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POEMAS SELECIONADOS DE AL BERTO

Coimbra, Portugal - 11 Janeiro 1948


Lisboa - 13 Junho 1997
HÁ-DE FLUTUAR UMA CIDADE

há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida


pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano


esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não
tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade
E AO ANOITECER

e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão


deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia
DIZEM QUE A PAIXÃO O CONHECEU

dizem que a paixão o conheceu


mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado


quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho


à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos
RECADO

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar


ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te


e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo


e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes


de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço
AS MÃOS PRESSENTEM

As mãos pressentem a leveza rubra do lume


repetem gestos semelhantes a corolas de flores
voos de pássaro ferido no marulho da alba
ou ficam assim azuis
queimadas pela secular idade desta luz
encalhada como um barco nos confins do olhar

ergues de novo as cansadas e sábias mãos


tocas o vazio de muitos dias sem desejo e
o amargor húmido das noites e tanta ignorância
tanto ouro sonhado sobre a pele tanta treva
quase nada
PERNOITAS EM MIM

pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória... amas
ou finges morrer

pressinto o aroma luminoso dos fogos


escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas

é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves

já não possuo a brancura oculta das palavras


e nenhum lume irrompe para beberes

( in 'Rumor dos Fogos' )


ACORDAR TARDE
tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte

procuras ávido aquilo que o mar não devorou


e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos - e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais - nada a fazer

irás sozinho vida dentro


os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia
POSTSCRIPTUM

... apercebo o lume dum coração antigo e simples


atravesso a cor luminosa dos sonhos sem me deter...
... aqui deixo o espólio daquele cuja vida
é cintilação de lugares nítidos...

(um pouco de café, uma carta, um pedaço de vidro)

... tenho a certeza de que se virasse o corpo do avesso


ficaria tudo por recomeçar...
... mas se aqui voltares
talvez encontres estes papéis escritos
no recanto mais esquecido da noite... talvez
descubras o vazio onde o corpo desgasto esperou...

... vou destruir todas as imagens onde me reconheço


e passar o resto da vida assobiando ao medo...
OS AMIGOS

No regresso encontrei aqueles


que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areias

tinham os gestos lentos das feras amansadas


e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite

prendiam sóis nos cabelos entrançados


lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume

ofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar


a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência

(in 'Sete Poemas do Regresso de Lázaro' )


TRUQUE TÓXICO

Volto ao quarto de pensão, fumo até ao vómito


isto é : drogo-me.....
....abro a caixa de papelão, aparentemente cheia de sonhos
escolho um, fumo mais erva, nenhum sonho me serve,
abro a caixa dos pesadelos.....
o silencio ocupa-me e da caixa libertam-se corpos
cores violentas, olhares cúbicos, pássaros filiformes
cadeiras agressivas
limo as arestas fibrosas dos objectos
arrumo-os pelo quarto, de preferencia nos cantos
dou-lhes novos nomes, novas funções, suspiro extenuado
embora a sonolenta tarefa não tenha sido demorada
....outra caixa, azulada, abro-a
entro nela e fecho-a, o escuro solidifica-se na boca
tenho medo durante a noite
alguém se lembrou de atirar fora a caixa......
....luzes, umbigos obscurecidos pelas etiquetas
dos pequenos produtos de consumo, tóxicos
FRAGIL - MANTER ESTE LADO PARA CIMA
NÃO INCLINAR
TIME TO BUY ANOTHER PACKET
O quarto está completamente mobilado de corpos
explodem caixas, o sangue alastra
estampa-se nas paredes sujas de calendários e cromos
de pin-ups obscenas
....fendas de bolor no espelho
o reflexo do corpo arde como uma decalcomania
TIME TO BUY ANOTHER PACKET
todos dormem dentro de caixas, uma serpente flutua
falamos baixinho
não se ouvem mais barulhos de cidade
o sono e o cansaço subiram-me á boca
....movemo-nos lentamente para fora de nossos corpos
e devastamos, devastamos.....
OFÍCIO DE AMAR
Já não necessito de ti
Tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
Tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio
De outras galáxias, e o remorso.....

.....um dia pressenti a música estelar das pedras


abandonei-me ao silencio.....
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas

ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto


deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade do meu próprio corpo.
QUANDO AQUI NÃO ESTÁS

Quando aqui não estás


o que nos rodeou põe-se a morrer
a janela que abre para o mar
continua fechada só nos sonhos
me ergo
abro-a
deixo a frescura e a força da manhã
escorrem pelos dedos prisioneiros
da tristeza
acordo
para a cegante claridade das ondas
um rosto desenvolve-se nítido
além
rasando o sal da imensa ausência
uma voz
quero morrer
com uma overdose de beleza
e num sussurro o corpo apaziguado
perscruta esse coração
esse
solitário caçador
SEM TÍTULO E BASTANTE BREVE

Tenho o olhar preso aos ângulos escuros da casa


tento descobrir um cruzar de linhas misteriosas, e
com elas quero construir um templo em forma de ilha
ou de mãos disponíveis para o amor....

na verdade, estou derrubado


sobre a mesa em fórmica suja duma taberna verde,
não sei onde
procuro as aves recolhidas na tontura da noite
embriagado entrelaço os dedos
possuo os insectos duros como unhas dilacerando
os rostos brancos das casas abandonadas, á beira mar...

dizem que ao possuir tudo isto


poderia Ter sido um homem feliz, que tem por defeito
interrogar-se acerca da melancolia das mãos....
...esta memória lamina incansável

um cigarro
outro cigarro vai certamente acalmar-me
....que sei eu sobre as tempestades do sangue?
E da água?
no fundo, só amo o lodo escondido das ilhas...

amanheço dolorosamente, escrevo aquilo que posso


estou imóvel, a luz atravessa-me como um sismo
hoje, vou correr à velocidade da minha solidão
UMA PAIXÃO

Visita-me enquanto não envelheço


toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas


e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

vem ver-me antes que a bruma contamine os alicerces


as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

vem antes que desperte em mim o grito


de alguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens


estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

vem com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite


sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te
HOJE É DIA DE COISAS SIMPLES

hoje é dia de coisas simples


(Ai de mim! Que desgraça!
O creme de terra não voltará a aparecer!)
coisas simples como ir contigo ao restaurante
ler o horóscopo e os pequenos escândalos
folhear revistas pornográficas e
demorarmo-nos dentro da banheira
na ladeia pouco há a fazer
falaremos do tempo com os olhos presos dentro das
chávenas
inventaremos palavras cruzadas na areia... jogos
e murmúrios de dedos por baixo da mesa
beberemos café
sorriremos à pessoas e às coisas
caminharemos lado a lado os ombros tocando-se
(se estivesses aqui!)
em silêncio olharíamos a foz do rio
é o brincar agitado do sol nas mãos das crianças
descalças
hoje
TRABALHOS DO OLHAR

escrevo-te a sentir tudo isto


e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata da fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto ao fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva dos lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco morde a sua imobilidade

habito neste país de água por engano


são-me necessárias imagens radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de romã
repara
como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar
ENVOLVER-ME

Envolver-me
na mais obscura solidão das searas e gemer
Amassar com os dentes uma morte íntima
Durante a sonolência balbuciante das papoulas
Prolongar a vida deste verão até ao mais próximo verão
para que os corpos tenham tempo de amadurecer

...colher em tuas coxas o sumo espesso


e no calor molhado da noite seduzir as luas
o riso dos jovens pastores desprevenidos...as bocas
do gado triturando o restolho....as correrias inesperadas
das aves rasteiras

....e crescerei das fecundas terras ou da morte


que sufoca o cio da boca.....
....subirei com a fala ao cimo do teu corpo ausente
trasmitir-lhe-ei o opiáceo amor das estações quentes.
LISBOA

por trás dos muros dacidade


no seu coração profundo de alicerces
de argilas ede sísmicos arroios - cresce uma voz
que sobe efende a brandura das casas

da escrita dosenumeráveis povos quase


nada resta - deitas-te exausto nalâmina da lua
sem saberes que o tejo te corrói e tesuprime
de todas as idades da Europa

mais além -para os lados do corpo - permanece


a tosse doscacilheiros os olhos revirados
dos mendigos - o tecto ondeum navio
nos separa de um vácuo alimentado asoro

plátanos brancos recortam-se luminescentes no olhar


dequem nos olha contra um céu desesperado - jardim
deiris açucenas palmeiras cobertas de rocio e
a ponteque nos leva aos campos do sul - lisboa

lugar derradeiro do riso


que já não te pode salvardo cemitério dos prazeres

emorres
carregado de tristezas e de mistérios -morres
algures
sentado numa praceta de bairro - o olhar fixo
noinferno marítimo das aves
NOITE DE LISBOA COM AUTO-RETRATO E SOMBRA DE IAN CURTIS
filamentos de gelatinoso néon
invadem a catedral em celulóide do filme nocturno:
arquitectura de asas abóbadas de vento
pássaros de lixo
som
pálpebras de lodo sobre a boca do homem
que rasteja de engate em engate pelas avenidas da memória
e quando encontra a porta de um bar
mergulha no inferno
bebe furiosamente
o peito encostado ao zinco sujo
duma geração de subúrbio presentes
aqui os jovens, com a canga nos ombros
e o mundo poderia desabar dentro de 5 minutos
o copo estilhaça os vidros esfregados
nos ombros
no peito onde uma veia rebenta
para mostrar o radioso canto
depois dança contorce-se embriagado
sobre o rosto suado
com a ponta dos dedos espalha sangue e cuspo
construindo a derradeira máscara
cai para dentro do seu próprio labirinto
como se a verticalidade do corpo fosse um veneno
domina-o um estertor
uma corda invisível ata-lhe a voz
não se moverá mais
apesar de nunca ter avistado os órgãos profundos do corpo
sabe que também eles se calaram para sempre
a noite é imensa e já não tem ruídos
a morte vem dos pés sobe à cabeça
alastra ferozmente
mas a sua inquietante brancura só é perceptível
na súbita erecção do enforcado
ENCOMENDA POSTAL
destino-te a tarefa de me sepultares
no segredo mineral da noite
com um lápis e uma máquina fotográfica

depois
fica atento ao correio
do secular laboratório nocturno enviar-te-ei
devidamente autografado
o retrato da solidão que te pertenceu

e numa encomenda à parte receberás


a revelação desta arte
onde a vida cinzelou o precário corpo
na luz afiada de um vestígio de tinta
EREMITÉRIO
mais nada se move em cima do papel
nenhum olho de tinta iridescente pressagia
o destino deste corpo
os dedos cintilam no húmus da terra
e eu
indiferente à sonolência da língua
ouço o eco do amor há muito soterrado
encosto a cabeça na luz e tudo esqueço
no interior dessa ânfora alucinada
desço com a lentidão ruiva das feras
ao nervo onde a boca procura o sul
e os lugares dantes povoados
ah meu amigo
demoraste tanto a voltar dessa viagem
o mar subiu ao degrau das manhãs idosas
inundou o corpo quebrado pela serena desilusão
assim me habituei a morrer sem ti
com uma esferográfica cravada no coração
ENCOMENDA POSTAL
destino-te a tarefa de me sepultares
no segredo mineral da noite
com um lápis e uma máquina fotográfica

depois
fica atento ao correio
do secular laboratório nocturno enviar-te-ei
devidamente autografado
o retrato da solidão que te pertenceu

e numa encomenda à parte receberás


a revelação desta arte
onde a vida cinzelou o precário corpo
na luz afiada de um vestígio de tinta
SALSUGEM
Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu....como seriam felizes as mulheres
à beira-mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas esperando o mar
e a longitude do amor embarcado.....
....por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite...
....os dias lentíssimos....sem ninguém
e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta.... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci.... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão....
(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me
uma pérola no coração. Mas estou só, muito só,
não tenho a quem a deixar.)
.... um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala á minha porta....
.... inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite
a felicidade.
CLAMOR
Tudo bem ao chamamento
Noite após noite o que dissemos e
O que nunca diremos - a viagem
Com uma giesta de algodão presa nos cabelos e
A sensação fresca de um sulco de aves na pele

Tudo vem ao chamamento- os lobos


Os anões as fadas as putas as bichas e
A redenção dos maus momentos - enquanto te barbeias

Vês no espelho o homem


Cuja solidão atravessou quase cinco décadas e
Está agora ali a olhar-te - queixando-se da tosse
Da dor de dentes e do golpe que a lâmina fez
Num deslize perto da asa do nariz

Não sei quem é - sei porém que vai afogar-se


Naquela superfície clara quando dela se afastar e
Abrir a porta para sair de casa murmurando: tudo
Vem ao chamamento
Por dentro do clamor da noite.
A ESCRITA É A MINHA PRIMEIRA MORADA DE SILÊNCIO
A escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada

esta paixão pelos objectos que guardaste


esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos

espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos


as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar

outros corpos de salsugem atravessam o silêncio


desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo
HORTO
homens cegos procuram a visão do amor
onde os dias ergueram esta parede
intransponível

caminham vergados no zumbido dos ventos


com os braços erguidos - cantam

a linha do horizonte é uma lâmina


corta os cabelos dos meteoros - corta
as faces dos homens que espreitam para o palco
nocturno das invisíveis cidades

escorre uma linfa prateada para o coração dos cegos


e o sono atormenta-os com os seus sonhos vazios

adormecem sempre
antes que a cinza dos olhos arda
e se disperse

no fundo do muito longe ouve-se


um lamento escuro
quando a alba se levanta de novo no horto
dos incêndios

prosseguem caminho
com a voz atada por uma corda de lírios
os cegos
são o corpo de um fogo lento - uma sarça
que se acende subitamente por dentro.
ERAS NOVO AINDA
mal sabia reconhecer os teus própios erros
e o uso violento que de noite eu fazia deles
esta cama de minerais acesos
escrevo para despertar a fera de sol pelo corpo
escorrem aves de cuspo para a adolescência da boca
e junto ao mar existe ainda aquele lugar perdido
onde a memória te imobilizou
enumero as casas abandonadas ao sangue dos répteis
surpreendo-te quando me surpreendes
pela janela espio a paisagem destruída
e o coração triste dos pássaros treme
quando escrevo mar
o mar todo entra pela janela
onde debruço a noite do rosto tocado...me despeço
TRUQUE DO MEU AMIGO DA RUA
ao acaso encontrei-te encostado a uma esquina
olhar vazio varrendo a multidão, parei
sorri e tu vieste, fomos andando
os ombros tocavam-se, em direcção a casa
pediste-me para tomar um duche, eu deitei-me
ouvi o barulho da água resvalando pelo teu corpo sujo da cidade e de engates
sujo pelos dias e noites e mais dias que não tive
esperei-te deitado, outro cigarro
e ainda espero
gosto dos corpos que riem, frescos
rasgam-se à ternura nocturna dos dedos, e ao desejo
húmido da boca, que sempre percorre e descobre

tacteio-te de alto a baixo


reconhecendo-te num gemido que também me pertence, no escuro
contaste-me uma improvável aventura de tarzan, ouvia-te
e no silêncio do quarto fulguravam aves que só eu via
sorri ao enumerar os restos que a manhã encontraria pelo chão
manchas de esperma, ténis esburacados, calças sujíssimas, blusão cheio
de autocolantes,

peúgas encortiçadas pelo suor


as cuecas rotas, sujas de merda
e tuas mãos, recordo-me
sobretudo de tuas mãos imensas sobre o peito
teu corpo nu, à beira da cama, no sossegado sono.
FRAMENTOS DE UM DIÁRIO
Amo
as águas no instante em que não são do rio
Nem pertencem ainda ao mar.....
.....árduas planícies rosto incendiado pesando-me
nos ombros
hirto....tatuado no entardecer de magoada cocaína.....

.....leio baixinho aquele poema Eu de Belaflor


nocturna sombra de corpo embriagado
fogos por descuido acesos no húmido leito dos juncos...
...altíssima margem....inacessível noite de Florbela

e o soneto dizia: Sou aquela que passa e ninguém vê


sou a que chamam triste sem o ser
sou a que chora sem saber porquê
...apesar de tudo conheço bem este rio
e o cuspo diáfano do coral o sono letárgico
dos reduzidos seres marinhos esmagados
na pressa do mar...possuo este resíduo de vida estelar
gravada na pele está a cabeça de medusa loura....dói
nas comissuras penumbrosas das falésias
que me evocam
os ternos lábios das grandes bocas fluviais.....

...sinto o rigor das plantas erectas as vozes esparsas


os corpos de ouro enleados na violência das maresias....
...junto á foz de meu inseguro desaguar...continuo sentado
escrevo a desordem urgente das horas...medito-me
cuidadosamente o tabaco amargo pressente-te na garganta
e no fundo inóspito do corpo desenvolve-se
o desejo de fugir....
.... espero o cortante sal-gema das ilhas.....a ilusão
conseguir prolongar-me na secreta noite dos peixes....
...adormeço enfim
para que estes dias aconteçam mais lentos
nas proximidades inalteráveis deste mar....
FORAM BREVES E MEDONHAS AS NOITES DE AMOR
foram breves e medonhas as noites de amor
e regressar do âmago delas esfiapava-lhe o corpo
habitado ainda por flutuantes mãos

estava nu
sem água e sem luz que lhe mostrasse como era
ou como poderia construir a perfeição

os dias foram-se sumindo cor de chumbo


na procura incessante doutra amizade
que lhe prolongasse a vida

e uma vez acordou


caminhou lentamente por cima da idade
tão longe quanto pôde
onde era possível inventar outra infância
que não lhe ferisse o coração
AMOR DOS FOGOS
.....vêm sôfregos os peixes da madrugada
beber o marítimo veneno das grandes travessias
trazem nas escamas a primavera sombria do mar
largam minúsculos cristais de areia junto à boca
e partem quando desperto no tecido húmido dos sonhos
.... vem deitar-te comigo no feno dos romances
para que a manhã não solte o ciúme
e de novo nos obrigue a fugir....
.... vem estender-te onde os dedos são aves sobre o peito
esquece os maus momentos a falta de notícias a preguiça
ergue-te e regressa
para olharmos a geada dos astros deslizar nas vidraças
e os pássaros debicam o outono no sumo das amoras....
.... iremos pelos campos
à procura do silente lume das cassiopeias...

RESPOSTA À EMILE
A guerra daqui não mata - mas abre fissuras
Nos nervos - é o que te posso dizer
Deste país que escolhi para definhar

A cidade é u amontoado de lixo de tapumes


De sucata e de casas que se desmoronam
A realidade estragou os olhos das crianças

No fim do corpo em que me escondo espalhou-se


A treva onde
Guardo a corola azulínea de tua ausência

E o marulho nítido de um mar que canta


E um calor sísmico nos lábios que beijaste

É - me difícil continuar a escrever-te


O que me destrói - sei que estou fodido
E tu já não és meu

Preparo-me para entreabrir os olhos e


Deixar escorrer a convulsão oleosa das lágrimas
E das coisas tristes.
TRUQUE INOXIDÁVEL
faca

repito faca

escrevo faca pelo corpo,desenho faca no peito da noite

desembaraço-me do sumo inoxidável doutra faca

faca

sorrio faca no escuro dum beco

-Hoje não matarás!


A PAISAGEM PROLONGA-SE
a paisagem prolonga-se num S de flores azuladas
ela entra nas ruínas
junto ao ângulo penumbroso da casa destruída
está vestida de branco quando ele lhe fala
ambos têm o olhar vago
ela recorta-se sobre um fundo de árvores nuas
ele está de pé encostado a um muro de pedra
ouve-se alguém dizer: não tenhas medoso
somos apenas actores dum sonho paralelo à paisagem
os lábios dela tremem ou sorriem
ele encolhe-se mais contra a parede
o silêncio ainda não os abandonou
ela espreita-o
ele desenha-se exacto no centro do écran
(de novo uma voz off)
um vento vertical adere à casa
onde as raízes dos cardos irrompem dos alicerces
e quando ela se vira para o interior das ruínas
prende-se-lhe o olhar num ponto inexistente
ele já ali não está
apenas a objectiva da câmara continua a segui-la
CHEGARAM AS MÁQUINAS
chegaram as máquinas para talhar a cidade que vem
das águas cresce a obra do homem, ouve-se um lento grito d'espuma e
suor
na memória ficaram os sinais dos bosques ceifados, as dunas desfeitas e algumas casas
abandonadas
estenderam-se tubos prateados, onde escorre o negro líquido
levantaram-se imensas chaminés, serpenteiam auto-estradas na paisagem
irreconhecível do teu rosto

onde estarão as tâmaras maduras de tuas palmeiras?


e o perfume intenso das flores debruçando-se ao sol ?
que murmúrios terão as pedras do teu silêncio?

a memória é hoje uma ferida onde lateja a Pedra do Homem, hirta como uma sombra num sonho
e as aves? frágeis quando aperta a tempestade...migraram como eu?
aonde caminhas, doce Moura Encantada?

oiço o ciciar dos canaviais do sono, adivinho teu caminhar de beijos no rumor das águas
tuas mãos de neve recolhem conchas, estrelas secretas, luas incendiadas...que o mar esconde na
respiração das marés

estremecem-se nas mãos os insectos cortantes do medo, em meu peito doído ergue-se esta raiva
dos mares-de-leva
É NO SILÊNCIO
é no silêncio
que melhor ludibrio a morte

não
já não me prendo a nada
mantenho-me suspenso neste fim de século
reaprendo os dias para a eternidade
porque onde termina o corpo deve começar
outra coisa outro corpo

ouço o rumor do vento


vai
alma vai
até onde quiseres ir
O PEQUENO DEMIURGO
escrevo barco e uma quilha fende o vastíssimo mar
e as árvores crescem dos espaços enevoados
entre olhar e olhar movem-se
animais presos à terra com suas plumagens de ferro
e de orvalho de ouro quando a lua se eclipsa
comunicando-lhes o cio e a nómada alegria de viver

penso outono ou inverno


e o lume resinoso dos pinhais escorre sobre o rosto
sobre o corpo em tímidos gestos
eis o tempo
do capricórnio reduzido ao esconderijo tatuado
na asa mineral da ave em pleno vôo e digo nuvens
relâmpago erva águas
homem
movimento do susto oceanos sal exaustos corpos
transumantes paixões digo
e surge irrompe escorre ergue-se move-se vive
morre
mas não julguem ser trabalho simples nomear
arrumar e desordenar o mundo

para que não se apague esta trémula escrita


preciso do sonho e do pesadelo
da proximidade vertiginosa dos espelhos e
de pernoitar no fundo de mim com as mãos sujas
pelo árduo trabalho de construir os gestos exactos
da alegria que por descuido deus abandonou ao cansaço
no fim do sétimo dia
NOTAS PARA O DIÁRIO
deus tem que ser substituído rapidamente por poemas,
sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,
vivos e limpos.

a dor de todas as ruas vazias.

sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste


silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abis-
mo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de aca-
bar comigo mesmo.

a dor de todas as ruas vazias.

mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do


deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e
dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu cora-
ção, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo.

a dor de todas as ruas vazias.

pois bem, mário - o paraíso sabe-se que chega a lis-


boa na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no
cimo do mastro, e mandar arrear o velame.

é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem


cadastro.

a dor de todas as ruas vazias.

sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o


filme acabou. não nos conheceremos nunca.

a dor de todas as ruas vazias.

os poemas adormeceram no desassossego da idade.


fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais
curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas. ..e
nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida - e
a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.

a dor de todas as ruas vazias.


INCÊNDIO
se conseguires entrar em casa e
alguém estiver em fogo na tua cama
e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
e do tecto cair uma chuva brilhante
continua e miudinha - não te assustes

são os teu antepassados que por um momento


se levantaram da inércia dos séculos e vêm
visitar-te

diz-lhes que vives junto ao mar onde


zarpam navios carregados com medos
do fim do mundo - diz-lhes que se consumiu
a morada de uma vida inteira e pede-lhes
para murmurarem uma última canção para os olhos
e adormece sem lágrimas - com eles no chão
RETRATO DE UM AMIGO ENQUANTO BEBE
íamos por noites de ciclone largar a tristeza
à porta marítima das tabernas...éramos a sombra
que mancha o tampo da mesa oscilante
falávamos alto como fazem os marinheiro
bebíamos até cair
conheço este homem
debruçado para o rosto indeciso do rapaz
perguntava se havia mal no que fazia....
.... eu olhava a televisão pedia mais vinho
interrogava-me
que secretos desejos teriam singrado
com aquele navio carregado de morte?
e a cidade crescia, crescia a noite adiante sob a tempestade
os passos ecoavam apressados pelo cais
Como te chamas? Perguntou
mas o rapaz não respondeu...e nada em redor
tremeluzia
o homem levantou-se
indiferente à revelação da alba, titubeou, tossiu
apoiado no magro ombro do rapaz
desapareceram pelas ruas estreitas do mar
entre redes, cordas, quilhas remos
onde se embarca para o medo esquecido de mais um dia.
VISITA-ME ENQUANTO NÃO ENVELHEÇO
visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas


e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces


as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

antes que desperte em mim o grito


dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens


estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite


sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te
VIGÍLIAS
pernoito
no interior do corpo desarrumado
o medo invade o penumbroso corredor
descubro uma cintilação de água no estuque
uma cicatriz de cristais de bolor abre-se
porosa ao contacto dos dedos indica
que não haverá esquecimento ou brisa
para limpar o tempo imemorial da casa

deste simulado sono ficou-lhe o amargo iodo


as madeiras enceradas cobertas de poeira
ervas secas à chuva molhos de rosmaninho
junquilhos, bocas de lobo silenas, trevo
mas nenhuma fuga foi recomeçada
a infância permanece triste onde a abandonei
quase não vive
no entanto ouço-a respirar dentro de mim

agora tudo é diferente


recomeço a viver a partir do vazio
da treva dos dias em silêncio
por entre a pele e um feixe de magnificas veias
sinto o pássaro da velhice arrastando as asas

onde desenvolve o calmo voo lunar

enumero cuidadosamente os objectos, classifico-os


por tamanhos por texturas, por funções
quero deixar tudo arrumado quando a loucura vier
da extremidade aguçada do corpo alado
e o rosto for devassado por um estilhaço de asa

então a vida abater-se-á sobre a folha de papel


onde verso a verso
me ilumino e me desgasto.

TENTATIVAS PARA UM REGRESSO À TERRA


O sol ensina o único caminho
a voz da memória irrompe lodosa
ainda não partimos e já tudo esquecemos
caminhamos envoltos num alvéolo de ouro fosforescente
os corpos diluem-se na delicada pele das pedras

falamos rios deste regresso e pelas margens ressoam


passos
os poços onde nos debruçamos aproximam-se
perigosamente
da ausência e da sede procuramos os rostos na água
conseguimos não esquecer a fome que nos isolou
de oásis em oásis

hoje
é o sangue branco das cobras que perpetua o lugar
o peso de súbitas cassiopeias nos olhos
quando o veludo da noite vem roer a pouco e pouco
a planície

caminhamos ainda
sabemos que deixou de haver tempo para nos olharmos
a fuga só é possível dentro dos fragmentados corpos
e um dia......quem sabe?
chegaremos
SENHOR DA ASMA
deitado há muito tempo - o cigarro luzindo
como um olho de tigre vindo da noite e
lá fora
ainda se percebe a húmida incandescência das frésias
o rumor surdo de vozes pelo jardim onde
a florida macieira se recorta no intenso céu de verão.

mais além
o rouxinol a madressilva
a sebe de pilriteiros
a brisa de um mar invisível - aflora-te a boca
arde no coração
a memória álgida dos limos dos casinos das praias
saturadas de sal e de sedução

mas nada é perfeito - nem o magnífico chapéu


de mademoiselle de noailles nem os dias que
aos ziguezagues vão passando iguais e monótonos
falta-me o tempo para procurar o tempo perdido
e não estou deitado na recordação da infância
confesso
que odeio escrever cartas ou enviar recados

ando há uma semana arrumando livros - comovido


acabei agora mesmo de sacudir
o pequeno novelo de poeira acumulada
no interior das páginas do senhor da asma

por hoje é tudo


SE UM DIA A JUVENTUDE VOLTASSE
se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida

sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu


veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor

depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio


de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo

mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim


com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar me morro de aflição

(in 'Rumor dos Fogos')


RETRATO DE FUGITIVO
ele caminha pela solidão nocturna dos quartos de hotel
e de fotografia em fotografia chega exausto
ao minucioso poema a preto e branco
mas já não o surpreende a violenta visão do mundo
este lento destroço que um liquido sussurro de prata
revela a partir de iluminada fracção de segundo
e bebe
e ama
e foge de si mesmo
com a leica pronta a ferir como uma bala ecoando
no fundo da memória um néon uma pedra
uma arquitectura de luz e sombra ou um deserto
onde se debruça para retocar os dias com um
lápis
na certeza que sobrevirá a estes perfeitos acidentes
a estes restos de corpos a pouco e pouco turvos
pelo tempo pelo sono ou pela melancolia
mas regressa sempre à transumância das cidades
quando a alba do flash prende o furtivo gesto
sobre o papel fotográfico morre o misterioso fugitivo
depois
vem o medo
que se desprende do olhar imobilizado
e do rosto fotografado
nasce uma vida de infinito caos

SABES, AS AVES
sabes, as aves aquáticas já não pernoitam junto ao mar nem por entre os nossos dedos de areia
sobem-nos vozes calcárias à garganta, estrangulo-me neste humilde canto, fico atento ao eterno
silêncio do teu castelo

às vezes escuto o teu cantar, raramente, é certo...mas quando cantas saem-te nomes puros da boca
e sorrisos diáfanos de cristais
os lábios incendeiam-se com vinho, teu corpo adquire o sabor misterioso das algas
no crepúsculo expande-se o perfume a moreia frita, teu olhar é o mosto dos nossos desejos

dançamos à roda dum mastro, saia em papel de seda bordada com búzios...uma quadra flutua pela
noite de nossos cabelos
rodopias, e os teus amores são relembrados pela noite adiante
espalham-se estrelas cadentes, papoulas breves, junco molhado e o mar enche-se novamente de
pássaros, embarcações semelhantes a beijos que nos percorrem de alegria
SABES POR VEZES QUERIA BEIJAR-TE
sabes
por vezes queria beijar-te
sei que consentirias
mas se nos tivéssemos dado um ao outro ter-nos-íamos separado
porque os beijos apagam o desejo quando consentidos
foi melhor sabermos quanto nos queríamos
sem ousarmos sequer tocar nossos corpos
hoje tenho pena
parto com essa ferida
tenho pena de não ter percorrido teu corpo
como percorro os mapas com os dedos teria viajado em ti
do pescoço às mão da boca ao sexo
tenho pena de nunca ter murmurado teu nome no escuro
acordado
perto de ti as noites teriam sido de ouro
e as mãos teriam guardado o sabor de teu corpo.
RUMOR DOS FOGOS
hoje à noite avistei sobre a folha de papel
o dragão em celulóide da infância
escuro como o interior polposo das cerejas
antigo como a insónia dos meus trinta e cinco anos...

dantes eu conseguia esconder-me nas paisagens


podia beber a humidade aérea do musgo
derramar sangue nos dedos magoados
foi há muito tempo
quando corria pelas ruas sem saber ler nem escrever
o mundo reduzia-se a um berlinde
e as mãos eram pequenas
desvendavam os nocturnos segredos dos pinhais

não quero mais perceber as palavras nem os corpos


deixou de me pertencer o choro longínquo das pedras
prossigo caminho com estes ossos cor de malva
som a som o vegetal silêncio sílaba a sílaba o abandono
desta obra que fica por construir... o receio
de abrir os olhos e as rosas não estarem onde as sonhei
e teu rosto ter desaparecido no fundo do mar

ficou-me esta mão com sua sombra de terra


sobre o papel branco... como é louca esta mão
tentando aparar a tristeza antiga das lágrimas
QUANDO TE ESCAVARAM O VENTRE
quando te escavaram o ventre encontraram traços adormecidos doutros povos
enigmáticos colares, pérolas corroídas, aços imutáveis, escritas duma outra idade, vestígios de
insones navegações

da terra sobe um murmúrio de húmido coração


os vermes vão tecendo a recordação dos mortos para que possamos sobreviver ao estrondo da
pólvora e da dinamite
as máquinas quase destruíam as torres duma cidade imaginada, submersa, inacessível, que eu
suspeito ter sido construída com vento-suão
mas, é o negro ouro que atravessa os teus metálicos instestinos
com ele vais refinando a morte das aves e esquecendo a vida dos peixes
digo, das águas enfurecidas irromperá o desastre
se por qualquer razão te esfaquearem de novo, nada mais encontrarão que pequeníssimos
cadáveres de saudade
ouço o resfolgar de remotos náufragos...lembro-me das pedras mortas dos teus pulsos
o peito rasga-se-me, uma lata de óleo trabalha o sangue

no céu terei sempre um pedaço de lua de açúcar, e uma estrela para iluminar o teu rosto de árabe
antigo
PERCORRO TODO
percorro todos os teus buracos inúteis...alastra-me em redor do coração uma dor de sangue, o
asfalto cobre-se de luzes alucinantes e solidão
da noite ecoam passos, nas ruas desertas ficam à solta os animais lendários da minha bebedeira
lutam comigo até de manhã, morrem à beira da minha boca

e conheço o amargo pão da tua sol/dadura, o ouro líquido que não chega para enriquecer um
homem
o mar tem a solidão dos teus ais...medonhos ais, que persistem para lá da demorada insónia
o sol tornou-se rubro e cospe flores que provocam o sono, e o esquecimento
OS DIAS SEM NINGUÉM
os dias sem ninguém
pequeníssimos recados escritos à pressa
amachucados nos dedos

foi bela a madressilva


subindo pela noite da morada esquecida

pedras exactas poeiras perfumadas


bichos de lume dormitando na flexibilidade da argila
areias cobertas de insectos ossos dentes
e o rio por onde partem as noites de cansaço

luminosa floração luas ácidas despenhando-se


fendas de terra cidades costeiras pássaros
frágeis caminhos em pleno voo
durante a lucidez tremenda do sonho

restam-me os corredores de vidro


onde posso afagar os restos carbonizados do corpo
abro a porta que dava acesso ao rosto
desço os degraus musgosos do pátio
atravesso o jardim de alvenaria onde vivi
todo este tempo antes de me precipitar
MAIS NADA SE MOVE EM CIMA DO PAPEL
mais nada se move em cima do papel
nenhum olho de tinta iridescente pressagia
o destino deste corpo

os dedos cintilam no húmus da terra


e eu
indiferente à sonolência da língua
ouço o eco do amor há muito soterrado

encosto a cabeça na luz e tudo esqueço


no interior desta ânfora alucinada

desço com a lentidão ruiva das feras


ao nervo onde a boca procura o sul
e os lugares dantes povoados
ah meu amigo
demoraste tanto a voltar dessa viagem

o mar subiu ao degrau das manhãs idosas


inundou o corpo quebrado pela serena desilusão

assim me habituei a morrer sem ti


com uma esferográfica cravada no coração
LÁPIDE, DE «CARTA DA ÁRVORE TRISTE»
a contínua solidão torna-se claridade
iridiscência lume
que incendeia o coração daquele cujo ofício
é escrever e olhar o mundo a partir da treva
humildemente
foi este o trabalho que te predestinaram
viver e morrer nesse simulacro de inferno

meu deus! tinha de escolher a melhor maneira de arder


até que de mim nada restasse senão osso
e meia dúzia se sílabas sujas
ESCUTO O LAMENTO
escuto o lamento das águas e os passos rápidos das crianças pelas dunas
os ventos varrem, ainda uivam em todas as frestas do Reino das Índias
Índias de fome, Índias de noite gelada

procuro no fundo das algibeiras os bonecos da bola, e as cobras nos valados do Rio da Moura

o sumo das amoras e o cheiro fresco do sabão...a memória envolve-se nos lençóis que secam
estendidos ao sol
adivinho lugares distantes e sombrios, habitados pelo Último Cavaleiro dos Ventos, o Zé Babão...
por andará o Cabecinha? e a Tia Clementina? e o Cisinato? e o Perna-Marota? e a Ti Carlota? e a
Dentinho d'Ouro? e

em mim nada secou


não possuo a morte no coração, mas sim um pouco de chuva que lentamente apaga o fogo doutros
dias mais simples
escuto o lamento das águas e sei que tudo continua vivo no fundo do mar...e no coração persistente
das plantas
É TARDE, MEU AMOR
é tarde meu amor
estou longe de ti com o tempo, diluíste-te nas veias das marés, na saliva de meu corpo sofrido
agora, tuas máquinas trituraram-me, cospem-me, interrompem o sono
habito longe, no coração vivo das areias, no cuspo límpido dos corais...
a solidão tem dias mais cruéis

tentei ser teu, amar-te e amar o falso ouro...quis ser grande e morrer contigo
enfeitar-me com as tuas luas brancas, pratear a voz em tuas águas de seda...cantar-te os gestos com
ternura
mas não

águas, águas inquinadas pulsando dentro do meu corpo, como um peixe ferido, louco
em mim a lama... e o visco inocente dos teus náufragos sem nome-de-rua, nem estátua-de-jardim-
público
aceito o desafio do teu desdém

na boca ficou-me um gosto a salmoura e destruição


apenas possuo o corpo magoado destas poucas palavras tristes que te cantam

(in Livro Quarto - Trabalhos do olhar)


CROMO
andamos pelo mundo
experimentando a morte
dos brancos cabelos das palavras
atravessamos a vida com o nome do medo
e o consolo dalgum vinho que nos sustém
a urgência de escrever
não se sabe para quem

o fogo a seiva das plantas eivada de astros


a vida policopiada e distribuída assim
através da língua... gratuitamente
o amargo sabor deste país contaminado
as manchas de tinta na boca ferida dos tigres de papel

enquanto durmo à velocidade dos pipelines


esboço cromos para uma colecção de sonhos lunares
e ao acordar... a incoerente cidade odeia
quem deveria amar

o tempo escoa-se na música silente deste mar


ah meu amigo... como invejo essa tarde de fogo
em que apetecia morrer e voltar
CORPO
Corpo corpo
que te seja leve o peso das estrelas
e de tua boca irrompa a inocência nua
dum lírio cujo caule se estende e
ramifica para lá dos alicerces da casa

abre a janela debruça-te


deixa que o mar inunde os órgãos do corpo
espalha lume na ponta dos dedos e toca
ao de leve aquilo que deve ser preservado

mas olho para as mãos e leio


o que o vento norte escreveu sobre as dunas

levanto-me do fundo de ti humilde lama


e num soluço da respiração sei que estou vivo
sou o centro sísmico do mundo

(in "A Noite Progride Puxada à Sirga")


7 A NOITE CHEGA-ME
a noite chega-me irrequieta de cíclicos ventos, cintilam peixes pelas
paredes do quarto
durmo sobre as águas e tenho medo
encolho-me no leito estreito, no fundo dele, onde o linho já não fulgura
queda a queda, voo

não consigo dormir com esta ferida


as máquinas sussurram, trepam pelas paredes, escancaram portas, invadem a casa, ocupam os
sonhos
sirenes, alarmes lancinantes, cremalheiras da noite ressoando no limite do corpo

levanto-me e saio para a rua


caminho na chuva adocicada da manhã, as pedras acendem-se por dentro, reconhecem-me
uma voz líquida arrasta-se no interior dos meus passos, ecoa pelos recantos ainda vivos do teu
corpo

em ti acostam os barcos e a sombra dos grandes navios do mundo


vive o peixe, agitam-se algas e medusas de mil desejos
em ti descansam os pássaros chegados doutras rotas
secam as redes, põe-se o sol
em ti se abandona a ressaca das ondas e o sal dos meus olhos
as árvores inclinadas, os frutos e as dunas
em ti pernoita a seiva cansada de palavras, o suco das ervas e o açúcar transparente das camarinhas
em ti cresce o precioso silêncio, as ostras doentes e as pérolas dos mares sem rumo
em ti se perdem os ventos, a solidão do mar e este demorado lamento.
A NOITE CHEGA-ME
a noite chega-me irrequieta de cíclicos ventos, cintilam peixes pelas paredes do quarto
durmo sobre as águas e tenho medo
encolho-me no leito estreito, no fundo dele, onde o linho já não fulgura
queda a queda, voo

não consigo dormir com esta ferida


as máquinas sussuram, trepam pelas paredes, escancaram portas, invadem a casa, ocupam os
sonhos
sirenes, alarmes lancinantes, cremalheiras da noite ressoando no limite do corpo

levanto-me e saio para a rua


caminho na chuva adocicada da manhã, as pedras acendem-se por dentro, reconhecem-me
uma voz líquida arrasta-se no interior dos meus passos, ecoa pelos recantos ainda vivos do teu
corpo

em ti acostam os barcos e a sombra dos grandes navios do mundo


vive o peixe, agitam-se algas e medusas de mil desejos
em ti descansam os pássaros chegados doutras rotas
secam as redes, põe-se o sol
em ti se abandona a ressaca das ondas e o sal dos meus olhos
as árvores inclinadas, os frutos e as dunas
em ti pernoita a seiva cansada de palavras, o suco das ervas e o açúcar transparente das camarinhas
em ti cresce o precioso silêncio, as ostras doentes e as pérolas dos mares sem rumo
em ti se perdem os ventos, a solidão do mar e este demorado lamento
A INVISIBILIDADE DE DEUS
dizem que em sua boca se realiza a flor
outros afirmam:
a sua invisibilidade é aparente
mas nunca toquei deus nesta escama de peixe
onde podemos compreender todos os oceanos
nunca tive a visão de sua bondosa mão

o certo
é que por vezes morremos magros até ao osso
sem amparo e sem deus
apenas um rosto muito belo surge etéreo
na vasta insónia que nos isolou do mundo
e sorri
dizendo que nos amou algumas vezes
mas não é o rosto de deus
nem o teu nem aquele outro
que durante anos permaneceu ausente
e o tempo revelou não ser o meu

(in 'Sete Poemas do Regresso de Lázaro')

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