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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE - UERN

CAMPUS WALTER DE SÁ LEITÃO - CAWSL


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA - ASSÚ
CURSO DE HISTÓRIA - LICENCIATURA

LUÍS GOMES NETO

NOTAS DE PASSADOS SILENCIADOS: HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NAS


DISPUTAS DE MEMÓRIA DA DITADURA CIVIL-MILITAR (1964-1985) E O
ENSINO DE HISTÓRIA

ASSÚ/RN
2018
LUÍS GOMES NETO

NOTAS DE PASSADOS SILENCIADOS: HISÓRIAS EM QUADRINHOS NAS


DISPUTAS DE MEMÓRIA DA DITADURA CIVIL-MILITAR (1964-1985) E NO
ENSINO DE HISTÓRIA

Monografia apresentada ao Departamento de


História da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte – UERN – Campus Avançado
Prefeito Walter de Sá Leitão – CAWSL/Assú,
como requisito para obtenção do título de
Licenciatura em História.

Orientador (a): Vagner Silva Ramos Filho

ASSÚ/RN
2018
LUÍS GOMES NETO

NOTAS DE PASSADOS SILENCIADOS: HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NAS


DISPUTAS DE MEMÓRIA DA DITADURA CIVIL-MILITAR (1964-1985) E NO
ENSINO DE HISTÓRIA

Monografia apresentada ao Departamento de


História da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte – UERN – Campus Avançado
Prefeito Walter de Sá Leitão – CAWSL/Assú,
como requisito para obtenção do título de
Licenciatura em História.

Aprovado em ____/____/____.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________
Prof. Me. Vagner Silva Ramos Filho (Orientador)
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)

_________________________________________________________
Prof. Me. Hidelbrando Maciel Alves (Avaliador Externo)
Universidade Estadual do Ceará (UECE)

_________________________________________________________
Prof. Me. Rosenilson da Silva Santos (Avaliador Interno)
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
ASSÚ/RN
2018

Dedico este trabalho a todos os amigos e colegas que, em tempos


nos quais as ideias da força e da violência ameaçam, seguem sendo
resistência.
AGRADECIMENTOS

Tenho em mim todos os sonhos do mundo


(Fernando Pessoa)

Quando decidi tentar ingressar no curso de Licenciatura em História lembro-me de


estar movido por inquietações. Em meio aos meus estudos para o vestibular, eu
acompanhava os noticiários pela TV e pela internet sobre o que se sucedia no cenário
político e social brasileiro. Recordo-me também de estar possuído por um espírito
sonhador, ávido pela transformação da realidade que me cerca, através do conhecimento
histórico. Nos fins de 2014 o meu objetivo se cumpria, e desde o início dessa etapa, muitas
águas rolaram. Os desafios da carreira acadêmica me lançaram em um processo intenso de
amadurecimento, repleto de experiências boas, mas também de verdadeiros perrengues que
me fizeram engrossar a fina pele da ingenuidade, transformando-a em uma carcaça forte
resistente o bastante frente às adversidades da vida.
Em meio a isso tudo, vi minhas ações, pensamentos e planos de vida mudarem.
Porém, creio que aquele espírito de intervenção no mundo permaneceu, e está refletido
aqui, neste trabalho. Se logrei cumprir essa etapa, sei que não só devo tudo aos meus
esforços, mas também a todos aqueles que eu tive a sorte de estarem sempre comigo, e
também de haver conhecido ao longo da jornada. É a todos vocês que dirijo o meu
obrigado. Direciono-os, primeiramente, à família, pelo grande apoio provido frente a todas
as escolhas que, ao longo dos meus anos de vida, precisei encarar, algumas delas acertadas,
outras nem tanto. Pai, mãe, irmã, tios, primos... Todos vocês, de diferentes maneiras,
contribuíram para esse momento, fosse através de um empurrãozinho ou de palavras de
apoio e conforto em instantes de aperto.
Meu alô vai também para esses ‘cabras’ com quem tive o grande prazer de seguir
caminhando: Mayon, Luanderson e Luquinhas. Faz três anos desde que iniciamos a luta,
sempre juntos, sem soltar a mão um do outro. Dividimos alegrias, risos, desesperos e
tropeços, e sobrevivemos a tudo. Graças a vocês, redescobri algo que julguei há algum
tempo ter esquecido: o valor da amizade, da cumplicidade e também (por que não?) de um
sentimento de irmandade, já que tudo o que cada um de nós fez foi construído com o
suporte e a opinião do outro. Momentos de luta e também de descontração jamais sairão da
memória. Com vocês, aprendi que quando se tem amigos de lado, as conquistas são
maiores, se multiplicam por quatro.
Quero também saudar e agradecer todos os nossos mestres docentes por nos
guiarem pelo fascinante e tortuoso caminho do conhecimento e da vida acadêmica. Em
meio ao processo, cada um de vocês, à sua maneira, serviu para mim como inspiração, não
apenas mostrando o valor de nosso ofício, especialmente em tempos tão conturbados como
este em que vivemos, mas também fazendo-me entender que, para a transformação, a
inquietação por si só não basta; que para construir a resistência é necessária a coragem e a
atitude de sê-la, de estar na linha de frente da melhor forma que podemos. Além disso, nas
rodas de conversa fora das aulas, nesses bons momentos em que quebramos o gelo a dividir
histórias, preocupações, experiências de vida, percebi que somos mais que alunos e
professores. Somos companheiros.
Uma menção especial eu gostaria de fazer a ti, grande mestre e orientador Vagner
Ramos. Conhecemo-nos há mais de um ano, e desde aqueles primeiros dias já nutria por ti
uma grande admiração como profissional. Esse sentimento apenas cresceu ao longo desses
meses em que trabalhamos juntos para construir este trabalho, furto de leituras a fio, noites
em claro e aperreios que o processo nos reservou. Ao longo do ciclo, passei a te enxergar
não apenas como um professor, mas também como um amigo, um parceiro. Agradeço-te
por toda a ajuda, paciência, disponibilidade, força e crédito até aqui. Obrigado também pela
disposição em mostrar-se bom ouvido em momentos nos quais a vida mostra sua faceta
mais dura, por ter servido a mim de exemplo e inspiração, e por fazer reviver a minha
ousadia de seguir em frente, sonhando.
Certa vez, ouvi de ti que sentiríamos falta de toda a intensidade e adrenalina que
fizeram parte dessa fase, e em vários momentos, percebi o quão verdade isso é. Estamos
prestes a seguir caminhos diferentes após esta etapa, mas espero que, algum dia, eles se
cruzem novamente. Como você costuma dizer sempre, “Nóis trupica, mais num cai”. O
mesmo eu digo para todos outros amigos, colegas de turma e outras pessoas que, apesar de
aqui não tê-las mencionado, contribuíram de alguma forma para que essa fosse, apesar de
difícil e tortuosa, uma das fases mais importantes da minha trajetória.
RESUMO

Esta pesquisa tem como objeto de estudo as histórias em quadrinhos (HQs) desse período
da história republicana brasileira. O problema central é a indagação das disputas da
memória do acontecimento forjadas entre lembranças e esquecimentos em diferentes
momentos. A principal análise de fonte dirigiu-se a HQ "Notas de tempos silenciados", de
Robson Vilalba, ilustrador e sociólogo brasileiro, publicado em 2014, um ano após o 50º
aniversário do golpe de Estado instaurado em 1964. O trabalho busca, sequencialmente,
analisar narrativas da ditadura com base na historiografia, percebendo como os quadrinhos
inserem-se nas suas batalhas de sentido; problematizar memórias subalternas do período
através da supracitada fonte em destaque, analisando como a ditadura é retratada pelos
elementos da linguagem quadrinística construída por Vilalba; enveredar-se no campo do
ensino de história, a fim de compreender como os quadrinhos contribuem para uma nova
abordagem desse assunto nas escolas, levando em consideração a memória incrustada no
conhecimento prévio de estudantes e professores. O estudo é baseado em diálogos
historiográficos em que se destacam os seguintes autores: Michel Pollak (1989), Marcos
Napolitano (2015), Mariana Joffily (2018), Circe Bittencourt (2008), Luís Fernando Cerri
(2011) e Waldomiro Vergueiro (2004). A pesquisa tem como fontes, além de diferentes
tipos de linguagem tidas como histórias em quadrinhos – charges, cartuns, tirinhas –
questionários aplicados a alunos e professores acerca da temática da ditadura e do uso de
HQs como ferramenta pedagógica.

Palavras-chave: Ditadura Civil-militar, Ensino de História, Histórias em Quadrinhos,


Memória.
ABSTRACT

The study object of this research is the comics of this period of Brazilian republican history.
The central problem is the inquiry about the battles of memories of the Civil-military
Dictatorship which a forged among remembrances and forgetfulness in different moments.
The main source analysis turns to the comic book “Notes of silenced times” by Robson
Vilalba, a Brazilian sociologist and illustrator. It was published in 2015, a year after the 50th
anniversary of the coup d’état held in 1964. Sequentially the research aims to analyse the
narratives about the Dictatorship, basing on historiography of the period, observing how
comics fit in its battles of meanings; problematize subaltern memories of the period through
the source cited up above, analysing how Dictatorship is depicted through the elements of
comics language constructed by Vilalba; takes the path into History Teaching field in order
to comprehend how comics contribute to a new approach to this topic in the schools,
considering the memories embedded in the background knowledge of students and
teachers. The study is based on historiographical dialogues of authors such as Michel
Pollak (1989), Marcos Napolitano (2015), Mariana Joffily (2018), Circe Bittencourt (2008),
Luis Fernando Cerri (2011) and Waldomiro Vergueiro (2004). In addition to the different
genres classified as comics – cartoons, comic strips and comic books – other search sources
include questionnaires about the Dictatorship topic, as well as the use of comics as
pedagogical tools, which was applied to students and teachers.

Keywords: Civil-Military Dictatorship, History Teaching, Comics, Memory.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Bottom do movimento Quadrinistas Antifascistas 14


Figura 2 - Charges representando João Goulart 33
Figura 3 - Charge da Folha de São Paulo (1965) 33
Figura 4 - Charge de Ziraldo (Década de 1970) 34
Figura 5 - Charge de Ziraldo (Década de 1980) 35
Figura 6 - Charge de Henfil 36
Figura 7 - Personagens do Fradim 37
Figura 8 - Capa da HQ "Subversivos" 38
Figura 9 - Página da HQ "1968 – Ditadura abaixo" 39
Figura 10 - Capa da HQ "Brasil - Ditadura Militar" 40
Figura 11 - Capa da HQ "Notas de um tempo silenciado" 43
Figura 12 - Trecho do capítulo 1 46
Figura 13 - Trecho do capítulo 2 49
Figura 14 - Trecho do capítulo 3 50
Figura 15 - Trecho do capítulo 4 52
Figura 16 - Trecho do capítulo 5 53
Figura 17 - Trecho do capítulo 6 55
Figura 18 - Trecho do capítulo 7 57
Figura 19 -Trecho do capítulo 8 58
Figura 20 - Trecho do capítulo 9 60
Figura 21 - Trecho do capítulo 10 61
Figura 22 - Trecho do capítulo 10 61
Figura 23 - Trecho do capítulo 12 61
Figura 24 - Trecho do capítulo 13 61
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................................
12

CAPÍTULO 1: A DITADURA CIVIL-MILITAR EM DEBATE: ENTRE A HISTÓRIA


EA
MEMÓRIA.......................................................................................................................17
1.1.A Ditadura nas narrativas da
historiografia........................................................................17
1.2. Histórias em quadrinhos nas disputas de memória da
Ditadura.......................................30

CAPÍTULO 2: MEMÓRIAS SUBALTERNAS DA DITADURA DE 1964: NA


HISTÓRIA EM QUADRINHOS “NOTAS DE UM TEMPO SILENCIADO”..................42
2.1. Notas gerais da HQ: vida, obra e missão em tempo de cinquentenário.
do golpe
(2014).......................................................................................................................42
2.2. Notas capítulo a
capítulo..................................................................................................45
2.2.1. No princípio, as
trevas..................................................................................................47
2.2.2. As vozes da
rua.............................................................................................................46
2.2.3. Fogo contra
fogo...........................................................................................................49
2.2.4. O
duplo.........................................................................................................................51
2.2.5. O mais longo dos
anos..................................................................................................53
2.2.6. A
guerrilheira................................................................................................................54
2.2.7. Herói de
guerra.............................................................................................................56
2.2.8. Nem tudo foi
milagre...................................................................................................57
2.2.9. A domesticação dos
selvagens.....................................................................................59
2.2.10. Os passos da
Integração.............................................................................................61
2.2.11. História de caça às
bruxas..........................................................................................63
2.2.12. Desarmados e
perigosos.............................................................................................64
2.2.13.Salvadores da
pátria....................................................................................................66

CAPÍTULO 3: OS QUADRINHOS EM SALA DE AULA NO ENSINO DE HISTÓRIA


DA DITADURA CIVIL-MILITAR....................................................................................69
3.1 A nona arte no ensino: desafios e possibilidades............................................................70
3.2. Pesquisa de campo em sala: memórias de alunos e professores sobre ditadura............78

CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................86
FONTES................................................................................................................................88
REFERÊNCIAS..................................................................................................................89
12

INTRODUÇÃO

O panorama nacional dos últimos três anos tem sido marcado por uma crise
profunda nas esferas política, social e econômica. Os desdobramentos desse atribulado
contexto vêm sendo sentidos em meio à sociedade brasileira através da ameaça à garantia
de direitos historicamente conquistados e se reflete na descrença e insatisfação em relação
ao funcionamento das instituições democráticas, postas em cheque devido às suas grandes
contradições internas e problemas, expostos por um estado de constante deterioração e
sucateamento dos serviços oferecidos à sociedade, bem como de descoberta de casos de uso
da máquina e dos recursos públicos para interesses privados.
A insatisfação geral com o atual sistema político e a sua ineficiência no
enfrentamento de questões que afetam a vida dos cidadãos, como a precariedade da saúde,
da educação e da segurança, costuma dar espaço a ideias que contrárias ao regime
democrático. Manifestações de pedidos de intervenção militar e a evocação por parte de
setores reacionários e conservadores da sociedade de uma memória nostálgica do período
ditatorial como uma época de prosperidade e de ética na política encontram cada vez mais
espaço, contestando uma memória crítica do período. Em virtude disso, evidenciou-se a
existência de disputas de memória da Ditadura, na medida em que o debate ganha, mais
uma relevância especial.
Refletir sobre a memória requer encará-la como um processo complexo, sobre o
qual pesam diversas variáveis. Entre os autores que nos ajudam a pensa-la, estão James
Fentress e Chris Whickhan (1992)1, que apontam que a memória possui uma dimensão
social e individual. O intercruzamento entre as duas se dá quando recordações e vivências
pessoais se mostram relevantes ao grupo, ou quando a memória do grupo incide sobre
como o indivíduo a ele pertencente atribui significado ao passado. Dessa forma, tanto a
experiência do vivido como representações e discursos construídos a posteriori e que se
refletem através de datas comemorativas, eventos cívicos, cerimônias oficiais, influenciam
a formação do que Carolina Bauer2 chama de “comunidade de memórias”.
Em uma sociedade diversa, pode-se falar da existência de várias dessas
comunidades, nas quais se observa diferentes maneiras de apropriação do passado, que não
raro estão na base das demandas reclamadas por esses sujeitos. As divergências que daí

1
FENTRESS, James; WICKHAN, Chris. Memória Social: Novas perspectivas sobre o passado. Lisboa:
Teorema, 1992.
2
BAUER, Caroline Silveira. Qual o papel da história pública frente ao revisionismo histórico? In: MAUD,
Ana Maria. Que história pública queremos? / What public history do we want? São Paulo: Letra e Voz,
2018. p. 195-203.
13

surgem fazem (especialmente em momentos de grande polarização e divisão) acalorarem-se


conflitos que, durante os quais reinterpretações e reatualizações sobre passado são
reivindicadas. Bauer diz ser o ano de 2013, marcado por manifestações, bem como o
impeachment de Dilma Roussef, ocorrido três anos depois, como marcos iniciais de um
movimento, em que setores conservadores dão vazão a uma leitura nostálgica do período
ditatorial. A declaração do futuro ministro da educação de que os acontecimentos de 1964
devem ser motivos de comemoração também é um exemplo desse movimento.
Tem-se, assim, um revisionismo histórico que confronta a memória crítica da
Ditadura, e que cuja peculiaridade (quando comparado ao caso de outras ditaduras latino-
americanas do século XX) não é a de negar o que ou como aconteceu, mas sim a de exaltar,
comemorar o período iniciado com a ruptura democrática de 1964, da maneira como ela
ocorreu. Notícias como essas fazem com que, no contexto atual, que as discussões sobre o
que representou a ditadura civil-militar para a nossa história são fundamentais em meio à
escalada do ódio e do elogio à violência e do autoritarismo como possível alternativa de
resolução para questões que nos atingem enquanto sociedade.
Diante desse quadro em que disputas de memória se apresentam de forma
especialmente evidente, não há como não pensar no papel do ensino de História, dada a
relação, por muitas vezes imbricada entre o conhecimento histórico científico e outros
discursos sobre o passado que atualmente ganham espaço no meio digital. Em muitos deles
procura-se dar ênfase a uma visão revisionista da Ditadura, na medida em que possuem um
certo teor de pós-verdade, ou seja, muito mais pautados na emoção, no idealismo e em
distorções. Ao pensar no grande acesso dos jovens às redes sociais ou quando se vê alguns
deles endossando narrativas que exaltam o período ditatorial, indagamo-nos sobre que
fatores contribuem para a formação da cultura histórica dos alunos. Luis Fernando Cerri
(2011) 3 nos auxilia nesse sentido ao mostrar que esse processo se dá em diversas instâncias
sociais para além do espaço escolar, as quais devem ser levados em consideração.
Mas além das redes sociais, diversos outros veículos também se mostram como
difusores de discursos sobre a realidade, como as Histórias em quadrinhos. A escolha dessa
mídia como lente para o estudo das disputas de memória da Ditadura vem do meu interesse
por esse tipo de arte. O meu interesse pelo universo das HQs existe desde a infância,
quando costumava ler revistas de super-heróis e personagens nacionais e internacionais. Ao
longo dos anos, enquanto eu também desenvolvia a habilidade do desenho, fui tendo

3
CERRI, Luis Fernando. O que é consciência Histórica. In: Ensino de História e Consciência Histórica.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. Cap. 1. p. 19-47.
14

contato com produções de temáticas de teor social e político, o que me levou,


posteriormente, a conhecer “Notas de um tempo silenciado”, do sociólogo e quadrinhista
Robson Vilalba.
Lançada em 2014, portanto em pleno cinquentenário do golpe de 1964, a obra é
construída a partir de narrativas de diferentes indivíduos e grupos sociais que sofreram a
perseguição política do Estado brasileiro, e que não costumam aparecer na história oficial,
como povos indígenas e negros. Parte do trabalho do autor, que é desenhista e sociólogo,
consistiu na coleta de depoimentos, informações e dados desses indivíduos e grupos para a
composição de histórias de passados silenciados, o que dá o nome ao trabalho. Pensar a
construção de uma memória é considerar que esse processo é permeado por escolhas do que
evidenciar ou silenciar. Nesses momentos, os debates sobre o tema costumam evidenciar-se
ainda mais, mostrando que, como afirma François Mosse, em diálogo com Michel de
Certeau, o acontecimento é aqui que ele se torna4.
Assim, as disputas de sentido sobre o passado ainda estão em aberto. Sabendo disso,
Vilalba constrói a sua HQ com base nessa proposta e formato. Contar a história da ditadura
em uma perspectiva ainda não adotada pela historiografia tradicional é um dos aspectos que
torna o trabalho de Vilalba interessante. Trazendo à tona fragmentos até então pouco ou
nada conhecidos sobre o período, ele se insere nos embates sobre o que foi o período que
vai de 1964 a 1985. O contexto de sua produção e publicação, assim como as intensão do
autor de lança-la como uma espécie de alerta diz muito por que caminhos vai a história que
a HQ conta. Por outro lado, ainda que não tenha sido feita para fins educacionais, é válido
pensar nas suas possíveis contribuições para o ensino, preocupação essa que tem sido
formulada desde 2006, quando o Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), incluiu
produções nesse formato em seu catálogo de livros a serem distribuídos nas escolas do país.

Figura 1 - Bottom do movimento


Quadrinistas Antifascistas

Fonte: https://www.instagram.com/explore/tags/quadrinistasantifacistas/

4
MOSSE, François. Renascimento do Acontecimento. São Paulo: Editora Unesp, 2010.
15

Robson Vilalba aderiu ao movimento Quadrinistas Antifascistas de maneira


simbólica. Iniciado durante as eleições de 2018, continuou com força durante a Comic Con
Experience (CCXP 2018) realizada este ano. Trata-se de um evento brasileiro de cultura
pop, que abrange diversos segmentos como quadrinhos, filmes e séries para a TV. A
iniciativa surgiu como um protesto frente à ameaça de um projeto político de orientações
antidemocráticas, o qual acabou por ser o vencedor do pleito eleitoral. O movimento, que a
adesão de quadrinistas de várias partes do país, mostra o alcance dessa mídia para além do
entretenimento, refletindo em seu conteúdo inquietações e problemáticas do contexto de
sua produção.
É pensando na importância da temática que o presente trabalho intenta, assim,
analisar a maneira como o passado da Ditadura aparece nos quadrinhos e como eles se
inserem nas disputas de memória, com especial atenção para a obra “Notas de um tempo
silenciado”, de forma a perceber como ela se insere nas disputas de memória da Ditadura.
Além disso, pretende-se, mediante discussão teórico-metodológica, apresentar as possíveis
contribuições do uso da HQ para o ensino da temática nas escolas, assim como perceber
como a temática e o uso dessa mídia na sala de aula são percebidos por alunos e
professores.
O primeiro capítulo tem por objetivo desenvolver uma discussão historiográfica
acerca da memória do período da Ditadura Civil-militar. O debate apoia-se em diversos
autores que discutem o tema, mostrando assim a construção de narrativas desse capítulo da
história republicana brasileira. Logo mais, analisaremos como diferentes gêneros dos
quadrinhos inserem-se nas disputas de memória sobre a Ditadura, incluindo charges,
cartuns e tirinhas publicadas à época, bem como Graphic Novels mais recentes em formato
de graphic novel. Como fonte, são utilizadas tanto produções da época como algumas mais
recentes.
O segundo capítulo consiste na análise da HQ escolhida como fonte de análise,
“Notas de um tempo silenciado”. Inicialmente, apresento uma visão geral da obra, tendo
por base uma pequena discussão teórica sobre a memória. Em seguida, uma análise crítica
dos treze enredos que compõem o livro, com vistas a entender como a história da Ditadura
é contada, levando em conta elementos constitutivos da linguagem dos quadrinhos, ou seja,
elementos verbais e não verbais. Os enredos giram em torno de temáticas diversas e, dentro
delas, pretendo perceber como as memórias da Ditadura aparecem na produção.
16

Por fim, o terceiro e último capítulo tem como foco o debate teórico-metodológico
acerca dos quadrinhos e suas possibilidades de uso em sala de aula, percebendo como a HQ
“Notas de um tempo silenciado” pode trazer contribuições para o ensino de História, mais
especificamente sobre a Ditadura Civil-militar, encarando-a não apenas como um recurso
didático e pedagógico, mas sim como um documento. Em seguida, são apresentados os
resultados de uma pesquisa de campo realizada no âmbito deste trabalho. Seu objetivo foi
perceber como alunos e professores enxergam a temática, assim como o uso de quadrinhos
no ensino de História.
17

CAPÍTULO 1: A DITADURA CIVIL-MILITAR EM DEBATE: ENTRE A


HISTÓRIA E A MEMÓRIA

Neste capítulo, pretende-se discutir a historiografia da memória do período da


Ditadura Civil-militar do Brasil (1964-1985). A discussão caminha pelos acontecimentos e
aspectos que marcaram os vinte e um anos de comando do estado brasileiro pelos militares
para, em seguida discutir a construção da memória do período. Posteriormente, seguindo
uma linha cronológica, analisa-se como diferentes gêneros dos quadrinhos inserem-se nas
disputas de memória sobre a ditadura, incluindo charges, cartuns e tirinhas publicadas à
época, bem como HQs mais recentes em formato de livro, contendo narrativas mais
elaboradas.

1.1. A DITADURA NAS NARRATIVAS DA HISTORIOGRAFIA

A história política brasileira, em especial o seu período republicano, tem alguns


dilemas e desafios constantes, cuja maior parte diz respeito à construção da democracia.
Nessa dimensão, ressalta-se a recorrente intervenção dos setores ligados ao exército em
importantes acontecimentos no país, em várias circunstâncias nas quais questões ligadas à
suposta defesa da ordem ou da soberania nacional foram colocadas no primeiro plano, a fim
5
de expurgar quaisquer forças que identificavam como ameaça externa ou interna. Sendo
um dos setores mais articulados da sociedade brasileira, os militares atuaram no meio
político defendendo seus interesses institucionais sob diferentes justificativas, tais como “o
reparo da moralidade política, da prosperidade e da integridade nacional”. O período que
contempla os anos de 1964 a 1985, no qual instaurou-se uma ditadura civil-militar no país,
constitui um desses longos episódios.
Autores importantes trazem grandes contribuições para o debate que se seguirá nas
próximas páginas. Marcos Napolitano, em seu artigo “Recordar é vencer: as dinâmicas e
vicissitudes da construção da memória sobre o regime militar brasileiro” permite-nos
entender a complexidade do forjamento da memória do período, sobre o qual pesa a
influência do contexto político e social brasileiro, sempre em constante transformação.
Mariana Joffily, em seu artigo “Aniversários do golpe de 1964” realiza percurso
semelhante ao problematizar como o debate sobre o que teria sido viver nos vinte e um

5
Essa tendência foi inaugurada nos fins do século XIX, quando dos últimos anos do regime monárquico. As
forças armadas haviam adquirido grande importância e força política após a Guerra do Paraguai, tendo
protagonizado o golpe que instalou o sistema republicano no país.
18

anos de regime militar aflora em datas “redondas”, consideras das marcos comemorativos.
Vale citar também a o volume 4 da coleção O Brasil Republicano e “O golpe e a ditadura
militar 40 anos depois” trazem uma visão panorâmica. Sobre o assunto.
A conjuntura da metade do século XX no Brasil foi marcada por um conjunto de
fatores que teceram um cenário de instabilidade política no país. Na virada da década de
1950 para 1960, a saber, alguns dos principais sintomas foram: as tensões relacionadas ao
conflito ideológico entre o capitalismo e o socialismo da Guerra Fria; a preocupação dos
Estados Unidos da América (EUA) em não permitir o avanço do comunismo nos países da
América Latina, visto que era sua principal zona de influência; um panorama político
marcado pelo recrudescimento da atividade sindical e o surgimento de novos movimentos
sociais de esquerda; o temor de setores da elite diante de uma ameaça do comunismo e as
fragilidades enfrentadas pelo governo de João Goulart, que despertava desconfiança em
virtude de uma política socioeconômica dúbia, que ora flertava com os anseios da elite
empresarial, ora com as reivindicações populares, e que gerava considerável insatisfação de
ambos os lados. 6
Os problemas de ordem social e econômica enfrentados pelo Brasil acirravam o
clima de tensão, que chegou ao ápice com o discurso realizado por Goulart, na Central do
Brasil, localizada no Rio de Janeiro, em março de 1964, no qual o então presidente
anunciava as Reformas de Base - um conjunto de ações voltadas a combater grandes e
históricas injustiças sociais, estruturadas nos eixos da reforma agrária, estímulo à indústria
nacional, além de reformas administrativas, bancárias e universitárias. O nacionalismo
presente no discurso de Jango e a natureza das reformas assustaram sobretudo as elites do
país que, receosas com possíveis perdas de privilégio passaram a corroborar com a ideia de
combate à dita ameaça do comunismo, representada pelo governo. Contra esse espectro,
diferentes segmentos sociais que identificavam-se com os pressupostos do pensamento
liberal, tais quais algumas elites, classes empresariais e o próprio exército, ganharam a cena
através da articulação de um golpe de Estado que derrubaria o então presidente eleito.
O golpe de 1964 conduzido pelos militares obteve, portanto, um suporte social e
político de vários lados, internos e externos. Sabe-se que, internamente, contou com o
respaldo da elite econômica brasileira, que os viam como garantidores de seus interesses e,
externamente, a ação orquestrada teve o apoio comprovado do governo norte-americano em
termos de financiamento e provimento de armas. Como foi ressaltado, a participação dos

6
Joffily (2018)
19

EUA fazia parte da política de combate ao comunismo, caracterizada pela intervenção em


vários países na América Latina.

O golpe de Estado que derrubou em 1964 o presidente João Goulart


tipificou o conjunto de ações que a CIA 7desenvolveu e aprimorou,
e com tais procedimentos ela conseguiu desestabilizar o governo e
permitir a sublevação dos militares, a pretexto de restaurar a ordem
e evitar o comunismo.8

Embora o temor da ameaça comunista costume ser atribuído à dubiedade das ações
do governo Jango, que hora pendia para um lado ou outro do espectro político, a tensão era
compartilhada também pelos setores da esquerda, receosos de que o golpe seria levado
acabo pela oposição à direita, ao passo em que esta temia que, se uma reação não fosse
levada adiante, seria a esquerda a protagonizar um golpe com vistas à implantação do
comunismo no Brasil. Por essa razão, houve setores da sociedade que defendem que os
acontecimentos de 1964 consistiram em uma reação a uma ameaça real da expansão do
comunismo, tendo sido a intervenção dos militares um anseio de todos os brasileiros,
chamado de revolução e não golpe, desprezando, assim, toda a produção do conhecimento
histórico fundada a partir de extensa documentação acerca do período. A controvérsia tem
figurado no seio de disputas no campo da memória e da história sobre o seu significado.
O período que demarcou as décadas de 1960, 1970 e 1980 foi perpassado por um
regime de exceção encabeçado pelas forças armadas. Nos vinte e um anos que durou, cinco
militares estiveram à frente do executivo, impondo à sociedade uma agenda política
marcada por um autoritarismo que foi aumentando gradativamente, através de dispositivos
jurídicos conhecidos como Atos Institucionais (AI). Editados pelo presidente da República
e respaldados pelo Conselho de Segurança Nacional9, eram constituídos por normas que
estavam acima de todas as outras, incluindo até mesmo a Constituição. Os atos
institucionais foram mecanismos de legalização e legitimação das ações dos militares,
proporcionando a eles poderes extraconstitucionais.
O governo de Castelo Branco (1964-1967) deu início às cassações políticas de
opositores, suspendeu as eleições diretas para a presidência, decretou o bipartidarismo

7
A Central Intelligence Agency, mais conhecida pela sigla CIA, é uma agência de inteligência civil do
governo dos Estados Unidos responsável por investigar e fornecer informações de segurança nacional para os
senadores daquele país.
8
(Valle, 2014, p.18)
9
O Conselho de Defesa Nacional (CDN) é um órgão consultivo do Presidente do Brasil em assuntos de
segurança nacional, política externa e estratégia de defesa. O Conselho foi criado em 29 de novembro de 1927
pelo Presidente Washington Luís. Ele é composto de ministros importantes e comandantes militares e
presidido pelo Presidente do Brasil.
20

(Arena e MDB), suspendeu a imunidade parlamentar e limitou os direitos constitucionais.


Durante o mandato de Costa e Silva (1967-1969), a censura aos órgãos de imprensa, e a
manifestações populares, teatro, música, rádio e televisão, a proibição do direito ao habeas
corpus e a concessão, para o presidente, da prerrogativa de suspensão de direitos políticos
por dez anos.
Os anos seguintes, durante os quais Médici esteve no poder (1969-1974),
conhecidos como os “Anos de chumbo”, foram marcados por uma escalada ainda maior da
repressão, como a institucionalização da tortura, através do AI-5, e a expulsão de opositores
do governo do país. A propaganda patriótica ganhava força como os êxitos econômicos do
chamado “Milagre econômico”. Com Geisel (1974-1979) um processo de abertura política
teria início de uma forma “lenta, gradual e segura”, nas palavras do então presidente.
Houve então a revogação de boa parte das medidas adotadas por Costa e Silva. O processo
foi conduzido de modo a conter a sua rapidez, através da mudança de regras para a eleição
de 1978 a fim de evitar o fortalecimento do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) o
partido que fazia o papel de oposição a níveis “aceitáveis” para os militares.

O processo de abertura democrática durante o governo Figueiredo (1979-1985) se


deu através de ações como a Promulgação da Lei da Anistia, a qual permitiu a volta de
exilados políticos ao país, e também o perdão a agentes de Estado responsáveis por crimes
cometidos contra opositores do regime. Além disso, ocorreu a extinção do bipartidarismo e
o retorno das eleições para governadores de Estado. Durante o processo de transição, as
reivindicações por mais democracia ganhavam força em meio à sociedade, sendo
canalizadas pelo movimento das “Diretas Já”, cuja bandeira foi a retomada das eleições
diretas para presidente da República. O movimento, contudo, foi frustrado, visto que a
eleição do primeiro presidente civil, Tancredo Neves, se deu através de um colégio
eleitoral.
Foi na esteira dos acontecimentos do período que a memória da ditadura foi se
construindo. Em diversos momentos, o contexto histórico acabou por influenciar a
construção e reconstrução de narrativas da época. Chartier (1988) afirma que as diferentes
maneiras de representação no discurso são passíveis de serem percebidas não apenas
naquilo que ele evidencia, mas também nos não-ditos. A escolha daquilo que se quer
evidenciar implica o silenciamentos de outras possibilidades. Além disso, não apenas os
componentes presentes no discurso ou na narrativa em si devem ser considerados, mas
também as suas formas de difusão e propagação, assim como a sua recepção e
21

interpretação. Uma das consequências disso são as controvérsias e diferentes visões da


historiografia sobre a memória10.
A bandeira da defesa da democracia, costuma ser, por exemplo, motivo de
controvérsia no que diz respeito a atuação dos movimentos de esquerda contra a ditadura. A
construção de uma memória da resistência foi encabeçada, em grande parte, por grupos que
optaram pela luta armada como forma de oposição ao regime implantado em 1964. A
narrativa revestida de certo heroísmo, que ressalta a luta de guerrilheiros contra a opressão
do Estado, por vezes, se sobrepõem ao fato de que nem sempre as pretensões desses grupos
eram democráticas, estando mais próximas de ideais revolucionários, de implantação do
comunismo do Brasil. Muitos desses grupos demonstravam certo desprezo pela via
democrática de luta contra a ditadura, defendendo que adotar essa via equivalia a deixar-se
corromper por um sistema burguês em que apenas a elite liberal saía ganhando.
O emprego da violência pelos grupos armados foi utilizado pelo Estado para
justificar uma resposta semelhante ao que ele via como uma evidência sólida da ameaça do
comunismo no país. A Política de Segurança Nacional teve como uma de suas a princípio
ações o combate às milícias e grupos organizados que se utilizavam de táticas como
assaltos, depredações e sequestro de embaixadores estrangeiros a fim de obrigar o governo
a libertar prisioneiros políticos. O argumento utilizado pelo Estado para o uso da repressão
aparece frequentemente no posicionamento dos que defenderam o regime como algo
necessário frente a uma ameaça supostamente maior, que justificaria a suspensão de
direitos, a prática sistemática da tortura e também as várias prisões arbitrárias.
No que diz respeito à condução da economia, os governos adotaram uma agenda
liberal. A abertura do Brasil para o capital externo propiciou um alto crescimento do
Produto Interno Bruto (PIB), durante o mandato de Costa e Silva, que tomou medidas para
a contenção do então crescimento inflacionário, como as políticas de arrocho salarial que
atingiram as classes mais pobres da sociedade. Por outro lado, o financiamento de
megaprojetos de infraestrutura, como a Transamazônica e a Hidrelétrica de Itaipu foram
possíveis com a injeção de capital internacional obtido através de enormes empréstimos.
Esse modelo econômico tão dependente logo revelaria sua fragilidade com a volta da
inflação durante o governo Geisel, mostrando as suas contradições, as quais encorajariam

10
Mariana Joffily destaca que essas diferentes visões confrontar-se em embates que tomam fôlego,
especialmente, no que ela denomina “aniversários redondos”, eventos políticos caracterizados pela ativação
da memória e por debates e balanços historiográficos.
22

ainda mais os movimentos de contestação ao governo que vinham ganhando fôlego em


meio ao abrandamento da repressão.

As contradições do chamado “Milagre Econômico”, como ficou conhecido o


período de considerável crescimento econômico, mostraram-se evidentes. Porém, no início
da década de 1970, as vicissitudes do mercado internacional transformaram-se de modo a
acabar por minar essa prosperidade tão frágil, dada a nossa grande dependência do capital
externo para o crescimento da economia. Por conseguinte, a escalada do autoritarismo do
Estado fez com que setores liberais fossem afastando-se da base de apoio ao regime. Assim,
as contestações ao governo recrudesciam em vários setores da sociedade. Durante o final
dos anos 1970 e início da década de 1980 tem início um processo gradual de abertura
política. Embora as medidas adotadas pelo então governo parecessem uma reação aos
anseios cada vez mais insuflados do povo por democracia, o processo de abertura foi
conduzido de forma a atender os propósitos do governo: 11

Tanto o governo quanto os representantes do grande capital


nacional concordavam, após as greves no primeiro semestre de
1980, por exemplo, em que era necessário conduzir a abertura
política num ritmo ainda mais lento, uma vez que os movimentos
reivindicatórios estariam causando estragos no processo em curso.
(REZENDE, 2013, p.272)

Às críticas vindas de setores populares se somavam ao posicionamento contrário do


empresariado e da mídia que outrora haviam apoiado a derrubada do governo Jango. Foi
durante o governo de Figueiredo, em meio a uma forte crise econômica advinda da inflação
e aos movimentos pela volta das eleições diretas, que o processo de transição para a
democracia iniciou-se de fato, com a volta do pluripartidarismo e das eleições diretas para
presidente e governadores de Estados. Estas últimas, contudo, ainda tardariam um pouco a
se concretizar. Isso porque o processo, conduzido em parte por antigos nomes ligados ao
regime militar, teve um caráter não de ruptura, mas de negociação, de modo que
instituições e dispositivos criados durante o regime ainda permaneceriam por mais tempo.

Assim, os anseios da sociedade pela participação na escolha do primeiro presidente


civil foram frustrados com a decisão do Congresso Nacional de montar um colégio eleitoral
para a escolha do próximo chefe do poder executivo. Napolitano (2015) ressaltou a
influência que teve o andar da transição para a democracia. A Lei da Anistia, nos fins da
década de 1970, trouxe o perdão aos considerados presos políticos, mas também aos
11
, Rezende (2013),
23

agentes de Estado que praticaram violações aos direitos humanos durante a Ditadura. O
caráter de negociação da abertura teve como consequência uma postura paradoxal em
relação ao posicionamento sobre o passado ditatorial:

O sistema político e jurídico dos países latino-americanos sob as


novas democracias também se comportou de maneira diferenciada,
ora propondo e aplicando leis que dificultavam o julgamento de
torturadores e assassinos, ora procurando brechas legais para
colocá-los na cadeia. (NAPOLITANO, 2015, p.14)

Essa postura é reflexo de um processo histórico consideravelmente complexo,


durante o qual novos sentidos foram dados ao período, o que se iniciou com o calor dos
acontecimentos, desde o início “brando” com o governo de Castelo Branco, passando pela
“linha dura” inaugurada com Costa e Silva e aprofundada com Médici, até o processo
“gradual” de abertura democrática entre os anos de Geisel e Figueiredo. A autocrítica
realizada pelos grupos liberais sobre seu apoio ao regime ditatorial e a participação de
movimentos sociais na construção da memória da ditadura foram determinantes para essa
ressignificação. A construção de um discurso hegemônico de crítica ao regime ditatorial de
1964 acontece, portanto, através da aliança entre liberais e setores da esquerda, com a tutela
e peso majoritário dos primeiros.

O protagonismo dos liberais do Partido do Movimento Democrático Brasileiro


(PMDB) na reabertura política foi de grande influência para a tessitura da memória
hegemônica da ditadura. Isso de dava através de um jogo complexo, no qual as bandeiras
dos direitos humanos, da liberdade de imprensa, da maior presença do Estado na economia
(NAPOLITANO, 2017) eram defendidas pelos liberais, ao mesmo tempo em que estes não
se opunham a questionar a legitimidade do regime militar, defendendo uma transição
negociada e apelando para um esquecimento sobre os crimes políticos cometidos pelo
Estado, com o argumento de que era preciso evitar um revanchismo que em nada
contribuiria para a estabilidade da democracia brasileira. Com isso, tem-se uma situação
que

beira à “esquizofrenia ideológica”, fazendo conviver no mesmo


Estado, discursos e ações pontuais tributários da memória crítica do
regime militar, com redes institucionais que, se não endossam os
valores autoritários e a violência política do passado, protegem os
perpetradores impedindo qualquer punição na justiça criminal, em
que pesem esforços no sentido contrário de setores do Ministério
Público.(NAPOLITANO, 2015, p. 28)
24

Além deste aspecto, este mesmo autor, assim como Jofilly (2018) atenta também
para o esforço dos setores liberais na construção da memória hegemônica de crítica ao
regime autoritário encabeçado pelas forças armadas, como parte de sua estratégia política
para não ter a sua imagem a ele associada. De fato, políticos que deram apoio à Ditadura
também estiveram na dianteira da transição negociada pra o regime democrático. Esses
pontos são apenas alguns dos que estão entre os objetos de reflexão da historiografia do
período ditatorial. Interpretações e discussões iniciaram-se nos anos 1980. Jofilly, ao
discorrer sobre as controvérsias públicas e acadêmicas da ditadura militar em meio à
relevância crescente do regime civil-militar e a constante renovação das discussões,
apresenta-nos o percurso dos debates acerca do tema.

A autora estrutura a sua reflexão a partir dos aniversários “redondos” de eventos


políticos importantes, pois “são momentos de ativação da memória que conclamam a
debates, ‘des-comemorações’ e balanços historiográficos.” (JOFFILY, 2018, p .205).
Nessas datas redondas, eventos e discussões sobre a ditadura ganharam espaço.
Historiadores, contudo, demorariam um tempo para inserirem-se nas discussões sobre a
ditadura, tendo as reflexões e debates iniciais despontado através do meio jornalístico, da
ciência política, e também por outras entidades. Ainda assim, seu impacto na historiografia
posterior seria considerável, uma vez que pavimentou o caminho para futuras análises no
campo da ciência histórica. Segundo Joffly, as primeiras obras

adotaram o ponto de vista construído nos anos 1970 pelos setores


de esquerda e teorizados por autores como Florestan Fernandes e
Fernando Henrique Cardoso, segundo o qual o golpe e a ditadura
teriam sido resultado, na esfera econômica, do esgotamento do
modelo de industrialização por substituição de importações e anseio
da elite empresarial e financeira em associar‐se ao capital externo e,
nas esferas política e social, pela crise do pacto populista –
produzida pela aspiração de setores populares a reformas que
permitissem maior inclusão social. A nova fase de desenvolvimento
do capitalismo exigiria uma associação mais aprofundada das elites
nacionais com o capital transnacional, que por sua vez requeria
transformações nos mecanismos de acumulação incompatíveis com
as crescentes aspirações de setores populares pelas reformas de
base. (JOFFILY, 2018, p. 208).

De acordo com esse ponto de vista, a defesa dos interesses das elites empresariais
do Brasil estaria na base da conspiração que culminou com o golpe contra o presidente João
Goulart. A incompatibilidade dos interesses desses grupos com os anseios populares pelas
reformas de base insere-se no contexto da Guerra Fria, marcado pelo temor provocado pela
25

ameaça comunista, utilizado para legitimar a sucessão de golpes ocorridos na América


Latina. O caráter do golpe e da ditadura também esteve no centro dos debates. Jofflily cita a
obra A conquista do Estado de Armand Dreifuss, em que o autor confronta a tese de que o
aspecto mais notável á tomada de poder pelos militares em 1964, o que seria suficiente para
classificar o golpe como militar. Assim,

O golpe é classificado como “civil‐militar”, uma vez que teria sido


arquitetado por setores dominantes do mundo civil, articulados com
figuras‐chave do setor militar, uns e outros integrantes do complexo
formado pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais(IPES) e
Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). Na obra de
Dreifuss, os militares aparecem como sócios menores em um
esforço plural, do qual participaram figuras públicas
estadunidenses, políticos de partidos tradicionais e governadores
dos Estados mais estratégicos. (JOFFLY, 2018, p. 209)

Há outra corrente que leva em conta as ações do Estado no âmbito da Doutrina de


Segurança Nacional (DSN), um instrumento que tinha como intento conferir legitimidade à
ditadura. O período, assim, seria dividido de acordo com as diferentes fases de
implementação da DSN, cujos pilares eram segurança e desenvolvimento e os interesses
nacionais acima de qualquer outra coisa. A abordagem do período ditatorial se daria
considerando a dinâmica de ação e reação do governo à oposição, a qual se organizava
tanto em espaços institucionais como fora deles.

Formas específicas de controle tiveram de ser criadas em resposta a


desafios apresentados pela sociedade civil, pois a oposição
desenvolveu‐se em grupos sociais no Judiciário, no Legislativo e
até mesmo em meio ao próprio ‘público interno’ militar (ALVES
apud JOFFILY 2018, p. 210).

Existe ainda outra corrente que afirma ter sido o golpe de 1964 fruto de
transformações de grande porte: “desenvolvimento econômico e mudanças sociais que
gerariam a necessidade de modificações profundas no edifício social brasileiro”
(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO apud. JOFILLY, 2018, p. 211). Desta corrente é
representativa a obra Brasil: nunca mais, montado por uma equipe multidisciplinar de
ativistas políticos, que leva em conta as vicissitudes do cenário político e social do período,
e também a “tradição de intervenção política por parte dos militares, seja em golpes, seja na
supressão de movimentos rebeldes.” (JOFFILY, 2018, p. 211). Para a autora, as linhas de
análise e interpretação coincidem em apontar o papel da elite civil na base de sustentação
política e também ideológica da ditadura. Contudo, ao longo do processo de abertura
26

política, marcado pelo movimento Diretas Já, e a promulgação da chamada Constituição


Cidadã de 1988, houve o alargamento das pautas em discussão.

Uma delas diz respeito à atuação dos grupos armados clandestinos que faziam
oposição ao regime, em sua maioria de esquerda, que tomou espaço em meio ao surgimento
do novo sindicalismo e de grupos como clube das mães de desaparecidos e movimentos de
favela.

Um esforço mais sistemático de reflexão sobre as esquerdas


iniciou‐se no final dos anos 1980, produzindo interpretações
ancoradas na experiência pessoal dos autores e embasadas em
pesquisa documental e entrevistas. Adotando uma linha de viés
marxista, porém com diferenças significativas em relação à análise
de Dreifuss, Jacob Gorender considera que no período que
antecedeu à intervenção, houve uma ameaça real à classe
dominante brasileira e ao imperialismo, fruto de uma mobilização
sem precedentes dos trabalhadores e movimentos sociais.
(JOFFILY, 2018, p. 213).

Há, porém, mais de uma linha de análise da ação armada das esquerdas no período:
“Outro marco interpretativo [...] foi produzido justamente em um intento de “desvendar o
significado e as raízes sociais da luta dos grupos de esquerda, especialmente os armados,
entre 1964 e 1974” (RIDENTI apud JOFFILY 2018, p. 15)”. No cerne das discussões
destas correntes estão questões como os objetivos almejados pela luta armada de esquerda e
a dinâmica do contexto de seu surgimento recrudescimento, marcado pela utilização por
parte do Estado ditatorial com vistas a legitimar as políticas baseadas no terror, colocando-
os como ameaça à segurança nacional. Além disso, a relação desses movimentos com a
sociedade civil também é objeto de discussões na historiografia desse período, ainda
bastante incipiente. Esse quadro viria a mudar com a consolidação do campo da História do
Tempo Presente, fundada na França na década de 1980.

Nos anos 1990, quando dos 30 anos após o golpe civil-militar de 1964 e em pleno
contexto do fim da Guerra Fria e da onda neoliberal que dominou o continente, os debates
em torno da ditadura ainda permaneciam relevantes, em virtude da conjuntura política. “A
derrocada do chamado socialismo real e a nova perspectiva política da esquerda criaram
uma espécie de fosso em relação às experiências dos grupos armados clandestinos, que
denunciavam os estreitos limites da democracia liberal e tinham a revolução em sua agenda
política.” (JOFFILY, 2018, p. 218). Com isso, os debates em torno da ditadura giravam em
torno das causas e da natureza do regime, incluindo aí, também, a ação dos movimentos de
27

esquerda armados que a ele faziam oposição. Havia, contudo, em algumas obras como “21
anos de regime militar” a preocupação com uma interpretação de viés mais analítico e
menos político.

Haviam discordâncias no campo de análise que diziam respeito ao peso da


participação dos militares no golpe frente ao apoio de setores da sociedade civil. Autores
como Soares d’Araújo e Dillon Soares defendem, por exemplo, o caráter militar do regime,
a despeito da base civil que o sustentou. Além disso, procurou-se levar em conta novos
elementos até então desconsiderados na compreensão das causas do golpe:

Soares pretende reconstituir não apenas a variável política –


segundo ele subestimada pela influência das explicações de teor
economicista –, como o protagonismo dos militares como atores
políticos. Defende que o golpe, independentemente do apoio de
setores da elite civil, foi militar, assim como o regime que se seguiu
(SOARES apud JOFFILY 2018, p. 220).

Outra fonte importante de discussão é a questão do golpe e do “golpismo”, referente


à instabilidade política do período anterior à queda de João Goulart. “Toledo explica que a
direita acreditava que seria Goulart, apoiado por setores nacionalistas, populares e da
esquerda. Já os setores progressistas temiam a reação conservadora, ao mesmo tempo em
que desconfiavam de Goulart.” (JOFFILY, 2018, p. 221). Havia ainda posicionamentos que
ressaltavam a radicalização de posições por parte da direita e da esquerda, dificultando a
viabilidade de uma “solução negociada”, visto que nenhum dos lados estava de fato
comprometido com a integridade institucional e democrática. Nesse âmbito, inaugura-se
uma tendência de crítica à opção, por parte de diversos grupos opositores, pela luta armada,
tópico que ganhará força também nos anos 2000, quando dos 40 anos do golpe de 1964.

Se, em 1998, Jacob Gorender em versão revisada e ampliada de O


combate nas trevas notava a mudança do tratamento dos membros
da esquerda armada de “terroristas” ou “bandidos” para o honroso
desígnio de “guerrilheiros”, Caio Navarro de Toledo, em 2004,
comentava que a grande imprensa brasileira – outrora apoiadora do
golpe e complacente com a ditadura –, trocara a expressão
empregada pelos militares e os setores golpistas de “Revolução”
(JOFFILY, 2018, p.223)

Nesta década, houve o aumento no interesse pelo tema da ditadura civil-militar, com
acadêmicos dividindo espaço com militares e ex-militares, muitos deles dispostos a
contestar a narrativa hegemônica que coloca presos políticos como protagonistas, e
criticando o que chamam de “revanchismo” que guiou a construção da memória do período.
28

Por outro lado, a abertura de arquivos, o advento de produções culturais voltadas à temática
e a eleição de um presidente ligado ao sindicalismo caracterizam esse contexto marcado
pelo fomento ao interesse pelo debate. “[...] um dos pontos‐chave do debate historiográfico
foi o tema da relação das esquerdas com a democracia, seja na conjuntura que levou ao
golpe de 1964, seja na atuação dos grupos da esquerda armada.” (JOFFILY, 2018, p. 224).
Teses como a da resistência democrática são confrontadas com as que defendem que as
intensões da esquerda eram antes de tudo revolucionárias e não democráticas.

Outro debate foi aberto pela obra de Elio Gaspari, lançada em quatro volumes,
referente à periodização:

A periodização sugerida por Gaspari abriria caminho para um


debate que firmar-se‐ia apenas na década seguinte, dividindo o
período entre uma “ditadura temporária” exercida por Castello
Branco entre 1964 e 1967, um sistema constitucional de 1967 a
1968, uma ditadura “escancarada” de 1968 a 1974 e a saída da
ditadura de 1974 a 1979. Assim, a ditadura, para Gaspari, deve
medir‐se essencialmente pelo uso da tortura por agentes do Estado.
(JOFFILY, 2018, p. 232)

Esse debate ganharia ainda mais força no contexto dos 50 anos do golpe civil-
militar, em 2014. A intensidade dos debates acerca do tema aumentou ainda mais,
especialmente diante das políticas de Estado voltadas à memória, como a criação da
Comissão Nacional da Verdade, voltada ao esclarecimento de crimes cometidos pelo
Estado durante os anos ditatoriais do período republicano. Além disso, o cinquentenário
coincidiu com o início da crise política e econômica que teve como um de seus
desdobramentos o Impeachment da presidente Dilma Rousseff, do Partido dos
Trabalhadores (PT). A conjuntura marcada pela polarização política em meio à sociedade
brasileira, na qual historiadores enxergaram muitas semelhanças com o cenário nacional de
1964, o fato de ter sido a ex-presidente uma guerrilheira presa e torturada pelo regime
autoritário e a impunidade dos envolvidos em crimes de tortura contribuíram também para
avivar ainda mais a relevância dos debates em torno da ditadura.

Nesse ensejo, grandes embates em torno da construção da memória hegemônica de


crítica ao regime autoritário instalado após o golpe foram protagonizados por entidades de
defesa dos Direitos Humanos e movimentos ligados a parentes de vítimas e desaparecidos,
assim como partidários do revisionismo caracterizado pelo saudosismo em relação aos anos
de chumbo, o qual ganhou força diante da revelação de grandes esquemas de corrupção em
29

várias esferas governamentais e da descrença em relação às instituições democráticas,


agravada pela ineficiência do Estado em atender aos anseios gerais da sociedade. Tal
saudosismo ganha espaço a partir da manifestação de grupos de extrema direita, os quais
perderam cada vez mais o receio de externar as suas ideias.

Reavivou‐se com grande intensidade a guerra das memórias. As


Forças Armadas, acompanhadas de antigos ministros do Estado e
do Supremo Tribunal Militar, pronunciaram‐se em manifesto contra
os trabalhos da CNV e recusaram‐se a pedir desculpas à nação pelas
violações aos direitos humanos cometidas no período em que
estiveram no poder (ARAÚJO, KAPA apud JOFFILY, 2018, p.
239)

No embate, entram em cena correntes que procuram diminuir o peso do caráter


autoritário do regime civil-militar, chamando-o de “ditabranda”. O cerne do debate
historiográfico é a problematização dessa linha interpretativa, de modo a levantar os
interesses por trás dos grupos que com ela corroboram, em especial os setores militares,
para os quais a chamada “revolução” de 1964 foi uma demanda necessária da sociedade
civil diante da ameaça do comunismo. Além disso, a violência foi um meio utilizado tanto
pelo Estado quanto pelos grupos de oposição armada, considerados uma ameaça à
segurança nacional, o que corrobora com as correntes de crítica à esquerda armada e suas
ações durante os anos de chumbo de combate ao regime.
Sobre isso, Napolitano (2017) acrescenta que o atual momento da historiografia da
memória da ditadura tem sido marcado por uma revisão e problematização de afirmações e
visões consagradas, havendo, assim, dois movimentos nesse sentido, porém de naturezas
diferentes. Um deles é a revisão historiográfica sobre o que se entende por “resistência” e
“oposição”. Para o autor, no processo histórico brasileiro, a categoria “resistência” acabou
por “incluir algumas atitudes formas de oposição, à medida que ia se cristalizando como
memória social.” (NAPOLITANO, 2017, p. 339), em meio à aliança entre liberais
democratas e as esquerdas contra o inimigo comum. O outro movimento de questionamento
acerca da natureza democrática ou não da resistência.
A memória da ditadura civil-militar é o resultado de um processo histórico em que
as diferentes visões e sentidos do passado foram condicionados pelo calor dos
acontecimentos ao longo dos anos, assim como pelo lugar social dos mais diversos sujeitos.
Ter em conta as condições em que se dão os processos de significação e ressignificação do
passado é realizar um exercício que muito nos diz sobre o tempo presente, visto que a
30

maneira como uma sociedade olha para o passado é reflexo dos questionamentos,
necessidades, dilemas também conflitos pertinentes ao seu tempo. Contudo, ao
enveredarmos pelos caminhos da ciência histórica, sabemos que ela está longe de consistir
em algo pétreo e acabado, sendo em vez disso o produto de um processo de construção
imbrincado a diversos fatores, os quais estão ligados às necessidades do presente de grupos
que a ele recorrem, fazendo-se tecendo uma relação com o passado marcada por certas
maneiras de conferir significado a eventos ao longo da história.
Dentre os recursos utilizados na imprensa da época, por exemplo, os visuais estão
entre os mais notáveis. Charges, cartuns e tirinhas carregam um determinado discurso,
comumente através do humor. A utilização dos recursos verbais e não-verbais, junção que
os caracterizam, carregam leituras e mensagens de teor político de uma maneira lúdica e
convidativa ao leitor do veículo de comunicação. Ao longo dos anos da ditadura civil-
militar, a grande imprensa tendeu a se comportar de uma maneira complexa, seja para
legitimar o governo instalado com a retirada de João Goulart da presidência, ou para
criticá-lo quando da escalada do autoritarismo. As histórias em quadrinhos nesse contexto
serão objeto de estudo do próximo tópico deste capítulo.

1.2. HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NAS DISPUTAS DE MEMÓRIA DA


DITADURA

O conceito de Histórias em Quadrinhos (HQs) costuma envolver uma gama de


gêneros que têm como características em comum a representação de temas através da
imagem em associação com o componente verbal. Embora a sua composição receba a
influência de diversos outros gêneros textuais, pode-se dizer que esse tipo de produção
constitui-se enquanto linguagem autônoma (RAMOS, 2009). O seu principal elemento
característico, além do enquadramento da imagem, o qual lhe dá o nome, é a presença dos
balões, componentes que, com suas inúmeras variações, têm como função representar a fala
dos personagens que integram a história.
Falar das HQs inclui também levar em conta a sua relação com o meio jornalístico.
Tradicionalmente, relata-se que essa ligação remonta à Europa e América do Norte, no
século XIX, quando deu-se seu mais provável surgimento enquanto gênero propriamente
dito, em que diversos autores passaram a utilizar imagens a textos, primeiramente através
de legendas e posteriormente por meio dos balões. No Brasil, é também desta época as suas
primeiras produções, assinadas por Angelo Agostini. No âmbito da sociedade capitalista,
31

marcada pela dinâmica da produção massificada, de bens e serviços, as empresas e


entidades do ramo da comunicação fazem da difusão da informação um meio de propagar
de ideias e opiniões, refletidos na maneira como se dá a construção de conteúdos destinados
ao público, do qual se espera sempre uma determinada reação que condiciona a
interpretação acerca do que está sendo dito.
No seio dessa dinâmica, as produções em quadrinhos aparecem como um recurso
diferenciado, através do qual grandes veículos da imprensa podem propagar o seu ponto de
vista, dada a variedade de aspectos que caracterizam a sua linguagem, como a
expressividade dos personagens conferidas pelo artista através da sua fisionomia, da forma
como expressam seus sentimentos, seja através das suas falas ou de gestos em diversas
situações. Essa variedade de recursos expressivos da qual o artista lança mão torna os
quadrinhos chamativos e convidativos ao leitor, na medida em que provoca nele efeitos
psicológicos (PIGOZZI, 2013). Pode-se também dizer que, diante disso:

[...] as histórias em quadrinhos possuem significativa importância


no âmbito da comunicação, por ser um facilitador da transmissão
informacional, ou seja, por auxiliar na transmissão dos fluxos de
mensagem, além de construir sentido e produzir informações de
forma singular, quando comparados a outros recursos
informacionais, por sua rede de mecanismos discursivos.
(PIGOZZI, 2013, p. 18)

Essas características da nona arte, assim, permitem que

[...] essas publicações possam ser estudadas por diversas


perspectivas, como, por exemplo, seus aspectos artísticos,
culturais, históricos, sociais, políticos, além de suas aplicações
pedagógicas ou no mundo da comunicação, como o jornalismo e a
publicidade. (PIGOZZI, 2013, p. 18)

No âmbito da História, as produções em quadrinhos devem ser vistas dentro do


contexto temporal e espacial em que estão inseridas, visto que seu conteúdo é influenciado
pelas vicissitudes da esfera política e social de um determinado período, as quais pesam
sobre as visões de diversos grupos sociais acerca do desenrolar de acontecimentos
contemporâneos. Durante o período que compreende a ditadura civil-militar brasileira, o
posicionamento da imprensa com relação ao regime instalado com o golpe de 1964 se deu
de maneira complexa (MOTTA, 2012). Fosse através do apoio ao golpe em prol da suposta
defesa da democracia, ou por meio da crítica à escalada do autoritarismo, a imprensa
procurava adaptar-se à cena política da época, bem como construí-la a partir de seus
32

posicionamentos que influenciavam de modo ou outro a opinião pública. Essa busca é


refletida nas produções gráficas.
Dentre as categorias que costumam ser abarcadas pela definição de histórias em
quadrinhos, a charge consiste em uma forma de representação visual bastante presente em
jornais, cujo conteúdo é, basicamente, de teor político e marcado pela crítica.

A charge é um texto de humor que aborda algum tema ou fato


ligado ao noticiário. De certa forma, ela recria o fato de uma foram
ficcional, estabelecendo com a notícia uma relação intertextual. Os
políticos brasileiros costumam ser grande fonte de inspiração (não
é por acaso que a charge costuma aparecer na parte de política ou
de opinião dos jornais.) (RAMOS, 2009, p. 21-22).

Rodrigo Pato Sá Motta, em seu trabalho Jango e o Golpe de 1964 na caricatura, discute a
maneira como se dá construção da imagem de João Goulart por parte da grande mídia
impressa da época. Em meio as circunstâncias políticas que marcaram o cenário pré-golpe,
as ações do então presidente eram vistas com desconfiança, em especial por setores mais
inclinados à direita da sociedade brasileira.

No campo conservador, a perspectiva dominante era que Goulart seria uma


figura perigosa. Por um lado, era malvisto dada sua condição de herdeiro
do legado varguista, com tudo o que esse título implicava, ou seja, a defesa
de posturas populistas, nacionalistas e simpáticas ao intervencionismo
estatal. Goulart surgiu no cenário nacional graças ao apadrinhamento de
Vargas, que o nomeou ministro do Trabalho em 1953, quando tinha 35
anos. Com a morte de seu patrono, João Goulart herdou o comando do PTB
e procurou atrair o apoio da grande massa de seguidores de Vargas e do
trabalhismo. Na perspectiva da direita, além do fato de ser o herdeiro
político do varguismo/trabalhismo, o que já seria bastante para torná-lo
persona non grata, Jango tinha outra característica particularmente
ameaçadora: os laços que nutria com grupos de esquerda, notadamente o
Partido Comunista. (MOTTA, 2006, p.45)

O teor satírico da charge é conferido pelo uso da caricatura no trabalho do


artista, o qual procura atingir o efeito cômico através do exagero dos traços marcantes
da fisionomia e da personalidade de quem ele quer retratar em seu trabalho. No caso de
Jango, Motta afirma que alguns artistas

[...] tentaram captar traços de caráter atribuídos a Goulart, como certo


retraimento e timidez, associados à amabilidade. Dizia-se que o presidente
dificilmente encarava os interlocutores nos olhos, preferindo fixar a
atenção em algum objeto ou olhar para o chão enquanto conversava, quase
sempre sorrindo. Muitas caricaturas apresentam-no exatamente assim:
olhos fechados, ou voltados para o chão, com um rosto sorridente. Essa
33

personalidade tímida, que alguns explicavam como fruto da modéstia,


combinava-se com malícia política e talento para negociação. Dessa
malícia atribuída a Goulart derivaram muitos dos ataques que recebeu,
parte deles retratando-o como homem sem escrúpulos na busca de seus
objetivos. Podemos notar aqui a presença de um paradoxo: ora Jango era
retratado como ingênuo e trapalhão, um político incapaz de conduzir o país
em meio a crise tão grave, fazendo papel de tolo e joguete nas mãos de
forças superiores, ora o criticavam por ser malicioso e ardiloso. (MOTTA,
2006, p. 44).

O exemplo da construção da imagem de Jango é um exemplo de como os veículos


de comunicação trabalharam para a legitimação do golpe que derrubou o presidente. Muitas
das produções de veículos de imprensa como a Folha de São Paulo, Estadão, O Estado de
São Paulo, Jornal do Brasil, O Globo, as quais datam de meses que antecederam ao
acontecimento, são voltadas a ironizar ações do governo, enfraquecido em virtude dos
ataques recebidos tanto à esquerda como à direita. Consumado o golpe, os diários
glorificaram o que para eles foi a garantia da defesa da democracia frente à ameaça do
comunismo, representada supostamente por Goulart. Contudo, a escalada do autoritarismo,
representada pelo decreto dos Atos Institucionais, começou a incomodar setores de
pensamento liberal, o que se refletiu no posicionamento da mídia. O emprego da violência e
antes vista como necessária para a manutenção da ordem, agora passa a ser alvo de críticas,
assim como a censura, que passou a influenciar na postura dos diários em virtude da
perseguição.

Figura 2 - Charges
representando João
Goulart

Fonte12

Figura 2 - Charge da Folha de São Paulo


(1965)

12
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2006.
34

Fonte13

A charge exposta na sequência, publicada pela Folha, tem caráter de denúncia


contra a prática de tortura por parte do estado brasileiro. A escalada do autoritarismo ao
longo dos sucessivos governos militares se originava da expectativa que a imprensa e os
setores liberais da sociedade brasileira de que a o novo regime enfrentaria toda e qualquer
ameaça a seus interesses, porém garantiria também os princípios liberais, como a liberdade
de imprensa. Segundo Motta, o próprio O Globo defendia que a sociedade civil seria
favorável ao poder de coerção do Estado apenas até certa medida. Em outras palavras, o
jornal mostrou-se, na verdade, disposto a adaptar-se ao regime autoritário. Durante o
milagre econômico, período de vertiginoso crescimento da economia brasileira, as críticas
ao governo por parte da imprensa tornaram-se mais brandas.
A postura crítica de jornais como a Folha de S. Paulo, assumida de forma gradativa
ao longo dos anos de chumbo, é emblemática do esforço dos setores de pensamento liberal
de desvincular-se do regime autoritário que ajudaram a implantar. Esse movimento tornou-
se ainda mais evidente em meio às contradições do modelo econômico do governo. Foi
durante a década de 1970 que as contradições originárias do caminho para o crescimento
econômico tornaram-se objeto de ironia por parte de chargistas como Ziraldo. O artista
realizou um notável trabalho de resistência à ditadura através das suas publicações, tendo
sido o seu material alvo da censura estatal.

Figura 3 - Charge de Ziraldo (Década de 1970)

13
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A ditadura nas representações verbais e visuais da grande imprensa: 1964-
1969. Topoi, Belo Horizonte, p.62-85, 26 mar. 2013.
35

Fonte: http://www.blogdofariasjunior.com

Na charge da figura 4, Ziraldo ironiza a euforia alimentada pelo êxito da economia


brasileira, utilizada como forma de legitimação pelo regime, o qual se apropriava, também,
da conquista pela seleção brasileira do tricampeonato na Copa do Mundo. O humor está na
frase dita pelo personagem da charge, o qual está ajoelhado e com as mãos juntas erguidas
em um gesto de agradecimento, em meio a um cenário que remete a uma região seca e
inóspita. O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e os feitos alcançados nas áreas de
infraestrutura não foram usufruídos por toda a sociedade brasileira. A riqueza produzida
não circulava de maneira igualitária, de modo que aos setores sociais mais desfavorecidos
foi reservado uma dura política de arrocho salarial, a qual sustentava em parte o
financiamento dos megaprojetos do governo federal, assim como a grande entrada de
capitais estrangeiros, em relação aos quais o país passou a ter grande dependência. Com a
crise do sistema capitalista da década de 1970, logo ficaria evidente que o gigante no qual
os militares defendiam ter transformado o Brasil tinha pés de barro.

A frase “Brasil, ame-o ou deixe-o”, tão difundida pelo governo, resumia o discurso
legitimador do autoritarismo, e foi objeto de outra charge de Ziraldo. O slogan, carregado
de um sentido nacionalista e, portanto, de modo a enaltecer os grandes feitos do governo, é
ressinificado pelo artista de modo a ressaltar o fato de que não se podia questionar as
contradições do momento de euforia e prosperidade vivido pelo Brasil, o qual não era
usufruído de fato por toda a sociedade, mas sim apenas pelas elites ligadas ao capital
estrangeiro. Externar questionamentos a partir desse fato poderia significar, inclusive, a
expulsão do país, faceta do autoritarismo ressaltada por Ziraldo em sua charge, publicada
na década de 1980 (figura 5), em que um personagem bem vestido que representa o
governo aparece em uma postura impositiva em relação a outro, que está caído ao chão, e
em seguida receber um chute, que representa a sua expulsão, caso não aceite as imposições
do Estado.

Figura 4 - Charge de Ziraldo (Década de 1980)


36

Além de seus trabalhos ligados a nona arte, Ziraldo foi um dos que em 1969 fundou
14
o jornal Pasquim, semanário que se tornou conhecido por sua forte oposição à ditadura.
O jornal chegou obviamente a sofrer com a censura da época, mas manteve as suas
atividades até 1991. Outros fundadores do Pasquim foram Jaguar, Cabral e Tarso de Castro.
Também houve grandes colaboradores entre cartunistas, escritores e jornalistas para o
semanário. Um desses notáveis nomes colaboradores foi, sem sombra de dúvidas, o
cartunista mineiro Henfil. Toda a sua obra foi produzida durante o período ditatorial,
mostrando-se como uma arma de luta pela redemocratização do país, a anistia aos presos
políticos e a volta das eleições diretas para presidente da república. Uma das bandeiras de
luta abraçadas por Henfil é representada na Figura 4, uma de suas produções mais
conhecidas. Aqui, várias pessoas são retratadas portando faixas de protesto pelo seu direito
ao voto, enquanto a sua frente um policial os ordena a voltarem, chamando-os de ilegais.

Figura 5 - Charge de Henfil

Fonte:
http://www.zonacurva.com.br

14
A obra do artista também inclui obras infantis carregadas de temas sociais e políticos, como é o caso da
Turma do Pererê, lançada na década de 1960, porém interrompida com o avanço da censura. A história do
personagem Pererê é cheia de referências ao folclore brasileiro e animais típicos da nossa fauna. Tudo aparece
com um humor leve e ingenuidade em assuntos como a inclusão social e valorização do meio ambiente.
Apesar de ter sido criada há cerca de cinquenta anos, a sua atualidade ainda é evidente.
37

Essa produção pertence ao gênero cartum, o qual apresenta muitas semelhanças


em relação à charge, em virtude de seu teor humorístico e comumente político. Para Ramos
(2009), a principal diferença está no fato do que o entendimento da charge pelo leitor
depende da sua compreensão da matéria à qual a mesma está vinculada, ao passo em que no
cartum o entendimento de sua mensagem não está ligado necessariamente à notícia. O
significado do cartum acima deve ser entendido no âmbito da efervescência do movimento
Diretas Já, que reivindicou a volta das eleições diretas para presidente. Aqui, nota-se a
crítica a um aspecto marcante no processo de redemocratização, o qual é a inegável
permanência de características da ditadura durante a década de 1980, como a tomada de
decisões sem a participação popular. Henfil possui uma produção vasta, que inclui
personagens como a Graúna, Fradinhos, e Capitão Zeferino, todos eles postos comumente
em situações de humor, em que sempre está implícita uma mensagem de cunho político e
social. Uma das características marcantes do trabalho de Henfil é seu traço simples, ágil e
sintético, distanciando-se da riqueza de detalhes frequentemente observadas na caricatura.
Seus personagens costumam ser construídos estereótipos, como é o caso dos Fradinhos.
Dois dos cinco personagens nasceram durante a ditadura: Baixinho e Cumprido, inspirados
em Henfil, segundo ele próprio. O primeiro é insolente, violento e pornográfico, e combatia
a hipocrisia do mundo. O segundo era um artista que pretendia se libertar da educação
católica. É medroso, religioso, careta, romântico e sonhador.
Figura 6 - Personagens do Fradim

Fonte: https://www.redebrasilatual.com.br/entretenimento/2013/11/lancamento-
traz-colecao-completa-de-fradim-do-henfil-3224.html

É possível dizer que a utilização da arte e do humor como ferramenta de crítica,


contestação e também de luta política e social foi e continua sendo uma constante no meio
38

editorial. Contudo, não é apenas nas charges e nos cartuns publicados em periódicos que o
tema da ditadura militar encontra-se presente. Para além desses gêneros bastante
conhecidos, em que a mensagem pretendida pelo autor é compreendida em um formato
sintético, há outros que costumam ser estruturados em narrativas mais detalhadas,
geralmente desenvolvidas para o formato de revistas, álbuns (cuja estrutura é semelhante ao
livro), e páginas dominicais (histórias construídas em uma narrativa mais complexa,
publicadas geralmente em jornais) (RAMOS, 2009).
Esse formato constitui um mercado que encontrou terreno fértil para seu
florescimento nos Estados Unidos nos fins do século XIX e início do século XX, com o
surgimento dos chamados comic books, os quais traziam histórias protagonizadas pelos
clássicos super-heróis. Esse produto rapidamente se tornaria popular em todo o mundo.
Com o passar do tempo, ocorreu uma diversificação em suas temáticas, surgindo títulos que
traziam em seus roteiros assuntos ligados à política, aos costumes e questões sociais,
contendo uma carga sociológica e filosófica considerável. Por outro lado, os usos políticos
dessa mídia ocorreram em diversos momentos ao longo da história, exemplo do qual se
pode citar as HQ do Capitão América, cuja figura foi utilizada em oposição ao nazi
fascismo durante a Segunda Guerra Mundial.
Durante as décadas de 1970 e 1980 esses temas estiveram particularmente
presentes em muitas produções em quadrinhos. A HQ inglesa V de Vingança, do roteirista
Alan Moore e do desenhista David Lloyd, foi lançada em 1982 em pleno governo de
Margareth Thatcher, cujo desrespeito às diferenças individuais está presente nas entrelinhas
desta narrativa que se passa em uma Inglaterra despótica, dominada por um regime
ditatorial. Temas similares também ocorreram em produções nacionais, inclusive
contemporâneas. A ditadura civil-militar é o pano de fundo para diversas narrativas
sequenciais desenhadas. Ao menos grande parte delas corrobora com uma visão crítica do
regime implantado em 1964.

Figura 7 - Capa da HQ "Subversivos"


39

Fonte: http://www.zonacurva.com.br

Uma delas é Subversivos, de André Diniz e José Aguiar. Dividida em três volumes
e publicada de 1999 a 2001, nas proximidades dos 40 anos do golpe de 1964, a história
ficcional é centrada em três integrantes de uma companhia de teatro, a qual enfrenta a
perseguição e a censura do governo. O enredo da história divide-se entre o enfrentamento,
pelos personagens, e a persistência dos laços de amizade entre os mesmos
Lançada em 2008, a história em quadrinhos 1968 – Ditadura abaixo, de Teresa
Urban e Guilherme Caldas também se insere nesse contexto, e é escrita a partir das
experiências da autora e também jornalista no movimento estudantil em Curitiba, durante a
perseguição do governo. A ideia inicial por trás da produção veio da necessidade da autora
de contar a história a seus netos, razão pela qual a HQ é escrita de forma a possibilitar a
compreensão para crianças.
Figura 8 - Página da HQ "1968 – Ditadura abaixo"
40

Fonte: http://brunortiz.blogspot.com

Por sua vez, Brasil – Ditadura Militar – Um livro para os que nasceram bem
depois…(Figura 9) é uma obra independente destinada ao público jovem, contando a
história de Clarice, uma menina que cresceu durante o regime militar no Brasil. A partir de
sua vida, são narrados alguns momentos marcantes desse período no nosso país,
especialmente aqueles relacionados à repressão e à perseguição política.
Por sua vez, Brasil – Ditadura Militar – Um livro para os que nasceram bem
depois…(Figura 10) é uma obra independente destinada ao público jovem, contando a
história de Clarice, uma menina que cresceu durante o regime militar no Brasil. A partir de
sua vida, são narrados alguns momentos marcantes desse período no nosso país,
especialmente aqueles relacionados à repressão e à perseguição política.

Figura 9 - Capa da HQ "Brasil - Ditadura


Militar"

Fonte: www.resistenciaemarquivo.wordpress.com

O livro é de autoria de Joana D’Arc Fernandes Ferraz – professora da UFF,


membro da diretoria do Grupo Tortura Nunca Mais – e Elaine de Almeida Bortone,
psicóloga e historiadora. Ambas são pesquisadoras da memória do regime militar brasileiro.
41

Os desenhos são de Diana Helene, ilustradora, cartunista e designer gráfica. Esta HQ foi
lançada em 2012, dois anos antes do cinquentenário do golpe contra o presidente João
Goulart. Esta etapa de construção da memória é marcada pela criação da Comissão
Nacional da Verdade, e também pela intensificação do embate entre aqueles que
corroboram com a visão crítica do regime instalado em abril de 1964 e os adeptos do
revisionismo. Estes argumentam que as ações no campo da memória por parte do Estado e
de movimentos ligados aos parentes das vítimas de desaparecidos políticos são pautadas em
puro revanchismo, defendendo que a violência também foi utilizada por ambas as partes, e
que o golpe (chamado por esses setores de revolução) atendeu aos anseios da sociedade
brasileira em meio à ameaça da ordem e da segurança nacional.
Há também outra dimensão dessa disputa, se considerarmos o peso liberal que teve
o seu processo de tessitura. Ao mesmo tempo em que se esforçaram para defender os
valores democráticos e posicionando-se contra o aumento gradativo da repressão, as elites
política e empresarial tentaram, ao mesmo tempo, silenciar a narrativa de certos setores ou
indivíduos ligados a movimentos de esquerda e resistência popular. Muitos desses sujeitos
subalternos não costumam aparecer nas narrativas oficiais do período ditatorial. Alguns
desses grupos, como os indígenas, foram vítimas do projeto de desenvolvimento levado a
cabo pelos governos militares, o qual teve apoio da elite empresarial, especialmente em
meio ao Milagre Econômico. Seu modo de vida foi ameaçado por uma marcha para o
progresso que provocou a retirada forçada de suas terras e a violenta repressão a qualquer
tipo de resistência. O exemplo dos povos indígenas é ilustrativo de algo que é característico
do processo de construção da memória: a escolha daquilo que se quer lembrar ou ocultar.
Fez parte do trabalho dos membros da CNV trazer a tona um passado ainda
silenciado, em meio à efervescência do debate entre diferentes enquadramentos de
memória, ou seja, as diversas formas de interpretar, combinar e modificar o passado em
função dos combates do presente e do futuro. (POLLAK, 1989). As produções no campo da
nona arte, como se viu anteriormente, também podem ser interpretadas enquanto formas de
enquadramento do passado. Particularmente, há uma entre elas que é construída em torno
de passados subalternos, referentes a indivíduos cujas experiências não lograram estar na
memória hegemônica, constituída em sua boa parte pelos setores liberais da sociedade.
“Notas de um tempo silenciado”, lançada em 2012 será objeto de estudo no próximo
capítulo.
42

CAPÍTULO 2: MEMÓRIAS SUBALTERNAS DA DITADURA DE 1964 NA


HISTÓRIA EM QUADRINHOS “NOTAS DE UM TEMPO SILENCIADO”

Este capítulo consiste na análise da HQ escolhida como fonte principal de análise,


“Notas de um tempo silenciado”. Em um primeiro momento, uma visão geral da obra é
apresentada, balizada em uma pequena discussão teórica. Em seguida, uma análise crítica
dos treze capítulos da HQ, com o objetivo de perceber como a história da ditadura é
contada, levando em conta elementos constitutivos da linguagem dos quadrinhos, ou seja,
elementos verbais e não verbais. A análise das narrativas, as quais giram em torno de
temáticas diversas, permite perceber como as memórias da ditadura são ressignificadas
nesta produção.

2.1. NOTAS GERAIS DA HQ: VIDA, OBRA E MISSÃO EM TEMPO DE


CINQUENTENÁRIO DO GOLPE (2014)

Em seu livro “Coração Civil”, lançado em 2018, Marcos Napolitano apresenta um


panorama da vida cultural brasileira durante o regime militar. Um de seus capítulos é
dedicado à história e a memória da resistência cultural à ditadura. Em uma passagem sobre
o que significou o processo de redemocratização, ele cita uma colocação de Desnise
Rollemberg: “O esquecimento era essencial no processo de ‘abertura’. Mas não somente
para os militares. A sociedade queria esquecer. A negação da história, do conhecimento do
passado no presente”. A opinião da historiadora sobre a necessidade de esquecimento sobre
o passado durante a durante o processo de redemocratização é emblemática de como o
desenrolar dos acontecimentos do presente se relaciona com a maneira com a qual nós
decidimos encarar o passado.
Grupos sociais que, de alguma maneira, foram alvos da perseguição e repressão do
regime autoritário, durante muito tempo, optaram pelo silenciamento, Contudo, isso jamais
implicaria o esquecimento. Pollak (2018) esclarece que, ainda que silenciadas, certas
memórias persistem, em uma posição subalterna, eclodindo em certos momentos, em
especial os comemorativos. Nessas ocasiões, o que se tem são praticamente “guerrilhas
comemorativas”, que irrompem com a contestação e com a reivindicação do direito de fala,
por vezes negado pelos defensores e perpetradores de uma determinada visão do passado, a
qual se constrói como dominante. Sobre o forjamento de sentidos sobre o passado, Vagner
Ramos (2016) afirma que programas comemorativos oficiais buscam a formação de um
consenso em termos do que é ou não digno de ser lembrado, cuja falsidade se mostra
através dessa batalha, que nos faz refletir sobre acontecimentos que não são comemorados.
43

Sobre isso, Joel Gandau (citado pelo mesmo autor) afirma que podemos saber sobre uma
sociedade menos a partir do que ela comemora do que aquilo que ela não comemora.
Conflitos, dilemas e questões do presente costumam reavivar debates sobre a
memória de uma sociedade, levando-se a esmiuçar o que está por trás dos ditos e trazer
também à tona os não-ditos. É sobre essa premissa que se assenta a história em quadrinhos
“Notas de um tempo silenciado”, de Robson Vilalba. Para analisarmos os quadrinhos,
devemos nos guiar pelas seguintes perguntas: Quem é o autor? Quando e onde foi
produzida? Por quem fala? A quem se destina? Qual é a sua finalidade? Lançada em 2015,
em pleno cinquentenário do golpe de 1964, a HQ conta a história de sobrevivência de
diversos personagens durante os anos ditatoriais no Brasil. Estruturado em treze capítulos, o
livro é uma HQ jornalística, que traz narrativas que permaneceram (e ainda permanecem)
esquecidas ou silenciadas, e protagonizadas por sujeitos que não costumam aparecer na
memória oficial do período. Ressalta-se que a obra não consiste em um simples resumo
ilustrado do que ocorreu durante a ditadura, mas sim uma vez que é fruto de um trabalho de
pesquisa jornalística que incluiu a coleta de dados e depoimentos, com objetivo de trazer
novas informações, segundo o
próprio autor. Figura 10 - Capa da HQ "Notas de um tempo
silenciado"

Fonte: http://www.universohq.com
44

Robson Vilalba, nascido em Curitiba no dia 10 de maio de 1983, é mestre em


sociologia pela Universidade Federal do Paraná e ilustrador. Muito embora Notas... não
tenha relação direta com o seu trabalho de estudo à época da produção da HQ, ganhadora
do prêmio Vladmir Herzog de Jornalismo, a escolha do tema teve o peso de sua formação
acadêmica15, assim como é guiada por uma pergunta: Qual a importância de continuarmos a
falar sobre a ditadura? A pertinência da indagação se deve ao atual momento da história
política brasileira, em que uma crise de representatividade acabou por dar espaço à
radicalização e à polarização em meio a uma sociedade acometida pelas consequências do
esgotamento do sistema político e a sua forma de funcionamento.
O caminho escolhido por Vilalba para tentar responder a essa pergunta destoa do
que costuma fazer a historiografia tradicional do período, na qual líderes e figuras
consideradas importantes ganham destaque. Em vez disso, o ilustrador paranaense preferiu
dar voz a sujeitos e grupos marginalizados ou silenciados, e para tanto dividiu a obra em
diferentes e breves enredos, compondo um mosaico de vozes. Por outro lado, essas mesmas
histórias revelam aspectos e sutilezas da época do regime autoritário, e assim apresentando
um panorama complexo e as ações desses indivíduos e segmentos da sociedade em meio a
ele, em oposição a uma visão binária que pauta narrativas que trazem a voz de heróis e
vilões. Para o autor, trata-se de pessoas vivendo em um tempo difícil.
Optando por contar a história do período dessa forma, o sociólogo e desenhista
curitibano dá vazão ao que Pollak (1989) denomina memória subterrânea, conceito esse que
pressupõe a existência de uma memória dominante. Nessa relação de forças que se desenha
ao ritmo e ao sabor dos processos históricos, dinâmicas de escolhas sobre o que lembrar,
silenciar ou esquecer são observados. Na capa da HQ, o autor afirma que “nem toda a
história foi contada. Muitas permanecem silenciadas ou esquecidas.” Entender as razões
por trás do silenciamento ou do esquecimento passa pela compreensão das condições
históricas que influenciam a construção de narrativas sobre o passado.
Ao refletir sobre esse ponto, Pollak aponta que “o longo silêncio sobre o passado,
longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe
ao excesso de discursos oficiais” (POLLAK, 1989, p. 6). Essa compreensão se encaixa
consideravelmente no caso do processo de reabertura política e o seu caráter de transição

15
Robson Vilalba é mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Como ilustrador, teve
trabalhos selecionados para a III Bienal do Humor de Luís d’Oliveira Guimarães em Portugal, 2012 e para o
22° Salão Internacional de Desenho para a Imprensa, em Porto Alegre (RS), 2014. Venceu o prêmio Vladmir
Herzog 2014, um dos principais prêmios do jornalismo brasileiro. Trata-se de um prêmio de Anistia e Direitos
Humanos, dado a personalidades e profissionais e veículos de comunicação que se destacam pela defesa de
valores fundamentais.
45

negociada e não de ruptura, como o caso de outras ditaduras na América Latina. O fato de o
processo ter sido conduzido em grande medida por nomes políticos ligados ao regime
militar deu espaço para uma visão do passado marcada pela necessidade de se deixar para
trás toda a obscuridade do período autoritário, alegando-se um risco ao clima de liberdade
democrática que se construía aos poucos. Isso teve início com o advento da Lei da Anistia,
a qual concedeu perdão a membros do Estado que cometeram crimes durante a ditadura.
Vilalba é movido por essa necessidade de lembrar o que se quer esquecer.
Combinando a pesquisa jornalística como elementos da história oral, Notas... não é
fruto de um trabalho historiográfico, em que a crítica documental é essencial, mas sim uma
articulação entre a linguagem dos quadrinhos e as informações obtidas pelo autor mediante
pesquisa e realização de entrevistas. Diversos temas e questões estão no cerne dos treze
enredos, porém todos, de alguma maneira, relacionam-se com a sobrevivência ao regime de
exceção. Entre os personagens, postos em um cenário hostil como sujeitos ativos estão
negros e índios, silenciados, deixados à margem pela historiografia tradicional. É o silêncio
deles que dá título à HQ, em alusão ao fato de que muito sobre o que ocorreu à época ainda
permanece obscuro.
É a necessidade de manter vivo o debate que Robson Vilalba afirma ter movido a
produção e divulgação de seu trabalho, trazendo-o como um alerta em meio à escalada de
ideias autoritárias no atual cenário político e social. Como artista, Vilalba tem consciência
do alcance dos quadrinhos jornalísticos, os quais atingem um público amplo. Boa parte dele
é jovem, mas a HQ também chamou a atenção de professores de jornalismo, acadêmicos e
pessoas que não costumam discutir temas dessa natureza ou não tenham contato com a
literatura de não ficção, livros jornalísticos o qualquer outro tipo de pensamento social.
Entendendo o alcance e a importância de seu trabalho, o artista gráfico o vê como uma
maneira de mostrar a importância de se falar sobre um passado sobre o qual ainda pouco se
fala.
A visão do autor chama a atenção para o fato de que os olhares sobre o passado
estão em constante mudança, e que frequentemente novas nuances são acrescentadas. Em
entrevista ao blog Itiban sobre o seu livro realizada em 2015, Robson Vilalba ressaltou a
importância de se revisitar constantemente o passado. Afirmou ser inegável que só após
pouco mais de trinta anos desde a redemocratização, mais informações sobre o que ocorreu
durante a ditadura, as quais são trazidas em seu livro, o qual e embora não contenha todas
as peças que faltam nesse sombrio quebra-cabeça, é exemplo de como nem toda a história
foi contada, estando em constante reescrita.
46

Alguns aspectos interessantes acerca da estrutura e dos recursos estilísticos usados


por Vilalba merecem destaque. Um deles é a ausência do discurso direto, ou seja, as
narrativas contam com poucos balões que indicam a fala dos personagens, ainda que, em
alguns momentos da obra, isso se observe. Em vez disso, a figura do narrador aparece de
forma mais expressiva, uma escolha feita pelo autor com o provável intuito de dar ênfase ao
fato de que se tratam de histórias que, durante muito tempo, estiveram em silêncio, ou
relegadas ao esquecimento, e que, agora, vêm à luz através de sua voz. De fato, alguns
desses sujeitos sequer sobreviveram à repressão do período, o que fez com que a construção
do roteiro se desse através de outras evidências presentes nas fontes pesquisadas pelo autor.

2.2. NOTAS CAPÍTULO A CAPÍTULO

2.2.1. NO PRINCÍPIO, AS TREVAS

Figura 12 - Trecho do capítulo 1

Fonte: “Notas de um tempo silenciado”, ´página 9.

O clima de tensão é o foco desse primeiro enredo de Notas de um tempo


silenciado. O texto do primeiro quadro da narrativa é a passagem de um editorial da
47

Gazeta, de 1 de Abril de 1964. Nesse trecho, o autor mostra temor em relação aos futuros
desdobramentos da tomada de poder pelos militares. A sensação, segundo o editorial, é de
erro por parte da imprensa em apoiar o golpe contra o então presidente João Goulart. Em
seguida, entra em cena o narrador, ainda no mesmo quadro, uma vista panorâmica do que
depois sabemos ser a cidade de Curitiba. Aqui, ele afirma ser a história mais confortável de
ler na tela luminosa de um suporte eletrônico. Algo diferente acontece quando é lida de
dentro, “do olho do furacão”, pois se mostra mais tortuosa.
A introdução dessa primeira história merece algumas observações. No que diz
respeito à tortuosidade que a história apresenta, ela se mostrará ao longo de toda a obra, e
pode-se dizer, com isso, que esteve presente no trabalho de pesquisa de Robson Vilalba.
Logo nas primeiras páginas da HQ, o clima de tensão é evidenciado de forma a mostrá-la
como algo presente no cotidiano e de insegurança às vésperas dos acontecimentos de 1964.
O leitor é apresentado a um personagem chamado João Lessa, que anda pelas ruas da
cidade portando uma grande quantia em dinheiro. Ele caminha em direção a dois homens
com os quais pretende fazer uma transação, e logo em seguida, porém, sabemos que o que
João Lessa carrega são papéis sem valor.
Através dessa situação, Vilalba ilustra o panorama de incerteza que caracterizou o
início da década de 1960 no Brasil, e que esteve tão presente no cotidiano, como é
evidenciado ao longo do enredo. Na página seguinte (p. 10), a cena de diversos cartazes de
filmes à frente de um cinema curitibano parece ser uma maneira poética de mostrar como a
tensão política e social pairava sobre o país. O narrador chama a atenção para os títulos dos
filmes nos cartazes. Na mesma página, o narrador faz uma contraposição entre o binarismo
do mundo em plena Guerra Fria e a pluralidade de pensamentos e orientações políticas
presentes no país: comunistas, integralistas, nacionalistas, legalistas, liberais,
conservadores. Seis vieses que são representados por seis rostos diferentes, cada um em um
quadro, possivelmente para ilustrar a pluralidade de visões e projetos de país.
Vê-se aqui a intensão de Vilalba de contrapor o binarismo esquerda x direita
evidenciando as diferentes matizes políticas, muito embora a tensão entre os dois grandes
espectros existisse de fato, estando refletida no medo sobre quem daria o golpe primeiro.
Na página 11 a preocupação com a situação política é mostrada através das ocorrências que
saem nos programas de rádio. Nos quadros, balões contendo diálogos das radionovelas
alternam com outros contendo notícias sobre políticas ou ocorrências. O recurso gráfico da
diferenciação da cor dos balões é utilizado visando o efeito de contraste entre a
48

tranquilidade representada pelo entretenimento das telenovelas, cortado pelo medo da


instabilidade trazido pelos noticiários.

Na última página do capítulo, tem-se o que pode ser visto como o que lhe dá título.
Um quadro em cor escura, no interior do qual diferentes quadros pequenos estão contidos,
nos quais militares e o prefeito de Curitiba são mostrados a enaltecer o movimento que visa
“recolocar o país em clima de ordem e progresso”. O presidente da Câmara dos Deputados
Ranieri Mazzili, que assumia a presidência da República na ausência de Jango, é mostrado
apenas em sua silhueta negra em um quadro branco. Ao seu lado, um balão de fala do
narrador afirma que Mazzili nem imaginava que, após ele, levaria muito tempo até que um
civil assumisse a cadeira do presidente. A escuridão do quadro corrobora com a áurea
sombria ilustrada ao longo do capítulo.

2.2.2. AS VOZES DA RUA

O segundo enredo de Notas... assim como o anterior, foca no panorama geral do


período pré-golpe, porém, agora traz as agitações e movimentos que tomaram as ruas. Nas
primeiras páginas estão personagens que participaram, no início da década de 1960, de
movimentos que se diziam contra os desajustes nacionais. Um deles é a “Marcha da
Família com Deus pela Liberdade”, organizado pela classe média, como reação ao discurso
de João Goulart na Central do Brasil. Os dois eventos são retratados no capítulo, também
sob a ótica de indivíduos que não costumam ter destaque na história política, como a jovem
atriz Vera Gertel, que fazia parte do centro popular de cultura ligado União Nacional dos
Estudantes (UNE).
Vera deixa o discurso e vai de encontro ao seu marido Carlos Lyra, descrita como
estando efervescente diante das palavras inflamadas de Jango. Lyra a aconselha a tomar
cuidado, alertando que aquilo poderia ser perigoso para ela. A fala do personagem é reflexo
da tensão política crescente da época, agravada ainda mais após a Marcha da Família. Por
outro lado, Jango aparece em uma das páginas sendo aconselhado sobre as consequências
de seu discurso, por Tancredo Neves e Doutel de Andrade. O presidente, contudo, preferiu
ouvir o General Assis Brasil, o qual garantiu existir meios para evitar um possível golpe.
A formação da Marcha da Família é abordada no início do capítulo. Os quadros
mostram a reunião de membros da elite. Membros da União Democrática Nacional (UDN)
e da União Cívica Feminina estiveram envolvidos na elaboração do evento. No capítulo,
alguns quadros são dedicados a retratar a manifestação. Faixas que pediam um governo
49

cristão e contra símbolos como a foice e o martelo ilustram o medo da ameaça comunista,
representada por uma possível guinada de João Goulart à esquerda após o seu discurso
carregado de teor nacionalista e defesa das Reformas de Base.
O enredo divide-se entre a articulação do movimento organizado pela classe média
e o evento ocorrido na Central. A narrativa traz o temor de Jango diante da iminência de um
golpe contra ele, ao passo em que a Marcha é mostrada como uma reação ao discurso de
Jango, visto como um forte sinal de uma guinada em direção ao comunismo.
Trabalhadores, estudantes e artistas no comício de Jango, mães de família de classe média
na Marcha. A polarização das vésperas de 1964 é retratada pelo autor, e ambos os eventos
aparecem como seus catalizadores. O título do capítulo é uma referência a essas vozes tão
destoantes no embalo das tensões de um mundo dividido entre o comunismo e o
capitalismo liberal.
Figura 13 - Trecho do capítulo 2

Fonte: http://blog.geekeriashop.com.br/2016/04/25/notas-de-um-tempo-silenciado/

2.2.3. FOGO CONTRA FOGO


O fato de os militares haverem estado na dianteira do golpe contra o presidente João
Goulart acaba por obscurecer casos em que certos indivíduos pertencentes a essa instituição
tenham também sido alvos da perseguição. Foi o caso de Walmor Weiss, militar, fundador
da Associação de Sargentos do Exército e colaborador do jornal Última Hora. O enredo
apresenta a sua atuação no começo da década de 1960 à frente de um movimento de
reivindicações dos sargentos por melhorias. O narrador ressalta o fato de serem os
integrantes do movimento mais nacionalistas do que comunistas, o que atesta para a
perseguição a ideologias de esquerda durante o período de crescente radicalização política.
O movimento, que ganhou força no governo Jango, culminou na Revolta dos
Sargentos de 1963, que resultou na prisão de vários sargentos por todo o país. Walmor, por
sua vez, foi alvo ao divulgar, no jornal em que colaborava, fotografias que mostravam o
50

descaso com os sargentos hospitalizados após a Revolta. Foi preso na redação do “Última
Hora” após a invasão de militares às dependências do jornal e solto quinze dias depois. À
época Ernesto Geisel era o comandante do quartel general onde ficou preso Weiss. Quando
da ocasião do golpe de 1964, Walmor foi preso mais uma vez e submetido a várias horas de
interrogatório. Os militares esperavam que ele acusasse alguém, em especial os seus
colegas do “Última Hora”. Muito embora a tortura não seja mencionada de forma direta na
história, ela é sugerida através da imagem. Na página 22, três quadros mostram o rosto de
Walmor molhado, abaixado e com uma expressão de cansaço.

As cenas também não são descritas em detalhes, preferindo o autor trazer, logo em
seguida, o que se sucede com o personagem durante a sua prisão. De acordo com o
narrador, o encarceramento deixou o personagem em luta constante contra o desespero.
Para isso ele montou uma biblioteca com livros de autores que iriam influenciá-lo por toda
a vida. Lia em voz alta por horas para diminuir a solidão. Via presos morrerem ou serem
esquecidos nas celas. Não é dito no enredo como ele logrou obter os livros para montar a
biblioteca. A história foi construída a partir da entrevista com o próprio Walmor Weiss, e
também seu biógrafo Milton Ivan Heller, além de Francisco Camargo, que trabalho no
“Última Hora”.

Figura 11 - Trecho do capítulo 3


51

Fonte: “Notas de um tempo silenciado”, página 22

Trazer a história de Weiss para o corpo do trabalho faz parte da intensão de


Vilalba de dar espaço a memórias que ainda permanecem em silêncio. O enredo vai contra
uma narrativa hegemônica que põe os setores militares sempre em posição de algoz e
perseguidor. A afronta à hierarquia militar através da luta por melhorias e a repressão ao
movimento é um exemplo de como a caça ao comunismo também fez seus alvos dentro da
instituição, o que é ressaltado em uma passagem do narrador que enfatiza que Weiss e seus
companheiros eram mais nacionalistas do que comunistas, e que ainda assim sofreram a
represália. A repressão que viria a ser a marca dos próximos anos teria como alvo do fogo
militar qualquer um que fosse considerado suspeito suficientemente, ainda que suas ações
não fossem balizadas pelo pensamento comunista.
52

2.2.4. O DUPLO

A história de um militar participante da “Revolta dos Sargentos” é o foco deste


capítulo. Logo no início, somos apresentados ao personagem e a sua participação, em 12 de
março de 1965, em uma ação que consistia em explodir a Ponte da Amizade no momento
de sua inauguração, quando os militares estivessem passando por ela. Alberi Vieira era o
seu nome, e havia conseguido homens, armas e financiamento para executar o plano, o qual
acabou sendo descoberto. O grupo liderado por Vieira, então, decide antecipar a ação e
emboscar um caminhão que trazia uma tropa, a qual acabou saindo vitoriosa no confronto.
Por sua vez, Alberi, vendo o seu plano fracassar acaba por entregar muitos dos participantes
da ação.
O enredo então salta para o ano de 1974. Após sua fuga para o Chile, e em seguida
para a Argentina, Vieira encontra por acaso Aluísio Palmar, um dos fundadores do
Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e Vanguarda Popular Revolucionária
(VPR). Os dois se encontram em um café de Buenos Aires e Vieira convida Palmar para
somar esforços em uma suposta ação para entrar no Brasil. Palmar dá mostras de sentir
vontade de participar e confirma o seu desejo a Vieira, porém acaba fugindo do local após o
combinado. De acordo com a história, Aluísio parecia pressentir que algo estava errado no
plano de Vieira, que segue o seu plano sem ele, levando seis guerrilheiros e mais uma
pessoa em um veículo em direção ao Brasil. Ao atravessarem a estrada do rio Iguaçu e
chegarem ao parque, o grupo foi metralhado, sobrevivendo apenas Alberi.
Em seguida, sabemos que o assassinato dos guerrilheiros fazia parte do plano de
Alberi, que era o de se infiltrar entre os guerrilheiros e entrar no Brasil. Ele refugiou-se
então em Rondópolis, Mato Grosso, de onde voltou para o Paraná, onde nasceu, ao saber
que seu irmão havia sido preso, torturado e morto. Tinha em mãos informações sobre os
assassinos, as detenções e informações sobre a operação “50 passos”. Alberi pediu abrigo
na casa de seu amigo Severino Miola. Foi encontrado morto no dia seguinte. Seu amigo
logo teria o mesmo destino, sendo a única pessoa capaz de esclarecer o caso.

É interessante perceber que a narrativa da HQ apresenta o Alberi Silveira como um


personagem complexo, cujas motivações e ações aparentam, por vezes, duplas e dúbias.
Sua história é perpassada por traição e sentimento de vingança, todavia, isso é retratado de
uma maneira a fugir do binarismo presente nas narrativas hegemônicas do período, as quais
contrapõe um heroísmo atribuído aos movimentos armados a uma vilania do Estado. É
perceptível que os planos do personagem se deram ao sabor das diversas circunstâncias em
53

que a sua vida esteve em jogo, e visavam a sua sobrevivência em meio à perseguição da
ditadura. Por outro lado, o seu desfecho termina no silêncio da falta de esclarecimento
sobre a sua morte, uma de muitas lacunas que ainda permanecem sobre a história do
período.

Figura 12 - Trecho do capítulo 4

Fonte: “Notas de um tempo silenciado”, página 27.

2.2.5. O MAIS LONGO DOS ANOS

O ano a que faz referência ao título é 1968. Nos primeiros quadros, o autor traz
movimentos de caráter contestatório ao redor do mundo, como a Primavera de Praga na
República Tcheca, o Maio de 68 na França, a Contracultura nos EUA e, aqui no Brasil, o
assassinato do estudante Edson Luiz de Lima Souto no Rio de Janeiro, no Rio de Janeiro.
Esse primeiro momento do capítulo é, no entanto, apenas uma contextualização de um
outro acontecimento que tomará o restante de suas páginas. Trata-se do movimento
estudantil contra a proposta de Universidade paga, ocorrido em Curitiba, em pleno calor
dos movimentos de contestação à repressão que ocorreram, inflamados pela insatisfação
dos estudantes em relação aos acordos firmados entre o Ministério da Educação (MEC) e a
Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID).
54

Figura 13 - Trecho do capítulo 5

Fonte: “Notas de um tempo silenciado”, página 31

A proposta de cobrança da mensalidade da universidade havia se tornado tema de


discussão entre os secundaristas e a União Paranaense dos Estudantes (UPE). O início do
movimento contrário à proposta iniciou-se com a tomada do centro politécnico da
universidade no dia da realização do vestibular, o qual precisou ser remarcado. Nesse dia,
55

os estudantes foram surpreendidos pelo batalhão destacado para retira-los a força do


campus, ação que resultou em várias prisões, contra as quais, não muito depois, foram
contestadas por um movimento ocorrido em frente ao batalhão da polícia. Em seguida,
houve uma tentativa de acordo entre os estudantes e reitoria, contudo, nenhum acordo foi
firmado. Os estudantes decidiram, então, ocupar a reitoria, ocasião na qual a quebra do
busto do reitor pelos estudantes é apresentado como um ato simbólico.
A reação do reitor, por sua vez, foi enérgica. Flávio Suplicy publicou no jornal uma
carta da reitoria rotulando os estudantes de vândalos. Os estudantes procuraram o líder do
governo na câmara para pressionar o reitor a retirar as ofensas do jornal. Em seguida, uma
reunião é realizada pela reitoria com vistas a dar fim ao projeto de universidade paga. A
pressão dos estudantes, assim, acabou por atingir seu objetivo. Contudo, o capítulo se
encerra com o narrador afirmando que a força do movimento estudantil daria combustível
ao Ato Institucional n° 5, conhecido dispositivo legal que jogou o país na época mais dura
do regime civil-militar.

É interessante perceber como o capítulo leva a pensar sobre uma narrativa que
condiciona a escalada do autoritarismo da ditadura à intensificação de movimentos como o
estudantil nas ruas do país. A suspeita de que os ideais comunistas estivessem por detrás
desses movimentos, ou simplesmente o temor de que eles viessem a estimular a ação de
grupos dissidentes de esquerda, era usada como justificativa para as ações repressivas do
governo, amparado na Doutrina de Segurança Nacional. A chamada teoria dos dois
demônios, que se sustenta pelo uso da violência dos dois lados, se mostraria forte
especialmente nos “Anos de Chumbo”, e seria utilizada também posteriormente em prol de
um discurso que legitimador do regime ditatorial.

2.2.6. A GUERRILHEIRA

O sucesso da Revolução Cubana havia servido de inspiração e encorajamento para


diversos grupos que acabaram optando pela luta armada como forma de resistência à
ditadura. A estudante paulista Sônia Lafoz é a personagem principal desse capítulo, que
traz o seu envolvimento com a guerrilha através do ciclo de amizades por ela construído e
sua participação nas ações do grupo armado, do qual seu namorado e amigos também
faziam parte. A história inicia-se em 1967, um ano antes da entrada em vigor do AI 5 e,
com ele, a escalada da repressão.
56

Sônia é apresentada como uma jovem estudante sonhadora que se deixa influenciar
pelas ideias revolucionárias de esquerda. Foi durante o acampamento dos chamados
estudantes “excedentes” (candidatos ao vestibular que haviam conseguido atingir a nota
mínima, mas não conseguiram vagas na instituição) no campus da Universidade de São
Paulo (USP) que ela teve o seu contato com as ideias de Trotsky e estudos sobre o exemplo
de Fidel Castro. O acampamento era uma forma de os estudantes garantirem o seu ingresso
na universidade. E, com o seu fim, Sônia foi convidada para integrar a guerrilha urbana, a
qual realizava assaltos a bancos, roubos de carro e sequestros.

As duas ações narradas no capítulo são a invasão da casa do ex-governador de São


Paulo Ademar de Barros, à época já falecido. Os integrantes do grupo armado pretendiam
roubar o cofre que supostamente estava guardado na residência. Em seguida veio o
sequestro de um embaixador alemão, ação após a qual Sofia abandonou a guerrilha, decisão
que tomou ao descobrir que estava grávida, ver o aumento da repressão e violência por
parte do governo através do número crescente de presos e desaparecidos. Sofia exilou-se no
Chile até o momento em que logrou sucesso o golpe militar liderado por Augusto Pinochet,
tendo viajado em seguida para a França. Somente anos depois veio a regressar, finalmente,
ao Brasil.
Durante a história, a personagem Sofia é apresentada como uma jovem de ideais tão
fortes e inabaláveis a ponto de até mesmo utilizar a sua beleza em prol da causa guerrilheira
e revolucionária, em vez de investi-la em algo que a proporcionasse uma vida de riquezas.
Além disso, assim como no capítulo anterior, não se percebe nada que possa sugerir um
julgamento de valor sobre as escolhas e ações da personagem, mas apenas aquilo que os
levou até elas. As facetas de heroína ou criminosa não são especialmente ressaltadas. As
memórias de Sofia sobre os seus tempos de guerrilha são perpassadas pela tristeza e a
saudade que sentiu de regressar ao país. Lembra que aqueles foram tempos nos quais tudo
era incerto e provisório a não ser os sonhos. Narrativa em certos momentos dolorosa e que
contrapõe a visão branda dos anos de regime militar
57

Figura 17 - Trecho do capítulo 6

Fonte: “Notas de um tempo silenciado”, página 40.

2.2.7. HERÓI DE GUERRA

O título do capítulo sugere uma direção em certa medida oposta ao que é observado
nos enredos anteriores. Logo no início, o narrador assemelha a história a um romance do
escritor colombiano Gabriel Garcia Marques e o realismo fantástico carregado de teor
político e denúncia social que caracteriza a sua obra. A história de Osvaldo, (Osvaldão ou
ainda Vadico, como também era chamado) tem elementos de heroísmo em sua participação
na resistência armada à ditadura. Há, contudo, outro elemento especial em sua trajetória, e
que não raro não é evidenciado na historiografia tradicional: o racismo no contexto dos
anos de repressão.

Osvaldo é um homem negro nascido e criado em uma região pobre de Passa Quatro,
Minas Gerais. É descrito como alguém temido por seus inimigos por suas dotes e
habilidades físicos para a luta e a sobrevivência, mas também como alguém de
personalidade tenra, e disposto a ajudar os outros. Esses atributos são mostrados como
consequência do estigma do racismo, o qual perpassou toda a sua vida e ao qual ele tentava
resistir. Ao formar-se em geologia pela Universidade de Praga (não é explicitado por quais
meios ele o havia conseguido), chegou a participar da organização de centros acadêmicos
da universidade, onde teve contato diversas ideias e correntes políticas.
De fato, a história de Osvaldão tem diversos elementos de heroísmo: um sujeito
marginalizado, pertencente a uma classe oprimida, com ideais revolucionários e que luta
contra um governo repressivo em prol da igualdade e da democracia. Esses aspectos
58

costumam estar em consonância com a construção da memória de partidos e movimentos


armados que lutaram contra a ditadura, muito embora nem sempre a democracia fosse vista
como um fim em si mesmo por alguns deles, que pregavam especialmente a revolução fora
dos limites da democracia liberal vista como falha e voltada aos interesses da elite, com
vistas à implantação do comunismo no Brasil.

O que pode ser destacado também é que o capítulo, de acordo com as intensões do
autor da HQ, estruturado em torno de memórias silenciadas e com pouco ou nenhum
espaço nas narrativas tradicionais, mostra que a repressão não tinha como alvo apenas
indivíduos brancos de classe média. O racismo no contexto da ditadura e a atuação da
parcela negra da sociedade brasileira ainda ocupam, na historiografia sobre período, uma
posição de subalternidade, havendo, também, um silenciamento de suas vozes no campo de
batalha da memória. A resistência negra em tempos de autoritarismo é também tema de
outro capítulo que será posteriormente analisado.

Figura 14 - Trecho do capítulo 7

Fonte: “Notas de um tempo silenciado”, página 49

2.2.8. NEM TUDO FOI MILAGRE


59

Iniciando de maneira poética através do texto “Adeus a Sete Quedas” de Carlos


Drummond de Andrade e com a imagem de um canteiro de obras, o capítulo é focado no
extermínio e destruição do modo de vida de povos indígenas que habitavam o território de
Ocoí-Jacutinga, no sul do Brasil, no contexto das obras da hidroelétrica de Itaipú. Na
primeira página, o narrador faz uma recapitulação histórica que vai de Getúlio Vargas até
Ernesto Geisel, sobre os planos de aproveitamento do potencial energético dos rios da
região, os quais integravam uma marcha para o progresso em cuja rota estavam trinta e dois
aldeamentos indígenas que foram inundados pelas águas da represa.
Nesse processo, esses povos, assim como pequenos agricultores, são retratados
como a parte que mais sofreu prejuízos. As fontes para a pesquisa do autor são citadas ao
longo do capítulo, como o relatório do Conselho Indígena Missionário (CIMI) de 1982, e o
relatório da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) de 2005. O narrador, na página 52, dá
lugar de fala à índia guarani Narcisa Tacua, nascida em Ocoí-Jacutinga em 1924, que viu a
violência empregada pelo governo para a remoção das cerca de cinquenta famílias a fim de
retirá-las do território. Na página 53, é apresentado um mapa da região que foi motivo de
conflito na década de 1940. Apesar do extermínio, alguns índios trabalhavam na construção
de estradas e uma parte da terra foi oferecida a eles como “compensação pelo trabalho”
60

Durante a ditadura civil-militar, a terra foi novamente invadida em prol dos


interesses econômicos do governo, ocorrendo outro processo violento e conturbado de
desapropriação e também de indenização que deslocou os índios para áreas onde as
condições de vida eram mais difíceis. Toda a área, atualmente, está submersa nas águas de
Itaipu, gerando parte da energia elétrica consumida no Brasil. O projeto integrava a agenda
econômica do governo federal, marcada pela execução de megaprojetos em diversas áreas
como região de Ocoí-Jacutinca e também a Floresta Amazônica.

Figura 15 -Trecho do capítulo 8

Fonte: http://bahianalupa.com.br/em-quadrinhos-fragmentos-da-ditadura-militar/

O título do capítulo faz alusão à conotação positiva do termo “Milagre Econômico”,


utilizado para se referir ao grande crescimento econômico experimentado pelo país durante
os governos militares. A intensão aqui é claramente contrapor uma narrativa que faz a
defesa da ditadura através do viés econômico, mostrando um lado dessa prosperidade que
costuma ser apagado pelos defensores dessa corrente, afinal, o dito milagre não era para
todos. A utilização de palavras como “conflito” e “guerra” deixam explícita a ideia de
resistência, de luta por parte dos povos tradicionais contra um projeto “civilizador” que
ameaçava as suas tradições e modos de vida. Contudo, a questão da atuação dos índios à
época é mostrada com mais complexidade na HQ nos capítulos seguintes.
61

2.2.9. A DOMESTICAÇÃO DOS SELVAGENS

O capítulo inicia-se com um comentário do narrador acerca do seu título. A


“domesticação dos selvagens” refere-se a um discurso presente em diversos momentos da
história, havendo sido utilizado por inúmeras vezes, inclusive por entidades responsáveis
pela proteção dos direitos dos índios. No primeiro quadro do capítulo (página 56) a figura
de um homem empunhando uma arma em uma posição de superioridade em relação a um
índio acuado, em posição inferior, tentando defender-se do golpe. A silhueta do homem é
dividida em uma linha que a divide em duas metades, uma das quais ele aparece com
roupas de soldado, e a outra com roupas do que parece ser um coronel ou um latifundiário.
A arte faz uma alusão à resistência do discurso de domesticação ao longo dos séculos,
assim como à violência com que foi efetivado.
O enredo deste capítulo dá uma atenção especial à subjugação dos índios durante a
ditadura militar como forma de repressão. Uma das fontes de pesquisa do autor é um
relatório encontrado no Rio de Janeiro, compilado entre 1967 e 1968, e que traz processos
envolvendo agentes do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em casos de tortura e prisão de
índios. Um desses casos é ilustrado na obra: o do Posto Indígena Cacique Doble (RS), em
que homens, mulheres e crianças eram confinados em celas com péssimas condições
sanitárias. Em meio às imagens dos prisioneiros, o narrador reproduz um trecho do relatório
em que se compara as celas às prisões francesas do tempo de Luiz XI.
Além disso, o autor traz à tona o reformatório de Krenak, localizado na divisa
entre Espírito Santo e Minas Gerais. É citado um relatório da FUNAI datado de 1972, que
descreve o local como voltado à reeducação e aculturação de índios que se desviaram da
cultura tribal. Os “desviados” eram submetidos a duros castigos físicos. Situações de
violência, furtos, alcoolismo e tentativas de fuga estão entre os casos que motivavam
punições. O narrador descreve a estrutura como sendo semelhante a um “campo de
concentração étnico”.

Figura 20 - Trecho do capítulo 9


62

Fonte: “Notas de um tempo silenciado, página 57”

O uso do conceito de “campo de concentração” é um dos elementos importantes


para a análise do capítulo, visto que evidencia a ideia que se quer transmitir acerca do que
significou, para muitos povos indígenas tradicionais, o período dos governos militares, ou
seja, o seu extermínio, algo que era mascarado através de justificativas baseadas em um
dever civilizatório por parte do Estado brasileiro com aqueles mais arredios a qualquer tipo
de “domesticação”. Fosse através da ação direta dos militares ou do aval dado pelas
organizações responsáveis, em teoria, pela proteção dos índios, estes estiveram na mira da
repressão.
Sinaliza-se, ainda, a descoberta do relatório que serviu de fonte de pesquisa para
Vilalba e o envolvimento de instituições encarregadas da defesa desses povos em casos de
violência cometidas contra eles evidencia como a pesquisa do autor e artista curitibano
serviu para trazer à tona novas informações sobre uma memória que costuma ser relegada a
uma posição subalterna. É interessante considerar que a memória dessas instituições
costuma estar vinculada a uma posição histórica em favor dos indígenas, e o enredo do
63

capítulo trata de uma contra-narrativa de modo a colocá-las também como responsáveis por
essa violência que os vitimou.
2.2.10. OS PASSOS DA INTEGRAÇÃO

O capítulo inicia-se com algumas passagens sobre a criação da FUNAI e seus


princípios norteadores. Um desses princípios é destacado no início da página 62, e que
consiste no exercício do poder da polícia nas áreas reservadas e matérias que dizem respeito
à proteção dos índios. Introduzir o capítulo através da origem dessa instituição, destacando
uma das suas formas de atuação, tem como objetivo contextualizar a origem da Guarda
Rural Indígena em Minas Gerais, um destacamento da Polícia Militar de Belo Horizonte,
movida por esse mesmo princípio norteador.
O capítulo destaca, em seguida, todo o simbolismo envolvendo a Guarda, do qual as
cores da farda (verde e amarelo), o hino e a bandeira nacionais fazem parte. Percebe-se um
forte teor nacionalista que permeava o destacamento formado por índios. As cenas de como
se dava o treinamento e a ação dos integrantes da Guarda foram reproduzidas com base no
filme “Arara”, descoberto pelo ex-presidente do grupo “Tortura Nunca Mais” de São Paulo.
Uma das cenas às quais se dá um destaque especial na HQ é a de soldados índios
carregando um homem preso em um “pau de arara”.
Ao longo de suas operações os integrantes da Guarda foram alvos de várias
acusações, como tortura, espancamento, além de casos de insubordinação e arbitrariedades.
A história da Guarda Rural Indígena dá lugar, então, a um de seus antigos participantes, o
índio Turié Potiguara (José Umberto da Costa), o qual se tornou um ativista político após a
descoberta, nos arquivos da FUNAI, de documentos que mostravam o favorecimento de
interesses de latifundiários por terras indígenas. Foi torturado, sequestrado e fugiu para o
Canadá, onde foi reconhecido como refugiado político. Sua anistia no Brasil demorou 20
anos para ser concedida. O seu caso chama atenção para uma importante questão que cerca
a Lei da Anistia e o seu alcance.
64

Figura 16 - Trecho do capítulo 10

Fonte: “Notas de um tempo silenciado”, página 67


65

As últimas páginas do capítulo trazem à tona a vice-presidente da Comissão de


Anistia Sueli Bellato, que afirma que a comissão foi criada para reparar os danos a uma
certa elite. Turié não era um estudante preso por envolver-se em protestos, nem um
operário demitido por participar de greves. “As coisas mais absurdas foram praticadas
contra os índios” (página 67). Aqui o autor chama a atenção para a reflexão em torno de
como a lei que concede perdão aos presos e exilados políticos da ditadura se expressa,
assim como explicita a relação dessa reflexão com o silêncio que ainda permanece em torno
do que ocorreu no período.
Por outro lado, cabe perceber que, diferentemente do que foi observado em outros
capítulos acerca do lugar dos povos tradicionais indígenas durante a ditadura, este expressa
uma dimensão mais complexa da memória, visto que ora os apresenta como agentes
integrados ao aparelho repressor do Estado (o caso da Guarda Rural Indígena) e ora como
vítima dele (a perseguição a Turié Potiguara e a sua postura diante da impossibilidade de
combater as irregularidades da instituição da qual chegou a fazer parte). Possivelmente, o
fato de muitos terem feito parte da Guarda Rural reflita uma estratégia de sobrevivência à
opressão do governo militar.

2.2.11. HISTÓRIA DE CAÇA ÀS BRUXAS


O enredo do capítulo situa-se na década de 1970, em pleno lento processo de
redemocratização e no curso de operações deflagradas pelo Estado a fim de combater o
comunismo. Uma delas é a operação Marumbi, ocorrida no Paraná. O capítulo se concentra
na história de três sujeitos que foram alvo da perseguição: Ubirajara Moreira, Pedro Preto e
Antônio dos Três Reis Oliveira, vítimas de uma “democracia que prendia e arrebentava”.
Essas palavras são uma referência do narrador à concepção de democracia dos militares e
as formas que lançavam mão para defendê-la, ou seja, através da repressão nas caças reais e
simbólicas que empreendiam.
A história de Ubirajara Moreira foi retirada do livro Resistência Democrática e
Repressão no Paraná, de Milton Ivan Heler. Moreira era um militante do Partido
Comunista, preso e torturado por haver cedido a sua casa para a restauração do comitê
estadual do partido. Pedro Preto, ex-tesoureiro do Movimento Democrático Brasileiro
(MDB) foi preso dias depois de realizar uma festa para crianças de seu bairro, por suspeitas
de envolvimento com o comunismo. Por sua vez, Antônio dos Três Reis de Oliveira, um
jovem estudante que pertenceu a UNE e à Aliança Nacional Libertadora (ANL), teve um
fim trágico, e seu corpo, até hoje, nunca foi encontrado.
66

Figura 17 - Trecho do capítulo 10

Fonte: “Notas de um tempo silenciado, página 72”

Nas duas primeiras histórias, a narrativa é contada através da sequência de


quadros, reproduzindo os eventos que se sucederam. Contudo, no caso do estudante, há
apenas algumas imagens de seu rosto e a explicação do narrador acerca de quem ele era,
bem como algumas de suas características, como ser um idealista. Talvez a diferença
observada se dê pelo fato de que os passos do jovem e seu paradeiro permaneçam um
mistério até hoje para a sua família, assim como muitos outros casos de desaparecimento
que ainda permanecem sem solução.

2.2.12. DESARMADOS E PERIGOSOS


67

O capítulo inicia-se com uma música do cantor norte-americano James Brown,


símbolo da resistência negra nos EUA das décadas de 1960 e 1970, e como o Black Power
influenciou os movimentos negros no Brasil. O combate ao racismo e à exclusão social se
deu através da resistência cultural, por meio da música e do cinema. Em meio a essa
efervescência que tomava espaço nas periferias da cidade do Rio de Janeiro, Asfilófio de
Oliveira Filho (ou Dom Filó) despontou como um dos grandes nomes. Fazia parte do Clube
Renascença, por onde passaram nomes importantes como Bete Carvalho e João Nogueira.
68

Figura 18 - Trecho do capítulo 12

Fonte: “Notas de um tempo silenciado”, página 77


Ao longo do enredo, são descritos as principais atividades desenvolvidas no seio do
movimento sob a influência considerável dos movimentos culturais afro-americanos. É
destacado o objetivo de aumentar a autoestima das comunidades e atrelar isso, também, ao
combate de outras mazelas que as atingiam, como a doença de chagas, através da exibição
pública de vídeos de prevenção à doença antes da mostra de filmes de Black Music e a
69

exibição de fotos de todas as gentes das comunidades. Tudo isso é descrito, durante o
capítulo, como parte de uma cultura de outra cidade que existia no interior do Rio, uma
cultura de resistência e subversão, que não incluía o uso de armas. Mesmo assim, como está
explícito no título, despertava o medo e estimulava a repressão do regime autoritário.
Percebe-se que a memória social do movimento negro durante a ditadura civil-
militar é construída de modo a associa-la à luta contra o racismo e os problemas sociais que
afligem esse segmento. Cenas de repressão são mostradas no capítulo e de tentativas de
desviar a atenção dos militares, que utilizavam a justificativa de que aqueles espaços e
eventos eram pontos de venda de drogas para, na verdade, retaliar a ousadia de seus
participantes, a qual incluía diversos gestos de contestação, como no caso do cantor Elron
Chaves, que durante o Festival Internacional de Canção Popular, beijou duas mulheres
loiras, razão pela qual foi preso e torturado.
O orgulho negro, assim, esteve atrelado à memória do movimento, tendo ganhado
repercussão nacional nos últimos anos da década de 1970. Na última página do capítulo,
trechos de uma matéria publicada no Jornal do Brasil destacam uma população que evita
conflitos, que não bebe ou usa drogas, e que era movida por um ideal, uma ideologia. É
válido considerar que o destaque dado pelo periódico ao pacifismo do movimento aponta
para a crítica que se fazia no meio à luta armada como forma de combate à opressão, forma
essa que costuma aparecer revestida de certo heroísmo nas memórias de organizações como
o PC do B e a guerrilha do Araguaia, da qual o personagem Osvaldão, do capítulo VII fez
parte.

2.2.13. SALVADORES DA PÁTRIA

Diferentemente dos capítulos anteriores, em que se têm pequenas histórias


construídas a partir da memória de diferentes sujeitos ou grupos sociais, aqui o autor faz
uma recapitulação histórica do Brasil, de modo a mostrar como o autoritarismo esteve
presente na nossa tradição política desde os tempos coloniais até o período republicano,
surgindo, frequentemente, como alternativa aos problemas e questões que eram postas ao
longo dos séculos. Desde a independência com a instituição do Poder Moderador pelo
imperador Dom Pedro I, passando pela dureza dos governos da República da Espada, o
golpe liderado por Getúlio Vargas em 1930 até a tomada de poder pelos militares em 1964.
70

Figura 19 - Trecho do capítulo 13

ciado-
71

Algumas das personalidades históricas citadas são retratadas no capítulo, bem como
é ressaltada a influência do pensamento positivista que marcou os governos militares, seja
nos primeiros anos da República, no governo de Vargas em sua fase ditatorial, ou durante o
regime instaurado em 1964 com a queda de João Goulart. A intensão do autor é destacar as
várias vezes em que ocorreram golpes de caráter militar no país, sempre que uma ameaça
surgia e comprometia a ordem, a integridade e a soberania da nação, atestando uma
fragilidade institucional.
Os ideais nacionalistas e de respeito à ordem e à hierarquia são simbolizados através
da figura de uma caserna (página 81) em cujo centro encontra-se a bandeira nacional. A
ideia de que a melhor alternativa para os grandes problemas do país é que ele seja guiado
através de princípios que sempre pautaram as forças armadas, segundo o autor, sempre
despertou fascínio em meio à sociedade brasileira, e, de tempos em tempos, em especial em
momentos de crise, soluções autoritárias tornam a ser cogitadas como caminhos possíveis
(ou como únicos caminhos).
A rejeição à classe política e ao sistema da qual ela faz parte e que não atende aos
principais anseios da sociedade é o que faz brotar o desejo de um salvador da pátria. A
negação da atividade política como um mal em si e o flerte com caminhos autoritários
diante de tempos difíceis criam condições que facilitam o surgimento de governos
ditatoriais que tomam para si a tarefa de preservar uma ordem que, na verdade, serve
apenas a setores acima da pirâmide social. A partir desse panorama histórico, Robson
Vilalba pinta o retrato de nossos tempos, em que o extremismo tem ganhado cada vez mais
espaço.
72

CAPÍTULO 3: OS QUADRINHOS EM SALA DE AULA NO ENSINO DE


HISTÓRIA DA DITADURA CIVIL-MILITAR

Este capítulo é centrado em um debate teórico-metodológico acerca das Histórias


em Quadrinhos e de sua utilização no ensino, percebendo como a HQ “Notas de um tempo
silenciado” pode contribuir com o exercício do ensino de História, mais especificamente
sobre a Ditadura Civil-militar, encarando-a não apenas como um recurso didático e
pedagógico, mas como um documento a ser usado no espaço escolar. Em seguida, é
apresentado os resultados de uma pesquisa de campo realizada no âmbito deste trabalho
sobre memórias e esquecimentos do período. Seu objetivo foi perceber como alunos e
professores enxergam a temática, assim como o uso de quadrinhos nas aulas de história.

3.1. .A NONA ARTE NO ENSINO: DESAFIOS E POSSIBILIDADES

A história das histórias em quadrinhos é repleta de altos e baixos, envolvendo


momentos de valorização por suas características que as definem como um gênero e como
produto cultural de massa, até ocasiões nas quais essa mídia ocupa uma posição subalterna
em relação a certos setores da sociedade. O debate em torno das HQs, ao longo dos anos,
costuma girar em torno de diversas questões, sendo grande parte delas concernentes aos
efeitos que o conteúdo de certas produções nesse formato poderiam ter sobre o seu
principal público alvo: os jovens. A penetração e a popularidade que a nona arte geralmente
tem nesse segmento social também levanta debates acerca do seu valor como recurso
pedagógico em sala de aula e nos meios acadêmicos.

Em meados do século XX, durante as décadas de 1940 e 1950, a indústria de


quadrinhos vivia um momento de auge, com uma grande variedade de títulos e gêneros
chegando ao mercado. Isso, contudo, seria revertido devido a um movimento de
perseguição às HQs que ganhou força com a publicação dos trabalhos de Frederic Werthan.
O psiquiatra alemão radicado nos EUA alertava para supostos efeitos nefastos que os
comics poderiam ter na formação das crianças, como o incentivo à delinquência ou a
incitação à homossexualidade. A repercussão de seu trabalho provocou uma verdadeira
caça às bruxas, havendo casos de queimas de exemplares, debates acalorados na esfera
política e a criação de regras restritivas à produção de HQs, as quais refletiram na produção
de temáticas e no desempenho de vendas de diversas empresas, muitas das quais chegaram
à falência. (BAHIA, 2012).
73

O Brasil acompanhou essa tendência, havendo a criação de um selo de qualidade


com regras restritivas ao conteúdo das HQs produzidas na época, semelhante ao que
acontecia nos EUA. Esse quadro só seria revertido a partir da década de 1970, quando
estudos interdisciplinares nas áreas de psicologia e educação realizados em universidades
da Europa refutaram as afirmações de Werthan, iniciando uma guinada a favor dos
quadrinhos. Desde então, o prestígio dessa mídia voltou a crescer. No Brasil, foi na década
de 1990 que as barreiras para o seu uso para fins didáticos foram consideravelmente
derrubadas a partir de uma avaliação realizada pelo Ministério da Educação (MEC),
estimulando muitos autores de livros didáticos a diversificarem sua linguagem incluindo a
linguagem dos quadrinhos em suas produções (VERGUEIRO, 2010)

Em 1996, as HQs passaram a ser contemplados na Lei de Diretrizes e Bases (LDB)


e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Esse reconhecimento dos quadrinhos
como recurso didático e pedagógico vem de seus atributos que auxiliam o processo de
ensino e aprendizagem, como a sua linguagem que combina imagens e textos, o nível de
informação que algumas produções possuem, além do estímulo à leitura, em virtude da sua
presença no cotidiano dos jovens. O Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE)
passou a realizar a seleção de alguns títulos em quadrinhos para a sua inclusão no catálogo
de obras a serem autorizadas e distribuídas às escolas de ensino fundamental e médio em
diversos componentes curriculares.

Ao discorrer sobre a utilização dos quadrinhos no ensino, Vergueiro afirma:

Não existem regras. No caso dos quadrinhos, pode-se dizer que o único
limite para o seu bom aproveitamento em qualquer sala de aula é a
criatividade do professor e a sua capacidade de bem utilizá-la para atingir
seus objetivos de ensino. Eles tanto podem ser utilizados para introduzir
um tema que será depois desenvolvido por outros meios, para aprofundar
um conceito já apresentado, para gerar uma discussão a respeito de um
assunto, para ilustrar uma ideia, como forma lúdica de tratamento de um
tema árido ou como contraposição ao enfoque dado a outro meio de
comunicação (VERGUEIRO, 2010, p. 26).

Independentemente da maneira de utilização desse recurso escolhida pelo professor,


é certo que ela deve sempre passar pelo entendimento acerca das características desse
gênero. A linguagem dos quadrinhos se caracteriza por um conjunto de elementos verbais e
não verbais (imagens) em uma união que lhes confere uma dinâmica própria. A simbiose
entre essas duas formas de linguagem se caracteriza pela presença de diversos recursos
linguísticos e imagéticos que provocam no leitor sensações metafóricas e sinestésicas
74

(ASSIS, 2011). Entre esses recursos estão os balões de fala e suas variações, que indicam
diferentes maneiras pelas quais o personagem expressão seus pensamentos, e também as
onomatopeias, os símbolos e sinais.

A interpretação do leitor está ligada à existência de dois tipos de mensagens: uma


linguística e a outra é icônica ou visual. A primeira diz respeito ao componente narrativo da
HQs, ou seja, a fala e a descrição de cenas, personagens e situações, assim como recursos
estilísticos e expressivos que tem por objetivo retratar ruídos, emoções, o que se dá através
da exploração, por parte do artista, da textura, espessura e cor dos fonemas. Por sua vez, a
linguagem icônica consiste no espaço, as cores, a escolha de planos de projeção
(PALHARES, 2009), os quais se articulam com os elementos linguísticos de modo a
formar a mensagem a ser transmitida ao leitor, processo esse que é condicionado
historicamente pelas convenções sociais em constante mudança.

Esse aspecto relacionado às condições de produção da HQ faz dela, também, uma


fonte histórica, visto que convenções, tradições e visões de mundo nelas são refletidos e/ou
construídos, seja para reforçá-los ou questioná-los. Sendo assim, os quadrinhos se
configuram como um artefato cultural. Este conceito, para Fronza

Está intimamente relacionado à ideia de que todo documento é


construído de uma determinada forma, por uma determinada
sociedade, em um determinado contexto espaço-temporal. Essa
consideração leva à exigência do estudo de elementos formais
constituidores dos documentos denominados histórias em
quadrinhos, pois são esses elementos que permitem a compreensão
da especificidade de um artefato ou documento. (FRONZA, 2009,
p. 200-201).

A importância de se levar em consideração as especificidades do documento frisada


pelo autor é de grande relevância para a discussão acerca dos desafios e possibilidades de
uso das HQs no ensino de história. Entre os possíveis usos elencados por Vergueiro (2010)
está a sua leitura enquanto registro de uma determinada época. Nesse caso, a HQ aparece
como uma fonte histórica de fato. O mesmo autor também aponta os caminhos para o
exercício de leitura a ser realizado, que deve levar em conta as seguintes perguntas: Quem é
(são) o(s) autor(es)? Quando e onde foi produzida? Por quem fala? A quem se destina?
Qual a sua finalidade? Vale perceber que tais indagações, presentes no trabalho de crítica
documental realizado pelo historiador, também são procedimentos presentes no trabalho
com quadrinhos em sala de aula.
75

Bitencourt (2008) aponta caminhos semelhantes para o trabalho com documentos


em sala de aula, ressaltando a importância de que o professor leve em consideração as
especificidades de seus tipos. Reforça também que a sua utilização como recurso
pedagógico no ensino facilita a compreensão do processo de produção do conhecimento
histórico. Contudo, alguns cuidados são necessários nesse caminho. Há no uso de
documentos históricos uma certa ambição de fazer do aluno uma “espécie de historiador”,
gerando uma situação que pode comprometer os objetivos a serem alcançados pelo
professor, dada a falta de domínio por parte do estudante de conceitos e categorias
presentes no trabalho historiográfico.
O professor traça objetivos que não visam à produção de um texto
historiográfico inédito ou a uma interpretação renovada de antigos
acontecimentos, com o uso de novas fontes. As fontes históricas em
sala de aula são utilizadas diferentemente. Os jovens e as crianças
estão “aprendendo História” e não dominam o contexto histórico
em que o documento foi produzido, o que exige sempre atenção ao
momento propício de introduzi-lo como material didático e à
escolha dos tipos adequados às condições de escolarização dos
alunos (BITTENCOURT, 2008, p. 329).

Assim, a instrumentalização de documentos nas aulas de História deve se dar


através da combinação de práticas pedagógicas que dependem do assunto abordado em sala
de aula e da metodologia escolhida, com uma análise do documento que o descreva
destacando as informações que possuem, que o situe em relação ao contexto e o seu autor,
que identifique a sua natureza para assim poder compor uma explicação acerca dele e
submetê-lo à crítica. Esse processo, além disso, deve também considerar os saberes prévios
dos alunos. Uma maneira interessante de considerar os conhecimentos previamente
adquiridos no âmbito de uma aula sobre determinado tema é perceber os fatores que
influenciam na formação de sua cultura histórica e memória acerca de algum objeto de
estudo escolhido para ser trabalhado no ambiente escolar.

Cintando Jörn Rüsen, Cerri (2011) apresenta o conceito de cultura histórica como a
maneira pela qual uma determinada sociedade lida com a experiência do tempo. Diferentes
formas de lidar com a temporalidade implicam a existência de diferentes processos de
significação do passado e a construção de narrativas que atendem às necessidades do tempo
presente. Assim, no âmbito da aprendizagem histórica, muitos fatores estão em jogo na
constituição de uma cultura histórica dos alunos, os quais, deve-se dizer, não estão
limitados apenas ao ambiente escolar ou acadêmico, mas sim presentes também nas
76

experiências cotidianas e no contato com diferentes tipos de mídia, as quais são difusoras e
até mesmo fortalecedoras de certos discursos.

A influência das histórias em quadrinhos, assim, também tem parte no processo de


educação histórica dos jovens. Fronza (2009) recorre a Eric Hobsbawn em sua investigação
acerca de como os alunos constroem ideias históricas a partir das HQs. Para o autor os
quadrinhos, enquanto artefatos culturais, devem ser lidos como parte de uma cultura
juvenil, construída por uma estrutura de sentimentos que se imprimem, por sua vez, na
constituição de uma significância histórica, conceito de grande importância para a definição
de caminhos metodológicos na aprendizagem. O grau de significância histórica é definido
pelo peso de uma determinada experiência do passado na sociedade, sua relação com outras
experiências históricas e também culturais.

Os fatores que condicionam a significação histórica do sujeito são também os que


ajudam a forjar a sua consciência histórica. Cerri (2011), ao discutir as diferentes definições
desse conceito acaba por sustentá-la como um atributo inerente a todos os seres humanos e
à sua experiência de estar no mundo, a qual se expressa através da atribuição de sentido ao
passado conforme as necessidades do presente, e também das suas ações. Entender que a
consciência histórica do aluno é moldada por um processo complexo e que está
intimamente ligado à cultura histórica de seu meio social para a construção de pressupostos
metodológicos que permitam ao professor propiciar a formação do pensamento histórico
em sala de aula. (FRONZA, 2009)

Particularmente os quadrinhos com temas históricos, enquanto componentes de uma


cultura juvenil, podem possibilitar isso, na medida em que se constituem enquanto
narrativas gráficas que contribuem para a maneira como os jovens constroem suas
narrativas de leitura do mundo. Em virtude disso, contudo, alguns cuidados precisam ser
tomados, pois não se deve esperar que eles, por si só, deem conta do processo de
construção do conhecimento histórico em sala de aula, pois, quando se trata de certas
produções, percebe-se que “a estrutura narrativa de seus enredos não segue todos os
elementos necessários a uma narrativa histórica científica, tais como a fundamentação em
métodos que busquem evidências relativas à realidade do passado.” (FRONZA, 2009, p.
221).
77

Esse é o caso de muitas HQs com temática histórica que possuem um viés ficcional
bastante forte, ao qual é comum que os alunos acabem se detendo. Assim, o seu conteúdo
deve ser confrontado com outras fontes históricas, a fim de que haja um grau de
plausibilidade científica na utilização desse gênero em sala de aula. No caso da HQ de
Robson Vilalba, os documentos da Comissão Nacional da Verdade são um exemplo, assim
como muitas das fontes utilizadas por ele para compor as narrativas. Em uma seção da HQ
dedicada à comentários do autor sobre a sua pesquisa e o processo criativo, ele afirma:

Quanto maior era o número de informações, principalmente quando


consegui entrevistar pessoas que viveram aqueles momentos, ficava ainda
mais fácil a construção dos capítulos, Isso foi algo que comecei a perceber
conforme ia concluindo cada história. Tanto que as últimas entrevistas que
realizei, consegui fazê-las já delineando um possível roteiro, achando um
mote, um clímax, um desfecho. Claro que isso não é algo (e nem acredito
que deva ser) planejado. Trata-se de perceber isso na entrevista, sentindo
como o entrevistado conduz a narrativa. (VILALBA, 2015, p.101)

Percebe-se, pela sua fala, que o ilustrador se apropriou das fontes de modo à
imprimir nos capítulos um certo toque de dramaticidade e medo que refletisse a atmosfera
do período em que os enredos se passam. Esses elementos, ele notou nos relatos de seus
entrevistados e os fez aparecer no roteiro. Além de entrevistas, reportagens, notícias e
outras fontes de informações sobre os personagens do livro são referenciadas em sua seção
de créditos, intitulada “Desvendando o Notas”, e podem ser acessadas, para que se perceba
de que maneira Vilalba ressiginficou as memórias que embasam as tramas por ele
construídas.

Essa confrontação está de acordo com a forma defendida por Fronza, para quem
deve se dar com fontes que estejam relacionadas ao contexto que os quadrinhos
representam. Contudo, apesar dessas limitações, as HQs conservam o seu valor como fonte
histórica e ferramenta de ensino, uma vez que

[...] são, em si, narrativas históricas gráficas - portanto, narrativas


históricas esteticamente estruturadas – e que segundo os
historiadores ligados ao campo da investigação da Educação
Histórica, a narrativa histórica é um construto próprio da expressão
do pensamento histórico e da aprendizagem da formação histórica.
(FRONZA, 2009, p. 222).

Um exercício de análise e crítica de uma história em quadrinhos é realizado no


capítulo anterior. Contudo, tratou-se de um trabalho realizado dentro dos limites da crítica
78

documental com vistas a perceber como as narrativas que integram a obra inserem-se no
âmbito das disputas de memória da Ditadura Civil-militar. É claro que a sua concepção não
se deu de uma forma que fosse pensada para ser incluída no catálogo de livros a serem
distribuídos nas escolas do país através do PNBE. Ainda assim, pensar as suas
possibilidades de utilização no ensino pode revelar-se totalmente válido dentro do debate
em torno sde como se percebe o uso de documentos em sala de aula. Knauss (2001) reflete
sobre a construção do conhecimento como leitura de mundo e os entraves dentro de um
modelo de educação histórica que, segundo ele, autoritário e com aversão à reflexão e o
acriticismo.

O autor apresenta uma redefinição das bases do ensino de história a partir do


estímulo ao espírito racional e investigador do aluno. No âmbito da educação histórica, isso
implica adentrar na questão de como o documento se insere na prática de ensino: como
ilustração e ou como problema. No primeiro caso, tem-se uma visão complementar de sua
inclusão na prática de ensino, ou então extraordinária, de inserção paralela e suplementar,
como os paradidáticos (KNAUSS, 2001). No segundo caso, vai-se no caminho oposto à
visão do documento enquanto espelho fiel do passado, e por consequência à sacralização de
determinadas narrativas. Esse método tem por objetivo retirar o aluno de uma posição
passiva em relação ao conhecimento para uma posição ativa, questionadora.

Notas de um tempo silenciado possui uma temática que tem se mostrado,


especialmente, em voga em virtude dos recentes acontecimentos do cenário político
brasileiro, os quais deram espaço a uma disputa acirrada entre diferentes visões e
apropriações do passado. Através do contexto de sua publicação, o livro revela-se enquanto
documento produzido em tempos conturbados por uma crise de desconfiança em relação ao
funcionamento do regime democrático do país e a emergência de grupos que defendem o
autoritarismo como solução para as questões que afligem a sociedade. A intensão do autor
em promover a reflexão acerca das consequências da opção por esse caminho apresenta-se
como um fio condutor interessante para uma abordagem, em sala de aula, do tempo
presente.

Em certa medida, trata-se de aproximar o assunto da realidade dos alunos,


estabelecendo paralelos entre os dois momentos. Em algumas das tramas que estão
presentes na HQ, Robson Vilalba pinta um cenário de instabilidade e tensão que paira sobre
a sociedade brasileira, em especial as primeiras, nas quais o contexto de polarização
79

política e de crise econômica são apresentados como fatores que facilitam o surgimento de
um ambiente fértil para alternativas fora das vias democráticas. Tal aproximação já é ponto
de partida para o estímulo ao exercício do pensamento crítico nos alunos. Além disso, ao
trazer em suas páginas diferentes sujeitos e grupos sociais que viveram o período em que se
passam as histórias, o livro abre a possibilidade para diferentes temáticas e conceitos que
podem ser trabalhados em sala de aula.

Os capítulos que abordam a resistência e o sofrimento dos povos tradicionais


diante de uma faceta do projeto de Integração Nacional, que para eles se mostrou perversa,
assim como o capítulo que trata da resistência do movimento negro mostram-se
interessantes em um exercício de confrontação com a narrativa que costuma aparecer nos
livros didáticos, a qual não costuma dar grande espaço a esses segmentos da sociedade.
Aqui, conceitos de memória e seus desdobramentos podem ser abordados, como a memória
subterrânea, em oposição a uma memória hegemônica sobre o período. A importância da
abordagem desses conceitos reside no fato de que ela pode propiciar aos alunos a
compreensão de que há diversas formas de reconstruir o passado.

Além disso, os capítulos que tratam sobre personagens que participaram da


resistência armada à ditadura, como a história da guerrilheira estudante Sônia e o Osvaldão
podem trazer um novo olhar sobre como certos grupos sociais reagiam ao autoritarismo do
regime. Algo interessante sobre esses enredos é a ausência, nas narrativas, de julgamentos
acerca das ações e das escolhas dos personagens, mostradas pelo autor da HQ,
principalmente, como meios encontrados por eles para sobreviver a um período que, para
eles, desenrolou-se de forma cruel, obscura. É interessante que o professor esteja atento à
forma como as memórias são construídas ao longo dos quadrinhos, sabendo valer-se dos
recursos utilizados pela linguagem que o caracteriza.

“Notas de um tempo silenciado”. é uma determinada leitura do que se passou com


esses personagens, o que está presente em diversos outros elementos da HQ, como a
escolha de planos de projeção em determinadas cenas, algo feito para dar ênfase a certos
elementos. Exemplo disso está em uma das cenas do capítulo “A domesticação dos
selvagens”, em que a figura de um índio aparece em uma posição de subjugo em frente à
silhueta de um homem dividida em duas metades: em uma delas, ele veste roupas de
militar, e em outra, roupas campestres, em provável alusão aos fazendeiros e proprietários
de terra que, ao longo da história, entraram em conflitos como povos tradicionais.
80

A imagem encontra-se de modo a ocupar grande parte da página, o que demonstra


o objetivo de enfatizar o sofrimento e a crueldade enfrentada pelos indígenas, não apenas
durante o regime ditatorial instaurado em 1964, mas sim também em diversos momentos da
história brasileira. Além disso, imagens tidas como icônicas também são reproduzidas
através do traço de Vilalba, como as fotografias e símbolos do movimento da Contracultura
no capítulo sobre a resistência do movimento estudantil universitário em Curitiba, as quais
reforçam a narrativa deste enquanto movimento que visava desafiar as regras, a opressão e
os valores vigentes. Por outro lado, o traço do artista curitibano, realístico e forte, combina-
se com o predomínio das cores preto e branco, o que ajuda a reforçar o caráter sombrio do
mundo trazido pela HQ.

Levar em conta esses aspectos é de grande importância para a utilização da


história em quadrinhos, uma vez que, como dito antes, são utilizados de modo a contar a
história de uma determinada maneira. Essa metodologia permite desconstruir uma visão
positivista acerca da relação da ciência histórica com o documento. Jacques Le Goff
entende que documento passa a ser monumento na medida em que é fruto de escolhas e
intensões de quem o elabora. Para ele,

[...] o documento não é qualquer coisa que fica por conta do


passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as
relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do
documento enquanto monumento permite à memória coletiva
recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com
pleno conhecimento de causa” (LE GOFF, 1996, p.545).

É interessante que em uma aula de história que se pretenda fora dos moldes
tradicionais que se limitam à memorização de eventos, datas e nomes considerados
“importantes” e vise uma abordagem histórica que estimule o pensamento crítico e o
espírito investigativo do aluno. Pode ser valoroso também ao professor enfatizar a dinâmica
da relação entre a história e a memória, apresentando esta última como uma construção
cultural livre, e a primeira como uma operação intelectual guiada por convenções
científicas. (MENESES apud. NAPOLITANO, 2015). A fronteira entre as duas, por outro
lado, dificilmente apresenta-se como bem demarcada:

O problema da “verdade” que, em princípio, poderia ser utilizado como o


delimitador entre história e memória, tampouco é um demarcador de
fronteiras entre as duas. Nem a história é uma ponte direta para “aquilo
que realmente aconteceu” como sonhavam os pais fundadores da
disciplina no século XIX, nem a memória é, necessariamente, uma ficção
81

imaginativa sem nenhum compromisso com o real. O distanciamento é


parte da ética profissional e intelectual de qualquer historiador, mas esta
prerrogativa está longe de significar neutralidade ideológica ou política
diante do passado (NAPOLITANO, 2015, p. 11).

A ideia de verdade histórica, fortemente presente no modelo de educação


considerado tradicional por Knauss através da sacralização de uma determinada narrativa
contida no livro didático como a única possível precisa, assim, ser desconstruída através de
uma abordagem que leve aos alunos compreenderem que o conhecimento histórico consiste
em um fazer-se e refazer-se constante. Entendendo que a memória é um campo de disputas
entre diferentes grupos sociais e que influencia significativamente a produção do
conhecimento histórico, que por sua vez, incide de forma crítica e analítica sobre a
construção de representações do passado.
Furtado Filho, ao refletir sobre a História na escola, seus desafios e possibilidades,
defende que “se discuta o conhecimento histórico: que a ideia de pesquisa, em sala de aula,
seja alargada, para além do abrir e fechar do livro didático [...]; que se valorize as
informações prévias que os estudantes tenham sobre determinado assunto e se discutam os
meios pelos quais essas informações fora organizadas em atribuição de sentido”
(FURTADO FILHO, 2008, p. 300). Pensar como os estudantes compreendem determinada
temática e constroem significados é algo que deve estar presente na construção do
conhecimento. Parte deste trabalho, assim, consistiu em perceber de que maneira isso
ocorre, como será mostrado a seguir através dos resultados de uma pesquisa de campo.

3.2. PESQUISA DE CAMPO EM SALA: MEMÓRIAS DE ALUNOS E


PROFESSORES SOBRE A DITADURA

A pesquisa de campo que será apresentada a seguir teve por objetivo perceber de
que maneira os alunos e professor percebem a temática da Ditadura Civil-militar, através de
sua opinião sobre a mesma. Além disso, procurou-se também investigar como as histórias
em quadrinhos e a ideia de sua utilização em sala de aula são vistas por eles. A realização
da pesquisa consistiu na aplicação de questionários aplicados em uma turma de terceiro ano
do ensino médio da Escola Estadual Juscelino Kubistchek, localizada no município de
Assú, Rio Grande do Norte.
A escolha desse espaço para a realização desta etapa do trabalho mostrou-se
interessante por ter sido, também, o campo de atuação durante a disciplina de Orientação
Teórico-metodológica e Estágio Supervisionado II16. As atividades da disciplina tinham

16
Disciplina ministrada no sexto período do curso de Licenciatura em História
82

como o objetivo a observação do cotidiano da instituição, com a fim de perceber como a


cultura escolar é tecida e vivida por todos os que dela fazem parte, ou seja, alunos,
professores e funcionários, coordenadores, diretores e também familiares. Aqui, contudo,
pretende-se pensar questões relacionadas à consciência histórica do aluno e do professor,
mais especificamente no que diz respeito à Ditadura Civil-militar e a sua visão sobre
utilização de quadrinhos no ensino.
Para Cerri e Janz (2018), a consciência histórica, enquanto certa maneira própria
de um sujeito ou grupo social de conferir sentido à experiência do tempo, é o resultado de
um processo de aprendizagem histórica que abrange não apenas a aprendizagem escolar
histórica, mas sim também outros fatores que estão para além da sala de aula. Os dois
autores apresentam esse processo como um dos fundamentos da Didática da História, a qual
reconhece que o conhecimento do aluno não se limita apenas ao que é formalmente
ensinado em sala de aula, mas constitui-se de uma síntese de vários conhecimentos
adquiridos para além desse espaço. As narrativas construídas pelos alunos acerca da
Ditadura como resultado desse processo é o que se pretende analisar mediante a aplicação
dos questionários.

Metodologia semelhante é adotada por Ramos Filho (2013) em sua pesquisa


‘Valente mesmo é quem não briga’: histórias em quadrinhos do cangaço e o ensino de
história”, sobre representações do cangaço nas histórias em quadrinhos. Em parte os
caminhos adotados aqui tiveram como inspiração a pesquisa de campo na escola realizada
pelo autor, com o objetivo de refletir sobre as contribuições das HQs do cangaço no ensino,
percebendo quais as representações construídas pelos alunos de ensino fundamental II e
professores sobre o tema, assim como outros a ele comumente ligados, como o da valentia.

A realização dessa etapa se deu durante o mês de dezembro de 2018, no turno


matutino. Foi algo previamente planejado com o professor da disciplina de História da
E.E.J.K, tendo havido um encontro para a escolha da data, o horário e da turma em que
seria realizada a atividade. Em virtude do recorte temático do trabalho, a turma escolhida
foi a do terceiro ano do ensino médio. Além disso, devido a uma maior adequação da obra
trabalhada nesta pesquisa a um público juvenil e adulto, também teve grande influência na
escolha. Antes da aplicação do questionário, foi feita, para os estudantes e o professor uma
breve explanação sobre o trabalho aqui desenvolvido. Em seguida, eles tiveram contato
com a HQ “Notas de um tempo silenciado”, o qual a maioria afirmou não conhecer.
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Foram estruturados dois tipos de questionário, um com perguntas para os alunos e


outra para o professor. O do primeiro tipo continha um campo destinado à identificação do
estudante (nome, idade, série e turma). Das cinco perguntas, duas são relacionadas à
temática da Ditadura: O que você já ouviu falar sobre a Ditadura Civil Militar? Qual a sua
opinião sobre o tema? Em seguida, há perguntas sobre as HQs e a opinião deles sobre a sua
utilização nas aulas de História, além, claro, de uma última sobre as impressões da obra de
Robson Vilalba: Você gosta ou costuma ler Histórias em quadrinhos? Você acha
interessante a ideia de usar HQs nas aulas de História? Por quê? Qual a impressão que
você tem sobre a HQ Notas de um tempo silenciado?

Já o questionário do professor, além dos campos de identificação (nome e idade), as


perguntas seguiram um caminho semelhante: Como os alunos veem/percebem o tema da
Ditadura Civil-militar? Em sua opinião, qual a importância do ensino sobre a Ditadura no
contexto atual? Você utiliza ou já utilizou histórias em quadrinhos nas suas aulas? Você
acha interessante a ideia de utilizar HQs nas aulas? Por quê? Que impressões você teve do
livro Notas de um tempo silenciado?

Ao todo, foram obtidas trinta e dois questionários, a contar com o respondido pelo
professor. Para este trabalho, contudo, foram selecionadas algumas amostras que permitem
melhor perceber qualitativamente os elementos que se pretende analisar aqui. A seguir, será
feita uma análise das respostas de alguns alunos, de acordo com as perguntas feitas a eles.

Quando perguntados sobre que já ouviu falar sobre a Ditadura Civil-Militar:

- Foi um regime imposto em 1964 a partir de um golpe realizado contra o


então presidente João Goulart pelos militares em 1 de abril. Foi um
tempo de muita repressão pelos militares, marcado pelo derramamento
de sangue dos inocentes que protestavam contra o regime (Mateus José
Rodrigues, 17 anos).
- A Ditadura Civil-militar foi de grande importância para manter a ordem
devido a vários conflitos e violência em alta no país. Também todas as
ações da ditadura não resolveram o sistema econômico brasileiro (José
Luiz da Silva, 19 anos).
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- Ouvi por exemplo que a Ditadura ajudou em algumas coisas no Brasil, e


ouvi que foi algo ruim como a tortura (Amélia Mendes da Costa, 17
anos).

Percebe-se, que as respostas dos estudantes vão por caminhos diferentes. É visível
que a fala de Mateus José Rodrigues apresenta uma inclinação para a memória hegemônica
da ditadura, marcada pela crítica ao regime autoritário. Ele chama a atenção para a censura
e a repressão que caracterizou o período, durante o qual, segundo ele, houve muito
derramamento de sangue de inocentes que se posicionavam contra o governo. Percebe-se,
aqui, uma narrativa que apresenta a Ditadura como um período violento na história
brasileira, defendida por setores sociais que se opuseram a um regime de exceção, sejam
eles os liberais ou de esquerda.

Indo por uma direção um tanto diferente, José Luiz da Silva afirma ter sido a
Ditadura algo importante para conter a violência e os vários conflitos do período. Tem-se
aqui uma visão destoante em relação a uma memória crítica, a qual costuma ser defendida
por grupos sociais inclinados ao revisionismo histórico sobre a os tempos do regime
comandado pelos militares. Certa atenção deve ser dada à presença da palavra “ditadura” na
resposta do aluno. Bauer (2018) afirma que uma das características do revisionismo acerca
do regime de 1964 não é a sua negação, mas sim a sua legitimação enquanto algo
necessário naquele momento. Ao mesmo tempo, porém, é perceptível certa tendência à
crítica na resposta do aluno ao dizer que os problemas econômicos do Brasil não foram
solucionados com o regime.

Por sua vez, a resposta de Amélia Mendes da Costa deixa transparecer uma forma
de conhecimento sobre Ditadura em que não se percebe uma inclinação necessariamente
para a crítica ou para o revisionismo legitimador, mas sim para o entendimento construído a
partir de diferentes narrativas, sejam elas de teor favorável ao regime e suas ações, ou
desfavorável, apresentando-o como um período marcado pela repressão e pela perseguição.
Aqui, é perceptível que a sua visão sobre o tema é influenciada por discursos divergentes,
que podem refletir diferentes vivências e atribuições de sentido ao passado.

Quando indagados sobre a sua opinião sobre o tema, as respostas foram as


seguintes:
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- Acho importante a discussão. Estudar o passado é importante,


pois a história tende a se repetir. (Mateus José Rodrigues, 17
anos).
- Acredito que a Ditadura realmente divide opiniões, pois os mais
antigos dizem também que naquela época a segurança era bem
maior e a economia cresceu e o país cresceu em certos quesitos.
(Igor Medeiros Fernandes, 17 anos).
- Não tenho uma opinião fixa, pois não vivi na época, para muitos
foi uma época boa economicamente par o Brasil, para os outros foi
uma época de tortura (Flávio Manoel Medeiros, 17 anos).

A resposta de Mateus José Rodrigues mostra-se interessante pela importância dada


ao estudo do passado e o entendimento do tempo enquanto experiência e também como
ação, um dos fundamentos da consciência histórica apontados por Cerri. Na fala de
Marinheiro, está implícita uma provável associação entre o atual cenário político e social do
Brasil e as condições históricas dos acontecimentos de 1964, assim como a preocupação de
que esse cenário não se repita, o que se confirma pelo teor da sua resposta à pergunta
anterior, na qual ressalta o aspecto violento do período. A importância de se estudar o tema
relaciona-se, ao mesmo tempo, com a ideia de passado enquanto fonte de aprendizado, e
também com uma consciência da condição de ser histórico, a qual implica a tomada de ação
e os desdobramentos que daí advêm, tecendo o curso da história.

A opinião de Igor Medeiros Fernandes, por sua vez, mostra o entendimento de que
há diferentes formas de apropriação e construção de significados sobre a experiência
temporal. Sua resposta dá mais ênfase a uma narrativa destoante da memória crítica do
período ditatorial, em que o mesmo é visto como um período em que a violência era menor
e a economia brasileira estava crescendo. “Os mais antigos”, como diz em sua fala, podem
ser entendidos como aqueles que viveram a Ditadura, o que significa que a compreensão de
seu real significado está ligada ao vivido. Ainda assim, ao discorrer sobre os seus
conhecimentos sobre o tema na pergunta anterior, a tortura e a falta de liberdade ganham
ênfase.

Assim, que ele tenha ressaltado em sua resposta à segunda pergunta o conhecimento
de uma visão nostálgica do período, não quer dizer que ele compartilhe dela. Seu
comentário parece ter como intento alcançar certa isenção sobre uma temática cujo caráter
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polêmico ele mesmo ressalta. Por último, Flávio Manoel Medeiros parece seguir um
caminho semelhante, com a particularidade de afirmar explicitamente que não possui
opinião sobre o tema, mas por outro lado saber que existem visões diferentes acerca.

Quando perguntados sobre o seu gosto pelos quadrinhos e com que frequência
costumam ler esse tipo de material, um total de dezenove alunos responderam de forma
afirmativa, frente a doze que responderam negativamente. Entre os que responderam sim,
as respostas variavam: alguns afirmaram de fato gostar, outros afirmaram gostar, mas que
apenas o faziam às vezes ou com pouca frequência; além disso, um dos alunos afirmou
gostar de HQs, mas não possuía muito acesso a elas. Apesar disso, a escola possui uma
biblioteca em cujo acervo há um número considerável de HQs. Além disso, há também uma
“cordelteca”, espaço dedicado à atividades de leitura e à exposição de produções dos
alunos. Nesse espaço, há também alguns livros em quadrinhos. Durante as atividades de
observação da disciplina de Estágio II, constatou-se que poucos estudantes frequentam
esses espaços.

Por outro lado, no que diz respeito da utilização desse tipo de mídia em sala de aula,
apenas dois responderam que de maneira negativa, o que significa que, até mesmo entre os
alunos que disseram considerar uma maneira de tornar as aulas mais atrativas.

- Sim, muito. Pois acredito nessa forma diferente e bem mais


atrativa de aprendizagem, principalmente para os jovens (Tiago
Mendonça Júnior, 17 anos).
- Sim, por que com desenhos é mais fácil a compreensão dos
conteúdos estudados (Ana Carolina Oliveira, 17 anos).
- Sim, se torna mais dinâmico (Maria Luiza Gouveia, 17 anos).

Analisando os comentários acima, é possível perceber opiniões que corroboram com


o que Fronza apontou, através de Hobsbawm, ou seja, o fato de que fazem parte de uma
cultura juvenil, o que os torna atrativos enquanto ferramenta metodológica no ensino. Além
disso, o dinamismo dessa linguagem em virtude da combinação entre imagem e texto que a
caracteriza, faz com que ela seja vista pelos alunos como uma forma de facilitar a
aprendizagem de determinado conteúdo, como visto nas respostas de Ana Luiza e Ridsielly.
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Contudo, alguns outros possuem uma visão diferente, ou seja, não


muito favorável: - Não, não acho muito prático (Hugo Teles da
Costa, 17 anos).
Não, poisos professores deveriam priorizar métodos mais precisos
para os alunos (Carla Cristina Felisberto, 17 anos).

Ambos não explicitaram o que significa um método prático e preciso. Ainda


assim, pode-se pensar que o caráter lúdico dos quadrinhos, ao mesmo tempo em que é uma
das razões de seu atrativo, acaba por ser também fonte de uma resistência considerável. De
fato, algumas questões sobre o uso de HQs no ensino precisam ser levantadas, em especial
no que diz respeito a produções de temática histórica. Vergueiro (2004) chama a atenção
para o anacronismo e as incongruências históricas. Muitos desses materiais, voltados a
atender fins muito mais comerciais do que educacionais acabam por colocar em primeiro
plano a ludicidade, razão pela qual é necessário um cuidado especial ao trazê-los para a sala
de aula.

A HQ Notas de um tempo silenciado foi apresentada aos alunos e ao professor.


Apesar de o tempo para a realização da atividade ter sido demasiado curto para permitir um
olhar mais detalhado sobre a obra, praticamente todos os que dela participaram tiveram
impressões positivas, com alguns alunos ser ela interessante por contar a história da
Ditadura de uma maneira até então não vista. Outros demonstraram interesse pelo material
pelo fato de conter histórias que não aparecem no livro didático. De fato, ao trazer em seu
conteúdo memórias até então esquecidas ou silenciadas abre espaço para uma nova
abordagem no ensino da Ditadura, para além de um conhecimento considerado consagrado,
imutável e absoluto.

Após a análise dos questionários aplicados aos alunos, passemos agora para as
perguntas feitas ao professor José Alberto Lima, 51 anos. Sobre como os alunos veem ou
percebem o tema, ele afirma: “a maioria não tem noção alguma desse período. Eles
nasceram depois e seus pais também não tiveram um contato com a história”. Em seguida,
quando se pergunta sobre a importância do estudo da Ditadura no atual contexto, ele diz: “É
de suma importância, pois precisamos conhecer a história desse período para criarmos uma
consciência nas pessoas, e não corrermos o risco de repetir esse grave erro histórico”.
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Percebe-se, mais uma vez, a noção do tempo como experiência (noção do que foi o
período, que, segundo ele, a maioria dos alunos não tem), e como ação (a preocupação em
se falar sobre o tema, algo que pôde ser notado na fala do estudante Jorge Marinheiro,
quando diz que a história tende a repetir-se, e daí a necessidade de discussão da temática).
A relação feita pelo professor e pelo aluno entre o contexto político brasileiro atual e as
circunstâncias que levaram aos acontecimentos de 1964 apresenta-se como uma
determinada maneira de atribuição de sentido ao passado, ligada às necessidades do
presente: em meio a um panorama atribulado com a polarização e a radicalização em meio
à sociedade, há uma necessidade de se manter vivo o debate em torno do tema, a fim de
evitar a repetição de um erro. Ao denominar assim o período, o professor aproxima-se de
uma memória crítica da Ditadura.

No que se refere ao uso de quadrinhos nas suas aulas, o professor afirma já ter
desenvolvido um trabalho nestes moldes, e considera a ideia interessante. Entretanto, ele
não descreveu em detalhes como essa experiência se deu (qual o assunto trabalhado, a
metodologia, os resultados, etc.). Limitou-se, assim, apenas a defender o uso de HQs no
ensino como uma forma de informar e educar. Fazendo-se isso, admite-se que esse tipo de
mídia, bastante presente na cultura juvenil, acaba por influenciar a leitura de mundo dos
alunos, e insere-se em um espaço de embates que é o campo da História Pública. Isso
porque diferentes setores da sociedade, organizações e veículos de mídia podem integrar
isso que Bauer (2018) denomina comunidades de memórias e práticas.

Pensar a relação entre ensino e História Pública compreende enxergar o exercício da


docência como uma integração constante entre pesquisa e ensino, uma vez que, diante de
um mundo vasto de discursos, apropriações do passado que estão constantemente no centro
de calorosos debates que emergem ao sabor das circunstâncias e necessidades do presente,
cabe ao professor e pesquisador, compreender e analisar as condições e as maneiras pelas
quais certos discursos são construídos e como eles impactam a construção do conhecimento
e, também, a formação histórica dos seus alunos. É através do viés crítico que os
historiadores e professores se inserem nesse contexto, disputando muitas vezes espaço com
outros referenciais, algo que pode ser visto facilmente nos dias atuais. Em meio ao grande
fluxo de informações e conteúdos produzidos de diversas maneiras (e não necessariamente
embasados na realidade), e influenciando a formação de opinião de milhões de pessoas,
reflexões sobre o papel do meio acadêmico e da escola frente a esse novo panorama.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concebida na necessidade de se falar em autoritarismo em tempos de divisão e


crise, “Notas de um tempo silenciado” é fruto de um trabalho que chega até nós como uma
espécie de aviso. É trazendo pequenos fragmentos da história até então silenciados ou
esquecidos pela historiografia tradicional que Robson Vilalba nos convida a uma reflexão
sobre os rumos que podemos tomar ao não falarmos sobre o que ele apresenta como um dos
períodos mais sombrios da experiência republicana brasileira. E ao fazer isso, ele se insere
nos embates da memória de 1964 corroborando com uma visão crítica do período, porém
acrescentando novos elementos que não possuem espaço nas narrativas hegemônicas.

Índios, negros, mulheres, grupos que costumam estar à margem da sociedade (ou
em notas de rodapé da história) aqui aparecem em primeiro plano. É plausível dizer que a
formação do autor enquanto sociólogo, a qual o proporcionou uma bagagem que o permite
compreender as relações e jogos de força que operam na sociedade, tenha influenciado a
escolha dos temas dos enredos nos quais a HQ é estruturada. Por outro lado, esse aspecto
também o faz entender o alcance e a importância de seu trabalho, dado o espaço que esse
formato de mídia ainda tem entre o público que faz parte de uma geração que não viveu o
contexto histórico retratado nas páginas de “Notas de um tempo silenciado”.

É preciso considerar que, embora seja um trabalho que se aproxime muito mais da
investigação jornalística do que de uma metodologia própria da ciência histórica, a HQ
pode nos levar, ainda assim, a repensar o conhecimento sobre a Ditadura. Por outro lado,
embora não a obra não tenha sido pensada para ser um recurso didático e pedagógico a ser
utilizado pelos professores, esse aspecto torna válido pensar as possibilidades de aplicação
nesse campo. Uma prova disso encontra-se em nas respostas às perguntas do questionário
aplicado em uma turma de terceiro ano do ensino médio da Escola Estadual Juscelino
Kubitscheck. Quando perguntados a respeito suas impressões sobre a HQ, alguns
afirmaram ser ela interessante por trazer histórias que não aparecem nos livros didáticos.

Apresentar aos alunos novos olhares é ajuda-los a entender que o conhecimento


histórico está em construção permanente, assim como abrir portas para um pensamento
questionador acerca do mesmo. No que diz respeito a uma temática sobre a qual ainda há
muitas coisas por serem aclaradas e que se mostra, hoje, de extrema relevância, isso é
fundamental. Entretanto, a HQ do sociólogo paranaense, por si só, não resolverá essa
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questão. Ainda assim, tem-se com ela um bom caminho a ser trilhado, para uma maneira
diferente de se ensinar a história período ditatorial, através da reflexão de acerca de um
passado autoritário, cujo fascínio que ainda exerce em certos segmentos sociais torna
essencial a formação de uma consciência histórica na formação cidadã e na defesa da
democracia, uma missão que advém de nosso lugar social enquanto historiadores, e que se
dá através de uma postura crítica e analítica dentro do debate da História pública, frente às
versões do passado que se constroem nas diversas comunidades de memória sobre a
Ditadura Civil-militar.
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FONTES
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2000.

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VILLALBA, Robson. Notas de um tempo silenciado. Porto Alegre: Besouro Box, 2015.

Cartuns de Henfil

Charges de Millor Fernandes

Charge da Folha de S. Paulo

Questionários aplicados a alunos e ao professor de História da Escola Estadual Juscelino


Kubitscheck em Dezembro de 2018.
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REFERÊNCIAS
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