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ASSÚ/RN
2018
LUÍS GOMES NETO
ASSÚ/RN
2018
LUÍS GOMES NETO
Aprovado em ____/____/____.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________
Prof. Me. Vagner Silva Ramos Filho (Orientador)
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
_________________________________________________________
Prof. Me. Hidelbrando Maciel Alves (Avaliador Externo)
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
_________________________________________________________
Prof. Me. Rosenilson da Silva Santos (Avaliador Interno)
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
ASSÚ/RN
2018
Esta pesquisa tem como objeto de estudo as histórias em quadrinhos (HQs) desse período
da história republicana brasileira. O problema central é a indagação das disputas da
memória do acontecimento forjadas entre lembranças e esquecimentos em diferentes
momentos. A principal análise de fonte dirigiu-se a HQ "Notas de tempos silenciados", de
Robson Vilalba, ilustrador e sociólogo brasileiro, publicado em 2014, um ano após o 50º
aniversário do golpe de Estado instaurado em 1964. O trabalho busca, sequencialmente,
analisar narrativas da ditadura com base na historiografia, percebendo como os quadrinhos
inserem-se nas suas batalhas de sentido; problematizar memórias subalternas do período
através da supracitada fonte em destaque, analisando como a ditadura é retratada pelos
elementos da linguagem quadrinística construída por Vilalba; enveredar-se no campo do
ensino de história, a fim de compreender como os quadrinhos contribuem para uma nova
abordagem desse assunto nas escolas, levando em consideração a memória incrustada no
conhecimento prévio de estudantes e professores. O estudo é baseado em diálogos
historiográficos em que se destacam os seguintes autores: Michel Pollak (1989), Marcos
Napolitano (2015), Mariana Joffily (2018), Circe Bittencourt (2008), Luís Fernando Cerri
(2011) e Waldomiro Vergueiro (2004). A pesquisa tem como fontes, além de diferentes
tipos de linguagem tidas como histórias em quadrinhos – charges, cartuns, tirinhas –
questionários aplicados a alunos e professores acerca da temática da ditadura e do uso de
HQs como ferramenta pedagógica.
The study object of this research is the comics of this period of Brazilian republican history.
The central problem is the inquiry about the battles of memories of the Civil-military
Dictatorship which a forged among remembrances and forgetfulness in different moments.
The main source analysis turns to the comic book “Notes of silenced times” by Robson
Vilalba, a Brazilian sociologist and illustrator. It was published in 2015, a year after the 50th
anniversary of the coup d’état held in 1964. Sequentially the research aims to analyse the
narratives about the Dictatorship, basing on historiography of the period, observing how
comics fit in its battles of meanings; problematize subaltern memories of the period through
the source cited up above, analysing how Dictatorship is depicted through the elements of
comics language constructed by Vilalba; takes the path into History Teaching field in order
to comprehend how comics contribute to a new approach to this topic in the schools,
considering the memories embedded in the background knowledge of students and
teachers. The study is based on historiographical dialogues of authors such as Michel
Pollak (1989), Marcos Napolitano (2015), Mariana Joffily (2018), Circe Bittencourt (2008),
Luis Fernando Cerri (2011) and Waldomiro Vergueiro (2004). In addition to the different
genres classified as comics – cartoons, comic strips and comic books – other search sources
include questionnaires about the Dictatorship topic, as well as the use of comics as
pedagogical tools, which was applied to students and teachers.
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................86
FONTES................................................................................................................................88
REFERÊNCIAS..................................................................................................................89
12
INTRODUÇÃO
O panorama nacional dos últimos três anos tem sido marcado por uma crise
profunda nas esferas política, social e econômica. Os desdobramentos desse atribulado
contexto vêm sendo sentidos em meio à sociedade brasileira através da ameaça à garantia
de direitos historicamente conquistados e se reflete na descrença e insatisfação em relação
ao funcionamento das instituições democráticas, postas em cheque devido às suas grandes
contradições internas e problemas, expostos por um estado de constante deterioração e
sucateamento dos serviços oferecidos à sociedade, bem como de descoberta de casos de uso
da máquina e dos recursos públicos para interesses privados.
A insatisfação geral com o atual sistema político e a sua ineficiência no
enfrentamento de questões que afetam a vida dos cidadãos, como a precariedade da saúde,
da educação e da segurança, costuma dar espaço a ideias que contrárias ao regime
democrático. Manifestações de pedidos de intervenção militar e a evocação por parte de
setores reacionários e conservadores da sociedade de uma memória nostálgica do período
ditatorial como uma época de prosperidade e de ética na política encontram cada vez mais
espaço, contestando uma memória crítica do período. Em virtude disso, evidenciou-se a
existência de disputas de memória da Ditadura, na medida em que o debate ganha, mais
uma relevância especial.
Refletir sobre a memória requer encará-la como um processo complexo, sobre o
qual pesam diversas variáveis. Entre os autores que nos ajudam a pensa-la, estão James
Fentress e Chris Whickhan (1992)1, que apontam que a memória possui uma dimensão
social e individual. O intercruzamento entre as duas se dá quando recordações e vivências
pessoais se mostram relevantes ao grupo, ou quando a memória do grupo incide sobre
como o indivíduo a ele pertencente atribui significado ao passado. Dessa forma, tanto a
experiência do vivido como representações e discursos construídos a posteriori e que se
refletem através de datas comemorativas, eventos cívicos, cerimônias oficiais, influenciam
a formação do que Carolina Bauer2 chama de “comunidade de memórias”.
Em uma sociedade diversa, pode-se falar da existência de várias dessas
comunidades, nas quais se observa diferentes maneiras de apropriação do passado, que não
raro estão na base das demandas reclamadas por esses sujeitos. As divergências que daí
1
FENTRESS, James; WICKHAN, Chris. Memória Social: Novas perspectivas sobre o passado. Lisboa:
Teorema, 1992.
2
BAUER, Caroline Silveira. Qual o papel da história pública frente ao revisionismo histórico? In: MAUD,
Ana Maria. Que história pública queremos? / What public history do we want? São Paulo: Letra e Voz,
2018. p. 195-203.
13
3
CERRI, Luis Fernando. O que é consciência Histórica. In: Ensino de História e Consciência Histórica.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. Cap. 1. p. 19-47.
14
Fonte: https://www.instagram.com/explore/tags/quadrinistasantifacistas/
4
MOSSE, François. Renascimento do Acontecimento. São Paulo: Editora Unesp, 2010.
15
Por fim, o terceiro e último capítulo tem como foco o debate teórico-metodológico
acerca dos quadrinhos e suas possibilidades de uso em sala de aula, percebendo como a HQ
“Notas de um tempo silenciado” pode trazer contribuições para o ensino de História, mais
especificamente sobre a Ditadura Civil-militar, encarando-a não apenas como um recurso
didático e pedagógico, mas sim como um documento. Em seguida, são apresentados os
resultados de uma pesquisa de campo realizada no âmbito deste trabalho. Seu objetivo foi
perceber como alunos e professores enxergam a temática, assim como o uso de quadrinhos
no ensino de História.
17
5
Essa tendência foi inaugurada nos fins do século XIX, quando dos últimos anos do regime monárquico. As
forças armadas haviam adquirido grande importância e força política após a Guerra do Paraguai, tendo
protagonizado o golpe que instalou o sistema republicano no país.
18
anos de regime militar aflora em datas “redondas”, consideras das marcos comemorativos.
Vale citar também a o volume 4 da coleção O Brasil Republicano e “O golpe e a ditadura
militar 40 anos depois” trazem uma visão panorâmica. Sobre o assunto.
A conjuntura da metade do século XX no Brasil foi marcada por um conjunto de
fatores que teceram um cenário de instabilidade política no país. Na virada da década de
1950 para 1960, a saber, alguns dos principais sintomas foram: as tensões relacionadas ao
conflito ideológico entre o capitalismo e o socialismo da Guerra Fria; a preocupação dos
Estados Unidos da América (EUA) em não permitir o avanço do comunismo nos países da
América Latina, visto que era sua principal zona de influência; um panorama político
marcado pelo recrudescimento da atividade sindical e o surgimento de novos movimentos
sociais de esquerda; o temor de setores da elite diante de uma ameaça do comunismo e as
fragilidades enfrentadas pelo governo de João Goulart, que despertava desconfiança em
virtude de uma política socioeconômica dúbia, que ora flertava com os anseios da elite
empresarial, ora com as reivindicações populares, e que gerava considerável insatisfação de
ambos os lados. 6
Os problemas de ordem social e econômica enfrentados pelo Brasil acirravam o
clima de tensão, que chegou ao ápice com o discurso realizado por Goulart, na Central do
Brasil, localizada no Rio de Janeiro, em março de 1964, no qual o então presidente
anunciava as Reformas de Base - um conjunto de ações voltadas a combater grandes e
históricas injustiças sociais, estruturadas nos eixos da reforma agrária, estímulo à indústria
nacional, além de reformas administrativas, bancárias e universitárias. O nacionalismo
presente no discurso de Jango e a natureza das reformas assustaram sobretudo as elites do
país que, receosas com possíveis perdas de privilégio passaram a corroborar com a ideia de
combate à dita ameaça do comunismo, representada pelo governo. Contra esse espectro,
diferentes segmentos sociais que identificavam-se com os pressupostos do pensamento
liberal, tais quais algumas elites, classes empresariais e o próprio exército, ganharam a cena
através da articulação de um golpe de Estado que derrubaria o então presidente eleito.
O golpe de 1964 conduzido pelos militares obteve, portanto, um suporte social e
político de vários lados, internos e externos. Sabe-se que, internamente, contou com o
respaldo da elite econômica brasileira, que os viam como garantidores de seus interesses e,
externamente, a ação orquestrada teve o apoio comprovado do governo norte-americano em
termos de financiamento e provimento de armas. Como foi ressaltado, a participação dos
6
Joffily (2018)
19
Embora o temor da ameaça comunista costume ser atribuído à dubiedade das ações
do governo Jango, que hora pendia para um lado ou outro do espectro político, a tensão era
compartilhada também pelos setores da esquerda, receosos de que o golpe seria levado
acabo pela oposição à direita, ao passo em que esta temia que, se uma reação não fosse
levada adiante, seria a esquerda a protagonizar um golpe com vistas à implantação do
comunismo no Brasil. Por essa razão, houve setores da sociedade que defendem que os
acontecimentos de 1964 consistiram em uma reação a uma ameaça real da expansão do
comunismo, tendo sido a intervenção dos militares um anseio de todos os brasileiros,
chamado de revolução e não golpe, desprezando, assim, toda a produção do conhecimento
histórico fundada a partir de extensa documentação acerca do período. A controvérsia tem
figurado no seio de disputas no campo da memória e da história sobre o seu significado.
O período que demarcou as décadas de 1960, 1970 e 1980 foi perpassado por um
regime de exceção encabeçado pelas forças armadas. Nos vinte e um anos que durou, cinco
militares estiveram à frente do executivo, impondo à sociedade uma agenda política
marcada por um autoritarismo que foi aumentando gradativamente, através de dispositivos
jurídicos conhecidos como Atos Institucionais (AI). Editados pelo presidente da República
e respaldados pelo Conselho de Segurança Nacional9, eram constituídos por normas que
estavam acima de todas as outras, incluindo até mesmo a Constituição. Os atos
institucionais foram mecanismos de legalização e legitimação das ações dos militares,
proporcionando a eles poderes extraconstitucionais.
O governo de Castelo Branco (1964-1967) deu início às cassações políticas de
opositores, suspendeu as eleições diretas para a presidência, decretou o bipartidarismo
7
A Central Intelligence Agency, mais conhecida pela sigla CIA, é uma agência de inteligência civil do
governo dos Estados Unidos responsável por investigar e fornecer informações de segurança nacional para os
senadores daquele país.
8
(Valle, 2014, p.18)
9
O Conselho de Defesa Nacional (CDN) é um órgão consultivo do Presidente do Brasil em assuntos de
segurança nacional, política externa e estratégia de defesa. O Conselho foi criado em 29 de novembro de 1927
pelo Presidente Washington Luís. Ele é composto de ministros importantes e comandantes militares e
presidido pelo Presidente do Brasil.
20
10
Mariana Joffily destaca que essas diferentes visões confrontar-se em embates que tomam fôlego,
especialmente, no que ela denomina “aniversários redondos”, eventos políticos caracterizados pela ativação
da memória e por debates e balanços historiográficos.
22
agentes de Estado que praticaram violações aos direitos humanos durante a Ditadura. O
caráter de negociação da abertura teve como consequência uma postura paradoxal em
relação ao posicionamento sobre o passado ditatorial:
Além deste aspecto, este mesmo autor, assim como Jofilly (2018) atenta também
para o esforço dos setores liberais na construção da memória hegemônica de crítica ao
regime autoritário encabeçado pelas forças armadas, como parte de sua estratégia política
para não ter a sua imagem a ele associada. De fato, políticos que deram apoio à Ditadura
também estiveram na dianteira da transição negociada pra o regime democrático. Esses
pontos são apenas alguns dos que estão entre os objetos de reflexão da historiografia do
período ditatorial. Interpretações e discussões iniciaram-se nos anos 1980. Jofilly, ao
discorrer sobre as controvérsias públicas e acadêmicas da ditadura militar em meio à
relevância crescente do regime civil-militar e a constante renovação das discussões,
apresenta-nos o percurso dos debates acerca do tema.
De acordo com esse ponto de vista, a defesa dos interesses das elites empresariais
do Brasil estaria na base da conspiração que culminou com o golpe contra o presidente João
Goulart. A incompatibilidade dos interesses desses grupos com os anseios populares pelas
reformas de base insere-se no contexto da Guerra Fria, marcado pelo temor provocado pela
25
Existe ainda outra corrente que afirma ter sido o golpe de 1964 fruto de
transformações de grande porte: “desenvolvimento econômico e mudanças sociais que
gerariam a necessidade de modificações profundas no edifício social brasileiro”
(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO apud. JOFILLY, 2018, p. 211). Desta corrente é
representativa a obra Brasil: nunca mais, montado por uma equipe multidisciplinar de
ativistas políticos, que leva em conta as vicissitudes do cenário político e social do período,
e também a “tradição de intervenção política por parte dos militares, seja em golpes, seja na
supressão de movimentos rebeldes.” (JOFFILY, 2018, p. 211). Para a autora, as linhas de
análise e interpretação coincidem em apontar o papel da elite civil na base de sustentação
política e também ideológica da ditadura. Contudo, ao longo do processo de abertura
26
Uma delas diz respeito à atuação dos grupos armados clandestinos que faziam
oposição ao regime, em sua maioria de esquerda, que tomou espaço em meio ao surgimento
do novo sindicalismo e de grupos como clube das mães de desaparecidos e movimentos de
favela.
Há, porém, mais de uma linha de análise da ação armada das esquerdas no período:
“Outro marco interpretativo [...] foi produzido justamente em um intento de “desvendar o
significado e as raízes sociais da luta dos grupos de esquerda, especialmente os armados,
entre 1964 e 1974” (RIDENTI apud JOFFILY 2018, p. 15)”. No cerne das discussões
destas correntes estão questões como os objetivos almejados pela luta armada de esquerda e
a dinâmica do contexto de seu surgimento recrudescimento, marcado pela utilização por
parte do Estado ditatorial com vistas a legitimar as políticas baseadas no terror, colocando-
os como ameaça à segurança nacional. Além disso, a relação desses movimentos com a
sociedade civil também é objeto de discussões na historiografia desse período, ainda
bastante incipiente. Esse quadro viria a mudar com a consolidação do campo da História do
Tempo Presente, fundada na França na década de 1980.
Nos anos 1990, quando dos 30 anos após o golpe civil-militar de 1964 e em pleno
contexto do fim da Guerra Fria e da onda neoliberal que dominou o continente, os debates
em torno da ditadura ainda permaneciam relevantes, em virtude da conjuntura política. “A
derrocada do chamado socialismo real e a nova perspectiva política da esquerda criaram
uma espécie de fosso em relação às experiências dos grupos armados clandestinos, que
denunciavam os estreitos limites da democracia liberal e tinham a revolução em sua agenda
política.” (JOFFILY, 2018, p. 218). Com isso, os debates em torno da ditadura giravam em
torno das causas e da natureza do regime, incluindo aí, também, a ação dos movimentos de
27
esquerda armados que a ele faziam oposição. Havia, contudo, em algumas obras como “21
anos de regime militar” a preocupação com uma interpretação de viés mais analítico e
menos político.
Nesta década, houve o aumento no interesse pelo tema da ditadura civil-militar, com
acadêmicos dividindo espaço com militares e ex-militares, muitos deles dispostos a
contestar a narrativa hegemônica que coloca presos políticos como protagonistas, e
criticando o que chamam de “revanchismo” que guiou a construção da memória do período.
28
Por outro lado, a abertura de arquivos, o advento de produções culturais voltadas à temática
e a eleição de um presidente ligado ao sindicalismo caracterizam esse contexto marcado
pelo fomento ao interesse pelo debate. “[...] um dos pontos‐chave do debate historiográfico
foi o tema da relação das esquerdas com a democracia, seja na conjuntura que levou ao
golpe de 1964, seja na atuação dos grupos da esquerda armada.” (JOFFILY, 2018, p. 224).
Teses como a da resistência democrática são confrontadas com as que defendem que as
intensões da esquerda eram antes de tudo revolucionárias e não democráticas.
Outro debate foi aberto pela obra de Elio Gaspari, lançada em quatro volumes,
referente à periodização:
Esse debate ganharia ainda mais força no contexto dos 50 anos do golpe civil-
militar, em 2014. A intensidade dos debates acerca do tema aumentou ainda mais,
especialmente diante das políticas de Estado voltadas à memória, como a criação da
Comissão Nacional da Verdade, voltada ao esclarecimento de crimes cometidos pelo
Estado durante os anos ditatoriais do período republicano. Além disso, o cinquentenário
coincidiu com o início da crise política e econômica que teve como um de seus
desdobramentos o Impeachment da presidente Dilma Rousseff, do Partido dos
Trabalhadores (PT). A conjuntura marcada pela polarização política em meio à sociedade
brasileira, na qual historiadores enxergaram muitas semelhanças com o cenário nacional de
1964, o fato de ter sido a ex-presidente uma guerrilheira presa e torturada pelo regime
autoritário e a impunidade dos envolvidos em crimes de tortura contribuíram também para
avivar ainda mais a relevância dos debates em torno da ditadura.
maneira como uma sociedade olha para o passado é reflexo dos questionamentos,
necessidades, dilemas também conflitos pertinentes ao seu tempo. Contudo, ao
enveredarmos pelos caminhos da ciência histórica, sabemos que ela está longe de consistir
em algo pétreo e acabado, sendo em vez disso o produto de um processo de construção
imbrincado a diversos fatores, os quais estão ligados às necessidades do presente de grupos
que a ele recorrem, fazendo-se tecendo uma relação com o passado marcada por certas
maneiras de conferir significado a eventos ao longo da história.
Dentre os recursos utilizados na imprensa da época, por exemplo, os visuais estão
entre os mais notáveis. Charges, cartuns e tirinhas carregam um determinado discurso,
comumente através do humor. A utilização dos recursos verbais e não-verbais, junção que
os caracterizam, carregam leituras e mensagens de teor político de uma maneira lúdica e
convidativa ao leitor do veículo de comunicação. Ao longo dos anos da ditadura civil-
militar, a grande imprensa tendeu a se comportar de uma maneira complexa, seja para
legitimar o governo instalado com a retirada de João Goulart da presidência, ou para
criticá-lo quando da escalada do autoritarismo. As histórias em quadrinhos nesse contexto
serão objeto de estudo do próximo tópico deste capítulo.
Rodrigo Pato Sá Motta, em seu trabalho Jango e o Golpe de 1964 na caricatura, discute a
maneira como se dá construção da imagem de João Goulart por parte da grande mídia
impressa da época. Em meio as circunstâncias políticas que marcaram o cenário pré-golpe,
as ações do então presidente eram vistas com desconfiança, em especial por setores mais
inclinados à direita da sociedade brasileira.
Figura 2 - Charges
representando João
Goulart
Fonte12
12
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2006.
34
Fonte13
13
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A ditadura nas representações verbais e visuais da grande imprensa: 1964-
1969. Topoi, Belo Horizonte, p.62-85, 26 mar. 2013.
35
Fonte: http://www.blogdofariasjunior.com
A frase “Brasil, ame-o ou deixe-o”, tão difundida pelo governo, resumia o discurso
legitimador do autoritarismo, e foi objeto de outra charge de Ziraldo. O slogan, carregado
de um sentido nacionalista e, portanto, de modo a enaltecer os grandes feitos do governo, é
ressinificado pelo artista de modo a ressaltar o fato de que não se podia questionar as
contradições do momento de euforia e prosperidade vivido pelo Brasil, o qual não era
usufruído de fato por toda a sociedade, mas sim apenas pelas elites ligadas ao capital
estrangeiro. Externar questionamentos a partir desse fato poderia significar, inclusive, a
expulsão do país, faceta do autoritarismo ressaltada por Ziraldo em sua charge, publicada
na década de 1980 (figura 5), em que um personagem bem vestido que representa o
governo aparece em uma postura impositiva em relação a outro, que está caído ao chão, e
em seguida receber um chute, que representa a sua expulsão, caso não aceite as imposições
do Estado.
Além de seus trabalhos ligados a nona arte, Ziraldo foi um dos que em 1969 fundou
14
o jornal Pasquim, semanário que se tornou conhecido por sua forte oposição à ditadura.
O jornal chegou obviamente a sofrer com a censura da época, mas manteve as suas
atividades até 1991. Outros fundadores do Pasquim foram Jaguar, Cabral e Tarso de Castro.
Também houve grandes colaboradores entre cartunistas, escritores e jornalistas para o
semanário. Um desses notáveis nomes colaboradores foi, sem sombra de dúvidas, o
cartunista mineiro Henfil. Toda a sua obra foi produzida durante o período ditatorial,
mostrando-se como uma arma de luta pela redemocratização do país, a anistia aos presos
políticos e a volta das eleições diretas para presidente da república. Uma das bandeiras de
luta abraçadas por Henfil é representada na Figura 4, uma de suas produções mais
conhecidas. Aqui, várias pessoas são retratadas portando faixas de protesto pelo seu direito
ao voto, enquanto a sua frente um policial os ordena a voltarem, chamando-os de ilegais.
Fonte:
http://www.zonacurva.com.br
14
A obra do artista também inclui obras infantis carregadas de temas sociais e políticos, como é o caso da
Turma do Pererê, lançada na década de 1960, porém interrompida com o avanço da censura. A história do
personagem Pererê é cheia de referências ao folclore brasileiro e animais típicos da nossa fauna. Tudo aparece
com um humor leve e ingenuidade em assuntos como a inclusão social e valorização do meio ambiente.
Apesar de ter sido criada há cerca de cinquenta anos, a sua atualidade ainda é evidente.
37
Fonte: https://www.redebrasilatual.com.br/entretenimento/2013/11/lancamento-
traz-colecao-completa-de-fradim-do-henfil-3224.html
editorial. Contudo, não é apenas nas charges e nos cartuns publicados em periódicos que o
tema da ditadura militar encontra-se presente. Para além desses gêneros bastante
conhecidos, em que a mensagem pretendida pelo autor é compreendida em um formato
sintético, há outros que costumam ser estruturados em narrativas mais detalhadas,
geralmente desenvolvidas para o formato de revistas, álbuns (cuja estrutura é semelhante ao
livro), e páginas dominicais (histórias construídas em uma narrativa mais complexa,
publicadas geralmente em jornais) (RAMOS, 2009).
Esse formato constitui um mercado que encontrou terreno fértil para seu
florescimento nos Estados Unidos nos fins do século XIX e início do século XX, com o
surgimento dos chamados comic books, os quais traziam histórias protagonizadas pelos
clássicos super-heróis. Esse produto rapidamente se tornaria popular em todo o mundo.
Com o passar do tempo, ocorreu uma diversificação em suas temáticas, surgindo títulos que
traziam em seus roteiros assuntos ligados à política, aos costumes e questões sociais,
contendo uma carga sociológica e filosófica considerável. Por outro lado, os usos políticos
dessa mídia ocorreram em diversos momentos ao longo da história, exemplo do qual se
pode citar as HQ do Capitão América, cuja figura foi utilizada em oposição ao nazi
fascismo durante a Segunda Guerra Mundial.
Durante as décadas de 1970 e 1980 esses temas estiveram particularmente
presentes em muitas produções em quadrinhos. A HQ inglesa V de Vingança, do roteirista
Alan Moore e do desenhista David Lloyd, foi lançada em 1982 em pleno governo de
Margareth Thatcher, cujo desrespeito às diferenças individuais está presente nas entrelinhas
desta narrativa que se passa em uma Inglaterra despótica, dominada por um regime
ditatorial. Temas similares também ocorreram em produções nacionais, inclusive
contemporâneas. A ditadura civil-militar é o pano de fundo para diversas narrativas
sequenciais desenhadas. Ao menos grande parte delas corrobora com uma visão crítica do
regime implantado em 1964.
Fonte: http://www.zonacurva.com.br
Uma delas é Subversivos, de André Diniz e José Aguiar. Dividida em três volumes
e publicada de 1999 a 2001, nas proximidades dos 40 anos do golpe de 1964, a história
ficcional é centrada em três integrantes de uma companhia de teatro, a qual enfrenta a
perseguição e a censura do governo. O enredo da história divide-se entre o enfrentamento,
pelos personagens, e a persistência dos laços de amizade entre os mesmos
Lançada em 2008, a história em quadrinhos 1968 – Ditadura abaixo, de Teresa
Urban e Guilherme Caldas também se insere nesse contexto, e é escrita a partir das
experiências da autora e também jornalista no movimento estudantil em Curitiba, durante a
perseguição do governo. A ideia inicial por trás da produção veio da necessidade da autora
de contar a história a seus netos, razão pela qual a HQ é escrita de forma a possibilitar a
compreensão para crianças.
Figura 8 - Página da HQ "1968 – Ditadura abaixo"
40
Fonte: http://brunortiz.blogspot.com
Por sua vez, Brasil – Ditadura Militar – Um livro para os que nasceram bem
depois…(Figura 9) é uma obra independente destinada ao público jovem, contando a
história de Clarice, uma menina que cresceu durante o regime militar no Brasil. A partir de
sua vida, são narrados alguns momentos marcantes desse período no nosso país,
especialmente aqueles relacionados à repressão e à perseguição política.
Por sua vez, Brasil – Ditadura Militar – Um livro para os que nasceram bem
depois…(Figura 10) é uma obra independente destinada ao público jovem, contando a
história de Clarice, uma menina que cresceu durante o regime militar no Brasil. A partir de
sua vida, são narrados alguns momentos marcantes desse período no nosso país,
especialmente aqueles relacionados à repressão e à perseguição política.
Fonte: www.resistenciaemarquivo.wordpress.com
Os desenhos são de Diana Helene, ilustradora, cartunista e designer gráfica. Esta HQ foi
lançada em 2012, dois anos antes do cinquentenário do golpe contra o presidente João
Goulart. Esta etapa de construção da memória é marcada pela criação da Comissão
Nacional da Verdade, e também pela intensificação do embate entre aqueles que
corroboram com a visão crítica do regime instalado em abril de 1964 e os adeptos do
revisionismo. Estes argumentam que as ações no campo da memória por parte do Estado e
de movimentos ligados aos parentes das vítimas de desaparecidos políticos são pautadas em
puro revanchismo, defendendo que a violência também foi utilizada por ambas as partes, e
que o golpe (chamado por esses setores de revolução) atendeu aos anseios da sociedade
brasileira em meio à ameaça da ordem e da segurança nacional.
Há também outra dimensão dessa disputa, se considerarmos o peso liberal que teve
o seu processo de tessitura. Ao mesmo tempo em que se esforçaram para defender os
valores democráticos e posicionando-se contra o aumento gradativo da repressão, as elites
política e empresarial tentaram, ao mesmo tempo, silenciar a narrativa de certos setores ou
indivíduos ligados a movimentos de esquerda e resistência popular. Muitos desses sujeitos
subalternos não costumam aparecer nas narrativas oficiais do período ditatorial. Alguns
desses grupos, como os indígenas, foram vítimas do projeto de desenvolvimento levado a
cabo pelos governos militares, o qual teve apoio da elite empresarial, especialmente em
meio ao Milagre Econômico. Seu modo de vida foi ameaçado por uma marcha para o
progresso que provocou a retirada forçada de suas terras e a violenta repressão a qualquer
tipo de resistência. O exemplo dos povos indígenas é ilustrativo de algo que é característico
do processo de construção da memória: a escolha daquilo que se quer lembrar ou ocultar.
Fez parte do trabalho dos membros da CNV trazer a tona um passado ainda
silenciado, em meio à efervescência do debate entre diferentes enquadramentos de
memória, ou seja, as diversas formas de interpretar, combinar e modificar o passado em
função dos combates do presente e do futuro. (POLLAK, 1989). As produções no campo da
nona arte, como se viu anteriormente, também podem ser interpretadas enquanto formas de
enquadramento do passado. Particularmente, há uma entre elas que é construída em torno
de passados subalternos, referentes a indivíduos cujas experiências não lograram estar na
memória hegemônica, constituída em sua boa parte pelos setores liberais da sociedade.
“Notas de um tempo silenciado”, lançada em 2012 será objeto de estudo no próximo
capítulo.
42
Sobre isso, Joel Gandau (citado pelo mesmo autor) afirma que podemos saber sobre uma
sociedade menos a partir do que ela comemora do que aquilo que ela não comemora.
Conflitos, dilemas e questões do presente costumam reavivar debates sobre a
memória de uma sociedade, levando-se a esmiuçar o que está por trás dos ditos e trazer
também à tona os não-ditos. É sobre essa premissa que se assenta a história em quadrinhos
“Notas de um tempo silenciado”, de Robson Vilalba. Para analisarmos os quadrinhos,
devemos nos guiar pelas seguintes perguntas: Quem é o autor? Quando e onde foi
produzida? Por quem fala? A quem se destina? Qual é a sua finalidade? Lançada em 2015,
em pleno cinquentenário do golpe de 1964, a HQ conta a história de sobrevivência de
diversos personagens durante os anos ditatoriais no Brasil. Estruturado em treze capítulos, o
livro é uma HQ jornalística, que traz narrativas que permaneceram (e ainda permanecem)
esquecidas ou silenciadas, e protagonizadas por sujeitos que não costumam aparecer na
memória oficial do período. Ressalta-se que a obra não consiste em um simples resumo
ilustrado do que ocorreu durante a ditadura, mas sim uma vez que é fruto de um trabalho de
pesquisa jornalística que incluiu a coleta de dados e depoimentos, com objetivo de trazer
novas informações, segundo o
próprio autor. Figura 10 - Capa da HQ "Notas de um tempo
silenciado"
Fonte: http://www.universohq.com
44
15
Robson Vilalba é mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Como ilustrador, teve
trabalhos selecionados para a III Bienal do Humor de Luís d’Oliveira Guimarães em Portugal, 2012 e para o
22° Salão Internacional de Desenho para a Imprensa, em Porto Alegre (RS), 2014. Venceu o prêmio Vladmir
Herzog 2014, um dos principais prêmios do jornalismo brasileiro. Trata-se de um prêmio de Anistia e Direitos
Humanos, dado a personalidades e profissionais e veículos de comunicação que se destacam pela defesa de
valores fundamentais.
45
negociada e não de ruptura, como o caso de outras ditaduras na América Latina. O fato de o
processo ter sido conduzido em grande medida por nomes políticos ligados ao regime
militar deu espaço para uma visão do passado marcada pela necessidade de se deixar para
trás toda a obscuridade do período autoritário, alegando-se um risco ao clima de liberdade
democrática que se construía aos poucos. Isso teve início com o advento da Lei da Anistia,
a qual concedeu perdão a membros do Estado que cometeram crimes durante a ditadura.
Vilalba é movido por essa necessidade de lembrar o que se quer esquecer.
Combinando a pesquisa jornalística como elementos da história oral, Notas... não é
fruto de um trabalho historiográfico, em que a crítica documental é essencial, mas sim uma
articulação entre a linguagem dos quadrinhos e as informações obtidas pelo autor mediante
pesquisa e realização de entrevistas. Diversos temas e questões estão no cerne dos treze
enredos, porém todos, de alguma maneira, relacionam-se com a sobrevivência ao regime de
exceção. Entre os personagens, postos em um cenário hostil como sujeitos ativos estão
negros e índios, silenciados, deixados à margem pela historiografia tradicional. É o silêncio
deles que dá título à HQ, em alusão ao fato de que muito sobre o que ocorreu à época ainda
permanece obscuro.
É a necessidade de manter vivo o debate que Robson Vilalba afirma ter movido a
produção e divulgação de seu trabalho, trazendo-o como um alerta em meio à escalada de
ideias autoritárias no atual cenário político e social. Como artista, Vilalba tem consciência
do alcance dos quadrinhos jornalísticos, os quais atingem um público amplo. Boa parte dele
é jovem, mas a HQ também chamou a atenção de professores de jornalismo, acadêmicos e
pessoas que não costumam discutir temas dessa natureza ou não tenham contato com a
literatura de não ficção, livros jornalísticos o qualquer outro tipo de pensamento social.
Entendendo o alcance e a importância de seu trabalho, o artista gráfico o vê como uma
maneira de mostrar a importância de se falar sobre um passado sobre o qual ainda pouco se
fala.
A visão do autor chama a atenção para o fato de que os olhares sobre o passado
estão em constante mudança, e que frequentemente novas nuances são acrescentadas. Em
entrevista ao blog Itiban sobre o seu livro realizada em 2015, Robson Vilalba ressaltou a
importância de se revisitar constantemente o passado. Afirmou ser inegável que só após
pouco mais de trinta anos desde a redemocratização, mais informações sobre o que ocorreu
durante a ditadura, as quais são trazidas em seu livro, o qual e embora não contenha todas
as peças que faltam nesse sombrio quebra-cabeça, é exemplo de como nem toda a história
foi contada, estando em constante reescrita.
46
Gazeta, de 1 de Abril de 1964. Nesse trecho, o autor mostra temor em relação aos futuros
desdobramentos da tomada de poder pelos militares. A sensação, segundo o editorial, é de
erro por parte da imprensa em apoiar o golpe contra o então presidente João Goulart. Em
seguida, entra em cena o narrador, ainda no mesmo quadro, uma vista panorâmica do que
depois sabemos ser a cidade de Curitiba. Aqui, ele afirma ser a história mais confortável de
ler na tela luminosa de um suporte eletrônico. Algo diferente acontece quando é lida de
dentro, “do olho do furacão”, pois se mostra mais tortuosa.
A introdução dessa primeira história merece algumas observações. No que diz
respeito à tortuosidade que a história apresenta, ela se mostrará ao longo de toda a obra, e
pode-se dizer, com isso, que esteve presente no trabalho de pesquisa de Robson Vilalba.
Logo nas primeiras páginas da HQ, o clima de tensão é evidenciado de forma a mostrá-la
como algo presente no cotidiano e de insegurança às vésperas dos acontecimentos de 1964.
O leitor é apresentado a um personagem chamado João Lessa, que anda pelas ruas da
cidade portando uma grande quantia em dinheiro. Ele caminha em direção a dois homens
com os quais pretende fazer uma transação, e logo em seguida, porém, sabemos que o que
João Lessa carrega são papéis sem valor.
Através dessa situação, Vilalba ilustra o panorama de incerteza que caracterizou o
início da década de 1960 no Brasil, e que esteve tão presente no cotidiano, como é
evidenciado ao longo do enredo. Na página seguinte (p. 10), a cena de diversos cartazes de
filmes à frente de um cinema curitibano parece ser uma maneira poética de mostrar como a
tensão política e social pairava sobre o país. O narrador chama a atenção para os títulos dos
filmes nos cartazes. Na mesma página, o narrador faz uma contraposição entre o binarismo
do mundo em plena Guerra Fria e a pluralidade de pensamentos e orientações políticas
presentes no país: comunistas, integralistas, nacionalistas, legalistas, liberais,
conservadores. Seis vieses que são representados por seis rostos diferentes, cada um em um
quadro, possivelmente para ilustrar a pluralidade de visões e projetos de país.
Vê-se aqui a intensão de Vilalba de contrapor o binarismo esquerda x direita
evidenciando as diferentes matizes políticas, muito embora a tensão entre os dois grandes
espectros existisse de fato, estando refletida no medo sobre quem daria o golpe primeiro.
Na página 11 a preocupação com a situação política é mostrada através das ocorrências que
saem nos programas de rádio. Nos quadros, balões contendo diálogos das radionovelas
alternam com outros contendo notícias sobre políticas ou ocorrências. O recurso gráfico da
diferenciação da cor dos balões é utilizado visando o efeito de contraste entre a
48
Na última página do capítulo, tem-se o que pode ser visto como o que lhe dá título.
Um quadro em cor escura, no interior do qual diferentes quadros pequenos estão contidos,
nos quais militares e o prefeito de Curitiba são mostrados a enaltecer o movimento que visa
“recolocar o país em clima de ordem e progresso”. O presidente da Câmara dos Deputados
Ranieri Mazzili, que assumia a presidência da República na ausência de Jango, é mostrado
apenas em sua silhueta negra em um quadro branco. Ao seu lado, um balão de fala do
narrador afirma que Mazzili nem imaginava que, após ele, levaria muito tempo até que um
civil assumisse a cadeira do presidente. A escuridão do quadro corrobora com a áurea
sombria ilustrada ao longo do capítulo.
cristão e contra símbolos como a foice e o martelo ilustram o medo da ameaça comunista,
representada por uma possível guinada de João Goulart à esquerda após o seu discurso
carregado de teor nacionalista e defesa das Reformas de Base.
O enredo divide-se entre a articulação do movimento organizado pela classe média
e o evento ocorrido na Central. A narrativa traz o temor de Jango diante da iminência de um
golpe contra ele, ao passo em que a Marcha é mostrada como uma reação ao discurso de
Jango, visto como um forte sinal de uma guinada em direção ao comunismo.
Trabalhadores, estudantes e artistas no comício de Jango, mães de família de classe média
na Marcha. A polarização das vésperas de 1964 é retratada pelo autor, e ambos os eventos
aparecem como seus catalizadores. O título do capítulo é uma referência a essas vozes tão
destoantes no embalo das tensões de um mundo dividido entre o comunismo e o
capitalismo liberal.
Figura 13 - Trecho do capítulo 2
Fonte: http://blog.geekeriashop.com.br/2016/04/25/notas-de-um-tempo-silenciado/
descaso com os sargentos hospitalizados após a Revolta. Foi preso na redação do “Última
Hora” após a invasão de militares às dependências do jornal e solto quinze dias depois. À
época Ernesto Geisel era o comandante do quartel general onde ficou preso Weiss. Quando
da ocasião do golpe de 1964, Walmor foi preso mais uma vez e submetido a várias horas de
interrogatório. Os militares esperavam que ele acusasse alguém, em especial os seus
colegas do “Última Hora”. Muito embora a tortura não seja mencionada de forma direta na
história, ela é sugerida através da imagem. Na página 22, três quadros mostram o rosto de
Walmor molhado, abaixado e com uma expressão de cansaço.
As cenas também não são descritas em detalhes, preferindo o autor trazer, logo em
seguida, o que se sucede com o personagem durante a sua prisão. De acordo com o
narrador, o encarceramento deixou o personagem em luta constante contra o desespero.
Para isso ele montou uma biblioteca com livros de autores que iriam influenciá-lo por toda
a vida. Lia em voz alta por horas para diminuir a solidão. Via presos morrerem ou serem
esquecidos nas celas. Não é dito no enredo como ele logrou obter os livros para montar a
biblioteca. A história foi construída a partir da entrevista com o próprio Walmor Weiss, e
também seu biógrafo Milton Ivan Heller, além de Francisco Camargo, que trabalho no
“Última Hora”.
2.2.4. O DUPLO
que a sua vida esteve em jogo, e visavam a sua sobrevivência em meio à perseguição da
ditadura. Por outro lado, o seu desfecho termina no silêncio da falta de esclarecimento
sobre a sua morte, uma de muitas lacunas que ainda permanecem sobre a história do
período.
O ano a que faz referência ao título é 1968. Nos primeiros quadros, o autor traz
movimentos de caráter contestatório ao redor do mundo, como a Primavera de Praga na
República Tcheca, o Maio de 68 na França, a Contracultura nos EUA e, aqui no Brasil, o
assassinato do estudante Edson Luiz de Lima Souto no Rio de Janeiro, no Rio de Janeiro.
Esse primeiro momento do capítulo é, no entanto, apenas uma contextualização de um
outro acontecimento que tomará o restante de suas páginas. Trata-se do movimento
estudantil contra a proposta de Universidade paga, ocorrido em Curitiba, em pleno calor
dos movimentos de contestação à repressão que ocorreram, inflamados pela insatisfação
dos estudantes em relação aos acordos firmados entre o Ministério da Educação (MEC) e a
Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID).
54
É interessante perceber como o capítulo leva a pensar sobre uma narrativa que
condiciona a escalada do autoritarismo da ditadura à intensificação de movimentos como o
estudantil nas ruas do país. A suspeita de que os ideais comunistas estivessem por detrás
desses movimentos, ou simplesmente o temor de que eles viessem a estimular a ação de
grupos dissidentes de esquerda, era usada como justificativa para as ações repressivas do
governo, amparado na Doutrina de Segurança Nacional. A chamada teoria dos dois
demônios, que se sustenta pelo uso da violência dos dois lados, se mostraria forte
especialmente nos “Anos de Chumbo”, e seria utilizada também posteriormente em prol de
um discurso que legitimador do regime ditatorial.
2.2.6. A GUERRILHEIRA
Sônia é apresentada como uma jovem estudante sonhadora que se deixa influenciar
pelas ideias revolucionárias de esquerda. Foi durante o acampamento dos chamados
estudantes “excedentes” (candidatos ao vestibular que haviam conseguido atingir a nota
mínima, mas não conseguiram vagas na instituição) no campus da Universidade de São
Paulo (USP) que ela teve o seu contato com as ideias de Trotsky e estudos sobre o exemplo
de Fidel Castro. O acampamento era uma forma de os estudantes garantirem o seu ingresso
na universidade. E, com o seu fim, Sônia foi convidada para integrar a guerrilha urbana, a
qual realizava assaltos a bancos, roubos de carro e sequestros.
O título do capítulo sugere uma direção em certa medida oposta ao que é observado
nos enredos anteriores. Logo no início, o narrador assemelha a história a um romance do
escritor colombiano Gabriel Garcia Marques e o realismo fantástico carregado de teor
político e denúncia social que caracteriza a sua obra. A história de Osvaldo, (Osvaldão ou
ainda Vadico, como também era chamado) tem elementos de heroísmo em sua participação
na resistência armada à ditadura. Há, contudo, outro elemento especial em sua trajetória, e
que não raro não é evidenciado na historiografia tradicional: o racismo no contexto dos
anos de repressão.
Osvaldo é um homem negro nascido e criado em uma região pobre de Passa Quatro,
Minas Gerais. É descrito como alguém temido por seus inimigos por suas dotes e
habilidades físicos para a luta e a sobrevivência, mas também como alguém de
personalidade tenra, e disposto a ajudar os outros. Esses atributos são mostrados como
consequência do estigma do racismo, o qual perpassou toda a sua vida e ao qual ele tentava
resistir. Ao formar-se em geologia pela Universidade de Praga (não é explicitado por quais
meios ele o havia conseguido), chegou a participar da organização de centros acadêmicos
da universidade, onde teve contato diversas ideias e correntes políticas.
De fato, a história de Osvaldão tem diversos elementos de heroísmo: um sujeito
marginalizado, pertencente a uma classe oprimida, com ideais revolucionários e que luta
contra um governo repressivo em prol da igualdade e da democracia. Esses aspectos
58
O que pode ser destacado também é que o capítulo, de acordo com as intensões do
autor da HQ, estruturado em torno de memórias silenciadas e com pouco ou nenhum
espaço nas narrativas tradicionais, mostra que a repressão não tinha como alvo apenas
indivíduos brancos de classe média. O racismo no contexto da ditadura e a atuação da
parcela negra da sociedade brasileira ainda ocupam, na historiografia sobre período, uma
posição de subalternidade, havendo, também, um silenciamento de suas vozes no campo de
batalha da memória. A resistência negra em tempos de autoritarismo é também tema de
outro capítulo que será posteriormente analisado.
Fonte: http://bahianalupa.com.br/em-quadrinhos-fragmentos-da-ditadura-militar/
capítulo trata de uma contra-narrativa de modo a colocá-las também como responsáveis por
essa violência que os vitimou.
2.2.10. OS PASSOS DA INTEGRAÇÃO
exibição de fotos de todas as gentes das comunidades. Tudo isso é descrito, durante o
capítulo, como parte de uma cultura de outra cidade que existia no interior do Rio, uma
cultura de resistência e subversão, que não incluía o uso de armas. Mesmo assim, como está
explícito no título, despertava o medo e estimulava a repressão do regime autoritário.
Percebe-se que a memória social do movimento negro durante a ditadura civil-
militar é construída de modo a associa-la à luta contra o racismo e os problemas sociais que
afligem esse segmento. Cenas de repressão são mostradas no capítulo e de tentativas de
desviar a atenção dos militares, que utilizavam a justificativa de que aqueles espaços e
eventos eram pontos de venda de drogas para, na verdade, retaliar a ousadia de seus
participantes, a qual incluía diversos gestos de contestação, como no caso do cantor Elron
Chaves, que durante o Festival Internacional de Canção Popular, beijou duas mulheres
loiras, razão pela qual foi preso e torturado.
O orgulho negro, assim, esteve atrelado à memória do movimento, tendo ganhado
repercussão nacional nos últimos anos da década de 1970. Na última página do capítulo,
trechos de uma matéria publicada no Jornal do Brasil destacam uma população que evita
conflitos, que não bebe ou usa drogas, e que era movida por um ideal, uma ideologia. É
válido considerar que o destaque dado pelo periódico ao pacifismo do movimento aponta
para a crítica que se fazia no meio à luta armada como forma de combate à opressão, forma
essa que costuma aparecer revestida de certo heroísmo nas memórias de organizações como
o PC do B e a guerrilha do Araguaia, da qual o personagem Osvaldão, do capítulo VII fez
parte.
ciado-
71
Algumas das personalidades históricas citadas são retratadas no capítulo, bem como
é ressaltada a influência do pensamento positivista que marcou os governos militares, seja
nos primeiros anos da República, no governo de Vargas em sua fase ditatorial, ou durante o
regime instaurado em 1964 com a queda de João Goulart. A intensão do autor é destacar as
várias vezes em que ocorreram golpes de caráter militar no país, sempre que uma ameaça
surgia e comprometia a ordem, a integridade e a soberania da nação, atestando uma
fragilidade institucional.
Os ideais nacionalistas e de respeito à ordem e à hierarquia são simbolizados através
da figura de uma caserna (página 81) em cujo centro encontra-se a bandeira nacional. A
ideia de que a melhor alternativa para os grandes problemas do país é que ele seja guiado
através de princípios que sempre pautaram as forças armadas, segundo o autor, sempre
despertou fascínio em meio à sociedade brasileira, e, de tempos em tempos, em especial em
momentos de crise, soluções autoritárias tornam a ser cogitadas como caminhos possíveis
(ou como únicos caminhos).
A rejeição à classe política e ao sistema da qual ela faz parte e que não atende aos
principais anseios da sociedade é o que faz brotar o desejo de um salvador da pátria. A
negação da atividade política como um mal em si e o flerte com caminhos autoritários
diante de tempos difíceis criam condições que facilitam o surgimento de governos
ditatoriais que tomam para si a tarefa de preservar uma ordem que, na verdade, serve
apenas a setores acima da pirâmide social. A partir desse panorama histórico, Robson
Vilalba pinta o retrato de nossos tempos, em que o extremismo tem ganhado cada vez mais
espaço.
72
Não existem regras. No caso dos quadrinhos, pode-se dizer que o único
limite para o seu bom aproveitamento em qualquer sala de aula é a
criatividade do professor e a sua capacidade de bem utilizá-la para atingir
seus objetivos de ensino. Eles tanto podem ser utilizados para introduzir
um tema que será depois desenvolvido por outros meios, para aprofundar
um conceito já apresentado, para gerar uma discussão a respeito de um
assunto, para ilustrar uma ideia, como forma lúdica de tratamento de um
tema árido ou como contraposição ao enfoque dado a outro meio de
comunicação (VERGUEIRO, 2010, p. 26).
(ASSIS, 2011). Entre esses recursos estão os balões de fala e suas variações, que indicam
diferentes maneiras pelas quais o personagem expressão seus pensamentos, e também as
onomatopeias, os símbolos e sinais.
Cintando Jörn Rüsen, Cerri (2011) apresenta o conceito de cultura histórica como a
maneira pela qual uma determinada sociedade lida com a experiência do tempo. Diferentes
formas de lidar com a temporalidade implicam a existência de diferentes processos de
significação do passado e a construção de narrativas que atendem às necessidades do tempo
presente. Assim, no âmbito da aprendizagem histórica, muitos fatores estão em jogo na
constituição de uma cultura histórica dos alunos, os quais, deve-se dizer, não estão
limitados apenas ao ambiente escolar ou acadêmico, mas sim presentes também nas
76
experiências cotidianas e no contato com diferentes tipos de mídia, as quais são difusoras e
até mesmo fortalecedoras de certos discursos.
Esse é o caso de muitas HQs com temática histórica que possuem um viés ficcional
bastante forte, ao qual é comum que os alunos acabem se detendo. Assim, o seu conteúdo
deve ser confrontado com outras fontes históricas, a fim de que haja um grau de
plausibilidade científica na utilização desse gênero em sala de aula. No caso da HQ de
Robson Vilalba, os documentos da Comissão Nacional da Verdade são um exemplo, assim
como muitas das fontes utilizadas por ele para compor as narrativas. Em uma seção da HQ
dedicada à comentários do autor sobre a sua pesquisa e o processo criativo, ele afirma:
Percebe-se, pela sua fala, que o ilustrador se apropriou das fontes de modo à
imprimir nos capítulos um certo toque de dramaticidade e medo que refletisse a atmosfera
do período em que os enredos se passam. Esses elementos, ele notou nos relatos de seus
entrevistados e os fez aparecer no roteiro. Além de entrevistas, reportagens, notícias e
outras fontes de informações sobre os personagens do livro são referenciadas em sua seção
de créditos, intitulada “Desvendando o Notas”, e podem ser acessadas, para que se perceba
de que maneira Vilalba ressiginficou as memórias que embasam as tramas por ele
construídas.
Essa confrontação está de acordo com a forma defendida por Fronza, para quem
deve se dar com fontes que estejam relacionadas ao contexto que os quadrinhos
representam. Contudo, apesar dessas limitações, as HQs conservam o seu valor como fonte
histórica e ferramenta de ensino, uma vez que
documental com vistas a perceber como as narrativas que integram a obra inserem-se no
âmbito das disputas de memória da Ditadura Civil-militar. É claro que a sua concepção não
se deu de uma forma que fosse pensada para ser incluída no catálogo de livros a serem
distribuídos nas escolas do país através do PNBE. Ainda assim, pensar as suas
possibilidades de utilização no ensino pode revelar-se totalmente válido dentro do debate
em torno sde como se percebe o uso de documentos em sala de aula. Knauss (2001) reflete
sobre a construção do conhecimento como leitura de mundo e os entraves dentro de um
modelo de educação histórica que, segundo ele, autoritário e com aversão à reflexão e o
acriticismo.
política e de crise econômica são apresentados como fatores que facilitam o surgimento de
um ambiente fértil para alternativas fora das vias democráticas. Tal aproximação já é ponto
de partida para o estímulo ao exercício do pensamento crítico nos alunos. Além disso, ao
trazer em suas páginas diferentes sujeitos e grupos sociais que viveram o período em que se
passam as histórias, o livro abre a possibilidade para diferentes temáticas e conceitos que
podem ser trabalhados em sala de aula.
É interessante que em uma aula de história que se pretenda fora dos moldes
tradicionais que se limitam à memorização de eventos, datas e nomes considerados
“importantes” e vise uma abordagem histórica que estimule o pensamento crítico e o
espírito investigativo do aluno. Pode ser valoroso também ao professor enfatizar a dinâmica
da relação entre a história e a memória, apresentando esta última como uma construção
cultural livre, e a primeira como uma operação intelectual guiada por convenções
científicas. (MENESES apud. NAPOLITANO, 2015). A fronteira entre as duas, por outro
lado, dificilmente apresenta-se como bem demarcada:
A pesquisa de campo que será apresentada a seguir teve por objetivo perceber de
que maneira os alunos e professor percebem a temática da Ditadura Civil-militar, através de
sua opinião sobre a mesma. Além disso, procurou-se também investigar como as histórias
em quadrinhos e a ideia de sua utilização em sala de aula são vistas por eles. A realização
da pesquisa consistiu na aplicação de questionários aplicados em uma turma de terceiro ano
do ensino médio da Escola Estadual Juscelino Kubistchek, localizada no município de
Assú, Rio Grande do Norte.
A escolha desse espaço para a realização desta etapa do trabalho mostrou-se
interessante por ter sido, também, o campo de atuação durante a disciplina de Orientação
Teórico-metodológica e Estágio Supervisionado II16. As atividades da disciplina tinham
16
Disciplina ministrada no sexto período do curso de Licenciatura em História
82
Ao todo, foram obtidas trinta e dois questionários, a contar com o respondido pelo
professor. Para este trabalho, contudo, foram selecionadas algumas amostras que permitem
melhor perceber qualitativamente os elementos que se pretende analisar aqui. A seguir, será
feita uma análise das respostas de alguns alunos, de acordo com as perguntas feitas a eles.
Percebe-se, que as respostas dos estudantes vão por caminhos diferentes. É visível
que a fala de Mateus José Rodrigues apresenta uma inclinação para a memória hegemônica
da ditadura, marcada pela crítica ao regime autoritário. Ele chama a atenção para a censura
e a repressão que caracterizou o período, durante o qual, segundo ele, houve muito
derramamento de sangue de inocentes que se posicionavam contra o governo. Percebe-se,
aqui, uma narrativa que apresenta a Ditadura como um período violento na história
brasileira, defendida por setores sociais que se opuseram a um regime de exceção, sejam
eles os liberais ou de esquerda.
Indo por uma direção um tanto diferente, José Luiz da Silva afirma ter sido a
Ditadura algo importante para conter a violência e os vários conflitos do período. Tem-se
aqui uma visão destoante em relação a uma memória crítica, a qual costuma ser defendida
por grupos sociais inclinados ao revisionismo histórico sobre a os tempos do regime
comandado pelos militares. Certa atenção deve ser dada à presença da palavra “ditadura” na
resposta do aluno. Bauer (2018) afirma que uma das características do revisionismo acerca
do regime de 1964 não é a sua negação, mas sim a sua legitimação enquanto algo
necessário naquele momento. Ao mesmo tempo, porém, é perceptível certa tendência à
crítica na resposta do aluno ao dizer que os problemas econômicos do Brasil não foram
solucionados com o regime.
Por sua vez, a resposta de Amélia Mendes da Costa deixa transparecer uma forma
de conhecimento sobre Ditadura em que não se percebe uma inclinação necessariamente
para a crítica ou para o revisionismo legitimador, mas sim para o entendimento construído a
partir de diferentes narrativas, sejam elas de teor favorável ao regime e suas ações, ou
desfavorável, apresentando-o como um período marcado pela repressão e pela perseguição.
Aqui, é perceptível que a sua visão sobre o tema é influenciada por discursos divergentes,
que podem refletir diferentes vivências e atribuições de sentido ao passado.
A opinião de Igor Medeiros Fernandes, por sua vez, mostra o entendimento de que
há diferentes formas de apropriação e construção de significados sobre a experiência
temporal. Sua resposta dá mais ênfase a uma narrativa destoante da memória crítica do
período ditatorial, em que o mesmo é visto como um período em que a violência era menor
e a economia brasileira estava crescendo. “Os mais antigos”, como diz em sua fala, podem
ser entendidos como aqueles que viveram a Ditadura, o que significa que a compreensão de
seu real significado está ligada ao vivido. Ainda assim, ao discorrer sobre os seus
conhecimentos sobre o tema na pergunta anterior, a tortura e a falta de liberdade ganham
ênfase.
Assim, que ele tenha ressaltado em sua resposta à segunda pergunta o conhecimento
de uma visão nostálgica do período, não quer dizer que ele compartilhe dela. Seu
comentário parece ter como intento alcançar certa isenção sobre uma temática cujo caráter
86
polêmico ele mesmo ressalta. Por último, Flávio Manoel Medeiros parece seguir um
caminho semelhante, com a particularidade de afirmar explicitamente que não possui
opinião sobre o tema, mas por outro lado saber que existem visões diferentes acerca.
Quando perguntados sobre o seu gosto pelos quadrinhos e com que frequência
costumam ler esse tipo de material, um total de dezenove alunos responderam de forma
afirmativa, frente a doze que responderam negativamente. Entre os que responderam sim,
as respostas variavam: alguns afirmaram de fato gostar, outros afirmaram gostar, mas que
apenas o faziam às vezes ou com pouca frequência; além disso, um dos alunos afirmou
gostar de HQs, mas não possuía muito acesso a elas. Apesar disso, a escola possui uma
biblioteca em cujo acervo há um número considerável de HQs. Além disso, há também uma
“cordelteca”, espaço dedicado à atividades de leitura e à exposição de produções dos
alunos. Nesse espaço, há também alguns livros em quadrinhos. Durante as atividades de
observação da disciplina de Estágio II, constatou-se que poucos estudantes frequentam
esses espaços.
Por outro lado, no que diz respeito da utilização desse tipo de mídia em sala de aula,
apenas dois responderam que de maneira negativa, o que significa que, até mesmo entre os
alunos que disseram considerar uma maneira de tornar as aulas mais atrativas.
Após a análise dos questionários aplicados aos alunos, passemos agora para as
perguntas feitas ao professor José Alberto Lima, 51 anos. Sobre como os alunos veem ou
percebem o tema, ele afirma: “a maioria não tem noção alguma desse período. Eles
nasceram depois e seus pais também não tiveram um contato com a história”. Em seguida,
quando se pergunta sobre a importância do estudo da Ditadura no atual contexto, ele diz: “É
de suma importância, pois precisamos conhecer a história desse período para criarmos uma
consciência nas pessoas, e não corrermos o risco de repetir esse grave erro histórico”.
88
Percebe-se, mais uma vez, a noção do tempo como experiência (noção do que foi o
período, que, segundo ele, a maioria dos alunos não tem), e como ação (a preocupação em
se falar sobre o tema, algo que pôde ser notado na fala do estudante Jorge Marinheiro,
quando diz que a história tende a repetir-se, e daí a necessidade de discussão da temática).
A relação feita pelo professor e pelo aluno entre o contexto político brasileiro atual e as
circunstâncias que levaram aos acontecimentos de 1964 apresenta-se como uma
determinada maneira de atribuição de sentido ao passado, ligada às necessidades do
presente: em meio a um panorama atribulado com a polarização e a radicalização em meio
à sociedade, há uma necessidade de se manter vivo o debate em torno do tema, a fim de
evitar a repetição de um erro. Ao denominar assim o período, o professor aproxima-se de
uma memória crítica da Ditadura.
No que se refere ao uso de quadrinhos nas suas aulas, o professor afirma já ter
desenvolvido um trabalho nestes moldes, e considera a ideia interessante. Entretanto, ele
não descreveu em detalhes como essa experiência se deu (qual o assunto trabalhado, a
metodologia, os resultados, etc.). Limitou-se, assim, apenas a defender o uso de HQs no
ensino como uma forma de informar e educar. Fazendo-se isso, admite-se que esse tipo de
mídia, bastante presente na cultura juvenil, acaba por influenciar a leitura de mundo dos
alunos, e insere-se em um espaço de embates que é o campo da História Pública. Isso
porque diferentes setores da sociedade, organizações e veículos de mídia podem integrar
isso que Bauer (2018) denomina comunidades de memórias e práticas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Índios, negros, mulheres, grupos que costumam estar à margem da sociedade (ou
em notas de rodapé da história) aqui aparecem em primeiro plano. É plausível dizer que a
formação do autor enquanto sociólogo, a qual o proporcionou uma bagagem que o permite
compreender as relações e jogos de força que operam na sociedade, tenha influenciado a
escolha dos temas dos enredos nos quais a HQ é estruturada. Por outro lado, esse aspecto
também o faz entender o alcance e a importância de seu trabalho, dado o espaço que esse
formato de mídia ainda tem entre o público que faz parte de uma geração que não viveu o
contexto histórico retratado nas páginas de “Notas de um tempo silenciado”.
É preciso considerar que, embora seja um trabalho que se aproxime muito mais da
investigação jornalística do que de uma metodologia própria da ciência histórica, a HQ
pode nos levar, ainda assim, a repensar o conhecimento sobre a Ditadura. Por outro lado,
embora não a obra não tenha sido pensada para ser um recurso didático e pedagógico a ser
utilizado pelos professores, esse aspecto torna válido pensar as possibilidades de aplicação
nesse campo. Uma prova disso encontra-se em nas respostas às perguntas do questionário
aplicado em uma turma de terceiro ano do ensino médio da Escola Estadual Juscelino
Kubitscheck. Quando perguntados a respeito suas impressões sobre a HQ, alguns
afirmaram ser ela interessante por trazer histórias que não aparecem nos livros didáticos.
questão. Ainda assim, tem-se com ela um bom caminho a ser trilhado, para uma maneira
diferente de se ensinar a história período ditatorial, através da reflexão de acerca de um
passado autoritário, cujo fascínio que ainda exerce em certos segmentos sociais torna
essencial a formação de uma consciência histórica na formação cidadã e na defesa da
democracia, uma missão que advém de nosso lugar social enquanto historiadores, e que se
dá através de uma postura crítica e analítica dentro do debate da História pública, frente às
versões do passado que se constroem nas diversas comunidades de memória sobre a
Ditadura Civil-militar.
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FONTES
DINIZ, André. Subversivos: Eternamente guerrilheira. São Paulo: Nona Arte Editora,
2000.
VILLALBA, Robson. Notas de um tempo silenciado. Porto Alegre: Besouro Box, 2015.
Cartuns de Henfil
REFERÊNCIAS
BAUER, Caroline Silveira. Qual o papel da história pública frente ao revisionismo
histórico? In: MAUD, Ana Maria. Que história pública queremos? / What public
history do we want? São Paulo: Letra e Voz, 2018. p. 195-203.
RAMOS, Paulo. A Leitura dos Quadrinhos. São Paulo: Editora Contexto, 2009.
RIOS, Kênia Sousa; FURTADO FILHO, João Ernani. Em tempo: história, memória e
educação. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2008.