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PABLO PEUSNER

SOBRE A FUNÇÃO-SECRETÁRIO
NA CLÍNICA PSICANALÍTICA
COM CRIANÇAS SUJEITAS À HOLÓFRASE

Conferência proferida na Pontifícia Universidade Católica


de São Paulo, Brasil, 11 de março de 2016

Tradução de María Claudia Formigoni

Irei apresentar-lhes uma pesquisa que iniciei há pouco tempo e que surgiu como
conseqüência necessária de meu trabalho com crianças sujeitas à holófrase. Digo que foi
uma conseqüência necessária porque, após esclarecer as diferenças entre o sujeito dividido
pelo significante e o sujeito monolítico da holófrase1, surgiu a pergunta sobre como intervir
com as crianças que respondiam à organização holofrástica, sobre como se situar
analiticamente frente a tais posições subjetivas.

Lacan e a figura do secretário do alienado

Para tentar responder minha pergunta, uma das primeiras figuras que retomei foi
aquela que Lacan propôs em seu seminário sobre As psicoses: o secretário do alienado – é
esse o título da aula XVI do seminário. Trata-se de um significante bastante conhecido,
muito repetido e divulgado, mas pouco trabalhado em profundidade. Creio que revisá-lo e
interrogá-lo para ver até onde pode nos levar é uma proposta muito rica, considerando suas
possíveis contribuições clínicas.
Na referida aula do seminário 3, proferida em 25/04/1956, Lacan introduz, logo no
início, a figura do secretário. Diz algumas coisas, mas não desenvolve extensamente a
idéia. Como em muitas ocasiões, para falar sobre o assunto, Lacan discute com alguém,
mas sem nos dizer com quem. É um modo de construção teórica muito habitual em seu
ensino: apresentar sua posição contrária à de algum outro autor. Nessa aula que estou
comentando, a outra posição é indicada por um advérbio que introduz uma afirmação

1 PEUSNER, P. Fugir para adiante. O desejo do analista que não retrocede ante as crianças. São Paulo:
Agente Publicações, 2016, Capítulo IV – Holófrase.
claramente irônica: “Vamos aparentemente nos contentar em passar por secretários do
alienado. Empregam habitualmente essa expressão para censurar a impotência dos seus
alienistas”2. Trata-se de um problema que vem da psiquiatria: o termo “alienistas” assim o
indica. Ao que parece, a figura do secretário, adotada pelos psiquiatras, não representa mais
do que sua própria impotência ante o doente.
Mas, afinal, com quem discute Lacan? Era alguma idéia – digamos – popular entre
os psiquiatras, uma idéia que circulava nos corredores dos hospitais naquela época? Ou
responde a alguma teorização particular de algum alienista clássico? Para responder a essa
pergunta, é preciso reconsiderar o contexto de formação de Lacan, o de sua formação como
psiquiatra. A partir disso, a resposta chega rapidamente. Proponho, assim, que a frase de
Lacan seja lida em contraposição a este parágrafo que traduzo:

Se querem descobrir os estados gerais sobre os quais germinam e se


desenvolvem as ideias delirantes, se querem conhecer as tendências, as
direções da mente e as disposições dos sentimentos que são a fonte de todas
as manifestações, não reduzam vosso dever de observador ao papel passivo
de secretário dos doentes, de estenógrafo de suas palavras ou de narrador de
suas ações. Convençam-se de que se não intervêm ativamente, se de certo
modo fazem suas anotações a partir do que lhes ditam os alienados,
encontrarão desfigurado todo o estado interior dessas enfermidades ao
passar pelo prisma de suas ilusões e de seu delírio.

A citação é de Jean-Pierre Falret e foi retirada de seu livro Sobre as doenças


mentais e os asilos de alienados. Lições clínicas e considerações gerais3, publicado em
Paris por J-B. Baillère editor, em 1864. O parágrafo citado está no terceiro capítulo,
intitulado “Sintomatologia geral das doenças mentais”, página 123.
Falret (1794-1870) foi um respeitado psiquiatra que trabalhou com Pinel e Esquirol
e, em 1831, ingressou como médico em Salpêtrière. Foi ele quem elaborou a primeira
descrição do que chamaria folie circulaire, loucura circular, antecedente do que hoje
conhecemos como bipolaridade. Em 1822, fundou em Vanves um hospital psiquiátrico e
trabalhou com Esquirol e Ferrus nos estudos preparatórios da lei francesa de 1838 sobre os
alienados. Como podem perceber, era um profissional importante, autor de vários livros
que davam conta de sua tarefa. Obviamente, Lacan, por sua formação em psiquiatria,
conhecia o trabalho desse homem. É provável que o público de seu seminário também, já
que, naquela época, o proferia na capela do hospital psiquiátrico e contava com a presença
de muitos psiquiatras.
O contexto da citação é, portanto, uma polêmica entre Falret e Lacan. Mas Lacan
responde 92 anos depois! Pode-se supor que a idéia de Falret continuava vigente em 1956,
que sua sentença se repetia no âmbito da psiquiatria e era considerada uma indicação
clínica sobre como se portar ante um paciente alienado – psicótico, no contexto lacaniano;
holofraseado, no nosso.

2 LACAN, J. (1955-56) O seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p.235.
(itálico meu)
3 Por se tratar de uma obra cujos direitos são atualmente de domínio público, o livro está disponível no
Google Books. O leitor interessado poderá encontrá-lo sob o título original: Des maladies mentales et des
asiles d’aliénés.
Pois bem, creio que o problema está em como considerar a posição do secretário:
trata-se realmente de uma função passiva, a ponto de Falret desaconselhá-la em prol de
uma posição ativa ante o alienado? O posicionamento de Lacan é exatamente o contrário, e
inclui uma crítica ao modo de trabalho dos primeiros alienistas. Cito-o:

Pois bem, não só nos passaremos por seus secretários, mas tomaremos ao
pé da letra o que ele nos conta – o que até aqui foi considerado como coisa
a ser evitada. Não é por não ter estado longe o bastante na sua escuta do
alienado, que os grandes observadores que fizeram as primeiras
classificações tornaram sem vigor o material que lhes era oferecido? - a tal
4
ponto que lhes pareceu problemático e fragmentário .

A citação tem o tom categórico que Lacan por vezes utiliza. Nela, afirma que o
analista deve operar como o secretário, mas não só isso: deve também tomar o relato do
doente, seu testemunho, ao pé da letra. A construção da frase deixa bem claro que se trata
de duas operações diferentes. Notei ser usual alguns comentadores terem feito ambas idéias
equivalerem. Considero que para Lacan nenhuma das duas funções supõe uma posição
passiva. Além disso, aparece ali sugerida uma diferença entre “a escuta” e “a observação” –
nós costumamos diferenciar a clínica do olhar e a clínica da palavra (que se escuta) – que
imputa à observação o rebaixamento do material em questão.
Sabemos que, ao longo de seu ensino, Lacan considerou a posição do analista uma
posição de muita atividade: as noções de desejo do analista ou de ato analítico estão aí para
testemunhar isso. Inclusive, quando falou da “posição do morto”, referia-se a uma função
particular no jogo de bridge e que, de modo algum, supõe passividade (o jogador que é “o
morto” pode indicar a outro jogador a possibilidade de que esteja infringindo alguma das
regras do jogo, por exemplo, que não jogue as cartas de paus quando poderia fazê-lo).
Então, nessas primeiras palavras do seminário, por meio de sua resposta a Falret, Lacan
estabelece duas funções distintas – a função do secretário e a função de quem toma o relato
ao pé da letra –, negando que ambas deixem o analista em posição passiva em relação a seu
paciente.
Há algo mais nessa aula de 25/04/1956. Logo após fazer referência a uma
apresentação de pacientes que ocorrera alguns dias antes, Lacan reivindica que “é preciso
começar por tomar as coisas em seu equilíbrio, e esse equilíbrio se situa ao nível do
fenômeno significante-significado”5. Pois bem, sabemos que nas psicoses esse dito
equilíbrio está em questão – também o sabiam aqueles que assistiam ao seminário, pois
Lacan já havia trabalho isso ao longo das quinze aulas anteriores. Nós partimos da idéia de
que, no lugar desse equilíbrio, está a holófrase.
Pouco depois, Lacan faz uma sugestão curiosa:

Não seria exagerado sugerir aos psicólogos e médicos que recorram ao que
deve ser assim mesmo acessível à experiência do homem comum. Eu

4 LACAN, J. (1955-56) O seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p.235-
236.
5 Ibid., p.236.
proponho-lhes um exercício. Reflitam um pouquinho sobre o que é a
leitura6.

A sugestão não é ingênua. O leitor não é passivo – Freud foi leitor de Schreber,
assim como Lacan de Freud. A leitura não supõe passividade, pelo contrário (alguns anos
depois dessa proposta lacaniana, em 1979, Umberto Eco publicava seu Lector in fabula7,
em que propunha a cooperação interpretativa entre o autor e o leitor). Mas o que lê um
analista no texto de seu analisante? Nós, analistas, consideramos o dizer um texto. Creio
que Lacan o assinala, duas vezes, nos parágrafos seguintes:

O sujeito dá testemunho efetivamente de uma certa virada na relação com a


linguagem (…) Sua maneira de sofrer em seu conjunto o fenômeno do
discurso (…).
Metodologicamente, estamos, portanto, no direito de aceitar o testemunho
do alienado em sua posição em relação à linguagem, e devemos tê-lo em
conta na análise de conjunto das relações do sujeito com a linguagem8.

Eis a chave de leitura que, a meu ver, propõe Lacan: não se trata tanto do quanto
possam estar perturbadas as relações do sujeito com o mundo que o rodeia, mas, sim, de
sua posição em relação à linguagem. Dou aqui, então, um salto lógico para propor que,
primeiro, é preciso avaliar se a relação com a linguagem o divide ou não enquanto sujeito,
ou seja, se responde à estrutura do sujeito dividido pelo significante ou se é um sujeito
monolítico, organizado pela holófrase.
Não vou trabalhar muito extensamente o convite de Lacan para tomar o relato do
analisante ao pé da letra porque é uma indicação que também vale para o trabalho com
analisantes neuróticos (as notas originais de Freud relativas ao caso do Homem dos ratos
assim o comprovam9). O caso Aimée, sobre o qual Lacan elaborou sua tese de medicina10,
poderia funcionar como exemplo mais próximo de nosso tema. Não obstante, é preciso
dizer que tomar o texto ao pé da letra – Falret nomeava essa função “estenógrafo” dos
doentes – implica introduzir a lógica do significante e o que essa esclarece sobre a
ortografia. Anos depois, em 1977, Lacan o apresentava da seguinte maneira:

O analista corta. O que ele diz é corte, isto é, participa da escrita, na medida
em que equivoca sobre a ortografia. Ele escreve de um modo diferente, de
maneira que, pela graça da ortografia, soa outra coisa que o que é dito com
a intenção de dizer, isto é, conscientemente (…) É por isso que digo que

6 Ibid., loc. cit.


7 ECO, U. (1979) Lector in fabula. Perspectiva: São Paulo, 2011.

8 LACAN, J. (1955-56) O seminário, livro 3: as psicoses. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1988, p.237-
238. (itálico meu)
9 FREUD, S. (1909) Addendum: Registro original do caso. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
Imago, 2006, vol. X, p.217-273.
10 LACAN, J. (1932) Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade. Tradução Aluísio
Mendes, Marco Antonio Coutinho Jorge, Potiguara Mendes da Silveira Jr. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2011.
nem no que diz o analisante, nem no que diz o analista, há outra coisa senão
escrita11.

Essa citação é muito interessante porque propõe a análise como um assunto de


escrita-leitura. Por esse viés, podemos tentar clarear a noção de secretário que está implícita
na proposta de Lacan.

A função-secretário: origem filológica e histórica do termo

O que é um secretário?
Vocês, com certeza, consideraram o termo em sua acepção contemporânea, já que,
hoje em dia, a figura existe e a temos incorporada à nossa vida cotidiana. Trata-se de uma
pessoa contratada por outra (ou por uma instituição) com o objetivo de prestar serviços de
assistência, administração, comunicação etc. É claro que essa é uma definição muito
genérica, quase intuitiva do que compreendemos quando, atualmente, se fala de um
secretário. É válido acrescentar que existem secretários de diversas categorias: não é o
mesmo uma secretária executiva de um empresário que um secretário de estado, apesar de
haver funções exercidas por ambos. Também sabemos que, com frequência, um(a)
secretário(a) se encarrega de funções pessoais de seu chefe, dado que é uma relação que –
se bem hierarquizada – exige certa confiança. Tendemos a pensar que, no âmbito dessa
relação, a função faz os secretários depositários dos segredos de seu empregador, daquilo
que ocorre em sua agenda e, até mesmo, responsáveis por filtrar os contatos que podem
acessá-lo. Além disso, certamente, o secretário (ou a secretária) tem, até certo ponto, um
poder de decisão, delegado por seu chefe.
Mas, é a essa figura, a do secretário contemporâneo, à qual se referia Lacan em
1956? Não vamos responder muito rápido. Façamos um breve percurso pela história do
termo e seu uso até o presente.
Inicialmente, é preciso dizer que a palavra “secretário” advém da esfera semântica
do termo “secreto”. Em todas as línguas romanas, o termo provém do latim secretus (é bem
claro), adjetivo que significa separado, à parte, particular, especial, distinto, excluído,
solitário, isolado, alheio, oculto e secreto. Penso ser evidente que, nesse campo semântico,
mais além dos termos em questão, está presente a idéia de que o secreto sempre é secreto
em relação a outra coisa que não o é. Ou seja, supõe uma lógica binária, definindo sua
condição quanto a outro termo. Se falamos, por exemplo, de algo “separado” é porque tal
elemento se distancia de um grupo de coisas que se apresentam juntas – isso também ocorre
com o termo “à parte”. O particular se diferencia do geral, o especial do comum, o oculto
do manifesto... Em síntese, todos os termos que compõem esse campo semântico se
comportam da mesma forma.
Se ampliamos um pouco mais essa análise em língua latina, vemos que o adjetivo
secretus é particípio passado do verbo secernere, que quer dizer separar, colocar à parte e,
em sentido figurado, distinguir, eliminar, recusar. A raiz cernere significa “passar pela
peneira, filtrar”. Mantém-se então a mesma lógica, pois, inclusive na ação de peneirar ou

11 LACAN, J. Seminário 25: O momento de concluir. Aula de 20 de dezembro de 1977 (inédito). [Tradução
pessoal a partir da estenografia]

filtrar, algo passa e algo fica retido. São termos que evocam, indubitavelmente, a lógica do
significante.
Resumo o ponto seguinte com uma pergunta: onde e quando surgiu a função do
secretário na cultura ocidental? Encontrei um trabalho histórico, assinado por Mireille
Blanc-Sanchez, muito interessante sobre esse assunto. Trata-se do texto A palavra
confiscada. O secretário na Itália dos séculos XVI e XVII, publicado na revista Litoral
25/26 de maio de 1998 (número duplo, também intitulado A função secretário).
Contrariamente àquilo que se poderia supor, não existia em Roma nenhuma palavra que
correspondesse ao termo “secretário”. É uma criação das línguas romanas. Contudo, no
texto em questão, Blanc-Sanchez refere-se a uma figura romana descrita por Tácito, em
Vida de Júlio Agrícola, denominada libertus ex secretioribus ministerii: “liberto empregado
em assuntos confidenciais”. Um cidadão romano, patrício, libertava um escravo para que
trabalhasse a seu serviço, ficando encarregado de assuntos confidenciais – isso, em Roma,
era o que mais se parecia a um secretário. O motivo dessa libertação estava relacionado a
questões afetivas ou mais práticas, já que o amo podia cobrar do escravo, mediante
trabalho, sua libertação. O amo passava a ser, assim, seu patrão. O liberto pegava o nome
de seu antigo amo e, além das limitações sociais às quais estava submetido (não podia, por
exemplo, abandonar a província onde nascera), seus filhos nasceriam como homens livres.
A relação hierárquica se mantinha e nela se sustentava a estrutura dual da relação: o liberto
empregado em assuntos confidenciais era sempre empregado de alguém. A função não
tinha sentido se não fosse exercida em prol de algum outro. É claro que se tratava de uma
relação potencialmente perigosa, pois o liberto conhecia muitos dos segredos de seu
patrono e isso o colocava em indubitável risco.
Gostaria de fazer um esclarecimento: o amo que está em jogo nessa figura... é um
amo12 de verdade! O que está presente aqui é aquilo que Lacan introduziu em seu discurso
do mestre sob a forma do mestre antigo, a fim de instalar uma relação social particular que
escreveu, no patamar superior de seu discurso, S1→S2. Sabemos do enorme poder que tinha
um patrício romano, um pater, inclusive sobre a vida e a morte em sua própria família.
Todas as figuras do secretário, incluindo as que veremos adiante (muito mais
tardias), estão articuladas a um amo que não se divide – sugiro que essa idéia seja retida,
pois é uma das chaves da função-secretário no que se refere aos sujeitos holofraseados na
psicanálise lacaniana.
Um exemplo habitual dado por alguns historiadores, relativo a uma época mais
tardia do que a romana, serve para imaginarizar a posição do amo: suponham uma corte do
século XVI, na qual o jardineiro está fazendo seu trabalho e encontra o Príncipe. Esse o
cumprimenta com um “Bom dia, General”. A partir desse momento, o jardineiro se torna
General! Por quê? Porque o amo não erra, não se divide... Em sua posição enunciativa não
há desproporção entre o que quis dizer e o que disse. Ambas dimensões fazem Um.
Encontro aqui um ponto de correlação entre a figura do amo antigo (que Lacan
escrevia como um S1) e o sujeito monolítico que nos interessa, perante o qual se
desenvolverá a função do analista-secretário. Não me chama a atenção que a função do

12 [NT] Optou-se por manter a palavra “amo” no intuito de preservar seu significado: patrão, senhor, aquele
que dá ordens; forma de tratamento usada pelos vassalos quando se dirigiam ao rei.
A tradução de “amo” para “mestre” - como ocorre nas edições brasileiras de Lacan – faz com esse sentido
se perca, já que, em português, “mestre” faz alusão a alguém que ensina, que tem muito saber e
competência, mentor.
secretário, que tem sua origem em um escravo (S2) liberto e é uma figura do Dois (lembrem
a revisão que fizemos do campo semântico no qual surge o termo), esteja articulada à
função do amo, que é um Um. Portanto, o que permite articular a figura do secretário dessa
época com o secretário do qual fala Lacan é, justamente, que o secretário tem por função
assumir um S2 em relação a alguém que se apresenta como um S1.
Dos libertos romanos empregados em assuntos confidenciais, sabemos pouco.
Todas as fontes remetem a Agrícola, de Tácito. Porém, a partir do século XVI, a figura do
secretário se converteu em um personagem político importantíssimo, a tal ponto que os
próprios secretários começaram a teorizar e a falar sobre seu fazer.
O secretário mais importante, mais conhecido e mencionado foi Nicolau Maquiavel,
que prestou serviço ao Príncipe de Firenze – Lorenzo, o Magnífico ou Lorenzo de Médici –
entre 1498 e 1512. Penso ser conveniente deixar de lado os preconceitos que falar de
Maquiavel implica, já que o saber popular o associa a uma espécie de homem malvado e
astucioso. Tenho a impressão de que esse foi o preço pago por Maquiavel por sustentar
certa posição em que fazia prevalecer a razão do Estado sobre qualquer outra de ordem
moral. Seria preciso estudá-lo em seu contexto para compreendê-lo melhor – algo que me
excede, já que não sou historiador. De qualquer maneira, interessa-me aqui considerar a
relação que Maquiavel estabeleceu com o Príncipe para o qual esteve a serviço. A melhor
via para isso é pesquisar os procedimentos de escrita que constituíam a função.
O secretário, entre outras coisas, escrevia a correspondência do Príncipe e deveria
deixar passar a idéias da majestade, mas dando espaço à razão do Estado. Era uma tarefa
complexa, a qual veremos tendo por base um livro muito importante cujo título é,
justamente, O príncipe (datado em 1513). Não se trata de uma bibliografia muito visitada
pelos analistas lacanianos, mas minha experiência de leitura foi muito rica porque
contribuiu para me aproximar um pouco da função do secretário.
Chamou-me bastante a atenção, já desde os títulos de cada capítulo, o modo como
Maquiavel propõe que a posição do sujeito (seu amo, o Príncipe) seja uma posição dividida
– expresso-me assim, fazendo uso de certo clichê, para que se possa entender melhor. Há
um capítulo, por exemplo, o XVIII, intitulado “De que modo os príncipes devem manter a
fé da palavra dada”. É notável aí um chamado à retificação da posição do príncipe. Se esse
propõe um pacto e, em seguida, o rompe com uma ação militar... qual seria o problema?
Não se pode acusar essa figura de ter dito uma coisa e feito outra. O Príncipe não se
reconhece nessa hiância, ele é um Um. Entretanto, Maquiavel empurra à lógica do Dois: a
palavra e a ação, dois elementos que compõem a posição principesca, devem se articular.
São dois termos diferentes, mas cujos conteúdos devem ir na mesma direção. O secretário
traz à relação a estrutura do significante, ali onde há um sujeito que não está dividido.
Nesse ponto, um príncipe e um sujeito holofraseado funcionam de modo igual.
O capítulo XVII tem como título “Da crueldade e da piedade; se é melhor ser amado
que temido, ou antes temido que amado”. O que é melhor para o Príncipe? Ser amado ou
ser temido? Maquiavel faz nesse capítulo um percurso para ver o que é mais conveniente
em cada caso: quando é válido ser amado e quando é válido ser temido... É notável como
abre o jogo com essas coisas: em tais circunstâncias sim, em tais não... Rompe com todo
princípio único da posição e estabelece a posição de seu Príncipe sempre dividida em dois.
Com isso, introduz certa diáletica que aparece como lógica binária em uma figura
monolítica – a do amo ou Príncipe.
Mireille Blanc-Sanchez, a historiadora que citei anteriormente, resume a ética do
secretário com a fórmula “saber e calar”. Explica que...
(…) a escolha de dizer ou não dizer corresponde ao secretário, que é quem,
como o indica a etimologia, passa pela peneira as informações e decide se
as transmite ou não. Nesse terreno, o secretário é seu próprio amo: define
ele mesmo sua estratégia discursiva em função das circunstâncias13.

O fazer do secretário baseia-se todo nas estratégias do significante, incluindo a


possibilidade de cifrar mensagens, “em um jogo que se refere ao dizer; digo-lhe porque é
preciso que o senhor o saiba, mas nunca diga que eu lhe disse e o senhor saber”14. A
estratégia discursiva do secretário opera, sempre, em dois planos, seguindo a lógica do
campo semântico da palavra “secreto”.
Há outra importante característica na função. Trata-se do fato de que o erro de juízo
do secretário será atribuído a seu empregador, o Príncipe, já que o secretário nada mais é do
que “a língua de seus amos”15 a serviço de um bem supremo, o Estado.
Como no século XVI já não mais se tratava de um escravo liberto, e sim de um
empregado escolhido por sua perícia e capacidade, o secretário recebia um salário por sua
tarefa. Maquiavel, por exemplo, ganhava 100 florins ao ano; valor alto para a época, mas
proporcional ao nível de informação que manipulava e às tarefas que desempenhava:
examinava a correspondência, filtrava as notícias, escrevia as cartas oficiais, viajava como
correspondente etc. Entre o Príncipe e seu secretário não havia, portanto, uma relação de
cunho pessoal, mas absolutamente política e rentável.
Observem que são condições e características perfeitamente aplicáveis à relação
entre um analisante e seu analista. É curioso: haverá, além da relação entre um analisante e
seu analista, algum modo de vínculo tão estreito e de tanta confiança quanto o do secretário
e seu Príncipe no século XVI? Estou prestes a afirmar que o analista assumiu essa função...
mas é melhor deixar um pouco de lado essa idéia porque há ainda alguns outros aspectos a
serem trabalhados no que diz respeito à noção de secretário na segunda metade do século
XVI, já no âmbito do barroco.
Por sorte, temos um livro fundamental dessa época, publicado em espanhol pela
editora EL CUENCO DE PLATA, em 2005. Refiro-me à obra de Torquato Accetto, chamada A
dissimulação honesta (1641). Já no título, o secretário é apresentado como um dissimulador
honesto... Esse livro é uma preciosidade, inclui um estudo preliminar de Sebastián Torres,
os fac-símile da edição original e preserva o formato final dos capítulos que foram escritos
fazendo uso da technopaegnia (poesias breves cuja disposição dos versos forma figuras),
sob a forma de pirâmides invertidas. Sobre Torquato Accetto pouco se sabe: estão em
discussão tanto a data quanto o local de seu nascimento (1598 em Nápoles ou 1588 em
Trani, não há informações precisas a respeito). Apesar de suas motivações filosóficas, foi
por necessidade que trabalhou como secretário da família Caraza, na pequena província de
Andrea, na Itália, na segunda metade do século XVI.
A definição que Accetto oferece sobre a dissimulação pode ser um bom ponto de
partida: “A dissimulação é ação de não fazer ver as coisas como elas são”16. A arte do
secretário é fazer com que as verdades não apareçam a céu aberto... Nossa! Fiz uso da

13 BLANC-SANCHEZ, M. La palabra confiscada. El secretario en la Italia de los siglos XVI y XVI. In:
Litoral 25/26, La función secretario, Edelp, Córdoba, maio/1998, pp.17-18.
14 Ibid., p.18.
15 Ibid., p.19.
16 ACCETTO, T. (1641) La disimulación honesta. Buenos Aires: El Cuenco de Plata, 2005, p.109.
mesma expressão que Freud quando faz referência aos modos de aparição daquilo
inconsciente na psicose. A holófrase carece de plano de ocultamento, não conta com a
barreira da repressão, com a barra entre significantes, que determina os dois planos da
estrutura discursiva.
A função do secretário consiste em não permitir que as coisas sejam vistas tal como
o são, ou seja, não permitir que o amo se manifeste como um S1, mas transformar, no
momento de escrever documentos ou discursos, esse amo em um sujeito dividido.
Outra citação impactante: “Grandes desordens [podemos pensar a patologia mental
como “graves desordens”] ocorrem no mundo quando não se usa o recurso de ocultar as
coisas que não vale a pena deixar serem vistas”17. Poderíamos perguntar: Quais são as
coisas que se deve ocultar e que não vale a pena deixar que sejam vistas? O gozo? A
verdade da estrutura do sujeito humano falante como um Um-discreto-de-gozo? A lógica é
simples: se não se emprega o recurso de ocultar isso e se fica a céu aberto, graves desordens
acontecem no mundo. Sendo assim, a função do secretário é a de velar, contribuir com algo
para velar essas manifestações, habilitando outro lugar, o lugar do S2, ali onde se pode
relativizar ou dividir o assunto (o sujeito) em questão.
Accetto pensa como secretário sobre os afetos de seu Senhor18 (não estamos aqui
no campo dos denominados “afetos lacanianos”, mas verão que se trata de uma abordagem
muito psicanalítica). O secretário supõe que o afeto é inimigo da dissimulação e atenta
contra ela, já que deixa passar algo da posição subjetiva. Por isso, o secretário tem que
fazer com que o afeto de seu Senhor não apareça puro, e sim sempre dividido entre, ao
menos, duas posições. Se aparece, por exemplo, a ira contra o inimigo, deve-se apresentá-la
sempre acompanhada da preocupação e da angústia pela vida de seus soldados e familiares.
O capítulo XVI parece dirigido diretamente ao traço megalomaníaco que
compartilham Príncipes, Reis, Amos e sujeitos holofraseados: “Aquele que se tem em alta
conta, tem grande dificuldade para dissimular”19. Sabemos bem que os ditos problemas de
autoestima sempre se apresentam estruturados pelo significante, enquanto, ali onde reside a
holófrase, a megalomania é a regra.
Nessa época particular, o valor do secretário mudou um pouco. Esse já não era a
língua do príncipe, mas sua mão – trata-se agora da escrita e dos documentos. Aparece aí a
peculiaridade que, quando o secretário escreve “eu”, “eu” é outro (algo bem neurótico, por
outro lado, que aparece na confissão da impotência do neurótico para modificar seu estado,
quando confessa que parece ser um brinquedo do Outro). Não há nada mais louco do que
afirmar o “eu sou eu”.
Justamente por isso, o principal mérito de um secretário naquela época era passar
despercebido. Foi o que conseguiu Torquato Accetto, ninguém o conhece. Maquiavel, por
sua vez, tornou-se famoso. Pergunto-me: mais famoso até do que seu Príncipe? O secretário
não pode ser mais importante do que seu amo, menos ainda em um período em que já não
escreve aquilo que seu Senhor dita, mas o faz por sua conta.O secretário recebe instruções
do tipo “declaremos guerra contra a França em uma carta”, “escrevamos ao Papa para
dizer-lhe tal coisa” etc. A carta é escrita pelo secretário e tem oito páginas. Em seguida,
vem o príncipe, a assina, põe seu selo, mas não a lê...

17 Ibid., p.113.
18 v. ACETTO, T. (1641) La disimulación honesta. Buenos Aires: El Cuenco de Plata, 2005, Capítulo XV:
“La ira es enemiga de la disimulación”.
19 Ibid., p.137.
Sobre esse período, diz nossa historiadora:
Os secretários são pessoas de letras, êmulos de Cícero e Quintiliano, são
detentores do poder temível e temido de fazer triunfar as idéias por meio do
eficaz manejo da palavra (…) Os secretários também se esforçam para,
dessa maneira, tranqüilizar um poder que teria boas razões para se
inquietar20.

Apresentar o secretário como um homem de letras, competindo com os grandes


teóricos clássicos da retórica, como Cícero e Quintiliano, é associá-lo à estrutura do
significante. Além disso, a autora não deixa de introduzir a idéia do temível poder em jogo
na função, poder que inclusive chega a intervir sobre a posição do amo – tranquilizando-o
em suas expressões que logo serão documentadas. É curioso, mas me faz pensar no temor
que algumas pessoas têm em relação aos analistas: basta dizer que somos analistas para que
o interlocutor enuncie o medo de ser interpretado...
Todo o excesso, inclusive de gozo, que um amo possa tentar fazer aparecer em um
documento ou uma carta é suscetível de ser equilibrado pela intervenção retórica, em
palavras, do secretário. É uma dissimulação honesta, salvadora.

Atualidade da função-secretário em psicanálise

Bom, até aqui fizemos um resumo do percurso histórico. Chegados a este ponto,
poderíamos sintetizar minha hipótese afirmando que a função do secretário é a de introduzir
um S2. O aparecimento, ainda que transitório, da dimensão significante provoca seus já
conhecidos efeitos sobre o sujeito: o faz duvidar, ataca sua constância, organiza-lhe o
tempo e o espaço, o assujeita – ao menos um pouco – aos ordenamentos simbólicos
próprios dos discursos, enlaça-o de alguma maneira aos laços sociais, civiliza seus
fenômenos corporais, limita-o e pode reordenar seus fenômenos da linguagem. Em síntese,
é pacificadora.
Há algum tempo, vi no Facebook uma imagem muito divertida em que aparece
Sócrates com o seguinte texto: “Para falar a verdade, não entendo porcaria nenhuma. Tudo
isso é uma merda!”. Um suposto interlocutor lhe diz: “Mas, Sócrates, não podemos colocar
isso por escrito!”. Ele responde: “Bom, então, escreve só sei que nada sei”. Esse
interlocutor que freou a grosseria mediante um chamado ao código, ao laço social e a uma
suposta posição do Outro, o fez via um S2. Esqueçam Sócrates, não é ele que especialmente
me interessa. O interessante é que o primeiro locutor não duvidou, apresentou um S1, não se
questionou – como faria um neurótico – “falo isso desse jeito ou não?”, “é certo ou errado
dizer isso?”. Ele simplesmente expôs sua posição com um significante, um S1. Aquele que
contra argumentou forneceu o S2.
Imaginemos a seguinte cena: uma criança está na aula desenhando quando um
colega mexe a mesa, levando-a a fazer um traço indesejado que, conforme diz, estragou o
desenho. Essa criança vai atrás do colega com a clara intenção de bater nele. Nessa
situação, podem intervir tanto a professora quanto o acompanhante terapêutico ou, até
mesmo, outra criança, dizendo-lhe: “Espera aí. Se acalma. Ele não fez de propósito, foi sem

20 BLANC-SANCHEZ, M. La palabra confiscada. El secretario en la Italia de los siglos XVI y XVI. In:
Litoral 25/26, La función secretario, Edelp, Córdoba, maio/1998, p31. [Itálico no original].
querer”. Isso é abrir a leitura do assunto com um S2. À criança que desenhava configurou-
se uma única leitura do assunto ou sujeito21: Pedrinho mexeu a mesa para estragar meu
desenho (S1). Não duvidou, esse assunto não admitia outra leitura, não era um assunto (ou
sujeito) dividido. Por isso, esse outro que introduziu uma segunda possibilidade (S2) operou
a função secretário – independentemente de sua profissão ou posição no âmbito escolar.
Em uma apresentação de paciente de Lacan muito conhecida, publicada no primeiro
número da uma revista espanhola El Analiticón (a revista está esgotada, mas o texto em
questão pode ser encontrado facilmente na Internet22), intitulada Uma psicose lacaniana,
ocorreu algo muito curioso. Em determinado momento da conversa entre o tal Gérard
Primeau e Lacan, o paciente se vira para ver um assistente e ocorre o seguinte diálogo:

Dr. Lacan: Por que se volta a esse senhor?


Sr. Primeau: Senti que estava zombando de mim.
Dr. Lacan: Sentiu uma presença zombeteira? Ele não está em seu campo...
Sr. Primeau: Ouvi um som e senti.
Dr. Lacan: Não zomba do senhor. Conheço-o bem, certamente não o
zomba. Ao contrário, tudo isso lhe interessa. É esse, o ruído que fez.

O Sr. Primeau “sentiu” algo estranho, talvez um fenômeno elementar, e lhe atribuiu
um conteúdo persecutório –“senti que zombava de mim”–, claramente um S1. Lacan o
anulou de modo contundente, oferecendo um S2 com uma precisão e velocidade notáveis.
Certamente, Lacan não conhecia o médico que o paciente dizia dele zombar, bem como
não sabia se estava interessado naquilo que ali ocorria. Entretanto, sua intervenção
tranquilizou o paciente e permitiu prosseguir longamente com a conversa. Por quê? Porque
estendeu o assunto entre dois significantes à maneira neurótica, instalando um zomba/não
zomba. Dividiu, desse modo, o assunto.
Existe, na obra de Melanie Klein, outro exemplo clássico da função-secretário com
crianças sujeitas à holófrase. Trata-se do texto A importância da formação dos símbolos no
desenvolvimento do ego23, de 1930, mais conhecido como “O caso Dick”.
Esse escrito nos mostra o modo de trabalho clínico de Melanie Klein.
Particularmente, surpreende-me um pouco o fato de que, em um primeiro encontro com
uma criança que não fala, que não diz nada, que não diferencia pessoas de objetos nem de
móveis, ela consiga captar seu interesse por trens e estações ferroviárias, portas e
maçanetas, bem como pelo movimento de abrir e fechar portas. O menino não brincava,
não falava, apenas articulava sons inteligíveis, mas Melanie Klein conseguia entender, pelo
menos, duas palavras naquilo que Dick dizia!. Além disso, ela conseguia saber que
demonstrava grande insensibilidade à dor quando se machucava, mas tinha interesse em ser
consolado e mimado, algo comum nas crianças pequenas. Melanie Klein resume o
comportamento de Dick afirmando que ele carecia de sentido e propósito – excelente
maneira de sintetizar a ausência da função significante e a presença da holófrase.

21 Por isso, Lacan afirmava que o sujeito monolítico coincidia com a mensagem. V. LACAN, J. (1958-59) O
seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2016, p.84.
22 http://elpsicoanalistalector.blogspot.com.ar/2007/09/jacques-lacan-una-psicosis-lacaniana.html
23 KLEIN, M. (1930) A importância da formação dos símbolos no desenvolvimento do ego. In: KLEIN, M.
Amor, culpa e reparação e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Então, frente a esse menino – que segundo Lacan vive no real porque não registra
diferença alguma –, Melanie Klein faz uma simples instalação de trens: põe um trem
grande junto a um menor e assinala, assim, uma primeira diferença. Em um segundo tempo,
apontando os trens enuncia: “Trem papai; trem Dick”. Assim, com o significante, marcou
uma diferença ali onde, para Dick, essa não existia – convém assinalar que para esse
menino a diferença entre os trens não era captável porque, para ver uma diferença, é preciso
a operatória do significante que, justamente, não é mais do que pura diferença.

Trem Papai
Dick

Vou propor escrever isso assim: “Trem Dick”-“trem papai”. “Trem” é o mesmo
significante, mas varia de acordo com a posição que ocupa. “Trem” representa Dick
(metáfora, indicada pela seta descendente) para outro significante (metonímia, indicada
pela seta horizontal), que é “Papai”. Com a intervenção “Trem Dick”-“trem papai”,
Melanie Klein introduz de maneira forçada a metáfora, a metonímia, a lógica do intervalo e
os dois significantes, tudo junto, em uma só operação. É por isso que Lacan diz que
“introduz o simbolismo todo” brutalmente. Não há mesmo outro modo de dizê-lo. Cito
Lacan: “Melanie Klein enfia o simbolismo, com a maior brutalidade, no pequeno Dick!”24.
A intervenção em questão situa os dois planos do significante, duas articulações
possíveis e um intervalo. Dick, talvez a primeira criança holofraseada da literatura
psicanalítica, é dividido por essa intervenção de Melanie Klein. Atrevo-me a afirmar isso
porque o menino responde: pega um trem, leva-o até a janela e diz “estação”. Ela explica:
“a estação é a mamãe”, enfiando-lhe aquilo a que chamei de “Édipo ferroviário”25. Dick
começa a correr, grita, se esconde em um vão entre as portas e diz a palavra “escuro”.
Melanie Klein, que não se contém, retruca: “está escuro dentro da mamãe”. O menino vai e
vem, pega de novo o trem, pergunta por sua babá etc. Trata-se de uma série de respostas
que permitem supor o aparecimento do outro, o nível do dois, o do significante.
De acordo com nossa hipótese sobre a função-secretário, a introdução de uma
diferença seria o caso mais básico que temos para exemplificá-la. Onde não há diferença,
onde o significante não opera, introduzir um binário, soma – porque a diferença opera,
inclusive, mais além do sujeito.
Gostaria de fazer referência a um material clínico que recebi de uma colega analista,
Agustina Murillo, no qual se capta muito claramente a posição da função-secretário. É o
caso de um garoto de 12 anos cuja apresentação é muito complexa (não irei abordá-la nesse
contexto). Faço referência à situação clínica:

Quando perde em um jogo, arranca os cílios. Não manifesta dor ao fazê-lo.


Se peço para que não o faça, fica indiferente e continua fazendo. Descobri
que a seguinte intervenção funciona: quando começa a arrancar os cílios, eu

24 LACAN, J. (1953-54) O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1986, p.83.
25 PEUSNER, P. Fugir para adiante. O desejo do analista que não retrocede ante as crianças. São Paulo:
Agente Publicações, 2016, p.128.
finjo que também estou arrancando os meus, mas acrescento feições de dor.
Nessas ocasiões, deixa de fazê-lo. Diz “não, não” e tira minhas mãos a fim
de que eu pare de arrancar meus cílios.

Como poderíamos pensar a lógica da intervenção aqui? A analista, quase em


espelho, faz a mesma coisa que o menino: arranca os cílios, mas acrescenta à ação um gesto
de dor. Isso incorpora uma diferença. O que acontece quando nos olhamos no espelho e
aquilo que vemos é diferente de nós? É um assunto dos filmes de terror! Bom, temos aqui o
mesmo recurso, mas tomando relevo da função-secretário: introduzir um S2. Se o menino
arranca os cílios e a analista faz a mesma coisa diante dele, não há diferença. Mas, se a essa
ação somamos um gesto de dor, acrescentamos um elemento que funciona como ponto de
diferença. Então, há função-secretário. O significante pode ser introduzido pela via do
imaginário, bem o sabemos. O efeito foi o desejado: a ação se interrompeu e não mais se
repetiu – algo se pacificou para esse menino, ao menos nesse nível.
Agustina também apresentou outro caso, o de um garoto que repetia a estrutura de
uma cena. Cito:

Ele me faz acreditar em algo que acaba sendo um engodo. Eu saio


prejudicada ao acreditar nele. É um pouco a cena que o menino vive com o
pai. Esse promete que irá vê-lo e levá-lo para passear, mas não cumpre suas
promessas. Depois de repetir por um longo tempo essa cena, chega uma
sessão em que eu finjo estar angustiada. Digo-lhe que me sinto mal e que
não quero mais brincar assim, que é sempre a mesma coisa, que ele sempre
me engana... O menino responde: 'tá bom, não vou mentir mais para você.
Vamos brincar de outra coisa'.

A intervenção produz uma diferença na estrutura da cena. Se a angústia do menino


não faz barreira ao pai, a angústia simulada da analista funciona como limite para o
menino. Isso porque ela detecta um circuito que se reproduz de maneira igual. Trata-se da
mesma cena que o garoto vive com o pai, mas invertida – poderíamos dizer “em espelho” –
agora com a analista. O espelho permite a inversão. Como marca a diferença? Como sai do
espelho? Ela mesma o diz: “finjo estar angustiada”.
Parece-me interessante... o que está em jogo nas duas intervenções citadas é um
recurso ao afeto. No primeiro caso, com a dor física. No segundo, com a angústia. São
registros da subjetividade nos quais a analista obriga a criança a um encontro com o
registro da subjetividade – são casos em que o recurso à lei, àquilo que está certo ou errado,
à sanção, talvez não tivesse funcionado.
É possível intervir com o afeto? Claro que sim! Eis aqui dois exemplos.
Interessa-me ressaltar esse matiz em que a função-secretário intervém com o afeto,
que também pode funcionar quando a estrutura simbólica não está presente. Sabemos, é
uma ideia de Lacan, que o afeto também toca o real.
As professoras, e às vezes também os pais, se queixam de que certas crianças não
reconhecem os limites. É um contrassenso, pois não há noção mais simbólica do que a de
limite. E como poderia um sujeito que não está estruturado pelo significante reconhecer um
limite? O limite, por acaso, não inscreve uma pura diferença entre o que está mais aquém e
mais além de si? Se não há estrutura simbólica, é possível, no máximo, responder aos
obstáculos que são do registro do real: uma parede, uma vala ou algo assim. Contudo,
também podemos imaginarizar esses limites mediante alguma outra coisa, como fez
Agustina nesses casos. É mais provável que, dessa forma, sejam registrados.
Há algum tempo, conversava com um grupo de colegas sobre uma questão trazida
por outra colega, também analista, Mariel Forn. Ela comentara a respeito da enorme
dificuldade para encerrar a sessão com uma pequena analisante. Talvez alguns de vocês já
tenham passado por isso... Brava, a menina, algumas vezes, se joga no chão e não se mexe.
Outras, se o combinado é que a sessão terminará ao finalizar tal ou qual atividade, essa
nunca é completada, sempre há algo mais para acrescentar, para fazer. É como se não se
encontrasse um ponto de detenção que fechasse a deriva. Qual foi a estratégia da analista?
Incluiu no trabalho um caderno no qual deixavam anotadas coisas a serem feitas na
próxima sessão. Foi uma manobra a partir da estrutura temporal do significante: estamos
trabalhando e brincando aqui, hoje, mas também estamos trabalhando e brincando na
próxima semana, em nossa próxima sessão, anotada em um caderno. Trata-se de uma
diferença proposta, de um S2 proposto e que a menina pôde aceitar. O resultado foi claro:
dividiu-se o assunto; nesse caso, o assunto temporal.
Estamos acostumados a usar a expressão “me dividiu” quando experimentamos algo
relativo ao aparecimento do inconsciente. Também podemos conseguir esse efeito de
divisão sobre o sujeito ou assunto em questão, não sobre uma pessoa determinada. A
intervenção de Mariel divide o assunto temporal em hoje e amanhã, ampliando uma data
que antecipa (a antecipação é uma função significante, assim como a retroação) a aparição
futura de um segundo significante, um S2. Trata-se de uma construção simbólica, “a
próxima sessão”, apoiada em uma escrita, com materialidade de letra inclusive, que habilita
um intervalo, uma escansão entre o que ocorre agora e o que ocorrerá na próxima vez – e
que deixamos inscrito em algum lugar, mesmo que, para que possa ser visto, façamos uso
de um caderno para imaginarizá-lo.
Bom, certamente, há muito mais para pesquisar. Considerem esta apresentação
somente como o ponto de partida de um trabalho em curso.

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