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Os usos e funções do ensino de História a partir da disciplina “Cultura do


RN” (2007 a 2013).

KATIANE MARTINS BARBOSA DA SILVA

Natal
fevereiro de 2015
  1  

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE


PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Os usos e funções do ensino de História a partir da disciplina “Cultura do


RN” (2007 a 2013).

KATIANE MARTINS BARBOSA DA SILVA

Dissertação apresentada ao programa de


Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Mestrado em História, linha de
pesquisa II: Cultura, Poder e
Representações Espaciais, como
requisito parcial para a obtenção do
título de mestre.

Orientação:
Professor Dr. Francisco das Chagas
Fernandes Santiago Júnior

Natal
fevereiro de 2015
  2  

Dedico esse trabalho ao maior amor da minha vida:


minha família...
  3  

AGRADECIMENTOS

Os últimos meses foram árduos e de muita renúncia, mas, ao fim do longo caminho
que se mostrou o mestrado, agradeço a Deus e às várias “mãos” que me ajudaram na
confecção desse trabalho.
Ao meu amado amigo Thiago Alves Dias, que me incentivou, apoiou, criticou e
ajudou do inicio ao fim dessa caminhada. Amigo de palavras duras, mas, por vezes,
necessária para me mover da inércia, e de bondade tamanha capaz de mover o mundo para
ajudar aqueles a quem ama. Se estou aqui hoje, agradeço especialmente a você, Thiago.
Ao meu amigo/amor Maurício Moinho, quando, em meio aos “aperreios” de sua vida,
sempre encontrou tempo para ajudar nos meus escritos e na minha vida. Amigo que exala
generosidade e sabedoria em seus poros, assim sendo, impossível não amá-lo. Basta um olhar,
um abraço, e parece que toda tormenta é acalmada. Seu espírito libertário e sua garra diante
das dificuldades da vida tornam-o ainda mais especial. Sempre quando me refiro a ele afirmo
sem pestanejar: ele é um ser humano lindo!
À Elisângela Andrade, que, pacientemente, corrigiu esse trabalho, mesmo não
gostando da tarefa, mas realizando-a para me ajudar. Uma amiga/irmã que encontrei nas
cadeiras do setor II e que, desde então, a admiro pela inteligência, dedicação, competência e
amor com que realiza suas tarefas diárias, inclusive, regando nossa amizade com os mesmos
atributos.
À querida professora Margarida, exemplo de profissional. Por vezes, quando estava na
difícil tarefa de conclusão deste trabalho, desejava ser a mulher batalhadora, a profissional
exemplar, a cidadã engajada, que, para mim, Margarida Dias é. Pensar em falhar nesse
momento é, ao mesmo tempo, ter medo de decepcioná-la, pois ela se tornou uma das
mulheres que mais admiro na vida. Parte do que sou e do que penso hoje se devem, em grande
medida, ao aprendizado do convívio com Margarida Dias, minha eterna e inesquecível
professora.
Ao professor Santiago, que chegou com tanta inteligência e erudição que conquistou,
sem muito esforço, a turma do mestrado, inclusive a mim. Assistir a suas aulas era como
visualizar o mundo inteiro pela frente. Não tinha papel, nem caneta, nem memória que
suportasse a imensidão do mundo que ele nos trazia naquele momento. Profissional exemplar
e sensível às dificuldades nessa jornada, a quem agradeço pela ajuda, principalmente nos
  4  

últimos meses de finalização desse trabalho. Se os dias foram difíceis, sem sua ajuda teriam
se tornado impossíveis.
À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela formação profissional e pelas
oportunidades de convívio que me possibilitaram ser a cidadã que hoje sou.
Ao PPGH-UFRN, pela oportunidade do aprofundamento dos estudos. Concluir os
componentes curriculares, trabalhar com metodologias diversas dos professores, construir os
trabalhos de final de curso, terminar essa dissertação, não se mostraram enquanto tarefas
fáceis, mas que, ao final, prevaleceu a certeza do aprendizado enquanto historiadora.
À CAPES, pela bolsa concedida. Essa ajuda financeira foi essencial para a realização
dos meus estudos na pós-graduação.
Aos professores do departamento que contribuíram para a minha formação, em
especial, ao professor Helder Viana, pela preocupação constante de trazer para as aulas
materiais que dialogassem com nossas pesquisas, e a eterna generosidade com a qual sempre
atende a seus alunos; à professora Juliana Teixeira Souza, pelas contribuições no processo de
qualificação, pelas discussões em sala de aula e pelo riso frouxo, que tornava a aula mais leve
e prazerosa; ao professor Renato Amado Peixoto, pelas construtivas discussões durante a
disciplina de Teoria da História, que foi “suada” demais, mas, ao final, a aprendizagem foi
enorme. Gostaria de agradecer também à professora Inês Sucupira Stamatto, pelas
contribuições durante as aulas no Departamento de Educação, como também pela constante
disponibilidade em sugerir, orientar e ajudar as dificuldades surgidas na pesquisa.
Ao grupo de pesquisa Espaço, Poder e Práticas Sociais, pelas discussões promovidas e,
consequentemente, pelas contribuições que forneceram para pensar o meu objeto de pesquisa
em relação ao ensino de História, às relações de poder e às questões culturais.
À minha turma do PPGH, companheiros de “aperreios” acadêmicos e também de
conversas descontraídas dentro e fora da UFRN. Em especial à Leda, que, além de
compartilhar comigo as angústias relacionadas aos nossos objetos de pesquisa, apoiou-me e
tranquilizou nos momentos de desespero. A Carlos, Ariane, Adriana Ramos, Diego, Felipe
Tavares, Felipe Dantas, Gabriela, Islândia, Mayara, Naldinho, Thyago, Ruzemberg, Tiago
Tavares, Rafael, Regina, historiadores dedicados e batalhadores na tarefa de adquirir
conhecimento para transformar suas vidas e as do próximo.
Agora meus agradecimentos vão para aqueles que, mesmo indiretamente, me
ajudaram, apoiaram e foram – e são – determinantes em qualquer etapa de minha vida.
  5  

Aos meus avós/pais que me criaram com o maior amor que podiam me oferecer e até
hoje, mesmo sem noção nenhuma do que representa o mestrado em minha vida, orgulham-se
e me apoiam em todos os momentos.
À minha mãe, mulher guerreira, à “frente do seu tempo”, que, apesar das dores que a
vida lhe causou, não perde a determinação e otimismo à espera por dias melhores. À mulher
que até hoje abdica de si mesma para se dedicar aos pais, filhos e netos. Ao refúgio de todas
as horas e a eterna disposição de me ajudar, cuidando da minha filha como se fosse sua, meu
muito e eterno obrigada.
Ao meu pai, que, diante das perdas que sofreu, fez da vida dos filhos a sua própria.
Que a cada conquista e perda que sofri, vibrou e chorou junto a mim. Uma pessoa que mal
conseguira concluir a ensino básico e, até hoje, sofrendo as consequências que isso traz diante
do mercado de trabalho, compreendeu e ensinou aos filhos, a mim, que o estudo era a meta a
ser seguida, sempre.
À minha irmã, que foi a primeira na família a obter um diploma de nível superior,
servindo-me como um espelho, mostrando-me que eu também seria capaz. Por Cecília,
sobrinha linda e dedicada que amo como filha. Pelo amor que oferece à minha filha e a mim,
meu muito obrigada.
Ao meu irmão caçula, um eterno menino que, de coração bondoso e teimoso, está
sempre disposto a ajudar. À Anita, minha sobrinha e filha de coração, que transformou
tristeza em alegria no 02 de fevereiro... À Micaely, a “menina mulher” que me ofereceu ajuda
fundamental nos primeiros meses de vida da minha pequena. Meu muito obrigada pela família
que são para mim.
Ao meu maior amigo, Companheiro, esposo e amor, que por tantas vezes trouxe de
volta minha felicidade. Assim, agradeço a maior e eterna felicidade que me ofereceu: a
pequena Clarice, que ao mundo chegou apressada para me mostrar o sentimento mais puro e
grandioso que pode ser experimentado. Agradeço também pelo apoio, mesmo que, por vezes,
impaciente no último mês de finalização desse trabalho, sendo a mãe que não consegui ser.
Amo-te, Rafa.
À minha pequena... À Clarice, a melhor parte de mim.
Aos meus familiares que se foram e agora partilham a vida comigo através das
lembranças. À minha avó Iolanda e meu avô Arcênio, muito obrigada pela infância, pelas
eternas memórias debaixo do “pé de azeitona”; e aos meus tios, que foram cedo demais.
Aos amigos que a UFRN me deu... Agradeço à Universidade pelo encontro com
Adriana, a guerreira, mãe, amiga de todas as horas, que nunca limitou esforços para me apoiar
  6  

nos momentos mais difíceis. Com Aline, a nossa pernambucana, a “menina de engenho” mais
doce e amável que conheci, que nos encanta com a sua fala mansa e sempre pronta para nos
fazer feliz quando compartilha sua experiência de saber que o Egito é pobre em ouro e rico
em prata. Ao encontro com Margô, mulher de gênio difícil, mas impossível de não ser amada
à “segunda vista”. Ao encontro presencial com Myrica, porque, pelas coincidências e
semelhanças que se fazem presentes, nossas almas e vidas parecem ter se encontrado em
alguma espécie de plano espiritual. Agradeço também ao encontro mais rápido e marcante
com a inesquecível Tássia. Nossa estrelinha. Nossa menina doce. Lutadora. Que sem muito
tempo para se despedir, deixou-nos a lição de que a vida, mesmo que passageira, vale a pena
ser vivida; também nos ensinou muito “sobre sinos e as borboletas”... Meu muito obrigada a
vocês, a família que amo e escolhi ter.
Aos eternos amigos, Aline, Dany, Enio, Kibson, Moni, Paulo (Chico), Rodrigo,
Rodrigo Rodrigues, Thiago César, que há anos compartilham momentos de felicidade e
tristeza, e se alegram a cada conquista minha.
Aos meus pequenos/grandes alunos das aulas particulares, que me faziam perceber
como é bom ensinar/aprender História. Saudades imensas de Carolzinha, Gabi e Daniel...
Por fim, agradeço à História... O curso que me transformou. Tenho alguns marcos em
minha vida e um deles com certeza é a História.
 

 
  7  

Quem acreditamos que somos depende de


quem acreditamos que fomos, e não é à toa
que o ensino de História – escolar ou
extraescolar, formal ou informal – é uma
arena de combate em que lutam os diversos
agentes sociais da atualidade.

Luís Fernando Cerri


  8  

RESUMO

A presente pesquisa busca problematizar o ensino de História em relação a sua


utilização para “comunicar” determinada ideia do que seja a cultura do Rio Grande do Norte e,
consequentemente, de como esse ensino está sendo utilizado a fim de construir e/ou definir
uma identidade local. Para tanto, utilizaremos a institucionalização da disciplina “Cultura do
RN” percebendo-a enquanto uma política de Estado que objetiva levar ao conhecimento dos
agentes escolares expressões culturais que estão ligadas a uma identidade potiguar.
Analisaremos as narrativas que foram selecionadas, organizadas e produzidas diante do
processo de desenvolvimento da disciplina no ano de 2007, a qual modificou a Estrutura
Curricular do Ensino Fundamental das escolas públicas estaduais do Rio Grande do Norte,
objetivando identificar e compreender concepções de cultura mobilizadas e as possibilidades
de desdobramentos no ensino de História.

Palavras-chave: “Cultura do RN” – Relações de poder – Ensino de História.


  9  

ABSTRACT

This research attempts to problematize the history teaching, regarding its use to
"communicate" certain idea of what the Rio Grande do Norte culture and, consequently, how
this teaching is being used to build and/or set a local identity. To this end, we will use the
institutionalization of the "RN Culture" discipline, perceiving it as a state policy that aims to
bring to the attention of school subjects the cultural expressions that are connected to the RN
identity. We will analyze the narratives that were selected, organized and produced before the
discipline development process in 2007, which modified the Curriculum Structure of Basic
Education of the public schools of Rio Grande do Norte, in order to identify and understand
conceptions of mobilized culture and possibilities for developments in the history teaching.

Keywords: “RN Culture” – Power relations – History teaching.


  10  

ÍNDICE

FIGURAS

Figura 01. Barco de papel. Festa dos Santos Reis . .................................................................. 57


Figura 02. Galo de cerâmica de Santo Antônio, localidade do município de São Gonçalo do
Amarante, símbolo do folclore potiguar ................................................................................... 57
Figura 03. Boneco de mamulengueiro “Queixo de Aço” ......................................................... 58
Figura 04. Rei do Rosário, Caicó/RN ....................................................................................... 59
Figura 05. Nau Catarineta – Fandango de Canguaretama ....................................................... 59
Figura 06. Boi de Bocas, Município de Pedro Velho .............................................................. 59
Figura 07. Araruna – I semana de cultura nordestina na Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, Natal ......................................................................................................................... 66
Figura 08. Apresentação do grupo Araruna em sua sede ......................................................... 66
Figura 09. Luís da Câmara Cascudo ......................................................................................... 70
Figura 10. Mário de Andrade .................................................................................................. 70
Figura 11. Chico Daniel, um grande calungueiro ..................................................................... 70
Figura 12. Manoel de Santana, narrador já falecido ................................................................ 70
Figura 13. Cascudo jovem e elegante vendo-se, ao fundo, (2º a contar da esquerda) o poeta
Jorge Fernandes) . ..................................................................................................................... 71
Figura 14. Mamulengueiros Potiguares, IV Encontro de João Redondo ................................. 71
Figura 15. Imagem sem legenda ............................................................................................... 71
Figura 16. Sebastião Fabiano, poeta ......................................................................................... 71
Figura 17. Trabalho de João Natal em que se distinguem vários elementos da cultura potiguar:
o bastidor da bordadeira, espécies de fauna, a dança do Araruna e o papel recortado . ........... 77
Figura 18. Mapa das danças folclóricas do Estado ................................................................. 100
Figura 19. Luís da Câmara Cascudo ....................................................................................... 121
Figura 20. Dança do Araruna ................................................................................................. 122

TABELAS

Tabela 01. Grupos Folclóricos em Atividade ......................................................................... 100


Tabela 02. Grupos Folclóricos Desativados ........................................................................... 101
Tabela 03. Eventos Religiosos................................................................................................ 101

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
  11  

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12

1. Espaço escolar e ensino de História: uma discussão necessária ..................................... 21

1.1. Espaço escolar: discussões necessárias ao desenvolvimento dessa categoria de análise.. 21


1.2. Michael Foucault e Pierre Bourdieu: contribuições e limites............................................ 25
1.3. Recentes contribuições sobre o espaço escolar ................................................................ 33

2. As narrativas que mobilizam uma ideia de cultura norte-rio-grandense, seus autores e


perspectivas ............................................................................................................................. 41

2.1. A cultura que diz o norte-riograndense ............................................................................. 48


2.2. Quando a cultura se propõe estanque ................................................................................ 50
2.3. Patrimonializar para preservar ........................................................................................... 54
2.4. “Folcloriar” para não morrer ............................................................................................. 62
2.5. Tradição como a guardiã do passado contra a globalização ............................................. 73
2.6. Quem define a cultura “do” Rio Grande do Norte?........................................................... 82
2.7. Dos IHGB’s à universidade: o deslocamento das questões identitárias ............................ 93

3. Os usos e funções do ensino de História na disciplina ”Cultura do RN’’.................... 105

3.1. Para que serve o ensino de História? ............................................................................... 105


3.2. Currículo, relações de poder e identidades ...................................................................... 110
3.3. O livro Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte e seu caráter didático ................ 113
3.4. Experiência histórica e narrativa histórica: uma diferenciação necessária...................... 119
3.5. O livro didático regional e alguns parâmetros norteadores do PNLD ............................ 119
3.6. Noções de aprendizagem do ensino de História em relação à “Cultura do RN” ............ 126
3.7. Mobilizar narrativas na perspectiva de Rüsen ................................................................ 131
3.8. Identidade norte-rio-grandense e a ausência de diálogos ................................................ 136

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 140

REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 146
  12  

INTRODUÇÃO

Apresentação de danças folclóricas; preparação de comidas consideradas como


“típicas” do Estado; trabalhos com poemas de Auta de Souza, Zila Mamede e Henrique
Castriciano; visitas ao Forte dos Reis Magos, ao chamado “corredor cultural de Natal” e ao
Museu Câmara Cascudo constituem ações – além de outras de mesma natureza –
empreendidas, cotidianamente, no intuito de ensinar aspectos e manifestações da cultura
potiguar no ensino básico. A exposição e discussão de elementos culturais, tidos como
manifestações locais, costumam ter o objetivo de levar os alunos a conhecer e valorizar
aspectos da cultura nativa, enquanto dimensão do conhecimento histórico1.
Caminhando no sentido de atender às demandas colocadas socialmente, a estrutura
curricular do Ensino Fundamental do Estado do Rio Grande do Norte, durante o Governo de
Vilma de Faria, no ano de 2007, passou por uma modificação significativa: a
institucionalização da disciplina “Cultura do Rio Grande do Norte”. Tal medida visava a
organizar e sistematizar os conteúdos que deveriam ser trabalhados em “[...] todos os anos da
escolaridade do Ensino Fundamental” (RIO GRANDE DO NORTE, 2007a.) para o
conhecimento e divulgação de valores e expressões culturais locais relativos à identidade do
norte-rio-grandense2.
É importante ressaltar que a decisão do Estado3, em formular essas políticas, também
advém de demandas colocadas socialmente por grupos que sentem “carências de orientação”
(RÜSEN, 2010) e procuram suplantá-las de alguma forma. No caso específico da disciplina
em questão, observamos que esses grupos ligam-se a herança cultural e histórica de antigas
oligarquias locais do Rio Grande do Norte. Neste sentido, tentaremos evitar uma leitura
maniqueísta da instituição da dita disciplina. Sua “criação” não advém apenas de uma
possível coerção ou decisão verticalizada do Estado, visto que busca atender também a
anseios expostos por determinados grupos sociais. Contudo, observamos que a presente
pesquisa concentra-se na análise das ações do poder público estadual, particularmente, no

                                                                                                               
1
Ainda que esteja em constante litígio, em disputa, parte das elites cultural e política do Estado do Rio Grande
do Norte parece ter formado um consenso mínimo do que seja a “cultura nativa” ou “local”, a qual, pelo que se
pode apreender desse discurso, distinguiria um aquém de um além, definindo e particularizando esse potiguar.
Ver: GOMES NETO, 2011.
2
O “Conhecer” e o “divulgar” a cultura do Rio Grande do Norte, para a formação da identidade potiguar,
referem-se a um dos objetivos principais tanto para o Projeto de desenvolvimento do componente curricular
Cultura do RN quanto também das Diretrizes Curriculares Estaduais para o Ensino de Cultura do RN.
3
O Estado, neste trabalho, está sendo tomado a partir de uma perspectiva gramsciniana, isto é, compreendendo
que o Estado não limita-se ao aparelho repressivo de Estado, mas, sim, abrange uma série de instituições da
sociedade civil, tais como igrejas, escolas, sindicatos, academias etc. Ver: CHRITINNE, 1980.
  13  

estabelecimento da disciplina “Cultura do RN” para perceber como algumas dessas demandas
são postas por segmentos sociais diversos.
Sendo assim, pretendemos investigar o que o Estado vem entendendo como cultura do
Rio Grande do Norte e quais as demandas sócio-políticas que estão ligadas a essa necessidade
de instituir-se uma disciplina específica para se trabalhar “cultura do RN”. A análise dos
documentos oficiais, que institucionalizaram a disciplina – o “Projeto para o desenvolvimento
do componente curricular Cultura do RN”4 e as “Diretrizes Curriculares Estaduais para o
Ensino de Cultura do RN”5 –, e do livro – Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte –,
produzidos e relacionados a ela, possibilitará problematizar os elementos simbólicos que
foram, e/ou estão sendo, selecionados e/ou apresentados como constituintes de uma
concepção de cultura local. Neste processo, é imprescindível investigar também que
intelectuais estão inseridos nesse campo de produção (BOURDIEU, 1998), pensando esse
debate como um espaço no qual lutas simbólicas são travadas, levando determinados grupos
sociais a se sobreporem a outros de forma a se legitimarem.
A nova disciplina passou, então, a compor a estrutura curricular estadual em 2007,
ocupando parte da carga horária da disciplina de História e também, geralmente, ministrada
pelo profissional da área. Anterior à mudança curricular, o conteúdo disciplinar, referente à
parte diversificada, deveria ser trabalhado de forma interdisciplinar, como prevê o Artigo 137
da Constituição potiguar (RIO GRANDE DO NORTE, 1989):

as escolas públicas, de primeiro e segundo graus, incluem entre as disciplinas


oferecidas o estudo de cultura norte-rio-grandense, envolvendo noções básicas da
literatura, artes plásticas e folclore do Estado.

No ano de alteração curricular em questão, “Cultura do RN” foi de fato transformada


em componente curricular obrigatório nas escolas, sendo prevista nas Orientações
Curriculares para o Ensino Fundamental a seguinte determinação:

incluir na Parte Diversificada da Estrutura Curricular do Ensino Fundamental do 1o


ao 9o ano a disciplina de Cultura do RN, considerando que às questões Sociais e
Culturais do Estado devem sempre ser pautadas em estudos e reflexões, de modo a

                                                                                                               
4
O Projeto, para o desenvolvimento do componente curricular Cultura do RN, constitui-se em um documento de
13 (treze) páginas, não numeradas, que apresenta e desenvolve os seguintes tópicos: Apresentação, Objetivos,
Objetivos, Metodologia, Plano de ação, Cronograma de execução, Informações técnicas para cálculos do plano
de ação e Memória de cálculos.
5
As Diretrizes Curriculares Estaduais para o Ensino da Cultura do RN se constituem em um documento de 09
(nove) páginas, não numeradas, que apresenta e desenvolve os seguintes tópicos: Diretrizes – no total de três -,
Indicações de leitura, Conclusão e Referências.
  14  

fortalecer o entendimento das relações sócio-político e culturais. (RIO GRANDE


DO NORTE, 2007).

Assim, o novo componente curricular foi orientado a ser incluído na Parte


Diversificada6 do currículo das escolas públicas estaduais. Faz-se necessário ressaltar que nos
documentos bases, que estabeleceram como deveria se dar o desenvolvimento da disciplina –
o Projeto e as Diretrizes –, não apareceram expressamente que o componente curricular
ocuparia parte do que antes se constituía a carga horária da disciplina de História. Contudo,
no quadro esquemático da estrutura curricular, fornecido pela Secretaria Estadual de
Educação e Cultura (SEEC), consta que, depois da reforma, a disciplina de História ficaria
com duas aulas semanais e a de “Cultura do RN” com uma aula semanal. Anterior à reforma,
a carga horária da disciplina de História para o Ensino Fundamental era constituída de três
aulas semanais.
Quanto ao profissional responsável por ministrar o componente curricular, nenhum
dos documentos mencionados carregam essa informação. Os textos, tanto do Projeto quanto
das Diretrizes, quando se referem ao profissional encarregado pela disciplina, não o
especificam como constatamos nos seguintes trechos: “capacitação de professores da rede
estadual, ministrantes do componente curricular Cultura do RN”, mais ainda, o “público alvo
[Plano de Ação]: todos os professores ministrantes do componente curricular Cultura do RN
do Ensino Fundamental da Rede Estadual de Ensino", conforme o Projeto para o
desenvolvimento do componente curricular Cultura do RN (RIO GRANDE DO NORTE,
2007a.); já as Diretrizes Curriculares Estaduais para o Ensino de Cultura do RN ressaltam que
“estes documentos estão indicados como referenciais teóricos e metodológicos para os
professores que ministram Cultura do RN” (RIO GRANDE DO NORTE, 2007b).
Ao realizarmos uma pesquisa de campo na SEEC, também não obtivemos nenhuma
informação sobre de que área específica deveria ser o professor que desenvolveria a disciplina.
Na realidade, não conseguimos muitas informações sobre o planejamento e discussões
referentes ao novo componente curricular. A Secretaria se justificou afirmando que a seção
responsável por tais informações havia sido extinta: a Comissão de Currículo que fazia parte
do órgão.

                                                                                                               
6
Os componentes curriculares previstos para compor a Estrutura Curricular de 2007 foram: Língua Estrangeira e
Cultura do RN.
  15  

Uma pesquisa de campo também foi realizada em 05 (cinco)7 escolas públicas da rede
estadual de Ensino Fundamental e em todas constatamos que a grade curricular estava em
consonância com a fornecida pela Secretaria. Ou seja, depois da reforma, a disciplina de
História ficou apenas com duas aulas semanais, assim, passando uma ao novo componente
curricular. Quanto aos professores encarregados por ministrar “Cultura do RN”, em todas as
escolas, a direção se posicionou no sentido de afirmar que geralmente era o professor de
História quem se incumbia pela disciplina. A exceção dava-se apenas quando este professor já
tinha sua carga horária preenchida ou quando faltava. Nestes casos, as aulas poderiam ser
direcionadas a outros professores da área de humanas, como os de sociologia, filosofia, artes e
geografia.
A partir dessas informações preliminares, sugerimos, então, que o direcionamento do
desenvolvimento do componente curricular “Cultura do RN” ao ensino de História fez parte
de um “movimento natural”, no qual a disciplina de História foi tomada enquanto um espaço
ligado às questões culturais de uma sociedade e, por isso, relacionada à formação da
identidade de um povo. Nesse sentido, o deslocamento e, consequentemente, o encontro da
disciplina “Cultura do RN” com o ensino de História, na perspectiva deste trabalho, é possível
devido a uma tendência deste último a ser compreendido enquanto um espaço que exerce uma
funcionalidade de trabalhar as questões ditas culturais para a construção um sentimento
identitário entre os indivíduos.
Em outros termos, podemos dizer que parece haver um consenso na intelectualidade
local que ao ensino de História é reservado a tarefa de mobilizar a dimensão cultural e,
sobretudo, de despertar e/ou construir um sentimento de pertencimento entre os indivíduos de
uma comunidade. Assim sendo, existe um pressuposto de que a vinculação entre cultura e
ensino de História está inserida na própria concepção deste último, isto é, o ensino de História
enquanto espaço de práticas formadoras de identidades (CERTEAU, 1999). Nesse ponto
reside um dos objetivos dessa pesquisa: pensar os usos e funções do ensino de História em
relação à construção de identidades.
Partindo do pressuposto de que as identidades, antes de pré-existir, são frutos de
relações sociais distintas e, por isso, construídas de acordo com os desejos e necessidades dos
indivíduos. Para tanto, investigaremos a disciplina “Cultura do RN” – inserida no ensino de

                                                                                                               
7
As escolas pesquisadas foram: Escola Estadual Professora Zila Mamede, Escola Estadual Governador
Walfredo Gurgel, Escola Estadual Professora Maria Nalva Xavier Albuquerque, Escola Estadual Henrique
Castriciano de Souza e Escola Estadual as Marias; sendo que as 03 (três) primeiras localizadas no município de
Natal e as 02 (duas) últimas, uma no município de Macaíba e a outra sendo no distrito deste, “As Marias”.
  16  

História – caracterizada enquanto uma política de Estado que relaciona determinada


concepção de cultura a uma identidade local.
Pensando este cenário, uma das ações para o desenvolvimento do novo componente
curricular chama uma especial atenção: a aquisição e distribuição do livro intitulado
Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte, com autoria conjunta de Tarcísio Gurgel,
Vicente Vitoriano e Deífilo Gurgel, a fim de servir como fonte para o ensino de “Cultura do
RN”. Esta obra foi adquirida pelo governo estadual, impressa numa gráfica comercial e, de
acordo com o Projeto, amplamente distribuída nas escolas da rede estadual de ensino.
As narrativas do livro supracitado serão as principais fontes para observarmos quais os
elementos culturais foram e/ou estão sendo selecionados como pertencentes a uma ideia de
cultura do RN. Além disso, investigaremos quais as potencialidades dessa concepção de
cultura para a formação da identidade do norte-rio-grandense e para o processo de ensino e
aprendizagem regular de História.
Se a disciplina “Cultura do RN” tem por objetivo o conhecimento e a divulgação de
valores relativos à identidade de um povo, questiona-se: ela já existe? Que identidade é essa?
Ou essa política pública empreendida pelo Estado do Rio Grande do Norte visa exatamente à
construção dessa identidade a partir de determinadas expressões culturais? Será que existe
uma operação para se constituir uma comunidade imaginada (ANDERSON, 2008)? Se assim
for, como esse processo está se dando?
Sabemos que um processo de construção identitária é envolto por conflitos e
contradições que tendem a ser negadas em prol de uma homogeneização (ANDERSON,
2008). Nas leituras iniciais dos documentos que estabeleceram a disciplina e do livro que foi
distribuído para o seu desenvolvimento, a ideia de uma cultura do Rio Grande do Norte liga-
se às fronteiras administrativas que limitam e distanciam o Rio Grande do Norte de outras
espacialidades. Isto é, o norte-rio-grandense constitui-se enquanto tal devido à territorialidade
que ocupa.
Pensar numa ideia de cultura “do” RN e não “no” RN nos remete, inicialmente, a
questionarmos a relação prepositiva entre os dois termos – cultura e Rio Grande do Norte –,
uma vez que o primeiro caso – o “do” – carrega um sentido de posse, enquanto no segundo –
o “no” – encarna um sentido mais dinâmico, de circularidade. Em outros termos, podemos
inferir que uma concepção de cultura “do” RN parece indicar que a divisão territorial tem
como propriedade uma cultura específica, particular, que não se confundiria com as
expressões culturais de outras territorialidades.
  17  

Vemos então que, ao trabalhar uma concepção de cultura em um espaço didático, o


Estado a partir da seleção, indicação e produção de vários documentos, vem definindo uma
ideia de cultura que faz parte da identidade potiguar. Dessa forma, consideramos de extrema
importância investigar quais as proposições apresentadas para o desenvolvimento da
disciplina, observando os parâmetros que estão sendo utilizados para definir uma cultura
potiguar, estabelecendo o que faz e, em contrapartida, o que não faz parte da mesma. Sabendo
disso, algumas questões vêm à tona: 1 – o que o Estado do Rio Grande do Norte está
“entendendo” como uma cultura do RN? 2 – quais as motivações que levaram o Estado a
instituir uma ideia de cultura do RN? 3 – quais as práticas efetivadas no sentido de se elaborar
uma cultura do RN a ser ensinada? 4 – a partir de uma concepção de cultura, que o Estado
encarna, como a identidade norte-rio-grandense está sendo pensada a partir da produção de
um livro específico para ser trabalhado na disciplina? 5 – e ainda, o questionamento central
dessa pesquisa, de que forma as narrativas de uma ideia de cultura do RN foram construídas e
mobilizadas em relação aos usos e funções do ensino de História?
Para responder estes questionamentos, desenvolvemos essa pesquisa em três capítulos
que visam discutir respectivamente: 1) o espaço escolar enquanto um constructo social,
formado por relações e práticas sociais distintas, bem como, seus usos e funções, inclusive, no
que diz respeito ao ensino de História; 2) as narrativas que foram construídas para serem
trabalhadas no ensino da disciplina “Cultura do RN”, analisando seus autores e perspectivas;
3) pensar como se deram os usos e funções do ensino de História em relação a uma concepção
de cultura veiculada na disciplina “Cultura do RN” e quais suas potencialidades em relação ao
processo de ensino e aprendizagem histórica.
No capítulo 01 desta pesquisa, denominado Espaço escolar e ensino de História:
algumas discussões necessárias, apresentaremos, por meio de um balanço historiográfico,
uma breve discussão sobre o espaço escolar, uma vez que essa categoria de análise é
extremamente significativa para pensarmos algumas questões que estão envolvidas no ensino
de História e, consequentemente, na disciplina “Cultura do RN”. A escola, nesse sentido, será
tomada enquanto um construto social e cultural (FRAGO; ESCOLANO, 2001), que está para
além de questões meramente cognitivas e educacionais.
Para tanto, desenvolveremos esse capítulo a partir das teorias de Michael Foucault e
Pierre Bourdieu, no sentido de buscarmos as contribuições que estes autores deram,
principalmente, no que tange à utilização do espaço escolar por instrumentos e estratégias de
poder de grupos sociais diversos, bem como, apresentando os limites que estas teorias
ocupam, levando-se em consideração outras possibilidades de formação deste espaço. Para
  18  

ampliarmos as perspectivas de compreensão do espaço escolar, entendendo que as relações


por ele vividas extrapolam os mecanismos de dominação, ao passo que os instrumentos de
dominação não são meramente impostos, mas sim disputados/negociados a partir da ação dos
agentes escolares, contamos com as contribuições de autores como Maurice Tardif, Claude
Lessard, Agustín Escolano, Jörn Rüsen e Michel de Certeau, Margarida Maria Dias de
Oliveira, Luís Fernando Cerri e Flávia Eloísa Caimi8.
Além disso, pensar o espaço escolar oferece contribuições para a própria área de
concentração na qual esta pesquisa se insere, haja vista que o espaço é a categoria central do
Programa de Pós-Graduação em História e Espaços da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte – PPGH/UFRN. Sobretudo, porque evita-se incorrer pensar o ensino segundo a ideia
de que a escola é um espaço de aplicação de regras e metodologias, e, nessa perspectiva,
tomada na qualidade de mero espaço físico. Assim, almeja-se tomar o ensino escolar
enquanto uma construção que, antes de existir a priori, é formado a partir de signos e
significados que lhes são atribuídos pelos sujeitos que o compõem.
O capítulo 02, intitulado As narrativas que mobilizam uma ideia de cultura norte-rio-
grandense, seus autores e perspectivas, foi construído a partir de discussões e análises de
determinada concepção de cultura que está sendo mobilizada na disciplina “Cultura do RN”,
sobretudo, no que tange às narrativas do livro Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte.
Pensando, inclusive, o lugar social dos autores do livro e suas perspectivas culturais que, no
caso desse objeto de pesquisa, se vinculam a um projeto de identidade local, a do norte-rio-
grandense.
Inicialmente, apresentaremos os documentos base que institucionalizaram a disciplina
“Cultura do RN” e os materiais produzidos, indicados e distribuídos para o desenvolvimento
do novo componente curricular, da mesma maneira que buscamos refletir o deslocamento da
disciplina “Cultura do RN” em relação ao ensino de História, compreendendo os pressupostos
e processos que ligam as questões culturais apresentadas ao conhecimento histórico.
É importante ressalvar que o termo cultura assume, em termos e espaços distintos,
concepções bastante variadas. Por isso, nos diagnósticos realizados durante essa pesquisa,
não objetivamos a tarefa de posicionar-se entre uma ou outra noção de cultura, senão o
objetivo de analisar e compreender quais concepções de cultura foram projetadas para serem
mobilizadas, exclusivamente, na disciplina “Cultura do RN”.

                                                                                                               
8
Entendemos que não é tanto a coerência entre propostas teóricas diversas, mas como o conjunto destas
propostas permite pensar o objeto em questão de forma nova, criativa e funcional para seu momento.
  19  

Assim, caminhando nas veredas do que se definiu como uma cultura potiguar, a partir
das proposições do projeto de desenvolvimento da disciplina, procuramos discutir como as
questões culturais relacionadas a uma territorialidade potiguar estão ligadas ao processo de
patrimonialização e folclorização das chamadas expressões culturais, com base, sobretudo,
nas contribuições teóricas de Cecília Londres, Néstor Garcia Canclini, Michel de Certeau e
Durval Muniz de Albuquerque Júnior9. Detectamos como, neste processo, a “tradição” é
chamada enquanto elemento fundamental das políticas públicas que versam sobre cultura e
patrimônio.
Também no segundo capítulo, após analisarmos as concepções de cultura mobilizadas
na disciplina “Cultura do RN”, sobretudo a partir do livro Introdução à Cultura do Rio
Grande do Norte, investigaremos o seu campo de produção (BOURDIEU, 1998), ou seja, os
autores Tarcísio Gurgel, Vicente Vitoriano e Deífilo Gurgel, identificando as referências
intelectuais destes, a fim de apontar quais memórias foram colocadas em movimento no
componente curricular. Deste modo, toma-se a disciplina de História, no que tange ao
desenvolvimento de “Cultura do RN”, enquanto espaço de disputas, envolto por estratégias de
dominação (BOURDIEU, 1996) por parte de diferentes grupos que tentam legitimar valores e
práticas. Observamos na institucionalização discutida uma perspectiva reprodutivista para a
escola. O espaço escolar, em geral, e o ensino de História, em específico, é “alvo” de disputas
de grupos que tentam “comunicar” determinadas concepções da realidade.
Compreendendo que a definição de determinada ideia de cultura do Rio Grande do
Norte foi mobilizada a partir de uma demanda social direcionada à escola, com o terceiro e
último capítulo, denominado Os usos e funções do ensino de História na disciplina “Cultura
do RN”, buscaremos relacionar os usos e funções sociais do ensino de História em relação à
disciplina “Cultura do RN”, problematizando como o conhecimento histórico é utilizado
como espaço de lutas e interesses sociais diversos.
Essa utilidade social do saber historicamente construído busca um sentido de
orientação temporal e espacial, de acordo com o historiador e filósofo Jörn Rüsen. Dessa
forma, inicialmente, refletiremos sobre a função social da história (RÜSEN, 2010) referente à
construção de um sentimento identitário, no caso específico dessa pesquisa, dos indivíduos
que estão circunscritos no Estado do Rio Grande do Norte. De acordo com o historiador, a
movimentação do conhecimento histórico estaria vinculada exatamente a esse sentido de

                                                                                                               
9
Apesar de alguns desses autores pertencerem a escolas teóricas diversas, a instrumentalização de suas teorias
foram fundamentais para pensar o processo de patrimonialização e folclorização, bem como as concepções de
tradição que os transitam diante da institucionalização da disciplina “Cultura do RN”.
  20  

continuidade que as narrativas históricas possibilitam. Assim, compreendendo o ensino como


necessidades sociais e políticas e, por isso, constituindo-se enquanto uma esfera de disputas.
De tal forma que a institucionalização da disciplina em questão nos fornece elementos
significativos para pensar os usos e funções sociais que do ensino de História em relação à
construção de identidades. Fazer conhecer e “reconhecer” a identidade do “ser potiguar” pode
ajudar a compreender quais as relações sociais e de poder estão inseridas nessa política
pública educacional.
Para promover uma reflexão nesse sentido, utilizaremos, sobretudo, das contribuições
teóricas de Jörn Rüsen e, especialmente, Pierre Bourdieu, tendo em vista que suas análises
superaram a ideia da neutralidade das instituições escolares, contribuindo para perceber as
estratégias de utilização do sistema escolar pelos diferentes grupos sociais, com o intuito de
legitimar seus valores e práticas. Assim, compreendendo como as disciplinas, currículos,
materiais didáticos, entre outros, podem servir de instrumento de dominação a determinados
grupos sociais.
Sabendo disso, no último capítulo, analisaremos aspectos do livro Introdução à
Cultura do Rio Grande do Norte, que não “nasceu” como livro didático, mas que, a partir de
uma análise prévia, em sua organização, formatação e objetivos assemelha-se aos seus usos e
funções. Dessa forma, visamos identificar quais as definições de um livro didático e suas
potencialidades em sala de aula, inclusive relacionando-o aos parâmetros hoje estabelecidos
pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para realizarmos comparações com o
livro em questão. Para tanto, utilizaremos, ainda que de forma resumida, não apenas
documentos referentes a este programa como também dois livros didáticos regionais 10
submetidos à avaliação – e exclusão – do PNLD nos anos de 2007 e 2010, objetivando pensar
essas obras como norteadoras do entendimento do que está sendo aceito e/ou negado no que
tange ao ensino de História, de modo a fazer um paralelo com as concepções de história,
memória e cultura que foram mobilizadas no livro Introdução à Cultura do Rio Grande do
Norte.
Analisar um livro, nesse caso, não diz respeito apenas a identificar ausências e erros
relacionados aos conteúdos, mas sim compreender seu processo de produção, distribuição e
possibilidades de uso e funções no espaço escolar. Inclusive, problematizando como o livro
didático tem se tornado o currículo escolar e quais as possíveis implicações nesse processo.

                                                                                                               
10
Os livros em questão foram: Para Conhecer a História do Rio grande do Norte, de autoria de Marlene da
Silva Mariz e Valda Marcelino Tolkmitt, e Rio Grande do Norte: história, cultura e identidade, de autoria de
Marlúcia Galvão Brandão.  
  21  

Chegando a um dos pontos fundamentais que motivou este trabalho: quais as noções de
aprendizagem e ensino de História que estão sendo perspectivadas/projetadas para a disciplina
“Cultura do RN”.

CAPÍTULO 01: Espaço escolar e ensino de História: uma discussão necessária.

1.1 Espaço escolar: discussões necessárias ao desenvolvimento dessa categoria de análise.

A escola no Brasil, atualmente, vem sendo concebida enquanto um espaço de


resolução de vários problemas sociais. Cabe a ela a “missão”, em seu sentido metafórico, de
conduzir e desenvolver nos alunos as mais diversas habilidades, desde a formação para o
mundo do trabalho até a atuação cidadã num sistema democrático de direito. Assim a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei no 9.394/06), que disciplina o sistema
educacional no país, prescreveu em seu artigo 2o:

a educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos


ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho. (BRASIL, 1996, p. 07)

Não é de hoje que a escola é compreendida como uma instância capaz de resolver e
pensar os problemas sociais. Sua criação nos mais diversos tempos e espaços veio a responder
diferentes anseios da sociedade. Nas sociedades modernas, principalmente, devido à
complexificação dos processos científicos, preparar os indivíduos para atuarem nos processos
práticos destas sociedades constituiu-se numa tarefa fundamental e estratégica para a
sustentação das organizações sociais.
Contudo, de acordo com novas relações sociais, tempos e espaços vivenciados pelas
sociedades modernas, as concepções de ensino e aprendizagem alteraram-se no sentido de
responder às novas demandas. Assim, se há algumas décadas, no Brasil especificamente,
buscava-se na escola a função de “transmissão” e “assimilação” do conhecimento nas diversas
áreas de ensino, atualmente, o ensino escolar pauta-se pela necessidade de diálogo entre os
agentes escolares e as instâncias sociais no sentido de construir um pensamento crítico e
reflexivo.
Com as transformações ocorridas no Brasil, no final da década de 1970 e início da
década de 1980, provocadas pelo declínio das relações sociais e políticas autoritárias,
  22  

emergiram nas várias instâncias sociais questionamentos em relação à escola e seu processo
educativo. De acordo com Caimi (2001, p. 16),

[...] inúmeros setores da comunidade educacional, organizados em associações


científicas e sindicais, passaram a questionar o processo educativo acadêmico e
escolar; os movimentos sociais ganharam espaços públicos; as associações de
classes e entidades representativas conquistaram o reconhecimento de amplos
setores educacionais. Nesse contexto, também os professores, articulados por meio
dessas associações, passaram a promover encontros, congressos e seminários, cujo
propósito era a reflexão sobre os pressupostos teóricos, metodológicos e
historiográficos da ação pedagógica e o redimensionamento de suas práticas
educativas e sociais.

Diante desse quadro, a escola constitui-se como um espaço garantidor dos desejos e
direitos que a sociedade considera como fundamentais. No exercício com a cidadania e o
mundo de trabalho, várias demandas foram direcionadas ao espaço escolar a fim de serem
atendidas. Estado, família, movimentos sociais e a sociedade como o todo formam grupos e
instituições que buscam responder suas necessidades no tempo por meio da escola, tornando-
se, assim, um espaço de práticas e lutas que são travadas pelos diferentes grupos, isto é,

podemos perceber a importância da escola e de seu funcionamento na conformação


e no alcance de finalidades sociais mais amplas provenientes de diferentes grupos
sociais que disputam o poder político de uma dada sociedade. [...] A escola, como as
demais instituições sociais, abriga indivíduos que estão vinculados a grupos sociais
que lutam por suas ideias e crenças e que, por vezes, utilizam-se do espaço escolar
para disseminar seus pontos de vista em relação à forma de viver em sociedade
(GATTI JUNIOR apud POTIER, 2014, p. 21).

Neste cenário, a inclusão de tópicos, disciplinas e outras formas de situação didática –


que podem incluir a música, a educação sexual, a história dos povos africanos e indígenas –
são exemplos de questões enfrentadas pela sociedade brasileira de fins do século XX e início
do XXI, uma vez que são conteúdos pautados para compor uma estrutura curricular a partir de
necessidades e desejos dos sujeitos sociais. Uma formação cidadã, dessa forma, passa pelos
diferentes anseios que são apresentados em relação aos direitos socioculturais. Para
exemplificar, tomemos como exemplo a mudança na LDB, a partir da Lei nº 11.645 de 2008,
que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de história da cultura afro-brasileira e indígena
como fruto de demandas de grupos ligados aos movimentos sociais e às próprias comunidades
dos descendentes de negros e índios no Brasil. Assim, essa legislação direcionou a educação
básica de modo a estabelecer que
  23  

nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e de Ensino Médio, públicos e


privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.
[...] § 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população
brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da
África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura
negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional,
resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à
história do Brasil (BRASIL, 1996)11.

Verifica-se, portanto, que a escola é um elemento em constante disputa de interesses


por vários grupos e categorias que tentam suprir suas carências sociais. Nesse sentido,
compreende-se que a institucionalização da disciplina “Cultura do RN” – objeto em questão
desse estudo –, visando ao conhecimento dos elementos culturais que fazem parte da
identidade do norte-rio-grandense, inserida no ensino de História, faz parte de mais uma
demanda social, na qual grupos voltam-se para a escola, a partir de uma política de Estado, a
fim de que este possa dar respostas a suas necessidades sociais.
Sendo assim, se faz necessário compreender qual a função da escola e,
especificamente, do ensino de História na vida dos sujeitos. Para tanto, a análise das formas
como os currículos escolares foram pensados nos últimos anos auxilia na reflexão sobre as
diversas relações que estão envolvidas no ensino de História e, mais amplamente, no espaço
escolar, uma vez que tal categoria é fundamental para entender o objeto em questão. Por isso,
antes de especificamente desenvolver nosso objeto de estudo – a criação da disciplina
“Cultura do RN” –, promoveremos uma discussão das distintas relações sociais que se
processam na escola, enfocando-as a partir da disciplina de História.
O ensino escolar é uma criação moderna que se desenvolveu há acerca de quatro
séculos, passando no final desse período a configurar-se enquanto dimensão importante na
sociedade contemporânea. O espaço escolar deve ser pensado e analisado de maneira que
possamos compreender melhor sua formação. Quando refletimos sobre a dicotomia, existente
até hoje no Brasil, entre pesquisa e ensino, este último é muitas vezes concebido apenas na
qualidade de um espaço de aplicação do conhecimento acadêmico de forma simplificada, e
não como um espaço construído pelas mais diversas relações sociais.
No tocante ao ensino de História, existe uma concepção que o concebe como uma
espécie de “miniaturização” do que ocorre nas academias. Isto é, o “pensar historicamente”
em sala de aula daria-se a partir de um processo de simplificação dos estudos desenvolvidos

                                                                                                               
11
Redação do artigo 26-A da LDB/1996 conforme a Lei 11.645 de 2008.
  24  

no ambiente acadêmico. Tal concepção pode comprometer negativamente as formas como os


pressupostos da Ciência da História devem ser trabalhados numa situação didática, na qual o
trabalho com fontes e a produção do conhecimento histórico, reservadas as devidas diferenças,
dão-se em igual importância ao trabalho acadêmico.
Além de tentar ultrapassar esse descompasso entre o “pensar historicamente” na
academia e no ensino escolar – tomar a escola e, em específico, o ensino de História como
espaços socialmente construídos –, a presente pesquisa pode contribuir de forma significativa
para a área de concentração do Programa de Pós-graduação em História, que tem como
categoria central o espaço, na qual esta dissertação desenvolve-se. Mais do que um constructo
físico, é preciso entender que o espaço escolar é uma construção social e, por isso, envolto em
processos de significações, disputas, estratégias de dominação, apropriações, etc. De acordo
com Maurice Tardif e Claude Lessard (2007, p. 7),

[...] pode-se afirmar que o ensino em ambiente escolar representa, em igual título
com a pesquisa científica, o trabalho industrial, a tecnologia, a criação artística e a
prática política, uma das esferas fundamentais de ação nas sociedades modernas, ou
seja, uma das esferas em que o social, através de seus atores, seus movimentos
sociais, suas políticas e suas organizações, volta-se reflexivamente a si mesmo para
assumir-se como objeto de atividades, projeções de ação e, finalmente, de
transformações.

Sabendo disso, mesmo que de forma limitada, as mais diversas áreas científicas vêm
ocupando-se em discutir a escola e seus agentes, desde as ciências sociais, a filosofia, a
história e, sobretudo, a educação. No Brasil, ocorreu a predominância de estudos sobre a
escola naquele último campo, o que, muita vezes, impediu que essa instituição fosse vista em
suas múltiplas relações, entendendo que cada área tem sua contribuição específica dentro de
uma situação pedagógica. Em outras palavras, podemos dizer que não devemos reservar
apenas aos estudos pedagógicos a tarefa de compreender o espaço escolar em sua totalidade,
uma vez que cada disciplina deve pensar os seus usos e funções numa situação didática que
excede o campo consagrado da pedagogia em suas dimensões sociais e históricas. Assim, o
historiador e filósofo Jörn Rüsen, por exemplo, desenvolveu para o ensino de História, ou seja,
o saber construído pela ciência da História em uma situação de aprendizagem histórica, o que
ele chamou de uma Didática da História:

[...] a teoria da História assume, pois, no campo da formação histórica, uma função
didática de orientação. A teoria da História torna-se, assim, uma didática, uma
teoria do aprendizado histórico [...]. Essa função didática de orientação da teoria da
história pode ser exemplificada com o ensino de história nas escolas. Trata-se de um
equívoco comum (e não só dos historiadores, que não têm a menor noção do
  25  

funcionamento das escolas, mas também – e infelizmente – de não poucos


professores de 1º e 2º graus) organizar a disciplina ‘história’, nas escolas, como uma
miniatura da especialidade científica (RÜSEN, 2010a, p. 49-50).

Relegar a compreensão do espaço escolar exclusivamente à ciência da educação tem,


muitas vezes, incorrido na compreensão da escola apenas como um espaço de execução de
técnicas e metodologias que facilitam a aprendizagem. Não estamos, com isso,
desconsiderando as contribuições da ciência da educação, mas, sim, pensando no papel que
cada ciência específica deve desempenhar na construção do conhecimento num espaço
didático. Como afirmou a historiadora Margarida Maria Dias de Oliveira (2011, p. 169),

sem desmerecer as enormes contribuições das ideias pedagógicas stricto sensu, é


possível afirmar que o debate por elas homogeneizado não contribui para o
desenvolvimento da discussão sobre o ensino em cada área dentro da própria área.
Pelo contrário, ajudou no deslocamento das questões do ensino para o âmbito
restrito da Pedagogia, institucionalizando a dicotomia sobre a produção do
conhecimento e seu ensino.

Pretendemos, neste primeiro momento, fazer uma discussão historiográfica,


principalmente, a partir da ciência histórica, de modo a contribuir para os estudos sobre o
ensino de História ou, mais amplamente, sobre o espaço escolar, tomando-o enquanto um
espaço “vivo”, construtor e não apenas simplificador do conhecimento erudito.
Inicialmente, discutiremos algumas contribuições de estudos de Michel Foucault e
Pierre Bourdieu no que tange às instituições escolares, mesmo que atualmente já se encontrem,
de certa forma, superadas e/ou limitadas em relação às recentes produções historiográficas.
Em um segundo momento, promoveremos um debate entre produções mais recentes que nos
permitirão pensar de maneira mais abrangente esse espaço escolar.

Michael Foucault e Pierre Bourdieu: contribuições e limites

As relações de poder, que estão envolvidas na organização da educação, foram


problematizadas nas teorias de Michel Foucault e Pierre Bourdieu, autores que contribuíram
de forma significativa para pensar como o espaço escolar é alvo de demandas e disputas
sociais.
Michel Foucault se debruçou sobre os mecanismos panópticos que faziam parte da lógica de
organização das instituições escolares, no final do século XVII e decorrer do século XVIII.
De acordo com Foucault (1986, p. 126), as disciplinas já existiam há muito tempo, no entanto,
foi nos séculos XVII e XVIII que elas se tornaram “[...] fórmulas gerais de dominação”.
  26  

Assim, várias instituições foram alvo de desenvolvimento do poder disciplinar. Em sua obra
Vigiar e Punir, ele elencou instituições como quartéis, hospitais, escolas e manicômios como
espaços que passaram a ser pensados minuciosamente em sua estrutura e regras de
convivência, de modo a permitir um controle eficaz sobre os sujeitos que nelas se
encontravam.
Em Vigiar e Punir, trabalhou a teoria de que a escola desempenhava a função de
instituição disciplinadora, utilizada para “docilizar” os corpos, isto é, “[...] um corpo que pode
ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”
(FOUCAULT, 1986, p. 126). Nessa perspectiva, a instituição escolar serviria ao fim
disciplinar, levando os sujeitos a caminharem de acordo com regras pré-estabelecidas.
Referente ao espaço escolar, Foucault (1986, p. 134) exemplifica as classes e as fileiras como
mecanismos disciplinadores, uma vez que

[...] pouco a pouco – mas principalmente depois de 1762 – o espaço escolar se


desdobra; a classe torna-se homogênea, ela agora só se compõe de elementos
individuais que vêm se colocar uns ao lado dos outros sob os olhares do mestre. A
ordenação por fileiras, no século XVIII, começa a definir a grande forma de
repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos na sala, nos corredores,
nos pátios; colocação atribuída a cada um em relação a cada tarefa e a cada prova;
colocação que ele obtém de semana em semana; de mês em mês; de ano em ano; a
das classes de idade uma depois da outra; sucessão dos assuntos ensinados, das
questões tratadas segundo uma ordem de dificuldade crescente. E nesse conjunto de
alinhamentos obrigatórios, cada aluno, segundo sua idade, seus desempenhos, seus
comportamentos, ocupa ora uma fila, ora outra; ele se desloca o tempo todo numa
série de casas; umas ideais, que marcam uma hierarquia do saber ou das capacidades,
outras devendo traduzir materialmente no espaço da classe ou do colégio essa
repartição de valores ou dos méritos.

Dessa maneira, percebemos que a organização da escola não era de forma alguma
natural, tanto no passado como hoje em dia. Existe uma racionalidade que envolve sua
estrutura arquitetônica, currículo, regras, rotina, tornando-se, assim, alvo de interesses de
grupos que buscam controlar disciplinarmente seus valores e práticas. Para Foucault, tanto a
estruturação física do espaço na escola (distribuição dos lugares como salas e pátios para fins
específicos) como o estabelecimento de ordens em rotinas (horários, afazeres), aprendizado
(currículo), compunham a instituição como disciplina. Uma vez que os elementos desta escola
do século XVIII persistem no século XX, a ideia de escola como domesticadora de corpos e
saberes continha, no fundo, uma crítica de Foucault ao mundo que lhe era contemporâneo.
Ao longo do século XVIII, de acordo com Foucault, as instituições modernas
desenvolveram formas mais intensas de caráter disciplinador. Aquele contexto, especialmente,
sofreu profundas alterações em suas relações sociais, econômicas e na vida dos trabalhadores,
  27  

devido, sobretudo, ao processo conhecido por Revolução Industrial. Sabendo disso, os


mecanismos de controle fizeram-se fundamentais para um maior disciplinamento da
sociedade e suas instituições. À escola moderna coube a função de formar indivíduos com
perfis adequados para as novas mudanças que se processam na sociedade. Perfis estes que
estavam ligados a interesses ideológicos e políticos e que levaram a escola, nesse momento, a
ser uma instituição fundamental no processo de disciplinamento dos indivíduos. Refletindo
numa constituição histórica do que atualmente entendemos como espaço escolar, podemos
pensar que a teoria Foucault lançou as bases inovadoras para entender as distintas relações
que se operam no que hoje compreendemos como espaço escolar, indo além de questões
meramente pedagógicas e investigando os mecanismos de controle que, até os dias atuais, são
operacionalizados para vigilância e “docilização” dos corpos. Dessa forma, Foucault percebeu
a escola para além de sua forma física e os investimentos sociais que a ela foram, e são,
direcionados.
Caminhando no mesmo sentido, os estudos teóricos de Pierre Bourdieu foram
extremamente importantes para superar a ideia de neutralidade das instituições escolares,
significando uma abertura para se pensar o currículo por meio de uma teoria crítica12 .
Currículo este que se constitui enquanto um “corpus formal” construído a partir de símbolos e
significados previamente estruturados e, por isso, envolvidos por relações de poder. Bourdieu
definiu este processo a partir da ideia de estruturas estruturantes, as quais tem como
finalidade a mobilização de símbolos que levem a determinadas concepções da realidade. Ou
como definiu:

os ‘sistemas simbólicos’, como instrumentos de conhecimento e de comunicação, só


podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. O poder simbólico é
um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem
gnosiológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social)
supõe aquilo a que Durkheim chama de o conformismo lógico, quer dizer, ‘uma
concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna
possível a concordância entre as inteligências’. [...] Os símbolos são os instrumentos
por excelência da ‘integração social’: enquanto instrumento de conhecimento e de
comunicação, eles tornam possível o consensus a cerca do sentido do mundo social
que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração
‘lógica’ é a condição da integridade moral (BOURDIEU, 1998, p. 09-10).

Para Bourdieu, o processo de estruturação dos símbolos produzem realidades sociais


homogêneas e conformativas, que, por sua vez, podem levar a uma ideia de consenso social,
na medida em que os conflitos são apagados em prol de uma conformidade social. Isso deve-

                                                                                                               
12
Ver: NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006.
  28  

se não pela ausência de inteligência ou práticas de raciocínio dos sujeitos, mas sim pelo
trabalho eficaz com que os símbolos são estruturados de modo a atuarem silenciosamente.
Neste processo, o campo de produção se faz fundamental, uma vez que é por meio dos ditos
especialistas (intelectuais e letrados, em geral) que as estruturas serão estruturadas, ou seja, os
símbolos serão mobilizados pelos especialistas de forma a produzir uma ideia de realidade e,
consequentemente, produzir um consenso sobre a mesma.
As produções simbólicas, dessa forma, tornam-se interessantes para grupos sociais que
desejam produzir determinadas concepções de realidade, haja vista que o consenso que
“aparentemente” provocaria uma harmonia, funciona na prática como um instrumento de
grupos para impor determinadas regras e distinções sociais:

a cultura que une (intermédio de comunicação) é também a cultura que separa


(instrumento de distinção) e que legitima as distinções compelindo todas as culturas
(designadas como subculturas) a definirem-se pela sua distância em relação à cultura
dominante. É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e
de conhecimento que os ‘sistemas simbólicos’ cumprem a sua função política de
instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para
assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o
reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo,
assim, segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos dominados”
(BOURDIEU, 1998, p.11).

Forjada através das estruturas estruturantes, a distinção social também produz o que o
autor chamou de violência simbólica. De acordo com ele, a violência simbólica se daria
exatamente nos momentos em que determinados símbolos e significados de grupos são
impostos em detrimento de outros grupos sociais, criando uma relação de dominação. Pelas
características de como as formas simbólicas são utilizadas, sua ação é silenciosa e sem uso
de força física, produzindo uma violência que na maioria das vezes não é identificada. Assim,
Bourdieu (1998, p. 8) entendeu que “[...] o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível
o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão
sujeitos ou mesmo que o exercem.”
Compreende-se, a partir dessas questões, que os estudos de Bourdieu contribuíram
significativamente para perceber as estratégias de utilização do sistema escolar pelos
diferentes grupos sociais, com o intuito de legitimar seus valores e práticas. Pois, de acordo
com ele, “[...] as escolas também desempenham grande parte da distribuição dos tipos de
elementos normativos e das propensões exigidas para fazer dessa desigualdade algo natural”
(BOURDIEU, 1996, p. 81). Isso se torna ainda mais significativo levando-se em consideração
as relações entre o ser social e o conhecimento histórico, analisadas pelo referido intelectual:
  29  

podemos compreender que o ser social é aquilo que foi; mas também que aquilo que
uma vez ficou para sempre inscrito não só na história, o que é óbvio, mas também
no ser social, nas coisas e no corpo. [...] O processo de instituição, de
estabelecimento, quer dizer, a objetivação e a incorporação como acumulação nas
coisas e nos corpos de um conjunto de conquistas históricas, que trazem a marca das
suas condições de produção e que tendem a gerar as condições de sua própria
reprodução (quanto mais não fosse pelo efeito de demonstração e de imposição das
necessidades que um bem exerce unicamente pela sua existência), aniquila
continuamente possíveis laterais. À medida que a história avança, estes possíveis
tornam-se cada vez mais improváveis, mais difíceis de realizar, porque a sua
passagem à existência suporia a destruição, a neutralização ou a reconversão de uma
parte maior ou menor da herança histórica – que é também um capital –, e mesmo
mais difíceis de pensar, porque os esquemas de pensamentos e de percepção são,
em cada momento, produto das opções anteriores transformadas em coisas
(BOURDIEU, 1998, p. 100-101).

O conhecimento histórico foi entendido pelo autor como integrante do ser social, isto é,
“somos” aquilo que nosso passado foi; e, por isso, as experiências históricas têm grande peso
na realidade, além de, potencialmente, pela importância que adquiriram com o passar do
tempo, possibilitarem um processo de reprodução de sua herança, uma vez que a ideia de
“novas” experiências poderia gerar um sentimento de destruição daquilo que outrora fora
constituído. Nesse ponto, o ensino de História, especificamente, poderia desempenhar um
papel fundamental, haja vista ser compreendido como o grande responsável, no ensino regular,
de mobilizar a história e seus acontecimentos. Dessa forma, a escola e, principalmente, o
ensino de História configuram-se enquanto espaços de disputas pela manutenção e reprodução
de determinada herança histórica.
Desenvolvido por Bourdieu (1996), o conceito de espaço social contribuiu para
pensarmos as disputas e tensões sociais entre os diferentes grupos pela instalação e/ou
reprodução de determinadas estruturas históricas no espaço escolar, entendendo que “a
instituição escolar contribui para reproduzir a distribuição do capital cultural e, assim, a
estrutura do espaço social.” (BOURDIEU, 1996, p. 35). Não apenas a função de reprodução,
mas também a escola funciona como legitimadora de uma “ordem social”, assim, alcançando
através da violência simbólica o que socialmente seria obtido por meio da força.
Nesse processo, o habitus desempenha função fundamental, haja vista que se
constituem em “[...] princípios geradores de práticas distintas e distintivas” (NOGUEIRA;
NOGUEIRA, 1996, p. 63). Em outras palavras, podemos dizer que o espaço social é
composto de indivíduos e grupos distintos que tendem a buscar uma hegemonia em relação a
suas posições e práticas sociais.
  30  

A escola, dessa forma, foi tomada enquanto um espaço diferenciado e diferenciador,


no qual sua lógica específica para a organização das classes, currículo, atividades, avaliações,
se constitui em orientadores que levam os indivíduos à seleção e reprodução das diferenças.
Nesse ponto específico, a teoria de Foucault se contrapõe à de Bourdieu, uma vez que, para
aquele, a escola seria o espaço de uniformização do sujeito dentro de determinados padrões,
isto é, mesmo que ela apresentasse diferenças, estas tenderiam a ser negadas em busca de uma
uniformização. Para Bourdieu, contudo, o espaço social atua como diferenciador, ao passo
que lutas de grupos são travadas no intuito de determinadas concepções sobressaírem-se a
outras. O consenso ou a homogeneização, nos termos de Bourdieu, nada mais seria do que
uma realidade intencionalmente construída para esconder e também, consequentemente,
reproduzir as distinções sociais.
O espaço social, de acordo com Bourdieu, é uma instância simbólica na qual os
diferentes agentes sociais articulam-se de maneira a colocar em prática modos de pensar e
agir. Dito de outra forma, os indivíduos atuam através de disposições (habitus), cujas
estruturas já conhecidas são colocadas em prática pelo agir criativo dos sujeitos. Este processo
pode levar a produção de predisposições que garantam a manutenção de diferenciação social.
Para isso, o capital econômico e o capital cultural vão agir fundamentalmente no sentido de
promover as distinções, uma vez que a partir da ideia de acúmulo, estes capitais assumiriam
um aspecto utilitário que levariam concepções de alguns grupos sobressaírem-se sobre os
demais. Assim, grupos sociais específicos poderiam através da mobilização destes capitais
impor concepções que ao final serviriam como elemento de distinção social.
Contudo, após essa análise das teorias de Foucault e Bourdieu, é importante ponderar
como tais teorias, de certa forma, encontram limites e devem ser entendidas historicamente,
ou seja, a partir de um contexto específico, e que, por isso, não podem sem aplicadas
atemporalmente ou em realidades sociais distintas. Nesse sentido, é preciso situar as
especificidades de suas teorias e entender seus limites em relação ao entendimento da
dinâmica do espaço escolar.
Em primeiro lugar, quando pensamos na teoria de Michel Foucault, devemos situá-la a
partir do recorte temporal entre fins do século XVII e o século XVIII, quando, segundo o
filósofo, as instituições modernas foram desenvolvendo formas mais intensas de disciplinas.
De lá para cá, passaram-se mais de dois séculos e formas de disciplinamento ainda existem,
mas não podemos supor que a lógica permaneça a mesma. Além disso, precisamos atentar que
sua teoria foi desenvolvida em um espaço específico, a França, e que, por isso, ao transportá-
la para outras realidades, a brasileira, por exemplo, não pode ser perfeitamente “encaixada”,
  31  

uma vez que as teorias são instrumentos de análise que não devem ser aplicadas no sentido de
“enquadrar” os objetos. E aqui cabe uma ressalva: em que pese a historicamente forte
apropriação das teorias francesas no Brasil, sobretudo no âmbito do sistema educacional,
carecemos atentar para o fato de que, ao nos apropriarmos das teorias, devemos pensar em
suas possibilidades e limites diante dos diferentes objetos estudados, considerando a
diversidade das realidades temporal e espacial das práticas e instituições educacionais .
Além disso, é importante compreender que Foucault trabalhou com formas muito
gerais de mecanismos disciplinadores, agregando instituições distintas como hospitais,
manicômios, prisões, quartéis, escolas em uma mesma lógica. “[...] Foucault trata as
organizações disciplinares tal como são sintetizadas pela prisão e pelo manicômio –
‘instituições totais’, na frase de Goffman” (GIDDENS, 2003, p. 181). Assim, não observou
suas especificidades e, consequentemente, desenvolveu uma teoria geral na qual
desconsiderou a dinâmica específica de cada espaço:

fábricas, escritórios, escolas, quartéis e outros contextos onde a vigilância e o poder


disciplinar atuam não são, em sua maioria, como aquelas instituições, admite
Foucault, sem desenvolver esse ponto. Entretanto, trata-se de uma observação com
certa importância, porquanto as ‘instituições completas e austeras’ são mais exceção
do que regra dentro dos principais setores institucionais das sociedades modernas
(GIDDENS, 2003, 181).

Nessa perspectiva, a escola não pode ser tomada enquanto uma “instituição total”,
uma vez que não está limitada a um confinamento constante. Crianças e adolescentes
frequentam a escola apenas em uma parte do tempo, isto quer dizer que, em outros momentos,
têm contato com ambientes distintos, como, por exemplo, o familiar. Ademais, na própria
organização do tempo escolar, a disciplina varia de acordo com momentos distintos, havendo
alguns mais flexíveis (intervalo para o lanche) e outros mais severos (avaliações). Dessa
forma, embora seja permeada por mecanismos de poder e disciplina, a escola não pode ser
concebida enquanto uma instituição hermeticamente fechada, na qual prevalece o poder
panóptico.
A teoria de Foucault não apenas apresenta limites em analisar a escola à luz de uma
lógica de “confinamento completo”, como também em não pensar a maneira pela qual os
sujeitos apropriam-se desses mecanismos. Isto é,

[...] os “corpos” de Foucault não são agentes. Até as mais rigorosas formas de
disciplina pressupõem que os que lhes estão submetidos são agentes humanos
“capazes”, sendo essa a razão de eles terem de ser “educados”, ao passo que as
máquinas são meramente projetadas. Mas, a menos que estejam sujeitos a mais
extrema privação de recursos, os agentes capazes são suscetíveis de se submeterem à
  32  

disciplina unicamente durante partes do dia – geralmente como uma concessão em


troca de recompensas que derivam de se ficar liberto dessa disciplina em outros
períodos (GIDDENS, 2003, p. 182).

Os estudos de Foucault limitam-se, então, a compreender os mecanismos de controle e


não a ação dos sujeitos em relação aos mesmos. Nesse sentido, pensa a escola enquanto uma
estrutura de poder panóptico e de “corpos docilizados”, não preocupando-se, assim, com o
poder de ação e inventividade do sujeito e, consequentemente, sua capacidade de agir diante
das mais diversas situações. Nesse sentido, construir uma teoria de mecanismos de controle
que buscam um disciplinamento da sociedade revela parte das relações que se processam no
espaço escolar, haja vista que os mecanismos de controle ao mesmo tempo que existem
também são mobilizados/negociados pelos sujeitos.
Em relação a Pierre Bourdieu, o seu conceito de habitus tenta articular um esquema de
ação criativa do sujeito, no entanto, entende-se que essa ação criativa pode levar também a
processos reprodutivos. Apesar da ideia de habitus pensar numa ação subjetiva (uma tomada
de decisão que parte da autonomia do sujeito) e objetiva dos sujeitos (que se estabelece a
partir de uma estrutura já formada), de acordo com sua teoria, existe uma predisposição dos
indivíduos a agirem de acordo com uma bagagem social herdada. Em outros termos, o
processo criativo poderia resultar em algo que está em consonância com uma série de valores
e normas existentes. Nessa perspectiva, a escola poderia configurar-se enquanto um espaço
passível a práticas reprodutivistas, no qual a ação criativa dos agentes escolares poderia
limitar-se a repetição de uma realidade já posta.
Assim, de acordo com Bourdieu, o conjunto das relações sociais, designadas por ele
de espaço social, que ocorrem através do habitus, torna a escola um constructo físico e social
onde desenvolve-se como um campo de produção em atuação. Este, por sua vez, vai atuar no
sentido de demarcar posições sociais já estabelecidas, levando-se em consideração que a ação
subjetiva dos sujeitos é inseparável da objetiva.
Quando da atuação dessas relações (habitus), o poder, no sentido de força de um
grupo em relação a outro, é exercido sem, contudo, ser identificado por aqueles que o
legitimam. Isto é, elementos arbitrários são movimentados de forma a não serem percebidos
como tal, gerando uma ideia de consenso. Dessa forma, a escola é uma instância propícia para
atuação do espaço social (conjunto de relações) que se pretende enquanto produtora de
diferenciações sociais, com isso.
Feitas as observações sobre as contribuições e limites dos trabalhos de Michel
Foucault e Pierre Bourdieu para o entendimento do espaço escolar, precisamos agora pensá-lo
  33  

enquanto espaço disciplinador e alvo de disputas de interesses de grupos, de maneira a


desnaturalizar a instituição e perceber as relações de poder ali inseridas e, também, extrapolar
a ideia de escola enquanto “instituição total” e reprodutivista para que possamos entender
melhor a dinâmica do espaço escolar e suas inúmeras possibilidades de análise e compreensão.
Assim, deve-se levar em consideração não apenas as normas, formalidades e regras que o
constituem, como também as formas que os agentes escolares apropriam-se de tais elementos.
É nesse sentido que a presente pesquisa cresce em possibilidades, abre perspectivas e vai ao
encontro das premissas pretendidas numa problematização da relação “História e Espaços” a
partir do ensino de História.

Recentes contribuições sobre o espaço escolar

Entender a escola e suas múltiplas dimensões se faz necessário para compreendermos


seus usos e funções na sociedade em que vivemos, consequentemente, tomando-a enquanto
um espaço “vivo”, como bem definiram Maurice Tardif e Claude Lessard (2007, p. 55):

desde que a docência moderna existe, ela se realiza numa escola, ou seja, num lugar
organizado, espacial e socialmente separado dos outros espaços da vida social e
cotidiana. Ora, a escola possui algumas características organizacionais e sociais que
influenciam o trabalho dos agentes escolares. Como lugar de trabalho, ela não é
apenas um espaço físico, mas também um espaço social que define como o trabalho
dos professores é repartido e realizado, como é planejado, supervisionado,
remunerado e visto por outros. Esse lugar também é o produto de convenções
sociais e históricas que se traduzem em rotinas organizacionais relativamente
estáveis através do tempo. É um espaço socio-organizacional no qual atuam diversos
indivíduos ligados entre si por vários tipos de relações, mais ou menos formalizadas,
abrigando tensões, negociações, colaborações, conflitos e reajustamentos
circunstanciais ou profundos de suas relações.

Os autores acima citados designam a escola enquanto um “lugar” formado a partir de


signos e significados que são produtos das diversas relações sociais. Nesse sentido, o conceito
de lugar proposto pelos autores aproxima-se da teoria proposta por Yi-Fu Tuan (1983), na
qual se entende os espaços míticos como lugares dotados de significados, compondo uma
ideia de comunidade imaginada que atua além do plano material. Isto é, para Maurice Tardif,
Claude Lessard e Yi-Fu Tuan, quando a materialidade é significada e assume contornos para
além de suas estruturas físicas, este constructo foi definido por lugar – diferentemente do
espaço, que estaria limitado a seus aspectos físicos.
Nesta dissertação, propomos a discussão do que estamos chamando de espaço escolar,
um constructo formado a partir de relações sociais distintas, possuidor de signos e
  34  

significados que estão para além de sua estrutura física. Embora os autores citados
anteriormente entendam os conceitos de “lugar” (espaço significado) e “espaço” (estrutura
física) a partir de nomenclaturas distintas da ideia de espaço escolar trabalhada neste texto, as
definições da escola no que tange as suas relações sociais dialogam, uma vez que o “lugar” –
na perspectiva de Maurice Tardif, Claude Lessard e Yi-Fu Tuan – e o “espaço escolar”
aproximam-se, na medida em que concebem a escola a partir de uma dimensão social, envolta
por signos que operacionalizam determinadas relações sociais.
Pensando nessa perspectiva, na qual a escola é um constructo social ou, nos termos
dos autores citados, um lugar formado a partir de relações sociais distintas, pretendemos
agora trazer algumas contribuições, sobretudo, de historiadores que, de certa forma, têm se
debruçado em discussões sobre o espaço escolar e/ou, mais especificamente, o ensino de
História. Assim, serão problematizados elementos que constituem este espaço, tais como
currículos, materiais didáticos e formas de apropriações realizadas pelos agentes escolares.
Tal reflexão historiográfica é significativa para pensar nosso objeto de estudo, uma
vez que, embora a disciplina tópico desta pesquisa seja de “Cultura do RN”, entendemos que
a mesma foi deslocada para o ensino de História a partir de um consenso ou tendência de
concebê-lo enquanto um campo disciplinar ao qual se destinam as questões culturais e
identitárias de uma sociedade. Dessa forma, perceber os usos e funções sociais do ensino de
História é imprescindível para pensar as relações que estão inseridas na institucionalização da
disciplina “Cultura do RN”, como as disputas de grupos, demandas sociais, constituições
curriculares, políticas identitárias etc.
Ponderando especificamente no ensino de História, inserido na constituição do espaço
escolar, historiador e teórico da história, o alemão Jörn Rüsen nos ofereceu significativas
contribuições no desenvolvimento do conceito de quadros de orientações autoritárias13. De
acordo com ele, esses quadros fariam parte de uma perspectiva na qual o conhecimento
histórico é abordado de forma determinista, não reconhecendo sua historicidade e
potencializando a repetição de uma “falsa realidade”. Falsa porque diria respeito apenas a
uma determinada concepção do conhecimento histórico, isto é, não levaria em consideração a
diferença entre experiência histórica e produção do conhecimento histórico, negando a
diversidade social e, consequentemente, sobrepondo à concepção de determinados grupos em
detrimento de outros.

                                                                                                               
13
Ver: RÜSEN In: SCHMIDT; BARCA; MARTINS, 2010, p. 89.
  35  

Por isso, é preciso problematizar como programas e iniciativas de governo


direcionados ao espaço escolar estão ligados aos interesses de grupos e com o ensino de
História, o qual é o acúmulo dos “[...] resultados de necessidades sociais e políticas na
formação da identidade de novas gerações e, portanto, o seu problema não é somente de
ordem cognitiva ou educacional, mas também sociológica e cultural” (CERRI, 2011, p. 17).
Ainda pensando especificamente nas relações que se processam no espaço escolar, a
partir do ensino de História, sobretudo no Brasil, Flávia Eloísa Caimi discutiu como a
trajetória do ensino de História, desde sua criação, no século XIX, no Colégio Dom Pedro II,
tem sido concebida entendendo seu papel privilegiado de formação de identidades. De tal
modo, afirmando que

a história não constituía apenas uma disciplina escolar, e sua inserção era
considerada indispensável em todas as camadas sociais e faixas etárias, uma vez que
tinha o papel de formar os juízos de valor e o patriotismo, necessários à constituição
da identidade nacional (CAIMI, 2001, p. 28).

No momento em que o país estruturava-se como nação, caberia ao ensino de História –


como também em outras frentes, por exemplo, no século seguinte, às políticas patrimoniais –
a “missão” de conduzir as pessoas rumo ao sentimento de pátria, à formação de uma
identidade nacional. Na Primeira República e nas décadas de 1930 e 1940, ao ensino de
História foi dada a função de construir e manter uma identidade brasileira que assegurasse a
unidade política e social do país. O nacionalismo estava nas bases do pensamento autoritário
de Getúlio Vargas, à época, considerado pela visão centralizadora da República como
condutor da nação. Com a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública em 14 de
novembro de 1930, o Estado fortaleceu seu poder sobre o ensino no Brasil e,
consequentemente, traçou os caminhos que o país deveria seguir no intuito de construir uma
identidade para todos aqueles que viviam no território brasileiro. Nesse contexto, o ensino de
História caracterizou-se como “capaz de despertar a consciência patriótica, priorizando-se o
caráter humanístico em detrimento do científico” (CAIMI, 2001, p. 37).
Nos anos de 1950 e início dos anos 1960, o ensino de História passou por um
momento bastante significativo em relação ao seu desenvolvimento. Com o fim do Estado
Novo, as perspectivas de experiências pedagógicas ampliaram-se e o ensino de História foi
revigorado. De acordo com Caimi, a abertura de cursos universitários para formação de
professores, as contribuições de intelectuais franceses e a criação do Instituto Superior de
Estudos Brasileiros (ISEB) foram, nesse momento, alguns dos responsáveis por promover
uma heterogeneidade teórica e ideológica em relação aos estudos históricos escolares – antes,
  36  

impossibilitada pela hegemonia do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Este


caminhava numa linha “tradicional” e conservadora, concebendo os documentos oficiais
como verdadeiros testemunhos da história, não fazendo uma reflexão sobre os objetos e
metodologias da ciência histórica.
Com a deflagração do golpe militar, em 1964, as importantes experiências
democráticas ocorridas no ensino de História na década anterior foram interrompidas. Visto
que a formação da consciência nacional era tida como um traço fundamental do ensino de
História, este foi substituído pelos Estudos Sociais, a fim de esvaziar o sentido crítico da
história, contribuindo apenas no viés nacionalista de cunho ufanista e patriótico para evitar os
possíveis focos de resistência ao regime. Basta lembrar que nas escolas era preciso cantar o
Hino Nacional diariamente, que os desfiles de 7 de setembro obedeciam determinados rituais
e que era praticamente obrigatória a propaganda da “revolução de 64” – termo defendido
pelos militares até hoje em relação aos eventos decorrentes de 31 de março de 1964. Dessa
forma, “novamente [...] o ensino de história seria submetido aos interesses governamentais”
(CAIMI, 2001, p. 41).
A reflexão promovida por Caimi, a respeito dessa trajetória, nos permite perceber a
maneira pela qual o ensino de História esteve, e permanece até hoje, ligado à construção de
identidades de um ponto de vista do poder estatal. Neste sentido, é fundamental indagar sobre
a forma como essas identidades são historicamente gestadas – a partir de currículos, materiais
didáticos, legislações – e quais suas potencialidades na dinâmica do ensino escolar.
Em resumo, entendemos que o ensino de História, desde sua criação, caracterizou-se
como um espaço, por excelência, construtor de identidades; estabelecer o que ensinar é
também “comunicar” às pessoas uma determinada identidade. No entanto, diferentemente da
perspectiva de identidade nacional que foi buscada, preponderantemente, na primeira metade
do século XX, na atualidade as identidades são pautadas a partir de multirreferencias que
levam em conta a singularidades dos indivíduos, grupos sociais e suas relações com o mundo,
assim orientou os Parâmetros Curriculares Nacionais destinados à área de História:

hoje em dia, a percepção do “outro” e do “nós” está relacionada à possibilidade de


identificação das diferenças e, simultaneamente, das semelhanças. A sociedade atual
solicita que se enfrente a heterogeneidade e que se distingam as particularidades dos
grupos e das culturas, seus valores, interesses e identidades. Ao mesmo tempo, ela
demanda que o reconhecimento das diferenças não fundamente relações de
dominação, submissão, preconceito ou desigualdade. Todavia, esse não é um
exercício fácil. Ao contrário, requer o esforço e o desejo de reconhecer o papel que é
exercido pelas mediações construídas por experiências sociais e culturais na
organização de valores, que sugerem, mas não impõem o que é bom, mau, belo, feio,
superior, inferior, igual, perfeito ou imperfeito, puro ou impuro; que orientam, mas
  37  

não restringem, as ações de aproximação, distanciamento, isolamento, assimilação,


rejeição, submissão ou indiferença; e que possibilitam o conhecimento ou o
desconhecimento da presença ou da existência da diversidade individual, de grupo,
de classe ou de culturas (BRASIL, 1998b, p. 35).
Entende-se, portanto, que nos dias de hoje as identidades são pautadas a partir de
perspectivas múltiplas que possibilitam a construção de identidades heterogêneas, não mais
homogêneas como as identidades nacionais. Dessa forma, levando-se em conta as devidas
diferenças, compreende-se que as questões identitárias, historicamente no Brasil, foram
pautadas através da disciplina de História. Assim, uma vez que a regulamentação do ensino se
dá mediante a escola, esta caracteriza-se enquanto instância fundamental para responder os
anseios da sociedade em relação a sua identificação com o tempo, o espaço e os sujeitos.
Portanto, o espaço escolar é um constructo cultural e social, fruto e “alvo” de
demandas sociais. Seguindo nessa perspectiva, podemos também nos apropriar das
contribuições dos estudos realizados por Agustín Escolano, que problematizou algumas
relações que estão inseridas no espaço-escola, concebendo-o enquanto um constructo cultural
e social. Em sua análise, tomou como objeto de pesquisa o modelo da escola espanhola do
final do século XIX e início do XX, entendendo as instituições escolares enquanto realidade e
representação, analisando

[...] o caráter “cultural” que tiveram e têm os discursos e saberes sobre o espaço, a
função curricular (empírica, oculta, subliminar) que a arquitetura escolar
desempenhou na aprendizagem e na formação das primeiras estruturas cognitivas e
os usos didáticos do espaço-escola nos manuais de ensino da escola tradicional
(ESCOLANO, 2001, p. 25).

Escolano focou sua análise na arquitetura enquanto currículo, na aprendizagem das


primeiras estruturas espaciais e nas representações do espaço-escola nos manuais didáticos,
trazendo contribuições de outras perspectivas para análise e compreensão do espaço escolar,
entendendo que “[...] a ‘espacialização’ disciplinar é parte integrante da arquitetura escolar
[...]” (ESCOLANO, 2001, p. 27). Esta espacialização disciplinar sugerida pelo autor se dá por
meio da divisão dos espaços arquitetônicos como também aos símbolos a eles agregados.
Desse modo, a arquitetura escolar foi tomada como constructo cultural,
compreendendo que a estrutura do prédio, onde se realizam as práticas educativas, não se faz
apenas por elementos materiais, mas sim também a partir de símbolos, valores e significados
da sociedade que lhe são atribuídos. Além de funcionar com valor de programa/currículo, haja
vista que estão dotados de conteúdos e estímulos. A teoria de Foucault desenvolvida a partir
dos conceitos de arte das distribuições no espaço, microfísica do poder e corpos dóceis foram
  38  

tomados por Escolano (2001, p. 26) como análises importantes para se entender a relação
entre escola, currículo e sociedade:

a arquitetura escolar é também por si mesma um programa, uma espécie de discurso


que institui uma materialidade, um sistema de valores, como o de ordem, disciplina
e vigilância, marcos para a aprendizagem sensorial e motora e de toda uma
semiologia que cobre diferentes símbolos estáticos, culturais e também ideológicos.

Em outras palavras, analisou que a arquitetura da escola está carregada de elementos


sociais e culturais que dizem respeito às distintas relações que se operam na sociedade, e
perspectivas foram denominadas pelo autor de espaço-escola. A estrutura arquitetônica, neste
caso, caracterizou-se como um discurso, materializando-se a partir da incorporação de valores,
símbolos e ideologias. Dessa forma, o espaço-escola, além de assumir uma função pedagógica,
representa também um objetivo cultural: espaço simbolizador das consciências coletivas e
identidades.
Sobre o aspecto disciplinar ou “conformador” da escola, Escolano atentou para pensar
como os agentes escolares apropriam-se de todos esses elementos simbólicos. Esta concepção
amplia os horizontes em relação à atuação dos agentes escolares como também supera a ideia
de escola enquanto instituição envolta apenas por valores reprodutivistas e disciplinadores –
teorias apresentadas por Pierre Bourdieu e Michel Foucault.
Porém, o autor extrapola Foucault no sentido de perceber que, embora os mecanismos
de poder existam, não podemos reduzir a escola e seus agentes a meros executores desses
mecanismos. A preocupação de Foucault, em entender os mecanismos de dominação e como
estes tornavam os “corpos dóceis”, acabou por gerar uma visão de que os agentes escolares
eram sujeitos passivos, que poderiam ser manipulados a ponto de apenas reproduzirem aquilo
que a instituição esperava deles. Escolano, mesmo compartilhando da ideia de escola
enquanto instituição na qual se exerce o poder panóptico, trouxe também a perspectiva de que
a escola é um espaço dinâmico, ou seja, os sujeitos escolares apropriam-se de normas, regras
e ideias que circulam e formam a escola e, assim, produzem suas próprias formas de
conhecimento.
Para ele, é primordial que os agentes escolares sejam tomados enquanto construtores
de conhecimento, os quais colocam em movimento as experiências históricas apreendidas e
partilhadas através de relações sociais distintas, com familiares, amigos, professores. Em
outras palavras, podemos dizer que o aluno chega à escola carregado de experiências
apreendidas fora daquele espaço, de maneira que as vivências dos educandos juntem-se às
  39  

novas adquiridas no ambiente escolar e, consequentemente, sendo colocadas em movimento


de maneira que os agentes escolares consigam orientar-se temporal e espacialmente14 de
forma a responder suas necessidades sociais.
As ações dos discentes, docentes e outros agentes escolares, portanto, são práticas
espaciais. Michel de Certeau (2003) analisou como os sujeitos praticam o espaço, isto é, como
apropriam-se dos signos, códigos e ideias e constroem sua própria realidade. O espaço, antes
de pré-existir à ação dos sujeitos, é fruto desta. Nesse sentido, não podemos conceber a escola
apenas como mero “depósito” de metodologias que funcionam como fórmulas para
transmissão15 do conhecimento. Como ressaltou Oliveira (2003, p. 127):

as pesquisas sobre ensino de História têm uma visão da escola numa linha
reprodutivista. Vista como um bloco coeso, sem contradições, mesmo quando
declara algumas experiências inovadoras, a escola é sempre o espaço de reprodução
da cultura, sistema e ideologia dominante.

Nessa perspectiva, é fundamental conceber a escola como um espaço praticado


(falaremos a seguir sobre ela) produzido a partir dos anseios e necessidades dos agentes
escolares. Apesar da elaboração de mecanismos de controle por parte de determinados grupos,
os agentes sociais ressignificam os códigos e constroem sua própria espacialidade. Isso nos
faz pensar que, ao “receber” uma determinada representação, o usuário apropria-se dela e
produz uma nova representação a partir de suas impressões, não necessariamente estando
condizente com aquela que lhe foi transmitida:

a presença ou a circulação de uma representação (ensinada como o código da


promoção socioeconômica por pregadores, por educadores ou por vulgarizadores)
não indicam o que ela representa para o usuário. É ainda necessário analisar a sua
manipulação pelos praticantes que não a fabricam (CERTEAU, 1994, p. 40).

Pensar a escola como um espaço praticado é analisar as estratégias e táticas que se


processam dentro desse espaço. Para tanto, é preciso explicitar a diferenciação que Certeau
fez entre estratégia e tática: a primeira diz respeito aos mecanismos utilizados para impor, a
um lugar, uma determinada representação; ao passo que a segunda seria uma produção feita a

                                                                                                               
14
Por orientações temporais, tomando de empréstimos as contribuições teóricas do historiador alemão Jörn
Rüsen, entendemos como o agir do homem no tempo de maneira a responder a suas necessidades sociais. No
entanto, embora Rüsen não trabalhe a ideia de orientação espacial, compreendemos que se orientar
temporalmente é também orientar-se espacialmente. Tempo e espaço aqui estão sendo tomadas como categorias
complementares e indissociáveis. Ver: RÜSEN In.: SCHMIDT; BARCA; MARTINS, 2010.
15
Transmissão aqui está sendo empregada no seu sentido mais “tradicional”, quando o ensino era pensado a
partir de uma perspectiva unidimensional, na qual os professores, únicos portadores do saber, transmitiam
conhecimento, cabendo aos alunos apenas a assimilação e repetição do conhecimento aprendido.
  40  

partir do consumo, isto é, após a apropriação de uma determinada representação os


consumidores – os agentes escolares – produzem um novo conhecimento, imprimindo nele os
anseios e as necessidades condizentes com sua realidade histórica. Diferentemente de
Foucault, Certeau buscou analisar o espaço na perspectiva das práticas cotidianas e não
apenas dos dispositivos disciplinadores e propôs

[...] acompanhar alguns dos procedimentos – multiformes, resistentes, astuciosos e


teimosos – que escapam à disciplina sem ficarem mesmo assim fora do campo onde
se exerce, e que deveriam levar a uma teoria das práticas cotidianas, do espaço
vivido e de uma inquietante familiaridade da cidade (CERTEAU, 1994, p. 175).

Tomar professores e alunos como sujeitos históricos, produtores e questionadores de


conhecimentos – e não meros reprodutores – implica em conceber a escola enquanto um
espaço “vivo”, no qual os agentes escolares apropriam-se das ideias e produzem novos
conhecimentos.
Os mecanismos de controle, os interesses de grupos, enfim, as tentativas de dominação
empreendidas no espaço escolar foram fundamentais para desnaturalizar a escola e percebê-la
enquanto um espaço no qual desenvolvem-se as mais diversas relações de poder. As relações
sociais são constituídas de formas complexas, as quais não podem ser reduzidas à relação
dominado/dominador. Além de reconhecer que existem mecanismos que tentam inculcar ou
submeter aos sujeitos determinadas concepções e realidades, devemos tomar os sujeitos como
seres capazes de agir socialmente diante disso, ou seja, seres dotados de autonomia e, por isso,
plenamente aptos a se posicionarem frente às tentativas de controle de maneira a não serem
manipulados. Nesse sentido, a historiografia poderá contribuir ao ampliar a concepção de
espaço escolar, investigando as formas históricas pelas quais as práticas escolares produzem o
mundo em vez de reproduzi-lo.
Esta breve reflexão historiográfica, sobre o espaço escolar e ensino de História,
permitirá entender o descompasso que será investigado no próximo capítulo, quando será
analisada a institucionalização da disciplina “Cultura do RN” no ensino de história do Estado
do Rio Grande do Norte. Verificaremos que, numa época que não se espera mais uma escola
reprodutivista, a formatação da disciplina mencionada parece depender ainda de concepções
pouco dinâmicas do espaço escolar, as quais podem ser observadas na maneira como fora
pensada a incorporação do tópico cultura potiguar no currículo. Verticalizaremos as
discussões para nosso objeto de pesquisa, identificando a ideia de cultura que fora mobilizada,
  41  

os grupos envolvidos nessa organização e seleção, e problematizaremos os usos e funções do


ensino de História em relação a um projeto de construção identitária potiguar.
CAPÍTULO 02: As narrativas que dizem uma ideia de cultura norte-rio-grandense, seus
autores e perspectivas.

Institucionalizada no ano de 2007, no Governo de Vilma de Faria, a disciplina


“Cultura do Rio Grande do Norte” faz parte de um movimento maior de políticas
educacionais que ocuparam um importante espaço no Brasil desde, pelo menos, a década de
199016. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), as Diretrizes Curriculares Nacionais
(DCN) e a Lei nº 9.493/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – são
exemplos de políticas públicas educacionais que ocorreram naquele momento e que serviram
de justificativa para outras reformas que foram desdobrando-se no cenário nacional, inclusive
para o objeto de que se trata essa pesquisa: a mudança na Matriz Curricular do Ensino
Fundamental no Estado do Rio Grande do Norte no ano de 2007, na Rede Estadual de Ensino,
com o estabelecimento da disciplina “Cultura do RN”.
As propostas curriculares estaduais para o ensino de História, especificamente,
aconteceram nos anos 2000, e também configuraram-se como desdobramentos da nova
situação política do Brasil, na qual a educação passava a ser repensada para dar conta do novo
momento histórico e das novas demandas sociais:

as propostas curriculares para o ensino de História datam da década de 2000. [...] As


18 [propostas curriculares] com as quais trabalhamos foram elaboradas entre 2007 e
2012, demonstrando a concentração, nesse período, das reformas curriculares
estaduais, em grande parte, estimuladas pela ampliação do ensino fundamental de
nove anos, como também pela ascensão de partidos de centro-esquerda ao poder nos
estados, a partir do segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva
(OLIVEIRA; FREITAS, 2012, p. 272).

Apesar dos documentos, que institucionalizam o desenvolvimento da disciplina


“Cultura do RN”, não se referirem expressamente que se trata de uma reforma no ensino de
História, na prática seu desenvolvimento se deu, e está se dando17, como uma alteração do

                                                                                                               
16
Sobre políticas educacionais no Brasil, ver: PAIM; LIMA; MARTINS, 2008, p. 21-34.
17
Em 2014, a Estrutura Curricular do Ensino Fundamental no Estado do Rio Grande do Norte passou por
algumas transformações devido, sobretudo, à efetivação da Lei nº 11.738/2008 – também conhecida por Lei do
Piso do Magistério – que prevê que a carga horária docente seja concernente a 2/3 em sala de aula e 1/3 para
atividades extraclasse. Embora seja uma legislação que entrou em vigor no ano de 2008, o Estado só de fato
efetivou no início do ano de 2014. Dessa forma, a Secretaria de Estado da Educação e da Cultura, através da
Coordenadoria de Desenvolvimento Escolar e da Subcoordenadora de Ensino Fundamental, rearticularam a
estrutura escolar e, nesse processo, a “Cultura do RN” passou a ser conteúdo e não mais disciplina específica.
Enquanto conteúdo obrigatório, embasado no Artigo 137 da Constituição do Estado, deve ser ministrado nas
  42  

mesmo: a mudança na estrutura curricular atinge diretamente ao ensino de História, uma vez
que a estrutura curricular do Ensino Fundamental do Estado do Rio Grande do Norte, antes de
2007 – ano de implementação do projeto de desenvolvimento da disciplina “Cultura do RN”
–, era composta por 03 (três) aulas de História semanal, sendo que a cultura local, referente à
parte diversificada, deveria ser trabalhada de forma interdisciplinar; após a mudança da
estrutura curricular estadual de 2007, a disciplina de História passou a ter apenas 02 (duas)
aulas semanais, a terceira aula foi cedida para o novo componente. Este, na maior parte dos
casos, passaria a ser ministrado pelos professores de História. Nesse sentido, entendemos que
a criação da referida disciplina faz parte de uma conjuntura de mudanças dos currículos do
ensino de História, iniciadas já nos anos 2000.
Isso, no entanto, não quer dizer que a construção de uma identidade potiguar, através
do ensino, tenha sido pautada apenas a partir desse momento de institucionalização da
disciplina “Cultura do RN”. A própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
recomenda, em seu artigo 26, que

os currículos do Ensino Fundamental e Médio devem ter uma base nacional comum,
a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma
parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da
cultura, da economia e da clientela (BRASIL, 1996)

Antes mesmo da LDB/96, pareceres estaduais já previam nos currículos escolares uma
parte comum (nacional) e outra diversificada (local/regional). De tal modo, a estrutura
curricular do Estado do Rio Grande do Norte não fugiu a essa regra. No início da década de
1990, anterior à LDB, já existia um parecer estadual (Parecer nº 16/72 CEE) que estabelecia
uma parte diversificada no currículo escolar estadual18, a diferença reside no fato de que esse
componente poderia ser trabalhado a partir de uma perspectiva interdisciplinar, isto é, não
sendo preciso uma disciplina específica para ministrar aspectos da cultura local.
Nas estruturas curriculares anteriores ao ano de 2007 verificamos a preocupação em se
trabalhar aspectos da cultura local. De acordo com o texto da Estrutura Curricular de 199819,

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         
aulas de História do Brasil, preferencialmente nos 6º e 7º anos. No que tange ao ano de 2015, as estruturas
curriculares ainda estão para serem aprovadas, aguardando um parecer do atual Secretário de Educação
Francisco das Chagas Fernandes.
18
O Parecer Estadual nº 16/72 CEE prescreve que a parte diversificada do currículo poderia trabalhar as
disciplinas de Língua Estrangeira Moderna (inglês e francês), Folclore, Estudos da Atualidade e Desenho
Geométrico.  
19
A Estrutura Curricular de 1998 faz parte de uma organização curricular que perdurou do final da década de
1980 até os anos 2000.
  43  

reforçando o Artigo 137 da Constituição do Estado, o estudo de cultura do RN deveria ser


oferecido

com base na Constituição do Estado do Rio Grande do Norte, Art. 137 “as escolas
públicas de 1º e 2º graus deverão incluir entre as disciplinas oferecidas o estudo da
cultura norte-riograndense, envolvendo noções básicas de literatura, artes plásticas e
folclore do Estado”. Cabe ao ensino fundamental trabalhar os conteúdos
mencionados de forma interdisciplinar (prioritariamente através dos componentes
curriculares de Língua Portuguesa, História e Ensino da Arte). (RIO GRANDE DO
NORTE, 1998).

No ano de 2001, o Conselho Estadual de Educação, atendendo a pedido de um dos


produtores do que seria o livro Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte, Deífilo Gurgel,
aprovou uma resolução recomendando que as escolas deveriam estimular o estudo do folclore
do RN. Entre 2000 e 2006, as orientações curriculares recomendaram o estudo de cultura
entre os componentes curriculares obrigatórios:

com base na Constituição do Rio Grande do Norte, parágrafo 2º do Artigo 137, as


escolas públicas do Ensino Fundamental deverão incluir, entre os componentes
curriculares, o estudo da cultura do Rio Grande do Norte, envolvendo noções
básicas de literatura, Artes Plásticas e Folclore do Estado. Cabe ao Ensino
Fundamental trabalhar estes conteúdos obrigatoriamente em História e Geografia e
de forma interdisciplinar nos demais componentes curriculares (RIO GRANDE DO
NORTE, 2006).20

A diferença das estruturas curriculares da década de 1990 e dos primeiros 06 anos da


década seguinte residiu no fato de que naquela o estudo de cultura do RN deveria ser
prioridade da disciplina de Língua Portuguesa, História e Ensino de Arte, nesta, passou a ser
estudo obrigatório nas disciplinas de História e Geografia, podendo ser trabalhada de forma
interdisciplinar nos demais componentes curriculares. Verificamos, então, que da década de
1990 para os anos 2000 o estudo da cultura local passou de conteúdo prioritário para
obrigatório. Quando em 2007, ano da alteração curricular em questão, o trecho acima
continuou a embasar o estudo de cultura do RN nas escolas, contudo, foi acrescido nas
orientações a determinação de incluir na Estrutura Curricular do Ensino Fundamental a
disciplina “Cultura do RN” (RIO GRANDE DO NORTE, 2007c), como verificamos no texto
expresso na introdução desse trabalho.
De tal forma que podemos apreender que o ensino de História e saberes relativos à
cultura local, a partir da disciplina “Cultura do RN”, foi de fato legalizado21, enquanto um
                                                                                                               
20
As orientações da Estrutura Curricular para o Ensino Fundamental utilizadas na citação foram do ano de 2006.
Contudo, de 2001 a 2006, foi utilizado o mesmo texto nas orientações referentes aos ditos anos.
21
Pesamos aqui no aspecto legal, na instituição do Projeto que normatiza a disciplina.
  44  

componente específico, apenas no ano de 2007, mas já havia orientações no sentido de estudo
da cultura embasadas no que prevê a Constituição do Estado de 1989. Assim, podemos tomá-
lo como um espaço profícuo ao desenvolvimento determinado pelo projeto de construção
identitária, fazendo com que os indivíduos reconheçam-se enquanto um grupo que partilha
referências e valores comuns.
Nesse cenário, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e as Diretrizes
Curriculares Nacionais (DCN) foram chamados a justificar a institucionalização da disciplina,
posto que, ao trabalhar com os chamados temas transversais – Ética, Pluralidade Cultural,
Meio Ambiente, Saúde e Orientação Sexual –, estariam respondendo às recomendações feitas
por tais documentos. Esses documentos foram utilizados para respaldar a disciplina “Cultura
do RN”, que deveria ser desenvolvida a partir de dois documentos: o “Projeto para o
desenvolvimento do componente curricular Cultura do RN” e as “Diretrizes Curriculares
Estaduais para o Ensino de Cultura do RN”, ambos instituídos no ano de 2007.
Coube à professora e técnica Rita de Lourdes Campos Feitoza a responsabilidade pela
elaboração do Projeto, ela é membro da equipe pedagógica da Subcoordenadoria do Ensino
Fundamental (SOEF) – órgão integrante da Secretaria de Estado da Educação e Cultura do
RN (SEEC)22. A área de atuação da professora era em História e Gestão Ambiental, com
enfoque principalmente nos processos do meio ambiente em geral, dano ambiental e
ecoturismo. Já as Diretrizes foram elaboradas em conjunto pela referida técnica do Projeto e
pela professora e técnica Edna Telma Vilar, que, à época da institucionalização, também era
membro da SOEF23. A senhora Edna possui graduação em Pedagogia pela Universidade
Estadual do Rio Grande do Norte (1990), especialização em Gestão e Coordenação de
Processo Pedagógico pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2001), mestrado em
Educação pela Universidade Federal Fluminense (2003); atualmente, ela é professora do
Centro de Educação (CEDU) da Universidade Federal de Alagoas, sua área de atuação
profissional é em Educação, focalizando o processo de ensino-aprendizagem, principalmente,
no que tange à formação docente e o ensino de Geografia. No Rio Grande do Norte, atuou
profissionalmente como professora na Prefeitura Municipal de Natal, na Secretaria do Estado
de Educação e Cultura (SEEC) e no SESI/RN.
No texto do Projeto, foi apresentada uma série de ações que deveriam ser
desenvolvidas para disciplina. Em sua apresentação, especificam-se algumas, tais como:
                                                                                                               
22
A servidora pública Rita Lourdes Campos Feitosa encontra-se atualmente de licença médica que a afastou da
Secretaria Estadual de Educação e Cultura por tempo indeterminado.
23
Desde o ano de 2009, a professora Edna Telma Vilar desvinculou-se da SEEC para assumir o cargo de
professora na Universidade Federal de Alagoas.
  45  

encaminhamento das Diretrizes Curriculares Estaduais para o Ensino de Cultura do RN para o


Conselho Estadual de Cultura, como também sua reprodução; reprodução e distribuição do
Guia Metodológico da Cultura no selo UNICEF; aquisição de livros para compor acervo
bibliográfico e fonte de pesquisa; gravação, reprodução e distribuição de CD-ROM com
conteúdos para formação dos professores. Em seguida, foram expostos os objetivos gerais da
disciplina e a metodologia, que previu, de maneira geral, encontros pedagógicos para
capacitação de professores.
Já as Diretrizes apresentaram, inicialmente, uma justificativa para a produção do
documento, afirmando que os apontamentos gerais para a realização da disciplina em sala de
aula faziam-se necessários porque as orientações curriculares em vigor foram estruturadas em
1987. Posteriormente, expressaram 03 (três) diretrizes que deveriam nortear o
desenvolvimento do novo componente curricular: a primeira apontou para a dimensão
conceitual do termo “cultura”; a segunda para indicar os objetivos; e a terceira procurou
pensar nos procedimentos metodológicos e avaliativos. Além disso, o documento citou e
recomendou atos normativos de âmbito internacional, nacional e estadual no que diz respeito
ao direito à cultura, finalizando o documento das diretrizes com uma breve conclusão. À guisa
de exemplo, o documento recorria, em âmbito nacional, à Constituição Federal, que, em seu
Artigo 215, afirma que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e
acesso às fontes da cultura nacional” (BRASIL apud RIO GRANDE DO NORTE, 2007a) e
ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990) – comumente chamado de ECA
–, que deve assegurar os direitos das crianças e adolescentes “referentes à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”
(BRASIL, 1990). No âmbito local, a legislação utilizada foi a própria Constituição do Estado
do Rio Grande do Norte, já citada nesse texto.
Além destas legislações, foram indicadas também outras leituras referentes à ideia de
cultura que deveria ser desenvolvida na disciplina “Cultura do RN”24. Pensar essas indicações
faz parte do processo de compreensão do conceito de cultura que foi construído para ser
ministrado na disciplina. Sendo assim, constituem-se em importantes fontes para esta
pesquisa: “Guia Metodológico de Cultura do Selo UNICEF” (2006); “Convenção sobre a
Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, UNESCO” (2005); “Cartilha
Patrimônio Imaterial Potiguar” (2006); “Decreto 3.551/2000 – Programa Nacional do
                                                                                                               
24
Todos os atos normativos referentes à cultura e aos bens patrimoniais foram indicados, igualmente, tanto nas
Diretrizes quanto no Projeto de desenvolvimento da disciplina.
  46  

Patrimônio Imaterial” (2000); “Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural


e Natural, UNESCO” (1972); “Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e
Popular, UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura)”
(1989); “Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, UNESCO” (2001); “Convenção
para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial” (2003); e a “Declaração Universal dos
Direitos Humanos, UNESCO” (1948).
Essas últimas legislações fazem parte de um conjunto de Cartas Patrimoniais,
entendidas como recomendações produzidas por diversos órgãos de âmbito nacional e
internacional, que visam estabelecer relações de preservação e valorização de bens culturais.
Uma das instituições importantes nesse processo é a Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), uma agência das Nações Unidas fundada em
1946, que criou vasta legislação no sentido de normatizar e recomendar ações que devem ser
empreendidas em relação aos bens culturais. Nesse sentido, as Cartas Patrimoniais tornam-se
relevantes para a presente dissertação, uma vez que “[…] é necessário reconhecer que os bens
e serviços culturais comunicam identidades, valores e significados e, por isso, não podem ser
considerados meras mercadorias ou bens de consumo quaisquer” (UNESCO, 2005).
Para o desenvolvimento do componente curricular, o Projeto previu a distribuição para
as escolas da rede pública de ensino, também, do livro intitulado Introdução à Cultura do Rio
Grande do Norte, tendo como autores Tarcísio Gurgel, Vicente Vitoriano e Deífilo Gurgel, a
fim de servir como fonte para o ensino de “Cultura do RN”:

aquisição de 36.850 livros Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte para serem
utilizados como acervo bibliográfico e referencial de pesquisa. Serão distribuídos 50
livros para cada uma das 737 escolas que atendem ao ensino fundamental. [...] A
aquisição de livros em quantidade suficiente apenas para ser utilizado como fonte de
pesquisa, justifica-se na medida em que o livro citado atende necessidades imediatas
por apresentar linguagem acessível ao seguimento em questão, reunir em um único
volume vários aspectos da cultura norte-rio-grandense propostos em nossas
Diretrizes Curriculares Estaduais para o Ensino de Cultura do RN, mas
especialmente por sua autoria assinada por três ícones da cultura potiguar (RIO
GRANDE DO NORTE, 2007a) [grifo nosso].

O referido livro foi produzido no ano de 2003 e previsto para ser amplamente
distribuído nas escolas da rede pública estadual em 2007, ano de criação da disciplina
“Cultura do RN”. Organizado em três eixos (Literatura, Artes plásticas e Folclore), seguindo a
ideia tripartida de cultura apresentada pela Constituição do Estado, tem, de acordo com o
Projeto, caráter enciclopédico e não de um livro didático, pelo menos não teoricamente. No
  47  

entanto, o mesmo apresenta os elementos que o constituem – como formatação, linguagem,


atividades etc.– bem semelhante a um manual didático.25
Sendo assim, analisaremos os 03 (três) eixos temáticos constituintes do manual
didático, como também investigaremos seu campo de produção (BOURDIEU, 1998),
formado pelos autores Tarcísio Gurgel, Vicente Vitoriano e Deífilo Gurgel, problematizando
o lugar social destes produtores, assim como chamar atenção para suas referências intelectuais,
buscando entender quais as concepções de cultura que estes já apresentaram antes da
publicação do livro citado.
Esses autores são considerados ícones nos estudos sobre cultura norte-rio-grandense,
estudiosos de ramos culturais distintos, mas que se encontram na temática da cultura.
Apresentando esses autores de maneira sucinta, de acordo com a ordem de apresentação de
cada eixo temático do livro citado, começamos por Tarcísio Gurgel que foi o produtor do eixo
“Literatura”. Em sua vida profissional, ele dedicou-se aos estudos da literatura, participando
do projeto referente à primeira Antologia de Contistas Potiguares e seu primeiro livro foi Os
de Macatuba26, que recebeu o Prêmio Câmara Cascudo de 1973. Professor do Departamento
de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), lecionando disciplinas
como “Literatura Potiguar”.
Já Vicente Vitoriano, produtor do eixo “Artes plásticas”, é arquiteto e professor do
Departamento de Artes da UFRN. Atualmente leciona, no Departamento de Artes, em áreas
relacionadas às práticas artísticas, história da arte e ao ensino da arte. Seus primeiros trabalhos
profissionais começaram a ser expostos no início da década de 1970.
Deífilo Gurgel, irmão de Tarcísio Gurgel, foi responsável pela produção do eixo
“Folclore”, sendo considerado pela intelectualidade do Estado do Rio Grande do Norte como
um dos grandes ícones do folclorismo local, tendo realizado várias pesquisas nessa área. Ele
atuou também como diretor do Departamento de Cultura da Secretaria Municipal de
Educação e Cultura de Natal (SMEC), diretor de Promoções Culturais da Fundação José
Augusto (FJA), presidente da Comissão Norte-Rio-Grandense de Folclore, sócio do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN) e professor da disciplina “Folclore
Brasileiro” na UFRN. Depois de sua morte, em fevereiro de 2012, foi criada uma comenda de
Mérito Cultural Deífilo Gurgel em sua homenagem.

                                                                                                               
25
Reflexões relacionadas a similitudes do livro enciclopédico, produzido para a disciplina, com um livro
didático serão exploradas apenas no capítulo 03 desta dissertação.
26
GURGEL, Tarcísio. Os de Macatuba. Natal: A.S. Editores, 2003.
  48  

Na empreitada de se ensinar uma cultura do RN nas escolas estaduais da rede pública,


muitas foram as narrativas27 e legislações produzidas e indicadas para desenvolver uma ideia
de cultura norte-rio-grandense. Buscaremos, portanto, perceber como se deu esse processo.
Nesse sentido, o objetivo deste capítulo é entender qual a ideia de cultura elaborada para
definir o Rio Grande do Norte e quem as elaborou, observando, sobremaneira, os processos
sociais envolvidos nessa política pública do Estado.

A cultura que diz o norte-rio-grandense.

Trabalhar em um espaço didático com uma ideia de cultura do Rio Grande do Norte é
uma prática institucional-educacional, explicitamente, ligada à construção de uma identidade
espacial, a do norte-rio-grandense. No caso em questão, compreendemos que a identidade
liga-se primordialmente à dimensão “cultura”. Tanto no Projeto quanto nas Diretrizes28 que
institucionalizaram a disciplina, uma de suas finalidades era: “perceber que ensinar e aprender
sobre a cultura do RN tem por objetivo a produção e divulgação de conhecimentos e valores
locais, relativos à formação da identidade de um povo”, como também “reconhecer, valorizar
e respeitar a diversidade étnica e cultural na formação da identidade potiguar” (RIO
GRANDE DO NORTE, 2007b).
A partir dessa assertiva, explicita-se que a criação da disciplina foi executada para
trabalhar especificamente a cultura local ligada a um projeto de construção de identidade, no
qual os indivíduos se “reconheçam’’ enquanto grupo. Cabe direcionar uma atenção especial
ao termo “reconhecer”, no sentido de dar conhecimento a algo que já exista. “Reconhecer’’ os
bens e expressões culturais já definidos se faz preciso para que a cultura do RN seja,
consequentemente, valorizada e difundida.
Partindo dessa questão, cabe ressaltar que o termo cultura é bastante complexo e
problematizações referentes a ele não se constituem novidades. Desde a década de 1970, a
chamada História Cultural ressurgiu nos debates acadêmicos. No entanto, ocorreram algumas
modificações, principalmente, em relação à concepção do termo, e, a partir de uma maior
aproximação da ciência histórica com a antropologia, houve uma ampliação no seu sentido,
                                                                                                               
27
Por narrativa, tomando de empréstimo as contribuições de Jörn Rüsen, entendemos como “[...] um processo de
poiesis, de fazer ou produzir uma trama da experiência temporal tecida de acordo com a necessidade de
orientação de si no curso do tempo.”. Isto é, a narrativa está sendo tomada enquanto um processo criativo, no
qual as experiências históricas são postas em movimento para responder a determinadas necessidades de
orientações temporal e espacial. Ver: RÜSEN In: SCHMIDT; BARCA; MARTINS, 2010, p. 95.
28
Os objetivos do “Projeto para o Desenvolvimento do Componente Curricular Cultura do RN” e das “Diretrizes
Curriculares Estaduais para o Ensino de Cultura do RN” são idênticos. Por isso, sempre quando forem
apresentados, estaremos nos referindo aos dois documentos.
  49  

originando o que veio a chamar-se de Nova História Cultural. Tal mudança também está
ligada à própria “virada cultural” vivenciada nas últimas décadas, na qual grupos sociais
distintos discutem e reivindicam determinadas percepções sobre sua realidade. A respeito
disso, Peter Burke (2005, p. 9) afirma que essa “virada cultural” tem sido “manifestada em
expressões cada vez mais comuns, como ‘cultura da pobreza’, ‘cultura do medo’, ‘cultura das
armas’, ‘cultura dos adolescentes’”. Em outras palavras, podemos dizer que atualmente as
questões sobre cultura encontram-se no centro dos debates contemporâneos.
Ao longo dos últimos tempos, o conceito de cultura passou por diversas
transformações históricas e discussões em relação aos seus significados, assumindo em
diferentes tempos e espaços interpretações naturalistas, idealistas, etnográficas,
antropológicas, que ora o colocava como natural ao ser humano, ora como produto das
relações sociais; ora como consenso, ora como diversidade. É nesse panorama de diferentes
ideias de cultura que o termo mostra-se em toda sua complexidade. Terry Eagleton (2005, p.
52), por exemplo, defende a tese de que “[...] estamos presos, no momento, entre uma noção
de cultura debilitantemente ampla e outra desconfortavelmente rígida, e que nossa
necessidade mais urgente nessa área é ir além de ambas”.
O autor marxista fez uma abordagem histórica sobre o conceito de cultura, iniciando
pelo seu aparecimento e analisando as diferentes mudanças que passou até os dias atuais. A
tese por ele lançada analisa o fato de o termo cultura ter assumido, em determinadas
abordagens, um significado antropológico que o deixou demasiadamente amplo e, em outras,
significados extremamente específicos, implicando no que Eagleton denominou de “guerras
culturais”, as quais ele classifica em três frentes: cultura como civilização, cultura como
identidade e cultura como produto comercial ou pós-moderno. Além disso, também
apresentou algumas discussões sobre a relação entre as regras e sua aplicação, isto é, perceber
o processo de ressignificação e aplicação criativa das regras em questão. Inclusive, ao que
parecem, essas três frentes explicitadas pelo autor estão presentes na ideia de uma cultura do
RN, como fora exposta pela disciplina a partir do livro Introdução à Cultura do Rio Grande
do Norte.
Sabendo disso, é interessante notar determinado conceito de cultura que foi
“chamado” a justificar a disciplina, a partir de uma citação do ex-ministro da cultura Gilberto
Passos Gil Moreira, declarada na Comissão de Educação do Senado Federal:

é preciso entender que a cultura é a estrada pela qual todos os aspectos da sociedade
transitam. Tudo se passa e se reflete nessa estrada. Essa é a via única que leva ao
grande espetáculo da identidade singular e plural do povo brasileiro. [...] A cultura é
  50  

como uma argamassa que permeia todo o tecido institucional e social (RIO
GRANDE DO NORTE, 2007b).

Em terras potiguares, a implantação da disciplina Cultura do Rio Grande do Norte é


mais uma ação que tem como “pedra de toque” a questão da cultura. A concepção de cultura,
referenciada acima, diz respeito à significação mais ampla que o termo pode assumir: o
sentido antropológico. Ou seja, toda e qualquer relação humana que produza signos e
significados pode ser considerada cultura, conceito mais abrangente que o termo adotou nos
dias atuais.
Outros documentos indicados, para o desenvolvimento da disciplina, também trazem
concepções bastante parecidas, como os documentos da UNESCO (2006, 2013f) a seguir:

a cultura compreende os modos de vida de um lugar, sistemas de valores, tradições e


crenças, artes, oralidade e letras, todos os aspectos espirituais e materiais,
intelectuais e afetivos que caracterizam a sociedade ou o grupo étnico e cultural que
vive naquele lugar, sem esquecer do seu ecossistema. Portanto, cultura pela vida de
suas múltiplas relações.

Reafirmando que a cultura deve ser considerada como o conjunto dos traços
distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma
sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos
de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as
crenças.29

Percebe-se portanto o engajamento das perspectivas antropológicas da noção de


cultura, que a concebem como produção humana de significados compartilhados. Nosso
desafio neste capítulo, e mais amplamente nesta pesquisa, não é se posicionar entre uma ou
outra ideia de cultura, mas sim entender quais as concepções que foram mobilizadas,
exclusivamente, para o desenvolvimento da disciplina “Cultura do RN”.

Quando a cultura se propõe estanque.

As expressões do Folclore e da cultura popular brasileira são entendidas como


singularidades constituídas em um determinado momento, no interior do conjunto
das relações, que expressam a particularidade dos diferentes grupos sociais
(GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 79).

Essa definição deu início ao eixo “Folclore” no livro Introdução à Cultura do RN. A
expressão “em um determinado momento” confere uma conotação narrativa e revela ao aluno
                                                                                                               
29
Definição conforme as conclusões da Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais (MONDIACULT,
México, 1982), da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento (Nossa Diversidade Criadora, 1995) e da
Conferência Intergovernamental sobre Políticas Culturais para o Desenvolvimento (Estocolmo, 1998).
  51  

que uma cultura (a brasileira) teve seu processo de criação bem definido no passado, isto é,
comungando com uma perspectiva passadista da cultura. O passado, assim, passa a ser
buscado pela importância já concretizada de suas experiências históricas.
Na introdução do livro supracitado, nos deparamos com a seguinte afirmação: “[...]
assim, a literatura, as artes plásticas e o folclore aqui estudados são resultados da criatividade
e da ação coletiva, dentro de um conjunto de predicados que é portador o homem potiguar.”
(GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 5). Neste trecho, inferimos que a ideia de
cultura parte de uma perspectiva naturalizada, uma vez que parece constituir-se enquanto
“resultado”. Os bens e elementos culturais que são movimentados para constituir uma
identidade norte-rio-grandense propõem-se já existentes, podendo, inclusive, serem
“portados”, num sentido metafórico, por qualquer potiguar que deles tenham conhecimento.
Mais do que prontos, os elementos culturais constituintes do “ser potiguar’’, ou de forma
geral, de um “ser cultural”, foram instituídos, muitas vezes, em tempos remotos, mas que pela
força da tradição, mantêm-se vivos, desta maneira,

todos os países, raças, grupos humanos, famílias, classes, profissionais, possuem um


patrimônio de tradições que se transmite oralmente e é defendido e conservado pelo
costume. Esse patrimônio é milenar e contemporâneo (GURGEL; VITORIANO;
GURGEL, 2003, p. 79).

Utilizando-se de um processo de repetição, entendido como costume, o patrimônio,


que carrega os valores culturais de uma sociedade, é repassado ao longo dos tempos de forma
a se imortalizar, caracterizado enquanto elemento do passado e, simultaneamente, da
contemporaneidade. Nesse sentido, a contemporaneidade não foi chamada a justificar os
porquês da permanência de determinadas expressões culturais nos dias de hoje. O revisitar do
passado justifica-se pela existência de elementos consumadamente considerados importantes,
independente do transcurso do tempo e dos desejos diversos dos sujeitos.
Pensando nisso, podemos utilizar as ponderações em relação às percepções sobre
cultura potiguar realizadas por Gomes Neto (2011, p. 19):

[...] recorrentemente, veicula-se na imprensa, na mídia, nas escolas, em publicações


destinadas a turistas, etc., determinada percepção/concepção do que seja a cultura
potiguar, mas pouco se problematizam os elementos simbólicos que a sustentam ou
o próprio significado dessa assertiva, quase sempre a definindo como se suas
premissas indicassem um ponto de chegada, não de partida, de maneira que não
existem contradições nem disputas nesse processo. Indagações do tipo: o que
implica pensar ou afirmar a existência de uma cultura potiguar aparenta não fazer
sentido, haja vista as premissas estarem supostamente confirmadas nos modos de
viver da população do estado e até incrustados no seu território.
  52  

A reflexão feita pelo autor remete à naturalização de uma ideia de cultura e,


consequentemente, identidade norte-rio-grandense. Está claro, para o autor, que a cultura foi
percebida enquanto ponto de chegada, apresentando-se como resultado, cabendo ao potiguar
usufruir e valorizar o que foi produzido. “Reconhecer-se” – esta seria a palavra de ordem –
enquanto um “digno” norte-rio-grandense, com todos os predicados que o termo carrega,
assim como está expresso nas narrativas do livro produzido para a disciplina:

[...] neste processo de construção integram-se o passado, o presente e o futuro,


possibilitando a construção de uma identidade cultural, ou seja, de
autorreconhecimento como parte de um grupo social, com suas tradições e valores. O
Folclore apresenta-se assim como uma possibilidade de reconhecer-se como parte de
um grupo social com seus diferentes modos de ser e de viver, além de dar condições
para explicitação do lugar do homem como produtor de cultura (GURGEL,
VITORIANO, GURGEL, 2003, p. 81).

No entanto, ao mesmo tempo em que nos deparamos com tais concepções do que seja
a cultura e identidade norte-rio-grandense, surgem outras perspectivas nas narrativas do livro
em questão, a partir da citação de Roberto Emerson Câmara Benjamim, estudioso do folclore
e da cultura popular:

embora o Folclore seja universal e tradicional nas suas raízes e temáticas, ele é
regional e atualizado em suas ocorrências que são o resultado da criatividade do
portador do folclore e de sua comunidade (apud GURGEL; VITORIANO;
GURGEL, 2003, p. 78).

Nessa assertiva, percebemos a preocupação em conceber a cultura enquanto elemento


que sofre atualizações, indicando que o folclore também sofreria alterações de acordo com
novas necessidades que surgiram ao longo dos tempos. Isto é, de como o passado tornou-se
necessário ao presente em virtude de novos anseios e, por isso mesmo, por se tratar de algo
novo, necessitaria de ser ressignificado, ou, como está expresso na própria citação,
“atualizado”. Por conseguinte, em algumas passagens do referido livro, existe uma
preocupação em dizer que os sujeitos, de acordo com suas necessidades, são agentes da
movimentação dos bens culturais:

mas três aspectos fundamentais da mesma [cultura] serão abordados: a sua literatura,
suas artes plásticas e o seu folclore, produções que, afinal, resultam da ação do
homem em sociedade, sua tradição e evolução enquanto ser humano criador de uma
linguagem estética (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 5).
  53  

Ao mesmo tempo em que concebe a cultura, em muitas situações, como um sistema de


signos e significados já estabelecidos, também ver o homem potiguar enquanto sujeito criador,
ao passo que mobiliza suas experiências no tempo de acordo com necessidades presentes.
Percebe-se uma tensão nessa concepção de cultura mobilizada no livro referência da
institucionalização da disciplina: parece haver a existência de uma cultura já definida (uma
vez que já fora produzida), como também a presença de um processo recriador, que,
teoricamente, transforma e atualiza todos os elementos culturais. Podemos inferir que –
embora algumas poucas passagens textuais do livro Introdução à Cultura do RN afirme a
noção de cultura enquanto dinâmica –, de maneira geral, e contraditoriamente, os elementos
apresentados nas narrativas parecem ser integrantes de uma “cultura comum” formada por
valores, crenças, práticas e significados já produzidos e, por isso, podendo ser compartilhados
por todos.
O Estado, ao projetar o trabalho de uma concepção de cultura em um espaço didático,
a partir da seleção, indicação e produção de vários documentos, vem definindo uma ideia de
cultura do Rio Grande do Norte que deve ter função orientadora na afirmação de conteúdo da
identidade do norte-rio-grandense. Posto de outra forma, parece que a identidade proposta
liga-se intimamente com determinada concepção de cultura, apresentada ora como elemento
antropológico – como podemos perceber nas indicações de leituras apresentadas no Projeto e
nas Diretrizes de vários documentos, principalmente, da UNICEF, que tratam sobre cultura e
respeito à diversidade –, ora definida em termos de folclore, monumento e patrimônio dos
elementos que a constituem – situação encontrada, sobretudo, no livro Introdução à Cultura
do Rio Grande do Norte. Na realidade, esses termos por vezes se confundem. O que os
autores aparentemente ignoram é que, enquanto autoridades, eles empreendem processos de
folclorização e patrimonialização da cultura do RN.
No ano de 2006, o projeto Patrimônio Cultural em Seis Tempos foi proposto pelo
Instituto de Formação e Gestão em Turismo do Rio Grande do Norte (IGETUR) e posto em
prática durante o segundo semestre do mesmo ano. Sob a coordenação de Isaura Amélia de
Sousa Rosado Maia, o financiamento deu-se através dos recursos do Programa Monumenta,
vinculado à Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO),
com a contrapartida do governo do Estado a partir da Fundação José Augusto (FJA).30 Dentre
as ações do projeto, encontra-se o relatório do Patrimônio Imaterial Potiguar que, sob a

                                                                                                               
30
Para verificar mais informações sobre o projeto, ver: GOMES NETO, 2011.
  54  

coordenação de Helder Alexandre Medeiros de Macedo, foi apresentado em 2007, mesmo ano
de institucionalização da disciplina. De acordo com este projeto,

[...] a Rede do Patrimônio, além de juntar às histórias de quem já pesquisa a história,


a cultura popular e o folclore do Rio Grande do Norte, pretende divulgar essas
pesquisas, além de contribuir para o conhecimento, por parte dos norte-rio-
grandenses e dos turistas, do nosso patrimônio cultural (FUNDAÇÃO JOSÉ
AUGUSTO, 2006, p.11).

Nesse trecho, ficou evidente a junção das noções de patrimônio e folclore que estão
presentes no que se consideraram como constituintes da cultura do RN. Desse modo,
objetivamos discutir no tópico seguinte como se deram esses processos a partir das narrativas
do livro Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte, como também utilizando trechos das
Cartas Patrimoniais indicadas para o desenvolvimento da disciplina.

Patrimonializar para preservar

Ao instituir a disciplina “Cultura do RN”, uma quantidade considerável de


documentos referentes a bens patrimoniais foram indicadas como leituras para o trabalho
pedagógico, tanto no Projeto quanto nas Diretrizes da disciplina. Expressando em números,
dos 10 (dez) documentos indicados como leitura, 04 (quatro) deles são especificamente
direcionados a questões patrimoniais: a “Convenção sobre a Proteção e Promoção da
Diversidade das Expressões Culturais, UNESCO” (2005); a “Cartilha Patrimônio Imaterial
Potiguar” (2007); o “Decreto 3.551/2000 – Programa Nacional do Patrimônio Imaterial”
(2000); a “Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, UNESCO
(1992); e a “Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial” (2003). Além
destes, nos demais documentos que tratam sobre cultura, a referência ao patrimônio é
constante, inclusive nos documentos bases que estabeleceram a disciplina.
Dessa forma, podemos inferir que, na concepção defendida nesses discursos, o
conceito de cultura está intimamente ligado à ideia de patrimônio. Começaremos por ele para
depois passarmos à concepção de folclore e folclorização. Tomando-o enquanto um bem de
valores distintos, o patrimônio na atualidade é constantemente reivindicado, ou como diria
François Hartog (2000, p. 266), “no curso do período [anos de 1990], o patrimônio impôs-se
como a categoria dominante, englobante, senão devorante, em todo caso, evidente da vida
cultural e das políticas públicas.”. Não é à toa que a ideia de patrimônio na atualidade esta
mais conectada à antropologia do que à história, de tal maneira, que se mudou inclusive a
  55  

denominação de “patrimônio histórico” para “patrimônio cultural” a partir dos anos de 1950
(CHOYA, 2011), embora só nas últimas décadas este processo tenha se consolidado no Brasil.
Como consta no subprojeto Patrimônio Imaterial (FUNDAÇÃO JOSÉ AUGUSTO, 2006, p.
5), integrante do projeto Patrimônio Cultural Potiguar em Seis Tempos,

durante muito tempo, no Brasil, se falou em patrimônio histórico como sendo


somente igrejas, prédios antigos, sítios arqueológicos, obras de arte como pintura e
escultura. Ultimamente, entretanto, o governo tem redefinido um pouco essa noção.
Na Constituição de 1988, nosso documento maior, já fica bem expresso isso. Ela
fala não mais de patrimônio histórico e artístico, mas, de patrimônio cultural, como
sendo bens materiais e imateriais, valores, tradições e costumes herdados do passado
e reapropriados no presente, e que dão uma determinada cara aos brasileiros.

A questão é perceber se a mudança do conceito nas Cartas Patrimoniais, responsáveis


pela determinação institucional e consensual sobre o tema do patrimônio em diversos níveis,
trouxe uma modificação também na concepção dos agentes culturais, ou ainda, naquilo que
está sendo definido como patrimônio e o motivo pelo qual seu valor de herança e de legado
foi verbalizado e passou a informar a política pública estadual de institucionalização da
“Cultura do RN”.
Ao final da década de 1990, principalmente, as políticas patrimoniais e discussões
referentes ao tema se fizeram mais presentes no Estado do Rio Grande do Norte, panorama
este ligado a um contexto mais amplo de discussões referente à cultura e ao patrimônio em
âmbito nacional e internacional. Os Estados, o Brasil e o mundo, nesse momento, estavam
engajados na tarefa de valorizar e preservar.
No Rio Grande do Norte, temos como exemplo dessas políticas de patrimonialização e
preservação o processo de revitalização do centro histórico de Natal, como consequência da
Lei nº 3.942/90, que instituiu a Zona Especial de Preservação História (ZEPH) no nosso
Estado. Outra legislação que veio a corroborar com esse processo foi à promulgação da Lei nº
4.932 de dezembro de 1997, que, com o objetivo de revitalizar e refuncionalizar o bairro da
Ribeira, instituiu a Operação Urbana Ribeira (OUR).
Arilene Lucena de Medeiros (2013) analisou como, a partir da década de 1990,
diversos atores sociais ocuparam-se em discutir amplamente e promover ações referentes à
valorização e preservação do patrimônio – embora, desde a década de 1960, por meio de
inventários e tombamentos, alguns espaços históricos já sofriam um processo de
patrimonialização. Em seu trabalho, a autora, usando de fontes orais, fez um mapeamento das
principais ações patrimoniais que surgiram no Centro Histórico de Natal nesse período.
  56  

Assim como Medeiros, Carlos Henrique Pessoa Cunha (2014) também problematizou,
em sua dissertação de mestrado, esse momento patrimonial, marcado por mudanças
principalmente no tocante à ideia de patrimônio assim como também nas concepções
preservacionistas, a ampliação do conceito de patrimônio e dos valores a ele agregado. O
valor econômico e mercadológico, até então, pouco explorados, surgiram para complexificar
ainda mais as questões patrimoniais.
Neste século, houve uma ampliação ainda maior em relação às questões patrimoniais.
No Estado do Rio Grande do Norte, ocorreram várias iniciativas nos anos 2000: em 2000, a
Lei Municipal de Tombamento do patrimônio Histórico, Cultural e Natural; em 2001, o
Espaço Cultural Casa da Ribeira; em 2005, o projeto Corredor Cultural de Natal; em 2006, o
projeto Patrimônio Cultural em Seis Tempos; em 2008, o Museu de Cultura Popular Djalma
Maranhão e o Departamento de Patrimônio Cultural, dentre outras ações e políticas
patrimoniais e culturais. A criação da disciplina “Cultura do RN”, portanto, esteve inserida
nesse processo como parte de um conjunto de esforços para a salvaguarda e conhecimento do
que seria o patrimônio e a cultura do Estado.
Ao falar de um patrimônio cultural norte-rio-grandense, algumas das palavras tônicas
– comunicadas nas narrativas e documentos selecionados e produzidos para o
desenvolvimento da disciplina – são: “preservação” e “valorização”, ou, como se observa nos
objetivos do Projeto e Diretrizes que a institucionalizaram, “estimular a preservação e
valorização do patrimônio cultural e natural, em particular do patrimônio oral imaterial” (RIO
GRANDE DO NORTE, 2007a, 2007b).
Os documentos oficiais, que tratam de outras espacialidades, como a nacional e
mundial, também caminham no mesmo sentido salvacionista, como: “o Programa Nacional
do Patrimônio Imaterial/PNPI [...] [que] viabiliza projetos de identificação, reconhecimento,
salvaguarda e promoção da dimensão imaterial do patrimônio cultural” (IPHAN, 2000, p.1); e
os respectivos documentos da UNESCO (2003, 1972) que consideram

[...] que a comunidade internacional deveria contribuir, junto com os Estados Partes
na presente Convenção, para a salvaguarda desse patrimônio, com um espírito de
cooperação e ajuda mútua.

[...] que se torna indispensável a adoção, para tal efeito, de novas disposições
convencionais que estabeleçam um sistema eficaz de proteção coletiva do
patrimônio cultural e natural de valor universal excepcional, organizado de modo
permanente e segundo métodos científicos e modernos.
  57  

Nessas narrativas, percebe-se a preocupação em salvaguardar bens patrimoniais


existentes, passíveis a processos de deterioração e esquecimentos. O patrimônio foi visto
enquanto um conjunto de bens que deve ser preservado por sua importância. Contudo, tal
perspectiva preservacionista, isoladamente, pode incorrer em um processo de naturalização
dos elementos ditos patrimoniais. O mito do patrimônio costuma ignorar que instituí-lo, como
parte – ou não – de uma ideia de cultura do Rio Grande do Norte, significa selecionar,
organizar e vencer disputas sobre quais bens sociais estão em consonância com as memórias
de determinados grupos sociais envolvidos nesse processo.
Quando observamos as imagens dos objetos simbólicos – ditos patrimoniais –
reproduzidas no livro Introdução à Cultura do Rio grande do Norte, por exemplo, as quais
representam determinados aspectos da cultura do RN, percebemos que estes foram
apresentados de forma isolada, isto é, não existiam elementos que indicassem formas de
apropriações ou agir humano.
A imagem é constituída apenas pelo objeto:

Figura 1 - Barco de papel. Festa dos Santos Figura 2 - Galo de cerâmica de Santo Antônio,
Reis. localidade do município de São Gonçalo do
Amarante, símbolo do folclore potiguar.

Fonte: GURGEL; VITORIANO; GURGEL, Fonte: GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003,


2003, p. 81. p. 81.
  58  

Figura 3 - Boneco do mamulengueiro


“Queixo de Aço”.

Fonte: GURGEL; VITORIANO; GURGEL,


2003, p. 82.

As narrativas do livro Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte, tanto as textuais


quanto as visuais, indicam um processo de naturalização dos elementos patrimoniais, haja
vista que eles se apresentam como “resultado” e não em “processo” a ponto de identificar as
relações e contradições sociais que formam o patrimônio. Intuímos, então, que a ideia de
“conhecedor” e “divulgador” de elementos (pré) estabelecidos da cultura norte-rio-grandense
corrobora para entender que a mesma já foi produzida, estando pronta e acabada. Os bens
patrimoniais foram reverenciados a partir de seu processo primeiro de fabricação,
negligenciando, dessa forma, as transformações assumidas com o passar dos tempos.
Percebendo, então, um processo de essencialização e naturalização dos bens culturais que
foram selecionados para “dizer” uma cultura potiguar. Abaixo apresentamos mais imagens
que foram selecionadas e inseridas no livro como representações de elementos e expressões
culturais:
  59  

Figura 4 - Rei do Rosário, Caicó/RN.   Figura 5 - Nau Catarineta – Fandango de


Canguaretama.  

Fonte: GURGEL; VITORIANO; GURGEL, Fonte: GURGEL; VITORIANO; GURGEL,


2003, p. 79. 2003, p. 83.

Figura 6 - Boi de Bocas, município de Pedro Velho.

Fonte: GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 90.

Os textos que acompanham essas imagens geralmente são bastante descritivos, como
podemos observar no fragmento abaixo, sobre o Fandango de Canguaretama:

auto que evoca as grandes aventuras dos navegantes portugueses. Os integrantes do


folguedo, cerca de quarenta brincantes, se apresentam vestidos de marujos
(marinheiros e oficiais), além daqueles que provém a parte cômica do espetáculo: o
Ração, encarregado da alimentação da marujada e o Vassoura, da limpeza do barco
[...] (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 92).

Essas expressões culturais são vistas enquanto repetição do passado. Elementos


materiais e humanos foram utilizados para colocar em prática um “passo a passo” que resiste
à ação do tempo. Encenar o “Fandango de Canguaretama”, o “Maneiro-Pau”, o “Coco-de-
Roda”, a “Dança do Espontão”, a “Bandeirinha de Touros” e entre tantas outras danças,
  60  

consideradas folclóricas, não apenas as mantém “vivas” dentro das comunidades que a
praticam, como também a “reconhecemos” em sua importância na constituição da cultura do
Estado ou, consequentemente, de conhecer-se enquanto “ser potiguar”. Dessa forma, as
narrativas se propõem como integrantes de uma “cultura comum” formada por valores,
crenças, práticas e significados produzidos e partilhados por todos que estão circunscrito nos
limites do Estado.
Nesse panorama, o patrimônio tem sido constantemente reivindicado e as noções do
que seja patrimônio têm sofrido alterações que ampliaram o que outrora entendia-se como
bens patrimoniais. Entretanto, a ampliação da noção do que seja o patrimônio, chegando ao
ponto de conferir a “quase”31 tudo o status de bem patrimonial, tem incorrido num problema:
de não entender o patrimônio enquanto um processo que sofre transformações com a mudança
do tempo e desejo dos sujeitos, envolto por disputas e contradições sociais. Desse modo, os
bens patrimoniais estão sendo tomados como algo natural, já postos, bastando apenas sua
identificação, reconhecimento e preservação. Esta noção remete às primeiras concepções de
patrimônio surgidas no Brasil, na década de 1930. De acordo com as discussões de Cecília
Londres (2011), durante o governo de Getúlio Vargas a partir das ações empreendidas pelo
ministro Gustavo Capanema, formou-se no país uma ideia de patrimônio bastante particular,
que o caracterizava enquanto testemunhos de um passado que deveria ser preservado, uma
vez que era fundamental para formação da memória e identidade nacional.
O valor de testemunho, atribuído ao patrimônio, transcendia às vicissitudes do tempo e
os interesses diversos dos sujeitos. Assumindo, desse modo, tons de naturalidade que
potencialmente tenderiam ao esquecimento dos processos de organização, seleção e disputas
envoltos na constituição do patrimônio, haja vista que

[...] monumentos e documentos são, portanto, materiais da memória e fruto de uma


seleção que depende tanto das condições de desenvolvimento de uma sociedade
quanto da ação específica daqueles agentes que se dedicam à “ciência do tempo que
passa”, os historiadores no sentido amplo (LONDRES, 2001, p. 87).

Na passagem acima, a autora trabalha com questões patrimoniais relacionadas ao


processo de constituição de monumentos, documentos e elementos ligados à materialidade do
patrimônio. A presente pesquisa utilizou-se das discussões promovidas pela autora no sentido

                                                                                                               
31
Diferentemente da amplitude que o termo patrimônio tem sugerido, a operação de patrimoniliazação e
monumentalização colocada em movimento pelos autores do livro Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte
tem limites. Isto é, para os autores já existe os universos prévios que devem ser patrimonializados: folclore, artes
e literatura.
  61  

de problematizar a ideia de patrimônio, percebendo-a enquanto processo e elemento de


disputas de grupos. Sabendo que se tornarem

[...] senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das


classes, dos grupos de indivíduos que dominaram e dominam as sociedades
históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses
mecanismos de manipulação da memória coletiva (LE GOFF apud LONDRES,
2001, p. 88).

Assim, quando o patrimônio é entendido na qualidade de elemento natural,


potencialmente pode produzir ideias de orientação temporal que incentivem uma repetição do
modelo. Nesse processo, a questão encerra-se em valorizar determinado bem patrimonial,
porque, independente da importância que poderia ter na prática social, já foi determinado seu
valor e, por isso, devemos repeti-lo. Como observamos na passagem seguinte,

embora não se precise a data de sua construção, a Igreja de São Gonçalo, em São
Gonçalo do Amarante, é historicamente muito importante por preservar as
características barrocas de seu desenho original (GURGEL; VITORIANO;
GURGEL, 2003, p. 62).

O patrimônio foi entendido apenas enquanto um bem que carrega em si um passado e


uma originalidade a ser preservada, a cultura, assim, sendo tomada numa perspectiva
“essencialista”, “pura”, “originária” de um passado que deve ser conhecido e repetido. Isto é,
uma cultura que deveria repetir a exemplaridade do passado, e o patrimônio, nesse caso, pode
ser perspectivado enquanto “um repertório fixo de tradições” (CANCLINI, 2008, p. 169).
Aqui, mais uma vez, vale ressaltar que não estamos entendendo a escola – o locus no
qual o livro analisado é/foi utilizado – numa linha reprodutivista, mas sim compreendendo
que as narrativas criadas e selecionadas, para o desenvolvimento da disciplina “Cultura do
RN”, têm uma perspectiva que pode ou não estar condizente com os interesses dos alunos e
demais sujeitos no processo de ensino e aprendizagem. Visa-se aqui apontar a potência de
sentido do livro Introdução à Cultura do RN e não as práticas pedagógicas em sala de aula.
Nas narrativas do dito livro, referentes ao eixo temático “Artes Plásticas”, de autoria
de Vicente Vitoriano, podemos encontrar a seguinte citação:

[...] independente de sua origem, o Forte [dos Reis Magos], além de ser o principal
marco histórico do Rio Grande do Norte, é um importante patrimônio em nível
nacional. Infelizmente, o pouco cuidado prestado à memória histórica não permitiu
que se mantivesse a grande parte dos exemplos de arquitetura colonial edificada no
Rio Grande do Note (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 61).
  62  

Reclama-se, no trecho acima, do pouco cuidado dispensado à memória histórica e,


consequentemente, ao patrimônio que a carrega. Todavia, não se problematiza o porquê desta
situação. Apresenta-se o patrimônio como um bem que a priori carrega em si um valor que
deve, independente de qualquer fato, ser preservado e valorizado. Sobre essa ausência de
debate, que gira em torno do patrimônio, Canclini (2008, p. 160) afirma que

precisamente porque o patrimônio cultural se apresenta alheio aos debates sobre a


modernização ele constitui o recurso menos suspeito para garantir a cumplicidade
social. Esse conjunto de bens e práticas tradicionais que nos identificam como nação
ou como povo é apreciado como um dom, algo que recebemos do passado com tal
prestígio simbólico que não cabe discuti-lo. As únicas operações possíveis –
preservá-lo, restaurá-lo, difundi-lo – são a base mais secreta da simulação social que
nos mantém juntos. Frete à magnificência de uma pirâmide maia ou inca, de
palácios coloniais, cerâmicas indígenas de três séculos atrás ou à obra de um pintor
nacional reconhecido internacionalmente, não ocorre a quase ninguém pensar nas
contradições sociais que expressam. A perenidade desses bens leva a imaginar que
seu valor é inquestionável e torna-os fontes do consenso coletivo, para além das
divisões entre classes, etnias e grupos que cindem a sociedade e diferenciam os
modos de apropriar-se do patrimônio.

Canclini identificou que há um processo de consagração do patrimônio, sem haver, no


entanto, questionamentos em relação aos valores assumidos e contradições que estariam
ligadas na constituição dos bens patrimoniais. Ao analisar as narrativas do livro Introdução à
Cultura do Rio Grande do Norte, essa questão também mostrou-se preeminente, haja vista
que o patrimônio do Estado parece constituir-se de forma natural, sem levar em conta as
contradições e disputas que o envolve.

“Folcloriar”32 para não morrer

O livro indicado e distribuído para a disciplina, dividido em 03 (três) eixos, apresenta


01 (um) eixo exclusivamente para tratar do folclore. As narrativas iniciais de apresentação do
eixo discutem a definição de folclore e cultura popular:

alguns estudiosos, ainda hoje, costumam distinguir Cultura Popular de Folclore.


Enquanto a Cultura Popular estudaria as manifestações do saber popular, que
envolvem os aspectos materiais da cultura, como o artesanato, a culinária, a
arquitetura, o Folclore dedicar-se-ia aos aspectos mais espirituais como a Literatura,
compreendendo as inúmeras expressões em prosa e verso da tradição popular, (o
conto popular, o romanceiro, o cancioneiro das quadrinhas, provérbios, advinha); as

                                                                                                               
32
O folclore foi apresentado, em sua morfologia, enquanto verbo para se referir à operação na qual o folclore é
valorizado e difundido enquanto as manifestações mais primitivas das comunidades e, por isso, sua manutenção
significa a permanência daquilo que existe de mais original dentro de uma comunidade. Nesse sentido,
“folcloriar” é tornar “vivas” expressões consideradas originárias de um povo.
  63  

superstições etc. Há, no entanto, uma forte corrente que equipara as duas expressões
e o Folclore estudaria, então, todo o acervo de manifestações culturais do povo: seja
no campo espiritual, seja no simplesmente material, tal como faz a Cultura Popular
(GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 78).

Os termos folclore e cultura popular também são apresentados nas narrativas do


referido livro com os mesmos significados:

as expressões do folclore e da cultura popular brasileira são entendidas como


singularidades constituídas num determinado momento no interior do conjunto das
relações, que expressam particularidades dos diferentes grupos sociais (GURGEL;
VITORIANO; GURGEL, 2003, p.78).

Observamos que, independente das limitações e discussões do conceito de folclore e


cultura popular, esses dois elementos confundem-se, corroborando para reforçar nossa
hipótese de existência de um processo de folclorização de uma ideia de cultura norte-rio-
grandense. Neste processo, observamos que elementos e manifestações folclóricos são
entendidos enquanto expressões culturais e apresentados como detentores de uma
essencialidade e originalidade. O folclore, desse modo, caracteriza-se como elemento de
permanência, capaz de manter “vivas” antigas relações sociais,

embora o Folclore seja universal e tradicional em suas razões e temáticas, ele é


regional e atualizado em suas ocorrências que são o resultado da criatividade do
portador do folclore e de sua comunidade (GURGEL; VITORIANO; GURGEL,
2003, p. 78).

O Folclore apresenta-se como elemento de manutenção que carrega características e


valores da sociedade, produzido em determinado tempo e espaço localizados. Nesse processo,
a ação de Câmara Cascudo, considerado como “[...] o maior folclorista do país” (GURGEL;
VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 24), e a de outros folcloristas comunicam-se, em grande
medida, em garantir algo verdadeiro, genuíno, que “deve” permanecer. Passado e futuro, aí,
encontram-se, uma vez que a perspectiva para o futuro é a continuidade e manutenção do
passado ou, como está expresso no livro Introdução à Cultura do RN, “[o folclore] como elo
valioso da continuidade tradicional brasileira” (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003,
p.82).
De acordo com as discussões realizadas pelo historiador Durval Muniz de
Albuquerque Júnior, o folclore surge a partir do argumento de que determinados elementos
culturais estão na eminência da morte e, para tal fim não se consumar, é preciso preservá-lo.
  64  

O “morto” é apresentado para que seja “ressuscitado” e é a partir desse processo que, de
acordo com o autor, surgiram os mecanismos de fabricação do folclore e da cultura popular:

o chamado dado ou fato folclórico, o dito elemento ou manifestação da cultura


popular são, normalmente, vistos e ditos como se estivessem morrendo, precisando
de salvação e resgate por parte dos letrados que por eles se interessam
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 20).

As narrativas do livro Introdução à Cultura do RN caminham nessa direção:

apesar das advertências feitas ao longo desses anos pelos especialistas no assunto,
precisa-se cuidar da preservação do Folclore, diante do avanço inexorável da cultura
de massa sobre os últimos redutos de nossas tradições populares. Caso contrário, ele
tenderá a desaparecer.
Preservar as tradições é importante, haja vista que representam um patrimônio
singular da cultura popular e regional. Pode-se comparar a sua destruição à extinção
de espécies animais e ou à destruição de antigas civilizações, visto ser a preservação
o registro de um modo de ser e viver de um povo (GURGEL; VITORIANO;
GURGEL, 2003, p. 84).

A partir dessas ponderações, apresenta-se o folclore e/ou cultura popular enquanto


elemento em extinção. Parece haver um conjunto de elementos folclóricos existentes,
bastando apenas o engajamento na realização de um processo de preservação. Desse modo,
não se problematiza o processo social de construção desses elementos, de como o transcurso
do tempo e as diferentes relações sociais podem transformar ou, de fato, promover um
processo de esquecimento em relação a determinados bens culturais, uma vez que estes
podem não mais representar interesses atuais. Não que estejamos minimizando ou eliminando
a importância dos sistemas tradicionais para os processos de continuidade e identidade de um
povo, no entanto, estes sistemas devem ser problematizados enquanto processos, passíveis a
mudanças como também a permanências.
Sob a luz dessa perspectiva, a cultura é apresentada enquanto algo primitivo, autêntico
e original, constituindo-se a partir de elementos culturais ancestrais, que não sofrem
alterações com o transcurso do tempo e espaço, corroborando para uma perspectiva de cultura
estanque e naturalizada. Assim como a tradição, que pressupõe uma continuidade ligada à
permanência, o folclore “[...] deseja localizar, prender e proteger” (CERTEAU, 2012, p. 63).
Podemos observar, todavia, que há um esforço no texto didático – encontrado nas
narrativas do livro criado para disciplina – de pensar o folclore enquanto um elemento
dinâmico, como podemos observar no trecho abaixo:
  65  

[...] ele [o folclore] é regional e atualizado em suas ocorrências [...]. Moderadamente,


com a evolução da sociedade e dos costumes, o Folclore também evoluiu. [...]
Constituem-se de identificação da manifestação folclórica: a aceitação coletiva,
tradicionalidade, dinamicidade e funcionalidade (GURGEL; VITORIANO;
GURGEL, 2003, p. 78).

Ou, de acordo com Câmara Cascudo (apud GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003,
p. 79),

esse patrimônio é milenar e contemporâneo. [...] Esse patrimônio é o Folclore. Folk,


povo, nação, família, parentalha. Lore, instrução, conhecimento na acepção da
consciência individual do saber. Saber que sabe. Contemporaneidade, atualização
imediatista do conhecimento.

O folclore propõe-se enquanto “milenar” – criado nos tempos mais remotos – e, ao


mesmo tempo, apresenta a potencialidade de se recriar. São manifestações que dizem tanto de
um “ser regional”, que consegue resistir à temporalidade e se adequar aos mais diversos
períodos de transição que o homem e a sociedade sofrem. Parece mesmo se constituir
enquanto algo intrínseco e originário das mais antigas manifestações humanas. Por isso
mesmo consegue manter-se “vivo” e, com a mesma força de importância, atualizado. Essa
dinamicidade parece recorrer a processos de repetições que buscam às origens, ao aspecto
genuíno do bem cultural, no qual “a cultura popular é a mais importante de todas as culturas
porque ela é raiz de tudo” (CASCUDO apud GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003,
p.92).
O tratamento dado à manifestação folclórica, conhecida por Araruna, ilustra esse
aspecto e foi considerado “genuinamente potiguar” (GURGEL; VITORIANO; GURGEL,
2003, p. 88). Definida como “Sociedade de Danças Antigas e Semidesaparecidas Araruna” e
criada, no ano de 1956, pela pessoa conhecida por mestre Cornélio, essa manifestação popular
iniciou-se como quadrilhas que eram dançadas nas ruas durante o período junino, utilizando-
se de performances que remetiam às danças aristocráticas do século XIX. No total, quinze
danças eram apresentadas e a primeira era a Araruna, por isso, a nomeação da sociedade. Suas
manifestações chamaram atenção de diversos estudiosos da cultura popular e do folclore do
Estado, inclusive de Luís da Câmara Cascudo, que apoiou o grupo e batalhou junto a mestre
Cornélio pelo registro da sociedade Araruna, regulamentada por meio do decreto nº 50.517 no
ano de 1961. O grupo Araruna, pelo reconhecimento que obteve principalmente dos
estudiosos da cultura e folclore, assumiu um lugar de destaque em relação à cultura popular
do Estado, uma vez que, dentre seus objetivos principais, está a divulgação e conservação da
cultura norte-rio-grandense, além disso, um aspecto a tornou especialmente importante: de
  66  

ser considerada uma expressão cultural “genuinamente potiguar”. Ainda sobre o grupo de
dança Araruna, o livro Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte expressou:

há, entre os grupos de danças norte-rio-grandenses, um que se destaca dos demais por
uma característica importante. Ele é genuinamente potiguar. Tal grupo é a
SOCIEDADE ARARUNA de Danças Antigas e Semi-Desaparecidas. Enquanto os
demais grupos se inspiraram em danças semelhantes existentes já em estados do
Nordeste, o Araruna nasceu em Natal, de forma original, sob a orientação de mestre
Cornélio Campina, ainda hoje vivo e comandando as danças do seu grupo. Não
obstante essa característica de seu nascimento no Rio Grande do Norte, o Araruna
ainda possui outros fatores que o distinguem dos demais grupos: é o único no Estado
com personalidade civil e estatuto registrado em cartório. É igualmente o único no
Estado que possui uma sede própria situada no bairro das Rocas (GURGEL;
VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 101).

Nos trechos acima percebemos a importância que o grupo Araruna desempenha na


narrativa didática. Criam-se, na própria escrita, mecanismos que enaltecem a expressão
cultural, como, por exemplo, o nome do grupo em destaque, como também a ênfase no seu
caráter distintivo relacionado aos outros grupos de dança e expressões culturais. Acrescido de
uma série de outros mecanismos que lhe distinguem: sede própria, registro em cartório,
origem potiguar. Percebemos que o fato reside no aspecto genuíno da cultura, de como ela se
originou e como essa origem conseguiu se perpetuar ao longo dos tempos. E, por isso mesmo,
a sociedade norte-rio-grandense tem a “missão” e o dever de conhecer e preservar o folclore.
As imagens, a seguir, caminham no mesmo sentido.

Figura 7 - Araruna – I semana de cultura Figura 8 - Apresentação do grupo Araruna em


nordestina na Universidade Federal do Rio Grande sua sede.  
do Norte, em Natal.

FONTE: GURGEL; VITORIANO; GURGEL, FONTE: GURGEL; VITORIANO; GURGEL,


2003, p. 119. 2003, p. 101.
  67  

Observando as ilustrações acima, elas nos fornecem elementos ainda mais ricos, uma
vez que o grupo foi a única expressão cultural que se repetiu em duas imagens. A partir disso,
podemos inferir que a repetição dessa figura forma uma narrativa na qual essa manifestação
se sobressai sobre as demais. Isto, possivelmente, estando ligado ao fato de que o referido
grupo é reconhecido como uma manifestação “genuinamente potiguar” (GURGEL;
VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 101) e, portanto, a mais adequada para “dizer/ver” o Rio
Grande do Norte.
Além disso, podemos também identificar o elemento da alteridade fazendo-se presente
na narrativa, haja vista que o grupo de dança Araruna se sobressaiu em importância aos
demais pelo fato de não ter nenhuma influência de expressões culturais de outras
espacialidades. Por acreditarem que o referido grupo não sofreu nenhuma influência externa
em seu processo de criação, ele parece representar de fato a cultura “do” Rio Grande do Norte,
pertencente exclusivamente ao Estado, que não transita, não sofre a ação dos encontros
culturais diversos.
Essa narrativa nos ajuda a refletir como, no projeto de construção de uma comunidade,
as diferenças são apagadas em prol de uma homogeneização. Concomitante a esse processo
de matização das diferenças, há outro fenômeno de igual importância: o estabelecimento das
especificidades, visto o que torna possível a definição do “eu”, do “verdadeiro potiguar”, é
que exista, portanto, o outro, o “não potiguar”. É quando a construção da identidade revela
sua outra face, a alteridade. Ao mesmo tempo em que se consideram outras influências
espaciais, como o fato de ser humano e brasileiro, o importante é entender que existe “o norte-
rio-grandense”, um ser supostamente singular e coeso que se identifica, ou antes, é
identificado enquanto tal. A partir dessa percepção, nega-se a diferença e exalta-se a
uniformidade, provocando uma operação de homogeneização, posto que a ideia seja carregar
apenas no poder de unir, imaginar a comunidade, em detrimento de poder separá-la, dividi-la.
Por isso, o grupo de dança Araruna tornou-se elemento chave nesse processo, representando o
“original” que o Rio Grande do Norte poderia ter, minimizando as influências culturais
externas33.
Deífilo Gurgel fez uma breve discussão do termo folclore no livro criado para
disciplina, para ele,

coube ao arqueólogo inglês William John Thoms, em 1946, a criação da palavra


Folk-lore, através de uma carta endereçada ao jornal inglês O Ateneu. Observando

                                                                                                               
33
Retomaremos essa discussão ainda neste capítulo.  
  68  

que, àquela época, havia um excesso de vocabulários para definir o estudo da cultura
do povo, Thomas sugeriu, então, ao jornal, que fosse a referida palavra Folk-lore, de
raízes anglo-saxônicas, significando saber do povo, para padronizar tais estudos.
Com o passar dos anos, o vocábulo foi se divulgando através de todos os países e,
hoje, o termo Folclore é praticamente um consenso universal (GURGEL;
VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 78).

As relações sociais, que deram origem às manifestações folclóricas calcadas no


primitivismo e no caráter genuíno, também são vistas a partir da perspectiva de uma história
do povo, por isso, digna de ser conhecida e partilhada, uma vez que esse “povo” por tantas
vezes foi relegado ao esquecimento na historiografia. Porém, esta mesma noção podia levar a
uma compreensão preconceituosa do que seria o folclore, haja vista que as expressões ditas
folclóricas seriam originárias de grupos considerados inferiores. Por isso, Deífilo Gurgel faz
uma ressalva:

esta definição implicava em reduzir o folclore a um saber oral, das classes mais
inferiores da sociedade, particularmente dos analfabetos. [Mas que], modernamente,
com a evolução da sociedade e dos costumes, o folclore também evoluiu (GURGEL;
VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 78).

O autor, do trecho em questão, utilizou uma definição do termo que data de 1846,
fazendo logo uma ressalva posterior, uma vez que tal definição restringe a expressão cultural
enquanto produto de “classes inferiores”. Nesse momento, verificamos – embora a ressalva
tente não produzir uma noção de folclore enquanto uma manifestação inferiorizada, ao passo
que se utiliza de juízo de valor, entendendo que, de fato, para ele, existem classes inferiores e
superiores e que o folclore surgiu com esses mesmos grupos – claramente a perspectiva
inferiorizada que o folclore assumiu. Continuando na tentativa de não limitar e inferiorizar as
expressões ditas folclóricas, o autor apresenta outros conceitos:

os folcloristas brasileiros definiram o Folclore como sendo o conjunto das criações


culturais de uma comunidade, baseado nas suas tradições expressas individual ou
coletivamente, representativo de sua identidade social.
A definição do professor Rossini inclui no universo folclórico não apenas
manifestações orais, como igualmente escritas, constituindo-se como característica
principal a espontaneidade da manifestação cultural.
Espontaneidade por diversas vezes colocada como característica essencial do
folclore: o Folclore tem como objeto de estudo as diversas expressões espontâneas
da cultura popular [...]. Entendem, portanto, como expressões espontâneas: usos,
costumes, crendices, superstições, literatura popular, folguedo, música, dança,
espetáculo, artes, brinquedos e brincadeiras, religiosidade (GURGEL;
VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 78-79).

A palavra que chama atenção desta vez é “espontaneidade”. Entendendo o que é


espontâneo como a facilidade com que alguma coisa se produza naturalmente. Ou ainda esses:
  69  

“1. Que alguém faz por si mesmo, sem ser excitado ou constrangido por outrem; voluntário. 2.
Sem artificialismos ou elementos ensaiados ou estudados; natural, sincero, verdadeiro. 3. Que
vegeta sem intervenção humana, nativo, silvestre, selvagem’’ (HOUAISS, 2008). Pesando
nessas definições do termo, os novos conceitos que se pretendem mais atuais parecem
caminhar na mesma direção das primeiras definições, como demonstra Deífilo Gurgel, que
chamou atenção para a definição do termo, em 1846, pelo arqueólogo inglês William John
Thoms.
O folclore parece está ligado a processos primitivos, naturais, como estágios primeiros
de um determinada comunidade, processos sociais considerados mais simplificados, de
relações sociais não complexificadas. Em outras palavras, processos remotos e inferiores,
ligados à espontaneidade e não a processos de saber/conhecer. Partindo de uma perspectiva de
que a sociedade passou por um processo de evolução, a qual parece ser o caso no livro,
podemos inferir que, mesmo havendo um esforço do autor em não relacionar a produção do
folclore com grupos sociais inferiores, no momento em que coloca os elementos folclóricos
enquanto espontâneo e primitivo, acaba incorrendo nessa perspectiva inferiorizada.
Apresenta-se assim uma hierarquização da cultura. Enquanto o eixo temático
“Literatura”, produzido por Tarcísio Gurgel, diz respeito à cultura erudita, à cultura dos
letrados, o eixo “Folclore” refere-se à cultura popular, aquela proveniente dos grupos mais
simples e desfavorecidos economicamente, considerados, muitas vezes, inferiores. Gustavo
Barroso, cearense, folclorista e estudioso do popular, no seu livro Ao Som da Viola sobre a
cultura popular e o folclore, afirma que

mal sabendo ler ou não o sabendo de todo, não tenho nenhum outro meio de
comunicação do pensamento, criou canções. A ausência do hábito de leitura deu a
essas produções, às mais das vezes, formas que permitem ser facilmente guardadas,
recitadas ou cantadas. O seu acompanhamento musical é composto de melodias
muitos simples como toda música primitiva. Outrora as executava nas cordas da viola
– as velhas ‘vielles’ dos troveiros. Depois, adotou o violão. Agora, prefere,
infelizmente, a sensaboria das sanfonas (apud ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p.
42-43).

A ausência da escrita, sobretudo, determina o estágio inferior em que a cultura popular


foi criada, uma vez que a oralidade é uma de suas características preponderantes. Essa
distinção e hierarquização em relação aos elementos culturais pode ser facilmente percebida
não apenas nas narrativas escritas do livro em questão como também nas visuais:
  70  

Figura 9 - Luís da Câmara Cascudo. Figura 10 - Mário de Andrade.

FONTE: GURGEL; VITORIANO; GURGEL, FONTE: GURGEL; VITORIANO; GURGEL,


2003, p. 115. 2003, p. 115.

Figura 11 - Chico Daniel, um grande calungueiro. Figura 12 - Manoel de Joana, narrador já


falecido.

FONTE: GURGEL; VITORIANO; GURGEL, FONTE: GURGEL; VITORIANO; GURGEL,


2003, p. 104. 2003, p. 111.  

Como observa-se nas ilustrações, as legendas, nas imagens de personalidades


populares, apresentam – além de seus nomes – um pequeno título biográfico. Diferentemente
ocorre com o outro grupo, no qual as legendas de personalidades consagradas são compostas
somente com o seus nomes, como se estes, por si só, já dissessem alguma coisa. Ou seja, os
intelectuais e estudiosos da cultura dispensam apresentação, haja vista já serem conhecidos,
reconhecidos e consagrados enquanto ícones da cultura.
Continuando na análise das imagens:
  71  

Figura 13 - Cascudo jovem e elegante vendo- Figura 14 - Mamulengueiros Potiguares, IV


se, ao fundo, (2º a contar da esquerda) o poeta Encontro de João Redondo.
Jorge Fernandes).

Fonte: GURGEL; VITORIANO; GURGEL, Fonte: GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003,


2003, p. 24. p. 102.

Figura 15 - Imagem sem legenda. Figura 16 - Sebastião Fabiano, poeta.

Fonte: GURGEL; VITORIANO; GURGEL, Fonte: GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003,


2003, p. 21. p. 82.

Nas imagens, percebemos claramente os elementos de distinção social, enquanto os


artistas eruditos e intelectuais são apresentados com trajes elegantes, óculos de leitura, muitas
vezes posando com livros; já os artistas populares são apresentados com trajes simples, em
meio a paisagens que remetem às moradias no campo, muitas vezes, precárias, seu visual é
maltratado, com os cabelos e as barbas grandes. A ausência da legenda na imagem de Mário
de Andrade também nos fez inferir que a sua apresentação foi dispensável, uma vez que era
um intelectual conhecido e consagrado, não precisando de apresentação. O próprio Deífilo
Gurgel, que definiu os artistas populares, fora usado como referência pelos autores:
  72  

Deífilo Gurgel define o artista popular como aquele de origem humilde e que produz
as obras não seriadas [...] Em termos de crítica e história da arte, o artista popular é
tido em geral como primitivista ou naif (do francês, ingênuo) (GURGEL;
VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 72).

Sobre os artistas eruditos, no eixo “Literatura”, afirma Tarcísio Gurgel (2003, p. 16)
que “bastante culto, Henrique Castriciano tinha, como poucos poetas do Estado, a exata noção
da importância adquirida pelos avanços da ciência, que acabaram influenciando a própria
literatura no final do século XIX.”. O ser culto, nesse caso, parte de uma perspectiva da
cultura enquanto acúmulo de conhecimento científico e enciclopédico. Permanecendo com
uma ideia de cultura já ultrapassada de acordo com os estudos históricos e sociológicos (que
concebem a cultura a partir de uma perspectiva não hierarquizada), existiria a alta e baixa
cultura, a cultura popular e a erudita. No próprio texto de apresentação do livro didático,

[...] com frequência ouvimos sobre alguém o comentário de que é ‘culto’. E tal
significa que a pessoa referida é ilustrada, já leu bastante, é um estudioso ou erudito.
Chegando ao campo que nos interessa (e de que resultam os assuntos explorados
nesse livro), diremos que tal palavra será usada no sentido provavelmente mais rico:
o antropológico (Antro = homem. Logos = estudo) (GURGEL; VITORIANO;
GURGEL, 2003, p. 5).

Vale ressalvar, no entanto, que folclore e/ou a cultura popular, mesmo partindo de
uma perspectiva inferiorizada, tornam-se algo importante, uma vez que os intelectuais
enxergam determinado valor nessas manifestações. Quando isso ocorre, o popular, antes
inferiorizado, torna-se algo que merece ser conhecido, valorizado e perpetuado.
Ambiguamente, são determinados autores (intelectuais reconhecidos) e seu livro que atribuem
valor e legitimidade. Por isso, mesmo possuindo narrativas sobre cultura popular e o produto
no qual tal valor é firmado, o livro aqui discutido torna-se ele mesmo exemplo da mais “alta”
cultura, haja vista que os intelectuais e estudiosos atribuem valor e legitimam a cultura
popular. Assim como foi narrado na obra Introdução à Cultura do RN,

quando estudiosos do porte de Luís da Câmara Cascudo e Mário de Andrade


defendem com maior coragem a preservação de nossos grupos de danças populares
tradicionais, os autos e danças folclóricos e todo o universo da música, poesia e
teatro representados nos espetáculos de João Redondo, nas apresentações dos
violeiros e no enlevo de humildes mulheres nordestinas, cantando romances
medievais, dá para imaginar que, realmente, alguma coisa existe de transcendental
nesse universo de tradições populares (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p.
84).

Cumpre entender, portanto, o lugar do intelectual que nomeia de popular uma dada
cultura, que a classifica como folclore a partir de uma dada autoridade. Porém antes de nos
  73  

debruçarmos mais sobre essa relação dos intelectuais com as manifestações culturais,
entendemos também como imprescindível a discussão do que sejam os sistemas tradicionais
vinculados tanto ao processo de folclorização quanto ao de patrimonialização de uma ideia de
cultura. A tradição apresenta-se enquanto palavra de ordem nessas narrativas culturais. Assim,
discutiremos no tópico seguinte como este processo de constituição de uma cultura norte-rio-
grandense liga-se a elementos tradicionais e de que forma eles foram percebidos e
movimentados a partir de uma lógica de resistência às relações ditas modernas, que se
caracterizam enquanto frágeis e efêmeras.

Tradição como a guardiã do passado contra a globalização

“Respeitar e proteger os sistemas de conhecimentos tradicionais” (RIO GRANDE DO


NORTE, 2007a, 2007b). Este constituiu-se em um dos objetivos expressos tanto no Projeto
quanto nas Diretrizes que estabeleceram a disciplina “Cultura do RN”. De maneira geral, as
políticas públicas direcionadas às questões patrimoniais, culturais e identitárias, em grande
medida, têm como referência a tradição enquanto constituinte indispensável aos elementos
citados. Na política pública educacional a qual se remete o presente trabalho não se faz
diferente. Caminhando no mesmo sentido, as narrativas e textos, que estão inseridas nas
institucionalização da disciplina em questão, constantemente, fizeram referências aos ditos
sistemas tradicionais.
Pensar os sistemas tradicionais é extremamente importante para perceber as
experiências no tempo e quais suas implicações na sociedade em que vivemos. Porém, é
imprescindível entender que essas tradições devem ser ressignificadas e colocadas em
movimento, obedecendo, assim, às transformações que vão se processando ao longo do tempo
e de acordo com interesses diversos dos sujeitos. A tradição, dessa forma, embora diga
respeito a elementos constitutivos de determinado tempo passado, nem por isso torna-se
estanque, uma vez que seu movimento, tanto pela ação do tempo quanto por interesses
diversos, faz com que seja uma outra coisa e não necessariamente uma reprodução do que já
existe, do que já está posto.
Nas diversas narrativas selecionadas e produzidas para o desenvolvimento da
disciplina recomenda-se a preservação dos sistemas tradicionais, o respeito, o conhecimento e
sua divulgação. Todavia, o que se tem observado é que o termo geralmente vem carregado de
um sentido estanque, natural, como se, assim, não estivesse passível a transformações. De
acordo com Edward Shils, “as tradições [...] estão sempre mudando, mas há algo em relação à
  74  

noção de tradição que pressupõe persistência; se é tradicional, uma crença ou uma prática tem
uma integridade e continuidade que resistem ao contratempo da mudança” (Apud GIDDENS,
2001, p. 31).
No livro Introdução à Cultura do RN, encontramos a seguinte afirmação: “constituem-
se fatores de identificação da manifestação folclórica: a aceitação coletiva, tradicionalidade,
dinamicidade e funcionalidade” (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 78). Embora a
dinamicidade seja apresentada neste trecho assim como em outras passagens do livro, como já
discutimos, a tradição, como debatido por Giddens, costuma ser concebida como uma noção
de permanência e resistência.
Pensando nisso, ao elencar e definir o que sejam as chamadas danças folclóricas nas
narrativas do livro criado para disciplina, contamos com a seguinte descrição de uma dessas
manifestações:

CABOCLINHOS – Este é um ato sobre cuja origem os estudiosos divergem. Alguns


consideram que é uma dança dos índios brasileiros, enquanto outros acham que a
inspiração dos Caboclinhos é de origem africana. São dois ‘cordões’ de ‘índios’
dançando ao som de um pífano e de um instrumento de percussão (GURGEL;
VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 97-98).

E continuando com outras expressões, afirmou que

dentre as diversas manifestações artísticas populares norte-rio-grandense, o Teatro


de Bonecos de João Redondo é, talvez, depois das danças folclóricas, a mais
importante. As raízes mais remotas desse espetáculo espalham-se pela Ásia (China e
Índia) [...] Quando se transferiu para Europa, através da Turquia, o Teatro de
Bonecos refinou-se de tal sorte que passou a ser uma brincadeira da predileção de
monarcas, sendo apresentado dentro dos palácios. Com a vinda dos bonecos para o
Brasil, o brinquedo retornou às suas origens primitivas. O que era um teatro refinado,
voltou a ser, nas mãos dos “canguleiros” do Nordeste, uma diversão da plebe
analfabeta (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 102).

Percebemos, a partir dessas narrativas, que na perspectiva dos autores do livro os


sistemas tradicionais, que representam a cultura de um povo, têm como princípio fundante a
busca pelas origens. A tradição, dessa forma, liga-se a um momento e espaço de nascimento
que torna a expressão cultural importante, uma vez que diz respeito a processos primitivos
que percorreram tempos e espaços distintos, e, mesmo assim, não modificaram sua “essência”.
No segundo trecho, o autor afirmou que a manifestação cultural em questão refinou-se quando
foi para Europa, mas assumiu novamente contorno de originalidade e espontaneidade quando
voltou para a América.
  75  

Em outras palavras, o Teatro de Bonecos de João Redondo, no Rio Grande do Norte,


conseguiu produzir uma manifestação artística que retornou às origens remotas, localizadas na
Ásia, diferentemente do que aconteceu na Europa, quando a expressão cultural em questão
assumiu novos tons, chegando mesmo a descaracterizá-la, a partir das mudanças no espaço e
nos agentes sociais envolvidos no espetáculo. Nessa perspectiva, inferimos que a tradição,
para o autor da narrativa, constitui-se enquanto tradicional mediante a condição da não
alteração ou mínima alteração que esta possa sofrer com o tempo. Tanto que a tradição, a
partir dessa linha de raciocínio, mostrou-se nas narrativas do livro em questão como a grande
aliada aos processos sociais modernos, que levam, por muitas vezes, a descaracterizar
determinadas comunidades. Esses processo é denominado pelos próprios autores como
globalização, um fenômeno que destrói fronteiras, culturas e povos:

não é demais pretender que, ao utilizá-lo [o livro Introdução à Cultura do Rio


Grande do Norte] em sala de aula ou em atividades extraclasse, teremos um aliado
para enfrentarmos os riscos de uma globalização que, não respeitando fronteiras,
ignora e, por vezes, destrói culturas regionais (GURGEL; VITORIANO; GURGEL,
2003, p. 5).

Pensar o ensino escolar, enquanto um espaço de disputas, é também problematizar os


usos e funções deste em relação à construção de identidades espaciais. E, neste caso
específico, destacamos o desenvolvimento por parte do Estado do Rio Grande do Norte de
“políticas identitárias” em meio ao processo conhecido por “globalização” e,
consequentemente, o impacto que provoca na construção das identidades culturais.
Sobretudo a partir da década de 1980, a globalização intensificou-se nos países em
desenvolvimento, promovendo maiores debates no que diz respeito às identidades, uma vez
que os sistemas globalizantes modificaram as dinâmicas culturais de vários povos. Neste
processo, muitas vezes provocando o que se chamou de padronização em massa da cultura ou
violência simbólica, no sentido de não respeitar os sistemas ditos tradicionais de determinadas
localidades (BOURDIEU, 2008).
Contudo, na contramão desse processo, identificou-se o surgimento de movimentos
antiglobalizantes, a fim de reafirmar características, costumes e modos de vida, capazes de
sustentar as identidades locais em meio ao processo global (BAUMAN, 2005). Nesse cenário,
nota-se uma preocupação do Estado do Rio Grande do Norte de fazer um enfrentamento ao
processo de globalização pelo viés do ensino, como verificamos no fragmento acima. Assim,
em tempos de dissolução de fronteiras provocada pelo sistema global, empreende-se uma
  76  

política de Estado visando a localizar quais elementos e características formam o “ser norte-
rio-grandense”,

nesse sentido que produzimos o livro. Que a partir dele possamos valorizar o fato de
que, embora humanos – habitantes do planeta Terra – latino-americanos, com a
grandeza e a dramaticidade que isso implica e mais: brasileiros do Nordeste, somos
verdadeiramente potiguares (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 5).

Então, independente das relações com o mundo, com o país, região, existe algo
“verdadeiramente” potiguar. Elementos originários do que se constitui o Estado do Rio
Grande do Norte e, por isso, no intuito de que isso não seja perdido, precisa-se combater o
que vem de “fora” dos limites de nossa fronteira. Caso contrário, consideram os produtores do
livro, encaminha-se a um processo de desaparecimento ou de uma transformação de maneira
que não será mais possível dizer e saber o que de fato é o “ser” potiguar. Diante disso,
Vicente Vitoriano, produtor do eixo temático “Artes plásticas”, reconhece as dificuldades nos
dias atuais de produzir obras de cunho local:

o que podem dizer os elementos materiais sobre a cultura? Hoje em dia, quando o
mercado de materiais artísticos encontra-se estabelecido internacionalmente ou
globalmente, torna-se complexa a coleta de informações culturais numa obra de arte
do tipo tradicional, especialmente pintura ou várias formas de acabamento de desenho,
como as aquarelas e os pastéis. Mesmo um artista do Rio Grande do Norte sempre
terá entre os seus equipamentos uma tinta óleo holandesa, uma aquarela inglesa ou
um papel italiano. Podemos dizer que as formas tradicionais de produção artística se
tornaram internacionalizadas e de que pertencem à cultura global (GURGEL;
VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 52) [grifo nosso].

Na narrativa acima, percebe-se a preocupação com o desenvolvimento do mercado


globalizado em relação à produção local e à manutenção de sua essência, cabendo um
enfrentamento por parte da cultura local a esses processos globalizantes que, por vezes,
podem descaracterizar e dissolver culturas. Dessa maneira, uma das formas de enfrentar a
internacionalização do mercado é voltar à tradição; recorre-se a um processo de retomada dos
elementos considerados pelos estudiosos da cultura como tradicionais, originários, genuínos:

diante da globalização do mercado de materiais, cada vez mais os artistas têm


procurado desenvolver formas de produção que sejam capazes de dizer mais sobre
suas próprias culturas. Assim, alguns pintores como Avelino Pinheiro (Natal/RN),
procuram descobrir cores nas areias do mangue para usar em seus quadros. Outros
pintores, como Jomar Jackson (Areia/PB, 1948) e Nilton Xavier (Natal/RN),
pesquisam pigmentos naturais na argila da Barreira do Inferno para fabricar suas
tintas, ou como João Natal (Natal/RN, 1950) que recorta o papel de suporte de seus
desenhos como se fossem forros de prateleiras, muito usados ainda nas casas
simples do interior. Para os escultores locais, a pedra de talco de São Tomé e o
arenito de Macaíba são materiais que substituem o mármore. Em todo o mundo, os
  77  

artistas impregnam suas obras com elementos materiais oriundos de sua própria
realidade, conscientes de que a arte é um testemunho sobre sua cultura (GURGEL;
VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 52-53).

A passagem textual acima revela uma ideia de retorno a terra pelo próprio material que
a constitui, produzindo uma marcação territorial local que se pretende natural, essencial, livre
de influências externas. Utilizar elementos da natureza local pareceu permitir buscar
testemunhos que de fato “digam” o que é o “ser local”, no caso de que se trata esse texto, do
que está na essência “verdadeira” do “ser potiguar”. Essa apropriação de elementos materiais,
originados da própria realidade, faz parte das discussões dos estudos das artes
contemporâneas, que muitas vezes consideram as mudanças provocadas pelos processos
globalizantes a partir de um ponto de vista negativo e autor do texto, Vicente Vitoriano,
parece está atento a essas questões contemporâneas. No entanto, o traço conservador da
narrativa residiu em entender que a tradição, caracterizada enquanto elemento de permanência,
poderia constituir-se em enfrentamento contra este cenário. Assim, a globalização parece
apresentar-se como um “inimigo” que deve ser combatido pelo regionalismo. A imagem
abaixo coloca-se como mais uma narrativa regional de enfretamento aos processos
globalizantes.

Figura 17 - Trabalho de João Natal em que se distinguem


vários elementos da cultura potiguar: o bastidor da
bordadeira, espécies de fauna, a dança do Araruna e o
papel recortado.

Fonte: GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 53.


  78  

A legenda utilizada por Vicente Vitoriano, para explicar a imagem, também foi
bastante significativa para pensar esse retorno aos “elementos da terra”. O bastidor da
bordadeira, algumas espécies da fauna, a manifestação da dança Araruna são ícones
importantes para se pensar o regionalismo nordestino-potiguar. O primeiro representa uma
importante atividade cultural e comercial muito valorizada até os dias atuais no Estado: o
bordado. Milhares de turistas, que vem até o Rio Grande do Norte, dirigem-se aos diversos
centros de artesanatos, principalmente na cidade de Natal, para adquirir os famosos trabalhos
das bordadeiras, principalmente as seridoenses. As bordadeiras de Caicó, por exemplo, são
famosas e conhecidas no Brasil todo por seus bordados. O bastidor da bordadeira
representaria, nesse sentido, o ícone de uma atividade “tipicamente” local, capaz de conduzir
a arte também a esse status de se configurar a uma produção local.
Utilizar algumas espécies da fauna local como o camaleão ou iguana, a cobra cascavel
e o besouro (nome científico: Coelosis bicornis) funcionaram também como orientadores
espaciais, uma vez que são espécies comumente encontradas na fauna de vários municípios do
Estado. No plano central dessa narrativa local, encontra-se o grupo de dança Araruna,
aclamado como uma das principais manifestações da cultura popular, por ser considerada uma
dança genuinamente potiguar.
Ao observamos essas narrativas, tanto a textual quanto a visual, notamos que existe
um esforço, um movimento por parte de artistas e intelectuais ligados à cultura, de buscar
elementos “tipicamente” norte-rio-grandenses para, assim, resistir ou minimizar os males que
podem ser provocados pelos processos globais. Diante desse quadro, artistas que conseguem
produzir suas obras, a partir de elementos considerados originários das fronteiras do Rio
Grande do Norte, destacam-se nas narrativas do livro em questão:

dentro dos ideais regionalistas, Newton Navarro preencheu sua obra com a paisagem
e os tipos humanos do nosso estado e é considerado o mais perfeito tradutor visual
de sua terra, particularmente Natal (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p.
58).

Assim, o pintor Newton Navarro, já consagrado com a exibição de seus quadros na


Pinacoteca do Estado, no bairro da Cidade Alta, em Natal, foi novamente canonizado no livro,
tanto em termos de reprodução das pinturas e comentários textuais, pelo fato de conseguir
traduzir em suas obras, de acordo com os especialistas de arte, elementos que expressam de
fato a cultura do norte-rio-grandenses, constituindo-se assim em um grande aliado contra o
processo de destruição de culturas locais pela globalização.
  79  

Vale ressalvar, no entanto, que, embora as narrativas do livro Introdução à Cultura do


Rio Grande do Norte coloquem-se enquanto defensoras de uma produção local que resista às
diversas influências culturais decorridas dos processos globalizantes, o Projeto e as Diretrizes
que institucionalizam o componente curricular atentam para o fato de que os alunos devam
“Reconhecer, valorizar e respeitar a diversidade étnica e cultural na formação da identidade
potiguar” (RIO GRANDE DO NORTE, 2007a, 2007b). Além desses, em alguns dos
documentos indicados no Projeto, as palavras tônicas são “diversidade” e “pluralidade”, a
saber:

vamos reconhecer a pluralidade cultural [...] Cultura que viceja neste território seco
as raízes úmidas dos saberes e fazeres dos povos indígenas, das comunidades
quilombolas e sertanejas, de originalidade pluricultural-índia, afro-descendente e
europeia (UNICEF, 2006, p. 9).

Os objetivos da presente Convenção são: (a) proteger e promover a diversidade das


expressões culturais; (b) criar condições para que as culturas floresçam e interajam
livremente em benefício mútuo; (c) encorajar o diálogo entre culturas a fim de
assegurar intercâmbios culturais mais amplos e equilibrados no mundo em favor do
respeito intercultural e de uma cultura da paz [...] (UNESCO, 2005).

A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se


manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os
grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de
inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão
necessária como a diversidade biológica para a natureza (UNESCO, 2001).

[...] Considerando que o processo de globalização, facilitado pela rápida evolução


das novas tecnologias da informação e da comunicação, apesar de constituir um
desafio para a diversidade cultural, cria condições de um diálogo renovado entre as
culturas e as civilizações (UNESCO, 2005).

Esses documentos, na contramão do que afirma o livro em questão, consideram e


recomendam ações de preservações em relação à cultura, ao mesmo tempo que reconhecem as
influências e elementos culturais vindos de espaços distintos. Conceitualmente forçariam a
incorporação do que não provêm do Rio Grande do Norte, além também de enfatizar o
diálogo que pode surgir a partir das relações culturais provocadas pela globalização. Desse
modo, entendemos que existe uma tensão latente entre os documentos produzidos e indicados
para o desenvolvimento da disciplina e as narrativas e objetivos do livro produzido para o
componente curricular. Enquanto os primeiros buscam o diálogo entre culturas, o segundo
busca resistir a essas mesmas culturas.
Dessa forma, questiona-se: como pensar a diversidade e a pluralidade cultural partindo
do pressuposto que uma fronteira, o Estado do Rio Grande do Norte, define e limita os
elementos e expressões culturais que “pertence” a esse território? Como pensar o diálogo
  80  

cultural quando o Estado, por meio de uma política pública, indica e distribui um livro que
tem como finalidade o esforço em se “proteger” de possíveis elementos culturais que
“pertencem” a outras espacialidades e culturas? Podemos então sugerir que, embora a
elaboração da disciplina “Cultura do RN” tenha por objetivos pensar um projeto de identidade
respeitando a diversidade e pluralidade cultural norte-rio-grandense, em sentido contrário, as
narrativas, produzidas a partir do livro citado, foram tomadas como aliadas contra a ameaça
que os encontros culturais com outros povos poderiam acarretar. Existe toda uma narrativa
histórica que aparentemente não é problematizada. Antes, é amada e defendida com tamanho
ufanismo e regionalismo que assusta. Regionalismo esse que parece ser a chave identitária do
potiguar, um ser coeso e bem definido em suas manifestações.
Pensar um sujeito singular, em meio a um contexto plural, leva-nos a questionar que
tipo de identidade local pretende ser a norte-rio-grandense. De acordo com Néstor Garcia
Canclini (2008), é importante ultrapassar análises que contrapõem o local ao global, assim
como também o moderno ao tradicional. Colabora-se, desse modo, para se pensar as
identidades além de suas formas “essencialistas”, “autênticas” e “puras”, percebendo-as
enquanto resultados também de “trocas” e diálogos culturais que geram múltiplas alianças que
provocam tanto ganhos quanto perdas.
Nesse sentido, o conceito de culturas híbridas de Canclini permite pensar uma política
identitária que, em suas contradições, ora almeja uma identidade plural, ora uma singular. A
identidade norte-rio-grandense assume singularidades a partir de “um conjunto de predicados
de que é portador o homem potiguar” ao mesmo tempo em que também considera o “[...] o
processo da nossa formação, entrecruzamento racial, sistemas religiosos, tradição, modos de
habitar, evolução dos costumes, etc.” (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 5),
Nos termos de Canclini (2008, p. XIX), como não pensar na hibridação definida como

[...] processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas que existiam
de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas.
Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram resultado de hibridação,
razão pela qual não podem ser consideradas fontes puras.

Fazendo uma relação com o conceito definido acima, o processo de desenvolvimento


da disciplina “Cultura do RN” parece apresentar algumas contradições: documentos oficiais
sobre pluralidade e diversidade não faltaram nas recomendações tanto do Projeto quanto das
Diretrizes, os quais também têm como objetivo promover o respeito à diversidade, pluralidade
e diferenças; ao mesmo passo que o livro, produzido especificamente para a disciplina, tenta
  81  

trazer elementos que combatam a ameaça de encontros culturais. Parece que essa ideia, como
já exposta na citação que abriu a discussão em questão, que coloca o livro como um aliado
para “os riscos de uma globalização [...] que destrói culturas” está mais alinhada a uma
perspectiva de guerra cultural, na qual as culturas se enfrentam entre si, ou como afirmou
Canclini (2008, p. XXVI):

nas condições da globalização atuais, encontro cada vez mais razões para empregar
os conceitos de mestiçagem e hibridação. [...] A hibridação, como processo de
interseção e transações, é o que torna possível que a multiculturalidade evite o que
tem de segregação e se converta em interculturalidade. As políticas de hibridação
serviram para trabalhar democraticamente com as divergências, para que a história
não se reduza as guerras entre culturas, como imagina Samuel Huntington. Podemos
escolher viver em estado de guerra ou em estado de hibridação.

Da maneira como as narrativas do livro Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte


se apresentam não podemos inferir que busquem um processo de hibridação, no sentido de
respeitar as influências, mudanças e diferenças nos sistemas culturais. Conceber a tradição, o
patrimônio, o folclore e, de modo geral, a cultura enquanto um repertório fixo e cristalizado,
em pouco ou nada contribui para entender o processo de construção social desses elementos34.
A historicidade da sociedade e dos elementos que a formam perde-se nesse momento35.
Os sistemas tradicionais foram chamados, nas narrativas do livro Introdução à
Cultura do Rio Grande do Norte, para agir no combate a um processo de desgaste das
relações culturais provocadas pela globalização. Em consequência disso, os elementos
constituintes dessa ideia de cultura do RN foram movimentados a partir de uma perspectiva
estanque, cristalizada, na forma que não admitiria questionamentos sobre sua importância e
validade, assim os concebendo sem historicidade. Não percebendo que eles, os elementos
definidos como integrantes de uma cultura local estão ligados às memórias de grupos e, por
isso, são frutos de uma construção social submetida a relações de poder, como afirmou
Giddens (2001, p. 31),

                                                                                                               
34
A instrumentalização da teoria de Canclini funciona, para esse trabalho, no sentido de pensar como os
sistemas tradicionais são vistos a partir de uma perspectiva estanque. Não que, desse modo, estejamos
desprezando o valor da tradição enquanto elemento importante para o pensar historicamente – valor este
defendido por Jörn Rüsen –, mas, sim, compreendendo como o tradicional muitas vezes é tomado de forma
cristalizada. Desse modo, apesar da existência de divergências entre algumas propostas teóricas apresentadas
neste texto, como por exemplo as de Canclini e Rüsen, elas fizeram-se necessárias uma vez que a
instrumentalização dessas teorias diversas nos permitiu pensar alguns problemas do nosso objeto de pesquisa.
35
O livro em questão não se constitui como livro didático, de acordo com o Projeto da disciplina “Cultura do
RN”, contudo, é um livro que se desenvolveu a partir de uma narrativa histórico-cultural. Nesse sentido,
podemos pensar que, na prática, mesmo que o livro tenha sido direcionado teoricamente enquanto uma fonte
histórica, em muito se assemelha a um livro de História. Discussão referente a essa questão será aprofundada no
capítulo seguinte.
  82  

[...] a tradição está ligada à memória, especificamente aquilo que Maurice


Halbwachs denomina “memória coletiva”; envolve ritual, está ligada ao que vamos
chamar de noção formular de verdade; possui “guardiões”; e, ao contrário do
costume, tem uma força de união que combina conteúdo moral e emocional.

A noção de verdade formular, a qual o autor se refere, diz respeito ao processo ao qual
a experiência no tempo é tomada enquanto uma verdade independente da narrativa que a
construa e os “guardiões” das tradições, por sua vez, seriam aqueles que têm acesso a essa
verdade, em muitas vezes só sendo possível ser compreendida e acessada através deles. Em
outros termos, podemos dizer que, embora a tradição pressuponha uma concepção de
permanência, de uma verdade que deve ser conhecida e inquestionável, na realidade, sua
construção está ligada a processos sociais e a memórias de grupos.

Quem define a cultura “do” Rio Grande do Norte?

Partindo da acepção já exposta dos elementos que fariam parte de uma ideia de cultura
do Rio Grande do Norte, definida em grande medida por expressões ditas tradicionais,
buscaremos discutir neste tópico quais os grupos sociais envolvidos nesse processo,
identificando quem seriam os seus possíveis “guardiões”. Guardiões aqui estão sendo
entendidos como indivíduos que são percebidos como agentes ou mediadores essenciais da
tradição, podendo ser idosos, curandeiros, líderes religiosos, ou ainda, “[...] poderiam parecer
equivalentes aos especialistas nas sociedades modernas” (GIDDENS, 2001, p. 34). Ao
apresentar uma concepção de cultura ligada a manifestações culturais ditas tradicionais, o
livro Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte, que foi indicado especificamente para
disciplina, de alguma maneira, é validado pelos especialistas que o produziram, “[...] haja
vista que sua autoria assinada por três ícones da cultura potiguar” (RIO GRANDE DO
NORTE, 2007a).
Vimos, no início deste capítulo, que o livro Introdução à Cultura do Rio Grande do
Norte foi produzido por estudiosos já consagrados no estudo de expressões culturais. Não é à
toa que no texto acima o livro seja validado, sobretudo, porque foi produzido por esses
estudiosos. Em outras palavras, percebemos que essa intelectualidade, ligada às expressões
culturais do Estado, fez parte da própria seleção, organização e produção dos elementos
constituintes dessa ideia de cultura do RN, isto é,
  83  

resultado de um esforço coletivo de especialistas no assunto, este livro obedece ao


que recomenda o Artigo 137 do Capítulo III, no seu Parágrafo 2º da Constituição
Estadual [...] (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 6).

Além disso, no decorrer da obra, outros especialistas considerados “consagrados” no


Estado também foram chamados enquanto ícones da cultura norte-rio-grandense, para
reverenciar e dar a devida importância para cultura do Estado, a saber: Luís da Câmara
Cascudo, o nome mais citado e enaltecido enquanto estudioso da cultura e que foi repetido
inúmeras vezes em todas as partes do livro.

Lourival Açucena tornou-se famoso numa atividade que estimulava sentimentos nas
enluaradas noites provincianas e quem, segundo Câmara Cascudo, está na própria
raiz da nossa literatura: a modinha (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 9).

Ainda sobre Lourival Açucena:

poemas de sua autoria acabariam reunidos pelo citado Cascudo, com a ajuda do
filho, Joaquim Lourival, num pequeno volume chamado Versos (GURGEL;
VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 9).

E sobre os artistas norte-rio-grandenses, continua:

[Henrique Castriciano] além de grande animador literário, conforme lembra o


biógrafo Luís da Câmara Cascudo, escreveu excelentes textos em prosa (foi um
notável colaborador dos jornais da capital e alguns de outros Estados) tendo chegado
a publicar alguns capítulos de romances que não chegou a concluir (GURGEL;
VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 16).

Verificamos, no primeiro trecho acima, que se deve ao estudioso da cultura, no caso


Luís da Câmara Cascudo, a tarefa de identificar a raiz da literatura potiguar. Como também
foi ele o responsável pela compilação de textos de um artista popular que considerou
importante. Cascudo fora o intelectual, no terceiro e último trecho, que, mais uma vez,
qualificou e adjetivou a importância do artista comentado. Observamos, então, que o grande
elemento que constitui o artista é o reconhecimento pelos intelectuais autorizados, que se
torna o grande agente de identificação, reconhecimento, preservação, divulgação e
legitimação da mesma. O que merece ou não ser preservado e valorizado depende do
julgamento dos “estudiosos” do assunto: “um ou outro poeta ainda merecia ser mencionado
nesse período em que Jorge Fernandes publica o seu livro, como, por exemplo, Jaime dos G.
Wanderley” (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 23).
  84  

O próprio livro Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte foi produzido por
membros da intelectualidade já reconhecida no Estado, assim como também – no decorrer da
narrativa desse livro e em suas indicações bibliográficas – eram os estudiosos do folclore e da
cultura popular chamados para o fórum das questões culturais, ora definindo o que é cultura
popular ou folclore, como vimos no tópico referente às discussões folclóricas, ora dizendo o
que era válido de ser valorizado e lembrado.
No eixo “Literatura”, o autor Tarcísio Gurgel escreveu sobre o escritor e intelectual
Henrique Castriciano, que

foi, em todos os sentidos, um intelectual. [...] Valorizou o folclore, tornando-se


responsável juntamente com o irmão Eloy de Souza, pela apresentação do cantador
Fabião das Queimadas em pleno Palácio do Governo, surpreendendo a elite política
e social do Estado. Tornou-se o principal divulgador da figura de Nísia Floresta e
trouxe da Europa a ideia de criação de uma escola apenas para moças (visando à
valorização do elemento feminino na sociedade), de que resultou a Escola
Doméstica de Natal (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 16).

As considerações de Tarcísio Gurgel sobre Henrique Castriciano servem para


entendermos essa operação de definição e legitimação de uma ideia de cultura do Rio Grande
do Norte pelos intelectuais. Para problematizações referentes a essa relação, as discussões
realizadas pelo historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2013) contribuem de forma
significativa ao problematizarem a fabricação do folclore e da cultura popular e pensarem
sobre o papel dos especialistas, por vezes chamados de folcloristas, nesse processo. O
intelectual, de acordo com Albuquerque Júnior, cria uma série de operações para se “apossar”
e autorizar a cultura popular, que tem seu processo de criação exatamente a partir de tais
operações. Desse modo, sobre Câmara Cascudo, Albuquerque Júnior (2013, p. 21) analisa que

já autores como Gustavo Barroso, Leonardo Motta e Luís da Câmara Cascudo,


embora tenha só a partir de dado momento se assumido como nordestinos, são
aqueles que participam diretamente dessa fabricação de uma cultura regional e
popular, e que vão, inclusive, incorporar através de seus escritos, aqueles outros
autores como partícipes desta tradição de estudos em torno da cultura regional.

Na bibliografia do livro, encontramos nomes como Luís da Câmara Cascudo, Zila


Mamede, Diógenes da Cunha Lima, Américo de Oliveira Costa, Ângela Almeida, Dorian
Gray Caldas, Rejane Cardoso, Luiz Fernandes, José Bezerra Gomes, Humberto Hermenegildo,
dentre outros intelectuais no âmbito local. Em esfera nacional, a referência frequente é Mário
de Andrade. Tarcísio Gurgel, Vicente Vitoriano e Deífilo Gurgel, além de produtores da obra,
  85  

não deixam de constar nas narrativas e bibliografia do livro, enquanto referenciais


importantes para as ditas questões culturais.
Esses especialistas, mais do que conhecedores, participam enquanto agentes
protetores das expressões culturais, ou, nos termos de Giddens, são verdadeiros “guardiões da
memória”. São “reconhecedores”, “protetores”, “divulgadores” dos elementos ligados às
expressões culturais tradicionais. Pode-se observar a manutenção dessa perspectiva até
recentemente, como se vê nesta entrevista de Tarcísio Gurgel à página virtual da União
Brasileira de Escritores do RN (UBERN):

[Entrevistador UBERN] – Você escreveu uma obra fundamental para o


entendimento da literatura local intitulada “Informação da Literatura Potiguar”. O
que você destaca nesse livro?
[Tarcísio Gurgel] – Penso que a tentativa de produzir um discurso
historiográfico/crítico coerente, investindo na possibilidade de despertar nas pessoas
o interesse pela nossa literatura. E dar a ela o justo reconhecimento. Mesmo que este
viesse acompanhado da advertência nada ufanista, quanto à nossa limitada produção
literária, com base na sábia lição de Antônio Cândido. Aqui, me permiti assumir um
aparente paradoxo: mesmo sendo pobre a nossa literatura, busquei valorizá-la, e não
apenas pela coerência daquele discurso antes mencionado, mas pela coragem de
fazer um livro de grande qualidade editorial. O pessoal da AS Editores bancou
minha pretensão e o livro aconteceu (GURGEL, 2011).

Ao mesmo tempo em que Tarcísio Gurgel, em seus trabalhos, busca um “justo


reconhecimento” da nossa literatura, como afirmou, considerou-a também pobre. Para pensar
essa afirmativa, utilizei outras duas respostas que o autor deu na mesma entrevista:

[Entrevistador UBERN] – Há um marco divisor na literatura norte-rio-grandense?


Quais são os pontos positivos a serem destacados na nossa literatura? Como você a
define? Cite, por favor, os principais livros de autores nossos que não podem faltar
na lista de alguém que está pesquisando o tema.
[Tarcísio Gurgel] – É muito difícil estabelecer um marco divisor, porque a nossa
literatura – por suas condições específicas – não registra propriamente movimentos
de grande expressão, escolas, rupturas. Agrada-me mais, na medida em que me sinto
mais seguro para fazê-lo, citar nomes fundamentais. Neste caso, é fácil mencionar
Henrique Castriciano, Câmara Cascudo, Jorge Fernandes, Zila Mamede.
[Entrevistador UBERN] – Sabemos que você não tem bola de cristal, mas faça um
exercício de futurologia e nos diga para onde vai a literatura no Século XXI. Quais
os caminhos que a literatura pode ou deve seguir?
[Tarcísio Gurgel] – Quer saber? Penso que durante muito tempo continuará sendo
uma literatura produzida para refletir um impasse: do autor diante de um beco de
muitas saídas e ele inseguro quanto ao caminho a seguir. Não sei que caminhos pode
ou deve seguir. Sobretudo se encontramos a cada dia, em muitos dos becos antes
referidos, blogueiros e seus colaboradores que, movidos por um narcisismo irritante
disseminam uma sapiência na qual eles próprios acreditam (GURGEL, 2011).

A partir do primeiro e dos demais trechos da entrevista podemos inferir que há um


esforço de Tarcísio Gurgel na valorização de uma cultura norte-rio-grandense, embora esta
  86  

não seja expressiva, uma vez que o Rio Grande do Norte não teve “movimentos artísticos”
muito significativos. No entanto, apresentaria nomes como Henrique Castriciano, Câmara
Cascudo, Jorge Fernandes e Zila Mamede como importantes representantes da cultura do
Estado. Sobre a literatura do século XXI, apresenta um pessimismo decorrente das relações
efêmeras da vida moderna como também a ausência de conhecimentos profundos por parte
dos artistas do século citado. Isso talvez explique o fato de que o eixo produzido, pelo autor
no livro criado para disciplina “Cultura do RN”, tenha constituído-se exclusivamente com a
literatura e movimentos literários no Rio Grande do Norte entre fins do século XIX e a década
de 1930, período conhecido por Belle Époque, e parte da segunda metade do século XX,
referindo-se aos grandes representantes do período os intelectuais, sendo o mais destacado
deles, Luís da Câmara Cascudo. Talvez essa organização do livro tenha sido decorrente dos
próprios estudos realizados para a tese de doutorado defendida pelo autor, no programa de
Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, no Departamento de Letras da UFRN, de título
Belle Époque na esquina - o que se passou na república das letras Potiguar, que teve como
recorte temporal analisado a chamada República Velha. Esta tese posteriormente virou livro,
lançado em 2009. Sobre estes períodos citados, realizaremos mais à frente outras discussões.
A intelectualidade supracitada participou das operações de produção dessa ideia de
cultura do RN. Em outras palavras, é oportuno dizer que a cultura não pré-existe, haja vista
que é fruto de um processo pelo qual foi realizado determinadas práticas por esses intelectuais
específicos, que ocuparam o lugar de guardiões da memória. Para problematizarmos essas
questões, podemos nos aproximar das discussões realizadas por Albuquerque Júnior (2013),
as quais – dentre as operações do que o autor chamou de fabricação do folclore e da cultura
popular – identificaram o processo de escrituração da cultura popular.
Em que pese o recorte temporal do autor ser a primeira década do século XX, algumas
aproximações podem ser realizadas com o processo de desenvolvimento da disciplina
“Cultura do RN” em 2007. Ao analisarmos o livro Introdução à Cultura do Rio Grande do
Norte, verificamos uma série de expressões orais que integram a cultura do Estado, que foram
escrituradas, ou seja, passaram por um processo de escrita por parte dos estudiosos do assunto.
Dentre essas expressões, foram narradas: “Auto do Boi Calemba”, “Auto do Fandango”,
“Auto da Chegança“, “Congos de Saiote”, “Congos de Calçola”, “Auto da Lampadinha”,
“Auto do Pastoril”, “Texto de João Redondo”, entre outros. Cada uma delas é seguida de
legendas indicando quem as coletou – no caso, quase todas pelo próprio Deífílo Gurgel (com
exceção de uma coletada por Ubaldo Bezerra) –, assim como também os espaços gravados e a
data. Apresentando algumas dessas legendas, temos:
  87  

[Auto do Fandango] Gravação feita por Deífilo, nos meses de novembro de 1975, a
fevereiro de 1976, no sítio do ‘Oiteiro’, São Gonçalo do Amarante, RN, com
Atanásio Salustino do Nascimento, mestre do antigo Fandango de São Gonçalo.
[Textos de João Redondo] Espetáculo gravado na residência do professor Deífilo
Gurgel, em Natal, no ano de 1987.
[Dança do Maneiro-Pau] Gravação feita por Ubaldo Bezerra, na cidade de Dr.
Severiano, RN, no dia 19.07.1980, com Antônio Rodrigues e outros integrantes do
Maneiro-Pau (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, 93-103).

Todas essas manifestações orais passaram por um processo de escrita e,


consequentemente, de reconhecimento social, uma vez que os artistas populares tiveram suas
expressões escolhidas e divulgadas a partir da importância que os estudiosos no assunto
enxergaram nessas expressões. Importante observar que este registro típico da operação de
folclorização, a escrituração, faz-se presente no livro Introdução à Cultura do Rio Grande do
Norte, que não é um livro etnográfico. Em muitos outros trechos da obra, o processo de
validação da cultura é realizado pelos especialistas no assunto, podemos contar também com a
narrativa abaixo:

Fabião nasce na Fazenda ‘Queimadas’, encravada atualmente no município de


Lagoa de Velhos. Nascido escravo, conquistou a sua alforria tocando rabeca e
cantando romances de sua autoria e outras peças do repertório musical popular. É
famoso o seu romance do ‘Boi da Mão-de-Pau’, divulgado e incluído, depois, em
antologia do romanceiro nacional (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, 107).

Artistas populares antes esquecidos, com a ação dos intelectuais, ganham um lugar
social prestigiado. Ou, nos termos de Certeau (2012, p. 58), podemos dizer que “[...] o saber
permanece ligado a um poder que o autoriza”. Antes esquecidos ou não vistos, tais
personagens tornam-se os grandes representantes da cultura norte-rio-grandense depois da
ação dos intelectuais. Não apenas isso, além do reconhecimento social, ganha-se também a
oportunidade de tornar essas expressões perenes, inalteradas com o transcurso do tempo e
espaço, uma vez que se entende a escritura como fixa, diferentemente da cultura oral,
fazendo-se imaginar que

[...] o fato de ter o nome e os versos atribuídos à sua lavra, circulando em um livro,
objeto valorizado pela cultura letrada, meio de distinção e promessa de perenidade e
imortalidade do que veicula, parece encantar os poetas, que passam a estabelecer
com aquele que lhes permitiu alcançar esta inesperada honraria, laços de amizade,
homenagem e subserviência, embora estes laços não deixem de está atravessados
por estratégias e astúcias, muitas delas descobertas e explicitamente condenadas
pelo folclorista (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 61).

Dessa forma,
  88  

curiosamente aquele documento de “incultura’’, vai se tornar, após o trabalho do


folclorista, do letrado, testemunho de cultura, do folclore regional, deixando claro
que sem o concurso do gesto civilizador feito pelo letrado, ao trazê-lo para o mundo
do livro e da escrita impressa, este não se tornaria um fragmento das tradições
populares e regionais. Ele transforma em monumento de cultura aquilo que antes era
considerado inculto e sem maior valor (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 63).

Assim, tornar-se a cultura popular e o folclore dignos de serem valorizados. O


elemento oral, a partir do momento que é escrito, assume outras formas. No entanto, tal
processo não se deixa perceber e o que prevalece é uma ideia de que a cultura e/ou o folclore
foi registrado tal como encontrado pelo estudioso, tornando-se estanque, livre de
transformações, seleções e interesses de grupos. O folclore e a cultura popular não parecem
ter historicidade.
Essas ações dos especialistas da cultura não são dispersas, nem isoladas, muito menos
desinteressadas. Fazem parte de um conjunto de operações articuladas a partir de interesses de
grupos sociais. Em muitos momentos, a obra aqui analisada deixa entrever os compromissos
sociais implícitos na definição da cultura do RN. Para iniciarmos essa discussão, vejamos o
fragmento a seguir:

é inegável que esse período [segunda metade do século XIX] em que se destaca
Segundo Wanderley teve um brilho especial no que diz respeito à cultura artística.
Nos campos da literatura, música, arquitetura e urbanismo e, é claro, no jornalismo, a
cidade florescia, centralizando, por assim dizer, as atividades do espírito e dispondo
também dos meios para edição e circulação de livros. Nesse contexto, outro aspecto
irá ressaltar: uma parceria familiar-intelectual-política proporcionando expressivos
resultados e mesmo projetando o nome do Rio Grande do Norte para fora das suas
fronteiras (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 12).

Dois pontos chamam atenção nessa passagem: primeiro, ao falar de uma parceria
familiar-intelectual-política; e, segundo, o Rio Grande do Norte com seu nome projetado
além de suas fronteiras. Sabendo-se que o trecho faz referência à segunda metade do século
XIX, a narrativa nos remete para articulações entre poder local e elite intelectual. Período no
qual parecia existir um clima de entusiasmo por parte dos intelectuais:

já próximo à Proclamação da República, grupos de intelectuais se distribuíam por


várias associações na chamada Belle Époque natalense [período entendido entre o
final do século XIX até aproximadamente o início da Primeira Guerra Mundial] [...]
O apaixonado clima republicano, do qual a intelectualidade participava
intensamente, parecia favorecer esse poeta retornado da Bahia [Segundo Wanderley],
justamente em 1889 – ano da Proclamação. Sua fama consolidou-se após o período
em que Pedro Velho (que fundara outro importante jornal, ‘A República’) inicia o
período de quase vinte anos da facção política, com a presença maciça de familiares
seus (o irmão Alberto maranhão e o genro Tavares de Lyra, também governadores –
sem falar de Augusto Severo que, embora mais voltado à ciência, chegou a ser
  89  

deputado federal). O grupo passou à história com o nome de ‘Oligarquia


Albuquerque Maranhão’ (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 11).

Percebemos, a partir do trecho acima, que nesse período da História do Rio Grande do
Norte – conhecido também como República Velha (1889-1930) – havia uma forte ligação
entre intelectuais e políticos. Não apenas os intelectuais possuíam boas relações ou
pertenciam a famílias de políticos, como também assumiam cargos políticos públicos. Assim,
muitas vezes, não existindo uma fronteira bem definida entre um papel e outro:

antes, convém lembrar que esse poeta [Henrique Castriciano] teve importância
singular na parceria estabelecida entre as famílias Albuquerque Maranhão e
Castriciano de Souza. Por quê? Porque enquanto Eloy de Souza, com suas
atribuições políticas como Deputado Federal e Senador, tinha, obrigatoriamente, que
se fixar no Rio de Janeiro, ele [Henrique Castriciano] aqui ficava, atuando
discretamente (uma vez que nunca fez questão de assumir abertamente sua posição
de político). Por isso, chegou a ocupar cargos de maior relevância, como no
Governo de Alberto Maranhão, de que foi Secretario Geral, e depois Vice-
Governador no governo de Antônio de Souza. Porém, como dissemos, sem assumir
a postura de um político típico. O que Henrique foi, em todos os sentidos, foi um
intelectual (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 16) [grifo nosso].

Mais uma vez, fica notória a relação entre os intelectuais e a política. Mesmo não “se
considerando” um político, Henrique Castriciano chegou a ocupar cargos durante sua vida
pública na administração política do Estado. O destaque que o próprio livro fez, em relação a
esta questão, pode conduzir ao pensamento de que, embora sejam coisas diferentes,
intelectualidade e política encontravam-se de alguma forma, como se existisse um vínculo de
dependência entre essas instâncias, explicitado pelo próprio Tarcísio Gurgel ao afirmar a
existência de uma forte aliança entre intelectualidade e governo naquele contexto.
O segundo ponto, que chamou atenção nessas narrativas, foi o fato do Rio Grande do
Norte, em finais do século XIX e início do XX, assumir certo destaque num cenário para além
de suas fronteiras. Parece existir algo nesse período que o tornou mais importante que os
demais, tanto que foi retomado nos dias hodiernos, sendo enaltecido enquanto um momento
de florescimento das artes no Estado por Tarcísio Gurgel. As narrativas do livro expressam
uma nostalgia em relação àquela época, um passado que é constantemente enaltecido e
valorizado por suas produções, pelos artistas e suas obras. Uma sociedade em que
predominavam as relações paternalistas, marcadas pelas relações pessoais e trocas de favores,
na qual artistas e intelectuais eram agraciados com cargos políticos, desde que pertencessem a
oligarquias dominantes à época ou com ela tivessem boas relações pessoais.
  90  

Nesse sentido, quando se institui uma ideia de cultura do RN – a partir da criação de


uma disciplina específica e, por sua vez, produziu-se um livro para tal fim, que fez referência
a um passado glorioso –, parece existir um sentimento de nostalgia embutido nesse processo.
Saudades de uma sociedade que não mais existe, de produções culturais que não mais se
igualam com as dos dias atuais e que, por isso, devem ser “resgatadas”, “reconhecidas” e
difundidas. Albuquerque Júnior (2013, p. 57-58) observa que,

[...] quando se lamenta o fim do folclore ou da cultura popular nordestina, quando se


defende seu resgate, sua permanência, quando se fala da morte do cantador popular
e da sociedade onde ele tinha audiência e era respeitado, está se falando dessa
sociedade marcada pelas relações pessoais, pela troca de favores e homenagens,
sociedade em que o coronel local era não somente a grande expressão do ponto de
vista econômico e político, como era aquele em torno do qual giravam as próprias
atividades, das quais eram promotores e mecenas. A saudade da cultura Nordestina
autêntica, tradicional, mal disfarça a saudade dessas relações sociais e de poder, que
o avanço das relações de mercado veio lentamente destruí-las.

Ressalva-se que, ao passo que Albuquerque Júnior teve seus estudos voltados para a
constituição de uma ideia de cultura popular, os autores do livro para o desenvolvimento da
disciplina “Cultura do RN”, por vezes, parecem trazer uma noção de cultura erudita. No
entanto, a semelhança encontra-se no vínculo existente entre política e literatura enquanto
objetos de saudade que sofreram um processo de monumentalização bastante semelhante ao
que aconteceu com aquilo que Albuquerque Júnior chamou de fabricação do folclore e a
cultura popular, nas primeiras décadas do século XX.
Canclini (2008, p. 160-161) evidenciou a relação de determinados grupos com a ideia
de cultura, patrimônio e tradição, analisando que

[...] o patrimônio é o lugar onde melhor sobrevive hoje a ideologia dos setores
oligárquicos, quer dizer, o tradicionalismo substancialista. Foram esses grupos –
hegemônicos na América Latina desde as independências nacionais até os anos 30
deste século [XX], donos ‘naturais’ da terra e da força de trabalho das outras classes
– os que fixaram o alto valor de certos bens culturais: os centros históricos das
grandes cidades, a música clássica, o saber humanístico. Incorporaram também
alguns bens populares sob o nome de ‘folclore’, marca que indicava tanto suas
diferenças com respeito à arte quanto à sutileza do olhar culto, capaz de reconhecer
até nos objetos dos ‘outros’ o valor do genericamente humano.

Assim sendo, esses grupos vem definindo valores para os bens culturais, inclusive
aqueles ditos “folclóricos”. No caso dos produtores do livro Introdução à Cultura do Rio
Grande do Norte, embora tenhamos que levar em consideração que estão situados
historicamente no século XXI, como já analisamos, parece haver por parte deles uma
  91  

nostalgia e exaltação das relações culturais que se produziram no século anterior e fins do
século XIX. Produz-se um processo de reatualização de alguns elementos daqueles períodos.
Essa operação de definição, valorização e difusão de bens culturais considerados
constituintes da cultura norte-rio-grandense passou por uma longa ligação entre estudiosos da
cultura e poder estabelecido, quando no próprio livro destacou-se a existência de uma
importante aliança familiar-intelectual-política vivenciada no Rio Grande do Norte,
notadamente, nos dois séculos anteriores. Remetendo ao próprio processo de
institucionalização da disciplina “Cultura do RN”, podemos inferir que essa aliança ainda
continua. Os produtores do livro, criado para o componente curricular, não apenas o
produziram como, em momentos diversos de suas vidas, prestaram serviços e participaram de
instituições governamentais, como verificamos na citação abaixo:

a introdução da disciplina Folclore Potiguar como parte da educação artística do


alunado é natural decorrência, como vimos, da sugestão do professor Veríssimo de
Melo, que se concretizou na inclusão do artigo que se encontra transcrito logo após a
Apresentação deste livro. Em homenagem à sua luta, outros folcloristas, à frente o
prof. Deífilo Gurgel, batalharam durante anos pela regulamentação do mesmo
dispositivo legal junto à Secretaria da Educação, visando à sua aplicação nas escolas
de Ensino Fundamental e Médio do Estado. Em atendimento à correspondência
enviada desse último folclorista ao Conselho estadual de Educação, recomendou o
mesmo às escolas darem cumprimento ao que disponha o referido artigo
constitucional. Passaram-se anos. Finalmente, como ação concreta do que
preconizava tal recomendação, a Secretaria de Educação decidiu pôr em prática no
ano de 2003 uma série de ações que culminaram com um evento reunido
manifestações parafolclóricas e do folclore autêntico (GURGEL; VITORIANO;
GURGEL, 2003, p. 122).

O artigo referido é o de nº 137, da Constituição do Estado do Rio Grande do Norte, já


expresso nesta pesquisa e que prevê o ensino de literatura, artes plásticas e folclore no
currículo escolar. Verificamos que o trabalho dos estudiosos junto aos poderes estaduais não
apenas se frutificou no ano de 2003, como expresso acima. Ainda no século XX, viam-se
várias iniciativas para institucionalização do folclore e da cultura popular:

o Rio Grande do Norte, somente a partir de 1986, com a assinatura do decreto n.


9.633 de 22 de agosto do referido ano, pelo Governador Radir Pereira, oficializou
esse mês como o Mês do Folclore36. Esse decreto prevê a comemoração do Mês do
Folclore, com a realização de solenidades nas escolas, apresentação de grupos,
cursos de artesanato e arte popular, conferências e palestras de especialistas em
folclore, entre outras atividades (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 92).
                                                                                                               
36
O Mês do Folclore foi um desdobramento da promulgação do Decreto n. 56.747, de 17 de agosto de 1965, que
instituiu no Brasil o dia 22 de agosto como Dia Nacional do Folclore. Vários Estados da Confederação
instituíram decretos semelhantes, muitas vezes, ampliando a dimensão do Decreto Federal, como fez o Rio
Grande do Norte e o Estado de São Paulo que, ao invés de instituírem apenas um dia para a comemoração,
criaram o Mês do Folclore.  
  92  

A teorização proposta por Bourdieu (1998), sobretudo, nos conceitos de “poder


simbólico”, “campo de produção” e “violência simbólica”, é extremamente relevante para se
trabalhar a relação entre cultura, poder e a atuação dos intelectuais junto às instituições
governamentais. O conceito de “poder simbólico” permite ultrapassar a visão
limitada/essencialista de que existem grandes forças capazes de determinar e manipular a
realidade. Tal conceito nos leva a observar que determinado poder só se exerce a partir de
uma relação de reconhecimento entre membros e grupos, seja ela consciente ou
inconsciente.37
No Estado do Rio Grande do Norte, a implantação da disciplina “Cultura do RN” é
uma ação que tem como “pedra de toque” essa relação entre cultura e poder, intelectualidade
e política. O Estado, enquanto representante da sociedade, tem o poder legítimo de
empreender ações que considere importante. Todavia, é preciso pensar as disputas que estão
envolvidas nessas concepções de cultura desenvolvidas a partir destas iniciativas, uma vez
que a luta simbólica, de acordo com Bourdieu (1998), pode ser travada de duas maneiras
distintas: ou pelos conflitos do cotidiano ou por “procuração”. Neste último caso, é que se
insere o conceito de campo de produção, no qual a luta será travada pelos especialistas
(intelectuais, artistas, letrados e eruditos em geral) a partir da produção de elementos capazes
de operacionalizar o poder simbólico. O referido autor chama esses elementos de estruturas
estruturadas, ou seja, sistemas simbólicos que produzem determinada ideia da realidade
social. E é exatamente isso o que o campo de produção vai fazer: produzir um sistema
simbólico a fim de estabelecer uma integração social, um consenso acerca da realidade.
Assim, percebemos que existe, entre os grupos sociais com acesso ao poder público,
uma espécie de “elite” intelectual que vem selecionando, organizando e tentando definir o que
faz parte – ou não – de uma cultura norte-rio-grandense. Para isso, são criadas estratégias de
instalação e difusão de determinadas memórias históricas e que, de alguma forma,
“comunicam” uma concepção de cultura norte-rio-grandense. No caso específico aqui em
discussão, a definição deste grupo que estaria representado por Vicente Vitoriano, Tarcísio
Gurgel e Deífilo Gurgel está relacionada com a herança de capital cultural (BOURDIEU,
1998) local do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, historicamente
conectado com o poder público em terras potiguares. Fora neste instituto que se consolidou,

                                                                                                               
37
O conceito de poder simbólico, desenvolvido por Pierre Bourdieu, nos serve como instrumento de
entendimento das manobras e investimentos empreendidos para se construir uma ideia de consenso, a fim de que
determinadas práticas sociais sejam reproduzidas e mantidas. Porém, não desconsideramos a forma como os
sujeitos apropriam-se das ideias que são mobilizadas, mas, sim, levamos em consideração o esforço realizado
para “comunicar” determinadas concepções da realidade.
  93  

no Estado, um grupo responsável pela monumentalização e folclorização da cultura popular,


do folclore e da literatura potiguares.
De acordo com Bourdieu, o capital cultural é um princípio de diferenciação social
utilizado pelos grupos para impor determinadas relações de poder. A ideia de capital cultural
faz uma analogia à ideia de acúmulo de recursos, neste caso, a cultura assumiria um aspecto
utilitário que levaria determinadas concepções de grupo a se sobressaírem e diferenciarem em
relação a outros grupos. Dessa forma, pensar os intelectuais, enquanto detentores de capital
cultural, é também compreender as relações de poder que estão envolvidas na definição de
uma determinada ideia de cultura do Rio Grande do Norte.

Dos IHGB’s à universidade: o deslocamento das questões identitárias.

Em âmbito Nacional, até o início do século XX, a construção da identidade brasileira


estava estreitamente ligada ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). De acordo
com Manoel Luís Salgado Guimarães (1988), coube ao IHGB a função de espaço produtor de
uma historiografia e, consequentemente, de uma identidade brasileira, tendo às questões
nacionais ocupado um lugar de destaque nesse processo.
Seguindo o exemplo da Europa, que no século XIX buscou a construção do discurso
historiográfico que definitivamente consolidou a disciplina de História, o IHGB também
constitui-se em instituição cultural responsável por produzir um discurso historiográfico da
nação brasileira. Contudo, diferentemente do que acontecia no continente europeu, não foi o
espaço acadêmico o responsável pela produção historiografia. No Brasil, para a construção de
uma historiografia da nação, foi criado o Instituto no qual seus membros eram escolhidos
dentro de uma elite intelectual imperial. Em outras palavras, enquanto o discurso
historiográfico tomava tons de cientificidade a partir das universidades europeias, no Brasil,
coube ao IHGB conferir status de ciência à História, marcadamente, através de relações
sociais elitistas que tiveram ressonância na produção historiográfica.
Enquanto a disciplina da História ganhava status de cientificidade na academia
europeia, no Brasil, essa cientificidade foi traçada a partir de antigas concepções iluministas,
que concebia a História a partir de uma perspectiva linear e de progresso, na qual passado,
presente e futuro seriam processos sequenciais. A ideia da História “mestra da vida”, nesse
momento, conduzia a historiografia a narrativas do tipo exemplares, de tomar o passado como
lição para não repetir erros e conduzir para etapas seguintes do progresso, uma vez que a
Ciência Histórica era entendida a partir de uma concepção linear de tempo.
  94  

No século XX, especialmente a década de 1930, no Brasil, foi um dos períodos mais
fecundos de construção de narrativas no intuito de dizer quais os elementos constitutivos da
identidade nacional, assim surgindo diversas correntes explicativas que buscaram
compreender a sociedade brasileira a partir de determinadas teorias. As narrativas da nação,
que buscavam a construção de um sentimento identitário, tinham como características certa
homogeneidade. Nesse contexto, Caio Prado júnior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de
Holanda, entre outros, foram os intelectuais brasileiros que se destacaram na busca de teorias
que explicassem o processo de formação do Brasil. Suas narrativas concorriam com aquelas
construídas no IHGB, historicamente responsável pela elaboração das narrativas de origem do
Brasil.
As concepções de identidades, surgidas em 1930, faziam parte, em grande medida, do
projeto modernista empreendido pelos intelectuais para pesquisar profundamente as raízes
brasileiras. Para isso, produziram uma historiografia baseada em relatos de viajantes e
documentos raros que pudessem traduzir a brasilidade (SILVA, 2012, p. 310). Assim, os
modernistas buscaram construir narrativas a partir de hábitos e elementos considerados como
originais representantes da cultura do país. Sob o rótulo do modernismo, tentou-se produzir
uma nova narrativa identitária diferente do que até então tinha sido produzida pelo IHGB.
Contudo, apesar de se propor revisionista, a busca por uma narrativa homogênea que
revelasse a “verdadeira” identidade nacional assemelhava-se ao projeto do IHGB do século
anterior.
Sobre esse momento, em meados da década de 1970, Carlos Guilherme Mota (1985)
apresentou, em linhas gerais, como a partir da década de 1930 a ideia de cultura brasileira
passou a fazer parte de um processo de naturalização: os intelectuais preocupados em definir
uma cultura brasileira passaram a tratá-la como algo pronta e acabada, cabendo a eles levarem
o conhecimento desta para todos os brasileiros. Em consequência disso, o discurso identitário
propôs-se homogêneo, constituindo-se a partir de um processo de naturalização dos elementos
que formavam o povo brasileiro e, em consequência disso, produzindo um silenciamento e
diminuição do papel dos conflitos sociais fundantes da sociedade. As teorias da democracia
racial e da cordialidade brasileira formuladas, a partir desse período, contudo, foram frutos de
operações bem articuladas e difíceis de serem consolidadas, uma vez que construir uma
narrativa que se propõe homogênea, que diz respeito a todos que vivem no Brasil, um país de
dimensões continentais, não se deu de forma fácil.
No caso do Rio Grande do Norte, o IHGRN – criado no ano de 1902 – tem sua origem
vinculada ao IHGB, possuindo como objetivo primeiro produzir uma narrativa do Estado que
  95  

pudesse representar todos os que ali moravam, ou como expressa a própria Ata de Instalação
do referido Instituto:

[...] o fim da presente reunião era a fundação, nesta capital, de um Instituto Histórico
e Geográfico, que tomando o encargo altamente patriótico de firmar com dados
autênticos, colhidos em pacientes e constantes investigações a verdade histórica da
vida potiguar em qualquer sentido, promovesse todos os meios conducentes à
realização desse desideratum (IHGRN,1902).

De acordo com os estudos realizados por Gomes Neto (2011), tal feito encontrou
diversas dificuldades de se concretizar. O IHGRN apresentou limitações em produzir um
discurso homogêneo sobre a identidade norte-rio-grandense, fato este que fez com que o
referido autor apresentasse algumas hipóteses: a emergência de núcleos praticamente
autônomos no interior e a dificuldade de comunicação não possibilitaram a construção de um
discurso identitário potiguar-nacional homogêneo, além da falta de documentos históricos que
permitissem a construção de uma narrativa da Província à época.
Gomes Neto (2011), na sua pesquisa, aponta algumas dificuldades de se produzir um
discurso homogêneo para história local, exemplificando com a heterogeneidade das narrativas
relacionadas à Revolução de 1817. Enquanto André de Albuquerque Maranhão foi
referenciado na narrativa histórica da cidade do Natal, a Vila de Goianinha, por sua vez,
trouxe como personagem de destaque o sacerdote Antônio Albuquerque Maranhão – que logo
aderiu à causa da Revolução de 1817, como também conseguiu conquistar vários defensores
da causa. Tal situação explica-se devido a dificuldades de comunicação entre os diversos
municípios do Rio Grande do Norte. Dessa forma, não havia uma narrativa concisa do que foi
a Revolução de 1817 no Rio Grande do Norte, mas, sim, uma série de personagens “soltos”
que variavam conforme a localização.
Ainda sobre a dificuldade de se construir uma narrativa histórica do Rio Grande do
Norte, reclamava-se da falta de reconhecimento e/ou desvalorização que os potiguares tinham
pela cultura local. Gomes Neto (2011) citou o exemplo de Polycarpo Feitosa, codinome
utilizado por Antônio de Souza, em 1898, que, ao falar sobre o potiguar, expressava que:

cuido, às vezes, ao procurar as causas, tão obscuras quanto formidáveis, desta


distinta consideração que cerca o marinheiro, nas injustíssimas acusações de
bairristas que fazem ao potiguar.
Bairrista! Mil vezes não! Por índole, por educação ou pelo que for, não há alguém
mais apreciador do que é de fora, pessoa ou coisa estrangeira, e, como consequência
(?) mais depreciador do que é da terra, que ele (FEITOSA apud GOMES NETO,
2011, p. 143) [grifos do autor].
  96  

Nesse cenário, muitos esforços foram empreendidos por parte da elite e estudiosos
locais. Gomes Neto (2011) identificou que se operou um esforço por parte dos governantes e
intelectuais desde fins do século XIX em projetar Natal e, consequentemente, o Rio Grande
do Norte, em âmbito nacional. A primeira narrativa histórica oficial da província foi
publicada no ano de 1877, por Manoel Ferreira Nobre, esse trabalho tendo como título Breve
Notícia da Província do Rio Grande do Norte. Assim, considerando que os primeiros projetos
identitários do RN datam das últimas três décadas do século XIX, antes mesmo da fundação
do IHGRN (1902).
Embora não se tenha chegado a um consenso narrativo do que de fato pudesse
representar “verdadeiramente” o potiguar, parece existir uma conformidade por parte dos
intelectuais que formaram e aqueles que hoje ainda integram o IHGRN – assim como também
de pessoas ligadas a esses intelectuais e às questões culturais – de que, realmente, existe uma
história genuinamente norte-rio-grandense. Ela, todavia, não era conhecida nem valorizada.
Tal reclamação, gestada no século passado, se mantém viva nos dias atuais.
Câmara Cascudo assumiu papel de destaque em relação a essa intelectualidade ligada
às questões históricas e culturais do Estado. Considerado como historiador, folclorista,
antropólogo, advogado e jornalista, desde cedo, aos 23 (vinte e três) anos de idade, Cascudo
já se dedicava às atividades de escrita no jornal “A Imprensa”, criado pelo próprio pai,
Francisco Cascudo, em 1918. Ainda em 1925, começou a se corresponder com Mário de
Andrade, considerado importante intelectual do Modernismo brasileiro. Tendo seus estudos
dedicados à cultura popular e ao folclore, foi membro do IHGRN e professor da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Sobre sua atuação profissional, inclusive enquanto
sócio do IHGRN, Enélio Petrovich, ex-presidente já falecido do referido Instituto, proclamou:
“não foi a guerra que projetou Natal no mundo. Foi Cascudo” (apud GOMES NETO, 2011, p.
89). E ainda sobre a atuação do intelectual,

em 1909, Manoel Dantas havia criado e contado o mito da fundação de Natal. Em


1946, Câmara Cascudo conferiu à cidade, segundo Washington de Araújo – na
apresentação da 3ª edição da História da Cidade do Natal, publicada em 1999, no
âmbito das comemorações do quarto centenário da cidade – uma certidão de
nascimento. É como se a capital projetada por Dantas no final da primeira década do
século XX tivesse sua existência atestada e registrada em documento, no “cartório”
da história, não mais no mito (GOMES NETO, 2011, p. 98).

História da Cidade do Natal, uma das obras mais importante de Câmara Cascudo, foi
– e ainda é – considerada pela intelectualidade como um documento que construiu uma
narrativa histórica da cidade, servindo como um registro, inclusive de sua potencialidade
  97  

enquanto cidade. Obra, inclusive, referenciada como bibliografia do livro Introdução à


Cultura do Rio grande do Norte. Compreende-se, então, que Câmara Cascudo constitui-se
enquanto personagem central no IHGRN entre as décadas de 1930 e 1960 e permanecendo,
até os dias atuais, como referência atual no Estado, ao passo que dificilmente, quando se fala
em cultura popular e folclore, o nome do referido estudioso não seja citado como o grande
“apresentador” da cultura potiguar.
Ao analisarmos a própria institucionalização da disciplina “Cultura do RN”,
verificamos que essa questão, de haver um consenso sobre a cultura do Estado, encontra-se no
cerne das discussões do livro indicado e distribuído para o desenvolvimento do componente
curricular, uma vez que se propõe que a obra apresente ao Rio Grande do Norte parte dos
bens culturais. Como examinamos no decorrer deste capítulo, parece existir um legado
cultural no Estado que é rico em suas manifestações, mas, ao mesmo tempo, é muitas vezes
desconhecido e desvalorizado pelos que aqui moram.
Nesse sentido, mais um projeto identitário em questão foi anunciado, contudo, as
discussões sobre os bens e elementos culturais, que formam essa cultura norte-rio-grandense,
partiram, dessa vez, não mais do IHGRN. O material da disciplina foi produzido, selecionado
e indicado por intelectuais ligados à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Percebemos, então, um deslocamento de instituições. O que antes seria “naturalmente”38
produzido pelo IHGRN passou para responsabilidade da Universidade. Pensando que
anteriormente as questões da identidade nacional eram vinculadas aos IHGB’s, não é de se
estranhar hoje, com as novas demandas e perspectivas de identidade, seja outro o espaço de
diálogo com essas questões.
A Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) é uma instituição pública de
Ensino Superior, criada através de uma lei estadual no ano de 1958 – a partir das faculdades
de Direito, Medina, Farmácia e Odontologia, Escola de Engenharia, entre outras que já
existiam – e federalizada em 1960. Até sua constituição, o IHGRN era o espaço privilegiado
onde a intelectualidade desenvolvia seus estudos e debates. Com a Universidade, muitos dos
sócios do IHGRN entraram para a Universidade, desempenhando funções de professores e
pesquisadores, o próprio Câmara Cascudo fora um deles.
Com a criação da UFRN, houve um processo de deslocamento das questões
identitárias, haja vista que o IHGRN deixou de ser o espaço concentrador destas questões.

                                                                                                               
38
Naturalmente no sentido de entender que o IHGRN (1902), desde sua criação, constitui-se enquanto espaço,
por excelência, de produção, seleção e organização do que representaria a cultura e identidade norte-rio-
grandense.
  98  

Nesse processo, produziu-se o diálogo entre Instituto e Universidade que possibilitou aos
membros de tais instituições construírem relações concernentes à produção historiográfica.
No que tange a essa união, Deífilo Gurgel representou o vínculo existente entre as duas
instituições, ao passo que foi professor do Departamento de Artes da UFRN, ministrante da
disciplina “Folclore brasileiro”, entre 1979 e 1992, também foi membro efetivo do IHGRN,
eleito em 1988 e tomado posse em 1991 – permaneceu até 2012, ano de sua morte. Um dos
trabalhos representativos dessa relação foi o livro Romanceiro de Alcaçus de Deífilo Gurgel,
produto de uma pesquisa que o autor realizou enquanto pesquisador da UFRN. Nas palavras
do próprio Deífilo Gurgel (1992, p. 9), explica-se a importância da obra:

“Romanceiros de Alcaçus” é fruto de uma pesquisa de sete anos que, a partir de


1985, realizamos para a Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Esta
pesquisa desdobra-se por todo o território do Estado e, além deste, outros livros
serão publicados: “Romanceiro Potiguar” para as escolas e um grosso volume, com
todo o acervo pesquisado, destinado aos estudiosos e pesquisadores que, pelo Brasil
a fora, dedicavam-se ao trabalho de recolher e analisar o que nos resta dos
romanceiros ibérico e nacional.

A UFRN, nesse caso, passou a ser considerada, a partir da segunda metade do século
XX, um espaço profícuo para atender às demandas da sociedade norte-rio-grandense,
inclusive no que tange às questões culturais e identitárias. Em finais do século XX, surgiram
“novas” perspectivas de identidades, que, teoricamente, se opõem aos discursos das
identidades nacionais. Novas demandas e necessidades buscam nos discursos identitários a
diversidade e pluralidade, não cabendo mais a homogeneização que tanto era almejada na
construção da identidade nacional. Ou seja, ser “brasileiro” admite ser plural e não definido
pela ideia de certa homogeneidade mestiça tutelada pela herança portuguesa, como queriam
os modernistas tais como Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda. Pensando nisso,
questionamos: quando do deslocamento das questões identitárias dos IHGB’s para as
universidades, ou mais especificamente do IHGRN para a UFRN, as narrativas não sofreriam
também alterações? Podemos encontrar novas perspectivas em relação à ideia de cultura e
identidade norte-rio-grandense? Para responder parte das questões, uma passagem do livro
Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte chama atenção:

antes de Cascudo encerrar suas atividades de pesquisador e escritor, na área do


Folclore, nós iniciávamos, em 1980, nossas pesquisas de campo, que redundariam
nos livros Danças Folclóricas do Rio Grande do Norte; João Redondo – Teatro de
Bonecos do Nordeste; Romanceiro de Alcaçus; Manuel do Boi Calemba; e,
finalmente, Espaço e Tempo do Folclore Potiguar, uma síntese do populário norte-
rio-grandense, representado nos livros que escrevemos posteriormente. Há uma
diferença entre o trabalho de Luís da Câmara Cascudo e o nosso, com relação ao
  99  

folclore do Rio Grande do Norte. Enquanto Cascudo é um nome universal e realiza


seus estudos num plano mais geral, nós tentamos sistematizar, da maneira mais
objetiva, as manifestações do folclore, visando a oferecer um panorama da cultura
popular no Rio Grande do Norte, não apenas aos professores e estudantes de nossas
escolas, mas aos leigos que carecem de mais informação desse universo cultural39
(GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 118) [grifo nosso].

De acordo com Deífilo Gurgel, a diferença entre os estudos dele e os de Câmara


Cascudo diz respeito apenas à dimensão, haja vista que pesquisou a cultura e história em
dimensões mais regionais, referindo-se aos estudos dos elementos culturais do Nordeste. O
que chamou atenção, na apresentação do autor, foi o fato de que a diferença reside apenas
nisso. Levando em consideração que Câmara Cascudo consolidou-se como o grande
representante da narrativa histórica não apenas do Nordeste, mas especificamente do Rio
Grande do Norte, assim como também é considerado um ícone dos estudos no IHGRN,
podemos inferir que houve uma reatualização das concepções de cultura e folclore
desenvolvidas por Câmara Cascudo e, consequentemente, por outros intelectuais ligados ao
IHGRN.
Pensando nesse cenário apresentando, percebemos que as análises, feitas ao longo
deste capítulo, também corroboram para entender esse processo, envolto pela naturalização e
folclorização de uma ideia de cultura do Rio Grande do Norte ligadas mais às concepções de
culturas na “fabricação do folclore” entre os anos 1920 e 1950 do que às novas perspectivas e
definições que o termo carrega.
O processo de escrituração da cultura oral, já discutido anteriormente, também marca
essa aproximação entre intelectuais ligados ao IHGB, principalmente em fins do século XIX e
no decorrer do XX, com os estudiosos/intelectuais vinculados à Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Deífilo Gurgel, na produção do eixo temático de sua responsabilidade no
livro aqui analisado, apresentou 12 (doze) manifestações orais que foram escrituradas pelo
próprio autor, algumas gravados por ele em sua própria residência, outros em locais onde
ocorriam as manifestações ditas populares.
Saber reconhecer o valor de um artista popular também fez parte da operação dos
intelectuais em seus estudos sobre o folclore, como também já discutimos. A mesma operação
discursiva pode ser observada sobre a “cultura erudita”, realizado por Tarcísio Gurgel. E
assim afirmou no eixo “Literatura”, quando se referiu ao poeta Ferreira Itajubá:

                                                                                                               
39
A utilização do pronome pessoal “nós”, a nosso ver, diz respeito a uma estratégia de discurso para entender
que não apenas o autor dessa narrativa pensa ou age assim, como também identifica-se com seus pares, com seu
lugar social. Isto é, com estudiosos da cultura que comungam das mesmas concepções e formas de trabalhar com
os chamados temas folclóricos.
  100  

o segundo romântico por nós considerado é o poeta Ferreira Itajubá. Se a


macaibense [Auta de Souza] foi sempre a poetisa mais amada do Estado, não há
dúvida de que ele, natalense nascido à beira do Potengi, e de família extremamente
pobre (o pai era pescador) sucedeu a Segundo Wanderley e a Lourival Açucena na
admiração popular. Sucedeu e superou-os. Porque com o seu talento rude, espírito
boêmio, sua natural rebeldia e sua coragem de apresentar-se como poeta em
qualquer situação (inicialmente a elite intelectual se sentia incomodada com a sua
presença), Itajubá consagrou-se como ídolo popular (GURGEL; VITORIANO;
GURGEL, 2003, p. 14).

A identificação e valorização da riqueza de produção daqueles artistas que são


considerados rudes, uma vez que são descendentes de grupos inferiorizados na sociedade, faz
parte do trabalho do estudioso Tarcísio Gurgel da cultura. Aqui se encontra mais um ponto de
convergência entre os produtores do livro em questão e os intelectuais ligados ao IHGRN.
Consoante a isso, se levarmos em consideração que uma das principais ações dos folcloristas
e/ou estudiosos da cultura popular se constituiu em identificar e catalogar elementos que
fazem parte dessas expressões culturais, verificamos que houve um esforço nas narrativas do
referido livro de fazer uma espécie de mapeamento:

Figura 18 Mapa das danças folclóricas do Estado.

Fonte: GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 91.

Tabela 1 Grupos Folclóricos em Atividades.


GRUPOS FOLCLÓRICOS EM ATIVIDADES
BOI CALEMBA Bocas (Pedro Velho)
Natal (Manoel Marinheiro)
São Gonçalo (Dedé Veríssimo)
Outros
CONGOS Ponta Negra (Natal)
Santo Antônio dos Barreiros (São Gonçalo)
Ceará-Mirim
  101  

PASTORIL Vários, pelo Estado


LAMPADINHA Barra de Maxaranguape
CABOCLINHOS Ceará-Mirim
COCO-DE-RODA Canguaretama
BAMBELÔ Santo Antônio dos Barreiros
MANEIRO-PAU Dr. Severiano e Luiz Gomes
SÃO GONÇALO Portalegre e São Miguel
ESPONTÃO Caicó, Parelhas e Jardim do Seridó
BANDEIRINHAS Touros
ARARUNA Natal
Teatro de JOÃO REDONDO (vários brincantes)
Agreste e Litoral Leste
Fonte: GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 118.

Tabela 2 Grupos Folclóricos Desativados.


GRUPOS FOLCLÓRICOS DESATIVADOS
FANDANGO Canguaretama
Georgino Avelino
CHEGANÇA Barra do Cunhaú (Canguaretama)
BAMBELÔ Natal
CAPELINHA-DE-MELÃO Praia de Caraúbas (Maxaranguape)
Fonte: GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 119.

Tabela 3 Eventos Religiosos.


DATA LOCAL DEVOÇÃO
1/jan Touros Festa de Bom Jesus dos
Navegantes
6/jan Natal Festa dos Reis Magos
13/jan Tenente Ananias Festa da Sagrada Família
17/jan São Bento do Norte Festa de Santo Antão Abade
20/jan Caraúbas Festa de São Sebastião dos
“Cachoeira”
23/jan Ielmo Marinho Festa de São Raimundo
30/jan Natal (Praia da Redinha) Festa de Nossa Senhora dos
Navegantes
2/fev Boa Saúde Festa de Nossa Senhora da
Saúde
5/fev Vila Flor Festa de Nossa Senhora dos
Desterros
11/fev Sen. Elói de Souza e Ipanguaçu Festa de Nossa Senhora de
Lourdes
19/mar Angicos, São José do Festa em homenagem a São
Campestre, Cel. João Pessoa e José
Rodolfo Fernandes
20/abr Goianinha Festa de Nossa Senhora dos
Prazeres
13/mai Água Nova Festa de Nossa Senhora de
Fátima
22/mai Santa Cruz Festa em homenagem a Santa
Rita de Cássia
12-24/jun Açu, Pendências, Arês, São Festa de São João Batista
João do Sabugi, Cerro Cora,
Jardim de Angicos e Antônio
Martins
13/jun Marcelino Vieira Festa de Santo Antônio
24/jun Grossos Festa do Sagrado Coração de
Jesus
  102  

26/jun S. J. Do Mipibu e Campo Festa de Santana e São Joaquim


Grande
29/jun Pedro Avelino e São Pedro do Festa de São Pedro e São Paulo
Potengi
julho Caicó, Currais Novos e Santana Festa de Nossa Senhora de
do Matos Santa’Ana
2/ago Barcelona Festa de Nossa Senhora de
Perpétuo Socorro
15/ago Acari Festa de Nossa Senhora da Guia
- Areia Branca Festa de Nossa Senhora dos
Navegantes
- Afonso Bezerra Festa de Nossa senhora das
Graças
8/set Serra Negra do Norte Festa de Nossa senhora do Ó
15/set Itaú Festa de Nossa senhora das
Dores
29/set São Miguel Festa de São Miguel
- Extremoz Festa de São Miguel Arcanjo
1/0ut Tangará Festa de Santa Terezinha do
Menino Jesus
4/out Pedro Velho Festa de São Francisco de Assis
13/out Parnamirim Festa de Nossa Senhora de
Fátima
16/out - Festa em homenagem ao Padre
João Maria
25/out Carnaúba dos Dantas Festa de Nossa Senhora das
Vitórias
25/out Coronel Ezequiel Festa de Nossa Senhora do
Amparo
- Caicó Festa de Nossa Senhora do
Rosário
12 a 21/nov Natal Festa de Nossa Senhora da
Apresentação
21/nov Patu Festa de Nossa Senhora dos
Impossíveis
29/nov Taipu Festa de Nossa senhora do
Livramento
08/dez Canguaretama, Ceará-Mirim, Festa de Nossa Senhora da
Jardim do Seridó, Lages, Conceição
Macaíba, Nova Cruz, Santo
Antônio, São Rafael e São
Tomé
13/dez Mossoró Festa em homenagem a Santa
Luzia
18/dez Nísia Floresta Festa em homenagem a Nossa
Senhora do Ó
27 a 06/jan Martins Festa de Nossa Senhora da
Conceição
31/dez Jardim do Seridó Festa dos Negros do Terço do
Rosário
Fonte: GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 87.

Observamos que esses mecanismos de mapeamento das expressões culturais no


referido livro tornam-se fundamentais para delimitar e construir uma narrativa-mapa do que
faz parte da formação do Estado do Rio Grande do Norte. Os signos que o constituem
compõem uma narrativa que significa o tempo presente e, além de representarem um território,
  103  

constroem realidades. Benedict Anderson (2008, p. 239) afirma que o mapa é essencial nesse
processo uma vez que demarca fronteiras e, antes de representar o espaço, ele “[...] antecipava
a realidade espacial [...] era antes um modelo para o que (e não um modelo do que) se
pretenderia representar”. O próprio livro produzido para disciplina já é em si uma cartografia,
se levarmos em consideração que houve uma tarefa de mapeamento dos elementos
pertencentes a uma ideia de cultura norte-rio-grandense. Assim como também foram
indicadas outras narrativas que selecionam e organizam elementos pertencentes ao patrimônio
cultural do Rio Grande do Norte, como, por exemplo, a “Cartilha do Patrimônio Imaterial
Potiguar”40, que em seu texto inicial expôs seu objetivo:

a Fundação José Augusto está realizando um projeto que pretende abranger todo o
estado do Rio Grande do Norte. Denominado Patrimônio Potiguar em Seis Tempos,
esse projeto, vinculado à UNESCO e com financiamento do BID e do Governo do
Estado do RN, tem como pretensão fazer um levantamento do patrimônio cultural do
Rio Grande do Norte, dividido em seis tipos: arquitetura, bens móveis integrados,
artes visuais, arte sacra, museologia e imaterial (FUNDAÇÃO JOSÉ AUGUSTO,
2013, p. 3).

Percebe-se, portanto, que mapear o que seria o chamado Estado do Rio Grande do
Norte e suas manifestações culturais é, antes de tudo, uma projeção espacial, uma estratégia
para dizer e legitimar os elementos que formam e conformam as identidades espaciais.
Estratégia, aqui, está sendo tomada no sentido pensado por Certeau (1994) e que diz respeito
a um conjunto de mecanismos relacionados ao poder estabelecido utilizados por determinados
grupos para “comunicar” uma representação específica do que seja o Estado. Em outros
termos, podemos dizer que esse mapeamento faz parte de um processo de patrimonialização e
folclorização, por partes dos intelectuais, de uma ideia de cultura norte-rio-grandense visando
à construção de uma identidade local. Que pese ser outro o contexto para o qual Benedict
Anderson lançou seus olhares, no intuito de entender o processo de constituição da ideia de
nação, notadamente no século XIX, parece que as ações que estão sendo empreendidas para
“dizer” uma cultura norte-rio-grandense – a partir de um componente curricular –, em grande
medida, reatualizam as formas de como as identidades nacionais foram concebidas.
Todas essas estratégias e produção de uma cultura do Rio Grande do Norte, vale
ressaltar, ainda passam por um processo de monumentalização em instituições e locais
representativos da cultura. Foi reservado no livro uma seção para discutir especificamente
                                                                                                               
40
A “Cartilha do Patrimônio Imaterial Potiguar” foi produzida “[...] dentro de um contexto maior, que era o
projeto Patrimônio Cultural Potiguar em Seis Tempos, cujos resultados foram apresentados à sociedade norte-
rio-grandense no primeiro bimestre de 2007 [mesmo ano de institucionalização da disciplina], pela Fundação
José Augusto/FJA” (GOMES NETO, 2011, p.14).
  104  

essa questão, intitulada Instituições Culturais e Movimentos Editoriais, enaltecendo a função


do IHGRN:

antes de encerrarmos esta nossa breve introdução sobre a Literatura Potiguar,


convém falarmos um pouco sobre as nossas instituições culturais, especialmente
aquelas que dispõem de dados sobre a Literatura Potiguar, capazes de nos interessar
e também sobre o atual movimento Editorial do Estado. A mais antiga fica em
Natal: é o Instituto Histórico e Geográfico, fundado em 1902, que tem como
presidente Enélio Petrovich. Além de sua própria revista, lançada no ano em que foi
fundado, tem em seu acervo a coleção do jornal “A República”, uma das fontes
primordiais para o estudo da nossa literatura. Em suas estantes conservam-se
também várias coleções de ‘A Imprensa’ (GURGEL; VITORIANO; GURGEL,
2003, p. 38).

Além do IHGRN, citam-se outras instituições importantes para acessar dados e


narrativas sobre a cultura potiguar, tais como: a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras; o
Arquivo Público Estadual; a Fundação José Augusto; e a Fundação Vingt-Huit Rosado em
Mossoró, notadamente destacada, pelo autor, por sua “legendária” Coleção Mossoroense.
Instituições que constituem seus acervos com os considerados pelos intelectuais como
clássicos dos estudos do Rio Grande do Norte. Obras de Câmara Cascudo, Rocha Pombo e
Tavares de Lira como os grandes nomes de destaque, os próprios produtores do livro em
questão e entre outros intelectuais norte-rio-grandense encontram-se nessas instituições.
Notadamente um fato se faz curioso: a Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
instituição a qual dois dos autores do livro, Tarcísio Gurgel e Vicente Vitoriano, estão
vinculados, atuando como professores e pesquisados, em nenhum momento foi chamada,
indicada ou valorizada como um espaço de trabalhos importantes sobre o Rio Grande do
Norte.
A partir dessas ponderações, entendemos que, embora tenha existido um deslocamento
do espaço de produção das narrativas culturais sobre o Rio Grande do Norte – saindo do
IHGRN rumo à Universidade Federal do Rio Grande do Norte –, parece resistir uma
concepção de cultura que era encarnada pelo primeiro espaço. Em outros termos, a partir da
disciplina, propõe-se um retorno às narrativas do IHGRN e aos estudiosos que o formavam.
 
 
 
 
 
  105  

CAPÍTULO 03: Os usos e funções do ensino de História na disciplina “Cultura do RN”.

quanto haverá, então, de passado em nosso presente e em nosso futuro? Em que


medida o futuro já está comprometido pelas condições dadas pelo passado e pelas
soluções que demos no presente? (CERRI, 2011, p. 21)

Para que serve o ensino de História?

Preocupações relacionadas ao questionamento que intitula esse tópico colocam o


ensino de História no cerne das discussões sobre as múltiplas dimensões que ele desempenha
na vida dos sujeitos. A educação, de forma geral, tem o objetivo de conduzir o processo de
ensino e aprendizagem que possibilite a formação do cidadão e o preparo dos alunos para o
mundo do trabalho, como prescreve o Artigo 2o da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei
nº 9.394/96):

a Educação da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais


de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho
(BRASIL, 1996).

O ensino de História, nesse processo, atua de maneira regular no espaço escolar


enquanto um dos componentes educacionais capazes de conduzir os alunos a atuarem de
forma crítica, a partir do desenvolvimento do pensar historicamente, que complexifica o
conhecimento adquirido e torna o aluno capaz de situar-se no tempo e espaço de forma a
responder suas carências sociais. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), ainda mais
incisivos, prescreveram que a única forma de se compreender as questões da cidadania parte
do conhecimento histórico, isto é,

as questões envolvendo cidadania só podem ser entendidas em dimensão histórica.


A luta pela terra, por exemplo, tem envolvido gerações. Os territórios indígenas
reduzidos pela expansão da colonização europeia e pelo avanço das fronteiras
agrícolas e minerais, até hoje pedem políticas públicas efetivas. As terras dos
antigos quilombos estão em pleno debate. Do mesmo modo, é possível falar em
longevidade e profundidade da questão étnica construída por quatrocentos anos de
escravidão e perpetuada pela desigualdade social e pelo preconceito racial. Assim,
tanto a exclusão como a luta em prol de direitos e igualdades marcam a questão da
cidadania no Brasil (BRASIL, 1998, p. 37).

Pensando nessas questões, entende-se que problematizar o ensino de História, via


disciplina “Cultura do RN”, permite analisar como algumas relações sociais foram
mobilizadas no âmbito escolar e especificamente, nesse texto, tal entendimento direciona-se
  106  

aos usos e funções do conhecimento histórico em relação a um projeto de construção


identitário. Vale ressalvar que entender a disciplina “Cultura do RN”, no âmbito do ensino de
História, explica-se no momento em que aquela disciplina foi conduzida como parte da carga
horária daquele, integrando a estrutura curricular estadual e também ministrada pelo
profissional da área de História.
Além disso, quando da proposta de desenvolvimento de uma disciplina para se
“contar” uma história da cultura do Rio Grande do Norte, o conhecimento histórico também
foi utilizado. O próprio livro de autoria de Tarcísio Gurgel, Vicente Vitoriano e Deífilo
Gurgel constituiu-se enquanto um recurso de orientações temporais para os alunos, de modo
que – ao narrar histórias da literatura, das artes plásticas e do folclore do espaço norte-rio-
grandense – se caracterizou também como um livro de história.
Foram selecionadas, indicadas e produzidas narrativas e documentos institucionais
para a disciplina “Cultura do RN” no intuito de organizar e sistematizar os conteúdos que
obrigatoriamente deveriam ser trabalhados em todos os anos da escolaridade do Ensino
Fundamental. As discussões sobre essa política pública estadual, enquanto um projeto de
construção de um sentimento de pertencimento entre aqueles que estão circunscritos no estado
do RN, foram problematizadas no capítulo anterior, entendendo que o estado do Rio Grande
do Norte, a partir dessa medida educativa, buscou “construir” uma comunidade imaginada
(ANDERSON, 2008).
Pretende-se entender neste capítulo como projetos contemporâneos relacionados à
cultura, ao patrimônio e às identidades, por exemplo – nesse caso, especificamente, a
institucionalização da disciplina em questão – vinculam-se ao uso e função do ensino de
História enquanto um espaço de relações sociais distintas, no qual o passado é utilizado para
significar o tempo presente e construir orientações para o futuro. Perceber o ensino de
História enquanto “[...] necessidades sociais e políticas na formação da identidade de novas
gerações” (CERRI, 2011, p. 17) é, também, compreender como a organização curricular está
envolvida em relações de poder e como se ligam à construção de identidades espaciais.
O vínculo entre cultura e ensino de História reside na própria acepção deste, isto é, o
ensino de História enquanto espaço, no sentido metafórico, formador de identidades, levando-
se em consideração que uma das funções práticas do conhecimento histórico é significar as
experiências do tempo para uma orientação na vida prática. Pensando nesta perspectiva que se
entende o deslocamento e, consequentemente, o encontro da disciplina “Cultura do RN” com
o ensino de História, uma vez que a questão principal de se instituir uma disciplina para
trabalhar os aspectos locais da cultura do estado ligou-se a um projeto identitário que
  107  

construía, ao fazer um mapeamento da cultura potiguar, uma organização do passado potiguar


por meio de narrativas.
Para compreensão desse processo, o presente trabalho usou das contribuições da
Teoria da História do historiador alemão Jörn Rüsen, o qual, há algumas décadas, vem
fazendo reflexões sobre conhecimento histórico, Didática da História, consciência histórica,
funções e objetivos da História, sendo, assim, de extrema significância para se pensar os usos
e funções do ensino de História a partir da disciplina em questão.  
De acordo com Rüsen, podemos dizer que as experiências históricas são
imprescindíveis para significar o tempo vivido e criar perspectivas para o futuro de maneira a
responder questões – como “de onde viemos?”, “quem somos?”, “o que seremos?” –,
construindo o que chamamos de um sentido identitário. Tomando a identidade enquanto um
elo entre passado, presente e futuro, capaz de constituir um sentido de continuidade:

a “identidade histórica” é o termo comum para a consistência diacrônica dos sujeitos


no curso do tempo. Essa identidade é especificamente histórica quando suas
dimensões temporais ultrapassam as fronteiras de sua própria vida e a finitude dos
indivíduos é superada por meio da memória (RÜSEN In: SCHMIDT; BARCA;
MARTINS (orgs.), 2010, p. 88).

Conforme o autor, o sentido de identidade, fundada na continuidade, se processa


através da consciência histórica, definida por ele como “[...] operações mentais com as quais
os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos,
de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo” (RÜSEN
2010a, p. 57). Dessa forma, o ensino de História, a partir da movimentação do conhecimento
histórico, estaria vinculado exatamente a essa funcionalidade prática da história: dar um
sentido de continuidade. Vale ressalvar, porém, que a ideia de continuidade não se liga aqui a
uma perspectiva de permanência ou ausência de mudanças, mas, sim, trata-se de um elo entre
presente, passado e futuro capaz de integrá-los e possibilitar uma identidade e uma forma de
agir no tempo e no espaço.
Em outras palavras, podemos dizer que a história serve para significar o tempo
presente e, por isso, está ligada a projetos contemporâneos, como a construção de identidades.
Por isso, o ensino de História enquanto um espaço relacionado à aprendizagem histórica foi, e
permanece sendo, alvo de demandas e disputas sociais.
Tal conexão entre história, vida prática e aprendizado, foi pensada por Jörn Rüsen a
partir do que ele chamou de Didática da História, uma área de estudo responsável por
problematizar os sentidos da História na vida prática dos sujeitos. O ensino de História, dessa
  108  

forma, constitui-se enquanto elemento fundamental para essa compreensão, uma vez que faz
parte de uma das dimensões que mobiliza o conhecimento histórico.  
O passado foi entendido na qualidade de elemento que deve ser retomado para que sua
recriação atenda às necessidades práticas dos diferentes sujeitos, de maneira a responder suas
carências sociais. Nesse panorama, as narrativas históricas devem ser colocadas em
movimento para suprir as carências de orientação temporal e espacial.
Nas duas últimas décadas do século XX, o ensino de História no Brasil passou por
importantes transformações em suas concepções. Os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN), criados no ano de 1996, vieram a corroborar para o entendimento do ensino como
espaço de diálogo entre os mais diversos grupos e interesses, superando a ideia de uma
educação voltada para o aprendizado de fatos históricos que diziam muito mais de um
passado de memória de grupos específicos do que atendiam às necessidades de interesses
presentes no espaço escolar.
Assim, o ensino de História, consequentemente, passou por significativas
transformações em relação às suas concepções. Não se aceitava mais um ensino voltado para
o acúmulo de conhecimento, mas se buscou, nesse momento, uma História problema, que ao
invés de impor experiências históricas, as problematizariam.
Retomando os PCN e as transformações no ensino de História na década de 1990,
verificamos que o documento propôs uma série de inovações e alternativas para os quadros
teóricos e metodológicos do ensino de História. O fazer pedagógico nesse momento buscou
mudanças no que diz respeito: à história factual, que valorizava heróis e datas; ao ensino de
toda a história da humanidade, uma vez que era impossível ministrar essa abrangência de
conteúdos; à divisão da história a partir de uma perspectiva linear, entendendo experiências
históricas como primitivas e/ou evoluídas. De maneira geral, buscava, naquele momento, uma
História capaz de pensar o indivíduo em suas mais diversas relações com o presente, passado
e futuro. Sobre as “velhas” e novas perspectivas do ensino de História, Oliveira afirmou:

o senso comum sobre a disciplina de História, partilhado, inclusive, pelos


profissionais de outras áreas de conhecimento, concebe a História como resgate de
todo o passado de todas as sociedades. Essa visão não é de todo desproposital. Ela é
tributária do enorme prestígio das concepções tradicionais de História, conhecidas
pelas denominações de “positivista”, “metódica” e que foram preponderantes na
escrita da História no século XIX e, com algumas modernizações, na história escolar,
pelo menos em nosso país, durante significativa parte do século XX. [...] A
necessidade de superação dessa visão é coerente, tanto com um consenso entre os
profissionais de História sobre a natureza dos estudos históricos quanto com as
concepções de educação que entendem o aluno como sujeito do seu conhecimento e
que, portanto, têm por finalidade básica a construção de posturas investigativas por
parte dos estudantes. (In: OLIVEIRA (coord.), 2010, p. 9)
  109  

Nesse contexto de mudanças, intercalar conteúdos e adotar o trabalho pedagógico a


partir de eixos temáticos mostraram-se como uma das soluções para atender às novas
concepções de ensino que foram se desenvolvendo, ultrapassando a ideia de história enquanto
processo evolutivo, no sentido de ter passado por estágios inferiores e caminhando rumo a um
progresso inevitável. Os eixos temáticos permitiriam, assim, pensar nas noções de tempo
histórico e os mais variados aspectos que formam uma sociedade, reconhecendo o aluno como
agente ativo do processo de conhecimento.
A história regional e local, nesse cenário, também apresentou-se enquanto alternativa
para levar o aluno a refletir e dialogar com as experiências passadas a partir de suas
necessidades atuais. Pensar o “local” aproximava o discente com sua realidade, entendendo
que os processos históricos do passado têm ligação com as estruturas atuais de uma
determinada sociedade, ou em escala menor, com determinada comunidade. E essa noção, por
parte do aluno, da ligação entre sua vida atual, experiências passadas e perspectivas de futuro,
daria oportunidade para construir um sentimento de identidade para com seu tempo e espaço.
Esse ponto é, sobretudo, o que nos interessa nesse texto.
Dentre as várias modificações que se processaram no ensino de História no século XX,
uma permanência marcou suas transformações: a ideia de que ao ensino de História direciona-
se a função de construir identidades coletivas. O que mudou: se antes as identidades eram
vistas a partir de uma perspectiva de certa homogeneidade nacional, quando não cívica e/ou
patriótica, o que se espera nos dias atuais são identidades plurais, que saibam reconhecer no
“outro” e em si mesmas possibilidades de mudanças e diferenças.
Sobre essas mudanças e diferenças, os PCN fizeram uma trajetória desses dois
momentos do ensino de História. No primeiro momento, expressando como foram concebidas
as identidades chamadas de homogêneas:

ao longo da história da educação brasileira, também os currículos escolares apontam


para a importância social do ensino de História. Uma das tradições da disciplina tem
sido a de contribuir para construção da identidade, sendo esta entendida como a
formação do ‘cidadão patriótico’, do ‘homem civilizado’ ou da ‘pessoa ajustada a
seu meio’. Isto é, caberia à História desenvolver no aluno, a sua identidade com a
pátria, com o mundo ‘civilizado’ ou com o ‘país do trabalho e do desenvolvimento’
(BRASIL, 1998, p. 20).

Em um segundo momento, o documento discutiu as novas perspectivas de identidades


criadas ao longo do século XX, preponderantemente nas últimas décadas deste século.
Focalizando os processos de desenvolvimento das noções de diversidade e desestruturação de
relações a partir dos processos globais. Assim, afirmando a necessidade de se pensar os
  110  

indivíduos e suas relações de identidades do ponto de vista da diversidade. A escola, nesse


panorama, precisa se adequar a tais mudanças e trabalhar com as diferentes noções de
identidades surgidas

no diálogo e no confronto com a realidade social e educacional, no contato com


valores e anseios das novas gerações, na interlocução com o conhecimento histórico
e pedagógico, o saber histórico escolar tem mantido tradições, tem reformulado e
inovado conteúdos, abordagens, métodos, materiais didáticos e algumas de suas
finalidades educacionais e sociais. Nesse diálogo, tem permanecido, principalmente,
o papel da História em difundir e consolidar identidades no tempo, sejam étnicas,
culturais, religiosas, de classes e de grupos, de Estado ou Nação. Nele,
fundamentalmente, têm sido recriadas as relações professor, aluno, conhecimento
histórico e realidade social, em benefício do fortalecimento do papel da História na
formação social e intelectual de indivíduos para que, de modo consciente e reflexivo,
desenvolvam a compreensão de si mesmos, dos outros, da sua inserção em uma
sociedade histórica e da responsabilidade de todos atuarem na construção de
sociedades mais igualitárias e democráticas (BRASIL, 1998, p. 29).

De acordo com esses direcionamentos dados pelos PCN, podemos perceber que o
documento nos levou a pensar sobre a ligação entre ensino de História e identidades múltiplas.
Esta relação deve ser concebida a partir de uma perspectiva problematizada, observando os
diferentes conceitos envolvidos do que sejam identidades nos diferentes tempos históricos.

Currículo, relações de poder e identidades.

O componente curricular “Cultura do RN” revela muito dos aspectos do ensino de


História em sua função social41 em relação à construção de identidades, sejam individuais ou
coletivas. Depois das discussões realizadas no segundo capítulo da presente pesquisa,
podemos afirmar que a criação do novo componente curricular está estritamente ligada a um
processo de produção do “ser potiguar”. Um projeto foi criado, diretrizes foram dadas, um
livro foi produzido, os quais, embora tratem-se de elementos distintos, foram mobilizados
para uma única intensão: fazer conhecer a cultura do norte-rio-grandense para que os que
habitam o Estado reconheçam-se enquanto norte-rio-grandenses.
Nesse processo, fez-se necessário entender quais as relações sociais e de poder que
estavam inseridas nessa política pública do Estado do Rio Grande do Norte. Para tanto, o
sociólogo Pierre Bourdieu nos forneceu contribuições significativas para as reflexões
referentes ao nosso objeto de pesquisa, uma vez que suas considerações superaram a ideia da
neutralidade das instituições escolares, contribuindo para perceber as estratégias de utilização
                                                                                                               
41
Ver: RÜSEN, Jorn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília:
UNB, 2010.
  111  

do sistema escolar pelos diferentes grupos sociais, com o intuito de legitimar determinados
valores e práticas. A criação da disciplina “Cultura do RN”, de acordo com essa compreensão,
pode ser entendida como uma estratégia de utilização do sistema escolar por uma elite
intelectual consagrada no Estado, saudosa das relações oligárquicas que predominaram no
final do século XIX e início do XX, para legitimar suas práticas e valores. A disciplina é um
espaço de lutas e que, por isso, passível a disputas pela instalação e reprodução de
determinadas memórias históricas. Em outros termos, “tentar” instalar determinadas
narrativas, valores e práticas não significa que serão reproduzidos, mas que, potencialmente,
podem “comunicar” determinadas concepções e, assim, contribuir para sua legitimação.
O que está em questão não é a mudança em si da estrutura curricular, pois o Estado,
enquanto representante da sociedade, tem o poder legítimo de desenvolver ações que
considere importante. Além disso, as mudanças curriculares são necessárias e atendem a
demandas sociais. A questão é identificar e analisar quais as concepções de cultura
desenvolvidas a partir destas iniciativas, as relações sociais que nelas estão inseridas e quais
as potencialidades em relação ao ensino de História.
Pensando no uso e na função do conhecimento histórico, nas propostas do “Projeto
para o Desenvolvimento do Componente Curricular Cultura do RN” e das “Diretrizes
Curriculares Estaduais para o Ensino da Cultura do RN”, nos deparamos com afirmativas que
levam a determinados questionamentos. O primeiro foi em relação aos conteúdos que
deveriam ser trabalhados em sala de aula com os alunos, uma vez que tanto o Projeto quanto
as Diretrizes afirmam que, ao compreender a cultura em sua amplitude, abre-se “espaço para
um indeterminado rol de assuntos e possibilidades a serem trabalhados em sala de aula, não
sendo necessário, portanto, a apresentação de uma listagem de conteúdos pré-determinados”
(RIO GRANDE DO NORTE, 2007b) pela Secretaria de Educação.
Nesse sentido, o documento supracitado tinha como objetivo apenas fornecer alguns
linhas gerais que norteassem um primeiro momento de desenvolvimento do novo componente
curricular. Caberia objetivamente à escola a construção de um currículo que estivesse de
acordo com os anseios e necessidades dos seus agentes escolares. Assim, o referido
documento concluiu:

acreditamos que a definição do que deve ser ensinado seja objeto de discussão
coletiva, e ainda que a elaboração de diretrizes curriculares seja feita de modo
colaborativo, valorizando o professor na sua condição de sujeito do processo
educativo. Dessa maneira encaminhamos estas diretrizes para que sejam norteadoras
do ensino da cultura do RN durante o ano letivo de 2007, mas que brevemente sejam
reelaboradas com a participação dos professores da rede pública estadual,
  112  

ministrantes do referido componente curricular (RIO GRANDE DO NORTE,


2007b).

Ainda no início do segundo semestre do ano de 2013, realizamos uma pesquisa de


campo na qual visitamos 05 (cinco) escolas da rede estadual de ensino com o objetivo de
coletar dados a respeito do desenvolvimento da disciplina “Cultura do RN”. A saber, as
escolas pesquisadas foram: Escola Estadual Professora Zila Mamede, localizada no bairro
Pajuçara na Zona Norte de Natal; Escola Estadual Professora Maria Nalva Xavier
Albuquerque, localizada também no bairro Pajuçara; Escola Estadual Governador Walfredo
Gurgel, localizada no bairro de Candelária na Zona Sul de Natal; Escola Estadual Henrique
Castriciano de Souza, localizada no município de Macaíba; e Escola Estadual As Marias,
localizada no distrito “As Marias”, pertencente ao município de Macaíba. A escolha por
localidades diversificadas deu-se no sentido de pensar como o desenvolvimento da disciplina
estava processando-se em diferentes zonas da cidade do Natal como também ter uma mostra
da pesquisa em outro município, no caso Macaíba.
Em todas as escolas pesquisadas, perguntamos à direção sobre a criação de alguma
ação por parte da própria instituição escolar ou da Secretaria Estadual de Educação e Cultura
(SEEC) do Estado do Rio Grande do Norte, no sentido da elaboração de um currículo ou
plano de ação no tocante à disciplina de “Cultura do RN”. Todas as direções apontaram para
ausência de ações nesse sentido, tanto que, ao conversar com alguns professores de Histórias,
que lecionavam nessas escolas, a maioria reclamou da inexistência de um
planejamento/formação para o desenvolvimento do novo componente curricular.
Dado esse interessante, se levarmos em consideração que uma das ações previstas no
Projeto, a de maior valor orçamentário, seria a distribuição de 36.850 exemplares do livro
Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte, da autoria conjunta de Tarcísio Gurgel,
Vicente Vitoriano e Deífilo Gurgel. A saber, o Projeto de desenvolvimento da disciplina
previu a distribuição de 50 livros para cada escola, em um total de 737 escolas que oferecem o
Ensino Fundamental, que, por sua vez, atendiam, em 2007, um total de 120.631 alunos (RIO
GRANDE DO NORTE, 2007a).
Assim, ao mesmo tempo em que se abre o leque de possibilidades de conteúdos a
serem explorados em sala de aula, o Estado, de acordo com o Projeto da disciplina, planejou
uma distribuição ampla do nosso conhecido livro Introdução à Cultura do Rio Grande do
Norte, a fim de servir como fonte para o ensino de Cultura do RN. Entre o estabelecimento,
ou não, de determinados conteúdos, o maior problema reside em entender como estes se ligam
à realidade escolar e como se diferenciam enquanto produção do conhecimento histórico. Ora,
  113  

uma primeira conclusão, pelo disposto no capítulo anterior, é que o livro funcionou como
currículo na ausência de debates e discussões mais amplas. O projeto e as Diretrizes
propunham grades abertas, mas a distribuição gratuita mapeava o que era ministrável.

O livro Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte e seu caráter didático

O livro em questão apresenta-se a partir do Projeto de desenvolvimento da disciplina


como uma bibliografia que deve ser utilizada como fonte histórica e enciclopédica, não
merecendo o carácter de “livro didático”. No entanto, observa-se que sua estrutura é bem
semelhante a de uma obra didática, com formatação, linguagem, atividades bastante
semelhantes. Para problematizarmos melhor essa questão, vejamos a definição de livro
didático de Itamar Freitas de Oliveira (2014, p. 158):

o que é um livro didático? É um artefato que veicula textos escritos, imagéticos e/ou
sonoros, organizados de modo linear ou hipertextual, disponíveis em suporte de
papel, plástico policarbonato, microchips de silício ou ondas eletromagnéticas, cuja
principal função é auxiliar aos alunos, professores, pais ou responsáveis no processo
de aquisição de conhecimentos e habilidades relativas e circunscritas a determinada
disciplina escolar.

De acordo com essa definição podemos sugerir que, embora o livro produzido para
disciplina tenha carácter enciclopédico, os elementos integrantes desse material assemelham-
se em muito com aqueles componentes de um material didático: livro impresso, linguagem
acessível, imagens, mapas, legendas, quadros com definições de conceitos, atividades. Na
apresentação do próprio livro, encontramos a seguinte afirmação: “nele [o livro em questão]
investimos o melhor da nossa criatividade visando à boa utilização do seu conteúdo,
ressaltando o aspecto lúdico das atividades pedagógicas” (GURGEL; VITORIANO;
GURGEL, 2003, p. 5).
Infere-se, então, que o livro foi definido enquanto importante material para auxiliar na
prática pedagógica, não apenas na qualidade de fonte, mas seu texto foi construído de forma a
servir de instrumento para alunos e professores, enquadrando-se, portanto, numa das funções
principais atribuídas ao livro didático: de servir como material de auxílio para os agentes
escolares.
Paralela a essa definição, ainda podemos pensar na concepção de livro didático
regional para o ensino de História expressa pelo Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD):
  114  

impressos que registram as experiências de grupos que se identificam por fronteiras


espaciais e socioculturais, formando um conjunto de livros utilizados em situação
didática no ensino de História, destinados a um público escolar de um município ou
de um estado do Brasil (BRASIL, 2009, apud CAIMI, 2010, p. 65).

O livro Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte foi produzido no ano de 2003 e
posteriormente distribuído nas escolas da rede pública estadual no ano de 2007, para auxiliar
no desenvolvimento do componente curricular “Cultura do RN”. Como já dito, foi divido em
três eixos temáticos – a saber, Literatura, Artes plásticas e Folclore – considerados elementos
essenciais para o entendimento da cultura local e, consequentemente, enquanto definidores de
uma identidade local. Assim, tomando a definição do livro didático regional proposta pelo
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), o livro criado para disciplina tem, além de
outras características já discutidas, diversos componentes suficientes para ser considerado um
livro didático em sala de aula.
Ainda sobre o caráter didático do livro Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte,
outro fator chamou atenção: a semelhança da supracitada obra com outra já produzida por
Deífilo Gurgel, em 1999, intitulada Espaço e Tempo do Folclore Potiguar, destinada aos
alunos norte-rio-grandenses, como afirmou o autor na Introdução do livro:

este livro é para os estudantes, pela maneira simples como foi escrito. E para os
estudiosos, pela soma de informações sobre o folclore do Rio Grande do Norte. [...]
decidimos escrever este livro, para revelar, particularmente aos alunos de nossas
escolas, o universo fabuloso do folclore potiguar, visto à luz dos ensinamentos dos
grandes mestres da Folclorologia, daqueles que, com amor e competência,
estudaram as manifestações do pensar, sentir, agir e reagir do nosso povo (GURGEL,
1999, p13).

Na orelha do mesmo livro, intitulada Dinâmica Iniciatória, o poeta e crítico literário


Anchieta Fernandes ainda reafirmou:

está é uma obra que, obrigatoriamente, terá que ser colocada nas mãos dos nossos
estudantes, sejam do ciclo primário, do colegial ou do universitário. Porque ensina
didaticamente a ser brasileiro e norte-rio-grandense de coração, orientando-se pela
bússola da nossa tradição cultural. Só assim as invasões da cultura estrangeira
poderão ser assimiladas criticamente e não alienadamente (GURGEL, 1999).

Infere-se, portanto, que o livro Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte não foi a
primeira iniciativa de intelectuais, como Deífilo Gurgel, em produzir material didático para
serem trabalhados junto aos alunos nas escolas do Estado. Mesmo não tendo a denominação
de livros didáticos, essas obras foram pensadas a partir de uma linguagem e estrutura que
possibilitassem um trabalho didático no espaço escolar. Tanto que a estrutura do eixo
  115  

temático produzido por Deífilo Gurgel, no livro Introdução à Cultura do Rio Grande do
Norte, foi bem semelhante à composição do livro Espaço e Tempo do Folclore Potiguar.
Sobre a estruturação desta obra, Anchieta Fernandes, ainda na “Dinâmica Iniciatória”
observou:

o livro foi estruturado com uma dinâmica iniciatória, partindo da definição histórica
(a etimologia da palavra “folclore”, como a criou o inglês Willian John Thoms em
1846) e se estendendo nas explicações e descrições de cada elemento e setor, nas
inferências e relacionamentos com a cultura em geral – e sempre defendendo a
importância do folclore e a necessidade de estudá-lo. Colocando interpretações
próprias, criando palavras (‘triangleiro’, por exemplo), ilustrando sua pesquisa com
excelente material fotográfico – Deífilo faz-se presente nesta batalha cultural
(GURGEL, 1999).

Relacionando-se com a obra acima citada, o eixo temático “Folclore” do livro


Introdução à Cultura do Rio grande do Norte foi estruturado a partir de 05 (cinco) tópicos e
uma parte anexa: (1) inicialmente partiu-se de algumas definições do termo folclore, inclusive
dando destaque à definição cunhada por Willian John Thoms em 1946; (2) em seguida um
tópico para expor a importância do folclore de maneira geral; (3) depois, verticalizou-se a
narrativa para falar do folclore no Rio Grande do Norte; (4) em seguida, apresentou-se as
expressões culturais do Estado; (5) chegando aos estudiosos do folclore e da cultura popular,
tendo como principais representantes Câmara Cascudo e Mário de Andrade; finalizando o
eixo temático com fotografias diversas de expressões culturais.
No próprio índice do livro de Gurgel de 1999, os capítulos foram desdobrando-se no
sentido de definir o folclore, apresentar o folclore no Brasil, depois no Rio Grande do Norte e
seus estudiosos. Inclusive, todas as imagens que estão no livro distribuído para o
desenvolvimento da disciplina “Cultura do RN”, objeto em questão desse texto, estão nesse
primeiro “livro didático” de Deífilo de 1999. Percebe-se, portanto, que, embora estes livros
não se configurem oficialmente enquanto didáticos, suas produções foram pensadas a partir
de uma perspectiva de trabalho didático com os alunos e professores no espaço escolar.
Dessa forma, existe um potencial para que o livro Introdução à Cultura do Rio grande
do Norte seja utilizado como obra didática, especificamente, nas aulas de “Cultura do RN”.
Essa potencialidade deve-se não apenas à sua estrutura, mas também ao fato de ser um dos
poucos materiais distribuídos para o desenvolvimento da disciplina, haja vista que um dos
problemas enfrentados pelo ensino de História na atualidade, principalmente no que tange ao
ensino de história local e regional nas escolas das redes públicas, é a dificuldade de acesso a
materiais que tornariam o trabalho de professores e alunos mais produtivos (CAIMI, 2010).
  116  

Bibliografia de qualidade, livros didáticos, mapas, recursos iconográficos e os mais variados


instrumentos pedagógicos poderiam subsidiar o desenvolvimento do conhecimento histórico
na escola.
Junta-se a isso as dificuldades nas definições de um currículo, uma vez que as
Diretrizes da disciplina prescreveram que não seria necessário definir um currículo, haja vista
a imensidão de possibilidades de se trabalhar com aspectos culturais de uma comunidade.
Num quadro estadual, portanto, com a indefinição do currículo, o livro Introdução à Cultura
do Rio Grande do Norte, por muitas vezes, pode ter cumprindo este papel, entendendo-se que
uma obra didática é potencialmente um definidor de currículos, como apontou Leda Potier
(2014, p. 58):

o livro de História didático no Brasil abarca um intenso mercado editorial que está
ligado contemporaneamente, principalmente, às demandas do Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD), que é um projeto do Governo Federal, que a partir de um
Edital de convocação avalia os livros das editoras (por especialistas de diferentes
áreas), que serão encaminhados para escolha dos professores da educação básica e
serão utilizados nas escolas públicas brasileiras. De certa forma, na falta de um
currículo nacional para o ensino de história, os editais e, assim, os livros aprovados,
acabam por definir a concepção de história que deve ser levada aos alunos a partir
do livro didático.

É certo que a concepção do livro didático como definidor do currículo, assim como
ressalvou a autora, não deve ser considerada como algo determinante, uma vez que o espaço
escolar pode indicar diversas outras possibilidades de utilização desse material e de outros.
No entanto, não se pode negar o papel fundamental que este instrumento didático ocupa nas
salas de aula e como, potencialmente, pode vir a definir o currículo, bem como a formação de
um mercado financeiro que a compra dos livros didáticos movimentam. Nesse ponto, vale
destacar que o livro produzido para a disciplina “Cultura do RN” – embora estivesse previsto
no projeto como fonte de pesquisa – movimentaria o mercado editorial, uma vez que cada
exemplar do livro em questão foi previsto num custo para o governo do Rio Grande do Norte
de R$40,00 (quarenta reais) a unidade, representando ao final um valor total de
R$1.474.000,00 (um milhão, quatrocentos e setenta e quatro mil reais). “O Projeto de
Desenvolvimento do Componente Curricular Cultura do RN” tinha previsão orçamentária
final, incluindo todas as ações, um valor no total de 1.590.833,20 (um milhão, quinhentos e
noventa mil, oitocentos e trinta e três reais e vinte centavos), assim, a ação de distribuição do
livro representou 92,66% dos gastos previstos no Projeto, enquanto as demais ações –
reprodução das Diretrizes Curriculares Estaduais para o Ensino de da Cultura do RN,
reprodução do Guia Metodológico da Cultura do Selo Unicef, aquisição do acervo
  117  

hemerográfico para as diretorias regionais de educação, aquisição e gravação de 1.700 CD-


ROM e capacitação dos professores – apenas 7,34% do orçamento.
Levando-se também em consideração que as dimensões que os livros didáticos hoje
atingem no processo de ensino e aprendizagem, sendo elemento, inclusive, de movimentação
de um grande valor mercadológico, analisá-lo e entendê-lo faz parte também de um processo
de conhecimento das relações de produção e consumo que giram em torno dele. Entendendo
que a análise desse instrumento didático não diz respeito apenas a uma “historiografia da
falta” (OLIVEIRA, 2015, p. 158), que busca problematizar as ausências de elementos
necessários para uma obra constituir-se em um bom livro didático, apontada e criticada por
vários pesquisadores do ensino de História. Pensar e entender os processos sociais, que estão
envolvidos na confecção de um livro didático, diz respeito à compreensão de como a
consciência histórica está sendo mobilizada por esses tipos de narrativas didáticas.

Experiência histórica e narrativa histórica: uma diferenciação necessária

O Edital do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) prescreveu que "é


fundamental a diferenciação entre a vivência desses processos e a forma de produção de
conhecimento sobre eles" (apud OLIVEIRA, 2011), uma vez que os alunos devem entender
que o conhecimento histórico/conteúdo não é a mesma coisa que processo histórico. Dessa
forma, o aluno ganharia autonomia para se posicionar diante das narrativas históricas e
produzir seu próprio conhecimento, de forma a orientar-se temporal e espacialmente de
maneira a responder suas carências sociais. Sobre a diferença existente entre experiência
histórica e narrativa histórica, Margarida M. D. Oliveira (2010, p. 14) alertou também que:

a memória histórica guarda várias narrativas através dos vários grupos sociais,
instituições, classes. A História, como produção do conhecimento científico,
compõe outras narrativas. Embasadas numa das visões que a sociedade guardou,
muitas vezes, partindo dessa memória, grupos ou indivíduos compõem um
conhecimento que vai de encontro a ela. O profissional de História deve demonstrar
essas ligações – do passado com o presente – e, embora não deva instituir como uma
verdade única (o que entendemos por história tradicional é exatamente essa
operação), deve ter clareza de que a memória influencia a história, e a história
influencia a memória. Por outro lado, o pesquisador e o professor de História
precisam refletir – e o segundo, como dever de ofício – e ter clareza do momento em
que é recomendável, necessário, desejado, (para o público com que trabalha)
conhecer narrativa (s), confrontá-la (s), interpretá-la (s) e compreendê-la (s).
  118  

Partindo da diferenciação da experiência histórica e da narrativa história e das


ponderações realizadas por Oliveira, vejamos o trecho abaixo, escrito por Deífilo Gurgel no
livro produzido para o desenvolvimento da disciplina “Cultura do RN”:

ensaiando diligentemente nas suas escolas, no interior e na Capital, trocando ideias


com os artistas autênticos do nosso folclore (que, aliás, tiveram também participação
no espetáculo) os estudantes e professores puderam pôr em prática a valorização da
nossa Cultura Popular, como importante resultado prático da Mostra Cultural, já
mencionada. Esta primeira experiência, diretamente apoiada pelo Ministério da
Educação, Projeto Alvorada, revela o quanto é fecundo o trabalho no campo da
Educação Artística, porque valorizando o folclore do Estado, o alunado não apenas
aprendeu a reconhecer sua importância e beleza. Na verdade tornou-se ele próprio
agente cultural, num congraçamento que fez – sem necessidade de estímulo à
emulação – o estudante do litoral interagir com aquele oriundo do alto oeste; o do
agreste com o varzeano do Vale do Açu. E, para que isto acontecesse, como numa
espécie de coroamento, utilizando a obra de pesquisador do maior intelectual
potiguar: Luís da Câmara Cascudo (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p.
124)

O autor nesse texto referiu-se ao que ele denominou de uma “prática educativa”, na
parte final do livro citado, na sessão de anexos. Uma experiência na qual alunos de várias
localidades do Rio Grande do Norte reuniram-se e apresentaram um espetáculo folclórico, por
sua vez, entendido enquanto expressão da cultura popular do Estado. Pela narrativa, podemos
inferir algumas concepções de ensino e aprendizagem que o produtor do texto tem. Para ele, o
folclore foi uma experiência passada que deve ser valorizada porque caracteriza elementos
autênticos da cultura potiguar que resistiram às vicissitudes do tempo. A perspectiva de
conhecedor de elementos, que formam as expressões culturais, atuou no sentido de se
conhecer aquilo que já existia. A cultura, como analisamos no capítulo anterior deste trabalho,
foi perspectivada por um ponto de vista cristalizado. Sendo assim, ficou notório o
entendimento de que tanto o aluno quanto o professor deveriam conhecê-lo, reconhecê-lo e
valorizá-lo, independente do transcurso do tempo, independente das memórias dos sujeitos
envolvidos, como também das novas relações sociais vividas. Isso porque o conteúdo
“folclore” é a própria memória de uma entidade idealizada chamada de Rio Grande do Norte.
Ainda sobre o trecho em questão, outro ponto chamou atenção: a ideia de que o
trabalho de Luís da Câmara Cascudo tornou o evento ainda mais valorizado e (por que não?)
ainda mais válido, uma vez que se tratou de utilizar trabalhos elaborados por um intelectual
consagrado no Rio Grande do Norte enquanto um grande folclorista. Não que se tenha alguma
restrição em utilizar o material sobre cultura produzido por Cascudo, no entanto, geralmente
quando se retomam as afirmações e narrativas do autor, é como se estivesse retomando a
própria experiência histórica, uma vez que o autor destacou-se na tarefa de “dizer” a cultura
  119  

popular e o folclore do Rio Grande do Norte, como discutimos no capítulo anterior. Em


outros termos, podemos entender que a utilização por si só das narrativas de Cascudo
legitimou o que Deífilo Gurgel chamou de “práticas educativas”. Naquele momento, os norte-
rio-grandenses seriam agentes da cultura “sem necessidades de estímulo à emulação”, como
se existisse uma essência que os levassem a participar daquela experiência histórica da
maneira como foi narrada por Cascudo. Repetir sem rivalizar (a “emulação”) é o objetivo
idealizado para que o folclore continue vivo como elemento da identidade.
A partir da narrativa de Deífilo, infere-se que o agir dos alunos limitou-se a
reconhecer e repetir as práticas do folclore, ocorrendo uma retomada da experiência histórica
através da narrativa cascudiana sem, contudo, deixar explícito a diferença entre experiência
histórica e narrativa histórica. Assim, não condizente com as novas noções de ensino e
aprendizagem, inclusive expressas e buscadas por documentos diversos que normatizam o
ensino, como, por exemplo, os PCN:

a consciência de que é sempre fruto de seu tempo sugere, também, outros trabalhos
didáticos. As obras de cunho histórico – textos historiográficos, artigos de jornais e
revistas, livros didáticos – são estudadas como versões históricas que não podem ser
ensinadas como prontas e acabadas, nem confundidas com a realidade vivida pelos
homens do passado. Considera-se, por exemplo, a importância da identificação e da
análise de valores, intencionalidades e contextos dos autores; a seleção dos eventos e
da importância histórica atribuída a eles; a escolha dos personagens que são
valorizados como protagonistas da história narrada; e a estrutura temporal que
organiza os eventos e que revela o tempo da problemática inicial e dos contextos
históricos estudados. (BRASIL, 1998, p. 33)

O livro didático regional e alguns parâmetros norteadores do PNLD

Para avaliar o impacto da perspectiva herdada do IHGRN sobre a cultura do RN no


ensino de História, evidenciando sua penetração, convêm fazer um cruzamento entre
materiais didáticos semelhantes. Os parâmetros dos PCN são importantes norteadores das
avaliações feitas nos livros didáticos, submetidos ao Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD), enquanto um projeto do Governo Federal que tem por objetivo auxiliar o trabalho
pedagógico de alunos e professores a partir da distribuição gratuita de livros didáticos. Para
que as obras sejam incluídas no Guia de Livros Didáticos do PNLD, podendo ser distribuídas
e utilizadas nas escolas públicas brasileiras, é preciso que passe por um processo de avaliação
realizado por especialistas de diversas áreas.
Nos anos de 2007, 2010 e 2013 foram abertos editais de convocação do PNLD para
inscrição e avaliação de obras didáticas destinadas aos alunos e professores dos primeiros
  120  

anos do Ensino Fundamental de escolas públicas. Assim, foram submetidos nestes editais,
livros de História Regional que, geralmente, são utilizados no primeiro ciclo do ensino
fundamental. Em relação ao Estado do Rio grande do Norte, em 2007, foi submetido ao
PNLD o livro didático regional Para Conhecer a História do Rio Grande do Norte, de autoria
de Marlene da Silva Mariz e Valda Marcelino Tolkmitt, no entanto, a obra foi avaliada, mas,
em desacordo com parâmetros estabelecidos, não incluída no Guia de Livros Didáticos do
PNLD. No edital de 2010, o livro regional submetido foi o Rio Grande do Norte: história,
cultura e identidade, de autoria de Marlúcia Galvão Brandão, também em desacordo com
parâmetros do programa, foi excluído do PNLD. E no último edital do PNLD de obras
didáticas, destinadas às séries iniciais do Ensino Fundamental, foi submetido um livro de
história regional, sendo aprovado e, consequentemente, incluído no Guia de Livros Didáticos:
o livro História do Rio Grande do Norte: história regional, de autoria conjunta de
Aristotelina Pereira Barreto Rocha e Lemuel Rodrigues da Silva.
Para nossa pesquisa, utilizaremos apenas as narrativas regionais que foram excluídas
do PNLD, pensando nestas obras como norteadoras para compreender o que está sendo aceito
e/ou negado para o desenvolvimento do ensino escolar de História. Dessa forma, um paralelo
entre as noções de cultura movimentadas na disciplina “Cultura do RN”, a partir do livro
Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte, com as narrativas regionais excluídas do
PNLD podem ser significativas no sentido de compreender quais as concepções de história,
memória e cultura foram mobilizadas, principalmente, porque nestas obras excluídas
verificaram-se sessões específicas para se trabalhar a cultura do Estado.
O livro didático Para Conhecer a História do Rio grande do Norte é constituído por
07 (sete) unidades, cada uma apresentando tópicos diversos. As unidades, de maneira geral,
fazem parte de uma lógica narrativa linear, na qual o conhecimento histórico foi abordado a
partir de uma história nacional sequencial, ou seja, explorando experiências históricas do
Brasil Colônia e seu desdobramento na história local, assim seguindo uma sequência de
Império, República e dias atuais, com enfoque nos fatos e personagens políticos. Os 02 (dois)
últimos tópicos da Unidade 07 foram os mais significativos para relacioná-los ao objeto de
estudo dessa dissertação: “A cultura e a moderna sociedade norte-rio-grandense” e “A Cultura
e a tradição potiguar”.
O primeiro tópico inicia-se narrando a história de criação da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN) e depois segue contando algumas transformações que
ocorreram no Estado durante as décadas de 1950, 1960, 1970 e 1980. Sem fazer conexões
com os acontecimentos narrados neste tópico, lança-se a seguinte imagem:
  121  

Figura 19 - Luís da Câmara Cascudo.

Fonte: MARIZ; TOLKIMITT, 2005, p. 112.

Na realidade, a imagem foi exposta logo após a referência de algumas faculdades


atuais do Estado, entre elas, a Faculdade Câmara Cascudo. Contudo, em nenhum momento,
foi discutida a relação de Luís da Câmara Cascudo enquanto intelectual envolvido nas
questões culturais do Estado. A imagem dele apareceu na narrativa como se estivesse
subentendido a representatividade do intelectual num tópico destinado às questões culturais.
Embora o tópico tenha sido intitulado a partir de uma perspectiva cultural, o que foi narrado
diz respeito apenas a transformações políticas, econômicas e estruturais; aspectos referentes a
expressões culturais não chegaram a ser trabalhados, com exceção da imagem de Câmara
Cascudo, talvez colocada para conduzir o leitor a um referencial cultural.
Nesse ponto, o livro supracitado parece dialogar com o livro Introdução à Cultura do
Rio Grande do Norte, haja vista que “enxergou” em Câmara Cascudo um destacado
referencial de cultura no Estado. Recorrentemente, como analisamos no capítulo 02, em todos
os eixos temáticos (Literatura, Artes Plásticas e Folclore) do livro para ser trabalhado a
disciplina “Cultura do RN”, encontramos imagens e textos enaltecendo a figura desse
intelectual enquanto folclorista e estudioso da cultura popular norte-rio-grandense.
Em relação ao último tópico da Unidade 07, do livro Para Conhecer a História do Rio
grande do Norte, uma imagem também chamou atenção:
  122  

Figura 20 – Dança do Araruna.

Fonte: MARIZ; TOLKIMITT, 2005, p. 115.

Mais uma vez foi dado um destaque à expressão folclórica conhecida por Araruna,
haja vista que a imagem foi utilizada para abertura do tópico “A cultura e a tradição potiguar”.
No eixo “Folclore”, produzido por Deífilo Gurgel, observamos também que houve um
destaque à Sociedade Araruna de Danças Antigas e Semidesaparecidas, conhecida por
Araruna, posto que a narrativa referente a essa expressão cultural foi mais delongada que as
demais, como também houve o dobro de utilização de imagens deste grupo. Além de ter sido
destacado o caráter “genuíno” que tal dança representaria, podendo “dizer” de maneira
“verdadeira” a identidade potiguar.
Ainda sobre o tópico do livro de Mariz e Tolkmitt (2005, p. 117), o texto de abertura
afirmou:

a cultura potiguar, da mesma forma que nos outros estados, é constituída por um
conjunto de influências dos elementos étnicos que participaram da formação do seu
povo: o índio, o branco e o negro. Essa soma de influências constitui a nossa cultura
e está presente nos costumes, na alimentação, nas manifestações religiosas e no
folclore.

Ora, essa visão tripartida da cultura (branco, índio e negro) remete exatamente ao mito
das três raças, desenvolvido a partir de teorias como as de Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e
outros, o qual enalteceu o encontro da cultura do colonizador com o índio e o negro,
minimizando as lutas e violências cometidas com estes encontros culturais e dando vazão ao
que também se chamou de mito da democracia racial, no qual os conflitos foram apagados em
  123  

prol da ideia de que a colonização do Brasil se deu de forma harmoniosa e, por isso, a
identidade brasileira não seria nada mais do que a junção de elementos das três “raças”
formadoras do Brasil. Estas ideias levaram os intelectuais preocuparem-se com um discurso
historiográfico capaz de definir a identidade do povo brasileiro, no entanto, esta narrativa foi
produzida às custas de um processo de naturalização e cristalização do que seria a cultura
brasileira, produzindo um silenciamento em relação às lutas sociais (MOTA, 1985).
Ao afirmar que a formação do Estado fez parte de um “entrecruzamentos de raças”
(GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 5), os produtores do livro Introdução à
Cultura do Rio Grande do Norte parecem também compartilharem das ideias do “mito das
três raças” e que os elementos culturais que formavam essas etnias constituem-se hoje
elementos de uma identidade potiguar, que também foi vista através de uma perspectiva
homogênea e cristalizada. Neste cenário, o folclore apresentou-se enquanto o elemento
“chave” para se produzir um identidade local, haja vista que sua monumentalização
representou a volta ao passado da cultura de um povo. Essa perspectiva do folclore também
foi utilizada por Mariz e Tolkmitt (2005, p. 119) no livro didático regional submetido ao
PNLD 2007:

da mesma forma as tradições portuguesas, indígenas e negras, misturam-se e


influenciam-se reciprocamente e fizeram surgir o folclore, com características
próprias, com formas regionais de manifestações, conhecidas como festas ou
folguedos.

Nesse sentido, entende-se que o folclore “localiza” regionalmente essa “mistura


racial” que faz parte da formação do povo brasileiro. As narrativas folclóricas não apenas
“dizem” o regional, como confundem-se com o próprio passado vivido, não existindo,
portanto, diferenciação entre a narrativa folclórica e a experiência histórico-cultural.
O livro de história regional, intitulado Rio Grande do Norte: história, cultura e
identidade, submetido e excluído do PNLD 2010, dividido em 08 (oito) unidades, de maneira
geral, assim como a obra excluída em 2007, também narrou a história do Estado a partir de
uma perspectiva linear, na qual os fatos que ocorriam no Rio Grande do Norte eram
desdobramentos políticos e econômicos da esfera nacional, enfocando, mais uma vez, datas,
eventos e personagens políticos. Embora o subtítulo do livro concentre-se nas palavras
“História”, “cultura” e “identidade”, o que prevaleceu foi uma narrativa político-
administrativa, com exceção: o tópico “Diversidade cultural” na Unidade 01, composto de 03
(três) páginas, as quais continham um pequeno texto falando sobre diversidade cultural e
  124  

algumas imagens de expressões culturais brasileiras; o tópico “A cultura do povo indígena”


na Unidade 03, composto também por 03 (três) páginas, uma utilizando um pequeno texto e
uma imagem para falar dos índios potiguaras, outro texto curto e uma imagem para falar dos
índios tapuias e uma página de atividades; e, por fim, as 03 (três) últimas páginas da Unidade
08, que apresentou textos curtos e imagens de elementos considerados representativos do
patrimônio e folclore norte-rio-grandense. Nestas últimas páginas, podemos encontrar a
seguinte narrativa:

há, nessa região [cidade de Natal], uma mistura equilibrada entre as tradições dos
povos que aqui estiveram. Portugueses, holandeses, africanos e indígenas, e que
podem ser observados nas manifestações culturais (BRANDÃO, 2008, p. 179).

Mais uma vez, branco, índio e negro foram integrados culturalmente, promovendo
expressões culturais que representam a identidade dos norte-rio-grandenses. Estas
manifestações, por vezes, apresentadas como folclóricas, são entendidas como elementos
culturais originários de um povo, como reforçou o texto do livro de Brandão (2008, p. 179):

[...] também no folclore que compreende o conjunto das tradições, lendas e crenças
que se manifestam nos provérbios, contos, danças e festas – Boi Calemba, Congos,
Araruna, Bambelô, entre outros. Está presente na Festa do Reis Magos, de Nossa
Senhora dos Navegantes, de Nossa Senhora da Apresentação. Segundo Luís da
Câmara Cascudo ‘a cultura popular é a mais importante de todas as culturas, porque
é a raiz de tudo’, portanto é importante ser preservada.

O folclore novamente foi apresentado enquanto elemento que “prende” e “localiza” as


manifestações culturais. A citação reforça o folclorista Câmara Cascudo como atestando o
folclore e a cultura popular como raízes da cultura de um povo. O aspecto de “genuíno” e a
manifestação “primeira”, que estes elementos assumem, conduzem ao pensamento de que se
pode fazer um “resgate” das experiências passadas, de modo a vivenciá-las como outrora
eram praticadas no passado. Assim, esta narrativa didática comungou com as ideias dos
autores do livro Introdução à Cultura do Rio grande do Norte no sentido de entender que o
passado pode ser revivido a partir das expressões folclóricas.
Essas narrativas não promovem uma reflexão no sentido de compreender que o
passado só pode ser acessado através da produção do conhecimento histórico, que, por sua
vez, conduz a novas experiências no tempo que nunca serão iguais às já vividas. Não existe
dúvidas em relação à história informada, ao passo que ao utilizar Câmara Cascudo, enquanto
grande conhecedor da cultura e da história do Rio Grande do Norte, serviu de instrumento de
confirmação da veracidade e legitimidade dos fatos passados. Distantes de tensões e
  125  

questionamentos, a narrativa não apresentou dúvida sobre a importância dessa cultura,


deixando de levar em consideração para quem ela é importante, o porquê da importância e
quais relações sociais estão envolvidas nesse processo de determinada definição de cultura.
Neste ponto, indo em desacordo de alguns parâmetros importantes buscados pelo PNLD para
garantir um padrão mínimo de qualidade, que permite um posicionamento crítico e reflexivo
em relação às narrativas históricas, como assim foi orientado:

é imperioso que a obra didática evite simplificações explicativas, seja de cunho


valorativo, processual, comparativo, ou teórico conceitual. Em vista da própria
historicidade do conhecimento, e da sua constante atualização, não é permitida a
identificação da história narrada a uma verdade absoluta ou a um relativismo
extremo, fazendo com que o aluno desvalorize a construção dos conhecimentos –
inclusive o científico, equiparando a verdade do saber a uma verdade pessoal.
(BRASIL, 2010, p. 35)

Portanto, as concepções de ensino e aprendizagem dessas narrativas não colaboram


para atingir um diálogo entre alunos e professores no que tange à diferenciação das
experiências históricas e narrativas históricas. Ao contrário, através de simplificações de
conteúdos, concebeu-se a cultura enquanto elemento dado, naturalmente constituído,
identificando-se a história narrada a uma verdade absoluta, por meio de informações que não
promovem um debate, dessa forma, não estando condizentes aos princípios que norteiam
características de obras didáticas possíveis de serem utilizadas nas escolas do Brasil:

é fundamental a diferenciação entre a vivência desses processos e a forma de


produção de conhecimento sobre eles, ou seja, a compreensão do processo histórico
e da produção de conhecimento sobre o mesmo. [...] Viabilizar o pensar
historicamente é o objetivo central do ensino-aprendizagem de História e é por meio
desse processo que são desenvolvidas as capacidades que auxiliam o aluno a atuar
na sociedade de forma autônoma, crítica, participativa, digna e responsável. [...] O
desafio de uma coleção didática não é explorar a maior quantidade de conteúdos
conceituais. Boa é a obra didática que auxilia o professor e o aluno no trabalho com
a metodologia da produção do conhecimento histórico, sempre adequada ao nível de
escolaridade a que se destina a coleção. (BRASIL, 2013, p.42)

Ou ainda,

ensina-se história, como se produz o conhecimento histórico, portanto compreender


como o profissional de história constrói o conhecimento histórico é condição para
que o educando perceba esse conhecimento como parte da elaboração de saberes da
sociedade e não o vincule a uma naturalização do passado considerando que aquela
visão é a única possível. Consequentemente, esse princípio deve estar presente, e de
forma explícita, na elaboração da obra didática (BRASIL, 2010, p. 36).
  126  

Entende-se, a partir desses norteadores, que uma obra didática deve preocupar-se não
apenas em apresentar conteúdos históricos, mas também, e fundamentalmente, promover um
debate de como o conhecimento histórico foi e pode ser produzido. Diante deste diálogo, o
educando assume a capacidade de posicionar-se criticamente frente às narrativas histórias,
levando-o a produzir novos conhecimentos que atendam às suas necessidades práticas do
presente. O pensar historicamente, objetivo central do ensino de História, só pode ser atingido
a partir do momento em que o aluno compreende a diferença entre experiências históricas e
produção do conhecimento histórico, assim, obtendo a compreensão das relações sociais que
estão inseridas no processo de construção do conhecimento como também possibilitando a
competência para movimentar as narrativas históricas de modo a sanar as necessidades sociais
do presente e futuro.
Dessa forma, uma obra didática que não propõe e/ou discute a distinção das
informações por ela veiculadas enquanto produção do conhecimento, e não processo histórico
em si, limita a compreensão dos agentes escolares em relação ao conhecimento movimentado,
podendo incorrer, inclusive, na concepção de que o conteúdo da obra didática trata-se de uma
“verdade absoluta” não passível a críticas e desconstruções de forma a assumir outras
interpretações, de acordo com o tempo e interesses diversos do sujeito social.

Noções de aprendizagem do ensino de História em relação à “Cultura do RN”

Observando algumas das concepções de ensino mobilizadas a partir da criação do


componente curricular, toma-se um trecho da introdução do livro Introdução a Cultura do Rio
Grande do Norte em que se afirma:

[...] e que possa o estudante sentir-se estimulado a se tornar um ativo agente cultural:
seja escrevendo, pintando, seja participando dos ricos folguedos populares de que
nossa cultura é tão rica ou até – o que não é menos importante – um zeloso
divulgador da mesma (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 5).

É interessante notar que, ao mesmo tempo em que se deseja um aluno ativo, construtor
do seu próprio conhecimento, a ideia de “divulgador” de elementos (pré-)estabelecidos da
cultura norte-rio-grandense corrobora para entender que esta já foi produzida. Nesse sentido,
os conteúdos parecem ser integrantes de uma “cultura comum” formada por valores, crenças,
práticas e significados já produzidos e, possivelmente, compartilhados. Conhecer, valorizar e
  127  

divulgar constituem-se enquanto ações fundamentais no desenvolvimento da disciplina


“Cultura do RN”.
Vejamos os objetivos das Diretrizes Curriculares Estaduais para o Ensino da disciplina
“Cultura do RN” (RIO GRANDE DO NORTE, 2007a):

a segunda Diretriz indica para os objetivos pensadores quando da introdução do


referido componente curricular.
1. Ensinar e aprender sobre cultura do RN tem por objetivo a produção e divulgação
de conhecimentos e de valores locais [...]
2. Reconhecer, valorizar e respeitar a diversidade étnica e cultural da formação da
identidade potiguar.
3. Avançar na compreensão e no esclarecimento do conteúdo dos direitos culturais
[...].
4. Estimular a preservação e valorização do patrimônio [...].
5. Respeitar e proteger os sistemas de conhecimentos tradicionais.
6. Reconhecer a contribuição dos conhecimentos tradicionais [...].
7. Conhecer e atentar para as recomendações da legislação [...].

Os verbos que conduziram os objetivos para a prática do componente curricular –


“Ensinar e aprender [...]”, “Reconhecer, valorizar e respeitar [...]”, “Avançar na compreensão
[...]”, “Estimular [...]”, “Respeitar [...]”, “Reconhecer [...]”, “Conhecer [...]” – remetem às
antigas concepções do ensino de História, quando aprender história significava o acúmulo de
conhecimento sobre dados e fatos. Vale salientar que nesta pesquisa entende-se que tais
verbos também são norteadores típicos do papel da disciplina de História, inclusive, ao serem
conjugados com a questão do patrimônio e com o conhecimento dos sistemas tradicionais
remetem diretamente ao conhecimento histórico, como observamos nos objetivos 4, 5 e 6 da
das diretrizes acima citadas.
Verbos que, de maneira geral, parecem atribuir ao aluno apenas a competência de
apreender conhecimentos, sem levar em conta processos de reflexão, comparações,
questionamentos, problematizações. Não que esses verbos, hoje, não sejam mais importantes
no processo de ensino e aprendizagem, no entanto, a partir das novas concepções de ensino de
História, exigem-se outras competências por parte do aluno, como, por exemplo, refletir,
problematizar, relacionar. Estes verbos complexificam o conhecimento escolar e, por isso,
direcionam o aluno a um papel ativo em relação ao ensino e aprendizado. O conhecimento da
experiência histórica não basta, se não for problematizado e relacionado com anseios e
necessidades presentes da sociedade. Sobre essa questão Raimundo Nonato (In: ANDRADE;
STAMATTO, 2009, p. 107) afirmou:

de forma paralela às tentativas de mudanças que ocorriam, particularmente na


disciplina de História, aconteciam também modificações nas concepções de
  128  

educação e de ensino. Nesse período, diversos estudiosos da educação passaram a


considerar os alunos como participantes ativos do processo de conhecimento. Na
interpretação dos PCN, essa modificação na forma de conceber a aprendizagem dos
alunos pode ser detectada na inclusão de novos verbos para definição dos objetivos
de ensino. Nesse sentido, aos verbos (identificar, descrever, caracterizar, ordenar)
que caracterizam os objetivos de ensino até o início dos anos de 1980, foram
acrescidos outros verbos (comparar, analisar e relacionar). Para os PCN, essa nova
concepção de objetivos a serem atingidos pelos alunos demonstra uma preocupação
em valorizá-los como construtores de História (BRASIL, 1998).

Alguns dos “verbos” (comparar, analisar, relacionar), que hoje são pautados como
fundamentais para o processo de ensino e aprendizagem, não foram valorizados na
institucionalização do componente curricular em questão. As atividades que compõem o livro
Introdução à Cultura do RN também caminham neste sentido. Apesar do livro se propor de
caráter enciclopédico, como já discutido, em muito ele aproxima-se de um material didático,
nesse caso, apresentando diversas atividades. Em uma proposta de atividade, localizada na
seção intitulada “Além do texto”, uma das questões traz o seguinte enunciado: “2. O folclore
representa um patrimônio valioso da cultura de um povo. Conhecê-lo e divulgá-lo ajuda a
fortalecer a identidade cultural de um povo. Comente.” (GURGEL; VITORIANO; GURGEL,
2003, p. 89).
Essa perspectiva de atividade, enfocando o papel de “conhecedor” e “divulgador” de
elementos (pré-)estabelecidos da cultura norte-rio-grandense, corrobora para entender que
esta já foi produzida. Além disso, o comando da atividade se encerra em “comentar”
afirmações que já foram feitas. O comando da questão apresenta-se, de certa maneira, de
forma vaga e, por isso, com grande possibilidades de se encerrar na simples constatação do
que já fora dito anteriormente. Não direciona os alunos a processos mentais mais complexos,
de problematização do conhecimento histórico trabalhado. Podemos sugerir que essa ausência
diz respeito às concepções de ensino e aprendizagem oferecidas pela disciplina.
Outras atividades do referido livro também corroboram para essa perspectiva de
ensino. Nas seções de atividades intituladas “Testando a Leitura”, a própria nomenclatura,
inclusive, nos conduz ao entendimento de que se espera do aluno uma retomada dos fatos
expostos anteriormente:

Jorge Fernandes, pintor afanado, iniciou o modernismo no Rio Grande do Norte.


A afirmativa está correta?
Que movimento, ocorrido em São Paulo, inspirou jovens poetas natalenses a
fazerem uma exposição da vanguarda?
Comente a afirmativa: ‘Os objetos culturais, as obras de arte visuais retratam a
cultura de um povo’.
  129  

Caracterize, a partir do texto, a obra do pintor Joaquim Fabrício Gomes de


Souza (1855-1900). (GURGEL; VITORIANO, GURGEL, 2003, p. 31-74,
passim).

Essa retomada das narrativas do livro – como uma espécie de reafirmação do que já
foi dito, sem problematizações – pode contribuir para que as narrativas sejam vistas como
“verdades” históricas não passíveis a mudanças, ou ainda num processo de não
reconhecimento da diferença entre narrativa histórica e experiência história.
Recorrentemente, a fim de se estudar a história local, os livros didáticos apresentam
questões que tentam aproximar o aluno de sua realidade histórica. Para tanto, um recurso
muito utilizado é a entrevista ou, de modo geral, atividades que busquem conhecer memórias
dos antepassados, bisavós, avós, pais, como também de pessoas antigas que são conhecidas
nas comunidades. Também entre as atividades propostas pelo livro, criado para a disciplina
“Cultura do RN”, parte da seção nomeada de “Além do texto: entreviste professores, colegas
da escola, pessoas da comunidade, relacionando as opiniões deles sobre a importância do
folclore.” (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 80).
Não há nenhum problema em buscar memórias de grupos para o estudo de
determinados assuntos. A questão é não haver uma problematização dessas memórias, as
quais não são diferenciadas das experiências históricas; quando não se busca problematizar e
entender quais as distintas relações sociais que estão envolvidas com aquelas memórias.
Nesse momento, pode-se incorrer no risco de confundir o que seja memória do que seja
história. Problema esse apontado e discutido por Margarida M. D. de Oliveira (2010, p. 15):

é preciso notar que alguns livros didáticos e algumas publicações de divulgação têm
propugnado o resgate da memória como porta-voz de grupos historicamente
excluídos. Essa fala – a partir da história oral ou mesmo através de outras fontes
documentais – tem sido equiparada à produção da pesquisa histórica e mal entendida
como detentora da verdade num processo de sacralização da voz popular. É preciso
não cometer-se o equívoco de colocar-se a memória – principalmente na primeira
fase do Ensino Fundamental – como substituta do ensino de História. A memória
dos avós, dos pais, dos antepassados em geral pode até ser mais atraente para as
crianças, pode apresentar outras possibilidades para o processo histórico, mas não
deve substituir as informações fornecida pela pesquisa histórica.

Nesse ponto, reside o problema do currículo: quando é pensado a partir de uma


unidade homogênea, os conflitos e a heterogeneidade cultural dos sujeitos são negados. O
processo constituinte de narrativas históricas, que no livro são na verdade narrativas de
memória, não foi questionado. Entender que o folclore é um patrimônio importante para
determinada comunidade é a questão na qual a narrativa histórica se encerra, sem desenvolver
  130  

o significado do bem cultural. Esse processo de seleção e organização curricular gira em torno
de consensos e não de conflitos42, silenciando as relações de poder que estão envolvidas na
organização da educação.
Não se nega aqui a importância que as manifestações ditas tradicionais têm no âmbito
das culturas, inclusive, como testemunhos de épocas. O que estamos querendo evidenciar é
que elas devem ser incluídas e apreendidas dentro de uma perspectiva de pluralidade, em
diálogo com manifestações que nascem e se modificam com o tempo, a partir da interação
com outras realidades. Assim, deveria se evitar um modelo padrão único de cultura, para
pensá-la em sua dinâmica e diversidade ou, como diria Certeau (2012), “a cultura no plural”.
No mesmo caminho, Michael W. Aplle (2006, p. 27) apontou:

o apelo atual para que “retomemos” a uma cultura comum, na qual todos os alunos
recebem os valores de determinado grupo – em geral os do grupo dominante -, não
diz, em absoluto, respeito a uma cultura comum a todos. Tal abordagem pouco toca
a superfície das questões políticas envolvidas. Uma cultura comum a todos jamais
pode ser a imposição daquilo que uma minoria é e acredita. Ao contrário, deve
fundamentalmente não exigir a estipulação de listas e conceitos que nos façam todos
‘culturalmente letrados’, mas a criação das condições necessárias para que todas as
pessoas participem na criação e recriação de significados e valores.

As instituições escolares não são neutras e o currículo deve ser pensado a partir de
uma teoria crítica43. Os grupos sociais montam estratégias de utilização do sistema escolar
com o intuito de legitimar seus valores, normas e práticas. A criação da disciplina “Cultura do
RN”, de acordo com essa compreensão, pode ser entendida como uma estratégia de utilização
do sistema escolar pelos grupos políticos e intelectuais herdeiros de uma oligarquia norte-rio-
grandense que teve sua ascensão no final do século XIX e nas primeiras décadas do século
XX – ou na chamada República Velha – e que, após esse período, passou por um processo de
decadência das suas instituições; como também a uma tradição historiográfica do IHGRN,
criado em 1902 tendo seus membros intelectuais ligados às oligarquias locais.
Este processo de decadência das oligarquias, contudo, acirrou as lutas e disputas de
memórias que tentam resistir contra as mudanças processadas, para que antigas relações de
poder e dominação sejam mantidas. Desse modo, a nostalgia – que foi apresentada pelos
autores do livro Introdução á Cultura do Rio grande do Norte no que tange ao período
considerado de florescimento dos estudos das expressões culturais, como também a constante
retomada da historiografia do IHGRN como a mais representativa da história e cultura local –
                                                                                                               
42
Ver: APLLE, Michel W. Ideologia e Currículo. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. p. 41.
43
Ver: NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, Cláudio M. Martins. Bourdieu e a educação. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006.
  131  

conduz a uma reatualização de antigas tradições e concepções do que seja a cultura e


identidade norte-rio-grandense, a partir de uma perspectiva cristalizada, na qual o passado
tenta ser “resgatado” através de processos de repetições. A monumentalização do folclore,
desse modo, mostra-se como elemento chave desse processo.
Assim, o livro previsto para ser distribuído gratuitamente, nas escolas da rede estadual
de ensino público do Rio Grande do Norte no ano de 2007, mostrou como o ensino de
História, a partir da disciplina “Cultura do RN”, foi tomado mais uma vez como foro
privilegiado para as disputas de memórias desses grupos. O próprio Deífilo Gurgel (1999,
p.13-14) entendeu que é através da escola que as memórias históricas são mobilizadas:

quando escrevemos ‘particularmente aos alunos de nossas escolas’ é porque estamos


convencidos de que será através da escola que se fará o resgate dessas tradições, não
só pelo seu estudo sistemático e diuturno, mas, sobretudo, pela observação, ‘ao vivo’ ,
de suas mais vibrantes e diversificadas manifestações na sala de aula.

No entanto, o autor parece silenciar os conflitos que surgem a partir da atuação das
memórias ligadas ao sistemas tradicionais. Dessa forma, potencialmente, o ensino de História
está sendo utilizado como instância de mobilização de determinadas memórias históricas em
detrimento de um saber historicizado, o qual busca entender os processos sociais e as lutas por
eles travadas.

Mobilizar narrativas na perspectiva de Rüsen

É preciso entender que as narrativas integrantes do currículo da disciplina “Cultura do


RN” fazem parte de um processo de construção do conhecimento histórico e não da
experiência histórica vivida em si, considerando os agentes escolares enquanto construtores
de conhecimento, os quais colocam em movimento as experiências históricas orientando-se
temporal e espacialmente de forma a responder suas necessidades sociais.
De acordo com Rüsen, todo sujeito utiliza das experiências históricas para significar o
tempo presente por meio da consciência histórica, entendida enquanto um fenômeno humano,
no sentido de que todas as pessoas a utilizam para se orientarem no tempo, isto é, a
consciência histórica é um processo natural gerado a partir das experiências dos sujeitos. Isto
faz descartar a ideia de consciência histórica enquanto um saber intelectual específico ou
erudito, no sentido de se pensar apenas como uma capacidade cognitiva a se desenvolver, pois,
  132  

[...] antes de ser algo ensinado ou pesquisado, a historicidade é a própria condição


da experiência humana, é algo que nos institui enquanto espécie. O que varia são as
formas de apreensão dessa historicidade, ou, nos termos de Rüsen, as perspectivas
da atribuição de sentido à experiência temporal (CERRI, 2011, p. 30).

É através da consciência histórica que as experiências passadas são significadas,


colocando em movimento a definição de identidade coletiva e individual. Nesse sentido,
quando o Estado do Rio Grande do Norte seleciona, organiza e oficializa elementos
constituintes de uma determinada ideia de cultura, ele cria vetores de orientação e
qualificação do espaço via consciência histórica. Por isso, é imperativo pensar que tipos de
experiências foram relacionados a uma determinada ideia de cultura norte-rio-grandense e se
estas implicam a uma orientação temporal e espacial de forma que os agentes escolares se
beneficiam das características do pensamento histórico. Ou se foram apresentadas de forma
determinista, na qual se sobressaiam valores e memórias de grupos, de forma a não considerar
a realidade do aluno e seu possível benefício através do conhecimento histórico.
Para melhor entender essas questões, faz-se necessário pensar nas contribuições
metodológicas de Rüsen em relação à divisão da consciência histórica em quatro tipos:
tradicional, exemplar, crítico e genético. De maneira sucinta, foram essas as definições
sugeridas por ele: o tipo tradicional de consciência histórica remete às origens e repetições,
isto é, modelos culturais que expressam vínculos já instituídos, levando a uma confirmação de
relações sociais já estabelecidas. A consciência histórica exemplar diz respeito a um conjunto
de exemplos e regras gerais atemporais, que permanentemente serão validadas, enquanto a
consciência histórica crítica, por sua vez, desenvolve-se no sentido de encontrar outras
possibilidades para o conhecimento histórico, buscando-se rupturas e contradições do mesmo.
Por fim, no tipo genético de consciência histórica, que remete à forma dinâmica entre passado,
presente e futuro, os sujeitos se reconhecem enquanto agentes de mudanças. De uma forma
geral, cada narrativa apresentada é concernente aos princípios de afirmação, regularidade,
negação e transformação, respectivamente.
Vale ressaltar, porém, que um tipo de consciência histórica não exclui o outro, assim
como também uma não é inferior a outra, uma vez que para se pensar historicamente é preciso
transitar por esses diferentes tipos de consciência, ao passo que se uma delas for apresentada
isoladamente representará limites para entender que existem outras formas de representações
e experiências no tempo. Por isso, as narrativas ligadas a estas consciências geralmente
aparecerem mescladas, tornando sua análise mais complexa. Além disso, essa tipologia está
sendo tomada neste trabalho como um instrumento de análise o qual tenta perceber as
  133  

diferentes formas de produção do conhecimento histórico. Com isso, não se pretende


“enquadrar” as ocorrências de determinados tipos de consciência histórica, mas sim perceber
suas diferenças e em que medida cada uma contribui para a complexificação do pensamento
histórico.
A partir desse entendimento metodológico e da análise realizada no segundo capítulo,
pode-se inferir que o livro distribuído nas escolas potiguares apresentou, em grande medida,
formas tradicionais de consciência histórica, que podem estar ligadas a projetos de
dominação44, uma vez que o mapeamento de uma identidade potiguar fez-se por meio de um
processo de naturalização e cristalização dos elementos culturais que constituem as narrativas
tanto textuais quanto visuais do livro: o elemento cultural foi “resultado” de experiências
sociais do passado que deveriam ser conhecidas e “reconhecidas”. Assim Rüsen (2010, p. 48)
definiu que:

as narrativas tradicionais são a forma de constituição narrativa de sentido e um tópos


de argumentação histórica que interpreta as mudanças temporais do homem e do
mundo com a representação da duração das ordens do mundo e das formas de vida.
Histórias que obedecem a esse formato e a esse tópos remetem às origens, que se
impõem às condições contemporâneas da vida, e que se querem manter inalteradas,
presentes e resistentes aos longo das mudanças no tempo.

De acordo com o autor, o sentido tradicional de narrativa é movimentado a partir do


momento em que os sujeitos sociais recorrem às tradições com a finalidade de obter um
retorno de antigas estruturas sociais. Esse retorno, contudo, não é visto a partir de uma
perspectiva de mudança e adequação às realidades vividas, mas sim o passado é buscado de
forma inalterada e resistentes a mudanças. As identidades, nesta perspectiva, são pensadas a
partir de modelos simbólicos já existentes, que determinam de antemão maneiras de ser e agir
no tempo.
A perspectiva da narrativa tradicional, se vista isoladamente, pensada em relação ao
processo de ensino e aprendizagem de História não possibilita um diálogo no sentido de
entender que as experiências no tempo não podem ser “resgatadas” a partir de formas
inalteradas. Ou seja, o sentido tradicional de narrativa pode limitar a compreensão de que as
experiências passadas só podem ser acessadas através da produção do conhecimento histórico
e, consequentemente, passando por um processo de transformação que as conduzam a
responder necessidades sociais de cada realidade histórica.

                                                                                                               
44
Ver CERRI, Luís Fernando, 2011, p. 32.
  134  

Dessa forma, o retorno aos sistemas tradicionais, se visto isoladamente, buscando


formas inalteradas das relações sociais, não dialoga no sentido de diferenciar a experiência
histórica em relação à produção do conhecimento histórico e, consequentemente, no caso
específico de que se trata a presente pesquisa, os elementos organizados e selecionados para o
desenvolvimento da disciplina “Cultura do RN” comunicam-se, em grande medida, com tipos
de narrativas tradicionais, nas quais, de maneira geral, tudo já fora produzido, bastando
apenas sua apreensão e repetição. Não que essas narrativas não possam produzir uma
aprendizagem reflexiva a partir das apropriações que possam sofrer, no entanto, quando são
tomadas como “verdades”, é nesse momento que o problema apresenta-se. Vale ressaltar que
as formas tradicionais de conhecimento também são importantes para a construção do pensar
historicamente, no entanto, se forem abordadas de forma isolada e não reflexiva podem
conduzir a visões deterministas da realidade.
Pensando essas narrativas tradicionais, a forma como se imaginou45 a comunidade
norte-rio-grandense, na instituição da disciplina “Cultura do RN”, atualizou, a nosso ver,
percepções antiquadas acerca da história. Nesse sentido, é interessante refletir que a história
ensinada durante o século XIX e parte relevante do século XX, por exemplo, tinha por
premissa básica formar o cidadão patriótico por meio da narrativa histórica da nação. Eram
narrativas do tipo exemplar, diria Rüsen46. Já atualmente, a percepção mais recorrente é que a
disciplina história teria como uma de suas funções práticas formar um novo “modelo” de
cidadão capaz de pensar historicamente a respeito dos desafios vivenciados nas relações que
estabelece em sociedade.
Sobre as concepções tradicionais da ciência da História, Margarida M. D. Oliveira
(2011, p. 524-525) afirma que:

todo profissional de História, em algum momento da sua formação ou carreira, já


teve que responder a alguém, pelo menos, duas questões: 1) dizer um nome, data,
local de algum acontecimento considerado digno de figurar nos conhecimentos
históricos; e 2) justificar por que devemos conhecer fatos ocorridos em outros
tempos que não o contemporâneo. Isto significa que há uma imagem construída
sobre o profissional de História como um grande memorizador ou como um
indivíduo que “vive do passado”, e à primeira vista os cidadãos têm dificuldade em
relacionar aqueles fatos coletivos (ou mesmo quando individuais) de personagens
“ilustres” com o seu cotidiano. [...] Essa imagem tem uma enorme vinculação com
                                                                                                               
45
Vale salientar aqui a ponderação que Benedict Anderson faz sobre o termo “inventada”. De acordo com ele, as
comunidades não são inventadas, no sentido de serem falsificadas ou criadas a partir de processos abstratos. Ao
contrário, as comunidades são imaginadas porque passam por um processo de criação, muitas vezes difícil e que
exige grandes esforços para responder a demandas de determinado contexto social.
46
As narrativas exemplares seriam aquelas que “[...] concretizam as regras e os princípios abstratos, contando
histórias que demonstram a validade destas regras e princípios em casos específico.”. Ver: RÜSEN In.:
SCHMIDT; BARCA; MARTINS, 2010, p. 101.
  135  

as concepções tradicionais de educação que imputavam ao aluno um papel passivo


(o professor é que teria o conhecimento) e às narrativas históricas ligadas à
genealogia da Nação e as ações das elites a condição de sujeitos condutores dos
processos históricos.

Caminhando na mesma direção, o edital de convocação para submissão de obras


didáticas ao PNLD (BRASIL, 2013, p. 42) pondera:

como área de conhecimento, a História modificou-se bastante ao longo do Século


XX. De resgate dos fatos ocorridos, passou a ser entendida como representação
desses fatos, por meio da organização, crítica e interpretação das fontes. Em
contrapartida, o conhecimento histórico escolar permanece marcado pelo senso
comum sobre a História: a enumeração, a mais exata possível, dos acontecimentos,
datas e personagens, centrada na informação e na memorização.

Nota-se, portanto, que as concepções da História enquanto ciência do passado já foram


ultrapassadas no decorrer do século XX, diagnosticando a funcionalidade prática do
conhecimento histórico em sua relação entre passado, presente e futuro. Sabendo disso, por
que então o ensino de História ainda está atrelado a uma concepção de história que a percebe,
por excelência, enquanto a ciência do passado? Em que medida essa concepção corrobora
para um ensino de História com uma funcionalidade prática (ou não)?
Quando as narrativas históricas são abordadas de forma determinista, cabendo aos
alunos a perspectiva apenas da assimilação e reprodução, podemos pensar no que o
historiador Jörn Rüsen   chamou de quadros de orientações autoritárias (In: SCHMIDIT;
BARCA; MARTINS (orgs.), 2010, p. 89). De acordo com o autor, estes revelam uma
concepção na qual o conhecimento histórico assume uma forma determinista, pensando os
agentes escolares enquanto reprodutores, potencialmente, negando-se às mudanças e
ressignificações do conhecimento histórico que se processam com o passar do tempo e a
diversidade de interesses dos indivíduos.  
Nesse sentido, nota-se que o ensino está sendo concebido enquanto acúmulo de
conhecimento erudito e numa perspectiva de “verdades absolutas”. Por isso, o que se
questiona aqui é o tipo de conhecimento que essa estrutura curricular está possibilitando. Se
ao falar em cultura brasileira tentou-se “encaixar” todos em uma identidade nacional, agora,
através de um discurso local, tenta-se “encaixar” todos dentro de uma cultura estadual já
existente e aparentemente delimitada, pelo que se percebe. Esta perspectiva permite a
reprodução de sistemas simbólicos que estão atrelados a um poder instituído, ao menos no
caso do livro em análise, ligado a uma herança oligárquica potiguar.
  136  

Identidade norte-rio-grandense e a ausência de diálogos

Se a identidade norte-rio-grandense está sendo definida, sobretudo, a partir de uma


ideia de cultura – esta, por sua vez, funda-se, em grande medida, numa concepção de
patrimônio entendido como algo pré-existente, bastando apenas sua proteção e divulgação –
diante do exposto no capítulo 02 desta dissertação, o que se percebe em relação ao ensino e
aos demais elementos que o constituem, como, por exemplo, as políticas identitárias,
encarnadas na própria institucionalização da disciplina “Cultura do RN”, é que alguns
conteúdos (folclore, literatura, obras de arte) foram utilizados por grupos para “comunicar”
determinados valores e crenças, que em pouco ou nada favorecem uma utilização prática do
conhecimento histórico que supra as carências surgidas com as transformações do tempo e a
diversidade dos sujeitos, remetendo às concepções de ensino que há muito tempo já foram
superadas pelo debate historiográfico.
Atualmente, busca-se por meio do ensino de História competências críticas e
reflexivas por parte dos alunos que os coloquem enquanto questionadores das ditas “verdades
absolutas”, como também construtores de conhecimento que os conduzam a se posicionar
frente à realidade social, buscando o pensamento autônomo, o respeito ao outro e as diversas
possibilidades de criações na realidade histórica, entendendo os processos de mudança e
permanência ou, como prescreveu os PCN (BRASIL, 1998b, p. 36):

o domínio das noções de diferença, semelhanças, transformação e permanência


possibilita ao aluno estabelecer relações e, no processo de distinção e análise,
adquirir novos domínios cognitivos e aumentar o seu conhecimento sobre si mesmo,
seu grupo, sua região, seu país, o mundo e outras formas de viver e outras práticas
sociais, culturais, políticas e econômicas construídas por diferentes povos. [...] A seu
modo, o ensino de História pode favorecer a formação do estudante como cidadão,
para que assuma formas de participação social, política e atitudes críticas diante da
realidade atual, aprendendo a discernir os limites e as possibilidades de sua atuação,
na permanência ou na transformação da realidade histórica na qual se insere.

Vimos no decorrer desse trabalho que as concepções de cultura apresentadas pelos


autores do livro, criado para disciplina “Cultura do RN”, se limitou, preponderantemente, à
naturalização, cristalização e folclorização dos considerados bens culturais. E ainda que a
valorização de uma cultura local nestes moldes constituiu-se em enfrentamento das múltiplas
influências culturais provocadas pelos sistemas globalizantes. Nesse panorama, o “outro”
representou um perigo à dissolução e fragmentação do “eu”. Assim, a identidade norte-rio-
grandense no livro Introdução à Cultura do Rio grande do Norte, e na ausência de um
  137  

currículo, foi pautada como um conjunto de traços fixos e singulares, não possibilitando o
diálogo entre os tempos e sujeitos diversos.
A motivação central desse texto foi pensar de que maneira o conhecimento histórico, a
partir do projeto de desenvolvimento da disciplina “Cultura do RN”, foi idealizado em relação
à construção de uma identidade espacial. Compreendendo que determinar o que ensinar é
potencialmente um processo de construção de vetores, isto é, de orientações que colocam em
movimento as experiências históricas e como estas irão ser significadas, inclusive na
construção das identidades espaciais. As narrativas criadas para disciplina em questão, ao
dizerem algo sobre o norte-rio-grandense, estão o conformando, produzindo-o, isto é, são
vetores de orientações espaciais e temporais que, a partir do agenciamento de elementos,
buscam produzir a identidade potiguar. Vejamos a citação abaixo, extraída do livro
Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte, escrito por Vicente Vitoriano, autor do eixo
temático “Literatura”:

o primeiro desse nome é Auta de Souza, destacada representante dos Castricianos de


Souza, de que falamos de passagem no capítulo anterior. Em nosso livro Informação
da Literatura Potiguar (V. Bibliografia) comentamos que a mesma tinha contra si o
fato de ser feiosa e descender de negros, numa sociedade que mal libertara seus
escravos. E ainda: ser mulher, num meio tipicamente patriarcal, portanto, dominado
pelos machos; e, por último, ser tísica – tuberculosa – num tempo em que esta
condição significava quase uma sentença de morte, pois não havia cura para tal
doença. A seu favor, é verdade, havia o fato de pertencer a uma família importante
(o seu avô materno era alto comerciante em Macaíba; o sangue negro lhe viera do
pai, espécie de administrador da fazenda do sogro) que, a partir dos pais e com a
atividade jornalística e política do primogênito Eloy de Souza, estabeleceu com a
oligarquia uma parceria definitiva. (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p.
13).

Depois da descrição da poetisa potiguar Auta de Souza, podemos perguntar: a quem e


para que serve essa memória histórica? Saber que a poetisa era feia e negra, além de tísica,
mas a seu favor tinha uma família de prestígio social, de acordo com a narrativa, em que
contribui para um processo de ensino e aprendizagem que busque o respeito e a tolerância?
Uma narrativa carregada de juízo de valor e preconceitos de cor e condição social, se não
utilizada enquanto uma narrativa história passível a desconstruções, críticas e reformulações,
pode levar ao entendimento de que o fato narrado constitui-se enquanto verdade histórica. Em
consequência, se for considerada como verdade inquestionável, pode haver um processo de
identificação (ou não) por parte do aluno de modo a produzir identidades consideradas
inferiores ou superiores, identidades intolerantes, sentimentos identitários de ojeriza, enfim,
identidades não razoáveis, nos termos de Cerri.
  138  

Contraditoriamente a narrativa de Auta de Souza, ao falar sobre a importância do


folclore, Deífilo Gurgel ponderou que se relaciona

assim, Folclore, identidade cultural e pessoal de um povo, com pluralidade e


diversidade cultural, de modo a contribuir com a ruptura de estereótipos e
discriminações socialmente construídas contra grupos sociais que tendem a formular
uma identidade inferiorizada, consequentemente comprometendo o exercício da
cidadania (GURGEL; VITORIANO; GURGEL, 2003, p. 82-83).

Ao colocarmos em questão a disciplina “Cultura do RN” e as narrativas mobilizadas


para o seu desenvolvimento em relação ao ensino de História, analisamos que existiu um
esforço no Projeto de desenvolvimento da disciplina e suas Diretrizes de entendê-la a partir
dos atuais parâmetros de ensino e aprendizagem, baseados em legislações como a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, PCN, DCN e os mais diversos textos legislativos no que
tange ao direito ao patrimônio e ao respeito à diversidade de culturas. Percebemos que, a
partir da citação acima e de outros trechos narrativos trabalhados anteriormente, em alguns
momentos, o livro Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte procurou em seu discurso
alinhar-se a esses parâmetros, no sentido de não conceber a cultura a partir de formas
inferiorizadas, estereotipadas ou intolerantes. Ao mesmo tempo, contudo, quando as
expressões e bens culturais do Estado foram narrados, predominantemente, conduziu-se a um
processo de naturalização e folclorização de uma ideia de cultura do Rio Grande do Norte.
Além de considerar que o “eu” norte-rio-grandense é diferente do “outro” no sentido de
exclusão e não no respeito e diálogo com as diferenças, chegando mesmo a entender aquilo
que vem de “fora” como “inimigo” da autenticidade cultural.
Compreender a cultura popular como pertencente a grupos humildes, ingênuos e
primitivos, como analisado no capítulo 02, pode conduzir ao entendimento que existem
grupos mais evoluídos e menos evoluídos; assim como atribuir à poetisa Auta de Souza
características a partir de termos inseridos em um contexto pejorativo (negra, mulher, feia e
tísica) pode conduzir a uma visão inferiorizada de determinados grupos sociais. Como
também atribuir ao “outro” o status de “inimigo”, entendendo que os elementos externos às
fronteiras do Estado resumem-se a um perigo de descaracterização do “eu” potiguar, pode
mobilizar sentimentos de intolerância. De tal forma que essa narrativa didática caminhou na
contramão das atuais concepções de aprendizagem histórica no ensino brasileiro capazes de
formar cidadãos críticos e tolerantes, se levarmos em consideração, por exemplo, alguns dos
parâmetros que o PNLD prescreveu como aceitáveis em uma obra didática:
  139  

no âmbito do PNLD, a avaliação dos livros didáticos baseia-se, portanto, na


premissa de que o livro deve auxiliar o professor na busca por caminhos possíveis
para sua prática pedagógica. [...] Dessa forma, os livros didáticos não podem, sob
hipótese alguma, veicular preconceitos, estar desatualizados em relação aos avanços
da teoria e prática pedagógicas, repetir padrões estereotipados ou conter informações
erradas, equivocadas ou superadas pelo desenvolvimento de cada área do
conhecimento [...]. Devem, ao contrário, favorecer o diálogo, o respeito e a
convivência, possibilitando a alunos e professores o acesso a informações corretas e
necessárias ao crescimento pessoal, intelectual e social dos atores envolvidos no
processo educativo (BRASIL, 2007, p. 32).

Entendemos que o projeto identitário, que se intencionou promover com base no


projeto de desenvolvimento da disciplina “Cultura do RN”, tem diversas possibilidades de
usos, levando-se em consideração a apropriação que os sujeitos escolares fazem das
experiências históricas a partir de suas realidades. Entretanto, compreendemos também que as
narrativas do livro Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte, sobretudo, impôs
limitações ao entendimento da historicidade dos acontecimentos e elementos históricos, tendo
em conta que foram apresentadas à luz de perspectivas deterministas aliadas à ideia de
“verdades absolutas”. Nesse cenário, este projeto identitário, potencialmente, parece não
promover um diálogo entre os diferentes sujeitos sociais e tempos históricos. Na realidade, a
partir de uma concepção naturalizada de cultura, a falta de diálogo entre os multirreferencias
culturais e o retorno e ênfase ao legado historiográfico do IHGRN ligado a antigas
concepções de História, a disciplina “Cultura do RN” parece que foi pensada, pelo menos
conforme o livro em questão, sob uma ótica de recusa às novas perspectivas do conhecimento
histórico e sua mobilização em relação a um processo de ensino e aprendizagem escolar.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
  140  

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme explicitado na introdução e no decorrer deste trabalho, entendemos que o


desenvolvimento da disciplina “Cultura do RN”, a partir do ano de 2007, deu-se em relação
aos pressupostos de ensino e aprendizagem de História. Enquanto componente curricular, o
ensino da disciplina de cultura foi mobilizado de forma a ocupar parte da carga horária da
disciplina de História, e ministrado, na maioria dos casos, também pelo professor da área.
Este deslocamento do ensino de cultura para a disciplina de História foi entendido
como uma inclinação da concepção histórica de conceber os elementos culturais e identitários
de determinada comunidade como questões para serem trabalhadas na disciplina de História,
uma vez que, dentre as diversas funções sociais que ocupou no passar do tempo no Brasil, a
difusão e consolidação das identidades no tempo foram direcionadas ao ensino de História.
Inclusive, tal função social é explicitada em diferentes documentos oficiais que versam sobre
as questões do ensino de História, como, por exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN).
Vimos que no ano de 201447 a estrutura curricular do Estado do Rio Grande do Norte
sofreu algumas alterações, em decorrência, sobretudo, da efetivação no estado da Lei no
11.738/2008 ou também conhecida por Lei do Piso do Magistério, que, entre outras
prescrições, estabeleceu que a carga horária docente em sala de aula era de 2/3, sendo 1/3
reservado para atividades extraclasses. Assim, a Secretaria de Estado da Educação e da
Cultura, através da Coordenadoria de Desenvolvimento Escolar e da Subcoordenadora de
Ensino Fundamental, reorganizaram a estrutura curricular do Ensino Fundamental de forma a
sofrer uma espécie de “enxugamento” do seu currículo, uma vez que a carga horária do
professor, antes totalmente utilizada em sala de aula, foi reduzida para cumprir o que previa a
referida lei. Neste processo, a disciplina “Cultura do RN” não mais fazia parte da grade
curricular, cabendo à escola desenvolvê-la como conteúdo nas aulas de História do Brasil,
preferencialmente nos 6º e 7º anos.
Em relação a essa alteração curricular ocorrida em 2014, a partir das discussões que
promovemos sobre o deslocamento da disciplina “Cultura do RN” para o ensino de História,
podemos entendê-la como a consolidação da institucionalização da “Cultura do RN” no
ensino de História, apesar de pensada originalmente como conteúdo interdisciplinar. Embora
teoricamente e oficialmente, a partir do projeto de desenvolvimento da disciplina “Cultura do
                                                                                                               
47
Como já referenciado no capítulo 02, as estruturas curriculares de 2015 ainda não foram estabelecidas
oficialmente.
  141  

RN” criado em 2007, este componente curricular tenha sido proposto como uma disciplina
diferente do que seja a de História, na prática seu desenvolvimento se deu, e está se dando, no
ensino de História.
Incluir um tópico referente à cultura demonstrou avanços em relação ao ensino de
História, pois diferencia-se das perspectivas conservadoras e tradicionais de história do
passado para a qual só admitiam-se narrativas que versassem sobre política e/ou economia.
Dessa forma, a “Cultura do RN”, seja enquanto disciplina ou conteúdo, funcionou como
resposta a demandas colocadas socialmente de maneira a conceber o ensino regular de
História a partir de uma funcionalidade prática que venha a acolher questões contemporâneas,
como os litígios pertinentes aos problemas culturais.
Ainda sobre a mobilização do currículo através de tópicos culturais, como ocorreu no
Rio Grande do Norte, podemos entender tal projeto curricular como uma maneira de perceber
a escola enquanto um constructo social, como discutimos no capítulo 01 deste trabalho. As
diferentes instituições e sujeitos fazem com que a escola extrapole suas dimensões físicas para
assumir signos e significados decorrentes das diversas relações sociais que nela se processam.
Alunos, professores, pais, diretores, movimentos sociais, Estado e outros setores da sociedade,
em geral, voltam-se para a escola em busca de respostas para suas carências de orientação no
tempo (RÜSEN, 2010).
Verificamos também que essas demandas direcionadas à escola não estão ligadas
apenas às questões didático-pedagógicas das diversas áreas de conhecimento no processo de
ensino e aprendizagem escolar. No caso do ensino de História, discutido neste trabalho,
examinamos que assuntos referentes à cultura, ao patrimônio, ao folclore, à tradição, às
relações de poder e à dominação são direcionados aos pressupostos da Ciência da História e
extrapolam as questões didático-pedagógicas. Dessa forma, entendendo que cada área de
conhecimento deve utilizar de seus pressupostos científicos para desenvolver as questões do
ensino, logo, sendo a escola mais do que um espaço direcionado apenas às questões da
Pedagogia.
O projeto de desenvolvimento da disciplina “Cultura do RN” nos conduz exatamente
para este caminho, uma vez que entender as relações sociais que estão inseridas no referido
planejamento foi possível através dos pressupostos da Ciência da História, não restringindo-se,
assim, ao caráter pedagógico da disciplina. Não que este não deva ser considerado e debatido,
contudo, se não houver um direcionamento específico das questões referentes a cada área de
conhecimento, compromete-se a possibilidade de identificar a complexidade dos sistemas
simbólicos que formam o espaço e, em consequência, o ensino escolar.
  142  

Atentando-se para questões que ultrapassam a escola enquanto dimensão de aplicação


de instrumentos e teorias pedagógicas, conseguimos observar como a instituição escolar
configura-se a partir da perspectiva de espaço social (BOURDIEU, 1998), na qual lutas e
disputas sociais são travadas cotidianamente. Neste cenário, pode haver um investimento
intenso de grupos de poder que buscam produzir determinadas concepções da realidade,
através da estruturação de elementos simbólicos que estarão presentes nas disposições físicas,
organizacionais e curriculares do ensino regular.
No caso do objeto de pesquisa desse trabalho, analisamos como o currículo –
potencialmente promovido pelo livro Introdução à Cultura do Rio grande do Norte – da
disciplina “Cultura do RN”, inserida no ensino de História, pautou-se por uma concepção
folclorizante e tradicional das expressões culturais referentes ao Estado do Rio Grande do
Norte. Na busca por elementos culturais, que definissem um “ser potiguar”, recorreu-se ao
folclore como elemento que “prende” e “localiza” os sistemas tradicionais da comunidade
norte-rio-grandense. Dito de outra forma, as expressões culturais passadas foram mobilizadas
no livro Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte como formas inalteradas e intactas à
ação do tempo. O folclore e a tradição, neste cenário, foram tomados como os instrumentos
“chaves” para um “resgate” da cultura do estado, por vezes, injustamente, não “reconhecidas”
pelos norte-rio-grandenses, de acordo com a concepção dos autores do livro em questão.
As narrativas do livro produzido por Tarcísio Gurgel, Vicente Vitoriano e Deífilo
Gurgel assumiram, preponderantemente, um sentido tradicional (RÜSEN, 2010c), havendo
um direcionamento no agir do indivíduo de maneira a retornar a processos considerados
originários, a fim de reconhecer e reafirmar as expressões passadas que resistiram às
vicissitudes do tempo. Essa busca pelo passado, a partir de tons nostálgicos assumidos pelos
autores do livro, revelou que o desenvolvimento da disciplina “Cultura do RN”, na forma
como foi pensado, serviu a um grupo social que é apegado a um projeto ideológico antigo
cujas origens revelam seus vínculos oligárquicos. Estes que, em grande medida, contribuem
para manutenção das relações de desigualdade social, uma vez que as relações paternalistas,
que favorecem alguns poucos, não coadunam com o princípio da isonomia, responsável pelo
direito a igualdade entre todos na democracia liberal em que vivemos.
Tal projeto se operou a partir do processo que chamamos de monumentalização do
folclore, apresentando em seus motivos símbolos que dizem respeito a uma elite intelectual
potiguar que construiu, ao longo do século XX, fortes laços com as oligarquias locais. Desse
modo, quando buscaram para o desenvolvimento da disciplina “Cultura do RN” elementos
  143  

ditos patrimoniais, folclórico e da cultura popular, foram estes perspectivados a partir de


signos e significados pertencentes a uma elite local.
Os produtores do livro, considerados intelectuais consagrados em relação aos assuntos
culturais do Estado, atuaram de forma a construir um sistema simbólico capaz de remeter à
herança cultural e histórica das oligarquias locais. E foi através da monumentalização do
folclore que tal projeto se fez possível, haja vista que a ideia de monumento remete a um
elemento de resistência ao tempo (CANCLINI, 2008). Dessa maneira, “velhas” ideologias
podem ser atualizadas de modo a estabelecer uma manutenção de poder.
Este processo, contudo, se deu de forma silenciosa, haja vista que aquilo que se
estabeleceu como integrante de uma cultura norte-rio-grandense partiu de uma ideia de
consenso social. Isto é, quando da construção das narrativas do livro distribuído para
disciplina, pareceu existir uma definição já bem estruturada do que seria a cultura potiguar
como também de sua identidade. É neste momento que se estabelece o consenso que o poder
age silenciosamente ou, nos termos de Bourdieu, a violência simbólica atua de maneira que
determinados grupos impõem-se, ao mesmo tempo em que se distinguem de outros grupos
sociais.
Faz-se interessante perceber também o papel que o Instituto Histórico e Geográfico do
Rio Grande do Norte/IHGRN desempenhou neste processo. O livro foi produzido por
intelectuais ligados à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, não sendo esta a
instituição tomada enquanto produtora de conhecimento científico relativo à cultura e
identidade local. As narrativas do livro de Tarcísio Gurgel, Vicente Vitoriano e Deífilo
Gurgel, recorrentemente, remeteram-se ao IHGRN para definir e difundir uma concepção de
cultura do Estado.
Houve um deslocamento das questões identitárias do IHGRN para a UFRN, uma vez
que os especialistas da cultura responsáveis por produzir um livro, que posteriormente foi
distribuído nas escolas da rede pública do estado, tinham vínculos empregatícios com a
Universidade. Porém, a construção das narrativas da obra desses autores foi pautada por uma
herança historiográfica do IHGRN, sobretudo na evocação dos trabalhos de Luís da Câmara
Cascudo. Em outras palavras, podemos dizer que a UFRN deu continuidade à tradição
narrativa do IHGRN.
O reforço que o legado do referido Instituto recebeu nas narrativas didáticas
desenvolvidas na disciplina “Cultura do RN” fortalece “velhas” práticas históricas que
correspondem a poderes políticos oligárquicos no Rio Grande do Norte. Assim, o
planejamento de desenvolvimento da disciplina mostrou uma interiorização discursiva, pelos
  144  

autores do livro e do Projeto e Diretrizes da disciplina, do projeto histórico das elites


potiguares.
Ainda que a UFRN tenha sido pautada como um “novo” espaço responsável pelo
diálogo das questões culturais e identitárias do Estado, levando-se em consideração o elo que
os autores do livro possuíam com a instituição, em momento algum das narrativas produzidas
para a disciplina “Cultura do RN”, a Universidade Federal foi indicada ou enaltecida como
centro de produção de conhecimento histórico. A recusa “silenciosa” da historiografia e
didática produzida na academia universitária pode ser considerada também como uma recusa
de novas perspectivas no conhecimento histórico.   Ou seja, marca-se um lugar de poder no
qual, embora a UFRN forme os professores de História, quem diz o que será ensinado são os
herdeiros ideológicos das oligarquias locais encarnados na historiografia produzida pelo
IHGRN.
Em relação ao ensino de História, percebemos que esse processo de definição de uma
cultura local, a partir de uma herança do IHGRN, foi tomado em conformidade com uma
perspectiva naturalizada, com isso, limitando o diálogo entre os agentes escolares de forma a
perceber as distintas relações de poder que atuam na produção do conhecimento. Assim, o
“pensar historicamente”, pressuposto central do ensino de História, foi prejudicado, tendo em
vista que uma das condições para que esse pressuposto se efetive é considerar a diferença
entre experiências históricas e produção do conhecimento histórico.
Quando a história é entendida à luz de uma noção de “verdade absoluta”, compromete-
se o processo de ensino e aprendizagem no qual os alunos adquirem autonomia para criticar e
refletir sobre a produção do conhecimento histórico e as diversas relações sociais nela
envolvida. Diante disso, as ideologias de grupo atuam de forma eficaz no sentido de tentar
conformar determinada realidade histórica.
De tal modo que, mesmo um tópico sobre a cultura representar um avanço nas
concepções de ensino e aprendizagem de História, a forma assumida pelas narrativas da
disciplina revelam visões tradicionais da História que servem a interesses de grupos, no caso
desta pesquisa, a um legado oligárquico norte-rio-grandense.
Compreendemos então que, apesar do projeto de desenvolvimento da disciplina
“Cultura do RN” apresentar vários documentos que norteiem o ensino escolar, no geral, e o de
História em específico, de acordo com novas concepções e parâmetros do que se espera do
ensino regular (LDB, PCN, DCN), como também de indicar legislações alinhadas a novas
demandas sociais (no que tange à preservação do patrimônio e ao direito e diversidade
  145  

cultural), a ampla distribuição de um livro produzido, sobretudo, a partir de narrativas do tipo


tradicional remete a concepções antigas do conhecimento histórico.
Assim sendo, essa obra, mesmo não possuindo o caráter oficial de livro didático, pode
ser caracterizada como um limitador do ensino e aprendizagem em História. A escola, nesse
sentido e de maneira mais ampla, pode contribuir para reproduzir determinados sistemas
simbólicos. Não que estejamos tomando-a como um espaço reprodutivista, haja vista que
compreendemos neste trabalho que o espaço escolar e o ensino em sala de aula têm formas
diversas de atuação que não estão restritas ao material didático veiculado em sala de aula.
Entrementes, considerando-se a ausência de um currículo e as dificuldades de outros materiais
que possam possibilitar o desenvolvimento da ideia de uma “Cultura do RN”, o livro
Introdução à Cultura do Rio Grande do Norte, potencialmente, a partir de análises realizadas
nesta pesquisa, pode limitar as perspectivas atuais do que se espera de um processo de ensino
e aprendizagem de História que leve os agentes escolares a pensarem historicamente para
situar-se da melhor forma no tempo e espaço da realidade que vivem.
Numa época em que se espera que o ensino escolar conduza os sujeitos a um agir
autônomo, crítico e reflexivo, verificamos que grupos sociais ainda utilizam-se do espaço
escolar, especialmente através do conhecimento histórico, para empreender projetos e
instrumentos de dominação que dizem respeito a seus interesses. Compreendendo, portanto,
que a institucionalização da disciplina da forma como foi pensada, embora campo de disputas,
insere-se no interesse de determinada intelectualidade norte-rio-grandense.  

 
 
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