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PREPARADOS
Orientações para a defesa da fé
1a edição, 2016
Greg Bahnsen foi, antes da sua morte prematura, um dos pensadores e debatedores mais
perspicazes entre os apologistas vantilianos. “Sempre Preparados” resume bem e expõe as
passagens bíblicas que constituem o arsenal do apologista.
— Dr. John Frame
Autor, Apologética para a glória de Deus
A mente de Greg Bahsen era nada menos do que precisa. Num mundo de desordem e
confusão apologética, ele tinha o dom de discernir o que era e o que não era relevante em
uma questão. Os antigos romanos lhe teriam dito: “Rem acu tetigisti”. Ele podia “acertar o
prego na cabeça”, conjecturar de forma correta. Este volume contém inúmeros exemplos de
ele fazendo exatamente isso.
— Douglas Wilson
Autor, O ateu em delírio
Greg Bahnsen era um acadêmico brilhante. Mas essa é uma descrição inadequada do que
ele tinha a oferecer para a igreja. O valor da sua obra não era meramente acadêmico
(embora também o fosse); era intensamente prático. Sua capacidade de analisar a “lógica”
da incredulidade e demonstrar sua loucura e de apresentar o evangelho como a única
alternativa intelectualmente honesta eram sem igual. Em se tratando de apologética,
Bahnsen estava numa categoria só sua.
— Stephen C. Perks
Autor, A adoração a Baal
— Steven M. Schlissel
Pastor, Messiah’s Congregation, Brooklyn, New York
SUMÁRIO
Sumário
PREFÁCIO DO EDITOR
1. O ROUBO DA NEUTRALIDADE
2. A IMORALIDADE DA NEUTRALIDADE
3. A NATUREZA DO PENSAMENTO INCRÉDULO
4. A MENTE DO NOVO HOMEM ENRAIZADA EM CRISTO
5. REVELAÇÃO COMO O FUNDAMENTO DO CONHECIMENTO
6. RESUMO E APLICAÇÃO: A AUTORIDADE AUTOATESTADORA
DE DEUS
7. TRÊS ARGUMENTOS CONTRA O PRESSUPOSICIONALISMO
8. HUMILDE OUSADIA, NÃO ARROGÂNCIA OBSCURANTISTA
9. REVELAÇÃO INESCAPÁVEL, CONHECIMENTO INESCAPÁVEL
10. TERRENO COMUM QUE NÃO É NEUTRO
11. ONDE O PONTO DE CONTATO É, E NÃO É, ENCONTRADO
12. RESUMO GERAL: CAPÍTULOS 1-11
13. A TOLICE DA INCREDULIDADE
14. UM PROCEDIMENTO APOLOGÉTICO DE DUAS ETAPAS
15. RESPONDENDO AO TOLO
16. COSMOVISÕES EM COLISÃO
17. O PONTO DE PARTIDA ÚLTIMO: A PALAVRA DE DEUS
18. RESUMO SOBRE O MÉTODO APOLOGÉTICO: CAPÍTULOS 13-17
19. DEUS DEVE SOBERANAMENTE CONCEDER ENTENDIMENTO
20. É PRECISO CRER PARA ENTENDER
21. ESTRATÉGIA GUIADA PELA NATUREZA DA CRENÇA
22. NÃO SE DEIXANDO SEDUZIR COMO EVA
23. NÃO MENTIR PARA DEFENDER A VERDADE
24. ENCONTRANDO EFETIVAMENTE A VARIEDADE DE
OPOSIÇÕES: Resumo Geral (Capítulos 1-23) e Aplicação
25. PREPARADOS PARA ARRAZOAR
26. O CERNE DA QUESTÃO
27. RESPONDENDO OBJEÇÕES
28. FERRAMENTAS DE APOLOGÉTICA
29. APOLOGÉTICA NA PRÁTICA
30. O PROBLEMA DO MAL
31. O PROBLEMA DE CONHECER O “SOBRENATURAL”
32. O PROBLEMA DA FÉ
33. O PROBLEMA DA LINGUAGEM RELIGIOSA
34. O PROBLEMA DOS MILAGRES
PREFÁCIO DO EDITOR
Randy Booth
Diretor da Covenant Media
Foundation
SEÇÃO UM:
O SENHORIO DE CRISTO
NO REINO DO CONHECIMENTO
1. O ROUBO DA NEUTRALIDADE
O material dos últimos cinco estudos pode ser disposto no seguinte resumo
em tópicos:
A partir do fato de que Deus é o Criador soberano dos céus e da terra, de que
o mundo e a história são somente como o plano de Deus decreta e de que o
homem é a imagem criada de Deus, devemos concluir que todo o
conhecimento que o homem tem é recebido de Deus, que é o originador de
toda a verdade e da Verdade original. Nosso conhecimento é um reflexo, uma
reconstrução receptiva do conhecimento criativo, absoluto e primário da
mente de Deus. Devemos pensar os pensamentos de Deus depois dele ─
como a primeira premissa acima o afirma. Ao reprimir a verdade sobre Deus,
então, o pensamento e os esforços de interpretação de uma pessoa serão
necessariamente mal direcionados no erro e na tolice (premissa 2). Não pode
haver meio termo; ou uma pessoa conscientemente começa com Deus em
seus pensamentos, ou não (premissa 3). Os crentes que tentam estabelecer
esse meio-termo devem então ou perder seu próprio fundamento sólido, ou
acabar operando a partir da base do incrédulo (que não é de fato um
fundamento) ─ como indicado na premissa 4. A própria natureza do que
significa ser, se tornar e viver como um cristão suficientemente estabelece
que o crente deve pressupor a verdade da palavra de Deus e abandonar
qualquer alegação pecaminosa de autossuficiência ou neutralidade (premissa
5). Assim, a pessoa é confrontada com uma escolha óbvia entre viver sob a
autoridade de Deus, ou não (premissa 6). A reflexão sobre a distinção
Criador/criatura (com a qual este parágrafo abriu) não pode deixar de nos
levar, então, à conclusão (premissa 7) de que a voz do Criador é a voz da
autoridade incontestável, absoluta; sua palavra deve ser o padrão pelo qual
julgamos todas as coisas e o ponto de partida do nosso pensamento. Esse é o
ensino inevitável da Escritura (a partir do qual os pontos acima foram
extraídos).
Os homens deveriam perceber que quando Jesus ensinava, ensinava
com autoridade autoatestadora e não como alguém cujas opiniões tinham de
ser respaldadas com a autoridade de outras considerações ou outras pessoas
(Mateus 7.29). Assim, nenhum homem tem a prerrogativa de colocar a
palavra de Cristo em dúvida. Se um homem não receber ou atentar para as
palavras de Cristo, não somente será um tolo que edifica sua vida sobre a
areia destrutiva (Mateus 7.26-27), como também será julgado por essas
mesmas palavras autoritativas (João 12.48-50). A palavra de Deus tem
autoridade suprema. “Ai daquele que contende com o seu Criador!” (Isaías
45.9)
O padrão pelo qual julgamos todos os ensinamentos deve ser essa
palavra de autoridade de Deus (1 João 4.11; Deuteronômio 13.1-4): “À lei e
ao testemunho! Se eles não falarem segundo esta palavra, é porque não há luz
neles” (Isaías 8.20). Se você não se submeter pressuposicionalmente à
palavra autoritativa e autoatestadora de Deus, será de “coração dobre” e
inconstante em todos os seus caminhos, levado pelo vento e lançado de uma
para outra parte (Tiago 1.5-8). Em vez de ser levado pelo “Vento” do
“Espírito” de Deus, você será levado em roda por todo vento de doutrina pela
engenhosidade do pensamento humanista e astúcia do erro (Efésios 4.13-14).
Portanto, devemos reter firme a confissão da nossa esperança cristã sem fazer
concessões (Hebreus 10.23). Ouça a afirmação de Deus: “eu sou o Senhor,
que falo a justiça, e anuncio coisas retas” (Isaías 45.19). Sua palavra, desde o
início, deve ser considerada autoritativamente verdadeira; não se deve vacilar
nisso. A veracidade de Deus é o padrão último para os nossos pensamentos:
“sempre seja Deus verdadeiro, e todo o homem mentiroso” (Romanos 3.4).
A palavra do Senhor é, de forma autoatestadora, verdadeira e
autoritativa. Ela é o critério que devemos usar quando julgamos todas as
outras palavras. Assim, a palavra de Deus é inexpugnável. Ela deve ser o
fundamento mais básico do nosso pensar e viver (Mateus 7.24-25). Ela é o
nosso ponto de partida pressuposicional. Todo o nosso raciocínio deve estar
subordinado à palavra de Deus, pois nenhum homem está em posição de
responder contra ela (Romanos 9.20), e quem quer que contenda com Deus
acabará tendo de responder (Jó 40.1-5). Não devem ser as opiniões mutáveis
dos homens, mas a palavra autoatestadora, autoritativa e em última análise
verídica de Deus que tem a preeminência nos nossos pensamentos, pois
“podes trovejar com voz como ele o faz?” (Jó 40.9).
SEÇÃO DOIS:
AS CONDIÇÕES NECESSÁRIAS
PARA A TAREFA APOLOGÉTICA
7. TRÊS ARGUMENTOS CONTRA O
PRESSUPOSICIONALISMO
Quase toda a soma de nosso conhecimento, que de fato se deva julgar como
verdadeiro e sólido conhecimento, consta de duas partes: o conhecimento de
Deus e o conhecimento de nós mesmos. Como, porém, se entrelaçam com muitos
elos, não é fácil, entretanto, discernir qual deles precede ao outro, e ao outro
origina. Em primeiro lugar, visto que ninguém pode sequer mirar a si próprio sem
imediatamente volver o pensamento à contemplação de Deus, em quem vive e se
move… Por outro lado, é notório que o homem jamais chega ao puro
conhecimento de si mesmo até que haja antes contemplado a face de Deus, e da
visão dele desça a examinar-se a si próprio. (Vol. I, cap. I,1)
Não foi sem causa que o provérbio antigo sempre e tanto recomendou ao homem
o conhecimento de si mesmo. Ora, se por ser vergonhoso se há de ignorar
quaisquer coisas que dizem respeito ao trato da vida humana… Quanto, porém,
mais útil é o preceito, tanto mais diligentemente nos importa ver que não o
usemos de forma oposta, o que vemos ter acontecido a certos filósofos. Pois
esses, enquanto exortam o homem a que conheça a si mesmo, propõem-lhe, ao
mesmo tempo, como fim que não ignore a dignidade e excelência pessoais…
Mas, o conhecimento de nós mesmos situa-se, em primeiro lugar, nisto: que,
atentando para o que nos foi outorgado na criação, e quão benignamente Deus
continua sua graça para conosco… contudo ao mesmo tempo reflitamos que em
nós nada subsiste de próprio. Ao contrário, de pura graciosidade possuímos tudo
quanto Deus nos tem conferido, de sorte que estejamos sempre a dele depender…
é relevante reconhecermos que fomos dotados de razão e inteligência, para que,
cultivando uma vida santa e reta, avancemos rumo ao alvo proposto de uma
imortalidade bem-aventurada. (Vol. II, cap. I,1).
Os crentes não escolheram a posição cristã porque são mais sábios do que
os outros. O que eles têm, têm pela graça somente. Mas isso não significa
que eles aceitam as problemáticas do homem caído como corretas… O
homem caído busca em princípio ser uma lei para si mesmo. Mas ele não
pode levar seu princípio à sua plena expressão. Ele é refreado de fazer
isso… A despeito do que faça contra Deus, ele pode e deve agir para Deus;
assim, ele é capaz de fazer uma “contribuição positiva” à cultura humana.
(A Christian Theory of Knowledge, New Jersey: Presbyterian and
Reformed, 1969, pp. 43, 44).
8. HUMILDE OUSADIA, NÃO
ARROGÂNCIA OBSCURANTISTA
Andai com sabedoria para com os que estão de fora, remindo o tempo. A
vossa palavra seja sempre agradável, temperada com sal, para que saibais
como vos convém responder a cada um (Colossenses 4.5-6).
9. REVELAÇÃO INESCAPÁVEL,
CONHECIMENTO INESCAPÁVEL
A graça comum não é uma dádiva de Deus pela qual seu próprio desafio de
arrependimento aos homens que pecaram contra ele está temporariamente
obscurecido. A graça comum, em vez disso, deve atender ao desafio divino
do arrependimento. Deve ser uma ferramenta pela qual o crente como servo
de Cristo pode desafiar o incrédulo ao arrependimento. Os crentes podem
objetivamente mostrar aos incrédulos que a unidade da ciência só pode ser
alcançada na base teísta cristã (ibid., p. 195).
Vemos então que a crítica esboçada no início deste estudo não prejudica, mas
serve antes para enfatizar ainda mais a força e a necessidade da epistemologia
pressuposicional.
10. TERRENO COMUM QUE NÃO É
NEUTRO
Será conveniente fazer uma pausa neste ponto e resumir a discussão que
fizemos nos capítulos anteriores a fim de que obtenhamos uma visão geral
concisa do nosso padrão de pensamento.
A primeira parte desta série apresentou o Senhorio de Cristo no reino
do conhecimento e aplicou essa verdade no exercício da razão do homem.
Nós concluímos com Calvino que a palavra de Deus deve ser pressuposta
para que se tenha conhecimento tanto no reino da criação como no da
redenção; todavia, como a nossa cultura está saturada com as exigências
contrárias da autonomia e da neutralidade, há uma necessidade urgente de
reforma no mundo do pensamento. Três objeções básicas ao
pressuposicionalismo na teoria do conhecimento surgem a partir de uma
cultura não reformada; essas três reclamações foram subsequentemente
consideradas para demonstrar sua invalidade, exibir a força do
pressuposicionalismo e expor aspectos adicionais desta posição.
“Onde está o sábio? Onde está o escriba? Onde está o inquiridor deste
século? Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?”
Paulo poderia sustentar sua apologética para a fé cristã sobre esse conjunto de
perguntas retóricas (1 Coríntios 1.20), sabendo que a palavra da cruz destrói a
sabedoria e mundo e aniquila seu discernimento (v. 19). O coração não
regenerado, com sua mente obscurecida, avalia o evangelho como fraqueza e
loucura (vv. 18, 23), mas na realidade ele expressa a verdadeira sabedoria e o
poder salvífico de Deus (vv. 18, 21, 24).
O que o mundo chama “loucura” é na verdade sabedoria. Por outro
lado, o que o mundo considera “sábio” é na verdade loucura. O incrédulo tem
seus padrões totalmente invertidos, e assim zomba da fé cristã ou a vê como
intelectualmente desonesta. Mas Paulo sabia que Deus podia desmascarar a
arrogância da incredulidade e expor a lamentável pretensão de conhecimento
dela. “… a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de
Deus é mais forte do que os homens” (v. 25). Embora o incrédulo veja a fé
cristã como tola e fraca, essa fé tem a força e as condições intelectuais de
expor a “sabedoria mundana” por aquilo que ela realmente é: uma completa
loucura. Deus escolheu as (chamadas) coisas loucas do mundo para que
pudesse envergonhar aqueles que se vangloriam de sua (chamada) sabedoria
(v. 27, NVI).
Em face da revelação de Deus o incrédulo é “indesculpável” (“sem
apologética”, cf. Romanos 1.20, no grego). Sua posição intelectual não tem
credenciais dignas no longo prazo. Quando é defrontado com o desafio
intelectual do evangelho tal como ele seria apresentado por Paulo, o não
regenerado é deixado sem nenhuma base. O resultado do encontro é
resumidamente expresso por Paulo quando ele declara: “Onde está o sábio?
Onde está o inquiridor deste século?”. O fato é que Deus torna louca a
sabedoria deste mundo, e assim um incrédulo genuinamente sábio é algo que
não pode ser encontrado. Jamais houve algum homem que pudesse debater e
defender adequadamente a perspectiva deste mundo (isto é, a incredulidade).
A rejeição da fé cristã é algo que não pode ser justificado, e a posição
intelectual do incrédulo não pode ser genuinamente defendida no mundo do
pensamento. As armas espirituais do apologista cristão são poderosas em
Deus… Destruindo os conselhos, e toda a altivez que se levanta contra o
conhecimento de Deus” (2 Coríntios 10.4-5). O incrédulo, como vimos no
último estudo, é na perspectiva bíblica um tolo, e como tal sua posição
equivale a um ódio ao conhecimento (Provérbios 1.22, 29). Seu ataque
intelectual ao evangelho deriva do que é falsamente chamado conhecimento
(1 Timóteo 6.20).
O apologista deve ter como objetivo envergonhar essa pretensão de
conhecimento (que é, na base, um ódio ao conhecimento); ele deve
manifestar a loucura da “sabedoria” deste mundo. Isso exige muito mais que
uma tentativa fragmentada de aduzir probabilidades vagas de evidências
isoladas em favor da racionalidade do cristianismo. Requer, em vez disso, a
demonstração exaustiva da irracionalidade do anticristianismo em contraste
com a certeza da verdade que pode ser encontrada na palavra de Deus. Dr.
Van Til escreve:
Primeiro, essa passagem deixa bem claro que o apologista simplesmente não
deve ter uma atitude arrogante ao lidar com os incrédulos. Ele deve ser
brando, paciente, manso e avesso a contendas. Esses atributos são
intimidadores para a maioria das pessoas que mantêm posições doutrinárias
fortes e que são diligentes na defesa dessas posições. É fácil se tornar
obstinado e zeloso em dominar seu oponente. No entanto, é a atitude oposta,
que é pacífica e branda, que demonstra que a nossa sabedoria é do alto (Tiago
3.13-17).
Em segundo lugar, essa passagem ensina que aqueles que são
desafiados a defender a sua fé não devem consentir em responder nos termos
da incredulidade tola. Paulo nos ordena a rejeitar as questões insensatas ─
isto é, as questões dadas a partir do ponto de vista do tolo. Não devemos nos
submeter à perspectiva autônoma que suprime a verdade de Deus; não
devemos acatar a demanda da neutralidade agnóstica nas nossas discussões.
A questão que segue o viés do tolo deve ser colocada de lado. Contudo, evitar
questões tolas não assume a forma do silêncio, pois a passagem acima indica
que nós devemos educar o questionador. Uma resposta deve ser dada, mas
não uma resposta que está em conformidade com as pressuposições tolas por
trás da questão. Do contrário resultará uma contenção em vez de educação.
Em terceiro lugar, é revelado que os incrédulos “se opõem”. Por suas
pressuposições tolas o incrédulo age na verdade contra si mesmo. Ele
suprime a verdade clara sobre Deus que é fundacional para um entendimento
do mundo e de si mesmo e afirma uma posição que é contrária ao seu melhor
conhecimento. Ele é intelectualmente esquizofrênico. Isso deve ficar claro
para ele.
Em quarto lugar, Paulo indica que o que o incrédulo precisa não é
simplesmente informação adicional. Em vez disso, ele precisa ter seu
pensamento totalmente modificado; ele deve passar por uma conversão para
um conhecimento genuíno da verdade. Até que essa mudança ocorra, o
incrédulo terá um conhecimento de Deus que o condena (cf. Romanos
1.18ss), mas um conhecimento genuíno ou sincero da verdade ─ um
conhecimento salvífico ─ só pode vir com a conversão. O incrédulo deve ser
ensinado a renunciar à sua autonomia dissimulada e se submeter à palavra
clara de autoridade de Deus.
Finalmente, a passagem citada acima não deixa dúvidas de qual deve
ser a fonte do sucesso apologético: a vontade soberana de Deus. Um homem
só será convertido se isso lhe for concedido por Deus. Uma vez que é Deus
quem determina o destino de todos os homens (cf. Efésios 1.1-11), é ele
também quem determina se o nosso testemunho apologético será frutífero ou
não. Assim, cabe a nós evitar qualquer tentativa de “melhorar” a abordagem
bíblica para a apologética. Nosso dever é sermos fiéis às instruções do
Senhor. Ele abençoará a obediência à sua vontade; o sucesso não virá se
contornarmos isso.
16. COSMOVISÕES EM COLISÃO
Com base nas seções anteriores sobre o método apologético, podemos agora
resumir a forma como devemos proceder para defender a esperança cristã que
há em nós:
OS REQUISITOS DO APOLOGISTA
1. O apologista deve ter a atitude adequada; ele não deve ser arrogante ou
alguém que causa contendas, mas com humildade e respeito deve
argumentar de maneira branda e pacífica.
2. O apologista deve ter o ponto de partida adequado; ele deve tomar a
palavra de Deus como a sua pressuposição autoevidente, pensando os
pensamentos de Deus depois dele (ao invés de tentar ser neutro), e
vendo a palavra de Deus como mais certa do que até mesmo a sua
experiência pessoal dos fatos.
3. O apologista deve ter o método adequado; trabalhando sobre as
pressuposições não reconhecidas do incrédulo e estando firmemente
enraizado na sua própria, o apologista deve ter como objetivo destruir
toda a altivez que se levanta contra o conhecimento de Deus,
buscando levar todo pensamento (o seu assim como o do oponente)
cativo à obediência de Cristo.
4. O apologista deve ter a meta adequada: garantir a rendição
incondicional do incrédulo sem comprometer sua própria fidelidade.
a. A palavra da cruz deve ser usada para expor a completa
pseudosabedoria do mundo como uma tolice autodestrutiva.
b. Cristo deve ser separado como Senhor no coração, não se
reconhecendo assim nenhuma autoridade superior à palavra de Deus
e recusando-se a suspender o compromisso intelectual com a sua
verdade.
Se o cristão deve ter sucesso na defesa da fé, deve estar preparado para
colocar em dúvida a competência do pensamento do incrédulo. Ainda que o
crente não tenha as credenciais impressionantes da academia letrada
possuídas pelo incrédulo, ele é capaz de fazer isso. Os chamados “experts”
letrados criticaram nosso Senhor com respeito às suas credenciais
educacionais (João 7.14-15), mas Jesus se opôs desafiando a competência dos
seus oponentes. Porque se recusavam a fazer a vontade de Deus, não estavam
em posição de julgar o ensino dele (vv. 17, 19). O cristão, sendo habitado
pelo Espírito Santo (João 14.17) e permanecendo firme na palavra de Cristo
(João 8.31-32, NVI), conhece a verdade. Todas as coisas que dizem respeito
à vida são dadas através de um conhecimento de Deus (2 Pedro 1.3), e assim
aqueles que se recusam a reconhecer Deus e a verdade sobre ele serão
levados à futilidade e ao erro em todos os campos do pensamento (Romanos
1.18-21, ARA). Sua injustiça os cega, e consequentemente o cristão
iluminado pode desafiar o raciocínio do seu oponente. Até mesmo aos
desprezadores cultos e letrados do cristianismo pode ser apresentada, por
qualquer crente, uma apologética eficaz: “Mas Deus escolheu as coisas
loucas deste mundo para confundir as sábias” (1 Coríntios 1.27). O sucesso
apologético parte dessa confiança.
Essa confiança, no entanto, deve ser acompanhada de um método
adequadamente orientado. Em particular, o apologista deve se abster de
apelar aos princípios autônomos do pensamento secular na sua tentativa de
trazer entendimento ao incrédulo, pois o método, padrão e ponto de partida
do incrédulo são inerentemente contrários ao entendimento salvífico que o
apologista visa. Autonomia e entendimento são mutuamente exclusivos. O
sucesso apologético será impedido se o crente basear seu argumento em
pressuposições incrédulas ou na atitude de autonomia; visto que essas são as
fontes da falta de entendimento do incrédulo, elas não podem fornecer a
fortiori o caminho para o entendimento.
A raça humana inteira está morta em delitos e pecados, carecendo da
glória de Deus (Efésios 2.1, 5, ARA; Romanos 3.23; 5.15, ARA); como
resultado, ninguém busca Deus ou tem entendimento (Romanos 3.10-12). O
pecado leva o incrédulo a exaltar suas próprias imaginações e a ignorar a
revelação de Deus; assim, a razão do incrédulo é sempre desviada para
conclusões fúteis, errôneas e injustas. Em seu coração (do qual procedem as
fontes da vida) o incrédulo néscio diz que não há Deus, e assim ele não tem
conhecimento ou entendimento (Salmos 53.1-4; Romanos 3.10-12). O
homem com quem o apologista argumenta, então, carece de entendimento e
seu raciocínio é inútil. Na sua mente ele é um filho da ira (Efésios 2.3); sua
mente está em inimizade com Deus e ele é incapaz de fazer a vontade de
Deus (Romanos 8.7). As suposições intelectuais, as operações e a
competência do incrédulo que são julgadas num encontro apologético, não a
revelação de Cristo. O pensador rebelde anda de acordo com os seus próprios
pensamentos e está, assim, aprisionado na loucura que procede do seu
coração (Isaías 65.2; Marcos 7.21-22). Visto que apostata da fé, ele
inevitavelmente fala mentiras e ensina mentiras demoníacas (cf. 1 Timóteo
4.1-2; Romanos 1.25).
Essas são palavras duras e impopulares para os ouvidos modernos.
Porque os apologistas contemporâneos tantas vezes compartilham da
autonomia do pensamento secular, não estão dispostos a denunciar a loucura
que existe na sua raiz. Muitos fazem vista grossa à profunda deficiência e
injustiça na epistemologia não cristã numa tentativa de ganhar audiência e
mostrar que um acordo entre a autossuficiência intelectual e a dependência
soteriológica de Deus é possível. No entanto, é impossível se esquivar da
denúncia severa que a Bíblia faz do pensamento incrédulo e da sua exposição
da loucura do incrédulo. A antítese fundamental entre a epistemologia cristã e
a epistemologia apóstata deve ser enfatizada. Em contraste com o homem
cujos pensamento são vãos se levanta o homem que é instruído pela lei de
Deus (Salmos 94.11-12; cf. 1 Coríntios 3.20). O cristão se alegra de operar
não de acordo com a sabedoria carnal, mas (em absoluto contraste) de acordo
com a graça de Deus (2 Coríntios 1.12).
Que tipo de apologética, que não seja para compartilhar da autonomia
do pensamento incrédulo, pode ser bem-sucedida em trazer o incrédulo para
um entendimento da verdade? A resposta é que, assim como a pregação fiel,
a defesa fiel do evangelho deve estar enraizada na Palavra e no Espírito.
Deus só pode ser conhecido por uma revelação voluntária do Filho e do
Espírito de Deus (Mateus 11.27; 1 Coríntios 2.10); juntos eles lidam com a
hostilidade ética do homem à revelação de Deus e o capacitam a ter um
conhecimento salvífico do seu Criador.
O entendimento de que o incrédulo carece só pode ser fornecido se a
mente dele foi aberta (por ex., Lucas 24.45) e ele foi convencido pelo
Espírito da Verdade (João 16.8). Esse Espírito continuamente testemunha de
Cristo, conduzindo sua obra no mundo como o representante legal de Cristo
para essa defesa (isto é, o “Advogado”; João 15.26). Ou seja, o sucesso da
nossa apologética depende da obra do Espírito Santo (cf. João 3.3, 8).
Ademais, o incrédulo só pode ter Deus e conhecer a verdade se permanecer
na palavra de Cristo (João 8.31-32; 2 João 9). Até que obtenha a mente de
Cristo, ele é totalmente incapaz de conhecer as coisas do Espírito (1 Coríntios
2.14, 16). Ter a mente de Cristo requer humildade (cf. Filipenses 2.5, 8), e,
portanto, renúncia da autossuficiência a fim de obedecer a verdade de Deus.
Só se pode chegar a um conhecimento dele, que é a Verdade (João 14.6),
quando o Filho dá o entendimento que está faltando (1 João 5.20).
Portanto, o apologista é chamado a dar um testemunho fiel da verdade,
ao invés de tentar melhorar a sabedoria do Senhor por meio de argumentos
autônomos. Sendo confiante da sua capacidade de desafiar o pensamento
apóstata, o crente deve arrazoar não de acordo com os princípios do
pensamento secular, mas na verdade pressuposta da palavra de Cristo,
esperando que o poder do seu Espírito traga convicção, conversão e
entendimento. Uma apologética bem-sucedida que seja feita de acordo com a
Palavra e o Espírito de Cristo é uma função da graça de Deus e não da
sabedoria e inteligência humanas.
20. É PRECISO CRER PARA ENTENDER
Uma fonte de grande decepção para o estudioso cristãos nos dias de hoje é a
recusa de muitos apologistas em levar em conta certos fatos difíceis, mas
indisputáveis ensinados na palavra de Deus. A impressão muitas vezes
passada é que esses homens, enquanto teólogos, querem admitir o que a
Escritura diz sobre a natureza do homem caído e a autoridade máxima e
necessária da revelação de Deus em qualquer campo do conhecimento; no
entanto, como apologistas, querem agir esquecendo ou temporariamente
suprimindo essas verdades. Essa duplicidade é desonrosa para o chamado do
cristão.
A fé salvadora não pode estar fundamentada na sabedoria humana ou
em pressuposições seculares: ela deve ser gerada no poder de Deus (1
Coríntios 2.4-5). Consequentemente, o apologista não fala a sabedoria deste
mundo (que se reduz a nada), mas a sabedoria de Deus (1 Coríntios 2.6-7,
ARA). O reconhecimento de Cristo como a sabedoria de Deus não deriva de
pressuposições que negam, ignoram ou minam esse fato; em vez disso, esse
reconhecimento resulta da operação interna do Espírito Santo (1 Coríntios
2.10) que sozinho pode nos capacitar a ganhar um conhecimento das coisas
de Deus (v. 12). Porque somente o Espírito de Deus sabe essas coisas (v. 11),
o cristão não confia ou fala se baseando na filosofia, história ou ciência
autônoma tal como o mundo ensina (v. 13). Seguir pressuposições seculares
incapacita a pessoa de discernir a verdade sobre Deus (v. 14), pois elas só
podem ser entendidas pela iluminação do Espírito (vv. 15-16). A
pseudosabedoria do mundo, então, é totalmente inadequada como
fundamento ou padrão para o defensor da fé cristã; ela não pode aperfeiçoar a
mente do Senhor (v. 16), mas leva em vez disso a inevitavelmente desafiar a
verdade da revelação de Deus. O sucesso apologético é impedido, portanto,
ao se depender da insensatez humana não autoritativa ou tentar satisfazê-la, a
qual está invariavelmente inclinada a crucificar o Senhor da glória em vez de
se curvar às suas exigências soberanas (cf. v. 8).
É o crente regenerado e iluminado, convertido da sua antiga forma de
viver em desobediência, quem ganha sabedoria, entendimento e
conhecimento; o pensamento correto está correlacionado com o viver correto.
Daí que a forma de vida do incrédulo é uma estrutura inadequada para o
apologista operar dentro dela. Se uma pessoa continua no pecado intelectual
─ recusando-se a submeter todo pensamento ao Senhorio de Cristo no reino
do conhecimento ─, ela nunca virá à crença salvadora. “… o apartar-se do
mal é o entendimento” (Jó 28.28, ARA), e “bom entendimento têm todos os
que cumprem os seus mandamentos” (Salmos 111.10). Consequentemente, o
apologista não pode tentar persuadir o incrédulo usando o estilo de
pensamento do incrédulo ou seus padrões de evidência e verdade, etc. Esse
procedimento simplesmente não irá conquistá-lo para Cristo, mas o
encorajará a afirmar sua própria autoridade autônoma sobre as
reinvindicações de Cristo. No entanto, a palavra firme de Deus declara que
nós só podemos conhecer Deus se guardarmos os seus mandamentos (1 João
2.3-5), e esses mandamentos incluem nossa obrigação de nos refrear de tentar
Deus (Deuteronômio 6.16) e levar cativo todo pensamento à obediência de
Cristo (2 Coríntios 10.5, ARA). Nossa sabedoria e entendimento não são
encontrados na “inteligência” do pensamento autônomo, mas na obediência à
lei de Deus (Deuteronômio 4.6). O conhecimento genuíno e a estabilidade em
face da opinião falsa estão correlacionados à maturidade espiritual na estatura
de Cristo (Efésios 4.13-14); um andar agradável e uma vida moralmente
digna é o que leva ao conhecimento genuíno (Colossenses 1.9-11).
Ora, é então francamente imoral o teólogo que vê as verdades do alto
usar um padrão duplo, admitindo essas coisas como um dogmático, mas
dando uma impressão completamente oposta no seu procedimento
apologético. O apologista não deve deixar o incrédulo supor que o
conhecimento é possível com base em pressuposições autônomas e uma vida
desobediente; a palavra de Deus jamais é verificada num contexto desses. Na
sua tentativa de fazer surgir a boa situação de um incrédulo aceitando a
palavra da Escritura, o apologista fará uso de uma mentira injustificável se
assumir ou levar o incrédulo a pensar que o conhecimento deve ser obtido à
parte de Deus ou persistindo num modo rebelde de viver e pensar. Não pode
ser ignorado que o arrependimento e a fé são necessários para um
conhecimento da verdade; não deve ser sugerido que o incrédulo não precisa
de nada mais que uma prova intelectual da veracidade de Deus de acordo
com padrões ditados pela ciência e filosofia secular. O fim digno de converter
o incrédulo não pode ser realizado com nem pode justificar o uso apologético
de meios que operem em desacordo com (ou em oposição a) o ensino da
Escritura. “Mas, se pela minha mentira abundou mais a verdade de Deus para
glória sua, por que sou eu ainda julgado também como pecador? E por que
não dizemos (como somos blasfemados, e como alguns dizem que dizemos):
Façamos males, para que venham bens? A condenação desses é justa”
(Romanos 3.7-8).
Os apologistas são proibidos de usar um método não pressuposicional
na defesa da fé sob a desculpa de que assim a verdade pode abundar. O
cristão obediente não deixa de lado a autoridade de Cristo no reino para
argumentar com base na “erudição” autônoma. Fazê-lo seria operar com uma
mentira (isto é, a mentira satânica de que o conhecimento pode ser
determinado à parte de Deus: Gênesis 3.5; cf. Romanos 1.25) para defender a
verdade! A testemunha fiel de Cristo não se portará como um descrente
(negando o Senhorio de Cristo) para torná-lo crente.
Homens maus não podem falar boas coisas (Mateus 12.34); o mau
tesouro do pensamento do incrédulo está onde está seu coração (Mateus 6.21;
Lucas 6.45), do qual procedem os pensamentos maus, enganosos e insensatos
(Mateus 15.18-19; Romanos 1.21; Jeremias 17.9). Assim, sua língua é cheia
de iniquidade e um mal irrefreável (Tiago 3.5-8); o incrédulo urde engano
com ela (Romanos 3.13-14, ARA). Ele acha que é senhor sobre os seus lábios
(Salmos 12.4), as quais levam-no a falar com falsidade (v. 2). Obviamente,
então, o apologista não deve pensar e falar à maneira do incrédulo. Em vez
disso, seus pensamentos e palavras devem estar enraizados na palavra de
Deus, que é pura e eternamente valiosa (Salmos 12.6-7). É essa palavra
somente que cala toda boca (Romanos 3.19, ARA) e deixa os homens sem
palavras (por ex., Jó 40.4). Devemos guardar o depósito apostólico (a
Escritura) nos afastando dos clamores vãos de pseudoconhecimento (1
Timóteo 6.3-5, 20; cf. 2 Timóteo 2.14-18). Diante de Deus e sua palavra todo
o mundo deve se calar (Isaías 6.5; Daniel 10.15; Habacuque, 2.20; Sofonias
1.7; Zacarias 2.13). Devemos, então, confiar em Deus e não na nossa própria
sabedoria (Isaías 50.4-9); só então é que veremos o sucesso apologético à
medida em que ele nos capacite a não sermos confundidos e não faça
ninguém capaz de contender com a nossa mensagem (Isaías 50.4-9).
Portanto, concluímos que o apologista deve ser transformado por uma mente
renovada e não deve conformar seu pensamento ao mundo (Romanos 12.2).
Ele não deve mentir ou abandonar a verdade pressuposta de Deus para
conseguir aceitação dessa verdade pelos que falam o mal.
24. ENCONTRANDO EFETIVAMENTE A
VARIEDADE DE OPOSIÇÕES: Resumo
Geral (Capítulos 1-23) e Aplicação
Ela é necessária?
Razão e raciocínio
Os crentes que almejam defender sua fé cometem um grave erro, então,
quando imaginam que algo como a “razão” deve substituir Cristo como a
autoridade última (o Senhor) em seu pensamento e sua argumentação. Eles
também incorrem num pensamento muito descuidado e confuso por causa de
mal-entendidos sobre a palavra “razão”.
Os cristãos ficam muitas vezes perplexos com a “razão”, sem saber se é
algo que eles devem abraçar ou evitar. Isso geralmente ocorre porque eles
não identificam a forma precisa em que a palavra está sendo usada.
Possivelmente ela é a palavra mais ambígua e obscura no campo da filosofia.
Por um lado, a razão pode ser pensada como uma ferramenta ─ a capacidade
intelectual ou mental do homem. Tomada nesse sentido, a razão é um dom de
Deus para o homem, na verdade parte da imagem divina. Quando Deus
convida o seu povo para “Vinde, pois, e arrazoemos” (Isaías 1.18, ARA), nós
vemos que, assim como Deus, somos capazes de estabelecer uma
comunicação e um pensamento racional. Deus nos deu nossas capacidades
mentais para lhe servir e glorificar. É parte do maior mandamento da lei que
nós devemos “[amar] o Senhor teu Deus… de todo o teu pensamento”
(Mateus 22.37).
Afiando a ferramenta
A razão devidamente compreendida (o raciocínio) deve ser endossada pelos
crentes em Cristo. Em particular, ela deve ser empregada na defesa da fé
cristã. Essa é uma das coisas que Pedro nos comunica quando escreveu que
devemos estar sempre “preparados para responder com mansidão e temor a
qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós” (1 Pedro 3.15).
Uma palavra de explicação e defesa deve ser oferecida a aqueles que
desafiam a verdade da nossa fé cristã. Nós não devemos obscurecer a glória e
veracidade de Deus respondendo aos incrédulos com apelo à “fé cega” ou a
compromissos impensados. Devemos “[destruir] argumentos e toda pretensão
que se levanta contra o conhecimento de Deus” (2 Coríntios 10.5, NVI),
percebendo o tempo todo que não podemos fazer isso a menos que nós
mesmos “[levemos] cativo todo pensamento, para torná-lo obediente a
Cristo”.
Em 1 Pedro 3.15 Pedro usa a expressão “sempre preparados”. Isso é
significativo para aqueles que desejam honrar a necessidade bíblica de se
engajar na apologética. O que o Senhor pede de nós é que estejamos
preparados para oferecer uma resposta em defesa da nossa fé sempre que
alguém nos pedir uma razão. Devemos estar “prontos” para fazê-lo ─ na
verdade, “sempre prontos”. E isso significa que é imperativo refletirmos
sobre as perguntas que os incrédulos podem provavelmente fazer e sobre os
desafios que são geralmente lançados contra o cristianismo. Devemos estudar
e nos preparar para dar razões para a nossa fé quando o infiel perguntar.
Os cristãos precisam afiar a ferramenta da sua capacidade de raciocínio
para poderem glorificar a Deus e vindicar as reivindicações do evangelho.
Devemos todos fazer os nossos melhores esforços no serviço do nosso
Salvador, que chamou a si mesmo de “a verdade” (João 14.6). Todo crente
quer ver a verdade de Cristo crida e honrada pelos outros. E é por isso que
precisamos estar “preparados para arrazoar” com os incrédulos. Este estudo e
os que se seguem pretendem nos ajudar a nos tornarmos mais bem
preparados para essa necessária tarefa.
26. O CERNE DA QUESTÃO
Saber e crer
Cosmovisões conflitantes
Qual perspectiva é intelectualmente justificada, a do cristão ou do não
cristão? Muitos apologistas cristãos iniciantes abordam a resposta para essa
pergunta de uma forma muito simplista e ingênua, pensando que tudo o que
temos a fazer é ir atrás da evidência observável e ver qual das hipóteses é
verificada. “Afinal”, pensa-se, “é como resolvemos as divergências nos
nossos assuntos corriqueiros, assim como na ciência”.[8] Se surge uma
controvérsia sobre o preço dos ovos no supermercado, nós podemos entrar no
carro, dirigir até o estabelecimento e conferir por nós mesmos o preço dos
ovos na gôndola. Se os cientistas discordam sobre a afirmação de que fumar
causa câncer, eles podem realizar testes, fazer comparações estatísticas, etc.
Nesses casos, parece que o que fazemos no fundo é “olhar e ver” se uma
hipótese ou o seu oposto é verdadeiro. Claro, discordâncias como essa podem
ser facilmente resolvidas dessa forma somente porque as duas pessoas que
discordam acabam, todavia, concordando uma com a outra em relação a
suposições mais básicas ─ tais como a confiabilidade dos seus sentidos, a
uniformidade dos eventos naturais, a precisão na comunicação dos dados, a
honestidade dos pesquisadores, etc.
No entanto, quando a disputa é sobre questões mais fundamentais,
como acontece entre crentes e incrédulos, apelos simples à evidência
observacional não precisam ser de fato decisivos. A razão é que as crenças
mais fundamentais (ou pressuposições) de uma pessoa determinam o que ela
aceitará como evidência e determinam como essa evidência será interpretada.
Deixe-me ilustrar isso. O naturalismo e o sobrenaturalismo são perspectivas
conflitantes sobre o mundo em que vivemos e o conhecimento que o homem
tem dele. O naturalista alega que aquilo que é estudado pela ciência
empírica[9] é tudo o que existe na realidade, e que todo evento pode (em
princípio) ser explicado sem recorrer a forças fora do escopo da experiência
do homem ou fora do Universo. O sobrenaturalismo cristão, por outro lado,
acredita que existe um Deus todo-poderoso e transcendente que pode intervir
no Universo e realizar milagres que não podem ser explicados pelos
princípios comuns da experiência natural do homem. Ora, ter assim relatórios
bem certificados de um evento “milagroso” não é por si só suficiente para
mudar do naturalista ─ e por uma boa razão. As pressuposições do naturalista
irão exigir que ele dispute a alegação de que esse evento realmente
aconteceu, ou, alternativamente, o levarão a dizer que o evento está sujeito a
uma explicação natural, uma vez que aprendamos mais sobre ele. A simples
evidência não precisa desalojar sua abordagem naturalista para todas as
coisas ─ não mais que a simples evidência do globo ocular poderia alguma
vez refutar a convicção hindu de que tudo sobre a experiência temporal do
homem é maya (ilusão). Nossas pressuposições sobre a natureza da realidade
e o conhecimento controlam o que aceitamos como evidência e como a
vemos.[10]
Todo mundo tem o que se pode chamar de “cosmovisão”, uma
perspectiva em termos da qual as pessoas veem todas as coisas e entendem
suas percepções e sentimentos. Cosmovisão é uma rede de pressuposições
relacionadas em termos das quais cada aspecto da consciência e do
conhecimento do homem são interpretados. Essa cosmovisão, como
explicado acima, não é totalmente derivada da experiência humana nem pode
ser verificada ou refutada pelos procedimentos da ciência natural. Nem todo
mundo reflete explicitamente sobre o conteúdo da sua cosmovisão ou é
consistente na sua manutenção, mas todo mundo tem uma, não obstante. A
cosmovisão de uma pessoa dá a ela uma pista da natureza, estrutura e origem
da realidade. Ela lhe diz quais são os limites da possibilidade. Ela envolve
uma visão da natureza, das fontes e dos limites do conhecimento humano. Ela
inclui convicções fundamentais sobre o certo e o errado. A cosmovisão de
alguém diz algo sobre quem o homem é, qual é o seu lugar no Universo, qual
é o significado da vida, etc. As cosmovisões determinam nossa aceitação e
entendimento dos eventos na experiência humana e, assim, desempenham o
papel crucial na nossa interpretação da evidência ou nas disputas sobre
crenças fundamentais conflitantes.[11]
Vimos acima que a apologética, dada a sua natureza, envolve uma
argumentação sobre a justificação da crença ou rejeição da crença. O que
acabamos de observar é que o tratamento da questão da justificação da crença
por uma pessoa será governado pela cosmovisão ou pressuposições
subjacentes dela. A apologética eficaz necessariamente nos leva a desafiar e
debater com o incrédulo no nível das suas suposições ou compromissos mais
básicos sobre a realidade, o conhecimento e a ética. Nossa abordagem para a
defesa da fé será superficial e ineficaz se pensarmos que o incrédulo
simplesmente carece de informação ou precisa receber evidência
observacional.[12]
A Bíblia nos ensina que as perspectivas mental e espiritual dos crentes
e dos incrédulos diferem radicalmente uma da outra. Em princípio, e de
acordo com o que eles professam, as cosmovisões básicas ─ as
pressuposições fundamentais ─ do cristão e do não cristão conflitam uma
com a outra em todos os pontos.[13] A depravação pecaminosa que permeia
todo o homem não regenerado atinge seu intelecto tanto quanto qualquer
outra coisa. “Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois
não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser (Romanos 8.7). A
descrição que Paulo faz da mente incrédula em Efésios 4.17-19 é explícita.
Os incrédulos andam na vaidade da sua mente, obscurecidos no
entendimento, na ignorância e com um coração endurecido. “Dizendo-se
sábios, tornaram-se loucos” (Romanos 1.22). Por outro lado, é dito que os
crentes são transformados pela renovação da sua mente (Romanos 12.2; cf.
Efésios 4.23-24). Eles agora têm a mente de Cristo (1 Coríntios 2.16) e levam
cativo todo pensamento à obediência dele (2 Coríntios 10.5, ARA). Não é
surpreendente, portanto, que os crentes e os incrédulos ─ com suas condições
de coração e cosmovisões conflitantes ─ não partilhem realmente de uma
visão comum do conhecimento, da lógica, evidência, linguagem ou verdade.
Pilatos arrogantemente perguntou: “Que é a verdade?” (João 18.38). Agripa
diferiu de Paulo sobre o que é “crível” (Atos 26.8). O que os incrédulos
chamam de “conhecimento”, os crentes evitam como sendo
“pseudoconhecimento” (1 Timóteo 6.20). O que os crentes chamam de
sabedoria, os incrédulos chamam de loucura (1 Coríntios 1.18-2.5).
A impossibilidade do contrário
Se o modo como as pessoas raciocinam e interpretam a evidência é
determinado por suas cosmovisões pressupostas, e se as cosmovisões do
crente e do incrédulo estão, em princípio, em completo desacordo uma com a
outra, como a discordância entre eles sobre a justificação das afirmações
bíblicas pode ser resolvida? Pode parecer que toda argumentação racional é
impedida, visto que os apelos à evidência e à lógica serão controlados pelas
respectivas cosmovisões conflitantes do crente e do incrédulo. Mas não é este
o caso.
Cosmovisões diferentes podem ser comparadas uma com a outra nos
termos da importante questão filosófica sobre as “precondições de
inteligibilidade” para suposições importantes como a universalidade das leis
da lógica, a uniformidade da natureza e a realidade dos absolutos morais.
Podemos examinar uma cosmovisão e perguntar se o retrato que ela faz da
natureza, do homem, do conhecimento, etc. fornece uma perspectiva em
termos da qual a lógica, a ciência e a ética podem fazer sentido. Não é
compatível com as práticas da ciência natural acreditar que todos os eventos
são aleatórios e imprevisíveis, por exemplo. Não é compatível com a
exigência de honestidade na pesquisa científica nenhum princípio moral
expressar algo mais que um sentimento ou preferência pessoal. Além disso,
se há contradições internas na cosmovisão de uma pessoa, essa cosmovisão
não fornece as precondições que dão sentido à experiência do homem. Por
exemplo, se os dogmas políticos de uma pessoa respeitam a dignidade dos
homens de fazerem suas próprias escolhas, embora as teorias psicológicas
dela rejeitem o livre-arbítrio dos homens, há um defeito interno na
cosmovisão dessa pessoa.
A alegação do cristão é que todas as cosmovisões não cristãs estão
cercadas de contradições internas, bem como de crenças que impedem a
lógica, a ciência ou a ética serem inteligíveis. Por outro lado, a cosmovisão
cristã (tomada a partir da autorrevelação de Deus na Escritura) exige o nosso
compromisso intelectual porque ela fornece as precondições de
inteligibilidade para o raciocínio, a experiência e a dignidade do homem.
Em termos bíblicos, o que o apologista cristão faz é demonstrar aos
incrédulos que, por causa da sua rejeição da verdade revelada de Deus, eles
“se tornaram nulos em seus próprios raciocínios” (Romanos 1.21, ARA). Por
meio da sua perspectiva tola eles acabam opondo a si mesmos (2 Timóteo
2.25). Eles seguem uma concepção de conhecimento que não merece tal
nome (1 Timóteo 6.20). Sua filosofia e suas pressuposições roubam de uma
pessoa o conhecimento (Colossenses 2.3, 8), deixando-a na ignorância
(Efésios 4.17-18; Atos 17.23). O objetivo do apologista é destruir o
raciocínio deles (2 Coríntios 10.5) e desafiá-los no espírito de Paulo: “Onde
está o sábio? […] Onde está o inquiridor deste século? Porventura não tornou
Deus louca a sabedoria deste mundo?” (1 Coríntios 1.20).
De várias formas, o argumento fundamental desenvolvido pelo
apologista cristão é que a cosmovisão cristã é verdadeira por causa da
impossibilidade do contrário. Quando a perspectiva da revelação de Deus é
rejeitada, o incrédulo é deixado na ignorância tola porque sua filosofia não
fornece as precondições do conhecimento e da experiência significativa. Em
outras palavras, a prova de que o cristianismo é verdadeiro é que se ele não o
fosse, não seríamos capazes de provar nada.
O que o incrédulo precisa é nada menos do que uma mudança radical
de mente ─ de arrependimento (Atos 17.30). Ele precisa mudar sua
cosmovisão fundamental e se submeter à revelação de Deus para que
qualquer conhecimento ou experiência façam sentido. Ele ao mesmo tempo
precisa se arrepender da sua rebelião espiritual e do seu pecado contra Deus.
Por causa da condição do seu coração, ele não pode ver a verdade ou
conhecer Deus de uma forma salvadora.
Autoengano
Até que o coração do pecador seja regenerado e sua perspectiva básica
mudada, ele continuará a resistir ao conhecimento de Deus. Como acabamos
de dizer, dada a sua cosmovisão defeituosa e atitude espiritual, o incrédulo
não pode justificar o conhecimento, seja qual for, e não pode vir a conhecer
Deus de uma forma salvadora. Isso não significa, no entanto, que os
incrédulos não têm qualquer conhecimento e, muito menos, que eles não
conhecem Deus. O que dissemos é que eles não podem justificar o que sabem
(nos termos da sua cosmovisão incrédula) e não podem conhecer Deus de
uma forma salvadora. A Bíblia indica que os incrédulos, apesar disso,
conhecem Deus ─ mas é um conhecimento em condenação, um
conhecimento que os capacita a saber de coisas sobre si mesmos e o mundo
ao seu redor, muito embora eles suprimam a verdade de Deus que torna tal
conhecimento possível.
De acordo com Romanos 1.18-21, os incrédulos realmente conhecem
Deus no íntimo do seu coração (v. 21). De fato, o que se pode conhecer de
Deus é evidente dentro deles, e por isso eles são indesculpáveis por sua
incredulidade professa (vv. 19-20). Visto que ele não está longe de cada um
de nós, até mesmo os filósofos pagãos não podem deixar de conhecê-lo (cf.
Atos 17.27-28). Os incrédulos “suprimem a verdade pela injustiça”
(Romanos 1.18, NVI). Eles são culpados de autoengano. Embora num
sentido eles mui sinceramente neguem conhecer Deus ou ser persuadidos
pela sua revelação, eles estão, contudo, enganados nessa negação. Na
verdade, eles conhecem Deus, são persuadidos pela sua revelação de si
mesmo e fazem agora o que podem para manter essa verdade fora de vista e
evitar de lidar honestamente com seu Criador e Juiz. A racionalização e
qualquer número de artifícios intelectuais serão arrolados para eles
convencerem a si mesmos e os outros de que não se deve acreditar na
revelação que Deus faz de si mesmo. Desse modo os incrédulos, que
genuinamente conhecem Deus (em condenação), trabalham duro ─ ainda que
habitualmente (e, neste sentido, inconscientemente) ─ para enganarem a si
mesmos a fim de acreditar que não creem em Deus ou nas verdades reveladas
sobre ele.
É o conhecimento de Deus que todos os incrédulos têm inevitavelmente
dentro de si que lhes torna possível conhecer outras coisas sobre si mesmos
ou sobre o mundo. Porque conhecem Deus, eles têm um argumento para as
leis da lógica, para a uniformidade da natureza, para a dignidade do homem e
para os absolutos éticos. Consequentemente eles podem aspirar à ciência e a
outros aspectos da vida com alguma medida de sucesso ─ muito embora não
possam justificar esse sucesso (não possam fornecer as precondições para a
inteligibilidade da lógica, ciência ou ética). Por essa razão, cada pedaço do
conhecimento do incrédulo é uma evidência que apoia a verdade da revelação
de Deus e um indiciamento adicional contra a incredulidade no dia do
julgamento.
A tarefa da apologética é despir o incrédulo da sua máscara, mostrar-
lhe que ele realmente conhece Deus o tempo todo, mas suprime a verdade em
injustiça, e que o conhecimento seria impossível de outra forma. A
apologética, conduzida dessa forma, vai ao cerne da questão. Ela desafia o
cerne da perspectiva filosófica do incrédulo e confronta o autoengano que
domina o coração pessoal do incrédulo.
27. RESPONDENDO OBJEÇÕES
Sob ataque
A estrada baixa
Ao estudar as objeções dos incrédulos e nos preparar para arrazoar com eles,
nós tomamos a estrada alta da apologética, o caminho da obediência à
orientação do nosso Senhor e Salvador. Sua reivindicação categórica foi: “Eu
sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim”
(João 14.6). O apologista responde às objeções dos incrédulos de uma forma
que apresente a verdade objetiva do cristianismo e o caráter exclusivo do
sistema. Ele oferece razões para a crença, vindicando a cosmovisão cristã
contra sistemas concorrentes de pensamento e de vida.
Nem todos os crentes (ou cristãos professos) optam por seguir essa
estrada alta. Frequentemente tem acontecido que aqueles que falam pela fé
cristã se contentam com muito menos (especialmente, mas não
exclusivamente, no século atual). Eles se contentam com muito menos do que
a apologética ao reduzirem o compromisso cristão ao subjetivismo. É
certamente verdade que o cristianismo nos traz uma sensação de paz e
confiança pessoal perante Deus, e essa experiência interior de fé sendo certa e
nós mesmos vindo a estar bem com Deus (cf. o testemunho do Espírito,
Romanos 8.16) não podem ser adequadamente transmitidas em palavras. No
entanto, apelos a esse sentimento interior não constituem um argumento que
deverá persuadir os outros da veracidade do cristianismo.
Há uma importante diferença entre confiança e certeza,[14] assim como
há uma importante diferença entre aceitabilidade subjetiva e verdade objetiva.
Confiança é uma propriedade psicológica, um sentimento de convicção de
que uma proposição é verdadeira. Muitas pessoas, no entanto, se sentem
muito confiantes de coisas que se provam notoriamente falsas; todavia, a
confiança dos outros acaba sendo confiável. Assim, o melhor que podemos
dizer é que a presença de convicção psicológica não é um indicador adequado
de quem possui ou não a verdade. A certeza ─ em oposição à confiança ─ é
tecnicamente a propriedade de uma proposição (ou conjunto de proposições),
não de uma pessoa. A certeza de uma proposição é a propriedade de que ela
não pode deixar de ser verdadeira. A verdade do cristianismo não é
simplesmente uma qualidade autobiográfica, dizendo-nos algo sobre a sua
aceitabilidade por esta ou aquela pessoa individual. O apologista defende a
verdade objetiva da fé. Isto é, o apologista mantém que a verdade dela tem
uma natureza pública, aberta à inspeção e independente do que alguém pensa
ou sente sobre ela (positiva ou negativamente).
Outra estrada baixa que alguns cristãos professos seguem em resposta
às objeções incrédulas à fé é a estrada do relativismo. Isso está, em muitos
casos, intimamente aliado ao subjetivismo, mas constitui um erro distinto em
si mesmo. O subjetivista suprime ou nega a natureza pública da verdade
cristã, mas ainda distingue a verdade do erro; ele acredita que o cristianismo é
verdadeiro ─ e baseia isso em sentimentos indisputados ─ e, por outro lado,
acredita que o ponto de vista não cristão é falso.
O relativismo, por outro lado, acredita que todas as crenças e
convicções (ou todas as crenças religiosas, seja como for) são condicionadas
por fatores culturais e preconceitos individuais de tal forma que não pode
haver qualquer verdade absoluta (não qualificada). Se o cristão proclama que
Deus é uma pessoa, mas os hindus ensinam que a realidade suprema é
impessoal, e se o cristão adverte que todos os homens responderão a Deus
pelos seus pecados um dia, mas o líder de alguma seita insiste que Deus
jamais puniria alguém por maldades cometidas ─ o relativista diria que essas
discordâncias não podem ser resolvidas. O que é “verdade para você” não é
necessariamente “verdade para mim”.[15] O relativismo é hipócrita ou
autocontraditório. Às vezes as pessoas agem com relativismo, mas não é
realmente como querem agir. Quando as coisas vão mal, elas querem insistir
que algumas coisas são absolutamente verdadeiras, embora outras não o
sejam ─ e, claro, elas serão julgadas conforme onde demarcarem a linha,
como se a verdade pudesse ser mera questão de conveniência pessoal! Outras
vezes as pessoas se contradizem ao insistir que absolutamente não existe
nenhuma verdade absoluta ─ fornecendo, assim, no que dizem a própria base
para rejeitar o que dizem.
O cristianismo não reivindica ser relativamente verdadeiro, mas
absoluta e universalmente verdadeiro. Além disso, como sistema religioso,
reivindica ser exclusivamente verdadeiro.[16] Isso é, naturalmente, bastante
ofensivo em uma era pluralista e democrática. “Todo mundo tem o direito de
acreditar no que quiser sobre Deus”, as pessoas irão nos lembrar. Mas não é
esse o ponto. O direito de acreditar em alguma coisa não traduz isso em algo
verdadeiro. Algumas perspectivas religiosas ensinam que há uma variedade
de formas de se chegar a Deus ou servi-lo (como pessoa ou objeto) ─ muitos
caminhos para o topo da montanha. O cristianismo não é uma delas, no
entanto. As abordagens ecléticas e variadas da religião podem desejar
incorporar o cristianismo entre as suas opções religiosas (mais uma de
muitas), mas pela sua própria natureza o cristianismo não pode ser assimilado
nas perspectivas delas. O cristianismo afirma que somente Cristo é o
Salvador divino, afirma que somente através dele alguém pode estar bem
com Deus e afirma que aquilo que nós cremos sobre Deus está restrito ao que
ele revela sobre si mesmo (excluindo assim a imaginação humana).
Pedro proclamou “Saiba pois com certeza toda a casa de Israel que a esse
Jesus, a quem vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo” (Atos 2.36).
“Por isso, discutia na sinagoga com judeus e com gregos tementes a Deus,
bem como[17] na praça principal, todos os dias, com aqueles que por ali se
encontravam [incluindo] alguns filósofos epicureus e estoicos…” (Atos
17.17-18, NVI).
Deus, em sua Santa Palavra, revelou a falta de santidade dessa atitude. “Não
tentareis o Senhor vosso Deus” (Deuteronômio 6.16), conforme decretou
Moisés. Quando Satanás tentou Jesus para fazer isso ─ pressionar Deus a
oferecer prova da veracidade da sua palavra (como citada por Satanás) ─
Jesus repreendeu Satanás, “o acusador”, com essas mesmas palavras do
Antigo Testamento. Ele declarou: “Também está escrito: Não tentarás o
Senhor teu Deus” (Mateus 4.7). Não é a integridade, veracidade e
conhecimento de Deus que são de algum modo suspeitos, realmente, mas sim
aqueles que o acusam e exigem provas para satisfazer a sua própria maneira
de pensar ou viver.
Ao responder as objeções dos incrédulos, o apologista não deve perder
de vista essa profunda verdade. Compete a nós oferecer uma defesa
fundamentada ao incrédulo, lidando de uma forma honesta e detalhada com
as críticas que ele possa ter. A apologética cristã não é servida pelo
obscurantismo e por generalidades. Porém, ao mesmo tempo, nossos
argumentos apologéticos devem servir para demonstrar que o incrédulo não
tem nenhum fundamento intelectual sobre o qual pode manter oposição à
revelação de Deus. Nossa argumentação deve acabar mostrando que as
pressuposições (a cosmovisão) do incrédulo levariam consistentemente à
loucura e à destruição do conhecimento. Nesse caso, e dado o estilo de vida
pecaminoso do incrédulo, é o incrédulo realmente ─ e não Deus ─ quem está
afinal “no banco dos réus”, tanto epistemologicamente como moralmente.
28. FERRAMENTAS DE APOLOGÉTICA
“Deus não foi tão parcimonioso com os homens para fazê-los tão somente
criaturas de duas pernas, deixando para Aristóteles torná-los racionais.”
Assim escreveu John Locke (1632-1704).[20]
Conjectura preconceituosa
Muitas vezes vamos descobrir que os incrédulos, tanto instruídos como não
instruídos, tomam a ofensiva contra o cristianismo antes de terem se
familiarizado com o que estão falando. No lugar da pesquisa e da avaliação
honesta das evidências disponíveis sobre algum aspecto da Bíblia, muitos
incrédulos optam pela conjectura pessoal sobre o que lhes “parece provável”.
Por exemplo, desde que a Bíblia foi supostamente escrita tantas
centenas de anos atrás, “parece provável” para muitos incrédulos que nós não
podemos confiar no texto da Bíblia que temos em nossas mãos hoje.
Certamente os escribas alteraram e suplementaram o texto original a tal ponto
que não podemos estar certos do que foi realmente escrito por Moisés,
Jeremias, João ou Paulo (se é que esses personagens realmente foram os
autores); até onde sabemos, o que lemos nas nossas Bíblias veio da pena de
algum monge da “idade das trevas”! Esse tipo de crítica ignorante parece ser
intelectualmente sofisticado para alguns incrédulos. Afinal de contas, na
nossa experiência humana natural, mensagens que são passadas de um
locutor para outro geralmente ficam truncadas, distorcidas ou aumentadas,
não é o mesmo?
Para os incrédulos que raciocinam dessa forma (sobre este ou muitos
outros assuntos relacionados à Bíblia), não devemos cansar de apontar que
eles estão se baseando na conjectura, não na pesquisa. Pode “parecer
provável” que o texto bíblico não seria mais confiável ou autêntico depois de
todos esses anos, mas essa “probabilidade” é uma avaliação que se baseia no
preconceito. O primeiro preconceito é a suposição de que o texto bíblico não
é diferente de qualquer outro documento escrito que encontramos em nossa
experiência humana natural ao longo da história ─ o que, claro, é uma
petição de princípio no próprio fundamento daquilo que o crente e o
incrédulo estão argumentando! Se a Bíblia é, como ela afirma, a palavra
inspirada do Deus Todo-Poderoso, a história da sua transmissão textual pode
muito bem ser totalmente diferente da de outros documentos humanos, já que
Deus teria ordenado que seu texto fosse preservado com maior integridade do
que o texto dos livros comuns.
A segunda indicação de preconceito é que o incrédulo não oferece
qualquer evidência concreta de que (digamos) algum monge medieval
adulterou o texto antes de nós hoje. Esse tipo de observação é simples e
arbitrariamente levantado como uma hipótese que deve ser endossada pela
sua “probabilidade” em vez de suas credenciais empíricas. Claro, se
queremos seguir por esse caminho, poderíamos ─ com igual arbitrariedade ─
conjecturar que as palavras que nos chegaram como sendo de Paulo foram na
verdade escritas não anos depois, mas anos antes da época de Paulo! A
arbitrariedade é um amigo volúvel do estudioso. Livres de qualquer demanda
por evidência, poderíamos acreditar em qualquer número de coisas
conflitantes.
A terceira indicação de preconceito na crítica do incrédulo é que ele
não leva em conta a evidência real que está publicamente disponível sobre o
texto da Escritura. Se o crítico tivesse separado um tempo para considerar
esse aspecto, não teria feito a estranha avaliação de que o texto bíblico não é
confiável. Isso me influenciou sobremaneira após ter feito um curso avançado
sobre Platão na pós-graduação, um curso que levou em conta a crítica textual
do corpo literário das obras de Platão. Nosso mais antigo manuscrito
existente de uma obra de Platão data bem antes de 900 D. C. (“Oxford B”,
encontrado num monastério de Patmos por E. B. Clarke), e devemos lembrar
que Platão é pensado como tendo escrito cerca de 350 anos antes de Cristo ─
deixando-nos assim com uma diferença de mais de doze séculos. Por
contraste, os primeiros fragmentos do Novo Testamento datam menos de 50
anos após a escrita original; a maior parte dos nossos manuscritos existentes
mais importantes remontam a 200-300 anos após a composição original. O
texto do Novo Testamento é notavelmente uniforme e bem estabelecido. A
confiabilidade do texto do Antigo Testamento foi demonstrada pela
descoberta dos Manuscritos do Mar Morto.
A precisão e autenticidade geral do texto bíblico é bem conhecida dos
estudiosos. Frederick Kenyon concluiu: “O cristão pode tomar a Bíblia inteira
em suas mãos e dizer sem medo ou hesitação que defende estar nela a
verdadeira Palavra de Deus, transmitida sem nenhuma perda essencial de
geração a geração, ao longo dos séculos”.[26] Avaliações como essa de
estudiosos competentes poderiam ser facilmente multiplicadas ─ o que
apenas acaba mostrando o preconceito que opera no pensamento dos
incrédulos que descuidadamente criticam a Bíblia por “muito provavelmente”
ter um texto duvidoso.
Quando defendemos a nossa fé cristã, então, devemos estar
constantemente atentos com a forma como o raciocínio dos incrédulos
repousa sobre a conjectura preconceituosa. Ele surge repetidamente. Já ouvi
até mesmo algumas pessoas vociferarem a opinião radical de que “nós não
temos nenhuma base histórica ou literária para acreditar que Jesus até mesmo
existiu”! Você consegue identificar as indicações óbvias de preconceito aqui?
Essa crítica simplesmente toma como certo que a Bíblia mesma não deve ser
tomada, de nenhuma forma, como uma fonte literária de informação histórica
─ contrariando a prática geral de até mesmo historiadores incrédulos do
mundo antigo. Ademais, essa crítica não mostra familiaridade com as alusões
seculares a Jesus na literatura antiga ─ como a referência feita pelo
historiador romano Tácito a “Christus” que sofreu “a penalidade extrema…
nas mãos de um de nossos procuradores, Pôncio Pilatos” (Anais 15.44), ou a
referência do historiador judeu Josefo a Tiago “o irmão de Jesus, que é
chamado Cristo” (Antiguidades 20:9), etc. Críticas como essa acabam
normalmente nos dizendo mais sobre o crítico (por ex., seus preconceitos, o
que ele não está lendo) do que sobre o objeto da sua crítica.
Houve uma época em que os críticos ridicularizavam o Antigo
Testamento por ele mencionar uma tribo de pessoas, os hititas, que (ainda)
era desconhecida fora da Bíblia; essas falhas presumidas no registro bíblico
eram consideradas uma razão para torná-lo inútil como um documento
histórico ─ até que monumentos e artefatos hititas começaram a ser
descobertos por aí ─ Archemish por arqueólogos, começando em 1871. A
civilização hitita é hoje uma das culturas mais bem conhecidas do mundo
antigo!
A arqueologia tem vez após vez provado ser inimiga dos críticos da
Bíblia, desenterrando seus preconceitos negativos e confirmando a precisão
das Escrituras em particularidades históricas. H. M. Orlinsky escreveu:
“Cada vez mais a antiga visão de que os dados bíblicos eram suspeitos e até
prováveis de serem falsos, a não ser que corroborados por fatos
extrabíblicos, está dando lugar a uma visão que sustenta que, em geral, os
relatos bíblicos são mais prováveis de serem verdadeiros do que
falsos…”[27]
Pecados intelectuais-chave
A primeira ferramenta de raciocínio apologético que temos considerado é a
de apontar para a conjectura preconceituosa em que os incrédulos facilmente
caem quando procuram uma maneira de questionar a verdade do cristianismo.
Uma segunda ferramenta a ser usada na apologética é expor a predisposição
filosófica indisputada que está geralmente embalada na crítica gerada pelos
incrédulos.
Ao utilizar artifícios como esses, o apologista procura desvelar as
“pressuposições” do incrédulo que determinam (involuntariamente ou às
vezes conscientemente) as conclusões que ele irá alcançar. Estamos
constantemente à procura de suposições cruciais e indisputadas.
Em outros momentos o apologista terá de desafiar não simplesmente a
natureza das pressuposições do incrédulo, mas o fato de que essas
pressuposições são arbitrárias ou inconsistentes. Na verdade, esses são
precisamente os dois pecados-chave para qualquer estudioso: a arbitrariedade
no seu pensamento ou a incoerência entre diferentes aspectos do seu
pensamento (e da sua viva). Os defensores da fé jamais devem se cansar de
apontar isso.
Se as pessoas são autorizadas a acreditar simplesmente em qualquer
coisa que quiserem com base na pura conveniência, tradição ou preconceito,
elas abandonaram o curso da racionalidade, que exige ter uma boa razão para
as coisas em que acreditamos e fazemos. Por outro lado, se as pessoas são
autorizadas a afirmar (ou a confiar em) certas premissas, só para mais tarde
abandonar ou contradizer essas mesmas premissas, elas violaram as
exigências fundamentais do raciocínio sólido. Em ambos os casos o
pensamento e as crenças de uma pessoa se tornam imprevisíveis e não
confiáveis.
Recapitulação
Deus não foi “parcimonioso” na sua provisão a nós de uma variedade de
ferramentas eficazes para responder às críticas dos incrédulos e refutar as
alegações das suas cosmovisões conflitantes. Ao lidar com o incrédulo, o
cristão deve estar alerta para apontar, no crítico,
(1) suas conjecturas preconceituosas,
(2) sua predisposição filosófica indisputada,
(3) pressuposições que não são compatíveis umas com as outras,
(4) falácias lógicas, e
(5) o comportamento que trai suas crenças declaradas.
Ao fazer isso, realizamos uma das tarefas-chave da apologética:
refutar desafios e oferecer uma crítica interna da posição a partir da qual
essas críticas surgem.
29. APOLOGÉTICA NA PRÁTICA
Revisão
Vamos resumir o que foi dito até agora sobre a forma de abordar a tarefa da
apologética.
1. Engajar-se na apologética é uma necessidade moral para todos os crentes;
nós devemos estar “sempre preparados” para oferecer uma resposta
para a esperança que há em nós (1 Pedro 3.15);
2. Para evitar mal-entendidos, apontamos que a apologética não é:
(a) pugnaz,
(b) uma questão de persuasão ou
(c) baseada numa autoridade última diferente da teologia.
3. Para o cristão, a “razão” deve ser usada como uma ferramenta, não como
a autoridade última, em nosso pensamento.
4. Nossa reivindicação ante o mundo é que os crentes “sabem” que a Bíblia é
verdadeira ─ nós temos uma justificação adequada para acreditar nas
suas reivindicações.
5. O conflito entre crentes e incrédulos está em última análise nas suas
diferentes cosmovisões ─ estruturas de pressuposições em termos das
quais toda experiência é interpretada e o raciocínio guiado.
6. Consequentemente, precisamos argumentar a partir da “impossibilidade
do contrário”, mostrando que somente o cristianismo fornece as
precondições de inteligibilidade para o raciocínio e a experiência do
homem. Se o cristianismo não fosse verdadeiro, o incrédulo não
poderia provar ou entender nada.
7. Os incrédulos são autoenganados: eles conhecem a verdade sobre Deus,
mas a suprimem (racionalizando a evidência clara dentro e ao redor
deles).
8. O verdadeiro réu, intelectualmente e moralmente, é o incrédulo ─ não
Deus.
9. Há uma grande variedade de diferentes tipos de ataques contra o
cristianismo, e eles não podem ser tratados adequadamente por
defesas que repousem no:
(a) subjetivismo,
(b) relativismo ou
(c) ecletismo.
10. O apologista deve usar a argumentação. A argumentação santificada não
precisa ser contenciosa; descobrimos que a argumentação santificada
com os incrédulos é justificada pelo exemplo bíblico.
11. Uma argumentação afirma a verdade de uma proposição com base na de
outras.
12. A racionalidade na argumentação é mais ampla do que simplesmente
usar as regras de dedução silogística.
13. Deus quer que dominemos as ferramentas da racionalidade na defesa da
fé. Nossa tarefa é refutar os desafios dos incrédulos e oferecer uma
crítica interna da posição a partir da qual esses desafios surgem.
14. Os dois pecados intelectuais-chave que são cometidos pelas pessoas são:
(a) inconsistência e
(b) arbitrariedade.
15. Ao lidar com o incrédulo, o cristão deve estar alerta para apontar, no
crítico,
(a) suas conjecturas preconceituosas,
(b) sua predisposição filosófica indisputada,
(c) pressuposições que não são compatíveis umas com as outras,
(d) falácias lógicas e o comportamento que trai suas crenças
declaradas.
Tensões internas
O que é extraordinário sobre esse rosário de queixas contra o cristianismo é a
inconsistência e a arbitrariedade de Russell. A segunda razão oferecida acima
pressupõe algum padrão absoluto de sabedoria moral pelo qual alguém
poderia nivelar Jesus como inferior ou superior aos outros. Da mesma forma,
a terceira razão pressupõe um critério fixo para o que é ou não é “digno” de
seres humanos que se respeitam. Então, novamente, a queixa expressa na
quarta razão não faz nenhum sentido a menos que seja objetivamente errado
ser um inimigo do “progresso moral”; na verdade, a própria ideia de
“progresso” moral assume um ponto de referência estabelecido para a
moralidade pelo qual se pode avaliar o progresso.
Ora, se Russell estivesse raciocinando e falando nos termos da
cosmovisão cristã, sua tentativa de avaliar a sabedoria moral, a dignidade
humana e o progresso moral ─ bem como de julgar negativamente
deficiências nessas matérias ─ seria compreensível e esperada. Os cristãos
têm um padrão de moralidade universal, objetivo e absoluto na palavra
revelada de Deus. Mas obviamente Russell não quis falar como se tivesse
adotado perspectivas e premissas cristãs! Com que base, então, poderia
Russell emitir suas avaliações e julgamentos morais? Em termos de qual
visão da realidade e do conhecimento ele assumiu que havia qualquer coisa
como um critério objetivo de moralidade do qual poderia considerar Cristo,
os cristãos e a igreja como estando aquém?
Russell foi embaraçosamente arbitrário a esse respeito. Ele
simplesmente assumiu, como uma predisposição filosófica indisputada, que
havia um padrão moral para aplicar e que ele poderia presumir ser o porta-
voz e juiz a aplicá-lo. Poderíamos facilmente rebater Russell ao simplesmente
dizer que ele escolheu arbitrariamente o padrão errado de moralidade. Por
questão de justiça, os oponentes de Russell devem poder usar tanta
arbitrariedade como ele na escolha de um padrão moral, e podem então
escolher um padrão diferente do dele. E assim o argumento dele cai por terra.
Ao assumir a prerrogativa de emitir julgamentos morais, Russell
evidenciou que suas próprias pressuposições não são compatíveis umas com
as outras. Ao oferecer um juízo de valor condenatório contra o cristianismo,
Russell se envolveu num comportamento que traiu suas crenças professas em
outro lugar. Em sua palestra, Russell professou que este era um mundo de
acaso que não mostra nenhuma evidência de desígnio, onde as “leis” não são
nada mais do que médias estatísticas que descrevem o que aconteceu. Ele
professou que o mundo físico pode ter sempre existido e que a inteligência e
a vida humana surgiram da forma explicada por Darwin (seleção natural
evolucionista). Nossos valores e esperanças são o que “nossa inteligência
pode criar”. Permanece o fato de que, segundo “as leis ordinárias da ciência,
você tem de supor que a vida humana… neste planeta se extinguirá no devido
tempo”.
Isso simplesmente equivale a dizer que os valores humanos são
subjetivos, fugazes e autocriados. Em suma, são relativos. Mantendo esse
tipo de visão de valores morais, Russell foi totalmente inconsistente ao agir
como se pudesse assumir um tipo completamente diferente de visão de
valores, declarando uma avaliação moral absoluta de Cristo ou dos cristãos.
Um aspecto da rede de crenças de Russell tornou um outro aspecto do seu
conjunto de crenças ininteligível.
O mesmo tipo de tensão interna dentro das crenças de Russell é
evidente acima no que ele tinha a dizer sobre as “leis” da ciência. Por um
lado, essas leis são meramente descrições do que aconteceu no passado, diz
Russell. Por outro lado, Russell falou das leis da ciência como fornecendo
uma base para projetar o que vai acontecer no futuro, a saber, a decadência do
sistema solar. Esse tipo de dança dialética entre visões conflitantes da lei
científica (falando epistemologicamente) ou entre visões conflitantes da
natureza do cosmo físico (falando metafisicamente) é característico do
pensamento incrédulo. Esse pensamento não está em harmonia consigo
mesmo e é, portanto, irracional.
“Razão pura”
Na primeira razão dada por Russell para o porquê de não ser cristão, ele
aludiu ao dogma da Igreja Católica Romana de que “a existência de Deus
pode ser provada pela razão pura”.[33] Ele então se volta para alguns dos
argumentos mais populares apresentados para a existência de Deus que estão
(supostamente) baseados nessa “razão pura” e facilmente descobre serem
insatisfatórios. Não é necessário dizer, claro, que Russell pensava estar
derrotando esses argumentos de razão pura por meio da sua própria razão
pura (superior). Russell não discordava de Roma em que o homem pode
provar coisas com a sua “razão natural” (à parte da obra sobrenatural da
graça). De fato, ao final da sua palestra, ele conclamou seus ouvintes a “uma
perspectiva destemida e inteligência livre”. Russell simplesmente discordava
que a razão pura levasse alguém a Deus. De diferentes formas, e com
diferentes conclusões finais, tanto a Igreja Romana como Russell
encorajavam os homens a exercerem sua capacidade de raciocínio
autonomamente ─ à parte do fundamento e das restrições da revelação divina.
O apologista cristão não deve deixar de expor esse compromisso com a
“razão pura” por conta da predisposição filosófica indisputada que isso
representa. Ao longo de sua palestra, Russell simplesmente toma como certo
que a razão autônoma permite ao homem saber coisas. Ele fala livremente do
seu “conhecimento do que os átomos realmente fazem”, do que “a ciência
pode nos ensinar” e de “certas falácias bem definidas” cometidas em
argumentos cristãos, etc. Mas isso simplesmente não é aceitável. Como
filósofo, Russell deu a si mesmo um passe livre; ele hipocritamente deixou de
ser tão autocrítico no seu raciocínio quanto rogou que os outros o fossem
consigo mesmos.
O problema persistente que Russell simplesmente não enfrentou é que,
com base no raciocínio autônomo, o homem não pode dar uma explicação
adequada e racional do conhecimento que adquirimos através da ciência e da
lógica. O procedimento científico assume que o mundo natural opera de
maneira uniforme, em cujo caso nosso conhecimento observacional de casos
passados fornece uma base para predizer o que vai acontecer em casos
futuros. No entanto, a razão autônoma não tem base alguma para acreditar
que o mundo natural irá operar de maneira uniforme. O próprio Russell
afirmou (às vezes) que este é um Universo do acaso. Ele jamais poderia
reconciliar essa visão da natureza sendo aleatória com sua visão de que a
natureza é uniforme (como a “ciência” pode nos ensinar”).
Assim acontece com o conhecimento e uso das leis da lógica (em
termos das quais Russell definitivamente insistiu que as falácias devem ser
evitadas). As leis da lógica não são objetos físicos no mundo natural; elas não
são observadas pelos sentidos do homem. Além do mais, as leis da lógica são
universais e imutáveis ─ ou do contrário elas se reduzem a preferências
relativistas para o pensamento em vez de requisitos prescritivos. No entanto,
o raciocínio autônomo de Russell não poderia explicar ou justificar essas
características das leis lógicas. A razão pura de um indivíduo está limitada ao
escopo do uso e das experiências dela, em cujo caso ela não pode se
pronunciar sobre o que é universalmente verdadeiro (descritivamente). Por
outro lado, a razão pura de um indivíduo não está em nenhuma posição de
ditar (prescritivamente) leis universais do pensamento ou nos assegurar de
que essas estipulações para a mente se provarão de alguma forma aplicáveis
ao mundo do pensamento ou da matéria fora da mente do indivíduo.[34]
A cosmovisão de Russell, mesmo à parte das suas tensões internas, não
poderia fornecer um fundamento para a inteligibilidade da ciência ou da
lógica. A razão “pura” de Russell não poderia justificar o conhecimento que
os homens prontamente ganham no Universo de Deus, um Universo
soberanamente controlado (e por isso uniforme) e interpretado à luz da mente
revelada do Criador (e por isso existem leis imateriais do pensamento que são
universais).
1. Deus é onibenevolente.
2. Deus é todo-poderoso.
3. O mal existe.
4. Deus tem uma razão moralmente suficiente para o mal que existe.
A afronta ao transcendente
Aqueles que não são cristãos muitas vezes irão assumir que o mundo natural
é tudo o que há, em cujo caso ninguém pode conhecer coisas sobre o
“sobrenatural” (o que quer que ultrapasse os limites da natureza). Nos
círculos filosóficos, as discussões e debates sobre essas questões caem dentro
da área de estudo conhecida como “metafísica”. Como se poderia esperar,
essa divisão da investigação filosófica é geralmente um foco de controvérsia
entre escolas de pensamento conflitantes. Mais recentemente, o
empreendimento inteiro da metafísica se tornou ele mesmo foco de
controvérsia.
Ao longo dos dois últimos séculos se desenvolveu uma mentalidade
que é hostil a qualquer afirmação filosófica que tenha um caráter metafísico.
Está claro para a maioria dos estudantes que a antipatia pela fé cristã tem sido
o fato primário e motivador nesses ataques. Contudo, essa crítica tem sido
generalizada na forma de um antagonismo penetrante com quaisquer
afirmações que sejam similarmente “metafísicas”. Essa atitude antimetafísica
foi um dos ingredientes cruciais que moldaram a cultura e a história ao longo
dos últimos duzentos anos. Ela alterou os pontos de vista comuns sobre o
homem e a ética, gerou uma reformulação radical das crenças religiosas e
afetou significativamente perspectivas que vão da política à pedagogia.
Consequentemente, uma grande parte das questões ou desafios céticos que
são dirigidos contra a fé cristã estão enraizados na ou são coloridos por esse
espírito negativo em relação à metafísica.
Definindo o metafísico
Antes que possamos nos debruçar sobre os argumentos antimetafísicos que
são comumente ouvidos hoje em dia, seria útil entender melhor o que se
entende por “metafísica”. Essa é uma palavra técnica que raramente é usada
fora dos círculos acadêmicos; ela não deve nem mesmo fazer parte do
vocabulário da maioria dos cristãos. Não obstante, a concepção da metafísica
e a reação a ela que pode ser encontrada nos círculos acadêmicos
definitivamente irá tocar e ter um impacto na vida do crente ─ em termos dos
ataques populares à fé que ele deve responder ou até mesmo em termos da
forma como a religião cristã é retratada e apresentada no púlpito.
Frequentemente é dito que a metafísica é o estudo do “ser”. Mais
revelador seria se escrevêssemos que a metafísica estuda o “ser” ─ isto é,
questões sobre a existência (“ser ou não ser”). A metafísica pergunta “o que é
que existe?” E que tipos de coisas existem? Assim, o metafísico está
interessado em saber sobre distinções fundamentais (isto é, as classes básicas
das coisas que existem) e similaridades importantes (isto é, a natureza
essencial dos membros dessas classes). Ele busca as explicações ou causas
finais para a existência e a natureza das coisas. Ele quer entender os limites
da realidade possível, os modos de existir e as inter-relações das coisas
existentes.
Deveria ser óbvio então, ainda que de forma elementar, que o
cristianismo propõe uma série de afirmações metafísicas definidas.
Distinções fundamentais
A Escritura nos ensina que “há um só Deus, o Pai, de quem é tudo… e um só
Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas” (1 Coríntios 8.6). Todas
as coisas, de todos os tipos, foram criadas por ele (João 1.3; Colossenses
1.16). Mas ele é antes de todas as coisas, e por meio dele todas as coisas
subsistem (João 1.1; Colossenses 1.17). Ele mantém ou sustenta todas as
coisas pela palavra do seu poder (Hebreus 1.3). Portanto, existir é ser divino
ou criado. Em Deus vivemos, e nos movemos, e existimos (Atos 17.28). Ele,
no entanto, tem a vida em si mesmo (João 5.26; Êxodo 3.14). O Deus vivo e
verdadeiro confere a unidade distinguível ou natureza comum às coisas
(Gênesis 2.19), categorizando as coisas ao colocar sua interpretação sobre
elas (por ex., Gênesis 1.5, 8, 10, 17; 2.9). É também ele quem faz com que as
coisas sejam diferentes umas das outras (1 Coríntios 4.7; Êxodo 11.7;
Romanos 9.21; 1 Coríntios 12.4-6; 15.38-41). A similaridade e a distinção,
então, resultam da obra criativa e providencial de Deus. Tanto a existência
como a natureza das coisas encontram sua explicação nele ─ quer ocasional
(Efésios 1.11), quer teleológica (Efésios 1.11). Deus é a fonte de toda
possibilidade (Isaías 43.10; 44.6; 65.11) e, assim, por sua própria vontade e
decreto define os limites da realidade possível.
A metafísica cristã
A fé cristã, por esse motivo, também compreende um sistema metafísico. A
Escritura ensina que todas as coisas são de Deus, são por Deus e são para
Deus (Romanos 11.36). Devemos pensar os pensamentos de Deus depois
dele (Provérbios 22.17-21; João 8.31-32). Desta forma podemos compreender
e interpretar o mundo como um todo. A palavra de Deus nos dá luz (Salmos
119.130), e o próprio Cristo é o gerador da vida que dá luz aos homens (João
1.4) e em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão
ocultos (Colossenses 2.3, ARA). Assim, podemos discernir a verdadeira
natureza da realidade em termos da palavra de Cristo: “na tua luz veremos a
luz” (Salmos 36.9).
A Bíblia apresenta um esquema metafísico definido. Ela começa com
Deus que é um espírito puro, pessoal, infinitamente perfeito (Êxodo 15.11;
Malaquias 2.10; João 4.24). O Deus triúno (2 Coríntios 13.14) é único em sua
natureza e obras (Salmos 86.9), autoexistente (Êxodo 3.14; João 5.26;
Gálatas 4.8-9), eterno (Salmos 90.2), imutável (Malaquias 3.6) e onipresente
(Salmos 139.7-10). Tudo o mais que existe foi criado a partir do nada
(Colossenses 1.16-17; Hebreus 11.3), seja o mundo material (Gênesis 1.1;
Êxodo 20.11), seja o reino dos espíritos (Salmos 148.2, 5), seja o homem. O
homem foi criado à imagem de Deus (Gênesis 1.27), um ser que exibe tanto
um caráter material, como imaterial (Mateus 10.28), sobrevivendo
corporalmente à morte (Eclesiastes 12.7; Romanos 2.7) com consciência
pessoal de Deus (2 Coríntios 5.8) e aguardando a ressurreição corporal (1
Coríntios 6.14; 15.42-44).
Na criação, Deus fez todas as coisas de acordo com a sua sabedoria
insondável (Salmos 104.24; Isaías 40.28), atribuindo a todas as coisas a
natureza definida delas (Isaías 40.26; 46.9-10). Deus também determina todas
as coisas com sua sabedoria (Efésios 1.11) ─ preservando (Neemias 9.6),
governando (Salmos 103.19) e predeterminando a natureza e o curso de todas
as coisas, sendo assim capaz de realizar milagres (Salmos 72.18). O decreto
pelo qual Deus providencialmente ordena os eventos históricos é eterno,
eficaz, incondicional, imutável e abrangente (por ex., Isaías 46.10; Atos 2.23;
Efésios 3.9-11).
Essas verdades são paradigmáticas para o crente; são princípios últimos
da realidade objetiva, devendo ser distinguidas das ilusões apresentadas em
visões de mundo contrárias. O que o mundo incrédulo vê como sabedoria é
na verdade loucura (1 Coríntios 1.18-25). Visto que os entendimentos dos
incrédulos estão cegos (2 Coríntios 4.4), eles erram segundo a fé descrita
acima, tendo, portanto, apenas o que é “falsamente chamado conhecimento”
(1 Timóteo 6.20-21, NVI). Por exemplo, apoiando-se na aparência de total
regularidade, uma metafísica incrédula não ensina que Cristo voltará a
intervir no processo cósmico para julgar os homens e determinar seu destino
eterno (cf. 2 Pedro 3.3-7).
Questões últimas
Assim, a “metafísica” estuda questões ou assuntos como a natureza da
existência, os tipos de coisas que existem, as classes das coisas existentes, os
limites da possibilidade, o esquema último das coisas, a realidade versus a
aparência e a estrutura conceitual abrangente usada para dar sentido ao
mundo como um todo. Não é difícil entender, então, como o termo
“metafísica” veio para conotar o estudo do que está “além do reino físico”. A
simples inspeção ocular de situações isoladas e específicas no mundo físico
não pode responder questões metafísicas como aquelas recém enumeradas. A
experiência pessoal limitada de um indivíduo não pode garantir uma estrutura
abrangendo todo tipo de coisa que possa existir. A experiência empírica nos
dá meramente uma aparência das coisas; a experiência empírica não pode por
si só corrigir ilusões ou nos levar além da aparência para qualquer mundo ou
reino da realidade que exista por trás. E ela tampouco pode determinar os
limites do possível. Uma experiência particular do mundo físico não lida com
o mundo como um todo. E a natureza da existência tampouco se manifesta na
simples percepção sensorial de qualquer objeto físico ou de um conjunto
deles.
Realidade suprassensível
Consequentemente, a metafísica estuda em última análise a realidade não
sensível ou suprassensível. Dada a natureza do caso, o metafísico examina
questões que transcendem a natureza física ou questões removidas de
experiências sensoriais específicas. E, no entanto, é alegado que os resultados
da metafísica nos dão declarações inteligíveis e informativas sobre a
realidade. Isto é, a metafísica faz afirmações que têm conteúdo substantivo,
mas que não são totalmente dependentes da ou restritas à experiência
empírica (observação, sensação).
Por essa razão, os meios pelos quais as reivindicações metafísicas são
intelectualmente apoiadas não se limitam à observação natural e à
experimentação científica. Aqui reside a ofensa da metafísica à mente
moderna.[41] A metafísica presume dizer-nos algo sobre o mundo objetivo que
nós não percebemos diretamente na experiência comum e que não pode ser
verificado através dos métodos da ciência natural.
Claro, a antipatia com a metafísica é ainda mais pronunciada no caso do
cristianismo porque suas reivindicações sobre o esquema inteiro das coisas
incluem declarações sobre a existência e o caráter de Deus, sobre a origem e
a natureza do mundo, bem como sobre a natureza e o destino do homem.
Esses ensinos não se originam na experiência direta e ocular do mundo físico,
mas transcendem sensações específicas e derivam da revelação divina. Eles
não são verificados empiricamente de forma ponto a ponto. A Escritura faz
pronunciamentos absolutos sobre a natureza do mundo real como um todo. A
doutrina bíblica apresenta verdades que não são circunscritas ou limitadas
pela experiência pessoal e que não são qualificadas ou relativizadas pela
própria maneira de um indivíduo olhar para as coisas. Essas reivindicações
autoritárias sobre essas questões difíceis e de grande alcance são ofensivas
para o estado de espírito cético e os preconceitos religiosos dos dias atuais. A
era moderna tem um espírito contrário a reivindicações filosóficas
(especialmente religiosas) que falem de qualquer coisa sobrenatural, qualquer
coisa “além do físico”, qualquer coisa metafísica.
Motivações puras?
Seria proveitoso fazer uma pausa e refletir sobre um comentário perspicaz
feito por um autor recente na área da metafísica filosófica. W. H. Walsh
escreveu: “Devemos reconhecer que a reação contra [a metafísica] tem
sido… de fato tão violenta a ponto de sugerir que as questões envolvidas na
controvérsia devem ser algo mais do que acadêmicas”.[42] Precisamente. As
questões são de fato mais do que acadêmicas. São uma questão de vida e
morte ─ vida e morte eternas. Cristo disse: “E a vida eterna é esta: que te
conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem
enviaste” (João 17.3). No entanto, se o incrédulo pode permanecer na
alegação de que esse Deus não pode ser conhecido porque nada que
transcenda o físico (nada “metafísico”) pode ser conhecido, a questão do
destino eterno não é levantada. Os homens, assim, podem pensar e agir como
querem, sem se distrair com questões sobre a sua natureza e destino.
Os homens vão, por assim dizer, construir um telhado sobre a sua
cabeça na esperança de manter do lado de fora qualquer revelação inquietante
de um Deus transcendente. A perspectiva antimetafísica da era moderna
funciona simplesmente como um telhado ideológico protetor para o
incrédulo. O fato é que não se pode evitar os compromissos metafísicos. A
própria negação da possibilidade de o conhecimento transcender a
experiência é em si mesma um julgamento metafísico. Assim, a questão não é
se devemos ter crenças metafísicas, mas sim, em última análise, qual tipo de
metafísica devemos afirmar. Ao considerar essa questão, lembre-se da
observação franca de Friedrich Nietzsche:
Positivismo lógico
Os positivistas lógicos intensificaram a crítica de Kant. Para eles as
afirmações metafísicas não eram apenas definições vazias sem significância
(sem referentes existenciais), eram literalmente sem sentido. Porque as
afirmações metafísicas não podiam ser submetidas ao teste crítico da
experiência dos sentidos, conclui-se que elas não tinham sentido.
Assim, pois, os oponentes da metafísica (e, desse modo, da teologia da
Bíblia) veem o raciocínio metafísico como estando em conflito com a ciência
empírica como a única forma de se adquirir conhecimento. Enquanto o
cientista chega a verdades contingentes sobre a forma como as coisas
aparecem aos nossos sentidos, o metafísico visa a verdades absolutas ou
necessárias sobre a realidade que de alguma forma está por trás dessas
aparências. Um abismo se coloca entre as verdades do fato empírico (às quais
se chega com base na informação dos sentidos) e as verdades da razão
especulativa (que só poderiam ser convenções verbais arbitrárias ou conceitos
organizados que são inaplicáveis fora da esfera da experiência). Nesse caso,
de acordo com o dogma moderno, todas as declarações significativas e
informativas sobre o mundo eram consideradas de natureza empírica.
O argumento contra as afirmações metafísicas, então, pode ser
resumido da seguinte forma:
(1) não pode haver uma fonte não empírica de conhecimento ou informação
sobre a realidade, e
(2) é ilegítimo fazer inferências a partir do que é percebido pelos sentidos
sobre o que deve se situar fora da experiência.
Autoengano filosófico
Somos levados, então, para o número (1) acima, o primeiro passo
fundamental no argumento contra a metafísica. O que devemos fazer com a
afirmação de que “todo conhecimento significante sobre o mundo objetivo é
de natureza empírica”? A resposta mais óbvia e filosoficamente significante
seria que se a declaração anterior fosse verdadeira, então ─ com base na sua
alegação ─ jamais poderíamos saber que ela é verdadeira. Por quê?
Simplesmente porque a declaração em questão não é ela mesma conhecida
como resultado da experiência e de testes empíricos. Portanto, de acordo com
suas próprias normas rigorosas, a declaração não poderia equivaler a um
conhecimento significante sobre o mundo objetivo. Ela simplesmente reflete
o viés subjetivo (talvez sem sentido!) de quem a profere. Logo, o
antimetafísico não só tem suas próprias conclusões preconcebidas
(pressuposições), mas também se verifica que ele não pode viver de acordo
com elas (cf. Romanos 2.1). Com base nas suas próprias suposições, ele
refuta a si mesmo (cf. 2 Timóteo 2.25). Nas palavras de Paulo acerca
daqueles que suprimem a verdade de Deus em injustiça, “seus pensamentos
tornaram-se fúteis” (Romanos 1.21, NVI)!
Dificuldades adicionais
Há mais outras dificuldades com a posição expressa por (1). Nós podemos
facilmente ver que ela equivale a uma pressuposição para o incrédulo. Que
evidência ou base racional existe para a posição de que todo conhecimento
deve ser de natureza empírica? Essa não é uma conclusão mantida por outro
raciocínio, e a premissa não admite verificação empírica, visto que lida com o
que é universalmente ou necessariamente o caso (e não com uma verdade
histórica ou contingente). Além disso, a própria declaração impede qualquer
outro tipo de verificação ou suporte que não seja a evidência ou garantias
empíricas. Assim, o oponente antimetafísico da fé cristã mantém esse dogma
de forma pressuposicional ─ como algo que controla a investigação, em vez
de ser resultado da investigação.
Essa pressuposição antimetafísica, contudo, tem resultados
devastadores. Note que se todo conhecimento deve ser de natureza empírica,
a uniformidade da natureza não pode ser conhecida como verdadeira. E sem o
conhecimento e a segurança de que o futuro será como o passado (por ex., se
o sal se dissolveu em água na quarta-feira, ele fará o mesmo, e não explodirá,
na água na sexta-feira), não poderíamos fazer projeções e generalizações
empíricas ─ em cujo caso o empreendimento inteiro da ciência natural seria
minado.
Sem previsibilidade
Os cientistas não poderiam chegar a mesmo uma conclusão confiável,
racionalmente justificada sobre futuras interações químicas, sobre a rotação
da Terra, sobre a estabilidade de uma ponte, sobre os efeitos medicinais de
uma droga ou sobre qualquer outra coisa. Toda e qualquer premissa que
entrasse em seu raciocínio sobre uma situação específica num momento
específico e num lugar específico teria de ser individualmente confirmada de
forma empírica.
Nada experimentado no passado poderia se tornar uma base para
expectativas sobre como as coisas poderiam acontecer no presente ou no
futuro. Sem certas crenças sobre a natureza da realidade e da história ─
crenças que são de caráter supraempírico ─, o processo de raciocínio e
aprendizado empírico se tornaria impossível.
Nesse ponto podemos ser ainda mais enfáticos, argumentando que se
uma pessoa pressupõe que todo conhecimento deve ser de natureza empírica,
ela não apenas mina a ciência e refuta a si mesma, como de fato destrói toda
argumentação e raciocínio. Engajar-se na avaliação de argumentos é
reconhecer e utilizar proposições, critérios, regras e relações lógicas, etc. No
entanto, coisas tais como essas (proposições, relações, regras) não são
entidades empíricas que podem ser descobertas por um dos cinco sentidos.
De acordo com o dogma do empirismo, não faria sentido falar dessas
coisas ─ não faria sentido, por exemplo, falar da validade e invalidade em um
argumento, tampouco falar sobre premissas e conclusões. Tudo que você
teria seria um evento eletroquímico contingente no cérebro físico de um
estudioso seguido contingentemente por outro.
Se esses eventos são pensados como seguindo um padrão, devemos
(novamente) observar que sobre bases empíricas, não se tem uma justificativa
para falar de um tal “padrão”; só eventos específicos são experienciados ou
observados. Ademais, mesmo se houvesse um padrão nos eventos
eletroquímicos do cérebro, ele seria acidental e não uma questão de atender
às regras da lógica. Na verdade, as “regras da lógica” seriam na melhor das
hipóteses imperativos pessoais expressos como a preferência subjetiva de
uma pessoa para pessoa. Em tal caso não haveria absolutamente nenhum
ponto para argumentar e raciocinar. Um evento eletroquímico no cérebro não
pode ser significativamente dito como “válido” ou “inválido”.
De acordo com uma antiga anedota, “Fé é acreditar no que você sabe que não
é verdade”. Não é difícil ver por que algo assim seria dito. A tendência para
as pessoas ─ quer acreditem em afirmações fantásticas sobre visitantes
extraterrestres, quer acreditem em alegações patéticas sobre a honra de um
político desacreditado ─ que tenham evidências ou argumentos escassos para
apoiar suas convicções pessoais é facilmente ceder à afirmação de que elas
“simplesmente têm fé” de que o que acreditam é verdade,[44] mesmo havendo,
para outros, muito boas razões para não acreditar nisso. As pessoas deveriam
saber que o que elas dizem não é verdade, mas mesmo assim persistem em
acreditar nisso ─ em nome da “fé”.
Essa concepção da fé como um compromisso pessoal cego é um dos
principais obstáculos que se colocam no caminho dos incrédulos quando se
trata de dar um ouvido honesto ao cristianismo. Eles têm uma dificuldade
feroz e fundamental de se tornar cristãos porque, eles imaginam, a fé religiosa
os obriga a sacrificar a razão completamente e a confiar cegamente em
alguma pretensa revelação de maneira arbitrária, sem discernimento.
No seu “Dicionário de Filosofia”, Peter Angeles oferece duas
definições de “fé”, entre outras: “crença em algo apesar da evidência em
contrário” e “crença em algo mesmo na falta de evidência”.[45] Dado qualquer
um desses entendimentos populares do termo ─ pelos quais o que o cristão
chama de “fé” é concebido como contrário à razão, ou pelo menos sem razões
─, o cristianismo aparenta ser bastante racional. “Fé” se torna um chavão
para o ato de colocar seu intelecto em confusão, suspender uma atitude
cautelosa e crítica para com as coisas e fazer um compromisso pessoal sem
evidência sólida.
Variedades de irracionalismo
O cristianismo é acusado de irracionalidade por muitas pessoas, mas nem
todos os críticos querem dizer a mesma coisa. Algumas distinções devem ser
estabelecidas para uma maior clareza.
Algumas pessoas contrapõem a fé cristã com a razão porque sentem
que os ensinamentos da Bíblia são em si mesmos irracionais. Por exemplo,
algumas pessoas consideram a ideia de Deus se tornando homem (a
encarnação) uma noção contraditória; para elas, o conceito de Deus-homem é
incoerente, uma (alegada) violação de certas leis lógicas elementares que
todos os homens reconhecem. Quando acusam o cristianismo de ser
irracional, é nesse sentido que elas querem dizer que seus dogmas são
ilógicos.
Outras pessoas acreditam que não há absolutamente nenhuma
comprovação empírica (observacional) para certas reivindicações históricas
grandiosas encontradas na Bíblia: por exemplo, que o Sol ficou parado, que
Jesus multiplicou os pães ou que homens levantaram dos mortos. Se a fé
cristã requer afirmar esses tipos de temas não factuais (como lhes parecem
ser), as pessoas considerarão o cristianismo como contrário à razão.
Os dois tipos anteriores de críticos querem acusar o cristianismo de
irracionalidade por causa de imperfeições intelectuais específicas dentro do
conjunto de proposições que os crentes afirmam ─ quer imperfeições lógicas,
quer imperfeições empíricas. Esses tipos de ataques a especificidades bíblicas
requerem que os apologistas ofereçam respostas focadas que lidem com os
detalhes de cada diferente desafio ─ pelo menos façam isso no início da
resposta a essas acusações do incrédulo. (Questões pressuposicionais, em
última análise, precisarão ser abordadas e discutidas, é claro.) Mas nossa
preocupação atual está realmente numa versão mais devastadora da alegação
de que o cristianismo é irracional.
Afirmando o absurdo
Muito mais intelectualmente viciada é classe de críticos que julgam a fé cristã
como irracional porque concebem os cristãos como pessoas dedicadas a
acreditar no absurdo (por causa da absurdidade da fé cristã). Como vistos
pelos críticos, os crentes religiosos se glorificam no fato de que o objeto da
sua fé não tem suporte racional, é aparentemente falso e deve ser aprovado a
despeito do bom senso e de razões contrárias. Alguns incrédulos têm dado a
impressão ─ não sem a “ajuda” condenável de muitos teólogos modernos ─
de que o cristianismo é indiferente à lógica, ciência, evidência ou (até
mesmo) à verdade.
Algumas pessoas têm sido enganadas a ponto de sentir que os cristãos
realmente elevam o valor da fé pessoal na proporção direta ao grau em que
ela deve ser duvidosa, cega ou mística.[46] Da mesma forma, se pensa que os
crentes degradam o valor da fé na medida em que ela esteja em sintonia com
a boa razão. Em “O Anticristo: Uma Tentativa de Crítica do Cristianismo”
[The Antichrist: Attempt at a Critique of Christianity] (1895), Friedrich
Nietzsche expressou seu escárnio com essa atitude dizendo “Os meios da fé
não querem saber o que é verdade”.
No entanto, todas as críticas que seguem nessa linha fluem de um erro
fundamental em relação à natureza da fé cristã. Como J. Gresham Machen
corajosamente colocou em seu livro “Que é a fé?”, “cremos que o
cristianismo não floresce nas trevas, mas na luz”. Machen escreveu que “um
dos meios que o Espírito usará” para trazer um reavivamento da religião
cristã “é um despertar do intelecto”. Ele resistiu fervorosamente “à oposição
falsa e desastrosa que foi criada entre conhecimento e fé”, argumentando que
“em nenhum ponto a fé é independente do conhecimento sobre o qual está
logicamente baseada”. Refletindo na famosa declaração bíblica sobre a fé em
Hebreus 11.1 (“a prova das coisas que se não veem”), Machen declarou: “A
fé não precisa ser humilde demais ou apologética demais perante o tribunal
da razão; a fé cristã é uma coisa absolutamente razoável”.[47]
Independentemente do que certos porta-vozes equivocados possam
dizer ─ quer sejam entusiastas, místicos, emocionalistas, voluntaristas,
fideístas ─ a própria Bíblia (o guia e padrão do cristianismo) não é
indiferente às tolices lógicas ou erros factuais. A religião cristã não coloca a
“fé” contra a razão, a evidência ou (acima de tudo) a verdade.
Foi apenas para vindicar a verdade das suas alegações e concepções
religiosas que Moises desafiou os magos da corte do Faraó e Elias competiu
com os sacerdotes de Baal, e zombou deles, no Monte Carmelo. Os profetas
do Antigo Testamento sabiam que suas palavras seriam demonstradas
verdadeiras quando seus prognósticos ou previsões fossem cumpridos na
história para que todos pudessem ver. Quando Cristo apareceu, ele mesmo
afirmou ser “a Verdade”! Sua ressurreição foi um milagre e sinal poderoso,
fornecendo evidência para a veracidade das suas afirmações e para a
mensagem apostólica. A despeito do que judeus e gregos pudessem pensar,
escreveu Paulo, o evangelho é de fato a própria sabedoria de Deus que destrói
a arrogância da filosofia mundana (1 Coríntios 1.18-25). Ele disse que
aqueles que se opõem ao evangelho são os que têm apenas algo que é
“falsamente chamado conhecimento” (1 Timóteo 6.20, NVI).
Por causa dessa atitude, Paulo estava ansioso para “arrazoar” (disputar,
debater) diariamente na praça com os filósofos em Atenas (Atos 17.17-18).
Ele não hesitou em fazer sua argumentação perante o tribunal ateniense que
julgava professores novos e controversos, declarando: “Esse, pois, que vós
honrais, não o conhecendo, é o que eu vos anuncio” (v. 23).[48] Claramente,
ele não estava promovendo o valor dos absurdos! Na verdade, se as
afirmações cardeais da fé fossem comprovadamente falsas, Paulo teria sido
obrigado a admitir que nossa fé religiosa é equivocada e vã (por ex., 1
Coríntios 15.14).
A própria atitude de Pedro, mesmo como um pescador sem instrução,
foi tornada inequivocadamente clara quando ele afirmou com confiança que
“[não estivemos] seguindo fábulas engenhosamente inventadas” (2 Pedro
1.16) ─ assim como quando exigiu que todo crente estivesse pronto para
apresentar uma defesa fundamentada para a esperança que havia nele (1
Pedro 3.15). Jesus categoricamente ensinou a palavra de Deus na Escritura:
“a tua palavra é a verdade” (João 17.17). A perspectiva ousada da Bíblia
sustenta que no grande dia final do juízo, a razão pela qual os homens serão
condenados por Deus é que eles preferiram acreditar “em mentira” (Romanos
1.25) ao invés de confiar nas afirmações do próprio Filho de Deus.
Consequentemente, quando os incrédulos repudiam o cristianismo por
sua suposta meta da irracionalidade religiosa, o apologista deve
decisivamente corrigir essa concepção equivocada. A fé cristã não visa a
afirmar o que é absurdo, jubilando na irracionalidade. Esse pensamento
interpreta mal a natureza da fé como apresentada pela Bíblia. A noção cristã
de fé ─ diferentemente da maioria das outras religiões ─ não é um salto
arbitrário de emoção, uma tentativa cega de compromisso, colocando o
intelecto em espera. Para o cristão, a fé (ou crença) está bem fundamentada.
Na verdade, como cristãos, afirmamos que o conteúdo da nossa fé é o
que qualquer pessoa razoável deveria endossar, não só porque ela está em
total acordo com a lógica e os fatos (quando devidamente considerados), mas
também porque sem a cosmovisão cristã a própria “razão” se torna arbitrária
ou sem sentido ─ se torna ininteligível.
Fé versus prova
Outros oponentes da fé cristã, como mais uma classe de críticos em adição a
aqueles considerados em nosso último estudo, protestam contra a presença de
absolutamente qualquer atitude de fé (ou confiança) no sistema de
pensamento de uma pessoa. Eles defendem, de forma arrogante, se não
ingênua, que não acreditarão em nada que não lhes tenha sido primeiro
totalmente provado. Eles são conduzidos pela prova, não pela fé!
Eles gostam de pensar que deles é o espírito de René Descartes (1596-
1650), o erudito francês e teórico do conhecimento que se tornou o primeiro
filósofo da “Era da Razão”. Descartes se preocupava em que os homens
deveriam se esforçar para compreender e seguir um método confiável e
adequado para chegarem às suas crenças.[49] De acordo com o modo de
pensar de Descartes, esse método seria o de criticar e duvidar de tudo o que
ele pudesse, não aceitando como verdadeiro nada que não fosse claramente
reconhecido como tal (coisas que são autoevidentes) ou que não fosse
completamente apoiado por outras verdades fundacionais claras e distintas.
Descartes procurou duvidar de todo pensamento que lhe viesse à cabeça
(por ex., ele realmente está comendo uma maçã, ou apenas sonhando que faz
isso?) até chegar a algo que fosse indubitável. A dúvida sistemática lhe
abriria a porta para a certeza final.[50] Contudo, Descartes reconheceu que não
poderia, em última análise, duvidar de todas as coisas. O indubitável acabaria
sendo o ponto de parada do seu método ─ e o ponto de partida teórico para
todos os outros raciocínios.
Os macacos modernos de Descartes que afirmam duvidar
absolutamente de tudo e não aceitar nada, exceto mediante prova, agem ou
falam como tolos arrogantes. Ninguém pode duvidar de tudo. Ninguém. Se
uma pessoa realmente fosse duvidar de tudo ─ da sua memória das
experiências passadas, das suas sensações atuais, das “conexões” entre as
experiências, dos significados das suas palavras, dos princípios pelos quais
raciocina ─ ela não estaria de fato “pensando” (muito menos duvidando), e
não haveria “ela” para pensar ou não. Um conjunto fundamental (logicamente
básico) de crenças ─ uma fé ─ é inescapável para qualquer um.
Os homens só conseguem iludir a si mesmos quando dizem que não
aceitarão nada sem provas ou demonstrações ─ que não admitem nenhum
lugar para a “fé” na sua perspectiva ou no seu viver. Assim, esses incrédulos
que criticam os cristãos por apelarem à “fé” são hipócritas intelectuais ─
homens que não podem viver e não vivem segundos os seus próprios padrões
declarados de raciocínio.
(1) Verificacionismo
Como indicado acima, a significabilidade da linguagem religiosa tem estado
sob ataque de duas formas nos círculos filosóficos durante este século.
Precisamos olhar para cada uma delas. A primeira pode ser designada como o
desafio “verificacionista” ao discurso religioso, e a segunda designada como
o desafio “falsificacionista”. Nem uma, nem outra se mostrou bem-sucedida.
Na primeira parte deste século uma escola de pensamento conhecida
como positivismo lógico zelosamente promoveu a ciência empírica e
menosprezou qualquer tipo de metafísica. De acordo com os positivistas,
qualquer proposição poderia ser testada quanto à significabilidade aplicando-
lhe o “princípio da verificação”.
O positivismo lógico reconhecia dois tipos diferentes de sentenças
significativas. Determinadas sentenças numa língua seriam conhecidas como
verdadeiras ao se fazer simplesmente uma análise lógica e linguística delas
(por exemplo: “todos os solteiros não são casados” pode ser verificado por
uma referência a leis da lógica e definições semânticas). No entanto, essas
verdades (chamadas “analíticas”) são desprovidas de informação significante
sobre o mundo da experiência ou observação, e assim são triviais. Para que
uma sentença nos diga algo interessante ou tenha um componente factual, sua
verdade deve ser verificável olhando para além da lógica e do significado as
observações ou experiências da pessoa no mundo. Assim, uma sentença
significante (não trivial) só é significativa, de acordo com o verificacionista,
se puder ser confirmada empiricamente; sua verdade ou falsidade faria uma
diferença em nossa experiência do mundo. Sentenças significativas deveriam
ser traduzíveis ou em termos de observação somente (descrições da
experiência imediata), ou num procedimento usado para confirmar a sentença
empiricamente.
O efeito da aplicação do princípio da verificação, concluíram os
positivistas, seria, a partir de um ponto de vista científico, a rejeição de todas
as reivindicações metafísicas (incluindo a teologia) e todas as reivindicações
éticas como absurdas. Visto que a linguagem religiosa dos cristãos está cheia
de termos que não são tomados da observação (por ex., Deus, onipotência,
pecado, expiação) e de afirmações para as quais não há meios empíricos de
confirmação (por ex., Deus é triúno, Jesus intercede pelos santos), o princípio
da verificação do positivismo lógico parecia descartar a significabilidade do
que os cristãos diziam.
A fé dedicada do positivista
Apesar de toda a sua hostilidade intelectual à religião e ao cristianismo, o
verificacionista era claramente tão “religioso” em sua devoção às suas
pressuposições subjacentes quanto qualquer devoto do cristianismo.
Para o positivismo lógico, a prática da ciência natural, com seus
resultados impressionantes, era perfeitamente aceitável do jeito que se dava;
sua autoridade e supremacia eram tomadas como certas ─ da mesma forma
que o cristão toma a autoridade última da Bíblia como certa. A ciência natural
não pedia uma apreciação crítica e possível correção ou reforma mais do que
o cristão pensaria que a Bíblia tem erros a serem corrigidos. Em vez disso, de
acordo com o positivismo lógico, a única coisa que a ciência natural exigia
era ter suas bases empíricas elucidadas ─ o que o princípio da verificação
tentou fazer. Da mesma forma, o cristão simplesmente sente que a Bíblia
precisa ser elucidada e explicada, pois seu valor e sua verdade devem ser
óbvios para qualquer ouvinte honesto.
O positivismo lógico era, ironicamente, muito parecido com uma fé
religiosa ─ uma fé na ciência natural (que poderia ser chamada de
“cientificismo”). Isso se tornou muito aparente quando a tentativa positivista
de elucidar o fundamento estritamente empírico da ciência natural fracassou
pelo caráter autorrefutável do princípio da verificação. Quando a elucidação
falhou, o positivista lógico não renunciou à sua fé original na ciência natural.
Ele agiu como um “verdadeiro crente”. Ele manteve esse compromisso com a
ciência, a despeito dos seus problemas filosóficos.
Claro, essa fé dedicada do positivista lógico na ciência natural não tinha
sido adquirida através da aplicação rigorosa de algo tal como o método
científico. O compromisso com a autoridade precípua da ciência natural não
era cientificamente fundamentado. Era um salto de fé pessoal.
Mantendo a fé
Não surpreenderá o leitor que Ayer tentou remediar essa situação revisando o
critério de verificabilidade na segunda edição do seu famoso livro. Essa
manobra revela que Ayer não era um estudioso imparcial, buscando seguir de
uma forma neutra a evidência aonde quer que ela levasse. Ele tinha uma
conclusão particular em mente desde o início, desejando assim moldar e
revisar seus princípios adotados até que (esperançosamente) eles provassem o
que ele originalmente queria. Os incrédulos não são muito sutis sobre deixar
suas próprias pressuposições e preconceitos religiosos à mostra. Eles também
“mantém a fé”!
Ayer agora permitia que as declarações fossem verificadas direta ou
indiretamente. Mas mais importante, ele também prescreveu que as
premissas que são conjugadas com qualquer declaração de teste para deduzir
alguma outra declaração de observação devem incluir apenas declarações de
observação, verdades analíticas ou declarações independentemente
verificáveis.[61] Isso não ajudou. Com base na abordagem revisada de Ayer,
um lógico inteligente ainda pode mostrar que qualquer declaração de teste ou
sua negação pode ser verificável (direta ou indiretamente)[62] ─ tornando
assim todas as declarações mais uma vez significativas.
O que descobrimos, então, é que o “verificacionismo” simplesmente
não poderia afirmar sua própria posição de forma convincente. O princípio da
verificação do significado cognitivo era autodestrutível; além disso, era
simultaneamente muito restritivo e também muito inclusivo.
Consequentemente, o verificacionismo nunca esteve em condições de
desafiar com êxito a significabilidade do discurso religioso.
(2) Falsificacionismo
A segunda maneira pela qual os filósofos incrédulos tentaram criticar a
significabilidade da linguagem religiosa no século XX pode ser chamada de
“falsificacionismo”. Os falsificacionistas eram tão dedicados à autoridade da
ciência natural quanto os positivistas lógicos. Entretanto, os falsificacionistas
estavam dolorosamente cientes do fracasso dos positivistas lógicos em
formular convincentemente o princípio da verificação do significado ou
salvar a si mesmos da sua aplicação fatal.
Ainda assim, eles queriam garantir a posição honrosa da ciência natural
e distingui-la claramente de modos de pensar desacreditados, como
superstição, mágica, metafísica e religião. A linguagem da religião (etc.), de
acordo com o falsificacionista, não pertence ao domínio da “ciência genuína”.
A ciência está ligada a uma base empírica ou compromisso processual que
não caracteriza a religião. A partir de uma análise, diz o falsificacionista, a
conversa religiosa dos crentes revela em último caso não fazer sentido.
Para o falsificacionista, o que torna a ciência genuína “científica” é que
as teorias que ela irá afirmar serão em princípio falseáveis por meio de
métodos empíricos. Essa é uma condição necessária para uma abordagem
verdadeiramente científica acerca do que os homens racionais irão acreditar.
Consequentemente, se alguma teoria ou afirmação não é empiricamente
falseável, esse defeito por si só já é suficiente para descartá-la como
cognitivamente sem sentido. De acordo com o falsificacionista, uma
afirmação significativa na ciência deve estar sujeita à refutação (em teoria).
Isso não significa que as afirmações científicas devam ser refutadas para
serem “científicas” (o que tornaria todas as afirmações científicas falsas por
definição!) ─ mas que elas devem ser empiricamente refutáveis em alguma
circunstância concebível.
A grande vantagem de tomar essa abordagem, se você defende a
supremacia da ciência natural e seus procedimentos, é que as generalizações
que o cientista almeja (por ex., “todos os planetas giram em torno de um
eixo”) não são descartadas como sem sentido em virtude de não serem
totalmente verificáveis. As generalizações da ciência natural, mesmo aquelas
que são verdadeiras, estarão sempre abertas à refutação ou falsificação (por
ex., apenas para o caso de encontrarmos alguma vez um planeta que não gira
em torno de um eixo). A incompletude da indução não mais é um golpe
contra a significabilidade ou caráter científico de uma generalização empírica
sobre o mundo natural.
Tendo contado a história, Flew segue seu comentário fazendo uma forte
crítica à linguagem religiosa: alguém pode dissipar a afirmação dele
completamente sem perceber que ele fez isso. Alguém pode acabar por
dissipar sua afirmação completamente sem sequer perceber que o fez. Uma
hipótese audaciosa pode, então, ser destruída pouco a pouco, uma morte por
mil qualificações.
O mito um por um
O comentário de Antony Flew sobre a parábola do jardineiro invisível obtém
sua persuasão do mito de que as crenças mantidas pelas pessoas são aceitas
ou rejeitadas à luz da evidência empírica uma a uma. Isto é, pensa-se
(erroneamente) que nós observacionalmente testamos e racionalmente
avaliamos apenas uma crença individual de cada vez. Supostamente o
estudioso cientificamente orientado toma uma única proposição como isolada
de qualquer outra proposição que ele afirmaria ser verdadeira e a compara
então com a evidência empírica que está disponível (ainda que a relevância e
a força dessa evidência sejam independentemente e indiscutivelmente
estabelecidas de antemão).
Essa, porém, não é de fato uma descrição precisa da forma como as
pessoas realmente chegam às crenças ou as testam à luz da evidência
empírica. Ademais, de um ponto de vista conceitual, o retrato do escrutínio
de crenças uma a uma para a falsificação empírica é totalmente artificial e
impossível.
As crenças que as pessoas mantêm estão sempre ligadas a outras
crenças por relações concernentes ao significado linguístico, à ordem lógica,
à dependência evidencial, à explicação causal, a autoconcepções e
concepções indexicais, etc. Afirmar “Vejo uma joaninha na rosa” é afirmar e
assumir uma série de coisas simultaneamente ─ algumas bastante óbvias (por
ex., sobre o uso de palavras em português, sobre a identidade pessoal, sobre
um evento perceptivo, sobre categorias de insetos e flores, sobre relações
físicas), outras mais sutis (por ex., sobre a competência linguística,
entomológica e botânica da pessoa, sobre a normalidade dos seus olhos e
tronco encefálico, sobre teorias de refração da luz, sobre gramática e
semântica compartilhada, sobre a realidade do mundo externo, sobre as leis
da lógica, etc.).
A rede de todas essas crenças em conjunto encontra o tribunal de
qualquer experiência empírica.[66] Quando é detectado um conflito entre essa
rede de crenças e a experiência empírica, tudo o que sabemos é que precisará
ser feito algum tipo de ajuste nas crenças para restaurar a ordem ou
consistência. Mas não há maneira de determinar de antemão que mudança
específica uma pessoa vai escolher para eliminar o conflito dentro do seu
pensamento.
Se Sam diz que viu uma joaninha na rosa, mas todos os seus amigos
dizem que não viram uma joaninha, de quais crenças ele abrirá mão? Há toda
uma série de possibilidades. Talvez seus amigos não saibam a diferença entre
pulgões e joaninhas. Talvez haja uma mancha nos óculos dele. Talvez a
iluminação seja inadequada. Talvez ele não entenda o uso da palavra em
português “rosa”. Talvez seus amigos estejam consumindo drogas. Talvez
estiveram olhando para uma rosa diferente. Talvez a joaninha tenha
rapidamente voado embora. Talvez ele esteja sonhando. Talvez nossos
sentidos nos enganem. Talvez só os “puros de coração” podem ver joaninhas
mansas, e os amigos dele são perversos… Há tantas possibilidades de corrigir
suposições anteriores, indo desde o que parece razoável até ao que parece
fanático ou extremo. O ponto é, simplesmente, que o que a contra-evidência
da observação de Sam vai falsear é algo ambíguo e incerto.
Lembre-se da história do psiquiatra que estava tratando um homem que
acreditava estar morto. Aconselhar o pobre homem sobre sua neurose parecia
não levar a lugar algum. Finalmente um dia o psiquiatra decidiu usar um teste
empírico para convencer o paciente do seu erro. Ele perguntou ao homem se
mortos sangram, ao que o homem respondeu “não”. Então o psiquiatra picou
um dedo do homem com um alfinete e pediu para o homem prestar atenção:
ele estava sangrando, logo não poderia estar morto. E a isso o paciente
respondeu que ele, então, deveria ter estado errado: mortos sangram sim! O
psiquiatra nessa piada erroneamente pensou que o dedo sangrando seria uma
contra-evidência que falsearia uma crença específica do paciente (a saber,
que ele estava morto), quando na verdade era igualmente possível ela falsear
uma crença relacionada (a saber, que mortos não sangram).
Visto que a experiência ou evidência empírica nunca falseiam de forma
decisiva qualquer crença específica na rede de convicções de uma pessoa,
sucede que é possível (mesmo que pareça irracional para os outros) uma
pessoa escolher tratar quaisquer de suas crenças ─ sobre o que quer que seja
─ como convicções centrais em relação às quais qualquer outra crença deve
primeiro se submeter quando uma contra-evidência é oferecida. Ou seja, dado
o fato de que toda uma rede de crenças, em vez de crenças individuais
isoladas, satisfaz o teste da evidência observacional, então qualquer crença
pode ser tratada como não falseável. Isso é uma característica de todas as
crenças. A falseabilidade não é inerentemente uma característica de qualquer
crença específica ou crença sobre qualquer assunto específico. Isso é tão
verdade para as crenças “religiosas” (estritamente entendidas) quanto para as
crenças sobre o mundo natural.
O falsificacionista não relegará com sucesso a linguagem religiosa à
desgraça da falta de sentido, a menos que o faça às custas de consignar todo
discurso à mesma desgraça. Embora possa haver algo de errado ou fanático
na maneira particular em que um crente resguarda suas convicções da
refutação, esse fato ainda assim não impugna a significabilidade da sua
linguagem religiosa. Ela é simplesmente a linguagem da convicção forte e da
crença firmemente entrincheirada ─ a linguagem da pressuposição.
Difamando o passado
No desafio hipotético à credibilidade do cristianismo que é expresso cima
(que busca ser representativo dos comentários e da mentalidade negativa real
dos incrédulos que encontramos), você notará que há uma suposição não
questionada e arrogante de que uma mentalidade crítica sobre os milagres é
propriedade exclusiva do “mundo moderno”. Com sarcasmo o filósofo David
Hume observou que constitui uma forte presunção contra todos os relatos
sobrenaturais e milagrosos eles serem vistos abundar principalmente entre as
nações bárbaras e ignorantes; ou se aconteceu de algum povo civilizado já
admitir qualquer deles, poder-se-ia verificar que esse povo os recebera de
ancestrais ignorantes e bárbaros…[70]
Vez após outra você encontrará não cristãos que simplesmente tomam
como certo que as pessoas no mundo antigo acreditavam que os milagres
ocorriam, a bem da verdade, porque elas (a) eram muito cientificamente
estúpidas para saber mais, (b) eram crédulas e ingênuas e/ou (c) eram
fascinadas e ávidas por encontrar, em qualquer lugar que pudessem, vestígios
de magia na sua experiência.
Evidentemente, nessas três classes deveríamos nos perguntar se o
mundo moderno iluminado tem algum motivo para se orgulhar, realmente.
Não é nem um pouco difícil localizar hoje pessoas cientificamente estúpidas,
mesmo graduados na faculdade. Veja-os tentar “consertar” coisas com um
martelo, lidar com uma barata indesejada ou racionalizar seu tabagismo; ouça
suas receitas caseiras para a ressaca. E o que dizer da credulidade e magia!
Em nosso mundo moderno “ó-que-inteligente”, você já ouviu falar de
esquemas de investimento “enriqueça rapidamente”, modismos de dieta,
febre de loteria ou da maravilha dos cristais (ou pirâmides, etc.)?
Ou ouça todos aqueles artistas respeitados em programas de
entretenimento da TV falando a audiências grandes e atentas sobre “a sua
vida anterior”, ou sobre o poder de cura da meditação, ou sobre o “karma
social” e a “mãe terra”, ou sobre a “face humana” da tirania comunista em
nosso século, etc. Dificilmente essas são evidências de uma mente crítica ou
racionalidade superior.
Tanto era esse o caso que você notará o apóstolo Pedro sentir necessidade de
fazer a seguinte declaração na sua segunda epístola geral: “Porque não vos
demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo seguindo
fábulas engenhosamente inventadas, mas nós mesmos fomos testemunhas
oculares da sua majestade” (2 Pedro 1.16, ARA). Pedro sabia que seria fácil
as pessoas “anularem” as reivindicações dos cristãos como apenas mais um
falatório ocioso e contação de histórias; ele sabia que as pessoas da sua
própria geração haviam rejeitado a proclamação da igreja sobre Jesus porque
não acreditariam em alegações sobre milagres. Longe de serem estúpidos e
crédulos, os contemporâneos de Pedro tinham de se assegurar de que os
relatos apostólicos de Jesus não eram fábulas engenhosamente inventadas,
mas a verdade do testemunho ocular.
Era importante para o testemunho cristão em meio a uma cultura
incrédula que os seguidores de Jesus tivessem uma reputação de não “se
ocup[ar] com fábulas” (1 Timóteo 1.4, ARA) ou entreter histórias “de velhas
caducas” (1 Timóteo 4.7, ARA) ─ isto é, relatos ficcionais que são o próprio
oposto “da verdade” do cristianismo (2 Timóteo 4.4). De muito bom grado o
mundo hostil dos homens irregenerados gostaria de rejeitar as afirmações da
narrativa dos evangelhos como sendo da mesma natureza mítica ─ fabulosa,
não confiável, exagerada.
O ponto aqui, mui simplesmente, é que os críticos contemporâneos da
fé cristã que automaticamente rejeitam e ridicularizam as reivindicações de
milagre da Bíblia por cauda da alegada credulidade e ignorância
generalizadas do mundo antigo só trazem vergonha sobre si mesmos por seus
próprios preconceitos ignorantes e generalizações injustificadas. Como hoje,
os defensores da fé no mundo antigo encontravam negatividade e oposição
significativa sobre a alegada ocorrência de milagres ─ hostilidade variando
de repúdios filosóficos sofisticados à profunda zombaria. Se certas pessoas
que viviam naqueles dias chegaram à crença de que Jesus havia nascido de
uma virgem, caminhado sobre a água, curado doentes e levantado dos
mortos, isso não foi porque elas categoricamente eram pessoas fracas de
espírito e idiotas ignorantes, prontas a acreditar em toda e qualquer fábula
que surgisse em seu caminho.
Fé vs. fé
O conceito do “milagroso”
[1]
“Sempre prontos”, na versão bíblica usada pelo autor. [N. do T.]
[2]
Isso é algo reconhecido até mesmo por muitos dos oponentes teológicos do Dr. Bahnsen.
Poucos, se mesmo algum, se lhe igualavam quando se tratava de acuidade intelectual e
habilidades de debate. Um exemplo perfeito das suas habilidades apologéticas pode ser
testemunhado no seu famoso debate na Universidade da Califórnia, Irvine, em 1985, com o
promotor do ateísmo Dr. Gordon Stein.
[3]
“Apologética pressuposicional” é uma escola distinta de método apologético,
colocando-se em oposição aos métodos “clássico” (tomista) e fideísta. Este livro é uma
explicação e aplicação do método apologético pressuposicional.
[4]
Na versão traduzida do autor, “para que ninguém vos roube, …”. [N. do T.]
[5]
Conforme o original. As traduções da Bíblia em português trazem “Em verdade, em
verdade te digo…” (ARA), “"Digo-lhe a verdade" (NVI), entre outras. [N. do T.]
[6]
“Epistemologia” se refere à teoria de conhecimento (sua natureza, fontes, limites) de
uma pessoa. Quando perguntamos “Como você sabe que isso é verdade?” (ou “Como você
poderia justificar essa afirmação?”), estamos fazendo uma pergunta epistemológica.
[7]
Diz-se que o que quer que se origine além da experiência temporal do homem ou exceda
essa experiência finita “transcende” o homem.
[8]
Essa visão também é imprecisa e ingênua no tocante à experiência comum e à prática da
ciência, mas este não é o lugar para entrar numa longa e detalhada discussão da natureza
teoricamente impregnada de todo conhecimento humano. Observar que “há uma rosa no
jardim” implica em si mesmo pressupor uma série de outras crenças que são de natureza
teorética e não observacional.
[9]
“Empírico” é um termo aplicado a aquilo que é conhecido pela experiência, observação
ou percepção sensorial. O “empirismo” como escola de pensamento ousadamente
reivindica que todo o conhecimento do homem depende de meios empíricos.
[10]
Perceberemos isso se prestarmos atenção à história registrada na Bíblia. Os israelitas
viram milagres em primeira mão no deserto, mas mesmo assim duvidaram de Deus e o
desobedeceram. Os líderes judeus viram Jesus ressuscitar Lázaro dentre os mortos e como
resposta conspiraram matar Jesus! Eles pagaram os soldados para mentir sobre a própria
ressurreição do Senhor! O Senhor nos deu uma abundância de evidência empírica da
veracidade dele, mas a forma como a evidência é tratada é determinada por compromissos
e crenças mais fundamentais na vida de uma pessoa. “Se não ouvem a Moisés e aos
Profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos
(Lucas 16.31, ARA).
[11]
Por exemplo, alguém que rejeite a realidade das entidades abstratas (por ex., um
nominalista como David Hume) não admitirá, assim, a legitimidade da intuição na sua
teoria de conhecimento (como foi o caso de Platão, por exemplo, ao ver o conhecimento
como uma “reminiscência” das ideias ou formas transcendentes). Alguém que pense nos
objetos de conhecimento como discretos e claramente categorizáveis como verdadeiros ou
falsos (por ex., Hume novamente) terá dificuldade para argumentar significativamente com
alguém que considere a verdade como sendo o todo da realidade e as proposições discretas
como nada mais do que aproximações (por ex., Hegel). A teoria de conhecimento e a visão
de realidade de uma pessoa se afetam mutuamente.
[12]
É claro que em alguns casos o que o incrédulo precisa é simplesmente da evidência que
está à nossa disposição em favor de certas afirmações na Bíblia. Por exemplo, uma pessoa
pode estar tão enganada sobre religião por causa das vozes hostis e preconceituosas à sua
volta (das salas de aula à mídia popular) que tem a impressão infundada de que
absolutamente “nenhuma pessoa pensante” vê alguma credibilidade no criacionismo, na
precisão histórica ou textual da Bíblia, etc. A mente dela precisa ser saneada desse
equívoco. Ela pode ficar bastante espantada ao descobrir que cientistas, historiadores e
outros acadêmicos muito competentes podem apresentar evidência convincente a favor das
reivindicações cristãs na ciência ou na história. Se isso é tudo que ela precisa para fazer
uma leitura mais aberta e honesta da mensagem da Escritura, tudo bem. Contudo, na
maioria dos casos a resistência dos incrédulos à evidência é mais de princípio e mais tenaz
do que isso.
[13]
Logo veremos que o incrédulo não vive consistentemente de acordo com os princípios
que professa. Até certo ponto isso também é verdade do crente. Portanto, a antítese entre
eles não é realmente completa ou absoluta, embora o seria em princípio.
[14]
Na linguagem coloquial em inglês essa distinção é facilmente obscurecida, claro. Nós
ouvimos alguém dizer que “se sente confiante” de que seu time ganhará o campeonato
mundial, e o mesmo sentimento é expresso quando ele diz que “sente certeza” de que seu
time ganhará.
[15]
O leitor não deve ignorar a perversão que essa expressão idiomática insidiosa
representa à língua inglesa. A verdade não é algo relativo à pessoa. Dizer que uma
proposição é “verdade para mim” é simplesmente uma forma enganosa de dizer que eu
acredito nessa proposição. Colapsar a verdade em crença tem sérias consequências para a
teoria de conhecimento de uma pessoa.
[16]
Isso não deve ser confundido com dizer que a verdade se restringe ao conteúdo do
cristianismo ou às palavras da Bíblia. Há muitas outras verdades além das que se
encontram reveladas na Escritura (por ex., a verdade de que a água congela a 32º
Fahrenheit). No entanto, não há nenhuma verdade que conflita ou compete com aquelas
encontradas na Escritura.
[17]
Note que a atividade de Paulo é a mesma, quer seus ouvintes já tivessem um
conhecimento prévio da palavra de Deus (Antigo Testamento) e um respeito por ela, quer
não. Ele “discutia” com os judeus na sinagoga da mesma forma que discutia com os
filósofos gregos nas ruas.
[18]
Essa advertência tem de ser dada, já que aparentemente muitos crentes que se entregam
à apologética são propensos a uma falta de mansidão na apresentação do seu argumento.
Para o bem da sua própria santificação e para a honra do Senhor cuja palavra eles
defendem, todo apologista precisa orar para que seus argumentos não se tornem
contenciosos, para que ele não deslize da defesa do seu Senhor para a defesa de si mesmo.
A humildade não é incompatível com a ousadia.
[19]
C. S. Lewis, God in the Dock: Essays on Theology and Ethics, ed. Walter Hooper
(Grand Rapids: Eerdmans, 1970), p. 244.
[20]
An Essay Concerning Human Understanding, Livro IV, Capítulo XVII (New York:
Dover Publications, 1959 [1690]), vol. 2, p. 391.
[21]
Citado pelo editor na “Introdução” a John Locke, The Reasonableness of Christianity
as Delivered in the Scriptures, ed. George W. Ewing (Chicago: Gateway Edition, Henry
Regnery Co., 1964 [1695]), p. xi.
[22]
Locke explicou que o livro fora principalmente concebido como uma refutação dos
deístas; estes, contudo, aplaudiram a ênfase de Locke sobre o lugar da razão na religião,
levando assim estudiosos de segunda ordem a precipitadamente classificarem Locke como
deísta. O calvinista inglês John Edwards (não confundir com o norte-americano Jonathan
Edwards) distorceu as intenções de Locke ainda mais, difamando-o com os epítetos de
ateísmo e socinianismo.
[23]
Para um texto útil sobre lógica informal, formal e indutiva, veja Irving M. Copi,
Introduction to Logic (New York: Macmillan Publishing Co., 1978 [5ª ed.]).
[24]
Os leitores devem aqui consultar vários textos úteis sobre “evidências” cristãs, mas
também devem acompanhar discussões sobre o uso variado dos dados observacionais na
argumentação e formação de teorias: por exemplo, W. V. Quine e J. S. Ullian, The Web of
Belief, 2ª ed. (New York: Random House, 1978); Stephen Toulmin, The Uses of Argument
(Cambridge: University Press, 1969); Thomas S. Kuhn, The Structure of Scientific
Revolutions, 2ª ed. (Chicago: University Press, 1970).
[25]
Veja as obras de Cornelius Van Til aqui (disponíveis pela Presbyterian and Reformed
Publishing Co.): por exemplo, The Intellectual Challenge of the Gospel (1953), The
Defense of the Faith (1955), A Survey of Christian Epistemology (1969).
[26]
Citado em Greg L. Bahnsen, “The Inerrancy of the Autographa”, Inerrancy, ed.
Norman L. Geisler (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1980), p. 187.
[27]
Ancient Israel (Ithaca, New York: Cornell University Press, 1954), p. 6. Assim
também, W. F. Albright escreveu que “os dados arqueológicos e inscricionais têm
demonstrado a historicidade de inúmeras passagens e declarações do Antigo Testamento”
(“Archeology Confronts Biblical Criticism”, The American Scholar, vol. 7 [Primavera de
1938], p. 181).
[28]
Edição de 30 dezembro de 1974, p. 41.
[29]
A imaterialidade das leis (da lógica, da moralidade, etc.), na verdade a imaterialidade
dos conceitos, da justiça, do amor, etc. não representa nenhum problema filosófico
automático para a cosmovisão cristã. As leis da lógica são um reflexo humano da mente de
Deus e do pensamento de Deus acerca das relações conceituais e/ou evidenciais de prova
entre verdades (ou conjunto de verdades). As leis lógicas são elaborações do fato que Deus
não contradiz a si mesmo (sua palavra não é si e não, 2 Coríntios 1.18) e que é impossível
que ele minta (Hebreus 6.18).
[30]
O artigo é encontrado em Bertrand Russell, Why I Am Not a Christian, And Other
Essays on Religion and Related Subjects, ed. Paul Edwards (New York: Simon and
Schuster, Clarion, 1957), pp. 3-23.
[31]
Ibid., p. vi.
[32]
Ibid, pp. 115-16.
[33]
Na sua palestra, Russell mostra uma curiosa e caprichosa mudança no tocante ao
padrão que define o conteúdo de crenças “cristãs”. Aqui ele arbitrariamente assume que o
que o magistério romano diz é o padrão da fé cristã. No entanto, no parágrafo
imediatamente anterior, Russell afirmou que a doutrina do inferno não era essencial para a
crença cristã porque o Conselho Privado do Parlamento Inglês assim decretou (com a
dissidência dos Arcebispos de Cantuária e Iorque). Em outro lugar Russell se afasta desse
critério de cristianismo e condena o ensino de Jesus, baseado na Bíblia, de que os
impenitentes enfrentam condenação eterna. Russell não tinha nenhum interesse em ser
consistente ou justo ao lidar com o cristianismo como seu oponente. Quando conveniente,
ele definia a fé segundo a Bíblia, mas quando era mais conveniente para os seus propósitos
polêmicos, ele passava a definir a fé de acordo com o Parlamento Inglês ou a Igreja
Católica Romana.
[34]
Aqueles que estão familiarizados com a obra detalhada (e notável, seminal) de Russell
na filosofia apontariam que, apesar do brilho de Russell, sua “razão pura” jamais poderia
resolver certos paradoxos lógicos e semânticos que surgem no seu relato da lógica,
matemática e linguagem. Seus seguidores mais reverentes admitem que as teorias de
Russell são passíveis de crítica.
[35]
Trad. C. Garnett (New York: Modern Library, Random House, 1950), do livro V,
capítulo 4. A citação aqui é tirada da seleção encontrada em God and Evil: Readings on the
Theological Problem of Evil, ed. Nelson Pike (Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice-
Hall, 1964).
[36]
R. C. Sproul, Objections Answered (Glendale, CA: Regal Books, G/L Publications,
1978), pp. 128, 129.
[37]
Dialogues Concerning Natural Religion, ed. Nelson Pike (Indianapolis: Bobbs-Merrill
Publications, 1981), p. 88.
[38]
Buffalo, New York: Prometheus Books, 1979.
[39]
O intuicionismo sugeriria que a bondade é uma propriedade (básica ou simples)
indefinível que não conhecemos empiricamente ou através da natureza, mas
“intuitivamente”. O que, no entanto, é uma “propriedade não natural”, a menos que
estejamos falando de uma propriedade “sobrenatural” (a própria coisa em disputa com o
incrédulo)? Ademais, o intuicionismo não pode fornecer uma base para saber que nossas
intuições estão corretas: não só temos de intuir a bondade da caridade, mas também temos
de intuir que essa intuição é verdadeira. É um fato bem conhecido e embaraçoso que nem
todas as pessoas (ou todas as culturas) têm intuições idênticas sobre o bem e o mal. Essas
intuições conflitantes não podem ser racionalmente resolvidas dentro da cosmovisão do
incrédulo.
[40]
Dificuldades semelhantes acompanham a ideia de que os termos éticos não funcionam
e não são usados para descrever alguma coisa, mas simplesmente dar expressão às
emoções de alguém. A teoria relacionada (performativa) da linguagem ética conhecida
como “prescritivismo” sustenta que as declarações morais não funcionam para descrever as
coisas como boas ou más, mas simplesmente para levar o(s) ouvinte(s) de alguém a se
comportar(em) ou sentir(em) de certa maneira. Com base nessa teoria, nenhuma atitude ou
ação é boa ou má em si mesma, e fica-se sem uma explicação de por que as pessoas saem
por aí “orientando” os outros com imperativos supérfluos e velados como “Ajudar os
órfãos é bom”.
[41]
Antony Flew escreve: “De forma não surpreendente, muitos críticos têm argumentado
que a realização de pelo menos alguns desses objetivos [metafísicos] é em princípio
impossível. Assim, tem-se mantido que a mente humana não tem meios de descobrir fatos
fora do reino da experiência dos sentidos… Outra crítica é que desde que nenhuma
experiência concebível poderia capacitar-nos a decidir entre, por exemplo, as declarações
de que a realidade consiste de apenas uma substância (monismo) ou de infinitamente
muitas (monadologia), elas tampouco servem a qualquer propósito na economia do nosso
pensamento sobre o mundo, e igualmente não são nem verdadeiras, nem falsas, mas sem
sentido” (“metaphysics” em A Dictionary of Philosophy, rev. 2ª ed. New York: St. Martin’s
Press, 1984, pp. 229-230).
[42]
Metaphysics (New York: Harcourt, Brace, & World, 1963), p. 12.
[43]
Beyond Good and Evil, “On the Prejudice of Philosophers”, trad. Walter Kaufmann
(New York: Vintage Books, 1966), pp. 12, 13.
[44]
Pessoas que falam dessa maneira parecem ignorar o caráter trivial ou tautológico dessa
afirmação. “Ter fé” que algo é verdade (por ex., que Elvis está vivo e morando em Idaho) é
o mesmo que “acreditar” que a alegação em questão é verdadeira; essas são diferentes
formas semânticas de expressar a mesma coisa. Por conseguinte, quando uma pessoa diz
que “acredita” em algo “simplesmente por fé” (sem uma explicação adicional), ela
simplesmente nos diz que “acredita porque acredita”.
Não ignoro que muitas pessoas religiosas, incluindo filósofos que refletem sobre questões
religiosas, pensam na “fé” como estando em uma categoria diferente da “crença”. A
primeira é tida como uma questão pessoal de confiança ou compromisso, ao passo que a
segunda é uma questão de intelecto. Por exemplo, num ensaio intitulado “Fé e Crença”, o
filósofo de Oxford H. H. Price afirmou: “Fé, então, é algo muito diferente da crença ‘nisso’
e certamente não se reduz a ela nem é definível em termos dela… Certamente, quando uma
pessoa está realmente na atitude da fé, ela nunca diria que acredita que Deus a ama. O que
acontece, em vez disso, é que ela sente o amor de Deus por ela… Isso não parece ser, afinal
de contas, uma questão de acreditar” (Faith and the Philosophers, ed. John Hick [New
York: St. Martin’s Press, 1964], p. 11). Estipulações verbais como essas podem ser feitas, e
pelo que posso perceber, são muitas vezes feitas; mas exigiria um esforço heroico fazer
essa distinção conceitual entrar em conformidade verbal com o uso neotestamentário do
verbo grego “pisteuo” e do substantivo “pistis”.
[45]
Peter A. Angeles, Dictionary of Philosophy (New York: Barnes & Noble, 1981), p. 94.
[46]
Cf. “A dúvida, como o lado escuro do aspecto cognitivo da fé, é um ingrediente
essencial para a fé… Uma mente vívida está em Angst nas encruzilhadas diárias, e
diariamente faz uma escolha, fazendo-a, como diria Kierkegaard, ‘em temor e tremor’”.
Geddes MacGregor, Philosophical Issues in Religious Thought (Boston: Houghton Mifflin,
1973), p. 239.
[47]
J. Gresham Machen, What is Faith? (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing,
1925), pp. 18, 26, 94, 243.
[48]
Na tradução livre da versão usada pelo autor, “o que adoram, mostrando sua
ignorância, eu autoritativamente vos declaro”. [N. do T.]
[49]
E quanto às crenças deles sobre o método adequado, então? Essas crenças também
chegam por meio desse método adequado? Caso sim, elas não têm nenhuma autoridade ou
fundamento independente (que não caia em petição de princípio)! Caso não, o que é
considerado o método adequado para chegar a crenças não é fundacional, no fim das
contas.
[50]
Descartes sentiu que seu método o havia finalmente levado à verdade indubitável e
fundacional de que ele mesmo existia. Ainda que tudo o mais em que ele acreditasse fosse
uma ilusão, ele ao menos precisava existir para ter a dúvida em primeiro lugar. Portanto o
famoso ditado “Penso, logo existo”. Mas Descartes não foi aqui suficientemente
escrupuloso como filósofo. Ao tomar “Penso” como sua premissa, ele já tinha caído em
petição de princípio quanto à sua existência (afirmando o “Eu” implícito). Isso não era
mais útil, realmente, do que argumentar “Eu exalo mau cheiro, portanto existo”. Descartes
deveria ter postulado mais estritamente apenas que “Pensamento está ocorrendo” ─ do que
não segue logicamente que “eu existo”.
[51]
C. Gore, Belief in God (New York: Penguin, 1939), p. 12.
[52]
Julian Huxley, Religion without Revelation (New York: Mentor, 1957), pp. 15, 17.
[53]
Antony Flew, God and Philosophy (New York: Harcourt, Brace and World, 1966), pp.
159, 161.
[54]
Ibid, p. 26.
[55]
Parte do caráter autovalidável (autoautenticável) dessa revelação autoritativa é que sem
ela o raciocínio, a ciência e a ética se tornam ininteligíveis, filosoficamente falando. A
autoridade de Deus é necessária para a utilidade e autoridade intelectual (subordinada) dos
próprios princípios que os incrédulos se propõem a usar ao testar a autoridade de Deus.
Ninguém pode utilizar o raciocínio sem simultaneamente, ainda que implicitamente e sem
reconhecer isso, empregar a perspectiva da revelação de Deus. Assim, as afirmações cristãs
sobre o caráter autovalidável da revelação de Deus não são meramente um testemunho
subjetivo ou estão além uma demonstração ou discussão racional.
[56]
Cornelius Van Til, The Defense of the Faith (Philadelphia: Presbyterian and Reformed,
1955), pp. 145.
[57]
Ibid, p. 49.
[58]
Note bem que a “razão” é aqui criticada como uma autoridade ou padrão (que se coloca
acima de Deus em julgamento), mas não absolutamente como uma ferramenta ou
instrumento (que seja usada sob Deus, para a glória dele). Claro, o incrédulo deve usar sua
capacidade de raciocínio para ouvir, ponderar e (esperançosamente) adotar as
reivindicações da palavra de Deus. Isso não significa que a norma de controle pela qual ele
usa seu raciocínio deve ser a razão em si mesma. (Nessas discussões seria de bom alvitre
perguntar o que exatamente se quer dizer com “razão”.)
[59]
A. J. Ayer, Language, Truth and Logic (New York: Dover Press, 2ª ed. 1952), p. 39.
[60]
Qualquer declaração de teste (T) pode ser conjugada com a premissa “Se T, então O”
(onde O representa uma declaração de observação). Note que a premissa que acabamos de
afirmar não implica por si só logicamente a declaração de observação (O); nem a
declaração de observação segue diretamente da declaração de teste (T). No entanto, quando
T é tomado com a premissa aqui sugerida, a declaração de observação (O) pode ser de fato
deduzida.
[61]
Language, Truth and Logic (2ª ed.), p. 13.
[62]
Alonzo Church demonstrou isso de forma breve, mas devastadora, na sua resenha à
segunda edição do livro de Ayer (Journal of Symbolic Logic v. 14 [1949], p. 53). Onde On
representa uma declaração de observação, qualquer declaração de teste (T) pode ser
conjugada com qualquer declaração de observação (O1) e a seguinte premissa complexa:
[(não O1 e O2) OU (O3 e não T). Quando fazemos isso, não T passa no teste de ser
diretamente verificável (por silogismo disjuntivo), enquanto T pode ser conjugado com a
premissa complexa dada aqui para passar no teste de Ayer de ser indiretamente verificável.
[63]
Veja Karl Popper, The Logic of Scientific Discovery (London: Hutchinson, University
Library, 1959 [original alemão, 1935]).
[64]
Antony Flew, “Theology and Falsification”, New Essays in Philosophical Theology,
eds. Antony Flew & Alasdair MacIntyre (New York: Macmillan Co., 1964 [1955]), pp. 96,
97, 98.
[65]
Cf. Thomas Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, 2nd rev. ed. (Chicago:
University of Chicago Press, 1970 [1962]).
[66]
Nossas afirmações sobre o mundo externo não enfrentam o tribunal da experiência
sensorial individualmente, mas apenas como um corpo corporativo”. Isso foi observado e
discutido por Willard Van Orman Quine em “Two Dogmas of Empiricism”, From a
Logical Point of View, 2ª ed. (New York: Harper Torchbooks, 1961), p. 41.
[67]
Isso não implica que a teoria de conhecimento seja em última análise relativista ou
voluntarista. Ela aponta para a necessidade da argumentação transcendental na apologética
─ mostrando como as pressuposições do cristão fornecem as precondições de
inteligibilidade (na ciência, lógica, ética, etc.) e fazendo uma crítica interna das filosofias
de vida concorrentes para demonstrar que elas não fazem isso.
[68]
As pressuposições não são o único fator no desenvolvimento de um sistema de crenças.
Devido a diferentes compromissos secundários, influências sociais, experiências pessoais,
critérios de racionalidade, capacidades intelectuais (etc.), duas pessoas que compartilham
as mesmas pressuposições podem, todavia, gerar diferentes “redes” de crenças.
[69]
John M. Frame, “God and Biblical Language”, God’s Inerrant Word, ed. J. W.
Montgomery Minneapolis: Bethany Fellowship, 1974), p. 171.
[70]
David Hume, “Of Miracles” em An Inquiry Concerning Human Understanding, ed.
Charles W. Hendel (Indianapolis: Boobs-Merrill Co., [1748] 1955), p. 126