.) Mateus relata que mesmo na presença
do Senhor ressuscitado e sabendo quem ele era, “alguns duvidaram” (Mateus
28.17).
Quando o evangelho do Salvador ressuscitado foi levado para o mundo
antigo, houve ─ assim como agora ─ um antagonismo geral à credibilidade
dessas alegações. Paulo proclamou a ressurreição de Cristo perante o
Concílio do Areópago em Atenas, mas o poeta grego Ésquilo muitos anos
antes já havia relatado, na história da própria fundação do Areópago, ali estar
declarado que uma vez que um homem morre, “não há ressurreição”. O
mundo antigo tinha sua quota de ceticismo e denúncia dos milagres. Lucas
escreveu que quando o discurso de Paulo no Areópago o levou à afirmar
sobre a ressurreição de Cristo, sua audiência dificilmente poderia ser
caracterizada por uma credulidade geral e predisposição da vontade para
afirmar o milagre! Antes, “como ouviram falar da ressurreição dos mortos,
uns escarneciam” e outros mais educadamente deixaram para ouvir Paulo
outra hora (Atos 17.32). A ridicularização dos milagres não começou no
mundo moderno da ciência iluminada.
Como a nossa própria cultura hoje, o mundo antigo era
intelectualmente um caldeirão de diversidade. Tal como nós, ela tinha sua
quota de pessoas supersticiosas e de mentalidade mística; como é o nosso
caso, ela tinha pessoas cujo pensamento era ignorante, mal-informado,
preguiçoso, estúpido, ilógico e simplório. Mas também como a nossa própria
era, o mundo antigo tinha inúmeras pessoas que eram céticas e cínicas. (Na
verdade, esses eram mesmo os nomes de duas escolas proeminentes da
filosofia grega antiga no período do Novo Testamento!) Inúmeras pessoas no
mundo antigo tinham um espírito crítico sobre relatos de maravilhas naturais
e poderes mágicos. Muitos não só duvidavam das alegações de milagres e os
achavam incríveis, como até mesmo excluíam a própria possibilidade dessas
coisas ocorrerem.

As reivindicações de verdade do cristianismo

Tanto era esse o caso que você notará o apóstolo Pedro sentir necessidade de
fazer a seguinte declaração na sua segunda epístola geral: “Porque não vos
demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo seguindo
fábulas engenhosamente inventadas, mas nós mesmos fomos testemunhas
oculares da sua majestade” (2 Pedro 1.16, ARA). Pedro sabia que seria fácil
as pessoas “anularem” as reivindicações dos cristãos como apenas mais um
falatório ocioso e contação de histórias; ele sabia que as pessoas da sua
própria geração haviam rejeitado a proclamação da igreja sobre Jesus porque
não acreditariam em alegações sobre milagres. Longe de serem estúpidos e
crédulos, os contemporâneos de Pedro tinham de se assegurar de que os
relatos apostólicos de Jesus não eram fábulas engenhosamente inventadas,
mas a verdade do testemunho ocular.
Era importante para o testemunho cristão em meio a uma cultura
incrédula que os seguidores de Jesus tivessem uma reputação de não “se
ocup[ar] com fábulas” (1 Timóteo 1.4, ARA) ou entreter histórias “de velhas
caducas” (1 Timóteo 4.7, ARA) ─ isto é, relatos ficcionais que são o próprio
oposto “da verdade” do cristianismo (2 Timóteo 4.4). De muito bom grado o
mundo hostil dos homens irregenerados gostaria de rejeitar as afirmações da
narrativa dos evangelhos como sendo da mesma natureza mítica ─ fabulosa,
não confiável, exagerada.
O ponto aqui, mui simplesmente, é que os críticos contemporâneos da
fé cristã que automaticamente rejeitam e ridicularizam as reivindicações de
milagre da Bíblia por cauda da alegada credulidade e ignorância
generalizadas do mundo antigo só trazem vergonha sobre si mesmos por seus
próprios preconceitos ignorantes e generalizações injustificadas. Como hoje,
os defensores da fé no mundo antigo encontravam negatividade e oposição
significativa sobre a alegada ocorrência de milagres ─ hostilidade variando
de repúdios filosóficos sofisticados à profunda zombaria. Se certas pessoas
que viviam naqueles dias chegaram à crença de que Jesus havia nascido de
uma virgem, caminhado sobre a água, curado doentes e levantado dos
mortos, isso não foi porque elas categoricamente eram pessoas fracas de
espírito e idiotas ignorantes, prontas a acreditar em toda e qualquer fábula
que surgisse em seu caminho.

Incorrendo em petição de princípio

O incrédulo que rejeita de antemão o relato bíblico dos milagres não só


deveria ter vergonha da sua calúnia arrogante contra a alegada ignorância e
credulidade do mundo antigo, como também deveria ficar envergonhado com
o caráter logicamente falacioso do seu “raciocínio”. Considere novamente
nossa declaração anterior de um incrédulo hipotético que resume os
comentários reais que ouvimos dos não cristãos: “Como alguém que sabe um
pouquinho de ciência de ensino médio pode acreditar que uma virgem pode
conceber uma criança, um homem pode andar sobre a água, uma tempestade
pode ser acalmada com uma ordem, um cego ou aleijado pode ser
instantaneamente curado ou um cadáver pode ressuscitar? O mundo moderno
sabe mais! As reivindicações de milagre do cristianismo são evidências da
sua irracionalidade e seu caráter supersticioso”.
Geralmente os incrédulos que falam dessa maneira ignoram totalmente
o caráter fátuo e falacioso do que estão dizendo e sugerindo. Eles amiúde
pensam que estão tratando as reivindicações de milagre da Bíblia como uma
evidência independente de que a cosmovisão cristã é racionalmente
inaceitável. Seu raciocínio é algo como isto: nós já sabemos que milagres não
ocorrem (“Como alguém pode acreditar…”), e como o cristianismo alega que
essas coisas impossíveis ocorreram (por ex., nascimento virginal,
ressurreição), podemos tirar a conclusão de que o cristianismo deve ser falso.
Mas essa conclusão não é tanto “tirada” quanto tomada como certa desde o
princípio. A negação da própria possibilidade dos milagres não é um
elemento de evidência para rejeitar a cosmovisão cristã, mas simplesmente
uma manifestação específica da própria rejeição.
Somente se a cosmovisão cristã fosse falsa é que a possibilidade dos
milagres poderia ser convincentemente excluída. De acordo com o relato da
Escritura, Deus é o Criador transcendente e onipotente dos céus e da terra.
Tudo deve sua própria existência e caráter à definição e ao poder criativo dele
(Gênesis 1; Neemias 9.6; Colossenses 1.16-17). Ele faz as coisas do jeito que
são e determina como irão funcionar. “… seu entendimento é infinito”
(Salmos 147.5). Além disso, Deus soberanamente governa cada evento que
transpira, determinando o que, quando, onde e como as coisas acontecem ─
do movimento dos planetas aos decretos dos reis até os próprios cabelos da
nossa cabeça (Efésios 1.11). De acordo com a Bíblia, ele é onipotente e tem o
controle total do Universo. Isaías 40 celebra numa famosa fraseologia a
criação, delimitação, direção, providência e poder de Jeová (vv. 12, 22-28).
Ele tem a mesma liberdade e controle sobre a ordem criada que o oleiro tem
sobre o barro (Romanos 9.21). Como afirma o salmista, “nosso Deus está nos
céus; fez tudo o que lhe agradou” (Salmos 115.3).

Fé vs. fé

Mui simplesmente, de acordo com o testemunho bíblico, “o Senhor Deus


Todo-Poderoso reina” (Apocalipse 19.6). Portanto, nos termos da cosmovisão
cristã, não há nada “muito difícil” para Deus fazer de acordo com a sua
própria vontade santa (Gênesis 18.14). Por causa de quem ele é, “a Deus tudo
é possível” (Mateus 19.26; cf. Marcos 14.36). Nada pode estorvar sua mão ou
impedi-lo de realizar o que ele deseja.
Agora, então, se esse Deus retratado nas páginas da Bíblia realmente
existe, seria absurdo tentar descartar a possibilidade dos milagres. Deus
poderia realizar qualquer coisa ─ da divisão do Mar Vermelho à ressurreição
dos mortos. É importante ter isso em mente quando encontramos incrédulos
que confiantemente rejeitam o cristianismo e ridicularizam sua credibilidade
com base nas suas afirmações fantásticas sobre os milagres que ocorreram na
história. Declarar de antemão que os milagres narrados na Bíblia não
ocorreram porque tais milagres não poderiam ocorrer e, “portanto”, que o
cristianismo é falso, é simplesmente incorrer na “petição de princípio” que
separa os crentes dos incrédulos. É tomar como certo o que o incrédulo
precisa provar ─ que a cosmovisão cristã não é verdadeira.
Assim, como você percebe, dada a ridicularização comumente feita
pelos incrédulos sobre a incredibilidade dos milagres, o alegado problema
com esses eventos se resume aos preconceitos pessoais do incrédulo
disfarçados de “racionalidade moderna”. O incrédulo que impetuosamente e
retoricamente pede “mostre como alguém com uma educação moderna
poderia acreditar em milagres”, repudiando assim a respeitabilidade
intelectual do cristianismo, está, a partir de uma análise, afirmando não mais
do que isto: “A menos que a cosmovisão cristã seja verdadeira, a presença de
reivindicações de milagre na Bíblia é evidência de que a cosmovisão cristã
não é verdadeira”. Que coisa banal.
O que geralmente descobrimos, então, é que os incrédulos que rejeitam
os relatos de milagre na Bíblia estão simplesmente dando expressão aos seus
próprios preconceitos filosóficos ─ seu compromisso pressuposicional com
um entendimento exclusivamente naturalista do mundo em que vivemos.
Esse pré-compromisso filosófico hostil não foi demonstrado como
verdadeiro, mas simplesmente assumido de uma forma acrítica.
A natureza pressuposicional da disputa sobre os milagres se torna muito
clara quando paramos e analisamos o que queremos dizer ao falar de um
“milagre”.

O conceito do “milagroso”

A palavra “milagre” não aparece no texto da Escritura. Os eventos registrados


na Bíblia que estaríamos inclinados a rotular de “milagres” são, em vez disso,
chamados no Antigo e Novo Testamentos de “sinais”, “maravilhas”,
“obras/atos [de Deus]”, “o que é maravilhoso, surpreendente”, “presságios”
ou “poderes”. As palavras bíblicas, assim, enfatizam uma ou mais das
seguintes características:

1. O caráter incrível e extraordinário dos eventos sendo descritos (cheio de


admiração, evocando espanto),
2. A dificuldade desses eventos que excedem a capacidade humana normal
(cheio de poder, um ato de força divina) e/ou
3. O propósito desses eventos que apontam para além de si mesmos para
alguma verdade ou lição teológica especial (sinais, presságios).

O que é interessante para os nossos propósitos é que, embora aludam a ele,


essas características não equivalem por si só ao conceito pleno de milagre
como discutido em círculos religiosos e filosóficos. A ênfase conotativa das
palavras bíblicas é um pouco diferente do (embora não contrária ao) que é
enfatizado na palavra inglesa moderna “milagre”.
Há eventos que claramente vão além da capacidade ou força humana
comum (cf. 2); mas eles também não seriam (à parte da pura retórica, de
novo) seriamente chamados de “milagres”. Um furacão é muito mais forte do
que um homem, e nenhum mero homem tem a capacidade de gerar ou
impedir um furacão. Mas furacões não são eventos milagrosos em si mesmos.
Na verdade, há alguns meteorologistas que podem explicar com baste detalhe
os fatores naturais que originam os furacões, podem relatar como eles agem e
se dissipam e podem até mesmo fazer um trabalho razoavelmente exato de
predizer quando eles ocorrerão e que curso vão tomar. Mas nenhum
meteorologista pode dar um relato causal de Jesus acalmando uma
tempestade no mar com um simples comando verbal.
Devemos observar, também, que os seres humanos são expostos a
eventos e coisas naturais ─ como a beleza do mar ou a grandiosidade das
estrelas ─ que apontam para além de si mesmos à maravilha teológica e
glória de Deus o Criador, de acordo com Salmos 19 e Romanos 1. No
entanto, em nosso discurso comum não falamos do mar agitado ou dos
planetas em órbita como “milagres”. Eles são sinais, até sinais que nos
deixam com um senso de admiração. Contudo, são também bastante
“naturais”. Ao contrário de transformar água em vinho ou levantar dos
mortos.
O que chamamos de “milagres” são mais do que eventos incríveis, mais
do que ocorrências poderosas, mais do que lições teológicas em parábolas. O
que distingue o evento “milagroso” de todas essas outras grandes coisas que
acontecem é o seu caráter especificamente sobrenatural. O milagre é um
evento extraordinário e assombroso que em seu caráter (ou por vezes no seu
timing) não pode ser explicado por princípios naturais conhecidos ou
controlado por meros seres humanos. Essa é a sua qualidade sobrenatural.

Alguns desvios conceituais


A sobrenaturalidade de um evento que deve ser classificado como “milagre”
tem sido amiúde mal-interpretada, até mesmo por apologistas bem-
intencionados da fé. Antes de analisarmos mais diretamente a qualidade
sobrenatural dos milagres, devemos cuidar para evitar certos caminhos
filosóficos ou teológicos enganadores.

Milagres como uma diretiva pessoal


Às vezes se pensa que os milagres são sobrenaturais porque constituem
intrusões divinas nas operações normais e previsíveis do que é por outro lado
um domínio “fechado” e autoperpetuador da “natureza”. Metáforas
mecânicas são frequentemente usadas para fazer um retrato dessa ordem
natural; por exemplo, a metáfora de um relógio bem projetado que Deus
inventou, finalizou, do qual se afastou e que agora corre sozinho ─ exceto por
aquelas raras ocasiões em que o relojoeiro entra para interferir na forma como
queria que o relógio operasse.
A maneira mais filosoficamente sofisticada de descrever essa situação é
falar de uma “lei natural”. Os eventos que transpiram no Universo, quer
sejam monumentais, quer sejam minúsculos, são vistos como inevitáveis e
previsíveis de acordo com fatores causais que podem, na teoria, ser descritos
em princípios sistemáticos, legiformes. Muitos filósofos gregos antigos (por
ex., Heráclito, os estoicos) conceberam uma “razão” ou “logos” eterno e
impessoal governando ou fluindo através do reino da matéria, organizando
assim todo movimento ou atividade numa ordem racional.
A versão religiosa dessa noção de que existem “leis da natureza”
postula um Deus pessoal como a origem do mundo material e dos princípios
causais pelos quais este opera, mas esse Deus (e o exercício livre ou arbitrário
da sua vontade onipotente), no entanto, está “separado” do funcionamento
ordinário e contínuo do mundo que ele fez. Deus escolheu não governar
diretamente cada detalhe no mundo criado na base do momento a momento, e
assim a “natureza” tem leis inerentes a ela que determinam o que as coisas
são e como as coisas acontecem. Variações nessa concepção do mundo de
Deus como governado por leis naturais impessoais são encontradas em uma
ampla gama de profissões cristãs, do deísmo ao tomismo (catolicismo
romano) ao arminianismo evangélico.
Dada a concepção acima, a sobrenaturalidade de um “milagre” consiste
na sua “violação” das leis da natureza. Deus interfere no maquinário do
mundo agindo nos seus [mundo] procedimentos e ações dirigidos por leis.
Essa, no entanto, é uma maneira defeituosa e terrivelmente equivocada de
pensar sobre o cosmo e sobre Deus. A autorrevelação de Deus nas Escrituras
não oferece nenhum suporte para a ideia de que existem leis impessoais da
natureza que fazem o mundo operar mecanicamente e com uma
inevitabilidade que é livre (ordinariamente) das escolhas da vontade de Deus.
Na verdade, a Bíblia nos oferece uma visão do mundo que é totalmente
contrária a isso, uma visão onde Deus e seus agentes são vistos como íntima,
contínua e diretamente envolvidos em todos os eventos detalhados que
transpiram na ordem criada.
Deus pessoalmente criou e agora pessoalmente dirige todos os
acontecimentos no mundo. Assim, sustentar toda a vida animal e renovar as
plantas neste mundo são uma obra do Espírito de Deus (Isaías 63.14; Salmos
104.29-30); o Espírito de Jeová está intimamente envolvido com os processos
do mundo criado, desde o desvanecimento das flores à condução das
correntes de águas (Isaías 40.7; 59.19). A vontade decretiva de Deus governa
todas as coisas que acontecem, da mudança das estações (Gênesis 8.22) aos
cabelos na nossa cabeça (Mateus 10.30). Até mesmo os eventos
aparentemente fortuitos nesta vida são planejados e conduzidos por sua
vontade soberana (Provérbios 16.33; 1 Reis 22.28, 34). Paulo declara que
Deus “faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Efésios
1.11, ARA). Isto é, ele está por trás de todas as coisas que acontecem. Não há
um reino semi-autônomo, auto-operante da “natureza” cujas leis impessoais
são ocasionalmente “violadas” pelo Deus que se revela nas páginas da Bíblia.
Nada é independente dele e de sua vontade soberana, imanente, pessoal.

Milagres como providência super-ordinária


Outra concepção equivocada da qualidade sobrenatural dos eventos
milagrosos defende que, embora Deus planeje e cause tudo o que acontece no
mundo, ele às vezes executa suas escolhas por um poder mais “direto” ou
“imediato” e não através dos meios ordinários da sua providência
pessoalmente em ação no mundo natural. Como exemplo da diferença,
poderíamos pensar na maneira como Deus normalmente exerce sua
providência para trazer pães ao mundo ─ plantando e colhendo o trigo no
devido tempo, trabalhando na cozinha com uma receita, assando a massa,
tirando-a do forno, etc. Por contraste, pensa-se que Deus pode
“milagrosamente” produzir o mesmo efeito, mas sem usar os meios normais
dentro do mundo criado. Ele pode “imediatamente” trazer pães à existência,
como fez Jesus com a multiplicação de cinco pães para alimentar cinco mil
pessoas (Mateus 14.19-21). Um milagre, então, vem para ser visto como uma
“providência extraordinária”, um evento incomum produzido pelo poder
“imediato” de Deus.
Essa generalização não é clara. Por que o assar de pão não é dito ser
realizado pelo poder “imediato” de Deus? Porque ele utiliza os meios de calor
produzidos pela queima de madeira. Mas então por que a queima de madeira
(ou as interações químicas envolvidas, etc.) não é dita ser realizada pelo
poder “imediato” de Deus? Parece que os exercícios mediato e imediato da
vontade de Deus são apenas relativamente (ou subjetivamente) distinguidos
pela forma como escolhemos olhar para o processo envolvido. A
generalização que estamos considerando é também apressada e falaciosa.
Nem todos os “milagres” bíblicos podem ser prontamente classificados como
atos “imediatos” do poder de Deus. A separação do Mar Vermelho para a
fuga dos hebreus do Egito foi uma das maiores e bem lembradas maravilhas
do Antigo Testamento. No entanto, Êxodo nos diz que Deus a realizou por
meio do fenômeno natural de um forte vento oriental. Um dia Jesus curou um
homem cego através do meio natural de aplicar lama (saliva e sujeira) nos
seus olhos. Quando Jesus acalmou a tempestade no lago, utilizou o meio
natural da sua voz humana para repreender as ondas. A ideia de o milagre ser
algo sobrenatural porque é um ato “direto” de Deus intervindo na operação
comum do mundo cria mais dor-de-cabeça conceitual do que o resolve.

Milagres das trevas


Outro mal-entendido da sobrenaturalidade dos eventos milagrosos é
detectado na convicção comum de que “milagres” só podem ser
genuinamente realizados pelo Deus vivo e verdadeiro ─ em cujo caso
qualquer caso devidamente autenticado de ocorrência milagrosa funciona
como um marcador ou evidência de que Deus está agindo, geralmente
confirmando a aprovação divina da mensagem ou da pessoa do milagreiro.
Mas essa premissa está simplesmente em desacordo com o próprio
testemunho bíblico.
No dia do julgamento haverá pessoas que realizaram obras poderosas,
tendo até mesmo expulsado demônios, que não terão a aprovação ou
aceitação de Deus (Mateus 7.22-23). A Escritura nos diz que quando Moisés
realizou milagres pelo poder de Deus perante do Faraó, os magos da corte
puderam reproduzir alguns deles, obviamente pelo poder maligno de Satanás
(por ex., Êxodo 7.11-12). Falsos profetas (Deuteronômio 13.1-2) e falsos
messias (Mateus 24.24) são reconhecidos na palavra de Deus como tendo o
poder de realizar milagres. Um líder bestial em Apocalipse 13.13-15 atribuiu
a ele a realização de grandes milagres, como fazer fogo descer do céu e uma
estátua falar. Por que homens ímpios realizam esses feitos milagrosos? Para
enganar os homens e levá-los ao erro teológico, para seduzi-los a mentiras
(cf. Deuteronômio 13.2; Apocalipse 13.14). Por conseguinte, a Bíblia pode
descrever esses milagres malignos como “prodígios de mentira” (2
Tessalonicenses 2.9) porque são eventos incríveis que mentem sobre Deus e
enganam o seu Povo ─ e não (como alguns intérpretes impõem sobre o texto)
porque são “pseudo” milagres (falsos, que fazem de conta, ilusórios). Eles
são maravilhas reais que afastam as pessoas da verdade.
E assim o “poder sobrenatural” por trás da realização de um milagre
pode ser o Deus vivo e verdadeiro a quem as pessoas devem adorar e
obedecer, mas também pode ser o Príncipe das Trevas, o diabo, que quer
enganar os homens e levá-los ao erro que acarreta a condenação da alma. (É
claro que, como o livro de Jó nos ensina, até mesmo as realizações de Satanás
ocorrem em sujeição à direção soberana de Deus. Satanás não é um poder
genuinamente autônomo no Universo.)

[1]
“Sempre prontos”, na versão bíblica usada pelo autor. [N. do T.]
[2]
Isso é algo reconhecido até mesmo por muitos dos oponentes teológicos do Dr. Bahnsen.
Poucos, se mesmo algum, se lhe igualavam quando se tratava de acuidade intelectual e
habilidades de debate. Um exemplo perfeito das suas habilidades apologéticas pode ser
testemunhado no seu famoso debate na Universidade da Califórnia, Irvine, em 1985, com o
promotor do ateísmo Dr. Gordon Stein.
[3]
“Apologética pressuposicional” é uma escola distinta de método apologético,
colocando-se em oposição aos métodos “clássico” (tomista) e fideísta. Este livro é uma
explicação e aplicação do método apologético pressuposicional.
[4]
Na versão traduzida do autor, “para que ninguém vos roube, …”. [N. do T.]
[5]
Conforme o original. As traduções da Bíblia em português trazem “Em verdade, em
verdade te digo…” (ARA), “"Digo-lhe a verdade" (NVI), entre outras. [N. do T.]
[6]
“Epistemologia” se refere à teoria de conhecimento (sua natureza, fontes, limites) de
uma pessoa. Quando perguntamos “Como você sabe que isso é verdade?” (ou “Como você
poderia justificar essa afirmação?”), estamos fazendo uma pergunta epistemológica.
[7]
Diz-se que o que quer que se origine além da experiência temporal do homem ou exceda
essa experiência finita “transcende” o homem.
[8]
Essa visão também é imprecisa e ingênua no tocante à experiência comum e à prática da
ciência, mas este não é o lugar para entrar numa longa e detalhada discussão da natureza
teoricamente impregnada de todo conhecimento humano. Observar que “há uma rosa no
jardim” implica em si mesmo pressupor uma série de outras crenças que são de natureza
teorética e não observacional.
[9]
“Empírico” é um termo aplicado a aquilo que é conhecido pela experiência, observação
ou percepção sensorial. O “empirismo” como escola de pensamento ousadamente
reivindica que todo o conhecimento do homem depende de meios empíricos.
[10]
Perceberemos isso se prestarmos atenção à história registrada na Bíblia. Os israelitas
viram milagres em primeira mão no deserto, mas mesmo assim duvidaram de Deus e o
desobedeceram. Os líderes judeus viram Jesus ressuscitar Lázaro dentre os mortos e como
resposta conspiraram matar Jesus! Eles pagaram os soldados para mentir sobre a própria
ressurreição do Senhor! O Senhor nos deu uma abundância de evidência empírica da
veracidade dele, mas a forma como a evidência é tratada é determinada por compromissos
e crenças mais fundamentais na vida de uma pessoa. “Se não ouvem a Moisés e aos
Profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos
(Lucas 16.31, ARA).
[11]
Por exemplo, alguém que rejeite a realidade das entidades abstratas (por ex., um
nominalista como David Hume) não admitirá, assim, a legitimidade da intuição na sua
teoria de conhecimento (como foi o caso de Platão, por exemplo, ao ver o conhecimento
como uma “reminiscência” das ideias ou formas transcendentes). Alguém que pense nos
objetos de conhecimento como discretos e claramente categorizáveis como verdadeiros ou
falsos (por ex., Hume novamente) terá dificuldade para argumentar significativamente com
alguém que considere a verdade como sendo o todo da realidade e as proposições discretas
como nada mais do que aproximações (por ex., Hegel). A teoria de conhecimento e a visão
de realidade de uma pessoa se afetam mutuamente.
[12]
É claro que em alguns casos o que o incrédulo precisa é simplesmente da evidência que
está à nossa disposição em favor de certas afirmações na Bíblia. Por exemplo, uma pessoa
pode estar tão enganada sobre religião por causa das vozes hostis e preconceituosas à sua
volta (das salas de aula à mídia popular) que tem a impressão infundada de que
absolutamente “nenhuma pessoa pensante” vê alguma credibilidade no criacionismo, na
precisão histórica ou textual da Bíblia, etc. A mente dela precisa ser saneada desse
equívoco. Ela pode ficar bastante espantada ao descobrir que cientistas, historiadores e
outros acadêmicos muito competentes podem apresentar evidência convincente a favor das
reivindicações cristãs na ciência ou na história. Se isso é tudo que ela precisa para fazer
uma leitura mais aberta e honesta da mensagem da Escritura, tudo bem. Contudo, na
maioria dos casos a resistência dos incrédulos à evidência é mais de princípio e mais tenaz
do que isso.
[13]
Logo veremos que o incrédulo não vive consistentemente de acordo com os princípios
que professa. Até certo ponto isso também é verdade do crente. Portanto, a antítese entre
eles não é realmente completa ou absoluta, embora o seria em princípio.
[14]
Na linguagem coloquial em inglês essa distinção é facilmente obscurecida, claro. Nós
ouvimos alguém dizer que “se sente confiante” de que seu time ganhará o campeonato
mundial, e o mesmo sentimento é expresso quando ele diz que “sente certeza” de que seu
time ganhará.
[15]
O leitor não deve ignorar a perversão que essa expressão idiomática insidiosa
representa à língua inglesa. A verdade não é algo relativo à pessoa. Dizer que uma
proposição é “verdade para mim” é simplesmente uma forma enganosa de dizer que eu
acredito nessa proposição. Colapsar a verdade em crença tem sérias consequências para a
teoria de conhecimento de uma pessoa.
[16]
Isso não deve ser confundido com dizer que a verdade se restringe ao conteúdo do
cristianismo ou às palavras da Bíblia. Há muitas outras verdades além das que se
encontram reveladas na Escritura (por ex., a verdade de que a água congela a 32º
Fahrenheit). No entanto, não há nenhuma verdade que conflita ou compete com aquelas
encontradas na Escritura.
[17]
Note que a atividade de Paulo é a mesma, quer seus ouvintes já tivessem um
conhecimento prévio da palavra de Deus (Antigo Testamento) e um respeito por ela, quer
não. Ele “discutia” com os judeus na sinagoga da mesma forma que discutia com os
filósofos gregos nas ruas.
[18]
Essa advertência tem de ser dada, já que aparentemente muitos crentes que se entregam
à apologética são propensos a uma falta de mansidão na apresentação do seu argumento.
Para o bem da sua própria santificação e para a honra do Senhor cuja palavra eles
defendem, todo apologista precisa orar para que seus argumentos não se tornem
contenciosos, para que ele não deslize da defesa do seu Senhor para a defesa de si mesmo.
A humildade não é incompatível com a ousadia.
[19]
C. S. Lewis, God in the Dock: Essays on Theology and Ethics, ed. Walter Hooper
(Grand Rapids: Eerdmans, 1970), p. 244.
[20]
An Essay Concerning Human Understanding, Livro IV, Capítulo XVII (New York:
Dover Publications, 1959 [1690]), vol. 2, p. 391.
[21]
Citado pelo editor na “Introdução” a John Locke, The Reasonableness of Christianity
as Delivered in the Scriptures, ed. George W. Ewing (Chicago: Gateway Edition, Henry
Regnery Co., 1964 [1695]), p. xi.
[22]
Locke explicou que o livro fora principalmente concebido como uma refutação dos
deístas; estes, contudo, aplaudiram a ênfase de Locke sobre o lugar da razão na religião,
levando assim estudiosos de segunda ordem a precipitadamente classificarem Locke como
deísta. O calvinista inglês John Edwards (não confundir com o norte-americano Jonathan
Edwards) distorceu as intenções de Locke ainda mais, difamando-o com os epítetos de
ateísmo e socinianismo.
[23]
Para um texto útil sobre lógica informal, formal e indutiva, veja Irving M. Copi,
Introduction to Logic (New York: Macmillan Publishing Co., 1978 [5ª ed.]).
[24]
Os leitores devem aqui consultar vários textos úteis sobre “evidências” cristãs, mas
também devem acompanhar discussões sobre o uso variado dos dados observacionais na
argumentação e formação de teorias: por exemplo, W. V. Quine e J. S. Ullian, The Web of
Belief, 2ª ed. (New York: Random House, 1978); Stephen Toulmin, The Uses of Argument
(Cambridge: University Press, 1969); Thomas S. Kuhn, The Structure of Scientific
Revolutions, 2ª ed. (Chicago: University Press, 1970).
[25]
Veja as obras de Cornelius Van Til aqui (disponíveis pela Presbyterian and Reformed
Publishing Co.): por exemplo, The Intellectual Challenge of the Gospel (1953), The
Defense of the Faith (1955), A Survey of Christian Epistemology (1969).
[26]
Citado em Greg L. Bahnsen, “The Inerrancy of the Autographa”, Inerrancy, ed.
Norman L. Geisler (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1980), p. 187.
[27]
Ancient Israel (Ithaca, New York: Cornell University Press, 1954), p. 6. Assim
também, W. F. Albright escreveu que “os dados arqueológicos e inscricionais têm
demonstrado a historicidade de inúmeras passagens e declarações do Antigo Testamento”
(“Archeology Confronts Biblical Criticism”, The American Scholar, vol. 7 [Primavera de
1938], p. 181).
[28]
Edição de 30 dezembro de 1974, p. 41.
[29]
A imaterialidade das leis (da lógica, da moralidade, etc.), na verdade a imaterialidade
dos conceitos, da justiça, do amor, etc. não representa nenhum problema filosófico
automático para a cosmovisão cristã. As leis da lógica são um reflexo humano da mente de
Deus e do pensamento de Deus acerca das relações conceituais e/ou evidenciais de prova
entre verdades (ou conjunto de verdades). As leis lógicas são elaborações do fato que Deus
não contradiz a si mesmo (sua palavra não é si e não, 2 Coríntios 1.18) e que é impossível
que ele minta (Hebreus 6.18).
[30]
O artigo é encontrado em Bertrand Russell, Why I Am Not a Christian, And Other
Essays on Religion and Related Subjects, ed. Paul Edwards (New York: Simon and
Schuster, Clarion, 1957), pp. 3-23.
[31]
Ibid., p. vi.
[32]
Ibid, pp. 115-16.
[33]
Na sua palestra, Russell mostra uma curiosa e caprichosa mudança no tocante ao
padrão que define o conteúdo de crenças “cristãs”. Aqui ele arbitrariamente assume que o
que o magistério romano diz é o padrão da fé cristã. No entanto, no parágrafo
imediatamente anterior, Russell afirmou que a doutrina do inferno não era essencial para a
crença cristã porque o Conselho Privado do Parlamento Inglês assim decretou (com a
dissidência dos Arcebispos de Cantuária e Iorque). Em outro lugar Russell se afasta desse
critério de cristianismo e condena o ensino de Jesus, baseado na Bíblia, de que os
impenitentes enfrentam condenação eterna. Russell não tinha nenhum interesse em ser
consistente ou justo ao lidar com o cristianismo como seu oponente. Quando conveniente,
ele definia a fé segundo a Bíblia, mas quando era mais conveniente para os seus propósitos
polêmicos, ele passava a definir a fé de acordo com o Parlamento Inglês ou a Igreja
Católica Romana.
[34]
Aqueles que estão familiarizados com a obra detalhada (e notável, seminal) de Russell
na filosofia apontariam que, apesar do brilho de Russell, sua “razão pura” jamais poderia
resolver certos paradoxos lógicos e semânticos que surgem no seu relato da lógica,
matemática e linguagem. Seus seguidores mais reverentes admitem que as teorias de
Russell são passíveis de crítica.
[35]
Trad. C. Garnett (New York: Modern Library, Random House, 1950), do livro V,
capítulo 4. A citação aqui é tirada da seleção encontrada em God and Evil: Readings on the
Theological Problem of Evil, ed. Nelson Pike (Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice-
Hall, 1964).
[36]
R. C. Sproul, Objections Answered (Glendale, CA: Regal Books, G/L Publications,
1978), pp. 128, 129.
[37]
Dialogues Concerning Natural Religion, ed. Nelson Pike (Indianapolis: Bobbs-Merrill
Publications, 1981), p. 88.
[38]
Buffalo, New York: Prometheus Books, 1979.
[39]
O intuicionismo sugeriria que a bondade é uma propriedade (básica ou simples)
indefinível que não conhecemos empiricamente ou através da natureza, mas
“intuitivamente”. O que, no entanto, é uma “propriedade não natural”, a menos que
estejamos falando de uma propriedade “sobrenatural” (a própria coisa em disputa com o
incrédulo)? Ademais, o intuicionismo não pode fornecer uma base para saber que nossas
intuições estão corretas: não só temos de intuir a bondade da caridade, mas também temos
de intuir que essa intuição é verdadeira. É um fato bem conhecido e embaraçoso que nem
todas as pessoas (ou todas as culturas) têm intuições idênticas sobre o bem e o mal. Essas
intuições conflitantes não podem ser racionalmente resolvidas dentro da cosmovisão do
incrédulo.
[40]
Dificuldades semelhantes acompanham a ideia de que os termos éticos não funcionam
e não são usados para descrever alguma coisa, mas simplesmente dar expressão às
emoções de alguém. A teoria relacionada (performativa) da linguagem ética conhecida
como “prescritivismo” sustenta que as declarações morais não funcionam para descrever as
coisas como boas ou más, mas simplesmente para levar o(s) ouvinte(s) de alguém a se
comportar(em) ou sentir(em) de certa maneira. Com base nessa teoria, nenhuma atitude ou
ação é boa ou má em si mesma, e fica-se sem uma explicação de por que as pessoas saem
por aí “orientando” os outros com imperativos supérfluos e velados como “Ajudar os
órfãos é bom”.
[41]
Antony Flew escreve: “De forma não surpreendente, muitos críticos têm argumentado
que a realização de pelo menos alguns desses objetivos [metafísicos] é em princípio
impossível. Assim, tem-se mantido que a mente humana não tem meios de descobrir fatos
fora do reino da experiência dos sentidos… Outra crítica é que desde que nenhuma
experiência concebível poderia capacitar-nos a decidir entre, por exemplo, as declarações
de que a realidade consiste de apenas uma substância (monismo) ou de infinitamente
muitas (monadologia), elas tampouco servem a qualquer propósito na economia do nosso
pensamento sobre o mundo, e igualmente não são nem verdadeiras, nem falsas, mas sem
sentido” (“metaphysics” em A Dictionary of Philosophy, rev. 2ª ed. New York: St. Martin’s
Press, 1984, pp. 229-230).
[42]
Metaphysics (New York: Harcourt, Brace, & World, 1963), p. 12.
[43]
Beyond Good and Evil, “On the Prejudice of Philosophers”, trad. Walter Kaufmann
(New York: Vintage Books, 1966), pp. 12, 13.
[44]
Pessoas que falam dessa maneira parecem ignorar o caráter trivial ou tautológico dessa
afirmação. “Ter fé” que algo é verdade (por ex., que Elvis está vivo e morando em Idaho) é
o mesmo que “acreditar” que a alegação em questão é verdadeira; essas são diferentes
formas semânticas de expressar a mesma coisa. Por conseguinte, quando uma pessoa diz
que “acredita” em algo “simplesmente por fé” (sem uma explicação adicional), ela
simplesmente nos diz que “acredita porque acredita”.
Não ignoro que muitas pessoas religiosas, incluindo filósofos que refletem sobre questões
religiosas, pensam na “fé” como estando em uma categoria diferente da “crença”. A
primeira é tida como uma questão pessoal de confiança ou compromisso, ao passo que a
segunda é uma questão de intelecto. Por exemplo, num ensaio intitulado “Fé e Crença”, o
filósofo de Oxford H. H. Price afirmou: “Fé, então, é algo muito diferente da crença ‘nisso’
e certamente não se reduz a ela nem é definível em termos dela… Certamente, quando uma
pessoa está realmente na atitude da fé, ela nunca diria que acredita que Deus a ama. O que
acontece, em vez disso, é que ela sente o amor de Deus por ela… Isso não parece ser, afinal
de contas, uma questão de acreditar” (Faith and the Philosophers, ed. John Hick [New
York: St. Martin’s Press, 1964], p. 11). Estipulações verbais como essas podem ser feitas, e
pelo que posso perceber, são muitas vezes feitas; mas exigiria um esforço heroico fazer
essa distinção conceitual entrar em conformidade verbal com o uso neotestamentário do
verbo grego “pisteuo” e do substantivo “pistis”.
[45]
Peter A. Angeles, Dictionary of Philosophy (New York: Barnes & Noble, 1981), p. 94.
[46]
Cf. “A dúvida, como o lado escuro do aspecto cognitivo da fé, é um ingrediente
essencial para a fé… Uma mente vívida está em Angst nas encruzilhadas diárias, e
diariamente faz uma escolha, fazendo-a, como diria Kierkegaard, ‘em temor e tremor’”.
Geddes MacGregor, Philosophical Issues in Religious Thought (Boston: Houghton Mifflin,
1973), p. 239.
[47]
J. Gresham Machen, What is Faith? (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing,
1925), pp. 18, 26, 94, 243.
[48]
Na tradução livre da versão usada pelo autor, “o que adoram, mostrando sua
ignorância, eu autoritativamente vos declaro”. [N. do T.]
[49]
E quanto às crenças deles sobre o método adequado, então? Essas crenças também
chegam por meio desse método adequado? Caso sim, elas não têm nenhuma autoridade ou
fundamento independente (que não caia em petição de princípio)! Caso não, o que é
considerado o método adequado para chegar a crenças não é fundacional, no fim das
contas.
[50]
Descartes sentiu que seu método o havia finalmente levado à verdade indubitável e
fundacional de que ele mesmo existia. Ainda que tudo o mais em que ele acreditasse fosse
uma ilusão, ele ao menos precisava existir para ter a dúvida em primeiro lugar. Portanto o
famoso ditado “Penso, logo existo”. Mas Descartes não foi aqui suficientemente
escrupuloso como filósofo. Ao tomar “Penso” como sua premissa, ele já tinha caído em
petição de princípio quanto à sua existência (afirmando o “Eu” implícito). Isso não era
mais útil, realmente, do que argumentar “Eu exalo mau cheiro, portanto existo”. Descartes
deveria ter postulado mais estritamente apenas que “Pensamento está ocorrendo” ─ do que
não segue logicamente que “eu existo”.
[51]
C. Gore, Belief in God (New York: Penguin, 1939), p. 12.
[52]
Julian Huxley, Religion without Revelation (New York: Mentor, 1957), pp. 15, 17.
[53]
Antony Flew, God and Philosophy (New York: Harcourt, Brace and World, 1966), pp.
159, 161.
[54]
Ibid, p. 26.
[55]
Parte do caráter autovalidável (autoautenticável) dessa revelação autoritativa é que sem
ela o raciocínio, a ciência e a ética se tornam ininteligíveis, filosoficamente falando. A
autoridade de Deus é necessária para a utilidade e autoridade intelectual (subordinada) dos
próprios princípios que os incrédulos se propõem a usar ao testar a autoridade de Deus.
Ninguém pode utilizar o raciocínio sem simultaneamente, ainda que implicitamente e sem
reconhecer isso, empregar a perspectiva da revelação de Deus. Assim, as afirmações cristãs
sobre o caráter autovalidável da revelação de Deus não são meramente um testemunho
subjetivo ou estão além uma demonstração ou discussão racional.
[56]
Cornelius Van Til, The Defense of the Faith (Philadelphia: Presbyterian and Reformed,
1955), pp. 145.
[57]
Ibid, p. 49.
[58]
Note bem que a “razão” é aqui criticada como uma autoridade ou padrão (que se coloca
acima de Deus em julgamento), mas não absolutamente como uma ferramenta ou
instrumento (que seja usada sob Deus, para a glória dele). Claro, o incrédulo deve usar sua
capacidade de raciocínio para ouvir, ponderar e (esperançosamente) adotar as
reivindicações da palavra de Deus. Isso não significa que a norma de controle pela qual ele
usa seu raciocínio deve ser a razão em si mesma. (Nessas discussões seria de bom alvitre
perguntar o que exatamente se quer dizer com “razão”.)
[59]
A. J. Ayer, Language, Truth and Logic (New York: Dover Press, 2ª ed. 1952), p. 39.
[60]
Qualquer declaração de teste (T) pode ser conjugada com a premissa “Se T, então O”
(onde O representa uma declaração de observação). Note que a premissa que acabamos de
afirmar não implica por si só logicamente a declaração de observação (O); nem a
declaração de observação segue diretamente da declaração de teste (T). No entanto, quando
T é tomado com a premissa aqui sugerida, a declaração de observação (O) pode ser de fato
deduzida.
[61]
Language, Truth and Logic (2ª ed.), p. 13.
[62]
Alonzo Church demonstrou isso de forma breve, mas devastadora, na sua resenha à
segunda edição do livro de Ayer (Journal of Symbolic Logic v. 14 [1949], p. 53). Onde On
representa uma declaração de observação, qualquer declaração de teste (T) pode ser
conjugada com qualquer declaração de observação (O1) e a seguinte premissa complexa:
[(não O1 e O2) OU (O3 e não T). Quando fazemos isso, não T passa no teste de ser
diretamente verificável (por silogismo disjuntivo), enquanto T pode ser conjugado com a
premissa complexa dada aqui para passar no teste de Ayer de ser indiretamente verificável.
[63]
Veja Karl Popper, The Logic of Scientific Discovery (London: Hutchinson, University
Library, 1959 [original alemão, 1935]).
[64]
Antony Flew, “Theology and Falsification”, New Essays in Philosophical Theology,
eds. Antony Flew & Alasdair MacIntyre (New York: Macmillan Co., 1964 [1955]), pp. 96,
97, 98.
[65]
Cf. Thomas Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, 2nd rev. ed. (Chicago:
University of Chicago Press, 1970 [1962]).
[66]
Nossas afirmações sobre o mundo externo não enfrentam o tribunal da experiência
sensorial individualmente, mas apenas como um corpo corporativo”. Isso foi observado e
discutido por Willard Van Orman Quine em “Two Dogmas of Empiricism”, From a
Logical Point of View, 2ª ed. (New York: Harper Torchbooks, 1961), p. 41.
[67]
Isso não implica que a teoria de conhecimento seja em última análise relativista ou
voluntarista. Ela aponta para a necessidade da argumentação transcendental na apologética
─ mostrando como as pressuposições do cristão fornecem as precondições de
inteligibilidade (na ciência, lógica, ética, etc.) e fazendo uma crítica interna das filosofias
de vida concorrentes para demonstrar que elas não fazem isso.
[68]
As pressuposições não são o único fator no desenvolvimento de um sistema de crenças.
Devido a diferentes compromissos secundários, influências sociais, experiências pessoais,
critérios de racionalidade, capacidades intelectuais (etc.), duas pessoas que compartilham
as mesmas pressuposições podem, todavia, gerar diferentes “redes” de crenças.
[69]
John M. Frame, “God and Biblical Language”, God’s Inerrant Word, ed. J. W.
Montgomery Minneapolis: Bethany Fellowship, 1974), p. 171.
[70]
David Hume, “Of Miracles” em An Inquiry Concerning Human Understanding, ed.
Charles W. Hendel (Indianapolis: Boobs-Merrill Co., [1748] 1955), p. 126

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