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revista dxs discentes

do programa de pós-graduação
em sociologia da UFSCar

v.6 | n.2

Julho/Dezembro
2017
Áskesis: Revista dxs Discentes do Programa de Desenvolvimento Web
Pos-Graduação em Sociologia da UFSCar Rodrigo Casaut Melhado

Volume 6 | Número 2 Conselho Científico


Julho / Dezembro de 2017 Afrânio Garcia Júnior (L’École des Hautes Etudes
ISSN 2238-3069 en Sciences Sociales/Centre de Recherche sur
le Brésil Contemporain/Centre de Sociologie
As opiniões expressas nos artigos assinados são Européenne – Paris); Alice Anabuki Plancherel
de responsabilidade exclusiva dos autores. (Universidade Federal de Alagoas – Brasil); Anibal
Quijano (Binghamton University – Nova York);
Dados da imagem da capa Aristoteles Barcelos Neto (University of East Anglia
Autor: Tiago Lima – Reino Unido); Berenice Bento (Universidade
Obra: Filhos do Atântico Federal do Rio Grande do Norte – Brasil); Bernard
Ano: 2016 Lahire (École Normale Supérieure Lettres et
Profissão: Historiador e cartunista Sciences Humaines – Lyon); Daniel Cefaï (L’École
des Hautes Etudes en Sciences Sociales/Centre
Diagramação D’etude des Mouvements Sociaux – Paris); Ethel
Diego Polacchini Volfzon Kosminsky (Queens College/CUNY – USA);
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Universidade Federal de São Carlos Paraíba – Brasil); Jacob Carlos Lima (Universidade
Federal de São Carlos – Brasil); John Comerford
Reitora (Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu
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Albuquerque (Universidade Federal de São Paulo –
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Prof. Dr. Walter Libardi Pablo de Olavide de Sevilla/Espanha); Lucas Cid
Gigante (Universidade Federal de Alfenas); Lucila
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(CECH): Lucio Oliver (Facultad de Ciencias Políticas y
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Vice-Diretora: Profa. Dra. Ana Cristina Juvenal da Universidade Federal do Rio de Janeiro – Brasil);
Cruz Márcia Ochoa (University of Califórnia – Santa
Cruz); Maria da Gloria Bonelli (Universidade Federal
Programa de Pós-Graduação em Sociologia de São Carlos – Brasil); Michel Misse (Universidade
Federal do Rio de Janeiro – Brasil); Miriam Adelman
Coordenador: Rodrigo Constante Martins (Universidade Federal do Paraná – Brasil); Miriam
Vice-Coordenador: Fábio José Bechara Sanchez Cristina Marcillio Ribeiro (Universidade Federal da
Bahia – Brasil); Odaci Luiz Coradini (Universidade
Comitê Editorial Federal do Rio Grande do Sul – Brasil); Paulo
Rodrigo Casaut Melhado Sergio Peres (Universidade Federal do Rio Grande
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Graduação em Sociologia da UFSCar. – Londres); Simone Bateman (Centre National
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Editora-gerente. Doutoranda pelo Programa de Maria – Brasil); Sílvia Portugal (Universidade de
Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar. Coimbra); Vera Telles (Universidade de São Paulo
– Brasil); Veronica Gimenez Béliveau (Universidad
Felipe Padilha de Buenos Aires/Argentina).
Editor-gerente. Doutorando pelo Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da UFSCar. Apoio
Programa de Pós Graduação em Sociologia da Uni-
Organizadores do Dossiê - v. 6, n. 2 (2017) versidade Federal de São Carlos e Pró-Reitoria de
João Paulo da Silva Pós-Graduação da Universidade Federal de São
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Carlos (ProPG-UFSCar)
Sociologia da UFSCar.
Endereço
Carla Fernandes da Conceição Áskesis Rod. Whashington Luís 235. -
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Monjolinho. 13565-905 - Sao Carlos, SP - Brasil -
Sociologia da UFSCar. Caixa-postal: 676
Apresentação

Dossiê Imigração: olhares contemporâneos


João Paulo da Silva; Carla Fernandes da Conceição .....................................................................5

Dossiê

A imigração italiana no Paraná no olhar de viajantes italianos


Fábio Augusto Scarpim .....................................................................................................................8

Emigração e imigração espanhola para o Brasil: política, demografia e especificidades de


um grupo étnico
Vanessa Martins Dias .....................................................................................................................24

¿Podemos hablar de legados migratorios? El espacio social transnacional en la migración


histórica catalana en Guayaquil (Ecuador)
Francisco Javier Mazeres Gaitero ..................................................................................................36

O Karate-Do como Dispositivo da Japonesidade em São Carlos


Rafael Cava Mori ............................................................................................................................51

Breves considerações sobre Hiroshi Saito e as diferenças institucionais entre a Escola de


Sociologia e Política e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras no período de estrutura-
ção das Ciências Sociais em São Paulo
Jader Tadeu Fantin .........................................................................................................................65

Imigrantes: mais que braços para o café, a constituição dos homens de negócio no interior
paulista
Eder Carlos Zuccolotto ...................................................................................................................81

Racialização no processo imigratório brasileiro: as transformações na legislação e o papel


do estado
Patrícia Bosenbecker .....................................................................................................................97

A imagem do “outro”: uma análise das notícias televisivas sobre o tema da imigração
Elaine Javorski ..............................................................................................................................114

Conflitos contemporâneos: a categoria refugiado no telejornalismo brasileiro


Liege Scremin;
Susana Trovão .............................................................................................................................125

Um balanço da produção acadêmica sobre a imigração de bolivianos em São Paulo


Fabio Martinez Serrano Pucci .......................................................................................................139

As migrações recentes como possibilidades poéticas e políticas de transformação do mun-


do social
Janaina Santos .............................................................................................................................155

A leste do Éden: migrações por amenidade num balneário da costa atlântica uruguaia
Daniel Cajarville ............................................................................................................................166

Tradução

Os Fasci no Brasil
Paolo Targioni;
Marinei Almeida ............................................................................................................................180
Ensaio

Interseccionalidade de violências na migração feminina: casos de mulheres e trans brasileiras


Milena de Lima e Silva ..................................................................................................................192

Entrevista

Um “brasilianista italiano”: entrevista com Angelo Trento


Carla Fernandes da Conceição;
João Paulo da Silva ......................................................................................................................202

Relato de Pesquisa

Migração haitiana: um estudo etnográfico com crianças, pais, professores em escolas pú-
blicas de Sinop MT
Ivone Jesus Alexandre ..................................................................................................................208

Artigo

Quando Uma Aparente Saída ao Capitalismo é a Concreta Individualização: a Subjetividade


de Bob Dylan na “Ruptura” com o Folk (1962-1966)
Filipe Moreno Horta ......................................................................................................................218

Propagandas das formas de trabalhos: discussão sobre propaganda e novas formas de tra-
balho nas mídias digitais
Giulianna Bueno Denari ................................................................................................................237

Resenha

A diferença entre poder sair e poder entrar


Paolo Targioni ...............................................................................................................................252
Dossiê Imigração:
olhares contemporâneos

A Áskesis – Revista dxs discentes do Programa de Pós-Graduação em Socio-


logia da UFSCar apresenta, neste volume, o dossiê Imigração: olhares contempo-
râneos, organizado por João Paulo da Silva1 e Carla Fernandes da Conceição2,
integrantes do grupo de pesquisa “Migrar: sociologia histórica das migrações e
estudos regionais” (UFSCar) e do projeto de pesquisa FAPESP “Percursos históri-
co-sociais na incorporação de imigrantes do Oeste Paulista (1880-1950)”, ambos
liderados pelo Prof. Dr. Oswaldo Truzzi. Os artigos aqui reunidos discorrem so-
bre a temática das imigrações tanto no Brasil quanto na América Latina. Sob um
olhar sociológico e historiográfico, os artigos versam sobre temas diversos que
perpassaram os fluxos e grupos migratórios abarcados desde o século XIX até
o XXI. Além disso, os textos apresentam metodologias diversificadas e variadas
abordagens teóricas sobre a temática – do clássico conceito de push e pull, pas-
sando por discussões sobre identidade, alteridade e racialização, chegando até a
abordagens mais contemporâneas, como os conceitos de imigração por alteridade
e as possibilidades poéticas e políticas da imigração.
O primeiro texto, de Fábio Augusto Scarpim, analisa a imigração italiana no es-
tado do Paraná sob o olhar de três viajantes italianos - Pietro Colbacchini, Alfredo
Cusano e Ranieri Veronese – que estiveram por lá entre os anos de 1886 a 1912.
A partir destas narrativas, o autor busca compreender as avaliações feitas pelos
viajantes sobre os incentivos, atrativos, desafios e as dificuldades enfrentadas na
emigração italiana, que contribuíram para a divulgar o Paraná na propaganda emi-
gracionista na Itália.
Ainda sob uma perspectiva histórica, Vanessa Dias realiza um balanço sobre
a imigração espanhola para o Brasil. Utilizando-se dos conceitos de push e pull,
clássicos sobre o tema, a autora aponta que, inicialmente, o subsídio pago pelo
governo brasileiro foi um dos principais fatores de atração para esse grupo de
imigrantes no início do século XX. Já no pós-Segunda-Guerra, o contexto político
espanhol era o principal fator de expulsão, enquanto a industrialização brasileira
atraía os imigrantes espanhóis para o país.
Francisco Javier Mazeres Gaitero apresenta em seu artigo como que a imigra-
ção entre a Catalunha e Guayaquil possibilitou a formação de um espaço social

1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de


São Carlos – UFSCar, bolsista CAPES. Contato: jps.historia@gmail.com
2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de
São Carlos – UFSCar. Contato: carlafcon@gmail.com

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transnacional entre os dois espaços. O artigo, que possui um recorte etnossocio-
lógico, trabalha na perspectiva de Fernand Braudel de longa duração. Tempo este
que ao consolidar práticas sociais densas e duradouras constrói um espaço trans-
nacional entre os dois espaços. Entidades como o clube Barcelona de Guayaquil
são exemplos da produção desse espaço.
Em seguida, Rafael Cava Mori discute a prática do Karate-Do enquanto um
dispositivo de japonesidade. Baseando-se em estudo etnográfico, análise docu-
mental e entrevistas e com um recorte específico do município de São Carlos,
interior de São Paulo, o autor procura inferir sobre a influência do Karate-Do na
construção de um ethos nipônico baseado em princípios disciplinares, espirituais
e morais orientais.
Jader Tadeu Fantini apresenta um importante estudo biobibliográfico sobre Hi-
roshi Saito, sociólogo e membro da Escola Livre de Sociologia e Política de São
Paulo (ELSP). Saito chegou ao país em 1933 com a sua família para trabalhar nas
lavouras do interior de São Paulo e se tornou um dos principais responsáveis pela
consolidação do campo dos estudos de imigração no Brasil.
Eder Carlos Zuccolotto reflete que embora a literatura aborde a figura dos imi-
grantes como fonte de mão de obra para as lavouras cafeeiras do interior do es-
tado de São Paulo, estes se tornaram, ao longo do tempo, grandes homens de
negócios, ou seja, agentes diferenciados dentro do processo de desenvolvimento
empreendedor no interior paulista.
Patrícia Bosenbecker analisa a construção da racialização no processo imigra-
tório brasileiro sob a influência e o controle do Estado, que cria políticas imigra-
tórias nacionais geradoras de seletividade, desde a independência nacional até a
Segunda Guerra Mundial.
Elaine Javorski trabalha a questão da mídia televisiva, especialmente de três
telejornais brasileiros - Rede Globo, Bom Dia Brasil e Bom Dia Paraná - e suas
imbricações na propaganda sobre a imigração no Brasil. Tendo como recorte tem-
poral os anos de 2014 a 2016, a autora analisa “os interesses midiáticos” na ques-
tão da imigração e atenta às consequências de interpretações superficiais sobre o
tema que, na maioria das vezes, acentuam a etnização da delinquência e a cria-
ção de estereótipos que dificultam a ampliação e o melhoramento das condições
sociais e de integração dos imigrantes no Brasil.
Na mesma linha, as autoras Liege Scremin e Susana Trovão apresentam como
o telejornalismo brasileiro – mais especificamente o Jornal Nacional, da Rede Glo-
bo, e o Jornal da Record – apresentam a categoria dos refugiados. Ao analisarem
quatro matérias (três do Jornal Nacional e uma do Jornal da Record), as autoras
demonstram alguns pontos em comum: 1) nenhuma distinção entre as categorias
imigrante e refugiados, o que, segundo as autoras, pode auxiliar no aumento da

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rejeição aos refugiados; 2) a ausência de informações sobre refugiados no Brasil;
3) repetição do que diz as agências internacionais, fazendo com que a imprensa
internacional paute agenda da mídia brasileira.
Já Fábio Pucci apresenta uma revisão bibliográfica do que já foi produzido
sobre a imigração de bolivianos para São Paulo, além de apontar as lacunas exis-
tentes nessa literatura, o que pode ser um bom ponto de partida para quem deseja
iniciar estudos sobre o tema.
Janaína Santos propõe uma reflexão do tema imigração como um fenômeno
social, político e poético. O que, segundo a autora, não significa diminuir impactos
do fenômeno, como a xenofobia e o racismo, mas sim perceber as (dis)junções e
(des)continuidades nos processos migratórios e vislumbrar o imigrante como al-
guém que está transnacionalmente conectado, em contato com diversas línguas,
culturas e afetos, portanto, em uma experiência de constante alteridade, o que
pode contribuir na construção de novas bases relacionais, mais éticas, igualitárias
e humanizadas.
O texto de Daniel Cajarville nos apresenta um caso de migração por ameni-
dades. Analisando este tipo de migração em um balneário da costa atlântica do
Uruguai, na região de La Paloma, o autor analisa as significações da imigração
para esta região e os fatores que a levam a ocorrê-la.
Por fim, gostaríamos de agradecer imensamente ao professor Angelo Tren-
to, tanto por disponibilizar para tradução desta edição um texto inédito no Brasil,
quanto pela entrevista que aqui se encontra. Uma ótima leitura a todxs!

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A imigração italiana no Paraná
no olhar de viajantes italianos
The italian immigration in the state of Paraná
in the italian’s travellers

Fábio Augusto Scarpim1

Resumo
Este artigo analisa as impressões de viajantes italianos sobre a imigração italia-
na no Paraná. São eles Pietro Colbacchini, Alfredo Cusano e Ranieri Veronese
que estiveram no Estado entre os anos de 1886 e 1912. A parte privilegiada das
descrições desses autores referem-se as colônias instaladas na capital e nos
seus arredores. Em seu inventário físico e humano do Paraná, especialmente
das colônias imigrantes, esses homens descreveram os aspectos positivos e
negativos da experiência imigratória, destacando as possibilidades e os limi-
tes para instalação de novos imigrantes. Na mesma direção o progresso das
colônias já estabelecidas, os discursos das qualidades dos imigrantes sobre os
nacionais e a importância da preservação da italianidade.

Palavras chaves: imigração italiana, Paraná, viajantes.

Abstract
This article analyzes the impressions of Italian travellers about the Italian
immigration in the state of Paraná. They are Pietro Colbacchini, Alfredo Cusano
and Ranieri Veronese that were in the State between the years 1886 and 1912.
The privileged setting in the descriptions of these authors refer to the colonies
installed in the capital and on its outskirts. In their inventory the physical and
human state of Paraná, especially in the colonies immigrants, these men have
described the positive and negative aspects of the experience of immigration,
highlighting the possibilities and limits for installation of new immigrants. In the
same direction as the progress of the colonies already established, the speechs
about the qualities of the immigrants over the national, and the importance of
the preservation of the italianidade.

Keywords: Italian immigration, Paraná, travellers.

1 Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná. Professor do Centro Universitário


Campos de Andrade. E-mail: fabio_scarpim@hotmail.com

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Introdução

Desde a emancipação política da província em 1853, quando esta se des-


membrou de São Paulo, o Paraná se constituiu em destino de milhares de imi-
grantes estrangeiros, na maior parte europeus, que se aventuraram rumo à terra
das araucárias, em busca de melhores condições de vida, do sonho de conquista
da propriedade ou atraídos pela propaganda imigratória governamental ou das
sociedades de imigração. Junto a dezenas de milhares de imigrantes foram mui-
tos os viajantes (missionários, jornalistas, cientistas, médicos e aventureiros)
que passaram pelo Paraná e fixaram residência por curto espaço de tempo ou,
em algumas ocasiões por anos, e deixaram registradas suas impressões sobre
as pessoas e seu modo de vida e a paisagem regional.
Viajantes como o francês Auguste de Saint-Hilaire, o alemão Robert Avé-Lal-
lemant e o inglês Thomas Bigg-Wither que passaram pelo Paraná no século XIX já
registravam seu encantamento pela jovem província, especialmente pelo clima
e pela natureza bastante propícia para o estabelecimento de colonos europeus2.
As descrições desses viajantes possibilitam o conhecimento de muitos aspectos
do cotidiano da sociedade paranaense, bem como a visão e o imaginário euro-
peu a respeito do Brasil Meridional. Conforme bem observou Francisco Moraes
Paz (1987) apesar do encanto pela natureza e pelas paisagens paranaenses é
notória, na escrita dos três viajantes citados, o desprezo pela população local
que, apesar da receptividade e da bonança, foram descritos como indolentes,
atrasados e ignorantes. A visualização do progresso e as expectativas de futuro
eram depositadas na Europa e nos imigrantes europeus, ou nas palavras de Paz
(1996, p.15) “a utopia do século XIX situa-se na própria Europa e projeta-se num
futuro de realizações. Ela pode ser definida como a busca da modernidade, e
desenhada a partir da visão européia de civilização, sociedade e história”.
Como o escopo deste artigo é a imigração italiana nos concentraremos nos
relatos produzidos por viajantes da mesma nacionalidade, de modo a compre-
ender qual eram as avaliações que esses homens fizeram das experiências ini-
ciais dos imigrantes no Paraná e como tais avaliações contribuíam para divulgar
o Paraná na propaganda emigracionista na Itália, salientando quais eram os
locais mais adequados para o estabelecimento de colonos europeus, os desa-
fios a ser enfrentados, as dificuldades, bem como as contribuições para o lugar.
Assim, acompanhamos as narrativas dos viajantes do século XIX que, ao fazer
um inventário físico e humano do Brasil, especialmente do Paraná, contribuíram
para divulgação das terras a ser colonizadas e para a atração de imigrantes.
Para compreendermos alguns aspectos do olhar dos observadores italianos so-
bre a imigração no Brasil Meridional, especialmente das colônias localizadas no
entorno da cidade de Curitiba, analisamos textos de três autores: Pietro Colbac-
chini, Alfredo Cusano e Ranieri Veronese.

2 Os relatos dos viajantes referidos foram publicados em livros nas cidades e nos anos,
respectivamente de Paris 1851, Leipzig 1859 e Londres 1878. No caso do viajante Auguste Saint-
Hilaire embora a viagem tenha sido feita em 1820, seu relato foi atualizado com anotações e dados
de outros viajantes e com informações de relatórios dos Presidentes de Província e Anuários.
Essa atualização sugere a ideia de produzir um inventário sobre o Brasil que funcionaria como
propaganda para a vinda de imigrantes estrangeiros.

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O texto Le condizioni degli emigrati nello stato del Paraná in Brasile do missio-
nário escalabriniano Pietro Colbacchini data de 1892 e é endereçado ao Patrona-
do para os emigrantes sob a presidência honorária do Monsenhor Giovanni Bat-
tista Scalabrini e do marquês Volpe Landi de Piacenza, que também foi inserido
como apêndice na obra de Ferruccio Macola L’Europa alla conquista dell’America
Latina publicada em Veneza no ano 1894 pela editora Ferdinando Ongania. O
segundo texto é um número específico da Revista Italica Gens3 publicada em
1913 que trata de uma relação de visitas feitas pelo doutor Ranieri Veronesi no
ano anterior nos três Estados do Brasil Meridional. Por fim as impressões do jor-
nalista Alfredo Cusano que viveu cinco anos no Rio Grande do Sul, mas visitou
também os estados do Paraná e Santa Catarina e publicou sua experiência no
livro Itália d’oltre mare: Impressioni e ricordi dei miei cinque anni al Brasile no ano
de 1911.

Imigrantes italianos no Paraná


A imigração italiana em massa no Paraná tem início em 1875. Antes dessa
data há registros de alguns, mas eram poucos e diluídos entre outros grupos,
como aqueles que integravam a colônia Assungui, fundada em 1860 e perten-
cente ao atual município de Cerro Azul. Antes mesmo da presença em gran-
de quantidade de imigrantes italianos o Paraná foi percorrido por um viajante
dessa nacionalidade. Giuseppe Banfi4 percorreu a província em 1858, poucos
anos após a criação da mesma, e deixou registrado em seu diário as impressões
sobre o espaço conhecido: sua gente, seus hábitos e suas impressões sobre a
paisagem.
A questão imigratória no Paraná, especialmente a vinda de colonos mori-
gerados e laboriosos, já era debatida pelas autoridades provinciais desde a sua
criação e foi apontada como uma solução para resolver os problemas relativos à
baixa densidade demográfica, os chamados “vazios demográficos”, a carência
de mão-de-obra, bem como a ausência de uma agricultura diversificada naquele
contexto de início do processo de transição do trabalho escravo para o livre.
Os anos que se seguiram à emancipação política da província foram mar-
cados pelo aprofundamento da política imigratória, numa ação conjunta das
autoridades imperiais e provinciais (Machado et ale, 1969, p.163). Inicialmente
houve uma tentativa de promover a colonização no litoral paranaense nas pro-

3 Associação Italica Gens: Federazione per l’Assistenza degli emigranti transoceanici e diretta
dall’Associazione Nazionale per Missionari Cattolici italiani era constituída por membros de todas
as ordens e congregações religiosas que tinham missionários entre os imigrantes na América
(salesianos, jesuítas, franciscanos, scalabrinianos, capuchinhos, conventuais e vários outros).
Com sede no Segretariado Centrale di Torino e missionários atuantes nos portos de Genova e
Nápoles, o escopo da Associação era aconselhar, orientar e atender religiosamente os emigrantes
italianos tanto na partida como no estabelecimento no local de destino na América. Da mesma
forma, informar às autoridades italianas as condições que se encontravam os imigrantes nos
países de destino, e os eventuais problemas (exploração, situações de doença, fome, conflitos)
que viessem surgir na experiência migratória.

4 Sobre as impressões desse viajante ver: VANNUCCI, Alessandra. Un baritono ai tropici. Diario
di Giuseppe Banfi nel Paraná. 1858. Reggio Emilia: Diabasis Edizioni, 2007.

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ximidades das cidades de Morretes, Antonina e Paranaguá, mas uma série de
problemas como: a insalubridade do clima, a falta de conhecimento e orienta-
ção para superar as moléstias tropicais e as pragas da lavoura, a ausência de
mercados consumidores e a ambição de agenciadores de imigrantes como o
caso do italiano Sabino Tripotti tornaram a experiência um verdadeiro desastre.
Esse fracasso é enfatizado no relato de Colbacchini (p.556, tradução minha)
que alertava seus conterrâneos para não se instalarem no litoral devido às pre-
cárias condições sanitárias e de adaptação e ao abandono dos imigrantes a sua
própria sorte.

Me sinto no dever de gritar tão alto, para ser ouvido do outro lado
do mar aos meus conterrâneos: a vocês que emigram para o Paraná,
atentem aos lugares infectos de Paranaguá, Morretes e Antonina e de
todo este litoral, se querem evitar a maior desgraça que jamais vos pos-
sa acontecer5.

Diante do fracasso da experiência colonizadora no litoral, especialmente na


administração do governador Adolpho Lamenha Lins, foram instaladas várias
colônias nas proximidades da capital Curitiba. O clima mais ameno, a inexis-
tência de moléstias tropicais, a existência de terrenos férteis nas proximidades
a capital bem como a facilidade para o escoamento dos produtos agrícolas ga-
rantiu êxito ao programa, conforme destacou o governador no seu relatório de
1877 (p.81-82).

O colono europeo, por via de regra, desanima diante das nossas


mattas virgens, porque para elle é completamente ignorada essa cul-
tura extensiva, da derrubada, da queima e das sementeiras a vôo, e é
por isso que internados nas colonias afastadas dos centros populosos,
elles fogem de entregar-se a esse trabalho improbo, que lhes é intei-
ramente desconhecido, acontecendo muita vez que o desastre que na
primeira derrubada fere a um, basta para amedrontar uma expedição
inteira. É preciso pois preparar o colono para penetrar nas regiões das
mattas virgens, riquissimas de uberdade, e de seiva, porem cuja rude
magestade os assombra e intimida. D’ahi a vantagem de estabelece-
-los primitivamente, nos arredores dos centros populosos, ahi, perto de
todos os recursos, ao passo que se dedica a cultura que conhece, e
tem mercado prompto e consumo immediato para os seus productos,
o colono ensaia essa cultura nacional que lhe é inteiramente estranha,
mais que a elle tem de entregar-se mais tarde, pela natureza das plan-
tas que tem de cultivar, e do terreno em que elles produzem. (...) Foi sob
o domínio dessas ideias, que adoptei o systema do estabelecimento de
colonos nos arredores da capital.

5 mi sento in dovere di gridare tanto alto, da essere udito al di là dei mari dai miei connazionali:
o voi che emigrate per il Paranà, guardatevi dai luoghi infetti di Paranaguà, Morretes ed Antonina e
da tutto questo litorale, se pur volete evitare la più grande disgrazie che mai vi possa incogliere.

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A partir da administração de Lamenha Lins a colonização nos arredores de
Curitiba se desenvolve. O final dos anos 1870, as décadas de 1880 e 1890 são
marcados pela expansão da fixação de imigrantes chegando ao auge da política
imigratória no Paraná subvencionada pelo governo provincial. O êxito logrado
com a experiência imigratória, não apenas no Paraná, mas no Brasil Meridional
como um todo, se transforma em objeto da atenção de observadores estrangei-
ros, seja por parte das instâncias eclesiásticas preocupadas com a situação re-
ligiosa dos imigrantes, seja por parte das autoridades políticas interessadas na
manutenção dos vínculos cívicos e identitários dos emigrados com a pátria mãe
e na promoção da propaganda imigratória na Itália.

Impressões dos viajantes sobre os imigrantes italianos:


avanços e impasses da ação colonizadora;

No caso do primeiro autor analisado – o sacerdote Pietro Colbacchini – ele


não é exatamente um viajante, mas um missionário que viveu muitos anos en-
tre os imigrantes italianos, primeiro em São Paulo, depois no Paraná e produziu
uma intensa correspondência com o fundador da Congregação Scalabriniana,
o bispo Giovanni Battista Scalabrini, bem como com outras instâncias eclesiás-
ticas na Itália. Tomamos o texto citado como relato de viagem, embora não seja
resultado de uma viagem propriamente, mas de alguns anos de missão porque
ele apresenta características típicas da literatura de viagem. Conforme salien-
tou Stella Maris Scatena Franco (2006) os relatos de viagem são produzidos na
maioria das vezes a partir de experiências de indivíduos deslocados de suas re-
alidades de origem que frequentaram a realidade de outrem. Assim, tornam-se
depositários de narrações, de fatos e experiências por eles vivenciados, mas que
carregam seus valores, suas visões de mundo e sua subjetividade. Enfim, de re-
presentações e práticas que produzem daquilo que vêem.
Outro aspecto a ser destacado é a respeito do momento da escrita de tais
impressões. Quando estas foram feitas? Durante a experiência ou posterior a
ela? Não temos a resposta para essas questões. Mas podemos inferir a partir do
que temos a mão que, em ambos os casos, foram logo posteriores às experiên-
cias com os imigrantes, devido a distância entre o período de suas vivências e a
publicação de seus escritos. No caso de Colbacchini e Cusano que viveram lon-
gos anos no Brasil Meridional, é certo que eles testemunharam transformações
no processo de estabelecimento das colônias, o que contribuiu para ressaltarem
a importância do trabalho imigrante no desenvolvimento e no progresso do lugar
onde se estabeleceram. De qualquer forma, a narrativa desses autores não era
desinteressada, pois buscavam divulgar as potencialidades da imigração no Sul
do Brasil, destacando suas vantagens e limites, bem como enfatizavam a neces-
sidade de preservação da identidade étnica imigrante, vale dizer: a italianidade.
O relato de Colbacchini, por exemplo, emite um juízo a respeito da emigra-
ção. Esta é aconselhada somente para aqueles que não encontram outra so-
lução para sua situação de miséria e pobreza ou para aqueles que, por conta
de possuírem família numerosa não conseguem mantê-la. Como religioso, seu

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discurso é voltado para prevenir problemas em torno da emigração: aqueles
que por ganância e pelo desejo desenfreado em melhorar de vida acabavam se
perdendo em vícios. A preocupação em relação aos emigrantes que partiam da
Itália se dava em torno da facilidade de se cair nos vícios (alcoolismo, violência,
desregramento moral, libertinagem sexual) do abandono das práticas religiosas
e da perda da fé. Assim a emigração para o campo, a organização em colônias
com imigrantes dos mesmos locais de origem, era mais recomendada que aque-
la direcionada para as cidades, pois dessa forma a manutenção das práticas
culturais, principalmente religiosas, seriam garantidas. No olhar do sacerdote,
a religião funcionaria como uma barreira contra a assimilação e também como
corretora dos vícios. Cabe destacar que o relato de Colbacchini é contemporâ-
neo ao desenvolvimento da experiência anarquista da colônia Cecília em Pal-
meira com imigrantes italianos e também do desenvolvimento anticlerical em
Curitiba.
Entre os observadores italianos que percorreram as diversas áreas de imi-
gração de seus conterrâneos foi unânime a visão de que a colonização nos três
Estados do Sul se constituiu em uma experiência particular se comparada às
demais partes da América. Nestas colônias foi destacada nos textos a preserva-
ção, quase intactas, de determinadas práticas ancestrais como: uso do dialeto
da região de origem, a religiosidade, o associativismo comunitário, a preserva-
ção da cultura, entre outros aspectos que em outras áreas de imigração esta-
vam em vias de transformação ou desaparecimento tendo em vista o contato
mais estreito com a sociedade hospedeira. A causa essencial das diferenças
entre os processos de transformação e manutenção das características étni-
cas nas coletividades italianas nos diferentes lugares de instalação, segundo os
observadores, se relacionava especialmente ao fato que nas colônias dos três
Estados meridionais a grande maioria dos imigrantes era constituída de agricul-
tores que foram instalados em colônias, que em geral se localizavam no meio
rural, e com relativo grau de autonomia social e econômica. Por isso a ênfase de
Colbacchini na imigração camponesa, ela seria a forma mais adequada não só
de prosperidade econômica, mas de manutenção de uma catolicidade italiana.

Para Veronese (1913, p.132, tradução minha)

[...] do ponto de vista econômico e social as colônias dos três Es-


tados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, se pode dizer,
de quase todas que temos dispersas no Norte e no Sul da América, é
que os nossos conterrâneos sendo na maior parte lá dedicados a agri-
cultura, se tornaram pequenos proprietários de terra, poucos são os
operários e os assalariados, e estes se encontram somente na cidade.
Enquanto nos outros países, como à exemplo nos Estados Unidos e na
Argentina, se tem entre os nossos emigrantes fortíssimo desequilíbrio
de renda, dos milionários a um exército infelizmente numerosíssimo de
assalariados miseráveis. Aqui as rendas são quase sempre modestas e
muitas dentre elas equivalentes; e é raro encontrar pessoas válidas que
faltam os meios necessários a vida. Assim o que lhe distingue do ponto
de vista étnico é a maior conservação dos costumes e da língua italia-

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na, permanecendo possível até o momento a formação de agrupamen-
tos agrícolas italianos homogêneos isolados dos centros brasileiros6.

Segundo o autor a população italiana era calculada em 250.000 no Rio Gran-


de do Sul, 40.000 em Santa Catarina e 30.000 no Paraná caminhando em con-
tínuo crescimento. Em relação ao último Estado Alfredo Cusano (1911, p.191-192)
indica que, no início do século XX, dos cerca de 500.000 habitantes, cerca de
um quarto eram de origem estrangeira, sendo 75.000 poloneses (provavelmente
incluiu os ucranianos), 25.000 italianos, 20.000 alemães e 5.000 de outras na-
cionalidades7. Cusano sugere que o número diminuto de italianos no Estado do
Paraná se devia a má vontade dos dirigentes interessados muito mais em fazer
política do que administração; visto que, segundo o autor; muitos colonos pode-
riam ser instalados porque [...] as terras férteis situadas em posições favoráveis e
salubres ainda eram numerosas e poderiam fazer a fortuna de milhares e milhares
de colonos (Cusano, 1911, p.192, tradução minha)8.
Ao contrário do que acontecia nos Estados Unidos e Argentina no qual as ge-
rações sucessivas rapidamente absorviam as características do país hospedei-
ro, sendo necessárias novas levas de imigrantes para manter a presença italia-
na, no Sul do Brasil os imigrantes continuavam a manter as tradições e a língua
ancestral. Nesse sentido Veronese faz uma comparação com as colônias alemãs
que eram mais antigas e que se mantinham bastante presente nos três Estados
com destacada influência política e religiosa, assim como ocupavam postos im-
portantes no comércio e na indústria. O sucesso da experiência germânica seria
devido aos contínuos contatos com a Alemanha, especialmente no que se refere
aos investimentos econômicos, bem como o valor dado a escola para a forma-
ção das novas gerações e a manutenção da língua e da cultura ancestral. Nessa
direção, destaca a importância da conservação do idioma e de seu ensino como
forma de cimentar a identidade étnica e de combater a desnacionalização vista
como uma ameaça constante.
Na visão de Veronesi, no Brasil Meridional o investimento financeiro na es-
cola seria muito menor se comparado a outros lugares da América, justamente

6 [...] dal punto di vista economico-sociale le colonie dei tre Stati di Rio Grande do Sul, Santa
Catarina e Paraná, si può dire, da quasi tutte le altre che abbiamo sparse nel Nord e nel Sud
America, è che i nostri connazionale essendosi per la massima parte colà dedicati all’agricoltura,
vi sono divenuti tutti piccoli proprietari di terra; pochi sono gli operai ed i salariati, e questi si
trovano solo nelle città. Mentre negli altri paesi, come ad esempio negli Stati Uniti e nell’Argentina,
si hanno fra i nostri emigranti fortissimi desiquilibri di fortune, dai multimilionari ad um esercito
purtroppo numerosissimo di salariati miserabile. Qui le fortune sono quase sempre modeste e
molte fra loro equivalenti; ed è raro trovare persone valide che manchino dei mezzi necessari
alla vita. Ciò che le distingue dal punto di vista etnico è la maggior conservazoni dei costumi e
della língua italiana, resa possibile fino ad ora dalla formazione di aggruppamenti agricoli italiani
omogenei isolati daí centri brasiliani.

7 R. Veronesi dá outra indicação a respeito da população paranaense que seria de 360.000 sen-
do cerca de 70.000 poloneses e em seguida os italianos que seriam menos de 30.000. Depois
cita os alemães que se encontravam, sobretudo, na cidade de Curitiba, mas sem mencioná-los
numericamente (Veronesi, 1913, p. 328).

8 le terre più fertile e situate in posizioni ridentissime e salubre sono ancora numerose e potre-
bbero ancora fare la fortuna di migliaia e migliaia di coloni .

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porque o meio favoreceria. Sendo assim, caberiam as autoridades italianas o
investimento financeiro na escola, visto que ao optarem por manterem-se italia-
nas estas não recebiam subsídios do governo brasileiro.
Colbacchini partilha das mesmas opiniões de Veronesi. A manutenção da
língua seria veículo primordial para a manutenção da italianidade. Na ótica es-
calabriniana o binômio fé/italianidade era condição essencial para a sobrevi-
vência das características do grupo. Assim, muitas das colônias contavam com
sacerdotes das suas regiões de origem que mantinham a língua e a cultura da
pátria ancestral, não se preocupando com o aprendizado do português. Mas
essa prática em diferentes ocasiões encontrou resistências das autoridades
eclesiásticas locais, como por exemplo, o bispo de Curitiba entre os anos 1904
e 1908, D. Duarte Leopoldo e Silva, que defendia a ideia de que os imigrantes e
seus descendentes deveriam se integrar a sociedade nacional e impôs dificulda-
des para a atuação do clero escalabriniano.
Do ponto de vista econômico, em geral as colônias foram apresentadas
como modestas. Reitera-se que o viajante sempre fazia comparações, fosse com
as colônias do Rio Grande do Sul, a exemplo de Caxias do Sul, colônia bastante
próspera, como as colônias alemãs de Santa Catarina. Tal situação é atribuída
ao isolamento e especialmente às deficiências do sistema de transportes. Se-
gundo Veronese, o maior ou menor desenvolvimento das colônias estaria ligado
principalmente a sua localização e à distância em relação aos principais cen-
tros. Também em relação à antiguidade da fundação, as mais velhas teriam usu-
fruído dos melhores terrenos enquanto as mais novas teriam ficado com terras
mais pobres ou mais distantes da cidade. Outro fator apontado foi justamente o
fato de os Estados receptores não terem investido na formação de uma rede de
estradas e de infra-estrutura que viesse a promover o desenvolvimento regional.
Assim, as colônias que se encontravam em áreas mais distantes estariam su-
jeitas a um menor grau de desenvolvimento. Essa observação tem fundamento,
pois se tratando de uma população majoritariamente camponesa cuja razão de
estar ali se relacionava ao interesse em diversificar a agricultura, percebe-se
que as colônias que rapidamente progrediram foram justamente aquelas que
estavam localizadas mais próximas aos centros consumidores ou em posições
estratégicas, próximas as principais estradas. A localização das colônias pode
ser visualizada no mapa abaixo:

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Fonte: Mappa da Zona colonizada do Estado do Paraná organizado pelo Engenheiro Dr. Fer-
reira Correia, 1927. Arquivo Público do Paraná. M110/Gav. F

No que toca as colônias do Paraná os autores citados descreveram com de-


talhes as impressões sobre os aspectos naturais, geográficos, populacionais,
econômicos e políticos que, com algumas pequenas variações entre eles, com-
partilham das mesmas visões encontradas nos relatos dos viajantes anteriores
e que são típicas do olhar estrangeiro: o encantamento com as belezas naturais,
a exuberância da flora e certo desprezo em relação aos nativos (os caboclos).
Como o que nos interessa aqui é destacar a visão dos mesmos sobre os aspec-
tos étnicos e religiosos da população de origem italiana localizada em Curitiba e
seu entorno, nos concentraremos em tais aspectos.
Das 45 colônias que contava com a presença de italianos no final do século
XIX e início do século XX no Estado foram destacadas aquelas de Água Verde,
Pilarzinho e Santa Felicidade como sendo as mais ricas e prósperas pelo fato
de serem as maiores e estarem localizadas em posição favorável ao desenvolvi-
mento econômico. No caso das duas primeiras, praticamente dentro do quadro
urbano da capital, apesar do progresso dos colonos era lamentada a perda das
características herdadas da pátria mãe bem como o processo de nacionalização
dos hábitos e costumes devido aos contatos mais estreitos com a população
brasileira, conforme registrou Veronese (1913, p.335-336, tradução minha) nas
suas impressões:

Percebi muitas vezes lamentar dos italianos respeitosos e conhece-


dores do ambiente, que a nossa colônia de Curitiba e entorno está sob
via de desregramento no que toca a conservação nacional e infelizmen-
te eu mesmo devo constatar a verdade da afirmação. Uma boa parte
dos nossos compatriotas lá residentes são imediata e inteiramente dei-
xados absorver pelo ambiente e podem ser considerados brasilianiza-
dos nos sentimentos e nos costumes9.

Destaca-se que aqui a descrição do autor, registrada quase vinte anos após
a análise de Colbacchini, vinha no sentido contrário daquilo que era almejado
pelo clero escalabriniano. Na visão de Veronesi o processo acentuado de absor-
ção brasileira se relacionaria ao contato mais estreito com a população local e
isso se dava mais intensamente no ambiente urbano. Por outro lado, aqueles
que se encontravam em áreas mais afastadas da cidade, com atividades predo-
minantemente rurais, como era o caso de Santa Felicidade, conservariam me-
lhor os elementos originários da Itália. Aqui podemos bem compreender o por-
quê da valorização de Colbacchini em relação à imigração em colônias. Cusano
(1904, p.105, tradução minha) destacou com certo saudosismo a colônia de San-
ta Felicidade como a mais bela prova daquilo que o imigrante italiano poderia se

9 Ho sentito più volte lamentare da italiani autorevoli e conoscitori dell’ambiente che la nostra
colonia di Curitiba e dintorni, è sulla via del disregramento. Nei riguardi della conservazione
nazionale e purtroppo io stesso ho dovuto constatare la verità dell’affermazione. Una buona
parte dei nostri connazionale colá residenti si sono subito ed interamente lasciati assorbite
dall’ambiente, e si possono considerare come brazilianizzati nei sentimenti e nei costumi.

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transformar.

Queria pode ter a virtude de devolver, com toda a força de seu vi-
brante entusiasmo, a admiração que suscitou em mim a colônia de
Santa Felicidade na primeira vez que a visitei, para fazer conhecer na
Itália o quanto soube e pode operar no Brasil o colono italiano 10.

O êxito alcançado em Santa Felicidade era medido não só pelo desenvol-


vimento da colônia que contava com famílias de agricultores bastante próspe-
ros, artesãos e comerciantes, mas também pelo complexo paroquial construído
(igreja, campanário, casa paroquial, cemitério, e especialmente a escola). No
caso da educação desde 1900 contava com uma escola conduzida pelas Irmãs
do Sagrado Coração de Jesus e frequentada por 150 alunos e que recebia sub-
sídio do governo italiano de 1500 liras anuais. Além da escola mantida pelas
Irmãs Missionárias havia mais duas, cada uma com cerca de 25 alunos cada,
uma conduzida por um mestre italiano e outra por uma professora brasileira.
As colônias de Água Verde e Pilarzinho também possuíam escolas conduzidas
pelas Irmãs do Sagrado Coração com 80 e 43 alunos respectivamente, ensino
italiano e sem subsídio do governo italiano. Na cidade encontrava-se uma escola
mantida pela Associação Dante Aligheri com 36 alunos e subsídio de 1000 liras
do governo italiano. Também existia uma no bairro Ahú mantida pela Sociedade
M.S. Vittorio Emanuele III frequentada por 31 alunos e auxílio de 1000 liras anu-
ais. Fora de Curitiba havia uma na Vila Colombo com 32 alunos e 500 liras de
subsídio e uma última na colônia Virmond com 56 alunos e 500 liras de subsídio
(Cusano, 1904, p.204-207).
É importante destacar que a escola era vista como um dos meios fundamen-
tais para a preservação da italianidade. Nesse caso tinha uma força ainda maior
pelo fato desta ser conduzida por uma Congregação religiosa. O desenvolvimen-
to da colônia que contemplava os aspectos almejados na formação de uma “ci-
vilização paroquial”, ou seja, colonos pequenos proprietários com famílias gran-
des, que mantinham a fé, a língua e a cultura ancestral, organizados em torno da
paróquia levou Scalabrini (In Francesconi, 1973, p.293, tradução minha), após
sua visita ao Paraná, a escrever ao papa Pio X que aquela colônia era o modelo
ideal de colonização italiana.

[...] Tomado abrigo junto aos meus missionários a S. Felicidade. É


esta a colônia modelo: a mais bem ordenada de todo o Brasil. Os mis-
sionários a tiveram em mãos em seu nascimento e, assistida continu-
amente, se mantém cristã, católica, fervente. Ontem comuniquei a um
número enorme de pessoas. Se estende a cerca de 20 milhas ao interior
e esses bons padres são em modo continuo não só para as colônias,
mas ainda em todo o Estado para as missões. Estou a P. último confim
civilizado. O lado de lá é tudo bosques habitados pelos índios selva-

10 Vorrei poter avere la virtù di rendere in tutta la forza del suo vibrante entusiasmo l’ammirazione
che suscitò in me la colonia de S. Felicidade la prima volta che la visitai, per far conoscere in
Italia quanto ha saputo e potuto operare in Brasile il colono italiano.

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gens11.

As palavras de Scalabrini são carregadas de positividade tendo em vista o


enunciatário da carta: o Sumo Pontífice. As atividades dos missionários deve-
riam ser salientadas justamente para mostrar o sucesso da missão entre os imi-
grantes, bem como sua relevância. De qualquer forma a visão do bispo de Pia-
cenza ilustra bem o modelo almejado para as áreas de colonização italiana na
América (ao menos aquelas atendidas pelos missionários escalabrinianos), isto
é, paróquias étnicas com relativo grau de autonomia que preservassem a ita-
lianidade. Cabe destacar que a impressão de Scalabrini sobre Santa Felicidade
é estendida às demais colônias visitadas, mesmo naquelas na qual a situação
descrita não se aplicava de acordo com aquela visão.
As palavras do bispo de Piacenza são escritas em um momento de dificulda-
des da missão escalabriniana no Paraná, principalmente por conta da ausência
de mão de obra para levar adiante o projeto de manutenção da catolicidade
italiana nas colônias. Quando da visita de Scalabrini, o Paraná contava com
apenas três missionários, sendo que um havia chegado há apenas um ano. Nos
anos seguintes a situação melhoraria com a atuação de mais três missionários
tanto que em 1906 a missão contava com seis padres. Mesmo assim os resul-
tados da missão foram apresentados como bem sucedidos, exemplos a serem
seguidos.
Numa visão mais crítica, as colônias mais afastadas da capital foram des-
critas como mais modestas e pobres devido à precariedade de comunicação
(estradas) para o escoamento dos produtos agrícolas, bem como a falta de as-
sistência sanitária. Entre essas colônias foi destacado no relatório de Veronese,
a colônia de Rondinha que é apresentada como um dos núcleos italianos mais
importantes no município de Campo Largo com cerca de 120 famílias. Entretanto
esta é descrita como uma colônia pobre com terrenos não muito férteis. É certo
que aqui a comparação se fazia em relação à Santa Felicidade. Havia uma es-
cola atendida por um mestre italiano. As demais colônias se apresentariam em
condições análogas ou inferiores, a exemplo da colônia Ferraria com cerca de 60
famílias na qual a situação era agravada pelo fato de muitos não serem proprie-
tários, mas trabalharem para os fundos de outros (Veronesi, 1913).
Com essa observação, para ele, a instalação de novas ondas imigratórias
no Paraná não seria aconselhada, pois, os terrenos mais férteis localizados em
áreas estratégicas – próximas a capital – estariam exauridos. O litoral era des-
cartado por causa do clima e do fracasso de experiências anteriores, e os locais
mais afastados não seriam indicados uma vez que sem preparação e orientação
o fracasso da colonização seria quase certo. Por fim, destaca-se o Centro-Sul
onde milhares de poloneses e ucranianos haviam sido instalados e que não era
adequado instalá-los ali junto a estrangeiros.

11 [...]Presi dimora presso i miei Missionarii a S. Felicidade. È questa la colonia modello: la più
ben regolata di tutto Il Brasile. I Missionarii l’ebbero in mano in sul nascere e, assistita
continuamente, si mantenne cristiana, cattolica, fervente. Ieri comunicai un numero stragrande
di persone. Si stende a circa 20 miglia all’interno e questi buoni preti sono in moto continuamente
non solo per le colonie, ma ancora in tutto lo Stato per le missioni. Sono giunto a P. ultimo confine
civilizzato. Al di là è tutto Bosco abitato dagli indii selvagici.

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Os missionários que atenderam os imigrantes que se localizavam em regi-
ões distantes ou que estavam misturados em outras colônias destacaram as
dificuldades de manutenção das práticas ancestrais italianas, especialmen-
te daquelas religiosas, como podem ser notadas nas palavras do missionário
escalabriniano Natale Pigato (Francesconi, 1973, p.71-73), a respeito de seus
dois meses de missão na região de Prudentópolis distante cerca de 200 km de
Curitiba. Segundo o sacerdote o estado de abandono dos italianos, alemães e
poloneses que viviam afastados de suas colônias era gritante. Em geral, eles
não compareciam a missa, raramente praticavam a confissão e a comunhão, a
única preocupação era batizar as crianças que depois não se preocupavam com
o ensino de noções básicas de civilidade e moral cristã e as deixavam crescer
como animais12, passavam de uma união a outra sem se preocupar com o sacra-
mento do matrimônio, não raro se deixam influenciar pelo espiritismo, maçona-
ria e protestantismo, além de serem supersticiosos. Pigato reitera que os mais
solícitos eram sempre os poloneses e alemães enquanto os mais negligentes os
seus próprios conterrâneos. Nas palavras do sacerdote: “Estes últimos quando
vivem longe da Igreja e sem a visita de um sacerdote rapidamente se perdem”
(Francesconi, 1973, p.73).
Com essa descrição pode-se destacar o quanto era importante a organiza-
ção dos imigrantes em colônias sob o controle do clero italiano para a manu-
tenção das práticas e costumes trazidos da pátria ancestral. Da mesma forma o
peso da religião como forma de corrigir as desordens, como bem defendeu Col-
bacchini. Por outro lado, destaca que o fervor religioso não era uma qualidade
natural dos imigrantes. Ao contrário, quando podiam se libertar do sistema de
vigilância e controle imposto pelo clero, o faziam sem pestanejar.

Discursos de superioridade do imigrante

A visão a respeito das colônias italianas espalhadas pelo Brasil Meridional


de fato não era homogênea. No campo social e intelectual enquanto para alguns
teriam se conservado os mesmos caracteres e as mesmas condições que havia
na pátria ancestral, sob outros aspectos teria havido um regresso como con-
sequência do ambiente semi-selvagem13 no qual os colonos viviam. Destaca-se
que o mito da vitória da civilidade, representado pelo imigrante, em um ambien-
te hostil e desafiador se daria graças ao trabalho duro e incansável, mas que
nem sempre era alcançado. Para o sucesso de tal empreitada seria necessário
organização, controle e respaldo financeiro por parte das autoridades nacionais
e também dos países de origem dos imigrantes. Em um contexto colonialista, a
presença imigrante passa a ser entendida como parte da política imperialista,
no caso aqui tratado: italiana, que encontra consonância na visão e nos discur-
sos de outros grupos como alemães e poloneses.
Na visão dos observadores estrangeiros a vitória da civilização sobre a bar-
bárie não se faria com os elementos nacionais, tidos como indolentes e pregui-

12 A expressão é de Pigato

13 A expressão é de Veronese.

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çosos. Aliás, o elemento nacional era muitas vezes representado como obstácu-
lo a concretização da civilidade. O elemento europeu, no caso aqui, o italiano
era apresentado como precioso para o progresso do país, que traria “um tesouro
incalcolável de gênio, de operosidade, de força e de progresso”. Conforme des-
tacou Piero Brunello (1994) a construção da epopeia da imigração, que reiterou
os feitos dos imigrantes por meio da difusão do mito nacionalista e católico da
fronteira, acabou por ofuscar a violência e os aspectos mais agressivos da ação
dos imigrantes (que em algumas situações expropriou/expulsou ou até mesmo
matou nativos indígenas das terras a serem ocupadas) em pról da construção de
uma imagem do imigrante como trabalhador, honesto e devoto.
Essa construção, mitificada nas primeiras comemorações, encontra respaldo
no discurso nacionalista brasileiro que nos meados do século XX estava impreg-
nado pelas noções de raça e pelo ideal de branqueamento que permeavam não
só o discurso das elites nacionais, mas também a visão dos viajantes e missio-
nários. O discurso da superioridade da raça branca veiculado pela Antropologia
Física percebia a mestiçagem como algo negativo. Portanto, a preservação das
características étnicas era entendida como indispensável para a manutenção do
vigor do trabalho que asseguraria a contribuição dos imigrantes no desenvolvi-
mento econômico e social do país. Para Veronesi (1913, p.394, tradução minha)

Se às colônias dos nossos imigrantes se cortam a língua, as tradi-


ções, os costumes pátrios, se destrói em si o caráter da raça, se des-
tróem as virtudes cívicas de trabalho e de atividades, se perdem nas
mulheres aquelas virtudes domésticas e caseiras que são o fundamen-
to de uma sociedade bem ordenada e de próspero futuro14.

Como resultado do desbravamento desse ambiente hostil e atrasado a pai-


sagem e a atmosfera iam se transformando com a materialização do Vêneto
rural em meio às igrejas, capitéis, campanários, as bodegas, a centralidade do
sacerdote na vida comunitária, os encontros de domingo na praça ou na igreja
como momento de sociabilidade. Mas esse processo não era isento de percal-
ços. O isolamento, a deficiência de instrução e o novo ambiente favorecia a ma-
nutenção da superstição bem como o desregramento da família e até mesmo
a adoção de comportamentos dos nacionais (caboclos) tão desprezados pelos
europeus.
De fato, a visão dos observadores italianos aponta para dois elementos im-
portantes que merecem ser destacados: a comparação com a colonização ale-
mã, cujo progresso de dava, sobretudo, por conta da preparação da colonização
e de sua manutenção com capital alemão, bem como da importância atribuí-
da à escola. No olhar de viajantes de diferentes nacionalidades que passaram
pelo Brasil Meridional, os alemães eram comumente apontados como modelos
de laboriosidade e da mostra do progresso por meio do trabalho. Os italianos,
ao invés, eram mais pobres, vieram com poucos recursos e praticamente não

14 Se alle colonie dei nostri immigrati si tolgono la lingua, le tradizioni, i costumi patrii, se distrug-
ge in essi il carattere della razza, si distruggono le virtù civili di laboriosità e di attività, si perdono
nelle donne quelle virtù domestiche e casalinghe che sono il fondamento di una società bene
ordinata e di prospero avvenire.

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recebiam suporte do governo italiano. Assim o lento progresso estaria ligado ao
fato de as colônias terem sido deixadas ao abandono sem escola e sem ajuda
(Veronese, 1913, p.393). Na descrição de Veronese, faltava maior empenho do
governo italiano para a manutenção dos súditos da Grande Itália no exterior.
Aliás, uma ideologia que ganhava peso naquele contexto.

Considerações finais

O olhar dos observadores italianos que visitaram as colônias aponta para


impressões diversas, não comungando de um olhar homogêneo a experiência
migratória. Conforme destacou Mary Anne Junqueira é impossível encontrar
homogeneidade nos relatos de viagens, pois estes são constituídos a partir de
propósitos distintos: viagens oficiais (governamentais), científicas, pessoais e
aqui incluímos também religiosas como os registros de Colbacchini. Entretan-
to, algumas características são comuns. Os três textos estudados foram unâni-
mes na visão negativa dos nacionais, bem como o destaque para o trabalho e a
operosidade dos imigrantes que, com a instalação em locais adequados e com
supervisão necessária, poderiam superar as dificuldades e trazer uma contribui-
ção imprescindível para o desenvolvimento e progresso do Paraná.
Essa visão positivada dos imigrantes refere-se a um momento em que ganha
força na Itália uma opinião favorável a imigração para o Brasil. Se até então o
governo italiano havia feito quase nada para regulamentar a saída de seus com-
patriotas, no final do século XIX e início do XX a situação havia se modificado.
A Itália estava sendo há algum tempo beneficiada pelas remessas financeiras
provenientes dos súditos no exterior (Constantino, 2012, p.313) e diante da na-
turalização em massa efetuada pelo governo brasileiro, haveria necessidade de
acompanhá-los mais de perto sob o risco de perder essas remessas. Por outro
lado, há também a questão da italianidade. A migração em massa de italianos
que, num primeiro momento, foi vista pelas autoridades como uma saída para
resolver a questão do desemprego e do excedente populacional, num segundo
momento foi ressignificada. A grande massa de desempregados que buscavam
no além-mar alternativas de sobrevivência passou a ser vista dentro de uma
ótica imperialista como súditos da Grande Itália no exterior. Anos mais tarde tal
essa visão será gerida e desenvolvida pelo Estado fascista dentro de um quadro
nacionalista extremado.
Os relatos dos viajantes analisados nesse artigo trazem diferentes elemen-
tos que, em geral, procuraram positivar a experiência imigratória e o relativo
sucesso dos italianos no exterior, embora críticas também estejam presentes.
Devemos ter em mente que tais textos foram publicados na Itália, portanto dire-
cionados a um público maior para fazer conhecer as experiências de seus con-
terrâneos em um momento de construção do nacionalismo italiano.
A imagem do imigrante pobre que fugia da situação de penúria e miséria é
transformada na figura do colonizador que venceu o ambiente selvagem e pros-
perou. Assim, os discursos veiculados na maioria das vezes ressaltam as contri-
buições dos imigrantes para o progresso e o desenvolvimento dos lugares onde
se estabeleceram, no caso o Brasil Meridional, e que esse progresso, econômico

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e cultural, se dava pelo espírito empreendedor, pela capacidade de adaptação,
pelo esforço e principalmente pela manutenção de práticas herdadas da pátria
ancestral. Entretanto, para que tais práticas se mantivessem, seria necessário o
empenho e a atenção das autoridades italianas, tanto do Estado como da Igreja.

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____________________
Recebido: 10 maio, 2017.
Aceito: 11 jun., 2017

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Emigração e Imigração Espanhola
para o Brasil: Política, Demografia
e Especificidades De Um Grupo
Étnico
Emigration and Spanish Immigration to Brazil:
Politics, Demographics and Specificities of an Ethnic Group

Vanessa Martins Dias1

Resumo
O artigo faz uma análise acerca da imigração espanhola para o Brasil, levando em
consideração fatores de expulsão, que fizeram com que milhares de espanhóis
deixassem seu país de origem e fatores de atração, como o subsídio da viagem
por parte do governo brasileiro, por exemplo. Sob essa perspectiva, a análise abar-
ca questões econômicas e demográficas que influenciaram a Espanha e o Brasil
diante do ato de emigrar e imigrar.

Palavras-chave: emigração, imigração, Espanha, Brasil, política.

Abstract
The article analyzes Spanish immigration to Brazil, taking into account expulsion
factors that caused thousands of Spaniards to leave their country of origin and
attraction factors, such as the subsidy of the trip by the Brazilian government, for
example. From this perspective, the analysis covers economic and demographic
issues that influenced Spain and Brazil in the face of emigration and immigration.

Keywords: emigration, immigration, Spain, Brazil, policy.

1 Mestre em História pela Unesp, com dissertação intitulada “Inserção às Avessas: a imigração
espanhola em Franca (1900-1950)”. Atualmente é historiadora da Fundação Pró-Memória de São
Carlos, atuando principalmente na pesquisa histórica e curadoria de exposições do Museu de São
Carlos e do Museu de Pedra “Tinho Leopoldino”. Membro do Conselho Municipal de Defesa do Pa-
trimônio Histórico, Artístico e Ambiental de São Carlos - COMDEPHAASC, do Conselho de Política
de Acervo do Museu de São Carlos e Representante Regional do Sistema Estadual de Museus -
SISEM

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O ato de emigrar e imigrar tem, além da mudança territorial, implicações so-
ciais, culturais, econômicas e políticas. Fatores de expulsão e de atração contri-
buíram concomitantemente para que milhares de espanhóis escolhessem o Brasil
como seu novo território de morada. O artigo pretende, sob essa perspectiva, ana-
lisar tais fatores e, ao mesmo tempo, apontar como o deslocamento de um grande
contingente populacional contribuiu para a receita econômica dos países e ainda
causou impactos demográficos tanto no Brasil quanto na Espanha.
A imigração europeia para o Brasil, mais especificamente para o estado de
São Paulo, que recebeu grande parte desse contingente populacional, sofreu além
dos impactos econômicos, já que o principal intuito da imigração era a substitui-
ção da mão de obra diante da abolição da escravatura, impactos sociais, culturais
e populacionais. O final do século XIX e início do XX são marcados pelo grande
afluxo de imigrantes de diversas regiões da Europa, tendo como grupos predomi-
nantes os italianos, portugueses e espanhóis.
As políticas governamentais acerca da imigração para o Brasil não primavam
apenas pelo aspecto econômico da reposição de mão de obra, mas também usa-
ram de mecanismos para selecionar o imigrante ideal, para que esse fizesse parte
da população brasileira2. Nesse aspecto, a “raça”3 branca foi escolhida e, apenas,
o europeu seria capaz de corresponder às necessidades de modernização e civi-
lização que faziam parte do projeto de constituição desse novo modelo de Estado
brasileiro4. Essa questão está atrelada à ideia de branqueamento da população
brasileira que permeou a política imigratória, sendo a imigração uma possível so-
lução para os

males do país e condição necessária para instituição de uma nova


configuração social dignificadora do trabalho, que teria como conseqüên-
cia a prosperidade material, solucionando o problema da falta de braços,
e moral, neutralizando o ócio dos livres nacionais e os efeitos nocivos da
escravidão5.

2 RIBEIRO, Mariana Cardoso dos Santos. Imigração e expulsão: mecanismos para a seleção
de estrangeiros no Brasil. In Seminários, Arquivo do Estado: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2003, p.67.

3 O termo “raça” será usado para demonstrar como as diferenças culturais eram denominadas
no início do século XX, quando essas mesmas diferenças eram designadas em caráter biológico,
mais especificamente fenotípicas, que seriam capazes de “denunciar” o caráter humano. O termo
aqui se enquadra justamente na busca de uma “raça” capaz de regenerar a população brasileira
por parte do governo, que inseriu, nesse contexto, o imigrante europeu. Em contrapartida o termo
também era recorrente entre os imigrantes espanhóis que buscavam valorizar sua “raça”, já que
essa terminologia era recorrente nesse período. No entanto, atualmente essa terminologia caiu em
desuso e os estudos antropológicos se abarcam do termo etnia, que abrange à língua e cultura de
determinado povo ou região.

4 RIBEIRO, op cit, p.67.

5 GONÇALVES, Paulo César. Mercadores de Braços: riqueza e acumulação na organização


da emigração européia para o Novo Mundo. Tese de doutorado apresentada ao Programa de
Pós-graduação da Universidade de São Paulo - FFLCH, 2008, p. 145.

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Associados à necessidade de suprimir a carência de mão de obra no país,
principal preocupação dos fazendeiros, os imigrantes eram, aos olhos do governo,
a possibilidade de levar o país a atingir o progresso, a modernidade e a civilida-
de. Para tanto, partiram também de teorias raciais originárias da Europa e dos
Estados Unidos, cujas premissas detinham em seu discurso o branqueamento da
população; ou seja, a miscigenação levaria a uma população mais clara e a imi-
gração europeia para o Brasil, consequentemente, auxiliaria na predominância de
brancos6. Assim, a vinda desses imigrantes europeus ocasionou mudanças econô-
micas, sociais, culturais e demográficas.
De acordo com Levy, a contribuição da imigração para o crescimento da po-
pulação variou de acordo com o período de chegada e com a nacionalidade. No
período de maior afluxo imigratório, entre os anos de 1890 e 1920, a contribuição
para o crescimento populacional do país chegou a 11%7. A imigração teve uma
influência indireta no crescimento da população brasileira através da fecundidade
das mulheres estrangeiras, uma vez que a taxa mais alta delas estaria ligada às
mulheres italianas e a mais baixa às alemãs8. Sendo assim, pode-se afirmar que
a influência desses imigrantes no crescimento da população brasileira “tenha ope-
rado diferencialmente, de acordo com as áreas de maior concentração de imigran-
tes, de cada nacionalidade”9.
A expansão da cafeicultura no Brasil, associada aos problemas econômicos e
sociais pelos quais a Europa passava em decorrência da crise agrária que gerou
miséria e fome, fez com que milhares de pessoas buscassem novos territórios
para viver. O Brasil recebeu um grande contingente populacional, com destaque
aos italianos e espanhóis. Segundo Klein, em termos nacionais os espanhóis re-
presentaram a terceira corrente migratória, mas no estado de São Paulo, ocupa-
ram o segundo lugar10.
Os fatores que condicionaram a vinda desses imigrantes para o Brasil são co-
mumente tratados pela historiografia. A Espanha, no início do século XX, contava
com uma população basicamente rural, de cerca de 18 milhões de habitantes, sen-
do um dos países menos industrializados da Europa11. A falta de perspectivas para
se conquistar novas terras, associada à crise que se estendeu entre os anos de
1880 e 1910 em consequência da praga “filoxera” que prejudicou toda a região da
Andaluzia oriental (Almeria, Málaga, Granada e Cadiz) e arruinou uma massa de

6 Ibid, p. 144- 145. Nesse caso o autor faz referência a Thomaz E. Skidmore na obra Preto no
Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.

7 LEVY, Maria Stella Ferreira. O papel da migração internacional na evolução da população


brasileira (1872-1972), Revista de Saúde Pública, São Paulo, 2009, P. 68. Disponível em www.
scielo.br . Acessado em 13 de Junho de 2009.

8 Ibid, p.68.

9 Ibid, p.68.

10 KLEIN, Herbert S. A imigração espanhola no Brasil. São Paulo: Editora Sumaré: FAPESP,
1994.p.35.

11 SOUZA, Ismara Izepe. Espanhóis: história e engajamento. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 2006, p.3.

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camponeses, motivando a emigração12. O governo espanhol, por sua vez, via na
emigração uma das soluções possíveis para amenizar a densidade populacional e
o desemprego. Ao mesmo tempo, evitava-se um levante popular, tão temido pelo
governo e pelas elites espanholas. O ato de emigrar se apresentava como uma
forma de protesto às condições vividas por esses espanhóis13.
A emigração na Espanha tem características específicas. Além da já referida
situação de miséria, os anos finais do século XIX foram tumultuados em consequ-
ência da perda de territórios coloniais, como as Filipinas, Porto Rico e Cuba. Nes-
se período e também no início do século XX, o êxodo aumentou pelo receio de se
ter um filho ou parente convocado para a guerra, sendo esse um grande estímulo
para a emigração clandestina14. Essas questões, por diversas vezes, motivaram
a emigração, seja para territórios geograficamente próximos como a Argélia, até
1895, ou para aqueles que ofereciam incentivos e subsídios, como é o caso do
Brasil.
De acordo com Quintela15 a imprensa espanhola, através de seus periódicos
incentivava e, de certa forma, fazia uma apologia à emigração e ao exílio, exal-
tando as melhorias nas condições dos portos de embarque e nas viagens, ao
mesmo tempo em que se projetava no imaginário popular as grandes chances de
enriquecimento na América. A emigração era incentivada pela intensa propaganda
que se fazia na Espanha, pelo trabalho dos ganchos, homens responsáveis pelo
recrutamento das famílias e, também, pelos subsídios do governo brasileiro que
necessitava de mão de obra nas lavouras cafeeiras.
Sejam os fatores expostos acima de expulsão ou atração, milhares de espa-
nhóis escolheram o Brasil como destino para a consolidação de novos meios de
sobrevivência. Para Martinez, o Brasil não foi o país escolhido maciçamente pelos
espanhóis, ao contrário de outras repúblicas americanas como Cuba e Argentina.
O fato de terem vindo ao Brasil está intrinsecamente relacionado à política imigra-
tória vinculada pelo país entre os anos de 1880 e 193016.

Acreditamos que a política imigratória desenvolvida pelo estado de


São Paulo foi o elemento decisivo, ao passo que os fatores de expulsão
não foram relevantes. A alternativa de emigrar só foi escolhida a partir do
momento em que se tornou possível fazê-lo gratuitamente. Esta foi uma
característica decisiva da emigração espanhola: só iriam para as fazen-
das aqueles que não tinham dinheiro para comprar uma passagem que

12 FALEIROS, Rogério Naques. Homens do café. Dissertação de mestrado apresentada ao


Instituto de Economia da UNICAMP, 2002, p 79.

13 SOUZA, op cit, p.4-5.

14 CÁNOVAS, Marília Klaumann. Hambre de Tierra: imigrantes espanhóis na cafeicultura


(1880-1930). São Paulo: Lazuli Editora, 2005, p.48.

15 CORBACHO QUINTELA, Antón. Os periódicos dos imigrantes espanhóis. In: CONGRES-


SO BRASILEIRO DE HISPANISTAS, 2., 2002, São Paulo. Disponível em www.scielo.br. Acesso:
20 de maio de 2008.

16 MARTINEZ, Elda E. Gonzalez. O Brasil como país de destino para os imigrantes espa-
nhóis. p.239. In Fazer a América, Org. Boris Fausto, São Paulo: EDUSP, 1999.

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lhes permitisse emigrar para a Argentina, o Uruguai ou Cuba17.

Ou seja, sem os incentivos do governo brasileiro a imigração, no caso da Es-


panha, não teria as proporções que teve, uma vez que, por afinidade cultural, os
espanhóis preferiam países como a Argentina, por exemplo. Em contrapartida,
Klein18 ressalta os fatores de expulsão como condicionantes ao ato de emigrar, já
que poucos desejaram de forma espontânea deixar seu país. Saem quando não
têm como sobreviver com seus meios tradicionais19.
Os fatores de expulsão são associados aos fatores econômicos. São as con-
dições econômicas que condicionam a capacidade ou não dos emigrantes de en-
frentar as situações críticas do país. Para Klein três fatores são predominantes
nessa referida questão: a supressão dos tradicionais direitos de acesso à terra,
que, consequentemente, possibilitam o acesso ao alimento; a variação da produti-
vidade da terra, nesse caso, a modernização agrícola e o número de membros da
família que precisam ser mantidos. O crescimento demográfico pressionou o setor
agrícola a atender às demandas alimentares20. Sendo assim,

o aumento da produtividade e a crescente mecanização da agricultu-


ra europeia significaram menor necessidade de mão de obra, exatamente
num momento em que surgia um excedente de força de trabalho. Em
virtude da falta de apoio governamental, a fome passou a ser uma séria
ameaça às populações sem terra ou que possuíam terras limitadas21.

Enquanto Martinez prioriza os fatores de atração, mais especificamente os


subsídios do governo paulista, como determinantes à emigração em massa entre
os anos de 1880 e 1930, Klein ressalta os fatores de expulsão, não deixando de
mencionar a terra como fator de atração para a emigração para o Brasil desde o
período colonial22. No entanto, ao priorizar os fatores de atração como determinan-
tes na escolha do Brasil como novo lugar para sobreviver, deixa-se de abordar a si-
tuação econômica e social pela qual a Europa e, mais especificamente, a Espanha
passavam. Fatores de expulsão e atração foram determinantes para que esses
emigrantes aqui chegassem. É notório que, se não houvesse subsídios, o número
de pessoas teria sido menor, mas ao mesmo tempo se não existissem problemas
sociais, como a questão da fome e do acesso à terra, não haveria motivos para
emigrar.
Os números relativos à quantidade de espanhóis que deixaram seu país e
vieram para a América se divergem. A emigração clandestina era uma possível

17 Ibid, p. 251.

18 KLEIN, Herbert S., Migração Internacional na História das Américas, p.13. In Fazer a Amé-
rica, Org. Boris Fausto, São Paulo: EDUSP, 1999.

19 KLEIN, Herbert S., Migração Internacional na História das Américas, p.13. In Fazer a Amé-
rica, Org. Boris Fausto, São Paulo: EDUSP, 1999.

20 Ibid, p.14.

21 Ibid, p.15.
22 Ibid, p.17. In Fazer a América, Org. Boris Fausto, São Paulo: EDUSP, 1999.

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saída para fugir do serviço militar obrigatório e também se livrar da burocracia pra-
ticada pelo Estado espanhol. No início do século XX, o governo espanhol limitou
o pagamento de 1.500 pesetas de multa aos jovens que emigravam, com o intui-
to de manter no país uma população masculina capaz de defender os territórios
coloniais, ao mesmo tempo, incentivava a emigração da população que não se
enquadrava nesses quesitos23. Além disso, a proximidade com Gibraltar facilitou a
emigração clandestina.

Tabela 1 – Emigrantes espanhóis com destino ao Brasil

Indivíduos Período
3.914 1882 - 1884
11.410 1885 - 1889
34.513 1890 – 1894
36.674 1895 – 1899
14.510 1900 – 1904
59.551 1905 – 1909
44.745 1910 – 1914
7.264 1915 – 1919
10.864 1920 – 1924
15.294 1925 – 1929
238.739 Total
Fonte: MARTINEZ, Elda González. O Brasil como país de destinos para os migrantes
espanhóis.In Fazer a América, 2000, p.240.

A tabela 1 se refere aos emigrantes saídos dos portos da Espanha entre os


anos de 1882 e 1929, em números oficiais. Observa-se um aumento na saída
de espanhóis no período de 1890 e 1899, mas o quadriênio 1905-1909 registra
a maior saída, com um total de 59.551 emigrados com destino ao Brasil. Porém,
de acordo com Klein24, 750 mil imigrantes espanhóis, em setenta anos de emigra-
ção, contribuíram para o desenvolvimento da indústria cafeeira e “construção de
uma importante economia agrícola e urbana no Estado de São Paulo”25. A imigra-
ção clandestina deve ser levada em consideração diante disso, além da possível
duplicidade de nomes e informações a respeito dos imigrantes já aqui no Brasil.
Sanchéz-Albornoz afirma que três milhões e meio de espanhóis vieram para a
América, de acordo com fontes americanas, que são superiores às espanholas.
Segundo o autor, por ter havido uma imigração clandestina, por partirem de portos
que não da Espanha e por haver uma duplicidade, como já foi dito, na documen-

23 CÁNOVAS, Marília klaumann. Hambre de Tierra: imigrantes espanhóis na cafeicultura


(1880-1930). São Paulo: Lazuli Editora, 2005, p.58.

24 KLEIN, Herbert S., A imigração espanhola no Brasil. São Paulo: Editora Sumaré: FAPESP,
1994, p.7.

25 Ibid, p.35.

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tação americana26. Desse modo, quantificar esses imigrantes espanhóis torna-se
uma tarefa limitada que não cabe aqui, já que esse não é o principal propósito da
abordagem.
O fato é que a emigração causou impactos não apenas no Brasil, mas também
na Espanha. Segundo Sanchez-Albornoz, a emigração criou um vazio na popula-
ção, afetou a estrutura demográfica, como fecundidade, mortalidade e mercado
matrimonial, apesar de afirmarem que a emigração foi uma válvula de escape de-
mográfica e social, pois freou o crescimento da população e amenizou os conflitos
sociais27. Ao mesmo tempo, “sus ahoros en el Nuevo Mundo dieram lugar a cuan-
tiosas remessas que beneficiaron em primer lugar a la balanza de pagos del país
de origen. La emigracion impulso em alguna medida el crescimiento del sistema
finaciero español”28.
Sob essa perspectiva, a emigração ocasionou o surgimento de um novo negó-
cio, já que havia a disponibilidade de pessoas no Velho Mundo e a necessidade
de mão de obra no Novo Mundo. Esse negócio uniu os dois lados do Atlântico a
partir de uma rede que se fundamentava nas relações comerciais de importação
e exportação29. Mais especificamente, havia agentes de emigração e agências de
recrutamento, instituições públicas, companhias ferroviárias, companhias de colo-
nização, bancos, casas de câmbio e hospedarias30. Através do gráfico 231 se nota
que as remessas passam a ser superiores às emigrações a partir de 1908, período
de grande entrada de imigrantes espanhóis no Brasil. A emigração pode-se definir
como uma empresa, que abarcou um vasto sistema de informação e transporte,
gerando lucros e benefícios32.

Gráfico 2

Fonte: GONÇALVES, Paulo Cesar. Mercadores de Braços: riqueza e acumulação na


organização da emigração europeia para o Novo Mundo, 2008.

26 SANCHEZ-ALBORNOZ, Nicolas. Españoles hacia América: la emigración em masa, 1880-


1930. Alianza Editorial, S.A., Madrid, 1988, p. 18.

27 Ibid, p.28.

28 Ibid, p.28.

29 GONÇALVES, Paulo Cesar. Mercadores de Braços: riqueza e acumulação na organiza-


ção da emigração européia para o Novo Mundo. Tese de doutorado apresentada ao Programa
de Pós-graduação da Universidade de São Paulo - FFLCH, 2008, p. 417.

30 Ibid, p.418.

31 Rui Pedro Esteves; David Khoudour-Castéras. A Fantastic rain of gold: european migrants
remittances and balance os payments adjustment during the gold standard period. Universidad Ex-
ternado de Colombia; University of Oxford (working paper), 2007, p.40-41, In GONÇALVES, Paulo
Cesar. Mercadores de Braços: riqueza e acumulação na organização da emigração européia
para o Novo Mundo. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação da Univer-
sidade de São Paulo - FFLCH, 2008.

32 SANCHÉZ-ALBORNOZ, Nicolas, Españoles hacia América: la emigración em masa, 1880-


1930. Alianza Editorial, S.A., Madrid, 1988, p. 17.

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No caso brasileiro, a própria criação da Sociedade de Imigração em 1886 elu-
cida a importância da imigração para a elite paulista e para o governo brasileiro.
Essa Sociedade Promotora de Imigração voltada para os interesses dos cafei-
cultores, atrelada ao governo provincial, foi capaz de gerar um extraordinário au-
mento da riqueza pública e particular no Estado até 1895, quando se desfez e a
Secretaria de Agricultura passou a cuidar de parte do programa33.

A política imigratória deve ser entendida nesse contexto. A elite pau-


lista não via a Sociedade Promotora como um grupo de interesse privado
usando subsídios estatais para beneficio exclusivo de um segmento res-
trito do corpo político. Pelo contrário era uma extensão do ramo executi-
vo, um aparelho administrativo especial, estabelecido em circunstâncias
críticas, para servir a um propósito extraordinário34.

Com o fim da escravidão, houve a necessidade de substituição da mão de obra


escrava e, naquele contexto, surgiu a inserção do trabalho livre do imigrante nas
lavouras de café do estado de São Paulo. As transformações ocorridas no Brasil,
mais especificamente no estado de São Paulo, condicionaram o êxito na vinda
desses imigrantes. O desenvolvimento da cultura cafeeira, a introdução das linhas
férreas, o crescimento do mercado interno, o fim da escravidão e da Guerra do
Paraguai, bem como a implantação da república, foram aspectos importantes no
que diz respeito ao estabelecimento de imigrantes na já referida região.

33 HOLLOWAY, Thomas H., Imigrantes para o café. São Paulo: Paz e Terra, 1984, p.67-68.

34 HOLLOWAY, Thomas H., Imigrantes para o café. São Paulo: Paz e Terra, 1984, p.67.

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A partir de 1884, o governo passou a se preocupar com a possibilidade do
trabalho imigrante nas lavouras de café. Nesse dado momento, foi aprovada a lei
que proporcionava o pagamento das despesas da viagem transatlântica de todos
os imigrantes que se dedicassem à agricultura35. Antes mesmo da abolição, já
havia a preocupação com a substituição da mão de obra nas lavouras de café.
Entre os anos de 1889 e 1900, perto de 878 mil imigrantes chegaram à Província
de São Paulo36. O incentivo à imigração europeia, tanto do governo quanto da elite
cafeeira assumiu o ideal de que só o europeu, sendo branco, poderia auxiliar a
nação em sua modernização e civilidade37, ou seja, o discurso da substituição do
trabalho escravo pelo do imigrante europeu era permeado também pelo discurso
da superioridade racial.

Tabela 2 - Principais Grupos de Imigrantes Vindos Para o Brasil

Total Japoneses Espanhóis Portugueses Italianos Período


4.420.890 100.653 155.579 1.341.926 1.490.364 1820 - 1930
5.601.376 248.007 717.424 1.790.314 1.629.249 1820 - 1972
Fonte: Adaptação de Maria Stella Ferreira Levy, O papel da migração internacional na
evolução da população brasileira (1872 – 1972), Revista de Saúde Pública, São Paulo,
Vol. 8, p.74, tabela 2.

Através da tabela 2, percebemos que os espanhóis correspondem ao terceiro


maior fluxo de imigração europeia para o Brasil e segundo no estado de São Pau-
lo. Vieram principalmente até os anos de 1930 e após a Segunda Guerra Mundial,
estimulados pelo desenvolvimento da economia cafeeira e pelas guerras na Euro-
pa38. Grande parte desses espanhóis já havia trabalhado no campo, eram os mais
rurais entre os imigrantes europeus, não se dando tão bem nos negócios, comér-
cio e indústria, se comparados com os italianos e portugueses39.
A trajetória do imigrante espanhol se difere do italiano, uma vez que a imigra-
ção espanhola é uma imigração tardia. O imigrante espanhol destinou-se a substi-
tuir o imigrante italiano que retornava ao seu país ou que deixou de vir para o Brasil
no início do século XX40 diante da proibição da imigração italiana subsidiada pelo
governo brasileiro, a partir do Decreto Prinetti de 1902, que provocou a queda na

35 KLEIN, Herbert S., A imigração espanhola no Brasil. São Paulo: Editora Sumaré: FAPESP,
1994, p.16.

36 Ibid, p.17.

37 RIBEIRO, Mariana Cardoso dos Santos, Imigração e expulsão: mecanismos para a sele-
ção de estrangeiros no Brasil. Seminários, Arquivo do Estado: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2003, p.67.

38 KLEIN, Herbert S. A imigração espanhola no Brasil. São Paulo, Editora Sumaré: FAPESP,
1994, p.35.

39 Ibid, p.72-74.

40 MARTINS, José de Souza. A imigração espanhola para o Brasil e a formação da força de


trabalho na economia cafeeira: 1880-1930. Revista de História, São Paulo, nº 121, 1994, p. 6.

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entrada de imigrantes italianos no Brasil e o consequente crescimento de imigran-
tes espanhóis a partir dessa data41.
No entanto, a repercussão negativa da imigração ao Brasil fez com que, em
1910, o governo espanhol a proibisse através de decreto, que “incidia apenas
sobre a de natureza gratuita e resultara de relatório do inspetor enviado pelo Con-
selho Superior de Emigração de Madri acerca das condições dos imigrantes aqui
instalados”42. A negociação entre Espanha e Brasil se desenrolou até o ano de
1913. No entanto, essa proibição não teve o desfecho almejado pelo governo es-
panhol, uma vez que esse foi um período de grande entrada de imigrantes no
Brasil. A imigração clandestina deu-se, em grande parte, pelo estreito de Gibraltar.
Segundo Martinez chegava-se a Gibraltar por dois caminhos, aqueles que vinham
das províncias e de Murcia iam de barco até o porto Mayorga, já os do interior da
Península viajavam de trem até San Roque43. Outro fator condicionante da imi-
gração, subvencionada ou clandestina, foi o temor do recrutamento militar para a
Guerra de Marrocos.
O declínio da imigração espanhola para o Brasil, por sua vez, pode estar rela-
cionado ao decreto 3010 de 1938 e também à Guerra Civil Espanhola. De acordo
com Souza44, os espanhóis que lutaram ao lado do republicanismo passaram a
sofrer perseguições políticas do governo franquista que os via como inimigos a
serem “eliminados”. O Brasil a partir de 1940 passou, em contrapartida, a restringir
a imigração espanhola por acreditar que havia uma ameaça comunista nesses
imigrantes que tinham a necessidade de buscar exílio na América. O decreto de
1938, por sua vez, estabeleceu quota de entrada de imigrantes, independente da
nacionalidade, desde que viessem para desempenhar o trabalho agrícola. O arti-
go 30 do referido decreto colocou que a entrada do imigrante seria permitida se o
mesmo não tivesse “conduta nociva à ordem pública, à segurança nacional ou à
estrutura das instituições”45. “Essa ‘legislação intolerante’ está intimamente ligada
à presença do imigrante no Brasil, avaliado por sua conduta política ou moral: o
Estado decidia quem poderia entrar ou permanecer no país”46.
A Guerra Civil Espanhola e seus desdobramentos não incidiram apenas no que
diz respeito à entrada de espanhóis no país, mas teve reflexos também na per-
manência ou não desses imigrantes no país. As suas associações foram alvo de
perseguição durante a guerra civil, quando em 1937 foi determinado pelo governo

41 HOLLOWAY, Thomas. Imigrantes para o café. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984, p. 72-73.

42 CANOVAS, Marília Klaumann. Imigrantes Espanhóis na paulicéia: trabalho e sociabili-


dade urbana – (1890-1922). Tese de doutorado apresentada à Universidade de São Paulo, São
Paulo: 2007, p.56.

43 MARTÍNEZ, Elda E. González, O Brasil como país de destino para os imigrantes espa-
nhóis. In Fazer a América, Org. Boris Fausto, São Paulo: EDUSP, 1999, p. 243.

44 SOUZA, Ismara Izepe de. Espanhóis: história e engajamento. São Paulo: Companhia Edi-
tora Nacional, 2006, p.21.

45 Decreto 3010 de 1938. ARTIGO 30. parágrafo b.

46 RIBEIRO, Marina Cardoso dos Santos, Imigração e expulsão: mecanismos para a seleção
de estrangeiros no Brasil. Seminários, Arquivo do Estado: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2003. p.69.

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o fechamento das associações espanholas do Estado de São Paulo47. Mesmo que
os espanhóis tenham sido, em certa medida, um grupo de fácil assimilação cultu-
ral e desejável diante do projeto de branqueamento da nação, suas associações
foram alvo de repressão:

a justificativa para a repressão não passava pela questão da raça


e sim pelo ideário político defendido pelos membros de algumas asso-
ciações, dentre as quais, os centros republicanos, de tendência marca-
damente liberal e esquerdista. Além disso, o discurso policial sobre os
espanhóis incidia no fato de que alguns deles estariam exercendo influ-
ência negativa sobre os trabalhadores brasileiros, induzindo-os à prática
revolucionária48.

Após o fim do governo Vargas, a preocupação em relação ao imigrante passou


a ser, mais uma vez, a necessidade de mão de obra especializada para o trabalho
na indústria. A partir de 1945, os decretos do governo federal passaram a se recair
novamente sob a política de imigração. O artigo 2º do decreto nº 7967 coloca a
imigração como necessária à manutenção da composição étnica da população,
assim como a defesa do trabalhador nacional49. Mais uma vez a imigração faria
parte do discurso governamental como solução para o atraso brasileiro, princi-
palmente no que diz respeito ao “Brasil Moderno”, sedento de industrialização e
modernidade, fundamento das políticas econômicas de Dutra, Vargas, Kubistchek,
Jânio Quadros - João Goulart50.
Diante disso, as profissões ocupadas pelos imigrantes espanhóis no período
que se estende do pós-segunda guerra mundial até a década de 1970, variam em
relação ao período denominado “grande imigração” de 1880 a 1930, uma vez que
as condições e as necessidades tanto do Brasil quanto da Espanha, no pós-guer-
ra, são distintas daquelas já mencionadas anteriormente. A Espanha teve uma
trajetória distinta no pós-guerra se comparada às demais nações europeias, pois
esteve fora do Plano Marshal justamente por ter uma posição pró-eixo durante a
Segunda Guerra Mundial. Há que se considerar, no entanto, que a situação econô-
mica não era tão diferente do primeiro período imigratório: havia fome, desempre-
go e o autoritarismo de Franco, consolidado na Guerra Civil Espanhola51.

47 SOUZA, Ismara Izepe de. República espanhola: um modelo a ser evitado. Inventário DE-
OPS. São Paulo: Arquivo do Estado, Imprensa Oficial, 2001, p.41.

48 Ibid, p.50.

49 DOMINGUEZ, Juliana Arantes. A imigração espanhola para São Paulo no pós-segunda


guerra: registros da hospedaria dos imigrantes. Dissertação apresentada ao Departamento de
Sociologia do IFCH – UNICAMP, 2004, p.50.

50 Ibid, p.52.

51 DOMINGUEZ, Juliana Arantes. A imigração espanhola para São Paulo no pós-segunda


guerra: registros da hospedaria dos imigrantes. Dissertação apresentada ao Departamento de
Sociologia do IFCH – UNICAMP, 2004, p.45.

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___________________
Recebido: 17 abril, 2017.
Aceito: 30 abril, 2017.
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¿Podemos hablar de legados
migratorios? El espacio social
transnacional en la migración
histórica catalana en Guayaquil
(Ecuador)1
Can we talk about migratory legacies? The transnational
social space in catalan historical migration in Guayaquil
(Ecuador)

Francisco Javier Mazeres Gaitero2

Resumen
El artículo muestra la conformación de un espacio social gravitante entre Guayaquil
y Cataluña a partir de las prácticas transnacionales que desplegaron los migrantes
catalanes llegados a Ecuador entre mediados del siglo XIX y el primer tercio del
siglo XX, así como sus descendientes. Se infiere además cómo aquellas prácticas
transfronterizas se fueron reificando, conformando un sustrato institucional o
legado migratorio que aún hoy día encarna vínculos amplios y duraderos entre las
sociedades de origen y destino de aquel flujo. La investigación tiene un recorte
etnosociológico e incorpora la exploración de largo recorrido a los estudios
migratorios transnacionales. Por lo que participa reflexivamente en torno a las
transformaciones societales que envuelven a regiones marcadas por la inflexión
de flujos migratorios estables.

Palabras clave: Ecuador; migración catalana; legado migratorio; espacio social;


prácticas transnacionales.

1 El artículo presenta los resultados principales de la tesis “RODA EL MÓN…I TORNA AL BORN:
Vínculos transnacionales en la migración catalana al Ecuador”. Realizada durante el año 2010 para
la obtención del título de magister en Ciencias Sociales, mención en Sociología, de la Facultad
Latinoamericana de Ciencias Sociales, sede Ecuador. La tesis fue asesorada por la Ph.D. Gioconda
Herrera Mosquera y contó con el apoyo de la Universidad Católica de Lovaina (Bélgica). He optado
por presentar el material de un modo sesgadamente teórico, dado que ya se cuenta con un relato
amplio que incorpora el lugar que merece lo empírico. En: http://repositorio.flacsoandes.edu.ec/
handle/10469/7758#.WRSeQ4iGPIU

2 Datos académicos: Licenciado en Filosofía y Ciencias de la Educación (Universidad de Murcia,


España), magister en Ciencias Sociales por la FLACSO (Ecuador) y doctorando en Sociología por
la Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, São Carlos, SP, Brasil. Contacto: javimazeres@
hotmailcom.

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Abstract
The article shows the conformation of a gravitating social space between Guayaquil
and Catalonia based on the transnational practices developed by the catalans
migrants arrived to Ecuador from the middle of the 19th century to the first third
of the 20th century, as well as their descendants. It is also inferred how these
transborder practices were reified, forming an institutional substrate or migratory
legacy that still today embodies broad and lasting links between the societies of
origin and destination of that flow. The research has an ethno-sociological cut and
incorporates the long-term exploration to the transnational studies on migration.
Therefore, it participates reflexively around the societal transformations that involve
regions marked by the inflection of long-standing migratory flows.

Keywords: Ecuador; catalan migration; migratory legacy; social space; transnational


practices.

La migración histórica catalana en Guayaquil en los


estudios migratorios desde la perspectiva transnacional

Cerca de cuatro millones de españoles (Castro y Salazar, 2001) se desplazaron


a las antiguas colonias latinoamericanas durante la denominada “emigración
española en masa a Ultramar” (Sánchez-Albornoz, 1988). Un periodo comprendido
entre las dos últimas décadas del siglo XIX y el primer tercio del siglo XX, definido
como el más vasto y relevante para el estudio de las migraciones españolas
contemporáneas3.
A pesar de la escasez de datos precisos, se constatan saldos migratorios
crecientes de España a Ecuador desde mediados del siglo XIX hasta 1936. Pero
también sabemos que el número de migrantes españoles a Ecuador fue pequeño
si se lo compara con los que se condujeron a otros países americanos. Por lo que
se lo considera un flujo de “segundo orden” (Alou, 2001).
El perfil de estos migrantes apunta hacia jóvenes comerciantes e industriales,
muchos de ellos de origen catalán4, que fueron asentándose principalmente
en la ciudad portuaria de Guayaquil y se dedicaron, sobre todo, al comercio de
exportación e importación y a otros servicios (Alou, 2001). El flujo prosiguió durante
las primeras décadas del siglo XX con mayor apertura a Quito y a otras ciudades
del país, incorporando a religiosos, intelectuales o exiliados tras la guerra civil
española (1936-1939)5.

3 Este flujo formó parte de un éxodo de aproximadamente treinta y cuatro millones de europeos
que entre 1880 y 1914 se desplazaron hacia el continente americano, dejando atrás un contexto
azotado por grandes transformaciones demográficas, económicas y sociales; así como por
constantes conflictos políticos y bélicos (Sallé, 2009).

4 Dentro de las migraciones españolas, la catalana representa un caso particular ya que deviene
un “continuum” desde el siglo XVIII (Sánchez-Albornoz, 1992); avanzándose a otros puntos
peninsulares e igualándose con las migraciones europeas del período (Yáñez, 2006).

5 El Censo de Población de Ecuador de 1950 muestra que, de un total de 23.489 personas

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Una somera revisión de la literatura reciente sobre esta migración española
(Sánchez-Albornoz, 1988; Eiras, 1991; Palazón, 1995; Yáñez, 1994) y catalana
(Segura, 2008; Hurtado y Roca, 2009) a Latinoamérica muestra que se conocen
ampliamente aspectos descriptivos de los flujos; como, las causas, el origen, la
periodicidad, los impactos económicos en los contextos de salida y llegada, el perfil
sociodemográfico de los migrantes o el asociacionismo entre estos6. Sin embargo,
tanto los estudios sobre destinos de “segundo orden” como aquellos orientados
hacia comunidades migratorias a escala subestatal han sido merecedores de una
menor atención. Escasea asimismo la reflexión en torno a estos flujos tempranos
desde el punto de vista de la teoría contemporánea de las migraciones.
En este sentido, desde los años noventa ha emergido un nuevo campo de
teorización sobre los flujos migratorios contemporáneos en las sociedades globales
denominado perspectiva transnacional de las migraciones.
Esta nueva frontera teórica, adecuada al giro empiricista y articulacionista
actual, trata de huir de la óptica monocular predominante en las teorías clásicas; las
cuales concebían los procesos migratorios, de forma unívoca, dentro del espacio
socio-geográfico o “contenedor” de un Estado-nación (Pries, 2002). Mientras que
ahora, la orientación predominante se dirige hacia los corolarios de los procesos
migratorios; estos son, la intensificación de las relaciones sociales a nivel global y
el modo en que estas perforan la escala nacional o los contextos geográficos en
el seno de las cuales se imaginaban acotadas. Trascendiendo de este modo los
estrechos límites del “nacionalismo metodológico” (Wimmer y Glick, 2003).
Este nuevo enfoque da cuenta de la complejidad con la que hoy día deben ser
abordadas las formas dinámicas y procesuales de la vida social. Además, siguiendo
las propuestas de Levitt y Schiller (2004), necesitamos una nueva orientación
que incorpore tanto aquellas intersecciones que se dan entre los migrantes y los
no migrantes como la simultaneidad en las prácticas de estos. Al mismo tiempo,
es conveniente explorar el modo en que estas prácticas gravitan en respuesta a
procesos sistémicos, con momentos de auge y repliegue.
De modo que, haciendo nuestro el amplio alcance de esta perspectiva, nos
vimos estimulados a abordar estas ausencias analíticas respecto a la migración
histórica temprana catalana en Guayaquil. Repensando críticamente las lógicas
espaciales y temporales de aquel flujo e incorporando, por consiguiente, los
siguientes marcos teórico-analíticos. Por un lado, el análisis de los antecedentes
históricos de “larga duración” derivado de los trabajos de Braudel (1949) y, por
el otro, las nociones de capital, espacio social, hábitus y distinción derivadas del
modelo analítico de Bourdieu (2000, 2002)7.
A partir de estas últimas categorías, entre otros trabajos, Ludger Pries (2008)

extranjeras, la comunidad española era la quinta comunidad (con 616 registros), por detrás de
colombianos, alemanes, italianos y estadounidenses.

6 El asociacionismo de corte étnico adquirió enorme pujanza entre los migrantes españoles,
facilitando un proceso de inserción en los contextos de llegada; ya que aunaban elementos de las
sociedades de origen y destino, a la vez que definían una identidad común del colectivo (Alted,
2006).

7 Bourdieu utiliza la teoría del espacio social para explicar cómo el mundo social está sujeto a
lógicas de estructuración basadas en principios de diferenciación social y reproducción.

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desarrolla el concepto de espacios sociales transnacionales; como la condensación
de las relaciones sociales transfronterizas a la luz de la teoría del capital social
bourdieuana. La transmigración, al concentrar todos aquellos desplazamientos
recurrentes y circulares entre las sociedades de origen y llegada en un continuo
intercambio de personas, bienes, símbolos e información, va más allá de la hibridez
espacial. La presencia de prácticas sociales densas y duraderas se convierte,
más bien, en un estado y forma de vida permanente para los migrantes (Pries,
2002; Guarnizo, Portes y Haller, 2003), de los que emergen estos nuevos espacios
sociales transnacionales.
Queremos enfatizar, además de la histórica, la cualidad dinámica de aquellas
prácticas transnacionales. Por lo que elegimos analizar la presencia de vínculos
y prácticas por sobre la de redes, dado que aquellas expresan mejor la dinámica
humana en que se producen.
Finalmente, con la noción de “legado migratorio” que introdujimos
deliberadamente, se pretende encontrar una expresión adecuada acerca de
cómo las prácticas transnacionales se reifican a lo largo del tiempo, cristalizando
institucionalmente dentro de la dimensión transnacional referida. El concepto intenta
contribuir además a una necesaria articulación pasado-presente; confiriendo un
valor contemporanizador a los estudios migratorios de largo recorrido.
El estudio adoptó principalmente el enfoque etnosociológico (Berteaux, 2005)
con “profundidad histórica” (Fitzgerald, 2006). Dado que nuestro objeto de estudio
quedó constituido por los migrantes y nuestra unidad de análisis fueron sus
prácticas transnacionales, acudimos a una perspectiva multiescalar que transitó
por diferentes niveles de análisis (individual, familiar, institucional y comunitario).
Sin embargo, se priorizó un nivel de análisis micro social que buscó reconstruir
historias de vida familiar a partir de entrevistas biográficas temáticas mantenidas
con descendientes de inmigrantes catalanes, entre la segunda y la cuarta
generación. Por lo que la materia prima con la que trabajamos fue la dimensión
simbólica situada en la memoria familiar diaspórica; al modo en que Connerton
(1989) muestra cómo las sociedades recuerdan.
Asimismo, rastreamos las intersecciones que estas trayectorias transnacionales
han mantenido respecto a un nivel meso institucional; tratando de inferir cierta
relación entre ambas. Las entrevistas se llevaron a cabo, entre los meses de enero
y mayo del 2010, en la ciudad de Guayaquil, y fueron complementadas tanto por
otras realizadas en las ciudades de Cuenca y Quito, como por otros registros
accesorios; como cartas, fotografías, libros familiares de circulación privada, etc.
La tesis, por tanto, pretendió advertir la dimensión transnacional de las
prácticas que mantuvieron los catalanes, referido tanto a mujeres como a hombres
de origen catalán, que migraron a Ecuador desde mediados del siglo XIX al primer
tercio del siglo XX. Con el objeto de advertir en aquellas la conformación de un
espacio social transnacional propio entre estas dos sociedades marcadas por una
migración pendular de larga duración.
Para explorar la simultaneidad en las prácticas transnacionales, el estudio
transitó (capitulado) desde el nivel propiamente institucional hacia las historias
de vida familiar, como instituciones de tipo parental y estabilizadoras del orden
social. Se pasó a abordar posteriormente las formas cambiantes que las prácticas
desplegaron, poniendo especial énfasis a las estrategias de acomodo y reproducción

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social que aquellas encarnaron. Finalmente se hizo una revisión conclusiva sobre
los principales hallazgos del estudio.

Barcelona Sporting Club,… de Guayaquil:


El legado migratorio institucional

Probablemente uno de los aspectos más reconocibles de la comunidad


catalana migrada y residente en Guayaquil tiene que ver con su presencia
institucional. La condición migratoria parece haber disparado desde un inicio un
rango de imaginarios identitarios respecto a origen que iría derivando hacia un
asociativismo extraterritorializado de base civil. Emergieron entonces un conjunto
de instituciones que reprodujeron e instrumentalizaron el sentido de pertenencia,
más allá de las fronteras geográficas (Ver Tabla 1).
Estas entidades, apelando al doble vínculo, fueron adoptando una variedad
de expresiones tipo club social, instituciones de beneficencia y apoyo mutuo,
asociaciones comerciales y mercantiles, entre otras, que aún hoy perduran en
Guayaquil y otros puntos del país. Por lo que dan cuenta de la densidad con la
que aquellos migrantes desplegaron sus vínculos con origen. Encarnando una
diversidad de prácticas transnacionales y contemporaneizando, a su vez, la huella
migratoria catalana en la ciudad portuaria.
La existencia y recreación de los vínculos con origen cumplió además la función
de servir como instrumento de integración social entre migrantes, en momentos en
que la ciudadanía exterior no era una prioridad para el Estado o las comunidades
de referencia. Sin embargo, estas instituciones fueron modificando su perfil con
el paso del tiempo, orientándose hacia el fomento de la integración hispano-
ecuatoriana a través de actividades socioculturales (Castro y Salazar; 2001).
Entre las instituciones de nuevo cuño, el Casal Catalá de Guayaquil, la más
notable representación del asociacionismo de base étnica para la descendencia
catalana en la ciudad, sigue buscando estrategias para fortalecer los vínculos de
estos con Cataluña. Lo que, entre otras cuestiones, expresa las transformaciones
histórico políticas que han sucedido en ambos lados del vínculo, dado que encarnan
los esfuerzos del Gobierno autonómico catalán para crear una ciudadanía nacional
extraterritorial referenciada, a partir de estos centros de base cultural o étnica, en
un escenario global pos estatal.
La presencia de estas instituciones que podemos considerar, por tanto,
conformadoras de un “legado migratorio” de alcance transnacional, sirve para
explicar cómo los vínculos desplegados por los migrantes han resultado ser un
sustrato adecuado para ampliar los lazos transnacionales, públicos y privados,
entre estos dos contextos. En realidad parecen haber contribuido y ser, al mismo
tiempo, el efecto de un espacio social transnacional, instituido y dinámico, entre
Guayaquil y Cataluña.
Por lo que asumimos, con base empírica, la presencia de estos “legados
migratorios”; esto es, un repertorio de instituciones sociales a través de las cuales
los migrantes y los no migrantes han desplegado relaciones de intercambio
material o simbólico duraderas entre las sociedades de origen y destino de aquel

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flujo migratorio. Por lo que han terminado desempeñando un importante papel en
los procesos de reproducción de esta comunidad transmigrante.

INSTITUCIONES DE DOBLE VINCULO PRESENTES EN GUAYAQUIL8


AÑO DE AMBITO DE
INSTITUCION MISIÓN/OBJETIVOS
FUNDACIÓN ACTUACION
Sociedad 1883 Mantener la identidad Sociocultural
Española de española e integrar al
Beneficencia y inmigrante a los círculos
Socorro Mutuo9 sociales locales
Cámara Oficial 1920 Fomentar el desarrollo de Económico
Española de las relaciones comerciales
Comercio del entre España y América
Ecuador10
Barcelona 1925 Club de futbol Deportivo
Sporting Club
Sociedad de 1950 (a) Realizar obras de Sociocultural
Damas de beneficencia en beneficio
la Colonia de las personas
Española11 necesitadas de la
colonia española y de la
comunidad guayaquileña.
(b) Mantener latentes las
tradiciones, costumbres
y raíces españolas y los
sentimientos de amor y
fidelidad a España. (c)
Fomentar e incrementar las
relaciones culturales entre
España y Ecuador.
Casal Català 1983 Difundir y valorar el conoci- Sociocultural
de Guayaquil12 miento de la cultura catala-
na a través de la colonia y
sus descendientes.
Asociación 1996 Promover negocios en Económico
Catalana-E- los diversos sectores de
cuatoriana interés, con el propósito
de Negocios de fortalecer las relaciones
(ACEN)13 entre Catalunya, Ecuador
y los países de América en
general.

8 Además de las referidas, han existido o existen las siguientes instituciones con prácticas
transnacionales, teniendo un funcionamiento discontinuado o más discreto: el “Centro de Cultura
Hispánica” (1949), el “Instituto de Cultura Hispánica de Guayaquil”, el “Comité de Damas de la
Colonia” (1950), el “Círculo Femenino de Cultura Hispánica” (1953), la “Legión Femenina de
Educación Popular” y la “Fundación Gabriel Vilaseca Soler – GAVISOL” (1999).

9 En la actualidad recibe un apoyo financiero puntual de la Secretaría de Estado de Inmigración


y Emigración de España pero se mantiene fundamentalmente con las aportaciones de los propios

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TABLA 1: (Elaboración propia). 2009.

Entre la calle Guayaquil y la Villa Granollers:


Vínculos e historias familiares

“El 12 de octubre de 1950, en Granollers (Cataluña) organizamos un


acto solemne. Vinieron el Cónsul del Ecuador y las autoridades locales.
Se develó la nueva placa y… ¡Nació la Calle Guayaquil! Desde entonces,
cuando papá se instalaba en Granollers, vivía en la calle Guayaquil
y cuando estaba en Guayaquil ocupaba la «Villa Granollers», en la
«Hacienda Barcelona»” (Montserrat Maspons i Bigas14).

En la reconstrucción de las historias de vida de cinco familias descendientes de


aquellos migrantes catalanes, tomando como referencia la primera generación pero
abarcando hasta cuatro generaciones adultas, emerge visiblemente la tendencia a
desarrollar un proyecto de vida con horizonte transnacional. Una instrumentalización
material o simbólica del vínculo familiar con origen que acomoda el imaginario
familiar de forma recurrente a la doble pertenencia.
El primero de estos casos, familia Maspons, representa la fuerza con que el
vínculo ha pervivido en los migrantes y sus descendientes; así como la tenacidad
con que devino un capital social institucionalizado. El segundo, familia Roura,
registra la pervivencia del vivir transnacional a partir de la trayectoria familiar
diaspórica. El tercer caso, familia Roldós, ejemplifica la ampliación y mutación
de capitales entre generaciones de una misma familia. Un cuarto caso, familia
Costa, demuestra cómo los vínculos transnacionales pueden constituirse como un
recurso pendular para la reproducción social al otro lado del flujo. Finalmente un
quinto caso, familia Puig Mir, apela a las transferencias entre capital económico y
capital social en la trama familiar transnacional.

socios.

10 La Cámara que cuenta con alrededor de 175 afiliados, pertenece a la Federación de Cámaras
Españolas de Comercio de América (FECECA) y sirve de soporte exterior al Instituto Español de
Comercio Exterior (ICEX). Trabaja en estrecha relación con la Oficina Económica y Comercial de
España en Quito.

11 La “Sociedad de Damas” mantiene una estrecha relación con la “Legión Femenina de Educación
Popular” que persigue fines filantrópicos respecto al analfabetismo y la infancia en Guayaquil.

12 El Casal Català de Guayaquil forma parte de las denominadas Comunidades Catalanas del
Exterior (C.C.E.) de la “Generalirat de Catalunya”. Los otros referentes de la comunidad catalana
en el país son el Casal Català de Quito, el Casal Català “Jorge Butiña i Cardona” de Cuenca y el
club de jóvenes o “Fórum Jove”.

13 Inscrita en el Registro de Entidades en el Exterior de la Generalitat de Catalunya, su sede no


se encuentra en Guayaquil sino en Quito, capital administrativa de Ecuador, pero representa los
intereses corporativos de la comunidad catalana en el país.

14 Fundadora del Casal Catalá de Guayaquil en 1983 y presidenta vitalicia del mismo. Hija del
emigrante catalán Pere Maspons i Camarasa, llegado a Guayaquil en 1905.

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Las distintas trayectorias desplegadas por los migrantes catalanes y replicadas
hoy día por sus descendientes, a pesar de que sean casos disímiles, expresan
la pervivencia de las prácticas transnacionales entre estos. En ese sentido, se
observan estrategias iniciales de reproducción social similares a aquellas que eran
desplegadas en origen y, en la mayoría de los casos, articuladas con ellas. Lo cual
explica la prevalencia inicial por las actividades agrícolas extensivas o el comercio
ultramarino. Desde las cuales se fue conformando una burguesía comerciante
exportadora-importadora que iría progresivamente diversificando su actividad
profesional. Manteniendo, eso sí, el horizonte transnacional a lo largo de distintas
generaciones.
Las estrategias de reproducción social que desplegaron los migrantes catalanes
desde un inicio, activando las redes familiares transnacionales como un capital
social de ida y vuelta, fueron reacomodadas a su vez por sus descendientes;
apelando a un sentido de membresía diaspórica arraigado en la memoria familiar.
Lo que traería como resultado la reapropiación duradera del imaginario de la
simultaneidad entre la comunidad de descendientes y la pervivencia de los vínculos
entre estos en el espacio social abigarrado y difuso de la ciudad de Guayaquil.

Del tío en América al pariente en Cataluña:


Las practicas transnacionales de ida y vuelta

“Yo desde que tengo 7 años escucho a Serrat y también me interesa


mucho la historia catalana; aunque yo soy ecuatoriana. Me podré comer
la crema catalana, que me gusta, pero yo como arroz con menestra;
porque ya son cuatro generaciones” (Martha Roldós Bucaram15).

Respecto a las formas que fueron adoptando las prácticas transnacionales es


importante señalar que estas se fueron conformando instrumentalmente, a lo largo
del tiempo y de acuerdo a los distintos medios a su alcance, hasta tornar más
estables y duraderos los vínculos entre las comunidades de origen y destino.
Un análisis diacrónico de las prácticas nos introduce una variada relación de
formas. Entre otras, los viajes al pasado imaginado, las experiencias de retorno,
las promesas de la doble nacionalidad, la construcción de imaginarios sobre la
propia identidad o el idioma, los vínculos familiares recuperados, los aspectos
generacionales, la distinción social o étnica frente a los emigrantes de nuevo
cuño, las variables de éxito entre los distintos flujos, las practicas asociativas o las
relaciones étnicas a través de la institucionalidad publica referenciada. Todas estas
prácticas expresan los distintos modos en que los vínculos han sido reactivados
de acuerdo a factores históricos y sociales, así como de las trasformaciones que
fueron produciéndose en las comunicaciones y las nuevas tecnologías. O por lo
menos en base a cómo estos fueron percibidos e incorporadas, respectivamente,
por los migrantes o sus descendientes.

15 Martha Rina Victoria Roldós Bucaram (Guayaquil, 1963): Economista y política ecuatoriana,
hija el ex-presidente de la República Jaime Roldós Aguilera (1979 y 1981) y nieta del emigrante
catalán Jaime Roldós i Baleta, quien llegó a Guayaquil a finales del siglo XIX.

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En conclusión, lo que nos están mostrando estas mutaciones sobre los
vínculos transnacionales es su perdurabilidad y complejidad. La persistencia de
aquellos y cómo estos nos instan a entender las migraciones más allá de un lazo
mecánico entre origen y destino. El modo variable a través del cual se construyen
y operan las identidades migratorias de largo aliento, moldeando un sentido de
membresía extraterritorial propio, más allá del doble vínculo. Las cuales pueden ser
instrumentalmente recreadas en función de la posición que se ocupa en el espacio
social migratorio transnacional. Y suponen una experiencia de vida transmigrante
que conecta vitalmente a migrantes y no migrantes en las sociedades de origen y
destino de los flujos; e incluso más allá de aquellas.

Intercambio y Crédito: Las estrategias


de acomodo y reproducción social

“Yo me casé con un Guzmán y Laura Guzmán, su hermana, se casó


con mi hermano Santiago. Ellos eran los reyes del cacao y nosotros los
reyes del café. Vivían en Alemania o en Francia e iban a pasar los veranos
a la Costa Azul. De ahí viene la broma: la compañía de mi papá se llamaba
«Intercambio y Crédito» y, como intercambiaron los hijos y tenían mucha
plata, papá se reía de esto…” (Montserrat Maspons i Bigas).

Al momento de rastrear las estrategias de acomodo y reproducción de los


migrantes catalanes y sus descendientes en Guayaquil sobresalen las formas en
que estas familias hicieron un uso estratégico de su capital social transnacional
para insertarse de manera exitosa en los espacios sociales de las élites locales y
regionales en Ecuador.
Sin pretender agotar las formas en que algunos de aquellos migrantes catalanes
consiguieron ascender socialmente y explorando únicamente algunos casos en
que esto sucedió, parece haberse tratado de una confluencia de proyectos entre
las elites criollas locales y los inmigrantes basada en el ethos de la economía de
exportación-importación. Lo que aconteció a partir de una posición ventajosa en el
mercado global dado su capital social transnacional.
Conviene recordar que durante los flujos iniciales los vínculos sociales
transnacionales eran un valor de escasez (Bourdieu, 2000) y requerían, además,
de un mayor esfuerzo, dado el incipiente desarrollo de las comunicaciones y el
transporte. Lo que demandaba un proceso dilatado de reapropiación de los
capitales en juego, mediante la creación de redes transnacionales que permitieran el
mantenimiento de la trama familiar o social. A partir del cual llegarían a conformarse,
consolidarse y reproducirse como una élite local con perfil transnacional16.
Se comprueba de este modo cómo fue precisamente aquel capital transnacional
el que les permitió una articulación entre los proyectos globales y locales. De modo
que establecieron alianzas, en algunos casos matrimoniales, con acaudaladas

16 De la que han emergido figuras reconocidas en distintas esferas de la vida social guayaquileña
o ecuatoriana, como pueden ser el ex presidente de la República, Jaime Roldós Aguilera, o el
actual alcalde de Guayaquil Jaime Nebot Saadi.

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familias locales que revirtieron ventajas significativas para ambas partes. Etas
alianzas parecen estar mediadas, asimismo, por ese imaginario de pertenencia a
una comunidad transnacional simbólica, catalana y guayaquileña. Y articuladas,
hacia adentro y hacia afuera, en un doble juego que implicó tanto el mantenimiento
de los vínculos materiales y simbólicos con origen, como el posicionamiento
estratégico de sus capitales transnacionales en el espacio local.

“Los que vinieron han hecho dinero, lo que pasa con la cuarta
generación es que no ve futuro aquí; y como tienen sus ancestros allá y
su (doble) nacionalidad, dicen -¿porque no voy a ir allá?-”. (Jaime Costa
Costa y Beatriz Lértora de Costa17)

Finalmente fueron rastreadas las prácticas migratorias contemporáneas de


los descendientes de aquella matriz inicial en dirección opuesta, hacia Cataluña,
con la pretensión de inferir si la conformación de vínculos transnacionales en un
contexto migratorio variable, favorece las experiencias reflujo, “de ida y vuelta”, a
partir de la pervivencia de un capital social y cultural transnacional. Se buscaba
además extraer conclusiones acerca de cómo se articula en un escenario desigual
con una fuerte restricción en las políticas migratorias, el capital transnacional de
los migrantes y sus descendientes.
En este sentido, no se encontró una relación significativa entre la histórica
migración catalana a Guayaquil y la más reciente migración guayaquileña a
Cataluña. Sin embargo, las expresiones de cierta opacidad respecto a los casos
existentes dentro de la comunidad transmigrante catalana-guayaquileña, son la
expresión de que, frente a los emigrantes de nuevo cuño, la emigración entre
los descendientes de los migrantes catalanes actúa dentro de la misma lógica de
“distinción” que ha encarnado algunas de sus prácticas transnacionales.
En tiempos de crisis y altas migratorias en dirección opuesta, de Ecuador a
España, la promesa del “retorno” en la comunidad transmigrante ha devenido, en
algunos casos, más que un deseo de reordenar las historias familiares, un factor
de recodificación del capital social y cultural de las familias, a partir de un horizonte
fluctuante18. Lo que ha tomado expresión a través de una creciente aspiración por
la recuperación de la doble nacionalidad que permita unas condiciones mínimas de
movilidad humana. Quedando no siempre tan nítidamente definidas las fronteras
entre la reproducción social y la movilidad referida19.

17 Jaime Costa Costa y Beatriz Lértora de Costa, esposos: Confiteros y descendientes


del emigrante catalán Martín Costa Carbonell, quien llegó a Guayaquil en 1901 y terminaría
regentando la popular “Dulcería La Palma”, con un siglo de tradición confitera, tras comprarlo a
la familia Cabanas Soldevilla, también emigrantes catalanes, quienes arribaron a la ciudad en las
postrimerías del siglo XIX.

18 Como consecuencia de la inestabilidad económica e institucional que vivió Ecuador a finales


del siglo XX y la posterior crisis financiera de 1999, estalló la mayor ola migratoria de la historia
del Ecuador, hacia países como España, Italia, y Estados Unidos. Los ecuatorianos en España
ocupaban con 420.110 personas en el 2008, el tercer lugar de residentes extranjeros en España y
primeros latinoamericana; según datos del Instituto Nacional de Estadística (INE) de España, a 27
de Junio, 2008.

19 La “Ley de Memoria Histórica” , aprobada el 31 de octubre del 2007 para el reconocimiento

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“Roda el món i torna al Born”20: Consideraciones finales

“…es más con los catalanes acá que con los catalanes allá. O sea,
hay un sentido de que, de alguna manera, uno pertenece a una comunidad
no tanto de allá sino de descendientes de catalanes acá”. (Martha Roldós
Bucaram)

A modo de conclusión, resulta congruente comenzar reconociendo la oportunidad


de superar cierta estrechez teorico-analítica al someter casos migratorios de larga
data, como el que hemos abordado, a nuevos artificios teóricos. Esta estrategia,
además de proyectar nuevas miradas sobre aquellos flujos, permite revertir la
falta de dialogo a la que sido sometidas en el ámbito académico las migraciones
“clásicas” y “contemporáneas”.
El uso del lente transnacional proyecta además, como ningún otro enfoque
anterior, la plasticidad cultural y el dinamismo social que caracteriza al fenómeno
migratorio. Por lo que nos permite rastrear y fijar ese conjunto de experiencias
transfronterizas arraigadas en la movilidad humana tiempo antes de que se
comenzara a usar como dimensión de análisis en los ámbitos académicos.
Queda contrastado que la transmigración ha devenido un modo de vivir particular,
trasmitido a lo largo de distintas generaciones de la comunidad transmigrante. Lo
que encarna una condensación de prácticas sociales al modo de un cierto habitus.
Una simultaneidad permanente y duradera que, trascendiendo el doble vínculo
y la bifocalidad, impacta en las trayectorias sociales de los miembros de aquella
comunidad. Consiguiendo asimismo someter a revisión nociones tan arraigadas
en las ciencias sociales como son la identidad, la cultura, la nación y la ciudadanía.
Las prácticas transnacionales, sometidas a patrones de transformación
estructural que implican modos particulares de percepción en el ámbito sociocultural
expresan por su parte, como formula Vertovec (2004), algunos procesos que
conviene resaltar ahora.
Las prácticas operan a través de estrategias de actualización y nominación
constante. Además, han sido progresivamente reificadas con sentido institucional;
habiendo quedado cristalizadas a través de una reapropiación, publico privada,
de gran impacto para los contextos sociales de Guayaquil y Cataluña. Por otro
lado, estas mismas prácticas encarnan un capital simbólico con valor de distinción
(Bourdieu, 2002) que ha otorgado a estos migrantes y sus descendientes una
posición ventajosa en el seno de una economía de exportación-importación en
expansión. Por lo que fueron instrumentalmente usadas como estrategias de
acomodo y reproducción social; permitiéndoles, en algunos casos, conformarse
como una élite local con perfil transnacional.
Resulta posible inferir entonces a partir de tales prácticas, la existencia de

de todas las víctimas de la guerra civil española incluye, en su “Disposición Adicional Séptima”, la
posibilidad de acceder a la nacionalidad a descendientes de españoles migrantes o exiliados, hasta
en un tercer grado.

20 “Rueda por el mundo y vuelve a tu lugar de origen”: Traducción no literal de la expresión


popular catalana acuñada en 1908 por Oleguer Junyent; artista y viajero barcelonés, tras dar la
vuelta al mundo.

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un espacio social transnacional (Pries, 2008), dinámico, que conecta vitalmente
a migrantes y no migrantes en las sociedades de origen y destino de estos flujos,
Guayaquil y Cataluña, y más allá de aquellas. Un espacio social progresivamente
institucionalizado donde lo transnacional se erige como la cualidad primaria del
capital en juego. Siendo además recreado instrumentalmente en función de la
posición social, variable, que la comunidad catalana-guayaquileña ha conseguido
adoptar en ambas sociedades.
Cabe preguntarse si es posible referir además la conformación de estos legados
migratorios que hemos introducido en el estudio y su validez como herramienta
analítica para abordar otros flujos, ya sean estos históricos o contemporáneos.
Estas condensaciones institucionales alrededor de las cuales se reproduce el
vínculo y que, a nuestro modo de ver, forman una herramienta heurística válida
para nominar los acumulados institucionales pasado-presente, de relevancia para
el debate teórico y empírico contemporáneo.
Por su parte, la dimensión histórica permite advertir las intersecciones que
las prácticas transnacionales mantienen con el contexto mundial. El modo en que
son sometidas a fuerzas históricas que reactivan el vínculo entre origen y destino,
acelerando o desacelerándolo. Es más, esta perspectiva usada tiene un singular
valor al articular las exploraciones de largo recorrido con los procesos migratorios
contemporáneos. Sometiendo a una revisión espacial y temporal el modo en que
se están tejiendo las relaciones presentes y futuras en el contexto general de la
globalización. Y facilitando, por ende, la ruptura con la autonomía explicativa con
la que ha sido abordada la movilidad humana.
Desde un punto de vista metodológico, la transmigración permite plantear
cuestiones que hasta la fecha permanecían si no ausentes, si abiertamente
descuidadas en los estudios en torno a estos flujos más clásicos. En ese sentido,
el modelo de investigación histórica de corte etnosociológico incorpora, a partir
de las estructuras simbólicas contenidas en las narrativas de los migrantes y sus
descendientes, la fuerza explicativa que gravita en las exploraciones de largo
recorrido al debate en torno a los procesos societales más contemporáneos.
Poniendo en cuestión una visión de signo estructural, unidireccional y sincrónica
del fenómeno migratorio y situándolo dentro de una perspectiva de transformación
histórica a escala humana.
Además, la transmigración permite delimitar unidades analíticas que
trascienden el contexto nacional; por lo que abona empíricamente la discusión
sobre el nacionalismo metodológico en las ciencias sociales. En eses sentido, es
importante definir como sujeto de observación a los actores, en este caso a los
transmigrantes, más que los flujos, las redes o las comunidades. Estos son los
que tejen y reactualizan el espacio social transnacional a través de sus prácticas.
Las cuales, si bien ocurren en contextos instituidos, son desarrolladas de manera
individual.
La elección deliberada de Guayaquil como marco de estudio, a pesar de no ser
el único posible, otorga la ventaja de disponer de abundante material empírico. Un
material obtenido principalmente por medio de entrevistas biográficas familiares
que nos ha permiten fijar con sutileza ese vivir trasnacional, su plasticidad histórica
y la presencia de elementos en disputa dentro de un espacio social originalmente
complejo, y asimétrico.

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Finalmente, desde un plano más político, la presencia de estas prácticas
transnacionales duraderas expresa una serie de transformaciones societales
de amplio alcance que pueden estar pasándonos desapercibidas bajo una sutil
diacronía. Esta transmigración que por sí misma no puede explicar el conjunto
de transformaciones que están operando en la globalización, nos invita a revisar,
entre otras cuestiones, la forma en que los estados, las naciones o los grupos
étnicos precisan entender el sentido de la membresía, más allá de los límites del
territorio.
Resultaría igualmente interesante profundizar acerca de las interdependencias
que estas nuevas formaciones sociales producen, a diferentes escalas, entre
sociedades marcadas por flujos migratorios de largo aliento. Explorar esta suerte
de bisagra entre el pasado y el presente, significa además no perder de vista las
tensiones que están ocurriendo al hilo de los entrecruzamientos de lo global y
lo local. Por ejemplo, cómo los transmigrantes se están convirtiendo, a partir de
sus prácticas, en agentes de una globalización “desde abajo”, al modo en que lo
señalan Portes, Guarnizo y Landolt (2003). Lo que abriría nuevos interrogantes
desde los cuales repensar, con los procesos migratorios como telón de fondo,
la correlación de fuerzas que imponen las relaciones asimétricas entre capital y
trabajo en el proyecto de globalización económica.
El potencial heurístico con el que cuenta la trasmigración en el marco de los
estudios migratorios contemporáneos, por tanto, nos presenta un campo de acción
desde el que afrontar de una forma más incluyente los procesos transfronterizos
y transculturales vinculados a la globalización, de los que en realidad deriva y a
los cuales contribuye. Y disputando un espacio posible al proyecto dominante de
modernización capitalista que instrumentaliza las fronteras nacionales, culturales
y étnicas a inicios del siglo XXI.

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____________________
Recebido: 11 maio, 2017.
Aceito: 30 maio, 2017.

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O Karate-Do como Dispositivo
da Japonesidade em São Carlos
The Karate-Do as a Device of Japaneseness in São Carlos

Rafael Cava Mori1

Resumo
O presente trabalho relata uma investigação qualitativa sobre a prática do Karate-
-Do, em São Carlos-SP. Considera-se que tal prática veicule valores tipicamente
orientais quando orientada de acordo com a concepção de budo (caminho mar-
cial), e não enquanto apenas esporte de luta. Assim praticado, o Karate-Do obede-
ce a princípios fundamentais de ordem disciplinar, moral, espiritual e estratégica.
Por meio de observações e entrevistas, sediadas em dois dojo para a prática de
Karate-Do em São Carlos, observou-se a presença da perspectiva do budo. Por
fim, fenômenos específicos da imigração japonesa em São Carlos, associados
principalmente à população flutuante universitária, são relacionados à atuação do
Karate-Do como dispositivo da japonesidade.

Palavras-chave: Karate-Do. Japonesidade. São Carlos. Imigração japonesa. Kai-


kan.

Abstract
The present work reports on a qualitative investigation about the practice of Kara-
te-Do in São Carlos, SP, Brazil. This practice is thought to convey typically Eastern
values when oriented according to the concept of budō (the martial way), rather
than just as a fighting sport. When it is so practiced, Karate-Do obeys disciplinary,
moral, spiritual and strategic principles. By means of observation and interviews
conducted in two dojo of Karate-Do in São Carlos, we found the presence of the
budō perspective. Finally, we describe the relationship between certain phenome-
na that are specific to the Japanese immigration in São Carlos and mainly associa-
ted to the city’s floating university population, and the activities of Karate-Do as a
device of Japaneseness.

Keywords: Karate-Do, Japaneseness, São Carlos. Japanese immigration, Kaikan.

Introdução

Quando em 1908 o navio Kasato Maru atracou no Porto de Santos, é possível que
aquelas poucas centenas de agricultores japoneses que ali desembarcavam não
1 Professor adjunto do Centro de Ciências Naturais e Humanas da Universidade Federal do
ABC – Av. dos Estados, 5001, Bangu – Santo André – SP – CEP 09210-580 – e-mail rafael.mori@
ufabc.edu.br

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sonhassem que, cem anos depois, seriam lembrados e considerados como des-
bravadores. As comemorações do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil
trataram de recuperar, dentre registros orais, fotografias e documentos desgasta-
dos pelo tempo, a importância de um ato corajoso: enfrentar incertezas de uma
viagem longa para um país desconhecido, de costumes estranhos e uma língua
difícil.
Naquele momento, entretanto, chegavam ao solo brasileiro não apenas essas
incertezas, mas também o esforço daqueles imigrantes para conquistar e ocupar
seu espaço no novo território. Ao longo das sucessivas ondas de imigração da ter-
ra do sol nascente ao Brasil, no século XX, essa ocupação – talvez oriunda de um
sentimento de autoafirmação ou da necessidade de reverência aos antepassados
e suas tradições – mobilizou-se, majoritariamente, através da cultura.
Onde houvesse se fixado uma colônia de imigrantes, havia certamente um
kaikan (associação), espaço comunitário para o oferecimento de aulas do idioma
materno dos adultos às crianças, a presença de pequenos templos para práticas
religiosas, a organização de eventos com apresentações de danças e músicas tra-
dicionais, a prática da culinária típica e a exposição de arranjos florais, de pinturas,
de caligrafias e de outros objetos artísticos.
Se a finalidade inicial dessas associações era abrigar e encorajar tradições
culturais, em pouco tempo elas acabaram se tornando focos irradiadores de sa-
beres e práticas milenares. O pequeno estudo que aqui apresentamos tem a ver
com esse momento em que as tradições do povo japonês começam, senão a se
imiscuir, pelo menos a se popularizar junto dos brasileiros, mais especificamente
aqueles residentes no município de São Carlos-SP. Interessa-nos uma dessas
tradições: o conjunto das artes marciais japonesas, especificamente, o Karate-Do.
Assim, o texto buscará, inicialmente, apresentar alguns fundamentos e aspec-
tos históricos dessa arte marcial para caracterizá-la, mais tarde, enquanto dispo-
sitivo de japonesidade, conforme os estudos de Lourenção (2011, 2016). Assim,
será possível identificar elementos do Karate-Do que, atuando especificamente
na realidade concreta de São Carlos, colaboram para a “fabricação” de japoneses
ou para, ao menos, aproximar os são-carlenses (nipo-descendentes ou não) de
princípios disciplinares, espirituais e morais associados a uma espécie de ethos
da japonesidade. Para isso, serão analisados dados provenientes de um estudo
de campo realizado a partir de visitas aos dois espaços mais antigos de ensino
do Karate-Do em São Carlos, empregando observações, análises documentais e
entrevistas com seus sensei (professores).

O karate-do como “caminho marcial”

No Japão, diz-se que artes marciais constituem o chamado budo : o pri-


meiro ideograma, (bu), pode ser lido como marcial, referente ao combate; o
segundo, (do), traduz-se comumente como caminho. Ao pé da letra, trata-se
do caminho marcial.
Surgido na ilha de Okinawa, o Karate foi praticado inicialmente como bujutsu
(técnica marcial), até passar por um processo de sistematização, que o converte-
ria em mais um budo, ao lado de outras artes como o Kendo e o Judo. Segundo

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Martins e Kanashiro (2010), a prática do Karate-Do atravessa atualmente um ter-
ceiro estágio, que a aproxima de um “esporte de luta”. Sem relegar a importância
de suas origens enquanto saber espontâneo do povo okinawano, ou de seu atual
processo de esportivização, consideramos que o estágio do Karate enquanto budo
seja o mais importante para a caracterização dessa prática enquanto luta tradicio-
nal japonesa.
Escrita como , a palavra que karate significa, literalmente, “mãos vazias”,
denotando um conjunto de saberes para se fazer do corpo uma arma. Gichin
Funakoshi (1868-1957), um dos principais responsáveis pelo mencionado proces-
so de conversão da arte enquanto bujutsu para budo, defendia que o caractere
pudesse ser lido também como “vacuidade”, compreendendo o Karate-Do como
“caminho que, por meio das mãos, conduz ao vazio” – uma leitura explicitamente
comprometida com a doutrina zen-budista (FUNAKOSHI, 1973, 1994).
Com base não só na sabedoria zen, mas também na visão de mundo morali-
zante confuciana e na ética de reverência aos antepassados consubstanciada no
xintoísmo – um conjunto de sistemas filosóficos, portanto, altamente espiritualiza-
do –, Funakoshi não apenas colaborou para a organização dos treinamentos do
Karate em grupos de exercícios e gradações de práticas, mas também produziu
textos que buscaram constituir uma espécie de corpus canônico de fundamentos,
que os karateka (praticantes) deveriam conhecer e obedecer, caso almejassem
atingir o estado de maestria.
Dentre esse corpus textual, consideraremos com mais atenção o livro intitula-
do Os vinte princípios fundamentais do Karatê: o legado espiritual do mestre, de
título autoexplicativo. Na versão brasileira da obra (publicada em 2005), cada um
desses princípios recebe o comentário de Genwa Nakasone, praticante e grande
conhecedor das artes marciais do oriente. Segundo o comentário de John Teramo-
to na introdução da obra,

[Esses vinte princípios] evidenciam o desejo do mestre de assegurar


que o praticante não fique preso aos aspectos técnicos do karatê – es-
murrar, chutar, bloquear – à custa do lado espiritual da arte marcial. É a
preocupação com os aspectos espirituais, insistia o mestre Funakoshi,
que transforma o karatê, de mera arte marcial, no karatê-do, num Cami-
nho.
Os princípios fornecem uma base de sustentação para os praticantes
de todos os níveis técnicos. Para o iniciante, eles oferecem uma conceitu-
ação global sobre como encarar essa arte marcial. Para o estudante sério
do karatê-do, eles propiciam uma orientação contínua e a oportunidade
de esmiuçar mais profundamente o que já aprendeu.
A leitura atenta e ponderada dos axiomas do mestre Funakoshi le-
va-nos a uma jornada muito mais intensa do que poderíamos esperar
inicialmente. É por esse aspecto que os princípios são importantes, até
mesmo para quem não se dedica a essa prática. Inesperadamente, ques-
tões técnicas são deixadas de lado em benefício de uma investigação
mais profunda do grande Caminho. Todas as atenções se concentram na
acuidade mental e nas condições espirituais necessárias, e nas maiores
possibilidades de treinamento. Enfatiza-se mais a atitude que a postura,

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mais o espírito que a forma (FUNAKOSHI; NAKASONE, 2005, p. 7-8).

Antes de avançarmos com nosso empreendimento de pesquisa é fundamental


lançarmos um olhar para esses princípios, assim redigidos na obra em questão:

1. Não se esqueça de que o karatê-do começa e termina com rei [saudação].


2. Não existe primeiro golpe no karatê.
3. O karatê permanece ao lado da justiça.
4. Primeiro conheça a si mesmo, depois conheça os outros.
5. O pensamento acima da técnica.
6. A mente deve ficar livre.
7. O infortúnio resulta de um descuido.
8. O karatê vai além do dojo [local de treinamento].
9. O karatê é uma atividade vitalícia.
10. Aplique o sentido do karatê a todas as coisas. Isso é o que ele tem de
belo.
11. O karatê é como a água fervente: sem calor, retorna ao estado tépido.
12. Não pense em vencer. Em vez disso, pense em não perder.
13. Mude de posição de acordo com o adversário.
14. O resultado de uma batalha depende de como encaramos o vazio e o
cheio (a fraqueza e a força).
15. Considere as mãos e os pés do adversário como espadas.
16. Ao sair pelo portão, você se depara com um milhão de inimigos.
17. A kamae (posição de prontidão) é para os iniciantes; com o tempo, adota-
-se a shizentai (postura natural).
18. Execute o kata [forma de combate] corretamente; o combate real é outra
questão.
19. Não se esqueça de imprimir ou subtrair força, de distender ou contrair o
corpo, de aplicar a técnica com rapidez ou lentamente.
20. Mantenha-se sempre atento, diligente e capaz na sua busca do Caminho.

Observando-as mais atentamente, nota-se que cada uma dessas 20 afirma-


ções (niju kun) pode ser considerada como pertencendo a uma dentre as seguin-
tes categorias: disciplinar, moral, espiritual e estratégica. No quadro da Figura 1,
apresentamos uma possível classificação dos princípios nessa tipologia, relacio-
nando algumas palavras-chaves tomadas como pistas para tal codificação.
categoria princípios palavras-chaves
descuido, atividade vitalícia,
disciplinar 7, 8, 9, 10, 11, 17, 18
kata,
moral 1, 2, 3 saudação, justiça

espiritual 4, 5, 6, 20 pensamento, mente, Caminho


adversário, posição,
estratégica 12, 13, 14, 15, 16, 19
resultado, batalha, espadas

Figura 1: quadro com a classificação do niju kun de acordo com as categorias


disciplinar, moral, espiritual e estratégico. Fonte: elaborada pelo autor.

Áskesis | v.6 | n.2 | Julho/Dezembro - 2017 | 51-64 54


Os princípios disciplinares apresentam diretrizes para os praticantes no tocan-
te a seu progresso rumo ao domínio da prática. Chamam a atenção para a neces-
sidade de um estado de prontidão para o combate, a importância do treinamento
constante, o reconhecimento do Karate-Do como atividade a ser praticada dentro
e fora do local de treinamento e a apropriação de discernimento e atitudes adequa-
das durante os exercícios.
Os princípios morais buscam elevar a prática da arte marcial à condição de
instrumento para corrigir injustiças sociais e para a manutenção da ordem e da
paz. Tal postura se constitui tanto na esfera individual, através do cultivo da cordia-
lidade, da humildade e do altruísmo, como na esfera social, em que o praticante
buscará se colocar como portador de condutas exemplares.
Os princípios espirituais se relacionam à concepção do Karate enquanto do,
Caminho. Tratam de recuperar seu papel como prática de (auto)esclarecimento,
conseguido através de um processo de esvaziamento que, afinal, levará a um es-
tado de completa paz, deleite e equilíbrio.
Finalmente, os princípios estratégicos apresentam noções de posicionamen-
tos e manobras, visando à conquista da vitória sobre o inimigo, ou da aceitação
e avaliação crítica da derrota. São diretrizes a serem levadas em consideração
antes, durante e após as situações combativas.
A classificação proposta visa apenas a oferecer uma perspectiva para se olhar
para o niju kun, não se colocando como definitiva. Inclusive, essa tipologia apre-
senta insuficiências: por exemplo, um conhecedor do taoismo e de sua influência
sobre o zen poderia alocar os princípios 13 e 17 junto à categoria espiritual, pois é
inegável que, subjacentes a seus enunciados, estão conceitos como a espontanei-
dade das ações não premeditadas e a não-reivindicação que permite a “ascensão
dos ritmos naturais da vida, tanto física quanto espiritual”, características da dou-
trina chinesa do Tao (COOPER, 1985, p. 136).
Apesar disso, essa tipologia nos auxiliará na etapa de análise dos dados, cujo
procedimento de coleta é detalhado na próxima seção.

Metodologia

A pesquisa foi orientada, inicialmente, pela seguinte questão: qual a contri-


buição das artes marciais japonesas, especialmente o Karate-Do, para a cidade
e os cidadãos de São Carlos? Essa pergunta, que mais tarde desdobrar-se-ia em
outras mais específicas, foi explorada a partir de fundamentos do campo da Edu-
cação, cujos resultados expusemos na obra O caminho das artes marciais em São
Carlos (MORI, 2011).
Neste artigo, que se apresenta a partir de uma perspectiva mais afeita ao cam-
po da Antropologia, especificamente no âmbito das questões sobre os fenôme-
nos imigratórios, a questão orientadora foi: é possível considerar o Karate-Do,
conforme praticado em São Carlos-SP, como um dispositivo da japonesidade?
Ressalta-se que o município em questão apresenta particularidades, no que tange
à influência da imigração japonesa sobre suas características socioculturais, que
repercutem no modo como o Karate-Do é praticado e valorizado socialmente por
seus cidadãos.

Áskesis | v.6 | n.2 | Julho/Dezembro - 2017 | 51-64 55


A investigação realizada se insere junto da modalidade qualitativa, o que foi
condicionado pelo próprio objeto de pesquisa. Nessa perspectiva, buscou-se um
proceder investigativo mais comprometido com aspectos descritivos, apostando
na profundidade do conhecimento da realidade, no lugar de uma preocupação
restrita ao estabelecimento de relações lineares de causa e efeito (BOGDAN; BI-
KLEN, 1994; LAVILLE; DIONNE, 1999). Consideramos que a pesquisa caracteri-
za-se também como um estudo de caso, conforme Lüdke e André (1996).
Os procedimentos empregados para a coleta de dados foram:
a) Observações pouco estruturadas, não participantes: visita-
mos duas academias para a prática de Karate-Do, onde acompa-
nhamos os treinamentos, observando elementos como número de
participantes, caráter das atividades desenvolvidas e presença de
objetos decorativos nos dojo. As observações tiveram como guia o
quadro da Figura 1, visando detectar o aparecimento de menções
às categorias em que foram alocados os 20 princípios fundamen-
tais do Karate-Do. Empregou-se esta técnica por ser “conveniente
sobretudo à enunciação de hipóteses ou à explicitação de indica-
dores, hipóteses que serão em seguida verificadas com o auxílio de
abordagens mais estruturadas (LAVILLE; DIONNE, 1999, p. 181).
b) Entrevistas semi-estruturadas: séries de perguntas organiza-
das previamente, e complementadas por perguntas de esclareci-
mento, foram formuladas verbalmente aos sensei das academias.
As entrevistas foram guiadas por quatro questões: i) Quais seriam
os marcos ou principais personagens do início da prática do Kara-
te-Do em São Carlos? ii) Quando a prática do Karate-Do se con-
solida em São Carlos? iii) Quais as características dos praticantes
de São Carlos? iv) Quais as contribuições dessa prática para a
cidade e para seus cidadãos? As entrevistas foram realizadas nas
próprias academias e não foram gravadas por meios audiovisuais,
tendo sido registradas pelos apontamentos do investigador. A aná-
lise desses dados também foi orientada pelo conteúdo do quadro
da Figura 1, isto é, verificamos se o discurso dos sensei estaria
contemplando as categorias em que os princípios do niju kun foram
alocados.
c) Entrevistas não-estruturadas: foram assim considerados diá-
logos entre o investigador e pessoas apontadas, durante as en-
trevistas com os professores, como relevantes para obtenção de
informações complementares. Foram sete os sujeitos que partici-
param dessa etapa, sem rígida demarcação cronológica: muitas
das entrevistas se confundem com diálogos informais entre o pes-
quisador e os sujeitos, já que a maioria deles integra seu círculo de
relacionamentos.
d) Análise documental: foram consideradas fontes documentais
relevantes os folhetos explicativos produzidos pelos sensei, divul-
gando a prática das modalidades oferecidas em suas academias.
O procedimento de análise de conteúdo foi aquele proposto por
Bardin (2016), privilegiando-se a técnica da análise temática.

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Resultados e discussões

Lourenção (2011), em um estudo etnográfico sobre a prática da esgrima japo-


nesa no território brasileiro, conceitua o processo de “fabricação de pessoas”, no
caso, a fabricação de japoneses no Brasil, como o exercício de um controle cor-
poral e comportamental, guiado não necessariamente por uma proximidade real
com o Japão, mas por uma proximidade ideacional. Isto é, o processo de fabrica-
ção remeter-se-ia, no caso, a uma visão idealizada sobre o indivíduo japonês e o
que o definiria (a japonesidade). Reportando-nos ao desenvolvimento histórico do
Karate-Do, diríamos que tais termos se aplicam ao se considerar que o estágio da
prática como budo, que deveria concretizar os princípios do niju kun, representa
justamente tal visão idealizada de uma japonesidade – calcada, mais que em as-
pectos estratégicos do karateka no kumite (combate), principalmente em aspectos
disciplinares, morais e espirituais. Assim, a prática do Karate-Do estaria tanto mais
contribuindo para a fabricação de japoneses, quanto mais tais princípios do niju
kun estivessem representados, valorizados e atualizados no local de treinamento.
Analisando o material e os dados conseguidos junto das academias, percebe-
mos algumas características importantes desses espaços para as práticas mar-
ciais. Apresentamos na Figura 2 um quadro com os resultados da análise do con-
teúdo das entrevistas e dos folhetos explicativos fornecidos pelos sensei.

sujeito material unidade de análise princípio associado categoria


4. Primeiro conheça a si
Treinamento como combate
mesmo, depois conheça os espiritual
consigo mesmo.
outros.
entrevista
Karate como filosofia para o
10. Aplique o sentido do
enfrentamento de situações disciplinar
karatê a todas as coisas.
adversas

“[...] uma arte marcial que vai


além das técnicas de com-
bate que reúne um conjunto
de práticas para disciplinar o
corpo e a mente”; “o prati-
5. O pensamento acima da
cante irá desenvolver por espiritual
técnica.
S1 meio de nossa metodologia,
exercícios de meditação, do-
mínio do medo e do pânico
diante de situações adver-
folheto 1
sas.”

“O indivíduo [...] passa


a respeitar o outro, pois
compreende que todos têm 1. Não se esqueça de que o
limitações e potencialidades. karatê-do começa e termina moral
Não interage com os outros com rei.
como se fosse superior, mas
procura dar o melhor de si.”

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“Valoriza o progresso dos
semelhantes e age de forma
a ser justo em qualquer 3. O karatê permanece ao
moral
lado da justiça.
situação.”

“Os benefícios adquiridos na


8. O karatê vai além do
prática do KARATE esten-
dojo; 10. Aplique o sentido disciplinar
dem-se além do círculo pes-
do karatê a todas as coisas.
soal de relacionamento.”

“O que nós, instrutores,


ensinamos a elas não é a
força bruta, nem a violência,
mas o fortalecimento do
‘eu’ através do treinamento
mente-corpo, o qual dá base
4. Primeiro conheça a si
para o desenvolvimento do
mesmo, depois conheça os espiritual
sentimento de confiança em
outros.
si mesmas e nos demais
folheto 2 seres humanos ao mesmo
tempo em que aumenta
o poder de concentração,
estima pessoal, autocrítica,
cooperação e disciplina”

“[...] transferindo esse apren-


dizado de respeito mútuo 8. O karatê vai além do
disciplinar
para outras situações de sua dojo.
vida cotidiana.”
“luz no fim do túnel”; muitos
dos estudantes que treinou
8. O karatê vai além do
entrevista são destacados em seus disciplinar
dojo.
campos de atuação profis-
sional
“[...] evolução interior [...]” 6. A mente deve ficar livre. espiritual

“O maior objetivo do karate é


20. Mantenha-se sempre
a perfeição do caráter, atra-
atento, diligente e capaz na espiritual
vés da disciplina da mente e
sua busca do Caminho.
folheto 1 do corpo.”

“No mundo inteiro, enfati-


zando o trabalho social com 3. O karatê permanece ao
moral
S2 objetivo de tornar o pratican- lado da justiça.
te útil ao meio em que vive.”

“[...] sua fácil aprendizagem


que estimula a coragem para 10. Aplique o sentido do
disciplinar
enfrentar obstáculos, desper- karatê a todas as coisas.
ta auto-confiança.”

“Em síntese, o Karatê treina-


folheto 2
do corretamente e bem ad-
ministrado dá ao praticante o
domínio sobre si, valorizando
assim o ser humano, para
que o mesmo possa ser útil
à sociedade.”

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Figura 2: quadro com os resultados da análise do conteúdo das entrevistas e
folhetos das academias. Fonte: elaborada pelo autor.
Nas duas entrevistas semi-estruturadas com os sensei (designados pelos có-
digos S1 e S2), ouvimos afirmações semelhantes quando perguntados sobre as
contribuições de suas artes para São Carlos. Todos foram categóricos ao afirmar
que o Karate-Do não se resume a uma educação do corpo para impingir a derrota
ao adversário.
S1, por exemplo, lembrou que a prática do Karate-Do e das artes japonesas
se destina ao treinamento para um combate mais difícil do que aquele travado
contra o outro: trata-se do combate consigo mesmo. Tal afirmação vai ao encontro
do princípio de número 4, conforme Funakoshi e Nakasone (2005), que alocamos
junto à categoria espiritual. S2 usou a expressão “luz no fim do túnel” para se refe-
rir ao Karate-Do, explicitando também o caráter formativo da prática. Fez questão
de lembrar que muitos dos estudantes que passaram por sua academia são hoje
pessoas com destaque em seus campos de atuação profissional e reconhecidas
por sua retidão de caráter. Essa afirmação, por sua vez, ecoa a categoria discipli-
nar, especialmente o princípio 8 (“O karatê vai além do dojo”). Este último princípio
também foi enfatizado por S1, em uma fala sobre a importância que o aprendizado
do Karate-Do exerceu para que pudesse superar situações adversas com sereni-
dade e resignação, no lugar de uma atitude fatalista.
Os princípios espirituais foram muito mencionados nos materiais impressos
analisados. Um dos materiais disponibilizados por S1 traz como título Karate –
Uma arte marcial para o corpo e para o espírito, mencionando benefícios como
autoconhecimento e o autodomínio, este como resultado da prática de exercícios
de meditação (mokuso) no próprio dojo. Em uma das aulas observadas na aca-
demia de S2, este tipo de exercício foi realizado antes do encerramento do treino,
sugerindo que o discurso divulgado no material de divulgação dessas academias
está de fato integrado à rotina de práticas.
Os sensei demonstraram, assim, reconhecer em suas práticas grande parte
dos princípios de caráter disciplinar, moral, espiritual e estratégico. São fundamen-
tos que não podem ser levados em consideração independentemente uns dos
outros; constituem um todo coeso e são igualmente importantes, de acordo com
os textos canônicos do Karate-Do. Não à toa, na enumeração desses princípios
no idioma japonês, cada um deles recebe a palavra hitotsu (em primeiro lugar) no
início de sua redação. Ressalva-se, porém que os sensei entrevistados relegaram
pouca atenção aos princípios estratégicos, preferindo os disciplinares e morais.
Obviamente, os conteúdos sobre posicionamentos e estratégias nunca deixam de
permear os treinamentos orientados, o que foi observado no período de observa-
ções das aulas.
Considerando que todas as categorias de princípios fundamentais foram de
alguma forma mencionadas pelos sensei ou observadas durante as práticas e
nos próprios arranjos dos dojo – por exemplo, em uma das academias foi possível
observar um quadro, exposto em uma das paredes, com a enumeração de uma
versão resumida dos 20 princípios (conhecida pelos praticantes como dojo kun)
– acreditamos que as duas academias investigadas têm condições de promover
aspectos do Karate-Do como budo. Dessa forma, pode-se considerar que, no que
tange às relações entre a japonesidade e o budo (que, recordemos, se referencia a

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uma cosmovisão tipicamente oriental, marcada por categorias como ancestralida-
de, espiritualidade, moral/ética, transcendência, ascetismo, energia, entre outros),
há oportunidades para a “fabricação de japoneses” por meio da prática do luta de
Okinawa em São Carlos.
Se o Karate-Do é praticado e referido como budo em São Carlos, deve-se re-
conhecer que sua prática também se mostra ajustada ao conceito de “esporte de
luta”. Segundo Rufino (2012), assim encaradas, as artes marciais tendem a sobre-
valorizar aspectos como a hierarquia excessivamente rígida no dojo (determinada
pelo pioneirismo, implicando em relações de poder e dominação dos praticantes
mais antigos sobre os mais novos); atitudes conformistas, mecânicas e acríticas,
como se toda e qualquer orientação do sensei devesse ser acatada silenciosa-
mente; e busca obsessiva pela “performance” física, por pontos e progressos no
sistema de graduação em faixas e níveis, e por troféus e prestígio conquistados
em campeonatos.
Nesse sentido, deve-se reconhecer que a atuação do Karate-Do como dispo-
sitivo da japonesidade em São Carlos pode ser menos eficiente, em comparação
com o Kendo atuando no mesmo município, de acordo com o relato de Lourenção
(2011). Segundo este autor, mesmo as situações como os exames de graduação e
os campeonatos – em que a prática dessa esgrima japonesa estaria aparentemen-
te comprometida com aspectos esportivizados – são transpassadas pela noção de
japonesidade. Os campeonatos, por exemplo, são ocasiões em que se reforçam
relações de hierarquia, influência política, legitimação/oficialização perante a prá-
tica do Kendo no próprio território japonês, reafirmação de valores comunais ou
de uma lógica “familiar” (alunos de um mesmo sensei o têm como pai, e se veem
como irmãos, dado que o próprio dojo é encarado como “casa”) – todos fatores
que elevam o campeonato a lócus para a certificação da arte marcial enquanto
ponte entre Brasil e Japão.
Pelo contrário, no Karate-Do, os campeonatos e exames tratam de diluir o
caráter da prática enquanto budo e, assim, não reforçam os elos com a japone-
sidade; assim, não funcionariam eficientemente para disciplinar corpos e mentes
segundo uma noção – repetimos, idealizada – de Japão.
No entanto, a questão não pode ser assim simplificada, resumida à polaridade
budo-esporte de luta. Há outras mediações que atuam especificamente no caso de
São Carlos, associadas a questões demográficas e socioculturais do município, e
que novamente interferem no problema das relações entre Karate-Do e japonesi-
dade.
Os dados coligidos no caderno de pesquisa A presença japonesa em São Car-
los (FUNDAÇÃO PRÓ-MEMÓRIA DE SÃO CARLOS, 2011) atestam que a cidade
insere-se em um período marcado por processos migratórios industriais e univer-
sitários, no que tange à população japonesa ou descendente. Especialmente a
população universitária, por conta da presença das duas universidades públicas
(Universidade Federal de São Carlos e Universidade de São Paulo), é composta
por uma quantidade considerável de filhos, netos e bisnetos de japoneses. Es-
ses nikkey (descendentes de japoneses), como registra o caderno de pesquisa
em questão, buscam se articular com os grupos japoneses locais, especialmente
aqueles sediados ou ligados à Associação Cultural e Esportiva Nipo-Brasileira de
São Carlos (ACENB), o kaikan local. Essa atuação, apesar de levada a cabo por

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uma população flutuante, cujo tempo de permanência em São Carlos é justamente
o tempo de formação em uma carreira universitária, vem auxiliando no proces-
so de reorganização da comunidade nipônica, cujas atividades foram duramente
afetadas pelo fenômeno dekassegui – quando os adultos, a partir de meados da
década de 1980 e até o início dos anos 2000, imigraram para o Japão na busca por
melhores oportunidades de trabalho, processo que redundou em abandono das
atividades da ACENB, retomadas efetivamente somente em 2007 (BRANDÃO,
2009).
Nesse sentido, cabe considerar a possibilidade de que essa população nikkey
universitária participe do processo de constituição e atualização da japonesidade
nas academias de Karate-Do. De fato, apesar de os sensei entrevistados infor-
marem que seus públicos são abrangentes, um deles afirmou ter percebido ser
relativamente grande o número de praticantes nikkey que procuram sua academia.
A mesma impressão foi relatada por um dos estudantes de Kendo com quem pu-
demos conversar durante as entrevistas não-estruturadas, ele próprio um nikkei,
ao examinar a turma com quem convive nos treinamentos.
Podemos conjecturar que, como o público universitário de São Carlos é bem
representado por descendentes de japoneses vindos de outras cidades, a condi-
ção de estudante leva a que estes nikkey busquem, junto de agremiações diver-
sas, espaços para incrementar sua ambientação, principalmente em seus períodos
iniciais de graduação. Entre tais agremiações em que podem se sentir, de certa
forma, “em casa”, estão os grupos que guardam alguma relação com as tradições
de origem japonesa e que, assim, evocam recordações de suas cidades natais.
Desse modo, procuram inserir-se junto das atividades associadas ao kaikan, como
o grupo de karaokê ou o grupo de taiko (tambores).
Outros espaços que irão procurar serão as academias de artes marciais. Como
estabelecem um vínculo entre a prática atual dessas lutas e sua experiência prévia
em cidades natais, muito associada com os valores da família e o cultivo da memó-
ria dos antepassados, acabam por se dedicar de modo intenso aos treinamentos,
esforçando-se para conciliá-los com os estudos e outras atividades. Finalmente,
esse empenho passa a ser reconhecido, fortalecendo a identidade do grupo esco-
lhido – seja a turma de Karate-Do, de Kendo ou de taiko – enquanto espaço para
acolhida, vivências e trocas.
Assim, tal característica específica de São Carlos contribui para tornar mais
complexas as relações de reforço ou atenuação da japonesidade, conforme pro-
movida pela prática do Karate-Do – seja ela voltada para o budo ou para o esporte
de luta.

Conclusões

Conforme explicam Martins e Kanashiro (2010), o processo de conversão do


Karate como bujutsu para budo ocorreu a partir de fins do século XIX, seguindo
processos semelhantes que afetaram outras artes – por exemplo, a criação do
Judo a partir das técnicas conhecidas como Jujutsu, ou do Kendo a partir do Ken-
jutsu. Tais processos participaram do contexto de modernização do próprio Japão,
que se abriu ao ocidente e ao capitalismo a partir da chamada Restauração Meiji

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(1868), selando o fim do xogunato. Com a reconfiguração dos mais diversos âm-
bitos da prática social – a educação, a cultura, a legislação etc. – as próprias artes
marciais se adaptam (visto que sua finalidade belicosa já não fazia sentido em um
contexto moderno) e procuram veicular valores educacionais e civilizatórios. No
caso do Karate-Do, observa-se um esforço ainda maior por parte de seus siste-
matizadores – com destaque para a figura de Funakoshi – visto que Okinawa, até
então, se constituía em um reino independente do Japão. Assim, o processo de
formação do Karate-Do como budo significou, além da organização da prática e da
seleção dos elementos do bujutsu a serem preservados, também a adequação de
seus valores e princípios à racionalidade que marcaria o período Meiji. Tratava-se,
portanto, de um projeto deliberado de identificação do Karate-Do não mais como
uma prática tribal criada no pequeno território de Okinawa, mas agora como um
produto tipicamente japonês, inclusive com intenções de ser exportado mundial-
mente – o que, de fato, aconteceria a partir da Segunda Guerra Mundial.
É nesse sentido que consideramos o Karate-Do, enquanto budo, uma prática
veiculadora de uma japonesidade. Trata-se, no entanto, de uma japonesidade de
origem moderna, e não exatamente tradicional ou milenar – uma japonesidade
artificial e produzida de forma intencional, e não espontânea. Mesmo assim, esse
budo compreende um conjunto coeso de princípios – de ordem disciplinar, moral,
espiritual e estratégica – que aludem a uma espécie de sabedoria tipicamente
oriental, elementos que a perspectiva do Karate-Do como esporte de luta preterem
em favor do rendimento e da “performance” competitiva.
Os estudos sobre a presença japonesa no Brasil identificam que, a partir da
década de 1950, o papel dos kaikan também se altera: de refúgios idealizados
para resguardar um conjunto mínimo de elos com a noção de Japão trazida pelos
imigrantes, passam a se constituir como espaços de sociabilidade para relações
intercomunitárias (FUNDAÇÃO PRÓ-MEMÓRIA DE SÃO CARLOS, 2011). Tal pro-
cesso pode ser observado nitidamente em São Carlos, uma vez que muitas das
atividades da ACENB possuem um caráter de divulgação da cultura japonesa e
mesmo de integração com a população local, nipo-descendente ou não.
Nesse sentido, cabe refletir se não poderíamos considerar o dojo em que se
pratica a arte marcial – seja o Kendo, o Judo ou o próprio Karate-Do – como uma
espécie de “kaikan expandido”: local para a preservação de práticas e valores
e, principalmente, espaço de socialização e disciplinamento corporal e comporta-
mental, colaborando para a atualização da japonesidade e para a criação de vín-
culos de pertencimento cultural a tal identidade. Um espaço, sobretudo, marcado
por resistências e conflitos, em que a noção de um Japão moderno se emaranha
com saberes tradicionais, convivendo com ideias ainda mais modernas – de com-
petição e “performance” esportiva. Em meio a essas relações complexas, sobre-
vive uma “tradição reinventada” que, passados mais de cem anos da primeira
onda de imigração japonesa no Brasil, ainda provoca o fascínio e o imaginário da
população brasileira2.
_________________
2 Agradeço aos sensei e demais participantes da pesquisa; à Fundação Pró-Memória de
São Carlos, na figura da historiadora Leila Maria Massarão; e a Osvaldo Kado, pelos diálogos sobre
o Japão e as artes marciais. Dedico este texto a meus familiares de origem japonesa e à memória
de Kioschi Mori.

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Recebido: 22 maio, 2017.
Aceito: 18 jun., 2017.

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Breves considerações sobre Hiroshi
Saito e as diferenças institucionais
entre a Escola de Sociologia e
Política e a Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras no período de
estruturação das Ciências Sociais
em São Paulo
Brief considerations about Hiroshi Saito and the institutional
differences between the Escola de Sociologia e Política and
the Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras in the period of
structuration of the Social Science in São Paulo

Jader Tadeu Fantin1

Resumo
Este artigo defende o desenvolvimento de um estudo biobibliográfico sobre Hiroshi
Saito para demonstrar o valor intrínseco de sua produção e a sua contribuição para
a edificação das Ciências Sociais em São Paulo. Japonês, imigrante na década
de 1930, em São Paulo torna-se importante figura no meio acadêmico na Escola
Livre de Sociologia e Política (ELSP). O contexto de sua produção intelectual car-
rega um debate que se construiu com a estruturação das Ciências Sociais em São
Paulo. Estavam presentes epistemologias distintas e divergências entre a ELSP
e a FFCL - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, o que se evidencia
na narrativa dominante das Ciências Sociais que qualifica algumas produções em
detrimento de outras. A realização deste estudo poderá contribuir para a narrativa
das Ciências Sociais em São Paulo, valorizando, acrescentando e rediscutindo
elementos no seu período de estruturação.

Palavras-chave: Hiroshi Saito; Estruturação das Ciências Sociais; Escola Livre de


Sociologia e Política; Estudos Japoneses; Pensamento Social.

Abstract
This article presents the development of the bibliography study about Hiroshi Saito
to demonstrate the intrisenc value of his production and the his contribution for the

1 Cientista Social formado pela FCLAr/Unesp, mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo IAU-USP
e doutorando em Ciências Sociais pela FCLAr/Unesp. Contato: redajj@gmail.com

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knowledge of Social Science in São Paulo, Japanese, immigrant in 1930’s, become
an important icon in the academic environment in Escola Livre de Sociologia e
Política (ELSP). The main idea of his intellectual production has a brainstorm
that developed with the structuration of Social Science in São Paulo. Different
spistemologies and opposites were presented between the ELSP and the FFCL
– Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, which is represented in the
dominant narrative of the Social Science that improve some productions instead
of others. This analysis will can to contribute for Social Science narratives in São
Paulo, helping and discussing elements in its structuration period.

Keywords: Hiroshi Saito; Social Science Structuration; Politic and Sociology Scho-
ol; Japanese studies; Social Thinking.

Apresentação
Este artigo defende o desenvolvimento de um estudo biobibliográfico de um
autor chamado Hiroshi Saito (1919-1983), assim como pretende demonstrar a sua
contribuição para a edificação das Ciências Sociais em São Paulo e o valor in-
trínseco de sua produção. Japonês, imigrante na década de 1930, na cidade de
São Paulo conquista desenvoltura e grande capacidade intelectual. Em 1933 havia
sido criada a Escola Livre de Sociologia de São Paulo (ELSP), instituição na qual
Saito iria se tornar um dos pioneiros no Brasil com os estudos sobre a integração
dos imigrantes japoneses e seus descendentes à sociedade brasileira.
Hiroshi Saito está inserido em um contexto de pioneirismos e de disputas me-
todológicas - marcado não apenas pela fundação da Escola Livre de Sociologia e
Política, mas também da Faculdade de Filosofia da USP, instituições onde houve
o desenvolvimento e a consolidação dos primeiros cursos de Ciências Sociais no
Brasil. Assim, por meio do estudo deste autor, espera-se oferecer uma contribui-
ção para a narrativa da história da edificação das Ciências Sociais em São Paulo.
Hiroshi Saito é encontrado como referência em trabalhos que estudam os imi-
grantes japoneses, porém, de uma forma que se acredita injusta com a importância
de sua contribuição pioneira. Intriga e dá motivação para essa questão a ausência
de análises e qualificações mais abrangentes de seu trabalho. A esse fato somam-
-se as controvérsias presentes na narrativa da história das Ciências Sociais que
buscam definir o valor sociológico dos estudos nesse período e demonstram a
competição pela hegemonia no campo científico.
O contexto dos anos 1930 marca mudanças desenvolvimentistas no Brasil, era
necessário compreender melhor o que acontecia. Nesse quadro foram fundadas a
Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (ELSP) em 1933 e, em 1934, a
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras (FFCL) da USP. Essas duas instituições,
complementares em seus estudos, realizaram escolhas metodológicas e papéis
institucionais que lhes conferiram diferentes caminhos. Saito também esteve liga-
do à USP, mas sua produção de maior destaque se relaciona ao seu vínculo com
a ELSP. Aprofundar o estudo desse autor, compilar, analisar, criticar e qualificar a
sua obra pode oferecer elementos importantes para se (re) pensar o período de

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estruturação das Ciências Sociais em São Paulo, além de revelar o valor específi-
co da sua contribuição.

Introdução

Na década de 1930 a sociedade brasileira se transformava. Em decorrência


de sua localização, São Paulo assegurou maior área de influência e atração de
indústrias (SINGER, 1968, p. 51), o que levou até a urbanização e muitas mudan-
ças sociais. Esse período também marca a chegada de muitos imigrantes, apro-
veitados na agricultura no interior do Estado e depois absorvidos nas fábricas da
capital2.
Fazia-se necessário um movimento para tentar compreender e dirigir as mu-
danças pelas quais o Brasil passava. Em nível federal o governo criou, em 1920,
a Universidade do Rio de Janeiro (BRASIL, 1920). No ano de 1931, com o decreto
19.851, o governo conferiu um papel importante para os centros de humanidades
dentro das universidades. Com ele, impôs que a universidade brasileira teria que
congregar pelo menos três institutos, que poderiam ser uma faculdade de direito,
de medicina, de engenharia, ou de educação, ciências e letras, que deveriam man-
ter o interesse na ciência e na cultura. Em 1932, com o “Manifesto dos Pioneiros
da Educação Nova”, foi apontada a necessidade de criação de uma universidade
que agregue em suas dependências as faculdades profissionais, as de ciências
sociais e economia, as de matemática, física e ciências naturais e os centros de
filosofia e letras para se atingir um eixo cada vez mais amplo da cultura científica
(MANIFESTO DOS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA, 1932). Em 1931, em São
Paulo - com a intenção de conduzir a modernização e de formar quadros dirigen-
tes - a elite paulista criou o IDORT (Instituto de Organização Racional do Trabalho)
e, em 27 de abril de 1933, a Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo
- ELSP.
A ELSP foi idealizada por um grupo de intelectuais, dentre os quais destaca-
vam-se Roberto Simonsen, Mário de Andrade, Raul Briquet e Antonio de Almeida
Prado. Essa instituição tinha por objetivo compreender a sociedade antes de traçar
planos de ação e, para isso, necessitava formar quadros políticos competentes
instruídos nos métodos científicos. Tratava-se de uma instituição de ensino não
pública e vanguardista, com um curso específico de sociologia - que formava alu-
nos e professores simultaneamente, e estava aberta a outros profissionais que
quisessem acompanhar as aulas3.
As Ciências Sociais se desenvolviam em outras partes do país, com destaque
para a sociologia. Houve a instalação de uma cátedra de sociologia no Recife e ou-
tra no Rio de Janeiro (DEL VECCHIO, 2009, p. 11-12). Esse era o quadro em que

2 Para mais informações sobre a presença e a contribuição dos imigrantes para mudanças na
sociedade paulista ver Hall (2004) e Araújo (1940). Os censos do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística de 1920, 1940, 1950 e 1960 também revelam a presença dos estrangeiros no Brasil.

3 O manifesto de fundação da ELSP foi assinado por pelo menos cem membros da elite de São
Paulo, dentre eles professores, médicos e engenheiros. Para conferir, ver nos anexos de KANTOR;
MACIEL; SIMÕES (2009).

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se estruturava a sociologia no Brasil, adensado em 1934 com a criação da FFCL
dentro da Universidade de São Paulo.
O modelo de universidade implantado com a USP parece seguir um padrão
institucional alemão. Havia a preocupação em desenvolver a ciência e formar uma
elite a partir da constituição de um órgão coordenador central da cultura científica,
o que conferia à Faculdade de Ciências e Letras um importante papel (PAULA,
2002).
Há nesse contexto paulista a fundação de duas instituições pioneiras das ciên-
cias sociais no país (ELSP e FFCL), que devido às suas particularidades seguiram
modelos de implantação e interesses diversos. O grupo idealizador da ELSP pre-
tendia explicar a realidade por meio da pesquisa aplicada e edificar um conheci-
mento interessado, que ajudasse a apontar soluções para as novas questões que
se colocavam e, deste modo, colocar fim ao diletantismo presente.
Logo no início, a ELSP trouxe importantes pesquisadores americanos. Horace
Davis e Samuel H. Lowrie, da Universidade de Colúmbia - que desenvolveram
em São Paulo um trabalho meticuloso e pioneiro de sociologia aplicada com os
trabalhadores da cidade 4-, e Donald Pierson, formado pela Escola de Chicago.
Junto a este, a ELSP conseguiu expressivos financiamentos norte americanos
para pesquisas.
No período em que Pierson esteve na ELSP ajudou a institucionalizar a pes-
quisa em Ciências Sociais em São Paulo e a formar pesquisadores. São desse
contexto Herbet Baldus, Emílio Willems, Oracy Nogueira, Darcy Ribeiro, Juarez
Brandão Lopes, Florestan Fernandes e Hiroshi Saito. No ano de 1939 houve a
fundação da Revista Sociologia, o que marca um avanço neste processo de estru-
turação das Ciências Sociais. Pierson deixou a ELSP na década de 1950 e levou
consigo importantes fontes de financiamento de pesquisa.
Como se mencionou, ao lado da Escola Livre de Sociologia e Política havia a
FFCL. A USP foi criada com o decreto de n.º 6.283, de 25 de janeiro de 1934, por
Armando Salles de Oliveira. No decreto do Estado de São Paulo (1934) consta que
“[...] somente por seus institutos de investigação científica, de altos estudos, de
cultura livre, desinteressado, pode uma nação moderna adquirir a consciência de
si mesma, de seus recursos, de seus destinos [...]”, o que expressa a preocupação
de formar em nível universitário os profissionais e cidadãos para fazerem parte das
classes dirigentes com uma preocupação puramente científica.
Citando Witter, Del Vecchio (2014, p. 11) aponta que os fundadores da Fa-
culdade de Filosofia Ciências e Letras consideravam-na a mais responsável pela
formação do espírito universitário dentro da instituição.
Del Vecchio identifica em autores que compõem o chamado ‘Pensamento
Social brasileiro’, uma periodização que coloca uma extensa produção das ciên-
cias sociais no Brasil com um status de pré-científico, e do outro lado, trabalhos
pautados por rigorosos procedimentos - a chamada sociologia científica que teria
sido inaugurada e consolidada na FFCL-USP, por Florestan Fernandes. Assim,
a Escola Sociológica Paulista, como ficou conhecida, coloca grandes produções

4 Os resultados das pesquisas foram publicados na Revista do Arquivo Municipal no período


entre 1935 – 1938. Os artigos também estão publicados na íntegra no livro ‘As pesquisas sobre o
padrão de vida dos trabalhadores da cidade de São Paulo: Horace Davis e Samuel Lowrie, pionei-
ros da Sociologia aplicada no Brasil’ organizado por Del Vecchio e Diéguez (2008).

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acadêmicas com uma qualificação, acredita-se, ingrata. É o caso daquilo que se
produzia no Rio de Janeiro e Minas Gerais, caracterizado por sofrer influências
políticas e extra-acadêmicas (DEL VECCHIO, 2014, p. 14-15).
Uma das periodizações foi realizada por Florestan Fernandes, que pontua o
desenvolvimento do caráter científico da sociologia no Brasil a partir dos anos
1950. Para ele a “transformação da análise histórico-sociológica em investigação
positiva”, e a “introdução da pesquisa de campo como recurso sistemático de tra-
balho”, podem localizar “historicamente a fase em que, no Brasil, a Sociologia
se torna disciplina propriamente científica” (1958, p. 203). É preciso lembrar que
Saito está inserido nesse contexto e que, mesmo antes, na ELSP, as pesquisas
desenvolvidas por Davis e Lowrie parecem atender aos quesitos elencados por
Florestan.
Em análise sobre a história e ideologia das Ciências Sociais no Brasil, Segatto
e Bariani (2009) reúnem inúmeras leituras dos membros da Escola Paulista de
Sociologia e que contêm dissenso quanto ao caráter científico do que foi produzido
até então. Na leitura de Fernando de Azevedo, o caráter científico é endossado
depois 1936, quando há uma associação do ensino com a pesquisa nas univer-
sidades; para Florestan Fernandes, somente após 1950; já Antônio Cândido en-
xerga um rigor científico a partir de 1940, com a consolidação de uma formação e
produção específicas dentro das universidades, da pesquisa empírica e aplicação;
Oracy Nogueira identifica a consolidação de um caráter científico a partir de 1930.
Renato Ortiz pontua que foi a partir dos anos 1940, com o grupo de Florestan na
USP, quando prevalece a observação às normas, valores e ideias do saber cien-
tífico. Esses autores baseiam-se na institucionalização como marco de início das
Ciências Sociais no Brasil.
Os membros da Escola Sociológica Paulista defendem a isenção política e o
descompromisso com a realidade para se alcançar o rigor científico. Porém, a fun-
dação da USP acontece justamente para tentar compreender as mudanças pelas
quais o país passava e, ainda, observado no decreto n.º 6.283, para a valorização
da aquisição da consciência de si, para a preparação do cidadão e das elites di-
rigentes, o que parece objetivar uma tomada de posição política. Como poderiam
então, os membros da Escola Sociológica Paulista, enxergarem-na posteriormen-
te como isenta do jogo político e de outras influências?
Em comparação entre a ELSP e a FFCL nesses anos de formação das Ciên-
cias Sociais, Limongi diz que a criação daquela tem uma característica básica: as
preocupações práticas e atreladas às políticas públicas específicas, por exemplo
as desenvolvidas pelo Departamento de Cultura da cidade de São Paulo. Já a Fa-
culdade de Filosofia teria interesses radicalmente diversos e faria “a defesa de um
ensino calcado nas humanidades e destituído de qualquer utilitarismo” (LIMONGI,
1989, p. 221-222) como apregoado no decreto de fundação.
Chacon (1977, p. 99) acredita que o impulso para a fase de constituição das
Ciências Sociais adveio justamente do esforço feito pelas elites de encontrar e
analisar os problemas sociais, pois foi sentida a necessidade de se formarem qua-
dros técnicos para utilizarem as ciências humanas para o progresso, integração e
futuro da nação por meio da pesquisa empírica.
Del Vecchio (2014) defende que a estruturação da sociologia enquanto disci-
plina científica aconteceu em diversos centros do país que enfrentavam diferen-

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tes questões e, portanto, foram estudadas de formas variadas. Antônio Candido
(2006, p. 301), ao analisar o período de formação da sociologia no Brasil, diz que
esta se constituiu de forma sincrética. Além disso, enxergava como necessário a
utilização da sociologia para o planejamento, progresso e racionalização dos seto-
res administrativos, o que é um contraponto ao que a Escola Sociológica Paulista
advoga para si como um diferencial positivo: a pesquisa desinteressada e afastada
de interesses políticos.
Sérgio Miceli (1995, p. 10-11) aponta que com o estabelecimento de um siste-
ma nacional de pós-graduação, iniciado nos anos 1950 e consolidado na década
de 1970, as instituições acadêmicas foram se tornando espaços de lutas políticas.
Os cientistas sociais brasileiros se infiltraram em agências governamentais e pu-
deram exercer na prática a ciência, o que caracteriza importante papel político.
Segundo Arruda (1995, p. 162-163), Florestan Fernandes – destaque da Escola
Sociológica Paulista - nos anos 1950 levou a sociologia para o campo do planeja-
mento e aproximou-se da intervenção social. A neutralidade política requerida por
fiduciários da FFCL também parece ser afastada no trecho encontrado de Cardoso
quando esta coloca que coube a instituição capacitar uma elite para “decidir os
destinos da nacionalidade” (1982, p. 82).
Deixar no esmaecimento ou ostracismo algumas produções em decorrência
de posições político-institucionais é uma perda para a riqueza da reconstrução
da história da institucionalização das ciências sociais desse momento. Há ainda
a possibilidade de se realizar uma análise desse contexto sob a luz de Bourdieu,
o que permite enxergar uma disputa em torno da epistemologia desenvolvida em
cada instituição, que se estende até a narrativa dominante das Ciências Sociais, e
que na verdade pode revelar disputas políticas e a consolidação ou a contestação
de autoridades científicas (BOURDIEU, 1983, p. 124).
Seria interessante buscar identificar as semelhanças e diferenças na forma-
ção, nas metodologias e nos procedimentos adotados em cada escola. Matos
(2009, p. 56) aponta que Donald Pierson, Radcliffe Brown e Roger Bastide foram
os iniciadores do que seria a Escola Sociológica Paulista. “Tudo isso nos fala de
uma época das ciências sociais no Brasil que parece ter muito mais a nos dizer do
que estamos habituados a ouvir” (CAVALCANTI, 2009, p. 112), e Hiroshi Saito faz
parte desse contexto.

Hiroshi Saito, a estruturação das ciências sociais


em São Paulo e as diferenças entre a ELSP e a USP

Hiroshi Saito desenvolveu pesquisas sobre os japoneses no Brasil no período


em que estavam se integrando nessa sociedade - de 1908 até a década de 19605
- o que o coloca como um pesquisador pioneiro sobre os imigrantes japoneses.
Esteve na ELSP nos seus anos de formação e participou da formação e do método
inovador trazidos para o Brasil por Donald Pierson.
Há um contexto de disputas metodológicas na sociologia que está em conso-

5 Para mais informações sobre a imigração japonesa para o Brasil, consultar as obras de Sakurai
(1998;2000), Nogueira (1984), Maejima (2005), e Hashimoto; Tanno; Okamoto (2008).

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lidação, em que de um lado encontram-se os estudos de comunidade de Emílio
Willems (com o qual Saito trabalhou na ELSP, além de ser seu aluno) com a teoria
da aculturação e assimilação e, do outro, a corrente iniciada mais à frente por Flo-
restan Fernandes e seus alunos na USP, preocupados com o desenvolvimento da
sociedade capitalista e de classes no Brasil. Segundo Piza (2012, p. 44), a ELSP
era encarada pela FFCL como mais conservadora, herdeira da Escola de Chica-
go6. Aprofundar o estudo dessas questões pode ajudar a compreender e a discutir
a narrativa dominante da história das Ciências Sociais nesse ínterim7.
Hiroshi Saito (1919-1983) chegou com sua família no Brasil em 1933. Num pri-
meiro momento seguiu para as lavouras no interior do Estado de São Paulo e pos-
teriormente foi para a capital para estudar. Não permaneceu aí por muito tempo
devido à perseguição aos imigrantes nos anos 19308, o que o levou a retornar ao
interior (CASTRO, 1994). Com todas as dificuldades enfrentadas, Saito havia en-
tendido a necessidade de integração na sociedade brasileira por meio do trabalho,
o que ajudaria os japoneses a se livrarem dos estigmas negativos que possuíam9.
Saito retornou para São Paulo em 1941 e no pós-guerra foi trabalhar no Jornal
Paulista. Como redator pode escrever suas percepções acerca da comunidade
japonesa e se posicionar a favor da integração dos japoneses de forma pacífica
na sociedade brasileira (CASTRO, 1994, p. 123). Publicou pela primeira vez nesse
jornal em 15 de fevereiro de 1947. O artigo ‘Tabus Destronados’ falava do grupo
dos ‘vitoristas’ japoneses que usavam a violência para pregar a mentira da vitória
do Japão na guerra (JESUS & TANIGUTI, 2012, p. 210). Também neste ano in-
gressou na ELSP como aluno-ouvinte.
Em decorrência de sua situação como imigrante, na ELSP Saito utilizou sua
trajetória de vida como motivação intelectual e pode contribuir para a institucio-
nalização dos estudos japoneses no Brasil e para uma sociologia da imigração.
Em 1947, publicou junto com Willems na revista de Sociologia o artigo chamado
‘Shindo Renmei: um problema de aculturação’, onde é percebida a influência de
Donald Pierson, Herbert Baldus e Egon Schaden, vinculados à tradição americana
da Escola de Chicago e pesquisadores da ELSP. Já neste trabalho Saito parece
utilizar a sociologia para mostrar que os problemas que a colônia japonesa enfren-
tava acometia aqueles que não haviam conseguido se integrar economicamente

6 Piza, em seu artigo, mostra como Eunice Durham e Ruth Cardoso rejeitam a teoria da acultu-
ração, pois entendem que a assimilação e a integração dos imigrantes acontecem na mobilidade
social e na integração à sociedade de classes capitalista nacional, o que marca a descendência de
Florestan Fernandes (que defende uma macrossociologia) e as apartam de Willems e, consequen-
temente de seus sucessores mais fiéis como Egon Schaden e Hiroshi Saito (2012, p. 35).

7 No trabalho de Jackson, a ELSP é caracterizada como voltada para a formação de técnicos


para trabalharem na administração, daí uma formação com a ênfase nas pesquisas de campo para
o conhecimento prático e objetivo da realidade, enquanto a USP teria a pretensão de capacitar
intelectualmente a elite para escolher os destinos da nação, o que ratifica a sua formação ampla e
teórica dentro das Ciências Sociais (JACKSON, 2007, p. 38).

8 Uma obra que retrata a perseguição dos imigrantes desse período é a de Cytrynowicz (2000).

9 Analisando dados do período, a pesquisa de mestrado ‘Os japoneses no bairro da Liberdade-


-SP na primeira metade do século XX’ deixa evidente que os imigrantes japoneses que se fixaram
no bairro desenvolveram uma infinidade de atividades econômicas para sobreviverem e se integra-
rem, além de preservarem muitas instituições de auxílio à colônia. Ver Fantin (2013).

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à sociedade brasileira e, para isso, utilizou os métodos científicos da sociologia
aplicada e dos estudos de comunidade que aperfeiçoara na ELSP, o que também
fica perceptível nos trabalhos ‘Pesquisa sobre a aculturação dos japoneses no
Brasil’ (1953), ‘O japonês no Brasil – estudo de mobilidade e fixação’ (1961) e ‘O
cooperativismo e a comunidade’ (1965).
Saito matriculou-se na ELSP como aluno regular em 1950 e no período de
1954-1956 desenvolveu seu mestrado sob orientação de Donald Pierson, quando
estudou a Cooperativa Agrícola de Cotia (CAC) dos japoneses. Os resultados de
seu mestrado foram publicados na revista Sociologia entre 1954-1955, que poste-
riormente deram origem a um livro. Em 1957 Saito foi convidado a lecionar no ‘The
Research Institute for Economics and Business Administration’ da Universidade de
Kobe, onde desenvolveu seu doutorado e retornou ao Brasil em 1959. A sua tese
de doutorado foi a base para a publicação do livro ‘O japonês do Brasil: estudo de
mobilidade e fixação’, em 1961.
Novamente na ELSP, atuou como professor nos cursos de graduação e pós-
-graduação. Trabalhou aí até 1970, quando se desligou por desajustes financeiros
da instituição e recebeu, posteriormente, o convite para lecionar na Escola de
Comunicação e Artes-USP - por onde já havia passado Egon Schaden - para tra-
balhar com comunicação rural (CASTRO, 1994).
Ao final de 1970 a produção de Saito era de 37 artigos, dos quais 25 em portu-
guês, 4 livros em japonês e 2 em português. Também ocupou a posição de profes-
sor associado na Universidade da Flórida, nos EUA (JESUS & TANIGUTI, 2012, p.
221). Além disso, organizou eventos e seminários voltados aos estudos da colônia
japonesa no Brasil, tanto na ELSP quanto na ECA, sempre buscando alcançar seu
ideal de integração dos imigrantes e descendentes.
Pode-se dizer que Saito é um dos responsáveis por abrir espaço para a con-
solidação de um campo de estudo dentro das Ciências Sociais em formação em
São Paulo10. Porém, há trabalhos que apontam certo esquecimento dos estudos
de Saito, como o de Jesus e Taniguti que atribui esse esmaecimento ao declínio
institucional da ELSP e às transformações metodológicas da sociologia, sobretudo
no estudo das minorias, com as críticas aos estudos de comunidade efetuadas
pela corrente teórica consolidada por Florestan Fernandes, e por deixar o eixo
dinâmico da sociologia. Saito teve o reconhecimento do doutorado em economia
em Kobe negado pela FFCL, o que o fez aceitar o convite para lecionar na Escola
de Comunicação e Artes da USP – ECA (CASTRO, p. 221-222). Saito morreu em
1983 e deixou a sua obra de doutorado no Brasil inacabada.
Identificando essas diferenças institucionais, Limongi salienta que é mérito da
ELSP uma preocupação com pesquisa empírica, prática e aplicada, menos evi-
dente na FFCL. Esta última esteve mais interessada na docência e nas pesquisas
com forte embasamento teórico e especulativo. Segundo documento enviado aos
deputados estaduais, a ELSP dizia que a FFCL possuía a finalidade de promover
a cultura geral e formar uma elite de professores secundários, enquanto aquela
se incumbia de formar o pessoal técnico para ocupar as administrações públicas

10 Em reconhecimento ao trabalho de Saito e sua excelência na área, Hideo Onaga, ao prefaciar


a obra de Arlinda Rocha Nogueira ‘Imigração japonesa na história contemporânea do Brasil’, diz
que em seu lugar deveria estar Hiroshi Saito, o que foi impossibilitado pela sua morte. Ver Nogueira
(1984).

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e particulares – quadros dirigentes. (1989, p. 217-219). De modo análogo, Arruda
(1995, p. 140) diz que a formação dos sociólogos da USP priorizava o rigor con-
ceitual, bibliográfico e teórico, pois havia uma ênfase na leitura de grandes pen-
sadores estrangeiros para construir uma fundamentação teórica e um modelo de
reflexão acadêmica.
Outro trabalho que se ocupou dessa questão é o de Piza, que realiza uma
discussão sobre os estudos de imigração nas Ciências Sociais de São Paulo e
identifica duas correntes: uma ligada a ELSP e Emílio Willems (formador de Sai-
to) e outra iniciada por Eunice Durham, na década de 1960 na USP, que realiza a
crítica da teoria da aculturação, além de contrapor os estudos de comunidade de
Willems aos do desenvolvimento da sociedade de classes capitalista de Florestan
Fernandes. Piza conclui apontando que há elementos de ruptura e de continuida-
de nos estudos de imigração em São Paulo, frutos de diferenças institucionais,
acadêmicas e políticas entre a ELSP e a USP (2012, p. 33; 45).
Em texto que destaca a trajetória de Florestan Fernandes, Arruda (1995, p.
190) diz que havia na sociologia paulista uma resistência aos estudos de comu-
nidade, pois o tema soava frágil diante da magnitude dos problemas sociais que
poderiam ser enfrentados pelo pensamento. Em seu trabalho, Jackson resume
as diferenças teórico-metodológicas e as disputas entre a ELSP e a FFCL. A crí-
tica fundamental dos sociólogos da USP aos estudos de comunidade dirige-se
ao conservadorismo da ELSP e ao empirismo, pois aqueles partilhavam da teoria
marxista, macrossociológica e, nesse sentido, revolucionária – no mesmo texto o
autor lembra que Octávio Ianni e Maria Sylvia de Carvalho retomaram os estudos
de comunidade na USP na década de 1960. O erro dos pesquisadores da ELSP,
segundo Florestan, seria ignorar as análises clássicas da sociedade europeia -
uma vez que o Brasil seria herdeiro dessa história - e colocar a pesquisa empírica
como primeira etapa da análise (JACKSON, 2007, p.38;40).
Este trabalho aponta um esmaecimento da obra de Hiroshi Saito devido às di-
ferenças político-institucionais e teórico-metodológicas encontradas entre a ELSP
e a FFCL, em que esta última parece dominar a narrativa da história das Ciências
Sociais no Brasil, principalmente em São Paulo, com a chamada Escola Paulista
e suas críticas aos trabalhos que supostamente não apresentaram o mesmo rigor
científico que advogam para si, o que por sua vez pode deixar na marginalidade
trabalhos como os de Saito.
A valorização de alguns legados em detrimento de outros pode se dar por dis-
putas que ocorrem dentro das instituições pela hegemonia científica, o que reforça
o apontamento acima. Nas Ciências Sociais não há uma autoridade científica que
não seja ao mesmo tempo parte interessada. Com este pressuposto é possível
realizar uma análise contextualizada da obra de Saito. Qual é o ambiente social,
político e institucional que suscitou e possibilitou o desenvolvimento das questões
teóricas do autor?
O que se deve evitar é o perigo de uma única história. Analisando as “Ten-
sões e disputas na sociologia paulista (1940-1970)”, Luiz Carlos Jackson (2007,
p. 33;38) mostra que tanto a ELSP quanto a USP estiveram ligadas a objetivos
políticos em sua fundação, porém, acredita que a FFCL enxergava a Escola de
Sociologia como conservadora e, por isso, intelectualmente limitada.
A hipótese do esmaecimento da obra de Hiroshi Saito ganha força após cons-

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tatar que até o final da década de 1970 este havia construído sólida trajetória
acadêmica e participado ativamente na estruturação de um campo de pesquisa,
o que mesmo assim não assegurou o seu lugar no mainstream da sociologia, em
particular com os estudos sobre os japoneses no Brasil e sobre imigração. Seus
estudos revelam um trabalho metodológico, de sistematização e interpretação que
merecem ser analisados e interpretados.

Uma metodologia para se concretizar este estudo:


a Sociologia do Conhecimento e o trabalho biobibliográfico

É possível realizar problematizações suscitadas pela Sociologia do Conheci-


mento para discutir a produção e trajetória de Saito, desvendar o valor intrínseco
da sua obra e analisar a metodologia de seus trabalhos. Aliado a isso, pode-se
fazer o uso da pesquisa biobibliográfica para complementar o estudo com vistas
a constituir um trabalho mais completo sobre a vida, obra e trajetória de Hiroshi
Saito.
Para analisar as disputas teórico-metodológicas entre a ELSP e a FFCL no pe-
ríodo pode-se recorrer a Bourdieu, que é bastante elucidativo quando diz que um
universo ‘puro’ da mais ‘pura’ ciência é um campo social como outro qualquer com
as suas relações de força, monopólios, lutas e estratégias. Os objetos do campo
científico mudam de forma e abrangência e são escolhidos por meio do cálculo do
lucro que justifique o seu investimento. É um campo, portanto, dinâmico (1983, p.
122, 127).
Por sua vez, Mannheim (1968, p. 288) nos oferece a possibilidade de pensar
os fatores extra teóricos do pensamento - os condicionantes sociais do obser-
vador. O autor chama a atenção, dentro da sociologia do conhecimento, para a
perspectiva do pensador. Investigar e analisar como os fatores existenciais afetam
a perspectiva do sujeito é um trabalho que permite discutir a obra de Saito e qua-
lificá-la, ao mesmo tempo que se pode discutir as críticas que lhe foram tecidas
dentro desse contexto de correlação de forças na estruturação da sociologia em
São Paulo. Assim, é possível imergir nos debates presentes à época. Conforme
aponta Mannheim (1968, p. 302):

A Sociologia do Conhecimento busca ultrapassar a ‘discussão sem


reconhecimento’ dos vários antagonistas, assumindo, como seu tema ex-
plícito de investigação, a descoberta das origens dos desentendimentos
parciais que nunca seriam percebidos pelos disputantes, devido à sua
preocupação com o assunto imediato do debate.

O ponto desenvolvido por Mannheim acerca da Sociologia do Conhecimento


e que pode nortear a análise defendida neste texto é analisar a relação entre o
conhecimento e a existência, e também quais as formas tomadas por esta relação
no desenvolvimento intelectual. Desse modo, é possível descobrir os critérios ca-
pazes de determinar as inter-relações entre o pensamento e a ação em Saito, ana-
lisar a relevância dos fatores condicionantes não-teóricos sobre o pensamento.

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Por exemplo, o fato de Saito ser um imigrante japonês com costumes culturais
diferentes e estar inserido num contexto de desenvolvimento nacional que envolve
medidas nacionalistas do governo brasileiro em relação aos estrangeiros recém-
-chegados não teria influenciado em suas escolhas e análises de seus objetos de
estudo?
Realizar esse tipo de questionamento pode revelar peculiaridades e explicar
pontos importantes dentro de sua obra e trajetória. Mannheim defende a análise
dos condicionantes sociais do pensamento ou, de outro modo, defende a investi-
gação das maneiras pelas quais as relações sociais afetam o pensamento, o que
denomina de ‘Teoria da determinação social do conhecimento’ (1968, p. 286;288).
Nesse sentido é preciso deslindar a obra e trajetória de Hiroshi Saito enquanto
intelectual e imigrante, analisar quais os resultados e proposições alcançadas em
seus trabalhos.
De outro modo Merton fala no pertencimento existencial do pensamento e nos
fatores extra teóricos que influenciam a forma, a aparência, o conteúdo e a estru-
tura lógica do pensamento. Tais fatores podem interferir em um trabalho de muitos
modos, como: na percepção do problema, na formulação teórica, nos pressupos-
tos e na metodologia (2013, p. 96).
Não se deve subestimar o valor da obra de Saito e obscurecer facetas adotan-
do uma única perspectiva de observação e discussão. Uma posição social pode
limitar um ponto de vista e, de tal forma, quando se leva em consideração as dispu-
tas que ocorrem pela hegemonia no campo científico, muitos trabalhos podem ser
relegados em decorrência de transformações no próprio campo científico ou por
disputas políticas muitas vezes encaradas como divergências epistemológicas.
Conduzir tal estudo para caracterizá-lo como um trabalho biobibliográfico ne-
cessitará da reunião de elementos biográficos e bibliográficos de Hiroshi, sistema-
tização por datas em ordem cronológica e compilação da bibliografia que se tem
produzida sobre o autor. Trata-se de realizar também a junção de documentos,
cartas, recibos, fotos e imagens, diários, rascunhos, leis e tudo mais que possa
revelar alguma característica ou informação sobre o pesquisado.
Os trabalhos biobibliográficos11, além de apresentarem uma cronologia, ses-
sões organizadas por assunto, apêndices com cartas, endereços, arquivos etc., fa-
zem a indicação de onde os materiais estão localizados. É importante lembrar que,
mesmo reunindo um material vasto sobre o objeto de estudo, uma biobibliografia
trata-se de uma reconstrução, desse modo rejeitando a ingenuidade de vislumbrar
uma reprodução fiel do objeto pesquisado.
A defesa do desenvolvimento de um estudo biobibliográfico sobre Hiroshi Sai-
to e a utilização do escopo teórico da Sociologia do Conhecimento - com autores
como Mannheim, Merton e Bourdieu -, pode oferecer significativas contribuições
para entender o esmaecimento de sua obra, compreender as diferenças e dispu-
tas entre as instituições pioneiras das Ciências Sociais em São Paulo, trazer ele-
mentos para se pensar as escolhas teóricas e metodológicas do pesquisador (não
somente de Saito), além de constituir um trabalho que irá reunir vasta informação

11 Como referências para o desenvolvimento de um trabalho biobibliográfico são apontados: Car-


mona (2012) – que investigou os Caminhos-de-Ferro em Portugal, Nogueira (2004) - sobre Werner
Sombart, Rubbo (2003) – que estudou Friederich Michel Litto, e Monarcha e Lourenço Filho (2001)
– que pesquisaram sobre Lourenço Filho.

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sobre o objeto, tornando-se leitura importante para novos estudos na área.

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____________________
Recebido: 29 maio, 2017.
Aceito: 16 jul., 2017.

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Imigrantes: mais que braços para o
café, a constituição dos homens de
negócio no interior paulista1
Immigrants: more than arms for coffee, the constitution
of business men in the interior of São Paulo

Eder Carlos Zuccolotto2

Resumo
Este artigo procura analisar uma nova perspectiva sobre a participação dos imi-
grantes no interior paulista. Acaba sendo recorrente associar a figura do imigrante,
que chegou ao Brasil, como aquela que simplesmente esteve atrelada as fazendas
de café, principalmente a presente no interior paulista. No entanto, existem casos
que demonstram que o imigrante foi muito mais do que uma simples mão de obra
rural, ele também acabou se tornando um empreendedor, um agente diferenciado,
ou, como preferimos classificá-lo, um “homem de negócios”. O surgimento e de-
senvolvimento deste empreendedorismo somente são possíveis se concebermos
o termo “homem de negócios”.

Palavras-chave: Homens de negócio; Imigrantes; Cafeicultores; Interior Paulista

Abstract
This work tries to analyze a new perspective on the participation of the immigrants in
the interior of São Paulo, it is common to associate the figure of the immigrant who
arrived in Brazil, like that figure that simply was tied to the coffee farms, especially
those present in the interior of. However, there are cases that demonstrate that
the immigrant was much more than a simple rural manpower, he also became an
entrepreneur, a differentiated agent, or as we prefer to classify him as a Businessman.
The emergence and development of this entrepreneurship is possible only if we
conceive the term “businessman”.

Keywords: Businessmen; Immigrants; Coffee Growers; Paulista Interior

1 Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no Cadernos CERU, volume 25, número 2.

2 Graduado em História (UNICEP/2001); especialização em Gestão Educacional


(CLARENTIANAS/2011); doutorando do PPG em Ciências Sociais da UNESP/FCLAr, Bolsista
CNPQ, foi integrante do grupo de estudos sobre imigrantes coordenado pelo Prof. Dr. Oswaldo
Truzzi (UFSCar). Contato: ederzucco@yahoo.com.br

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Introdução

Trabalhar a questão do empreendedorismo no Brasil somente torna-se viável


se concebermos o termo “homem de negócios”, associado por Fernandes (2010)
primeiro aos cafeicultores. Mas, como veremos, nos casos aqui elencados, apesar
de contribuírem para o desenvolvimento comercial e industrial, estes não constituí-
ram uma regra geral, seja pela totalidade, seja pelo fato de que também participam
deste processo alguns grupos de imigrantes.
Ao abordar a questão do café e a gestação do empresário, Martins (1978, p.
223) também chama a atenção para a questão do que ele classifica como habili-
dade empresarial. Segundo o autor apesar de toda a riqueza dessa temática, aos
poucos ela foi se perdendo; frisa também que um dos poucos, senão o único, na
sua perspectiva, que trabalhou essa linha foi Warren Dean (1971), que juntou duas
linhas de interpretação: a da substituição das importações e da difusão da habili-
dade na gestão capitalista do capital.
Ao comparar a maneira como Dean (1971) e Cardoso3 (1972) analisam esta
questão Martins (1978, p. 223) acaba identificado que o primeiro segue uma linha
que valoriza de certa maneira uma ideia de difusão cultural. Já Cardoso (1972),
acaba seguindo uma linha que valoriza os fundamentos históricos e sociais.
Desse modo, torna-se importante perceber quais as influências e contribuições
que o café trouxe para o desenvolvimento de áreas empreendedoras, como a in-
dústria e o porquê do seu estudo, a partir do interior paulista.
Foi a partir do século XIX, que o movimento da cultura cafeeira deslocou-se
para o Estado de São Paulo, principalmente para o seu interior, é um momento que
coincide com a passagem do trabalho escravo para o trabalho livre (MARTINS,
1978, p. 224). Uma das consequências dessa mudança foi que os fazendeiros
passaram a vivenciar novas relações de produção: o trabalho estava agora vin-
culado como fator de lucratividade calculável do capital. Embora em São Paulo o
café tenha, por este motivo, favorecido o desenvolvimento capitalista, em outros
lugares, isso não ocorreu com a mesma rapidez.
Entre os fatores que contribuíram para o desenvolvimento do interior paulista
podemos destacar os seguintes: a urbanização, o imigrante e a ferrovia. Cada um
deles tem ligação com a temática que debateremos em nosso texto.

1. Revolução Burguesa, cafeicultores e imigrantes

Para que seja possível abordar o imigrante como um eventual “homem de ne-
gócios” ou ainda como um “pré-burguês” no interior paulista, é crucial uma análise
da obra A revolução burguesa no Brasil (2010), de Florestan Fernandes. Nela, o
autor traça todo um caminho sobre a formação e desenvolvimento do capitalismo
no Brasil.
Antes de tratar propriamente da revolução burguesa, Fernandes (2010, p. 32)
faz uma análise interessante sobre as visões que atestam para a sua existência

3 Segundo Martins (1978) foi quem fez a explanação pioneira sobre a questão do empreendedo-
rismo industrial.

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(ou não) no cenário brasileiro. Para o autor, existem aqueles que afirmam a exis-
tência da noção de burguês e burguesia “[...] com a implantação e a expansão da
grande lavoura exportadora, como se o senhor de engenho pudesse preencher, de
fato, os papéis e as funções socioeconômicas dos agentes que controlavam [...]
o fluxo de suas atividades socioeconômicas [...]”. Na contramão existiam também
aqueles que diziam que ambos não teriam existido no Brasil “[...] como se depre-
ende de uma paisagem em que não aparece nem o castelo nem o Burgo [...]”.
Cardoso (1972, p. 45) segue esta mesma linha utilizada por Florestan, quando
analisa o desenvolvimento do perfil dos empreendedores numa economia subde-
senvolvida: “[...] não se pode esperar, por outro lado, que nestas últimas áreas o
empreendedor repita, simplesmente, a história dos homens que fizeram o desen-
volvimento do capitalismo no período clássico [...]”.
Os atores desta revolução burguesa no Brasil são vistos por Cardoso (1972, p.
48) como participantes de uma camada industrial que “[...] concretiza um modo de
organização da produção cujas características essenciais estão definidas por um
jogo complexo de determinações gerais e particulares [...]”. O que reforça um ca-
ráter fora dos padrões tradicionais na construção de um novo modelo capitalista e,
com ele, de uma nova camada social: a dos empreendedores industriais, os quais
poderiam, como propõe este estudo, partir de uma matriz ligada aos cafeicultores
ou aos imigrantes.
Para alguns críticos, o senhor de engenho não poderia se encaixar dentro
deste perfil, pois, “[...] ele ocupa uma posição marginal no processo de mercantili-
zação da produção agrária e não poderia ser o antecessor do empresário moderno
[...]” (FERNANDES, 2010, p. 32). Dentro desta perspectiva, é interessante que
mesmo o excedente gerado pela produção, não é visto como “lucro”, na verdade
ela constituía a parte que lhe cabia no circuito global, o qual era resultado dos
acordos do pacto colonial.
Ao analisar esta perspectiva crítica, Fernandes (2010, p. 34) alerta para o fato
de que a análise comparativa não cabe no cenário brasileiro, afinal não tivemos
aqui um modelo feudal, ou a formação e caracterização de um burgo nos moldes
europeus, assim como o burguês nas primeiras relações mestre versus artesão:
“[...] o burguês, já surge, no Brasil, como uma entidade especializada, seja na figu-
ra do agente artesanal, inserido na rede de mercantilização da produção interna,
seja como negociante [...]”.
Esses dois modelos de burguês por ele destacados, permaneciam sufocados
com o modelo colonial, pois encontravam entraves no escravismo, na dependên-
cia da grande lavoura colonial e no estatuto colonial; mesmo assim é interessante
notar que o autor diz “sufocadas” e não excluídas ou inexistentes.
Ao defender que existiam condições para se pensar em uma “revolução bur-
guesa” no Brasil, Fernandes (2010, p.38) ainda deparava-se com a necessidade
de esmiuçar este processo. Para o autor, ela não constitui um episódio histórico,
mas um fenômeno estrutural, pois “[...] se pode reproduzir de modos variáveis
dadas certas condições ou circunstancias, desde que certa sociedade nacional
possa absorver o padrão de civilização que a converte numa necessidade históri-
co-social [...]”.
Esta característica torna-se mais nítida quando Florestan analisa o estatuto
colonial e as mudanças que sua extinção possibilita. No estatuto colonial, ou pacto

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colonial, as decisões políticas, sociais e econômicas estavam diretamente ligadas
aos interesses metropolitanos, ou seja, operavam de fora para dentro da socieda-
de colonial.
Assim o fim do estatuto colonial significou ganhos para os senhores rurais. Pri-
meiramente, transformaram-se em senhores cidadãos e, nesta perspectiva, suas
possibilidades de poder já não eram mais restritas ao domínio senhorial. Além
disso, os privilégios sociais que desfrutavam colaboraram para a criação de uma
fonte de solidariedade social, que permitiam vantagens nas associações políticas.
A independência contribuiu para que antigos padrões fossem alterados ou
moldados para atender as necessidades das elites agrárias: “[...] os mecanismos
centrais da vida econômica passaram a gravitar em torno de interesses individuais
ou coletivos internos e a se organizar a partir deles [...]” (FERNANDES, 2010, p.
83). Ou seja, se antes com o status colonial os senhores eram figuras secundá-
rias, seus interesses estavam subordinados aos interesses metropolitanos; com
a independência, eles ganham um papel de destaque, passando a controlar os
rumos econômicos. Neste cenário, as relações comerciais ganham mais espaço e
os senhores passam a experimentar novas possibilidades.
É evidente que o processo não ocorreu de forma abrupta. As idas e vindas, os
avanços e retrocessos fizeram parte de sua constituição. Fernandes (2010, p. 106)
inclusive aponta que as mudanças econômicas contaram com transformações de
ordem cultural; este processo fica claro quando ele afirma que “[...] Só com o tem-
po, graças à expansão do mercado interno e ao aparecimento de condições favo-
ráveis [...], o ‘espírito burguês’ se libertaria dessas malhas negativas, compostas
pelas várias ramificações internas do capitalismo comercial [...]”.
Fernandes (2010, p. 128) destaca duas figuras importantes dentro desse pro-
cesso: o fazendeiro de café e o imigrante.
O fazendeiro de café surge como o próprio autor define “[...] uma variante típica
do antigo senhor rural [...]”, com uma interessante perspectiva: a de “[...] dissociar
a fazenda e a riqueza que ela produzia do status senhorial [...]”. Quanto ao imi-
grante, este procurava “[...] a riqueza em si e por si mesma [...]”. Os dois possuem
muitas diferenças, mas algo em comum: perceberam que existia uma transforma-
ção econômica em curso, fruto da ruptura com a antiga ordem senhorial. Nesse
cenário, o fazendeiro aceitou e identificou-se com a dimensão burguesa que se
apresentava; já o imigrante, como bem assinala o autor, como estava fora do con-
texto do tradicionalismo, acaba sendo impelido ao processo por interesses de teor
espoliativo, extorsivo ou especulativo.
Fernandes (2010, p. 139) distingue dois tipos de personalidade presentes nos
fazendeiros de café: “coronéis” ou “homens de negócios”. Como coronel, “[...] já
era o antípoda do senhor agrário. Afirmava-se como este, através do poder político
gerado por sua situação econômica. No entanto, despojado do domínio [...] ele se
via privado das compensações, da segurança e da autoridade do status senhorial
[...]”. Nosso maior interesse está no outro tipo de personalidade que se forma, a do
fazendeiro como “homem de negócios”, que destacamos a seguir.
Dentro do perfil de homens de negócios, os fazendeiros de café assumiram
uma postura diferente: passaram a ocupar-se menos com os problemas finan-
ceiros e comerciais da fazenda. Para tanto, delegaram essa incumbência para
subalternos e somente envolviam-se com essas questões em momentos críticos;

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“[...] portanto, ele [fazendeiro] encaixava a fazenda na conexão econômica a que
ela devia pertencer depois que ela evoluíra para o modelo de plantação comercial
típica em regime de trabalho livre [...]” (FERNANDES, 2010, p. 141). Vale destacar
ainda que, neste novo perfil, o cafeicultor assumia uma posição estratégica, em
que o excedente ganho com a lavoura não se destinava apenas a ser aplicado
nela (lavoura), mas também fora dela.
Outro autor que identifica as modificações e o crescimento das funções dentro
das fazendas de café foi Sallum Junior (1982, p. 242). Para o autor, à medida que
aumentava a massa do capital produtivo “[...] as funções diretivas do capital eram
delegadas pelo fazendeiro a trabalhadores assalariados, concentrando-se ele nas
funções do capital, não vinculadas ao processo de produção imediata [...]”.
Os cafeicultores carregavam consigo, pensando nessa nova perspectiva, uma
mescla do novo, representado pelo fato de serem “homens de negócios”, e do
tradicional, pois mantinham sua posição de proprietários rurais. Fernandes (2010,
p. 142) identifica que esse momento “[...] infundia certa dignidade e grandeza às
suas funções de ‘homens de negócios”, pois sendo também fazendeiro, ele não
era um ‘homem de negócios’ qualquer: tinha atrás de si a auréola, real ou imagi-
nária, da ‘tradição de família’ [...]”. É importante dizer ainda que seria este tipo de
proprietário rural que esteve presente na implantação do regime republicano, ele
foi “[...] o principal agente humano ‘ativo’ da revolução burguesa. Ele lhe conferiu o
parco e fluído sentido político que esta teve, ao optar pela república e pela liberal
democracia [...]”.
Para Cardoso (1969, p. 190) a contribuição destes “novos agentes” da econo-
mia ganha impulso, sobretudo, com a abolição da escravatura “[...] A nova fazenda
de café do Oeste Paulista, ao contrário, ganhou impulso no período de declínio
da escravatura, cujo golpe decisivo havia sido desferido pela proibição do tráfico
negreiro em 1850 [...]”. O fazendeiro paulista passa então a importar mão de obra
livre, alguns chegam inclusive a engrossar o quadro de abolicionistas, desta ma-
neira “[...] Perdia sua condição de senhor para tornar-se um empresário capitalista
[...]”.
Outro autor que avança nas questões relacionadas as transformações desta
nascente burguesia foi João Manuel Cardoso de Mello (1982, p. 99) na sua analisa
“[...] a burguesia cafeeira foi a matriz social da burguesia industrial [...] o capital in-
dustrial nasceu como desdobramento do capital cafeeiro empregado, tanto no nú-
cleo produtivo do complexo exportador [...] quanto em seu segmento urbano [...]”.
O fazendeiro “homem de negócio” reveste-se, como relata Fernandes (2010,
p. 144), de uma “mentalidade econômica tipicamente racional”. Mentalidade essa
que contribuiu para modificar os fatores que configuravam a estrutura da situação
de mercado e “[...] o ápice desse processo foi atingido pela fundação de novos
bancos [...] mas ele se desenrolara, de forma latente, desde o fim do século XIX,
e tomara alento com as primeiras medidas de ‘defesa do café [...]” (2010, p. 145-
146).
Seguindo a esteira das transformações que vinham ocorrendo, Martins (1978)
destaca como não menos importantes aquelas que ela classifica como “transfor-
mações das seções bancárias”. Em sua visão, o desempenho do papel bancário,
nas últimas décadas do século XIX, coube a comerciantes e fazendeiros abona-
dos. Ainda ressalta que não podemos esquecer de que as casas comissárias de

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café tinham essa função, o que se comprova pelo número considerável de capita-
listas que apareciam nos almanaques paulistas do século XIX, e que não deveriam
ser deixados de lado.
O autor também chama atenção para o fato de que o surgimento destas insti-
tuições de crédito com o nome de banco, não poderiam ser classificadas como o
início do sistema de crédito, mas sim como parte de seu desenvolvimento (MAR-
TINS, 1978, p. 215).
Esse desenvolvimento pode ser notado por meio das análises que Martins
(1978, p.225) faz acerca da experiência que esse grupo (de comerciantes e fazen-
deiros) herda ao dedicar-se às atividades bancárias. Tal prática habilitou-os a des-
cobrir que a rentabilidade real do capital decorria do uso do capital pelo capital. A
utilização capitalista do capital, na visão de Martins (1978, p.225), estava em uma
dimensão maior do que apenas emprestar dinheiro a juros “[...] numa certa medi-
da, isso teria permitido o aparecimento de uma atividade empresarial ‘pura’ [...]”.
Outro ponto que chama atenção está relacionado ao investimento que alguns
cafeicultores realizam nas atividades industriais, segundo Mello (1982, p. 99) o
final do século XIX marca boa parte dos investimentos nesta área “[...] ocorreu que
entre 1890 e 1894, a taxa de acumulação financeira sobrepassou, em muito, a
taxa de acumulação produtiva. Era suficiente, portanto, que os projetos industriais
assegurassem [...] uma taxa de rentabilidade esperada positiva [...]”.
Para Mello (1982, p. 101) o complexo cafeeiro foi responsável por um processo
de acumulação de capital-dinheiro “[...] que se transformou em capital industrial e
criou condições necessárias a essa transformação: uma oferta abundante no mer-
cado de trabalho e uma capacidade de importar alimentos, meios de produção e
bens de consumo e capitais [...]”.
Outra contribuição realizada pelos fazendeiros de café seria a mão de obra
livre, e não apenas aquela destinada ao trabalho rural, segundo Mello (1982, p.
101) “[...] a existência de trabalhadores livres a disposição do capital industrial de-
veu-se à imigração em massa, que supriu as necessidades do núcleo produtivo e
do segmento urbano do complexo exportador [...]”.
Percebe-se assim que o novo tipo de fazendeiro, com perfil de “homem de
negócios”, não fica subordinado a ações que antes vinham do governo, como no
período colonial, agora ele possuía uma maior participação nas decisões políticas
e econômicas.
Passando para a perspectiva do imigrante, como homem de negócios, cabe
ressaltar que o próprio Fernandes (2010, p. 153) identifica certa dificuldade em
abordá-la, devido à grande diversificação das correntes migratórias e dos fatos
que envolvem sua incorporação às economias internas. No entanto, em nosso
texto, abordaremos certos elementos da situação dos imigrantes presentes na “[...]
realização de suas carreiras ou nas influências construtivas que exerceram, seja
para eliminar e aperfeiçoar, seja para substituir certos padrões obsoletos de vida
econômica [...]”. De imediato, a presença do imigrante já representou um avanço
na esfera capitalista comercial e financeira, gerando reflexos principalmente no
mercado interno.
A presença dessa nova massa de trabalhadores (imigrantes) não representou
apenas a substituição do antigo modelo de trabalho escravo, pelo de trabalho livre.
Lógico que, com a introdução em larga escala do trabalho livre, o mercado interno

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sofreu uma consequente expansão; todavia, o imigrante não ficou restrito apenas
a ser mais um braço para as lavouras, muitos acabaram constituindo-se em “ho-
mens de negócios”. Sendo que a própria visão do estrangeiro de modo geral “[...]
fazia parte da sua perspectiva e do seu cálculo econômico acumular riqueza em
forma monetária. Considerações de status possuíam para ele escassa significa-
ção [...]” (FERNANDES, 2010, p. 156).
Ao longo dos anos, alguns imigrantes conseguiram participar mais ativamente
da vida econômica. Contribui para isso a capacidade dessa nova classe de “[...]
explorar as oportunidades econômicas abertas pela mobilidade horizontal e ver-
tical, com tamanha versatilidade ocupacional ou econômica [...]” (FERNANDES,
2010, p. 160). Outro ponto que chama atenção está no fato de que, apesar de ain-
da estar longe do topo, o imigrante já se configurava como um agente econômico
da concentração de capital comercial e, aos poucos, ia assumindo os papéis eco-
nômicos emergentes de uma economia de mercado, que passava por um período
de consolidação.
Mesmo nas fazendas os imigrantes conseguiram aos poucos algumas con-
quistas importantes, como a produção de produtos de subsistências; com o tempo
esta produção passou a gerar até algum excedente “[...] este excedente era ven-
dido nos núcleos urbanos, aumentando, pois, a capacidade de consumo do imi-
grante [...]” com o tempo alguns imigrantes aumentavam “[...] suas possibilidades
de escapar da vida agrícola graças as economias acumuladas, que podiam, então,
ser invertidas em pequenos negócios nas vilas e cidades [...]” (CARDOSO, 1969,
p. 192).
Cardoso (1972, p.49) afirma que esse período de consolidação também está
inserido dentro do processo que leva à formação da ordem industrial-capitalista no
Brasil. Fase que contribuiu para a constituição da camada empresarial, segundo
o autor: “[...] tentamos compreender a ação empresarial tanto como resultado de
uma estrutura determinada do mercado e da sociedade, quanto como variável que
interfere na gênese deste mercado e sociedade [...]”.
Além do mais, o imigrante conhecia as possibilidades do mercado interno,
quais as áreas que poderiam ser atacadas segundo um novo estilo. Para tanto,
mobilizou capitais e promoveu arranjos comerciais, além de “[...] introduzir, na co-
mercialização de produtos agropecuários, destinados ao consumo ou à produção
industrial, técnicas empregadas na Europa, onde o capital comercial procedeu à
concentração da produção artesanal [...]” (FERNANDES, 2010, p. 161).
Fernandes (2010, p. 161) confere uma importância muito grande aos feitos
obtidos pelos imigrantes neste período de desbravamento da economia. Para ele,
o imigrante tornou-se o principal agente econômico, que contribuiu para a substi-
tuição do modelo que privilegiava as importações. Foi um agente privilegiado nas
fases iniciais da concentração industrial, sendo inclusive considerado como um
“herói da industrialização”, que segundo Fernandes (2010, p.161) representou um
marco na transformação estrutural que “[...] tornou a Revolução Burguesa uma
realidade histórica no Brasil [...]”.
Assim como dos fazendeiros que adotavam o estilo de “homens de negócios”,
Fernandes (2010, p. 162) assinala a importância desta ligação relacionada ao tra-
balhador estrangeiro: “[...] o imigrante concentrou sua ação econômica em áreas
que eram vitais para o aparecimento ou fortalecimento das referidas conexões

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[...]”. O que, de certo modo, contribuiu ainda para expandir e diferenciar a rede de
estabelecimentos comerciais e para fortalecer as relações de comercialização e
produção interna.
As pretensões dos imigrantes dentro desse processo, segundo Fernandes
(2010, p. 166) assumem um caráter de tendências imediatistas. Ao tratar nova-
mente o imigrante como “o principal agente econômico” do processo de forma-
ção e expansão do novo regime, observa que essa nova classe não tinha razões
emocionais, materiais e morais que a impelisse a projetos econômicos de longa
duração.
Convém ressaltar que o caminho que o imigrante percorreu para alcançar este
posto de agente privilegiado da economia, foi alcançado a partir do preenchimento
de três papéis construtivos da economia monetária:

[...] primeiro coube-lhe uma função primordial para a constituição de


uma economia capitalista: a de constituir o agente original do trabalho
livre [...] segundo malgrado sua condição de inicial de equivalente huma-
no do escravo, o imigrante logo se erigiu no único elemento que possuía
expressão monetária e poder aquisitivo real [...] terceiro, o imigrante tanto
concorreu para intensificar o desenvolvimento interno do capitalismo co-
mercial e financeiro, quanto ocupou uma posição central na canalização
socialmente construtiva de suas influências dinâmicas, que faziam pres-
são sobre a diferenciação e a intensificação da produção destinada ao
consumo interno [...] (FERNANDES, 2010, p. 169).

Alguns fatores que poderiam ajudar a entender o impacto da imigração sobre


a expansão interna do capitalismo são levantados por Fernandes (2010, p. 170).
Num primeiro momento, o autor discorre sobre a questão da tradição cultural. Em
segundo lugar, Fernandes (2010, p. 171) identifica as questões de adaptação em
que o cenário que o imigrante vivencia de desagregação da ordem escravocrata
e senhorial não estavam relacionados a fatores psicológicos, mas sim a fatores
psicossociais. Por último, Fernandes (2010, p. 172-173) sinaliza para a emergên-
cia dos imigrantes constituírem papéis econômicos novos e promoverem certos
ajustamentos sociais. Eles não podiam competir com os senhores agrários ou com
os fazendeiros (tanto “coronéis” como “homens de negócios”); contudo, possuíam
um papel decisivo nesta nova ordem e cada vez mais o mercado interno e externo
exigia a criação de novos papéis.
Para Cardoso (1972, p. 50), no entanto, não bastava perceber o processo
apenas dos ângulos sociológico e econômico. Era preciso que esses fossem com-
pletados por meio de uma análise que destacasse as características sociais da
camada empresarial brasileira.
A importância desse novo cenário que nasce pode ser percebido quando Car-
doso (1972, p. 60) frisa que o processo de industrialização é o responsável pela
transformação das antigas culturas, que segundo ele são afetadas em cinco seto-
res fundamentais: sistema familiar, estrutura de classe e raça, valorizações éticas
e religiosas, ordenação jurídica e conceito de Estado-Nação.
Voltando na figura do imigrante como homem de negócios, Martins (1978, p.
252) caracteriza que é a partir de 1890 que o trabalhador estrangeiro, principal-

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mente o imigrante italiano, adentrou para o mundo dos grandes negócios; período
que coincide com a entrada mais numerosa de imigrantes no país. Martins destaca
ainda a presença desses imigrantes, neste primeiro momento, como ligados à ati-
vidades comerciais e bancárias:

[...] entre 1891 e 1905 foram registrados na junta comercial de São


Paulo 42 novos bancos constituídos no período [...] desses novos ban-
cos, 22 eram de propriedade de imigrantes italianos radicados no Brasil.
Entre 1899 e 1905 foram fundados 23 novos bancos, dos quais 22 eram
os referidos bancos de imigrantes italianos. Além disso, havia acionistas
italianos em pelo menos três bancos de maioria brasileira, dois dos quais
poderosos estabelecimentos de famílias tradicionais de São Paulo (MAR-
TINS, 1978, p. 252).

O início do século XX é apontado por Martins (1978, p.254) como o momento


de crescimento do imigrante como industrial. Fato que se confirma por neste perío-
do já existir em São Paulo 36 indústrias de imigrantes italianos na cidade, sendo a
maioria na capital, onde praticamente imperava o padrão de organização da gran-
de indústria. Essas indústrias reuniam em seus quadros mais de 3.500 operários;
isso sem contar as pequenas oficinas de trabalhos, pequenas e médias fábricas e
essas mesmas indústrias e oficinas que pertenciam a outros imigrantes.

2. Ascensão dos imigrantes no interior paulista

O desenvolvimento inicial dos principais centros cafeicultores do Oeste paulis-


ta, foram realizados por iniciativa de alguns grupos de fazendeiros do café. O que
acaba reforçando os argumentos propostos por Fernandes (2010), sobre o desen-
volvimento inicial da Revolução Burguesa no Brasil.
Para termos uma visão mais geral dessa ação, basta que observemos o tra-
balho de Holloway (1984, p.39), em que o autor aborda, por exemplo, o esforço
dos cafeicultores na construção de um trecho de quatrocentos quilômetros que
facilitariam o escoamento do café no trajeto compreendido entre Ribeirão Preto e
Santos: “[...] A estrada de ferro mogiana, organizada e financiada por fazendeiros
da área, começou a ser construída em Campinas, em 1874, e alcançou Ribeirão
Preto uma década mais tarde [...]”.
Vale ressaltar ainda que tal esforço para dinamizar o escoamento da produ-
ção, tinha uma forte motivação econômica, a qual estava em diminuir o tempo e
os gastos, que eram mutuamente mais elevados com as tropas de mulas. Desse
modo, a ferrovia representou não apenas a modernização, mas o desbravamento
de regiões pouco aproveitadas do interior paulista, como é o caso da região de
Araraquara, que em 1895 teve o início da construção de sua estrada de ferro (co-
nhecida como Araraquarense).
Assim, a região expandiu-se: “[...] possuía apenas três municípios em 1886,
mas o número cresceu para 24 em 1920 e 36 em 1934. A Araraquarense incluiu
novas áreas de desenvolvimento, tanto na década de 1920 como mais tarde [...]”

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(HOLLOWAY, 1984, p. 41). A ferrovia servia aos interesses de dinamizar a pro-
dução do café, diminuindo perdas e tempo de transporte, mas não ficou restrita
a isso, ela também promovia o transporte de pessoas e de outros bens; além do
desbravamento de novas áreas, ou seja, acabou se tornando um importante ins-
trumento de desenvolvimento.
Outra importante realização dos cafeicultores foi o desenvolvimento dos núcle-
os urbanos “[...] numa economia deste tipo é fácil de compreender que os núcleos
urbanos passavam a exercer funções econômicas importantes [...] toda a distri-
buição das mercadorias necessárias ao consumo das fazendas faziam-se através
das cidades [...]” (CARDOSO, 1969, p. 192).
Torna-se, portanto evidente que as novas condições de exploração do café
colaboraram tanto para a utilização da mão de obra livre, quanto para um maior
desenvolvimento do mercado consumidor, ou seja, “[...] instigaram nos mais au-
dazes dentre os fazendeiros, comerciantes ou antigos imigrantes que passaram a
negociar ou trabalhar em oficinas nos núcleos urbanos, o espírito de empresa [...]”
(CARDOSO, 1969, p. 193).
O despreparo de muitos cafeicultores com a nova ordem, onde o trabalho livre
do imigrante predominava, evidenciava a falta de preparo que muitos fazendeiros
tinham em administrar uma nova realidade econômica. Holoway (1984, p.62) mos-
tra um claro exemplo disso no fato de que eles (cafeicultores) não tinham muita
noção de como remunerar os imigrantes, e de quanto estes estariam dispostos a
assumir nos riscos de produção. Políticas e práticas como as do colonato, parce-
ria, armazém e “caderneta” de gastos, são apenas alguns exemplos de mecanis-
mos que ainda estavam afastados do modelo assalariado.
Com o tempo, graças a sua luta e favorecidos por políticas como as do gover-
no paulista, os imigrantes foram vencendo barreiras e passaram a ocupar papéis
de destaque no desenvolvimento econômico do Oeste paulista. Como bem frisou
Fernandes (2010), eles são personagens importantes neste processo de trans-
formação, seja na cidade, ou no campo, passaram a ter um papel de destaque.
Holloway (1984, p. 212) afirma que no campo “[...] alguns estrangeiros residentes,
bem sucedidos no comércio ou na indústria, adquiriram propriedades rurais, po-
rém, muitos dos imigrantes que se tornaram proprietários de fazendas operadas
por trabalho familiar começaram provavelmente como colonos [...]”.
São exemplos de imigrantes que obtiveram grande sucesso como proprietá-
rios rurais: Francisco Schimidt e Geremia Lunardelli. Holloway (1984) destaca que
os dois casos são excepcionais, chegando a receber inclusive o título de Barões
do café, fugindo inclusive às características presentes nos demais casos de imi-
grantes bem sucedidos com propriedades rurais. A região que mais se destacou
neste quesito foi a zona Araraquarense; era a região que mais tinha fazendas em
propriedade de italianos no estado de São Paulo.
Nos anos que se seguiram o aumento das propriedades rurais em mãos de
imigrantes cresceu consideravelmente. A taxa de crescimento, por exemplo, entre
os grupos de origem italiana, portuguesa e espanhola, eram superiores a 100 por
cento, segundo dados de Holloway (1984, p. 229).
E foi nas fazendas, graças à participação dos imigrantes, que o processo de
transformação teve grande impulso. Segundo Dean (1977, p. 154-155) a modifica-
ção do sistema de trabalho nas fazendas ocasionou uma diversificação na econo-

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mia do Estado. A demanda de consumidores aumentava, e uma maior variedade
de produtos se fazia necessária, as importações já não davam conta de sustentar
esse crescente mercado; é neste ponto que muitos “[...] imigrantes abandonaram
o trabalho agrícola e se dedicaram a ofícios. Pequenas indústrias se multiplicaram
no interior de São Paulo [...]”. O autor (DEAN, ano, p.155) destaca como exemplo a
cidade de Rio Claro, que se industrializou notavelmente, contribuindo entre outros
fatores o favorecimento que sua posição ferroviária lhe conferia.
Voltando nossa atenção para o meio urbano, a inserção do imigrante como
importante agente no desenvolvimento econômico encontra ainda mais subsídios
que merecem nossa atenção. Dean (1971, p. 58) fornece uma interessante visão
sobre a inserção do imigrante como comerciante no meio urbano: “[...] A razão
mais óbvia da preponderância de imigrantes no comércio, muito embora explique
a propensão deles para a manufatura, é a ausência quase completa de um quadro
de paulistas nativos com um estilo urbano de vida [...]”.
Outros fatores que contribuíram para a inserção ainda maior de imigrantes
como futuros homens de negócios foram as redes de relacionamento entre eles.
Assim, aqueles que já estavam inseridos como homens bem sucedidos: “[...] os
empresários tendiam a contratar ou ajudar pessoas oriundas de seus próprios
países ou até vindos das mesmas cidades da Europa [...]” (DEAN, 1971, p. 61).
As companhias europeias também viam nos imigrantes importantes instrumentos
para o desenvolvimento das suas firmas. Desse modo, uma rede de confiança pa-
recia legitimar esse apoio que conferiam a eles, sendo que “[...] alguns treinados
pelas próprias companhias, passaram a vendedores ou técnicos, outros tinham
tido contatos comerciais ou sociais anteriores. Considerações políticas, quando
não sentimentos nacionalistas, aconselhavam o emprego de compatriotas [...]”
(1971 p. 64-65).
Mesmo o caso de um dos maiores imigrantes-empresários, o do futuro Conde
Francisco Matarazzo, contou com a ajuda de outros imigrantes em seu início em
Sorocaba. Matarazzo constituiu uma das maiores fortunas de sua época; para cá
trouxe além da família, conhecimento e certo pecúlio (dinheiro) e, “[...] amparado
por outros comerciantes italianos, abriu pequena casa de comércio [...] os nego-
ciantes seus amigos lhe forneciam capital e ele principiou a derreter banha [...]”
(DEAN, 1971, p. 69). No final do século XIX, o grande empreendedor mudou-se
para a capital e lá seus negócios expandiram-se, tornando-o, como já frisamos um
dos empresários mais bem sucedidos de sua época.
Existiam ainda casos de imigrantes que contavam não apenas com a rede de
relações com seus conterrâneos. Alguns como é o caso de Alexandre Siciliano, Ita-
liano que chegou a São Paulo em 1869, e que mais tarde veio a residir e iniciar em-
preendimentos em Piracicaba. Além das relações com outros imigrantes, Siciliano
também contou com ascendência sobre fazendeiros da região, fruto de sua união
com uma filha de um importante e rico fazendeiro. Em companhia de um irmão e
de outro sócio produziu uma máquina de beneficiar café, o projeto deu certo e a
empresa prosperou, mudou-se, então, para a capital e participou de muitos outros
empreendimentos rentáveis na capital e em Jundiaí (DEAN, 1971, p. 83).
Se por um lado, possuir uma rede de relações e, algum capital ajudava em
muito no sucesso dos imigrantes, que vieram a se constituir em empresários; vale
destacar que possuir algum capital não era uma condição essencial para que o

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imigrante viesse a se tornar um empresário, um homem de negócios. Tal fato pode
ser mais claramente percebido quando tomamos os exemplos descritos por Bar-
bosa (2006), em seu trabalho sobre a constituição do empresariado fabril da indús-
tria calçadista da cidade de Franca no interior paulista.
Segundo o autor (BARBOSA, 2006, p.92), das 65 empresas registradas na
cidade entre os anos de 1900 a 1945, mais da metade (36 delas, ou 55%) eram de
empresários imigrantes de origem italiana. Ao citar nomes de imigrantes ligados a
essas indústrias (como Pedro Spessoto, João Palermo, Salvador Mazzota, entre
outros), o pesquisador faz uma interessante observação: “[...] estes e os de proce-
dência espanhola, segunda comunidade estrangeira mais importante, eram todos
homens de origem modesta [...]” (2006, p. 92). A procedência humilde desses ho-
mens não atrapalhou sua inserção na nascente indústria de Franca. Na verdade,
o fator decisivo para o seu sucesso foram os conhecimentos adquiridos para a
instalação de pequenas oficinas e comércios, que como bem citou Dean (1971),
não eram características do incipiente espaço urbano paulista.
A produção manufatureira possibilitou, segundo Barbosa (2006, p. 105), a so-
brevivência do saber e da habilidade como elementos importantes para a produ-
ção; o que, segundo ele, barateou o início do processo de industrialização em
Franca. O que de fato possibilitou um maior acesso de imigrantes-empresários de
origem humilde: “[...] nesse sentido, entendemos que o ofício, a habilidade manual,
possa ser interpretado como uma porta de acesso ao ‘mundo empresarial’ e que
a capacidade criativa constitua um aspecto relevante a explicar o êxito de empre-
sários do setor [...]”.
A região de Araraquara/São Carlos também contou com a participação de
imigrantes como empresários e donos de propriedades. Truzzi (2010, p. 118), ao
fazer uma análise sobre o desenvolvimento das indústrias nessa região, sinaliza
que o início das atividades industriais ainda estava ligado aos cafeicultores; por
isso, voltadas para a produção cafeeira, como é o caso da indústria de beneficia-
mento de café. No entanto, mesmo este segmento, aos poucos, foi sendo explo-
rado pelos imigrantes, como bem exemplifica o autor, citando um caso na cidade
de São Carlos: “[...] em 1915, o maior estabelecimento comercial do gênero era o
Engenho Victoria, de propriedade de Alexandre Masci, imigrante italiano [...]”.
Quando investiga a participação dos imigrantes no desenvolvimento da indús-
tria em São Carlos, Truzzi (2010, p. 120) destaca que esse grupo ocupa posição
de protagonista em qualquer ofício. Contudo, sobressai-se em dois tipos particula-
res de subindústrias: a de artigos de consumo popular e a fornecedora de produtos
agrícolas, mesmo com a resistência de alguns. Essa indústria de “fundo de quin-
tal”, tinha “[...] certo mercado garantido por saber tanto se aproveitar da disponibi-
lidade de certas matérias-primas locais [...] quanto selecionar para a manufatura
artigos cuja relação peso ou volume tornam-se desvantajosa a importação [...]”.
Com o passar dos anos, surgiram novos setores, que foram sendo ocupados
por imigrantes-empresários. Alguns já de maior expressão econômica, como é o
caso da Serraria Santa Rosa, fundada por um imigrante português que, no ano
de 1915, talvez fosse o maior estabelecimento industrial de São Carlos. Fato que
pode ser comprovado pela serraria fornecer madeiras para a cidade, fazendas
e também para as companhias ferroviárias. Além disso, a mesma contava com
“[...] 400 juntas bois empregadas na tarefa de puxar madeira do mato em dire-

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ção a algum ramal ferroviário. Para tal dispunha de 100 peões que trabalhavam
nos campos com as juntas e outros 60 operários internos na própria serraria [...]”
(TRUZZI, 2000, p. 121). Outras fábricas que possuíam volume representativo em
São Carlos, no início do século XX, foram: as Indústrias Giometti, responsáveis
pela fabricação de peneiras, rastelos, arames e pregos; e as indústrias Facchina,
que produziam adubos orgânicos, ambas as fábricas pertenciam a imigrantes de
origem italiana.
Rio Claro e Araraquara também possuem muitos casos de imigrantes que se
destacaram como homens de negócios. Vale ressaltar, no entanto, que no caso de
Rio Claro, a cidade tinha uma situação privilegiada por ser um ponto de cruzamen-
to entre as Companhias Paulista a Linha de Rio Claro (de bitola estreita). No início
do século XX, a cidade contava com “[...] oficinas de construção de carruagem,
selarias, serrarias, olarias, fornos de cal, uma fábrica de sapatos, tipografias, ofi-
cinas mecânicas. Estabelecimentos menores fabricavam massa, sabão, vinagre,
colchões, chapéus de palha, charutos, foguetes e gelo [...]” (DEAN, 1977, p. 155).
Mais da metade desses estabelecimentos pertenciam a imigrantes.
Caso interessante de um imigrante que se tornou importante empreendedor
na cidade de Rio Claro é o de Luiz Piccoli. Segundo Dean (1977, p.180), Piccoli
chegou a Rio Claro como colono, no entanto, logo se mudou para a cidade, pois
considerava que o trabalho na fazenda não fornecia condições, segundo ele [Piccoli]
para “se ficar rico”. Esse imigrante progrediu realmente na cidade, comerciou com
café e chegou a ter sete fazendas.
Com resultado da importância dos imigrantes em Rio Claro, Dean (1977, p.
182) sinaliza: “[...] Herdeira do município foi a classe média urbana, constituída de
uns poucos antigos colonos; mas, na maioria, de imigrantes que na Europa tinham
vivido em cidades, e tinham chegado com uma ocupação, um capital e relações
familiares [...]”.
No tocante a Araraquara, Corrêa (2008, p. 100 – 101) traz uma importante
contribuição, quando investiga as famílias que, durante a segunda metade do sé-
culo XIX, contribuíram de maneira efetiva para o desenvolvimento da localidade.
Dentre elas vale destacar: os Borbas, descendentes de Joaquim Mariano Borba,
comerciante que possuía armazém de secos e molhados em São Paulo, seu filho
Cândido Mariano Borba, montou uma loja de fazendas e mais tarde tornou-se
proprietário; os Soares de Arruda, que descendiam de Jesuíno Soares de Arruda,
descendente de comerciantes portugueses, adquiriu fazenda em Piracicaba, mon-
tou comércio em Araraquara e São Carlos, adquirindo ainda fazenda em Furnas;
por último, os Carvalhos, descendentes de Gabriel Antonio de Carvalho, natural de
Lisboa, foi mascate e pequeno proprietário rural, no entanto, seu filho e neto aca-
bam por destacar-se tanto como proprietários rurais, assim como líderes políticos
da época.
O vínculo das famílias citadas com as propriedades rurais e com o comér-
cio constituiu um processo de idas e vindas, o que já prenuncia que seu caráter
empreendedor vai ao encontro da fala de Fernandes (2010), quando se refere a
alguns grupos de fazendeiros e imigrantes contribuírem para o surgimento de uma
Revolução Burguesa.
Corrêa (2008, p.111) chega inclusive a identificar essa característica. Para a
autora existia uma parcela de investidores de pequeno capital que julgavam arris-

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cado aplicar seu dinheiro em uma empresa tão incerta como a agrária, dedican-
do-se assim à atividade comercial: “[...] Tornou-se frequente a abertura de lojas de
fazendas, de armarinhos e armazéns de duração efêmera, até que se completasse
o capital necessário para a compra de uma terra [...]”. Correia (ano, p. 111) ressalta
ainda que a compra da fazenda era condição necessária para a consolidação do
capital e para a conquista do prestígio social.
Voltando nossa atenção para os imigrantes, na cidade de Araraquara, imigran-
tes de origem humilde transformaram-se em empresários de grande prestígio,
como é o caso de Henrique Lupo. De origem italiana, Lupo chegou ao Brasil com
os pais e inicialmente se dedicou ao ramo de relojoeiro; mas, na década de 1920,
alcançou grande destaque no cenário industrial, ao iniciar de forma ainda simples,
uma pequena fábrica destinada à produção de meias. Com o passar dos anos,
a pequena fábrica prosperou e ainda hoje mantém de forma reconhecida suas
atividades. Outros dados estatísticos mostram o quanto os imigrantes estiveram
presentes em Araraquara: “[...] Numa relação de 48 pedidos de instalação de esta-
belecimentos industriais no período de 1910 a 1929, apenas seis eram brasileiros;
27 eram italianos e os restantes, espanhóis, turcos e poloneses [...]” (CORRÊA,
1967, p. 302).

Considerações finais

A transformação do imigrante em Homem de Negócio no Oeste Paulista nor-


teou as analises realizadas neste texto. Por meio das características levantadas
e das considerações de Fernandes (2010), a linha de raciocínio, que tratou o
imigrante como empresário em potencial, ou como homem de negócios, ganhou
significado. Lógico que não podemos descartar a participação dos cafeicultores
dentro deste processo, eles contribuíram para o seu início, mudaram sua visão e
constituíram, por assim dizer, também um espírito empreendedor, vindo a se tornar
homens de negócios. Lógico que essa visão diferenciada não é uma característica
que engloba um grupo muito grande tanto de cafeicultores como de imigrantes.
Vimos que o imigrante foi tratado como um agente diferenciado dentro do pro-
cesso de desenvolvimento empreendedor no interior paulista. Para isso, uma série
de fatores contribuem, como o fato de alguns já trazerem consigo certo pecúlio
(capital), ou certo conhecimento, ou ainda uma rede de relações, enfim estes e
outros fatores não são autoexcludentes. Na verdade, muitas vezes, eles traba-
lhavam em conjunto para aumentar as chances de sucesso do imigrante como
futuro homem de negócios. Chama a atenção ainda que mesmo os mais humildes,
acabaram constituindo negócios modestos, e que dependendo da localidade e do
ramo, viram frutificar esses negócios.

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____________________
Recebido: 13 abril, 2017.
Aceito: 29 abril, 2017.

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Racialização no Processo Imigratório
Brasileiro: as Transformações na
Legislação e o Papel Do Estado1
Racialization in the Brazilian immigration process:
the changes in the law and the state’s role

Patrícia Bosenbecker2

Resumo
A análise da influência e controle do Estado brasileiro no processo imigratório,
bem como a seletividade presente nas políticas imigratórias nacionais, são cir-
cunstâncias que podem nos auxiliar na compreensão do fenômeno migratório, que
respeita as conjunturas de cada momento, sofrendo alterações e transformações
ao longo do tempo. Para tanto, é preciso avaliar como o imigrante é definido no
escopo da Nação. Entre os conceitos que podem auxiliar nessa análise, está a no-
ção de racialização produzida por Robert Miles (2002). A partir dessa perspectiva
desenvolvemos uma discussão sobre a percepção do imigrante na legislação bra-
sileira, desde as primeiras leis sobre o tema, ainda no início do período imperial,
até a consolidação das legislações nacionais do Estado Novo.

Palavras-chave: Racialização, imigração, legislação, Estado, sociologia histórica.

Abstract
The analysis of the influence and control of the Brazilian State in the immigration
process, as well as the selectivity present in the national immigration policies, are
circumstances that can help us to understand the migratory phenomenon, which
respects the conjunctures of each moment, with changes and transformations
throughout the time. Therefore, it is necessary to evaluate how the immigrant is
defined in the scope of the nation. Among the concepts that can assist in this analysis
is the notion of racialization produced by Robert Miles (2002). In this perspective
we developed a discussion on the perception of immigrants by Brazilian law, since
the first laws on the subject, at the beginning of the Brazilian Empire, until the
consolidation of the national Estado Novo laws.

Keywords: Racialization, immigration, legislation, State, historical sociology.

1 Este artigo foi produzido para a disciplina de Povos: teorias da etnicidade, raça e nação,
ministrada pelo Prof. Dr. Karl Martin Monsma, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia/
UFRGS.

2 Doutora em Sociologia/UFRGS. Mestre em História/UFRGS.

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A imigração é um tema de ampla complexidade, que instiga pesquisadores
sociais ao redor do mundo não apenas a investigar o deslocamento de pessoas
em busca de melhores condições ou oportunidades de vida, uma vez que em
perspectiva global abarca transformações e mudanças nas sociedades de origem
e destino de grandes e pequenas nações, seja em âmbitos sociais, culturais ou
políticos. No âmbito das novas migrações internacionais é de extrema importância
a elaboração de políticas públicas que perpassem as conjunturas de intercultura-
lidade (cf. JARDIM, 2007), enfrentando as complexidades produzidas pelas con-
dições vivenciadas por refugiados ou pelas novas configurações produzidas pela
transmigração.
Historicamente, é possível analisar a influência e controle do Estado brasileiro
no processo imigratório, bem como a seletividade presente nas políticas imigrató-
rias nacionais. Tais circunstâncias podem auxiliar na compreensão do fenômeno
migratório, que respeita as conjunturas de cada momento, além de sofrer altera-
ções e transformações ao longo do tempo, incluindo mudanças sensíveis nas po-
líticas imigratórias de cada nação. Para tanto, é preciso analisar as variações que
o imigrante sofre ao longo do tempo, isto é, como o imigrante é definido no escopo
da Nação. Entre os conceitos que podem auxiliar nessa análise, está a noção de
racialização produzida por Robert Miles (2002, p. 75), que emprega “o conceito de
racialização para referir àquelas instâncias, onde relações sociais entre pessoas
têm sido estruturadas pela significação das características humanas biológicas de
tal forma como definir e construir diferenciadas coletividades sociais”.
Assim, o objetivo deste artigo é avaliar o processo de racialização no processo
migratório brasileiro, através do papel e atuação do Estado, especialmente a partir
da legislação referente à imigração, produzida no período de pós-independência
nacional até a Segunda Guerra Mundial, marco global de transformação para o
processo migratório de maneira geral, além de mudanças nas formas de intera-
ção dos Estados entre si e perante a imigração em geral. Nossa análise empírica
versará sobre as leis brasileiras, partindo das primeiras leis do Império brasileiro
até o conjunto de leis promulgadas pelo Estado Novo, especialmente entre 1938 e
1939, que, como veremos, redefiniram a imigração idealmente aceita e a atuação
do governo brasileiro frente ao processo migratório.

Raça e racialização no pensamento europeu

Michel Banton trabalha a ideia de raça e a racialização da Europa, do ocidente


e do mundo, através da concepção racial imbuída no pensamento europeu. Em
seu texto mais importante, Banton mostra as transformações que tal processo
sofreu na Europa, ressaltando que o termo “raça” primeiramente foi associado à
linhagem, mudando seu significado por volta de 1800, o que significa que as dife-
renças acompanharam as circunstâncias históricas, pois, “no século XIX, o termo
‘raça’ veio a significar uma qualidade física inerente. Os outros povos passavam
a ser vistos como biologicamente diferentes” (BANTON, 1979, p. 30). Essa apli-
cação do conceito de raça estava relacionada à classificação racial originada e
produzida pelo colonialismo, “em um processo social, que poderia ser denominado

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racialização, pelo qual se desenvolveu um modo de categorização” (BANTON,
1979, p. 30), aplicado na Europa e depois no restante do mundo.
Contrariamente, Robert Miles (1993, p. 7) mostra “reservas sobre uma expli-
cação da natureza e origem do racismo que enfoque exclusivamente a situação
colonial” e propõe uma análise voltada para as relações pré-capitalistas dentro e
ao redor da Europa, sendo especialmente reproduzidas mais pelo surgimento das
nações, do que pelo colonialismo. Miles, assim, refuta a ideia de raça como forma
analítica, propondo como foco de estudos o racismo, para o autor:

Os Estados Nações da Comunidade Europeia não são confrontadas


com um problema de raça, mas com o problema do racismo, um proble-
ma que nos obriga a mapear e explicar um caso particular de exclusão,
simultaneamente nas suas especificidades e nas articulações dentro de
uma multiplicidade de outras formas de exclusão. (MILES, 1993, 26)

Outro autor que avalia as transformações no pensamento europeu, embora


usando abordagens e concepções relativamente distintas, detendo-se no conceito
de racismo, é George Fredrikson (2002)3. O autor produz uma história do racis-
mo, mostrando as mudanças no pensamento europeu até a ascensão do racismo
moderno, que pode ser definido de maneira mais direta pelo antissemitismo dos
séculos XVIII e XIX e o conceito que surgiu no século XIX, no qual estabeleceu
raças como tipos humanos, classificados pelas características físicas. Contudo, o
campo de estudos de Fredrikson é diversificado, pois aborda a ascensão do na-
zismo na Alemanha e a perseguição aos negros nos Estados Unidos, bem como
explora, de modo comparativo, o controle dos dois referidos Estados nacionais na
imposição de limites aos direitos civis dos judeus no primeiro país e da população
negra, no segundo.
Embora os autores aqui citados apresentem divergências conceituais e inves-
tigações empíricas distintas,4 a discussão é fundamental para entendermos a pro-
dução teórica existente referente à ideia de raça e aos conceitos de racialização e
racismo. Nesse aspecto, um dos pontos centrais envolve a teoria dos tipos raciais,
que dominou o cenário político e acadêmico do século XIX, com consequências
desastrosas no século XX, quando foram expostas as distinções entre classes su-
periores e inferiores de indivíduos, na qual a estrutura física ou biológica moldava
culturalmente os povos.5

3 Fredrickson mostra que o racismo é mais que teorização sobre as diferenças humanas ou o
pensar mal de um grupo. O racismo estabelece uma ordem racial através de uma hierarquização
dos grupos. A teoria ou conceito de racismo do Fredrickson tem dois componentes: diferença e
poder, e se origina de uma mentalidade que considera “eles” como diferente de “nós”, de uma ma-
neira permanente e intransponível. Esse sentimento de diferença fornece um motivo para usar uma
vantagem poderosa de tratar etno-racialmente o outro de maneira cruel ou injusta.

4 Não é interesse discutir nesse artigo as diferenças teóricas entre Miles, Banton e Fridrickson,
apenas salientamos uma produção acadêmica que pode enriquecer a discussão. Para críticas e
diferenças entre concepções de Miles e Banton, especialmente sobre “raça”, veja Miles (1993, p.
5 -6). Optamos por avaliar o processo migratório brasileiro, tema desse artigo, a partir do conceito
estabelecido por Miles, conforme mostraremos ao longo do trabalho.

5 Para uma discussão sobre a tipologia racial e a influência física no âmbito da cultura dos povos

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Banton (1979, p. 60) resume as principais características da doutrina da tipo-
logia racial, a partir da crítica a Robert Knox, biólogo que escreveu em meados
do século XIX. As características eram quatro: 1) as variações na constituição e
no comportamento dos indivíduos devem ser explicadas como a expressão de
diferentes tipos biológicos subjacentes de natureza permanente; 2) as diferenças
entre estes tipos explicam as variações nas culturas das populações humanas;
3) a natureza distinta dos tipos explica a superioridade dos europeus em geral e
dos arianos em particular; 4) explica a fricção entre as nações e os indivíduos de
diferentes tipos, que têm a sua origem em caracteres inatos. Os pontos aqui mos-
trados por Banton, a partir de um levantamento histórico dos escritores do século
XIX, revelam as características que delimitariam boa parte das relações sociais do
século XIX e parte do XX.
Miles (2002) argumenta que a utilização da ideia de “raça” é central, embora
não seja a única a contemplar o processo de racialização. Tal utilização perpassa
a classificação em raças, que remonta ao pensamento europeu como vimos, bem
como sua reprodução, e, consequentemente, as formas pelas quais as relações
entre raças são pensadas e determinadas por supostas características inerentes.
Para Miles (2002, p. 75), “racialização é um processo dialético de significado. Atri-
buindo uma característica biológica real ou alegada com significação para definir o
outro necessariamente implica definir a si mesmo pelo mesmo critério.” Por isso, é
importante frisar que a racialização dos grupos “implica a racialização do processo
no qual eles participam e as estruturas e instituições que resultam” (MILES, 1993,
p. 76).

Racialização e imigração

Nos estudos migratórios, uma das principais questões envolvidas é entender


porque e de que maneira o processo de deslocamento de pessoas é ou pode ser
racializado (MILES, 1993, p. 140). Uma das preocupações, como mostra o autor, é
encontrar as raças, ou nacionalidades, mais adequadas, para não só prover força
de trabalho, mas também contribuir com uma espécie de “sangue vigoroso” na
transformação de bons nacionais.6 O conceito de imigrante que cada país possui
é importante para o entendimento do processo migratório. Da mesma forma, cada
nação define o imigrante ideal, ou seja, os grupos que possuem preferência ou
prioridade de inserção no país. Miles (1993) lembra que, historicamente, a migra-
ção foi geralmente conceituada por noções raciais, quando não racistas, enraiza-
das no pensamento social e político do século XIX.
A hierarquia de “raças”, presente nas concepções políticas do processo imi-
gratório, classificava, assim, os imigrantes como elementos desejáveis ou indese-
jáveis. Os indesejáveis são, no pensamento do autor, os mais despossuídos e os
politicamente indesejados pelos governos. Nesse sentido, o Estado providenciava

veja Banton (1979, p. 43 e seguintes).

6 A referência que Miles faz é para “bons bretões” (1993, p. 140), uma vez que avalia a imigração
destinada à Grã-Bretanha. Transformamos aqui o termo, que no Brasil, poderia ser associado a
outras positivações, como “bom colono”, imigrante morigerado, entre outros.

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as classificações, geralmente, a partir de atos e decretos, nos quais, classificava
a imigração expondo os critérios de “indesejabilidade” (MILES, 1993, p. 144), que,
em um primeiro momento, envolvem, em geral, loucura, idiotia ou registros crimi-
nais.
Em seu livro Racism after ‘race relations’, Miles (1993) trabalha a imigração
direcionada para a Grã-Bretanha. Nessa análise, o imigrante é conceituado como
sendo uma pessoa de cor, um indivíduo colonizado, mas que, legalmente ou juri-
dicamente, é um súdito britânico, isto é, possui direitos civis reconhecidos como
cidadão britânico, mesmo sendo classificado como originário de uma classe infe-
rior. Eram condições atribuídas especialmente a imigrantes caribenhos e indianos,
que chegaram ao país após a Segunda Guerra Mundial. O estudo de Miles mostra
que esses não eram os primeiros imigrantes de cor a chegar ao país e que outros
grupos imigrantes, originados de países do próprio continente europeu, produziam
um vasto campo de discussões entre as autoridades. A principal referência são os
imigrantes irlandeses, numericamente superiores, além de judeus poloneses rus-
sos e imigrantes alemães, ou seja, imigrantes brancos, que deram origem a uma
série de atos, restrições ou privilégios imigratórios. Todos estes imigrantes foram
racializados no processo migratório britânico,7 no qual parte das comunidades imi-
grantes era tratada como um problema.
Assim, o Ato Imigrante de 1905, na Grã-Bretanha, contribuiu para consolidar
a noção de estrangeiros indesejados. O mesmo ato definiu um imigrante como
“um estrangeiro viajando em um navio como um ‘passageiro de terceira classe’,
uma categoria que foi distinguida de uma ‘cabine de passageiros’.” (MILES, 1993,
p. 144). Desta forma, o controle da imigração, delineada no ato, recaiu sobre a
parcela mais pobre dos imigrantes, uma vez que a viagem na terceira classe era
a mais barata, excluindo do referido controle do Estado, os imigrantes que tinham
melhores condições econômicas, ou seja, o mecanismo de controle operou pela
exclusão de estrangeiros que não tivessem renda ou condições financeiras de
se manter. Portanto, o fator mais sensível de controle, que marcou os critérios de
desejabilidade/indesejabilidade naquele momento foi econômico (MILES, 1993, p.
146-147).8
As leis e os atos de controle, as definições e restrições do processo migratório,
não apresentaram necessariamente conteúdos racistas, entendidos como teorias
de superioridade/inferioridade biologicamente definidas. Por vezes, encobriram
nominações, não estabelecendo grupos como raças, por exemplo. Contudo, Miles
adverte que os contextos políticos que originam a legislação, quase sempre em-
bebidos de ideologias e discussões que remetem às classificações racializadas,
mostram que a formulação das leis e regulamentações se constitui a partir de vi-
sões racistas originadas nas relações sociais.

7 Especialmente o capítulo 5, que trata da história da imigração e do racismo britânico (MILES,


1993, p. 128-149).

8 Miles, como marxista, acredita que o mecanismo primário da inclusão e exclusão foi colocado
na estrutura de classe e de relações de classe. Miles mostra que mesmo os judeus, que não eram
bem aceitos no país, se apresentassem boas condições financeiras entravam livremente, sem ne-
cessidade de passar pelo controle imigratório. O autor ainda alerta para o fato de que judeus que
eram cidadãos britânicos também sofriam as classificações racistas (mais detalhes desta discus-
são em Miles, 1993, p. 145-147).

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Um exemplo singular de tais postulados são os judeus, que foram negativa-
mente significados como raça por toda a Europa no início do século XX até o
pós-guerra e, mesmo que não tivessem sido citados como imigrantes indesejados,
faziam parte da grande massa de estrangeiros rejeitados na maior parte dos paí-
ses, como ocorreu nos Atos de imigração britânicos que excluíam os judeus, não
por sua condição, mas pelo caráter econômico, já que integravam grande parte
dos imigrantes pobres, refugiados e perseguidos política ou religiosamente. Assim,
a dimensão racista de exclusão ficou encoberta, embora tenha sido institucionali-
zada.9
Deste modo, existe uma relação entre a imigração em massa e a legislação
do país de destino, independente dos imigrantes serem classificados como dese-
jáveis ou não, uma vez que as leis e os atos reguladores tanto podem garantir o
acesso a determinados grupos quanto fechar as portas do país aos estrangeiros
considerados indesejados. As legislações dependem das conjunturas sociais, eco-
nômicas e políticas envolvidas no processo migratório. Por outro lado, as classifi-
cações produzidas podem se alterar ao longo do tempo, acompanhando, portanto,
as mudanças sociais e políticas de Estados Nações (MONSMA, 2013).
Na medida em que torna-se possível ao Estado através da promulgação de
leis e decretos controlar, incentivar e até limitar a imigração, portanto, a questão
central é a delimitação ou definição do papel do Estado neste processo de racia-
lização. Miles afirma que o papel do Estado é crucial porque é ele que policia as
fronteiras nacionais, definindo quem é uma presença desejável ou indesejável.
Particularmente, Miles se interessa pelos debates que envolvem as situações nas
quais:

...agentes do estado avaliavam as fontes potenciais de imigração ou


onde agentes do estado engajavam no debate sobre a introdução de res-
trições em imigração ou a deportação de seu território de uma população
de origem imigrante. Essas são todas situações onde o estado define o
que pode ser chamado de “critério de pertencimento”, ou seja, as carac-
terísticas que são consideradas essenciais para tornar-se um membro de
uma comunidade imaginada que é chamado de nação. (MILES, 1993, p.
135)10

9 Conforme Miles (1993, p. 146), “O conceito de racismo institucional teve alguma utilidade na
análise dessas circunstâncias. Em uma conjuntura onde o sentimento e práticas anti-judaismo
era considerado ser vergonhoso (Holmes, 1979, 104), e ainda onde havia agitação popular para
o Estado controlar a entrada de refugiados judeus estrangeiros, e onde essa categoria particular
de migrantes constituiu uma proporção importante do total da migração interna, foi possível para o
Estado implantar e fazer cumprir o controle para esse fim, sem identificar judeus pelo nome. Dado
que a maior parte de refugiados judeus estrangeiros da Europa oriental não possuía os meios pelos
quais eles podiam “decentemente sustentar a si mesmos”, uso desse critério de “indesejabilidade”
podia funcionar efetivamente na prática para controlar sua entrada na Grã-Bretanha.”

10 Miles também está interessado em como esse processo ocorre nas instâncias mais informais,
nas operações cotidianas que marcam desde a construção das leis até o policiamento e execução
dos objetivos pretendidos.

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Migração e a legislação brasileira em perspectiva histórica

A questão que colocamos é utilizar tais concepções para avaliar o caso bra-
sileiro. Nossa primeira tarefa é avaliar historicamente a construção e desenvolvi-
mento do processo migratório dirigido pelo Estado brasileiro e transportado para
a legislação nacional. Nessa perspectiva, optamos por avaliar na legislação os
aspectos que delimitaram os imigrantes desejáveis ou indesejáveis. Avaliamos o
período que vai da independência, ou mais precisamente, da constituição de 1824
até as leis de nacionalização do Estado Novo (1937-1945), especialmente nos
anos de 1938 e 1939.
Conforme Giralda Seyferth, os imigrantes chegados ao Brasil ainda no século
XIX eram considerados estrangeiros ou alienígenas, “categorias que, indistinta-
mente, remetem a indivíduos que não nasceram no país (mesmo quando natu-
ralizados) e aos descendentes de imigrantes portadores de identidades étnicas
consideradas incompatíveis com o pertencimento à nação” (SEYFERTH, 1999,
p. 199). Os descendentes de imigrantes, já nascidos no Brasil, são brasileiros de
nacionalidade e cidadania, contudo, problemas oriundos da baixa inserção des-
tes na sociedade nacional levaram a acirradas discussões sobre o pertencimento
nacional, ou, ainda, a própria formação da nação, e foram capazes de mudar os
cursos do incentivo destinado a alguns grupos de estrangeiros, como ocorreu com
os alemães, no início do período republicano.
Ao longo do século XIX até meados do século XX, o imigrante ideal para o
Brasil foi definido como sendo o agricultor branco, de origem europeia, e que migra
acompanhado de sua família, por vezes extensa e numerosa. Tal classificação,
portanto, visava os possíveis imigrantes europeus, que além de serem diferencia-
dos “racialmente” eram classificados pelo potencial enquanto camponeses. Tais
classificações tornam-se qualidades positivas de imigrantes e descendentes, ma-
joritariamente assentados em lotes agrícolas. Assim, surgem nas colônias qualifi-
cações como “bons colonos”, “bons agricultores”, “morigerados”, “sóbrios” (SEY-
FERTH, 2002, p. 119 e seguintes). Esse é um dos principais motivos para que a
política imigratória brasileira estivesse alicerçada, basicamente, mas não exclusi-
vamente, na regulamentação referente à propriedade de terras no país.11
Esta classificação ganharia novos contornos ao longo do processo imigrató-
rio, com o incremento de algumas questões raciais, que envolviam as discussões
sobre as melhores raças para formar o cidadão brasileiro. Além de imigrantes que
pudessem ser melhor assimilados no cenário nacional. Em todo o período aqui
tratado, existia a ideia vigente de que a imigração era essencial para o desenvolvi-
mento do país. Embora o Estado brasileiro fosse responsável direto pelo processo
migratório, tornando-se o principal agenciador de imigrantes, mas as questões
relativas à igualdade de direitos civis e de religião foram pensadas apenas tardia-
mente.
Como pode ser acompanhado pelo Quadro 1, a seguir, as diferenças entre
a legislação dos vários períodos políticos são latentes. As contradições marcam
oposições do pensamento político brasileiro, ao longo do tempo, envolvendo, prin-

11 Embora as regulamentações nem sempre culminassem em regularizações fundiárias ou evi-


tassem problemas agrários pelo interior do país. Sobre alguns aspectos da colonização envolvendo
a questão agrária, veja Neumann; Tedesco (2013).
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cipalmente, a formação do Estado nacional. No período imperial, foi regulamenta-
da uma imigração que definiu o imigrante como aquele estrangeiro que deveria ser
assentado na terra, em locais bem determinados e delimitados, em um processo
chamado de povoamento estratégico, ou, dito de outro modo, quase sem a pre-
sença de brasileiros e em regiões afastadas. Por outro lado, eram preferidos ele-
mentos de origem nórdica ou germânica, que, com pouca ajuda do Estado nacio-
nal (sem escolas, atendimento pastoral ou administrativo), tomavam seus próprios
rumos, em colônias bem distantes da Corte.
No período varguista (1930-1945), tal conjuntura seria um símbolo do perigo
que ameaçava a soberania nacional e a construção da nação. Comunidades isola-
das, com “cidadãos” que mal conheciam o idioma nacional, tornaram-se ameaças
por representar a possibilidade de separatismo, transformando-se, então, no perí-
odo entre guerras, em um problema nacional. São os chamados quistos raciais ou
étnicos não assimiláveis, notadamente alemães no sul,12 que representam o prin-
cipal alvo do Estado Novo. As leis desse período eram claramente mais seletivas e
restritivas do que àquelas decretas em outros momentos, somando-se um efetivo
controle policial, ou policialesco, do processo imigratório em si e da instalação
mais vigiada de imigrantes e descendentes.

Quadro 1 - Imigrantes desejáveis/indesejáveis na legislação brasileira


Legislação Imigrantes desejáveis Imigrantes indesejáveis Condições e incentivos
Os passageiros de um
navio de emigrantes de-
veriam ter acomodações
Proibia entrada de loucos, adequadas, com leitos, se-
Decreto nº idiotas, surdos, mudos, riam separados por sexos,
Imigrantes saudáveis e
2168, de cegos e entrevados, sem sendo que casais dividi-
jovens.
1858 acompanhamento de pa- riam um camarote. Alimen-
rentes (art. 6º). tação de boa qualidade,
acesso à enfermaria, e lim-
peza adequada, com latri-
nas suficientes.
Os indígenas da Ásia e da Proprietários agrícolas ou
África, que só seriam per- outros interessados pode-
mitidos por autorização do riam apresentar na Inspe-
Congresso Nacional. Auto- toria Geral de Terras e Co-
rizava agentes diplomáti- lonização um pedido para
Considerou livre a en- cos e consulares a fazer o receberem imigrantes. O
trada de indivíduo vá- possível para evitar a vinda governo também subsidia-
Decreto lidos e aptos para o de tais grupos, bem como va passagem para agricul-
n. 528, de trabalho, que não es- delegava a polícia portuária tores ou homens solteiros
1890 tavam sujeitos a algum a tarefa de impedir a entra- entre 18 e 50 anos, operá-
tipo de ação criminal no da de tais pessoas, assim rios mecânicos ou indus-
país de origem como também de mendigos triais. Os imigrantes que
e indigentes. Já deficientes fossem assentados em
físicos ou enfermos teriam lotes agrícolas receberiam
passagem paga somente título provisório, bem como
se trouxessem duas “pes- outras garantias.
soas válidas”.

12 Seyferth (2002) faz uma análise do debate entre imigrantistas e agentes do Estado, ao longo
destes períodos, marcando essencialmente o papel e agência dos imigrantes alemães estabele-
cidos no Brasil. Por motivos de nicho de pesquisa, também nos interessamos mais especialmente
por este grupo imigrante.

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Decreto nº Estrangeiros menores Maiores de 60 anos apenas A introdução de imigran-
6.455, de de 60 anos, e suas fa- acompanhando suas famí- tes era realizada com a
1907 mílias, que não tives- lias com pessoas válidas. fixação do indivíduo em
sem doenças contagio- lotes de núcleos coloniais,
sas, nem exercessem sendo tais migrantes agri-
profissões ilícitas, nem cultores acompanhados
fossem criminosos, da família (art. 92), ou de
dementes, vagabun- imigrantes aptos para tra-
dos, ou inválidos, que balhar em obras públicas,
chegassem na terceira vias férreas ou afins (art.
classe, á custa dos go- 94). O Estado acolhia os
verno ou de empresas. imigrantes espontâneos
que chegassem ao país,
com passagem de 2º ou
3ºclasse, que vinham por
conta própria (art. 95). Ple-
na liberdade de trabalho,
que não fosse prejudicial
à nação, liberdade religio-
sa e o gozo dos direitos
cíveis; garantindo ainda
proteção e auxílio no seu
assentamento Os imigran-
tes ficariam livres de direi-
tos de importação sobre as
bagagens e instrumentos
usados no trabalho.
Decreto nº Agricultores acompa- Pelo art. 257, os imigrantes No art. 5º, declarava-se
9.081, de nhados por suas famí- que não fossem agriculto- que enquanto a entrada de
1911 lias. res, não teriam direito aos imigrantes espontâneos no
auxílios oferecidos aos imi- país não fosse suficiente,
grantes instalados nos nú- a União iria contribuir com
cleos coloniais. valores de passagens,
agasalhos, alimentação e
tratamento de saúde na
chegada dos imigrantes,
além de transporte, isen-
ção de impostos. Também
acentuava a introdução de
técnicos e especialistas na
área agrícola, como vete-
rinários e agrônomos. No
art. 74, concedia um lote
de terra com título provi-
sório, recebendo o defini-
tivo (no próprio idioma do
imigrante) se conseguisse
desenvolver o lote em um
ano, para o estrangeiro
que casasse com uma bra-
sileira e para um nacional
que casasse com uma es-
trangeira.

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Decreto nº Não apresenta muitas Impediu a entrada de alei-
4247, de diferenças com relação jados, cegos, loucos, doen-
1921 ao decreto anterior. tes incuráveis, prostitutas, e
velhos. Além disso, firmava
alguns quesitos que pode-
riam levar a expulsão de
estrangeiros, como cometer
algum crime.

Decreto-Lei Os estrangeiros eram Proibiu a entrada de aleija- Nenhuma colônia poderia


nº 406, de divididos em imigran- dos, inválidos, cegos, sur- ser constituída de uma só
1938 tes permanentes ou dos-mudos, ou doentes com nacionalidade, destinava-
temporários (turistas moléstias contagiosas gra- -se 30% dos lotes agríco-
ou representantes de ves, com problemas men- las para brasileiros. Fica-
firmas). Foi estabe- tais e alcoólatras. Não eram vam proibidas a presença
lecida uma Quota de permitidos menores de 18 de professores de origem
entrada13, que delimi- anos e maiores de 60 anos estrangeira nas escolas,
tava que o número de que estivessem sozinhos. e o uso de nomenclatura
estrangeiros de uma Indigentes, vagabundos, para associações, comér-
determinada naciona- ciganos e congêneres, tam- cio e outros negócios em
lidade admitidos per- bém eram vetados, assim língua estrangeira. Esta-
manentemente no país como pessoas de conduta belecia-se que todas as
(não poderia exceder nociva a ondem e seguran- aulas nas escolas rurais
2% do número de imi- ça nacional. Ou ainda, pes- deveriam ser realizadas
grantes de tal origem soas de costumes imorais, em Português, e não seria
entrados no Brasil, ou ligados à prostituição. ensinada língua estran-
entre 1884 e 1933. E, Outro requisito importante, geira para menores de 14
desse percentual, 80% era a necessidade de pro- anos, obrigatoriedade do
seriam de agricultores var exercer uma profissão ensino de história e geo-
ou técnicos agrícolas). ou possuir bens suficientes grafia brasileira, bem como
para se manter. Pelo art. 2, a exigência de livros na lín-
o governo reservava o direi- gua oficial. Para adultos
to de limitar ou suspender, também haveria ensino de
por motivos econômicos ou noções sobre as institui-
sociais, a entrada de indiví- ções políticas. Pelos arts.
duos de determinadas ra- 86 e 87, as publicações em
ças ou origens, através de língua estrangeiras, como
pareceres do Conselho de jornais, revistas, folhetos,
Imigração e Colonização. livros, etc, ficavam a cargo
Pelo art. 6º, letra b, cabia do Conselho de Imigração
à autoridade consular, que e ou do Ministério da Justi-
soubesse fatos ou motivos, ça. O agricultor que exer-
considerar o estrangeiro in- cesse atividade estranha a
desejável. categoria seria expulso.
Fonte: Decreto nº 2168, de 1 mai. 1858. Regulamenta o transporte de imigrantes.
Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.
action?id=61972&norma=77853>. Acesso em 05 jan. 2014. Com algumas alterações
promovidas pelo Decreto nº. 3.254, de 20 abr. 1864. Disponível em: <http://legis.
senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=75373&norma=102182>.
Acesso em 07 jan. 2014. Decreto n. 528, de 28 jun. 1890. Regularizava a introdução
e localização dos imigrantes na República dos Estados Unidos do Brasil. Disponível
em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas. action?numero=528&tipo_
13 A aplicação das quotas começou com a nova constituição de 1934, diminuindo sensivelmente
a imigração (cf. números em Mendes, 2010, p. 239). Embora o governo se reservasse o direito de
preencher as quotas das nacionalidades que não alcançavam os números determinados pela lei,
com os imigrantes que considerava particularmente aceitáveis.

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norma=DEC&data=18900628&link=s>. Acesso em: 07 jan. 2014. Decreto nº 6.455, de
19 abr. 1907. Aprovou as bases regulamentares para o serviço de povoamento do solo
nacional. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-
6455-19-abril-1907-502417-publicacaooriginal1-pe.html>. Acesso em 07 jan. 2014.
Decreto nº 9.081, de 3 nov. 1911. Dava novo regulamento ao serviço de povoamento.
Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1910-1919/decreto-9081-
3-novembro-1911-523578-republicacao-102836-pe.html>. Acesso em 07 jan. 2014.
Decreto nº 4247, de 6 jan. 1921. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/
decret/1920-1929/decreto-4247-6-janeiro-1921-568826-publicacaooriginal-92146-pl.
html>. Acesso em 07 jan. 2014. Decreto-Lei nº 406, de 4 mai. 1938. Dispondo sobre
a entrada e o estabelecimento de estrangeiros. Disponível em: <http://www2.camara.
gov.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-406-4-maio-1938-348724-publicacao
original-1-pe.html>. Acesso em 07 jan. 2014. O art. 73 tratava da criação do Conselho
de Imigração e Colonização, constituído por 7 membros, responsável pela definição das
quotas de admissão de estrangeiros, além de arbitrar sobre as demandas por imigrantes.
A lei foi regulamentada pelo Decreto nº 3010, de 20 ago. 1938, disponível em: <http://
www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-3010-20-agosto-1938-348850-
publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em 08 jan. 2014.

A primeira observação pode ser realizada a partir do regulamento de trans-


porte de imigrantes, de 1858, que evidencia distinção que se procurava efetuar
entre a imigração branca, quase toda de origem europeia, e a dos antigos navios
negreiros, que transportavam escravos em condições degradantes. Apesar de não
especificar, nem de maneira genérica, as características destes imigrantes, o texto
procura mostrar que o processo migratório era organizado no sentido de propor-
cionar as oportunidades de vida dignas para a população estrangeira, como mos-
tra a descrição das enfermarias e os cuidados com roupas de cama, banhos de
sol, bagagens, etc...
Apenas com o regulamento de entrada de estrangeiros de 1907, fica exposto
de forma categórica a evidente liberdade de trabalho, culto, bem como os direi-
tos civis assegurados. O decreto nº 4247/1921, foi, provavelmente, inspirado no
Immigration Act, editado nos Estados Unidos pouco antes, em 1917 (MENDES,
2010, p. 199), embora com inúmeras semelhanças comparativamente as leis bra-
sileiras anteriores. Nesta época, várias ações estabeleceram políticas especificas
para atrair imigrantes. Uma delas foi direcionada aos imigrantes portugueses, fa-
vorecendo a entrada e estabelecimento deste grupo, que apresenta como principal
característica a espontaneidade da imigração e o estabelecimento em áreas urba-
nas, notadamente no Rio de Janeiro. Um exemplo pode ser a Convenção sobre
Imigração e Trabalho (CASTRO; SARMENTO, 2006), entre o governo brasileiro e
português, que determinou a extensão aos imigrantes de benefícios trabalhistas e
previdenciários oferecidos aos brasileiros, direitos, no entanto, pouco estruturados
na legislação do início dos anos de 1920 (MENDES, 2010, p. 200).14
Como mostrou Seyferth (2002, p. 126), “A legislação, de certa forma, também
possui suas ambiguidades: nas leis maiores raramente existem referências raciais,

14 Outros dois tratados, da mesma época, foram o Tratado Regulando a Isenção do Serviço Mi-
litar e o de Dupla Nacionalidade, que “dispensava os brasileiros filhos de pai português de prestar
serviço militar no Brasil, desde que servissem nas Forças Armadas de Portugal. Nesses casos, não
haveria sanção para os jovens, que manteriam o exercício pleno dos direitos políticos, como cida-
dãos brasileiros.” (MENDES, 2010, p. 196) Contudo, um acordo com a Grã Bretanha, no mesmo
ano, garantiu aos filhos dos britânicos a dispensa do serviço militar.

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mas elas estão subsumidas no substantivo imigração, cujo significado genérico re-
mete a europeu”. Decretos como o 528/1890 e o 406/1938 podem ajudar a mostrar
algumas dessas ambiguidades. Em 1890, foi explicitada na lei, talvez pela primeira
vez, a proibição da entrada de indígenas da Ásia ou África, e, em 1938, o decreto
dava poderes para os consulares proibirem pessoas indesejadas de migrarem,
ou seja, omite no texto os estrangeiros que eram politicamente reconhecidos e
“policiados” pelos agentes do Estado. Miles alerta para estas práticas da exclusão
que são institucionalizadas de tal maneira que o racismo fica obscurecido (MILES,
1993, 146). Este processo não é necessariamente proposital e pode respeitar con-
junturas de articulação diferenciadas.
Em praticamente todas as legislações expostas no Quadro 1 é possível obser-
var a preocupação com a ocupação dos imigrantes, evidentemente, padronizada
na agricultura e na terra como elementos centrais. Assim, a lei de terras15 torna-se
fundamental para o processo imigratório brasileiro. A lei de 1850 foi uma das mais
importantes regulamentações brasileiras do século XIX e possui desdobramentos
direitos na imigração e colonização do país. Bastante abrangente, acabou com a
concessão de sesmarias, permitiu o comércio de terras, bem como estabeleceu as
condições para o próprio governo vender as chamadas terras devolutas. Interessa
mais particularmente à imigração os artigos 17 e 18. O primeiro dava naturalização
aos estrangeiros que comprassem terras, após 2 anos vivendo no respectivo lo-
cal, embora a referida naturalização não fosse automática, devendo ser requerida
pelo estrangeiro que tivesse interesse na mesma. Além disso, ficavam isentos do
serviço militar; e pelo segundo artigo, o governo reservava-se o direito, a partir da
renda do Estado, de empregar colonos livres em estabelecimentos agrícolas, bem
como fundar colônias onde fosse de seu interesse.
A partir desta lei, regulamentada em 1854, o processo de colonização do país
ficaria a cargo de órgãos ligados ou envolvidos com a questão agrária. Os primei-
ros incentivos eram, evidentemente, fixar imigrantes como proprietários e agricul-
tores. Assim, os órgãos responsáveis pelo agenciamento, seleção, fiscalização
e regularização dos imigrantes no país são agências da colonização, focadas no
processo de concessão e legalização de terras.16 Em 1867, o governo aprovou o

15 Brasil. Lei nº 601, de 18 set. 1850. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/


lei/1824-1899/lei-601-18-setembro-1850-559842-publicacaooriginal-82254-pl.html>. Acesso em 05
jan. 2014. Regulamentação: BRASIL. Decreto nº 1318, de 30 jan. 1854, que também criou a Re-
partição Geral de Terras públicas. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTexto
Integral.action? id=75492 &norma=102306>. Acesso em 05 jan. 2014.

16 A regulamentação da lei de terras (Decreto n. 1318, de 30 jan. 1854) criou a Repartição Geral
de Terras Públicas, que além de regularizar as terras era responsável pela promoção da coloni-
zação nacional e estrangeira. Em 1876 (Regulamento n. 6129, de 23 fev.), foi criada a Inspetoria
Geral das Terras e Colonização, dividida em duas sessões: uma para registro geral de terras e uma
agência oficial de colonização. Com a República, a Repartição Geral das Terras Públicas (Decreto
n. 603, de 26 jul. 1890) é reorganizada, mantendo uma sessão especial de Terras e Colonização,
que tinha sede na Capital Federal, cabendo aos Estados organizaram as agências de colonização.
Já em 1911 (Decreto 9081, de 3 nov. 1911) foi criado o Serviço de Povoamento, que também tinha
uma sede federal e demais inspetorias em cada Estado. Por fim, em 1938, foi criado o Conselho de
Imigração e Colonização (Decreto-Lei n. 406, 4 mai. 1938, com regulamento no Decreto n. 3691, 6
fev. 1939). A função do Conselho era mais ampla envolvendo a proposição de cotas de imigrantes,
penalidades, modificações na lei, medidas de assimilação e estudos de seleção imigratória, étnica,
social, etc. Também podia proibir a migração e tratar da colonização da Amazônia.

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primeiro regulamento para as colônias do Estado.17 Seus principais artigos dão
conta da expulsão de alguns imigrantes que fossem considerados “colonos de
maus costumes” ou ociosos, ou que fossem julgados incorrigíveis pelos adminis-
trados coloniais. Por outro lado, o art. 40 proibiu a residência de escravos nas
colônias, excluindo as pessoas que morassem na colônia e tivessem escravos.
O Conselho de Imigração e Colonização, criado no Estado Novo, é efetiva-
mente mais específico em suas atribuições relativas ao processo migratório. Já as
antigas repartições possuíam inúmeras competências, inegavelmente próximas
das questões agrárias. Por outro lado, a legislação mostra que o governo brasi-
leiro procurava oferecer bons incentivos para imigrantes agricultores, como por
exemplo, títulos das propriedades no idioma de origem do imigrante, pelo decreto
de 9081/1911 (anos mais tarde, com a campanha de nacionalização, os atos são
em sentido totalmente oposto, isto é, promovendo o banimento das línguas de ori-
gem) além de assistência agrícola, ferramentas e materiais, e até a naturalização
de quem possuísse bens ou terras, e consequentemente, o direito a voto e partici-
pação política. Portanto, para o governo brasileiro, seja no período imperial ou na
república, a imigração estava mais propriamente embebida na colonização, que é
entendida pelo ato de fixar estrangeiros em zonas agrícolas.
É evidente que imigração era entendida como imigração europeia. O processo
de colonização nacional excluía negros e mestiços, brasileiros pobres, sem terra,
livres ou escravos. Tanto os envolvidos no processo de colonização, agentes do
estado, imigrantistas, e estrangeiros, “desqualificam a população negra e mestiça
do país, na adjetivação estigmatizante do trabalho escravo” (SEYFERTH, 2002, p.
123). Desta forma, as leis de caráter agrário, como a lei de terras, o regulamento
das coloniais, entre outras, favorecem o assentamento de imigrantes brancos e
dificultam o acesso à terra para trabalhadores nacionais.
A ausência de negros nas colônias é associada ao preconceito dos imigrantes,
escondendo a classificação, bem como a regulamentação da imigração existente
nas leis brasileiras (SEYFERTH, 2002). Por outro lado, a própria vigência da escra-
vidão no Brasil, somada a associação que havia de colocar negros como bárbaros,
e, portanto, não admissíveis no processo civilizador da migração, desqualificava a
migração de africanos para o país (SEYFERTH, 2002, p. 130-135). Como lembra
Banton (1979, p. 159), há um favorecimento da imigração branca no continente
americano e um total descompromisso com os negros, que, apenas com muitas
dificuldades, conseguiam direitos civis plenos nestes países. É preciso estar aten-
to ao fato que, especialmente, em se tratando de legislação, o reconhecimento
de direitos civis e inserção social dos negros eram absolutamente preteridos, e
por vezes, estava em sentido contrário ao que era designado aos estrangeiros. O
principal exemplo de tal contraponto no Brasil é, sem dúvidas, o acesso a terra,
que dá base para regulamentação do Estado sobre a imigração, bem como é um
dos principais motivos de incentivo do governo. Veja no Quadro 1 por exemplo, o
decreto de 1911, que entre os incentivos da imigração traz a propriedade de terras

17 BRASIL. Decreto n.º 3784, de 19 de janeiro de 1867. Aprovou o regulamento para as colônias do
Estado. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=58880&
norma=74736.> Acesso em 05 jan. 2014. Delimitava a forma de concessão e distribuição de terras,
a forma de pagamento, a maneira pela qual seriam administradas as colônias, de que forma seria
gerida a receita, entre outros aspectos.

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para estrangeiros que casassem com brasileiras (ou brasileiros com estrangeiras).
Como vimos, a ideia de raça pressupunha uma superioridade biológica e in-
telectual dos europeus, essenciais para o desenvolvimento civilizador da nação
brasileira. Neste sentido, as ideias trazidas da Europa mantinham o consenso de
superioridade europeia e, como consequência, de inferioridade dos povos mesti-
ços. Contudo, no Brasil, predominou uma ideologia de mestiçagem, que se baseou
no cruzamento de três raças, negros, índios e brancos. Mantendo os padrões eu-
ropeus de superioridade/inferioridade biológica e cultural, estimava-se que, ao lon-
go do tempo, os mestiços iriam desaparecer, prevalecendo as características da
raça branca. Tal ideologia ficou conhecida como “tese do branqueamento racial”.
Desta forma, incentivando a mestiçagem como criadora do brasileiro típico, que
em pouco tempo se apresentaria de fenótipo branco, acabava concorrendo com as
ideias de inferioridade mestiça (a discussão remete a SEYFERTH, 2002, p. 134).
Por isso, o privilégio a imigração branca, dispersa e assimilada pelo país.
Anderson (2008, p. 99 e seguintes) ressalta que as nações do continente ame-
ricano, apresentam como característica a inserção tardia de grupos indígenas e
de negros escravizados, nos âmbitos sociais, políticos e jurídicos. Em tais condi-
ções, elites formadas por fazendeiros ricos, antigos burocratas (o que se agrava
no caso brasileiro, já que boa parte da corte portuguesa se mantém como corte
brasileira após a independência), mantiveram as classes mais baixas afastadas,
sem acesso a direitos civis e políticos. Banton mostra o favorecimento da migração
branca para os Estados Unidos, o que pode ser similar para boa parte da América
Latina:

Qualquer sistema social oferece aos seus participantes recompensas


à sua lealdade e empenhamento. Aos imigrantes brancos, a América pro-
metia progresso material e a oportunidade de participação na construção
e no governo da sociedade. Para que o sistema funcionasse, os brancos
tinham de transladar a sua fidelidade para uma nova bandeira, para uma
nova constituição numa nova língua e apoiar as regras. Tinha de valer a
pena tudo isto porque, não sendo cidadãos originais deste pais, se lhes
oferecia a oportunidade de viver nos Estados Unidos, embora formando
comunidades separadas, como alguns grupos religiosos que se auto-se-
gregaram, ainda que numa escala mais vasta. Os negros não tiveram,
durante muito tempo, esta oportunidade, embora houvesse algumas co-
munidades negras auto-segregadas. Ninguém pensou procurar a aliança
dos cidadãos negros, porque eles pareciam não ter outro futuro senão a
assimilação, e a assimilação estabelecida em termos de brancos. (BAN-
TON, 1979, p. 156-157).

Nos primeiros momentos da república começam a se intensificar as discus-


sões sobre a assimilação dos imigrantes, bem como as concessões de direitos
mais amplos. O mais marcante é a naturalização de todos os estrangeiros e a
concessão de direitos civis a todos os imigrantes que estavam no Brasil no ato da
proclamação da república. Amparada nas discussões sobre assimilação ou não
dos estrangeiros, – embora seja uma discussão que tardiamente se asseverou,
levando-se em conta os cem anos que a imigração no país completaria pós-inde-

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pendência nacional – uma redefinição dos grupos imigrantes como desejáveis ou
não na nação seria produzida.
Nas novas conjunturas políticas advindas com a república, a procura por imi-
grantes de origem latina (portugueses18, espanhóis, italianos e franceses, todos
imigrantes de religião católica), colocava o critério de assimilação como um dos
princípios para a admissão de estrangeiros. Acreditando-se na ideia de que estes
grupos poderiam mais facilmente ser “abrasileirados.” Por outro lado, era vital a
colonização de partes “vazias” da nação, caso do centro-oeste e norte do país, e o
governo buscou incentivar a colonização destes espaços com elementos de etnias
variadas, divididos em cotas, com a presença considerável de brasileiros de várias
regiões (veja o decreto-lei de 1938, no Quadro 1).
O período mais exacerbado envolvendo a assimilação dos imigrantes e des-
cendentes é com a campanha de nacionalização de 1937, na qual, o governo
passa a obrigar as escolas a ensinar em português, bem como o ensino de história
e geografia brasileira. São os Estados da federação que decretam a forma de pa-
dronização do ensino escolar, especialmente, na educação primária, bem como o
incentiva ao patriotismo através dos símbolos nacionais. Proibiu-se ainda o uso de
línguas estrangeiras, inclusive em repartições públicas. Todas as ações do Estado
Novo foram acentuadas com o ingresso do Brasil na segunda guerra e o maior
cerceamento de comunidades imigrantes. Conforme Seyferth:

A partir da década de 1930 não é possível dissociar a legislação res-


tritiva sobre imigração da campanha de nacionalização planejada para
impor a assimilação, cerceando as etnicidades e suas manifestações
através da intervenção direta na organização comunitária e na cultura
dos grupos imigrados. (SEYFERTH, 2002, p. 140).

Os imigrantes alemães, especialmente, no sul do Brasil foram um dos grupos


mais “vigiados” deste período. Com inúmeras colônias espalhadas pelo interior
dos estados, os imigrantes mantinham língua, hábitos e formas de organização
que se distanciavam em parte dos grupos nacionais. Primeiramente, eram prefe-
ridos os alemães, especialmente por sua imagem de “agricultor eficiente”, persis-
tente, ordeiro, etc., mas, durante os períodos iniciais da República e com as dis-
cussões sobre a formação nacional ocorridas no Estado Novo, os alemães foram
sendo relacionados ao “germanismo” ou Deutschtum19, com evidências de distinti-
vidade ao pertencimento nacional. O discurso racializado pode atribuir caracterís-
ticas negativos e/ou positivos. Potencialmente, populações imigrantes podem ser
racializadas em tal forma que eles são avaliados como uma presença benéfica,
como populações possuidoras de características que são suscetíveis de fazer uma
contribuição positiva à nação. (MILES, 1993, 139) Da mesma forma, essas carac-
terísticas podem mudar ao longo do tempo e contemplar imagens diferentes para

18 Mendes (2010, pgs 204-224) aponta três grandes ondas migratórias espontâneas de
portugueses, começando antes da proclamação da república: 1888-1898, 1904-1915 e 1919-1930.

19 As discussões desenvolvidas aqui são oriundas de Seyferth: “Deutschtum supõe pertencimento


nacional baseado no direito de sangue e, por isso, imigrantes e descendentes são Deutsche
(alemães) no Brasil; cidadãos diferentes de um Estado que, por ser imigrantista, deve assumir
caráter plural.” (SEYFERTH, 1999, p. 204).

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o mesmo grupo.
Comunidades de japoneses também geraram medo e apreensão dos nacio-
nais, exatamente quando se completava 30 anos do início de sua imigração para
o Brasil. O mesmo ocorre com imigrantes italianos e poloneses que desenvolve-
ram sua identidade étnica em meio aos nacionais, não sendo este o requisito de
pertencimento nacional. Tais sentimentos de etnicidade e as distinções entre os
grupos imigrantes ampliaram as ideias de assimilação para os estrangeiros, que
aspiravam à endogamia e, assim, “A apregoada necessidade da sua transforma-
ção em brasileiros de fato, e não apenas por direito de solo, motivou a campanha
de nacionalização...” (SEYFERTH, 1999, p. 207-208).
Para finalizar, uma das mais significativas leis promulgadas pelo governo, no
intuito de incentivar a formação nacional e coibir manifestações que dessem sus-
tentação a sentimentos estranhos à nação brasileira, foi o Decreto-Lei nº 1545, de
1939,20 que dispunha sobre a adaptação ao meio nacional dos brasileiros descen-
dentes de estrangeiros. O intuído das autoridades do Estado Novo era “institucio-
nalizar a nação” em descendentes de estrangeiros ou abrasileirar a população que
não percebia o Brasil como o “seu país”. No entendimento do governo, a adapta-
ção se daria pelo ensino e uso da língua nacional, história do Brasil, incorporação
em associações patrióticas e “por todos os meios que possam contribuir para a
formação de uma consciência comum”, conforme seu art. 1º. As medidas para a
formação de uma consciência comum prevista na lei de 1939 nos remontam para
o conceito de comunidade imaginada de Anderson (2008). Conforme o autor, era
preciso que todos os membros de uma nação, mesmo sem se conhecer, tives-
sem “em mente a imagem viva da comunhão entre eles” (Anderson, p. 32). Esta
comunidade política imagina era limitada e soberana ao mesmo tempo. De certa
forma, a imposição de tais medidas estava partindo do Estado brasileiro mais de
um século após a independência nacional e após a formação de uma população
de caráter multicultural.

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difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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Acesso em 08 jan. 2014. Pelo decreto, cada órgão deveria se envolver em ações que perpassavam
a criação de leis, escolas, bibliotecas, atos cívicos com participação de trabalhadores, prestação
de serviço militar em lugares diferentes dos quais os descendentes habitavam, fiscalização de
aglomerações, entre outros. Ainda havia proibição do uso de línguas estrangeiras nas repartições
públicas e a criação do cargo de inspetores para fiscalizar a execução da lei.

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____________________
Recebido: 11 maio, 2017.
Aceito: 14 jun., 2017.

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A imagem do “outro”:
uma análise das notícias televisivas
sobre o tema da imigração1
The image of the “other”: an analysis
of television news about immigration

Elaine Javorski2

Resumo
O Brasil tornou-se, na última década, novamente a porta de entrada de imigrantes.
É no sentido de compreender de que forma esses grupos são representados na
mídia que esse artigo se apresenta. Para entender o tratamento da temática foi
realizada uma análise de conteúdo de peças sobre imigração encontradas nos
telejornais matutinos de âmbito nacional e regional da Rede Globo, Bom Dia Brasil
e Bom Dia Paraná, entre 2014 e 2016. Orientados teoricamente pelos estudos das
Representações Sociais, os resultados apontam para uma cobertura positiva da
questão migratória no dois informativos, especialmente no noticiário regional, com
apelo às tradições, festividades e datas comemorativas dos imigrantes.

Palavras-chave: Fluxos migratórios; Monitoramento de mídia; Telejornalismo; Re-


presentações sociais; Migrações contemporâneas.

Abstract
In the last decade, Brazil has once again become a gateway for immigrants from
different nations. This article presents itself as a way of understanding how these
groups are represented in the media. In order to understand the treatment of the
subject a content analysis of the pieces found in the national and regional morning
newscasts of Globo Network, Bom Dia Brasil and Bom Dia Paraná, between 2014
and 2016, was carried out. Theoretically oriented by the studies of the Social Re-
presentations, the results point to a positive coverage of the migratory issue in the
two informative, especially in the regional news, with appeal to the traditions, festi-
vities and commemorative dates of the immigrants.

1 Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no IJ 1 – Jornalismo do XVIII Congresso de
Ciências da Comunicação na Região Sul, realizado de 15 a 17 de junho de 2017.

2 Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de Coimbra - Portugal. Professora-


-pesquisadora do Centro Universitário UniBrasil - Curitiba. Líder do Núcleo de Estudos sobre Mídia
e Imigração.

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Keywords: Migration flows; Media monitoring; Television journalism; Social repre-
sentation; Contemporary migrations.

Introdução

Atualmente existem cerca de 250 milhões de migrantes internacionais e 750


milhões de migrantes internos, segundo a Organização Internacional para as Mi-
grações (OIM). Muito deles saem de suas terras por não ter outra opção de vida.
São mais de 20 milhões de refugiados, o maior número de imigração forçada des-
de a Segunda Guerra Mundial, conforme o Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados (ACNUR). A maioria ocorre no hemisfério sul, sendo o deslo-
camento mais comum para países próximos ou vizinhos. Se por um lado, há uma
superlotação demográfica em alguns países, por outro, esse fluxo de pessoas
ajuda a contrabalançar a baixa taxa de natalidade, por exemplo, de muitos países
desenvolvidos. E são justamente os imigrantes que reativam o mercado de traba-
lho, dão suporte ao sistema previdenciário e auxiliam no crescimento populacional.
Ao observar esses fluxos, é possível perceber que alguns fatores podem ex-
plicar esse complexo panorama migratório, como observa Marinucci (2008). Para
o autor, há alguns facilitadores que permeiam as viagens, como por exemplo, o
aprimoramento e barateamento dos meios de comunicação e transporte; as agên-
cias de tráfico de pessoas e as próprias redes sociais dos migrantes que facilitam o
conhecimento sobre determinadas regiões e torna o acolhimento mais fácil, como
é o caso também o reagrupamento familiar. As disparidades econômicas também
influenciam os deslocamentos, uma vez que os países desenvolvidos estão no
lado norte do hemisfério, embora as crises econômicas modifiquem esse cenário
em determinadas épocas. Também o envelhecimento populacional e a necessi-
dade de mão-de-obra, bem como a estratégias de alguns governos dos países
emissores, contribuem para a imigração. Além disso, há o caso das pessoas em
busca de refúgio e vítimas de projetos de desenvolvimento.
Até então sempre receptor de migrantes, no final dos anos 80 e início dos anos
90 o Brasil passa a ser um país de emigração quando cerca de 600 mil cidadãos
deixaram o país. Na atualidade, há uma nova onda migratória em curso. Dados
do Censo Demográfico 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
tatística (IBGE), mostram que 286.468 imigrantes vivem no Brasil há pelo menos
cinco anos e em residência fixa. O número foi 86,7% maior do que em 2000, ano
da última pesquisa, quando haviam 143.644 imigrantes na mesma situação. Os
principais países de origem são os Estados Unidos (51.933), Japão, (41.417) Pa-
raguai (24.666), Portugal (21.376) e Bolívia (15.753). Já as cidades que receberam
juntas mais da metade dos imigrantes foram São Paulo, Paraná e Minas Gerais,
seguidas de Rio de Janeiro e Goiás.
A imigração recente advém tanto de países desenvolvidos como em desenvol-
vimento. Segundo o Ministério da Justiça, entre os anos de 2010 e 2012, o número
de pessoas que pediram refúgio no país triplicou. Com os grandes eventos espor-
tivos (Copa do Mundo em 2014 e Olimpíadas em 2016) e o aquecimento na área
imobiliária, muitos cidadãos foram atraídos pelos empregos na construção civil.

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Segundo estatísticas da Polícia Federal de março de 2015, encontram-se regula-
rizados no Brasil 1.847.274 imigrantes, sendo 1.189.947 “permanentes”, 595.800
“temporários”, 45.404 “provisórios”, 11.230 “fronteiriços”, 4.842 “refugiados”; e 51
“asilados”.
Embora os imigrantes representem somente 0,9% da população no país, é
importante observar que há áreas de concentração onde percebe-se sua presença
com maior intensidade, como é o caso do Paraná e os imigrantes haitianos. No
caso desses cidadãos, depois de São Paulo, é no Paraná que eles estão mais
concentrados. Em 2015, dos 18,7 mil haitianos que viviam no Brasil, 4,5% mora-
vam na capital paranaense, segundo dados da Polícia Federal. Isso significa que,
assim como outros imigrantes, eles estão pelas ruas, ocupando postos de trabalho
diversificados, bastante perceptíveis aos moradores da cidade mas nem sempre
visíveis aos olhos da mídia, principalmente desde o ponto de vista de suas moti-
vações e riscos sociais.
A imigração estrangeira para o Brasil nos últimos anos é bem diferente da
imigração do final do século XIX e início do século XX, quando cerca de 4 milhões
de imigrantes, subsidiados pelo governo brasileiro, vieram trabalhar em culturas
agrícolas. Hoje, os imigrantes procuram os centros urbanos mais desenvolvidos.
Outra diferença evidente entre aquele fluxo migratório e o atual é a propagação
dos meios de comunicação, que servem tanto para informar os imigrantes sobre o
país de destino quanto refletir suas culturas nos diversos veículos do país acolhe-
dor. Este trabalho pretende analisar de que forma a mídia brasileira, em especial o
telejornalismo, atua na compreensão das migrações contemporâneas. Para tanto,
foram observados durante os anos de 2014, 2015 e 2016 os telejornais matutinos
Bom Dia Brasil e Bom Dia Paraná, da Rede Globo e afiliada no Paraná, de forma a
compreender como é feita a representação destes grupos migratórios. O pesquisa
expõe parte dos resultados do monitoramento realizado pelo Núcleo de Estudos
sobre Mídia e Imigração.3

Os meios de comunicação como


mecanismos de representação social

O que caracteriza uma comunidade é sua identidade autoatribuída, que é cons-


truída pelos membros por meio de um sistema de significados compartilhados. A
maior parte desse sistema compreende itens culturais que derivam de tradições e
processos históricos de longo prazo, como definiu Durkheim quando conceituou
a teoria das representações coletivas. Esses significados costumavam ser relati-
vamente estáveis ao longo do tempo e carregam ideias centrais sobre o mundo,
impondo regras sociais sobre o que é certo ou errado. Para Wagner (2012), atual-
mente a mídia ocupa papel bastante importante nesse processo já que estabele-
ceu outro sistema de significados que é muito mais dinâmico e menos resistente
às mudanças culturais de uma sociedade. Este sistema é composto por represen-
tações de fatos, objetos e eventos resultantes de rápidos avanços científicos e

3 Grupo de estudos da Escola de Comunicação, Design e Arquitetura do Centro Universitário


UniBrasil.

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tecnológicos, mas também de mudanças econômicas, políticas e sociais.
É por fazer parte de uma comunidade discursiva que os indivíduos adquirem
a possibilidade de se comunicar e, portanto, de participar da construção das re-
presentações. A mídia contribui nesse processo já que promove publicamente de-
bates sobre temas relevantes e factuais. Caso a questão de debate mantenha
uma importância duradoura, a representação pode “emancipar-se”, de forma a ser
usada por vários setores da comunidade de forma hegemônica e sem a lembran-
ça da sua origem (WAGNER, 2012). O caso das migrações enquadra-se nessa
problemática de maneira bastante ilustrativa. Quando o fenômeno aparece des-
conectado de uma situação negativa, há uma invisibilidade na sua cobertura. Não
obstante, quando da ocorrência de problemas diplomáticos que envolvam crimes,
por exemplo, a mídia passa a travar uma guerra em busca da repercussão. Na
sociedade, as representações se propagam (ancoragem) fazendo com que a co-
munidade faça parte da discussão. Depois de criadas, as adquirem uma vida pró-
pria, autonomizando-se a partir de uma dinâmica que tende a dar origem a novas
representações. Assim, quanto mais a origem é esquecida mais permanente ela
se torna (MOSCOVICI, 2011). Por isso, para compreender uma representação é
necessário detalhar o que lhe deu origem.
As formas contemporâneas de criação de representações estão entranhadas
na vida moderna e nem sempre têm condições de sedimentar para se transforma-
rem em tradições imutáveis. São perenes, cambiáveis, dinâmicos. Essas caracte-
rísticas coincidem com o perfil atual dos meios de comunicação eletrônicos que
possuem produtos vendidos como mercadorias e, como tais, têm seu valor modifi-
cado pelo ciclo de consumo. Colocam os indivíduos permanentemente em contato
com representações reorganizadas que adquirem novos sentidos.

Os meios de comunicação de massa aceleraram essa tendência,


multiplicaram tais mudanças e aumentaram a necessidade de um elo en-
tre, de uma parte, nossas ciências e crenças gerais puramente abstratas
e, de outra parte, nossas atividades concretas como indivíduos sociais.
Em outras palavras, existe uma necessidade contínua de reconstruir o
“senso comum” ou a forma de compreensão que cria o substrato das ima-
gens e sentidos, sem a qual nenhuma coletividade pode operar (MOSCO-
VICI, 2011, p.48).

As mídias são grandes produtoras de ideologia ao produzirem representações


do mundo social, imagens, descrições e marcos que apresentam e explicam o
mundo aos indivíduos. É também a partir dos meios de comunicação que se de-
fine o que é raça, ou etnia, o que implicam as imagens de raça ou etnia, e o que
se entende por “problema de raça”. Desta forma, ajudam a classificar o mundo em
termos de categorias raciais (HALL, 2010). No estudo sobre as representações
sociais criadas pela mídia é necessário ter em conta os quatro princípios meto-
dológicos descritos por Moscovici (2011), que podem se referir quer à mídia quer
às interações cotidianas quer, ainda, à intersecção entre a mídia e as interações
do cotidiano. O primeiro princípio afirma a necessidade de apreender as imagens
que as pessoas fazem de determinados grupos sociais por meio das suas conver-
sações. Como observou Tarde (2010 apud MOSCOVICI, 2011), opiniões e repre-

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sentações são criadas no curso de conversações, são elementos utilizados nas
relações e suas formas de comunicação, variam de acordo com o grupo e mudam
com o passar do tempo. O segundo princípio refere-se às representações sociais
como formas de recriar a realidade.

Através da comunicação, as pessoas e os grupos concedem uma


realidade física a ideias e imagens, a sistemas de classificação e forneci-
mento de nomes. Os fenômenos e pessoas com que nós lidamos no dia
a dia são, geralmente um material bruto, mas são os produtos, ou cor-
porificações, de uma coletividade, de uma instituição, etc. (MOSCOVICI,
2011, p. 90).

Algumas percepções podem ser reproduzidas fora da realidade em que foram


criadas, o que pode causar distorção e conflito com a concepção interna de cada
indivíduo. O referencial, sobre o qual se reconstrói a realidade, pode ser repetido
até que se torne autônomo, ou seja, independente da pessoa que o criou, e ganhe
permanência e estabilidade.
O terceiro princípio leva em consideração o fato de que as representações
sociais se revelam com mais clareza em tempos de crise, quando as imagens que
se referem a um grupo passam por alguma transformação. Nesses momentos as
pessoas estão ávidas por falar sobre o assunto, as memórias coletivas são mais
facilmente acessadas, as imagens estão mais vivas e o comportamento é mais
espontâneo. As pessoas tentam entender um mundo não familiar que se criou.
As representações se mostram mais transparentes, pois os limites entre o mundo
público e privado se misturam. Essas tensões podem modificar de forma concreta
alguns pensamentos do senso comum. E o quarto e último princípio entende que
as pessoas que ajudam na construção das representações são uma espécie de
“professores” amadores. São nas reuniões não oficiais, ou seja, nas discussões
em locais públicos como bares e clubes, que se criam laços sociais e se dissemi-
nam as representações, mas também a partir do trabalho de profissionais como
cientistas que popularizam a ciência, e da mídia que, por meio da divulgação de
fatos, disseminam informação e geram conhecimento. As representações são,
portanto, geradas não pela contemplação pessoal, mas pela participação dos indi-
víduos no discurso social. Além disso, as conversas pessoais retomam o conteúdo
midiático, que agendam cada vez mais os temas discutidos na sociedade e as
relações interpessoais (ROUQUETTE, 1999). Assim, os meios de comunicação
não funcionam somente como mediadores, mas como construtores da realidade,
são sujeitos agentes na sociedade em que se inserem. Isso não significa dizer que
as representações midiáticas contribuem a tal ponto para a produção simbólica da
realidade que acabam por exercer um poder de influência sobre os públicos. Pelo
contrário, os conteúdos e representações não passam simplesmente, sem poste-
riores elaborações, aos sistemas de representação e conhecimentos da audiência.
A construção da realidade não é um produto, mas um processo (BUONNANO,
1999) durante o qual se apresentam, se interpretam, se comparam, se discutem
e se negociam significados sobre aspectos da vida cotidiana e do mundo social.
Esse papel que coube, no passado, aos rituais e mitos de sociedades antigas, hoje
faz parte do processo das representações midiáticas. As atuais, como considera

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Buonnano, são tão legítimas quanto as anteriores. Essa realidade, é importante
observar, é, em grande parte, determinada por aquilo que é socialmente aceito
como realidade (LEWIN, 1948 apud MOSCOVICI, 2011). E é baseado nesta reali-
dade social que os indivíduos agem.
Como afirma Hall (1994), as mensagens desse gênero têm mecanismos sig-
nificativos que veiculam certos sentidos e escamoteiam outros, indicando uma lei-
tura dominante/preferencial. É nesse ponto que representações sociais tornam-se
elementos importantes para a construção das narrativas.
A função de familiarização com o mundo social, de acordo com Buonanno, diz
respeito à preservação, construção e reconstrução do “sentido comum” da vida co-
tidiana pelo compartilhamento de crenças e pensamentos que promovem o reco-
nhecimento do mundo social e os sentidos de perecimento e conexão. Conforme
Moscovici (2011), as pessoas que vivem em sociedade possuem uma bagagem
de valores que elas carregam durante toda a vida, ora modificando, ora reforçan-
do valores. Essas pessoas possuem um modo de vida comum que já tem seus
esquemas classificatórios, suas formas de julgamento, que informação pode ser
verossímil, etc. Além disso, o autor sugere que quase todo conhecimento do indi-
víduo provem de outro, seja através da linguagem, das narrativas ou dos modelos.
Assim, o que se herda são práticas coletivas que precisam se renovar a cada mo-
mento por meio da interação. O jornalismo, nesse sentido, conserva e garante a
construção de um sentido comum e o reconhecimento de um “nós” amplo.

A natureza da repetição, a orientação consensual, a tendência da


narrativa televisiva de trabalhar sobre o compartilhado e sobre o compar-
tilhavel não são falsos mas requerem ser contextualizados em uma situ-
ação na qual os coros, as visões consensuais, as esferas de significados
compartilhados se pluralizem dentro e por meio das múltiplas realidades
do mundo em que vivemos (BUONNANO, 1999, p. 68).

Nesta perspectiva, as representações tendem a ser simplificadas e abre-se


espaço para os estereótipos, que não exigem complexas construções mentais de
elaboração e percepção. O inconveniente é que a repetição dessas representa-
ções acaba por perpetrar imagens estandardizadas, muitas vezes carregadas de
conotações negativas. Isso não significa dizer que elas são estéticas, já que, pro-
venientes de uma criação coletiva, adquirem uma vida própria que se choca, se
aproxima e se repele, como moléculas em combinações com outras (MOSCOVICI,
2011). Essa dinâmica gera a oportunidade do nascimento de novas representa-
ções e a morte de velhas.

Análise de conteúdo dos telejornais

Como forma de compreender as representações dos imigrantes na mídia bra-


sileira, foram analisados durante os meses de março e outubro de 2014, 2015 e
2016 os telejornais matutinos da Rede Globo e sua afiliada no Paraná, RPCTV. A
opção pelo monitoramento do Bom Dia Brasil e Bom Dia Paraná se dá tendo em
vista sua expressiva audiência e suas características editoriais. Os noticiários do

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período da manhã geralmente têm um tom de prestação de serviço. Eles possuem
uma característica comunitária que foi iniciada com o informativo Bom Dia São
Paulo, o primeiro telejornal matutino, estreado em 1977 (PATERNOSTRO, 2002).
Possuem a função de resumir as principais notícias do dia anterior e preparar o
telespectador para a jornada que se inicia - com previsão do tempo, condições
das vias, e outras informações de utilidade pública. Além disso, possuem um estilo
mais coloquial dos âncoras e têm espaço para opinião e análises.
A análise feita pelo Núcleo de Estudos sobre Mídia e Migração abrangeu peças
que tratavam de imigrantes e refugiados, excluindo os conteúdos sobre visitantes
e turistas, analisando-as a partir de variáveis de forma (data, gênero jornalístico,
espaço ocupado), conteúdo (personagens apresentados, nacionalidade e situa-
ção jurídica do imigrante, tema principal da matéria) e discurso (narrativa, tom e
argumentação dominante da peça, fontes) (CUNHA, 2012). Também foram clas-
sificadas reportagens nacionais (que tratavam do tema no Brasil) e internacionais
(realizadas por correspondentes no exterior).
O monitoramento destes três anos mostra que o tema da imigração no Brasil
não tem muito espaço no noticiário, principalmente no telejornal de âmbito nacio-
nal. No Bom Dia Brasil, em 2014, foram encontradas nove peças que tratavam do
tema. O interesse cresce nos anos seguintes somente a partir da cobertura inter-
nacional devido à chegada de refugiados em massa nas fronteiras da Europa. Em
2015 foram encontradas 63 peças, sendo que delas apenas cinco eram sobre a
imigração no Brasil. Em 2016, das 51 reportagens encontradas, duas se referiam a
notícias nacionais. As 16 reportagens encontradas durante os três anos de pesqui-
sa foram categorizadas da seguinte forma: Mercado de trabalho/estudos (quatro
delas tinha foco sobre haitianos e sua atuação profissional); Polícia/crimes (duas
matérias associando italianos ao tráfico de drogas); Chegada/cifras (duas matérias
sobre a chegada de refugiados sírios); Esporte (quatro peças relacionadas à de-
portistas estrangeiros e três faziam parte da série “Brasil, o espelho do mundo”, so-
bre estrangeiros que moram no país e que veriam seus times na Copa do Mundo);
Polícia/violência contra migrantes (uma peça sobre violência contra um alemão).
No caso do telejornal regional, a inserção do tema é um pouco maior e cresce
ao longo dos anos analisados. Em 2014 foram encontradas três peças; em 2015,
10; e em 2016, 15. Neste informativo os temas se diferenciam substancialmente
do telejornal nacional. Em 2014 apareceram as categorias Festividades/datas co-
memorativas (Ramadã, dia da bandeira do Haiti); Mercado de trabalho/estudos
(atuação de médicos cubanos em Ponta Grossa). Em 2015 são encontradas ma-
térias referentes a Festividades/datas comemorativas (Ramadã, Oktoberfest de
Rolândia, Expo Japão Londrina, Festival Oriental de Maringá, imigrantes orientais
no aniversário de Maringá); Mercado de trabalho/estudos (três peças relacionadas
a haitianos); Chegada/cifras (sobre o acolhimento de refugiados sírios); Polícia/cri-
mes (peruano preso por tráfico de drogas). Em 2016, constam na análise: Festivi-
dades/datas comemorativas (duas peças sobre Ramadã, Festival de Cultura Hai-
tiana, artista plástico alemão em Maringá, artista chinesa em Foz do Iguaçu, Expo
Japão em Londrina, 65 anos da imigração alemã em Guarapuava); Mercado de
trabalho/estudos (curso de camareira para haitianas e vagas em cursos superiores
para refugiados); Chegada/saída/cifras (haitianos deixam o estado); Polícia/vio-
lência contra migrantes (agressão a estudante haitiano); Polícia/crimes (argentino

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preso por tráfico de drogas); Esporte (estreia de jogador de futebol turco); Redes
de apoio/associações (aumenta atendimento da Cáritas em Londrina) e Trâmites
burocráticos (cadastramento de imigrantes em Toledo).
Isso significa que metade de todo material encontrado sobre imigração no Bom
Dia Paraná está ligado à questões de cultura, festividades e tradição. Algumas
explicações para o fenômeno podem partir da própria rotina jornalística, já que
assuntos agendados são facilmente incorporados aos noticiários, principalmen-
te no caso dos matutinos que têm como característica resumir ou dar uma outra
roupagem aos assuntos do dia anterior. Outra característica desses telejornais é
adotar um linha mais leve de notícias com espaço para assuntos comunitários e
também mais ligados à área cultural e de entretenimento. Por isso, são nesses
espaços que o tema mais aparece. Além disso, há a questão da visibilidade dos
grupos com mais acesso à mídia. Para Trigueiro (2001), cada dia mais as festas
populares atuais incorporam aspectos comerciais, o que realça a necessidade da
inserção midiática. Festividades grandes e tradicionais como as organizadas pe-
los orientais no norte do Paraná podem ter nesse motivo a divulgação porque os
grupos de imigrantes faz parte de uma elite que consegue articular os interesses
de divulgação. Segundo Trigueiro (2001, p.146), “as festas populares estão sendo
alcançadas pela mídia, pelas empresas de turismo e de entretenimento, passando
por profundas transformações para atender novos interesses e sentidos do merca-
do de consumo do mundo globalizado”. As festas organizadas por grupos migrató-
rios com menos poder e voz nos meios têm seus eventos excluídos ou divulgados
em menor quantidade e com espaço reduzido.
Em relação às fontes que aparecem nas reportagens, é importante destacar
que nas nove notícias nacionais as fontes tem as seguintes origens: imigrantes
(13), órgãos de governos e polícia (3), populares/pessoas que convivem com imi-
grantes (3) e associações ou instituições ligadas às redes de apoio (4). Nos tele-
jornais locais, nas 28 reportagens as fontes provêm de: imigrantes (19), órgãos
de governos e polícia (11), populares/pessoas que convivem com imigrantes (5) e
associações ou instituições ligadas às redes de apoio (5).
Embora a abordagem do tema ainda seja escassa, o progressivo aparecimen-
to de matérias é sinalizador de um crescente interesse midiático. Entretanto, mes-
mo sob um enfoque que tende a uma aproximação à diversidade trazida pela
presença migratória, como no caso do enfoque pelo mercado de trabalho ou ati-
vidades culturais, as quais sugerem uma folclorização do imigrante (JAVORSKI,
2017), ainda é pequeno o espaço ocupado na mídia por matérias que priorizem o
protagonismo migrante e que resguardem aos próprios sujeitos um lugar de fala
prioritário sobre as experiências vividas. Em alguns casos, mesmo que a matéria
jornalística se proponha a mostrar, de maneira humanizada, a situação dos mi-
grantes que chegam ao Brasil, ainda o fazem a partir de referentes que tendem a
naturalizar as diferenças entre nós, nacionais, e o Outro migrante.
Outro ponto que chama a atenção é a inserção do tema das imigração por meio
do futebol, entendido com um patrimônio nacional, principalmente no informativo
de cobertura nacional. Ainda que seja um tipo de entretenimento, possui um valor
importante no imaginário brasileiro. Assim, este universo mostra-se também per-
meado por estrangeiros que participam do esporte que é parte cultural do Brasil.
Este tipo de enquadramento das notícias sobre imigração podem ser positivas

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no sentido de desviar o foco da violência, que é, muitas vezes, utilizado como
mote principal na divulgação de informações sobre esse grupo, como observado
em alguns estudos como de Cogo (2006), e Zanforlin; Kalume; Fidalgo; Palhares
(2014). Por outro lado, pode transformar as manifestações culturais em algo vol-
tado apenas ao entretenimento, as festividades, o pitoresco, sem levar com con-
sideração o complexo processo que envolve o fluxo migratório. Além disso, como
observa Canclini (1989), são mais valorizadas as obras e artes destes povos do
que seus processos e indivíduos. Geralmente, as reportagens apenas apresentam
as festividades e a cultura de determinado grupo sem contextualizar as circunstân-
cias em que eles se encontram.

Conclusão

Se incluíssemos na observação as notícias de âmbito internacional, tería-


mos uma análise diferenciada do tema da imigração. As notícias internacionais e
a exaustiva cobertura da chegada de embarcações à Europa tiveram destaque
nos meses de maio e junho de 2015 com repercussões também ao longo de 2016,
proporcionando um enquadramento negativo, baseado na tragédia. Algumas re-
portagens nacionais também tiveram um tom voltado ao discurso negativo, como
os casos policiais. Por outro lado, destacam-se as reportagens na categoria es-
portiva e cultura que evidenciam a colocação do tema sob um aspecto menos
pessimista: o do entretenimento. Porém, tanto a etnização da delinquência como a
superficialidade no tratamento do tema eliminam a possibilidade que a mídia tem
de contribuir para pautar discussões públicas sobre o tema e, consequentemente,
perde-se a oportunidade de ampliar e melhorar as condições sociais e de integra-
ção dos imigrantes.
No âmbito das representações sociais, entende-se que questões factuais e
relevantes podem contribuir para a construção e manutenção de determinadas
representações. Entretanto, a discussão superficial sobre o tema apenas cria rá-
pidos estereótipos que depois se desfazem e são substituídos por outros. Mas
há também a possibilidade dessas representações “emancipar-se” e tornarem-se
lembranças compartilhadas por toda sociedade.
No caso das migrações, a mídia, de forma geral, tende a repercutir apenas
ocorrência de caráter negativo, seja a criminalidade ou os desastres envolvendo
imigrantes. Como essas notícias tornam-se subsídios das narrativas quotidianas,
as representações são repassadas e reconstruídas nos diálogos diários. É assim,
passando de voz em voz, que muitas vezes perde-se de vista a origem da repre-
sentação, restando apenas o pré-conceito sobre ela.
Por outro lado, é notável a tentativa local de desconstrução de estereótipos
negativos, como o exemplo do Bom Dia Paraná. Embora traga apenas 3 reporta-
gens em 2014, 10 em 2015 e 15 em 2016, mostra-se interessado em contextuali-
zar, ainda que de forma superficial, o fluxo migratório. Em relação à identificação
dos entrevistados, todos são devidamente creditados e há mais vozes populares
e imigrantes do que oficiais. Também é necessário observar alguns comentários
após as reportagens que, em tom de opinião, revelam a linha editorial seguida pela
emissora. Em uma matéria sobre as aulas de português para haitianos, o apre-

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sentador diz “É... Afinal de contas, tirando os índios, todos nós somos imigrantes”.
Já na reportagem sobre os sírios empreendedores, coloca-se a seguinte nota pé:
“queremos desejar toda a sorte ao refugiados que chegaram no Paraná”.
Esse tipo de aproximação com a realidade de forma positiva pode auxiliar a
mudança no sistema de julgamento da sociedade. Se as representações podem
modificar ou reforçar determinados valores, isso também se dá por meio do con-
teúdo informativo. É a formação do “nós” amplo, que nesse caso, integra também
imigrantes, entendidos como pessoas que têm aspectos positivos a agregar na
sociedade. Porém, como são raros os exemplos de peças deste tipo que abranjam
essa temática, dificulta-se a discussão mais aprofundada e frequente.

Referências

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____________________
Recebido: 19 maio, 2017.
Aceito: 31 maio, 2017.

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Conflitos Contemporâneos:
A Categoria Refugiado no
Telejornalismo Brasileiro
Contemporary Conflict: The Refugee
Category in Brazilian Telejournalism1

Liege scremin2
Susana Trovão3

Resumo
Entender a complexidade da mobilidade humana, em pleno século XXI, faz-se
necessário não apenas na agenda dos direitos humanos, mas nos meios de co-
municação social. Por meio de uma Análise de Conteúdo Qualitativa referente a
cinco meses dos telejornais Jornal Nacional e Jornal da Record e, posteriormente,
a uma Análise de Discurso de quatro peças, foi possível verificar que esses meios
não tem o cuidado de diferenciar as variações existentes dentro das migrações,
como os refugiados, por exemplo, atualmente protagonistas de grandes conflitos.
Para embasar teoricamente o estudo foram utilizadas as Teorias da Comunicação
e a hipótese de Agenda-Setting, assim como a influência de agências internacio-
nais na pauta da mídia nacional e as Representações Sociais de Serge Moscovici.

Palavras-chave: Refugiado, Imigração, Telejornalismo, Agenda-Setting, Repre-


sentação Social.

Abstract
Understanding the complexity of human mobility in the 21st century is necessary not
only in the human rights agenda, but in the media. Through a Qualitative Content
Analysis referring to five months of the Jornal Nacional and Jornal da Record
television newsletters and, later, a four-part Discourse Analysis, it was possible to
verify that these media are not careful to differentiate the existing variations within
the Migrations, such as refugees, for example, currently leading major conflicts.
To theoretically base the study, we used the Communication Theories and the
Agenda-Setting hypothesis, as well as the influence of international agencies on

1 Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no XI Evento de Iniciação Científica da
UniBrasil EVINCI em 2016.

2 Mestranda em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (2017); gra-
duada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, pelo Centro Universitário UniBrasil
(2013); intercambista pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de
Lisboa (2012). Contato: liscremin@hotmail.com

3 Professora Catedrática da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de


Lisboa. Contato: sst@fcsh.unl.pt

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the national media agenda and the Social Representations of Serge Moscovici.

Keywords: Refugee; Immigration, Television Journalism, Agenda – Setting,


Content analysis,

Introdução

As migrações internacionais são uma realidade social que se tornaram uma


temática central de debates políticos, econômicos e sociais de governos e organi-
zações internacionais e, consequentemente, da mídia nos últimos anos. Desde o
atentado às Torres Gêmeas, em Nova Iorque (EUA), em 11 de setembro de 2001,
este assunto ganhou maior visibilidade contemporânea e ainda divide opiniões
entre a racionalidade e a emotividade dos países de acolhimento. Entender a com-
plexidade da mobilidade humana em pleno século XXI, constitui um imperativo não
apenas na agenda dos direitos humanos, mas também nos meios de comunicação
social. Como afirmam Maxwell McCombs e Donald Shaw, na obra The Agenda-
-Setting function of Mass Media (1972), a mídia passa a ditar a pauta dos debates
que acontecem entre cidadãos do mundo e, sobretudo, passa a definir o que é ou
não pensado com relação a assuntos em voga.
Este artigo, recorte de uma dissertação, aborda um tipo particular de migrações
– a dos refugiados. Os processos migratórios desenvolvidos pelos refugiados são
impostos pela necessidade de buscar proteção em outro território que não o de
sua origem ou residência habitual. Dados disponibilizados pelo Alto Comissariado
das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) mostram que até o final de 2015 já
havia um total de 65,3 milhões de pessoas deslocadas por guerras e conflitos e que
até julho de 2016, a cada 113 pessoas no planeta, uma era solicitante de refúgio.
Esse total inclui 21,3 milhões de refugiados ao redor do mundo, 3,2 milhões de
solicitantes de refúgio e 40,8 milhões deslocados que continuam dentro de seus
países. Com o aumento de 2,6 milhões de casos apenas em 2015, na comparação
com os dados de 2004, nota-se um recorde mundial de deslocados internos.
Além disso, calcula-se que a apatridia4 tenha afetado pelo menos 10 milhões de
pessoas até o final de 2015, embora os dados enviados pelos governos indiquem
a presença de 3,7% em 78 países.
Concomitantemente, as políticas migratórias caracterizam-se cada vez mais
por serem políticas de controle (Reis, 2004), incluindo deslocamentos forçados que
produzem refugiados. Os Estados exercem melhor a função policial de proteger
suas fronteiras e de controlar os fluxos migratórios, penalizando os migrantes
irregulares. Segundo o ACNUR (2007, p. 21), “as pessoas desalojadas à força
por causa dos conflitos têm encontrado fronteiras fechadas, condições de grande
hostilidade e insegurança no exílio, ou regressos apressados ou involuntários
devido a medidas antiterroristas nos países de asilo”.
A exposição que algumas notícias ganham nos telejornais podem tornar os
fatores elencados acima ainda mais sinuosos. Toma-se como exemplo o atentado

4 Apátridas: são pessoas que nascem sem nacionalidade ou têm sua nacionalidade retirada pelo
Estado, ficando, portanto, sem proteção de um Estado nacional.

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ocorrido no dia 13 de novembro de 2015, 10 meses após o ataque ao jornal
satírico Charlie Hebdo, onde tiros e bombardeios enviados pelo Estado Islâmico
aconteceram em pelo menos seis pontos de Paris, deixando 130 mortos e mais
de 350 feridos. Foram cerca de 89 mortos na casa de shows Bataclan e outros
40 próximos ao Stade de France, onde acontecia o amistoso entre a seleção de
futebol da França e a da Alemanha. Este tipo de noticiário, se não especificado
(de que, por exemplo, o Islã não é sinónimo de terrorismo), cria nas comunidades
acolhedoras um estereótipo negativo do imigrante de tal pertença religiosa ou de
tal nacionalidade. A velocidade atual de disseminação da informação gera uma
fácil assimilação do que é sugerido pelos meios de comunicação. Wolf, citando
Wright (1999, p. 203) sugere, baseado na Teoria Hipodérmica5, que “cada indivíduo
é um átomo isolado que reage isoladamente às ordens e às sugestões dos meios
de comunicação de massa monopolizados”. Wolf ainda afirma que “se o alvo é
atingido, a propaganda obtém o êxito que antecipadamente se estabeleceu” (1999,
p. 8).
Portanto, este trabalho tem como objetivo investigar a forma como os meios de
comunicação brasileiros expõem os refugiados nos telejornais diários e entender
se as notícias veiculadas em território nacional são pautadas pelos meios de
comunicação internacionais, com base nas Teorias da Comunicação e na hipótese
de Agenda-Setting, (Neumann (1973), Lippmann (2004), Shaw (1972), Wolf (2003))
que define a importância que a mídia possui no que os cidadãos devem pensar,
sobre quais temas devem se preocupar, e consequentemente como devem se
posicionar acerca dos elementos expostos.

As representações sociais nos meios de comunicação

A forma das pessoas se relacionarem entre si está intimamente ligada às


representações sociais e o modo ao qual cada cultura faz uso, tanto da designação,
como da relação e suas simbologias. Barttle (1961, p.12 In Moscovici, 2011,
p.99) afirma que “quando uma forma de representação comum e já convencional
está em uso antes que o signo seja introduzido, existe uma forte tendência para
características particulares desaparecerem e para que todo o signo seja assimilado
em uma forma mais familiar”.
É fato que hoje os meios de comunicação trabalham, inclusive, com a
“fabricação” de representações sociais, podendo criar estereótipos, estigmar certas
comunidades e difundir informações conforme lhes parecer mais cômodo. Para
Alexandre (2001), tal liberdade de representações com relação à realidade coloca
questões de peso sobre os efeitos da globalização da tecnologia para os grupos
sociais minoritários ou excluídos, assim como os imigrantes. “Diante desse quadro
mundial (da indústria da Comunicação de Massa) a mídia tem pouco espaço para
a verdade, pois depende das verbas publicitárias, que são manipuladas pelas

5 A Teoria Hipodérmica é baseada no estudo do comportamento, por meio da psicologia beha-


viorista, em que há uma relação mecanicista e imediata entre estímulo e resposta. Persuadir os
destinatários se torna uma tarefa possível e as mensagens dos meios de comunicação contêm
características do estímulo que interagem de maneira diferente com os traços específicos da per-
sonalidade dos elementos que constituem o público.

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grandes indústrias e conglomerados financeiros. De cada dez notícias veiculadas
pela mídia, uma é positiva” (Alexandre, 2001, p. 122).
Moscovici explica que o conhecimento, ao nível social, permite que a
coletividade utilize informações veiculadas pela mídia, transformando-a em algo
impessoal e recodifique-a e utilize-a conforme os valores da sociedade a qual
pertence. Ou seja, a mídia integrada por um grupo de especialistas formadores e,
sobretudo, difusores de representações sociais, é responsável pela estruturação de
sistemas de comunicação que visam comunicar, difundir ou propagar determinadas
representações (Alexandre, 2001).
Compreendendo os telejornais como o veículo temos “a principal fonte de
informação das pessoas sobre o mundo que as cerca” (Carvalho In Vizeu, 2003,
p. 90), e “para a maioria das pessoas, os telejornais são a primeira informação
que elas recebem do mundo: como está a política econômica do governo, o
desempenho do Congresso Nacional, a vida dos artistas, o cotidiano do homem
comum, entre outras coisas.” (Vizeu, 2003, p.6). Essa seleção é realizada pelo
jornalista em função de fatores com diferentes graus de importância e rigidez e o
que se verá a seguir são os critérios para eleger o que é e o que não é notícia, na
tentativa de entender porque certos assuntos têm mais relevância que outros e
são colocados na pauta do dia.

Critérios para ser notícia

A seleção de notícias é elaborada por profissionais da área de jornalismo


que se utilizam dos chamados valores-notícia ou critérios de noticiabilidade, para
elencar os acontecimentos reais e transformá-los em produtos jornalísticos. O
português Nelson Traquina (2001, p. 94) afirma que “as notícias são o resultado de
um processo de produção definido como a percepção, a seleção e a transformação
de uma matéria-prima (principalmente os acontecimentos) num produto” e têm
um papel fundamental no processo de divulgação das notícias. Entendemos que
a mídia, em específico o telejornalismo, têm uma participação importante na
construção da realidade que nos cerca. “A divulgação cotidiana de notícias ajuda
a construir imagens culturais que edificam todas as sociedades” (Motta, 1997, p.
319).
Para demarcar o conceito de valores-notícia é necessário compreender
que a notícia é uma construção social, ou como prefere Schudson (1978), é um
produto cultural. Essa perspectiva, por sua vez, atua orientando o trabalho do
jornalista, que tem a capacidade de identificar de forma mais precisa quais são os
acontecimentos que possuem valor para divulgação. A proposta dessa investigação
é entender como os telejornais brasileiros expõem as notas sobre os refugiados e,
principalmente, se as expõem. Para isso é necessário compreender quais são os
critérios que as aproximam da divulgação e quais as afastam, até mesmo porque
não há espaço para a publicação ou veiculação da infinidade de acontecimentos
que ocorrem no dia a dia.
Enquanto alguns fatos tornam-se notícias, outros são simplesmente ignorados
e é a partir dos critérios elencados por Traquina, que a análise desse artigo se
baseará. É importante salientar que o autor (2005, p.78), subdivide dois grupos

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para canalizar esses conceitos, porém se utilizará apenas o primeiro para analisar
as peças: Critérios Substantivos, que dizem respeito à avaliação direta do
acontecimento em termos da sua importância ou interesse.
Sobre os valores notícia – Critérios Substantivos, temos: Morte, Notoriedade,
Proximidade, Relevância, Novidade, Tempo, Notabilidade, Inesperado, Conflitos e
controvérsias. Esses elementos são fundamentais para o trabalho jornalístico em
todas as suas etapas, desde a construção da pauta até a publicação da notícia.

A influência das agências de notícias e a Agenda-Setting

Nota-se que, recentemente, emergiram publicidades, comunicação e até


culturas como parte dos instrumentos transnacionais, entre eles as agências de
notícias. O sistema de comunicação transnacional foi desenvolvido com o apoio
e o serviço de uma estrutura de poder, que inclui como parte fundamental a
sociedade da informação. Através desta, valores e estilos de vida são transmitidos
para países em desenvolvimento, que estimulam o tipo de consumo e o tipo de
sociedade transnacional exigido pelo sistema como um todo. Isso engloba políticas
públicas, econômicas e sociais, visando a expansão do sistema. Para Somavía
(1976, p.49) “Si el sistema transnacional perdiera su control sobre la estructura de
comunicaciones, perdería una de sus armas más poderosas; de ahí la dificultad
de cambio”.
Desta forma, a população dos países em desenvolvimento, desprovida de
igualdades sociais, torna-se uma receptora passiva, sem julgamento crítico em
relação à mensagem. Nestas condições, o público vai se convencer que o modelo
transnacional de consumo e desenvolvimento é historicamente inevitável. “Assim, o
sistema de comunicação cumpre a sua função principal: de penetrar culturalmente
o homem subdesenvolvido para condicionar a aceitar os valores de uma estrutura
de poder transnacional política, económica e cultural” (Somávia, 1976, p.3).
Suaréz-Navaz (2008) distingue a comunicação como uma das principais
dimensões presentes na abordagem teórica dos fenômenos transnacionais. Ao
conteúdo das agências, é de relevância entender que, segundo Paterson (2006,
p.3), Boyd-Barrett & Rantanen (2002, p.4) e Mattelart (1994, p.28), a função
elementar das mesmas é a importação e exportação de conteúdo jornalístico,
especificamente aquele de origem internacional, além-fronteiras. O Brasil, porém,
tem uma situação bem peculiar.

Grande parte dos países do mundo que dispõe de alguma agência


nacional, elas têm uma de duas funções, ou ambas: ou servem para
abastecer sua própria mídia nacional com cobertura internacional
(Reuters, AFP, AP, EFE, ANSA, DPA nasceram assim) ou operam como
“assessorias de imprensa” de seus governos para fora. O primeiro tipo
é de input: exige manter uma vasta rede de correspondentes, o que tem
alto custo operacional – por isso, só grandes empresas (sejam públicas
ou privadas) conseguem manter. O segundo tipo é de output: mais barato
e, em geral, mantido sob modelo estatal. Nós nunca tivemos nem uma

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coisa, nem outra (Aguiar, 2009, p.13).

Optou-se por expor o assunto do transnacionalismo e das agências para


pressupor a questão de que por conta de o Brasil carecer de agências de notícias
com correspondentes brasileiros no exterior, tudo que o país recebe são matérias
já formuladas com conteúdo estrangeiro, ou brevemente, dos seus escritórios e
escassos correspondentes, e não há, no próprio território nacional, o estímulo da
produção local. Isso, como consequência, faz com que notícias internacionais (que
tem uma demanda maior), provindas de agências, sejam mais visíveis do que as
nacionais, que requerem produção própria.
Um segundo levantamento a ser proposto é referente a hipótese do Agenda-
Setting que, para Barros (1995, p.169), significava que “as pessoas agendam
seus assuntos e suas conversas em função do que a mídia veicula”. Onde para
Maxwell McCombs e Donald Shaw, inspirados pelos estudos de Walter Lippmann,
“depende-se dos meios de comunicação para se informar sobre os assuntos,
personalidades e situações; para que possa-se experimentar sentimentos de
apoio ou de repulsa e para conhecer aqueles pontos de atenção”. Partindo-se
deste princípio e das questões levantadas anteriormente, é de se supor então que,
graças à importação de notícias estrangeiras (pela falta de agências de notícias),
a população brasileira tenha maior contato com os problemas da imigração e
dos refugiados internacionais, do que dos nacionais, e como consequência, os
assuntos de maior impacto e conhecimento da população são do exterior, e não o
contrário.
Considerando o que foi levantado chega-se à conclusão de que não há uma
ruptura entre as agências de notícia e o Agenda-Setting, e sim um link, de que
assim como a mídia influi sobre o que a população deve pensar, também a mídia
internacional age perante a nacional.

O desempenho da pesquisa e sua aplicação

Para a organizar a recolha dos dados optou-se por elencar como fontes de
análise dois telejornais brasileiros. O primeiro é o Jornal Nacional (JN), produzido
e transmitido pela Rede Globo desde sua estreia, em 1 de setembro de 1969,
exibido no horário noturno, a partir das 20h30, de segunda-feira a sábado, onde
a cobertura no exterior se deu a partir de 1973 e atualmente atinge cerca de 5,5
milhões de telespectadores ao redor de mais de 130 países.
O segundo trata-se do Jornal da Record (JR), produzido e exibido pela
Rede Record. O mesmo estreou em 1972, substituindo o antigo Jornal da REI,
também vai ao ar de segunda-feira a sábado, a partir das 21h30. Atualmente faz
a cobertura dos principais acontecimentos no Brasil e no mundo, com a produção
de reportagens especiais e investigativas. Também conta com correspondentes
internacionais, alcançando mais de 150 países.
Em uma análise primária foram assistidos 131 dias de telejornais, na íntegra.
O Jornal Nacional tem duração média de 45 minutos diários, contabilizando um
total de 98 horas e 25 minutos assistidos, enquanto que o Jornal da Record, que
possui em média 55 minutos de duração, obteve 109 horas e 16 minutos no total.

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Dentro desse panorama foram encontradas 61 matérias em que, de alguma forma,
mencionavam o termo “imigração” e, posteriormente, as mesmas passaram por
uma nova análise, chegando-se a um segundo recorte e elencando apenas as
reportagens que falavam sobre os refugiados.

Os refugiados

O número de matérias sobre refugiados é relativamente pequeno se comparado


ao de imigrantes, sendo 15% contra 85%, mas há ainda maior disparidade em
relação ao veículo de comunicação, uma vez que o Jornal da Record teve apenas
uma matéria veiculada em cinco meses de telejornal. Já o Jornal Nacional, da
Rede Globo, reproduziu oito matérias.
Em relação ao volume, houve um grande vácuo no período estudado. Em maio,
junho e agosto apareceram apenas uma matéria; em julho não foram encontradas
reportagens; e em setembro uma quantidade mais elevada de seis matérias,
ou seja, o dobro dos meses anteriores. Ambas tiveram quase uma semana de
intervalo, sendo publicadas nos dias 7, 14, 16 e 17, e posteriormente, duas no dia
29.
Das nove peças assistidas, a maior parte das notícias (5), teve um tempo de
exposição de 1’01’’ a 2’59’’, ficando entre a média de tempo tida como aceitável
para abordar de forma objetiva um assunto. Duas delas obtiveram um tempo
de exposição menor do que um minuto, e ambas eram notas simples; ou seja,
o apresentador do telejornal fez apenas um comentário sobre o assunto, não
aprofundando a notícia. Em contrapartida, também duas delas obtiveram um
tempo de exposição de 3’a 4’59’’, mostrando de forma mais aprofundada o que
estava em pauta, ou seja, a primeira referente a repressão da polícia da Hungria
à refugiados que tentavam entrar no país pela fronteira com a Sérvia e a segunda
sobre refugiados que queriam morar no Brasil.
Em relação as fontes que são utilizadas para compor as matérias, existe um
equilíbrio; em cinco delas, são utilizadas fontes cidadãs e oficiais; quatro delas
não apresentaram nenhum personagem falando sobre a temática. Porém, é
relevante ressaltar que em relação aos personagens que apareceram apenas de
forma ilustrativa, houve um descuido ao não comentar de forma clara e concisa a
nacionalidade. Isso foi observado principalmente em relação as pessoas de origem
africana, em que não havia menção do país de origem ou qualquer descrição mais
detalhada, como se viu, por exemplo, com nacionalidades europeias.

A Análise de Discurso

Segundo afirma Orlandi (1999), a Análise de Discurso começa por um recorte,


que consiste na identificação de fragmentos de corpus dotados de sentido
(associações semânticas), portanto, optou-se por analisar uma peça de cada
mês em que foram encontradas reportagens sobre os refugiados, visando assim,
aprofundar o conteúdo. Como os meses de maio, junho e agosto tiveram apenas
uma peça, foram essas as escolhidas. Já no mês de setembro, optou-se por
analisar a peça veiculada no Jornal da Record, uma vez que essa foi a única

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matéria exibida pelo telejornal. Sendo assim, foram analisadas, com base na AD,
um total de quatro notícias. A seguir, seguem as peças analisadas.

Peça 1 – 14 de maio de 2015

A matéria de âmbito internacional, veiculada no Jornal Nacional, tem como título


“Tailândia e Malásia se recusam a receber barcos superlotados de refugiados”,
com duração de 1’ a 2’59’’ e sendo uma reportagem completa (off6 + passagem7 +
sonora8).
Descrição da peça, conforme o discurso do repórter Márcio Gomes: “Só nos
três primeiros meses deste ano, 25 mil se arriscaram nas águas do sul da Ásia.
Fogem da perseguição religiosa e da pobreza em Myanmar e Bangladesh. O
destino: qualquer país que os aceite. Na Tailândia, foram barrados. A vizinha
Malásia chegou a receber mil pessoas, mas depois passou a rebocar os barcos
para fora das suas águas territoriais. Segundo as Nações Unidas, milhares de
refugiados estão neste momento à deriva, sem conseguir socorro apesar de
tantos países por perto. A situação já dura meses e se transformou em mais uma
tragédia humanitária. Na foto, pescadores lançam mantimentos para 300 pessoas
em uma embarcação na costa tailandesa. A tripulação abandonou o barco há uma
semana. Dez pessoas morreram e foram jogadas ao mar. Mas a marinha da
Tailândia não levou os passageiros para terra. Alega que cumpriu a obrigação
humanitária ao dar água e comida. A polícia da Tailândia diz que aceitar os barcos
seria estimular o tráfico de seres humanos. Para o representante da Organização
Internacional de Migração (que não tem o nome divulgado na reportagem), “É
necessário combater o tráfico, mas há pessoas em risco de vida”.
Desta forma, pelas palavras destacadas, é possível observar na reportagem
que as três vozes existentes convergem para um mesmo ponto – o tom de
drama proposto pelo telejornal. São expressões fortes e que podem causar ao
telespectador uma percepção de desespero, tristeza e gravidade. Apesar de a
matéria mostrar, aparentemente, apenas o lado trágico e de resistência na recepção
de alguns países, ao final dela, na fala do representante da OIM, eles iniciam uma
outra percepção bastante pertinente e que deveria ser continuada - que mesmo
sendo necessário o combate ao tráfico, as pessoas têm, sobretudo, direito à vida
e necessitam de ajuda -, ou seja, eles lançam uma ideia importante, mas não
dão vasão para a mesma. É possível notar que a Tailândia, mesmo recusando
os refugiados, se diz satisfeita por ter prestado socorro, o que é o mínimo que
um governo deve fazer. Ressalta-se aqui o que diz o autor Coulthard (1977),
em que a linguagem parece dirigir as percepções dos indivíduos e “faz coisas”
acontecerem, construindo e criando as interacções sociais e os diversos mundos
sociais. É notável também que, tanto na fala da âncora, quanto na fala do repórter,
as palavras destacadas como “dramática”, “problema”, “recusam”, “barrados”, “à
deriva” e “tragédia” aparecem com um tom mais forte na voz de ambos, dando

6 Off: texto lido pelo repórter;

7 Passagem: aparição do repórter na notícia;

8 Sonora: fala do entrevistado/fonte/personagem;

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maior ênfase e conotação ao sentido de cada uma delas. Em relação aos valores-
notícia, podemos elencar a relevância e notabilidade, pois trata-se de um tema
bastante pertinente; a novidade, uma vez que era um acontecimento relativamente
novo; podemos utilizar também a atualidade, pois era um assunto que estava nos
telejornais de vários países; conflitos, onde para Traquina (2001) é sempre motivo
de se ter um jornalista por perto; e elenca-se também a dramatização, por se
tratar de um assunto delicado e com desdobramentos que atingem o emocional do
telespectador.

Peça 2 – 15 de junho de 2015

Na segunda peça, de cunho internacional e veiculada também no Jornal


Nacional, tem-se como tema a Itália acusando a França de fechar suas fronteiras
para os refugiados. O contexto da matéria afirma que na Europa o governo italiano
acusou a França de fechar as fronteiras para impedir a entrada de refugiados
africanos. Com duração de 1’ a 2’59’’, trata-se de uma nota coberta, em que
aparecem citadas as seguintes nacionalidades - etíope, eritréios, senegaleses,
somalianos e sudaneses, porém também não há utilização de nenhum tipo de
fonte compondo a matéria.
Descrição da peça, conforme o discurso da repórter Ilze Scamparini: Há 30
anos, um acordo abria as fronteiras entre os países da Europa. Agora, na pior
crise de refugiados depois da Segunda Guerra Mundial, a França decidiu fechar as
dela. Na cidade italiana de Ventimiglia, imigrantes africanos estão sendo proibidos
de atravessar para o lado francês. Há dois dias dormem em cima de pedras.
Rezam ali as orações muçulmanas e tomam banho no mar. Vieram da Etiópia,
Eritreia, Senegal, Sudão e Somália, fugindo de conflitos, miséria e ditaduras.
Alguns têm parentes já instalados no norte da Europa, mas são impedidos
de seguir viagem. O ministro do Interior da França afirmou que o problema é
da Itália, porque a Convenção de Shengen prevê que os imigrantes fiquem no
país de entrada no continente. A Itália recebe a maioria dos que vem pelo Mar
Mediterrâneo. Os centros de acolhimento estão superlotados, e a capital, Roma,
montou abrigos temporários. As estações de trem começam a ser ocupadas por
imigrantes. Jornais italianos relatam denúncias de racismo nos trens que vão
para Munique, na Alemanha, onde negros têm sido barrados. O primeiro-ministro
da Itália, Matteo Renzi, está preparando uma proposta para apresentar à União
Europeia. Ele declarou que a França não pode usar navios para fechar o acesso
pelo Mediterrâneo, e deixar os imigrantes para a Itália.
Nessa peça, novamente as palavras destacadas ressaltam o sentimento
negativo da situação. É possível de se entender a forte participação pejorativa da
França, uma vez que termos como “impedir”, “conflitos” e “superlotado” trazem a
situação delicada pela qual passam os refugiados, e mesmo assim há um país
que se recusa a auxiliá-los. De acordo com Chomsky (1975), a linguagem possui
uma estrutura profunda de representação do significado, um conjunto de regras
transformacionais relacionadas com a estrutura cognitiva dos sujeitos, desta forma,
o telespectador pode traduzir essa peça colocando a França em uma imagem
deturpada. Outro fato notável é a falta de fonte cidadã, não há quem fale por eles,

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como se realmente os refugiados estivessem esquecidos e sem voz. A peça também
traz outro tema importante – o racismo – que ainda é bastante incidente em vários
países e o que faz com que aumente o difícil momento pelos quais passavam os
refugiados. Nessa notícia destacam-se os valores de relevância e tempo, já que
o tema era atual e importante para ser debatido; conflitos e controvérsias, pois a
presença da violência fornece mais valor-notícia e representa a quebra do que
é normal; visualidade, uma vez que matérias desse cunho normalmente trazem
imagens tristes e de impacto; e amplificação, ou seja, quanto mais amplificado o
acontecimento, mais possibilidade de veicular a notícia.

Peça 3 – 26 de agosto de 2015

Em agosto foi ao ar uma matéria de até 26’’, de âmbito internacional,


veiculada no JN, intitulada “Hungria enviará cães e exército para impedir entrada
de refugiados”. A nota coberta foi apresentada pela âncora do telejornal, Renata
Vasconcellos, com o seguinte texto: “O governo da Hungria vai mandar cães e
o exército para impedir a entrada de refugiados pela fronteira com a Sérvia. A
polícia húngara lançou bombas de gás para conter um protesto num centro de
imigrantes. Famílias que fogem de guerras se arrastam pelo chão para passar pela
cerca que o governo está erguendo. Também nesta quarta-feira (26), equipes de
resgate encontraram 50 corpos de refugiados num barco, na costa da Líbia”.
A nota, apesar de curta, revela através das palavras o tom literal de guerra
pelo qual passavam os refugiados que tentavam chegar ao território húngaro. Mais
do que nas reportagens anteriores, essa ressalta uma situação bastante grave
de violência, enaltecida por “cães”, “exército”, “bombas” e “cerca”, o que poderia
induzir o pensamento do telespectador em enxergar a Húngria como um país um
tanto quanto hostil e fechado, assim como averiguar o desespero e a situação de
brutalidade ao qual estavam sujeitos os refugiados. Para Véron (1980), operações
técnicas-discursivas que até então estavam na órbita do campo midiático e dos
seus peritos, se disseminam para outros campos, cujas práticas produtivas tomam
lógicas e operações midiáticas, como condição de produção para a construção
de novos processos enunciativos. Foram utilizadas as imagens de imigrantes
sírios, mas que não foram usados como fontes, podendo ter a mesma conotação
anterior, de que era impossível ouví-los, até mesmo pela situação delicado pela
qual passavam.
É possível compreender o uso dos valores-notícia: morte, contabilizando os
50 corpos encontrados no barco; inesperado, por tratar-se de uma notícia que
desperta o interesse da população; concorrência, gerando a busca pelo furo
jornalístico e pela exclusividade; e personalização, pois o jornalista valoriza as
pessoas envolvidas no acontecimento e valoriza o fator “pessoa” como forma de
agarrar o leitor.

Peça 4 – 7 de setembro de 2015

No dia 7 de setembro o Jornal da Record veiculou uma matéria de 1’ a 2’59’’,

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de cunho internacional, que tinha como enfoque a distribuição dos refugiados na
Europa.
Descrição da peça, conforme o discurso do repórter Teo Taveira: Na próxima
quarta-feira a União Européia vai apresentar uma proposta de distribuição dos
imigrantes pelo continente. O plano é acolher 120 mil, além dos que já chegaram
aqui. A Alemanha puxa a fila dos que compraram a briga dos refugiados. A
chanceler Angela Merkel, anunciou verba de 24 bilhões de reais para conter a
crise. Reino Unido e França, devem juntos abrir as portas para 44 mil pessoas
nos próximos cinco anos, mas Húngria, Eslováquia e República Tcheca criticam
o sistema de cotas. Enquanto isso, a presidente Dilma Rouseff disse que o Brasil
também está disposto a ajudar. “Teremos os nossos braços abertos para acolher
os refugiados”. Novas imagens mostram a operação da marinha brasileira que
salvou 220 imigrantes no Mar Mediterrâneo no fim de semana.
Na única peça encontrada no Jornal da Record, e justamente por esse motivo a
escolhida para a análise de setembro, é possível verificar um tom mais informativo
em relação às peças do Jornal Nacional, com a menção de números importantes
e dados concretos; ao mesmo tempo que reflete o que passam os refugiados,
mostra também a posição dos países. O mais interessante é que, mesmo o
repórter estando no exterior, ele traz informações sobre o posicionamento do Brasil,
algo que não se viu anteriormente. Vale ressaltar apenas que o imigrante que é
utilizado como fonte não foi identificado, assim como a conotação sobreposta de
se tratarem tanto de imigrantes, quanto de refugiados, sem especificar cada um.
Para compor a notícia foram utilizados os valores - proximidade, uma vez que o
JR faz um link com o Brasil, para tornar o assunto mais relevante no país onde
o jornal é exibido; relevância, já que é um tema atual e que envolve um grande
número de pessoas; novamente notabilidade e conflitos; e consonância, em que
o jornalista insere novidades num contexto ou numa história já conhecida para
facilitar a compreensão pelo público.

Tratamento dos resultados e conclusão

Quando se optou por trabalhar, já de início, as Representações Sociais, tendo


como base o autor Serge Moscovici, o propósito era fazer a seguinte ligação
– influência dos meios na sociedade – promovendo o debate das possíveis
consequências que a veiculação de informações – seja de forma positiva ou
negativa – poderiam acarretar numa população multicultural, que mesmo tendo
essa característica, ainda apresenta algumas formas de preconceito, como é o caso
do Brasil. Portanto, buscou-se analisar a forma que os temas dos deslocamentos
migratórios, a imigração e mais precisamente, o refúgio, foram enquadrados pela
mídia nacional, dentro dos telejornais Jornal Nacional e Jornal da Record.
Em relação aos dois primeiros objetivos elencados, de perceber como eram
noticiados os refugiados e se havia o cuidado de diferenciá-los dos imigrantes,
lembrando que isso poderia gerar a possível criação de estereótipos, notou-se que
não, não havia o cuidado de diferenciar refugiados de imigrantes e, muitas vezes,
as categorias eram sobrepostas. O mesmo ficou visível para o inverso, nas matérias
sobre imigração haviam citações de refúgio sem nenhuma distinção. A partir

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disso, verificou-se também o objetivo seguinte – nenhuma matéria referenciava
refugiados no Brasil - tendo as notícias estrangeiras mais importância do que as
nacionais. De nove peças, nenhuma era de cunho brasileiro, todas tratavam da
crise que estava se passando na Europa e seus desdobramentos.
Dessa percepção surgiu o levantamento da hipótese de que isso aconteceria
porque existem poucos correspondentes brasileiros no exterior, o que acarretaria
em uma reprodução automática do que as agências internacionais enviam. A
especulação que se dá nesse ponto é de que, há realmente essa lacuna, uma vez
que os escritórios internacionais, tanto da Rede Globo, quanto da Record, não
estão em todos os países, podendo haver assim uma defasagem na cobertura
midiática. Como há, por parte do jornalismo brasileiro, essa produção defasada,
para não deixar de noticiar certos acontecimentos, principalmente com foco
nas migrações, os telejornais simplesmente reproduzem o que lhes é enviado.
Porém, outra especulação que surge é o porquê da mídia nacional, observando a
quantidade de pedidos de refúgio que chegam diariamente ao Brasil, não utilizam
essas informações para noticiar esses acontecimentos, buscando manter a
população local informada.
A hipótese do Agenda-Setting também se confirmou, com base no referido
acima. Essa teoria diz que, dependendo dos assuntos que venham a ser abordados
– agendados – pela mídia, o público termina, a médio e longo prazos, por incluí-
los igualmente em suas preocupações. Assim, a agenda da mídia termina por se
constituir também na agenda individual e mesmo na agenda social. Logo, o que foi
noticiado internacionalmente passou a ser veiculado pelos telejornais brasileiros
abrindo-se uma subcategoria de que a mídia “agenda” a própria mídia, e que
a pauta internacional acabou agendando a nacional, até mesmo pela dinâmica
televisiva, uma vez que o imediatismo faz parte desse veículo. Optou-se também
por fazer uma Análise de Discurso nas peças sobre os refugiados para entender se
as palavras utilizadas poderiam impactar na recepção da população, com base em
hipóteses levantadas, e de como eles se comportariam ao receber os refugiados.
Portanto, a conclusão desse estudo é satisfatória no sentido de ser, mesmo
que pequeno, um instrumento para debater um assunto tão relevante e atual.

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____________________
Recebido: 03 ago., 2016.
Aceito: 06 mar., 2017.

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Um balanço da produção acadêmica
sobre a imigração de bolivianos
em São Paulo
A balance of the academic production
on immigration of Bolivians in São Paulo
Fabio Martinez Serrano Pucci1

Resumo
Este artigo tem como objetivo apresentar um balanço da produção acadêmica so-
bre a imigração de bolivianos para São Paulo. Em seguida, exploram-se algumas
das lacunas no conhecimento deixadas por esses estudos, indicando de que ma-
neira a pesquisa de Mestrado Viver “Outramente”: Moradia, Condições de Vida e a
Produção da Alteridade dos Bolivianos em São Paulo2 se apropriou delas. Por fim,
expõem-se sucintamente as referências teóricas do referido projeto.

Palavras chave: Imigração; Bolivianos; Cidade; Alteridade; “Estado da arte”.

Abstract
The main objective of this article is to present the balance of the academic pro-
duction about the immigration of Bolivians to São Paulo. Thus, it is explored some
issues that were not sufficiently developed by these studies, showing in which way
the Master Degree Research Living differently: housing, living conditions and the
production of the otherness of Bolivians in São Paulo developed them. Finally, it is
briefly demonstrated the theoretical references of this project.

Keywords: Immigration; Bolivians; City; Otherness; “State of the art”.

1 O autor é graduado em Ciências Sociais pela PUC-SP e mestre em Ciências Sociais pela mes-
ma instituição. É doutorando em Sociologia pela UFSCar.

2 Esse projeto é desenvolvido junto ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais


da PUC-SP, sob orientação da Professora Doutora Maura Pardini Bicudo Véras. Ele é financiado
pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 14/21387-3.

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Introdução

Segundo Silva (1997), o processo de emigração boliviana para o Brasil inicia-


-se a partir de 1950. O perfil dos emigrantes era de jovens que chegavam ao país
para estudar ou trabalhar e acabavam permanecendo. Hoje em dia estes jovens
são “pequenos empresários e profissionais liberais” (SILVA, 1997, p. 82). Alguns
deixaram de lado a ideia de voltar à Bolívia por causa da “conjuntura política e
econômica que se instaurou em 1952 pelo Movimento Nacionalista Revolucionário
(MNR) (SILVA, 1997, p. 84, grifo do autor), pois este “frustrou as expectativas de
mudanças profundas no país e passou a estimular a saída desses jovens profis-
sionais.” (SILVA, 1997, p. 84).
Em 1940 apenas uma boliviana entrou via marítima. Esse número sobe para
três em 1950. Silva levanta a hipótese de que isso ocorreu porque a entrada se
dava principalmente via aérea (SILVA, 1997, p. 84).
A partir da década de 1966 até 1973, a economia brasileira está crescente por
causa das grandes obras da ditadura militar. Nesse período “o fluxo de imigrantes
se mantém” (SILVA, 1997, p. 85). Na década de 1980 continua estável, ainda que
a economia estivesse em crise. Esses bolivianos vinham em busca de trabalho e
“acabaram preenchendo a necessidade de mão-de-obra barata para pequenas
confecções” (SILVA, 1997, p. 85). Antes dominada pelos judeus, e a partir da dé-
cada de 1970 pelos coreanos (SILVA, 1997, p. 85).
Segundo estimativas da Pastoral dos Migrantes, há cerca de 80 mil bolivianos
em São Paulo, mas este número pode estar sendo tanto superestimado como
subestimado, pois as pesquisas oficiais não levam em conta os imigrantes indocu-
mentados (SILVA, 2005a). Já o Censo 2010 (IBGE) estima que há 21.680 bolivia-
nos na cidade. Essa diferença ocorre devido ao fato de o Censo ser uma fonte ofi-
cial, o que faz com que muitos bolivianos indocumentados não queiram participar,
por esse motivo subestima-se o número real de bolivianos por essa fonte.
Silva (1997) traçou um perfil dos imigrantes bolivianos com base no fichário
da Pastoral do Migrante. Ele consultou “332 fichas entre os anos de 1985 a julho
de 1994” (SILVA, 1997, p. 91, grifo nosso). Muitas dessas fichas não continham
informações completas. Ele chegou ao seguinte resultado:

[...] a maioria, 74,2%, é do sexo masculino, e 25,8% do sexo fe-


minino. [...] faixa etária [...] entre os 20 a 40 anos, 74,3%, sendo que
dos 40 aos 50 anos, apenas 8,9%, e o restante acima de 50 anos. [...]
Quanto à origem [...] La Paz, [...] 42,16%. Isso não significa que todos
sejam naturais desse Estado, [...] Cochabamba, 9,2%; Oruro, 4,9%; Po-
tosí, Santa Cruz e Chuquisaca. A profissão mais citada [...] costureiro,
totalizando 48,8%. [...] outras profissões [...], médicos, estudantes, ope-
rários, domésticas etc. O estado civil da maioria é solteiro, 56,6%, [...].
Quanto ao local de residência na cidade de São Paulo predominam
os bairros do Brás, Bom Retiro e Pari. (SILVA, 1997, p. 91-2, grifos
nossos).

Entretanto, em pesquisa feita mais recentemente, ele notou algumas mudan-


ças que alertam para algumas conclusões importantes: ele aponta para uma maior

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proporção de mulheres em relação a homens do que se constatava tempos antes.
Se antes elas representavam 25,8% (SILVA, 1997:91 apud SILVA, 2003: 29), ago-
ra representam 44,9% (SILVA, 1999: 24 apud SILVA, 2003: 29). Segundo o autor,
isso quer dizer que os imigrantes estão trazendo suas famílias para cá ou consti-
tuindo novas famílias aqui. A conclusão que ele chega é a de que esta mudança é
sinal da consolidação da imigração boliviana na cidade.

Síntese da bibliografia fundamental

Tendo em vista este contexto introdutório, apresenta-se uma breve síntese do


“estado da arte” da literatura sobre a presença de bolivianos em São Paulo, para
então exporem-se os assuntos nos quais a presente pesquisa se centrará, bem
como o marco teórico que embasará esta pesquisa.
O primeiro artigo produzido sobre a imigração boliviana em São Paulo foi publi-
cado na revista Travessia por Sidney Antônio da Silva (SILVA, 1995a). Ele abordou
as vivências desses imigrantes e os conflitos com a população local. Então, o au-
tor realizou uma dissertação de mestrado sobre o assunto (SILVA, 1997) na qual
analisou desde a diáspora desses imigrantes até o seu cotidiano, suas estratégias
de sobrevivência e o papel da cultura em suas trajetórias. Em outros trabalhos ele
aborda o tema da intolerância e do preconceito (SILVA, 1998a e SILVA, 2005b),
da mobilidade econômica e social desses imigrantes (SILVA, 1998b; SILVA, 2006),
dos processos de formação de uma identidade cultural (SILVA, 2005a, SILVA,
2005c; SILVA, 2007) e de sua religiosidade, tradições e festas (SILVA, 2003). Em-
bora suas pesquisas tenham abrangido grande diversidade de assuntos, perma-
neceram temas que foram mais explorados por outros pesquisadores.
Há uma pesquisa que trata sobre a questão do lazer e a relação dos bolivianos
com o futebol, esporte que eles apreciam bastante. Alves (2011) busca “estudar as
figurações sociais, as relações de poder, a diferenciação e as redes de interdepen-
dência relacionadas a pratica do futebol na Praça Kantuta” (ALVES, 2011, p. 29).
Há uma série de pesquisas (PRETURLAN, 2012; FREITAS, 2009; FREIRE DA
SILVA, 2008) cuja preocupação central é o assunto da subcontratação de mão-
-de-obra para as oficinas de costura e a relação disto com processos de reestru-
turação produtiva do ramo de confecção em São Paulo. Estes trabalhos buscam
apreender as relações de subalternidade, informalidade e precariedade envolvidas
na mão-de-obra não qualificada. Além disso, estudam até que ponto esse ramo
oferece oportunidades de mobilidade social para os imigrantes.
Nesse sentido, Preturlan (2012) explora até que ponto as diferenças e hierar-
quias de classes sociais (no interior do grupo de bolivianos em São Paulo) con-
tribuem para o entendimento dos fluxos migratórios desses imigrantes – relacio-
nando a mobilidade social com a heterogeneidade encontrada entre os bolivianos.
Já Freitas (2009) estuda a mobilidade social dos imigrantes relacionando esse
processo com fenômenos mais amplos, como a reestruturação produtiva do ca-
pitalismo global. Por fim, Freire da Silva (2008) inverte a relação causal e busca
explicar a subcontratação de imigrantes bolivianos nas confecções como um efei-
to do processo de reestruturação produtiva do ramo de confecção em São Paulo
– minimizando, no entanto, a importância das “redes sociais” (TRUZZI, 2011) na

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constituição de um mercado étnico de bolivianos nesse ramo.
Assim, pode-se considerar que há um grupo de trabalhos que versa sobre a
questão do nicho étnico/econômico entre os imigrantes bolivianos (FREIRE DA
SILVA, 2008; SILVA, 1997; SOUCHAUD, 2012). Para Freire da Silva (2008), há
um nicho econômico e não étnico. Souchaud (2012), por sua vez, conclui que não
há relações suficientes para se considerar a presença boliviana no ramo um nicho
étnico:

As observações sobre a participação, no passado e no presente, de


várias ondas migratórias, oriundas da Bolívia, Coréias e Paraguai na ati-
vidade acabam com a ideia atual da oficina como uma hipotética enclave
étnica, baseada em especificidades bolivianas ou andinas” (SOUCHAUD,
2012, p. 90).

Já para Silva (1997), entretanto, a presença boliviana neste ramo tem sim
uma dimensão nitidamente cultural e étnica, pois eles formam redes sociais que
acolhem os recém-chegados no ramo da costura, formando uma economia étni-
ca. Como oferecem salários baixos, isso dificulta que outros grupos se insiram no
ramo com a mesma competitividade.
Outro grupo de pesquisas (TIMÓTEO, 2011; ILLES, TIMÓTEO & FIORUCCI,
2008; AZEVEDO, 2005) enfoca o assunto do tráfico de pessoas, do trabalho degra-
dante e da escravização. Estes trabalhos têm uma perspectiva jurídica, tomando
acordos internacionais como referência para a análise de seu objeto de estudos.
Azevedo (2005), objetiva estudar até que ponto há a existência de trabalho
forçado/degradante entre os bolivianos que trabalham no ramo da costura em São
Paulo, tomando como referência as legislações internacionais sobre o assunto.
Já Timóteo (2011), busca investigar em que medida a exploração do trabalho dos
bolivianos no ramo de costura em São Paulo pode ser considerada uma forma
contemporânea de escravidão, tomando como referência a Organização Interna-
cional do Trabalho (OIT). Por fim, Illes, Timóteo & Fiorucci (2008) intentam, entre
outros objetivos: discutir o assunto do contrabando de imigrantes e do tráfico de
pessoas, apresentando distinções entre a definição de ambos e especificando a
problemática do tráfico de pessoas na cidade de São Paulo.
Além disso, há um conjunto de estudos (REZERA, 2012; FAVARETTO, 2012;
CAMPOS, 2009) cujo assunto central é o impacto que o trabalho degradante, o
tráfico de pessoas e a indocumentação trazem para a trajetória dos imigrantes.
Rezera (2012) dá ênfase à condição da mulher na subcontratação de mão-de-
-obra boliviana na indústria têxtil de São Paulo. Favaretto (2012) busca entender
“o impacto da experiência da migração nas trajetórias individuais, os efeitos do
preconceito e a discriminação na identidade dos grupos que ocupam posições
subalternas” (FAVARETTO, 2012, p. V). Por fim, Campos (2009) objetiva estudar
de que modo se dá a produção da subjetividade dos bolivianos nas oficinas de
costura em São Paulo.
Outro conjunto de trabalhos se debruça sobre o assunto da territorialidade e
da espacialização dos bolivianos em São Paulo. Enquanto alguns deles procuram
entender o deslocamento de bolivianos para o município de Guarulhos (APARE-
CIDA DA SILVA, 2012; OLIVEIRA AGUIAR, 2009), outros buscam apreender os

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projetos migratórios dos bolivianos e como isto se relaciona com suas escolhas
residenciais pelo centro ou pelas periferias (XAVIER, 2010; SOUCHAUD, 2011).
Xavier (2010) busca, entre outros objetivos, reconstruir toda a trajetória do
boliviano, recompondo o cenário migratório da cidade de El Alto, reconstituindo
as origens da migração boliviana ao Brasil e entendendo a configuração socioes-
pacial dos bolivianos residentes na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP)
(buscando suas especificidades ao escolher o centro ou a periferia para viver).
Já Souchaud (2011) interpreta “a trajetória recente de alguns distritos centrais da
cidade de São Paulo, focando a espacialização da população migrante e das ati-
vidades ligadas ao subsetor da confecção no centro expandido.” (SOUCHAUD,
2011, p. 64).
Sobre a questão da habitação, existe o trabalho de Simone (2014). Seu obje-
tivo é o de “identificar relações entre novas formas de encortiçamento de imóveis
[nos bairros do Brás e Belenzinho] e a organização de oficinas de costura por imi-
grantes bolivianos.” (SIMONE, 2014, p. 7-8).
Pucci (2011) e Vidal (2012) procuram compreender as relações de vizinhança
e a produção da alteridade do ponto de vista dos brasileiros, ou seja, são trabalhos
que abordam como os bolivianos são vistos por seus vizinhos da sociedade re-
ceptora. Essas pesquisas empíricas se deram nos bairros centrais de São Paulo,
especialmente Brás, Bom Retiro e Pari.
Em Pucci (2011) escutaram-se muitos depoimentos manifestando hostilidade
em relação aos bolivianos, enquanto em Vidal (2012) afirma que esses imigrados
provocam poucas reações de hostilidade, chegando a afirmar, inclusive, que a re-
lação entre brasileiros e bolivianos é constituída por “uma convivência organizada
em torno de relações sociais fluidas” (VIDAL, 2012, p. 94) – o que contrasta de
maneira clara com os resultados obtidos por Pucci (2011). Segundo este autor, os
bolivianos vivenciam muitas formas de preconceito que dificultam a sua integração
na sociedade paulistana, tanto no caso da sociabilidade com os vizinhos para os
bolivianos de 1ª geração, quanto no caso das crianças e adolescentes descenden-
tes de bolivianos nas escolas.
Mas não se esgotam aqui os estudos que focam os temas do preconceito, da
intolerância e da discriminação. Baeninger & Simai (2010) estudam o discurso de
bolivianos e brasileiros sobre o preconceito. Os seus objetivos são: a) apresentar
“formas discursivas contemporâneas de negação da xenofobia”; b) identificar até
que ponto há xenofobia no discurso dos brasileiros em relação aos imigrantes bo-
livianos; c) analisar o discurso dos próprios bolivianos sobre as suas vivências em
São Paulo; d) responder em que medida os bolivianos introjetam um sentimento
de inferioridade, expresso em seu discurso sobre como se veem no Brasil; e e)
estabelecer tipos de negação do racismo. Como conclusão, afirmam as autoras, o
grupo estigmatizado (dos bolivianos) internaliza o preconceito contra si mesmo e
adota um discurso de favorecimento do grupo dominante (dos brasileiros).
Alguns trabalhos abordam a questão da segunda geração de imigrantes. En-
quanto um foca nos conflitos entre primeira e segunda geração de imigrantes
(PAES, 2011), outros (CAMARGO DE OLIVEIRA, 2012; HUAYHUA, 2007) abor-
dam o processo de aculturação e integração da segunda geração de imigrantes
latino-americanos entre os brasileiros.
A originalidade do trabalho de Paes (2011) está em problematizar sobre como

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se dá o processo de negociação de identidades entre a primeira e a segunda ge-
ração de imigrantes bolivianos e destes com a sociedade brasileira.
Camargo de Oliveira (2012) destaca mais a segunda geração de imigrantes
latino-americanos, tentando entender a sua relação com os brasileiros em escolas
públicas.
Huayhua (2007), por fim, busca analisar comparativamente como se dá o pro-
cesso de integração de jovens peruanos, bolivianos e argentinos (de primeira e
segunda geração, em todos os casos) na sociedade brasileira.
Fernandez (2015) se foca na questão da identidade dos bolivianos em suas
festas e manifestações culturais. O seu objetivo geral é analisar “por meio das ati-
vidades cotidianas de trabalho e lazer, [...] a manutenção da identidade do grupo
[de bolivianos em São Paulo] e suas formas de fixação na sociedade de acolhi-
mento.” (FERNANDEZ, 2015, p. 13).
Há pesquisas que estudam a relação dos bolivianos com os brasileiros nas es-
colas públicas e o acesso às políticas de educação (PUCCI, 2011; PONTEDEIRO
OLIVEIRA, 2012; MAGALHÃES, 2010).
Pucci (2011) dá destaque às relações de alteridade, a partir de entrevistas com
professores e diretores de escolas onde há alta prevalência de descendentes de
bolivianos. Já Pontedeiro Oliveira (2012) objetiva analisar a interação social entre
alunos bolivianos e brasileiros, dentro e fora da sala de aula; ou seja, seu foco está
na observação dos próprios alunos, mas também tendo em vista as relações de
alteridade. Tanto Pucci (2011) quanto Pontedeiro Oliveira (2012) adotam Elias &
Scotson (2000) como referência bibliográfica, de modo a entender a relação entre
os brasileiros e os bolivianos a partir da dinâmica estabelecidos-outsiders.
Magalhães (2010), embora também tenha como um objetivo específico anali-
sar como os bolivianos constroem sua relação com a comunidade escolar local, dá
maior ênfase no acesso à educação como um direito humano – adotando, inclusi-
ve, Hannah Arendt como referência bibliográfica.
Por fim, há outro grupo de estudos que abordam as dificuldades que os bolivia-
nos enfrentam no acesso à saúde por conta das diferenças culturais, da situação
irregular no país e da falta de informação (AGUIAR, 2013; AGUIAR & MOTA, 2014;
FALEIROS, 2012; KHOURI, 2010; MARTINEZ, 2010; MASCARO, 2014; SILVEIRA
et. al., 2014).
Aguiar (2013) busca “compreender, em sua historicidade, como diferentes gru-
pos, no caso bolivianos e coreanos, percebem e expressam suas necessidades
de saúde e como o serviço as toma.” (AGUIAR, 2013, p. 10) A unidade de saúde
do estudo é o Bom Retiro.
Faleiros (2012), por outro lado, problematiza a diferença que existe, para o
acesso à saúde por parte dos imigrantes, entre aquele oferecido pelo sistema
universal e aquele oferecido pelo sistema de dominância privada, no Brasil (para
imigrantes bolivianos) e nos EUA (para imigrantes brasileiros), respectivamente.
Khouri (2010) busca estudar “a violência [física] de gênero contra a mulher
boliviana residente no Brasil”. Entre seus objetivos específicos estão, entre ou-
tros: a) “compreender os aspectos culturais da mulher na sociedade boliviana e
estudar sua cultura”; b) estudar “a questão da violência doméstica contra a mulher
boliviana e identificar a sua totalidade como ser social na sociedade de gêneros”;
e c) analisar os atendimentos prestados pelos profissionais de saúde à mulher

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boliviana.
Martinez (2010) tem como objetivo:

Descrever o comportamento da tuberculose (TB) na comunidade bo-


liviana residente em quatro distritos do município de São Paulo (MSP),
Belém, Bom Retiro, Brás e Pari, no período de 1998 a 2008, analisar
seu possível impacto na tendência dessa doença e investigar possíveis
disparidades em relação ao acesso aos serviços e na qualidade do aten-
dimento entre bolivianos e brasileiros.(MARTINEZ, 2010, p.6).

Mascaro (2014) busca cruzar o diálogo que se estabelece entre os direitos


humanos e o direito ao desenvolvimento a partir da análise do acesso da comuni-
dade de imigrantes de bolivianos em São Paulo às políticas sociais de saúde.
Silveira et. al. (2014), por fim, buscam fazer um balanço bibliográfico das abor-
dagens teóricas utilizadas nas análises em saúde dos imigrantes no espaço urba-
no, para depois se deterem especificamente no caso de São Paulo e dos bolivia-
nos.
Tendo em vista o balanço da produção sobre imigração boliviana em São Pau-
lo apresentada acima, segue-se com a exposição dos temas que foram pesquisa-
dos na dissertação “’Viver Outramente’: Moradia, Condições de Vida e a Produção
da Alteridade dos Bolivianos em São Paulo” (PUCCI, 2016).

Viver “Outramente”: Moradia, Condições de Vida e a


Produção da Alteridade dos Bolivianos em São Paulo
(PUCCI, 2016)3

Esta pesquisa centrou-se no estudo um bairro central (Brás, por concentrar


grande contingente de bolivianos) e um distrito periférico (Grajaú), por ter havido
um importante aumento de bolivianos nessa região de 2000 a 2010 (Censo Demo-
gráfico 2000 e 2010, IBGE).
Esta dissertação se ocupou das condições de moradia dos bolivianos em São
Paulo, da exclusão desse grupo das políticas sociais (principalmente as de habi-
tação e saúde). Essa escolha se justifica pelo fato de que tem sido negada aos
bolivianos uma condição digna de moradia, o que vem a se somar às demais for-
mas de subalternidade a que esse grupo é submetido como é o caso da clandesti-
nidade (do ponto de vista da legalidade), da exploração de sua mão-de-obra e da
estigmatização de que esse grupo é alvo.

3 Esta dissertação foi desenvolvida junto ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciên-


cias Sociais da PUC-SP, sob orientação da Professora Doutora Maura Pardini Bicudo Véras. Foi
financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo
nº 14/21387-3. A pesquisa empírica envolveu 22 entrevistas com imigrantes bolivianos nos dois
bairros. Adotou-se como estratégia de campo o estabelecimento de contato com organizações
não-governamentais de assistência aos imigrantes e as governamentais. Foram realizadas entre-
vistas em duas Unidades Básicas de Saúde (UBSs) no município de São Paulo, uma no Grajaú e
outra no Brás. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da PUC-SP e da Secretaria Municipal
de Saúde. Foi obtido o consentimento livre e esclarecido dos entrevistados.

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Vemos na literatura que têm sido muito estudadas as dificuldades de adapta-
ção desses imigrados às políticas sociais de educação (PONTEDEIRO OLIVEIRA,
2013; MAGALHÃES, 2010), das políticas de saúde (AGUIAR, 2013; AGUIAR &
MOTA, 2014; KHOURI, 2010; MARTES & FALEIROS, 2013; MARTINEZ, 2010;
SILVEIRA, 2014). Porém, há deficiência de estudos que se debrucem sobre as po-
líticas sociais e/ou as condições de moradia dos bolivianos na cidade. Adotou-se
a hipótese de que a precariedade dos serviços públicos em seu país de origem
os leva a buscar nossas políticas sociais. Assim, por um lado, este projeto visou
ocupar-se desse assunto.
Por outro lado, este projeto objetivou estudar um assunto não tão explora-
do entre os estudos sobre a territorialidade dos bolivianos em São Paulo, já que
os estudos que se debruçaram sobre esse assunto privilegiaram os bolivianos
concentrados em Guarulhos (APARECIDA DA SILVA, 2012; OLIVEIRA AGUIAR,
2009), e na região centro (Brás, Bom Retiro e Pari), norte e leste de São Paulo
(XAVIER, 2010). Também se tomou conhecimento de apenas um trabalho sobre a
questão da moradia entre os bolivianos em São Paulo (SIMONE, 2014), centrado
nos bairros do Brás e Belenzinho. No entanto, não conhecemos estudo que tenha
se focado especificamente sobre os imigrados bolivianos que começam a habitar
a região sul. Além disso, tais análises têm como base os dados do Censo de 2000
e pretendo fazê-lo a partir do Ceno de 2010.
A esse conjunto de problemas também se soma a questão da alteridade (VI-
DAL, 2012; PUCCI, 2011, 2013; BAENINGER & SIMAI, 2000) e da convivência
entre bolivianos e brasileiros. A literatura nos tem mostrado que esses imigrados
são tidos por “invisíveis” pelos brasileiros (PUCCI, 2011). Além disso, tem sido res-
saltado que os bolivianos são taxados pelos brasileiros como sujos, baderneiros,
índios, traficantes e escravos (PUCCI, 2011).
Esse fenômeno também pode ser percebido nas interações entre esses imi-
grados e os brasileiros em escolas e hospitais públicos. A literatura (PUCCI, 2011)
revela que existe um discurso de que esses imigrantes estariam disputando com
os brasileiros por serviços públicos de educação, saúde e habitação.
A obra A Imigração ou os Paradoxos da Alteridade, de Abdelmalek Sayad, foi a
principal referência do trabalho. Este autor trabalha com o paradoxo de ser um imi-
grante. Segundo esse autor, “o imigrante é essencialmente uma força de trabalho,
e uma força de trabalho provisória, temporária, em trânsito. (SAYAD, 1998, p. 54).”
Sobre as teorias das migrações internacionais adota-se Sasaki & Assis (2000),
Patarra (2006) e Muniz (2002) como referências. Procura-se “agregar as teorias
neoclássica (micro) [em que o indivíduo faz escolhas racionais] e histórico estrutu-
ral (macro) [em que o indivíduo é impelido pelo contexto social mais amplo a tomar
decisões] sob uma perspectiva domiciliar (ou familiar).” (MUNIZ, 2002, p. 3).
Adentrando um pouco mais ao tema principal da pesquisa, a alteridade, funda-
mentou-se em Elias e Scotson (2000), em Os Estabelecidos e os Outsiders, que
analisa a estigmatização como ferramenta para afastar os indesejados da concor-
rência pelo poder. Trabalhou-se também com Truzzi (2012), Hall (2003), Wieviorka
(2006) e Castells (1999) para desenvolver as noções de ”assimilação”, “identidade
cultural”, (in)tolerância, reconhecimento das diferenças e o próprio racismo.
Quanto mais um grupo está segregado, mais ele reforça o discurso do racismo.
Para trabalhar com “segregação” baseou-se em Marques (2005). Ele a conceitua

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como separação e desigualdade de acesso.
Para trabalhar com o tema da precariedade e acesso à moradia apoiou-se em
Bonduki (1998), Kowarick (2009) e Véras (2003b). Entende-se moradia não só
como a residência de fato, mas também os “seus complementos de infra-estrutura,
serviços, transporte, equipamentos sociais e paisagem.” (VÉRAS, 2003b, p. 326).”
Já sobre a territorialidade, adotou-se Véras (2003a), Santos (2007) e Carneiro
(2009) como referência. Esse é um conceito explicativo tanto para o processo de
formação de identidades, quanto para a reprodução das desigualdades sociais.
Essa pesquisa, portanto, procurou suprir as supracitadas lacunas presentes na
bibliografia sobre os bolivianos em São Paulo.

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Recebido: 13 mar., 2017.
Aceito: 21 jun., 2017.

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As migrações recentes como
possibilidades poéticas e políticas
de transformação do mundo social
Recent migrations as poetic and politic
possibilities of transformation of the social world

Janaina Santos1

Resumo
O presente artigo propõe uma reflexão acerca das migrações recentes como pos-
sibilidades poéticas e políticas de transformação do mundo social. O fenômeno
migratório deste século XXI, a partir de Santa Catarina, é analisado a partir de
suas liminaridades, montagens e possibilidades de desencadear transformações.
O enfoque proposto, para além das precariedades e restrições de direitos que in-
cidem sobre populações migrantes, atenta para a sua positividade. Através desta
perspectiva, os constantes deslocamentos e reelaborações de identidades e de
modos de estar no mundo, mais fluídos e menos estáveis presentes no cotidiano
destes novos fluxos migratórios podem ser compreendidos como desencadeado-
res de novos paradigmas de relações contra-hegemônicas.

Palavras-Chave: migração, transformação social, liminaridades, poética, antropo-


logia.

Abstract
This article proposes a reflection about the recent migrations as poetic and politic
possibilities of transformation of the social world. The migratory phenomenon of
this XXI century, from Santa Catarina, is analyzed from its liminarities, mounts and
possibilities to trigger transformations. The proposed approach, in addition to the
precariousness and restrictions of rights that affect migrant populations, is attentive
to its positivity. Through this perspective, the constant shifts and re-constructions
of identities and ways of being in the world, more fluid and less stable in the daily
life of these new migratory flows can be understood as triggering new paradigms of
counter-hegemonic relations.

1 Doutoranda em Antropologia Social no PPGAS/UFSC, Mestre em História Cultural, Especialista


em Educação a Distância, membro do GAIRF (Grupo de Apoio a Imigrantes e Refugiados de Floria-
nópolis e região), do GT I (Grupo de Trabalho sobre Imigração da Comissão de Direitos Humanos
da ALESC) e do Observatório das Migrações da UDESC. Vinculada ao GESTO (Grupo de Estudos
em Oralidade e Performance).

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Keywords: migration, social transformation, liminarities, poetics, anthropology.

De acordo com Taussig as categorias precisam ser pensadas não como ma-
nifestações do natural mas “como um produto do desenvolvimento de relações
humanas mútuas – ainda que encobertas por aparências reificadas em uma socie-
dade baseada na produção de mercadorias” (Taussig, 2010, p.30). Deste modo,
a imigração e o refúgio podem ser compreendidos como efeitos das condições
históricas e sociais em que vivemos. Os fatos sociais não existem naturalmente,
mas “revelam-se de alguma maneira, como signos de relações sociais” (idem,
p.31), assim como seus usos seletivos nos processos de construções de memó-
rias e identidades, enquanto processos que se fortalecem na diáspora, com base
na différance, conceito que Hall (2003) busca em Jacques Derrida, remetendo a
um significado que não é fixo nem completo, mas que está em constante desli-
zamento e fluidez. A identidade, portanto, é vista como um tornar-se, um vir a ser
relacional e contextual. E, como percebido por meio de trabalho etnográfico com
populações migrantes de haitianos e senegaleses – historicamente reconhecidas
como diaspóricas -, através de seus constantes deslocamentos, torna-se possível
compreender este caráter aberto e em construção dos processos identitários.
A ideia deste artigo é refletir sobre as múltiplas maneiras pelas quais imigran-
tes e refugiados - doravante designados como migrantes, conforme propõe Agier
(2016) - se fazem presentes coetânea e simultaneamente nos mais diversos con-
textos, bem como sobre a positividade do fenômeno das migrações. Este termo,
como propõe o autor, engloba as imigrações e as situações de refúgio e solicitação
de refúgio, através da adoção de uma posição descentrada e crítica em relação
aos enunciados administrativos, midiáticos ou públicos, que são categorias sem-
pre em defasagem em relação à complexidade social. Segundo o autor a palavra
migrante é um termo descritivo, neutro e genérico, referindo-se a pessoas em
deslocamento, sem prejulgar de onde elas vêm ou para onde vão, ao passo que
refugiados é uma categoria histórica e como tal, sujeita a reelaborações conforme
o contexto, além de compreender uma definição jurídica e institucional2.

2 O estatuto do refugiado é definido por um ambiente internacional e histórico que evolui com
seu contexto. Por esta razão Agier defende uma posição nominalista, através da qual são refu-
giados aqueles designados como tais pelas instituições habilitadas a fazê-lo, a HCR, a OFPRA
(Office français pour la protection des réfugiés et apatrides) na França, CONARE no Brasil, etc.
Isso porque muitos dos que são genericamente chamados de ‘refugiados’ não tem hoje o estatuto
nem os direitos relacionados, sendo na maior parte das vezes solicitantes de refúgio ou imigrantes.
Segundo a ONU - através da Convenção de Refugiados de 28 de julho de 1951 que entrou em
vigor a 21 de abril de 1954 com a criação do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refu-
giados (ACNUR) e em seguida pelo “Protocolo de 1967”, ampliado pela Convenção que Regula
os Aspectos Específicos dos Problemas dos Refugiados na África, adotado pela Assembleia dos
Chefes de Estado e de Governo da Organização da Unidade Africana em 10 de setembro de
1969 - refugiado é “qualquer pessoa que, devido a uma agressão, ocupação externa, dominação
estrangeira ou a acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública numa parte ou na
totalidade do seu país de origem ou do país de que tem nacionalidade, seja obrigada a deixar o
seu lugar de residência habitual para procurar refúgio em outro lugar fora do seu país de origem ou
de nacionalidade” (p. 8).

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O mundo contemporâneo experimenta um momento em que constantes des-
locamentos populacionais vêm transformando continuamente relações, escalas
e paisagens sociais (Appadurai, 2004). Apesar destes deslocamentos não cons-
tituírem um fenômeno recente, estas interações apresentam-se em nova inten-
sidade, implicando transformações relacionadas a (re)construções identitárias
e des-re-territorializações constantes, mas também a precariedades, conforme
Butler (2009) e Sayad (1998). Butler faz uma crítica à violência de Estado empre-
gada por Israel contra os palestinos, subjugando uma população nativa e minori-
tária, colocando-se em defesa de “atos formais que garantam uma igualdade mais
inclusiva e que acabem com as formas contemporâneas de discriminação, violên-
cia diferencial e assédio diário ao povo palestino” (Butler, 2017, p. 42).
No Brasil não se pode afirmar que exista uma tal violência institucional contra
as populações imigrantes e refugiadas, mas a omissão e a ausência do Esta-
do também não permitem admitir que esta violência não exista, ou pelo menos
que não seja admitida e tolerada (quando não incentivada), uma vez que todos
atendimento é baseado na securitização3. As instituições responsáveis pelo aten-
dimento às populações migrantes são o Ministério da Justiça e o Ministério do
Trabalho, definindo as populações migrantes nos âmbitos da segurança nacional
ou do trabalho. Se o poder público mostra-se ausente da discussão sobre migra-
ções e não trabalha no estabelecimento de políticas públicas, como de fato tem
ficado demonstrado pela realidade catarinense, pode-se inferir que contribui para
segregar, excluir e incitar a violência. As populações imigrantes e refugiadas ficam,
desta forma, expostas a mais uma fragilidade e muitas vezes tornam-se o alvo de
hostilidades sociais agravadas em tempos de crise. No intuito de minimizar esta
tragédia social, movimentos não governamentais, organizações religiosas, militan-
tes, pesquisadores e os próprios migrantes se organizam e performam quadros de
resistência e de transformação social.
Refletir sobre o fenômeno dos múltiplos trânsitos de pessoas, mercadorias,
saberes e práticas em escala global na contemporaneidade, bem como sobre os
ruídos provocados e evocados, pode caminhar na direção de uma maior interde-
pendência política no sentido do intercâmbio de experiências proposto por Walter
Benjamin, em que se reflita sobre simetrias ao invés de perpetuar práticas de
dominação e desigualdades. Os novos fluxos migratórios inserem-se em um movi-
mento amplo e complexo, consequência das transformações sociais, econômicas,
políticas e culturais que atravessam o mundo, aceleradas pela globalização, pela
crise dos estados-nação e da modernidade, pelo aumento das desigualdades e

3 Gradualmente é possível percebermos lentas mudanças em alguns estados do Brasil, como


é o caso de São Paulo, principalmente devido à pressão da sociedade civil e das próprias popu-
lações migrantes. Em São Paulo, estado que concentra boa parte dos migrantes que chegam ao
Brasil, pelo menos inicialmente, em 2014 foram inaugurados o Centro de Referência e Acolhida
para Migrantes (CRAI), sob responsabilidade da prefeitura municipal, e a Casa de Passagem Terra
Nova e o Centro de Integração e Cidadania do Imigrante (CIC do Imigrante), administrados pelo
poder público e estadual. Mas na prática as ações de recepção e acolhida aos migrantes continua
sob responsabilidade da Igreja Católica, através da Pastoral do Migrante e da Cáritas, de outras
organizações religiosas, de grupos voluntários, de iniciativas pontuais de pessoas da sociedade
civil, pesquisadores, servidores públicos e dos próprios grupos organizados de migrantes que aqui
se encontram.

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dos conflitos locais, dos efeitos da colonização, do imperialismo, do desenvolvi-
mento do capitalismo, dos processos de racialização, bem como da circulação de
informações e bens, e portanto, não podem ser considerados isoladamente.
Sob esta perspectiva, o processo migratório coloca em relação o passado e o
presente, assim como o contexto de origem e o contexto de chegada através dos
transnacionalismos e translocalismos, dos discursos de ‘nós’ e ‘eles’, articulando
novos sentidos às experiências vividas e evocando devires, resistindo à invisibili-
dade e ao silêncio. Migrantes, voluntários ou involuntários4, insistem em se deslo-
car pelos espaços, em criar novas formas de existir, constituindo um movimento
que além de político é poético, na medida em que articula novos sentidos e sen-
sibilidades, mas também é performativo na medida em que é transformador de
contextos e relações.
Agier associa este interesse da antropologia das fronteiras, das mobilidades e
da migração à mundialização humana e a uma nova condição cosmopolita (Agier,
2016, p.9). Sua análise, baseada em pesquisas feitas ao longo quinze anos com
pessoas em deslocamento, refugiadas e migrantes em diferentes partes do mun-
do, entretanto, constata que a mundialização, ao contrário das melhores perspec-
tivas do final do século XX, tem tido por efeito a multiplicação de fronteiras, muitas
vezes endurecidas por muros, o aumento das especificidades nas regulamenta-
ções regionais ou nacionais, e a distinção de categorias jurídicas de pessoas cada
vez mais desiguais do ponto de vista dos direitos. Toda esta lógica burocrática e
securitária, calcada no ‘pânico social’ (Bauman, 2016) tem contribuído para tor-
nar a precariedade das migrações permanente e ordinária, estabelecendo per-
formances excludentes de alteridade. Com argumento que propõe pensarmos os
caminhos divergentes, Butler considera que a “universalização só tem chance de
se renovar dentro de um projeto radicalmente democrático quando essas [suas
próprias] normas são desmontadas” (Butler, 2017, p. 32).
Partimos do princípio de que as narrativas de pessoas migrantes se desdo-
bram em performances e poéticas de constantes transformações e refletem a am-
bivalência da liminaridade. Isso porque “os migrantes, os refugiados e os nômades
não se limitam a circular. Necessitam também estabelecer-se, solicitar asilo ou
nacionalidade, exigir acesso à moradia e à educação, fazer valer seus direitos
econômicos e culturais e procurar para si o estatuto de cidadãos” (Bhabha, 2013,
p. 26, tradução livre).
Frederico Lucena de Menezes (2007), que é médico e psicanalista, e utiliza
uma perspectiva “bio-lógica” para compreender as migrações, afirma que o equilí-
brio ecológico da vida não é possível sem perturbações e movimentos, pois estes
permitem a diversidade e a transformação da natureza. O autor descreve o pro-
cesso migratório da seguinte forma:

4 A migração voluntária é um fenômeno que se refere ao deslocamento por motivos econômicos,


afetivos, socioculturais ou outros. A migração involuntária está muitas vezes associada às situações
refúgio ou de solicitação de refúgio, e decorre de perseguições ou exposição a riscos concretos no
país de origem ou de residência. A migração forçada, historicamente, refere-se também ao deslo-
camento de pessoas escravizadas. Refugiado é, portanto, um migrante amparado pela Convenção
das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados (também conhecida como Convenção de
Genebra, de 1951) e pelo Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967.

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“A viagem de migração é também uma viagem do espírito humano. É
a imaginação viajando através do caos, tentando reduzir o caos à clareza
e ordem interior. Nessa viagem, a dimensão poética, criativa, não exclui
o toque da imagem de novos começos em novos lugares. O poeta vai a
novas terras através da criação, enquanto o migrante viaja poeticamente
a novos lugares para criar” (Menezes, 2007,p.131)

Esta abordagem das migrações como possibilidades poéticas e políticas de


transformação do social foi inicialmente pensada a partir de leitura de O espelho
da Tauromaquia, de Michel Leiris (2001). Narrando diversas imagens evocadas a
partir da tauromaquia, o autor menciona a importância dos ‘construtores de espe-
lhos’, aqueles que ao invés de banir ou mascarar a morte, incorporam-na à vida,
com todos os riscos envolvidos e assim, ao olharem a morte de frente, mergulham
no abismo e de lá saem, num processo de transmutação. Fruto de uma revelação,
no sentido de uma experiência crucial, a tauromaquia vista através do espelho,
esclarece aspectos obscuros da vida, aquilo que não tem uma forma única, mas
que é repleto de ambivalências e polissemias. Segundo Leiris,

(...) certos lugares, certos acontecimentos, certos objetos, certas cir-


cunstâncias muito raros suscitam, quando sobrevém que se apresentem
ou que nos envolvamos com eles, a sensação de que sua função na or-
dem geral das coisas consiste em nos pôr em contato com o que há em
cada qual de mais profundamente íntimo, de mais quotidianamente turvo
e mesmo de mais impenetravelmente oculto (Leiris, 2001, p.11).

Neste sentido a tauromaquia, bem como a arte, teria lugar na interação de con-
trastes, no paroxismo, no escancaramento de ambiguidades, dissonâncias, pas-
sagens liminares e, portanto, transformadoras. Segundo ele os construtores de
espelhos seriam os toureiros, os poetas e os amantes que nos proporcionam reve-
lações a partir de experiências cruciais, lançando luz sobre nós mesmos e visibili-
zando contradições e contrastes, como no jogo/dança/luta/relação entre o touro e
o toureiro. No limiar entre a vida e a morte, entre o sagrado e profano, na fronteira
entre o ‘reto’ e o ‘torto’ acontece um movimento de aproximação e afastamento da
morte e um (re)nascimento torna-se possível, sob a iminência e a presença dos
riscos. Sua função a partir dos “lugares em que o homem tangencia o mundo e a si
mesmo” (idem, p.75) seria incorporar a morte a vida, lembrando que o mundo vai
além do que é visível, objetivo, fixo e estável.
Nossa proposta aqui é considerar os migrantes também como construtores de
espelhos, na medida em que nos obrigam a olhar para outras realidades, assim
como para nós mesmos e refletir sobre as construções sociais que tornaram pos-
sível nossa atual configuração social com suas hegemonias e fronteiras.
A migração, portanto, constitui-se como um fenômeno social liminar, político
e poético, que articula passado e presente através de temporalidades e espa-
cialidades múltiplas. Assim os fluxos relacionados à imigração apontam para o
que Turner (2008, 2013) definiu como liminaridade, enquanto zona simbólica de
transição ou passagem, espaço de indefinição que em si já é transformativo, in-
definido, criativo mas também desconhecido e repleto de rupturas. Tal sentido de

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liminaridade me foi sugerido por diversos dos meus interlocutores migrantes, tanto
homens quanto mulheres que se referem ao fato de que é ‘natural’ mudar para
outro país para ‘conhecer outras realidades’ e talvez também para poder ajudar os
que ficaram nos países de origem ou em alguns casos trazê-los para juntarem-se
a eles no novo contexto.
‘Conhecer’ neste sentido assume o significado de uma experimentação. Trata-
-se de um processo através do qual o movimento de deslocar-se de um lugar a ou-
tro gera, além de novas possibilidades, novas percepções. A vida para imigrantes
e refugiados é escancaradamente aberta a improvisações no sentido atribuído por
Deleuze, de “juntar-se ao mundo, ou fundir-se com ele” (Deleuze & Guattari, 2004,
p.343-344) e implica em riscos. Mas estes, costumeiramente tomados em sua
negatividade, podem ser positivados, conforme Mary Douglas (1992) que compre-
ende o risco como um cálculo ou uma aposta que fundamentalmente é positivo,
mas que aos poucos foi culturalmente transformado em um perigo ou uma perda,
assumindo assim uma conotação negativa.
Desta maneira os constantes deslocamentos migratórios constituem-se em
processos liminares, na medida em que possibilitam movimentos que transformam
a realidade tanto dos contextos de origem quanto de chegada, desencadeando
performances e experiências intersticiais. Como afirma Dawsey (2006, p.136) as
“experiências de liminaridade podem suscitar efeitos de estranhamento em relação
ao cotidiano”. Este estranhamento produz uma reflexividade que consideramos
aqui em sua positividade na medida em que opera uma exposição das fissuras do
real e possibilita ou escancara a necessidade de transformação.
Não se trata de descartar ou minimizar as dificuldades pelas quais passam
imigrantes e refugiados, nem todo o racismo, preconceito e xenofobia de quem
vem sendo vítimas por parte de um precariado emergente que insiste em falar de
‘crise’, pânico social (Bauman, 2016) e de fronteiras. Trata-se de perceber estas
(dis)junções e (des)continuidades como [tentativas de] interrupções nos fluxos,
mas de buscar construir com e através delas uma certa poética que é também
política, algo que Crapanzano (2004; 2005) definiu como ‘horizontes imaginativos’
e que Turner descreveu como efeito de um “espelho mágico” (Turner 1987, p.22).
Os migrantes, tendo deixando de ser de seu país de origem, tampouco per-
tencem imediatamente a outro país. Estão numa zona liminar, num interstício ex-
periencial que provoca múltiplas reflexividades. Estar presente não corresponde a
permanecer, é antes parte de um processo, de um fluxo, de um descobrir-caminho
através do qual as experiências são transformadas continuamente. As relações fa-
miliares e de gênero são transformadas irremediavelmente com a migração, con-
forme aponta Nancy Green (Green, 2011).
O migrante, como sujeito social, torna-se um sujeito liminar, que não pertence
a nenhum lugar definitivamente mas que está transnacionalmente conectado, fa-
lando diversas línguas e em contato com diferentes culturas, afetos e países quase
simultaneamente. Trata-se de um processo que se inicia com uma ruptura com o
contexto de origem, com um caos que se espera reordenar no lugar de imigração,
mas que também é repleto de caos. Para Agier a figura do migrante contemporâ-
neo se forma em “um lugar que é múltiplo, entre diversas ancoragens, mesmo que
estas sejam precárias, entre inserções parciais e provisórias na economia do ou
dos países de acolhida ou de trânsito, sendo uma forma de presença no mundo

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que permanece mais ou menos na fronteira” (Agier, 2016, p. 27).
As novas ancoragens e reconfigurações, não apenas na economia, mas como
sujeito de direitos, precisam ser construídas, performadas, produzindo espelha-
mentos que anunciam uma inversão: através da experiência das populações mi-
grantes somos forçados a enxergar a alteridade que há em nós, pois ao nos depa-
ramos com a alteridade do outro nos encontramos com nossa própria alteridade e
desta forma um movimento de transformação social acontece.
O olhar espelhado do estrangeiro nos torna também estrangeiros em busca de
ressignificação. Do mesmo modo, a identidade hegemônica só existe na relação
com outra que lhe é alheia, pois é na alteridade que ambas se constituem, afinal “a
diferença é parte ativa da formação da identidade” (Silva, 2014, p.84) e ainda que
tomemos os processos identitários como múltiplos, assim como seus mecanismos
discursivos, simbólicos e linguísticos de produção, eles são possíveis através da
relação, bem como são impossíveis de fixar.
Conforme Dawsey afirma a observação dos dramas sociais ilumina “o lado co-
tidiano do extraordinário. Se as margens, como diz Turner, podem revitalizar a vida
social, o teatro dos ‘bóias-frias’ tende a colocar-se, poder-se-ia dizer, às margens
dessas margens” (Dawsey, 2005a, p.30), provocando um estranhamento do ex-
traordinário. Sua jornada, inscrita como liminaridade é o extraordinário, da mesma
forma que os deslocamentos migratórios. Migrar é extraordinário, é colocar-se na
margem, abrir-se para o estranhamento e para a construção de estranhamentos
múltiplos. Assim, pode-se compreender as performances poéticas e políticas e a
presença de migrantes como ações cotidianas sobre o extraordinário, que atuam
construindo continuamente relações de sobreposições e articulando cada nova
experiência e cada novo contexto, em um trabalho de montagem histórica, social,
cultural e política.
Acreditamos, tal qual John Dawsey, que “experiências que irrompem em tem-
pos e espaços liminares podem ser fundantes. Dramas sociais propiciam experi-
ências primárias” (Dawsey, 2005b, p.165). Desta forma é possível percebermos
o quanto as migrações podem revelar sobre, não apenas estar fixo, mas sobre o
modo como as sociedades modernas e contemporâneas constroem seus valores
e suas fronteiras físicas e simbólicas, sobre os resíduos históricos do colonialis-
mo, do imperialismo e do capitalismo. Segundo Turner (1987) através do efeito de
espelhamento (do espelho mágico) que constitui uma experiência liminar, a socie-
dade se vê se se reflete por múltiplos ângulos.
Ainda, de acordo com Hall pensar a migração a partir da perspectiva transcul-
tural implica em dialogicidade porque busca compreender tanto “como o coloniza-
do produz o colonizador quanto vice-versa” (Hall, 2009, p. 31). Neste processo de
mútua produção ou transformação, importa-nos perceber as ‘zonas de contato’ e
suas invenções, seleções e montagens. Esta ideia de montagem foi utilizada por
Taussig (1993) para descrever os horrores do colonialismo e do ciclo da borra-
cha na Floresta Amazônica colombiana e os processos de cura xamânicas que
tornaram possível reelaborar o passado a partir de múltiplas montagens. O autor
descreve cenas ou imagens e as desloca, criando efeitos de estranhamento, des-
fazendo a ideia de uma narrativa linear e coerente sobre o passado e tornando
evidentes as múltiplas perspectivas e suas justaposições, tanto da história quanto
de suas possibilidades narrativas.

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Taussig oferece algumas definições de montagens, dentre elas: “alterações,
brechas, deslocamentos e guinadas”, “súbita mudança de cena, que rompe com
qualquer tentativa de ordenamento narrativo e que impede o sensacionalismo”,
“situações que se alteram subitamente” (Taussig, 1993, p.413-414), assim como
oscilações para dentro e para fora, fragmentos. O autor adota uma técnica de
‘crítica e descoberta’ que “não se sujeita a uma imagem da verdade” mas a “uma
imagem da verdade enquanto experimento, revestida de particularidades” (idem,
p.415). Esta ideia de montagem enquanto possibilidade do presente que atua ar-
ticulando imagens se encaixa no modo como compreendemos a migração a partir
das narrativas múltiplas e fragmentadas dos sujeitos migrantes, acionando senti-
dos e performances, construindo uma poética em transformação contínua ao mes-
mo tempo em que espelha a fixidez, tanto dos sujeitos não migrantes quanto dos
estados-nações e suas fronteiras.
Assim, pensar sobre as transformações desencadeadas e demandadas pelas
situações de refúgio e imigração, em busca de visibilidade e direitos sociais, in-
cluindo o direito de migrar tal qual proposto pela Declaração Universal dos Direitos
Humanos, aponta para uma possibilidade de transformação da ordem hegemônica
e estabelecida. Isto porque o atravessamento das múltiplas fronteiras por popu-
lações migrantes aponta para uma forma de poética e política de resistência e
desobediência civil, no sentido da não aceitação da ordem e da ética estabelecida
(Butler, 2017).
Portanto, refletir sobre os trânsitos de pessoas que se deslocam e cruzam
fronteiras nos possibilita refletir sobre o deslocamento na sua liminaridade, na sua
imanência e ao mesmo tempo, compreender os lugares como não-lugares, na me-
dida em que são também espaços de deslocamento e de trânsito que nem sempre
acionam pertencimentos e engajamentos mais sólidos. Este movimento requer no-
vos arranjos que são experimentados através de sucessivas e múltiplas fronteiras,
alternando estabilidade e desestabilidade, e através dos sucessivos e múltiplos
deslocamentos (e montagens), constituindo novas configurações políticas, sociais
e poéticas, uma vez que, como afirma Geertz, “o sentimento de ser estrangeiro
não começa à beira d´água mas à flor da pele” (Geertz, 1999, p. 22).
Por fim, a poética dos processos de migração remete a Sansot (1986) no senti-
do de evitar significações unívocas sobre os sujeitos nestes fluxos e os processos
relacionados, focando nas múltiplas possibilidades que as imagens e os significa-
dos que seus deslocamentos e presenças criam, transformam e evocam. Assim os
deslocamentos humanos, para além dos trânsitos de pessoas, práticas e saberes,
nos fazem refletir sobre a fixidez, as fronteiras, a permeabilidade, e a transforma-
ção dentro um fluxo constante de movimento.
Este movimento de abertura que as migrações produzem gera novos movimen-
tos, transformando contextos e identidades. Como nos lembra Serge Gruzinski, “a
identidade define-se sempre, pois, a partir de relações e interações múltiplas. Foi
o contexto da conquista e da colonização da América que incitou os invasores eu-
ropeus a identificarem seus adversários como índios e, assim, englobá-los nessa
apelação unificadora e redutora” (2001, p.53). Da mesma maneira os migrantes,
individual e coletivamente, estão inscritos em múltiplas categorias identitárias, ar-
ticulando-as em diversas montagens, juntamente com as situações experimenta-
das, performadas e narradas e encontram-se em constante movimento, provocan-

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do sucessivas transformações.
Partimos, portanto, de uma perspectiva que busca um olhar atento ao movi-
mento contínuo e transformador da vida através da agência dos sujeitos migrantes
e à positividade poética e política desta liminaridade enquanto abertura para o
mundo, devir de possibilidades do sensível. Da mesma forma, trata-se de aceitar
novos reflexos da realidade e do presente e suas possibilidades de espelhamen-
tos, reflexos que por si só, são transformadores.
As migrações, segundo esperamos ter demonstrado, atuam como construtoras
de espelhos que refletem e transformam o real, informando que migrantes e não-
-migrantes estão irremediavelmente inseridos em um processo dialógico de limi-
naridade e transformação. Neste processo articula-se uma poética e uma política
da migração, através da compatibilização e fricção entre as múltiplas dimensões
da vida social, percebidas e atravessadas em suas pontes e fronteiras reais ou
metafóricas. Entre os diversos desafios que se colocam sublinhamos a compreen-
são destes novos fluxos migratórios em sua positividade, através de seu potencial
transformador, a partir de uma responsabilidade ética e contra-hegemônica.
Afinal, “estamos vinculados uns aos outros antes de um contrato e antes de
qualquer ato volitivo” e “não existe uma parte sequer da população que possa
reivindicar a Terra para si. Fazer isso é entrar numa política de genocídio” (Butler,
2017, p. 32). Compreender e dialogar com a pluralidade, a diversidade e a hetero-
geneidade pode colaborar para a construção de novas bases relacionais, e neste
aspecto as migrações recentes têm muito a ensinar sobre relações mais éticas e
igualitárias através de seus múltiplos deslocamentos bem como dos múltiplos des-
locamentos e socialidades que desencadeiam.

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____________________
Recebido: 19 maio, 2017.
Aceito: 22 jun., 2017.

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A leste do Éden: migrações
por amenidade num balneário
da costa atlântica uruguaia
East of Eden: amenity migrations in a seaside
resort on the Uruguayan Atlantic coast

Daniel Cajarville1

Resumo
Este trabalho procura refletir sobre o fenômeno das migrações por amenidade, a
partir das manifestações que desta modalidade não-convencional de migração se
desdobram para o caso do balneário uruguaio La Paloma e sua área de influência.
O artigo discute algumas entre as aspirações assinaladas por parte de diferentes
migrantes que chegaram à referida área nos últimos anos, assim como aprofunda
sobre diversos aspectos da vida cotidiana no balneário em relação à sua adapta-
ção a essa região da costa leste uruguaia.

Palavras chave: migrações, turismo, estilo de vida.

Abstract
This paper reflects on the phenomenon of amenity migrations, through the ex-
pressions this unconventional modality of migration shows for the case of the Uru-
guayan seaside resort La Paloma and its area of influence. The article discusses
some of the aspirations pointed out by different migrants who arrived in this area
during the last years, as well as it deals with different aspects of everyday life rela-
ted to the adaptation to this region of the Uruguayan east coast.

Keywords: Migrations, tourism, lifestyle.

Introdução

As migrações por amenidade representam uma dinâmica de escala global,


que pode ser definida como “a mobilidade de pessoas a lugares, de maneira per-
manente ou parcial, principalmente por causa de uma real ou aparente alta per-

1 Bacharel em Sociologia pela Universidade de La República (Uruguai), mestrando em Antropo-


logia pela Universidade Federal Fluminense. Docente e pesquisador associado ao Departamento
de Ciencias Sociales y Humanas, do Centro Universitario Regional Este, da Universidad de la Re-
pública. Contato: daniel.cajarville@gmail.com

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cepção de qualidade ambiental e diferenciação cultural do destino”2 (GLORIOSO
& MOSS, 2007, p. 138). Este tipo de migração pode também ser entendido como
contraurbanização, de acordo a Stewart (2002), ao constituir uma tendência con-
trária aos fluxos campo - cidade. A referida estratégia de mobilidade envolve objeti-
vos e justificativas específicas, as quais geralmente tem a ver com projetos de vida
associados às camadas médias e altas desde aspirações estreitamente ligadas a
elas sobre as quais este artigo aprofunda para o caso de La Paloma.
A morte das distâncias (BAUMAN, apud SHELLER & URRY, 2004: 4), a partir
de uma velocidade a cada vez mais vertiginosa para os fluxos informacionais e
de pessoas em perspectiva global, junto à concomitantes valorações contemporâ-
neas revigorantes de representações favoráveis à vida fora das grandes cidades
(pelo menos entre alguns dos habitantes destes últimos cenários), possibilitam à
referida migração inversa àquela desde o campo à cidade. Ao pensar as migra-
ções por amenidade, usualmente encontramos pessoas que após serem turistas
em um lugar optam por ser residentes permanentes nele, passando muitas vezes
a se envolver na indústria turística como prestadores de serviços. Entre outros fa-
tores a prática do turismo, desde o seu vertiginoso ascenso nas últimas décadas,
tem envolvido como correlato dinâmicas de mobilidade, tais como este tipo de mi-
grações (MOSS, 2006), a qual pode ser entendida como uma sombra do turismo
(GONZALEZ et al., 2009). Ambos fenômenos envolvem percepções ambientais
assim como profundos laços com o território escolhido, os quais envolvem horizon-
tes imaginativos nos que convergem a busca de uma maior proximidade de uma
natureza e paisagens como aqueles encontrados em lugares tais como balneário
aqui abordado, seguindo práticas denominadas por Carvalho & Steil (2008) de
cultivo do ambiente que acompanham certo cultivo de si.
Ao considerar-se La Paloma como lugar a habitar, entram em jogo significa-
ções sobre a pequena cidade contrastantes do modo de vida da grande cidade.
Acham-se representações sobre o campo e a pequena cidade que remetem à
cativantes noções de comunidade, pessoalidade e intimidade associadas a tais
lugares (BAUMAN, 2006; TÓNNIES, 1947; WILLIAMS, 1989). Ao mesmo tempo,
a restrição de oportunidades e ausência de anonimato representam alguns entre
vários atributos negativos desse tipo de cenário (ibid.), não obstante prevalecendo
para os migrantes por amenidade um marcado acento nas anteriores significações
sobre o lugar. De acordo a Williams (1989, p. 70), encontra-se entre os moradores
da cidade idealizações sobre um “encantador refúgio na costa”, o qual não repre-
senta um sonho rural e sim urbano.
Os deslocamentos associados às migrações por amenidade envolvem distân-
cias que atravessam continentes, para vários entre seus exemplos, e atrelam-se
geralmente a entornos catalogados como destinos turísticos tal como se assinalou.
Estes residentes passam a habitar esse espaço físico e possivelmente continuem
habitando outros, embora de maneira esporádica (realizando viagens ocasionais,
de maior ou menor duração), ou virtual (desenvolvendo atividades laborais ou de
sociabilidade além das fronteiras físicas às quais se circunscrevem). Essas carac-
terísticas, associadas a este tipo de migrações, resultam possíveis no entanto este

2 “The movement of people to places, permanently or part-time, principally because of the actual
or perceived higher environmental quality and cultural differentiation of the destination”.

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tipo de escolha resulta possível com maior frequência entre pessoas que tendem
a deter níveis de qualificação e/ou poder aquisitivo médio e alto (Stewart, 2002).
A morfologia local se vê transformada pelos novos moradores, cujos valores e
atitudes próprios de camadas médias e altas urbanas irão repercutir de maneira
notória nela.
Este artigo busca refletir sobre as migrações por amenidade no balneário La
Paloma, considerando as convergências a respeito do que os migrantes encon-
tram nela, assim como o que buscam encontrar. Por que escolher Uruguai? E
nele, por que escolher La Paloma? À continuação, apresento reflexões surgidas
a partir do trabalho de campo realizado no balneário, onde permaneci um total de
três meses durante dois períodos: o primeiro deles, entre julho e agosto de 2016;
e o segundo, entre fevereiro e abril de 2017. O trabalho etnográfico levado a cabo,
envolveu 42 entrevistas a migrantes que chegaram a La Paloma desde outras
regiões do Uruguai e principalmente do estrangeiro (acompanhando as origens
mais frequentes: Argentina, Alemanha, França, Espanha e Estados Unidos), além
de participar de diversas atividades da comunidade local, conviver de maneira
cotidiana com diferentes migrantes compartilhando vários encontros e mantendo
diálogos informais com dezenas deles. Esse processo de imersão em La Paloma
surge no marco da minha dissertação para o Programa de Pós-Graduação em
Antropologia, da Universidade Federal Fluminense.

Uruguai: Um Éden, antes esquecido

“O Globo Repórter nos leva hoje ao país do bem-viver, o menos corrupto,


o menos violento e mais alfabetizado da América Latina. Nas cidades
uma vida sem pressa, nenhum engarrafamento e internet de graça em
qualquer lugar. Nas escolas públicas, um computador para cada aluno.
Na mesa a melhor comida do mundo, carne de fama internacional, pes-
cados fresquíssimos, iogurtes, doce de leite, pães, vinhos deliciosos, e
até azeites, tudo produzido na própria terra. No campo, paisagens des-
lumbrantes, e um litoral pra lá de charmoso. Se você está achando isso
muito distante, saiba que estamos falando de um povo vizinho” (GLOBO
REPÓRTER, 2013).

Jorge Drexler faz alguns anos declarou “Vengo de un prado vacío/ un país con
el nombre de un río un edén olvidado /un campo al costado del mar”, ao escrever
a letra de Un país con el nombre de un río (DREXLER,1999). O cantor, ao compor
essa música, dificilmente imaginaria que anos depois seria o músico uruguaio em
atividade de maior renome fora e dentro das fronteiras. Ao mesmo tempo, os que
ouviram sua interpretação dessa canção anos atrás também não imaginaram que
esse país con el nombre de un río deixaria de ser um Éden tão esquecido, chegan-
do instigar a inusual atenção que hoje gera dentro e fora das fronteiras. Nos últi-
mos anos, o país adquiriu uma notoriedade global jamais vista a partir de diferen-
tes transformações sociais, concretizadas desde uma agenda política que atribuiu
ao país um caráter vanguardista e progressista de destaque na América Latina e

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no mundo3. Entre outros fatores, tais como carisma singular do ex-presidente José
Mujica. Tanto ele, como os aspectos anteriores, para alguns emergem como uma
mostra de um estilo de vida uruguaio que chama a atenção favoravelmente.
Em entrevista com a imprensa o subsecretário do Ministério de Turismo, Ben-
jamín Liberoff, responde sobre quais diferenciais distinguem o Uruguai:

“Si no tengo las cataratas, no tengo picos nevados, el Amazonas, algo


tengo que tener, y lo que Uruguay tiene es una cosa que no tiene precio:
calidad de vida. Su diferencial principal está en que tiene las condiciones
para disfrutar de su recreación con determinada facilidad y trato con la
población y en el entorno. Lo que tiene es ese tema, que defino como
calidad de vida.” (EL OBSERVADOR, 2016)

Nesse sentido, múltiplos sites do ramo turístico listam 10 razões para viver
en Uruguay, apelando a caracterizações locais de uso frequente. Apresentarei as
cinco primeiras de um desses listados (URUGUAY PROPERTIES, 2017), conside-
rando a sua relevância assim como caráter ilustrativo delas:

-Usted y su familia podrán vivir tranquilos en uno de los países más se-
guros del mundo. Redescubra el placer de caminar tranquilo por la calle y
de ver a sus hijos jugando despreocupadamente en los parques ubicados
en cada rincón del país.
-En Uruguay el aire es limpio, el agua es cristalina y los espacios verdes
abundan. La calidad de vida está asegurada en un país donde la natura-
leza y el respeto por el medioambiente reinan.
-El pueblo uruguayo es amable, abierto y educado; en su enorme mayoría
descendiente de inmigrantes europeos.
-En Uruguay Usted puede pasar de la ciudad al campo o a la playa en
menos de 30 minutos. Todo queda cerca; todo es más sencillo.
-El clima es templado y ni Usted ni su familia estarán expuestos a gran-
des inclemencias. No hay tormentas de nieve, arena, u olas de calor que
afecten la salud de la población.

O país, nos últimos anos, tem passado a transformar alguns dos efeitos distin-
tivos do seu olvido ou esquecimento, em elementos chave para a sua atual re-lem-
brança ou visibilidade.
Os migrantes europeus e norteamericanos com os quais dialoguei e interagi-
mos, assinalam que Uruguai se aproxima, mais do que outros países latino ameri-
canos, às suas expectativas; eles não procuravam aqui o exótico senão o familiar.
O Uruguai oferece garantias em termos de acesso à saúde e educação que são
caros a eles, de acordo com suas exigências, e também o Uruguai oferece um

3 Algumas manifestações do referido posicionamento do pais ecoam em fatos tais como que The
Economist considerou a Uruguai o pais do ano, em 2013; assim como The New York Times tem se
referido ao pais como Uruguay’s Quiet Democratic Miracle; e artigos tais como o realizada por Buz-
zFedd em 2013 #, 21 Reasons Why You Need To Move To Uruguay In 2014, tiveram um chamativo
alcance em redes sociais. Contudo, além desses médios e suas específicas esferas de influências,
a imagem que eles promovem atinge públicos e formadores de opinião de diverso tipo.

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clima que lhes resulta conhecido (até menos adverso, falam aqueles que viveram
em áreas nevadas; e menos contrastante, respeito de opções tropicais). Em geral,
insistem aqueles associados a este perfil migratório, que no país as diferenças em
relação à Europa, embora existam, lhes resultam leves. Aliás, aqui a terra é barata!
A opção de viver perto do mar resulta possível, em áreas ainda salvajes - pouco
antropizadas, segundo a sua perspectiva e denominação-, seguindo o que muitos
deles veem e manifestam utilizando esse termo em itálico.
Aos argentinos, por outro lado, incisivamente presentes em La Paloma, segun-
do as opiniões registradas o que os atrai de Uruguai é geralmente o contraste que
este país tem para eles, embora desde sua familiaridade e proximidade em termos
de imaginários e práticas. Quero dizer, o Uruguai se parece muito com a Argenti-
na, mas ao mesmo tempo se diferencia nitidamente. E, ao mesmo tempo, está tão
próximo que não envolve um distanciamento radical com o seu país de origem. A
natureza uruguaia e palomense, com praias definidas como superiores às melho-
res da Argentina, e um ethos local definido como discreto, aprazível, reservado,
humilde e generoso. “Pequeño pero especial, sin pretensiones.”4 Especialmente
para aqueles cansados de Buenos Aires, ciudad de la furia, La Paloma cobra um
valor de destaque. Em contraste, efetivamente parece um lugar de utopia para
muitos entre eles.
“El nivel de seguridad, la alta tasa de alfabetización, altos niveles de salubridad
y un territorio con un 98% e redes de agua potable, son algunos de los indicadores
que confirman que la calidad de vida es uno de los patrimonios más importantes
del país.” (MRREE, 2017). Aliás, Varese (2001, p.230) em Rocha: tierra de aventu-
ras, conclui a publicação sobre o departamento onde se encontra La Paloma assi-
nalando entre várias outras questões, que “gracias a nuestra cultura los uruguayos
tenemos mucho para ofrecer”. Embora isso pode se ouvir desde tantos outros
lugares, e inclusive a frase resulte quase obligada para encerrar uma publicação
dessas características, em Uruguai essa percepção ecoa. De alguma maneira um
certo ethos que identifica o país, embora sempre em constante redefinição, con-
voca a alguns afins a suas particularidades reais e aparentes a estabelecerem-se
entre suas margens.

La Paloma: À beira do Edén

La Paloma é uma pequena cidade da costa leste uruguaia com 3.495 habi-
tantes (INE, 2012), embora junto com outros balneários adjacentes e zonas rurais
contíguas, conforma uma área maior povoada por 5.516 (ibid.) corriqueiramen-
te denominada La Paloma Grande. A faixa costeira que compreende La Paloma
Grande abrange os balneários La Paloma, La Aguada, Costa Azul, Arachania,
San Sebastián de La Pedrera, La Pedrera, Punta Rubia, Santa Isabel y San An-
tonio. Esta conurbação, embora levemente povoada e composta principalmente
por casas de verão, constitui o principal polo urbano da costa do departamento

4 A introdução feita por Alan Estrada (2016) sobre Uruguai para os episódios filmados no pais
para o seu canal Alanxelmundo, refletem a construção do ethos pais que desde fora-dentro é cor-
riqueiramente definido.

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de Rocha. Tanto este, como o departamento de Maldonado, são os únicos dos 19
departamentos uruguaios situados sobre o Oceano Atlântico. Especialmente em
busca desse mar entre vários outros propósitos, durante a temporada turística alta
que se desenvolve entre os meses de janeiro e fevereiro, a quantidade de pessoas
neste território chega a multiplicar-se até cinco vezes em comparação aos habi-
tantes permanentes que constam no censo mencionado anteriormente. A cidade
reúne dois aspectos distintivos: a pesca, como cidade portuária; e o turismo, como
cidade balneária.
A valorização das terras imediatas às costas, de acordo com Corbin (1993),
irrompe na Europa na metade do século XIX como uma novidade capaz de trans-
formar um espaço considerado até esse momento como enigmático e perigoso.
Esse lugar do vazio, segundo o autor, incorporou novos significados e começou
a produzir novas sensações e sensibilidades. O turismo surge como uma criação
própria daquele contexto, e em busca daqueles entornos dirigem-se os turistas.
Eis então que começam a constituir-se espaços urbanos estabelecidos ao redor de
cenários paisagísticos naturais (ou naturais-culturais), pensados para ser habita-
dos por aqueles visitantes que chegavam a eles maiormente por períodos exíguos
(MARÍN, 2009). A nova moda rapidamente foi emulada pela burguesia de outras
regiões do mundo, como a sulamericana, de maneira tal que a partir de finais do
século XIX desérticas e improdutivas parcelas areosas de terra progressivamente
se transformaram em cidades balneárias (ibid.).
Após a chegada de incipientes turistas a partir de 1880 (VARESE, 2001), entre
as décadas de 1900 e 1950 começaria a se pensar a urbanização de La Paloma
seguindo uma estética balneária, atrelando isso a ambiciosos planos a longo-ter-
mo junto a outros que o curto-prazo trouxe alterando os anteriores. A área que
abrange Paloma Grande foi florestada com o objetivo de controlar a virulência do
vento e da areia que com ele era transportada, além de se pensar o traçado de
ruas e espaços públicos. “El balneario se puede leer en algunos casos como lugar
de ensayo de expresiones tempranas de la modernidad”, assinala Leicht (2012, p.
309), e de fato La Paloma contou com o urbanista Carlos Gomez Gavazzo como
um dos principais planejadores urbanos. Este discípulo de Le Corbusier que apos-
tou por pensar uma cidade onde espaços comuns e transitáveis prevaleceram
(SÁNCHEZ, 2012), embora tenham se concretizado somente algumas entre as
suas propostas as mesmas têm resultado significativas para a cidade.
La Paloma foi se tornando um local de referência durante os verões da costa
leste uruguaia, sendo o principal balneário do departamento de Rocha consideran-
do tanto o número de residentes como de turistas que a cada ano chegam a ele.
O olhar do turista (URRY, 2004), colocou-se sobre La Paloma especialmente por
parte do público uruguaio, originalmente rochense em sua maioria, seguidamente
adquirindo uma ênfase montevideana, e a cada vez mais diversificando-se embo-
ra sempre existiram turistas e marinheiros que chegavam a essas costas prove-
nientes de origens remotas. O verão oferece barulho e ritmo, mas a tranquilidade
prevalece na maior parte do ano. E isso é parte do que os migrantes manifestam
ir encontrar, sem necessariamente diminuir atenção aos meses de verão, e muitas
vezes possibilitando a sua subsistência através deles.

“El balneario es una forma de urbanización específica, diferente a una

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ciudad corriente. Sus trazados y ramblas, el aporte del verde y el árbol,
sus equipamientos, sus imaginarios asociados, conforman un paisaje cul-
tural urbano bi-polar cambiante según la estacionalidad. El invierno bucó-
lico, el bullicio del verano.” (LEICHT, 2012, p. 307)

Migrantes de diversas origens têm marcado a história do lugar, desde aqueles


primeiros que construíram o farol, e outros que chegaram atraídos basicamente
pelo porto, ou o turismo (SÁNCHEZ, 2012). Contudo, a heterogeneidade de seus
habitantes tem se incrementado ostensivamente nos últimos anos. Seguindo os
dados do último censo nacional realizado em 2011 (OPP, 2017), somente 32,3%
dos 5.516 moradores do Município de La Paloma afirmam ser originários do lugar;
no entanto, 32,6% destes procedem do departamento uruguaio de Rocha, ao qual
pertence a referida área. Um total de 31,1% procede de outros departamentos, e
4% de fora do país. Todavia, observam-se e inferem-se mudanças ligeiramente
nestes últimos seis anos, especialmente no que refere à chegada de estrangeiros.
A taxa de migração total para o total de habitante do país correspondia a 2,08%,
em 2011, sendo este dado uma média do pas; o qual era dobrado em número para
o caso do Município de La Paloma. Embora Uruguai tenha tido um saldo migratório
negativo desde mediados da década de 1960 até o ano 2008, o país tem revertido
essa tendência de maneira progressiva e cada vez mais acelerada (KOOLHAAS &
NATHAM, 2013; PELLEGRINO, 2014). A maior parte dos migrantes com os quais
interagi em La Paloma chegaram após 2011 ao lugar, ano em que o último censo
nacional foi realizado.
La Paloma, embora tenha atraído veraneantes durante várias décadas, o fez
com uma incidência que poderia ser considerada modesta em relação a outros
balneários do país, e isto possibilitou que a cidade se expandisse a um ritmo lento
e de maneira paulatina. O que lhe concede um certo diferencial ao balneário, res-
peito de outros maiores.

“El desarrollo económico regional hizo que los fraccionamientos en las


playas de Rocha no alcanzaran su consolidación absoluta, lo que actu-
almente permite a la administración y a particulares, ofrecer un turismo
“natural”, característica que lo diferencia de modalidades y sitios más an-
tropizados de balnearios cercanos (el modelo Punta del Este)” (GADINO
et al., 2012, p. 33).

Uma justificativa bastante estendida sobre esse atrativo em ascensão das


margens costeiras, envolve uma real e (?) aparente baixa antropização da área.
Em contraste com outros entornos costeiros do Uruguai, este seria mais virgen e
selvagem de acordo a categorias nativas a modo de diferencial local. Pensando
nas trajetórias de vários dos migrantes que chegaram até lá, resulta também deci-
siva a existência da infraestrutura básica com a qual conta a cidade de La Paloma.
O acesso a serviços básicos tais como postos de saúde, centros de ensino pri-
mário e secundário, banco, e lojas comerciais são colocadas como determinantes
para muitos migrantes que escolhem os balneários que conformam a faixa costeira
de La Paloma Grande. A cada momento vital, um outro serviço pode resultar in-
dispensável; desde a existência de centros de ensino para aqueles com filhos em

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idade escolar, à presença de postos de saúde para aqueles mais velhos. Também,
a proximidade com a capital departamental emerge como significativa à decisão
migratória de morar ali, assim como uma proximidade relativa com Montevidéu.
Entre esses aspectos, La Paloma concilia múltiplos elementos desejados pelos
migrantes por amenidade.

O anseio do paraíso, e algumas


interpretações sobre sua formação

No romance La Uruguaya, Mairal (2016) retrata a passagem do protagonista


pelas costas de Rocha e sua imersão em “un mundo sin compromisos, sin tener
que volver a la responsabilidad de ningún tipo, sin familia, sin trabajo, sin horarios,
ni ciudad, ni autos, ni peligros de accidentes, arena blanda por todos lados, calor,
puro hedonismo playero” (ibid., p.25). E embora contrabalançando os paroxismos
que possa utilizar o narrador, a prática do turismo atrela hedonismo (CAMPBELL,
2001), tanto desde os devaneios prévios à viagem que compõem a experiência tu-
rística (KRIPPENDORF, 2003), assim como a relembrança desta. A significação e
teor desse desfrute, que sobre os cenários turísticos se projetam e são projetados,
contribuem a que sem grandes dificuldade aflore o sonho de tornar esse momento
de excepção um entorno cotidiano.
O devaneio é definido por Campbell (2001) da seguinte maneira, “essa forma
de atividade mental em que imagens futuras positivamente vívidas são trazidas
à mente (em primeiro lugar, quer deliberadamente, quer não) e ora são julgadas
agradáveis, ora são elaboradas de um modo que assim as faça” (ibid., p.120).
Diferencia-se da antecipação, entendida como a imaginação de algo previsível
ou esperado; e da fantasia, a construção de imagens mentais de impossível con-
cretização material. O devaneio recorre ao conhecido, ou aquilo por conhecer, e
que poderemos encontrar no futuro. Este consiste em um processo imaginativo
definível como a combinação entre os prazeres da fantasia e a antecipação da
realidade, apontando a sonhos potencialmente materializáveis. Em uma primeira
instância, difícil resulta não mudar-se de encontrar um lugar onde em determina-
do momento nos sentimos melhor do que em nenhum outro, quando ao mesmo
tempo observamos um lugar até então cotidiano onde nos achamos visivelmente
desconformes.
Mas, tão simples assim é que surge o anseio de viver no país de las cercaní-
as segundo o denominou Real de Azúa (1964), e dentre seu território em algum
pequeno balneário da sua costa leste? A chave para compreender a concreção
desse potencial anseio, envolve a noção de campo de possibilidades (SCHUTZ,
1970; VELHO, 2004). Ao avaliar a opção de uma mudança do tipo, devem ser ava-
liados os ganhos e perdas atreladas a isso; devem se mensurar as condições de
possibilidade que acompanham a disposição de mudança. O que La Paloma tem
a oferecer para quem decide morar o ano todo nela? O que posso oferecer lá, ou
a partir de quais recursos poderiam me inserir nesse espaço vital? Eis então que
contar com uma formação profissional que possibilite trabalhar desde lá (embora
seja de maneira virtual), ou simplesmente a disponibilidade de emprego na área

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para o perfil do solicitante, a existência de recursos que tornem possível investir
(principalmente na área de turismo, ou afins), ou de ingressos assegurados (a par-
tir de uma aposentadoria, rendas, ou outros), ou simplesmente a disponibilidade
de emprego na área, entre outros.
Mas por que procurar um paraíso? Por que esse desejo e por que ir atrás
dele? Podemos inclinar-nos a responder que, pelo menos entre as camadas mé-
dias e altas envolvidas com a dinâmica migratória que venho trabalhando, “há um
investimento a ser feito nas coisas deste mundo e há um comprometimento íntimo
de cada sujeito nessa tarefa”, segundo propõe Dias Duarte (2010, p. 245). Em tal
direção, a mundanização da experiência resulta em uma incisiva chave interpreta-
tiva da modernidade ocidental, desde um “sistema de significado específico, a que
se pode chamar, tentativamente de cultura ocidental moderna” (DIAS DUARTE,
1999, p.22). O autor nos propõe pensar em um dispositivo de sensibilidade para
nos aproximarmos às características deste período onde a imanência da experiên-
cia carnal - do corpo, da mente e quiçá do espírito - resultam centrais. As noções
de perfectibilidade, experiência e fisicalismo, demarcam a este.
A noção de perfectibilidade erige-se sobre a “idéia de que nós somos seres
providos de uma capacidade de perfectibilidade constante e indefinida que nos
distingue dos demais entes existentes sobre a face da Terra” (ibid., p. 24), basea-
da em um aparente aperfeiçoamento indefinido. Por outra parte, o autor descreve
a persistência de um lugar de preeminência concedido à experiência, através de
recorrer a “um mecanismo de “verdade” (a razão), que se encontra impresso em
seu “interior” e que sustenta (ou deveria sustentar) sua “vontade”, sua responsabi-
lidade ativa em relação a divindade, a si mesmo e a outrem” (ibid). Eis então que
a relação com o mundo, através da experiência, possibilita a busca pela perfeição
ao ser esta mediada pela razão. Os sentidos passam a ser constituídos com um
elemento chave em esse processo, tanto pelo seu caráter de veículos da razão,
assim como também de estímulos à imaginação e à emoção. Por último, o fisicalis-
mo emerge num período “decorrente da separação radical entre o corpo e o espíri-
to (...) se passa a poder considerar a corporalidade humana como dotada de uma
lógica própria” (ibid.). A corporalidade em si se torna detentora de uma capacidade
auto-explicativa, e através de uma reflexividade aplicada à experiência uma certa
inclinação a aperfeiçoar o momento de estar-no-mundo conta com o sustento para
vir à tona.
O surgimento do romantismo, entendido como uma resposta à modernidade,
tem resultado central ao desenvolvimento dos valores por trás desse dispositivo
de sensibilidade. Ao dizer de Campbell (2001), esse movimento abriu as portas
para a valorização do prazer como meio de satisfação, dissociável do apelo pree-
minentemente produtivista a partir do qual tendia-se a interpretar as ações a serem
realizadas em vida. A escolha de morar em La Paloma dialoga com uma busca
por novas formas de estar hoje no mundo, sobre a qual o dispositivo assinalado
considero joga luz.

Un encuentro de seres diferentes

Ao pensar às migrações a outra faixa costeira embora por grupos também

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de camadas médias principalmente, Velho observou uma (1989, p.8) “sensação
de triunfo com a chegada a Copacabana”. Para o caso do balneário uruguaio em
questão, poderia ser descrita segundo o que os migrantes persistentemente indi-
cam, a percepção de uma sensação de sossego ao chegar a La Paloma. É claro,
isso também envolve um certo triunfo, no entanto resulta valioso para o migrante,
embora desde uma outra perspectiva. Contudo, o que a seguir nos interessa é
refletir sobre as formas e nuances no momento de compreender esse sossego. E,
a partir dali, aprofundar sobre os dilemas em volta à chegada de novos moradores
com valores e atitudes próprios a um outro desde moradores com valores a atitu-
des em alguns sentidos diferentes.
No balneário nadie se apura, nadie lo desmiente, segundo canta Julio Victor
em Un lugar de medio locos. O consagrado cantor local, apresenta uma dimen-
são central à vida em La Paloma, esse balneário onde se experimenta um mágico
encuentro de seres diferentes segundo ele também interpreta. “Si andás apurado
en el supermercado, te miran raro”, comenta A., um entre tantos migrantes sobre
suas primeiras impressões após chegar a viver nessas costas desde Buenos Ai-
res. Os novos na cidade, usualmente encontram constrangedor a radicalidade en-
tre a temporalidade com que chegam e uma outra que encontram. La Paloma é um
lugar onde nadie se apura, nadie lo desmiente (Julio Victor), seguindo a mesma
canção, e de fato não chama atenção que ter pressa - pelo menos fora do verão,
pois no verão La Paloma es de los turistas também canta Julio Victor, possa gerar
olhares e opiniões de julgamento. “Si andás apurado en el supermercado, te miran
raro”, comenta A.
Os novos na cidade, usualmente encontram constrangedor a radicalidade en-
tre a temporalidade com que chegam e uma outra que encontram. Contudo, a ne-
gociação que cada um faz a respeito do ritmo cotidiano que encontram na cidade
e aquele que trazem, conduz a vários caminhos: desde a resignação. a frustração,
ou até algo que é chamado - por alguns - como palomenización. Eles, os novos,
também passam a perder a pressa em diferentes gradações; às vezes, de maneira
bastante perceptível se comparado com seu ponto de partida. Isto, apesar de pa-
recer caricaturesco, é apresentado como um aspecto central em cada entrevista;
envolve um emergente que constantemente sobressai, e respeito ao qual se inter-
pelam os moradores de La Paloma e área de influência. Em tal sentido, podemos
encontrar isto como uma manifestação de certo efeito espelho (GONZALEZ et al,
2009), segundo o qual o migrante passa a exigir diferentes necessidades às quais
estava acostumado nos meios urbanos dos quais procede. A qualidade e veloci-
dade em relação aos serviços solicitados, são parte disso. Mas, o “mañana voy”
talvez represente uma tática que coloca o poder local, do lado dos que estavam
embora não sejam os que mais credenciais ou recursos tenham, aqui; deles de-
pendem os que chegam, por enquanto.

O Éden e suas maçãs: uma conclusão provisória

A convergência entre uma conjuntural visibilidade do país, as condições de


vida na costa leste cujo atrativo até fazia pouco tempo se reduzia aos meses de
verão, assim como a redução das distâncias globais, regionais e nacionais con-

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tribuem como transformações notórias na composição de cenários como o deste
balneário da costa uruguaia. Ao mesmo tempo, essas transformações alinham-se
a busca por desenvolver projetos de vida atrelados a elementos caros aos estilos
de vida almejados por camadas médias e altas.
La Paloma é um lugar de encontros de pessoas de origens diversos, é um lu-
gar de heterogeneidade, é um território de contrastividades embora a sua escala
resulte reduzida e evoca uma aparente ausência de conflitos perante a iminência
de uma percepção de tranquilidade para esse cenário. Contudo, os valores e as
atitudes aos que se deparam os migrantes em relação àqueles que encontram em
La Paloma (outros migrantes, e não migrantes), envolve negociações constantes
que diferenciam a vida no balneário das férias neles.
“Uno elige a La Paloma, pero La Paloma te tiene que elegir también”, assinala
um migrante reproduzindo uma ideia que vários outros também manifestam. O
lugar, segundo ele, não é o que as pessoas querem que seja embora possam
modificar ele em um sentido ou outro. La Paloma tem uma personalidade própria,
a qual o migrante deve ter em conta, e seu conhecimento de si indicará se o en-
contro entre um e outro resulta compatível. La Paloma muda com os migrantes,
embora também muda aos migrantes e o que trazem consigo. Esse desafio, hoje
está sendo transitado por muitos na costa leste uruguaia.

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Recebido: 20 maio, 2017.
Aceito: 02 jul., 2017.

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Os Fasci1 no Brasil
Angelo Trento

Tradução, revisão e notas


Paolo Targioni e Marinei Almeida

Delinear a história dos Fasces italianos no Brasil representa uma tarefa ainda
a ser completada. Tal lacuna pode ser só parcialmente imputada à escassez de
documentação primária sobre o assunto. Pelo contrário, ela deriva, em boa medi-
da, da tendência que se firmou nas quatro décadas sucessivas à segunda guerra
mundial, de minimizar quanto possível ou de silenciar a adesão dos italianos de
além-mar ao regime de Mussolini.2 Só nos últimos vinte-trinta anos algumas pes-
quisas, por meio de um paciente e meticuloso trabalho de busca em arquivos,
em publicações e na imprensa periódica da época, ofereceram finalmente para a
temática a justa problematização. Na realidade, o consenso concedido pelo imi-
grante ao fascismo, inicialmente fraco e restrito às classes altas e médias, foi-se
ampliando a partir do final da década de 1920, para alcançar seu ápice na segunda
metade da década sucessiva. Não devemos, porém, esquecer que a passagem de
uma situação de “a-fascismo” difuso para uma situação de apoio ampliado, pas-
sou por um envolvimento mais instintivo do que meditado, baseado sobretudo em
pulsões nacionalistas.3
No Brasil, talvez mais que na Argentina e no Uruguai, o regime teve sucesso
em dar uma conotação ideológica à construção de uma identidade nacional que
envolvesse também as classes populares, que criasse nestas o orgulho de um
pertencimento étnico, aproveitando um processo que estava acontecendo havia
duas décadas, através do trabalho da imprensa, das escolas e das associações
étnicas, sobretudo nas áreas urbanas. O mérito do governo de Roma, de suas
estruturas e de seus seguidores no Brasil, foi o de tornar em próprio favor esta im-
perfeita aquisição de uma consciência nacional, identificando e fazendo identificar
italianidade e fascismo, exaltando também todas as conquistas - verdadeiras ou
contrabandeadas como tais - do regime. Neste sentido, a alta consideração que a

1 Com a expressão Fasci Italiani di combattimento – Fasces em portugues (no singular italiano
Fascio) – se entende os grupos políticos fundados em 1919 na Itália por Mussolini, que em 1921
serão transformados no Partido Nacional Fascista – PNF. Estes Fasces tiveram também suas re-
presentações no exterior, funcionando junto aos migrantes italianos. Nota do Tradutor.

2 Exemplar em tal sentido, é o ensaio de J. A. Rios, Aspectos políticos da assimilação do italiano


no Brasil, in: “Sociologia, 21, 1958, pp. 501-29. Uma confirmação de como o fenômeno do fascismo
seja praticamente removido nos estudos de mais amplo respiro sobre a emigração italiana nos é
dado por Franco Cenni, Italianos no Brasil. “Andiamo in ’Merica’...”, Martins, São Paulo, 1975, cuja
primeira edição é de 1958.

3 No subcontinente em geral, organizações do PNF, imprensa e escolas italianas teriam susci-


tado nos imigrantes “mais que uma verdadeira adesão à ideologia fascista (...) novas formas de
ritualidade patriótica, nas festas civis e religiosas, e nas escolas, uma linguagem permeada pela
retórica nacionalista” (C. Vangelista, Dal vecchio al nuovo continente. L’immigrazione in America
Latina, Paravia, Turim 1997, p. 132).

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opinião pública, as personalidades e os governos estrangeiros nutriam por Musso-
lini desenvolveu um papel muito importante na progressiva adesão dos imigrantes
ao novo modelo político, pois estes viveram o prestígio internacional como uma
espécie de desforra em relação aos seus percursos individuais e coletivos.

Para a afirmação daquele que foi batizado “fascismo difuso”4 contribuíram fa-
çanhas que entraram no imaginário coletivo, como as várias travessias do Atlânti-
co que pilotos italianos realizaram entre 1927 e 1931, incluída aquela liderada pelo
ministro fascista da Aeronáutica Italo Balbo, que, assim como outras iniciativas,
veiculavam a ideia de uma “nova Itália” – criação moderna e audaz, além de vito-
riosa e produtora, guiada e amada pelo Duce – e tinham como objetivo conquis-
tar o consenso não somente dos imigrantes, mas da opinião pública brasileira.
A propaganda dessa ideia tornou-se uma arma indispensável, e esta batalha foi
engajada oferecendo, entre outras coisas, bolsas de estudo a alunos brasileiros,
financiamento de viagens de jornalistas para que conhecessem e descrevessem
a nova realidade, e com isso inundassem as redações locais de artigos e fotos
provenientes da península, oferta de subsídios a agências e jornais brasileiros que
colocassem em boa luz o regime, multiplicação de esforços para conseguir pro-
jetar nos cinemas documentários do Istituto Luce (agência cinematográfica criada
por Mussolini em 1925) e filmes politicamente comprometidos, normalmente reser-
vados a um público de imigrantes. Paralelamente a Itália fascista procurou recortar
seu próprio espaço em campo cultural, roendo o predomínio francês, por meio do
envio de personagens importantes - Bontempelli, Marconi, Fermi - e de professo-
res universitários como Ungaretti para ensinar nas universidades locais5.
Tais manobras foram facilitadas pela pouca hostilidade despertada no Brasil
pela realidade política italiana que, pelo contrário, a nível governamental desem-
bocava em uma aberta simpatia, encontrando uma concretização, após 1930, no
recebimento das teorias corporativistas e do modelo sindical. A presença de um
presidente - Getúlio Vargas – e de um grupo de liderança, incluindo as forças ar-
madas, fortemente interessados à experiência italiana, além do surgimento de um
partido - Ação Integralista Brasileira (AIB) - que se inspirava no fascismo, levaram
Roma à esperança de ter influência sobre o panorama político local. Baseando-se
em tais convicções, o AIB foi financiado mesmo depois de sua dissolução por Var-
gas em 1938, episódio que de qualquer forma não impediu Roma de continuar a

4 Bertonha utiliza muito esta categoria para indicar a grande massa daqueles que são envolvidos
quase epidermicamente pelo regime, mas que representam a base de sustento para o núcleo res-
trito de inscritos ao fascismo e às organizações controladas por Roma como também aquele mais
amplo dos simpatizantes verdadeiros. Cfr. J. F. Bertonha, Brasile: gli immigrati e la politica estera
fascista, in “Latinoamerica” 70, 1999, pp. 91-104; Id., sob a sombra de Mussolini: os italianos de
São Paulo e a luta contra o fascismo, FAPESP - Annablume, São Paulo 1999 e Id., O fascismo e
os imigrantes italianos no Brasil, EDIPUCRS, Porto Alegre, 2001.

5 Os sucessos destas operações foram limitados tanto no plano cultural e cinematográfico, cam-
po este no qual já se assistia a um claro monopólio de Hollywood, como naquele jornalístico. Ainda
no final de 1930, o enviado do “Corriere della Sera”, Cesco Tomaselli, comunicava numa carta a
Pavolini, que no Brasil “quem dá corda ao relógio da opinião pública é a Inglaterra” (Archivio Cen-
trale dello Stato, Ministério da Cultura Popular, B. 275, Fasc. 5/46), juízo que poderia ser estendido
a todo subcontinente, como denunciava G. Quartara, Un viaggio nel Sud - America, Bocca, Milão
1939, p. 146.

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manifestar apreciação para com o chefe do executivo que, com o golpe de 1937
tinha deixado claro o desejo de querer abandonar toda aparência de democracia
em favor de um modelo autoritário. Esta amizade terminou após a decisão do Rio
de Janeiro de se colocar ao lado dos Aliados, em troca de palpáveis benefícios
nas fases iniciais da guerra. Haviam se passado apenas quatro anos desde o
momento em que as relações entre as duas nações tinham alcançado seu ápice,
por consequência da recusa brasileira de aplicar as sanções impostas a Roma por
causa da agressão à Etiópia. A campanha africana marcará também o ápice do
consenso entre a coletividade immigrada, que se mobilizou com grandes manifes-
tações, coleta do ouro, boicote das mercadorias dos países sancionistas, envio de
bens e de voluntários.
As fotos e os documentos escritos do regime ilustram eficazmente como, entre
os italianos no Brasil, foram se difundindo os sinais da ritualidade fascista: camisas
pretas, saudações romanas, distintivos lictores, reuniões “oceânicas” em ocasiões
de visitas de personagens da mãe pátria, comemorações de vários tipos, mas
todas confluindo na exaltação da “nova Itália”. Além dos fatores sumariamente
lembrados, outros elementos tiveram peso em determinar tal alinhamento, mas
entre eles o trabalho desenvolvido pelos Fasci no exterior não ocupa uma posição
de relevo, apesar deles terem recebido alguma força graças à ampliação do con-
senso a Mussolini entre a coletividade imigrada. Não casualmente o número de
inscritos aumentará na segunda metade da década de 1930, em especial depois
da campanha etiópica e coincidentemente com o quase total desaparecimento de
um movimento antifascista que sempre foi mais fraco que na Argentina e com a
ilegalidade e perseguição das forças locais de esquerda.
O primeiro Fascio, em homenagem a Filippo Corridoni, surgiu na cidade de
São Paulo em março de 1923 por iniciativa de Emídio Rochetti, implicado, na Itá-
lia, no homicídio do secretário do partido comunista de Macerata, acontecido em
1921. Dois meses depois abria o Fascio “Pietro Poli” no Rio de Janeiro e, dali a
um ano, seriam criadas sessões do PNF (Partido Nacional Fascista) em outros
centros do país, para responder também às pressões exercidas por Ottavio Dina-
le, enviado para tal fim para a América Latina em 1923. Em termos quantitativos,
a progressão de tais estruturas é, a primeira vista, significativa. Ao final de 1924
será o próprio Mussolini a fornecer, numa intervenção no senado, o número de
quarenta unidades no Brasil (equivalente a pouco menos de um décimo do total
dos Fasci no exterior6”), indicação que, porém, não condiz com aquelas de outras
fontes da mesma época. Em setembro de 1927, de qualquer forma seu número
subiu para 52 e em 1934, segundo estimativas declaradamente partidárias, para
827, das quais 35 no estado de São Paulo, no qual residia mais que 70% da co-
letividade italiana. Mesmo deixando de lado a atendibilidade de tais indicações,
a sensação de uma extraordinária difusão das estruturas de Partido enfraquece
se manusearmos os parciais e fragmentários dados sobre os inscritos. No Rio de
Janeiro passaram de 130 em 1924 a 1.000 em 1928 e para 1.100 em 1932; Em
Minas Gerais eram 700 nesta última data, ano que contava uma centena deles

6 B. Mussolini, Scritti e discorsi, IV, Il 1924, Hoepli, Milão 1934, p. 441.

7 Para o 1927, cfr. “Fanfulla”, 15 de setembro 1927; para o 1934, Gagliardetti italiani nel mondo,
s.e., Novara 1934, p. 9.

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na Bahia; em São Paulo passaram de 400 em 1924 a 1745 em 1928 e a mais ou
menos 2.000 logo após meados da década de 19308.
Considerando que os estados de São Paulo, MInas Gerais e Rio de Janeiro
hospedavam mais que 80% dos italianos, não é exagero afirmar que, até meados
da década de 1930, o total dos inscritos no Brasil nunca superou as 5-6 mil unida-
des, uma quantidade risível em relação ao número de peninsulares residentes que
era de 558 mil no censo de 1920, de 435 mil segundo estimativas confiáveis em
1930 e de 325 mil no censo de 1940. Tal inconsistência é documentada também
nos registros sequestrados no Fascio de São Paulo, pelos polícias brasileiros, no
começo da década de 1940, que demonstra como em 18 anos de vida nunca se
superou o nível das 18 mil filiações totais, uma porcentagem irrelevante em rela-
ção aos italianos adultos de sexo masculino residentes na cidade9.
A proliferação das seções do PNF no Brasil tem, portanto, que ser relacionada
não tanto a uma efetiva capacidade de radicação entre os imigrantes, quanto à dis-
persão territorial dos mesmos, numa área muito ampla, que incitava à implantação
de estruturas de Partido - sob o impulso do corpo consular ou da elite étnica - em
cada localidade na qual existisse um mínimo de presença italiana. Os 14 inscritos
à seção do PNF de Sobral Pinto, pequena cidade de Minas Gerais que em 1933
tanto enchia de orgulho o semanal dos Fasci no exterior10, representavam o exem-
plo mais bem acabado desse processo e do triunfo da lógica multiplicativa. Na
realidade, muitas estruturas acabaram por existir apenas no papel, outras, mesmo
durando por anos, desenvolveram uma atividade extremamente reduzida, como
testemunham episodicamente os relatórios diplomáticos que lamentam seu estado
de abandono nesta ou naquela localidade, enquanto somente algumas deixaram
rastros certeiros de sua presença.
Mesmo não podendo ser considerado uma regra, alguns elementos indicam
que nos centros menores e nas áreas mais periféricas prevaleceu a tendência -
sobretudo ao longo da década de 1930 quando se afirmou uma espécie de pensa-
mento único graças ao trabalho desenvolvido pelas estruturas oficiais e oficiosas
da coletividade italiana no Brasil - de rotular a agregação ao Fascio com o valor
de uma afirmação de identidade de grupo, onde o impulso associativo em direção
étnica prevalecia sobre a adesão política e ideológica. Pelo mesmo motivo, nos
centros maiores, onde o mundo das associações sempre foi exuberante (espe-
cialmente no campo do socorro mútuo, devido às manifestas deficiências do país
do acolhimento), o protagonismo das elites e classes médias italianas - que dos
cargos diretivos ganhavam prestígio social, recortando-se também uma esfera de
poder - alimentou uma forte desconfiança em relação às novas estruturas. Assim,
se no clima da época era praticamente impossível subtrair-se à politização, devido
às pressões às quais eram submetidas, quase todas as associações preferiram
manifestar, mesmo com entusiasmo, a adesão ao regime em primeira pessoa,

8 Cfr. Rios, Aspectos Políticos cit., p. 56; “Fanfulla”, 7 de março de 1928; F. Rubbiani, Almanacco
degli italiani nel Brasile pel 1932, s.e., São Paulo 1932, pp. 415-57; S. Pisani, Lo Stato di San Paolo
nel cinquentenario dell’immigrazione, s.e., São Paulo 1937, pp. 1248 - 51.

9 Bertonha, O fascismo cit., p. 101.

10 Dalle fazende alle miniere d’oro, in: “Il Legionario”, 4 de março 1933, apud: E. Franzina, Storia
dell’immigrazione veneta. Dall’Unità al fascismo, Cierre, Verona 1991, p. 163.

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ultrapassando as estruturas do PNF e aprofundando a colaboração com as auto-
ridades diplomáticas.
A situação descrita e as normas contidas no novo estatuto dos Fasci all’estero
emanado pelo regime em 1928 obrigaram essas estruturas a entrar abertamen-
te em concorrência com as agregações étnicas tradicionais, que, por sua vez,
começaram a invadir o campo da representação política, pelo menos em suas
formas exteriores. Acontecia assim que manifestações de exaltação da “nova Itá-
lia” e comemorações das datas do regime fossem realizadas um pouco em todo
lugar, envolvendo rotativamente PNF, OND11, associações, institutos escolares,
sedes diplomáticas e até sociedades esportivas, como em ocasião da visita de
Luigi Federzoni (presidente do Senado e figura de destaque do regime) a São
Paulo, quando o encontro com a coletividade aconteceu no estádio do “Palestra
Itália” decorado com bandeiras e brasões italianos, brasileiros e fascistas. É aliás
conjecturável que sem esse tipo de terceirização da representação teria sido im-
possível, para o Fascio, juntar, nesta como em outras circunstâncias, milhares e
milhares de pessoas. As atividades relacionadas ao funcionamento do partido, ou
seja, aquelas promovidas sem a colaboração de outras instituições, pelo contrário,
raramente garantiam, pelo menos nos grandes centros urbanos, um número satis-
fatório mesmo se relacionado ao total dos inscritos12.
Como lembrado, um papel importante na homologação das funções dos Fasci
com as exercidas pelas instituições já testadas de vida coletiva foi desempenhado
pelo estatuto de 1928, que subordinava as estruturas do PNF ao corpo diplomá-
tico e, reforçando a obrigação do respeito absoluto das leis do país hospedeiro,
proibia toda intromissão na vida política interna, além de fornecer outras diretivas.
O estatuto com certeza foi respeitado no Brasil em relação ao primeiro ponto e
em relação à recomendação de criar seções femininas e juvenis. As organizações
reservadas às mulheres - que se destacaram sobretudo pelo desempenho de fun-
ções assistenciais e pela tutela de maternidade e infância - tiveram um sucesso
ainda mais limitado daquelas masculinas, inclusive em termos de inscrições. Maior
consenso foi obtido pelas Organizações juvenis dos italianos no exterior (OGIE
em italiano) que, mesmo sem obter adesões em massa promoveram atividades
envolventes, mesmo que repetitivas, para os filhos e as filhas dos imigrantes. A
importância dada por Roma ao OGIE local é comprovado pelo envio, em 1936, de
um funcionário de Partido - Lamberto Lippi - com a tarefa de dirigir o grupo, tarefa
que ele já desenvolvera na Bulgária.
Depois de 1928 apareceu um hibridismo embaraçante para os Fasci que, mes-
mo sem renunciar às funções de proselitismo ideológico, assumiram cada vez
mais aquelas de “associacionismo apolítico de forma mais ou menos nacionalís-
tica”13, enquanto a atividade política do regime acabou por assumir “um carater

11 OND – Opera Nazionale Dopolavoro: tratava-se de uma organização criada pelo regime fas-
cista em 1925, que tinha como objetivo cuidar do tempo livre dos trabalhadores. (NDT)

12 Sobre a modesta participação às convocatórias do Partido, cfr. A. Trento, Il fascismo e gli ita-
liani in Brasile, in: “Latinoamerica”, 29, 1988, p. 50.

13 A expressão é de E. Santarelli, I Fasci italiani all’estero (note e appunti), in: “Studi Urbinati di
Storia, Filosofia e Letteratura”, 1-2, 1971, p. 1373.

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oficial formal em estreita ligação com a diplomacia fascista”14. No Brasil também
chegaram inúmeros cônsules inseridos no sistema de representação do próprio
país no exterior por méritos políticos e alguns, entre eles, tiveram também cargos
de responsabilidade nas seções do PNF nas localidades nas quais prestaram ser-
viço. Foi o caso de Giorgio Tiberi, medalha de ouro da marcha sobre Roma e vi-
ce-cônsul em Ribeirão Preto, Giovanni Moscati, vice-cônsul e secretário do Fascio
em Campinas, Cesare Gobbato, agente consular e dirigente do Fascio de Caxias,
onde mais tarde ocuparia a cadeira de prefeito15. O mais importante destes diplo-
matas fascistas foi, sem sombra de dúvida, Serafino Mazzolini, ex nacionalista,
voluntário da I Guerra Mundial, legionário de Fiume, ex deputado do PNF e homem
com cargos de Partido na Itália, que presidiu o consulado de São Paulo de 1928 a
1932, ano em que foi transferido para Montevidéu16.
Alguns dos novos representantes tiveram um peso importante ao orientar os
conterrâneos em favor do regime, aproveitando também o aumento das represen-
tações diplomáticas que permitiu uma penetração mais capilar entre as comunida-
des do interior. Mesmo assim, o maior cuidado na indagação sobre as condições
das nossas coletividades, ainda em lugares que até aquele momento nunca ti-
nham recebido visitas consulares, foi um mérito exclusivo de iniciativas diplomáti-
cas individuais. Os estudos mais recentes puseram em evidência o papel destes
personagens ao empurrar para o regime, por meio de passividade ou chantagens,
o mundo associativo, a imprensa e as escolas italianas17, setores estratégicos na
orientação da opinião pública, e não só da italiana. O mundo da instrução rece-
beu especial atenção depois que a secretaria geral dos Fasci no exterior impûs,
em 1928, a inscrição dos filhos dos imigrantes nas escolas italianas. No plano
ideológico, a função da doutrinação foi desenvolvida pelos inúmeros institutos pri-
mários, mas sobretudo pela única instituição de educação média - “Dante Alighie-
ri” - sustentada pela homônima sociedade com sede na Itália, pelas autoridades
diplomáticas e por um grupo de patrocinadores imigrados pertencentes às classes
abastadas18.
O estatuto de 1928 marcou uma inversão de tendência na escala de priori-
dades dos Fasci. As seções do Partido no Brasil tinham, de fato, começado suas

14 E. Santarelli, Fascismo e neofascismo, Editori Riuniti, Roma 1974, p. 128.

15 Sobre a interessante figura de Gobbato, cfr. L. Slomp Giron, As sombras do Littorio: o fascismo
no Rio Grande do Sul, Parlenda, Porto Alegre 1994, pp. 86-90.

16 Sobre a obra de Mazzolini no Brasil, cfr. A. Trento, Presenze e personaggi marchigiani in


Brasile, 1876-1945, em E. Sori (org.), Le Marche fuori dalle Marche, II, Quaderni monografici di
“Proposte e Ricerche”, Ancona 1988, pp.405-16. Sobre o periodo uruguayo, cfr. J. Oddone, Sera-
fino Mazzolini: un misionero del fascismo en Uruguay (1933-1937), ivi, pp. 566-80, e G. Marocco,
Sull’altra sponda del Plata. Gli italiani in Uruguay, Franco Angeli, Milão 1986, pp. 108-20. Veja-se
também S. Mazzolini, Parole di fede, Tisi, São Paulo 1929.

17 Cfr. sobretudo A. Trento, Do outro lado do Atlântico. Um século de imigração italiana no Bra-
sil, Nobel, São Paulo 1989, pp. 314-46, e Id., Il Brasile, gli immigrati e il fenomeno fascista, em V.
Blengino, E. Franzina, A. Pepe (a cura de), La riscoperta delle Americhe. Lavoratori e sindacato
nell’emigrazione italiana in America Latina, 1870-1970, Teti, Milão 1994, pp.257-64; Slomp Giron,
As Sombras cit., pp. 85-104, e Bertonha, O fascismo cit., pp.87-164.

18 Sobre esta sociedade, cfr. P. Salvetti, Immagine nazionale ed emigrazione nella Società “Dan-
te Alighieri”, Bonacci, Roma 1995, pp. 249-56.

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atividades preocupando-se em organizar palestras e comemorações, de distribuir
material de propaganda, de promover projeções de películas italianas (mais tarde
em colaboração ou em concorrência com as OND), de criar pequenas bibliotecas
nas quais prevalecessem uns textos que exaltassem o regime, de difundir a cultura
da mãe pátria, de fornecer ao PNF de Roma informações econômicas e políticas
sobre o Brasil, de cultivar o patriotismo dos imigrantes. Paralelamente, estas es-
truturas estavam envolvidas no controle (e episodicamente na repressão), do an-
tifascismo, recorrendo também, para melhor desenvolver esta tarefa, à colabora-
ção de informantes pagos que operavam junto aos órgãos de polícia brasileiros19.
Escasso parece ter sido, pelo contrário, seu papel na manutenção de contatos de
vértices com o movimento fascista local na década de 30, operação esta efetuada
por pessoas designadas de tais responsabilidades por Roma, ou seja pelo corpo
diplomático.
Independentemente da avaliação sobre a eficácia com a qual foram desenvol-
vidas as tarefas elencadas, após 1928 os no Brasil restringiram seu raio de
ação, limitando-se a prestar sua obra em campo cultural, educativo, assistencial e
recreativo, aprofundando assim papéis que, mesmo presentes desde seu nasci-
mento, a partir deste momento em diante se tornaram o traço característico dessas
organizações. O papel assistencial se limitou à distribuição de gêneros alimentí-
cios e outros bens de primeira necessidade em favor dos imigrantes pobres, na
parca concessão de subsídios em dinheiro aos mais necessitados, na assistência
médica gratuita e, no caso do Fascio feminino, na entrega de enxovais para os re-
cém-nascidos. Os resultados foram de qualquer maneira modestos e a decisão da
embaixada de destinar, para as atividades assistenciais das seções do PNF, uma
parte das entradas das doações da coletividade não serviu para uma melhora da
situação. Para determinar tal insucesso contribuiu mais uma vez a desconfiança,
ou a pura hostilidade, manifestada pelas inúmeras associações étnicas já exis-
tentes, cujas atividades primárias se sobrepunham àquelas dos Fasci, desde a
beneficência ao socorro mútuo, da instrução à organização do tempo livre.
No plano cultural registrou-se um esforço fraco na abertura de cursos escolás-
ticos e um mais forte para a promoção de representações teatrais, colocadas em
cena por companhias amadoras de imigrantes, às vezes durante tardes ou noites
dançantes, em total sintonia com aquela que fora uma prática comum, nas déca-
das anteriores, do movimento operário a caráter étnico, sobretudo de orientação
anarquista. Ao final das contas, a organização do tempo livre acabou por repre-
sentar uma das principais preocupações dos Fasci, que criaram bandas musicais,
abriram cursos de danças e de canto, organizaram passeios dominicais, cópia
perfeita dos trens populares na Itália20, e promoveram manifestações esportivas,
dispondo, às vezes, de suas próprias estruturas para estas últimas atividades.
Muito difundido foi também o costume de criar colônias de férias e a insistên-
cia em tais operações era motivada tanto pela importância de instilar italianidade

19 V. T. Dos Santos, Os seguidores do Duce: os italianos fascistas no Estado de São Paulo,


Arquivo do Estado-Imprensa Oficial, São Paulo 2001, p. 29. As próprias autoridades diplomáticas
também usavam de tal recurso.

20 Tratava-se de trens a preço reduzido organizados pelas OND para levar a população a desti-
nos, geralmente de praia ou turísticos durante os feriados. Obtiveram grande sucesso de público e
inauguraram na Itália o turismo de massa.. (NDT)

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no coração dos filhos dos imigrantes nascidos no Brasil - e portanto brasileiros a
todos os efeitos pela legislação local que se baseava no princípio do ius soli - seja
pela consciência do alto valor propagandísticos destas iniciativas no plano políti-
co. As colônias e as escolas primárias acabaram sendo centros de doutrinação e
proselitismo21. A difusão das colônias foi apoiada também pela Opera Nazionale
Dopolavoro (OND) com tanta energia que chegou a pôr o Brasil no topo da lista
dos países latino-americanos para estas específicas iniciativas. Neste sentido, a
OND acabou por exercer ao longo da década de 30 uma concorrência aos Fasci.
A sobreposição de funções era objetivamente ineliminável, dado que as di-
retivas impartidas pelo regime às OND no exterior eram de prover à educação
física e esportiva dos trabalhadores, à instituição de cursos profissionalizantes,
à organização do tempo livre, à propaganda patriótica, à assistência econômica
e moral, ou seja, numa palavra, à tarefa “de absorver cada manifestação da vida
das nossas massas emigradas”22. Assim, mesmo trabalhando em sintonia com as
seções do PNF, das quais eram parcialmente projeções e instrumentos aos olhos
dos imigrantes, as OND lhes roubaram espaço, sobretudo graças ao favor que en-
contraram, em termos nem tanto de multiplicações de sedes (19 em todo o Brasil
no final da década de 30) quanto de inscritos: na cidade de São Paulo eram 1500
em 1931, ano de sua abertura, 5.437 em 1934 e 7.000 em 1935.
Todo o trabalho das OND em cobrir um raio de ação quanto mais amplo pos-
sível - desde as representações teatrais e musicais às escolas noturnas, dos pas-
seios pós trabalho às festas dançantes, dos jantares sociais aos bailes mascara-
dos, das projeções cinematográficas às atividades esportivas - era destinado a
conseguir encontrar interlocutores e apoio junto às classes populares. Esforços
nesse sentido eram realizados também pelos Fasci, que, mesmo se propondo
como organizações interclassistas e “nacionais”, ao interior das quais não existiam
divisões baseadas em renda e profissão, almejavam conquistar a grande massa
dos imigrantes. Na realidade, apesar dos pouco pontuais acenos presentes na
imprensa partidária daquele período, direcionados a mostrar uma pronta resposta
do proletariado urbano e dos trabalhadores rurais, pelos raríssimos dados sobre
a profissão dos inscritos emerge que a adesão destas classes resultou mínima,
enquanto o PNF foi composto basicamente por elite, classe média e pequena bur-

21 Citamos, como exemplo, o hino cantado, no ritmo de Fischia il sasso, pelas crianças do acam-
pamento “Edda Ciano Mussolini” de Nova Friburgo no começo da década de 1940, ou seja, quan-
do o governo brasileiro já tinha proibido as atividades políticas aos estrangeiros: “ Di una fede
sol sorretti/ presentiamo il nuovo sole;/ noi del Duce siam gli eletti,/ del fascismo siam la prole./
del fascismo audace e fiero/ che i nemici spezza e doma,/ del fascismo che l’impero/ ricondusse
all’alma Roma./ Giovinezza è il nostro canto;/ noi d’Italia rifiorita,/ per l’Italia amata tanto/ noi siam
pronti anche a morir” (Por uma só fé regidos/ apresentamos o novo sol;/ nós do Duce somos os
escolhidos,/ do fascismo somos os filhos./ Do fascismo audaz e altivo/ que os inimigos quebra e
doma,/ do fascismo que o Império/ trouxe de volta para a mãe Roma./ Juventude é nosso canto;/
nós da Itália reflorescida/ para a Itália amada tanto/ estamos pronto até a morrer), (“Fanfulla”, 25
de janeiro 1940).

22 I. Guerrini, M. Pluviano, L’organizzazione del tempo libero nelle comunità italiane in America
Latina: l’Opera Nazionale Dopolavoro, em Blengino, Franzina e Pepe (orgs.), La riscoperta cit., p.
381. Dos mesmos autores, cfr. L’Opera Nazionale Dopolavoro in Sudamerica, in: “Studi Emigrazio-
ne”, 119, 1995, p. 518-37.

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guesia23. Para enfrentar tal indiferença, em São Paulo em 1937, se registraram
duas iniciativas: a abertura de 3 seções em bairros italianos a forte composição
popular (Braz, Bela Vista e Ipiranga) e a criação de uma “Legião operária do litto-
rio”. Em realidade, todas estas iniciativas tinham como objetivo, sobretudo, refor-
çar aquele paternalismo empresarial em base étnica que já vinha de uma longa
tradição. Mais difícil ainda de definir é a participação nas estruturas de Partido da
mão de obra rural, mesmo que a seu desfavor houvesse a distância dos centros
urbanos e a progressiva perda de importância desse destino profissional entre os
italianos no Brasil no período entre as duas guerras.
A adesão mais firme veio dos segmentos situados no meio da escala social ou
pouco além dela, dado que a elite, mesmo se mostrando solícita em se colocar ao
lado do regime de Mussolini, limitou seu compromisso dentro das organizações do
Partido, sobretudo no plano dos cargos diretivos. As estrelas mais brilhantes do fir-
mamento italiano além oceano se destacaram, com certeza, por doações monetá-
rias, porém raros foram os exemplos de envolvimento pleno nos Fasci e nas OND,
com exceção do magnata do açúcar Pietro Moranti, que dirigiu por algum tempo
a seção do PNF em Piracicaba no estado de São Paulo. Verdade é que empresá-
rios, latifundiários, construtores e grandes comerciantes não podiam se permitir,
por problemas de visibilidade e de relações, de demonstrar indiferença em relação
aos Fasci, mas é também verdade que muitos entre eles avaliavam com preocu-
pação as implicações das manifestações políticas de mais baixo perfil e mais ba-
rulhentas, dado que eles demonstravam muito cuidado em evitar a instauração de
um clima de tensão - de fácil explosão numa área na qual o nacionalismo era tão
difundido - que teria se voltado negativamente tanto contra a coletividade italiana
quanto contra as atividades econômicas deles próprios.
Justamente os órgãos dirigentes do Partido se tornaram alvo das críticas maio-
res, tanto por parte dos observadores da mãe pátria, como de muitos expoentes
da coletividade residente que censuravam o comportamento destes e que os cul-
pavam pela escassa incisividade do PNF, em um ambiente que parecia ser mais
que preparado para decretar o sucesso do Partido. Já em 1924, Giovanni Giurati,
que estava liderando uma empreitada de promoção do made in Italy - o cruzeiro
do navio Itália que hospedava a bordo uma mostra itinerante de produtos manufa-
turados e obras de arte que tocou vários Países do subcontinente - sinalizou para
Mussolini que, na América Latina, os Fasci eram regidos por indivíduos que não
haviam sidos submetidos a nenhuma seleção. Em realidade tal circunstância não
parecia preocupar muito a secretaria de Roma, se era verdade que a única pro-
posta formulada pelo futuro secretário do PNF, ou seja o afastamento de Rocchetti
(delegado do Partido no Brasil), não teve “outro êxito do que aquele de oferecer ao

23 Dentre das 54 fichas relativas aos inscritos ao Fascio de São Paulo, compiladas pela polícia
política, conservadas no Arquivo de Estado, e apresentadas por Dos Santos (Os seguidores cit.,
pp. 93-152) bem 14 são relativas a comerciantes, 8 a profissionais liberais, 7 a empregados e o
mesmo número a pequenos empresários, assim como a pessoas trabalhando em serviços, en-
quanto os operários não passam das 3 unidades.

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Rocchetti o apoio de Bastianini24”25. Em 1931, depois de conseguir verificar o fun-
cionamento do Partido durante uma viagem na área, Piero Parini26 também mos-
trou perplexidade acerca do funcionamento de tais estruturas na América Latina.
Ainda mais duras eram as críticas por parte daqueles que estavam em contato
cotidiano com os responsáveis de tais organizações. A acusação mais frequente
era aquela de perseguir vantagens pessoais, deixando de defender os interesses
tanto dos imigrantes quanto do fascismo. O costume de explorar os cargos dentro
do Partido para promover a si próprios e seus negócios, a incompetência, o vacui-
dade, a mesquinhez, a falta de tato e outros defeitos eram evidenciados, sobretu-
do ao longo da década de 20, pelas mesmas autoridades diplomáticas que, entre
as linhas ou abertamente, atribuíam exatamente à incapacidade dos dirigentes as
dificuldades enfrentadas pelos Fasci. A sequela de lutas intestinas desencadeadas
por causa das vantagens oferecidas pelo acesso às altas hierarquias do PNF foi
acompanhada por uma práxis de frequentes expulsões e por um alto nível de ro-
tação aos vértices. Os doze secretários que se alternaram à guia da organização
paulista entre 1923 e 1938 testemunham a intensidade destas ambições, mas
também a dificuldade de encontrar elementos capazes, como era o desejo das au-
toridades diplomáticas, que a partir de 1928 tentaram também frear a desmedida
combatividade interna, não desdenhando a intervenção em primeira pessoa para
dirimir contrastes e eventualmente facilitar a renovação.
Além de tais problemas, as estruturas do Partido transmitiram ao externo uma
sensação de arrogância e de agressividade (não necessariamente só verbal) que
suscitou o temor de uma parte da opinião pública local. As preocupações se con-
centravam sobretudo na liberdade de ação concedida aos Fasci, em sua pretensão
de poder decretar ostracismos contra outros imigrantes da mesma nacionalidade,
no atrevimento com que tais organizações se arrogavam o direito de coerção e de
chantagem. Tudo isso acontecia também em outros destinos da emigração italia-
na, mas no Brasil as perplexidades pareciam mais justificadas, dado que aqui, por
boa parte do ventennio27, o livre exercício dos direitos políticos sofreu uma série de
restrições, razão pela qual o que era proibido aos nativos parecia consentido aos
estrangeiros. Estas anomalias e o mal estar suscitado por algumas iniciativas das
seções do PNF induziram não só a esquerda (fraca no Brasil por boa parte desse
periodo) mas também exponentes de outros partidos e em especial a imprensa a
pedir em intervalos mais ou menos regulares seu fechamento, sobretudo durante a
década de 20, quando o papel político por elas desempenhado era mais evidente

24 Giuseppe Bastianini – político e diplomata italiano, foi deputado, vice-secretário do PNF e se-
cretario dos Fasci italianos no exterior. (NDT)

25 Cit. em Istituto italo-latino americano, Sartorio 1924. Crociera della Regia Nave “Italia”, edizioni
De Luca, Roma 1999, p. 97. Giurati, inclusive, exprimia parecer negativo a propósito dos Fasci que,
não podendo desenvolver plena atividade política em terra estrangeira, “constituem uma Socie-
dade colonial que muitas vezes aumenta as causas da desagregação das nossas coletividades.
Vestem, em algum País, a camisa preta, gritam alalà mas não podem alcançar resultados de im-
portância relevante”.

26 Piero Parini – político italiano, foi o terceiro secretário dos Fasci italiano no exterior (NDT).

27 A palavra Ventennio em italiano se refere ao período em que Mussolini e o fascismo ficaram


no poder: aproximadamente vinte anos, de 1922 a 1943. (NDT)

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e, entre os brasileiros, manifestavam-se menos difusamente simpatia e admiração
em relação ao modelo italiano. Os maiores alvos dessa campanha não foram, po-
rém, os Fasci (demonstrando a já assinalada fraqueza na presença política e na
capacidade de proselitismo), mas as representações diplomáticas, os jornais e as
escolas. Não foi casual que os únicos dois reais acidentes registrados no período,
seguidos de manifestações de praça, violência, gritos contra a Itália, tivessem sido
desencadeados não por dirigentes e inscritos a seções locais do PNF, mas por
fascistas recém chegados da Itália que trabalhavam no campo da imprensa étnica
e da diplomacia28.
Em abril de 1938, cinco meses depois que Vargas havia imposto a dissolução
de todos os partidos brasileiros, foi emanado um decreto que proibia aos estran-
geiros de manter suas próprias organizações políticas e punha limitações àque-
las associações que mesmo não sendo expressão direta de partidos, poderiam
lhes servir de cobertura. A medida, mesmo sendo impulsionada por exigências de
política nacional e por preocupações relativas sobretudo às atividades desempe-
nhadas pelos alemães no sul do Brasil, atingiu tanto os Fasci como as OND e foi
acompanhada por uma campanha contra as escolas étnicas, que levou à proibição
de ensinar em língua estrangeira às crianças abaixo dos quatorze anos.
O respeito da norma foi de qualquer forma decididamente elástico, menos no
Rio Grande do Sul, onde a nova linha foi aplicada com rigor e mais ainda o será a
legislação criada a partir do início de 1942, tanto de levar a afirmar que a repressão
do fascismo transformara-se em repressão dos italianos tout court29 . No resto do
país, pelo contrário, as escolas continuaram a funcionar, a OND manteve a própria
sigla, mas se tornou Organização Nacional Desportiva (pondo o acento no campo
de intervenção no qual suscitou maior interesse) e os Fasci procederam a opera-
ções de maquiagem, diluindo-se em instituições mais amplas como as “casas de
Itália” ou transformando sua razão social e assumindo frequentemente aquele pa-
pel que já desempenhavam na realidade. Assim o Fascio de São Paulo continuou
a existir sob a denominação de Ente Assistenziale “Filippo Corridoni”30, trocando
de secretário. O ex-tenente Bifano, de qualquer forma, não abdicou de seu papel
político e os fascistas não se resignaram às limitações impostas, tanto que, a dois
anos de distância da emanação da legislação restritiva, o aniversário da fundação
dos Fasci na Itália foi comemorado na sede do Circolo Italiano (não por acaso a as-
sociação mais elitista da comunidade) e o discurso solene foi proferido pelo próprio
Bifano. Que a antiga seção do PNF mantivesse funções que não tinham nada a ver
com a obra assistencial é comprovado pelo fato que, em janeiro de 1941, durante
uma busca no “Filippo Corridoni” foram encontrados e sequestrados milhares de

28 Sobre os episódios que em 1928 envolveram Luigi Freddi, que já fora vice secretário dos Fasci
no exterior e que transferiu-se no Brasil para dirigir o jornal “Il Piccolo” e, a distância de menos de
um mês, Osvaldo Brancaleoni, secretário do cônsul Mazzolini, cfr. Bertonha, O fascismo cit., pp.
332-35 e Trento, Presenze cit., pp 410-14. Em ambos os casos a acender a faísca foram alguns
comentários ofensivos em relação aos brasileiros e às brasileiras.

29 Cfr. Slomp Giron, As sombras cit., e B. Corsetti, O crime de ser italiano: a perseguição no
estado Novo, em L. A. De Boni (org.), A presença italiana no Brasil, I, EST, Porto Alegre 1987,
pp.363-82.

30 Entidade assistencal Filippo Corridoni (NDT)

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panfletos de propaganda fascista31.
Somente com a ruptura das relações diplomáticas em janeiro de 1942 e ainda
mais com a declaração de guerra de agosto do mesmo ano se chegará ao defi-
nitivo dissolvimento de Fasci e OND, como também ao fechamento de escolas,
associações e jornais italianos. Comentando a primeira das duas decisões, Gale-
azzo Ciano32 assim anotava, realisticamente, em seu diário: “Mussolini queria que
eu dissesse ao Encarregado de negócios responsável pela comunicação que ele
tinha a doença do elefante e que um dia iria fazer pagar caro (ao Brasil) aquela
iniciativa. Mas onde? Mas como?”33.

31 Ambas as notícias em Dos Santos, Os seguidores cit., pp. 26-29 e 42.

32 Galeazzo Ciano (1903 – 1944) foi um político italiano, genro de Benito Mussolini e ministro dos
assuntos exteriores de 1936 a 1943. NDT

33 G. Ciano, Diario, 1937-1943, Rizzoli, Milão, 1980, p. 585.

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Interseccionalidade de violências
na migração feminina: casos de
mulheres e trans brasileiras
The intersectionality of violence in female migration:
cases of Brazilian women and trans

Milena de Lima e Silva1

Resumo
A partir de dados empíricos de atendimento no Posto de Atendimento Humani-
zado aos Migrantes no Aeroporto Internacional de Guarulhos, apresento como a
migração das mulheres e trans brasileiras ocorrem de forma ainda mais vulnerável
que a migração masculina, pois lidam com violações de direito características de
construções societárias em que os papéis de “mulheres” e “homens” são acentu-
adamente marcados e diferenciados, e supostamente atendem a um padrão nor-
mativo. Para tanto, o recorte específico no tipo de migração que este trabalho está
voltado é a migração de mulheres, e a representação do termo trans como um
universo que abriga travestis, transexuais e transgêneros.

Palavras-chave: Migração; Gênero; Violência; Brasileiras

Abstract
Based on empirical data from the Humanized Attendance Service for Migrants
at the International Airport of Guarulhos, I present how the migration of Brazilian
women and transgenders occurs with more vulnerability than the male migration,
since they deal with law’s violations characteristic of social constructions in which
the roles of “women” and “men” are marked and differentiated, and supposedly
attend a normative standard. For this, the specific type of migration that this work
is focused on is the migration of women, and a universe that shelters “travestis”,
transsexuals and transgenders.

Keywords: Migration; Gender; Violence; Brazilian.

Sobreposição de vulnerabilidades na migração feminina

1 Socióloga, com Mestrado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo e Dou-
toranda em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos.

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Este trabalho se baseia nos relatos coletados quando eu ainda era atendente
no Posto Humanizado de Apoio aos Migrantes no Aeroporto Internacional de Gua-
rulhos, entre os anos de 2009 e 2010. Este Posto foi idealizado como um projeto
piloto para a política pública migratória brasileira, de execução da organização não
governamental Asbrad (Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e
da Juventude), com autorização e apoio da Secretaria Nacional de Justiça e do Mi-
nistério da Justiça do Governo Federal do Brasil, e Escritório sobre Drogas e Crime
das Nações Unidas, mas sob o financiamento de uma das maiores agências inter-
nacionais, a holandesa Cordaid (Catholic Organisation for Relief and Development
Aid). Responsável por atender os migrantes brasileiros que retornavam ao país
como deportados ou inadmitidos no exterior, em suas específicas vulnerabilidades
e possíveis violências sofridas no processo migratório, as funcionárias2 do Posto
ainda mapeavam e identificavam outro grave crime humanitário que é o Tráfico de
Pessoas.
Importante apontar que após quatro anos de projeto piloto, a Secretaria Nacio-
nal de Justiça aprovou o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
(Pronasci), com a criação de Postos Avançados de Atendimento Humanizado aos
Migrantes nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, e Amazonas, e o
Posto Avançado de Direitos para Viajantes, no município de Belém, no Pará. Ou
seja, este projeto piloto de uma organização não governamental efetivamente in-
fluenciou a política pública brasileira.
Salvaguardados os nomes das e dos assistidos, tratarei de apresentar os da-
dos de como a migração das mulheres e trans3 brasileiras ocorrem de forma ainda
mais vulnerável que a migração masculina, pois lidam com violações de direito
características de construções societárias em que os papéis de “mulheres” e “ho-
mens” são acentuadamente marcados e diferenciados, e supostamente atendem
a um padrão normativo.

Migração brasileira e direitos humanos

Em 20094 a Infraero informou que o movimento anual de passageiros aéreos


no Brasil era de 128.135.6165, isso somando-se as viagens nacionais e internacio-
nais. Ainda segundo a Infraero, o Aeroporto de Guarulhos representa o maior fluxo
de passageiros entre todos os aeroportos do Brasil, é o primeiro lugar no ranking
por movimento de passageiros. No mesmo ano de 2009 este aeroporto represen-
tou a fatia de 16,96% da rede de aeroportos brasileira, em um total de 21.727.649
passageiros atendidos neste ano. Este é o local em que o Posto foi estabelecido,
e é o campo em que realizei as entrevistas.
“Dois em cada três brasileiros que vivem fora do Brasil estão em situação ir-
regular”, título de matéria jornalística de setembro de 2010, essa reportagem do

2 Curiosamente todas mulheres.

3 Universo que abriga Travestis, Transexuais e Transgêneros.

4 Ano das entrevistas de atendidos selecionados do Posto.

5 Considerados os embarcados mais os desembarcados.

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Jornal Estadão usou os dados do Ministério das Relações Exteriores em que apre-
sentava que 3.030.993 (o que significava 1,57% do total da população brasileira no
ano) estava com sua situação jurídica instável. O título de regularidade é dado ao
indivíduo que cumpre as leis migratórias do país de destino, “cada Estado regula
os fluxos migratórios para o seu próprio espaço territorial. A migração regular se
dá dentro dos parâmetros da legalidade estabelecidos por Estado” (OIT, 2009).
E a lista de ações para o processo regulatório pode variar, nos países de maior
procura para o destino migratório, como Europa Ocidental ou EUA, trata-se de
assegurar que o migrante se for turista levará uma quantia mínima de dinheiro,
ou “recursos suficientes para cobrir as despesas relativas a viagem e estadia nos
Estados Unidos”6, e para o migrante que deseja residir nestes países, deverá as-
segurar que já possui vínculo empregatício ou estudantil, esta suposta variedade
de alternativas em todas elas procura exigir que o migrante seja responsável pelo
seu próprio sustento, consumo e saúde. Lembrando também, que uma vez consi-
derado regular, os impostos públicos poderão ser cobrados desses migrantes, o
que os tornam atrativos novos vetores para taxações.
Ainda que a Declaração Universal dos Direitos Humanos disponha no Artigo
XIII que “1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro
das fronteiras de cada Estado; 2. Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer
país, inclusive o próprio, e a este regressar” (1948), o que compreendemos sobre
o direito internacional é que existe uma maior valorização nas ações de soberania
nacional, com vistas ao controle migratório, e onde é permitido a livre circulação de
mercadoria, dinheiro e serviço, no entanto a circulação dos indivíduos é cerceada.
Este contraditório conjunto de mecanismos podem facilmente ser descritos como
não humanitários.
Se esse desejo de migrar, de se deslocar internamente em um mesmo país
para fixar residência, ou ainda atravessando fronteiras político administrativas, al-
terando o sentido de pertencimento, friccionando culturas, língua, costumes, mas
com vistas a uma melhoria nas anteriores condições sócio econômicas de vida,
podem não ser a estratégia de todos os Estados receptores, então quais são as
condições reais em que as pessoas realizam este fluxo migratório?

Sexualização da nacionalidade brasileira e a desumanização


das trans

Gostaria de expor aqui um recorte específico no tipo de migração que este


trabalho está voltado: a migração de mulheres, transgêneros e transexuais. São
dois os argumentos pelos quais defendo este recorte, e eles se retroalimentam. O
primeiro diz respeito a um fenômeno contemporâneo da migração brasileira inter-
nacional – o da feminização. De acordo com Piscitelli (2008) a experiência de mi-
gração das mulheres brasileiras no cenário internacional é afetada pela imbricação
entre noções de sexualidade, gênero, raça, etnicidade e nacionalidade.

Refiro-me às noções sexualizadas e racializadas de feminilidade pelo

6 Retirado do site do Consulado dos EUA no Brasil, como um exemplo.

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fato de serem brasileiras. Independentemente de serem consideradas no
Brasil, brancas ou morenas, nos fluxos migratórios para certos países do
Norte as brasileiras são racializadas como mestiças. No lugar desigual
atribuído ao Brasil no âmbito global, a nacionalidade brasileira, mas do
que a cor da pele, confere-lhes essa condição. E essa racialização é se-
xualizada (Piscitelli, 2008).

O segundo argumento abarca uma definição de gênero que ultrapassa o bina-


rismo masculino/feminino, para tanto baseio-me nos estudos de uma das críticas
mais radicais do conceito de gênero – Judith Butler. Butler trata de formular o
conceito gênero deslocando esse binarismo naturalizado, em diálogo construtivo
com o pensamento feminista, com o pensamento queer e com os movimentos da
Nova Política o Gênero, reivindicando os direitos humanos, e incluindo assim as
pessoas intersex e trans. No livro Undoing Gender (2002), a autora buscou anali-
sar o extremo risco que correm aqueles que desconstroem os padrões binários de
gênero, a estes seres, mesmo a humanidade muitas vezes lhes é ignorada,

ao ponto de a vida lhes ser insuportável, pela violência sobre eles exer-
cida, muitas vezes até à morte – sendo a morte e as condições de pos-
sibilidade do seu luto o horizonte teórico por excelência duma qualquer
política do reconhecimento (Rocha, 2006).

Juntos os dois argumentos versam sobre formas de violência que se relacio-


nam e que somados caracterizam o recorte no objeto de pesquisa, a sobreposição
de vulnerabilidades na migração de mulheres e trans brasileiras.

Análise dos casos de vulnerabilização da migração


de mulheres e trans

Dos dois anos que trabalhei no Posto de Atendimento Humanizado de Guaru-


lhos, selecionei para este ensaio cinco casos emblemáticos em que fui a respon-
sável direta pelo atendimento ou que acompanhei parte dele.
A primeira entrevistada a ser apresentada é Joana7 que em dezembro de 2009
foi atendida no Posto, como um caso especial a pedido do Consulado do Brasil no
México. Ela é natural de Governador Valares (MG), mas já morava nos Estados
Unidos e trabalhava como faxineira há 7 anos. Durante este tempo que ficou lá
levou seu filho para morar junto a ela, onde ele ficou durante dois anos, e depois
acabou voltando ao Brasil para ficar com a avó. Nestes cinco anos que ficou so-
zinha, nos últimos três ela conheceu um brasileiro que trabalhava com colocação
de pisos, e estavam juntos desde então. Ela disse que era esposa dele, mas não
cheguei a perguntar se eram casados no papel. Em 2009, o filho já com 15 anos,
ela desejou aproximar o núcleo familiar. Com o visto para expirar, ela veio ao Brasil
para tentar renová-lo, e para levar seu filho. No Brasil, ela não conseguiu renovar o
visto, então pensou em alguma outra forma de entrar com o filho no país, caminho

7 Nomes fictícios, para garantir segurança às atendidas.

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escolhido: o deserto do México. O trajeto contava com a parada na Guatemala
para encontrar um casal de amigos, uma guatemalteca e um estadunidense, e eles
a auxiliariam a arrumar uns papéis de casamento com o homem estadunidense.
Algumas reflexões já podem ser evidenciadas na fala de Joana, um exemplo
disso é apontar que os estudos sobre migração historicamente negligenciaram os
dados sobre o crescente fluxo de mulheres que executaram mobilidade nacional e
internacional, bem como demoraram para buscar alguns parâmetros para caracte-
rizar os motivos do processo migratório.

(No passado) Enquanto os homens são representados como aqueles que


vinham em busca de trabalho, as mulheres não foram inicialmente repre-
sentadas como trabalhadores imigrantes, e sim como aquelas que acom-
panhavam maridos e filhos. Dessa forma, nunca eram percebidas como
sujeitos no processo migratório (Assis, 2007).

Hoje é possível inferir que em busca por melhores condições de vida, mulheres
e trans migram em busca primeiro de trabalho, para enviar dinheiro aos familiares,
e segundo por relacionamentos amorosos – que podem ser tanto o fator de “atra-
ção” para o país de destino, como ainda o fator de “expulsão” do Brasil, caso em
que estejam sofrendo violência, doméstica, sexual ou psicológica aqui. Os carac-
teres distintivos seriam o fator emocional bastante constante nas entrevistas com
esse público, ainda a alta mobilização das redes sociais para executar a migração,
como é possível visualizar a partir do caso da Joana.
Sobre a violência de gênero é possível apresentar todo um leque possibilida-
des que só são encontradas com frequência na migração de mulheres e trans.
Darei alguns exemplos a seguir:
Ainda sobre Joana (2009), ela fez o trajeto pelo deserto do México, contou
sobre a grande dificuldade do percurso, sobre o calor, sobre os únicos dois litros
d’água que lhes dão, sobre os espinhos dos cactos em seus corpos, e que quando
finalmente chegam na fronteira, ela e o grupo em que estava foram pegos pela
migração. Ao contrário do que ocorria sete anos antes, eles ficaram em prisões à
espera da partida para o país de origem. Seu filho desistiu de entrar nos EUA desta
forma. Sobre sua passagem no México ela acabou contando que ao desembarcar
na Guatemala não chegou nem a encontrar com o casal de amigos (com quem
arranjaria os papéis de casamento para o visto nos EUA). Acabou pegando um
táxi e foi sequestrada. Ela contou sobre o grupo conhecido no México que pratica
este crime, e que tem ajuda de forças policiais, o Zeta. Contou que o grupo tem
a prática de sequestrar turistas e subornar as famílias para devolver as vítimas.
Como ela não passou nenhum contato pessoal a eles, e ficava sempre repetindo
que só tinha o dinheiro que carregava com ela na viagem, eles foram gastando seu
dinheiro e levando ela de carro até o México. Em um momento em que fizeram
uma parada, ela escapou e recorreu a um taxista para lhe levar a um centro de
polícia para reportar o roubo. Chegando neste posto policial eles desconfiaram da
história dela, em suas palavras: “os policiais mexicanos pensam como os america-
nos, que todos imigrantes que se encontram no México estão tentando atravessar
a fronteira para os EUA”. Ela ficou detida, e começou a sentir que estava grávida.
A levaram para fazer exames médicos, mas o de urina não acusou, bem como

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o exame de toque. Só quando fez o sanguíneo é que apontou um feto de quatro
semanas. Nas contas dela ela tinha certeza de que era mais tempo. Com uma se-
mana presa começou a sangrar, a levaram para o hospital e fizeram um ultrassom
acusando nove semanas de formação do feto. Este problema de saúde a atrasou
em uma semana para voltar ao Brasil. Ela chorou muito lá.
O segundo caso é de Mônica (2009), com idade aproximada de 30 anos. Ela
foi inadmitida pelos policiais de migração, as causas teriam sido suas roupas que
pareciam caras demais para ela. Diziam que as brasileiras só vão para trabalhar
como prostitutas, que no caso dela deveria ter alguém a bancando. Teve de espe-
rar doze horas a para embarcar novamente ao Brasil.
O terceiro caso é de Sara de 31 anos, natural de Santa Rosa (RS). Ela tinha
como destino final a Suíça. Estava acompanhada de um homem, possivelmente
um conhecido da sua cidade de origem, que estava atuando como agenciador da
viagem. Disseram que já haviam passado pela migração, no entanto foram para-
dos no meio do caminho por outro policial que os advertiu que tinham pouco di-
nheiro. Um dizia ter 50 dólares, e outro 100, mais dois cartões, Visa e Mastercard.
O que eu encontrei de característica negativa no caso é que ela mesma, a mulher
não estava portando nenhum destes valores. Demoraram dois dias para voltar ao
Brasil. Ela me contou que trabalhava em lavoura no RS, e que tinha intenção de
fazer o mesmo na Suíça. Sobre as especificidades do caso, Sara era uma mulher
tinha experiência de trabalho em ambiente rural, com pouca oportunidade de ins-
trução, talvez por essas características, somadas a um papel esperado de gênero,
são tiradas delas a segurança de portar seus próprios documentos e somas eco-
nômicas, que consistem exatamente nos únicos meios de efetivarem sua entrada
regular em outros países.
Agora quando analisamos mais atentamente as violências, passamos a identi-
ficar outros crimes correlatos e de ainda mais gravidade, como é o caso do Tráfico
de Pessoas. Este crime é definido internacionalmente8 através do Protocolo de
Palermo sobre Tráfico de Pessoas, como sendo:

(...) o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o aco-


lhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras
formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade
ou da situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamen-
tos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha
autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no
mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de ex-
ploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas
similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos (OIT, 2009).

Uma especificidade encontrada para o público de mulheres e trans, vítimas


deste crime, é a atividade de trabalho ao qual elas são destinadas a executar.
Quando os homens são vítimas deste crime na grande maioria das vezes são para
fins de Trabalho Escravo, no ambiente agrário ou da construção civil. Enquanto as
mulheres e trans estão destinadas ao fim de Exploração Sexual do Trabalho. Os

8 E ratificado pelo governo brasileiro em março de 2004.

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dados que embasam esta afirmação são os casos que de atendimentos do Posto
Humanizado aliados ao relatório OIT (2005). Este último apresenta que enquanto
o total de exploração econômica forçada, homens e meninos são 44% das vítimas,
mulheres e meninas somam 56% (ou seja, aqui já representam as maiores víti-
mas). Mas quando os dados são específicos sobre exploração sexual comercial,
o gênero se destaca desproporcionalmente, mulheres e meninas são 98% das
vítimas, enquanto homens e meninos 2%.
O quarto caso, Nádia (2009) aproximadamente 40 anos, foi um caso de retorno
voluntário9 ao Brasil. Ela contou que já havia viajado muitas vezes para a Suíça
e a última havia sido em 2004. Na primeira vez, foi com a ajuda de uma mulher
de Goiânia. Ela trabalhava em uma agência de modelos e disse que precisava de
pessoas para ajudar as modelos e trabalhar na limpeza. Nádia pagou sua passa-
gem e chegando em Zurique foi enviada à uma casa de prostituição. O engano
na proposta de trabalho no exterior já pode indicar o crime de Tráfico de Pessoas,
mas ainda não foi apenas com isso que Nádia lidou. Como sua bagagem não
havia chegado, a mulher aliciadora deixou o passaporte com a assistida, dizendo
que iria pegá-lo no dia seguinte. Na mesma noite, a assistida fugiu do prostíbulo
pela janela: “saí andando em um muro fininho assim”. Disse que foi ajudada por
um italiano, que ela havia conhecido aqui no Brasil. Ela tinha o contato dele, mas
não achava que realmente iria encontrá-lo. Eles casaram-se tempos depois. Fica-
ram juntos por mais de um ano e meio, quando ele a expulsou de casa em uma
noite, sem roupa, documentos, dinheiro nem nada. Dormiu uma noite na estação
de trem. Foi quando procurou o Centro de apoio às mulheres migrantes e vítimas
de tráfico de mulheres - FIZ. Por estar casada com um italiano, ela tinha permissão
para trabalhar na Suíça. Com a separação, o pedido de permissão teria que ser
analisado. Ela queria o divórcio, ele não. Ele queria ficar com todo o dinheiro do
trabalho dela. Chegou a levá-la para uma casa de prostituição, a força, e pagar um
“brucutu” para ficar na porta vigiando-a. Ela conseguiu fugir novamente. “Fiquei
craque em pular janelas”. Ela disse que aprendeu alemão e italiano. Chegou a tra-
balhar no setor de limpeza do aeroporto de Zurique e em um hotel Hilton. Contou
de seu trabalho em um restaurante. Falou com paixão sobre as comidas que fazia
e que todos gostavam, ela tinha formação em culinária no Brasil. Depois do pedido
de separação, ela não podia sair do país, pois tinha um processo em andamento
e não podia ficar oficialmente no país, trabalhando. Por isso, abandonou esse em-
prego formal. Chegou a ficar um mês em um abrigo para mulheres. Depois, conse-
guiu um trabalho em uma indústria de alimentos. Perguntei a ela se o fato de não
ser suíça, de ser estrangeira, deixou o processo de separação mais demorado.
“Se eu fosse suíça...” (e fez um gesto indicando rapidez). Falou sobre a Langstras-
se, rua de Zurique reconhecida pela prostituição. “É nessa mesma rua onde fica o
comércio de produtos brasileiros. Dá para comprar o nosso arroz, peças para fei-
joada. Uma brasileira andando ali, a cada minuto um homem pergunta: quanto é?
Ali é o paraíso e o inferno”. Disse que apesar de não ganhar muito, vivia muito bem
na Suíça, pois os alimentos e bens materiais são acessíveis mesmo para quem é
pobre. Conseguia enviar dinheiro para a família. Tem um filho de nove anos, que

9 Termo que significa quando alguma organização internacional, ou mesmo o governo federal do
país estrangeiro que a abrigava, paga sua passagem de volta ao país de origem.

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vive com a tia, sua irmã. Falava com o menino diariamente pelo skype. Contou que
um dia, saindo do hotel onde trabalhava, o ex-marido a atacou, roubou sua bolsa
e bateu nela. Ela ligou para o telefone de emergência do Consulado brasileiro e foi
muito mal atendida. Disse que todas as vezes que precisou do consulado, foi aten-
dida com grosseria. Saímos da área externa e fomos para a lanchonete dos funcio-
nários para beber um suco e comer alguma coisa. Lá, continuamos conversando.
Ela contou que em sua cidade natal os aliciadores ficam rondando as pessoas nas
ruas, em bares e restaurantes para descobrir quem está desempregada e aplicar o
golpe. Foi assim que a rede de aliciadores a contatou. Contou também que houve
um problema no atendimento do FIZ em um primeiro momento, pois a funcionária
quis fazer papel de polícia e acabou colocando o ex-marido em alerta. Ela não teve
direito a pegar suas coisas na casa dele e o processo relativo ao pagamento de
pensão ainda está rolando. Ela entrou em contato com a OIM através de um pastor
da igreja batista que frequentava. “Eu não tenho nenhuma religião específica, mas
busco quem fale de deus como eu acredito”. O pastor trabalha com migrações.
“Deveriam ter me tratado bem. Eu sou brasileira e não quis ser prostituta, deveriam
ter me tratado diferente”.
Enquanto conversamos, ela parou para tomar remédio. Disse que estava to-
mando medicamentos fortes, antidepressivos. Sua médica não queria que ela sa-
ísse da Suíça, pois precisava continuar o tratamento, no entanto a migração suíça
insistiu em seu retorno. Contou que por conta de tudo que o ex-marido fez, ela
tentou suicídio três vezes e chegou a ser internada. Disse também que a FIZ pa-
gou sua passagem, pois havia uma questão entre cantões (estados, divisão polí-
tico territorial do país) que atrasou a solução pela OIM (Organização Internacional
para as Migrações). Pelo que contou, o governo suíço errou muito com ela. Sobre
o erro da FIZ no primeiro atendimento, recebeu aproximadamente mil reais de
ressarcimento. O segundo atendimento foi positivo. Não ficou claro se ela havia
feito denúncia contra a mulher que a levou, mas contou que depois de fugir, ajudou
outras mulheres a fugirem também.
A pesquisadora Saskia Sassen (2003) fez dura crítica à invisibilidade imposta à
dinâmica da feminização migratória em sua articulação com a economia capitalista
global. Os dados do crime: “quatro milhões de mulheres traficadas para a indústria
do sexo e sete milhões de dólares de benefícios para as organizações criminais”.
E isso é lucro aos agenciadores deste fenômeno de gênero massificado. Asso-
ciados, ao crescente fenômeno da feminização da força de trabalho nos países
periféricos, bem como o da feminização da pobreza, o Tráfico de Pessoas para fins
de Exploração Sexual do Trabalho é infelizmente mais um dado da violência não
combatida dos Estados. Uma violência interseccionada por gênero, cor, etnias, e
classe social.
Finalmente, o quinto caso, é de uma mulher Trans, Giovana de 27 anos, na-
tural de Lagartos-SE. Contou que foi para a Europa primeiramente para a Itália,
onde teve um relacionamento amoroso com um senhor casado que a bancava.
Disse que um dia ele tirou o passaporte dela e demonstrou muito ciúme, o que a
deixou assustada. Por conta disso, pediu a ele uma passagem para viajar por um
dia à Espanha, onde visitaria uma amiga. Viajou e nunca mais voltou para a Itália.
Já na Espanha, denunciou situação de tráfico de pessoas para a polícia, mas não
foi reconhecida como vítima. Ela temia pela segurança de sua família e disse que

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queria tirar toda a família da sua pequena cidade.
Mencionou a denúncia a uma ex-patroa de casa de prostituição e narrou ter
sido aliciada, reconhecendo-se vítima de tráfico. Afirmou que se envolveu em mui-
tas brigas com outras trans como forma de sobreviver ao trabalho sexual nas ruas,
mencionando inclusive agressão física. Disse que quando viveu na Itália afirmou
ter sido apoiada pela Cruz Vermelha, e que apesar de ter tido apoio quando neces-
sitou “eu voltei a ser puta, voltei para as ruas, mas eles me ajudaram muito quando
precisei. Cheguei a doar dinheiro para eles”.
Durante o atendimento na sala do Posto Humanizado afirmou estar com uma
vertigem, no entanto, recusou-se a voltar ao Posto Médico conforme sugestão
da equipe. Disse que já havia passado por situação semelhante (referindo-se ao
inchaço) e atribuiu ao stress e as inúmeras vezes que teve que subir de descer
escadas nos vinte dias que ficou presa no Centro de Migração em Madrid. Sobre
o inchaço: “eu tenho silicone no corpo e ele está descendo, mas não está doendo.
O remédio está fazendo efeito. Outra vez fiquei assim também e meu namorado e
minha sogra cuidaram de mim”. Revelou que foi presa seminua na casa de prosti-
tuição que trabalhava.
O cenário que Giovana descreve de seu cotidiano no trabalho com a prosti-
tuição, as violências, as agressões, são fatores que necessariamente devem ser
interseccionado com seu gênero, a prostituição como um trabalho massivamente
feminino. Ou ainda, a exata questão de sua identidade de gênero apresentando
outras vulnerabilidades no campo da saúde pública, como as interferências que
fez no corpo – o silicone injetado, que em sua forma mais barata são aplicadas
sem o envoltório chamado implante, apenas em líquido, e que por inúmeros mo-
tivos pode percorrer o corpo, causar infecções, necrosar pele e músculo, assim
como obstruir vasos sanguíneos ou levar a óbito.

Notas Finais

Se faz necessário pontuar, que o crescente fluxo migratório de mulheres e


trans para trabalhar como domésticas e prostitutas em países centrais do capital é
consequência direta do desenvolvimento desigual promovido pelo capitalismo ne-
oliberal. Podemos analisar que países periféricos do sistema econômico – que em
grande maioria são os países originários da migração – além de não darem acesso
ao trabalho e emprego para todo o conjunto de mulheres e trans, principalmente
de classes sociais mais baixas, ainda proporcionam uma vida não digna, com a fal-
ta de política pública ou dificuldade na aplicação jurídica punitiva aos inúmeros ca-
sos de violência de gênero, como a violência contra a mulher, violência doméstica,
transfobia e feminicídio. Fatores que os estudos de migração de gênero apontam
como grandes indutores da migração de mulheres e trans.
As camadas de sobreposição da violência exercida pelos Estados são varia-
das, tanto o Estado de origem que “expulsa e repele” pela falta de oportunidade
em oferecer vida digna, como pelo Estado de destino que além de tratar a migrante
irregular, ou indocumentada, como infratora da lei, destina às migrantes regulares
trabalhos de baixíssima qualificação e de frágil controle e fiscalização de órgãos
da legislação trabalhista. Acrescentamos a isso a interseccionalidade das vulne-

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rabilidades, porque este Estado de destino também pode vilipendiar os direitos
humanos desta parcela da população, quando as julgam menos dignas de migrar,
por sua raça, etnia, gênero e trabalho, e, assim, barram sua migração.

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Recebido: 10 ago., 2017.
Aceito: 17 ago., 2017.

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Um “brasilianista italiano”:
entrevista com Angelo Trento
Carla Fernandes da Conceição1
João Paulo da Silva2

Apresentação

Angelo Trento é professor aposentado de História da América Latina na Univer-


sidade de Nápoles “Istituto Orientale”. Sendo referência internacional dos estudos
sobre a imigração italiana, possui inúmeras obras publicadas, tendo pesquisado
diversos temas como a imigração italiana no Brasil de 1850 a 1970, o fascismo e a
história da América Latina. Atualmente, dedica-se à pesquisa e participa do grupo
de pesquisa no CNPq TRANSFOPRESS Brasil - Grupo de Estudos da Imprensa
em Língua Estrangeira no Brasil.

O senhor é graduado em Filosofia, mas que sua área de trabalho é, sobretu-


do, a História da América Latina. Gostaríamos de saber o que o levou a se in-
teressar pelo estudo de História e por que, em específico, da América Latina?

Para falar a verdade eu sempre me interessei por História, desde os tempos


do ginásio - que acredito não se chamar mais assim. Inclusive por causa de uma
professora que me forneceu instrumentos para conhecer e, por conseguinte, gos-
tar de História. Mas quando eu comecei a cursar a Faculdade, na época – e estou
falando do ano 1960, não existia aqui na Itália, uma Faculdade de História. Assim,
para poder ter um percurso que fosse mais caracterizado nesse plano a única op-
ção era se matricular em Filosofia, e isso, em parte, dependia do fato de que uma
das saídas profissionais dos alunos formados nessa Faculdade era o ensino nos
colégios - melhor seria utilizar o termo escolas, pois na Itália quase não existem
institutos particulares de instrução e a educação é quase que totalmente pública
(por volta de 90-95%) mesmo a universitária. Foi por isso que eu me graduei em
Filosofia.

O tema da imigração italiana para o Brasil é recorrente em seus escritos.


Como e por que o senhor começou a se interessar pelo estudo da imigração
italiana no Brasil?

Quando eu iniciei meu percurso acadêmico, logo voltei meu interesse para o
estudo da América Latina em geral e, depois de pouco anos, do Brasil em especial,

1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São


Carlos – UFSCar. Contato: carlafcon@gmail.com

2 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São


Carlos – UFSCar, bolsista CAPES. Contato: jps.historia@gmail.com

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mesmo não negligenciando outros países e situações que mais chamavam minha
atenção, por curiosidade ou - e era o caso mais frequente - por afinidade política.
Foi esta última a razão que me levou a escrever, já década de 90, um livro de 130
páginas sobre a Revolução Cubana, que teve um razoável sucesso, como aliás
demonstra o fato de ter sido traduzido na França, na Bélgica, na Inglaterra, nos
Estados Unidos, na República Tcheca e até na China. Minha propensão a pesqui-
sar a imigração italiana para o Brasil manifestou-se a partir do começo da década
de 80 e daí por diante foi um tema com o qual fiquei sempre mais comprometido,
tendo aprofundado nesse últimos 35 anos diferentes aspectos desse fenômeno,
das ocupações rurais às urbanas, das escolas às associações (principalmente de
mútuo socorro), do exílio republicano antes da unificação italiana à presença da
Igreja nas coletividades (sobretudo nas mais fechadas, como as do Rio Grande do
Sul), da procedência regional ao movimento operário, chegando até o fascismo e
a luta anti-fascista, deixando também algum espaço ao segundo pós-guerra, todos
temas que toquei em especial no caso da imigração italiana no Estado de São
Paulo. O porquê desse meu interesse depende principalmente da fascinação que
começou a exercer em mim a tarefa de dar uma voz aos que não tinham voz, de
contar a história dos que não tinham história.

Você possui parentes/familiares que fizeram o percurso e chegaram “do ou-


tro lado do Atlântico”?

Eu próprio cheguei do outro lado do Atlântico, ainda criança, com 12 anos, de-
sembarcado em 1954 na cidade de São Paulo, onde meu pai trabalhava na Alita-
lia. Foi uma experiência muito importante para mim, apesar de ter ficado no Brasil
menos de 6 anos (voltei para Roma no começo de 1960 para cursar a Faculdade),
pois deu-me uma grande abertura mental e uma atitude à convivência e ao inter-
câmbio cultural, mesmo tendo frequentado o Colégio Dante Alighieri, que, naque-
les anos, já era um instituto totalmente brasileiro e hospedava alunos de diferentes
nacionalidades, se bem que com preponderância de italianos e descendentes.

O professor se considera um brasilianista? Por quê?

Com certeza, eu acredito ser um brasilianista, aliás um dos pouquíssimos bra-


silianistas italianos e não só porque estudo a imigração do meu país no vosso
(mas afinal posso até dizer que o vosso chega a ser o meu, pois lá eu vivi os anos
da minha formação, que são os mais importantes da vida de cada um). Eu sin-
to-me brasilianista porque foi ao Brasil que dediquei grande parte da minha vida
profissional, escrevi artigos e livros sobre a sua história, principalmente dos dois
séculos posteriores à independência.

Como o professor analisa as mutações sofridas pela imigração ocorridas


nos séculos XIX, XX e XXI? Qual(is) seria(m) as principais diferenças da imi-
gração entre estes séculos?

Antes de qualquer outra consideração, falando do Brasil mas também de pra-


ticamente todas as metas emigratórias, está muito claro que o mais fácil a ser

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detectado é a composição profissional dos imigrantes (ou pelo menos das na-
cionalidades que chegaram mais numerosas), seu nível de profissionalidade, o
alcance dos seus estudos, posto que um certo número tivesse um qualquer tipo
de educação na própria pátria. Justamente pelo fato do Brasil pagar a passagem
principalmente a famílias camponesas – seja para poder utilizá-las nos núcleos
coloniais espalhados na área meridional do país, mesmo que não somente lá,
seja, a partir da proclamação da República ou do domínio econômico e político da
oligarquia do café e, por conseguinte, dos Estados de São Paulo e de Minas Ge-
rais – esta imigração – dirigida principalmente a partir do início da década de 90 do
século XIX para a área mais rica do país e a que mais podia sustentar as despesas
para custear a chegada gratuita de imensos contingentes de mão de obra para
as fazendas de café – era em sua grande maioria rural já na origem, mesmo que
houvesse exceções, raras no início e mais frequentes a partir do começo do século
XX ligadas a pessoas que provinham de experiências urbanas, geralmente do sul
da Itália ou da Toscana: artesãos, comerciantes, mestres de obras e até mesmo
intelectuais. Com o passar do tempo, esse contingente foi aumentando de ma-
neira muito apreciável, conglobando não somente os que chegavam nas cidades
brasileiras sem ter passado antes pela fazenda, mas também um grande número
de imigrados que, no final de cada ano agrícola, abandonavam o mundo do café,
por causa das difíceis condições de vida e de trabalho que nele encontravam e
da ainda vigente mentalidade escravocrata de fazendeiros, administradores e ca-
pangas. Esses contingentes repatriavam ou, mais frequentemente, instalavam-se
nos centros urbanos, cuja economia era ainda indefinida nos anos da imigração
massiva (pelo menos de italianos) e por isso mesmo eles não se puseram como
concorrentes dos trabalhadores locais, muitos dos quais haviam deixado há pouco
tempo sua condição escrava. É bem verdade que os imigrados também não ti-
nham grande familiaridade com os ofícios urbanos, mas é igualmente verdade que
a solidariedade étnica ou mesmo aldeana os levava a aprender o ofício em labora-
tórios artesanais de parentes, amigos ou simplesmente de patrícios. E quando isso
não era possível começavam a própria mobilidade social partindo dos degraus
mais baixos como foi o caso dos mascates, profissão por muito tempo monopoli-
zada pelos italianos e que era o primeiro passo para abrir uma lojinha – de secos
e molhados ou de qualquer outra coisa – numa qualquer cidadezinha do interior
paulista, mas idealmente em São Paulo. A partir da proibição emanada pelo go-
verno de Roma da emigração a passagem paga pelas autoridades brasileiras,
diminuiu cada vez mais a porcentagem de agricultores e trabalhadores braçais em
favor de uma composição profissional mais variada, incluindo proletariado fabril,
que, porém, muitas vezes entrou pela primeira vez numa fábrica justamente no
Brasil e principalmente em São Paulo. Junto com uma maior profissionalidade vai
aumentar também o número de imigrados que podiam se gabar de ter frequentado
a escola por algum tempo, até mesmo só o primeiro e talvez o segundo ano do
primário, mas com os anos esse número aumentou e aumentaram os anos de es-
tudo, chegando a alcançar o nível mais elevado de professionalidade no segundo
pós-guerra. Por fim, e sempre por simplificação, a partir de 1946 vai entrar no Bra-
sil uma nova imigração, com valores distintos dos que haviam chegado ainda no
século XIX e também nos primeiros 30 anos do século XX, pessoas, estas últimas,
que gloriavam-se muitas vezes de “ter feito a América” através de inúmeros sacri-

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fícios, trabalhando sem parar, engolindo sapos ou simplesmente recorrendo aos
costumeiros canais das migration chains, da solidariedade aldeana ou regional. A
nova imigração tinha horizontes culturais diferentes, reclamava direitos trabalhis-
tas, levava dentro de si uma imagem da Itália que pouco se adaptava à que era
interiorizada pela velha imigração. E não foi por um acaso que todas as formas
de vida coletiva da imigração, tão numerosas no passado (escolas, associações,
imprensa) não conseguiram reconquistar não digo as posições anteriores, mas
nem chegaram perto delas. Quanto à imigração mais recente, nesse caso não
somente no Brasil, mas no mundo em geral, o que mais chama a atenção são os
países de saída e de chegada. Entre os primeiros sobressaem os do continente
africano e principalmente os da faixa mediterrânea e os que são devastados pelas
guerras – a caráter religioso ou não – que num percurso odioso pelos seus custos
humanos e monetários suportados pelos interessados revezam na Europa, a partir
da década de 80, centenas de milhares de indivíduos que fogem dos massacres e/
ou da fome. Quanto à América Latina, o fluxo mais consistente é representado, já a
partir do imediato segundo pós-guerra, pelos mexicanos e por alguns vizinho cen-
tro-americanos nos Estados Unidos. Em ambos os casos, a resposta das áreas de
recepção tem sido de fechamento, bem mais evidente no caso da Europa, mais
ligada às conjunturas políticas no caso dos Estados Unidos. Em ambos os casos,
porém, essa atitude choca pesadamente com a total abertura do passado imigra-
tório dessas áreas (no caso europeu, principalmente da Inglaterra, da França e da
Alemanha). Quanto aos países de chegada, impressiona a mudança quase que
repentina da caracterização de alguns deles no cenário imigratório. O caso mais
evidente é justamente o da Itália, que, depois de ter espalhado mais de 20 milhões
de seus filhos em todos os continentes nos séculos XIX e XX, agora é receptora
de fluxos consistentes de imigrados do Oriente Próximo e da África, embora para
muitos deles o país mediterrâneo representa, nas intenções sempre mais difíceis a
serem realizadas, somente uma etapa de uma viagem mais longa, que tem como
meta final a Alemanha, a Inglaterra, a França e o norte da Europa.

Sobre as imigrações históricas para o interior de São Paulo entre a segunda


metade do século XIX e o início do século XX, mesmo que tenha entrado para
trabalhar nas lavouras de café um grande contingente de portugueses e es-
panhóis, a identidade italiana parece se sobressair na região. Na sua visão,
quais fatores causam essa invisibilidade dos portugueses e espanhóis e,
consequentemente, a construção de uma “italianidade” como uma espécie
de “tipo ideal” da identidade dos imigrantes em São Paulo, sobretudo no
interior?

O raciocínio é válido principalmente no que diz respeito aos portugueses, que


já na época colonial tinham como principal campo de negócios no Brasil o setor
comercial. Já os espanhóis não faltaram nas fazendas, mas justamente na época
que marca a passagem do trabalho escravo ao trabalho livre, isto é de 1887 a
1903, eles chegaram em número infinitamente menor daquele dos italianos (pouco
mais de 300.000 contra quase um milhão) e essas quantidades aumentaram só
nos anos seguintes até o começo da primeira guerra mundial. Foi por isso que os
proprietários da lavouras de café utilizaram principalmente italianos, mas manifes-

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tando preferências bem claras na escolha dessa mão-de-obra no que diz respeito
a sua proveniência regional, privilegiando a utilização de vênetos (e lombardos)
por causa de sua parcimônia, frugalidade e sobretudo docilidade (o que chegava
a ser fator básico nos primeiros anos de utilização do trabalho livre; e vênetos e
lombardos representaram, entre 1887 e 1902, quase 45% da imigração italiana no
Brasil). Como revés da medalha, eram contratados com muito menor entusiasmo
os que chegavam de regiões meridionais, considerados briguentos e sempre pron-
tos ao protesto, se bem que uma outra estratégia foi a de empregar italianos de
diferentes regiões para impedir que se unissem solidarizando entre eles, operação
bem difícil até mesmo por causa do fato que falavam diferentes dialetos e não se
entendiam.

A questão das possibilidades de ascensão social e de acesso à proprieda-


de rural dos imigrantes estrangeiros que chegaram a São Paulo no período
dos grandes fluxos migratórios é bastante controvérsia nos estudos sobre
o tema. Há duas interpretações: uma mais “clássica”, que sustenta que as
condições econômicas dos imigrantes e a conjuntura interna da região qua-
se sempre impossibilitavam a ascensão dos imigrantes; e outra que defende
que a conjuntura favoreceu a ascensão econômica e social do imigrante.
Como o senhor se insere nesse debate?

Eu insiro-me na linha traçada já no final da década de 60 por Michael Hall, isto


é na da negação que tenha havido um significativo percurso de ascensão através
de aquisições de terra no Estado de São Paulo, como aliás já era sugerido na épo-
ca pelos observadores e viajantes italianos no Brasil. Das estatísticas, infelizmente
incompletas mas das quais se servem também os historiadores que defendem
a tese da facilidade de acesso à terra, até 1920 os proprietários rurais italianos
representavam apenas 6,6% do total dos proprietários estaduais, por um total de
menos de 12.000 pessoas e normalmente tratava-se de propriedades menores do
que as pertencentes a brasileiros e também a outras nacionalidades. De qualquer
forma, a cifra total de proprietários até aquela data sempre foi excepcionalmente
baixa se comparada com o número de imigrantes entrados e o peso relativo dos
italianos na população total da região. Só com o passar dos anos vão aparecer os
grandes fazendeiros, cujo símbolo mais noto foi Geremia Lunardelli, “o rei do café”.
Diferente foi a situação nos núcleos coloniais principalmente do Rio Grande do
Sul, mas também de Santa Catarina, Paraná e até Espírito Santo, onde o acesso
à propriedade da terra fazia parte do contrato assinado pelo imigrante, que pagava
a prestações e a preços bastante baixos.

Quais as novas possibilidades teóricas e metodológicas no campo dos estu-


dos migratórios?

Eu acredito que o caminho que temos pela frente será o de aprofundar alguns
temas, por exemplo da organização interna das coletividades imigradas, de sua
participação à vida da sociedade receptora, isto é aprofundar tudo o que ilustre
que o caminho da identidade étnica (que foi, aliás, um valor difícil a ser interioriza-
do para essas grandes massas de desiguais que logicamente foram os imigrantes)

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não apresentou contradições ou, pior ainda, não se transformou em barreira a ati-
tudes que facilitaram a transnacionalidade. Acho também que, mais que enfrentar
temas que já foram bastante pesquisados, seria melhor aventurar-se em estudos
de microhistória, com todas as cautelas que isso requer.

O senhor tem observado alguma lacuna nesse campo de estudos no Brasil?

Eu acredito que os estudos migratórios fizeram importantes progressos no


Brasil, mas se tivesse que lamentar alguma coisa, lamentaria a falta de artigos e
principalmente livros que analisem a presença estrangeira em algumas situações
locais, apesar de sua consistência quantitativa. No caso da imigração, lamento a
falta quase total de pesquisas sobre os italianos no Rio de Janeiro e em Minas Ge-
rais, mas também no Espírito Santo, no Norte e Nordeste, e lamento a frugalidade
de estudos sobre o interior do Estado de São Paulo, mesmo não possuindo uma
fertilidade excepcional como no caso do Rio Grande do Sul.

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Migração haitiana: um estudo
etnográfico com crianças,
pais, professores em escolas
públicas de Sinop MT.
Ivone Jesus Alexandre1

Resumo
A pesquisa de doutorado em andamento “Crianças migrantes haitianas em Sinop/
MT: inserção nas instituições escolares” tem como objetivo compreender como
ocorre a inserção e socialização das crianças migrantes e haitianas nas institui-
ções escolares públicas de Sinop. Objetiva também analisar como as instituições
escolares recebem e percebem essas crianças; verificar as experiências viven-
ciadas por elas em relação às outras crianças/colegas, professores e gestores e
como os pais das crianças haitianas veem e percebem a escola. A metodologia
é qualitativa com desenho etnográfico para gerar dados através de observações
livres, entrevistas e depoimentos. O recorte temporal da pesquisa é a migração
de crianças que vieram com seus pais no ano de 2015 a 2016 para Sinop MT. Os
dados preliminares apontam que nas escolas, as crianças haitianas têm muitas
dificuldades com a língua portuguesa o que limita sua comunicação e interfere
na relação com os professores, colegas, aprendizagem dos conteúdos e na in-
ternalização das regras escolares. Os professores, em sua maioria, demonstram
preconceito racial de forma velada em seus discursos e em relação à origem dos
alunos. Para eles o Haiti é um país pobre e miserável, em consequências os hai-
tianos podem ser subalternos, sujos e “diferentes” em relação aos demais negros
brasileiros. Os pais das crianças haitianas valorizam a escola e os professores
dos seus filhos. Nas relações entre alunos o preconceito racial é mais perceptível
na fase da Educação Infantil, na faixa etária de 5 a 6 anos. Na fase dos 12 anos é
mais perceptível nas meninas do que nos meninos brasileiros.

Palavras-chave: Migração. Crianças. Pais. Professores

Abstract
The doctoral research in progress “Haitian migrant children in Sinop/MT: insertion
in school institutions” aims to understand how the insertion and socialization of the
migrant and Haitian children occurs in the public-school institutions of Sinop. It also
aims to analyze how school institutions receive and perceive these children; to
verify the experiences they lived by them in relation to the other children/colleagues,

1 Graduada em Pedagogia pela UNEMAT, Mestre em Educação pela UFMT e cursando douto-
rado em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos. Professora Assistente na área de
Metodologia de Ensino na Universidade Estadual de Mato Grosso. Email: jesusalexandre.ivone@
gmail.com

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teachers and managers and how the Haitian children parents’ see and perceive
the school. The methodology is qualitative with ethnographic design to generate
data through free observations, interviews and testimony. The temporal cut of the
research is the migration of children that came with their parents in the years of 2015
to 2016 to Sinop MT. Preliminary data point that in schools, Haitian children have
many difficulties with the Portuguese language, which limits their communication
and interferes with the teachers, colleagues, content learning and internalization of
school rules. Teachers, for the most part, show racial prejudice in a veiled way in
their speeches and in relation to the origin of the students, for them Haiti is a poor
and miserable country, in consequence the Haitians may be subaltern, dirty and
“different” in relation to the other Brazilian blacks. Parents of Haitian children value
the school and teachers of their children. In relations between students, the racial
prejudice is more noticeable in the phase of Early Childhood Education, in the age
group of 5 to 6 years. In the 12-year phase, it is more noticeable in girls than in
Brazilian boys.

Keywords: Migration. Children. Parents. Teachers.

1. Introdução

A pesquisa em andamento “Crianças migrantes haitianas em Sinop/MT: inser-


ção nas instituições escolares” do programa de pós-graduação em Sociologia da
universidade federal de São Carlos se insere na linha de pesquisa Sociologia da
Infância e tem como orientadora a professora Dra Anete Abramowicz.
Nesse texto apresento dados parciais da pesquisa que envolve a migração
em Sinop, especificamente a inserção das crianças haitianas em quatro escolas
públicas da cidade. O recorte temporal é a migração de crianças que vieram com
seus pais no ano de 2015 a 2016.
A questão que norteia a pesquisa é saber qual o impacto que a presença e a
inserção das crianças haitianas trazem para o ambiente escolar.
O objetivo da pesquisa é compreender como ocorre a inserção e socializa-
ção das crianças migrantes haitianas nas instituições escolares públicas de Sinop.
Pretende também analisar como as instituições escolares recebem e percebem
essas crianças; verificar as experiências vivenciadas por elas em relação às outras
crianças/colegas, professores e gestores e como esse grupo de pais das crianças
haitianas veem e percebem a escola.
Para atender o propósito da pesquisa questiono como é o processo de recep-
ção das escolas para essas crianças que vêm de um outro país e falam outra lín-
gua? Quais as experiências que crianças haitianas vivenciam na creche e escola?
Quais as experiências das crianças haitianas na escola? Como as crianças hai-
tianas são percebidas no contexto escolar pelos colegas, professores e gestores?
Como os pais das crianças haitianas veem a escola?
A pesquisa tem abordagem qualitativa através da perspectiva etnográfica onde
os dados foram gerados através de observações livres, depoimentos, conversas
informais e entrevistas com os alunos haitianos, com seus pais, com os professo-

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res e gestores escolares.
Os dados foram registrados em diário de campo digital, onde anotamos as
impressões dos sujeitos da pesquisa durante depoimentos e entrevistas. Um re-
curso utilizado foi o gravador e o aplicativo whatsapp para registro de conversas e
anotações da pesquisa.

2. Discussão teórica

O texto discute sobre as crianças migrantes haitianas em Sinop/ MT do projeto


de tese em desenvolvimento “Crianças migrantes haitianas em Sinop/MT: inserção
nas instituições escolares”. O interesse surgiu a partir do meu encontro com uma
criança haitiana em uma escola de Educação Infantil.2
Nesse sentido, fiquei instigada em saber se havia mais crianças nas escolas e
se havia como estava sendo a inserção delas nas instituições escolares? A partir
deste contexto, passei a buscar dados sobre crianças migrantes do Haiti e também
saber sobre a existência de mais crianças em outras instituições em Sinop/ MT.
O interesse no tema não se configura somente por ser criança e migrante3,
mas também por ser estrangeira e negra em um país que teve uma migração se-
letiva4 e em uma cidade como Sinop, que foi pensada e planejada para brancos
sulistas com determinado perfil racial, distante do padrão europeu, as relações
raciais possivelmente são atravessadas e racializadas5.

A ideia de “racialização” ou “formação de raça” se baseia no argu-


mento de que a raça é uma construção social e categoria não universal
ou essencial da biologia. Raças não existem fora da representação. Em
vez disso, elas são formadas na e pela simbolização em um processo de
luta pelo poder social e político. O conceito de racialização refere-se aos
casos em que as relações sociais entre as pessoas foram estruturadas
pela significação de características biológicas humanas, de tal modo a
definir e construir coletividades sociais diferenciadas (SILVERIO, TRINI-
DAD, 2012, p.910)

Em minha dissertação de mestrado pesquisei crianças negras, na linha de


pesquisa Relações Raciais e Educação, constatei que o ambiente escolar é hostil
para as crianças negras. Nesse espaço, ela enfrenta diariamente o racismo explí-
cito e implícito, além de ouvir insultos raciais, também é vítima dos mecanismos

2 Portaria Nº067/2016 que dispõe sobre as denominações das unidades de Educação Infantil do
Munícipio.

3 [...] o uso do termo migrante (no lugar de imigrante) e migração (no lugar de imigração) nos
permite enfatizar as dimensões múltiplas tanto de movimento, trânsito e fluidez quanto de tempo-
ralidades e motivações que marcam as migrações contemporâneas e que podem variar em função
de diferentes fatores políticos, econômicos e sociais (COGO E BADET, 2013, p. 12).

4 SEYFERTH, Giralda. Colonização, imigração e a questão racial no Brasil. Revista USP. São
Paulo, n.53, março/maio 2002. p. 117-149.

5 SILVERIO, Valter. Ação Afirmativa e o combate ao racismo institucional no Brasil. Cadernos de


Pesquisa, noº 117, p. 219-246, 2002.

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intra e extraescolar que opera dificultando sua permanência e sucesso escolar. O
Insulto racial é definido como “um ato, observação ou gesto que expressa uma opi-
nião bastante negativa de uma pessoa ou grupo [...].” (FLINN apud GUIMARÃES,
2002, p.171).
As relações raciais no Brasil são complexas e apresentam características es-
pecíficas. O racismo no país se manifesta de forma obtusa, camuflada, na maioria
das vezes não se explicita abertamente.
Constatei com as observações certa afetação ou mesmo cuidado ao se referir
às crianças haitianas, isso em função da cor delas. Os professores não assumem
ser racistas, não falam sobre a cor e não chama ninguém de preto, denomina-os
de “moreninhos”.
Uma das principais características do racismo no Brasil é o preconceito de
marca, definido por Nogueira (2006, p.299) como etiqueta das relações raciais.

Quanto à etiqueta: onde o preconceito é de marca, a etiqueta de rela-


ções inter-raciais põe ênfase no controle do comportamento de indivíduos
do grupo discriminador, de modo a evitar a susceptibilização ou humi-
lhação de indivíduos do grupo discriminado; onde é de origem, a ênfase
está no controle do comportamento de membros do grupo discriminado,
de modo a conter a agressividade dos elementos do grupo discriminador.
Assim, no Brasil, não é de bom tom “puxar o assunto da cor”, diante de
uma pessoa preta ou parda. Evita-se a referência à cor, do mesmo modo
como se evitaria a referência a qualquer outro assunto capaz de ferir a
susceptibilidade do interlocutor – em geral, diz-se que “em casa de enfor-
cado, não se fala em corda”. Em contraposição, em qualquer contenda
com uma pessoa de cor, a primeira ofensa que se lhe assaca é a referên-
cia a sua origem étnica.

Ao me deparar com crianças vindas do Haiti e considerando as relações raciais


no Brasil, onde o racismo ocorre principalmente em função da cor6 passei a pensar
sobre o processo migratório de haitianos que chegam ao Brasil com seus filhos.
Pessoas que vem de uma realidade diferente, de um país pobre e devastado pelo
terremoto de 2010, são negros com costumes e uma língua diferente.

A língua oficial no Haiti desde 1987 é o crioulo haitiano (também co-


nhecido como Kreyòl, em Francês). Kreyòlé é falado por 100% da popula-
ção, enquanto 8-10% dos haitianos consegue falar francês. Como todos
os crioulos baseados em francês, Kreyòl é uma mistura de francês e das
línguas africanas que os haitianos falam. (DUTRA e GAYER, 2015, s/n)

Pesquisas (GINSBERG, 1955; ROSEMBERG, 1991; CAVALLEIRO, 2000; OLI-


VEIRA, 2004; FAZZI, 2004; CARVALHO, 2005; ALVES E SOARES, 2002, SAN-
TIAGO, 2014) apontam que desde a Educação Infantil, as crianças negras são

6 Cor neste trabalho tem como parâmetros as categorias de cor utilizada pelo IBGE e também
dos traços fenotípicos. A classificação por cor [...] teve como critério não somente a cor da pele,
mas é um conceito extensivo, que considera também a textura dos cabelos, a forma do nariz e a
cor e espessura dos lábios (OLIVEIRA, 1999, p.48).

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vítimas do preconceito racial nas creches e pré-escolas. Elas vivenciam diferentes
tipos de discriminação racial. Para Abramowicz, Oliveira e Rodrigues (2010, p.76),
na escola “há uma mecânica racista que funciona em toda engrenagem escolar”.

A escola se funda em uma imposição de um saber, de uma racionali-


dade, de uma estética, de um sujeito epistêmico único, legitimado como
hegemônico, como parâmetro único de medida, de conhecimento , de
aprendizagem, e de formação.. A partir destes parâmetros desses parâ-
metros únicos de medida e da avaliação levam a classificar o outro como
inferior, incivilizado, fracassado, repetente bárbaro, etc.(ABRAMOWICZ,
RODRIGUES e CRUZ, 2011, p.94)

Na escola, independente da modalidade, as relações das crianças negras são


conflituosas em função da sua cor e dos seus traços fenotípicos.
Para saber sobre pesquisas com crianças e migração iniciei primeiramente
pela revisão bibliográfica, pois a produção intelectual dos programas de mestrados
e doutorados serviria como base teórica para a produção da tese.
Não encontrei registro de pesquisas sobre crianças migrantes haitianas em
instituições educacionais no Brasil no entanto, encontrei pesquisas nas quais o
Brasil é o país de origem dessas crianças migrantes, um exemplo são as crianças
que vão para o Japão (NOZAKI, 2015).
Em relação a migração internacional, em que o Brasil é o país receptor, nes-
se caso, as crianças bolivianas, pomeranas, haitianas e crianças migrantes em
geral, tanto as migrantes de segunda geração, isto é, crianças que nasceram no
país receptor quanto as crianças que vieram com seus pais do país de origem,
denominadas de geração 1/57 (OLIVEIRA, 2014). Os dados ainda são incipientes
necessitando refinar a busca.
Os estudos enfocam a situação da criança imigrante, suas dificuldades com
a língua, e, consequentemente com aprendizagem e aproveitamento escolar. Os
dados revelam sobre as interações entre crianças migrantes e seus pares; e com
professores no espaço escolar. As interações das crianças migrantes com as não
migrantes são perpassadas por processos de tensões e conflitos em função da
condição de estrangeiro, as dificuldades com a língua influenciam no processo de
socialização.

3. Metodologia da pesquisa

O conceito de infância utilizado será em uma acepção ampla, a mesma utiliza-


da por Florestan Fernandes (2004) em sua pesquisa com crianças e seus pares
em seu trabalho monográfico sobre o folclore “As trocinhas do Bom Retiro”. O ter-
mo infância neste trabalho será para designar crianças em geral.
A pesquisa pretende saber como está ocorrendo a inserção das crianças hai-

7 OLIVEIRA, Gabriela Camargo de. A segunda geração de latino-americanos na cidade de São


Paulo: a questão do idioma. – REMHU- Rev. Interdisciplinar Mobilidade Humana, Brasília, Ano
XXII, n. 42, p. 213-230, jan./jun. 2014.

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tianas nas escolas em Sinop, MT. A questão que norteia a pesquisa é saber qual
o impacto que a presença e a inserção das crianças haitianas trazem para o am-
biente escolar. A pesquisa também tem por objetivos analisar o processo como as
instituições escolares recebem e percebem essas crianças; verificar as experiên-
cias vivenciadas por elas em relação às outras crianças/colegas, professores e
gestoras e verificar como os pais das crianças haitianas percebem a escola bem
como os professores e gestores escolares.
Para atender o propósito da pesquisa questionei como é o processo de recep-
ção das escolas para as crianças haitianas que vem de um outro país e falam ou-
tra língua? Quais as experiências que elas vivenciam nas instituições escolares?
Como são percebidas no contexto escolar pelos colegas, professores, gestores?
Como os pais das crianças haitianas percebem as escolas que seus filhos fre-
quentam?
A proposta metodológica para geração e análise dos dados se configura como
qualitativa:

A pesquisa qualitativa é um meio para explorar e para entender


o significado que os indivíduos ou os grupos atribuem a um proble-
ma social ou humano. O processo de pesquisa envolve as questões
e os procedimentos que emergem, os dados tipicamente coletados
no ambiente do participante, a análise dos dados indutivamente
construída a partir das particularidades para os temas gerais e as
interpretações feitas pelo pesquisador acerca do significado dos
dados (CRESWELL, 2010, p.26).

Segundo Creswell (2007b apud CRESWELL, 2010, p.37), a análise qualitativa


busca através da abordagem etnográfica estudar “[...] durante um período de tem-
po prolongado, coletando principalmente dados observacionais e de entrevistas”
Para coletar os dados fiz observações livres, entrevistas e conversas informais
com os alunos haitianos, pais, professores e gestores.
As observações livres permitiram aproximar das vivências das crianças hai-
tianas nas escolas. Para Corsaro (1985 apud CORSARO, 2005), ser aceito no
mundo da criança é um desafio por causa das diferenças etárias, formas de ma-
turidade da comunicação e da cognição. A partir do levantamento do número de
crianças haitianas existentes nas escolas de Sinop contatamos as secretarias de
educação e assessorias para a autorização da pesquisa. Através das escolas me
aproximei dos pais desses alunos para pedir autorização das entrevistas, “[...] a
entrevista é considerada uma interação, uma troca de ideias, uma troca de signi-
ficados, em que várias realidades e percepções são exploradas e desenvolvidas”
(BAUER e GASKAEL, 2003, apud PINTO, 2015, p.73).
Essas entrevistas foram gravadas e estão sendo transcritas. O uso do grava-
dor é indicado quando o estudo envolve entrevistas extensas ou quando a entre-
vista é uma das técnicas principais do estudo (BOGDAN e BIKLEN, 1994).
Nessa pesquisa também faço uso doe aplicativos whatsApp, pois é uma fer-
ramenta muito utilizada pelas pessoas para se comunicarem, passar informação e
estabelecer diálogos. Sobre o uso da tecnologia para diferentes fins, e em nosso
caso levantamento de dados, verifiquei “[...] os avanços dos meios de comunica-

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ção acabam por criar novas formas de agir e interagir e também faz nascer novos
tipos de relacionamentos sociais e a internet passa a produzir essa nova dinâmica
social” ( GUIMARAES, 2017, p.80).

Resultados preliminares

A migração internacional é hoje uma realidade em diferentes estados do Bra-


sil, portanto, pensar políticas educacionais que inserem as crianças vindas de um
outro país nas escolas é fundamental.
É um desafio para as instituições educacionais que as recebem pensar pro-
postas pedagógicas que respeitam a origem, as diferenças culturais e religiosas
dos haitianos que aqui chegam.
Os dados parciais mostram que as crianças haitianas têm muitas dificuldades
em relação à língua portuguesa e isso prejudica a comunicação com os professo-
res e colegas, pois os mesmos não compreendam as regras escolares, que ainda
são rígidas em nossas escolas, isso faz com que os mesmos sejam punidos não
por indisciplina para por transgredir as regras, por exemplo, não saber pedir para
ir ao banheiro.
As crianças haitianas, na escola, sofrem preconceito racial e isso se difere de
uma sala para a outra. Na sala da Educação infantil, na faixa etária dos 5 anos, o
preconceito e mais explícito. As crianças se negam a sentar perto, abraçar, tocar e
brincar com as crianças haitianas, não porque sejam migrantes, mas porque são
de pele negra e cabelos afros. No Ensino Fundamental esse preconceito racial é
mais velado, se negam a fazer trabalho em grupo e a sentar- se perto dos meninos
haitianos, isso ficou visível no comportamento das meninas.
Em relação a serem crianças migrantes, os colegas gostam de brincar com
os meninos haitianos em relação aos significados das coisas no Brasil e com as
diferenças da língua.
Nos professores e gestores observei um preconceito racial velado em função
da cor e da origem dos haitianos, no discurso dos mesmos ficou evidente um ima-
ginário do Haiti como um país pobre e miserável.
Em relação aos pais, os discursos dos professores faziam referência a serem
pobres, subalternos e no caso específico das mães haitianas, não serem capazes
para o serviço doméstico e serem submissas aos maridos e atrasadas cognitiva-
mente.

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__________________
Recebido: 11 jul., 2017.
Aceito: 24 jul., 2017.

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Quando Uma Aparente Saída
ao Capitalismo é a Concreta
Individualização: a Subjetividade de
Bob Dylan na “Ruptura” com o Folk
(1962-1966)1
When an apparent exit to capitalism is the concrete
individualization: The Bob Dylan’s subjectivity in a
“rupture” with folk (1962-1966)
Filipe Moreno Horta2

Resumo
Este trabalho pretende analisar o contexto e o evento de 25 de julho de 1965,
quando Bob Dylan tocou com uma guitarra e acompanhado de uma banda elétrica
durante o Newport Folk Festival. A hipótese central deste artigo é de que o capita-
lismo pode oferecer aparentes saídas de fuga ao indivíduo, porém, tais podem ser
representadas como uma pintura de Escher, na qual o indivíduo, mesmo saindo
de um plano, permanece no mesmo circuito retroalimentando processos aos quais
está submetido historicamente e materialmente. Este caso empírico permite a ob-
servação de como a busca de si, o desejo por uma produção própria e em romper
com laços limitantes de produção provocaram maior individualização, isolamento e
maior capitalização sobre a produção artística justamente nos anos considerados
como de ruptura.

Palavras-chave: alienação, materialismo, subjetividade, Bob Dylan, Karl Marx.

Abstract
This work intends to analyze the context and the event of July 25, 1965, when Bob
Dylan played with an electric guitar and accompanied by an electric band during the
Newport Folk Festival. The central hypothesis of this article is that capitalism can
offer apparent exits to the individual, but these can be represented as an Escher’s
painting, in which the individual, even out of a plane, remains in the same feeding

1 Este artigo é fruto de uma pesquisa paralela que vem sendo feita desde 2012, inicialmente
incentivada e guiada por Frédéric Vandenberghe (IESP/UERJ). O primeiro esboço deste texto re-
cebeu importantes considerações de Maria Aparecida de Moraes e Silva, a quem agradeço. So-
mam-se a estes dois, Gabriel de Santis Feltran, que também vem dialogando com esta iniciativa
acadêmica nos últimos anos.

2 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São


Carlos e pesquisador do NaMargem - Núcleo de Pesquisas Urbanas (UFSCar). Mestre em Socio-
logia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ). E-mail: hortafilipem@gmail.com.

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back circuit processes to which it is subjected historically and materially. This
empirical case allows the observation of how the search for yourself, the desire
for one’s own work and to break with the limiting production ties provoked greater
individualization, isolation and capitalization on the artistic production precisely in
the years considered as his rupture.

Keywords: alienation, materialism, subjectivity, Bob Dylan, Karl Marx.

Introdução

Eles mantiveram o plano em segredo até subirem ao palco. Dylan


vestido numa camisa cor de laranja de matador e um casaco
de couro preto, carregando uma guitarra. No momento em que
a banda tocou os primeiros acordes de uma versão elétrica de
“Maggies’s Farm”, a plateia entrou em estado de choque. Eu ouvi
uma incrível hostilidade verbal vinda de todas as direções a minha
volta. Quando a banda terminou de tocar “Farm”, houve poucos
aplausos, reservados, e um turbilhão de vaias. Quando Dylan e a
banda passaram a tocar “Rolling Stone”, o público ficou ainda mais
agitado: “Toque música folk! Vendido! Isso é um festival de folk!
Suma com essa banda!” [...]. Dylan desceu do palco com a banda
seguido por um longo e desajeitado silêncio [...] Quando Bob vol-
tou sozinho ao palco, ele se deu conta de que não estava com a
gaita certa [...] Sob gritos pedindo “Tambourine Man”, Dylan disse:
“Está bem, vou tocar essa para vocês”. A canção mais antiga teve
um efeito paliativo sobre a plateia e foi aplaudida de forma efusiva.
Então Dylan tocou “It’s All Over Now, Baby Blue”. A letra adquiriu
um novo sentido, como se ele estivesse cantando um adeus para
Newport, para os puristas do folk. Ele deixou o palco vencido pela
hostilidade daqueles que não aceitavam sua música elétrica [...]
Encontrei-me duas vezes com Dylan em Nova York na semana se-
guinte ao festival. Ele ainda parecia perplexo e angustiado por ter
despertado tanta hostilidade. Estava abalado que as pessoas hou-
vessem gritado “livre-se dessa guitarra”. [...] A respeito da apre-
sentação da sua música elétrica em Newport, Dylan disse, vezes
a fio: “Foi honesto. Foi honesto”. (SHELTON, 2009, p. 423-425,
itálico no original, negrito meu).3

Aquela tarde de domingo, 25 de julho de 1965, foi a última vez que Bob Dylan se
apresentou no Newport Folk Festival.

3 Depoimento do crítico musical Robert Shelton (1926-1995). Shelton foi o primeiro crítico da
grande imprensa estadunidense a noticiar o surgimento de Bob Dylan, em artigo na New York Ti-
mes de 29 de setembro de 1961 e a ser próximo ao artista nas décadas seguintes.

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As protest songs e produção anos iniciais4

Robert Allen Zimmerman, ou Bob Dylan, esteve presente no contexto da protest


song, que surgiu como uma forma de manifestação cultural de forma a denunciar
o contexto histórico-social vivido nos Estados Unidos da América (EUA). Segundo
o próprio cantor, música e poesia se tornavam uma, uma poética preocupada com
a realidade imediata que volta-se para uma poesia do social. A folk song estadu-
nidense, que cruza além do blues a estrutura de escrita em ballad, oriunda do folk
inglês e irlandês, também era reconhecida por ser oriunda de classes oprimidas,
de expressarem uma contra ideologia, que se distingue da música oficializada pelo
establishment, colocando sobretudo a questão da música como uma forma de ex-
pressão crítica ao contexto experimentado, vivenciado (CESAR, 1990).

Eu não sei, a música folk estava me transmitindo alguma coi-


sa, sabe... Que foi o jeito que eu sempre senti a vida, e as pessoas
e as instituições e ideologias e era como... Você sabe... descobrir
tudo. (Depoimento de Bob Dylan em Don’t Look Back, 2005, tra-
dução livre).

O jovem interiorano chegou a New York entre dezembro de 1960 e janeiro de


1961, após abandonar o curso de Letras da Minessota University. A partir de feve-
reiro de 1961, morou e frequentou o Greenwich Village, em Manhattan, centro da
boemia e de manifestações culturais do começo do século XX, no qual passou a
participar de circuitos locais de folk, tocando em cafés e bares universitários por
alguns trocados, cantando essa experiência:

“I swung on to my old guitar, grabbed hold of a subway car, and


after a rocking, reeling, rolling ride, I landed up on the downtown
side, Greenwich Village. I walked down there and ended up in one
of them coffee-houses on the block. Got on the stage to sing and
play, man there said, “Come back some other day; we want folk
singer here. Well, I got a harmonica job, begun to play, blowin’
my lungs out for a dollar a day. I blowed inside out and upside
down. the man there said he loved m’ sound, he was ravin’ about
how he loved m’ sound; Dollar a day’s worth.” (Talking New York,
1962).

E nas coffehouses passou a se apresentar como Bob Dylan5. Inserido no cir-

4 Se falar em trajetória supõe uma linha unidirecional, há um contraponto feito por Lévi-Strauss
(1978, p. 42) no qual não há como compreender um “mito” como algo linear e que tal não é
compreendido através de uma sequência de acontecimentos, mas de grupos de acontecimentos
que ocorrem em momentos diferentes da história: “ou seja, não só temos de ler da esquerda para a
direita, mas simultaneamente na vertical, de cima para baixo. Temos de perceber que cada página
é uma totalidade”. O filme I’m Not There (2007) foi feito exatamente nessa forma de exposição.

5 Entre 1959 a agosto de 1962, o artista utilizou os nomes “Bob Dillon”, “Elston Gunn”, “Bob
Landy” e, legalmente registrado, Bob Dylan. Nas décadas seguintes se apresentou também com
os pseudônimos de “Tedham Porterhouse”, “Blind Boy Grunt”, “Robert Milkwood”, “Thomas Boo

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cuito local, estabeleceu contato e rede com folk promoters, folk managers, concert
promoters e após uma crítica positiva de Robert Shelton no The New York Times,
um agente da Columbia Records propôs um contrato ao artista em outubro de
1961, para gravação de um disco. Assim, em março de 1962, foi lançado o álbum
Bob Dylan, no qual das treze faixas apenas duas canções eram autorais: “Talking
New York” e “Song to Woody”, e as demais eram regravações de canções clás-
sicas do folk, como “House Of The Rising Sun”. Apesar da pouca popularidade
o álbum rendeu um contrato com o empresário Albert Grossman, que inseriu o
artista em shows, entrevistas e aparições em programas de televisão nos EUA,
começando a transição do circuito e das redes regionais para outra categoria de
rede, de consumo e produção musical.
Um ano depois do primeiro álbum, em maio de 1963, o segundo, The Freewhee-
lin’ Bob Dylan elevou o artista até ao final daquele ano a ícone nacional, progra-
mando turnês não só nos EUA, mas também na Inglaterra. Contando apenas com
produções próprias, trouxe grandes sucessos transformados em hinos pelos movi-
mentos civis, como “Blowin’ In The Wind”, “Masters of War”, “A Hard Rain’s a-Gon-
na Fall” e a protest song e folk ballad mais característica: “Oxford Town”. Em 28
de agosto de 1963, participou da The March on Washington for Jobs and Freedom
e foi o único a se apresentar após o famoso discurso “I have a dream” de Martin
Luther King. Segundo o próprio artista,

Eu estava perto quando King pronunciava seu discurso. Até


hoje ele me afeta de uma maneira muito profunda. [...] Eu olhei o
palanque, olhei o público e me lembro de pensar comigo mesmo:
“Cara, eu nunca vi uma multidão tão grande.” (Depoimento de Bob
Dylan em Don’t Look Back, 2005, tradução livre).

Naquela época Dylan já possuía não só o respaldo dos folksingers, como


aquele que levaria a tradição à frente, mas também algum sinal de aprovação por
parte dos cantores como Sam Cooke, Odetta, Nina Simone, Richie Havens, Duke
Ellington, Joséphine Baker e outros que regravavam várias de suas músicas. Em
janeiro de 1964, lançou seu terceiro álbum: The Times They Are A-Changin, focan-
do ainda mais nos processo de mudança na sociedade, tal como na canção que
dá nome ao disco, a temática da pobreza e desemprego nas baladas de “North
Country Blues” e “Ballad Of Hollis Brown”, e a questão do conflito racial e da vio-
lência, principalmente em “Only a Pawn in Their Game” e “The Lonesome Death of
Hattie Carroll”. Dylan tornara-se definitivamente um símbolo da música folk e das
protest songs, aos 22 anos.

Folk: dissonâncias
É interessante pontuar o quanto para além dos empresários de Dylan, Pete
Seeger e Joan Baez tiveram cuidados com o jovem artista, seja com os locais nos
quais moraria, o local onde passaria as férias e inclusive os refúgios em momentos

Wilbury” e “Sergei Petrov” (EPSTEIN, 2012; SHELTON, 2011).

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de crise pessoal. Estruturação que ocorria simultaneamente ao processo de con-
solidação do artista no movimento folk que faz questionar o quanto, em termos de
Marx (1985) e os adaptando a análise aqui proposta, a reprodução dos indivíduos
em determinadas relações com sua comunidade, garantiram um objetivo que, se-
não não necessariamente econômico neste primeiro momento, mas de produção
de valores de uso que, necessariamente, atendiam a alguns elementos: a) “o indi-
víduo, simplesmente, considera as condições objetivas de trabalho como próprias,
como a natureza inorgânica de sua subjetividade, que se realiza através delas”
(MARX, 1985, p. 77): se para o camponês a terra é condição objetiva de trabalho,
para o artista é sua escrita, sua produção musical, seus direitos autorais que são
cedidos por contrato a uma gravadora, como a Columbia Records; b) um segundo
elemento é o que Marx caracteriza enquanto modo objetivo de existência, existên-
cia não só do indivíduo, historicamente desenvolvida e modificada, como membro
da comunidade, mas também na pressuposição de que “o indivíduo pertença sub-
jetivamente a uma comunidade que serve de mediação de sua relação com as
condições objetivas de seu trabalho” (MARX, 1985, p. 78): no filme I’m Not There
(2007), em que seis atores interpretam diferentes fases de Bob Dylan, a primeira
personagem se chama “Woody”, uma criança negra, órfã, que conta mentiras, que
viaja em trens de carga e que carrega uma caixa de violão com a inscrição “This
Machine Kills Fascists”6. Se pegamos uma biografia sobre o artista vemos que
esta representação é precisa: Dylan constantemente era pego em mentiras (sobre
quem havia conhecido ou tocado junto, ou locais aos quais supostamente teria
viajado), roubou vinis de folk, jazz e blues em Denver, Minneapolis e nos primeiros
anos em New York (SHELTON, 2011), além da própria autoconstrução como órfão
e de um eu-lírico, um self, uma autoidentificação enquanto hobo e cantando ape-
nas músicas tradicionais e com temáticas estritamente do recorte folk do início do
século XX (sobre as linhas férreas, os vagões de trem, o sindicato –union-, desem-
prego, pobreza na cidade e no campo etc.), que também rendeu críticas negativas
nos momentos iniciais da carreira7.
Eventos críticos ou momentos de ruptura são processos históricos, construí-
dos e gestados dentro de um tempo social. Lembrando e reduzindo o escopo
analítico das palavras de Arendt (2009), o desafio à tradição é também evidente
neste caso, na qual vários modos de violências emergem, como parteira em uma
história, a partir da ação humana “livre” e “consciente”, que surge através de uma
“revolução” a impulsionar a emergir algo “novo”, que na verdade são forças ocultas
– por tanto já existentes – da produtividade humana (ARENDT, 2009, p.49). Em
1965, Dylan disse:

6 A frase é um famoso escrito no mundo folk, inscrita no violão de Woody Guthrie, que também
deu nome à personagem citada. Dylan chegou a compor a música “Song to Woody” e a recitar seu
poema “Last Thoughts On Woody Guthrie” em shows durante o ano de 1963.

7 Hobo, aqui, diz respeito àquele indivíduo sem casa, viajante e que, para o caso dos EUA costu-
mava habitar as estações de treme linhas férreas, utilizando vagões de carga para se deslocarem
pelo território. Bob Dylan chegou a compor as músicas “Only a hobo” (1962) e “I Am a Lonesome
Hobo” (1967) e em várias outras aparece como o ragman (homem em andrajos), o orphan (o ór-
fão), o rambling (desconectado), o gambler (apostador em jogos de azar), o clown (palhaço), o thief
(ladrão) e outros milhares de personagens socialmente marginalizados.

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Entrevistador: Por que você parou de compor e cantar protest
songs? - O que você acha que vai acontecer quando você enve-
lhecer [...]?
Bob Dylan: Eu curto a nova geração [...] Logo a nova geração
vai se rebelar contra mim, do mesmo modo com que eu me re-
belei contra a geração mais velha [...] Não há nada tão estável
quanto a mudança. [...] Tento pensar sobre a minha própria vida.
[...]. Preocupo-me com minha cabeça. Não com a comerciali-
zação da música folk (SHELTON, 2011, p. 283-284, grifo meu).8

Entre 1963 e 1965, Dylan foi acusado e criticado por vários motivos: se traba-
lhava num blues, ele era um “branco roubando a música negra”; se desenvolvia
o talking blues, um “imitador”; quando não compunha músicas de protesto, os
tradicionalistas diziam que ele era um “traidor” e “apolítico”, quando era subjetivo,
era taxado de “existencialista centrado em si mesmo” (SHELTON, 2011). Um dos
primeiros momentos críticos foi uma matéria da revista Newsweek, de novembro
de 1963, que além de expor o nome verdadeiro, desmentiu toda a construção de
que o artista era um órfão9. Depois da mídia, o segundo momento crítico foi com
a própria “esquerda”: em dezembro de 1963, durante jantar em comemoração ao
Bill of Rights, organizado pela Emergency Civil Liberties Committee (ECLC), o ar-
tista, homenageado com o Tom Paine Award, disse em um determinado momento
– após fazer críticas à “velha guarda”:

Vou me impor e ser inconciliável em relação a isso, o que te-


nho de ser honesto, simplesmente tenho de ser, ao chegar a ad-
mitir que o homem que atirou no presidente Kennedy, Lee Oswald,
não sei exatamente onde, o que ele pensou que estava fazendo,
mas tenho de admitir com honestidade que eu também, eu vi
algo de mim mesmo nele (DYLAN, 1963, grifo meu, tradução livre).

A arrecadação ficou 30 mil dólares abaixo da expectativa. Se Bob Dylan já


estava em rota de colisão com a mídia e com a “esquerda”, faltava agora o con-
flito com os próprios fãs e indivíduos localizados dentro do circuito folk. O álbum
Another Side Of Bob Dylan, lançado em agosto de 1964, já mostrava claramente
aquilo que pretendia: um outro lado do artista. Traz não apenas o desgaste do ar-
tista perante sua posição e situação no circuito cultural, o seu cinismo, a rejeição
a mitos sociais – como o “amor” – mas, ao que aqui interessa mais, Dylan com-
preendeu o papel que desempenhava e passa a contestar a si mesmo e o que
representava. Alguns críticos foram indiferentes e a “esquerda folk” denunciou o
que seria “subjetividade demais”.
A partir do momento em que Dylan já é estabelecido como a “nova geração”

8 Entrevista para Stuart Crump, do Brown Daily Herald, Brown University, 1965.

9 Bob Dylan se declarou órfão ao sindicato em 1961 para conseguir autorização legal para exer-
cer a profissão de músico. Uma matéria da Newsweek de 4 de novembro de 1963 desmentiu a
história, trazendo o primeiro momento de ruído entre o artista e a imprensa. Após a notícia cortou a
comunicação com os pais, irmãos e com Billy James, do departamento de publicidade da Columbia
Records. É a partir daqui que surge, timidamente, as famosas antientrevistas (SHELTON, 2011).

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do folk, o momento social e política também está se modificando, são processos
históricos que ocorrem simultaneamente. Como bem pontuado por Marx,

o ato de reprodução, em si, muda não apenas as condições


objetivas [...] mas os produtores mudam com ele, pela emergên-
cia de novas qualidades transformando-se e desenvolvendo-se na
produção, adquirindo novas forças, novas concepções, novos mo-
dos de relacionamento mútuo, novas necessidades e novas ma-
neiras de falar (MARX, 1985, p. 88).

O álbum foi um passo no desenvolvimento de uma poética repleta de metáfo-


ras, de imagens grotescas e de pontos de conflito extremamente individuais do ar-
tista. Meses depois, no Newport Folk Festival de 1964, Dylan demonstrou o quanto
aquela experiência seria diferente do festival anterior: em 24 de julho, sexta-feira,
durante um workshop sobre protest song o artista tocou “It Ain’t Me Babe” e “Mr.
Tambourine Man”, a última, claramente “subjetivista” e “introspectiva”, que destoa-
va das músicas do artista:

Ninguém pareceu se importar que as duas novas canções fos-


sem de protesto apenas para o cantor [...] O restante do repertório
não foi tão bem recebido; quanto mais ele ficava no palco, mais
descuidada ficava a apresentação [...] A apresentação desorde-
nada impressionou muita gente, mas não a dois amigos nos bas-
tidores [...] Tony percebeu que Bob estava claramente tenso com
a perspectiva de enfrentar uma plateia de mais de 15 mil pessoas.
Dylan disse a Tony: “Eu não me importo. Vou apenas tocar a mi-
nha música. Não me importo.” Brincando, Tony sugeriu que Dylan
cantasse de costas apara a plateia para evitar a hostilidade. E foi
o que ele fez, em um momento da apresentação. Dylan recebeu a
sua cota de aplausos, mas havia tensão no ar (SHELTON, 2011,
p. 363).

O desapontamento com o cantor foi geral. O editor da Sing Out! escreveu uma
carta aberta denunciando que “a parafernália da fama entrou em seu caminho”, en-
quanto um jornalista da Broadside que até então era próximo do artista sentenciou
que ele havia “desertado em busca de forma mais elevada de arte”, acusando-o
de renunciar o protesto, de “inocuidade”, “completa indiferença a plateia”, “inibição
egoísta” e ainda, criticando as músicas por “falha” e “nível absurdo de confusão”
(SHELTON, 2011). Dylan confidenciou a Shelton: “já não escrevo canções para to-
dos, mas para mim mesmo”, afirmou também que sua consciência estava mudan-
do significativamente. Nessa dinâmica relacional de produção, crítica, consciência
e, novamente, produção, como não lembrarmos dos escritos dos escritos de Karl
Marx quando este escreve sobre a transformação da consciência, da atividade
autoconsciente, da emancipação e do sentimento de si (MARX, 2009)?

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Folk: ruptura

Segundo a concepção materialista, a mudança social é promovida por fatores


econômicos, num plano, e pela força das ideias e valores sociais e culturais, ou
seja, da constituição da própria realidade social mediante os significados subje-
tivos. Principalmente, a preocupação de Marx e Engels (2007) é em relação a
produção e consciência da sociedade, a partir das relações sociais de produção
que seriam influenciadas pelo estágio de desenvolvimento das forças produtivas,
nas quais para os autores, ao contrário do que havia proposto Hegel, não é a
consciência dos homens que determina a realidade social, mas sim esta última,
o ser social, que determina a consciência, que “é de antemão um produto social”
(MARX; ENGES, 2007, p. 53). Ou seja, o problema de fundo deste artigo é de
como uma práxis reflexiva pro exterior (crítica artística ao meio externo) ou pro
interior (autocrítica que dá dinâmica a produção do indivíduo ou do self), como ati-
vidade humana transformadora da realidade individual ou coletiva. O que está de
fundo é a percepção da realidade e ação do artista, a ação subjetiva e objetiva do
indivíduo em seu meio e em sua prática.
Uma das perguntas centrais de Karl Marx é: quem somos nós enquanto indi-
víduos [I/self] no sistema capitalista, em um estado burguês? Para Marx (1844a),
na sociedade capitalista há o ser genérico, aquele que pertence e é reconhecido
enquanto ser social pelos seus pares, e há o ser egoísta, produto da sociedade
burguesa que apenas é possível a partir do processo de individualização e, prin-
cipalmente, da ação do dinheiro como mediador e produtor de relações sociais.
Assim, não se trataria apenas de uma emancipação política do indivíduo, mas a
emancipação deste perante todos os processos aos quais se encontra submetido
dentro do sistema de produção capitalista, incluindo a propriedade privada. Em
termos de Marx, “a atividade autoconsciente concentra-se no ato político” (MARX,
2009, p. 70, grifo no original), mesmo sendo que “toda emancipação política é a
redução do homem, por um lado, a membro da sociedade civil, a indivíduo egoísta
independente; por outro, a cidadão, a pessoa moral” (MARX, 2009, p. 71, grifo no
original). E por quê? Justamente pelo fato de que a emancipação política que se
discute não é aquela própria à emancipação humana, mas a emancipação de um
cidadão bem definido: “o homem bourgueois que é tomado por homem verdadeiro
e propriamente dito” (MARX, 2009, p. 66, grifo no original). Essa é uma chave pos-
sível para se ler a crítica de Joan Baez, quando ela acusa Dylan de não participar,
pós 1965, das manifestações contra a Guerra do Vietnã.
E qual a principal categoria que aparece como ponto central na constituição do
ser social? O trabalho. Através dele se observa como está estruturada a divisão
do trabalho social e da propriedade privada, trabalho que resulta nos processos de
alienação e estranhamento10.

Everything is changed now from before. I guess I was going to


quit singing. I was very drained, and the way things were going,

10 Importante para minha intenção em destacar que parar Marx e Engels (2007), a divisão do
trabalho só se converte em verdadeira divisão a partir do momento em que se separam os traba-
lhos material e espiritual. A divisão do trabalho social também cria contradições entre os distintos
interesses, individual, familiar e comunitário.

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it was a very draggy situation […] I was playing a lot of songs
I didn’t want to play. I was singing words I didn’t really want
to sing. […] But “Like a Rolling Stone” changed it all: I didn’t care
anymore after that about writing books or poems or whatever. I
mean it was some thing that I myself could dig (DYLAN, 2017,
grifo meu).11

O trecho destacado, de muitos possíveis, demonstra uma percepção do artis-


ta sobre si mesmo, tomando consciência de que ele, aquele quem compunha as
músicas, criava a musicalização, apresentava em shows etc., não determinava a
sua própria atividade, alienando-o, em certa medida, do produto criado pela sua
própria força de trabalho. A relação do artista com o produto do trabalho enquan-
to objeto estranho torna-se ao trabalhador algo hostil, pela mesma distinção da
energia espiritual e física na divisão do trabalho, em sua vida pessoal, levando ao
estranhamento-de-si (MARX, 2008).
A biografia de Bob Dylan traz vários momentos de um não reconhecimento do
“eu”, ou de “transformação”, de “morte” de personalidades, de constituição de self
e selves, cindidos, que reforçam a hipótese da alienação a qual esteve submetido
em tal recorte histórico. Pouco antes de uma de suas muitas “mortes”, Dylan, ex-
tremamente exausto pela rotina de shows, entrevistas e com a saúde debilitada,
sentado num canto em um quarto de hotel em Birmingham, durante a turnê inglesa
no início de 1966, lendo um jornal com pesadas críticas, disse apenas: “Ainda bem
que eu não sou eu”. Para Marx, uma consequência da trabalho estranhado é que
esta aliena do homem a natureza de si, do ser genérico do homem, levando ao
estranhamento do homem pelo próprio homem: “Quando o homem está frente a
si mesmo, defronta-se com ele o outro homem” (MARX, 2008, p. 85-86). Além do
trabalho estranhado alienar do homem sua natureza, do produto de seu trabalho e
de si mesmo, a alienação implica em divisão e cisões interiores ao próprio sujeito
(SILVEIRA, 1994).
Ocorreu então mais um momento em busca de “emancipação”12: se o primei-
ro foi o discurso no jantar de dezembro de 1963 e o segundo ato o lançamento
de Another Side, o terceiro momento foi o momento descrito na introdução deste
artigo. Composta por Bob Dylan, gravada em janeiro de 1965 e lançada no álbum
Bringing It All Back Home, em março do mesmo ano, sua versão elétrica abriu
aquela tarde de festival. Ruptura estética, instrumental, lírica e sonora ocorreram
durante aquela apresentação, crítica intensa ao circuito folk, seus empresários, o
público e se compara a um escravo sendo explorado em uma fazenda:

[…] I ain’t gonna work for Maggie’s brother no more/No, I ain’t


gonna work for Maggie’s brother no more/Well, he hands you a
nickel [moeda de 5 centavos]/He hands you a dime [moeda de
10 centavos]/He asks you with a grin/If you’re havin’ a good

11 Entrevista para Nat Hentoff da revista Playboy dos EUA no segundo semestre de 1965, publi-
cada em março de 1966.

12 Preferi usar o termo entre aspas para não confundir e pontualmente caracterizar esta eman-
cipação enquanto ato político individual, diferente da emancipação humana de Marx.

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time/Then he fines you every time/ you slam the door/I ain’t
gonna work for Maggie’s brother no more/[…] I ain’t gonna work
on Maggie’s farm no more/No, I ain’t gonna work on Maggie’s farm
no more/Well, I try my best/ To be just like I am/But everybody
wants you/ To be just like them/They sing while you slave and I
just get bored/I ain’t gonna work on Maggie’s farm no more (Mag-
gie’s Farm, 1965, grifo meu).

Como nos diz Marx (1985), o objetivo das comunidades é a preservação, isto
é, a produção de indivíduos que as constituam não apenas como proprietários, isto
é, no mesmo modo objetivo de existência que, também, forma o relacionamento
recíproco dos membros e, portanto, forma a própria comunidade. Mas, “esta repro-
dução, é ao mesmo tempo, necessariamente nova produção e destruição da velha
forma” (MARX, 1985, p. 87). Após o Newport Folk Festival de 1965, houve divisão
na comunidade folk. Um músico escreveu na Sing Out!:

Foi perturbador para a velha guarda [...] Bob já não é mais


um neo-Woody Guthrie [...] A rodovia pela qual ele viaja agora é
desconhecida para aqueles que viajavam nos vagões de trem [...]
Ele viaja de avião [...] as montanhas e os vales que ele conhece
são os da mente – uma mente atenta para a violência dos mundos
interior e exterior. ‘O povo’ tão amado por Pete Seeger é ‘a mul-
tidão’ tão odiada por Dylan. (SHELTON, 2011, p. 425, grifo meu).

A animosidade era recíproca. Dylan se via explorado e limitado pelo que espe-
ravam e queriam dele. Esse embate é próprio da relação essencial de apropriação
e dominação, que nos diz Marx (1985). Para o autor, a apropriação da própria von-
tade de outrem é pressuposto básico na relação (social) de dominação,

entretanto, o que vemos aí é como as relações de domínio


e servidão incluem-se nesta fórmula de apropriações dos instru-
mentos de produção; e constituem um fermento necessário do de-
senvolvimento e decadência de todas as primitivas relações de
propriedade e produção. (MARX, 1985, p.96, grifo no original).

Dylan acreditava que sendo “honesto” consigo mesmo poderia alterar as for-
mas de produção que, ao seu modo de ver, lhe pertenciam. Ao tentar romper com
a lógica de dominação a qual estava submetido sob o circuito folk, o artista aden-
trou num processo maior de exploração, alienação a, por fim, leva-lo quase a mor-
te física.

1966: ganho de capital

O Toronto Star, em setembro de 1965, deu a seguinte manchete: “NÃO PODE


SER QUE O ÍDOLO FOLK DA JUVENTUDE TENHA FICADO COMERCIAL” e traz
uma entrevista com o artista:

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Eu costumava tocar rock’n roll há muito tempo, antes de co-
meçar a tocar folk à moda antiga, dez anos atrás, quando eu ainda
era adolescente [...] a indústria da música está completamente
diferente [...] Os cantores de rock de hoje deixam os velhos doen-
tes [...] As músicas de protesto e sobre direitos civis, eu as compus
quando ninguém mais as compunha. Agora todo mundo faz isso.
Mas aprendi algumas coisas. Os grupos que promovem essas
coisas, o movimento, tentavam fazer com que me envolvesse,
com que eu fosse um porta-voz cantor – e dentro desses grupos
[...] está a política. Na sua própria insignificância, eles são tão ruins
quanto os grupos de ódio [...]. Acredito que as melhores coisas
são feitas por indivíduos. (SHELTON, 2011, p. 295).

Desengajamento político, social, indiferença e individualidade. Os processos


históricos e sociais que agiam sobre Dylan, assim como sua reação subjetiva e ob-
jetiva, transpassavam para as práticas e discursos sobre o dinheiro, sobre rupturas
nas relações sociais e ao processo de isolamento social.
Em outubro de 1961, disse: “I don’t want to make a lot of money, I want to get
along”13. Depois, já com contrato assinado com a Columbia Records e recebendo
US$ 2 mil por um conjunto de entrevistas e apresentações para o canal BBC em
London, primeira viagem ao exterior, completou:

They’re paying me two thousand dollars to do this play […] If I


got to stay another three weeks to finish it they’ll probably have to
pay the same money all over again. […] But to me two thousand,
four thousand, I can’t imagine the difference. It’s too much money.
(DYLAN, 2017).14

Entre 1963-1964, Dylan morou principalmente no histórico Chelsea Hotel, em


New York, onde constantemente recebia pessoas próximas, empresários e outros
artistas folk, ano de 1964 que também marcou o encontro do artista com a boyband
inglesa The Beatles, episódio notório, vez que a partir dali foi estabelecida um ami-
zade pessoal entre Dylan e John Lennon e, principalmente, George Harrison15. Na
música “Restless Farewell” (1964), o artista é taxativo:

Oh all the money that in my whole life I did spend/Be it mine right or wrongfully/
I let it slip gladly past the hands of my friends/To tie up the time
most forcefully (Restless Farewell, 1964).

13 Entrevista para Izzy Young no Folklore Center em New York, em outubro de 1961.

14 Entrevista para Richard Gilbert, publicada pela revista inglesa Scene, em janeiro de 1963.

15 Tanto John Lennon e Paul MacCartney dão depoimentos sobre a influência de Dylan e a
importância daquele primeiro encontro, retratado em I’m not there (2007). Em 1966, retratado no
documentário Eat the document (1972), há toda uma cena entre Dylan e Lennon num táxi londrino.
Me parece que MacCartney escreveu a música “Rocky Raccon” (1968) para Bob Dylan; assim
como fez David Bowie, “A Song For Bob Dylan” no álbum Hunky Dory (1971). Já com Harrison, Bob
Dylan se apresentou no Concert for Bangladesh (1971) organizado pelo beatle.

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No início de 1965, mesmo antes da “ruptura” de julho no Newport Folk Festival,
Dylan já dava sinais de irritação evidentes para com a mídia, relação estremecida
do artista até os dias atuais, concedendo raras entrevistas e, em turnê, não mais
concedendo conferências para a imprensa. Em dois exemplos de antientrevistas:

Entrevistador: I think that’s a real compliment to have so many


people recording your things. Besides, you get all that money too.
What are you doing with all that money by the way?
Bob Dylan: Oh, buying boots, bananas, fruit, pears (DYLAN,
2017).16

E três meses depois:

Entrevistador: You must obviously make a lot of money nowa-


days?
Bob Dylan: I spend it all. I have six Cadillacs. I have four hous-
es. I have a plantation in Georgia. Oh, I’m also working on a rocket.
A little rocket. Not a big rocket. Not the kind of rocket they have in
Cape Canaveral. I don’t know about those kind of rockets.
Entrevistador: Do you have personal things - cameras, watch-
es and that sort of thing?
Bob Dylan: No, I don’t. I buy cars. I have lot of cars, the Cadil-
lacs. I also have a few Oldsmobiles, about three.
Entrevistador: Do you have fears about anything political.
Bob Dylan: No.
Entrevistador: Of course your songs have a very strong con-
tent ...
Bob Dylan: Have you heard my songs?
Entrevistador: I have. ‘Masters Of War’. ‘Blowin’ In The Wind’
[ou seja, duas músicas gravadas em 1962 e lançadas em 1963].
Bob Dylan: What about ‘Spanish Lover’? [sic, “Boots of Spanish
Leather”, balada de antiamor gravada em 1963] Have you heard
that? Why don’t you listen to that? Listen, I couldn’t care less what
your paper writes about me. Your paper can write anything, don’t
you realize? The people that listen to me don’t read your paper, you
know, to listen to me. I’m not going to be known from your paper.
Entrevistador: You’re already known. Why be so hostile?
Bob Dylan: Because you’re hostile to me. You’re using me.
I’m an object to you. I went through this before in the United
States, you know. There’s nothing personal. I’ve nothing against
you at all. I just don’t want to be bothered with your paper, that’s
all. I just don’t want to be a part of it. (DYLAN, 2017, grifo meu).17

16 Entrevista em Les Crane, talk show do canal televisivo WABC, em 17 de fevereiro de 1965.

17 Entrevista para Laurie Henshaw, 12 de maio de 1965.

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No segundo semestre de 1965, mesmo em uma antientrevista, Dylan traz afir-
mativa direta contra as acusações recebidas:

Entrevistador: You used to say that you wanted to perform as


little as possible, that you wanted to keep most of your time to
yourself. Yet you’re doing more concerts and cutting more records
every year. Why? Is it the money?
Bob Dylan: […] Contrary to what some scary people think, I
don’t play with a band now for any kind of propaganda-type
or commercial-type reasons. It’s just that my songs are pictures
and the band makes the sound of the pictures. (DYLAN, 2017, grifo
meu).18

E mais a frente no mesmo depoimento, uma importante declaração:

Entrevistador: […] As a man with three thriving careers - as a


concert performer, recording star and songwriter - do you ever feel
boxed in by such noncreative responsibilities?
Bob Dylan: No, I’ve got other people to do that for me. They
watch my money; they guard it. They keep their eyes on it at
all times; they’re supposed to be very smart when it comes to
money. They know just what to do with my money. I pay them a
lot of it. I don’t really speak to them much, and they don’t real-
ly speak to me at all, so I guess everything is all right (DYLAN,
2017, grifo meu).

Esse trecho é singular porque revela o sarcasmo e o conflito já existente entre


o artista, seu empresário e demais agentes de sua carreira. Segundo, duplamente,
alienação de seu salário ou de sua renda, assim como, possivelmente, um duplo
processo de exploração: certa porcentagem, parte da renda (geralmente nos con-
tratos musicais daquela época era a maior parte) na comercialização de singles e
álbuns é destinado à gravadora (no caso, Columbia), descontando dos custos de
produção do material fonográfico; num segundo momento, devido ao grande valor
acumulado também pelo artista, este paga a agentes da mesma empresa para que
administre sua renda. Apesar de uma análise mais correta necessitar de um olhar
sobre o contrato efetivado, ao mínimo estas hipóteses podem ser levantadas: a)
além da alienação do trabalho , alienação da sua própria renda; b) o artista era
explorado duas vezes pela mesma agência, que agia sobre os rendimentos de sua
criação, assim como recebia um capital sob um serviço que, em teoria, seria um
adicional, agindo também como instituição bancária, impondo uma taxa de serviço
sobre uma renda já explorada, provavelmente capitalizando e investindo em ou-
tras frentes do mercado fonográfico.

1966: e ganho de solidão

18 Entrevista para Nat Hentoff da revista Playboy dos EUA, publicada em março de 1966.

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Dylan colecionou algumas rupturas e afastamentos sociais entre 1963-1966.
Após a matéria de 4 de novembro de 1963 da Newsweek, citada anteriormen-
te, Dylan cortou toda a comunicação com os pais, irmãos e com Billy James, do
departamento de publicidade da Columbia Records. O relacionamento com seu
agente, Albert Grossman, também se deteriorava, principalmente entre 1965-1966
com a insatisfação do artista frente as obrigações de compor no estúdio e o grande
número de shows que fazia – Dylan o demitiria em 1970. Em abril de 1965, durante
mais uma turnê na Inglaterra, rompeu de forma conflitiva o relacionamento com a
folksinger Joan Baez, com quem dividia o palco em certas apresentações. Toman-
do rumos diferentes na segunda metade da década de 1960, voltaram a dividir os
palcos apenas na década de 1980.
Se por um lado a relação com a mídia piorava a cada ano, o mesmo se dava
com o público folk. Após as hostilidades do Newport Folk Festival de 1965, não
foram raras as vaias em outras apresentações, nos EUA e Inglaterra, nas quais
era comum parte da plateia se retirando dos auditórios e, em entrevistas, critica-
vam-no chamando-o de “traidor”, que ela havia se “prostituído”19, como também
discussões em hotéis e em seu camarim. Durante a turnê inglesa de 1966, Shel-
ton (2011) traz as manchetes de jornais ingleses: o Glocuster Citizen escreveu:
“A maior parte do público que permaneceu no teatro demonstrou uma indiferença
gelada quando ao sacrifício de letras e melodias realizada pelo ídolo em favor da
batida do rock”; uma carta publicada pelo Bristol Evenin Post disse: “O incrível
poeta que significou tanto para a minha vida arruinou a si mesmo [...] Eles enterra-
ram Dylan numa cova de guitarras e bateria ensurdecedora. O meu consolo é que
Woody Guthrie não estava presente”. O Brimingham Mail deu a manchete: “Dylan,
A Lenda, desaponta”. O embate da mídia se transferiu para a interação da plateia
com o próprio artista em vários shows da turnê. Um caso simbólico ocorreu em
Manchester, em 17 de maio de 1966: após tocar a música “Ballad of a Thin Man”,
canção extremamente crítica a tudo e todos que rodeavam o artista, um membro
da plateia gritou “Judas!” ao qual Dylan respondeu “I don’t believe you! You’re a
liar!” e se dirigindo a banda, disse “Play it fucking loud!”, emendando os acordes
iniciais de “Like a Rolling Stone”.20
Todas esses conflitos em sua rede pessoal levaram o artista a não apenas se
submeter a uma rotina de shows, que o levaram ao abuso de anfetaminas, heroína
etc., mas também a se isolar cada vez mais, sendo criticado como “egoísta”, “indi-
vidualista” etc. Dylan se defende com um afirmação muito próxima à de Clastres,
quando este analisa o canto guayaki: “é pelo canto que ele chega à consciência de
si mesmo como Eu e ao uso desde então legítimo desse pronome pessoal” (CLAS-
TRES, 1966, p. 140), observável também, como aponta Axel Honneth para que

Dylan makes apparent in many of his songs that he alone is


the master of his destiny. Most of his songs begin with an either

19 Observáveis em ambos os documentários citados, No direction home (2005) e Eat the docu-
ment (1972).

20 Show no Manchester Free Trade Hall e o indivíduo da plateia era Keith Butler. Áudio dis-
ponível no The Bootleg Series, vol. 4, Bob Dylan Live 1966, The Royal Albert Hall Concert. No
documentário No direction home (2005) parte da cena está disponível.

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triumphantly shouted or coolly whispered ‘I’. We hardly find a com-
mon ‘we’. […] Roughly 50 of Dylan’s songs begin with ‘I’, while only
two begin with ‘we’. (HONNETH, 2010, p. 780).

Segundo a agenda oficial, em 1962, 7 apresentações, sendo cinco em New


York, uma em Minneapolis e uma em Montreal (Canada). Em 1963, 20 apresenta-
ções, passando por oito estados estadunidenses e uma apresentação na Inglater-
ra. Em 1964, 28 apresentações, passando por dez estados, incluindo uma apre-
sentação no Hawaii e outra na Inglaterra. Em 1965, 65 apresentações, passando
por quinze estados, duas cidades canadenses, sete cidades inglesas. Antes de
embarcar para turnê europeia de 1966, em março de 1966, Dylan confidenciou a
Robert Shelton:

É preciso de muitos remédios para manter esse ritmo. É muito


duro, cara. Uma turnê como essa quase me matou. Está sendo
assim desde outubro [1965] Isso me enlouquece, de verdade.
Nunca aconteceu nada parecido antes. Tem sido um período bem
estranho, me derrubou mesmo. Vou reduzir o ritmo. No ano que
vem, a turnê vai durar apenas um mês ou dois. Só estou fazendo
isso, esse ano, porque quero que todos saibam o que estamos
fazendo. É absurdo que as pessoas fiquem sentadas sendo
ofendidas pela própria insignificância. (SHELTON, 2011, p. 476-
477).

Além do componente da exploração sobre o artista, não apenas neste depoi-


mento como em algumas entrevistas é perceptível o discurso da indiferença.

[1965] Eu não estou escrevendo e cantando para qualquer


um, para dizer a verdade. Ei, realmente, eu não me importo com
que as pessoas dizem. Eu não ligo para o que elas me fazem pa-
recer ser ou o que dizem às outras pessoas o que eu seja. Se eu
me importava com isso, eu diria a você; eu realmente não tenho
nenhuma preocupação com isso. Eu nem mesmo entro em conta-
to com essas pessoas... (DYLAN, 2017, tradução livre).21

Como apontado por Silveira (1994, p. 58), a indiferença refere-se àquela dos
indivíduos sob o capitalismo. Para manter o ritmo de produção exigido pela grava-
dora, o artista, para sobrevier enquanto produtor, passa a contar exclusivamente
consigo mesmo, seu próprio corpo (o “trabalho nu”), com suas energias, habi-
lidades e capacidades. A necessidade de acumulação implica na separação do
homem de seu corpo inorgânico, momento que ocorre a perda do objeto, a alie-
nação, emergindo aqui a forma da individualidade correspondente ao capitalismo,
enquanto processo histórico inseparável da história da humanidades e do desen-
volvimento das forças de produção (SILVEIRA, 1994).
Em outra conversa:

21 Entrevista para Paul Robbins, da LA Free Press, em 22 de março de 1965.

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Shelton: Como diabos é possível trabalhar numa turnê como
essa?
Bob Dylan: É muito difícil, cara. Está me matando, desde se-
tembro [1965], me enlouqueceu de verdade. Eu nunca tinha pas-
sado por nada parecido. Me botou pra baixo de verdade. É cons-
trangedor falar sobre esse lance de carreira, porque é muito difícil
para mim falar a respeito. Porque, na minha cabeça, eu sei a sorte
que tenho, e não sei quanto tempo isso pode durar. (SHELTON,
2011, p. 499, grifo meu).

Como o próprio Dylan disse em 1966, durante a turnê inglesa: “é sempre soli-
tário onde eu estou” (SHELTON, 2011). A partir das rupturas de relações sociais,
aliado ao processo de indiferença, o artista passa a se situar numa forma de isola-
mento social (SILVEIRA, 1994). Segundo o autor, este é uma das dimensões fun-
damenteis da indiferença em relação a outros indivíduos, na qual o sujeito conta
apenas consigo mesmo, com seu corpo e sua força de trabalho. Ainda, esse isola-
mento, que para Silveira (1994) é também ausência de sociabilidade prévia, “é ao
mesmo tempo condição para que a individualidade e as formas de sociabilidade
adquiram um caráter efetivamente histórico” (SILVEIRA, 1994, p. 61).
Durante a turnê inglesa, em 16 de maio de 1966, Dylan lançou Blonde On Blon-
de, com músicas que já faziam parte do repertório do artista desde o ano anterior.
Em 1966, num período de 112 dias entre 04 de fevereiro a 27 de maio, foram 45
apresentações, incluindo uma apresentação no Hawaii, três cidades canadenses,
cinco australianas, uma (na Suécia, Dinamarca, Irlanda, Irlanda do Norte, França),
duas cidades escocesas e oito cidades inglesas. Em 112 dias, uma estimativa de
54.224 km percorridos. Ao fim da turnê europeia, Dylan estava debilitado pela roti-
na de shows e abusos, além de todos os conflitos internos. O artista queria dar um
tempo nas apresentações. Concretamente, a tentativa de Dylan em exercer sua
individualidade e qualidade de produtor cuja subjetividade deveria ser respeitada
perante o circuito folk o situou em um processo de exploração ainda mais profun-
do que o anterior: alienado do que produzia, de como produzia e da renda obtida,
a figura de Escher é ilustrativa: ao tentar sair de um plano, subindo ou descendo
as escadas, Dylan, encapuzado, permanece alienado dentro de um todo, um todo
já posto, estruturado historicamente e materialmente dado22. Ao regressarem aos
EUA, Dylan e a banda que o acompanhava, The Hawks, foram informados que o
empresário do cantor, Albert Grossman, havia agendado mais 64 shows para os
meses seguintes de 2016. Isolando-se no interior de New York, em sua casa de
Woodstock, Dylan ficou reservado entre junho e julho. Uma saída? A sua própria
“morte”. Em 29 de julho, sofreu um grave acidente de moto, cujo detalhes não
foram revelados. Voltou a realizar uma turnê apenas oito anos depois23. Mas isso

22 “Ascending and Descending” (1960), de Maurits C. Escher (1898-1972). Disponível em:


<http://www.mcescher.com/gallery/recognition-success/ascending-and-descending/>. Acesso em
15/05/2017.

23 Após o show de 27 de maio de 1966, em Londres, o seguinte aconteceu apenas em 20 de


janeiro de 1968, único naquele ano, no Carnegie Hall (NY). Em 1969 realizou apenas três shows,

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não o impediu de lançar em 1967 um álbum inesperado e inspirado na Bíblia, o
John Wesley Harding.

Considerações finais: nenhuma “ruptura” é uma ruptura

Parafraseando Marx, a música folk pede um folksinger. Quem produz o capital


é o trabalho produtivo e não o improdutivo. Na cadeia de produção desse circuito
quem detem a possibilidade de produzir maior giro de capital é o folksinger e isso
está longe se afirmar, por consequência, que mesmo aqui o capital e excedentes
produzidos permaneçam junto ao trabalhador, a quem de fato produz. Tal como a
discussão de Marx (2011) sobre o piano e o pianista, Bob Dylan é aqui um duplo:
por um lado produz, canta e ouve a própria música, que no início ainda detem um
valor de uso mais significativo, frente às reproduções de outras músicas de origem
popular, origem folk e cantando em coffehouses; de outro lado, e de forma exter-
na e extrema, torna-se um trabalhador empregado/assalariado que observa seu
trabalho produtivo, o valor de troca sendo agregado e tendo seu produto sendo
apropriado por diversos agentes atrelados à indústria fonográfica, submetendo-os
meios de produção – ou seja, o próprio corpo e alma – a um ritmo de trabalho para
além de suas forças físicas e mentais.
Raymond Williams, de forma pertinente, ressalta que quase todas as iniciativas
e contribuições, mesmo quando adquirem formas manifestamente alternativas, ou
oposicionais, estão na práticas ligadas ao hegemônico: isto é, que a cultura do-
minante produz e limita, ao mesmo tempo, suas próprias formas de contracultura
(WILLIAMS, 1971, p. 117). Após o Festival de Newport 1965, Dylan não deixou de
tocar as músicas folk e acústicas, mas deixou de tocar protest songs de temática
social e política, tocando apenas as de protesto self-centred. Os shows de agosto
de 1965 a maio de 1966 eram estruturados em dois momentos: o primeiro era
acústico, geralmente bem acompanhado pelo público; depois da pausa, elétrico,
geralmente com vaias e conflitos com a plateia. Em 1975, lançou o single “Hurrica-
ne”, uma protest song denunciando o racismo policial e jurídico no caso do boxea-
dor negro Rubin Carter, e iniciou uma turnê pelas prisões estadunidenses, acom-
panhado por outros folksingers, como Johnny Cash, Joni Mitchell e outros. Desde
junho de 1988, Dylan está em turnê ininterrupta, a Never Ending Tour. Em 2015,
realizou 85 apresentações, tocando nos EUA e mais dois continentes, variando a
cada ano, os continentes visitados. Concretamente, a ruptura da qual os folksters
denunciaram em 1965 não foi uma ruptura totalitária, foi antes um processo, den-
tre vários, em que o artista buscou vencer não apenas a si mesmo, engendrando
diversas metamorfoses, mas também no desejo de vencer a própria estrutura a
qual está inserido.

voltando a se apresentar somente em 1971 no Concert for Bangladesh, organizado pelo amigo
George Harrison. Depois, mais dois anos sem subir aos palcos, retornando apenas em 3 de janeiro
de 1974 ao iniciar uma turnê acompanhando pela The Hawks, conhecida também como The Band.

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Áskesis | v.6 | n.2 | Julho/Dezembro - 2017 | 218-236 235


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____________________
Recebido: 17 maio, 2017.
Aceito: 20 jun., 2017.

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Propagandas das formas de trabalhos:
discussão sobre propaganda e novas
formas de trabalho nas mídias digitais
Propaganda of forms of work: discussion
of propaganda and new ways of work on digital media

Giulianna Bueno Denari1

Resumo
Buscamos neste texto fazer uma articulação entre a teoria crítica proposta por
Adorno e Horkheimer (1985) no que diz respeito ao surgimento do homem mo-
derno e a possibilidade de alcance da chamada Indústria Cultural, com a teoria
marxista sobre trabalho vivo e tempo de trabalho, com nosso objeto de pesquisa, o
trabalho dos YouTubers nas mídias digitais. Trazemos dois exemplos recentes ví-
deos patrocinados pelo governo e um outro vídeo, não patrocinado, para discutir a
questão do uso de publicidades visando um público jovem, bem como para ilustrar
esse formato de trabalho nas mídias digitais, mais especificamente, o YouTube. O
YouTube é uma plataforma online gratuita de divulgação de conteúdos em formato
de vídeo. Nela todo usuário cadastrado nas contas da empresa Google pode ter
um canal e fazer o upload dos vídeos. Os YouTubers exercem uma nova forma de
trabalho nas mídias, colocando esses vídeos online, recebendo dinheiro a partir de
publicidade embutida em seus vídeos. O argumento central é que essa positivação
de um trabalho não regulamentado, que vem desde a flexibilização da educação,
nas mídias, atinge toda uma geração que está se inserindo neste momento no
mercado de trabalho e é afetada diretamente com isso, facilitando a aceitação das
mudanças trabalhistas e educacionais propostas pelo atual governo brasileiro.

Palavras-chave: Indústria Cultural; trabalho; mídias digitais.

Abstract
The intention of this text is to articulate the critical theory proposed by Adorno and
Horkheimer (1985) regarding the emergence of modern subject and the possibility
of reaching the so-called Cultural Industry, with the Marxist theory of live work and
work time, with our research object, the work of YouTubers in digital media. We bring
two recent examples of government-sponsored videos and another non-sponsored
video to discuss the use of advertising aimed at a young audience as well as to
illustrate this format in digital media, specifically YouTube. YouTube is a free online
platform for content delivery in video format. In it all registered users in the compa-
ny accounts Google can have a channel and upload the videos. YouTubers exert a

1 Bacharel em Ciências Sociais pela UFSCar. Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Sociologia da UFSCar. Doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação
em Sociologia da UFSCar. Contato: giudenari@gmail.com

Áskesis | v.6 | n.2 | Julho/Dezembro - 2017 | 237-251 237


new way of working in the media, putting these videos online, getting money from
advertising embedded in your videos. The central argument is that this positiviza-
tion of unregulated labor, from the flexibilization of education in the media, affects
an entire generation that is entering the labor market at this moment and is directly
affected thereby, facilitating the acceptance of the changes labor and education
policies proposed by the current brazilian government.

Keywords: Cultural Industry; work; digital media.

Introdução

Buscamos neste texto fazer uma articulação entre a teoria crítica proposta
por Adorno e Horkheimer (1985) no que diz respeito ao surgimento do homem
moderno e a possibilidade de alcance da chamada Indústria Cultural, com a teoria
marxista sobre trabalho vivo e tempo de trabalho, com nosso objeto de pesquisa,
o trabalho dos YouTubers nas mídias digitais.
Começaremos este texto descrevendo três vídeos publicados na plataforma
YouTube: dois do ano de 2016 sobre o Novo Ensino Médio e um, de 2017, sobre a
Reforma Trabalhista. Os dois primeiros vídeos, ambos patrocinados pelo governo
federal, estimando um gasto de R$65000,00 com cada vídeo, falam de forma po-
sitivada sobre a reforma proposta para a educação.
No primeiro vídeo, de um canal com mais de um milhão de inscritos, com cem
mil visualizações e sete minutos de duração, intitulado “Tudo o que você precisa
saber sobre o novo ensino médio!!”, dois jovens começam explicando que o vídeo
se destina àqueles e àquelas que ou já cursam o ensino médio ou irão ingressar
nos próximos anos, ou seja, jovens de 14 a 18 anos. Começam falando sobre o
aumento da carga horária, alegando que por mais que os alunos não gostem de
passar mais tempo na escola, esse aumento será bom, pois vai melhorar a quali-
dade do ensino e então, citam o caso do estado de Pernambuco, que aumentou
a carga horária e isso teria feito o ensino melhorar. Segundo o argumento deles,
mais tempo de aula significaria mais tempo de aprendizado, o que faria com que
os estudantes, no futuro conseguissem melhores empregos e com isso, ganhas-
sem mais dinheiro. A segunda mudança citada é sobre as matérias passarem a
ser divididas em setores e os alunos poderem escolher quais matérias irão cursar.
Segundo o argumento dado, uma vez que o aluno já sabe o que irá fazer após
concluir o ensino médio, ele deveria poder focar nas matérias que o ajudarão e
não ficar cursando todas as matérias, como era antes da Reforma, o que faz com
que a escola fique mais chata ainda, aumentando a evasão e os índices de reten-
ção nessas matérias, por falta de interesse dos alunos. Explicam a partir de suas
vivências que em escolas no exterior, no caso a Itália, onde se formaram no ensino
médio, já funciona desta forma e segundo eles, faz com que o ensino seja bom.
A partir disso, passam a citar outros casos de sistemas educacionais europeus e
asiáticos, para positivar a mudança no Brasil. Abordam, por fim, sobre a polêmica
de algumas matérias terem sido excluídas ou não e o quanto isso seria uma menti-
ra. Afirmam que mais tempo na escola os teriam feito mais inteligentes e encerram

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o vídeo.
O segundo vídeo, de um canal com mais de três milhões de inscritos, cem mil
visualizações e com seis minutos de duração, intitulado “229/ Ensino médio com
1400 horas por ano?”. O YouTuber começa dizendo que os resultados do ensino
médio no Brasil são ruins, sem citar fontes, e como foi preciso criar uma MP para
melhorar de forma urgente o ensino. Cita os resultados apresentados pelo IDEB
e as más avaliações das escolas públicas no país. Continua trazendo dados para
falar sobre a precarização do ensino e que 50% dos alunos abandonam o ensino
médio, apontando como causa o fato da escola ser desinteressante para os alu-
nos. Aborda o aumento da carga horária, que traria melhorias para o aprendizado
e que a reorganização das matérias, com a proposta do ensino técnico, seria mais
atrativo para os alunos. Apresenta também casos internacionais para justificar a
avaliação positiva feita da reforma e termina, com cinco segundos, falando sobre a
necessidade de se valorizar os professores, sem aprofundar no assunto.
O terceiro vídeo, de um canal com quase três milhões de inscritos, trezentas
mil visualizações e com quase quarenta minutos de duração, intitulado “Leis do
Trabalho – Episódio Bônus”, não foi patrocinado e começa o vídeo destacando
essa informação e que a imparcialidade não existe. Continua o vídeo explicando
a criação da CLT e a partir de quais documentos e discussões ela foi inspirada.
Então começa a elencar alguns pontos positivos e negativos, trazendo algumas
opiniões divergentes sobre as mesmas questões, sem citar muitas fontes, como
uma matéria jornalística (a YouTuber deste canal é formada e já atuou por muito
anos como jornalista antes de começar o canal no YouTube). Ela passa por pontos
como contribuição sindical, regulamentação de homeoffice, trabalho intermitente,
fim do piso salarial, redução do horário de almoço, negociação de férias e outras
questões, não abordando, no entanto, todos os cem pontos de mudança na lei.
Todas essas informações são apresentadas como positivas ou negativas de acor-
do com a própria vivência da YouTuber, mas tentando relativizar alguns pontos e
mostrando o quanto algumas coisas já aconteciam, mas não tinham regulamen-
tação, como o homeoffice, por exemplo. A conclusão do vídeo é que uma reforma
trabalhista era necessária, porém deveria ter sido discutida com todos os setores
envolvidos e especialistas de diversas áreas deveriam ter sido ouvidos, para que
a reforma acontecesse e favorecesse a todos. Demarca ainda que toda lei visa
proteger os mais frágeis nas relações e por isso deveria ter esse cuidado na sua
reelaboração.
Trazemos esses três exemplos recentes para discutir a questão do uso de
publicidades visando um público jovem, bem como para ilustrar esse formato de
trabalho nas mídias digitais, mais especificamente, o YouTube. O papel da pro-
paganda em termos de propagação da ideologia dominante já foi discutido de
forma ampla e sistemática por autores como Adorno (1987), Adorno e Horkheimer
(1985) e Cohn (1973), por exemplo. A principal questão é o quanto a propaganda
em tempos de proliferação da ideologia capitalista revela exatamente aquilo que o
trabalhador sofre ao longo da vida, de forma crua, porém, como forma de desejo,
como normativa. Também o quanto o mundo do mercado acaba por influenciar e
dominar aspectos dos tempos de não trabalho, as horas de descanso e de lazer,
bem como a intelectualidade se torna mercadoria (MARX, 2011).
O YouTube é uma plataforma online gratuita de divulgação de conteúdos em

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formato de vídeo. Nela todo usuário cadastrado (não há custos, apenas é preciso
aceitar os termos de uso) nas contas da empresa Google pode ter um canal e fa-
zer o upload dos vídeos. Os YouTubers (ou influenciadores digitais ou produtores
de conteúdo, termos ainda em disputa) exercem uma nova forma de trabalho nas
mídias, colocando esses vídeos online, recebendo dinheiro a partir de publicidade
embutida em seus vídeos. Essa publicidade pode ser escolhida pelos produtores
do conteúdo ou então é colocada pelo próprio servidor do YouTube. O dinheiro
em cada vídeo é contado de acordo com os algoritmos vigentes definidos pela
empresa da Google: esses algoritmos determinam se são os números de inscritos
nos canais (uma vez o canal criado, é possível acompanha-lo se inscrevendo nele
e então uma notificação é enviada ao seu e-mail quando novos conteúdos forem
enviados. Quem faz isso é chamado de “seguidor”) ou então o tempo que cada
usuário passa assistindo aos vídeos. Eles variam de acordo com as políticas de-
terminadas pela empresa, afetando o quanto de dinheiro cada canal pode ganhar
por mês. Os conteúdos dos vídeos podem ser os mais diversos possíveis: dicas e
tutoriais de maquiagem, culinário ou jogos; ou ainda vídeos sobre comentários do
cotidiano, mostrando o dia-a-dia da pessoa, seus gostos e seus consumos; podem
ser conteúdos musicais, filmes ou mesmo discursos de ódio2.
Assim como nos jornais impressos e nas propagandas de televisão, um dos
maiores patrocinadores é o poder público (Excerto de caderno de campo, março
2017). Vários vídeos foram publicados criticando os casos dos dois canais cita-
dos acima que receberam financiamento para fazer propaganda positiva sobre a
Reforma da Educação proposta pelo atual governo3. A ideia inicial do YouTube é
que apresentasse conteúdos diferentes dos da televisão, também em formatos
diferentes, com a proposta de ser algo “livre”, “despretensioso” e que “bastaria
uma câmera na mão, uma opinião, uma boa luz” para fazer sucesso (Excertos
de caderno de campo, outubro 2016). O que foi criticado neste caso é que houve
essa aproximação de um conteúdo que pode ser encontrado na televisão e que a
pretensa liberdade fora descumprida quando o canal aceitou ser pago para fazer
propaganda para o governo, que teria havido uma traição com os seguidores do
canal. (Excertos de caderno de campo, março de 2017).
O patrocínio pode acontecer diretamente com os YouTubers, gerando conteú-
dos escolhidos por quem paga. Nos casos dos dois canais que fizeram propagan-
das positivas sobre a Reforma do Ensino Médio, especula-se que um dos canais
não tenha deixado explícito que aquele conteúdo era patrocinado; em nenhum mo-
mento isso foi dito durante o conteúdo. Os criadores do vídeo alegaram que havia
uma pequena mensagem no canto do vídeo, porém este foi removido pelo usuário.
O outro vídeo não causou tanta polêmica, pois não houve confirmação de que o
patrocinador do conteúdo foi o governo federal, como aconteceu no primeiro caso.
Já o terceiro vídeo, mais longo, não traz informações sobre conteúdo patrocinado

2 Houve um caso recente de vídeos com conteúdo antissemitas sendo pagos aparentemente
sem que as empresas soubessem. Isso fez com que várias empresas parassem de fazer propa-
ganda na plataforma o que fez mudar as políticas de monetização e termos de uso do YouTube.
(Excerto de caderno de campo, junho 2017).
3 Caso descrito em < http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2017/02/1859532-governo-paga-
youtubers-para-fazer-elogios-as-mudancas-do-ensino-medio.shtml > Acesso em 20 de fevereiro
de 2017.

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e busca o tempo todo destacar que as opiniões daquele conteúdo são parciais.
O fato de muitas das propagandas e do conteúdo patrocinado não serem explí-
citos dá essa ideia de um conteúdo livre e “verdadeiro”. Quando foi revelado que o
vídeo havia sido pago pelo governo como propaganda positiva da reforma, alguns
canais se manifestaram sobre o assunto, que haviam sido também procurados
para fazer a propaganda e não aceitaram. A questão é que a propaganda como
forma de propagação da ideologia dominante (Adorno e Horkheimer, 1985) deve
estar nos principais meios de divulgação e o YouTube tem se mostrado um veículo
importante de divulgação entre a juventude4.
Quando os vídeos começam seu conteúdo já falando que se destinam a um
público que estará no ensino médio, ou ainda se valem de linguagens e expres-
sões típicas dessa idade, editando o vídeo dentro de uma estética desse grupo,
com músicas e sátiras, por exemplo, juntamente com a procura de empresas e
mesmo órgãos governamentais para propaganda, nos fazem pensar sobre o al-
cance desse novo formato em uma diversidade de populações jovens. Sabemos
que o acesso à internet no Brasil ainda não é disseminado de forma homogênea,
porém o crescimento dessa plataforma como propaganda e criação de conteúdo
desde a sua criação tem nos mostrado sua importância como novo meio de comu-
nicação, principalmente numa faixa etária mais nova.
Desta forma, busco neste texto discutir, a partir do meu tema de pesquisa de
doutorado - o trabalho dos YouTubers nas mídias digitais - e a literatura proposta,
a questão de como os discursos sobre empreendedorismo, liberdade, flexibilidade
são positivados e assim divulgados nas mídias digitais a partir de um fenômeno
recente, que são os chamados aqui de YouTubers.
A existência de tais formas de trabalho não é nova, principalmente quando
pensamos nas formas de trabalho brasileiras: os famosos “dar um jeito” e “se virar”
marcam o contexto de formação trabalhista no Brasil, mesmo após a criação da
CLT. Quando pensamos nas classes5 mais baixas e a partir do recorte de classe e
gênero, essas duas categorias se acentuam.
Desta forma entendo aqui que os casos de precarização das relações de tra-
balho são importantes para compreender essa nova forma de trabalho nas mídias
digitais. Essa precarização é diferente do que podemos entender sobre os casos
de “viração” (FREIRE DA SILVA, 2011) citados acima. A questão, para o caso da
precarização, está em ter vínculos formais de trabalho, seja como PJ (Pessoa
Jurídica), seja como microempreendedor, mas que possuem suas relações de
trabalho precarizadas: diminui-se a ideia de uma jornada de trabalho fixa, com
contratos específicos e determinados em relação ao volume e tempo de trabalho.
Trabalha-se em projetos, com demandas curtas, a serem resolvidas de forma rá-
pida, criativa e inovadora.
Entendemos também o quanto esse tipo de trabalho requer uso e envolvimen-
to com tecnologias flexíveis, uso de plataformas online e aplicativos de relaciona-
mentos em rede. O envolvimento pessoal, de foro mais íntimo do trabalhador com

4 Neste texto não farei a discussão sobre geração que cabe quando discutimos juventude.

5 Não busco neste trabalho fazer um debate sobre classes e classificação social. Uso os ter-
mos classe baixa, média e alta de forma cotidiana, sabendo que podem ser problematizadas no
contexto e dentro de um debate sociológico muito mais amplo.

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seu trabalho e o produto dele abrangem todos os aspectos de sua vida fora dele,
ou então, a colonizando. Assim, a subjetivação e a produção de símbolos nessa
nova forma de produção permite o predomínio do trabalho vivo, trabalho que car-
rega os signos do trabalhador (Fumagalli, 2015).
Também não é novidade o vínculo entre os tempos de trabalho e de vida. Marx
(2011) já discutia desde a formação do sistema capitalista de produção e a forma-
ção do indivíduo moderno o quanto a mercantilização das relações atingiram (e
se propuseram atingir) todas as formas de vida dentro deste mercado. Conforme
nos apresenta Adorno e Horkheimer (1985) a chamada Indústria Cultural vem para
dominar as esferas da vida que não se dão nos horários de trabalho.
Respeitando os devidos contextos e a proposta deste trabalho, a questão que
nos parece pertinente discutir neste momento é: o quanto a não separação entre o
tempo de trabalho e de vida são positivados e valorizados, por meio de uma norma
forma de trabalho colocada nas mídias, com as promessas de liberdade de esco-
lha do que fazer, de onde fazer e como fazer, ou seja, trabalho criativo e espontâ-
neo, com mais promessas ainda de ganhos ilimitados, sem ter que dar satisfação
a patrões ou cumprir horas rígidas de trabalho6. O argumento central é que essa
positivação de um trabalho não regulamentado, que vem desde a flexibilização da
educação, nas mídias atinge toda uma geração que está se inserindo neste mo-
mento no mercado de trabalho e é afetada diretamente com isso, facilita a aceita-
ção das mudanças trabalhistas e educacionais propostas pelo atual governo.

Indústria Cultural, propaganda e o YouTube

Para Marx, quando se fala em Ideologia se diz sobre as ilusões criadas nas
relações através das quais os homens pensam suas realidades de maneira envie-
sada e fantasmagórica. Quando pensamos na Indústria Cultural esse significado
tem a sua abrangência exacerbada, com a produção em massa de meios de nor-
matização da vida comum. Sendo a consciência um produto social e desta forma
construído de acordo com os ideais determinados pelo momento histórico, político
e econômico, de acordo com a teoria marxista, quando estas não são vinculadas
à classe dominante, a Ideologia se torna ainda mais efetiva. “Os pensamentos da
classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes;
em outras palavras, a classe que é o poder material dominante numa determinada
sociedade é também o poder espiritual dominante” (MARX, 2008, p. 48).
Na sociedade capitalista esse poder só é possível pela divisão do trabalho, que
o autor classifica entre trabalho material e trabalho intelectual, o que subordinaria
o indivíduo nesse sistema de produção. “Portanto, segundo a nossa concepção,
todos os conflitos da história têm sua origem na contradição entre as forças pro-
dutivas e o modo das trocas” (Idem, p. 91). Isso faz com que seja possível des-
naturalizar o modo de produção e a propriedade privada, colocando os indivíduos
enquanto sujeitos na história. A Ideologia não é uma mentira, é ilusória, mas uma
ilusão necessária. É por isso que ela é determinada de acordo com os tempos e

6 É preciso destacar que os dados de pesquisa apresentados neste trabalho são de caráter ex-
ploratório, sendo que a pesquisa de doutorado se iniciou no começo deste ano (2017).

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momentos históricos, ela está na história e produz sujeitos nela. Ela tem que ser
plausível e nessa ilusão mora o processo de dominação. Esta que não acontece
só na infraestrutura, mas na ideia de totalidade (Marx, 2008).
Podemos ver aqui a importância dada por Marx na divisão do trabalho entre
material e intelectual e o quanto essa separação é importante para compreender
os processos modernos de trabalho capitalista. Apesar das limitações contextuais
em sua análise, podemos entender hoje o quanto esse trabalho intelectual, que
envolve a vida do trabalhador, é valorizada. No caso do YouTube, ganha-se dinhei-
ro e investe-se tempo de trabalho não só com tutoriais, mas também os chamados
Vlogs, vídeos curtos sobre o cotidiano dos sujeitos, ou seja, pessoas falando sobre
coisas que aconteceram com elas naquele dia, idas ao mercado, a parques, pas-
seios, enfim, conteúdos diversos sobre o dia-a-dia. Vídeos esses muito populares,
que geram alta monetização através dos algoritmos programados pela plataforma,
além de consumo do conteúdo em outras mídias e mercados.
Adorno e Horkheimer (1985) argumentam sobre a problemática dos novos
meios de comunicação da época, o cinema e a televisão, propagarem às massas o
desejo de um estilo de vida cru, extremamente realista, que é divulgado em forma
de estilo de vida desejável, porém não diferente da realidade que já é vivenciada.
É essa característica mesma que transforma os indivíduos modernos em massa.
A indústria cultural proporciona a criação de uma nova subjetividade, moderna,
que visa ao cálculo diário, dentro da lógica racional do modo de produção capi-
talista. É o que os autores chamam de dominação da natureza: a partir do modo
de produção capitalista os homens passam a dominar a natureza externa a eles,
conduzindo todos os processos para o ganho no mercado, mas também passam
a dominar a natureza interna, as mentes e os processos de subjetivação. O sujeito
moderno, burguês, nasce enquanto a razão que não chega ao esclarecimento,
mas uma razão baseada no real, no concreto e em tudo que pode ser reduzido ao
cálculo, aos números, ao mercado.

Os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se à na-


tureza ou submeter a natureza do eu. Com a difusão da econo-
mia mercantil burguesa, o horizonte sombrio do mito é aclarado
pelo sol da razão calculadora. Sub cujos raios gelados amadurece
a simetria da na voa barbárie. Forçado pela dominação, o traba-
lho humano tendeu sempre a se afastar do mito, voltando a cair
sob o seu influxo, levado pela mesma dominação. (ADORNO e
HORKHEIMER, 2008, p. 38).

Essa redução ao real racional que pode ser medido e calculado é a forma de
dominação moderna, que tem nas disciplinas sua expressão na dominação dessa
nova subjetividade burguesa. “Não seria o trabalho, portanto, que teria introduzido
as disciplinas, mas muito pelo contrário, as disciplinas e as normas que teriam
tornado possível o trabalho tal como ele se organiza na economia chamada capi-
talista”. (FOUCAULT, 2005, p. 335).
O poder disciplinar tornou os corpos e as mentes em produtivos de acordo
com a nova racionalidade proposta e a nova forma de produção desde o século
XVIII. Podemos ver também o quanto essas novas lógicas vão se adaptando a

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partir das mudanças tecnológicas implementadas no processo de produção e prin-
cipalmente, as novas habilidades exigidas a partir disso: as técnicas disciplinares
proporcionaram a exacerbação da necessidade da criatividade, da habilidade com
trabalho móvel, não regrado, isso quando pensamos na forma de trabalho aqui em
questão: informacional, nas mídias digitais. Não há mais necessidade de um pa-
trão ou supervisor (não que houve o desaparecimento dessa figura por completo),
a disciplina cria formas de regrar o trabalho e as formas desse trabalho acontecer:
os prazos curtos para realização do projeto, a periodicidade com que os vídeos
devem ser produzidos e divulgados, o contato com o público de forma diária, o
registro, o acompanhamento dos dados obtidos de visualização dos vídeos, os
comentários, enfim, tudo que é descrito pelos YouTubers acompanhados como o
que fazer para se ter sucesso criando conteúdo e vídeos para a plataforma.
Essa forma de produção só é possível a partir do momento em que se criam
os indivíduos e mais do que isso, os sujeitos produtivos. “O despertar do sujeito
tem por preço o reconhecimento do poder como princípio de todas as relações”.
(ADORNO e HORKHEIMER, 2008, p. 21). Essa passagem é importante para com-
preender a valorização da individualidade moderna, a criação de necessidades
mercadológicas contínuas e a transferência de toda responsabilidade para o indi-
víduo.

Foi isso que a teoria econômica burguesa fixou posteriormente no


risco: a possibilidade da ruína é a justificação moral do lucro. Do
ponto de vista das sociedades de troca desenvolvidas e dos indi-
víduos que as compõem, as aventuras de Ulisses nada mais são
que a descrição dos riscos que constituem o caminho para o su-
cesso. (Idem, p.59).

Esconde-se assim a necessidade da qualificação para a execução do trabalho


na ideia de liberdade de criação, expressão e formas de fazer. Apesar do uso da
internet no Brasil ainda não ser completamente difundido (segundo os dados do
IBGE no ano de 2016 chegamos a 50% da população com uso da internet7), pode-
mos pensar sobre o quanto esse conteúdo afeta parte da população, com o devido
recorte de renda que os dados do IBGE trazem: quando maior a escolaridade e
renda da população, mais acesso à internet e às redes móveis. Em alguns dos
canais acompanhados, com conteúdos ditos para “jovens”, houve a divulgação
do público alvo que mais assiste ao canal (dado apenas disponível para o dono
do canal), revelando que grande parte está na faixa de 15 a 20 anos. (Excerto de
campo, fevereiro de 2017). Podemos ver a importância dessa nova forma de di-
vulgação de conteúdo desses ideais de individualismo, sucesso e trabalho móvel
como forma de influenciar8 nas formas de encarar os direitos trabalhistas e o mer-
cado de trabalho.
Podemos pensar o quanto esse conteúdo serve de “descanso” das horas de

7 Dados disponíveis em < http://exame.abril.com.br/brasil/apesar-de-expansao-acesso-a-inter-


net-no-brasil-ainda-e-baixo/ > . Acesso em 28 de julho de 2017.

8 Preferimos aqui manter a ideia de influencia e não determinação, como a tradição marxista e
da teoria crítica nos propõem, por não fazermos análise da recepção desses conteúdos.

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estudo e trabalho de parte da população em substituição, ou ao menos, comple-
mento das formas mais tradicionais, como a televisão. A teoria da Indústria Cultural
nos ajuda a pensar sobre os domínios do mercado e da economia capitalista no
tempo fora do trabalho dos sujeitos modernos. Em alguns vídeos acompanhados
em uma semana de curso grátis oferecido por uma empresa especializada em
marketing digital, com convidados YouTubers, para falarem sobre os seus canais
e como obter o tão desejado sucesso no trabalho e “amar” o que faz, pudemos
ver que os canais de tutorial, seja de maquiagem, culinária ou música tem como
público alvo uma faixa etária mais velha (de 30 a 40 anos), de renda média/alta,
que não geram lucros apenas com os vídeos, mas consumindo as marcas anun-
ciadas (explicitamente ou não) nos vídeos. Já os canais de “cotidiano”, de Vlogs
tem como público alvo jovens (de 15 a 20 anos), mas também de renda média/alta,
que geram lucros das duas formas: consumindo o conteúdo, os estilos de vida e
também os produtos das marcas anunciadas, mas em diferentes proporções. O
que gera diferentes lucros para o produtor do conteúdo e diferentes formas de lidar
com suas formas de trabalho. (Excerto de caderno de campo, agosto de 2016).
Ainda durante esse curso de uma semana acompanhado em pesquisa ex-
ploratória para a realização do projeto de doutorado pudemos observar como o
trabalho dos YouTubers muda de acordo com o tipo de canal que eles se propõem
a manter: as horas dedicadas, os formatos dos vídeos, a periodicidade com que
divulgam novos conteúdos, a interação nas outras plataformas e redes sociais e
quais empresas são “parceiras” anunciando em seus canais ou então, dando “pre-
sentes” a eles. Os donos de canais voltados ao público mais jovem eram os que
mais relatavam a necessidade de uma dedicação quase que integral à produção
de conteúdo e interação com seus seguidores.
A individualização proporcionada pela modernidade permite que cada canal
trate seu conteúdo como exclusivo, que cada postagem seja direcionada a cada
seguidor e cada consumidor se considere assim.

Cada produto apresentação como individual; a individualidade


mesma contribui para o fortalecimento da ideologia, na medida em
que se desperta a ilusão de que é coisificado e mediatizado é um
refúgio de imediatismo e de vida. A industrial cultural mantém-se
como na origem “a serviço” das terceiras pessoas, e mantém sua
afinidade com o superado processo de circulação de capital, que é
o comércio, no qual tem origem. (ADORNO, 1987, p. 290).

Que se estabeleça uma relação aparente, porém não pareça menos real,
entre o produtor e consumidor, que extrapole a relação de trabalho. “Todavia, a
indústria cultural permanece a indústria da diversão. Seu controle sobre os consu-
midores é mediado pela diversão, e não é por um mero decreto que esta acaba por
se destruir, mas pela habilidade inerente ao princípio da diversão por tudo aquilo
que seja mais do que ela própria.” (ADORNO e HORKHEIMER, 2008, p. 112).

O trabalho informacional e o trabalho na mídia digital

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As características do trabalho flexível e, mais especificamente (embora não
exclusivamente), vinculadas às novas tecnologias tendem a caracterizar-se pela
indefinição das fronteiras entre os tempos de vida e de trabalho, empreendedo-
rismo de si mesmo e formação de redes sociais que funcionam como acesso a
empregos e cargos e possibilitam formas colaborativas de trabalho. É a partir das
redes que o trabalhador tem acesso a oportunidades, informações, variações do
mercado e novos investimentos, o que pode significar uma forma de trabalho mais
livre, ao mesmo tempo carrega ideias de tempos curtos e definidos de duração,
exacerbação do individualismo, trabalhos por projetos e novas formas de controle
que muitas vezes intensificam o processo de trabalho, ao mesmo tempo em que se
aumentam as incertezas do mercado. (Boltanski e Chiapello 2009, Sennet, 2009).
O trabalho nas novas tecnologias e principalmente nas tecnologias digitais tem
o conhecimento do trabalhador como central para sua efetivação, em que pese
às tentativas de padronização e fragmentação. O trabalhador, em grande medida,
participa de todo o processo de produção, desde a montagem do projeto até sua
execução, ou seja, o conhecimento como força produtiva no capitalismo. Podemos
afirmar que o trabalho vivo assume forte centralidade, dependendo das habilida-
des intelectuais e criatividade do trabalhador na elaboração de suas atividades.
Marx aponta para a transformação do valor em capital através da absorção do
processo de trabalho por esse. No capital, são absorvidos o material de trabalho,
os meios de trabalho e o trabalho vivo.

Na produção baseada na maquinaria, a apropriação do trabalho


vivo pelo trabalho objetivado – da força ou atividade valorizadora
pelo valor existente por si, inerente ao conceito do capital – é posta
como caráter do próprio processo de produção, inclusive de acor-
do com os seus elementos materiais e seu movimento material.
O processo de produção deixou de ser processo de trabalho no
sentido de processo dominado pelo trabalho como unidade que o
governa. (MARX, 2011, p. 581).

O autor continua sobre a apropriação desse valor pelo capital, gerando riqueza
pela absorção do trabalho alheio, mas principalmente do tempo de trabalho, ou
seja, é o tempo de trabalho que serve de medida e fonte de riqueza dos que explo-
ram o trabalho. “A riqueza não é o comando sobre o tempo de trabalho excedente
(riqueza real), mas tempo disponível para cada indivíduo e toda sociedade para
além do usado na produção imediata”. (Idem, p. 589).
A formação do sujeito moderno no capitalismo possibilitou o surgimento do
indivíduo capitalista, que se basta em si, é uno e pleno em si mesmo, que valoriza
e busca o não tempo de trabalho, ou seja, tempo disponível para o lazer, mas prin-
cipalmente, para o consumo. Tudo que não é trabalho acaba sendo agregado ao
capital da produção e, como discutido por Adorno e Horkheimer (1985), a Indústria
Cultural acaba por preencher esse tempo e elemento da vida cotidiana. Se não em
forma de consumo de produtos físicos, em forma de Ideologia: construção do va-
lor do empreendedorismo, busca por investir em si mesmo, as microempresas, a
chamada PJtização, trabalho por projetos, enfim, termos e ideais que não existiam
ainda , mas que Marx já mostrava a transformação do tempo do não trabalho em

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mercadoria.

A criação de muito tempo disponível para além do tempo neces-


sário de trabalho, para a sociedade como um todo e para cada
membro dela (i.e., espaço para o desenvolvimento das forças pro-
dutivas plenas do indivíduo singular, logo também da sociedade),
essa criação de não tempo de trabalho aparece, da perspectiva
do capital, assim como de todos os estágios anteriores, como não
tempo de trabalho, tempo livre para alguns indivíduos. O capital
dá o seu aporte aumentando o tempo de trabalho excedente da
massa por todos os meios da arte e da ciência, porque a sua ri-
queza consiste diretamente na apropriação de tempo de trabalho
excedente; uma vez que sua finalidade é diretamente o valor, não
o valor de uso. Desse modo, e a despeito dele mesmo, ele é ins-
trumento na criação dos meios para o tempo social disponível, na
redução do tempo de trabalho de toda a sociedade a um mínimo
decrescente e, com isso, na transformação do tempo de todos em
tempo livre para seu próprio desenvolvimento. Todavia, sua ten-
dência é sempre, por um lado, de criar tempo disponível, por outro
lado, de convertê-lo em trabalho excedente. (MARX, 2011, p. 590).

A partir dos dados da pesquisa exploratória em andamento, encontramos cons-


tantes ressalvas sobre a pouca regulamentação dos tempos, conteúdos, formatos
e jornadas o que termina por embaçar a separação vida-trabalho dos trabalhos na
plataforma YouTube. Essa linha tênue permite que análises econômicas sejam vin-
culadas a um campo até então inexplorado por ela, o da vida pessoal, bem como
trazer novas formas de interpretação para o campo do capital humano (Foucault,
2008).
O que acontece a partir das novas formas de produção do capitalismo mo-
derno, que carregam em si uma exacerbação do individualismo, da ideia de uma
autogestão e empreendedorismo de si mesmo é a demanda que se invista em
cursos, formação, novos conhecimentos, investir em si mesmo, trazendo para si a
obrigação e a responsabilidade do crescimento e destaque nas redes em que se
circula. Também aceitar que fazer hora extra, aproveitar todos os instantes para
fazer um novo projeto e estar o tempo todo conectado nas redes é uma das prin-
cipais formas de investir em si (Boltanski e Chiapello 2009, Sennet, 2009). É a
necessidade de uma gestão da vida, dos corpos e mentes, no sentido foucaultiano
(Foucault, 2008).
Durante a pesquisa exploratória, que consiste em acompanhar os conteúdos
em vídeo, fotos e mensagens nas plataformas do YouTube, Instagram9 e Twitter10
de produtores de conteúdo com destaque nessas mídias e nas mídias tradicionais,
pudemos observar diversas falas sobre a falta de tempo ou então da exaustão

9 É uma plataforma que permite os usuários a tirar e postar fotos e pequenos vídeos, aplicar
efeitos, para serem compartilhados com outros usuários.

10 É uma plataforma que permite os usuários e escrever e acompanhar atualizações de suas


vidas pessoais, fatos cotidianos e notícias.

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sentida pelo trabalho sem fim. O trabalho desses novos atores não se resume em
produzir o conteúdo do vídeo, gravá-lo, editá-lo e postá-lo na plataforma. Requer
também que o novo vídeo seja divulgado nas outras plataformas acima mencio-
nadas, através de textos, fotos ou outros pequenos vídeos temporários que tais
plataformas permitem. É preciso também acompanhar os comentários e a recep-
ção de tais conteúdos pelos consumidores, que são chamados muitas vezes de
“seguidores”, “expectadores”, “fãs”, “amigos” e “família”, sendo que a maioria dos
maiores canais no YouTube brasileiros possuem fã-clubes.
Porém a aproximação criada por tais redes é muito maior do que com as cele-
bridades tradicionais, como atores, atrizes, apresentadores de televisão e estrelas
de cinema: em seus vídeos, e nas outras mídias analisadas, parte de seus estilos
de vida, cotidiano, momentos mais variados são colocados como mercadoria para
consumo. Cada vez que alguém assiste ao vídeo completo este é monetizado,
gerando a renda do YouTuber. Além disso, o termo influenciador digital não é colo-
cado por acaso: várias marcas dão alguns produtos como forma de presente e são
apresentados em alguns canais como “recebidos do mês”. Isso para exemplificar
algumas das formas de conteúdo, trabalho, propaganda e monetização que os
vídeos podem gerar.
Outro fator importante destacado do material analisado até o momento é a
periodicidade que os YouTubers colocam conteúdo para visualização, bem como
a periodicidade de interação “ao vivo” que fazem nas outras plataformas. É apon-
tado que canais de maior sucesso, ou seja, que rendem mais inscritos e número
de visualizações são aqueles que mantêm uma “fidelidade” com o público alvo, co-
locando conteúdos novos de acordo com a periodicidade programa (todos os dias,
três vezes por semana e etc) e no horário divulgado. Isso, segundo observado,
permite “fidelizar” os expectadores, como se fosse o formato da televisão, porém,
dando a oportunidade de ver e rever em outros momentos também, de qualquer
lugar com acesso a internet. (Excerto de caderno de campo, janeiro, 2017).
O que leva a uma das críticas atuais de YouTubers da chamada primeira gera-
ção, ou seja, que começaram juntamente com a ampliação de acesso ao YouTube
no Brasil, há sete anos. Estes argumentam que a liberdade de antes já não existe
mais, ou então, que não é mais possível fazer dinheiro da forma como faziam an-
tes (Excerto de caderno de campo, junho, 2017). Esses YouTubers em questão
são mais velhos, em torno dos 30 anos de idade. Isso, para a plataforma, já é
considerado velho, devido ao fato de muitos jovens com menos de 18 anos ou no
máximo com 20 anos serem os donos dos principais canais brasileiros do último
ano. (Excertos caderno de campo – agosto de 2016). O “fazer de antes” significa
poder fazer vídeos com o conteúdo mais “livre”, ou seja, com qualquer assunto,
em um formato quase sem edição, apenas com a pessoa em frente à câmera,
com no máximo 10 minutos de vídeo. Hoje, alguns canais ganham destaque com
o formado das chamadas esquetes, planejadas, com texto e roteiro prontos, com
uma equipe profissional de edição, com conteúdos padronizados, que dão mais
audiência, ou seja, mais likes11.
Isso nos faz pensar sobre o quanto essa nova forma de trabalho baseada em
projetos, sem horários fixos de começo e término, com valorização do uso da cria-

11 Like é o termo usado para quando um usuário avalia positivamente um vídeo no YouTube.

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tividade, inventividade e inovação constantes são valorizadas nas formas de tra-
balho atuais. As imagens de um trabalho com ganhos ilimitados, de dinheiro, pro-
dutos e patrocínio, fazendo algo de forma livre, despretensiosa, sem regras, sem
patrões e sem horários fazem propaganda de uma nova forma de trabalho a se
desejar, usando novos meios de comunicação e novas formas de atingir o público.

Considerações finais

Se o mundo do consumo invade os tempos de não trabalho e estudo dos que


assistem aos canais, o mundo do trabalho invade os tempos de não trabalho da-
queles que produzem o conteúdo.

Assim como mal podemos dar um passo fora do período de tra-


balho sem tropeçar em uma manifestação da indústria cultural, os
seus veículos se articulam de tal forma que não há espaço entre
elas para que qualquer reflexão possa tomar ar e perceber que
seu mundo é o mundo. (ADORNO, 1987, p. 346/7).

O trabalho dos YouTubers nos permite pensar o quando seu formato, livre, des-
pretensioso, com altos ganhos monetários, se torna propaganda para um trabalho
desejável, até em outros setores do mercado. Os conteúdos apresentados nos
três vídeos de exemplo nos ajudam também a pensar o quanto o termo influencia-
dor digital pode ser mais preciso quanto à denominação do que fazem e de como
fazem: são jovens, falando para jovens sobre uma vida com menos regras, mais
ganhos e divertimento, flexível e sem patrões, ou também, professores e matérias
desinteressantes. A pouca necessidade de fazer um curso profissionalizante, ou
graduação, mas a necessidade de ser criativo, inventivo, buscar sempre melhorar
a si mesmo para conseguir ganhar mais dinheiro e seguidores.
A formação do indivíduo moderno enquanto sujeito produtivo nos ajuda a
pensar o quanto o trabalho e o mercado influenciam nas vidas de produtores e
consumidores. A separação entre os tipos de trabalho, material a intelectual to-
mou proporções não imaginadas devido às especificidades criadas pelo próprio
mercado. Para que este continuasse a ser satisfeito e realizado foi preciso criar
novas formas de trabalho e novas formas de interação com ele. O trabalho infor-
macional aparece na modernidade enquanto trabalho intelectual em si, porém não
descartando alguns dos problemas que já apareciam nas formas de trabalho mais
tradicionais, como o setor de serviços, em geral. “As particularidades do eu são
mercadorias monopolizadas e socialmente condicionadas, que se fazem passar
por algo natural”. (ADORNO e HORKHEIMER, 2008, p. 128).
Quando pensamos na Indústria Cultura, buscamos entender o quanto a Ideolo-
gia dominante, que varia de acordo com os contextos colocados, é posta em cada
momento da vida cotidiana, sendo que o capital não domina mais apenas o tempo
passado trabalhando, mas transforma em trabalho, mercadoria e consumo, todos
os aspectos da vida do indivíduo.

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O novo não é o caráter mercantil da obra de arte, mas o fato de
que, hoje, ele se declara deliberadamente como tal, e é o fato de
que a arte renega sua própria autonomia, incluindo-se orgulhosa-
mente entre os bens de consumo, que lhe confere o encanto da
novidade. A arte como um domínio separado só foi possível, em
todos os tempos, como arte burguesa. (130).

A questão então que nos parece pertinente ressaltar é o quanto essa forma de
propaganda no YouTube, seja explicita, implícita ou mesmo uma forma de valori-
zação de um tipo de trabalho e vida específicos, atinge o público que acompanha
esses canais todos os dias, em qualquer lugar que estiver, bastando ter conexão
com a internet. Também o quanto essa forma de trabalho é positivada, podendo
ser exacerbada para outros setores e valorizando a flexibilização das relações de
trabalho.

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Referências bibliográficas

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mentos filosóficos. São Paulo: Editora Zahar. 1985. 224p.

ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel. (org). Comunica-


ção e indústria cultural. São Paulo: T.A. Queiroz. 1987. 407p.

BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O Novo Espírito do Capitalismo. São Pau-


lo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

COHN, Gabriel. Sociologia da comunicação: teoria e ideologia. São Paulo: Pio-


neira. 1973. 170p.

FUMAGALLI, Andrea. La vie mise au travail: Nouvelles formes du capitalisme


cognitive. France: Rhizome. 2015.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.


_________________. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes,
2008. (Coleção Tópicos).

MARK, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 esboços da crí-


tica da economia política. São Paulo: Boitempo. 2011. 788p.

___________. A ideologia alemã. São Paulo : Martins Fontes. 2008. 199p.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: as consequências pessoais do traba-


lho no novo capitalismo. 14ª ed. Rio de Janeiro: 2007.

___________________
Recebido: 13 nov., 2017.
Aceito: 22 nov., 2017.

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A diferença entre poder sair
e poder entrar
SCIORTINO, Giuseppe. Rebus Immigrazione.
Bolonha: Il Mulino, 2017, 174 pp.

Paolo Targioni1

A migração a ser desvendada

Ao longo da história humana as pessoas sempre se deslocaram, raramente


tivemos sociedade abertamente e exclusivamente estanciais. O que olhamos hoje
com espanto, a migração forçada dos refugiados, as levas de migrantes econômi-
cos indo de um lado para outro do mundo, é a regra e não a exceção deste nosso
planeta. Se de exceção quisermos falar, talvez poderíamos utilizar este termo para
o tratamento dado hoje a estes migrantes.
Giuseppe Sciortino faz, em seu livro Rebus immigrazione, uma crônica do tra-
tamento dos deslocados ao longo da história moderna europeia, partindo da Paz
de Augsburg de 1555, até chegar aos dias de hoje.

Os tratados como início do problema

Nesse ano, na cidade hoje alemã de Augsburg se reuniram soberanos e em-


baixadores para tentar solucionar algumas das grandes questões geradas pela re-
forma protestante, o resultado deste tratado são direitos ainda hoje reconhecidos
internacionalmente.
Os dignitários lá reunidos debateram e regulamentaram o ius reformandi, ou
seja deram ao monarca o direito de intervir além de sobre corpo (coisa corriqueira
e abertamente consolidada), também sobre a cabeças dos súditos, para deixar
estas mais próximas – religiosamente falando – à do chefe da região. Ao mesmo
tempo garantiram para quem não quisesse se tornar religiosamente tão parecido
ao monarca do lugar onde morasse a possibilidade e o direito de se deslocar rumo
a outras terras: o ius emigrandi, o primeiro núcleo da liberdade de consciência e de

1 Doutorando em sociologia na Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Professor do


Instituto Federal de Mato Grosso – IFMT. Contato: ptargioni@gmail.com

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todas as liberdades civis que desta derivam. Quem quisesse praticar uma religião
diferente daquela praticada pelo soberano poderia deixar o território, mesmo por
um breve tempo, e não perderia suas propriedades. Aproximadamente um século
depois, o tratado de Osnabruque (documento fundamental para a paz de Westfalia
que em 1648 acabou com a guerra dos trinta anos) ratificou definitivamente estas
regras: os signatários garantiram o direito de emigração de quem praticasse uma
religião diferente, caso o soberano fosse solicito demais na aplicação do ius refor-
mandi. Nesta garantia e nestes dois tratados encontra-se a base dos problemas
que hoje enfrentamos, não por causa daquilo que neles foi escrito, mas devido
àquilo que foi deixado de escrever, pois ninguém pensou, no momento em que
estava sendo regulamentado o ius emigrandi, que seria interessante regulamentar
também um ius immigrandi. Os soberanos eram obrigados a aceitar a decisão dos
súditos que queriam sair dos seus territórios, mas não eram obrigados a aceitar a
chegada dos súditos que abandonavam os territórios dos outros: o mundo no qual
vivemos hoje tinha sido criado.

E hoje?

O autor dá um pulo no tempo, chega aos dias de hoje e nos aponta como,
mesmo após a Declaração universal dos direitos humanos da ONU de 1948, que
declara em seu artigo 13 que cada ser humano tem o direito de sair de seu país e
de lá voltar, se assim ele desejar, sair do próprio país continua sendo um direito, já
entrar em outro uma concessão do país acolhedor. Continua forte a prerrogativa
dos Estados modernos de determinar a composição de sua população; esta assi-
metria entre entradas e saídas é a base do atual sistema migratório mundial. Uma
leve mudança vem do artigo 14 desta mesma Declaração que impulsiona, pela
primeira vez, um regime especial para os refugiados ao distinguir os migrantes
econômicos desta categoria e oferecendo a estes uma leve forma de ius immigran-
di, ao impedir que os países para os quais os refugiados perseguidos se deslocam
os expulsem e os reenviem de volta aos países, dos quais estes estariam fugindo.
O prevalecer do direito de saída sobre o direito de entrada faz com que os
atores principais que determinam e regulam as migrações internacionais sejam
apenas os estados mais economicamente desenvolvidos: os estados receptores.
Estes Estados normalmente criam políticas restritivas em relação à migração pois
nas modernas democracias se assume que aos imigrantes são, aos poucos, con-
cedidos garantias e direitos iguais aos dos cidadãos - em momentos sucessivos
também é possível para eles adquirirem a cidadania – com todo o contorno de
direitos e deveres que isso implica, já que nos dias de hoje, como bem lembra o

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autor, onde se faz algo é mais importante daquilo que se faz.
Continuando na sua análise histórica, mas não cronológica, o autor volta à
época das revoluções e discorre sobre os problemas enfrentados na revolução
francesa em relação aos cidadãos e aos migrantes. O grande culpado dos proble-
mas hodiernos parece ser um efeito da revolução, pois ao criar a figura do cidadão
pleno, esta criou por oposição seu contrário: o não cidadão, o que não tem direitos.
O problema principal desta lógica, que existe ainda hoje é que os cidadãos das
democracias liberais têm direitos, mas também têm deveres e lhes é demandada
obediência. Eis portanto que surge um problema político: se o estado moderno
pretende dos seus cidadãos obediência total e lealdade plena, como ele pode em
troca oferecer o mesmo que oferece a todos? Dar importância à cidadania significa
criar um sistema de circuitos redistributivos que privilegiem os cidadãos em detri-
mento dos estrangeiros.
O autor continua então analisando as migrações o longo dos séculos mais re-
centes e enfatizando como o ius imigrandi, ainda no século XIX era algo não regu-
lamentado. Aliás, ao longo do século XIX aconteceu algo inédito: desapareceram
as regulamentações para as saídas, mas ainda não existiam as regulamentações
para as entradas. Ao contrário do que acontece hoje, os seres humanos se mo-
viam mais facilmente que as mercadorias. Esta nova situação começa a inverter
os problemas vistos na época do tratado de Augsburg: lá a emigração era vista
como um problema e a imigração como algo natural; no começo do século XX a
visão está começando a se inverter e será a primeira guerra mundial a criar as
condições para que esta mudança aconteça definitivamente.

O século dos refugiados

Na segunda parte do livro, o autor, após o preambulo histórico sobre a migra-


ção na modernidade e como as atitudes dos vários estados e das várias épocas,
em relação às migrações, acabaram criando aos pouco o mundo moderno, dis-
corre sobre a questão do refugio e sobre como a figura jurídica do refugiado que
se destaca dos migrantes econômicos, foi se criando e se moldando ao longo de
vários anos e acontecimentos diferentes.
O século XX na Europa ficou conhecido como o século dos refugiados: guerras
mundiais, fim da colonização e outros acontecimentos criaram números enormes
de pessoas que fugiam de seus respectivos países e com isso apareceu a neces-
sidade de criação de um regime internacional que regulamentasse a mobilidade.
Após fazer uma detalhada lista cronológica dos tratados e convenções internacio-
nais, encontros e reuniões sobre o tema – tanto falidos como de sucesso – orga-

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nismos criados ad hoc, acontecimentos pontuais, porém esclarecedores, o autor
chega finalmente à situação europeia dos dias de hoje e analisa com riqueza de
detalhes a sua política migratória dos últimos anos, suas falhas e seus limites.
Ao longo do livro pudemos perceber como o trabalho do autor foi tentar desven-
dar os lados mais obscuros das políticas migratórias durante um percurso cronoló-
gico, para mostrar como se chegou à situação dos dias de hoje e, sobretudo, tentar
esclarecer como um problema que é visto como simples – a migração – seja, na
realidade, extremamente complexo e variegado. O maior mérito desta obra é, de
qualquer maneira, o fato de tentar esclarecer que a migração nada mais é que algo
natural, que sempre acompanhou os seres humanos ao longo de seu caminho e,
o que continua acontecendo nos dias de hoje não é o ocaso da nossa civilização
e nem a sua palingenesia. Se trata de um fato humano que pode às vezes gerar
problemas, e se isto acontecer a melhor solução são políticas migratórias claras
e honestas que partam do pressuposto de que se trata de algo estrutural e não
emergencial.

__________________
Recebido: 05 jul., 2017.
Aceito: 11 jul., 2017.

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