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RESUMO: O texto a ser apresentado trata das primeiras impressões acerca da pesquisa “Memória e
contemporaneidade: a voz dos benzedores”. A mesma tem a intenção de discutir os conceitos de memória,
identidade, cultura e história oral, trazendo à tona o registro da oralidade dos benzedores e benzimentos, bem
como suas práticas e vivências, crenças e formas de sobrevivência na contemporaneidade. Visa ainda,
compreensão das transformações passadas por um modo de vida específico, suas ações cotidianas, os hábitos e
crenças que são praticados há muito tempo e como se situam hoje, frente à contemporaneidade. A necessidade
de pensar tais modos de vida na contemporaneidade é o eixo norteador que motivou tal pesquisa, com a
preocupação em refletir sobre os seus percursos e implicações. Urge também discutir as questões que estão
diretamente ligadas a tais pressupostos: a memória e a identidade.
1. Introdução
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Doutoranda do PPGCL/UNISUL.
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[...] ser contemporâneo é afundar-se na rede, nos seus tempos diversos, investigar
estilos esquecidos e trazê-los à tona em sua estranheza rétro [...] para compor novas
variações sem apego a suas formas tradicionais. Assim, em vez de estar à frente do
seu tempo, o contemporâneo habita a conjunção dos diversos tempos que constroem
seu instante, buscando uma customização temporal a partir desta heterogeneidade
flexível e singular. Perambula-se mais pelas tramas virtuais da rede temporal,
complexificando as tendências de atualização.
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Caberá nesta pesquisa uma discussão pontuada em historiadores que abordam a região do Contestado, sabendo
que a região assim chamada esteve envolvida na Guerra do Contestado, durante os anos de 1912 a 1916. Neste
apontamento, é conveniente a discussão das influências religiosas que na época existiram. Ainda, explica-se esta
referência pelo fato de um tempo e lugar com poucas ou raras possibilidades de intervenções médicas, sendo os
benzedores o “alento” para os males pelos quais a população era acometida. Desse tempo surge a prática do
benzimento.
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Sobre o Monge João Maria, a sabedoria popular não faz distinção entre um ou
outro, conforme citado anteriormente, da existência de pelo menos dois Monges nesse período
da Guerra. Desta forma, a opção que será adotada aqui é a de tomar como base dos estudos
um homem, o Monge João Maria somente, pois assim este era e é conhecido pela população
que acreditou e acredita na sua passagem pelas terras do Contestado.
A discussão implícita é a da presença de um catolicismo caboclo, que pressupõe
uma crença e uma prática que atua no viés do catolicismo romanizado preconizado pela igreja
daquele tempo, especificamente, tendo seus desdobramentos a partir dos monges já citados,
proporcionando o alento da alma, através de orações, batizados e, em mesma medida, de
benzimentos. Estas práticas de fé e devoção se deram, principalmente, em virtude do
distanciamento geográfico dos indivíduos que habitavam essa região, bem como de um
conhecimento empírico das formas de cura, servindo a oração e a fé, igualmente para a alma e
para o corpo.
Com base nessa crença, tomada por muitos, como fanatismo, superstição ou
injúria, o fato é que estas práticas subvertiam a ordem e o poder clerical, desmistificando a
figura do sacerdote em detrimento de um homem “comum”, sem a “autorização”
institucionalizada para exercer tais práticas.
É nesse cenário que proliferam pela região, homens e mulheres que serão
intercessores de Deus na vida dos homens. Estes, tomados pelo que chamam de “dom”,
traduzido como poder divino, exercem nesse contexto as práticas de benzimento, promovendo
a cura de doenças do corpo, bem como de alento para a alma, através de orações, simpatias,
chás, garrafadas, entre outros métodos.
A população por sua vez, acreditando nessas interseções, passa a procurar estas
pessoas, os benzedores e benzedeiras, rezadores e rezadeiras, curandeiros e curandeiras,
atribuindo-lhes consideração e veneração, tendo em vista o sucesso de seus procedimentos.
É sabido que essas pessoas, com o “dom” da cura, resistiram ao tempo através de
seus sucessores, que, tendo os mesmos “dons” e demonstrando interesse na realização do
“bem”, receberam de seus antepassados, os ensinamentos das rezas e simpatias utilizadas nos
processos da cura pela fé, expressa em gestos e palavras.
Diante disso, o que passou a ser motivo de questionamentos foi além da
resistência, a dimensão de seus benzimentos em um mundo no qual se vivencia um grande
apelo ao tecnológico, ao pragmatismo e ao cientificismo. Em qual incidência esses
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benzedores e benzedeiras realizam, hoje, os procedimentos que através dos anos, tem sido
praticados? Com qual frequência são procurados? Quem os procura? Por quais motivos? Há,
ainda hoje, a mesma crença que existia há alguns anos atrás? Que sentido tem tudo isso?
Esses fatores foram os condutores para a busca de pessoas que realizam práticas
de benzimentos na região citada. Primeiramente, em conversas prévias e informais com
pessoas diversas da cidade de Caçador, buscou-se saber se estes tinham algum conhecimento
de benzedores. A partir desse levantamento inicial, ficou constatada realmente a existência e
atuação desses sujeitos e, em cada conversa iniciada, cada uma dessas pessoas já havia
buscado pelo menos uma vez pelos benzimentos. Após esse primeiro mapeamento, fez-se o
contato com os citados no levantamento para realizar a pesquisa de campo e ter a
oportunidade de obter um registro de seus modos de fazer do benzimento, bem como de suas
histórias de vida.
As conversas foram permeadas pela confiança dos entrevistados, que não
demonstraram restrição em fatos e situações questionadas, transcorrendo de maneira fluída e
aberta e colocando-se à disposição para futuras conversas.
A história vista de baixo ajuda a convencer aqueles de nós nascidos sem colheres de
prata em nossas bocas, de que temos um passado, de que viemos de algum lugar.
Mas também, com o passar dos anos, vai desempenhar um importante papel,
ajudando a corrigir e a ampliar aquela história política da corrente principal que é
ainda o cânone aceito nos estudos históricos britânicos.
passado com presente, pois assim se retira de sua individualidade algum fato e se faz a
conexão com o presente por meio do seu ouvinte3.
Nesta perspectiva, Benjamin (1987, p. 201) discorre sobre o narrador e sua relação
com memórias e experiências, dizendo que “O narrador retira da experiência o que ele conta:
sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à
experiência de seus ouvintes.”
Para falar ainda do ‘narrador’, Gagnebin (2009, p. 53-54), se refere a ele como
[...] a figura do trapeiro, [...] do catador de sucata e de lixo, este personagem das
grandes cidades modernas que recolhe os cacos, os restos, os detritos, movido pela
pobreza, certamente, mas também pelo desejo de não deixar nada se perder. [...] esse
narrador sucateiro, não tem por alvo recolher grandes feitos. Deve muito mais
apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação [...]
algo com que a história oficial não sabe o que fazer.
Deixar falar os sujeitos que não são vistos pela história oficial é o elemento
norteador desta pesquisa, pois se entende que há em suas falas muito que se evidenciar e estes
pertencem a uma categoria que possui memórias e saberes peculiares. Suas histórias não
foram registradas, contudo, suas memórias estão latentes, necessitando serem reconhecidas
para reatar os fios das identidades coletivas no presente.
Para pensar como tais memórias poderão ser evidenciadas, Hall (2006) parte do
pressuposto de que a memória trabalha em processo dinâmico, no qual a reinterpretação das
culturas dar-se-á de maneira ampla, simultaneamente mantendo a identidade e se adaptando às
dinâmicas político-sociais de cada tempo e lugar. É através do passado e suas implicações que
se passa a refletir, compreender e interferir no presente. Nessa ótica, instala-se a compreensão
da memória, que tem como pressuposto a necessidade de ser recriada conferindo um sentido
ao presente.
Para Le Goff (1990, p.477), a memória é um “elemento essencial do que se
costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades
fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia.” Para tal busca,
é necessário que os indivíduos considerem que as lembranças são carregadas por eles e que,
no processo de interação com a sociedade e os grupos aos quais pertencem, estabelecerão o
contraponto para que tais lembranças ou memórias se efetivem. Portanto, o outro tem papel
fundamental no quesito da rememoração e da produção da memória. Esse papel diz respeito
ao fato de que é na coletividade que as interações acontecem, trazendo à tona o indivíduo e
sua identidade.
A memória é tratada por Halbwachs (1990, p. 26) com o termo ‘memória
coletiva’, pois
[...] nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros,
mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com
objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós.
Para esta pesquisa, o fator ‘memória’ possui significativo interesse, pois se trata
de um conceito ligado diretamente ao saber das benzedeiras, para a compreensão das relações
que são estabelecidas entre estas e as suas memórias, pois conforme Bosi (1994, p. 90),
A memória é a faculdade épica por excelência. Não se pode perder, no deserto dos
tempos, uma só gota da água irisada que, nômades, passamos do côncavo de uma
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Entende-se aqui o ouvinte como o que vai propor os sujeitos da pesquisa que contem suas histórias, podendo
ser entendido também como entrevistador, narrador ou outros termos recorrentes.
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para outra mão, a história deve reproduzir-se de geração a geração, gerar muitas
outras, cujos fios se cruzem, prolongando o original, puxados por outros dedos.
É dessa forma que a memória precisa ser pensada; não como um apelo ao
passado, simplesmente, mas como uma rede de relações que vão se estabelecer à luz do que
possa ser lembrado. Na instância das lembranças, é possível produzir novos significados,
proporcionando aos indivíduos a certeza de se reconhecer como sujeitos de sua própria
história.
Pois é, porque Deus não dexô prá fazê dinheiro no nome dele, né, então, a gente
benze na fé de Deus, né, em nome de Deus, né... (D.I.)
[...] a pessoa tem que fazê assim por amor a Jesus, por amor a Nossa Senhora, pelo
amor ao próximo né (D.O.)
[...] então, a gente faiz por amor isso aí né, já que Deus deu esse dom pra mim então
né... (D.O.)
[...] tudo mundo diz, prá mim ensiná os otro, mas se a pessoa não tem o dom não
adianta, né, dizque tem que tê o dom, né.... ninguém se interessa, né... as minhas
menina já são de outra, não são católica... então são assim de outra igreja... e eu sô
católica. (D.I.)
[...]Quando for um tempo que eu veja que eu não vô durá, daí eu passo prá outro..
mais tem que sê da família... é, da família... é, quenem, a mãe passo prá mim, e eu
passo prá um dos filho, né ... aquele que quisé, porque não é tudo que gosta de... eu
digo, fazê o bem... que eu, eu vivo tão alegre! (S.F.)
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[...] ... porque eu disse, não vô vivê a vida intera, né, então eu gostaria que alguém
ficasse no meu lugar, porque tá terminado os os benzimento né, tá terminando isso
aí, eu sei que cada veiz o povo vai precisá mais de benzimento ... (D.O.)
[...] Que nem as veiz me ligam disisperado... “Dona Odete, eu tô com um problema
assim assim... pelo amor de Deus eu espero aqui no telefone, eu não posso í lá, a
senhora me benza pelo telefone...” eu faço a oração ali no telefone, diz que já ficam
aliviadas assim, parece que tira com a mão assim... (D.O.)
[...] as veiz também ligam, “Dona Irma, benza fulano de tal que tá que tá ... das
bicha”... eu benzo, até os vizinho ali as veiz, de noite... e dá certo, porque daí eles
ligam de novo, né... Que nem lá em Curitiba, lá em Florianópolis, pedem, tem os
pessoal conhecido que são daqui, né, pedem prá benzê lá uma criança... (D.I)
REFERÊNCIAS
LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão. Campinas: Unicamp, 1990.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. São Paulo: Cosac & Naify, 2013.
QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e conflito social: a Guerra Sertaneja do
Contestado, 1912-1916. 3 ed. São Paulo: Ática, 1981.
SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In BURKE, Peter (org.). A escrita da história –
novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo horizonte: Editora UFMG,
2012.