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Florianópolis
2005
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Florianópolis
2005
Leandro Carlos Ody
Banca examinadora:
Florianópolis
2005
AGRADECIMENTOS
A realização desse trabalho não foi um ato individual, mas contou com a ajuda de
outras pessoas, a meu ver, indispensáveis nesse processo.
Quero agradecer, em primeiro lugar, a meu orientador, prof. Dr. Gustavo Andres
Caponi, pelos conselhos e sugestões ao longo do trabalho. Estendo meus agradecimentos
aos demais professores doutores do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Santa Catarina, especialmente aos professores Alberto Oscar
Cupani, Décio Krause, Luiz Henrique Dutra e Sara Albieri.
Agradeço, em especial, ao professor Rualdo Menegat, do Instituto de Geociências
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pelas conversas que tivemos sobre o tema
da dissertação e pelas sugestões que lançaram luzes sobre os questionamentos acerca da
problemática trabalhada.
Também agradeço ao CAPES, instituição que deu suporte financeiro à minha
pesquisa durante boa parte do seu desenvolvimento e que, sem dúvida, foi de extrema
importância para a qualidade do trabalho.
Agradeço à minha família (a meu pai, Clari Bernardo Ody, à minha mãe, Zélia
Polli Ody, e a meus irmãos, Juliano e Marciano) por suportarem comigo a dor da saudade e
da ausência. Que as minhas conquistas sejam também as conquistas de vocês.
Finalmente, agradeço a todas as demais pessoas que, de uma ou de outra forma,
ajudaram a tornar este trabalho uma realidade. Em especial, aos meus colegas que passaram
vários minutos do seu tempo a trocar idéias comigo.
Com a finalidade de compreender a natureza dos problemas e conceitos geológicos, se
deve aprender a viver com incerteza até um grau não imposto por problemas que implicam
sistemas fechados, variáveis isoladas, experimentos verificáveis e tratamento estatístico de
um grande número de acontecimentos observáveis.
Harthur F. Hagner
Resumo
Ao longo deste trabalho, buscamos responder à seguinte questão: “é a geologia uma ciência
teórica ou uma ciência histórica?”. Para chegarmos a um posicionamento razoável quanto a
essa questão, buscamos resgatar a concepção de ciência teórica e de ciência histórica no
pensamento de autores como Karl Popper, George Gaylord Simpson e David Hull. A
aproximação que podemos fazer entre a idéia desses autores acerca da distinção entre os
dois tipos de ciência nos leva a tomar algumas posições com relação à ciência da geologia e
a classificá-la como teórica ou como histórica com base no tipo de questão de interesse do
geólogo. Essas questões poderiam ser separadas entre questões acerca de leis gerais,
estruturas teóricas explicativas e definições gerais de processos geológicos de um lado e
explicações de fatos particulares, singulares, irrepetíveis e que caracterizam narrações
históricas de outro lado.
ABSTRACT
In this work we seek to answer the following question: is geology a theoretical or rather a
historical science? To reach a conclusion, we start by reconstructing the conception of
theoretical and historical science as we find in authors such as Karl Popper, George
Gaylord Simpson and David Hull. The similarities we find in these authors concerning the
science of geology lead us to classify it as theoretical or as historical depending upon the
kind of interest the geologist has. These questions could be divided between questions
related to general laws, explaining theoretical structures and general definitions of the
geological processes on the one hand and explanations of particular, singular and unique
facts that characterize the historical narratives on the other hand.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 9
I – A GEOLOGIA COMO CIÊNCIA DE DOIS OBJETIVOS ........................................... 13
II – A DISTINÇÃO ENTRE CIÊNCIA TEÓRICA E CIÊNCIA HISTÓRICA NA
PERSPECTIVA POPPERIANA .......................................................................................... 27
1 – O modelo nomológico de explicação....................................................................... 28
2 – Popper e a distinção entre ciência teórica e ciência histórica .................................. 38
3 – A Geologia como ciência histórica.......................................................................... 46
III – IMANÊNCIA, CONFIGURAÇÃO E A QUESTÃO DOS MODELOS NA
GEOLOGIA ......................................................................................................................... 54
1 – O imanente e o configuracional na definição do teórico e do histórico .................. 55
2 – Os modelos e a geologia como ciência de conteúdo teórico próprio....................... 66
IV – EXPLICAÇÕES NARRATIVAS E A DISTINÇÃO ENTRE NOMES PRÓPRIOS E
NOMES COMUNS .............................................................................................................. 77
1 – Explicações narrativas ............................................................................................. 77
2 – A distinção entre nomes próprios e nomes comuns na concepção de David Hull .. 83
3 – Nomes próprios e nomes comuns: o histórico e o teórico na ciência geológica ..... 88
CONCLUSÃO...................................................................................................................... 95
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 101
9
INTRODUÇÃO
Se não é tão raro encontrarmos comentários acerca do tema em geral, isso não se
repete em se tratando de ciências específicas. Dificilmente encontramos textos
significativamente desenvolvidos e que abordam a classificação de uma ciência como
teórica ou como histórica. É o caso da geologia. Tanto esta como outras ciências aparecem
como casos, como exemplos ilustrativos que ajudam aos pensadores que separam ciência
teórica e ciência histórica a tornar tal distinção mais clara. Química, física, biologia,
geologia, entre outras ciências aparecem como exemplos que caracterizam ou uma ou outra
– em geral, são exemplos de ciências ou completamente teóricas ou completamente
históricas.
Neste trabalho buscamos definir a geologia como sendo uma ciência em parte
teórica, em parte histórica. Trata-se de uma distinção que se pode estabelecer na medida em
que definimos quais são os objetivos almejados pelo geólogo e quais são as diferenças entre
ciência teórica e ciência histórica. Basicamente a distinção que aqui apresentamos é relativa
aos tipos de problemas que o geólogo se propõe a investigar. Esses problemas poderiam ser
separados entre questionamentos acerca de leis gerais, estruturas teóricas explicativas e
modelos gerais de processos geológicos de um lado e explicações de fatos particulares,
singulares, irrepetíveis e que caracterizam narrações históricas de outro lado. Os primeiros,
relativos ao que é geral, seriam do interesse da ciência teórica. Os segundos, relativos ao
que é particular, seriam próprios do estudo da ciência histórica.
Almejamos chegar a uma definição mais segura com relação ao que vem a ser uma
atividade científica teórica e o que significa pautar-se por questões científicas históricas.
Nossa análise se restringe à geologia, mas poderia ser estendida às outras ciências. Para
esclarecer até que ponto a geologia é teórica e até que ponto é histórica, precisamos, em
primeiro lugar, definir o que é uma ciência teórica e o que é uma ciência histórica. Tendo
essa problemática em mente é que fomos em busca de autores que tratassem da questão e
que pudessem proporcionar uma aplicação dessa análise à geologia. Pensadores como
Popper, Simpson, Hull, entre outros, apresentam alguns critérios que estabelecem a
distinção entre esses dois tipos de ciência. Cada um desses autores nos apresenta peças
importantes para a resolução de nosso problema. Cada um deles trabalha de forma
independente, mas suas análises podem ser somadas umas às outras, estabelecendo-se,
dessa forma, um diálogo entre os mesmos, formando-se, com isso, uma análise mais
profunda do que vem a ser a distinção geral entre o histórico e o não histórico ou teórico.
Partindo das primeiras idéias que deram origem à discussão que separa o interesse
pelo teórico e o interesse pelo histórico dentro da geologia, passando pelas clássicas
distinções entre esses dois tipos de ciência e tentando analisar a geologia sob esses pontos
de vista, tentaremos responder questões do tipo: “é a geologia uma ciência teórica ou uma
ciência histórica?”, “o que separa o teórico e o histórico?”, “é viável estabelecer uma
distinção rígida entre ciências de um tipo e de outro?”. Dessa forma, manteremos a unidade
temática ao longo da dissertação com o intuito de chegar a conclusões bem fundamentadas
e com uma seqüência que permita ao leitor entender o processo argumentativo que será
apresentado.
13
Porém, até o século XIX, a geologia continuou sendo uma ciência que se
preocupava, fundamentalmente, com reconstruções históricas – as pesquisas estavam
voltadas para a reconstrução da história da Terra, movidas pelo entusiasmo dos pensadores
que viam a possibilidade de desenvolver um conhecimento sistemático do passado remoto.
Por ser de difícil leitura, o Theory of the Earth de Hutton não difundiu muito as idéias de
seu autor. Foi nas primeiras décadas do século XIX, mais precisamente a partir de 1830,
com a publicação de Principles of geology, de Charles Lyell, que as teorias da geologia
começam a ganhar popularidade e maior conhecimento. Surge a separação de interesses
entre os investigadores da terra: de um lado aqueles que estavam interessados na narração
de eventos particulares e na reconstrução da história da terra; de outro lado, aqueles que
buscavam a elaboração de teorias, de padrões explicativos em relação aos fenômenos
geológicos. A partir da separação de interesses entre os geólogos, entre os objetivos
almejados por eles, também se estabelecia a separação entre geologia histórica e geologia
teórica.
14
1
Nota-se que aqui aparece a separação entre geologia histórica e geologia física. É importante esclarecer que,
no decorrer do trabalho, irão aparecer alguns termos (sinônimos ou apenas elementos vinculados) inerentes à
geologia histórica ou à geologia teórica. Ligados à geologia histórica aparecem termos como narrativa
histórica, ciência histórica, nomes próprios, sujeitos centrais, elementos configuracionais ou contingentes, etc.
Ligados à geologia teórica aparecem termos como ciência teórica, geologia física, teoria causal, nomes
comuns, elementos imanentes, etc. Esses termos também são utilizados para esclarecer a diferença que existe
entre geologia histórica e geologia teórica. A importância de cada termo, bem como o sentido atribuído a ele,
serão expostos conforme avança a apresentação do tema.
15
Outra classe de geólogos tem por objetivo entender o processo causal2 que molda
a Terra. O centro das atenções está nos processos geológicos gerais e não nas manifestações
particulares dos mesmos. Nesse sentido, os fenômenos geológicos, localizados em épocas e
lugares determinados, servem para possibilitar o estudo de eventos gerais, que extrapolam
as particularidades de tempo e de espaço. Assim, é possível, por exemplo, estudar vulcões
da era dos dinossauros a partir do estudo dos padrões de vulcanismo que verificamos
atualmente. Não precisamos nos lançar a uma reconstrução histórica daquele vulcão extinto
para saber como ele funcionava. Basta termos presente os padrões do fenômeno
“vulcanismo”, para entendermos as causas e o processo de todos os vulcões. E se cientistas
afirmam que existem vulcões em Marte, sabemos como eles funcionam a partir dos padrões
de vulcanismo que verificamos aqui na Terra.
Laudan (1993, p. 3), referindo-se aos geólogos teóricos ou físicos, diz o seguinte:
2
Quando Laudan refere-se à geologia física atribuindo a ela o estudo dos processos causais, entendemos que
a essa geologia interessa a parte teórica do estudo geológico. Nesse sentido não interessam as seqüências
causais particulares, mas os processos causais comuns aos fenômenos e que permitem constatar regularidades
que servirão de marco teórico aos cientistas. Tais marcos teóricos permitem explicações científicas e, até
mesmo, previsões acerca de certos fenômenos. Entendemos que Laudan liga a idéia de “processos causais” à
geologia teórica ou geologia física.
16
Laudan (1993, p.4) diz que o fato de alguns geólogos optarem por trabalhar dentro
de certos objetivos específicos na geologia, não quer dizer que eles neguem ou não
busquem os outros objetivos. Apenas a ênfase de suas atividades se dá em certo campo de
investigação. Também não quer dizer que, se esses cientistas optarem por trabalhar dentro
dos dois objetivos, não haja diferença entre eles. Infelizmente, apesar de levantar o
problema (um dentre os vários presentes em sua obra) e de apresentar várias posições em
relação a ele, Laudan não parece ter posicionamento próprio e acaba por deixar a questão
em aberto. Mas ela contribuiu muito ao chamar a atenção para o problema.
17
O ciclo do tempo rege a machina mundi que repete seus ciclos eternamente. Cada
estágio provoca automaticamente o seguinte. Enquanto a ordem do universo se mantiver, os
ciclos dos fenômenos da terra também permanecerão. A partir dessas idéias, formulou-se o
princípio do uniformitarismo: “o presente é a chave do passado”; em outras palavras, os
mesmos processos físicos que atuam no presente também atuaram no passado.
gerais sobre sistemas eternos”. A regularidade dos eventos, para Hutton, tem a finalidade
(causa final) de contrabalançar a destruição e a renovação. “Hutton concebeu uma machina
mundi que ordena toda a complexidade histórica como um ciclo de eventos repetitivos tão
regular quanto a revolução dos planetas no sistema newtoniano” (Gould, 1991, p.85)
identificar uniformidades nos eventos geológicos e, a partir delas, explicar toda uma classe
de fenômenos. Era nesse sentido que o presente era visto como a chave do passado. Ao se
descobrir as causas dos fenômenos atuais, também se descobriam as causas dos fenômenos
passados (até mesmo dos possíveis fenômenos futuros). Nisso se fundamentava o princípio
uniformitarista. Laudan aponta três uniformidades principais na concepção de Lyell. A
primeira delas afirma que as “leis” da natureza são uniformes e não mudam com o tempo; a
segunda mostra que o “tipo” de causas geológicas não muda com o tempo; e a terceira
afirma que o grau de intensidade das causas geológicas não muda com o tempo (Laudan,
1993, p.205). O objetivo do cientista geólogo era exatamente buscar as causas verdadeiras
dos fenômenos geológicos que faziam a Terra transformar-se e manter a dinâmica de seus
movimentos. A questão era saber como e por que aconteciam os ciclos dos fenômenos e a
resposta estava na descoberta das causas verdadeiras.
Como já dissemos antes, Lyell não nega as diferenças históricas dos fenômenos.
Mas, para um uniformitarista, os dados históricos não são prioridades de investigação. O
importante era, a partir desses dados, identificar a uniformidade que permeava a história da
Terra. Há, reconhece Lyell (1830, p. 7), momentos alternados de repouso e de desordem na
história de nosso planeta: “de repouso, quando os animais fósseis viveram, cresceram e se
multiplicaram – de desordem, quando os estratos onde acabaram enterrados transferiram-se
dos mares para o interior dos continentes, e atingiram as grandes cadeias de montanhas”.
Mas continua dizendo: “Não pode haver dúvida de que períodos de perturbação e repouso
seguiram-se uns aos outros, sucessivamente, em todas as regiões do globo; mas pode ser
igualmente verdadeiro que a energia dos movimentos subterrâneos tenha sido sempre
uniforme no que tange a toda a Terra” (Lyell, 1830, p. 64).
Gould (1991, p.132), referindo-se aos catastrofistas, afirma que “todos concordam
que paroxismos ocasionais foram o modo predominante das mudanças substanciais na
Terra antiga”. A geologia, nesse sentido, deve preocupar-se em pesquisar os registros
dessas grandes catástrofes e contar a história da Terra com base em teorias respeitadas da
física e da cosmologia. O interesse maior não está nas regularidades dos fenômenos, mas na
peculiaridade de cada acontecimento e nas conseqüências singulares de cada fato
22
geológico. Saber como funcionam os fenômenos, porque eles ocorrem ou qual é o padrão
que o mesmo segue apenas auxilia o geólogo a contar melhor a história da Terra.
3
Com certeza (e essa posição também é defendida por Gould) essa é a parte mais polêmica do Principles of
geology. Porém, não é por causa dessas idéias de Lyell que vamos desconsiderar toda a importância e a
influência que o mesmo tem dentro da história da geologia. A idéia do ciclo dos elementos do mundo
(inclusive da vida) é aqui apresentada para reforçar a concepção uniformitarista de Lyell.
26
4
Como já mencionamos anteriormente, deter-se à análise do ciclo do tempo é fazer da geologia uma ciência
predominantemente teórica. Na medida em que se estabelecem os padrões dos fenômenos geológicos,
segundo os defensores do ciclo do tempo, os mesmos fenômenos voltarão a acontecer nos mesmos padrões e
intensidades. As mesmas forças que destroem montanhas em um determinado local, restauram porções de
terra em outros lugares. É possível, portanto, formular uma teoria geral dos movimentos da terra. A
construção de uma teoria geral da terra torna desinteressante a história particular de cada evento, uma vez que
tudo o que acontece é passageiro e voltará a acontecer novamente. O ciclo volta a se repetir. Os defensores da
seta do tempo defendem a idéia de que a geologia é, predominantemente, histórica. Os estudos geológicos,
nesse sentido, se voltam à atividade de narrar os diferentes acontecimentos que se deram ao longo da história
da terra e que estão registrados nas suas formações atuais, nas rochas que se constituem e se decompõe na
trajetória da seta do tempo. Portanto a história da terra é formada de eventos únicos e irrepetíveis localizados
em algum ponto da linha do tempo.
5
A leitura das idéias de Popper, nessa primeira perspectiva, nos leva a crer que, para ele, a geologia seria um
caso de ciência histórica. Na verdade, Popper não tem nenhum texto onde trata, em específico, de uma análise
da geologia. Mas seus critérios de classificação de uma ciência como teórica ou histórica caracterizariam a
geologia como histórica devido às questões com que a mesma se detém.
28
químicas em suas explicações, pois não possui leis próprias. Portanto, nessa primeira
perspectiva6 de Popper, a geologia seria um caso de ciência histórica.
6
Neste capítulo, analisaremos uma primeira posição de Popper acerca da distinção entre ciência teórica e
ciência histórica. Uma segunda posição de Popper será apresentada no capítulo seguinte, quando trataremos
sobre os modelos de explicação nas ciências.
29
métodos e modelos apropriados. No caso de Popper e Hempel, o modelo que mais se utiliza
para apresentar explicações é o modelo nomológico dedutivo. Quando Hempel trata do
modelo nomológico de explicação, sua ênfase recai sobre o modelo nomológico, que
obedece a uma estrutura dedutiva; da mesma forma o faz Popper. Isso não quer dizer que
não haja outros modelos possíveis de explicação científica (baseados na indução, por
exemplo). Porém, o que queremos considerar não é o fato de utilizarmos deduções,
induções, cálculo de probabilidades ou qualquer outra forma de raciocínio para
construirmos nossas explicações. O que devemos levar em conta na presente discussão é o
papel das leis na explicação científica.
L1, L2,... , Lr
C1, C2,..., Ck
onde:
7
É necessário deixar claro que, nesse trabalho, delimitamos nosso discurso dentro da física newtoniana.
Portanto, conceitos e noções de lei, gravidade, espaço e tempo são compreendidos, aqui, de forma tradicional.
32
(1981, p. 74) ainda menciona que “uma lei, ao contrário de uma generalização acidental
verdadeira, pode sustentar condicionais subjuntivos, isto é, sentenças do tipo ‘Se A vier a
acontecer, também acontecerá B’”. É o caso da afirmação ‘Se esta vela de parafina vier a
ser colocada em água fervendo ela derreterá’, mas não é o caso da afirmação ‘Se esta rocha
vier a ser colocada na caixa, ela conterá ferro’.
Por último, Hempel diz que uma lei pode servir de base para uma explicação
científica; uma generalização acidental não serve a esse propósito. Através do modelo
nomológico de explicação, podemos explicar por que todas as velas de parafina derretem ao
serem colocadas em água fervente. Consideramos as condições particulares (água fervendo
e a vela de parafina, por exemplo) e leis como a de que a parafina funde quando submetida
a temperaturas maiores que 60 graus centígrados. Já no caso das rochas na caixa, apenas
temos uma relação finita de casos de rochas contendo ferro. A generalização em relação à
parafina se estende a casos infinitos, ao passo que a generalização em relação às rochas se
restringe às rochas que estão na caixa e a nenhuma outra mais, desconsiderando, até
mesmo, rochas que já estiveram na caixa e aquelas que possivelmente venham a ser
inseridas nela. Portanto, tal afirmação não entra no esquema de explicações nomológicas.
8
Essa característica nos permite dizer que enunciados estritamente universais como “todos os triângulos têm
três ângulos” ou “todos os corpos são extensos” não são leis. São enunciados analíticos, não separam sujeito
de predicado (Kant, 2001, p. 50-51). Sabemos a priori que um corpo é extenso independentemente da
experiência. Já os enunciados sintéticos suscitam a experiência para efetivar a síntese do predicado com o
sujeito. O predicado não está contido no conceito do sujeito, como é o caso da afirmação “toda partícula no
universo atrai outras partículas com força diretamente proporcional ao produto de suas massas, e
inversamente proporcional ao quadrado da distância entre elas”.
33
enunciados que se relacionam apenas com certas regiões finitas do espaço e do tempo
chamamo-os enunciados ‘específicos’ ou ‘singulares’”. Uma lei universal, nesse sentido, é
válida para todos os pontos do espaço e do tempo e aplicável a todos os objetos existentes.
Perceber uma lei universal é perceber que há correlações constantes entre variáveis, mas em
si mesmas invariáveis (como veremos mais adiante com Simpson). No caso da lei da
gravidade9, vemos que a relação entre dois objetos, entre suas massas e o quadrado de suas
distâncias não muda. É essa relação que nos permite descobrir a intensidade da força
gravitacional que atua entre esses corpos. Mudam os valores em cada caso, mas a relação
entre esses valores permanece. A lei da gravidade, bem como outras leis que entram no
esquema de Popper, são válidas para todos os objetos situados em qualquer lugar do tempo
e do espaço. Hempel parece considerar casos particulares ou “enunciados específicos”,
como sendo leis universais. Quando ele considera como sendo lei a afirmação “toda vela de
parafina derrete ao ser submetida a temperaturas superiores a 60 graus centígrados”, o
mesmo está se referindo a um caso específico de uma autêntica lei universal. Tal lei poderia
ter o seguinte enunciado: “todo corpo, com constituição ‘x’ (da qual a parafina é um caso),
derrete quando submetido a temperaturas maiores que 60 graus centígrados”.
Vendo esse problema do ponto de vista prático, podemos considerar como “lei”
certos casos que Popper consideraria apenas como um exemplo da lei autêntica. De fato, ele
mesmo considera-os como tal em casos de explicações nomológico dedutivas. “A água
pura congela a zero grau”, “a vela de parafina derrete quando submetida a temperaturas
acima de 60 graus centígrados”, “o papel queima ao ser submetido ao fogo”, “o tornassol
torna-se vermelho em meio ácido e azul em meio alcalino” são casos particulares de leis
físico-químicas que expressam regularidades universais. E tais casos servem de marco
teórico numa explicação científica. Na prática, não é necessário recorrer a uma formulação
teórica do tipo “todo líquido composto por tais e tais elementos, com densidade ‘x’, congela
9
F = M’ X M’’
D2
34
ao ser submetido a uma temperatura ‘y’” para dar a entender que a água pura congela a zero
grau. A partir de regularidades desse tipo e de condições iniciais específicas, é que
construímos explicações científicas (tanto a partir do pensamento de Popper como a partir
do pensamento de Hempel).
Outra questão que deve ser considerada quando analisamos o papel das leis na
atividade científica é a distinção entre explicação e predição. Quando queremos explicar
um fato, sabemos que o mesmo já ocorreu. Da mesma forma, sabemos que o enunciado que
descreve o fenômeno ocorrido é verdadeiro por comprovação empírica, pois o fato ocorreu
e não há como negar isso. Partindo desses pressupostos, Klimovski (1994, p.246) dá a
seguinte definição para a explicação científica: “A explicação científica é aquela por meio
da qual se tenta, ante um enunciado verdadeiro, dar razões que levaram à ocorrência do fato
descrito por esse enunciado”. E diz mais em relação à explicação: “se fará utilizando leis e
dados, mas, se se quer explicar o fato descrito pelo enunciado, o fato tem de haver
ocorrido: o enunciado deve ser verdadeiro” (Klimovski, 1994, p.246).
tão curioso. O pai então recorrerá às leis da óptica e às razões circunstanciais como a
presença de gotas de água na atmosfera e a posição do observador para dar a entender a seu
filho “o arco-íris”.
Para Klimovski (1994, p. 255), “diríamos que a explicação consiste nas premissas
que utilizamos para entender por que o fato ocorreu, enquanto que a predição parece estar
ligada ao enunciado que se deduz das premissas”. Para explicarmos um fato, na linguagem
de Hempel, partiríamos do explanandum (sentença que queremos explicar) para chegarmos
às sentenças explanans; temos o fato e vamos em busca das causas. No caso de uma
predição, partimos das sentenças explanans para chegarmos à sentença explanandum;
temos as condições iniciais e prevemos o resultado.
Mas é importante insistir que fazer uma afirmação sobre o que não
conhecemos, sobre o que vai acontecer no futuro ou o que pode ter
acontecido no passado, só se poderá denominar “predição” em
sentido epistemológico se for possível utilizar a conecção dedutiva
entre conhecimentos que já se possui e aquele que se deseja obter.
caracterizaria o que Popper chamaria de “profecia”10. Sob esse ponto de vista, profecia é
toda a afirmação acerca do futuro que não está ligada a uma dedução que considera leis
gerais bem fundamentadas e dados particulares relevantes. É diferente, por exemplo,
predizer, a partir de leis do movimento celeste, um eclipse lunar e “predizer” que a lua
explodirá daqui a dez anos. A previsão do eclipse está baseada em nosso estado atual de
conhecimento, nas teorias científicas suficientemente corroboradas; isso não acontece com
a previsão de uma explosão lunar (que causaria a extinção de nosso satélite natural) para
daqui a dez anos. Antever um eclipse é uma legitima previsão, mas antever um desastre
natural como a explosão da lua, com base nos conhecimentos atuais, é fazer profecia.
Profetiza-se sobre o futuro, mas sem se estabelecer bases no conhecimento científico
admitido. Nas palavras de Klimovski (1994, p. 256), “na prática científica é indispensável
renunciar às profecias e realizar predições por meio de teorias e leis”.
10
Popper estabelece essa distinção nas obras A miséria do historicismo, A sociedade aberta e seus inimigos e
na conferência “Previsão e profecia nas Ciências Sociais” publicada em Conjecturas e refutações. A grande
crítica recai sobre os filósofos e sociólogos ditos “historicistas” que tentam estabelecer leis da história e, a
partir delas, fazer previsões que antecipam o futuro de uma sociedade. Segundo Popper, tais leis da história
não existem e, portanto, não é possível prever os rumos históricos de nenhuma sociedade. Mesmo sabendo
que ao longo da história existiram impérios que funcionavam como principais centros do controle mundial,
como foi Roma ou como é (já duvidosamente falando) os Estados Unidos, não há como prever se haverá
outro desses centros, quando o mesmo surgirá e onde será. Diferentemente, para Popper, é prever uma
inflação com base no atual estado das finanças de certo país. Essa previsão parte de certas leis monetárias e de
certas condições presentes na economia desse país. Portanto, essa previsão seria uma legítima previsão
científica. Não discutiremos se existem ou não leis desse tipo; consideraremos, aqui, somente leis naturais.
É interessante observar que Popper defende a idéia de que, tanto as ciências naturais como as ciências sociais,
se valem do mesmo modelo de explicação científica, ou seja, do modelo nomológico de explicação. Portanto,
na concepção de Popper, assim como temos leis nas ciências naturais, também as temos nas ciências sociais.
Mas, como diz Caponi (1995, p.135), “em nenhum momento Popper tenta mostrar-nos como é que esse
‘modelo nomológico dedutivo de explicação’ ou esse ‘método hipotético’ funciona o poderia funcionar em
alguma dessas putativas ciências humanas”. Com exceção, continua Caponi (1995, p.135), de “certas vagas e
insuficientes alusões ao uso de modelos em economia”, como expomos acima.
38
11
A distinção entre ciência teórica e ciência histórica é apresentada por Popper como parte da base
argumentativa que esse filósofo constrói para justificar sua posição em relação à idéia da não existência de
leis nas ciências históricas. Essa crítica, como já dissemos em nota anterior, recai sobre os chamados
“historicistas” que defendem a possibilidade de se estabelecer leis da história e, a partir delas, prever o futuro
das sociedades. Ao definir “historicismo”, Popper (1980, p.6) diz entender ser “uma forma de abordar as
Ciências Sociais que lhes atribui, como principal objetivo, o fazer predição histórica, admitindo que esse
objetivo será atingível pela descoberta dos ‘ritmos’ ou dos ‘padrões’ das ‘leis’ ou das ‘tendências’ subjacentes
à evolução da Histórica. Segundo Popper, a função e a possibilidade de se estabelecer leis gerais só podem ser
atribuídas às ciências teóricas.
39
Ao traçar comentários sobre essa idéia de Popper, Caponi (1995, p.136) diz que...
Para encontrar e testar leis universais, o teórico, segundo Popper (1975), utiliza-se
de outras leis dos mais diversos tipos, muitas vezes inconscientemente, e de fatos
particulares tendo nisso a base teórica para a descoberta e análise de novas leis. O
historiador se detém na descrição de estados de coisas; descreve objetos e situações
localizados em certas regiões espaço-temporais finitas, específicas. Numa explicação
científica é necessário que se teste ou se verifique a exatidão ou adequação das condições
iniciais específicas do fenômeno em questão. O historiador, que seria o interessado nessa
análise, precisa considerar, além de outras condições específicas que foram determinantes
no surgimento dessas últimas condições (poderíamos chamá-las de “causas das causas”), as
leis universais que atuaram diretamente nesse fenômeno. Mesmo que esse historiador não
esteja, momentaneamente, cônscio de que esteja usando tais leis. Existe, portanto, uma
necessidade, em ambos os lados (do teórico e do historiador) de considerar outros dados,
além daqueles de seu interesse específico, para que se alcance a solução do problema
proposto. Teórico e historiador consideram leis e condições iniciais específicas nas suas
explicações. A diferença está “entre seus vários interesses, ou problemas; entre o que cada
qual considera como problemático” (Popper, 1975, p.326) ou, como poderíamos
acrescentar, naquilo que cada qual considera prioritário no seu estudo, no peso que teórico e
historiador atribuem às leis e aos dados particulares do evento em questão.
41
U0 U0 U0...
U1 U2 U3...
I1 I2 I3...
P1 P2 P3...
Nele notamos que o que está sob exame é a lei universal U0 que é mantida
constante através de todos os testes. Para testá-la, utiliza-se várias outras leis (U1, U2, ...)
juntamente com diferentes condições iniciais específicas (I1, I2, ...) que vão gerar diferentes
predições (P1, P2, ...). Esse sistema é, segundo Popper, aquele seguido pelo teórico que tem
sua preocupação voltada à descoberta e aos testes em relação às leis universais.
U1 U2 U3...
I1 I2 I3...
I0 I0 I0...
P1 P2 P3...
42
Popper (1980, p90) também nos chama a atenção quanto a confusão que muitas
vezes se faz ao se ter lei e tendência como sendo a mesma coisa. “É importante frisar que
43
leis e tendências são coisas radicalmente diversas”. Dizer, por exemplo, que, dadas as
atuais condições ambientais, a tendência é de que as borboletas brancas desapareçam, não
quer dizer que necessariamente as mesmas irão desaparecer. Mas se afirmarmos que,
devido às condições de temperatura e pressão do ambiente, ao amanhecer a água do lago
estará congelada, estamos fazendo uma afirmação embasada em leis; não estamos
apontando tendências12. Sendo assim, apontar tendências em relação a desenvolvimentos
históricos seria aceitável, ao passo que apontar direções históricas dizendo-se estar baseado
em leis seria um equívoco. “Um enunciado em que se afirma a existência de uma tendência,
em certo local em determinado momento, é um enunciado histórico singular, não uma lei
universal” (Popper, 1980, p.90).
12
Em relação aos exemplos apresentados, Popper diria que se fizéssemos antecipações em relação ao futuro
das borboletas (no sentido de estabelecermos afirmações do tipo “A proporção de borboletas, para o próximo
verão, será de 10 pretas para 1 branca”) seria um caso de profecia, pois estaríamos fazendo afirmações sem
base em leis gerais. Aceitável seria uma afirmação nesse sentido, mas que tivesse o caráter de uma afirmação
baseada numa regularidade presente na teoria da evolução e que apontasse uma tendência em relação à
proporção futura para as borboletas brancas e pretas. Porém, tomando o exemplo da antecipação da
solidificação da água no lago (naquelas condições ambientais), a mesma está baseada em leis gerais bem
corroboradas, portanto aparece como uma legítima previsão científica.
44
regularidade particular, como uma tendência geral, que nos permite manifestar enunciados
desse tipo13.
natureza, aparece como subjacente aos eventos e que seria imutável no espaço e no tempo.
Nesse sentido as leis seriam o alvo do estudo das ciências teóricas. Um dos objetivos das
ciências teóricas seria o de corroborar leis gerais. Podemos mudar os indivíduos que estão
13
É importante observar que, para Popper, poderíamos fazer previsões acerca dos ciclos vitais dos organismos
na medida em que consideramos os sistemas biológicos como estáticos, como casos de sistemas cíclicos,
recorrentes, repetitivos, mas sem considerar as possíveis mutações que possam vir a acontecer. “O ciclo vital
dos organismos constitui parte de uma cadeia de eventos biológicos semi-estacionária, ou que progride muito
lentamente. A previsão científica a respeito dos ciclos vitais dos organismos pode ser feita na medida em que
deixamos de levar em conta essas alterações evolucionárias – isto é, na medida em que consideramos o
sistema biológico em questão como estático” (Popper, 1982, p.370).
45
sob a ação de pressão, gravidade, reações químicas, etc. Mudamos a maçã que cai, mas os
princípios gerais, as leis que atuam no evento em questão não mudam, mesmo mudando o
Popper não define, em nenhum de seus textos, a geologia como sendo ciência
teórica ou como sendo ciência histórica. Porém, suas idéias nos levam a crer que, para esse
filósofo, a geologia seria um caso de ciência histórica. Os estudos da geologia estariam
voltados aos eventos específicos, irrepetíveis, únicos e localizados em tempo e espaço
definidos; não estariam voltados ao estudo ou determinação de nenhuma lei. As leis
utilizadas para explicar os fenômenos geológicos seriam leis físico-químicas próprias ao
estudo das ciências teóricas, a saber, a física e a química. A geologia, desprovida de leis
próprias, e precisando, para elaborar suas explicações científicas, importar leis de outras
ciências, seria tida como ciência histórica. Para fundamentar melhor essa conclusão,
buscamos bases nas idéias de Ernest Nagel a respeito do tema e que estão em conformidade
com as idéias de Popper.
47
Nagel (1984, p.547) remonta a Aristóteles para resgatar a fonte, o início da distinção
entre ciências nomotéticas e ciências idiográficas. Nagel afirma que, para Aristóteles, a
poesia, assim como a ciência teórica, é mais filosófica e de maior importância do que a
história, pois a poesia é concernente com o que é geral e universal, ao passo que a história
se interessa pelo que é especial e singular, ou seja, pelos fatos únicos e passageiros. Temos,
então, dois diferentes tipos de ciências: a nomotética, que busca estabelecer leis gerais
presentes e repetíveis no decorrer dos diferentes eventos e processos; e a idiográfica, que
objetiva entender o que é único e irrepetível. As ciências nomotéticas estudam o que é
universal; as ciências idiográficas se preocupam com o estudo daquilo que é singular,
localizado em um período de tempo particular e numa especificação geográfica
determinada.
Seria um erro, segundo Nagel, concluir que afirmações singulares não fazem parte
das ciências teóricas e que questões históricas não consideram elementos universais. A
idéia de uma interdependência entre ciências teóricas (nomotéticas para Nagel) e ciências
históricas (idiográficas para Nagel) pressuposta nas idéias de Popper, é explícita no texto de
Nagel. Para o mesmo, as leis gerais são formuladas a partir da constatação de regularidades
presentes em elementos singulares, e essas assunções gerais (leis) servem para explanar ou
predizer alguma ocorrência particular. Da mesma forma como encontramos, na estrutura de
uma explicação científica de Popper e Hempel, premissas contendo leis gerais e premissas
contendo descrições particulares, nos parece que Nagel segue o mesmo método. Qualquer
explicação científica, seguindo esse esquema, requer, pelo menos, uma premissa de cada
tipo. A ênfase em determinada explicação científica pode estar restrita a uma explicação
que interessa ou à ciência teórica ou à ciência histórica, mas para chegar à conclusão, é
necessário recorrer aos dois tipos de premissas. Devido a isso, Nagel expressa a idéia de
interdependência entre as duas ciências.
Ao referir-se à ciência histórica, Nagel (1984) diz que histórias raramente são meras
narrações do passado; e elas nem sempre terminam suas investigações em relação a algum
48
grupo de eventos, mesmo quando conseguem estabelecer a ordem seqüencial em que estes
eventos aconteceram. “Do contrário, histórias usualmente procuram entender e explicar os
eventos registrando-os em termos de causas e conseqüências, e buscam descobrir relações
de dependência causal entre alguns eventos seqüencialmente ordenados” (Nagel, 1984,
p.549). Fazendo uma analogia, simples, mas que talvez venha a ilustrar um pouco mais essa
idéia, podemos dizer que, se queremos explicar uma parede de tijolos, não a explicamos
apenas enumerando cada um dos tijolos; devemos, sim, destacar os tijolos, mas também
aquilo que une um tijolo ao outro (neste caso, o cimento) e que, unindo-os, forma o
conjunto da parede. Da mesma forma seria uma explicação histórica: temos o evento
histórico (a parede) que precisa ser explicado; temos os personagens e os eventos únicos
(tijolos); e temos as leis ou princípios gerais14 (cimento) que unem um personagem ou um
evento ao outro. Para explicar esse evento histórico é necessário considerar cada um desses
elementos15.
Nagel, porém, não deixa de destacar a assimetria entre ciência teórica e ciência
histórica. Disciplinas teóricas, como a física, buscam estabelecer ambas as afirmações
gerais e singulares. Para esse filósofo (1984, p.549), “nenhuma ciência natural em seu
conjunto ou mesmo em suas subdivisões puramente teóricas, são exclusivamente
nomotéticas”. No caso dos físicos, os mesmos empregam e estabelecem afirmações de
ambos os tipos. As disciplinas históricas se preocupam em estabelecer afirmações
singulares sobre eventos específicos e estabelecer vínculos causais entre os mesmos.
Mesmo usando leis gerais para essa atividade, “historiadores não consideram como parte de
seus objetivos estabelecer tais leis” (Nagel, 1984, p.550).
14
No caso de eventos históricos sociais, seguindo as idéias de Popper, não usaríamos leis, mas tendências ou
princípios gerais orientadores.
15
Talvez os tijolos de nossa analogia não sejam causa um do outro, mas os antecedentes são “condição de
possibilidade” para o assentamento de seus sucessores. Na verdade o que destacamos nesse exemplo é a
importância da ligação entre um elemento ao outro na medida em que estudamos o todo e não suas partes
simplesmente. Não narramos meramente um evento e depois outro; mais do que isso - unimos esses
elementos e estabelecemos sua ordem lógica dentro da história, sua seqüência causal.
49
Uma afirmação de Nagel ilustra essa idéia e nos apresenta a grande questão que nos
propomos a discutir: É a geologia uma ciência teórica ou uma ciência histórica? Nagel
(1984, p.550) apresenta sua posição:
A partir dessa idéia, pode-se dizer que o que o geólogo busca é reconstruir o
passado da Terra na medida em que resgata os acontecimentos geológicos passados que
estão registrados na forma atual do nosso planeta e une esses acontecimentos numa ordem
lógica, numa seqüência causal que vai resultar na “história da Terra”. Como a geologia não
tem leis próprias e nem é seu objetivo estabelecer leis gerais, a mesma é considerada por
Nagel como um caso de ciência histórica.
Essa idéia de Nagel está de acordo com as idéias de Popper. A geologia é uma
ciência desprovida de leis próprias. Suas explicações têm bases nas leis da física e da
química. E como o próprio Popper diz, as ciências históricas, como é o caso da geologia, se
valem das leis universais para suas explicações, mas seu interesse está em utilizá-las para
outro fim que é o de explicar e descrever eventos singulares. Nesse sentido, para Popper, a
geologia seria um caso de física aplicada, na medida em que ela seria uma extensão dos
estudos físicos onde as leis dessa ciência encontram uma aplicação objetiva. Os objetos ou
elementos ligados à geologia funcionam como um instrumento de aplicação das leis físico-
químicas.
50
Juntamos dados da composição química daquele solo com a ação da lei da gravidade, do
atrito, pressão ou qualquer outra lei que esteja determinando o fenômeno e explicamos
como a água que percorre o cânion carrega o material de seu local de origem e o deposita
num novo local, transformando a paisagem da terra.
Para Popper, a geologia é uma ciência histórica, pois se preocupa com objetos
particulares, com hipóteses históricas singulares e não busca formular e comprovar leis
próprias. A mesma tem seu objeto de estudo particular e para explicá-lo se vale de leis da
física e da química. Ela é histórica num sentido em que poderia ser histórica a embriologia,
a fisiologia ou qualquer outra ciência que faça uso das leis gerais de outra ciência. A rigor,
a partir das idéias de Popper, dentre as ciências naturais, somente a física e a química
seriam teóricas, pois são as únicas ciências capazes de formular leis (mesmo tendo, ambas,
atividades históricas junto às atividades teóricas). As demais ciências apenas aplicam-nas.
Portanto, seriam unicamente históricas.
Nesse sentido, continua Caponi (2000, p.76), poderíamos dizer que as ciências
históricas como a geologia e a cosmologia, “poderiam ser consideradas como ciências
(teóricas) aplicadas, quer dizer, como a aplicação de leis gerais ao estudo de problemas
mais específicos”. Sendo assim, a geologia, nossa ciência em questão, seria um caso
específico de física aplicada. A geologia, como ciência histórica, não teria leis, mas suas
explicações se baseiam em leis da física. No caso do geólogo, as leis físicas servem de
referência e de ferramenta indispensável para sua atividade de reconstrução de situações e
processos geológicos singulares.
constitui o marco teórico da geologia, vista, nesse sentido, como um ramo da física e da
química.
Porém, uma segunda posição de Popper abre a possibilidade para uma nova leitura
de Simpson. Nesta segunda forma de separar aquilo que é teórico daquilo que é histórico,
Popper nos leva a crer que não só as leis naturais são de interesse da ciência teórica, mas
também o estabelecimento e a corroboração de modelos gerais de explicação. Tais modelos
fariam parte do marco teórico das ciências e, a partir deles, pode-se fundamentar
explicações científicas. Tais modelos são formulados dentro das ciências particulares. Isso
lhes dá a possibilidade de serem consideradas também como ciências teóricas na medida
em que sua preocupação esteja voltada à descoberta e à corroboração desses princípios
gerais nos quais, a partir de então, são fundamentadas as explicações dessa ciência. A partir
dessas idéias, na nossa visão, a geologia seria em parte teórica, em parte histórica e essa
distinção continua sendo estabelecida a partir do tipo de questão com que ela se preocupa.
A trajetória que nos levará à distinção entre ciência teórica e ciência histórica, a
partir das idéias de Simpson, parte da distinção que o mesmo faz com relação a elementos
imanentes e elementos configuracionais presentes no mundo. Trata-se, respectivamente, da
separação entre aquilo que é imutável, não histórico e permanentemente presente na Terra,
e aquilo que é mutável, histórico e único na constituição de nosso planeta.
Quando um físico quer investigar um fenômeno não histórico e imanente, ele faz
uso de objetos onde esse fenômeno se manifesta. É o caso da gravitação universal e de sua
manifestação no pêndulo. O cientista que está interessado em estudar a gravitação tem no
pêndulo um instrumento adequado para tal estudo. Seu propósito, porém, é o de eliminar
qualquer configuração, ignorar qualquer elemento histórico que faz parte do pêndulo
individual, particular, utilizado no experimento. Restará somente o fenômeno do
movimento do pêndulo pela ação gravitacional. Nesse experimento particular, diz Simpson
(1970, p.43), o físico “buscou uma lei imutável aplicável a todos os pêndulos e finalmente a
toda a matéria, indistintamente do tempo e do lugar”.
16
A definição de lei proposta por Simpson está de acordo com a idéia de lei proposta por Popper e que
comentamos no segundo capítulo deste trabalho.
58
articulada”, “todos os arcósios são rochas sedimentares que contêm feldspato”, etc. No caso
da generalização acerca do arcósio (como também poderia ser o caso de outros exemplos de
generalização), queremos dar a entender que estamos de acordo em relação à idéia de que
se uma rocha é sedimentar, tem determinadas características e que, em sua composição, se
inclui o feldspato, a chamaremos de arcósio. Definimos o que seja o arcósio pelas suas
características gerais. O geólogo, neste caso, está interessado em uma generalização (das
propriedades e relações comuns que existem entre um arcósio e outro), mas essa
generalização se refere às propriedades configuracionais e não às imanentes.
Ainda com relação a essa idéia, Simpson (1970, p.44) diz o seguinte:
Com isso não pensamos que a natureza do universo seja tal que
deva existir uma relação inerente, entre as rochas sedimentares e os
feldspatos, reduzível a uma constante. As leis são inerentes, isto é,
imanentes na natureza das coisas como se estivessem separadas
inteiramente das configurações contingentes, mesmo que sempre
atuem nessas configurações.
Na história da geologia houve uma época em que um dos objetivos dos geólogos
era a criação e a confirmação de leis. Um dos critérios de cientificidade e de maturidade
para uma ciência era a posse de leis próprias. Leis como as do movimento de Newton e as
leis da termodinâmica eram garantia de status elevado para as ciências. Mas apenas a
química e a física pareciam ter esse privilégio (Bradley, 1970, p.25-38). De fato, leis,
conforme a definição de Simpson (que está de acordo com a idéia de lei aceita por Popper),
não existem na geologia. Mas pensadores como o dinamarquês Nicolaus Steno, cuja obra
Prodromus (de 1669) marca o começo convencional da geologia moderna (Gould, 1991,
p.58), buscavam formular leis geológicas que pudessem dar à geologia o status de ciência,
assim como o status científico que ostentavam a química e a física.
59
A partir da concepção de lei que temos, vemos que essas duas situações são, na
verdade, casos de generalizações particulares, especiais dentro da geologia. Não são
generalizações que se possa estender a toda matéria do universo como são as leis
universais. Tais enunciados podem servir como modelos gerais de explicação (como
veremos mais adiante) ou serem visto como princípios gerais a partir dos quais o geólogo
baseia sua explicação ou sua interpretação acerca da história de qualquer seqüência
estratigráfica. Porém essas formulações teóricas não têm nem a estrutura, nem a extensão
de uma lei científica.
Mas não são apenas as leis universais que compõe aquilo que, para Simpson, é
imanente no universo. As propriedades da matéria como elasticidade, volatilidade, dureza,
etc., bem como os processos que regem as diferentes configurações da Terra também são
imanentes no universo, imutáveis e permanentemente atuantes. A nós interessa
especialmente a análise dos processos geológicos que Simpson considera como imanentes
na natureza. Para ele (1970, p.39), por exemplo, “os processos de intemperismo e erosão
são imutáveis” não são históricos. Assim como o físico estuda a ação da gravidade através
do pêndulo, o geólogo estuda a ação do intemperismo ou da erosão nos diferentes locais
onde a ação dessas forças é evidente. Aquilo que é configuracional é regido pela ação
60
daquilo que é imanente; e o que é imanente só pode ser estudado nos fenômenos concretos,
nas diferentes configurações que mudam pela ação de tais forças.
uma ciência histórica, o único aspecto da geologia que lhe é peculiar, e isto é,
simplesmente, geologia e não outra coisa”.
Vemos que, na concepção de Simpson, a geologia, nos termos que lhe são
exclusivos, é histórica. Compiani (1990 p.285), ao tecer comentários acerca das idéias de
Simpson, diz o seguinte:
Compiani (1990, p.286) segue dizendo que, para Simpson, o geólogo, quando
estuda, por exemplo, a erosão, “usa indiscriminadamente as generalizações físicas e
químicas”. A geologia, nesse sentido, sendo um ramo das ciências físico-químicas, aplica
as leis dessas ciências para explicar a imanência dos processos geológicos. “Isto ocorre
porque as possíveis generalizações sobre estes processos não são realizadas dentro do
âmbito da Ciência geológica” (Compiani, 1990, p.286).
Porém, um fator chama a atenção quando Simpson fala da geologia como sendo
um ramo da física e da química. Segundo ele, o ramo dessas ciências que estuda a Terra é a
geologia; o objeto de análise desse ramo está bem especificado. A geologia, para Simpson
(1970, p.40), “está obrigada a tratar das propriedades e dos processos imanentes da Terra
física e seus constituintes”. A geologia não deixa de ser geologia mesmo sendo uma parte
da física e da química, mas deixa de ser uma ciência independente, com conteúdo próprio,
para ser um domínio de outras ciências. Simpson não menciona tal distinção, mas
poderíamos, a partir de suas idéias, diferenciar geologia física de geologia histórica, como
fez Laudan. Assim, estudar os elementos imanentes da Terra seria fazer geologia e física
62
idéias em relação à distinção entre ciência teórica e ciência histórica. Outro fator importante
nessa distinção é a forma como cada uma delas se questiona sobre seus respectivos
problemas. Para Simpson (1970, p.51) é importante “saber a qual das explicações deve-se
considerar como universal ou como contingente”. O tipo de questão que nós fazemos trará
63
Para Simpson, “como?” é o problema típico das ciências não históricas que se
questionam sobre como funcionam as coisas. Na geologia temos perguntas do tipo “como
as correntes erodem os vales?”, “como se formam as montanhas?”, “como as geleiras se
deslocam?”, etc. As questões são bastante abrangentes e buscam explicar uma classe inteira
de fenômenos. “Todas estas coisas se originam em função dos processos físicos e químicos
implicados” (Simpson, 1970, p.51). A primeira etapa de uma explicação desse tipo, diz
Simpson, é, geralmente, uma descrição generalizada. Tal descrição é unida a leis gerais que
incorporam relações invariáveis entre fenômenos variáveis, mas que apresentam certa
17
A exemplo de Mayr (1998), Simpson separa tipos de questões para distinguir tipos de ciências. No caso de
Mayr, vemos que a separação que ele faz entre biologia funcional e biologia evolutiva fundamenta-se,
principalmente, em questões do tipo “como?” e “por quê?”. “Como?” caracteriza as questões da biologia
funcional. A mesma preocupa-se em explicar as causas próximas, no sentido de explicar como (quais as
causas?) algo ocorre: “como um organismo se desenvolve?”, “como os alimentos são digeridos?”, “como
ocorre a fecundação?”, etc. Nesse sentido as leis físico-químicas exercem papel importante na explicação.
“Por quê?” caracteriza as questões da biologia evolutiva. Seu interesse está voltado às explicações das causas
remotas ou evolutivas: “por quê o beija-flor tem o bico comprido?”, “por quê a baleia desenvolveu
nadadeiras?”, “por quê certas plantas desenvolvem espinhos?”, etc. As questões da biologia evolutiva são
questões que buscam descobrir quais as vantagens evolutivas de certa espécie que permitem que a mesma
tenha sucesso maior que outras em relação à sobrevivência e à reprodução. Nesse tipo de questão as leis
físico-químicas têm papel reduzido na explicação. Porém, nas palavras do próprio Mayr (1998, p.93): “Todos
os processos biológicos têm ao mesmo tempo uma causa próxima e uma causa evolutiva”. A separação na
biologia somente significa uma diferenciação no interesse do biólogo acerca de determinado tipo de questão.
“(...) dentro de um mesmo tema a investigar, as questões relativas às causas próximas podem entrecruzar-se e
articular-se com questões relativas às causas remotas ou evolutivas (...)” (Caponi, 2000, p.70).
64
Note-se que o que está em questão nesse tipo de problema são os fenômenos gerais
que, para Simpson, são imanentes na natureza. Quando nos questionamos sobre “como” as
correntes erodem os vales não estamos querendo explicar um caso particular de erosão, mas
sim o fenômeno “erosão”. Se nos questionamos sobre a elevação das montanhas, não
queremos estudar um fenômeno epirogenético particular (como a elevação da Cordilheira
dos Andes), mas o funcionamento geral do fenômeno geológico chamado “epirogênese”,
mesmo que, para isso, tenhamos que analisar casos particulares de tal fenômeno.
Por outro lado, perguntas do tipo “como aconteceu” buscam resgatar a seqüência
histórica de determinado fenômeno. “As respostas a estas perguntas são explicações
históricas” (Simpson, 1970, p.53). “O que aconteceu para que o cânion do Itaimbezinho
chegasse à forma que tem hoje?”, “como este fóssil chegou até o local onde está?”, “como
foi que aconteceu a Deriva Continental que deixou os continentes na posição em que estão
hoje?” são exemplos de questões de característica histórica.
18
Novamente podemos notar a semelhança entre as idéias de Simpson com as idéias de Popper que
apresentamos anteriormente. Uma explicação, nestes termos de Simpson, obedece à estrutura nomológico
dedutiva trabalhada por Popper.
65
predição” (Simpson, 1970, p.55). Se constatarmos, por exemplo, que a ação erosiva da
água, em determinado lugar, ocasiona um desgaste regular naquele terreno, podemos prever
que, se as condições de força da ação da água se mantiverem, assim como a condição da
estrutura do terreno, a erosão continuará. Nestas circunstâncias, estamos autorizados (ou
justificados), se for o caso, a pedir a evacuação das famílias situadas em moradias
estabelecidas em locais de risco de desmoronamento ou deslizamento de terra devido à
ação erosiva da água naquele lugar. A constatação da regularidade do fenômeno nos dá
segurança em relação a possíveis direcionamentos dos acontecimentos. Apesar de ser um
fato único, a semelhança dele com outros fatos do mesmo tipo nos leva, por analogia, a
esperar que aconteçam direcionamentos semelhantes.
Para tentar esclarecer um pouco melhor a idéia de que a geologia tem seus
próprios marcos teóricos e não se restringe às explicações históricas, vamos recorrer a uma
segunda posição de Popper em relação à discussão que separa ciência teórica de ciência
histórica. A partir dessa nova posição de Popper, tentaremos elucidar ou reformular as
idéias de Simpson que poderão ser analisados sob outro ponto de vista.
Os textos de Popper, até então analisados neste trabalho, nos levam a crer que, para
o mesmo, a geologia seria um caso de ciência histórica. Essa ciência, a partir desse
posicionamento, não faria mais do que aplicar leis da física e da química no estudo de seus
objetos particulares, assumindo, assim, seu caráter histórico, específico e singular. Outro
texto de Popper (1997), porém, parece abrir a possibilidade de encararmos a geologia de
outro ponto de vista. Perceber a geologia a partir dessa nova visão nos faz pensar essa
67
ciência como uma ciência de conteúdo teórico próprio. A geologia, segundo essa posição,
teria seus próprios modelos teóricos de explicação.
Em O mito do marco comum, Popper apresenta um novo elemento que nos permite
dizer que não só a física e a química são possuidoras de caráter teórico próprio, mas
também outras ciências como a biologia, a geologia e mesmo as ciências sociais têm
elementos teóricos próprios. Nessas alturas, Popper apresenta a questão dos modelos de
explicação, formulados em cada uma das ciências, e que servem de base teórica na
construção de explicações científicas.
Popper (1997, p. 162) nos chama a atenção dizendo que “a diferença entre essas
duas classes de problemas está em que se pode resolver a primeira sem construir um
modelo, enquanto que a segunda é mais fácil de resolver por meio da construção de um
modelo”. Se quisermos resolver um problema da primeira classe, precisamos elencar certas
leis universais e as condições iniciais relativas e determinantes ao fenômeno em questão19.
Seguimos, então, a estrutura da explicação científica proposta por Popper (leis gerais +
condições iniciais) para chegarmos às conclusões desejadas em nossa análise.
A forma de responder à segunda questão seria diferente. Uma questão parecida seria
a seguinte: “Com que freqüência ocorrem os eclipses da lua?”; ou poderíamos reformular a
questão de Popper: “Por que os eclipses da lua só ocorrem quando temos lua cheia?”. Já
não temos um caso de um eclipse em particular, mas nos questionamos sobre o fenômeno
“eclipse da lua” de um modo geral. Não queremos saber sobre o próximo ou os dois
próximos eclipses somente, mas queremos entender estes e os demais também. É uma
questão que abrange uma classe inteira de fenômenos. Para tanto, Popper propõe o uso de
modelos de explicação. Esses modelos também são provenientes de estruturas explicativas
que levam em consideração leis gerais e condições iniciais específicas. Porém, o que a
formulação desses modelos nos permite é esboçarmos novas explicações (mais gerais e
abrangentes) a partir dos modelos. Nesse sentido, as leis universais e muitas das condições
iniciais são pressupostas em nossa explicação baseada nos modelos. Um modelo de
explicação engloba leis e condições iniciais, formando, a partir delas, um novo conteúdo
19
No caso do eclipse, Popper diz que precisamos considerar as leis newtonianas do movimento e condições
iniciais como as massas, as velocidades, as posições e os diâmetros dos três astros em questão (sol, terra e lua)
num determinado espaço de tempo e considerar que, dos três, somente o sol emite luz. Com esses dados é
possível responder à questão que específica sua dúvida com relação ao momento dos próximos dois eclipses
da lua.
69
É claro que os modelos nos quais nos baseamos para explicarmos fatos são modelos
teóricos rigorosos e fundamentados nas regularidades do mundo. E eles nos permitem a
compreensão do mundo não, apenas, com base em maquetes, mas com base em conjuntos
de informações sobre determinado fenômeno e que ligam uma classe inteira desses fatos.
Sabemos como acontecem os eclipses, como explodem vulcões, como funciona o
“mecanismo” da evolução das espécies, etc. Deparamos-nos com correlações constantes
entre variáveis que nos permitem formular predições sobre o comportamento de uma classe
de fenômenos a partir da constatação de regularidades comuns entre eles. São casos que,
pela especificidade de seus objetos, não podem ser considerados como leis gerais da
natureza. Analisados a rigor, esses fenômenos são regidos pelas leis da natureza também,
mas não precisamos partir sempre delas para apresentarmos certas explicações que podem
ser alcançadas a partir de modelos. Não seria conveniente explicar a deriva continental
considerando todas as leis da natureza determinantes nesse fenômeno. Pressupomos estas
leis e esboçamos modelos teóricos que nos fazem compreender como ocorre a deriva
continental, quais os fatores que influenciam em seu maior ou menor avanço, entre outros
fatores que podem ser considerados numa teoria complexa desse tipo.
70
Segundo Popper (1997, p.163), “os modelos, tal como aqui se entendem, se poderia
chamar também ‘teorias’, ou se poderia dizer que incorporam teorias, posto que são
tentativas de resolver problemas, problemas de explicação”. Poderíamos dizer que os
modelos funcionam como uma espécie de atalho, pelo qual se chega mais rapidamente às
explicações desejadas. Evita-se a tarefa de buscar, a cada explicação, as leis atuantes e a
totalidade de condições iniciais em relação ao fenômeno, e parte-se dos modelos já
estabelecidos para se realizar a mesma tarefa. Diante da atividade de se explicar fenômenos
típicos, operamos com modelos de explicação, ao passo que fenômenos isolados, singulares
são estudados com mais detalhamento, partindo desde suas leis determinantes e de suas
condições iniciais.
(1970, p.41): “o estudo científico pleno das configurações geológicas é uma ciência
histórica, o único aspecto da geologia que lhe é peculiar, e isto é simplesmente geologia e
não outra coisa”.
Isso nos leva a crer que a rigorosa separação entre ciência teórica e ciência
histórica não seria mais levada tanto em consideração, uma vez que todas as ciências teriam
ambas as atividades teórica e histórica. A distinção ainda existe, ainda permanece, mas é
estabelecida a partir de outros critérios ainda muito semelhantes aos critérios que até então
havíamos apresentado. Essa distinção, fundamentada na nova posição de Popper (a respeito
dos modelos teóricos) e numa nova leitura de Simpson20, focaliza o tipo de questão com
que as ciências se preocupam. A diferença está no objeto de preocupação relativo a cada
uma das distinções de ciência. Porém, o horizonte de investigação próprio das ciências
teóricas é ampliado e passa de uma preocupação exclusiva com leis físico-químicas para
uma preocupação com modelos gerais de explicação (que inclusive englobam as leis
naturais), que passam a ser considerados o marco teórico de cada ciência.
De fato, eles não são imanentes, como é o caso das leis naturais, mas podem fazer parte do
conteúdo teórico da geologia sem reduzirmos tais fenômenos a explicações físico-químicas.
Também não precisamos considerar que o conteúdo teórico da geologia fundamenta-se
exclusivamente em leis físico-químicas. A geologia tem seu conteúdo teórico próprio e a
constatação de padrões de processos geológicos serve de confirmação para isso. Com base
na regularidade de certos processos geológicos estabelecemos modelos de explicação que
são exclusivos da geologia.
20
Posteriormente em nosso trabalho a distinção entre ciência teórica e ciência histórica também será ilustrada
e exemplificada a partir das idéias de Hull.
73
A partir dessas idéias, mantém-se a distinção que Simpson faz entre cientistas não
históricos e cientistas históricos e seus interesses pelas similitudes e pelas diferenças
respectivamente. Em relação aos fenômenos geológicos, os cientistas não históricos ou
teóricos estariam preocupados em formular e testar modelos construídos na ciência
geológica; seu interesse está voltado à compreensão das semelhanças que unem eventos de
um mesmo tipo: “o que caracteriza um fenômeno como sendo vulcanismo?”, “o que é o
fenômeno erosão?”, “como as geleiras se deslocam?”. Questões gerais desse tipo
caracterizam estudos teóricos acerca de um determinado tipo de fenômeno. Por outro lado,
questões históricas buscam explicar as diferenças entre fenômenos semelhantes: “Por que a
glaciação do fim do Pré-Cambriano foi maior do que a que ocorreu no Pleistoceno?”, “Por
que o continente Sul-Americano separou-se do continente Africano?”, “Por que houve um
deslizamento de terra no Morro da Cruz em Florianópolis?”. Estas questões são
particulares, históricas, restritas a determinadas coordenadas espaço-temporais.
O grande passo que se dá, a partir desse novo ponto de vista, em relação ao
conteúdo teórico da geologia é uma independência maior dessa ciência em relação às
74
ciências físico-químicas. A geologia se propõe questões históricas, mas também tem suas
questões teóricas que não são possíveis de responder somente com base nas leis físico-
químicas. É o raciocínio geológico que possibilita unir leis que regem certos eventos na
Terra e as regularidades dos processos geológicos.
Alguns exemplos podem ajudar a esclarecer mais nossa idéia. Se nos esforçamos
para definir o que vem a ser o fenômeno “vulcanismo”, estamos tentando formular uma
idéia geral que busca reunir todos os tipos de vulcões a partir de algo que é comum entre
todos eles. Mesmo existindo vulcões diferentes, com diversos tipos de manifestação (maior
ou menor quantidade de lava, maior ou menor quantidade de gases, com determinado tipo
de cone, com formação de caldeira ou não, etc.), há algo entre eles que os reúne numa
mesma classe de fenômeno geológico chamado vulcanismo. Vulcanismo ou atividade
vulcânica é definido por Holmes (1987, p.209) da seguinte forma: “a atividade vulcânica
compreende todos os fenômenos associados com a descarga na superfície de materiais
magmáticos, sólidos, fundidos e gasosos, procedentes de chaminés ou fissuras comunicadas
com as zonas profundas de grande temperatura”. A partir dessa definição geral de
vulcanismo, reunimos vários casos desse fenômeno, várias manifestações do processo
chamado “vulcanismo” (Vesúvio na Itália, Paricutin no México, Krakatoa na Indonésia,
Mauna Loa no Havaí, etc.) numa mesma classe de fenômeno. Isso também nos possibilita
entender como foram os vulcões da época dos dinossauros, ou como podem ser os vulcões
de Marte se eles existirem, ou mesmo como serão os vulcões que poderão vir a formar-se
aqui na Terra no futuro. Podemos entender como eles funcionaram, funcionam ou poderão
funcionar, não em suas peculiaridades, mas em suas características gerais, naquilo que
caracteriza um fenômeno como vulcanismo (desde as condições em que ocorre tal
fenômeno, até o funcionamento geral de um vulcão).
Outro exemplo que ilustra o papel dos modelos nas explicações geológicas é a
explicação de um depósito várvico . Tais depósitos são constituídos de rochas sedimentares
definidas como “varves”. Na definição de Eicher (1969, p.94-95), “varves são pares de
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camadas produzidas por variações climáticas sazonais. Um depósito várvico consta, assim,
de uma seqüência repetitiva de ciclos anuais”. Os “pares” de camadas constituem-se de
uma camada escura e de uma camada clara. Nos lagos glaciais, a partir do derretimento do
gelo no verão, há grande influxo de silte para o lago, ocasionando depósitos claros. Já no
inverno, ocorre depósito de argila quase pura e material orgânico em suspensão e isso
produz depósitos escuros. A partir do momento em que o pesquisador inteira-se em relação
à regularidade desse processo, tal informação passa a compor o conteúdo teórico utilizado
por esse cientista para explicações desse tipo de fenômeno. Diante de uma nova camada de
varves, esse cientista tem condições de explicar como aconteceu a formação do mesmo a
partir do modelo de formação das varves que ele já conhece. Se num par de camadas a
camada escura é mais espessa do que a camada clara, isso nos sugere que o período de
inverno foi maior do que o período de derretimento do gelo. Para essa explicação são
utilizadas, de forma limitada, as leis da química e da física, que se reduzem à distinção
entre os materiais de cada camada (composição química) e à forma em que estão
depositados os sedimentos. Contudo, a explicação do processo geológico em si é
exclusividade da geologia e de seus modelos; é o raciocínio geológico, a partir de seus
modelos corroborados, que compreende o fenômeno.
Simpson não via isto, mas a idéia de modelo proposta por Popper nos permite
dizer que, pressupondo as leis físico-químicas, podemos fundamentar explicações a partir
de modelos estabelecidos nas outras ciências, desde que estejam devidamente corroborados.
Nesse sentido, a geologia também pode ser teórica se o seu interesse está voltado às
generalidades dos fenômenos geológicos e à formulação e corroboração de modelos de
explicação para os mesmos. A explicação de um físico ou de um químico é muito limitada
diante de fenômenos complexos como é o caso dos fenômenos geológicos. As leis dessas
ciências são utilizadas como ferramentas para as explicações, mas o “entendimento” de um
fenômeno geológico é alcançado através de modelos geológicos e não com base em
modelos físicos ou químicos. Um físico não explica, apenas pelas leis da física, um
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fenômeno como o vulcanismo; tampouco o faz o químico a partir de suas leis. Nenhuma
outra ciência senão a geologia pode explicar adequadamente seus fenômenos. Como diz
Bradley (1970, p. 35): “tão importantes como a física e a química são as soluções dos
problemas que surgem dos estudos geológicos e de cuja formulação não podem se
encarregar nem os físicos, nem os químicos, a menos que se convertam em geólogos”.
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A noção de sujeito central e a distinção entre nomes próprios e nomes comuns que
aparecem no pensamento de David Hull nos oferecem novos elementos, a partir dos quais
distinguimos aquilo que é teórico daquilo que é histórico. Basicamente, essa distinção
separa nomes que denotam indivíduos particulares e nomes que se referem a uma classe de
indivíduos. Na atividade de pesquisa geológica, podemos identificar o interesse pelo teórico
ou pelo histórico na medida em que verificamos o interesse do geólogo por aquilo que é
comum ou por aquilo que é particular com relação ao objeto de investigação. Essas
distinções nós alcançamos quando compreendemos os elementos que estão envolvidos na
explicação que Hull e alguns outros pensadores chamam de explicação narrativa.
1 – Explicações narrativas
mundo compreensível, inteligível, afinal, explicar o que acontece. Segundo Beltrán (1998,
p. 201), “a narrativa articula e liga os acontecimentos para torná-los inteligíveis.
(...)Inteligibilidade, compreensão, são, pois, uma primeira e evidente função das
narrativas”. As narrações unem dados numa seqüência temporal determinada, contando a
“história” desse acontecimento. A união das etapas que levaram ao fato a ser explicado
torna-o compreensível. Como diz Richards (1998, p.240), “as narrações capturam os
acontecimentos principais em redes causais que os fixam inevitavelmente”. E continua: “a
compreensão narrativa é a compreensão causal: explicamos, e então compreendemos, um
acontecimento em relação às suas causas” (1998, p.242). Portanto, compreendemos o fato,
à medida que apontamos momentos ou sujeitos centrais dentro de um espaço temporal,
mostrando que há conexão entre um e outro.
Não podemos perder de vista o elemento “conexão” que une um evento particular a
outro e que torna a seqüência desses fatos compreensível. Talvez os autores que recém
mencionamos não dêem a merecida importância a esse elemento, mas, mais adiante,
trataremos melhor desse assunto. O importante, agora, é perceber que os mesmos não
desconsideram tais conexões e as têm como algo necessário na construção de uma narração.
Um exemplo de Martínez (1998, p.156) ilustra essa idéia: “se nos perguntamos por que
temos dentes molares, as respostas requerem, em certos contextos, uma referência a um
processo adaptativo, a uma narrativa que descreva tal processo. Como parte dessa narrativa,
se busca reconstruir as forças que explicam a adaptação”. Enumeramos as etapas evolutivas
que levam ao surgimento de dentes molares e unimos tais etapas recorrendo às forças ou
princípios adaptativos.
previsões científicas e, por isso, não estariam autorizadas a explicar cientificamente. Sem
leis próprias, uma disciplina não pode apoiar nenhuma explicação. Considerando isso, diz
Richards (1998, p.214), “sem leis, os relatos históricos poderiam, quando muito, ser
esboços de explicação, não explicações reais. (...) se a história não pode produzir
explicações reais, tampouco pode fazê-lo sua aliada, a biologia evolutiva”.
Imaginemos, diz Beltrán (1998, p.201), que uma amiga nossa vai ao dentista e esse
fato nos deixa intrigados a ponto de querermos entender o porquê desse acontecimento.
Não chegamos a conversar com ela, mas, casualmente, encontramos sua agenda e nos
deparamos com os seguintes dados: Segunda-feira 12, 9 am, café da manhã com Luis;
Quinta-feira 16, dentista, 8 pm ...). Até esse ponto não nos é claro o motivo da visita de
nossa amiga ao dentista. Encontramos, porém, algumas anotações, nessa mesma agenda,
como se fossem anotações de um diário: Hoje, segunda-feira, tomei café da manhã com
Luis, fazia meses que não o via. Fiquei tão nervosa que mordi o garfo, me caiu a
obturação... Na quinta-feira vou ao dentista, pois não agüento de dor. A partir desses
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dados o fato torna-se compreensível. Não vemos uma ligação natural entre a informação do
encontro com Luis e a ida ao dentista. São duas informações isoladas que se ligam a partir
do relato dos acontecimentos. A narração nos deixa claro o motivo pelo qual nossa amiga
teve que ir ao dentista após visitar Luis.
relevantes. O cientista não viu a extinção dos dinossauros, nem a extinção das outras
espécies daquele período. Mas seu marco teórico direciona as pesquisas desse cientista: o
cientista tem hipóteses para as extinções e sabe quais são os possíveis dados que apontam
para as causas delas (mudanças climáticas, extinções de certas espécies que levam à
extinção de espécies que dependiam das primeiras para sobreviver, mudanças no habitat,
etc.); sabe também que o irídio é produto da queda de corpos celestes como cometas e
meteoritos. Os cientistas que investigam a extinção dos dinossauros encontraram uma fina
camada de irídio no limite geológico que marca as extinções; por esses dados, e pelo marco
teórico que tem, o cientista é levado a acreditar que a queda de corpos celestes está
relacionada às extinções daquela época. Esses são alguns exemplos do marco teórico que
cientistas precisam ter para explicar fatos históricos que carecem de leis gerais para serem
explicados.
Aqui podemos apontar o papel dos modelos teóricos que auxiliam na explicação de
fatos históricos nas ciências desprovidas de leis próprias. Como dissemos no capítulo
anterior, os modelos servem como marco teórico que nos possibilita construir explicações
científicas. Pressupondo as leis universais da química e da física, podemos explicar de
acordo com modelos bem corroborados dentro das outras ciências. Isso nos apontou a
possibilidade de encararmos ciências, outrora tidas como históricas, como sendo também
teóricas, na medida em que elas se preocupam em formular e testar modelos gerais de
explicação.
balizam o pesquisador e que permitem unir um fato a outro. Se há conexão possível entre
acontecimentos, isso pode ser identificado e apontado pelos modelos já corroborados dentro
dessa ciência.
Todas as ciências que não tem leis próprias se esforçam por criar modelos gerais
que dêem sustentação e que guiem o pesquisador em seu trabalho. Biólogos evolucionistas
têm presente o princípio de seleção natural para explicar a evolução das espécies; médicos
sabem como se comporta um vírus submetido a determinado remédio; meteorologistas
sabem quais são os sinais que indicam a formação de um furacão; geólogos utilizam seu
marco teórico para apontar locais onde pode haver um depósito petrolífero. Nenhuma
dessas informações são leis gerais, mas fazem parte do marco teórico desses profissionais
que conseguem interagir com o mundo e explicar fatos ou tomar posições perante
determinado problema.
David Hull merece comentários em um ponto à parte, pois suas idéias nos ajudarão
a ilustrar um pouco mais nosso argumento em prol dos modelos de explicação. Hull não
chega a mencionar o fato de que uma ciência pode se preocupar com a formulação e
corroboração de modelos gerais, mas a distinção que o mesmo faz entre nomes próprios e
nomes comuns nos permite explorar um pouco mais a distinção entre o que é geral e o que
é particular. Isso pode apontar os diferentes objetivos de uma ciência e, se for o caso, pode-
se, a partir dessa dedicação a determinado tipo de objetivo, distingui-la como teórica ou
como histórica.
Para entender a estrutura de uma narração, segundo Hull, é necessário ter presente
a noção de sujeito central. Para ele (1998, p.250), “o papel do sujeito central é formar a
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linha principal ao redor da qual se tece a narração histórica”. Os sujeitos centrais devem ser
vistos como indivíduos e como entidades históricas. “A identidade e a continuidade de tais
indivíduos podem e devem ser determinadas independentemente dos eventos que
conformam a narração. Os sujeitos centrais proporcionam a unidade e a continuidade
básicas da narração histórica” (Hull, 1998, p.250). Quanto ao termo “entidade histórica”,
Hull (1998, p.250) diz que “não é somente uma entidade que existe no tempo. É uma
entidade coerente e unitária que, ou persiste sem mudanças ou se desenvolve
continuamente através do tempo”.
Deve-se prestar atenção, segundo Hull, nos critérios mediante os quais se decide
quando um indivíduo é somente um indivíduo e o mesmo indivíduo através do tempo, e
naqueles critérios por meio dos quais se decide quando dois indivíduos pertencem ao
mesmo tipo ou quando um indivíduo muda de tipo. Em relação a isso, Hull (1998, p.256)
nos dá o seguinte exemplo:
Um átomo de ouro continua sendo o mesmo átomo desde que foi encontrado
fazendo parte de uma pepita de ouro numa mina, passou por fundição, foi transformado
junto com outros átomos de ouro em barra e posteriormente foi parar em um anel no dedo
de uma pessoa qualquer. Mesmo que esse átomo tenha sido modificado e tenha se
transformado em outro tipo de átomo, continuaria sendo o mesmo átomo. “Um átomo de
chumbo que se transforma em um átomo de ouro segue sendo o mesmo indivíduo, porém
não o mesmo tipo de indivíduo. Um organismo, à medida que transcorre seu ciclo vital,
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segue sendo o mesmo indivíduo, mesmo que sua organização, tanto interna como externa,
possa mudar consideravelmente” (Hull, 1998, p.257).
Com base nesta distinção, Hull (1998, p.257) diz que “indivíduos são entidades
históricas porque se incluem, entre os critérios para sua identidade, a continuidade no
espaço e a continuidade no tempo”. As classes de tais indivíduos não são entidades
históricas porque lhes falta tal critério. A partir disso podemos dizer que ouro, átomo, gene,
espécie dominante, sociedade industrial, são casos de nomes comuns. Por outro lado, o
átomo, o gene X, o homem, a sociedade industrial do século XIX, são casos de nomes
próprios, sujeitos centrais dos quais podemos construir narrações históricas.
Hull reacende uma discussão polêmica quando defende a idéia de que as espécies
biológicas são indivíduos. Nesse sentido, por exemplo, “cisne” é um nome próprio.
Normalmente “cisne” é um termo visto como sendo um conceito agrupante, ou seja, “é um
nome comum que denota uma classe de pássaros e que é definível mediante um conjunto de
87
características” (Hull, 1998, p.253). Mas, há muito tempo, os biólogos protestam contra
essa idéia. Nas palavras de Hull (1998, p.254):
Nesse sentido, o nome que designa uma espécie é um nome próprio. Para Hull, as
espécies evolutivas poderiam servir como sujeitos centrais nas narrações históricas. Quando
um paleontólogo se preocupa em reconstruir a história de uma espécie, seu interesse está
em reconstruir a história da evolução de uma espécie que pode apresentar mudanças
radicais na fisiologia desse animal. Porém, os vários momentos dessa espécie podem ser
conectados no túnel espaço-temporal. Essa espécie tem uma história que pode estar
marcada por várias mudanças. Como Moisés mudou muito, desde o momento em que foi
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encontrado no rio pela filha do faraó até a sua morte, uma espécie também sofre mutações
desde o seu surgimento até a sua extinção; mas permanece sendo a mesma espécie, de uma
extremidade a outra de sua existência.
21
De fato, a embriologia apresenta um programa de desenvolvimento histórico bem mais rigoroso do que
outras disciplinas históricas. Mesmo estando aberto à influência de fatores externos, o desenvolvimento de um
embrião respeita certa linha cronológica e padrões morfológicos que pouco mudam de um embrião para outro.
Há uma previsibilidade considerável em relação ao resultado de um desenvolvimento embrionário normal.
Isso, porém, não acontece de maneira tão evidente nas outras disciplinas históricas. Não há direcionamento
pré-estabelecido no desenvolvimento de um planeta, de uma camada sedimentar, ou no desenvolvimento da
espécie humana. Na geologia, podemos identificar alguns padrões de desenvolvimento de certos minerais com
referência a seus sistemas de cristalização. A cristalização dos minerais pode respeitar padrões geométricos
que podem apresentar sistemas cúbicos, tetragonais, hexagonais, etc. Mas não há rigorosidade com respeito
ao tamanho e ao tempo de desenvolvimento dos cristais – apenas há padrão na forma de seu desenvolvimento.
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Mesmo as disciplinas históricas têm regras práticas que, para Hull (1998, p. 260),
são “utilizadas para reconstruir os acontecimentos passados sobre a base de documentos
atuais”. Até a própria história tem suas regras: “Por exemplo, se Aristóteles menciona sua
História dos animais em sua Metafísica, mas não o inverso, então provavelmente começou
sua Metafísica depois de completar sua história” (Hull, 1998, p.261). As reconstruções
históricas de acontecimentos precisam de referências para distribuir fatos e personagens nos
devidos lugares ao longo da história. Um exemplo interessante de regras da historiografia
pode ser encontrado na pesquisa do Projeto de Arqueologia Subaquática na praia de
Ingleses, em Florianópolis, Santa Catarina. O resgate histórico do sítio arqueológico
submerso nesse lugar, que apresenta peças do naufrágio de um galeão europeu, é guiado
por certas regras. Vários objetos, como anéis de vários tipos, são encontrados nesse sítio.
Como saber se as peças encontradas podem ser do naufrágio ou se elas são apenas objetos
perdidos por algum turista dos dias atuais? Conversando com o pessoal encarregado da
classificação das peças, descobre-se que eles observam o material de que a peça é feita; se
for de plástico, o objeto não pertence ao navio naufragado, pois os objetos do naufrágio são
de uma época em que não se faziam objetos de plástico. Porém, se o objeto for de metal,
outras observações são feitas, como dar atenção aos desenhos e às formas das peças que
podem apontar a época em que as mesmas foram fabricadas. Há, portanto, um marco
teórico ao qual o historiador precisa recorrer para construir uma narração que seja a mais
fiel possível com relação aos fatos acontecidos.
queremos reconstruir. São esses princípios, regras, ou modelos que servem de “cimentos
teóricos”, como diz Hull (1998, p.264), que nos permitem juntar vários momentos da
história numa única narração.
A distinção que David Hull faz entre nomes comuns e nomes próprios separa
aquilo que é particular e histórico daquilo que é geral e que não é tratado pela história. A
partir disso, podemos distinguir elementos históricos e não históricos. Um átomo de ouro é
um indivíduo, pode ser um sujeito central de uma narrativa, tem uma história e pode ser
caracterizado como um sujeito de nome próprio, distinto de outros. A palavra “ouro”
designa uma classe inteira desse elemento de número atômico 79 e caracterizado na tabela
periódica pelo símbolo Au. Nesse sentido “ouro” não tem história, não é um sujeito
particular sobre o qual se pode construir uma narração. Contar a história de um átomo de
ouro é realizar uma atividade histórica. Porém, lidar com as generalidades dessa classe,
com características, com propriedades comuns a toda a classe chamada ouro, é realizar uma
atividade de interesse teórico que não põe nenhum interesse histórico particular em jogo.
mas tampouco a seleção natural. As espécies têm história, tal como as galáxias” (Hull,
1975, p.124). Por isso as espécies são caracterizadas por nomes próprios e são sujeitos
centrais de uma narrativa, como podem ser cada uma das galáxias.
Hull considera a geologia como uma disciplina histórica, como uma ciência
preocupada em reconstruir a história da Terra. A Terra, de fato, é um sujeito central dentro
de uma narrativa. O geólogo, quando busca reconstruir os fatos que marcaram a história da
Terra, colocando-os ao longo de uma seqüência temporal, no túnel do espaço-tempo, e
estabelecendo ligações entre os mesmos, está realizando uma atividade narrativa, uma
atividade histórica. Nesse sentido, o interesse da geologia é realmente histórico. Por outro
lado, a atividade da geologia não se reduz à reconstrução da história da Terra. Como já
comentamos, para reconstruir a história de qualquer sujeito central, é necessário guiar-se
por marcos teóricos que liguem os vários momentos desse sujeito ao longo do tempo. O
preparo desse “cimento” teórico também é necessário dentro das ciências como a geologia.
O marco teórico próprio da geologia compõe-se de generalidades, princípios ou modelos de
fenômenos geológicos que guiam o pesquisador em sua investigação. Se o geólogo está
interessado em descobrir e testar tais modelos, ele não está preocupado com questões
históricas relativas a indivíduos ou sujeitos centrais, mas se volta à compreensão do que é
comum em certos fenômenos ou em certa classe de indivíduos. Essa atividade de busca e de
compreensão daquilo que é comum dentro de certos fenômenos ou classes de indivíduos é
uma atividade que podemos caracterizar como teórica.
com relação a certa classe. Dentro da geologia, bem como dentro de qualquer outra ciência,
podemos identificar diferentes interesses em relação aos objetos de estudo; o interesse pode
estar em explicar um fenômeno ou objeto particular, mas também pode estar na
identificação daquilo que é comum entre uma classe inteira de indivíduos.
A partir da distinção que David Hull faz entre nomes próprios e nomes comuns,
podemos separar atividades históricas e atividades teóricas dentro da geologia. Em se
tratando de nomes próprios, com relação a elementos geológicos, podemos dizer que
exemplos característicos desses nomes seriam Vesúvio, Itaimbezinho, Jurerê, esta amostra
de granito, etc. Paralelamente a esses nomes próprios, teríamos os nomes comuns referentes
a esses indivíduos ou fenômenos particulares: vulcão, cânion, praia, granito. Investigar o
Vesúvio seria uma atividade histórica se tivéssemos ele como um sujeito central e se
estivéssemos interessados em reconstruir a história de suas erupções. Porém, se
investigamos o Vesúvio, o Krakatoa, o Etna, e o Mauna Loa, não com a intenção de
reconstruir a história desses vulcões, mas interessados no que existe de comum entre eles,
nosso interesse é teórico. Da mesma forma podemos diferenciar interesses históricos de
interesses teóricos quando investigamos o cânion do Itaimbezinho, a praia de Jurerê ou uma
amostra de granito. Podemos estar interessados nas particularidades desses indivíduos ou
podemos estar cumprindo mais uma etapa na investigação teórica que busca compreender o
que há de comum entre os cânions, entre as praias ou entre os granitos.
Com base nessas idéias, podemos dizer que a geologia não pode ser considerada
somente como uma ciência de interesse histórico. Suas atividades e seus interesses são
bastante variados. Isso faz dela uma ciência que pode ser tanto teórica como histórica. Essa
idéia se aplica a qualquer outra ciência que tem como desafio explicar acontecimentos
singulares, mas que também precisa construir seu marco teórico que possibilite tais
explicações. O geólogo pode estar interessado em explicar um fenômeno particular, mas
sua explicação não é simples narrativa. Ele vai a campo com uma bagagem teórica que lhe
permite captar informações necessárias para alcançar seu objetivo. Sem tais marcos
teóricos, muitas informações importantes para sua investigação podem passar
despercebidas. Por outro lado, sua investigação particular pode adicionar informações
gerais ao marco teórico de sua ciência. Aos poucos essa bagagem teórica vai engrossando e
melhorando as condições de se explicar as coisas. O teórico e o histórico mostram-se,
ambos, fundamentais para o crescimento de uma ciência.
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CONCLUSÃO
históricos. Numerar as atividades teóricas e as atividades históricas não parece ser um bom
critério para caracterizar uma ciência como predominantemente teórica ou
predominantemente histórica. O que parece ser claro nisso tudo é que qualquer explicação
científica (pelo menos dentro das ciências naturais) necessita tanto de conteúdo teórico
quanto de conteúdo histórico.
Nenhum dos critérios apresentados pelos autores para distinguir ciência teórica de
ciência histórica, num primeiro momento, permitia a classificação da geologia como uma
ciência teórica. Popper, ao estabelecer o critério de distinção entre os dois tipos de ciência a
partir da preocupação de cada uma delas com leis gerais de um lado e com fatos
particulares e a aplicação dessas leis de outro lado, parece ter a química e a física como as
únicas ciências teóricas. As demais, inclusive a geologia, privadas de leis próprias, apenas
aplicam as leis das ciências teóricas na resolução de seus problemas particulares, históricos.
Simpson considera aquilo que é próprio da geologia, ou seja, explicação das diferentes
configurações da Terra em um dado momento, como uma atividade histórica. Estudar a
imanência dos fenômenos, para Simpson, seria algo atribuído à química e à física, das quais
a geologia é apenas uma parte. Hull cita a geologia como uma das quatro disciplinas
históricas mais importantes junto com a cosmologia, a paleontologia e a história humana.
Todas elas, para Hull, se preocupam em narrar a história dos seus objetos de análise: a
geologia – a história da Terra; a cosmologia – a história do universo; a paleontologia – a
história da vida; a história humana – a trajetória dos acontecimentos da humanidade.
Cada um dos autores, porém, fornece alguns elementos que permitem ver a
geologia, assim como qualquer outra ciência, como possuidoras de conteúdo e de interesses
teóricos. No pensamento de Popper, identificamos a preocupação que as ciências têm com
modelos gerais de explicação. Esses modelos, uma vez testados e corroborados, passam a
fazer parte do conteúdo teórico da ciência; e as explicações dessa ciência passam a apoiar-
se em tais modelos. Ao apresentar a idéia dos modelos gerais de explicação, Popper nos
permite ver elementos teóricos não somente nas leis gerais e nas ciências que se preocupam
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com as mesmas. A preocupação com modelos gerais, com estruturas explicativas que se
estendem a uma classe de fenômenos, também passa a ser encarada como uma atividade
teórica.
do conteúdo teórico de uma ciência, conteúdo este que permite explicar fenômenos
semelhantes.
Ao lado das visões que mostravam a geologia como uma ciência, se não
exclusivamente histórica, mas com interesse predominantemente histórico, tentamos
mostrar a preocupação que a geologia tem de descobrir e corroborar conteúdos teóricos.
Toda a explicação e toda a pesquisa histórica da geologia dependem de um conteúdo
teórico para se sustentar. Mesmo as pesquisas geológicas voltadas para fins econômicos
dependem de marcos teóricos bem corroborados para continuar suas atividades. É o caso
das pesquisas realizadas pela nossa Petrobrás. O investimento dessa empresa é imenso no
sentido de criar tecnologias e fomentar pesquisas a fim de obter resultados mais seguros e
mais precisos na busca pelo petróleo sob o território brasileiro e, mais atualmente, também
em outros países. Certamente os técnicos e os cientistas da Petrobrás não contam somente
com a sorte para encontrar petróleo, mas buscam no conhecimento de várias ciências,
principalmente da geologia, a segurança que precisam para descobrir depósitos do tão
valorizado óleo. Isso também acontece com relação às várias companhias ou empresas
99
mineradoras em todo o mundo. Descobrir jazidas minerais não é mais questão de sorte, mas
de conhecimento.
Nossa conclusão de que a geologia, bem como qualquer outra ciência, pode ser
tanto teórica como histórica, está baseada na argumentação que construímos a partir da
idéia de cada autor apresentado. É preciso perceber que, numa mesma ciência, podem
existir diferentes interesses que podem variar de grau de importância de um tempo para
outro, ou de um cientista para outro. Identificar, apontar e definir aquilo que é teórico e
aquilo que é histórico também são exercícios necessários para dizer quando uma ciência
possui, num dado momento e num dado contexto, interesses teóricos ou interesses
históricos.
Torcemos para que este trabalho venha a render frutos dentro de uma área tão
pouco trabalhada com é a Filosofia da Geologia. Buscamos estender o interessante trabalho
de analisar, de forma crítica, as atividades de ciências tradicionais como a física, a química,
a biologia ou a medicina, para a ciência que busca entender melhor o planeta em que
vivemos: a geologia. Que a filosofia possa ajudar essa tão importante ciência a crescer cada
100
vez mais, revendo seus métodos, suas formas de explicar os fenômenos geológicos e a
lidar, de forma mais segura, com os mesmos. Afinal, que a geologia possa refinar seu
conhecimento olhando-se no espelho da filosofia.
101
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