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05 Revista

Nº5_ Março_2017
ISSN 2358-9841 PolitiKa

Situação internacional Como é o mundo que nos cerca


política externa brasileira | economia internacional | a geopolítica da ásia | o desenvolvimento
da áfrica | guerra na síria | estados unidos | geopolítica na rússia | rússia, estados unidos e europa
editorial 2
O desenvolvimento das relações internacionais

PolitiKa
Revista

Organização

Colaboração

Nº5 MARÇo 2017 | ISSN 2358-9841


Nº 5 _ MARÇO 2017
editorial 2
O desenvolvimento das relações internacionais

PolitiKa
Revista

Organização

Colaboração

Nº5 MARÇo 2017 | ISSN 2358-9841


Nº 5 _ MARÇO 2017
Revista PolitiKa

Conselho Editorial
Renato Casagrande
Carlos Siqueira
Fundação João MAngabeira

Conselho Curador

Presidente
Carlos Siqueira
Diretoria Executiva
DIRETOR Presidente
Renato Casagrande
sumário
Gesine Schwan

4 6 24
Alexander Blankenagel Diretor Financeiro
Membros Titulares Renato Xavier Thiebaut
César Benjamin
Marcia H. G. Rollemberg Diretor de Estudos e Pesquisas editorial política externa economia
Serafim Corrêa
Rafael Araripe Carneiro
Dalvino Troccoli Franca Milton Coelho da Silva Neto brasileira internacional
Adriano Sandri
Kátia Born A política externa brasileira A grande crise da
Paulo Bracarense Diretor de Cursos
Álvaro Cabral no ciclo do Partido dos década de 2010 e a
Manfred Nitsch Jocelino Francisco de Menezes reforma do
Adilson Gomes da Silva Trabalhadores: continuidades,
Osvaldo Saldías inovações e retrocessos capitalismo moderno
Eliane Novais
Tania Bacelar de Araújo (2003-2016)
Paulo Afonso Bracarense Equipe da FJM
Raimundo Pereira
Manoel Alexandre
Renato Fernando Cardim
Bruno da Mata
GERENTE EXECUTIVA Casagrande Antônio Carlos Lessa de Carvalho
Diretor REsponsável Márcia H. G. Rollemberg
James Lewis
Renato Casagrande Coordenação da Escola
Silvânio Medeiros dos Santos
João Mangabeira
Editor Francisco Cortez
Gabriel Gelpke Adriano Sandri
César Benjamin
Joilson Cardoso Assessoria de Comunicação
Coordenação editorial Handerson Siqueira

42 54
Marcia H. G. Rollemberg membros Suplentes Luciana Capiberibe
Jairon Alcir do Nascimento
Jornalista Responsável
Handerson Siqueira Paulo Blanco Barroso
Assistentes
Elsa Medeiros a geopolítica o desenvolvimento
Felipe Rocha Martins Mohamed Sadegh da ásia da áfrica
Revisão Henrique José Antão de Carvalho Bruna Lacerda
A nova geopolítica da Ásia África: O que quer que você
Tereza da Rocha Filipe Gomes Franca
após a Guerra Fria tenha pensado, repense –
Fernanda Regis Cavicchiolli Os dividendos da decepção,
Projeto Gráfico e Diagramação Conselho Fiscal
Auxiliares da dor e da vergonha
Traço Design
Cacilda de Oliveira Chequer Daniela Ferreira dos Santos
IMAGEM DE CAPA Ana Lúcia de Faria Nogueira Edson Martins dos Santos
Igor Stevanovic / Shutterstock.com Gerson Bento da Silva Filho Sebastião Antônio Correia Paulo G. Fagundes Visentini Célestin Monga

76 96
Copyright ©Fundação João Mangabeira 2017 Fundação João MAngabeira
Catalogação na Publicação (CIP) Sede própria – SHIS QI 5 – Conjunto 2 casa 2
CEP 71615-020 - Lago Sul - Brasília, DF
guerra na síria estados unidos
A ERA TRUMP
F981 Revista Politika [texto (recurso eletrônico)] Telefax: (61) 3365-4099/3365-5277/3365-5279 A Ressurreição de Ali –
www.fjmangabeira.org.br Considerações intempestivas
/ Fundação João Mangabeira. – Brasília: Editora FJM, www.tvjoaomangabeira.org.br sobre a Síria
nov.2014 – 128 p. : il. : color. – n. 5 (jan. 2017). facebook.com/Fjoaomangabeira - twitter.com/fj_mangabeira

Semestral Humboldt-Viadrina Governance Platform
Publicação on-line: Pariser Platz 6, Im Allianz Forum
10117 Berlin - Germany Rodrigo Karmy Bolton Kenneth Maxwell
<www.fjmangabeira.org.br/revistapolitika>
Tel. +49 30 2005 971 10
Organizador: César Benjamin.
office.schwan@humboldt-viadrina.org
ISSN: 2358-9841

1. Publicações – Periódicos. 2. Política – Periódicos. Acesse:

3. Políticas Públicas – Periódicos. I. Journal Politika. http://fjmangabeira.org.br/revistapolitika

102 112
II. Benjamin, César.

CDD 32(05) CDU: 320(051)


geopolítica rússia, estados
na rússia unidos e europa
Ficha catalográfica: A RÚSSIA, O OCIDENTE Diário de um colapso:
Wilians Juvêncio da Silva CRB 1/3140 – 1ªRegião. DOX E O RETORNO DA As relações externas entre a
GEOPOLÍTICA Federação Russa, os Estados
Unidos e os Estados da
Europa Ocidental
Periódico semestral impresso e digital
^
Tiragem em português: 2.000
Janis Berzins Alexander Blankenagel
´
Tiragem em inglês: 500 No seu smartphone ou tablet baixe aplicativos
Tiragem em espanhol: 500 gratuitos para leitura da Revista.

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


Revista PolitiKa

Conselho Editorial
Renato Casagrande
Carlos Siqueira
Fundação João MAngabeira

Conselho Curador

Presidente
Carlos Siqueira
Diretoria Executiva
DIRETOR Presidente
Renato Casagrande
sumário
Gesine Schwan

4 6 24
Alexander Blankenagel Diretor Financeiro
Membros Titulares Renato Xavier Thiebaut
César Benjamin
Marcia H. G. Rollemberg Diretor de Estudos e Pesquisas editorial política externa economia
Serafim Corrêa
Rafael Araripe Carneiro
Dalvino Troccoli Franca Milton Coelho da Silva Neto brasileira internacional
Adriano Sandri
Kátia Born A política externa brasileira A grande crise da
Paulo Bracarense Diretor de Cursos
Álvaro Cabral no ciclo do Partido dos década de 2010 e a
Manfred Nitsch Jocelino Francisco de Menezes reforma do
Adilson Gomes da Silva Trabalhadores: continuidades,
Osvaldo Saldías inovações e retrocessos capitalismo moderno
Eliane Novais
Tania Bacelar de Araújo (2003-2016)
Paulo Afonso Bracarense Equipe da FJM
Raimundo Pereira
Manoel Alexandre
Renato Fernando Cardim
Bruno da Mata
GERENTE EXECUTIVA Casagrande Antônio Carlos Lessa de Carvalho
Diretor REsponsável Márcia H. G. Rollemberg
James Lewis
Renato Casagrande Coordenação da Escola
Silvânio Medeiros dos Santos
João Mangabeira
Editor Francisco Cortez
Gabriel Gelpke Adriano Sandri
César Benjamin
Joilson Cardoso Assessoria de Comunicação
Coordenação editorial Handerson Siqueira

42 54
Marcia H. G. Rollemberg membros Suplentes Luciana Capiberibe
Jairon Alcir do Nascimento
Jornalista Responsável
Handerson Siqueira Paulo Blanco Barroso
Assistentes
Elsa Medeiros a geopolítica o desenvolvimento
Felipe Rocha Martins Mohamed Sadegh da ásia da áfrica
Revisão Henrique José Antão de Carvalho Bruna Lacerda
A nova geopolítica da Ásia África: O que quer que você
Tereza da Rocha Filipe Gomes Franca
após a Guerra Fria tenha pensado, repense –
Fernanda Regis Cavicchiolli Os dividendos da decepção,
Projeto Gráfico e Diagramação Conselho Fiscal
Auxiliares da dor e da vergonha
Traço Design
Cacilda de Oliveira Chequer Daniela Ferreira dos Santos
IMAGEM DE CAPA Ana Lúcia de Faria Nogueira Edson Martins dos Santos
Igor Stevanovic / Shutterstock.com Gerson Bento da Silva Filho Sebastião Antônio Correia Paulo G. Fagundes Visentini Célestin Monga

76 96
Copyright ©Fundação João Mangabeira 2017 Fundação João MAngabeira
Catalogação na Publicação (CIP) Sede própria – SHIS QI 5 – Conjunto 2 casa 2
CEP 71615-020 - Lago Sul - Brasília, DF
guerra na síria estados unidos
A ERA TRUMP
F981 Revista Politika [texto (recurso eletrônico)] Telefax: (61) 3365-4099/3365-5277/3365-5279 A Ressurreição de Ali –
www.fjmangabeira.org.br Considerações intempestivas
/ Fundação João Mangabeira. – Brasília: Editora FJM, www.tvjoaomangabeira.org.br sobre a Síria
nov.2014 – 128 p. : il. : color. – n. 5 (jan. 2017). facebook.com/Fjoaomangabeira - twitter.com/fj_mangabeira

Semestral Humboldt-Viadrina Governance Platform
Publicação on-line: Pariser Platz 6, Im Allianz Forum
10117 Berlin - Germany Rodrigo Karmy Bolton Kenneth Maxwell
<www.fjmangabeira.org.br/revistapolitika>
Tel. +49 30 2005 971 10
Organizador: César Benjamin.
office.schwan@humboldt-viadrina.org
ISSN: 2358-9841

1. Publicações – Periódicos. 2. Política – Periódicos. Acesse:

3. Políticas Públicas – Periódicos. I. Journal Politika. http://fjmangabeira.org.br/revistapolitika

102 112
II. Benjamin, César.

CDD 32(05) CDU: 320(051)


geopolítica rússia, estados
na rússia unidos e europa
Ficha catalográfica: A RÚSSIA, O OCIDENTE Diário de um colapso:
Wilians Juvêncio da Silva CRB 1/3140 – 1ªRegião. DOX E O RETORNO DA As relações externas entre a
GEOPOLÍTICA Federação Russa, os Estados
Unidos e os Estados da
Europa Ocidental
Periódico semestral impresso e digital
^
Tiragem em português: 2.000
Janis Berzins Alexander Blankenagel
´
Tiragem em inglês: 500 No seu smartphone ou tablet baixe aplicativos
Tiragem em espanhol: 500 gratuitos para leitura da Revista.

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


4 5
editorial Renato Casagrande Editorial

Na quinta edição da Revista Politika Unidas (ONU), passando a para o autoritarismo nacionalista. históricas, as heranças filosóficas e As mudanças, trazidas de fora para que vai da Europa ao Japão, abrigando 35
– publicação semestral da Fundação reivindicar para si um assento Cardim nos adverte de que, culturais, as estruturas sociais, o dentro, não geraram uma configuração línguas oficiais e 170 grupos étnicos que
João Mangabeira e da Universidade permanente no Conselho de também desse ponto de vista, desempenho econômico e as tradições estável. Na região, permanecem pulsantes formam nacionalidades próprias. Depois da
alemã Humboldt Viadrina – o tema Segurança. O governo buscou são altos os riscos presentes na administrativas nos 54 Estados membros não apenas disputas de fronteiras ou fracassada experiência neoliberal na década
central são as relações um projeto comum sul-americano situação mundial. da União Africana. Ao contrário do que rivalidades econômicas, mas questões muito de 1990, o país reencontrou em Vladimir
internacionais. Não é preciso dar e, em paralelo, apostou em Chegamos, então, aos recortes se pensa, o continente tem quase trinta mais fundamentais, como o próprio direito Putin o líder que representa suas aspirações
muitas explicações sobre isso: reconstruir a presença brasileira regionais, a começar pela Ásia, aqui países com renda média, e cerca de 300 à existência das entidades políticas que a de estabilidade e de reconhecimento como
qualquer observador atento na África, em ambos os casos apresentada por Paulo Visentini. milhões de pessoas já possuem um poder compõem. Guerras de sobrevivência grande potência. A expansão da Otan, que
Renato Casagrande percebe que as “placas impulsionando os interesses de Esse continente é a grande aquisitivo decente. nacional ainda estão na ordem do dia. Não passou a abranger inúmeros Estados que
Presidente da Fundação tectônicas” do atual sistema- grupos empresariais brasileiros incógnita atual. Abriga a segunda “Não há nada de intrinsecamente mau há acordo, sequer, sobre as regras do jogo. fazem fronteira com a Rússia, o
João Mangabeira.
mundo estão em movimento e nessas regiões. A Dilma Rousseff e a terceira maiores economias ou vergonhoso na África”, ele diz. “Ocorre A própria crença na legitimidade de Estados bombardeio da Sérvia sem autorização da
podem produzir terremotos. coube administrar o declínio dessas nacionais do mundo (China e apenas que o continente não conseguiu nacionais laicos, que para nós parece ONU, as guerras travadas no Afeganistão e
Há múltiplas crises superpostas, iniciativas, pois uma nova situação Japão), as duas potências arquitetar e sustentar o tipo de natural, é um credo alienígena em no Iraque, a desestabilização da Líbia e de
que se desenvolvem em diferentes internacional, mais desfavorável, emergentes (China e Índia), desenvolvimento industrial inclusivo que sociedades que, há mais de mil anos, se outros países árabes, a revogação do tratado
escalas temporais. O e uma perda gradativa da grandes massas demográficas transforma as sociedades, passando-as da organizam em torno de uma lei sagrada que de mísseis antibalísticos e a criação
prolongamento da crise econômica governabilidade interna minaram dotadas de alta laboriosidade, condição de baixa renda para a de alta governa toda a vida, inclusive a política. unilateral, pelos Estados Unidos, de um
iniciada em 2008 é apenas a face a capacidade de ação diplomática elevado dinamismo tecnológico, renda.” Essa constatação serve de ponto de Kenneth Maxwell, um dos mais escudo antimísseis – tudo isso reforçou,
mais superficial e imediata desse do novo governo petista. experiências de desenvolvimento partida para uma vigorosa reflexão sobre a conhecidos “brasilianistas” de língua inglesa, diante do governo russo, a imagem de um
contexto. No fundo das atuais A diplomacia presidencial de rápido, empresas e bancos de África contemporânea, feita com algum escreve, com apreensão, sobre a situação Ocidente não confiável.
tensões está a disputa secular pela Rousseff foi um rotundo grande porte, Estados nacionais otimismo: “A África pode saltar dos Estados Unidos e os possíveis impactos A busca de uma identidade, depois do
hegemonia entre, retrocesso, até mesmo porque vigorosos, com poder nuclear. Será diretamente para a economia global, do governo de Donald Trump: “Pela colapso da União Soviética, levou a um
de um lado, as potências marítimas a presidenta não demonstrou uma jogadora de grande peso no mediante a construção de parques primeira vez, o cidadão médio sente que novo fortalecimento do Estado e à
ocidentais, dominantes no mundo nenhum interesse pela agenda século que se inicia. industriais e zonas seus filhos não desfrutarão de uma vida revalorização do cristianismo ortodoxo
moderno, e as potências terrestres externa de seu próprio governo. A Ásia é grande demais e forte de processamento de exportações ligadas a melhor. Há um clima de profundo como religião nacional. Foi retomada a
asiáticas, que tentam recuperar sua Prosseguimos nossa análise com demais para ser engolida (como a mercados mundiais. Ela pode alavancar essas pessimismo. [...] A situação da classe ideia da singularidade russa, como
antiga relevância. a crise econômica internacional, América Latina), marginalizada zonas para atrair a indústria leve de trabalhadora assemelha-se às condições da sociedade, ao mesmo tempo, europeia e
Tentamos, aqui, oferecer um que Fernando Cardim de (como a África) ou derrotada economias mais avançadas, como fizeram os década de 1860, que deram origem a Karl asiática, zelosa de sua soberania e da
painel dessa situação tão complexa. Carvalho não hesita em qualificar (como a antiga União Soviética) países do Leste Asiático na década de 1960 Marx. Estamos navegando em direção a construção de uma posição relativamente
Começamos com a política como sendo marcada por uma pela ordem norte-americana. Mas e a China na década de 1980.” águas muito revoltas.” Para Maxwell, autárquica no mundo.
externa brasileira recente. depressão: “A característica mais tem grandes limitações: abriga A revista prossegue com o chileno outros outsiders podem vencer eleições em Janis
¯ Berzinš
¯´ lembra que Donald Trump
Antônio Carlos Lessa identifica importante da depressão não é extensas populações em estado de Rodrigo Karmy Bolton, especialista em países importantes. defende negociações a partir de posições de
fases antagônicas nos períodos em tanto a profundidade da contração pobreza e convive com importantes Oriente Médio. A região, como se sabe, O novo presidente norte-americano força, em que fique claro o papel
que o Partido dos Trabalhadores inicial, mas a dificuldade de a tensões internas de natureza é o berço de civilizações milenares. Do propõe uma espécie de contrarrevolução excepcional dos Estados Unidos, enquanto
exerceu o poder, com a economia retomar o ritmo anterior. histórica, nacional, étnica e ponto de vista político, porém, é uma oposta à globalização, com uma linguagem Alexander Blankenagel fala de um “colapso
diplomacia ambiciosa e até mesmo [...] As economias em depressão religiosa. Até hoje não conseguiu criação recentíssima. Resultou de decisões que recorre às raízes profundas do total das relações [entre a Rússia e o
voluntarista, praticada pelo podem retomar o crescimento, formular um projeto continental. tomadas pelos países vitoriosos na Primeira populismo do Centro-Oeste, impulsionado Ocidente], que dificilmente poderá ser
ex-presidente Lula, sendo porém com taxas baixas e voláteis, Ali, principal palco do xadrez Guerra Mundial, especialmente Inglaterra e pela profunda insatisfação com o status quo e revertido.” Também eles apontam para
substituída pela paralisia e por um além de configurações frágeis.” geopolítico entre Estados Unidos França, que desagregaram o Império a raiva contra políticos, banqueiros e líderes dificuldades crescentes.
colapso na credibilidade Depois da grave crise de 2008, e China, jogam-se os maiores Otomano (1299-1922), a única potência empresariais. “Estamos navegando em Nosso desafio é encontrar o lugar do
internacional do governo a ação dos governos evitou um desafios da ordem internacional muçulmana que desafiou a hegemonia direção a águas muito revoltas. Evitar Brasil neste mundo em que, como
brasileiro, sob a presidência de desastre como o de 1929, mas isso que prevalecerá no século XXI. europeia no mundo moderno. a xenofobia será difícil.” dissemos, as grandes “placas tectônicas” –
Dilma Rousseff. não foi suficiente para reposicionar Para escrever sobre a África, Novos países, com os respectivos A preocupação com Trump também notadamente, Estados Unidos, Rússia,
O início do grande ciclo de as economias desenvolvidas nos convidamos Célestin Monga, governos, foram fabricados pela Europa. está presente nos dois artigos que tratam das União Europeia e China – se movem em
demanda por commodities trilhos do crescimento sustentável. economista natural da República A Inglaterra inventou o Iraque e a Jordânia, relações entre a Rússia e o Ocidente: “A atrito, de forma imprevisível, mantendo
impulsionou o ativismo O comportamento atual dessas dos Camarões e que hoje trabalha traçou em um mapa as fronteiras retilíneas Rússia, o Ocidente e o retorno da todos os atores com a respiração suspensa,
diplomático do então presidente economias tem sido semelhante ao no Banco Africano de entre a Arábia Saudita e o Kwait, ¯ Berzinš,
geopolítica”, de Janis ¯ ´ da Letônia, à espera dos terremotos. Esta edição busca
Lula, visto como uma novidade no que aconteceu na década de 1930, Desenvolvimento. Já no título de transformou o Egito em protetorado e deu e “Diário de um colapso: as relações subsidiar um projeto nacional que não
cenário internacional. O Brasil com nove anos de crescimento seu artigo ele nos adverte: “O que abrigo, na Palestina, a um Lar Nacional externas entre a Federação Russa, os existirá se não compreender a evolução
buscou protagonismo em agendas lento e volátil. A isso se somam quer que você tenha pensado Judaico, precursor do Estado de Israel. Estados Unidos e os Estados da Europa histórica da nossa nação frente ao mundo
múltiplas, que impactavam diversas programas de austeridade que sobre a África, repense.” Sua A França decidiu como seriam a Síria e o Ocidental”, de Alexander Blankenagel, e a necessidade de articulação mundial para
regiões, e propôs reformas em integram estratégias regressivas primeira observação relevante é Líbano. A maior parte do mundo árabe foi da Alemanha. sermos mais do que espectadores dos
instituições importantes, a começar do ponto de vista social, associados que existem muitas Áfricas, pois dividida, basicamente, entre duas famílias, Eles nos lembram, em primeiro lugar, da movimentos globais.
da própria Organização das Nações a discursos que podem resvalar são diferentes as trajetórias que deveriam inagurar dinastias. enormidade da Rússia, com um território Boa leitura!

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


4 5
editorial Renato Casagrande Editorial

Na quinta edição da Revista Politika Unidas (ONU), passando a para o autoritarismo nacionalista. históricas, as heranças filosóficas e As mudanças, trazidas de fora para que vai da Europa ao Japão, abrigando 35
– publicação semestral da Fundação reivindicar para si um assento Cardim nos adverte de que, culturais, as estruturas sociais, o dentro, não geraram uma configuração línguas oficiais e 170 grupos étnicos que
João Mangabeira e da Universidade permanente no Conselho de também desse ponto de vista, desempenho econômico e as tradições estável. Na região, permanecem pulsantes formam nacionalidades próprias. Depois da
alemã Humboldt Viadrina – o tema Segurança. O governo buscou são altos os riscos presentes na administrativas nos 54 Estados membros não apenas disputas de fronteiras ou fracassada experiência neoliberal na década
central são as relações um projeto comum sul-americano situação mundial. da União Africana. Ao contrário do que rivalidades econômicas, mas questões muito de 1990, o país reencontrou em Vladimir
internacionais. Não é preciso dar e, em paralelo, apostou em Chegamos, então, aos recortes se pensa, o continente tem quase trinta mais fundamentais, como o próprio direito Putin o líder que representa suas aspirações
muitas explicações sobre isso: reconstruir a presença brasileira regionais, a começar pela Ásia, aqui países com renda média, e cerca de 300 à existência das entidades políticas que a de estabilidade e de reconhecimento como
qualquer observador atento na África, em ambos os casos apresentada por Paulo Visentini. milhões de pessoas já possuem um poder compõem. Guerras de sobrevivência grande potência. A expansão da Otan, que
Renato Casagrande percebe que as “placas impulsionando os interesses de Esse continente é a grande aquisitivo decente. nacional ainda estão na ordem do dia. Não passou a abranger inúmeros Estados que
Presidente da Fundação tectônicas” do atual sistema- grupos empresariais brasileiros incógnita atual. Abriga a segunda “Não há nada de intrinsecamente mau há acordo, sequer, sobre as regras do jogo. fazem fronteira com a Rússia, o
João Mangabeira.
mundo estão em movimento e nessas regiões. A Dilma Rousseff e a terceira maiores economias ou vergonhoso na África”, ele diz. “Ocorre A própria crença na legitimidade de Estados bombardeio da Sérvia sem autorização da
podem produzir terremotos. coube administrar o declínio dessas nacionais do mundo (China e apenas que o continente não conseguiu nacionais laicos, que para nós parece ONU, as guerras travadas no Afeganistão e
Há múltiplas crises superpostas, iniciativas, pois uma nova situação Japão), as duas potências arquitetar e sustentar o tipo de natural, é um credo alienígena em no Iraque, a desestabilização da Líbia e de
que se desenvolvem em diferentes internacional, mais desfavorável, emergentes (China e Índia), desenvolvimento industrial inclusivo que sociedades que, há mais de mil anos, se outros países árabes, a revogação do tratado
escalas temporais. O e uma perda gradativa da grandes massas demográficas transforma as sociedades, passando-as da organizam em torno de uma lei sagrada que de mísseis antibalísticos e a criação
prolongamento da crise econômica governabilidade interna minaram dotadas de alta laboriosidade, condição de baixa renda para a de alta governa toda a vida, inclusive a política. unilateral, pelos Estados Unidos, de um
iniciada em 2008 é apenas a face a capacidade de ação diplomática elevado dinamismo tecnológico, renda.” Essa constatação serve de ponto de Kenneth Maxwell, um dos mais escudo antimísseis – tudo isso reforçou,
mais superficial e imediata desse do novo governo petista. experiências de desenvolvimento partida para uma vigorosa reflexão sobre a conhecidos “brasilianistas” de língua inglesa, diante do governo russo, a imagem de um
contexto. No fundo das atuais A diplomacia presidencial de rápido, empresas e bancos de África contemporânea, feita com algum escreve, com apreensão, sobre a situação Ocidente não confiável.
tensões está a disputa secular pela Rousseff foi um rotundo grande porte, Estados nacionais otimismo: “A África pode saltar dos Estados Unidos e os possíveis impactos A busca de uma identidade, depois do
hegemonia entre, retrocesso, até mesmo porque vigorosos, com poder nuclear. Será diretamente para a economia global, do governo de Donald Trump: “Pela colapso da União Soviética, levou a um
de um lado, as potências marítimas a presidenta não demonstrou uma jogadora de grande peso no mediante a construção de parques primeira vez, o cidadão médio sente que novo fortalecimento do Estado e à
ocidentais, dominantes no mundo nenhum interesse pela agenda século que se inicia. industriais e zonas seus filhos não desfrutarão de uma vida revalorização do cristianismo ortodoxo
moderno, e as potências terrestres externa de seu próprio governo. A Ásia é grande demais e forte de processamento de exportações ligadas a melhor. Há um clima de profundo como religião nacional. Foi retomada a
asiáticas, que tentam recuperar sua Prosseguimos nossa análise com demais para ser engolida (como a mercados mundiais. Ela pode alavancar essas pessimismo. [...] A situação da classe ideia da singularidade russa, como
antiga relevância. a crise econômica internacional, América Latina), marginalizada zonas para atrair a indústria leve de trabalhadora assemelha-se às condições da sociedade, ao mesmo tempo, europeia e
Tentamos, aqui, oferecer um que Fernando Cardim de (como a África) ou derrotada economias mais avançadas, como fizeram os década de 1860, que deram origem a Karl asiática, zelosa de sua soberania e da
painel dessa situação tão complexa. Carvalho não hesita em qualificar (como a antiga União Soviética) países do Leste Asiático na década de 1960 Marx. Estamos navegando em direção a construção de uma posição relativamente
Começamos com a política como sendo marcada por uma pela ordem norte-americana. Mas e a China na década de 1980.” águas muito revoltas.” Para Maxwell, autárquica no mundo.
externa brasileira recente. depressão: “A característica mais tem grandes limitações: abriga A revista prossegue com o chileno outros outsiders podem vencer eleições em Janis
¯ Berzinš
¯´ lembra que Donald Trump
Antônio Carlos Lessa identifica importante da depressão não é extensas populações em estado de Rodrigo Karmy Bolton, especialista em países importantes. defende negociações a partir de posições de
fases antagônicas nos períodos em tanto a profundidade da contração pobreza e convive com importantes Oriente Médio. A região, como se sabe, O novo presidente norte-americano força, em que fique claro o papel
que o Partido dos Trabalhadores inicial, mas a dificuldade de a tensões internas de natureza é o berço de civilizações milenares. Do propõe uma espécie de contrarrevolução excepcional dos Estados Unidos, enquanto
exerceu o poder, com a economia retomar o ritmo anterior. histórica, nacional, étnica e ponto de vista político, porém, é uma oposta à globalização, com uma linguagem Alexander Blankenagel fala de um “colapso
diplomacia ambiciosa e até mesmo [...] As economias em depressão religiosa. Até hoje não conseguiu criação recentíssima. Resultou de decisões que recorre às raízes profundas do total das relações [entre a Rússia e o
voluntarista, praticada pelo podem retomar o crescimento, formular um projeto continental. tomadas pelos países vitoriosos na Primeira populismo do Centro-Oeste, impulsionado Ocidente], que dificilmente poderá ser
ex-presidente Lula, sendo porém com taxas baixas e voláteis, Ali, principal palco do xadrez Guerra Mundial, especialmente Inglaterra e pela profunda insatisfação com o status quo e revertido.” Também eles apontam para
substituída pela paralisia e por um além de configurações frágeis.” geopolítico entre Estados Unidos França, que desagregaram o Império a raiva contra políticos, banqueiros e líderes dificuldades crescentes.
colapso na credibilidade Depois da grave crise de 2008, e China, jogam-se os maiores Otomano (1299-1922), a única potência empresariais. “Estamos navegando em Nosso desafio é encontrar o lugar do
internacional do governo a ação dos governos evitou um desafios da ordem internacional muçulmana que desafiou a hegemonia direção a águas muito revoltas. Evitar Brasil neste mundo em que, como
brasileiro, sob a presidência de desastre como o de 1929, mas isso que prevalecerá no século XXI. europeia no mundo moderno. a xenofobia será difícil.” dissemos, as grandes “placas tectônicas” –
Dilma Rousseff. não foi suficiente para reposicionar Para escrever sobre a África, Novos países, com os respectivos A preocupação com Trump também notadamente, Estados Unidos, Rússia,
O início do grande ciclo de as economias desenvolvidas nos convidamos Célestin Monga, governos, foram fabricados pela Europa. está presente nos dois artigos que tratam das União Europeia e China – se movem em
demanda por commodities trilhos do crescimento sustentável. economista natural da República A Inglaterra inventou o Iraque e a Jordânia, relações entre a Rússia e o Ocidente: “A atrito, de forma imprevisível, mantendo
impulsionou o ativismo O comportamento atual dessas dos Camarões e que hoje trabalha traçou em um mapa as fronteiras retilíneas Rússia, o Ocidente e o retorno da todos os atores com a respiração suspensa,
diplomático do então presidente economias tem sido semelhante ao no Banco Africano de entre a Arábia Saudita e o Kwait, ¯ Berzinš,
geopolítica”, de Janis ¯ ´ da Letônia, à espera dos terremotos. Esta edição busca
Lula, visto como uma novidade no que aconteceu na década de 1930, Desenvolvimento. Já no título de transformou o Egito em protetorado e deu e “Diário de um colapso: as relações subsidiar um projeto nacional que não
cenário internacional. O Brasil com nove anos de crescimento seu artigo ele nos adverte: “O que abrigo, na Palestina, a um Lar Nacional externas entre a Federação Russa, os existirá se não compreender a evolução
buscou protagonismo em agendas lento e volátil. A isso se somam quer que você tenha pensado Judaico, precursor do Estado de Israel. Estados Unidos e os Estados da Europa histórica da nossa nação frente ao mundo
múltiplas, que impactavam diversas programas de austeridade que sobre a África, repense.” Sua A França decidiu como seriam a Síria e o Ocidental”, de Alexander Blankenagel, e a necessidade de articulação mundial para
regiões, e propôs reformas em integram estratégias regressivas primeira observação relevante é Líbano. A maior parte do mundo árabe foi da Alemanha. sermos mais do que espectadores dos
instituições importantes, a começar do ponto de vista social, associados que existem muitas Áfricas, pois dividida, basicamente, entre duas famílias, Eles nos lembram, em primeiro lugar, da movimentos globais.
da própria Organização das Nações a discursos que podem resvalar são diferentes as trajetórias que deveriam inagurar dinastias. enormidade da Rússia, com um território Boa leitura!

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


6 7
A política externa brasileira no ciclo do Partido dos Trabalhadores

A política externa brasileira no ciclo do


Partido dos Trabalhadores
continuidades, inovações e retrocessos (2003-2016)

Antônio Carlos Lessa A política externa dos dois governos de Lula da Silva foi arrojada, ambiciosa Esse trabalho toma por objetivo geral a análise
Professor do Instituto de Relações e se instruiu em ideias conceitualmente interessantes. O governo colecionou das estratégias de política externa desenhadas e im-
Internacionais da Universidade vitórias importantes em sua agenda externa, mas também sofreu derrotas plementadas entre 2003 e 2016. Entende-se que se
de Brasília – UnB, é editor-chefe
da Revista Brasileira de Política
graves e abandonou projetos no meio do caminho. No período de Dilma produziu uma plataforma de política externa que
Internacional – RBPI e pesquisador Rousseff, a perda da confiança dos agentes econômicos, o refluxo dos uniu os dois momentos do ciclo do PT no poder,
do Conselho Nacional de investidores estrangeiros, a deterioração do diálogo entre o Estado e a que conheceu fases de construção e ascensão, apo-
Desenvolvimento Científico
sociedade em torno de temas estratégicos e, no limite, o próprio colapso do geu e declínio. A fase de gestação e elaboração con-
e Tecnológico – CNPq.
governo tiveram pouco a ver com a qualidade ou com os desafios da ceitual é identificada com os dois governos de Lula
política externa, mas não há dúvida de que solaparam definitivamente a da Silva, e também é o seu apogeu, quando se de-
credibilidade internacional do governo. preende a ambição de convertê-lo em um modelo
de inserção internacional. A fase de declínio e o seu
colapso está inequivocamente relacionada com a im-
A eleição de Luís Inácio Lula da sorte, a depender da agenda exa- plementação desse projeto no governo Rousseff.
Silva como presidente do Brasil minada. O mesmo acontece com Não se fará um levantamento exaustivo e por-
em 2002 foi um dos fatos que mais a política externa implementada menorizado de todos os projetos e coalizões em que
chamaram a atenção da opinião nos três mandatos e meio, certa- o Brasil se envolveu, tampouco do vasto conjunto
pública internacional para o país mente. Mas há também um de- de temas em que é possível verificar inovação ou
em muitas décadas. Afinal, a che- safio analítico é até mais inquie- retrocesso. O critério metodológico utilizado para
gada ao poder do líder histórico tante do que a busca de explica- a valorização de determinados eventos no encadea-
da oposição, em um processo elei- ções para o soerguimento da mento desta análise é o da sua relevância para a ve-
toral tocado por normalidade, e agenda internacional no início rificação das continuidades nas plataformas de po-
com uma agenda política renova- do governo Lula da Silva, em lítica externa das últimas duas décadas, com interes-
da pela adoção de compromissos 2003. Trata-se do esforço para a se particular nas dos governos do ciclo do PT.
econômicos que o situaram no compreensão do seu ocaso, das
centro do espectro político, mar- descontinuidades e da perda de
cou em definitivo a trajetória do ef iciência das categorias e dos A era das grandes ambições
próprio Partido dos Trabalhadores conceitos os quais se apresenta- na política externa

CP DC Press/Shutterstock.com
(PT) e das esquerdas no Brasil. vam como um modelo de inser- O início do governo Lula da Silva se dá em um mo-
O ciclo do PT no poder no ção internacional, o que aconte- mento internacional dramático. Do ponto de vista
Brasil (2003-2016) inspira ava- ceu ainda no governo inacabado da alta política internacional, os primeiros meses do
liações contraditórias de toda a de Dilma Rousseff (2011-2016). já longínquo ano de 2003, que seria o primeiro do

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


6 7
A política externa brasileira no ciclo do Partido dos Trabalhadores

A política externa brasileira no ciclo do


Partido dos Trabalhadores
continuidades, inovações e retrocessos (2003-2016)

Antônio Carlos Lessa A política externa dos dois governos de Lula da Silva foi arrojada, ambiciosa Esse trabalho toma por objetivo geral a análise
Professor do Instituto de Relações e se instruiu em ideias conceitualmente interessantes. O governo colecionou das estratégias de política externa desenhadas e im-
Internacionais da Universidade vitórias importantes em sua agenda externa, mas também sofreu derrotas plementadas entre 2003 e 2016. Entende-se que se
de Brasília – UnB, é editor-chefe
da Revista Brasileira de Política
graves e abandonou projetos no meio do caminho. No período de Dilma produziu uma plataforma de política externa que
Internacional – RBPI e pesquisador Rousseff, a perda da confiança dos agentes econômicos, o refluxo dos uniu os dois momentos do ciclo do PT no poder,
do Conselho Nacional de investidores estrangeiros, a deterioração do diálogo entre o Estado e a que conheceu fases de construção e ascensão, apo-
Desenvolvimento Científico
sociedade em torno de temas estratégicos e, no limite, o próprio colapso do geu e declínio. A fase de gestação e elaboração con-
e Tecnológico – CNPq.
governo tiveram pouco a ver com a qualidade ou com os desafios da ceitual é identificada com os dois governos de Lula
política externa, mas não há dúvida de que solaparam definitivamente a da Silva, e também é o seu apogeu, quando se de-
credibilidade internacional do governo. preende a ambição de convertê-lo em um modelo
de inserção internacional. A fase de declínio e o seu
colapso está inequivocamente relacionada com a im-
A eleição de Luís Inácio Lula da sorte, a depender da agenda exa- plementação desse projeto no governo Rousseff.
Silva como presidente do Brasil minada. O mesmo acontece com Não se fará um levantamento exaustivo e por-
em 2002 foi um dos fatos que mais a política externa implementada menorizado de todos os projetos e coalizões em que
chamaram a atenção da opinião nos três mandatos e meio, certa- o Brasil se envolveu, tampouco do vasto conjunto
pública internacional para o país mente. Mas há também um de- de temas em que é possível verificar inovação ou
em muitas décadas. Afinal, a che- safio analítico é até mais inquie- retrocesso. O critério metodológico utilizado para
gada ao poder do líder histórico tante do que a busca de explica- a valorização de determinados eventos no encadea-
da oposição, em um processo elei- ções para o soerguimento da mento desta análise é o da sua relevância para a ve-
toral tocado por normalidade, e agenda internacional no início rificação das continuidades nas plataformas de po-
com uma agenda política renova- do governo Lula da Silva, em lítica externa das últimas duas décadas, com interes-
da pela adoção de compromissos 2003. Trata-se do esforço para a se particular nas dos governos do ciclo do PT.
econômicos que o situaram no compreensão do seu ocaso, das
centro do espectro político, mar- descontinuidades e da perda de
cou em definitivo a trajetória do ef iciência das categorias e dos A era das grandes ambições
próprio Partido dos Trabalhadores conceitos os quais se apresenta- na política externa

CP DC Press/Shutterstock.com
(PT) e das esquerdas no Brasil. vam como um modelo de inser- O início do governo Lula da Silva se dá em um mo-
O ciclo do PT no poder no ção internacional, o que aconte- mento internacional dramático. Do ponto de vista
Brasil (2003-2016) inspira ava- ceu ainda no governo inacabado da alta política internacional, os primeiros meses do
liações contraditórias de toda a de Dilma Rousseff (2011-2016). já longínquo ano de 2003, que seria o primeiro do

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política externa brasileira 8 9
Antônio Carlos Lessa A política externa brasileira no ciclo do Partido dos Trabalhadores

longo ciclo do Partido dos Traba- cialmente na superexploração da tos do controle da inf lação, signi- quências da desregulamentação tratégias de negociações comerciais
lhadores no poder no Brasil, foram imagem internacional de Lula da
Houve grande diferença no ficou o início da construção de global dos mercados financeiros. internacionais, meio ambiente, in-
marcados por medidas intensas e Silva e na curiosidade internacio- perfil da diplomacia exercida um grande mercado consumidor. Em função do crescimento da tegração regional e segurança in-
gestos dramáticos. A invasão do nal que a sua figura histórica então Porquanto se analisa atualmente a importância das commodities para ternacional (Sousa, 2009).
Iraque, em ação fulminante am- inspirava. A estratégia que se ar- por FHC e por Lula. Este intensidade da crise econômica a sua pauta de exportações, a Em outra direção, sob Lula da
parada por coalizão internacional quitetava, com muitos movimentos legada pelo insucesso das políticas economia brasileira também pas- Silva experimentou-se a reinstru-
que se aglutinou em torno dos Es- táticos perigosos e de resultados
último tentou apresentar o contracíclicas adotadas pelo go- sou por retrocessos, como conse- mentalização de uma categoriza-
tados Unidos, subscrevia as ações incertos, fazia uso intenso da di- Brasil como um ator com verno de Dilma Rousseff já a quências naturais do crescimento ção de ideias e de conceitos que
implementadas pelo governo de plomacia presidencial, do discurso partir de 2011, o fato é que o do peso dos produtos primários, era tradicional na inserção inter-
George W. Bush. Mais relevante da renovação e da reivindicação de capacidades de negociação crescimento do mercado consu- com uma natural desindustrializa- nacional do Brasil – como a pró-
do que a queda do regime baathis- reforma da política e das institui- midor estancou e retrocedeu. Na ção. Aliás, tal reversão na econo- pria noção de universalismo. In-
ta de Saddam Hussein foram os ções internacionais, para empres- muito mais amplas. sequência, essa deterioração dos mia foi bastante criticada como um cluem-se nessa perspectiva não
atos de humilhação pública im- tar-lhes a legitimidade necessária fundamentos da economia pôs a dos efeitos adversos do crescimen- apenas a ambição de dar ao Brasil
postos pela diplomacia de Washing- (Amorim, 2010). zoável estabilidade econômica in- perder uma das mais importantes to da importância da China no condições de se fazer presente nas
ton à Organização das Nações A estratégia inicialmente dese- terna no qual se encerrava o se- credenciais internacionais do Bra- Brasil e, por consequência, na po- discussões dos problemas políticos,
Unidas e o desafio ostensivo à con- nhada pelo primeiro governo Lu- gundo mandato de Lula da Silva, sil, qual seja, a configuração de lítica externa dos governos do ci- estratégicos e econômicos das re-
denação do uso intensivo e unila- la da Silva foi consistentemente im- em 2010, inspiraram a produção um grande mercado de massas. clo do PT. giões mais diversas do mundo, co-
teral da força. plementada ao longo dos outros de centenas de trabalhos científi- De todo modo, enquanto foi mo também uma variante relacio-
A grande política demandava dois mandatos e meio de governo cos e ensaios de toda a sorte, os possível colher os frutos da esta- nada com a própria expansão da
lideranças que fossem capazes de do PT – o segundo mandato de quais procuravam analisar as suas bilidade econômica, a continui-
O multilateralismo malha diplomática, o universalis-
oferecer visões mais positivas dos Lula e o mandato e meio de Dilma muitas facetas. Os dois mandatos dade no manejo dos fundamentos como espaço para mo geográfico, com o crescimen-
grandes problemas do mundo – Rousseff. É fato que essa repetição de Lula da Silva também corres- macroeconômicos se somou ao as grandes ambições to dramático do número de postos
que, no entendimento de muitos, experimentou oscilações e eviden- ponderam à nova era de ouro do início de um grande ciclo de cres- Na perspectiva das estratégias de e de representações diplomáticas.
não se resumiam à guerra global ciou certo cansaço, porque se tra- brasilianismo em nível global: po- cimento da demanda internacio- política externa, mais do que nos O multilateralismo já havia se
ao terror. Personalidades como o tava de uma fórmula inovadora dem ser contados às dezenas as te- nal por commodities, largamente seus movimentos táticos, observou- convertido em modo de operação
então presidente da França Jacques demais, excessivamente dependen- ses de doutorado e os estudos, li- tocada pelo dinamismo da China. -se uma notável continuidade no central e extremamente valoriza-
Chirac pontuaram uma crítica in- te de dinâmicas e fatores externos vros, coletâneas e seminários pro- Esse último fenômeno, típico dos que se desenhou e se realizou nos do pelo Brasil a partir do início
tensa à ação e aos modos de vio- muito propícios, e baseada na ex- duzidos sobre o Brasil nesse anos 2000, emprestou condições últimos 25 anos. Para além das con- dos anos 1990. No início do ciclo
lência empregados pelos Estados ploração positiva da figura do pri- momento, despertando um novo extraordinárias para o crescimen- sequências da estabilidade econô- do PT, definiu-se uma nova am-
Unidos para impor a sua visão de meiro mandatário, que não pôde vigor e um renovado interesse pe- to das vendas dos países primário- mica, que talvez seja o traço de bição relacionada com os espaços
segurança e de estabilidade do sis- ser aproveitada integralmente e com lo país em centros de estudos la- -exportadores. No caso do Brasil, união mais consistente a ligar a dé- multilaterais, como se verá com a
tema internacional. os mesmos resultados na sua sequ- tino-americanos de universidades facilitou a adoção de uma políti- cada de 1990 à primeira década de implementação daquela que pode
Nesta perspectiva, a eleição e o ência. De todo modo, no início do da Europa e dos Estados Unidos. ca de acumulação de reservas in- 2000 (portanto, dos governos de ser denominada a “grande meta
subsequente início do governo de ciclo do PT, o arcabouço de ideias Há bons motivos para esse re- ternacionais, a qual também teria Fernando Henrique Cardoso aos síntese” da política externa, qual
Lula da Silva no Brasil pareciam e de práticas planejadas para a polí- novado interesse pelo Brasil. Com consequências positivas para a de Lula da Silva), a configuração seja, a reforma das instituições em
ser o começo de um processo de tica externa se apresentava como con- efeito, o país experimentou trans- imagem internacional do país, de um perfil internacional crescen- geral (como reivindicação da am-
renovação da política internacional ceitualmente interessante, e a sua formações intensas ao longo dos permitindo-lhe, pela primeira temente assertivo e mais engajado pliação das suas condições de le-
– porque o mundo de então care- evolução ao longo dos anos seguin- últimos 25 anos, que tiveram con- vez, inverter o papel tradicional em agendas múltiplas é o fator que gitimidade) e, claro, a reivindica-
cia de abordagens novas, lideranças tes permitiu a conclusão de que ha- sequências dramáticas para o seu de devedor. Também injetou con- une as duas metades desse período. ção de um assento permanente
novas e agendas novas que fossem via também um número muito ele- perfil econômico, social, político fiança suficiente para que o Bra- Há uma grande diferença de estilo para o Brasil no Conselho de Se-
capazes de suplantar as visões im- vado de tensões mal compreendidas e internacional. A estabilidade eco- sil, no contexto da crise finan- diplomático a partir de 2003, e viu- gurança da Organização das Na-
periais da política internacional. E e um cálculo político malfeito em nômica adquirida com o Plano ceira global de 2008, se pusesse a -se também a definição de novas ções Unidas.
a política externa do primeiro go- muitas dimensões da política exter- Real, conquistada no governo Fer- exigir a reforma das instituições prioridades com a articulação de Seria possível ler e enquadrar
verno do PT começava a ser me- na (Cervo, 2010). nando Henrique Cardoso (1995- de Bretton Woods. Tanto Lula da ativos diplomáticos que vinham boa parte dos movimentos táticos
ticulosamente desenhada para cor- As inovações conceituais que 2002) e consistentemente perse- Silva quanto Rousseff pontifica- sendo redefinidos e realinhados sob implementados nos dois governos
responder a essa demanda global alinhavavam a estratégia de polí- guida no governo Lula da Silva, ram sobre os erros dos países ricos Cardoso, como é o caso das posi- de Lula da Silva na perspectiva
por legitimidade, baseando-se ini- tica externa e o momento de ra- com a manutenção dos fundamen- e pregaram lições sobre as conse- ções estabelecidas em torno das es- dessa ambição, e citamos aqui al-

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Antônio Carlos Lessa A política externa brasileira no ciclo do Partido dos Trabalhadores

longo ciclo do Partido dos Traba- cialmente na superexploração da tos do controle da inf lação, signi- quências da desregulamentação tratégias de negociações comerciais
lhadores no poder no Brasil, foram imagem internacional de Lula da
Houve grande diferença no ficou o início da construção de global dos mercados financeiros. internacionais, meio ambiente, in-
marcados por medidas intensas e Silva e na curiosidade internacio- perfil da diplomacia exercida um grande mercado consumidor. Em função do crescimento da tegração regional e segurança in-
gestos dramáticos. A invasão do nal que a sua figura histórica então Porquanto se analisa atualmente a importância das commodities para ternacional (Sousa, 2009).
Iraque, em ação fulminante am- inspirava. A estratégia que se ar- por FHC e por Lula. Este intensidade da crise econômica a sua pauta de exportações, a Em outra direção, sob Lula da
parada por coalizão internacional quitetava, com muitos movimentos legada pelo insucesso das políticas economia brasileira também pas- Silva experimentou-se a reinstru-
que se aglutinou em torno dos Es- táticos perigosos e de resultados
último tentou apresentar o contracíclicas adotadas pelo go- sou por retrocessos, como conse- mentalização de uma categoriza-
tados Unidos, subscrevia as ações incertos, fazia uso intenso da di- Brasil como um ator com verno de Dilma Rousseff já a quências naturais do crescimento ção de ideias e de conceitos que
implementadas pelo governo de plomacia presidencial, do discurso partir de 2011, o fato é que o do peso dos produtos primários, era tradicional na inserção inter-
George W. Bush. Mais relevante da renovação e da reivindicação de capacidades de negociação crescimento do mercado consu- com uma natural desindustrializa- nacional do Brasil – como a pró-
do que a queda do regime baathis- reforma da política e das institui- midor estancou e retrocedeu. Na ção. Aliás, tal reversão na econo- pria noção de universalismo. In-
ta de Saddam Hussein foram os ções internacionais, para empres- muito mais amplas. sequência, essa deterioração dos mia foi bastante criticada como um cluem-se nessa perspectiva não
atos de humilhação pública im- tar-lhes a legitimidade necessária fundamentos da economia pôs a dos efeitos adversos do crescimen- apenas a ambição de dar ao Brasil
postos pela diplomacia de Washing- (Amorim, 2010). zoável estabilidade econômica in- perder uma das mais importantes to da importância da China no condições de se fazer presente nas
ton à Organização das Nações A estratégia inicialmente dese- terna no qual se encerrava o se- credenciais internacionais do Bra- Brasil e, por consequência, na po- discussões dos problemas políticos,
Unidas e o desafio ostensivo à con- nhada pelo primeiro governo Lu- gundo mandato de Lula da Silva, sil, qual seja, a configuração de lítica externa dos governos do ci- estratégicos e econômicos das re-
denação do uso intensivo e unila- la da Silva foi consistentemente im- em 2010, inspiraram a produção um grande mercado de massas. clo do PT. giões mais diversas do mundo, co-
teral da força. plementada ao longo dos outros de centenas de trabalhos científi- De todo modo, enquanto foi mo também uma variante relacio-
A grande política demandava dois mandatos e meio de governo cos e ensaios de toda a sorte, os possível colher os frutos da esta- nada com a própria expansão da
lideranças que fossem capazes de do PT – o segundo mandato de quais procuravam analisar as suas bilidade econômica, a continui-
O multilateralismo malha diplomática, o universalis-
oferecer visões mais positivas dos Lula e o mandato e meio de Dilma muitas facetas. Os dois mandatos dade no manejo dos fundamentos como espaço para mo geográfico, com o crescimen-
grandes problemas do mundo – Rousseff. É fato que essa repetição de Lula da Silva também corres- macroeconômicos se somou ao as grandes ambições to dramático do número de postos
que, no entendimento de muitos, experimentou oscilações e eviden- ponderam à nova era de ouro do início de um grande ciclo de cres- Na perspectiva das estratégias de e de representações diplomáticas.
não se resumiam à guerra global ciou certo cansaço, porque se tra- brasilianismo em nível global: po- cimento da demanda internacio- política externa, mais do que nos O multilateralismo já havia se
ao terror. Personalidades como o tava de uma fórmula inovadora dem ser contados às dezenas as te- nal por commodities, largamente seus movimentos táticos, observou- convertido em modo de operação
então presidente da França Jacques demais, excessivamente dependen- ses de doutorado e os estudos, li- tocada pelo dinamismo da China. -se uma notável continuidade no central e extremamente valoriza-
Chirac pontuaram uma crítica in- te de dinâmicas e fatores externos vros, coletâneas e seminários pro- Esse último fenômeno, típico dos que se desenhou e se realizou nos do pelo Brasil a partir do início
tensa à ação e aos modos de vio- muito propícios, e baseada na ex- duzidos sobre o Brasil nesse anos 2000, emprestou condições últimos 25 anos. Para além das con- dos anos 1990. No início do ciclo
lência empregados pelos Estados ploração positiva da figura do pri- momento, despertando um novo extraordinárias para o crescimen- sequências da estabilidade econô- do PT, definiu-se uma nova am-
Unidos para impor a sua visão de meiro mandatário, que não pôde vigor e um renovado interesse pe- to das vendas dos países primário- mica, que talvez seja o traço de bição relacionada com os espaços
segurança e de estabilidade do sis- ser aproveitada integralmente e com lo país em centros de estudos la- -exportadores. No caso do Brasil, união mais consistente a ligar a dé- multilaterais, como se verá com a
tema internacional. os mesmos resultados na sua sequ- tino-americanos de universidades facilitou a adoção de uma políti- cada de 1990 à primeira década de implementação daquela que pode
Nesta perspectiva, a eleição e o ência. De todo modo, no início do da Europa e dos Estados Unidos. ca de acumulação de reservas in- 2000 (portanto, dos governos de ser denominada a “grande meta
subsequente início do governo de ciclo do PT, o arcabouço de ideias Há bons motivos para esse re- ternacionais, a qual também teria Fernando Henrique Cardoso aos síntese” da política externa, qual
Lula da Silva no Brasil pareciam e de práticas planejadas para a polí- novado interesse pelo Brasil. Com consequências positivas para a de Lula da Silva), a configuração seja, a reforma das instituições em
ser o começo de um processo de tica externa se apresentava como con- efeito, o país experimentou trans- imagem internacional do país, de um perfil internacional crescen- geral (como reivindicação da am-
renovação da política internacional ceitualmente interessante, e a sua formações intensas ao longo dos permitindo-lhe, pela primeira temente assertivo e mais engajado pliação das suas condições de le-
– porque o mundo de então care- evolução ao longo dos anos seguin- últimos 25 anos, que tiveram con- vez, inverter o papel tradicional em agendas múltiplas é o fator que gitimidade) e, claro, a reivindica-
cia de abordagens novas, lideranças tes permitiu a conclusão de que ha- sequências dramáticas para o seu de devedor. Também injetou con- une as duas metades desse período. ção de um assento permanente
novas e agendas novas que fossem via também um número muito ele- perfil econômico, social, político fiança suficiente para que o Bra- Há uma grande diferença de estilo para o Brasil no Conselho de Se-
capazes de suplantar as visões im- vado de tensões mal compreendidas e internacional. A estabilidade eco- sil, no contexto da crise finan- diplomático a partir de 2003, e viu- gurança da Organização das Na-
periais da política internacional. E e um cálculo político malfeito em nômica adquirida com o Plano ceira global de 2008, se pusesse a -se também a definição de novas ções Unidas.
a política externa do primeiro go- muitas dimensões da política exter- Real, conquistada no governo Fer- exigir a reforma das instituições prioridades com a articulação de Seria possível ler e enquadrar
verno do PT começava a ser me- na (Cervo, 2010). nando Henrique Cardoso (1995- de Bretton Woods. Tanto Lula da ativos diplomáticos que vinham boa parte dos movimentos táticos
ticulosamente desenhada para cor- As inovações conceituais que 2002) e consistentemente perse- Silva quanto Rousseff pontifica- sendo redefinidos e realinhados sob implementados nos dois governos
responder a essa demanda global alinhavavam a estratégia de polí- guida no governo Lula da Silva, ram sobre os erros dos países ricos Cardoso, como é o caso das posi- de Lula da Silva na perspectiva
por legitimidade, baseando-se ini- tica externa e o momento de ra- com a manutenção dos fundamen- e pregaram lições sobre as conse- ções estabelecidas em torno das es- dessa ambição, e citamos aqui al-

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política externa brasileira 10 11
Antônio Carlos Lessa A política externa brasileira no ciclo do Partido dos Trabalhadores

guns deles: a aceitação do coman- ropeu, um tanto em detrimento ser visto como um ator com ca-
do da complexa Missão das Na- dos interesses dos países em de- pacidades políticas e de negocia-
ções Unidas para a Estabilização senvolvimento. O exercício do ção diferenciadas e, portanto,
do Haiti (Minustah, na sigla em mandato negociador pelo Brasil capaz de ser tomado como um
inglês), a partir de 2004; o papel no desenrolar da Rodada Doha membro natural do Conselho de
de protagonismo discreto e be- foi responsável, mas também evi- Segurança da ONU (Barros-Pla-
nevolente na construção da esta- denciou que o governo brasileiro tiau, 2010).
bilidade na América do Sul; a tinha apostado muito na conclu- As agendas relacionadas com
busca do reconhecimento inter- são com sucesso desse processo, meio ambiente em geral e, mais
nacional de um peso político e o que de fato não aconteceu, co- particularmente, com mudanças
estratégico específico diferencia- mo se viu no grande impasse e na climáticas foram tratadas com
do; a intensidade da expansão da paralisação dessas negociações em crescente entusiasmo por parte
malha diplomática; a política de 2008 (Visentini, 2010). do governo brasileiro, sempre em
cooperação para o desenvolvi- A aposta de todas as fichas na busca de ser tido como um ator
mento (Lessa, Couto e Farias, liberalização comercial “por ci- inafastável de agendas centrais
2009). Incluem-se também epi- ma”, ou seja, a partir de novos da política internacional – o que

wikimedia commons - RoyFocker 12


sódios mais pitorescos, nos quais compromissos na OMC, fez com não significa que os seus com-
o governo talvez tenha buscado que o governo de Lula da Silva promissos tenham sido bem sin-
de modo mais imediato o pres- sacrificasse a possibilidade de dar tetizados no nível doméstico, ou
tígio decorrente da demonstração sequência a outros processos ne- que se pretendesse levar realmen-
de capacidade de mediação, co- gociadores, como o polêmico e te a sério as metas ofertadas para
mo a negociação em torno do complexo acordo para o estabe- as limitações voluntárias dos ní-
programa nuclear iraniano (2010), lecimento da Área de Livre Co- veis de emissões de gases de efei-
na qual f icou evidente que o mércio das Américas – ALCA, e to estufa (Carvalho, 2012). Nes- garização, foi certamente corrom-
país não tinha, de fato, peso di- também pusesse em compasso de se sentido, à performance de Lula
Entre velhas e
pido. O governo não foi capaz,
Ao contrário do que se
novas parcerias
plomático suficiente para mane- espera a negociação do acordo da Silva na Conferência de Co- entretanto, de encontrar outra for- pensa, a ascensão de
jar com sucesso operações de de liberalização das relações co- penhague, com a oferta de bons No plano das relações bilaterais, ma de qualificar esse novo uni-
maior envergadura sem inspirar merciais entre o Mercosul e a níveis de controle de emissões, há pouca mudança notável e ob- versalismo e de emprestar alguma regimes populistas no
desconfiança (Mendes, 2015). União Europeia. Em síntese, fo- seguiram-se engajamentos mais servou-se um padrão incremental organicidade e inteligibilidade à
A intensidade com que o Bra- ram tão altas as ambições do Bra- limitados, como se viu na reali- com relação ao perfil da política fúria do crescimento desorgani-
continente gerou mais
sil sob Lula da Silva se entregou sil na agenda da reconfiguração zação da Conferência realizada legada pelo governo Cardoso (Sil- zado de tantos novos projetos bi- desconforto no Brasil
à busca de um novo perfil nas da geometria comercial interna- no Rio de Janeiro em 2012 e va, 2015). Os relacionamentos bi- laterais, cada um se anunciando
negociações comerciais interna- cional (como se resumiam, com mesmo na Conferência das Par- laterais tradicionais com os Estados mais inovador e urgente do que que nos EUA, pelo
cionais talvez seja um dos mais certa empáfia, as intenções do tes de Paris, em dezembro de Unidos e com o conjunto europeu outro (Lessa, 2010).
interessantes dossiês do ciclo do país), que o resultado não pode 2015, que finalmente substituiu foram preservados, ao contrário Em que pese a expectativa de
efeito desestabilizador
PT. O fato é que já a partir da ser qualificado de outro modo o Protocolo de Quioto. Nessa do que foi alertado e criticado por que o relacionamento do Brasil de que eles tiveram.
Conferência Ministerial da Or- – um erro crasso de estratégia e, evolução, o Brasil oscilou entre muitos que viam uma tendência Lula da Silva com os Estados Uni-
ganização Mundial do Comércio portanto, uma experiência abso- o alinhamento com potências ao enfraquecimento dessas relações dos de George W. Bush pudesse
realizada em Cancún, em 2003, lutamente frustrante. conservadoras e o desempenho diante do ímpeto universalista e se deteriorar de modo dramático,
o Brasil passou a reivindicar um Outro tema exaustivamente do papel de liderança criativa, das aberturas radicais ao Sul em- considerando as diferenças que os
papel de protagonista com base elaborado nos espaços multila- demonstrando boa capacidade de preendidas logo no início da im- dois governos (e também os dois
na constatação de que as grandes terais foi a agenda ambiental. Ela articulação e de proposição e plementação da política externa presidentes) tinham em torno de
questões do comércio internacio- teve desenvolvimento diferente, abandonando o papel reativo e do governo Lula da Silva. O con- temas centrais da agenda interna-
nal e os ciclos de liberalização mais realista, em que pese o fa- secundário que tradicionalmen- ceito tradicional de parceria estra- cional, o que se percebeu foi, ao
comercial tinham sido decididos, to de que se conectava também te desempenhava em teatros des- tégica foi trazido para o centro da contrário, o desenvolvimento de
até aquele momento, pelos Esta- com a realização da grande “me- sa natureza (Inoue, 2012; Viola formulação da estratégia interna- um relacionamento criativo, sem
dos Unidos e pelo conjunto eu- ta síntese” – a de fazer o Brasil e Basso, 2016). cional e, diante da sua brutal vul- muitas inovações importantes, mas

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política externa brasileira 10 11
Antônio Carlos Lessa A política externa brasileira no ciclo do Partido dos Trabalhadores

guns deles: a aceitação do coman- ropeu, um tanto em detrimento ser visto como um ator com ca-
do da complexa Missão das Na- dos interesses dos países em de- pacidades políticas e de negocia-
ções Unidas para a Estabilização senvolvimento. O exercício do ção diferenciadas e, portanto,
do Haiti (Minustah, na sigla em mandato negociador pelo Brasil capaz de ser tomado como um
inglês), a partir de 2004; o papel no desenrolar da Rodada Doha membro natural do Conselho de
de protagonismo discreto e be- foi responsável, mas também evi- Segurança da ONU (Barros-Pla-
nevolente na construção da esta- denciou que o governo brasileiro tiau, 2010).
bilidade na América do Sul; a tinha apostado muito na conclu- As agendas relacionadas com
busca do reconhecimento inter- são com sucesso desse processo, meio ambiente em geral e, mais
nacional de um peso político e o que de fato não aconteceu, co- particularmente, com mudanças
estratégico específico diferencia- mo se viu no grande impasse e na climáticas foram tratadas com
do; a intensidade da expansão da paralisação dessas negociações em crescente entusiasmo por parte
malha diplomática; a política de 2008 (Visentini, 2010). do governo brasileiro, sempre em
cooperação para o desenvolvi- A aposta de todas as fichas na busca de ser tido como um ator
mento (Lessa, Couto e Farias, liberalização comercial “por ci- inafastável de agendas centrais
2009). Incluem-se também epi- ma”, ou seja, a partir de novos da política internacional – o que

wikimedia commons - RoyFocker 12


sódios mais pitorescos, nos quais compromissos na OMC, fez com não significa que os seus com-
o governo talvez tenha buscado que o governo de Lula da Silva promissos tenham sido bem sin-
de modo mais imediato o pres- sacrificasse a possibilidade de dar tetizados no nível doméstico, ou
tígio decorrente da demonstração sequência a outros processos ne- que se pretendesse levar realmen-
de capacidade de mediação, co- gociadores, como o polêmico e te a sério as metas ofertadas para
mo a negociação em torno do complexo acordo para o estabe- as limitações voluntárias dos ní-
programa nuclear iraniano (2010), lecimento da Área de Livre Co- veis de emissões de gases de efei-
na qual f icou evidente que o mércio das Américas – ALCA, e to estufa (Carvalho, 2012). Nes- garização, foi certamente corrom-
país não tinha, de fato, peso di- também pusesse em compasso de se sentido, à performance de Lula
Entre velhas e
pido. O governo não foi capaz,
Ao contrário do que se
novas parcerias
plomático suficiente para mane- espera a negociação do acordo da Silva na Conferência de Co- entretanto, de encontrar outra for- pensa, a ascensão de
jar com sucesso operações de de liberalização das relações co- penhague, com a oferta de bons No plano das relações bilaterais, ma de qualificar esse novo uni-
maior envergadura sem inspirar merciais entre o Mercosul e a níveis de controle de emissões, há pouca mudança notável e ob- versalismo e de emprestar alguma regimes populistas no
desconfiança (Mendes, 2015). União Europeia. Em síntese, fo- seguiram-se engajamentos mais servou-se um padrão incremental organicidade e inteligibilidade à
A intensidade com que o Bra- ram tão altas as ambições do Bra- limitados, como se viu na reali- com relação ao perfil da política fúria do crescimento desorgani-
continente gerou mais
sil sob Lula da Silva se entregou sil na agenda da reconfiguração zação da Conferência realizada legada pelo governo Cardoso (Sil- zado de tantos novos projetos bi- desconforto no Brasil
à busca de um novo perfil nas da geometria comercial interna- no Rio de Janeiro em 2012 e va, 2015). Os relacionamentos bi- laterais, cada um se anunciando
negociações comerciais interna- cional (como se resumiam, com mesmo na Conferência das Par- laterais tradicionais com os Estados mais inovador e urgente do que que nos EUA, pelo
cionais talvez seja um dos mais certa empáfia, as intenções do tes de Paris, em dezembro de Unidos e com o conjunto europeu outro (Lessa, 2010).
interessantes dossiês do ciclo do país), que o resultado não pode 2015, que finalmente substituiu foram preservados, ao contrário Em que pese a expectativa de
efeito desestabilizador
PT. O fato é que já a partir da ser qualificado de outro modo o Protocolo de Quioto. Nessa do que foi alertado e criticado por que o relacionamento do Brasil de que eles tiveram.
Conferência Ministerial da Or- – um erro crasso de estratégia e, evolução, o Brasil oscilou entre muitos que viam uma tendência Lula da Silva com os Estados Uni-
ganização Mundial do Comércio portanto, uma experiência abso- o alinhamento com potências ao enfraquecimento dessas relações dos de George W. Bush pudesse
realizada em Cancún, em 2003, lutamente frustrante. conservadoras e o desempenho diante do ímpeto universalista e se deteriorar de modo dramático,
o Brasil passou a reivindicar um Outro tema exaustivamente do papel de liderança criativa, das aberturas radicais ao Sul em- considerando as diferenças que os
papel de protagonista com base elaborado nos espaços multila- demonstrando boa capacidade de preendidas logo no início da im- dois governos (e também os dois
na constatação de que as grandes terais foi a agenda ambiental. Ela articulação e de proposição e plementação da política externa presidentes) tinham em torno de
questões do comércio internacio- teve desenvolvimento diferente, abandonando o papel reativo e do governo Lula da Silva. O con- temas centrais da agenda interna-
nal e os ciclos de liberalização mais realista, em que pese o fa- secundário que tradicionalmen- ceito tradicional de parceria estra- cional, o que se percebeu foi, ao
comercial tinham sido decididos, to de que se conectava também te desempenhava em teatros des- tégica foi trazido para o centro da contrário, o desenvolvimento de
até aquele momento, pelos Esta- com a realização da grande “me- sa natureza (Inoue, 2012; Viola formulação da estratégia interna- um relacionamento criativo, sem
dos Unidos e pelo conjunto eu- ta síntese” – a de fazer o Brasil e Basso, 2016). cional e, diante da sua brutal vul- muitas inovações importantes, mas

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


política externa brasileira 12 13
Antônio Carlos Lessa A política externa brasileira no ciclo do Partido dos Trabalhadores

também sem retrocessos. No que Latina. As relações com os países liderança que países como o Bra- da em 2010 como herdeira do
diz respeito às relações entre Bra- europeus, individualmente, já vi- sil desempenhavam na região,
A presença chinesa no Brasil cresceu Grupo do Rio e da Cúpula da
sil e Estados Unidos, portanto, o nham em rumo ascendente, com sem lhes causar maiores cons- de forma espetacular na política, na América Latina e Caribe sobre
governo Lula da Silva navegou em incrementos decisivos a partir de trangimentos (Burges, 2015; Ma- Integração e Desenvolvimento,
mar manso, graças ao esforço des- meados da década de 1990, com lamud, 2011; Wehner, 2015). diplomacia e na economia. Ganharam com a ambição de estabelecer um
comunal empreendido pela diplo- a estabilidade econômica e polí- A política externa do governo processo de cooperação que
macia de Cardoso, anos antes, em tica brasileira. Com o velho con- Lula da Silva estabeleceu uma ação
grande destaque os investimentos abrangesse toda a região latino-
torno da normalização do relacio- tinente, portanto, a política ex- de continuidade na América do chineses realizados aqui. -americana e caribenha (Briceño-
namento bilateral e da superação terna de Lula da Silva construiu Sul, marcada pelo pragmatismo e -Ruiz, 2010; Gardini, 2011).
do quadro histórico de tensão e, sobre terreno firme. pelo esforço consistente de impul- A reconstrução da presença
caracteristicamente, de deteriora- O governo norte-americano sionar os interesses dos atores eco- crise econômica no país vizinho, vogar abertamente a conversão do brasileira na África é um dos mo-
ção (Pecequilo, 2010). tomou a América do Sul como nômicos brasileiros na região. A experimentou altos e baixos na grande projeto brasileiro-argenti- vimentos mais interessantes em-
As relações do Brasil com o zona secundária, sendo coerente definição de mecanismos de finan- dimensão política, e andou de la- no em uma zona de livre comér- preendidos no contexto da polí-
conjunto europeu evoluíram sob com o padrão desenvolvido ao ciamento para as empresas brasilei- do na dimensão econômica. O cio ordinária, devolvendo aos só- tica externa do governo Lula da
Lula da Silva para um arranjo so- longo das últimas décadas, im- ras facilitou-lhes a expansão pelas presidente Nestor Kirchner (2003- cios a capacidade de negociarem Silva. Em que pese o fato de exis-
fisticado, nos marcos da definição portando-se mais diretamente economias da região, proporcio- 2007) foi hostil às ambições de sozinhos acordos comerciais. tirem, no início da década de
da parceria estratégica bilateral, com as questões de segurança e, nando condições exemplares para protagonismo e de liderança re- O governo brasileiro foi con- 2000, elementos a apontarem pa-
em 2007. Com isso, a diplomacia especialmente, com aquelas que uma integração produtiva pela via gional do Brasil de Lula da Sil- sistente no patrocínio de novas ra a necessidade de uma reorga-
da União Europeia reconhecia o afetam a dimensão da sua segu- do empresariado (Merke, 2015). va, e buscou contrabalançar a in- iniciativas de integração e de nização rápida da política do Bra-
Brasil como um parceiro dotado rança interna. Essa foi a aborda- É fato que a ascensão e a con- f luência brasileira com a aproxi- cooperação política no plano re- sil para aquele continente, o go-
de peso econômico e político di- gem que imperou entre os anos solidação de regimes populistas mação da Venezuela. Por outro gional. Assim, seguiu no rumo verno Cardoso não deu a atenção
ferenciado que, portanto, deveria 1980 e 2000 no que diz respeito de esquerda, como se viu na Ve- lado, o relacionamento com o go- aberto ainda na década de 1990, necessária a esse espaço. Da dé-
dispor de condições de diálogo e ao combate do tráfico interna- nezuela de Hugo Chávez, tiveram verno de sua sucessora e herdeira no governo Itamar Franco, com cada de 1990 até o início do pri-
de cooperação bilateral diferentes cional de drogas. Importava mais, efeitos desestabilizadores e frus- política Cristina Fernandez (2007- o lançamento do projeto de uma meiro governo do PT, a política
das que eram aplicadas no trata- pois, a Washington reconhecer traram a perspectiva de estabele- 2015) foi consideravelmente mais Área de Livre Comércio Sul- africana do Brasil ganhou um
mento do conjunto da América o trabalho de estabilização e de cimento e de consolidação de um positivo, em que pese o fato de -Americana (ALCSA, 1993), que indesejável tom culturalista, de-
espaço político estável e aberto à terem se avolumado as tensões no levaria à convergência em uma pendente de variáveis não rela-
competição econômica. A exten- plano da cooperação econômica, malha de acordos de livre-co- cionadas com os interesses polí-
são do bolivarianismo para a Bo- especialmente no que dizia respei- mércio, da Comunidade Andina ticos e econômicos que pautaram
lívia e para o Equador, já como to aos rumos e ao destino do Mer- e do Mercosul. A diplomacia de tradicionalmente a atuação do
conjunto de ideias políticas que cosul (M. G. Saraiva, 2010). Cardoso patrocinou o lançamen- país no continente.
lastreiam uma ideologia de con- O governo de Lula da Silva, em to da Comunidade Sul-Ameri- O ressurgimento da África na
testação hegemônica, causou mais seus dois mandatos, não encontrou cana de Nações em 2000, proje- política externa do primeiro go-
desconforto ao Brasil de Lula da um rumo diferente para o Merco- to que se assentava em uma com- verno do PT parece se relacionar
Silva do que aos Estados Unidos. sul, na perspectiva da estratégia in- binação de integração comercial com a necessidade de resgatar im-
A ascensão do bolivarianismo na ternacional adotada. Assim, tolerou e cooperação política, mas que portantes hipotecas apontadas pe-
América Latina, porém, foi bem as múltiplas e já rotineiras perfura- sucumbiu à crítica venezuelana. los movimentos sociais, especial-
administrada por Lula da Silva, ções da Tarifa Externa Comum, Todo esse arranjo foi então subs- mente os que se desenvolveram
que procurou dela tirar o possível de lado a lado, colaborando para o tituído pela União de Nações albergados na estrutura do parti-
para lustrar os compromissos his- apequenamento do mercado co- Sul-Americanas (Unasul, 2008), do, como parte expressiva do pró-
tóricos do PT com os partidos mum. Nesse momento assistiu-se com um componente econômi- prio movimento negro. O pro-
Agência Brasil - Ricardo Stuckert

progressistas da América Latina ao crescimento do debate político co bastante atenuado e foco in- grama político do partido há anos
(Mesquita, 2016). interno no Brasil sobre o futuro tenso nos mecanismos de estabi- apontava para a necessidade de o
A parceria com a Argentina, do Mercosul e sobre as suas in- lização e de cooperação política. Brasil restabelecer uma ação con-
que passou por momentos de ten- suficiências. As críticas vindas de A Comunidade de Estados Lati- sistente para o continente, o que,
são a partir da desvalorização do vozes politicamente inf luentes se no-Americanos e Caribenhos de certo modo, legitimou o ím-
real (1999) e do início da grande encorparam, e elas passaram a ad- (CELAC), por seu turno, foi cria- peto e a intensidade com que se

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Antônio Carlos Lessa A política externa brasileira no ciclo do Partido dos Trabalhadores

também sem retrocessos. No que Latina. As relações com os países liderança que países como o Bra- da em 2010 como herdeira do
diz respeito às relações entre Bra- europeus, individualmente, já vi- sil desempenhavam na região,
A presença chinesa no Brasil cresceu Grupo do Rio e da Cúpula da
sil e Estados Unidos, portanto, o nham em rumo ascendente, com sem lhes causar maiores cons- de forma espetacular na política, na América Latina e Caribe sobre
governo Lula da Silva navegou em incrementos decisivos a partir de trangimentos (Burges, 2015; Ma- Integração e Desenvolvimento,
mar manso, graças ao esforço des- meados da década de 1990, com lamud, 2011; Wehner, 2015). diplomacia e na economia. Ganharam com a ambição de estabelecer um
comunal empreendido pela diplo- a estabilidade econômica e polí- A política externa do governo processo de cooperação que
macia de Cardoso, anos antes, em tica brasileira. Com o velho con- Lula da Silva estabeleceu uma ação
grande destaque os investimentos abrangesse toda a região latino-
torno da normalização do relacio- tinente, portanto, a política ex- de continuidade na América do chineses realizados aqui. -americana e caribenha (Briceño-
namento bilateral e da superação terna de Lula da Silva construiu Sul, marcada pelo pragmatismo e -Ruiz, 2010; Gardini, 2011).
do quadro histórico de tensão e, sobre terreno firme. pelo esforço consistente de impul- A reconstrução da presença
caracteristicamente, de deteriora- O governo norte-americano sionar os interesses dos atores eco- crise econômica no país vizinho, vogar abertamente a conversão do brasileira na África é um dos mo-
ção (Pecequilo, 2010). tomou a América do Sul como nômicos brasileiros na região. A experimentou altos e baixos na grande projeto brasileiro-argenti- vimentos mais interessantes em-
As relações do Brasil com o zona secundária, sendo coerente definição de mecanismos de finan- dimensão política, e andou de la- no em uma zona de livre comér- preendidos no contexto da polí-
conjunto europeu evoluíram sob com o padrão desenvolvido ao ciamento para as empresas brasilei- do na dimensão econômica. O cio ordinária, devolvendo aos só- tica externa do governo Lula da
Lula da Silva para um arranjo so- longo das últimas décadas, im- ras facilitou-lhes a expansão pelas presidente Nestor Kirchner (2003- cios a capacidade de negociarem Silva. Em que pese o fato de exis-
fisticado, nos marcos da definição portando-se mais diretamente economias da região, proporcio- 2007) foi hostil às ambições de sozinhos acordos comerciais. tirem, no início da década de
da parceria estratégica bilateral, com as questões de segurança e, nando condições exemplares para protagonismo e de liderança re- O governo brasileiro foi con- 2000, elementos a apontarem pa-
em 2007. Com isso, a diplomacia especialmente, com aquelas que uma integração produtiva pela via gional do Brasil de Lula da Sil- sistente no patrocínio de novas ra a necessidade de uma reorga-
da União Europeia reconhecia o afetam a dimensão da sua segu- do empresariado (Merke, 2015). va, e buscou contrabalançar a in- iniciativas de integração e de nização rápida da política do Bra-
Brasil como um parceiro dotado rança interna. Essa foi a aborda- É fato que a ascensão e a con- f luência brasileira com a aproxi- cooperação política no plano re- sil para aquele continente, o go-
de peso econômico e político di- gem que imperou entre os anos solidação de regimes populistas mação da Venezuela. Por outro gional. Assim, seguiu no rumo verno Cardoso não deu a atenção
ferenciado que, portanto, deveria 1980 e 2000 no que diz respeito de esquerda, como se viu na Ve- lado, o relacionamento com o go- aberto ainda na década de 1990, necessária a esse espaço. Da dé-
dispor de condições de diálogo e ao combate do tráfico interna- nezuela de Hugo Chávez, tiveram verno de sua sucessora e herdeira no governo Itamar Franco, com cada de 1990 até o início do pri-
de cooperação bilateral diferentes cional de drogas. Importava mais, efeitos desestabilizadores e frus- política Cristina Fernandez (2007- o lançamento do projeto de uma meiro governo do PT, a política
das que eram aplicadas no trata- pois, a Washington reconhecer traram a perspectiva de estabele- 2015) foi consideravelmente mais Área de Livre Comércio Sul- africana do Brasil ganhou um
mento do conjunto da América o trabalho de estabilização e de cimento e de consolidação de um positivo, em que pese o fato de -Americana (ALCSA, 1993), que indesejável tom culturalista, de-
espaço político estável e aberto à terem se avolumado as tensões no levaria à convergência em uma pendente de variáveis não rela-
competição econômica. A exten- plano da cooperação econômica, malha de acordos de livre-co- cionadas com os interesses polí-
são do bolivarianismo para a Bo- especialmente no que dizia respei- mércio, da Comunidade Andina ticos e econômicos que pautaram
lívia e para o Equador, já como to aos rumos e ao destino do Mer- e do Mercosul. A diplomacia de tradicionalmente a atuação do
conjunto de ideias políticas que cosul (M. G. Saraiva, 2010). Cardoso patrocinou o lançamen- país no continente.
lastreiam uma ideologia de con- O governo de Lula da Silva, em to da Comunidade Sul-Ameri- O ressurgimento da África na
testação hegemônica, causou mais seus dois mandatos, não encontrou cana de Nações em 2000, proje- política externa do primeiro go-
desconforto ao Brasil de Lula da um rumo diferente para o Merco- to que se assentava em uma com- verno do PT parece se relacionar
Silva do que aos Estados Unidos. sul, na perspectiva da estratégia in- binação de integração comercial com a necessidade de resgatar im-
A ascensão do bolivarianismo na ternacional adotada. Assim, tolerou e cooperação política, mas que portantes hipotecas apontadas pe-
América Latina, porém, foi bem as múltiplas e já rotineiras perfura- sucumbiu à crítica venezuelana. los movimentos sociais, especial-
administrada por Lula da Silva, ções da Tarifa Externa Comum, Todo esse arranjo foi então subs- mente os que se desenvolveram
que procurou dela tirar o possível de lado a lado, colaborando para o tituído pela União de Nações albergados na estrutura do parti-
para lustrar os compromissos his- apequenamento do mercado co- Sul-Americanas (Unasul, 2008), do, como parte expressiva do pró-
tóricos do PT com os partidos mum. Nesse momento assistiu-se com um componente econômi- prio movimento negro. O pro-
Agência Brasil - Ricardo Stuckert

progressistas da América Latina ao crescimento do debate político co bastante atenuado e foco in- grama político do partido há anos
(Mesquita, 2016). interno no Brasil sobre o futuro tenso nos mecanismos de estabi- apontava para a necessidade de o
A parceria com a Argentina, do Mercosul e sobre as suas in- lização e de cooperação política. Brasil restabelecer uma ação con-
que passou por momentos de ten- suficiências. As críticas vindas de A Comunidade de Estados Lati- sistente para o continente, o que,
são a partir da desvalorização do vozes politicamente inf luentes se no-Americanos e Caribenhos de certo modo, legitimou o ím-
real (1999) e do início da grande encorparam, e elas passaram a ad- (CELAC), por seu turno, foi cria- peto e a intensidade com que se

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Antônio Carlos Lessa A política externa brasileira no ciclo do Partido dos Trabalhadores

Talvez tenha sido excessivo mo uma prioridade logo no iní- rava esse esforço era que a sua
cio do ciclo do PT (Soares de Li- inf luência política sobre todos
o uso da imagem de Lula. ma e Hirst, 2006). os planos da ordem internacional
Foi espetacular o crescimento não seria condizente com o seu
Apesar de uma intensa da presença da China no Brasil a peso econômico. O Brasil, espe-
diplomacia presidencial, partir do início da década de 2000,
tanto em termos políticos e diplo-
cificamente, vinha testando um
agrupamento semelhante desde
o combate à fome não máticos quanto, especialmente, 2003, envolvendo a Índia e a
econômicos. Os f luxos dos inves- África do Sul, batizado de Gru-
conseguiu sensibilizar e timentos chineses no país ascen- po dos Três, ou Fórum IBAS. O
deram à posição de destaque, em grupo dos BRICS apresentou-se
aglutinar a comunidade evolução espetacular, destronan- com uma agenda de trabalho bas-
internacional. E a ênfase no do as posições tradicionais dos tante ambiciosa, que incluía a
Estados Unidos e dos países eu- criação de um banco de fomen-
etanol se apequenou depois ropeus, ainda que os seus esto- to e a adoção de uma política
ques, que em 2010 se situavam própria de cooperação para o de-
da descoberta do pré-sal. em torno de 30 bilhões de dóla- senvolvimento. Muito dessa am-
res, ainda não superassem essas bição, entretanto, arrefeceu com
desenvolveu a política africana a presenças econômicas tradicio- o enfrentamento da realidade
partir de então (Saraiva, 2010). nais. Preparou-se, nesse momento, econômica advinda com o desa-
A política de cooperação para o a chegada da China à posição de quecimento econômico geral dos

Agência Brasil - Ricardo Stuckert


desenvolvimento, que até o iní- primeiro parceiro comercial do Bra- emergentes (Stuenkel, 2016).
cio do ciclo do PT era conside- sil, o que aconteceria em 2013, des-
rada tímida e pouco consistente, bancando o volume das correntes O que funcionou e o
se fez exuberante quando com- de comércio com os Estados Uni- que não funcionou
preendida como instrumento pre- dos. A primeira missão interna- na estratégia
cioso da ação política do país prin- cional de grande destaque de Lu-
cipalmente na África e, em menor la da Silva foi justamente a reali-
internacional do PT
grau, na América do Sul (Vaz, zada para a China, em 2004, Nenhuma estratégia de política ção de um assento permanente sentou baixa capacidade de aglu- to das credenciais sociais do go-
2015; Dauvergne, 2012). para celebrar os trinta anos do externa se resume à coleção de no Conselho de Segurança e a tinação da comunidade interna- verno do PT, emprestando à po-
No debate público sobre po- estabelecimento de relações bila- relacionamentos bilaterais e à per- reivindicação da reforma das ins- cional, é o do combate à fome. lítica externa um discurso enga-
lítica externa e política interna- terais. Em sua comitiva, o presi- formance em espaços multilaterais. tituições internacionais em geral, Nesse caso, parece que a ambição jado em uma agenda palpável e
cional, em geral se chamava aten- dente incluiu a maior delegação Os grupos políticos no exercício examinados acima. Esta seção tra- era atualizar a tradicionalíssima com conexões imediatas e diretas
ção, desde o começo dos anos de empresários já levada ao exte- do poder tentam, por certo, im- tará da análise de quatro temas abordagem brasileira de reivindi- com a realidade social brasileira,
1990, para a necessidade de o Bra- rior, em que trezentos grupos eco- primir as próprias marcas à sua que se singularizam na estratégia cação de condições e de fomento mas sem envergadura para se cons-
sil dar início à construção de es- nômicos eram representados. passagem pelo governo e erguer de política externa adotada pelos para a promoção do desenvolvi- tituir numa ideia-força da atuação
tratégias mais consistentes de Ao final do segundo manda- projetos que singularizem as es- governos do ciclo do PT, a exem- mento econômico, sempre visto internacional do país.
aproximação das potências regio- to de Lula da Silva, o lançamen- tratégias internacionais desenha- plo das novas abordagens para os (pelo menos desde a década de O segundo tema que inspirou
nais, ou “países baleia”, como se to do grupo dos BRICS (Brasil, das e implementadas. A política temas sociais (como a inserção do 1950) como um instrumento es- atenção interna e algum interesse
alcunhavam à época a China, a Rússia, Índia e China, depois externa do governo Lula da Silva combate à fome), a nova diplo- sencial para a construção da esta- externo é o componente energé-
Rússia e a Índia – países com gran- alargado com a inclusão da Áfri- buscou desenvolver abordagens macia energética, a inusitada com- bilidade do sistema internacional. tico agregado à política externa.
de extensão territorial e massa ca do Sul, em 2011) punha em inovadoras para temas tradicio- plexidade do processo decisório O governo, portanto, pôs a voar Foi notável o desenvolvimento das
populacional, e crescente capaci- perspectiva a necessidade de ar- nais da agenda internacional do e a intensidade da diplomacia pre- um balão de ensaio que, entretan- conversações com os Estados Uni-
dade de inf luência econômica e ticulação dos esforços de coope- Brasil ou para questões centrais sidencial. Nem sempre os resul- to, não foi longe. Com isso, evi- dos em prol do estabelecimento
política. Esse caminho começou ração política entre as maiores do manejo da própria política ex- tados foram consistentes. denciou-se que essa agenda tinha de um mercado internacional pa-
a ser trilhado por Cardoso, e foi economias emergentes do mundo. terna e do seu processo decisório. O primeiro tema conceitual- mais apelo no contexto do debate ra o etanol, visando a sua conse-
confirmado de modo intenso co- O argumento central que inspi- Trata-se de temas como a ambi- mente interessante, mas que apre- político interno e no revigoramen- quente “commoditização”. Àque-

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Antônio Carlos Lessa A política externa brasileira no ciclo do Partido dos Trabalhadores

Talvez tenha sido excessivo mo uma prioridade logo no iní- rava esse esforço era que a sua
cio do ciclo do PT (Soares de Li- inf luência política sobre todos
o uso da imagem de Lula. ma e Hirst, 2006). os planos da ordem internacional
Foi espetacular o crescimento não seria condizente com o seu
Apesar de uma intensa da presença da China no Brasil a peso econômico. O Brasil, espe-
diplomacia presidencial, partir do início da década de 2000,
tanto em termos políticos e diplo-
cificamente, vinha testando um
agrupamento semelhante desde
o combate à fome não máticos quanto, especialmente, 2003, envolvendo a Índia e a
econômicos. Os f luxos dos inves- África do Sul, batizado de Gru-
conseguiu sensibilizar e timentos chineses no país ascen- po dos Três, ou Fórum IBAS. O
deram à posição de destaque, em grupo dos BRICS apresentou-se
aglutinar a comunidade evolução espetacular, destronan- com uma agenda de trabalho bas-
internacional. E a ênfase no do as posições tradicionais dos tante ambiciosa, que incluía a
Estados Unidos e dos países eu- criação de um banco de fomen-
etanol se apequenou depois ropeus, ainda que os seus esto- to e a adoção de uma política
ques, que em 2010 se situavam própria de cooperação para o de-
da descoberta do pré-sal. em torno de 30 bilhões de dóla- senvolvimento. Muito dessa am-
res, ainda não superassem essas bição, entretanto, arrefeceu com
desenvolveu a política africana a presenças econômicas tradicio- o enfrentamento da realidade
partir de então (Saraiva, 2010). nais. Preparou-se, nesse momento, econômica advinda com o desa-
A política de cooperação para o a chegada da China à posição de quecimento econômico geral dos

Agência Brasil - Ricardo Stuckert


desenvolvimento, que até o iní- primeiro parceiro comercial do Bra- emergentes (Stuenkel, 2016).
cio do ciclo do PT era conside- sil, o que aconteceria em 2013, des-
rada tímida e pouco consistente, bancando o volume das correntes O que funcionou e o
se fez exuberante quando com- de comércio com os Estados Uni- que não funcionou
preendida como instrumento pre- dos. A primeira missão interna- na estratégia
cioso da ação política do país prin- cional de grande destaque de Lu-
cipalmente na África e, em menor la da Silva foi justamente a reali-
internacional do PT
grau, na América do Sul (Vaz, zada para a China, em 2004, Nenhuma estratégia de política ção de um assento permanente sentou baixa capacidade de aglu- to das credenciais sociais do go-
2015; Dauvergne, 2012). para celebrar os trinta anos do externa se resume à coleção de no Conselho de Segurança e a tinação da comunidade interna- verno do PT, emprestando à po-
No debate público sobre po- estabelecimento de relações bila- relacionamentos bilaterais e à per- reivindicação da reforma das ins- cional, é o do combate à fome. lítica externa um discurso enga-
lítica externa e política interna- terais. Em sua comitiva, o presi- formance em espaços multilaterais. tituições internacionais em geral, Nesse caso, parece que a ambição jado em uma agenda palpável e
cional, em geral se chamava aten- dente incluiu a maior delegação Os grupos políticos no exercício examinados acima. Esta seção tra- era atualizar a tradicionalíssima com conexões imediatas e diretas
ção, desde o começo dos anos de empresários já levada ao exte- do poder tentam, por certo, im- tará da análise de quatro temas abordagem brasileira de reivindi- com a realidade social brasileira,
1990, para a necessidade de o Bra- rior, em que trezentos grupos eco- primir as próprias marcas à sua que se singularizam na estratégia cação de condições e de fomento mas sem envergadura para se cons-
sil dar início à construção de es- nômicos eram representados. passagem pelo governo e erguer de política externa adotada pelos para a promoção do desenvolvi- tituir numa ideia-força da atuação
tratégias mais consistentes de Ao final do segundo manda- projetos que singularizem as es- governos do ciclo do PT, a exem- mento econômico, sempre visto internacional do país.
aproximação das potências regio- to de Lula da Silva, o lançamen- tratégias internacionais desenha- plo das novas abordagens para os (pelo menos desde a década de O segundo tema que inspirou
nais, ou “países baleia”, como se to do grupo dos BRICS (Brasil, das e implementadas. A política temas sociais (como a inserção do 1950) como um instrumento es- atenção interna e algum interesse
alcunhavam à época a China, a Rússia, Índia e China, depois externa do governo Lula da Silva combate à fome), a nova diplo- sencial para a construção da esta- externo é o componente energé-
Rússia e a Índia – países com gran- alargado com a inclusão da Áfri- buscou desenvolver abordagens macia energética, a inusitada com- bilidade do sistema internacional. tico agregado à política externa.
de extensão territorial e massa ca do Sul, em 2011) punha em inovadoras para temas tradicio- plexidade do processo decisório O governo, portanto, pôs a voar Foi notável o desenvolvimento das
populacional, e crescente capaci- perspectiva a necessidade de ar- nais da agenda internacional do e a intensidade da diplomacia pre- um balão de ensaio que, entretan- conversações com os Estados Uni-
dade de inf luência econômica e ticulação dos esforços de coope- Brasil ou para questões centrais sidencial. Nem sempre os resul- to, não foi longe. Com isso, evi- dos em prol do estabelecimento
política. Esse caminho começou ração política entre as maiores do manejo da própria política ex- tados foram consistentes. denciou-se que essa agenda tinha de um mercado internacional pa-
a ser trilhado por Cardoso, e foi economias emergentes do mundo. terna e do seu processo decisório. O primeiro tema conceitual- mais apelo no contexto do debate ra o etanol, visando a sua conse-
confirmado de modo intenso co- O argumento central que inspi- Trata-se de temas como a ambi- mente interessante, mas que apre- político interno e no revigoramen- quente “commoditização”. Àque-

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


política externa brasileira 16 17
Antônio Carlos Lessa A política externa brasileira no ciclo do Partido dos Trabalhadores

desenvolvimento dos dossiês de valorização salarial da carreira dos tica externa foram bem tratados
substância e na definição e na im- diplomatas e a aquisição de condi- pelo presidente da República ao
plementação dos movimentos tá- ções materiais inéditas. Uma das longo do exercício dos dois man-
ticos da estratégia da política ex- traduções práticas dessa política é a datos de Cardoso, personalidade
terna, que permaneceram sendo dramática expansão da malha di- com interesse intelectual e muito
tocados invariavelmente, como plomática, com a abertura de 75 gosto pessoal pelos temas interna-
sempre foram, pelo Itamaraty. novos postos, entre novas embaixa- cionais e pelos negócios da diplo-
O Ministério das Relações das, consulados e missões junto a macia. Recorde-se que Cardoso
Exteriores sob o governo Lula organismos internacionais, soman- havia ocupado a pasta das Relações
da Silva foi incrivelmente valo- do-se aos 150 existentes até o final Exteriores no governo de Itamar
rizado. O seu orçamento passou do governo Cardoso. Franco (de outubro de 1992 a maio
por aumentos consistentes, como de 1993), de onde foi catapultado
também conheceu uma rápida para o comando do Ministério da
A diplomacia

Agência Brasil - Ricardo Stuckert


expansão dos quadros, com a dis- Fazenda. Lula da Silva, por seu
ponibilidade de centenas de no- turno, parece ter aceitado muito
vos diplomatas a serem recruta-
brasileira passou bem ser posicionado pela diplo-
dos além da cota tradicional ne- a apoiar grandes macia do seu governo como um
cessária para a reposição por ativo importante da estratégia de
aposentadoria. Essa valorização empresas, política externa desenhada.
teve sentidos mais práticos, e o O Itamaraty soube explorar
la altura, o governo brasileiro se no governo Lula da Silva é o equi- históricas, mas isso efetivamente Itamaraty também viveu sob Lu-
especialmente de modo eficiente, até a exaustão,
entusiasmava com uma diplomacia líbrio curioso e inusitado, mas não aconteceu. la da Silva um momento de gran- empreiteiras, a imagem internacional de Lula,
energética alternativa, e o poten- bem-sucedido, estabelecido em As percepções dos observa- de autonomia decisória e admi- e manobrou a sua movimentação
cial dos combustíveis renováveis seu processo decisório. As rela- dores, aparentemente, exagera- nistrativa, além da que estava que buscavam internacional em missões de tra-
despontava como um ponto cons- ções entre o Itamaraty (então com vam nas suas conclusões, e o que acostumado a gozar. Com efeito, balho, participações em reuniões
tante nas viagens e nos compro- um comando curiosamente re- se viu na prática foi uma bem- a diplomacia havia sido capaz de novos contratos de cúpula e em visitas de Estado,
missos internacionais de Lula. O partido entre o chanceler Celso -sucedida divisão de trabalho: à determinar rumos para as plata- no exterior, para emprestar significados dife-
tema também se apequenou, pra- Amorim e o secretário-geral Sa- assessoria diplomática da Presi- formas de política externa de pre- renciados à linguagem diplomá-
ticamente até desaparecer da agen- muel Pinheiro Guimarães, o qual dência da República coube o sidentes que chegaram ao poder principalmente tica e revestir de senso de urgên-
da política, a partir da descoberta fazia as vezes de ideólogo da po- aconselhamento do mandatário, completamente desprovidos de cia e de prioridade determinados
das reservas de petróleo do pré-sal, lítica externa) e a Presidência da claramente, e também o que po- ideias sobre o que fazer nessa área, na África e na temas e relacionamentos. Lula da
em 2006. A isso se somaram a ma-
nipulação indesejável dos preços
República (que passou a ter em
sua assessoria diplomática o pro-
deria ser denominado manejo das
“alegorias do PT”, ou seja, a par-
bem como de corrigir as abor-
dagens e as intenções de outros
Améria Latina. Silva empregou 16% do seu man-
dato em missões e viagens ao ex-
internos de combustíveis, vincu- fessor Marco Aurélio Garcia, que te festiva dos movimentos polí- mandatários que sabiam muito terior, enquanto Cardoso passou
lada à estabilização das taxas de é do quadro histórico do PT e há ticos e sociais, as convergências bem o que queriam realizar em O quarto aspecto importante 12% do seu tempo à frente da
inf lação, e o aumento consisten- muito identificado com temas in- com o Foro de São Paulo, a mo- seus governos, mas precisaram das práticas da política externa nes- Presidência em viagens interna-
te dos preços internacionais do ternacionais, tendo ocupado, in- vimentação de Garcia como em- adaptar os seus projetos à reali- se primeiro momento do ciclo do cionais. Nos 470 dias passados
açúcar. Esses movimentos eviden- clusive, a Secretaria de Relações baixador especial em casos fran- dade do poder e às circunstâncias PT é o uso intenso da diplomacia fora do Brasil, Lula da Silva visi-
ciaram a impossibilidade de uma Internacionais do partido) foram camente secundários na estraté- internacionais, nem sempre per- presidencial. Observa-se que, nes- tou 87 países. Do total de seu tem-
política consistente voltada para objeto da mais viva curiosidade gia geral da política externa, mas cebidas de modo consistente. se quesito, Lula da Silva não é pro- po em viagem, 54 dias foram em-
o crescimento da produção e do de observadores, diplomatas es- caros à militância tradicional. Com Lula da Silva, os sinais con- priamente inovador. Bem ao con- pregados em missões à África,
consumo de combustíveis reno- trangeiros e analistas internacio- Garcia e a sua assessoria diplomá- traditórios emitidos pela aparente trário, a sua ação se dá em um enquanto Cardoso por lá esteve
váveis sem a intervenção nos pre- nais. Via-se no comando da po- tica, portanto, aparentemente, bicefalia da formulação e da imple- contexto de superengajamento do apenas durante 13 dias.
ços e o firme apoio do Estado, lítica externa, que aparentava ser funcionaram como a reserva de mentação da política externa foram, presidente da República em temas As medidas que traduzem a
ainda que na forma de subsídios. bicéfalo, uma tendência ao enfra- consciência do partido no tocan- portanto, apenas alertas falsos. O de política externa – ou seja, uma grandiloquência da diplomacia
O terceiro aspecto intrigante quecimento do Itamaraty e de te à política externa, mas tiveram Itamaraty se refestelou nessa pri- diplomacia presidencial extrema- presidencial e a intensidade do seu
da política externa implementada relativização das suas capacidades pouca ou nenhuma inf luência no meira parte do ciclo do PT, com a mente ativa. Os assuntos da polí- uso como instrumento de política

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desenvolvimento dos dossiês de valorização salarial da carreira dos tica externa foram bem tratados
substância e na definição e na im- diplomatas e a aquisição de condi- pelo presidente da República ao
plementação dos movimentos tá- ções materiais inéditas. Uma das longo do exercício dos dois man-
ticos da estratégia da política ex- traduções práticas dessa política é a datos de Cardoso, personalidade
terna, que permaneceram sendo dramática expansão da malha di- com interesse intelectual e muito
tocados invariavelmente, como plomática, com a abertura de 75 gosto pessoal pelos temas interna-
sempre foram, pelo Itamaraty. novos postos, entre novas embaixa- cionais e pelos negócios da diplo-
O Ministério das Relações das, consulados e missões junto a macia. Recorde-se que Cardoso
Exteriores sob o governo Lula organismos internacionais, soman- havia ocupado a pasta das Relações
da Silva foi incrivelmente valo- do-se aos 150 existentes até o final Exteriores no governo de Itamar
rizado. O seu orçamento passou do governo Cardoso. Franco (de outubro de 1992 a maio
por aumentos consistentes, como de 1993), de onde foi catapultado
também conheceu uma rápida para o comando do Ministério da
A diplomacia

Agência Brasil - Ricardo Stuckert


expansão dos quadros, com a dis- Fazenda. Lula da Silva, por seu
ponibilidade de centenas de no- turno, parece ter aceitado muito
vos diplomatas a serem recruta-
brasileira passou bem ser posicionado pela diplo-
dos além da cota tradicional ne- a apoiar grandes macia do seu governo como um
cessária para a reposição por ativo importante da estratégia de
aposentadoria. Essa valorização empresas, política externa desenhada.
teve sentidos mais práticos, e o O Itamaraty soube explorar
la altura, o governo brasileiro se no governo Lula da Silva é o equi- históricas, mas isso efetivamente Itamaraty também viveu sob Lu-
especialmente de modo eficiente, até a exaustão,
entusiasmava com uma diplomacia líbrio curioso e inusitado, mas não aconteceu. la da Silva um momento de gran- empreiteiras, a imagem internacional de Lula,
energética alternativa, e o poten- bem-sucedido, estabelecido em As percepções dos observa- de autonomia decisória e admi- e manobrou a sua movimentação
cial dos combustíveis renováveis seu processo decisório. As rela- dores, aparentemente, exagera- nistrativa, além da que estava que buscavam internacional em missões de tra-
despontava como um ponto cons- ções entre o Itamaraty (então com vam nas suas conclusões, e o que acostumado a gozar. Com efeito, balho, participações em reuniões
tante nas viagens e nos compro- um comando curiosamente re- se viu na prática foi uma bem- a diplomacia havia sido capaz de novos contratos de cúpula e em visitas de Estado,
missos internacionais de Lula. O partido entre o chanceler Celso -sucedida divisão de trabalho: à determinar rumos para as plata- no exterior, para emprestar significados dife-
tema também se apequenou, pra- Amorim e o secretário-geral Sa- assessoria diplomática da Presi- formas de política externa de pre- renciados à linguagem diplomá-
ticamente até desaparecer da agen- muel Pinheiro Guimarães, o qual dência da República coube o sidentes que chegaram ao poder principalmente tica e revestir de senso de urgên-
da política, a partir da descoberta fazia as vezes de ideólogo da po- aconselhamento do mandatário, completamente desprovidos de cia e de prioridade determinados
das reservas de petróleo do pré-sal, lítica externa) e a Presidência da claramente, e também o que po- ideias sobre o que fazer nessa área, na África e na temas e relacionamentos. Lula da
em 2006. A isso se somaram a ma-
nipulação indesejável dos preços
República (que passou a ter em
sua assessoria diplomática o pro-
deria ser denominado manejo das
“alegorias do PT”, ou seja, a par-
bem como de corrigir as abor-
dagens e as intenções de outros
Améria Latina. Silva empregou 16% do seu man-
dato em missões e viagens ao ex-
internos de combustíveis, vincu- fessor Marco Aurélio Garcia, que te festiva dos movimentos polí- mandatários que sabiam muito terior, enquanto Cardoso passou
lada à estabilização das taxas de é do quadro histórico do PT e há ticos e sociais, as convergências bem o que queriam realizar em O quarto aspecto importante 12% do seu tempo à frente da
inf lação, e o aumento consisten- muito identificado com temas in- com o Foro de São Paulo, a mo- seus governos, mas precisaram das práticas da política externa nes- Presidência em viagens interna-
te dos preços internacionais do ternacionais, tendo ocupado, in- vimentação de Garcia como em- adaptar os seus projetos à reali- se primeiro momento do ciclo do cionais. Nos 470 dias passados
açúcar. Esses movimentos eviden- clusive, a Secretaria de Relações baixador especial em casos fran- dade do poder e às circunstâncias PT é o uso intenso da diplomacia fora do Brasil, Lula da Silva visi-
ciaram a impossibilidade de uma Internacionais do partido) foram camente secundários na estraté- internacionais, nem sempre per- presidencial. Observa-se que, nes- tou 87 países. Do total de seu tem-
política consistente voltada para objeto da mais viva curiosidade gia geral da política externa, mas cebidas de modo consistente. se quesito, Lula da Silva não é pro- po em viagem, 54 dias foram em-
o crescimento da produção e do de observadores, diplomatas es- caros à militância tradicional. Com Lula da Silva, os sinais con- priamente inovador. Bem ao con- pregados em missões à África,
consumo de combustíveis reno- trangeiros e analistas internacio- Garcia e a sua assessoria diplomá- traditórios emitidos pela aparente trário, a sua ação se dá em um enquanto Cardoso por lá esteve
váveis sem a intervenção nos pre- nais. Via-se no comando da po- tica, portanto, aparentemente, bicefalia da formulação e da imple- contexto de superengajamento do apenas durante 13 dias.
ços e o firme apoio do Estado, lítica externa, que aparentava ser funcionaram como a reserva de mentação da política externa foram, presidente da República em temas As medidas que traduzem a
ainda que na forma de subsídios. bicéfalo, uma tendência ao enfra- consciência do partido no tocan- portanto, apenas alertas falsos. O de política externa – ou seja, uma grandiloquência da diplomacia
O terceiro aspecto intrigante quecimento do Itamaraty e de te à política externa, mas tiveram Itamaraty se refestelou nessa pri- diplomacia presidencial extrema- presidencial e a intensidade do seu
da política externa implementada relativização das suas capacidades pouca ou nenhuma inf luência no meira parte do ciclo do PT, com a mente ativa. Os assuntos da polí- uso como instrumento de política

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política externa brasileira 18 19
Antônio Carlos Lessa A política externa brasileira no ciclo do Partido dos Trabalhadores

externa, entretanto, não escondem tégia de política externa e também negociações de contratos na Áfri-
o fato de que o uso frequente, su- se pôs a serviço dele. Viram-se as ca para as grandes empreiteiras e
Dilma Rousseff impôs um
perlativo e quase vulgarizado da fi- delegações empresariais se avolu- para a Vale na Bolívia, na Vene- bizarro enfraquecimento do
gura carismática de Lula da Silva, marem nas comitivas levadas em zuela, no Equador, em Cuba e
na repetição incansável de cúpulas viagens de trabalho do presidente onde mais se fizesse necessário o Itamaraty, que passou a operar
de Estado, viagens internacionais e da República. Lula da Silva aceitou apoio engajado dos agentes ofi-
manifestações dramáticas sobre te- muito bem que se integrassem às ciais e da diplomacia brasileira.
sem apoio e também sem
mas da agenda internacional, talvez agendas de suas viagens seminários Estabeleceu-se um modelo de re- autonomia. Nunca, na história
tenha sido excessivo e, eventual- das câmaras bilaterais de comércio, lação entre público e privado por

Valentina Petrov/shutterstock.com
mente, contraproducente. O Itama- eventos voltados à busca de parce- vezes suspeito e mesmo insidioso, brasileira, a diplomacia
raty estimou que o atendimento da rias econômicas, rodas e feiras de transformando agentes públicos
curiosidade internacional pela figu- negócios e outros tantos instru- em emissários de grandes grupos enfrentou desprestígio igual.
ra do presidente e pela nova carga mentos semelhantes e comuns de empresariais. Assim, a projeção
de legitimidade trazida por ele a “diplomacia empresarial”, tornada internacional de empresas brasi-
determinados temas e abordagens regra nas grandes corporações bra- leiras, feitas subitamente multi-
recompensava em muito o risco in- sileiras. Sob Lula da Silva, a diplo- nacionais graças ao financiamen-
desejável da superexposição. E o macia empresarial se agregou de to público generoso que foi a pelos ideólogos do momento de vê- precavido poderia ter começado de eficiência são domésticas, pas-
resultado é que nenhum chefe de modo definitivo à prática da diplo- base da política dos campeões na- -la transformada em um novo mo- a tomar medidas razoáveis para sam pelas condições de estabili-
Estado brasileiro jamais teve tanta macia brasileira. cionais (especialmente do Banco delo para o Brasil na era global, a preparar a economia brasileira pa- dade política e pelas capacidades
exposição, ou pontificou mais e com A adoção da polêmica política Nacional de Desenvolvimento balizar as estratégias de inserção in- ra o que se seguiria. A adoção de de gestão do Estado.
tanta empáfia sobre questões do sis- dos “campeões nacionais”, que bus- Econômico e Social – BNDES), ternacional de um verdadeiro pro- medidas contracíclicas efetiva- Além das condições interna-
tema internacional – como desen- cava a capacitação de grupos em- foi festejada, ao final dos dois man- jeto político, que tivesse vida longa. mente não foi suficiente para con- cionais cambiantes, seguramente
volvimento, economia global, se- presariais nacionais para o jogo da datos de Lula da Silva, como um Como acontece com todo projeto ter os impactos da crise interna- o maior problema da transição da
gurança internacional, crises e meios competição global em determinados dos mais espetaculares resultados de política externa pensado com cional, aprofundada mês a mês. estratégia de política externa da
de superá-las –, como Lula da Silva. setores, talvez se tenha apresentado da sua política externa. urgência e com tais pretensões, os A essa altura também já era evi- primeira para a segunda fase do
O tom triunfalista adquirido como um dos subprodutos do mo- desafios não estão com aqueles que dente que os países emergentes ciclo do PT no poder parece se
pela política externa do governo delo de inserção internacional do O ciclo decadente: o planejaram, mas com os que têm sofreriam intensamente com a de- resumir ao fato de que, como di-
Lula da Silva foi festejado com in- Estado Logístico (Cervo, 2010). De Dilma Rousseff e a a responsabilidade de implementá- saceleração da economia chinesa riam os seus críticos, Rousseff
tensidade por parte da opinião pú- acordo com esse modelo, o Estado era das pequenas -lo. Foi esse o grande desafio de e, especialmente, com a retração não é Lula da Silva. Com isso se
blica, em espectro muito mais am- não se intromete nas relações em- Dilma Rousseff. da demanda global por commodi- quer dizer que o projeto de po-
ambições na política
plo do que a tradicional audiência presariais e nos negócios privados, O primeiro governo de Dilma ties. Rousseff, portanto, assumiu lítica externa, além de ser depen-
dos grupos políticos de esquerda como também se furta ao exercício externa (2011-2016) Rousseff se iniciou, em 2011, em um projeto político ambicioso, dente de boas condições interna-
ou a própria militância do PT. Viu- das prerrogativas do capital mono- A política externa desenhada e im- circunstâncias internacionais não para administrar o seu declínio. cionais, era também baseado nas
-se o cuidado do governo de en- polista, corrigindo as suas distorções plementada nos dois governos de tão propícias quanto as conheci- Propôs-se o conceito de declí- múltiplas capacidades e na habi-
gajar com intensidade determina- com uma regulação bem azeitada. Lula da Silva é arrojada, ambiciosa das por Lula da Silva em boa par- nio relativo para facilitar a com- lidade do próprio Lula de se po-
dos públicos estratégicos em mui- Nessa perspectiva, o Estado não é e se instrui em ideias conceitual- te de seus dois mandatos. Com preensão da brutal ineficiência do sicionar como um árbitro das es-
tos dos movimentos táticos cruciais empresário, mas busca criar condi- mente interessantes. Entretanto, viu- efeito, as consequências da crise governo de Rousseff na imple- colhas internacionais do seu go-
do seu projeto de política externa. ções para a expansão internacional -se que o governo colecionou vitó- econômica iniciada em 2008 fi- mentação do “modelo” de polí- verno, e de pôr para funcionar os
Esse foi o caso do empresariado do capital privado nacional. rias importantes em sua agenda ex- nalmente contagiaram o Brasil, tica externa legado por Lula da mecanismos do Estado capazes
nacional de todos os setores da eco- Assim, às funções tradicionais terna, como também sofreu que começou a padecer rápida e Silva (Cervo e Lessa, 2014). Nes- de captar as demandas sociais e
nomia, especialmente o da indús- da diplomacia agregou-se o cui- derrotas graves e abandonou proje- intensamente com o desaqueci- te sentido, entende-se a crise eco- de impulsionar a sua movimen-
tria e o do agronegócio. O empre- dado com toda essa agenda, bem tos no meio do caminho, procuran- mento econômico dos grandes nômica global como uma variável tação. Essas habilidades não são
sariado adquiriu condições privi- como o patrocínio e o apoio à do ajustar a prática ao discurso. mercados consumidores. É pos- importante, mas não determinan- natas, por certo, podem ser emu-
legiadas de articulação e de negociação de contratos privados, O tom triunfalista alinhavado à sível afirmar que os sinais de um te, para explicar a gestão errática ladas e imitadas. Isso não acon-
interlocução com o governo, que sempre que isso envolvia desbas- política externa dessa primeira fase desastre à frente eram evidentes empreendida na política externa teceu com Rousseff.
por sua vez acoplou o empresaria- tar relações difíceis com governos do ciclo do PT no poder traduz com já naquele momento inicial da da segunda metade do ciclo do A sucessora de Lula da Silva
do como ferramenta da sua estra- estrangeiros. Esse foi o padrão das perfeição a ambição mal escondida crise, e que qualquer operador PT no poder. As causas da perda certamente não tem o carisma do

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


política externa brasileira 18 19
Antônio Carlos Lessa A política externa brasileira no ciclo do Partido dos Trabalhadores

externa, entretanto, não escondem tégia de política externa e também negociações de contratos na Áfri-
o fato de que o uso frequente, su- se pôs a serviço dele. Viram-se as ca para as grandes empreiteiras e
Dilma Rousseff impôs um
perlativo e quase vulgarizado da fi- delegações empresariais se avolu- para a Vale na Bolívia, na Vene- bizarro enfraquecimento do
gura carismática de Lula da Silva, marem nas comitivas levadas em zuela, no Equador, em Cuba e
na repetição incansável de cúpulas viagens de trabalho do presidente onde mais se fizesse necessário o Itamaraty, que passou a operar
de Estado, viagens internacionais e da República. Lula da Silva aceitou apoio engajado dos agentes ofi-
manifestações dramáticas sobre te- muito bem que se integrassem às ciais e da diplomacia brasileira.
sem apoio e também sem
mas da agenda internacional, talvez agendas de suas viagens seminários Estabeleceu-se um modelo de re- autonomia. Nunca, na história
tenha sido excessivo e, eventual- das câmaras bilaterais de comércio, lação entre público e privado por

Valentina Petrov/shutterstock.com
mente, contraproducente. O Itama- eventos voltados à busca de parce- vezes suspeito e mesmo insidioso, brasileira, a diplomacia
raty estimou que o atendimento da rias econômicas, rodas e feiras de transformando agentes públicos
curiosidade internacional pela figu- negócios e outros tantos instru- em emissários de grandes grupos enfrentou desprestígio igual.
ra do presidente e pela nova carga mentos semelhantes e comuns de empresariais. Assim, a projeção
de legitimidade trazida por ele a “diplomacia empresarial”, tornada internacional de empresas brasi-
determinados temas e abordagens regra nas grandes corporações bra- leiras, feitas subitamente multi-
recompensava em muito o risco in- sileiras. Sob Lula da Silva, a diplo- nacionais graças ao financiamen-
desejável da superexposição. E o macia empresarial se agregou de to público generoso que foi a pelos ideólogos do momento de vê- precavido poderia ter começado de eficiência são domésticas, pas-
resultado é que nenhum chefe de modo definitivo à prática da diplo- base da política dos campeões na- -la transformada em um novo mo- a tomar medidas razoáveis para sam pelas condições de estabili-
Estado brasileiro jamais teve tanta macia brasileira. cionais (especialmente do Banco delo para o Brasil na era global, a preparar a economia brasileira pa- dade política e pelas capacidades
exposição, ou pontificou mais e com A adoção da polêmica política Nacional de Desenvolvimento balizar as estratégias de inserção in- ra o que se seguiria. A adoção de de gestão do Estado.
tanta empáfia sobre questões do sis- dos “campeões nacionais”, que bus- Econômico e Social – BNDES), ternacional de um verdadeiro pro- medidas contracíclicas efetiva- Além das condições interna-
tema internacional – como desen- cava a capacitação de grupos em- foi festejada, ao final dos dois man- jeto político, que tivesse vida longa. mente não foi suficiente para con- cionais cambiantes, seguramente
volvimento, economia global, se- presariais nacionais para o jogo da datos de Lula da Silva, como um Como acontece com todo projeto ter os impactos da crise interna- o maior problema da transição da
gurança internacional, crises e meios competição global em determinados dos mais espetaculares resultados de política externa pensado com cional, aprofundada mês a mês. estratégia de política externa da
de superá-las –, como Lula da Silva. setores, talvez se tenha apresentado da sua política externa. urgência e com tais pretensões, os A essa altura também já era evi- primeira para a segunda fase do
O tom triunfalista adquirido como um dos subprodutos do mo- desafios não estão com aqueles que dente que os países emergentes ciclo do PT no poder parece se
pela política externa do governo delo de inserção internacional do O ciclo decadente: o planejaram, mas com os que têm sofreriam intensamente com a de- resumir ao fato de que, como di-
Lula da Silva foi festejado com in- Estado Logístico (Cervo, 2010). De Dilma Rousseff e a a responsabilidade de implementá- saceleração da economia chinesa riam os seus críticos, Rousseff
tensidade por parte da opinião pú- acordo com esse modelo, o Estado era das pequenas -lo. Foi esse o grande desafio de e, especialmente, com a retração não é Lula da Silva. Com isso se
blica, em espectro muito mais am- não se intromete nas relações em- Dilma Rousseff. da demanda global por commodi- quer dizer que o projeto de po-
ambições na política
plo do que a tradicional audiência presariais e nos negócios privados, O primeiro governo de Dilma ties. Rousseff, portanto, assumiu lítica externa, além de ser depen-
dos grupos políticos de esquerda como também se furta ao exercício externa (2011-2016) Rousseff se iniciou, em 2011, em um projeto político ambicioso, dente de boas condições interna-
ou a própria militância do PT. Viu- das prerrogativas do capital mono- A política externa desenhada e im- circunstâncias internacionais não para administrar o seu declínio. cionais, era também baseado nas
-se o cuidado do governo de en- polista, corrigindo as suas distorções plementada nos dois governos de tão propícias quanto as conheci- Propôs-se o conceito de declí- múltiplas capacidades e na habi-
gajar com intensidade determina- com uma regulação bem azeitada. Lula da Silva é arrojada, ambiciosa das por Lula da Silva em boa par- nio relativo para facilitar a com- lidade do próprio Lula de se po-
dos públicos estratégicos em mui- Nessa perspectiva, o Estado não é e se instrui em ideias conceitual- te de seus dois mandatos. Com preensão da brutal ineficiência do sicionar como um árbitro das es-
tos dos movimentos táticos cruciais empresário, mas busca criar condi- mente interessantes. Entretanto, viu- efeito, as consequências da crise governo de Rousseff na imple- colhas internacionais do seu go-
do seu projeto de política externa. ções para a expansão internacional -se que o governo colecionou vitó- econômica iniciada em 2008 fi- mentação do “modelo” de polí- verno, e de pôr para funcionar os
Esse foi o caso do empresariado do capital privado nacional. rias importantes em sua agenda ex- nalmente contagiaram o Brasil, tica externa legado por Lula da mecanismos do Estado capazes
nacional de todos os setores da eco- Assim, às funções tradicionais terna, como também sofreu que começou a padecer rápida e Silva (Cervo e Lessa, 2014). Nes- de captar as demandas sociais e
nomia, especialmente o da indús- da diplomacia agregou-se o cui- derrotas graves e abandonou proje- intensamente com o desaqueci- te sentido, entende-se a crise eco- de impulsionar a sua movimen-
tria e o do agronegócio. O empre- dado com toda essa agenda, bem tos no meio do caminho, procuran- mento econômico dos grandes nômica global como uma variável tação. Essas habilidades não são
sariado adquiriu condições privi- como o patrocínio e o apoio à do ajustar a prática ao discurso. mercados consumidores. É pos- importante, mas não determinan- natas, por certo, podem ser emu-
legiadas de articulação e de negociação de contratos privados, O tom triunfalista alinhavado à sível afirmar que os sinais de um te, para explicar a gestão errática ladas e imitadas. Isso não acon-
interlocução com o governo, que sempre que isso envolvia desbas- política externa dessa primeira fase desastre à frente eram evidentes empreendida na política externa teceu com Rousseff.
por sua vez acoplou o empresaria- tar relações difíceis com governos do ciclo do PT no poder traduz com já naquele momento inicial da da segunda metade do ciclo do A sucessora de Lula da Silva
do como ferramenta da sua estra- estrangeiros. Esse foi o padrão das perfeição a ambição mal escondida crise, e que qualquer operador PT no poder. As causas da perda certamente não tem o carisma do

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política externa brasileira 20 21
Antônio Carlos Lessa A política externa brasileira no ciclo do Partido dos Trabalhadores

seu mentor, tampouco a sua figura inspi- qual operou em um limbo político muito guerra civil na Síria e a crise da Cri- Rousseff programada para poucos gura do Cristo Redentor em deco-
rou interesse internacional a ponto de cre- curioso e inédito. Em que pese o fato de
O impeachment foi meia. As relações com a China se meses depois. Não há dúvida de que lagem (“Brazil takes off ” [O Brasil
denciá-la como um personagem crível da não demonstrar afeição de nenhuma for- recebido no mundo com fizeram de súbito prioritárias, e o a espionagem de autoridades de um decola]), em sincronia com o oti-
sua própria diplomacia presidencial. Mas ma aos temas da política externa, e de ter crescimento do seu perfil diante do país aliado é inominável e natural- mismo traduzido nos balanços feitos
sabe-se que diplomacia presidencial não demonstrado inúmeras vezes que deles não relativa normalidade Brasil causou perplexidade aos par- mente deveria suscitar protestos no ao final dos dois mandatos de Lula
se resume à representação e está muito se ocuparia, Rousseff também não deu à ceiros tradicionais, como se obser- mais alto nível. Entretanto, o resul- da Silva. A segunda, de setembro
longe de se esgotar na teatralização dos diplomacia a autonomia necessária para se
e entendido como uma vou na visita do premiê daquele tado prático da reação da Presidên- de 2013 (“Has Brazil blown it?” [O
eventos diplomáticos. Como medida de ocupar solitária e integralmente da for- demonstração de que país, Li Keqiang, em maio de 2015, cia da República, muito acima do Brasil teria estragado tudo?]), trazia
interesse, a diplomacia presidencial de mulação dos movimentos táticos da estra- quando foram anunciados acordos tom necessário para exprimir um a mesma figura icônica do Cristo
Rousseff foi um rotundo retrocesso, por- tégia de política externa do seu governo, temos instituições de investimentos próximos à soma protesto efetivo, foi pouco pragmá- Redentor, com os propulsores da
que a presidenta não apenas não demons- escondendo com a discrição usual o de- de 53 bilhões de dólares. tico e levou ao comprometimento, edição anterior em falha, apontan-
trou nenhum interesse pela agenda exter- sinteresse da presidenta. Ao contrário, sob maduras. Mas a Assistiu-se ao inconsequente por alguns meses, da qualidade do do para a queda iminente e o seu
na do seu governo, como, de certo modo,
confundiu a liturgia do cargo com a de-
Rousseff o Ministério teve o seu orça-
mento brutalmente comprimido, e co-
corrupção, a violência manejo da situação institucional do
Mercosul, e à suspensão do Paraguai
relacionamento bilateral com um
parceiro central para o Brasil.
mergulho fatal na Baía de Guana-
bara. Essa capa, como a matéria prin-
dicação necessária à definição de rumos e nheceu, com toda a intensidade, o inédi- e outros fatores em 2014, que propiciou a formali- cipal, traduzia a percepção geral de
ao ajustamento do projeto de política ex- to sabor do desprestígio junto ao primei- zação da admissão da Venezuela. De que, perto do fim do seu primeiro
terna que lhe foi legado. ro mandatário. A presidenta negou ao comprometem a resto, quanto ao Mercosul, que se Conclusão mandato, Dilma Rousseff tinha apa-
Rousseff não se furtou a demonstrar
que a política externa, como tudo o que
Itamaraty tempo em sua agenda até mes-
mo para o trivial das funções de um che-
imagem do país. tornava ainda mais heterogêneo com
a admissão da Venezuela, não se
Muitos analistas engajados nos as-
suntos do Brasil, especialmente nos
rentemente falhado na perseveran-
ça do modelo de gestão, de diálogo
se conectava com essa grande agenda, lhe fe de Estado, e avolumaram-se, ao longo avançou na busca negociada de so- meios acadêmicos nos Estados Uni- social e de política externa legado
repugnava. Não compreendeu o fato de do seu mandato e meio, as crônicas dos ciclo do PT, mas foi silenciada sem maio- luções para as deficiências e perfu- dos e na Europa, sintetizam de mo- pelo seu antecessor. A terceira edi-
os tempos da política externa serem dife- diplomatas estrangeiros que esperaram por res explicações. Em termos de conceitos rações da Tarifa Externa Comum e do duro como foi o país ao longo ção, de abril de 2016, que dessa vez
rentes dos tempos de formulação e de im- longuíssimos meses pelas cerimônias de e ideias relacionadas com a estratégia in- o consequente enfraquecimento da dos governos do ciclo do PT no trazia o Cristo Redentor ostentan-
plementação de qualquer outra política entrega de credenciais. Não há, em toda ternacional, viu-se que o triunfalismo da união aduaneira. poder: tudo o que foi feito entre a do um pedido de ajuda (“The be-
pública do seu governo, portanto, não en- a história brasileira, similares para as si- política externa de Lula se converteu, em Rousseff apequenou a estatura ascensão de Lula e a queda de Rous- trayal of Brazil” [A traição do Bra-
tendeu por que o Itamaraty não foi capaz tuações impostas por Rousseff ao Itama- pouco tempo, em um minimalismo mal presidencial envolvendo-se de mo- seff coube bem e foi bem traduzido sil]), fez, em sua matéria principal,
de demonstrar resultados rápidos. Por raty e à diplomacia. resolvido sob Rousseff. do infeliz no manejo de crises me- nas capas das edições latino-ame- um balanço da grande crise política
exemplo, por que não se conseguiu arran- As pequenas crises que se sucederam À medida que os efeitos da crise eco- nores, ou sobrerreagindo em mo- ricanas da revista The Economist. e institucional que dividia o país e
car do presidente Barack Obama, por oca- ao longo dos seus dois mandatos demons- nômica se aprofundavam internamente, e mentos em que a melhor postura A primeira dessas edições, de levaria, meses depois, ao impeachment
sião de sua visita ao Brasil em 2011, uma tram que a presidenta perdeu de vista o o mercado consumidor retroagia, a mais teria sido a perseverança do diálogo. novembro de 2009, estampava a fi- de Dilma Rousseff.
demonstração inequívoca de apoio à pre- horizonte largo da estratégia internacional importante credencial internacional de O primeiro episódio foi o imbró-
tensão do país de assumir um assento per- ambiciosa implementada por Lula da Sil- economia emergente começava a esmae- glio diplomático causado pela trans-
manente no Conselho de Segurança das va. As condições do diálogo social foram cer, qual seja, a construção de um grande ferência ao Brasil do senador boli-
Nações Unidas? A presidenta, enfim, pa- comprometidas, e o governo passou a acu- mercado de massas. Os investimentos ex- viano Roger Pinto Molina, em
rece jamais ter compreendido que as re- mular críticas muito intensas sobre o mo- ternos diretos encolheram, e se tornou 2013, que levou à demissão do chan-
lações de causa e efeito em política inter- do como estava a conduzir, erraticamen- evidente a existência de uma grande e in- celer Antônio Patriota. O segundo
nacional e em política externa não obe- te, muitos dos dossiês da política externa. solúvel crise fiscal, que ainda na metade foi, certamente, a reação às denún-
decem às leis da física – e o pior, nenhum O Brasil de Rousseff foi perdendo a ca- do primeiro mandato de Rousseff já era cias de Edward Snowden, que em
dos seus assessores teve a coragem de lhe pacidade de iniciativa em muitos planos e apontada como o grande problema da eco- 2013 facilitou a publicação de do-
explicar os fundamentos da diplomacia, foi deixando de lado as grandes ambições nomia brasileira. cumentos comprovadores do mo-
ou que não há força suficiente no céu e herdadas do momento anterior. O caso Ao aceitar impassivelmente a ascensão nitoramento da Agência Nacional
na terra que consiga impor a vontade e o mais notável é o da polêmica tese da re- da liderança da Rússia e da China no gru- de Segurança dos Estados Unidos
desejo do Brasil ao líder do país mais po- forma das instituições onusianas e da rei- po dos BRICS, o Brasil se pôs ao reboque sobre as comunicações da própria
deroso do mundo. vindicação de um assento permanente no de interesses e de visões da política inter- presidenta, como também as de vá-
A medida mais intensa de desinteresse Conselho de Segurança, que absorveu in- nacional com os quais tradicionalmente rias outras autoridades brasileiras.
da presidenta veio na imposição de um crível energia diplomática e muitos recur- não concordava, e silenciou em questões Esse último episódio levou ao adia-
bizarro enfraquecimento do Itamaraty, o sos ao longo de toda a primeira fase do como a crise humanitária causada pela mento, em protesto, de visita de

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política externa brasileira 20 21
Antônio Carlos Lessa A política externa brasileira no ciclo do Partido dos Trabalhadores

seu mentor, tampouco a sua figura inspi- qual operou em um limbo político muito guerra civil na Síria e a crise da Cri- Rousseff programada para poucos gura do Cristo Redentor em deco-
rou interesse internacional a ponto de cre- curioso e inédito. Em que pese o fato de
O impeachment foi meia. As relações com a China se meses depois. Não há dúvida de que lagem (“Brazil takes off ” [O Brasil
denciá-la como um personagem crível da não demonstrar afeição de nenhuma for- recebido no mundo com fizeram de súbito prioritárias, e o a espionagem de autoridades de um decola]), em sincronia com o oti-
sua própria diplomacia presidencial. Mas ma aos temas da política externa, e de ter crescimento do seu perfil diante do país aliado é inominável e natural- mismo traduzido nos balanços feitos
sabe-se que diplomacia presidencial não demonstrado inúmeras vezes que deles não relativa normalidade Brasil causou perplexidade aos par- mente deveria suscitar protestos no ao final dos dois mandatos de Lula
se resume à representação e está muito se ocuparia, Rousseff também não deu à ceiros tradicionais, como se obser- mais alto nível. Entretanto, o resul- da Silva. A segunda, de setembro
longe de se esgotar na teatralização dos diplomacia a autonomia necessária para se
e entendido como uma vou na visita do premiê daquele tado prático da reação da Presidên- de 2013 (“Has Brazil blown it?” [O
eventos diplomáticos. Como medida de ocupar solitária e integralmente da for- demonstração de que país, Li Keqiang, em maio de 2015, cia da República, muito acima do Brasil teria estragado tudo?]), trazia
interesse, a diplomacia presidencial de mulação dos movimentos táticos da estra- quando foram anunciados acordos tom necessário para exprimir um a mesma figura icônica do Cristo
Rousseff foi um rotundo retrocesso, por- tégia de política externa do seu governo, temos instituições de investimentos próximos à soma protesto efetivo, foi pouco pragmá- Redentor, com os propulsores da
que a presidenta não apenas não demons- escondendo com a discrição usual o de- de 53 bilhões de dólares. tico e levou ao comprometimento, edição anterior em falha, apontan-
trou nenhum interesse pela agenda exter- sinteresse da presidenta. Ao contrário, sob maduras. Mas a Assistiu-se ao inconsequente por alguns meses, da qualidade do do para a queda iminente e o seu
na do seu governo, como, de certo modo,
confundiu a liturgia do cargo com a de-
Rousseff o Ministério teve o seu orça-
mento brutalmente comprimido, e co-
corrupção, a violência manejo da situação institucional do
Mercosul, e à suspensão do Paraguai
relacionamento bilateral com um
parceiro central para o Brasil.
mergulho fatal na Baía de Guana-
bara. Essa capa, como a matéria prin-
dicação necessária à definição de rumos e nheceu, com toda a intensidade, o inédi- e outros fatores em 2014, que propiciou a formali- cipal, traduzia a percepção geral de
ao ajustamento do projeto de política ex- to sabor do desprestígio junto ao primei- zação da admissão da Venezuela. De que, perto do fim do seu primeiro
terna que lhe foi legado. ro mandatário. A presidenta negou ao comprometem a resto, quanto ao Mercosul, que se Conclusão mandato, Dilma Rousseff tinha apa-
Rousseff não se furtou a demonstrar
que a política externa, como tudo o que
Itamaraty tempo em sua agenda até mes-
mo para o trivial das funções de um che-
imagem do país. tornava ainda mais heterogêneo com
a admissão da Venezuela, não se
Muitos analistas engajados nos as-
suntos do Brasil, especialmente nos
rentemente falhado na perseveran-
ça do modelo de gestão, de diálogo
se conectava com essa grande agenda, lhe fe de Estado, e avolumaram-se, ao longo avançou na busca negociada de so- meios acadêmicos nos Estados Uni- social e de política externa legado
repugnava. Não compreendeu o fato de do seu mandato e meio, as crônicas dos ciclo do PT, mas foi silenciada sem maio- luções para as deficiências e perfu- dos e na Europa, sintetizam de mo- pelo seu antecessor. A terceira edi-
os tempos da política externa serem dife- diplomatas estrangeiros que esperaram por res explicações. Em termos de conceitos rações da Tarifa Externa Comum e do duro como foi o país ao longo ção, de abril de 2016, que dessa vez
rentes dos tempos de formulação e de im- longuíssimos meses pelas cerimônias de e ideias relacionadas com a estratégia in- o consequente enfraquecimento da dos governos do ciclo do PT no trazia o Cristo Redentor ostentan-
plementação de qualquer outra política entrega de credenciais. Não há, em toda ternacional, viu-se que o triunfalismo da união aduaneira. poder: tudo o que foi feito entre a do um pedido de ajuda (“The be-
pública do seu governo, portanto, não en- a história brasileira, similares para as si- política externa de Lula se converteu, em Rousseff apequenou a estatura ascensão de Lula e a queda de Rous- trayal of Brazil” [A traição do Bra-
tendeu por que o Itamaraty não foi capaz tuações impostas por Rousseff ao Itama- pouco tempo, em um minimalismo mal presidencial envolvendo-se de mo- seff coube bem e foi bem traduzido sil]), fez, em sua matéria principal,
de demonstrar resultados rápidos. Por raty e à diplomacia. resolvido sob Rousseff. do infeliz no manejo de crises me- nas capas das edições latino-ame- um balanço da grande crise política
exemplo, por que não se conseguiu arran- As pequenas crises que se sucederam À medida que os efeitos da crise eco- nores, ou sobrerreagindo em mo- ricanas da revista The Economist. e institucional que dividia o país e
car do presidente Barack Obama, por oca- ao longo dos seus dois mandatos demons- nômica se aprofundavam internamente, e mentos em que a melhor postura A primeira dessas edições, de levaria, meses depois, ao impeachment
sião de sua visita ao Brasil em 2011, uma tram que a presidenta perdeu de vista o o mercado consumidor retroagia, a mais teria sido a perseverança do diálogo. novembro de 2009, estampava a fi- de Dilma Rousseff.
demonstração inequívoca de apoio à pre- horizonte largo da estratégia internacional importante credencial internacional de O primeiro episódio foi o imbró-
tensão do país de assumir um assento per- ambiciosa implementada por Lula da Sil- economia emergente começava a esmae- glio diplomático causado pela trans-
manente no Conselho de Segurança das va. As condições do diálogo social foram cer, qual seja, a construção de um grande ferência ao Brasil do senador boli-
Nações Unidas? A presidenta, enfim, pa- comprometidas, e o governo passou a acu- mercado de massas. Os investimentos ex- viano Roger Pinto Molina, em
rece jamais ter compreendido que as re- mular críticas muito intensas sobre o mo- ternos diretos encolheram, e se tornou 2013, que levou à demissão do chan-
lações de causa e efeito em política inter- do como estava a conduzir, erraticamen- evidente a existência de uma grande e in- celer Antônio Patriota. O segundo
nacional e em política externa não obe- te, muitos dos dossiês da política externa. solúvel crise fiscal, que ainda na metade foi, certamente, a reação às denún-
decem às leis da física – e o pior, nenhum O Brasil de Rousseff foi perdendo a ca- do primeiro mandato de Rousseff já era cias de Edward Snowden, que em
dos seus assessores teve a coragem de lhe pacidade de iniciativa em muitos planos e apontada como o grande problema da eco- 2013 facilitou a publicação de do-
explicar os fundamentos da diplomacia, foi deixando de lado as grandes ambições nomia brasileira. cumentos comprovadores do mo-
ou que não há força suficiente no céu e herdadas do momento anterior. O caso Ao aceitar impassivelmente a ascensão nitoramento da Agência Nacional
na terra que consiga impor a vontade e o mais notável é o da polêmica tese da re- da liderança da Rússia e da China no gru- de Segurança dos Estados Unidos
desejo do Brasil ao líder do país mais po- forma das instituições onusianas e da rei- po dos BRICS, o Brasil se pôs ao reboque sobre as comunicações da própria
deroso do mundo. vindicação de um assento permanente no de interesses e de visões da política inter- presidenta, como também as de vá-
A medida mais intensa de desinteresse Conselho de Segurança, que absorveu in- nacional com os quais tradicionalmente rias outras autoridades brasileiras.
da presidenta veio na imposição de um crível energia diplomática e muitos recur- não concordava, e silenciou em questões Esse último episódio levou ao adia-
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Antônio Carlos Lessa A política externa brasileira no ciclo do Partido dos Trabalhadores

Seria possível avaliar os erros e acer- Referências bibliográficas


tos do grande projeto de política exter-
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Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


política externa brasileira 22 23
Antônio Carlos Lessa A política externa brasileira no ciclo do Partido dos Trabalhadores

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Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


24 25
A grande crise da década de 2010 e a reforma do capitalismo moderno

A grande crise da década de 2010 e a

reforma do
capitalismo
moderno

frank60/shutterstock.com
A década de 2010 contrasta favoravelmente com a de 1930 na medida As modernas economias capitalistas estão sujeitas a tendo as firmas a pressões adicio- período de contração. A duração Naturalmente, mesmo quem
em que foram evitados grandes desastres econômicos, a despeito dois tipos de crises econômicas. Nas recessões, vemos nais. Se não tiver seu curso impe- da crise e a gravidade das perdas tem apenas um conhecimento su-
da violência da crise financeira de 2008-2009. Evitar o desastre, porém, contrações superficiais da produção e, de um modo dido, o colapso pode levar a quedas tendem a enfraquecer as estrutu- perficial da Grande Depressão da
não foi suficiente para repor as economias desenvolvidas nos trilhos geral, pequenos aumentos no desemprego. As em- significativas da produção e a au- ras econômicas, políticas e sociais, década de 1930 há de reconhecer
do crescimento sustentável. As medidas mais rigorosas de reforma presas sofrem uma queda em suas taxas de ocupação mentos drásticos do desemprego. domésticas e internacionais. Nes- muitas de suas características na
foram poucas e não se concentraram nos responsáveis pela crise, mas da capacidade instalada e em seus lucros, mas, tipi- A característica mais importan- sas circunstâncias, as propostas de representação convencional que
nos suspeitos de sempre, trabalhadores e empregados, que pagaram camente, não vão à falência, de modo que a recupe- te da depressão, porém, não é tan- reforma dessas estruturas podem acabamos de oferecer, especial-
pela estabilidade recém-readquirida com cortes salariais e a perda ração costuma ser rápida – às vezes, na verdade, tão to a profundidade da contração ini- adquirir uma aparência de plausi- mente no caso dos Estados Uni-
de benefícios. Os resultados dos sacrifícios impostos a grandes grupos rápida que muitas pessoas nem se dão conta de que cial, mas a dificuldade de a econo- bilidade e conquistar um público dos, mas também da Europa Oci-
da população foram escassos, se tanto. Não deve causar surpresa que a economia passou por uma recessão. A recessão tí- mia retomar seu ritmo anterior. Em que, de outro modo, não teriam. dental e Central. É largamente
tenha tido início uma reação política negativa, e sim que ela tenha pica não ameaça as estruturas econômicas, políticas outras palavras, a depressão dura Grupos extremistas podem tornar- sabido que, embora os Estados
demorado tanto para começar. e sociais. Com efeito, apenas em alguns casos muito um longo tempo, mesmo nos casos -se “a corrente dominante”. É pos- Unidos tenham retomado o cres-
especiais a recessão deixa algum vestígio na memó- em que a queda inicial é atenuada sível que suas propostas de mudan- cimento em 1933, quando o pre-
ria coletiva de um país. por políticas de governo. As eco- ça do sistema em desintegração sidente Roosevelt tomou posse e
As depressões são um bicho muito diferente. Tipi- nomias em depressão podem reto- soem aceitáveis até para pessoas que, pôs em prática as primeiras medi-
Fernando Cardim camente, começam pelo colapso violento de um ou mar o crescimento, porém com de modo geral, são sensatas. das do que ficou conhecido como
de Carvalho mais mercados de ativos, o que leva a uma grande des- taxas baixas e voláteis, além de A boa notícia é que, embora as o New Deal, só no final daquela
Professor emérito do truição da riqueza privada. O colapso dos mercados configurações frágeis. Qualquer recessões sejam muito comuns, o década o crescimento foi suficien-
Instituto de Economia
da UFRJ e pesquisador de ativos tende a se traduzir numa contração do cré- choque, inclusive os que seriam mesmo não se dá com as depres- te para atingir os níveis de produ-
do CNPq. dito que impossibilita o funcionamento normal das considerados insignificantes em sões. A má notícia é que parece- ção anteriores à crise. Além disso,
empresas não financeiras. Além disso, as perdas de ri- condições normais, pode amea- mos estar atravessando uma dessas foi interrompido por outra grave
queza tendem a reduzir a demanda agregada, subme- çar levar a economia a um novo raras depressões. contração em 1937, exibindo o

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A grande crise da década de 2010 e a reforma do capitalismo moderno

A grande crise da década de 2010 e a

reforma do
capitalismo
moderno

frank60/shutterstock.com
A década de 2010 contrasta favoravelmente com a de 1930 na medida As modernas economias capitalistas estão sujeitas a tendo as firmas a pressões adicio- período de contração. A duração Naturalmente, mesmo quem
em que foram evitados grandes desastres econômicos, a despeito dois tipos de crises econômicas. Nas recessões, vemos nais. Se não tiver seu curso impe- da crise e a gravidade das perdas tem apenas um conhecimento su-
da violência da crise financeira de 2008-2009. Evitar o desastre, porém, contrações superficiais da produção e, de um modo dido, o colapso pode levar a quedas tendem a enfraquecer as estrutu- perficial da Grande Depressão da
não foi suficiente para repor as economias desenvolvidas nos trilhos geral, pequenos aumentos no desemprego. As em- significativas da produção e a au- ras econômicas, políticas e sociais, década de 1930 há de reconhecer
do crescimento sustentável. As medidas mais rigorosas de reforma presas sofrem uma queda em suas taxas de ocupação mentos drásticos do desemprego. domésticas e internacionais. Nes- muitas de suas características na
foram poucas e não se concentraram nos responsáveis pela crise, mas da capacidade instalada e em seus lucros, mas, tipi- A característica mais importan- sas circunstâncias, as propostas de representação convencional que
nos suspeitos de sempre, trabalhadores e empregados, que pagaram camente, não vão à falência, de modo que a recupe- te da depressão, porém, não é tan- reforma dessas estruturas podem acabamos de oferecer, especial-
pela estabilidade recém-readquirida com cortes salariais e a perda ração costuma ser rápida – às vezes, na verdade, tão to a profundidade da contração ini- adquirir uma aparência de plausi- mente no caso dos Estados Uni-
de benefícios. Os resultados dos sacrifícios impostos a grandes grupos rápida que muitas pessoas nem se dão conta de que cial, mas a dificuldade de a econo- bilidade e conquistar um público dos, mas também da Europa Oci-
da população foram escassos, se tanto. Não deve causar surpresa que a economia passou por uma recessão. A recessão tí- mia retomar seu ritmo anterior. Em que, de outro modo, não teriam. dental e Central. É largamente
tenha tido início uma reação política negativa, e sim que ela tenha pica não ameaça as estruturas econômicas, políticas outras palavras, a depressão dura Grupos extremistas podem tornar- sabido que, embora os Estados
demorado tanto para começar. e sociais. Com efeito, apenas em alguns casos muito um longo tempo, mesmo nos casos -se “a corrente dominante”. É pos- Unidos tenham retomado o cres-
especiais a recessão deixa algum vestígio na memó- em que a queda inicial é atenuada sível que suas propostas de mudan- cimento em 1933, quando o pre-
ria coletiva de um país. por políticas de governo. As eco- ça do sistema em desintegração sidente Roosevelt tomou posse e
As depressões são um bicho muito diferente. Tipi- nomias em depressão podem reto- soem aceitáveis até para pessoas que, pôs em prática as primeiras medi-
Fernando Cardim camente, começam pelo colapso violento de um ou mar o crescimento, porém com de modo geral, são sensatas. das do que ficou conhecido como
de Carvalho mais mercados de ativos, o que leva a uma grande des- taxas baixas e voláteis, além de A boa notícia é que, embora as o New Deal, só no final daquela
Professor emérito do truição da riqueza privada. O colapso dos mercados configurações frágeis. Qualquer recessões sejam muito comuns, o década o crescimento foi suficien-
Instituto de Economia
da UFRJ e pesquisador de ativos tende a se traduzir numa contração do cré- choque, inclusive os que seriam mesmo não se dá com as depres- te para atingir os níveis de produ-
do CNPq. dito que impossibilita o funcionamento normal das considerados insignificantes em sões. A má notícia é que parece- ção anteriores à crise. Além disso,
empresas não financeiras. Além disso, as perdas de ri- condições normais, pode amea- mos estar atravessando uma dessas foi interrompido por outra grave
queza tendem a reduzir a demanda agregada, subme- çar levar a economia a um novo raras depressões. contração em 1937, exibindo o

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economia internacional Fernando Cardim de Carvalho A grande crise da década de 2010 e a reforma do capitalismo moderno

padrão que é hoje chamado de quem chame a guerra de “o gran- exportações líquidas, isto é, o ex- res obscurecem o exame racional turas econômicas e políticas. Os
“mergulho duplo”. Outros países de experimento keynesiano”, no
O sistema internacional não cedente das exportações em rela- do que está realmente em jogo mercados de trabalho são profun-
tiveram experiências mais som- qual o governo dos Estados Uni- tem conseguido retornar ção às importações, possa oferecer nesses debates, os governos podem damente afetados pelo aumento do
brias. A tomada do poder na Ale- dos pôde fazer aumentos drásticos um modo de reanimar a econo- ser forçados a recuar para tentar desemprego em larga escala, por
manha pelos nazistas, em 1933, é da demanda agregada com apoio aos padrões de crescimento mia. Porém, quando a crise é mun- equilibrar as contas, exatamente exemplo. Os mercados financeiros,
o exemplo mais dramático. estatal, eliminando os últimos re- dial, é uma realidade aritmética num momento em que se neces- nos quais começou a maioria dos
Muitos países, inclusive as eco- manescentes do desemprego. Ho- anteriores à crise de 2008, que essa solução não pode funcio- sita do oposto.4 Aumenta-se a aus- colapsos reais, são reformulados
nomias mais importantes do mun- je, a economia mundial está às por- mesmo nos países mais bem- nar para todos (para que alguém teridade, como principal estratégia pela regulamentação, bem como
do – Estados Unidos, União Eu- tas do nono ano de crescimento tenha um excedente, é necessário alternativa “anticrise” a ser segui- pelas falhas de mercado e pela
ropeia e Japão – têm-se portado, lento e volátil desde o colapso, e, sucedidos. Estamos em uma que alguém tenha um déficit). da pelos governos. Ao buscarem a reavaliação dos riscos. Também as
na década de 2010, de modo bas- na verdade, as esperanças de recu- Desde a década de 1930, as eco- ilusão de orçamentos equilibrados, estruturas políticas são abaladas. A
tante semelhante a como se por- peração de um desenvolvimento depressão. Ainda não sabemos nomias capitalistas modernas diante do decréscimo constante distribuição do poder é minucio-
tavam na década de 1930. A crise
financeira de 2007-2008 foi tão
sustentável têm diminuído, em vez
de aumentar. Além disso, em 2016
quando sairemos dela e não aprenderam que as políticas de ges-
tão da demanda implementadas
da receita de impostos, os gover-
nos acabam prolongando (e agra-
samente examinada, e os grupos
sociais geralmente dominantes são
ou mais grave do que a experi- – e, possivelmente, em 2017 – po- conhecemos bem seus efeitos. pelo Estado podem constituir uma vando, com o tempo) a depressão questionados sobre sua incapaci-
mentada em 1929-1932. O agra- dem ocorrer mudanças políticas alternativa mais promissora. Essa em vez de solucioná-la. dade de prevenir a destruição da
vamento da queda da produção e fatídicas em alguns dos países mais é a mensagem central da chamada Um erro comum a propósito economia. No outro extremo da
do emprego foi contido, em 2009, adiantados, inclusive nos Estados destrói uma parcela considerável revolução keynesiana, que mos- da depressão é a ideia de que as hierarquia social, grupos comu-
antes de chegar a níveis compará- Unidos. De repente, jornalistas, da riqueza do setor privado. Con- trou sua eficácia durante o “gran- economias af ligidas por ela sim- mente marginalizados são mobi-
veis aos dos primeiros anos da dé- políticos e a comunidade acadê- sumidores e investidores reagem à de experimento keynesiano” da plesmente se imobilizam ao longo lizados por demagogos, podendo
cada de 1930, mas o período sub- mica parecem perceber as seme- perda da riqueza reduzindo seus Segunda Guerra Mundial. Mas a dela. Não foi isso que realmente tornar-se tão inf luentes quanto
sequente foi caracterizado pela lhanças (bem como as diferenças, gastos. É claro que esse tipo de implementação de métodos key- aconteceu na década de 1930, e difíceis de harmonizar dentro das
mesma incapacidade de recupera- é claro) entre os acontecimentos reação, que parece bastante natu- nesianos de gestão da demanda não é isso que está acontecendo estruturas políticas existentes. Co-
ção das trajetórias de crescimento atuais e os da década de 1930. ral para investidores e famílias, iso- agregada pode criar seus próprios agora. Numa depressão, certa me- mo mostrou dramaticamente a dé-
anteriores à crise. Alguns econo- Neste texto, queremos avaliar ladamente, pode ser fatal para a problemas. Ela exige que os go- dida de recuperação efetivamente cada de 1930, as mudanças podem
mistas optaram por denominar a se é ou não razoável caracterizar economia como um todo. Como vernos aumentem seus gastos jus- ocorre. Mas o crescimento tende assumir uma forma benéfica, como
queda da produção em 2008-2009 o período decorrido desde 2007 uma bola de neve, os efeitos da tamente nos momentos em que a continuar baixo e volátil, com aconteceu nos Estados Unidos com
de grande recessão, mas com isso des- como “a grande depressão dos anos queda da demanda, da queda dos sua receita desce aos volumes mais sua continuidade sempre ameaça- a eleição do presidente Franklin
consideram o fato de que a crise não 2010”, examinando o comporta- lucros, da queda da produção e da baixos. A dívida pública pode ter da, o que pode provir de todos os D. Roosevelt, ou podem desenca-
terminou em 2009; apenas trans- mento da economia interna dos queda do emprego, todos obvia- – e em geral tem – um aumento pontos dos sistemas econômicos e dear os mais sombrios impulsos da
formou-se naquela fase em que o principais países capitalistas, as es- mente interligados, levam a eco- explosivo durante algum tempo. políticos. A economia deprimida natureza humana, como aconteceu
crescimento continua baixo e vo- tratégias adotadas na política na- nomia a deslizar por uma encosta É provável que emerja uma forte pode levar muito tempo para atin- nos movimentos fascistas, entre os
látil, e a ameaça de um mergulho cional para lidar com a crise fi- escorregadia em direção ao fundo. oposição política a esses métodos, gir os níveis de produção e em- quais nenhum parece ter sido pior
duplo (ou triplo, em alguns casos) nanceira e suas consequências, É nesse momento que tem início apontando para a irresponsabili- prego anteriores à crise, ou sua que o nazismo.
está sempre presente. Alguns ana- além das mudanças econômicas e a segunda fase. Durante uma re- dade de líderes políticos que gas- trajetória de crescimento pré-cri- Esses desdobramentos não são
listas sugeriram chamar os anos de- políticas mais duradouras que re- cessão normal, a própria queda de- tam mais do que o governo reco- se. Os ganhos dolorosamente ob- predestinados. As depressões são
corridos desde 2009 de “o novo sultaram dessa experiência crucial. ve contribuir para a recuperação. lhe em impostos. O recurso a ideias tidos na renda e no bem-estar so- raras demais para nos permitirem
normal”, para enfatizar que o baixo Na depressão, porém, a economia tão simplistas quanto equivocadas, cial, ao longo de anos anteriores construir modelos deterministas,
crescimento se tornou permanente. parece exausta demais para reagir. como apontar a falsa equivalência ao colapso, podem perder-se – al- capazes de captar sua complexi-
Parece mais adequado, entretanto, 1. Uma visão convencional Os prejuízos aparentam ser irre- entre as restrições financeiras apli- guns para sempre –, enquanto ou- dade e prever qual será seu fim
chamar todo esse período de “gran- das depressões cuperáveis.2 Assim, a economia po- cáveis às famílias e aos governos tros exigem novos e intensos es- (na ausência de forças exógenas
de depressão dos anos 2010”.1 Se tomarmos por modelo a década de permanecer no fundo ou perto (“o governo é como uma famí- forços para serem reconstruídos. que possam, inesperadamente,
As depressões são processos de de 1930, diremos que a depressão dele durante um longo período.3 lia”), tende a se espalhar com ra- Tais consequências das depressões bloquear o caminho seguido pe-
combustão lenta. Muitos dizem se desenvolve em duas fases. Na Quando a recuperação espon- pidez, numa população facilmen- nunca devem ser subestimadas. las sociedades atingidas). Os riscos,
que a depressão da década de 1930 primeira, a economia sofre um co- tânea parece improvável, é preci- te amedrontada pela possibilidade Nessas condições, não deve no entanto, estiveram presentes na
só terminou na Segunda Guerra lapso violento, provavelmente ini- so buscar ajuda fora da economia de ter que pagar impostos crescen- causar surpresa que possam ocor- década de 1930 e podem estar apa-
Mundial, iniciada em 1939. Há ciado por uma crise financeira que nacional. Talvez o aumento das tes no futuro. Quando esses temo- rer mudanças profundas nas estru- recendo, tardiamente, neste final

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economia internacional Fernando Cardim de Carvalho A grande crise da década de 2010 e a reforma do capitalismo moderno

padrão que é hoje chamado de quem chame a guerra de “o gran- exportações líquidas, isto é, o ex- res obscurecem o exame racional turas econômicas e políticas. Os
“mergulho duplo”. Outros países de experimento keynesiano”, no
O sistema internacional não cedente das exportações em rela- do que está realmente em jogo mercados de trabalho são profun-
tiveram experiências mais som- qual o governo dos Estados Uni- tem conseguido retornar ção às importações, possa oferecer nesses debates, os governos podem damente afetados pelo aumento do
brias. A tomada do poder na Ale- dos pôde fazer aumentos drásticos um modo de reanimar a econo- ser forçados a recuar para tentar desemprego em larga escala, por
manha pelos nazistas, em 1933, é da demanda agregada com apoio aos padrões de crescimento mia. Porém, quando a crise é mun- equilibrar as contas, exatamente exemplo. Os mercados financeiros,
o exemplo mais dramático. estatal, eliminando os últimos re- dial, é uma realidade aritmética num momento em que se neces- nos quais começou a maioria dos
Muitos países, inclusive as eco- manescentes do desemprego. Ho- anteriores à crise de 2008, que essa solução não pode funcio- sita do oposto.4 Aumenta-se a aus- colapsos reais, são reformulados
nomias mais importantes do mun- je, a economia mundial está às por- mesmo nos países mais bem- nar para todos (para que alguém teridade, como principal estratégia pela regulamentação, bem como
do – Estados Unidos, União Eu- tas do nono ano de crescimento tenha um excedente, é necessário alternativa “anticrise” a ser segui- pelas falhas de mercado e pela
ropeia e Japão – têm-se portado, lento e volátil desde o colapso, e, sucedidos. Estamos em uma que alguém tenha um déficit). da pelos governos. Ao buscarem a reavaliação dos riscos. Também as
na década de 2010, de modo bas- na verdade, as esperanças de recu- Desde a década de 1930, as eco- ilusão de orçamentos equilibrados, estruturas políticas são abaladas. A
tante semelhante a como se por- peração de um desenvolvimento depressão. Ainda não sabemos nomias capitalistas modernas diante do decréscimo constante distribuição do poder é minucio-
tavam na década de 1930. A crise
financeira de 2007-2008 foi tão
sustentável têm diminuído, em vez
de aumentar. Além disso, em 2016
quando sairemos dela e não aprenderam que as políticas de ges-
tão da demanda implementadas
da receita de impostos, os gover-
nos acabam prolongando (e agra-
samente examinada, e os grupos
sociais geralmente dominantes são
ou mais grave do que a experi- – e, possivelmente, em 2017 – po- conhecemos bem seus efeitos. pelo Estado podem constituir uma vando, com o tempo) a depressão questionados sobre sua incapaci-
mentada em 1929-1932. O agra- dem ocorrer mudanças políticas alternativa mais promissora. Essa em vez de solucioná-la. dade de prevenir a destruição da
vamento da queda da produção e fatídicas em alguns dos países mais é a mensagem central da chamada Um erro comum a propósito economia. No outro extremo da
do emprego foi contido, em 2009, adiantados, inclusive nos Estados destrói uma parcela considerável revolução keynesiana, que mos- da depressão é a ideia de que as hierarquia social, grupos comu-
antes de chegar a níveis compará- Unidos. De repente, jornalistas, da riqueza do setor privado. Con- trou sua eficácia durante o “gran- economias af ligidas por ela sim- mente marginalizados são mobi-
veis aos dos primeiros anos da dé- políticos e a comunidade acadê- sumidores e investidores reagem à de experimento keynesiano” da plesmente se imobilizam ao longo lizados por demagogos, podendo
cada de 1930, mas o período sub- mica parecem perceber as seme- perda da riqueza reduzindo seus Segunda Guerra Mundial. Mas a dela. Não foi isso que realmente tornar-se tão inf luentes quanto
sequente foi caracterizado pela lhanças (bem como as diferenças, gastos. É claro que esse tipo de implementação de métodos key- aconteceu na década de 1930, e difíceis de harmonizar dentro das
mesma incapacidade de recupera- é claro) entre os acontecimentos reação, que parece bastante natu- nesianos de gestão da demanda não é isso que está acontecendo estruturas políticas existentes. Co-
ção das trajetórias de crescimento atuais e os da década de 1930. ral para investidores e famílias, iso- agregada pode criar seus próprios agora. Numa depressão, certa me- mo mostrou dramaticamente a dé-
anteriores à crise. Alguns econo- Neste texto, queremos avaliar ladamente, pode ser fatal para a problemas. Ela exige que os go- dida de recuperação efetivamente cada de 1930, as mudanças podem
mistas optaram por denominar a se é ou não razoável caracterizar economia como um todo. Como vernos aumentem seus gastos jus- ocorre. Mas o crescimento tende assumir uma forma benéfica, como
queda da produção em 2008-2009 o período decorrido desde 2007 uma bola de neve, os efeitos da tamente nos momentos em que a continuar baixo e volátil, com aconteceu nos Estados Unidos com
de grande recessão, mas com isso des- como “a grande depressão dos anos queda da demanda, da queda dos sua receita desce aos volumes mais sua continuidade sempre ameaça- a eleição do presidente Franklin
consideram o fato de que a crise não 2010”, examinando o comporta- lucros, da queda da produção e da baixos. A dívida pública pode ter da, o que pode provir de todos os D. Roosevelt, ou podem desenca-
terminou em 2009; apenas trans- mento da economia interna dos queda do emprego, todos obvia- – e em geral tem – um aumento pontos dos sistemas econômicos e dear os mais sombrios impulsos da
formou-se naquela fase em que o principais países capitalistas, as es- mente interligados, levam a eco- explosivo durante algum tempo. políticos. A economia deprimida natureza humana, como aconteceu
crescimento continua baixo e vo- tratégias adotadas na política na- nomia a deslizar por uma encosta É provável que emerja uma forte pode levar muito tempo para atin- nos movimentos fascistas, entre os
látil, e a ameaça de um mergulho cional para lidar com a crise fi- escorregadia em direção ao fundo. oposição política a esses métodos, gir os níveis de produção e em- quais nenhum parece ter sido pior
duplo (ou triplo, em alguns casos) nanceira e suas consequências, É nesse momento que tem início apontando para a irresponsabili- prego anteriores à crise, ou sua que o nazismo.
está sempre presente. Alguns ana- além das mudanças econômicas e a segunda fase. Durante uma re- dade de líderes políticos que gas- trajetória de crescimento pré-cri- Esses desdobramentos não são
listas sugeriram chamar os anos de- políticas mais duradouras que re- cessão normal, a própria queda de- tam mais do que o governo reco- se. Os ganhos dolorosamente ob- predestinados. As depressões são
corridos desde 2009 de “o novo sultaram dessa experiência crucial. ve contribuir para a recuperação. lhe em impostos. O recurso a ideias tidos na renda e no bem-estar so- raras demais para nos permitirem
normal”, para enfatizar que o baixo Na depressão, porém, a economia tão simplistas quanto equivocadas, cial, ao longo de anos anteriores construir modelos deterministas,
crescimento se tornou permanente. parece exausta demais para reagir. como apontar a falsa equivalência ao colapso, podem perder-se – al- capazes de captar sua complexi-
Parece mais adequado, entretanto, 1. Uma visão convencional Os prejuízos aparentam ser irre- entre as restrições financeiras apli- guns para sempre –, enquanto ou- dade e prever qual será seu fim
chamar todo esse período de “gran- das depressões cuperáveis.2 Assim, a economia po- cáveis às famílias e aos governos tros exigem novos e intensos es- (na ausência de forças exógenas
de depressão dos anos 2010”.1 Se tomarmos por modelo a década de permanecer no fundo ou perto (“o governo é como uma famí- forços para serem reconstruídos. que possam, inesperadamente,
As depressões são processos de de 1930, diremos que a depressão dele durante um longo período.3 lia”), tende a se espalhar com ra- Tais consequências das depressões bloquear o caminho seguido pe-
combustão lenta. Muitos dizem se desenvolve em duas fases. Na Quando a recuperação espon- pidez, numa população facilmen- nunca devem ser subestimadas. las sociedades atingidas). Os riscos,
que a depressão da década de 1930 primeira, a economia sofre um co- tânea parece improvável, é preci- te amedrontada pela possibilidade Nessas condições, não deve no entanto, estiveram presentes na
só terminou na Segunda Guerra lapso violento, provavelmente ini- so buscar ajuda fora da economia de ter que pagar impostos crescen- causar surpresa que possam ocor- década de 1930 e podem estar apa-
Mundial, iniciada em 1939. Há ciado por uma crise financeira que nacional. Talvez o aumento das tes no futuro. Quando esses temo- rer mudanças profundas nas estru- recendo, tardiamente, neste final

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economia internacional Fernando Cardim de Carvalho A grande crise da década de 2010 e a reforma do capitalismo moderno

Figura 1 PIB real – Estados Unidos brando um tributo em termos da nitidamente inferior ao de antes
produção e do emprego,7 e para dela. As taxas de crescimento po-
Depois da crise, as três
18000,0 recuperar e sustentar o crescimen- dem ser semelhantes, mas persiste principais nações da Zona do
16000,0 to. Apesar disso, os dados dispo- o fato de que, se a economia hou-
14000,0 níveis sugerem que a iniciativa foi vesse continuado a avançar pelo Euro experimentaram trajetórias
12000,0 grande o bastante para instaurar caminho de sua tendência anterior,
10000,0
um piso à produção decrescente, a produção teria sido muito maior distintas. A Alemanha expandiu
8000,0
6000,0
limitando a profundidade da con- do que de fato é, na atualidade. o emprego, a França ficou
4000,0 tração muito antes de ela atingir Em termos comparativos, os
2000,0
n GDPC1 = PIB real nos EUA
níveis comparáveis aos suportados Estados Unidos são uma história estagnada e a Itália ainda tenta
0,0 na década de 1930. Naquela oca- de sucesso na superação da parte
sião, as medidas políticas mais efi- pior da crise. As figuras 2 e 3 exi- reverter a queda que sofreu
2000-04-01

2001-06-01

2002-08-01

2011-12-01
2003-10-01

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cazes contra a crise só começaram
a ser adotadas depois que a produ-
bem trajetórias semelhantes na
União Europeia, na Zona do Euro
logo depois do colapso.
Fonte: Federal Reserve Bank of St Louis. ção e o emprego já haviam des- e em algumas experiências nacio-
pencado a níveis abissais. nais seletas. A figura 2 mostra a França demorou mais: o nível do
Esperava-se que o pacote ini- evolução da produção nas três maio- PIB real de 2008 só foi atingido
Figura 2 Índice dos níveis do PIB real – União Europeia, Zona do Euro e países selecionados cial fosse seguido por outras me- res economias da União Europeia em 2012 e, a partir daí, cresceu com
didas similares, destinadas a am- (exceto o Reino Unido) – Alema- menos rapidez que o da Alemanha.
140 pliar a demanda e acelerar a recu- nha, França e Itália – desde 2004. Repetindo, se deixarmos de lado
120 peração. Por várias razões, de A figura 3 mostra os mesmos dados o caso italiano, no qual a recupe-
100
natureza mais política do que eco- em duas das economias que sofre- ração ainda está por se concretizar,
nômica, essas medidas adicionais ram as maiores perdas com a crise: o crescimento tornou-se positivo
80
nunca se materializaram. Depois Espanha e Portugal.9 na União Europeia, na Zona do
60
que os democratas perderam a Pela figura 2, tomamos conhe- Euro e nas duas maiores economias,
40
n UE (28 países) n Zona do Euro (19 países) n Alemanha n França n Itália maioria na Câmara dos Deputa- cimento de que o pior da crise foi mas com uma tendência de produ-
20 dos, em 2011, tornou-se pratica- sentido na Europa Ocidental em ção inferior à de antes da crise.
0 mente impossível negociar novas 2009, depois do choque do banco A figura 3 ilustra o desempe-
iniciativas fiscais, diante da opo- Lehman Brothers, em novembro nho dos países que foram mais du-
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sição republicana. Como conse- de 2008. Como não é de admirar, ramente atingidos pela crise. Es-
Fonte: Eurostat. quência, a política monetária teve dados o tamanho e a inf luência da panha e Portugal exemplificam a
de arcar com o ônus de tentar pro- Alemanha na economia das duas situação af litiva dos países em cri-
mover sozinha a recuperação, me- áreas econômicas de que ela faz se (a Grécia é uma espécie de ca-
da década de 2010, com as nuvens te examinados na literatura e por dos antes e depois do colapso. A diante a adoção das medidas ex- parte, a trajetória de produção das so fora de série em matéria de in-
ameaçadoras que começaram a se isso não iremos repeti-los aqui.6 crise originou-se nos mercados traordinárias que ficaram coleti- três coincide largamente. A Fran- tensidade da crise). Os dois países,
acumular em 2016, como discu- Um aspecto que tem sido muito financeiros norte-americanos em vamente con hecid as como ça segue mais ou menos essas tra- apesar de exibirem certo grau de
tiremos adiante. menos explorado, entretanto, é a meados de 2007 e se espalhou pa- “f lexibilização quantitativa”.8 jetórias, porém em nível mais baixo. recuperação (mais acentuado na
segunda fase da depressão – a di- ra o resto da economia nacional Na figura 1, podemos ver que A Itália fica bem atrás e sua trajetó- Espanha do que em Portugal), de-
ficuldade de retornar aos níveis em 2008 e 2009. No começo de o nível pré-crise da produção al- ria chega a incluir um “mergulho pois de haverem atingido o fundo
2. Alguns fatos relevantes de produção e emprego anterio- 2009, o presidente Obama, recém- cançado em 2008 só foi recupera- duplo”, isto é, uma segunda queda do poço em 2013, ainda estão mui-
sobre a década de 20105 res à crise e a visível incapacida- -empossado, obteve a aprovação do em 2011. Além disso, embora da produção, depois de um impul- to longe de alcançar os níveis de
Uma dimensão comum entre as de, mesmo no caso dos países mais do Congresso para um pacote fis- as taxas de crescimento, em média, so de recuperação malsucedido. produção pré-crise, que dirá de
crises das décadas de 1930 e 2010 bem-sucedidos, de retomar algo cal anticrise de aproximadamente pareçam comparáveis às exibidas A Alemanha, país de melhor superá-los, mesmo nos melhores
é sua disseminação internacional. semelhante às tendências pregres- US$ 800 bilhões. Esse valor foi antes da crise (apesar de serem mais desempenho, levou três anos para cenários futuros, nos quais eles não
Os colapsos financeiros que de- sas de crescimento. considerado baixo demais para voláteis no período posterior), a atingir o nível de produção pré- sofrem novos grandes impactos
sencadearam a depressão, em am- A figura 1 mostra a trajetória uma luta eficiente contra os ven- trajetória seguida pela produção, -crise: somente em 2011 o PIB negativos provenientes de uma
bos os casos, foram exaustivamen- de crescimento dos Estados Uni- tos de contração, que vinham co- depois da crise, deu-se num nível real igualou seu valor de 2008. A economia mundial ainda instável.

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Figura 1 PIB real – Estados Unidos brando um tributo em termos da nitidamente inferior ao de antes
produção e do emprego,7 e para dela. As taxas de crescimento po-
Depois da crise, as três
18000,0 recuperar e sustentar o crescimen- dem ser semelhantes, mas persiste principais nações da Zona do
16000,0 to. Apesar disso, os dados dispo- o fato de que, se a economia hou-
14000,0 níveis sugerem que a iniciativa foi vesse continuado a avançar pelo Euro experimentaram trajetórias
12000,0 grande o bastante para instaurar caminho de sua tendência anterior,
10000,0
um piso à produção decrescente, a produção teria sido muito maior distintas. A Alemanha expandiu
8000,0
6000,0
limitando a profundidade da con- do que de fato é, na atualidade. o emprego, a França ficou
4000,0 tração muito antes de ela atingir Em termos comparativos, os
2000,0
n GDPC1 = PIB real nos EUA
níveis comparáveis aos suportados Estados Unidos são uma história estagnada e a Itália ainda tenta
0,0 na década de 1930. Naquela oca- de sucesso na superação da parte
sião, as medidas políticas mais efi- pior da crise. As figuras 2 e 3 exi- reverter a queda que sofreu
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cazes contra a crise só começaram
a ser adotadas depois que a produ-
bem trajetórias semelhantes na
União Europeia, na Zona do Euro
logo depois do colapso.
Fonte: Federal Reserve Bank of St Louis. ção e o emprego já haviam des- e em algumas experiências nacio-
pencado a níveis abissais. nais seletas. A figura 2 mostra a França demorou mais: o nível do
Esperava-se que o pacote ini- evolução da produção nas três maio- PIB real de 2008 só foi atingido
Figura 2 Índice dos níveis do PIB real – União Europeia, Zona do Euro e países selecionados cial fosse seguido por outras me- res economias da União Europeia em 2012 e, a partir daí, cresceu com
didas similares, destinadas a am- (exceto o Reino Unido) – Alema- menos rapidez que o da Alemanha.
140 pliar a demanda e acelerar a recu- nha, França e Itália – desde 2004. Repetindo, se deixarmos de lado
120 peração. Por várias razões, de A figura 3 mostra os mesmos dados o caso italiano, no qual a recupe-
100
natureza mais política do que eco- em duas das economias que sofre- ração ainda está por se concretizar,
nômica, essas medidas adicionais ram as maiores perdas com a crise: o crescimento tornou-se positivo
80
nunca se materializaram. Depois Espanha e Portugal.9 na União Europeia, na Zona do
60
que os democratas perderam a Pela figura 2, tomamos conhe- Euro e nas duas maiores economias,
40
n UE (28 países) n Zona do Euro (19 países) n Alemanha n França n Itália maioria na Câmara dos Deputa- cimento de que o pior da crise foi mas com uma tendência de produ-
20 dos, em 2011, tornou-se pratica- sentido na Europa Ocidental em ção inferior à de antes da crise.
0 mente impossível negociar novas 2009, depois do choque do banco A figura 3 ilustra o desempe-
iniciativas fiscais, diante da opo- Lehman Brothers, em novembro nho dos países que foram mais du-
2004

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sição republicana. Como conse- de 2008. Como não é de admirar, ramente atingidos pela crise. Es-
Fonte: Eurostat. quência, a política monetária teve dados o tamanho e a inf luência da panha e Portugal exemplificam a
de arcar com o ônus de tentar pro- Alemanha na economia das duas situação af litiva dos países em cri-
mover sozinha a recuperação, me- áreas econômicas de que ela faz se (a Grécia é uma espécie de ca-
da década de 2010, com as nuvens te examinados na literatura e por dos antes e depois do colapso. A diante a adoção das medidas ex- parte, a trajetória de produção das so fora de série em matéria de in-
ameaçadoras que começaram a se isso não iremos repeti-los aqui.6 crise originou-se nos mercados traordinárias que ficaram coleti- três coincide largamente. A Fran- tensidade da crise). Os dois países,
acumular em 2016, como discu- Um aspecto que tem sido muito financeiros norte-americanos em vamente con hecid as como ça segue mais ou menos essas tra- apesar de exibirem certo grau de
tiremos adiante. menos explorado, entretanto, é a meados de 2007 e se espalhou pa- “f lexibilização quantitativa”.8 jetórias, porém em nível mais baixo. recuperação (mais acentuado na
segunda fase da depressão – a di- ra o resto da economia nacional Na figura 1, podemos ver que A Itália fica bem atrás e sua trajetó- Espanha do que em Portugal), de-
ficuldade de retornar aos níveis em 2008 e 2009. No começo de o nível pré-crise da produção al- ria chega a incluir um “mergulho pois de haverem atingido o fundo
2. Alguns fatos relevantes de produção e emprego anterio- 2009, o presidente Obama, recém- cançado em 2008 só foi recupera- duplo”, isto é, uma segunda queda do poço em 2013, ainda estão mui-
sobre a década de 20105 res à crise e a visível incapacida- -empossado, obteve a aprovação do em 2011. Além disso, embora da produção, depois de um impul- to longe de alcançar os níveis de
Uma dimensão comum entre as de, mesmo no caso dos países mais do Congresso para um pacote fis- as taxas de crescimento, em média, so de recuperação malsucedido. produção pré-crise, que dirá de
crises das décadas de 1930 e 2010 bem-sucedidos, de retomar algo cal anticrise de aproximadamente pareçam comparáveis às exibidas A Alemanha, país de melhor superá-los, mesmo nos melhores
é sua disseminação internacional. semelhante às tendências pregres- US$ 800 bilhões. Esse valor foi antes da crise (apesar de serem mais desempenho, levou três anos para cenários futuros, nos quais eles não
Os colapsos financeiros que de- sas de crescimento. considerado baixo demais para voláteis no período posterior), a atingir o nível de produção pré- sofrem novos grandes impactos
sencadearam a depressão, em am- A figura 1 mostra a trajetória uma luta eficiente contra os ven- trajetória seguida pela produção, -crise: somente em 2011 o PIB negativos provenientes de uma
bos os casos, foram exaustivamen- de crescimento dos Estados Uni- tos de contração, que vinham co- depois da crise, deu-se num nível real igualou seu valor de 2008. A economia mundial ainda instável.

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


30 31
economia internacional Fernando Cardim de Carvalho A grande crise da década de 2010 e a reforma do capitalismo moderno

Figura 3 Índice dos níveis do PIB real – Portugal e Espanha Figura 6 Níveis totais de emprego nas três principais economias da Zona do Euro

120 45.000,0
40.000,0
115
35.000,0
110
30.000,0
105 25.000,0
100 20.000,0
15.000,0
95
10.000,0
90
Espanha Portugal 5.000,0
n n n Alemanha (até 1990, ex-território da RFA) n França n Itália
85 0,0

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Fonte: Eurostat. Fonte: Eurostat.

Figura 4 Total do emprego não agrícola nos Estados Unidos Figura 7 Níveis totais de emprego na Espanha e em Portugal

25.000,0
150000
n Espanha n Portugal
145000 20.000,0

140000
15.000,0
135000
10.000,0
130000

125000 5.000,0

120000
0,0
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2003-02-01

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Fonte: Eurostat.

Fonte: Federal Reserve Bank of St Louis.

Se olharmos para a situação do Isso resultou numa queda dos ín- A figura 6 mostra que as três
Figura 5 Níveis totais de emprego na Europa emprego, veremos um quadro pa- dices de desemprego, mesmo com principais nações da Zona do Eu-
recido.10 A figura 4 mostra a evo- o aumento do número dos que es- ro exibiram trajetórias distintas
250.000,0
lução do emprego não agrícola nos tavam à procura de trabalho. depois da crise. Enquanto a Ale-
200.000,0 Estados Unidos. Mais uma vez, Tendências menos favoráveis manha estampou um aumento
levou um bom tempo para que o podem ser observadas na Europa mais vigoroso do emprego, a Fran-
150.000,0 emprego alcançasse seu pico pré- Ocidental desde o colapso. Como ça parece haver estagnado, e a Itá-
-crise, mas a expansão parece ter mostra a figura 5, embora o em- lia ainda está por reverter a queda
100.000,0 sido menos volátil, depois que ele prego na União Europeia tenha sofrida logo depois de suportar o
voltou a crescer. Na verdade, o finalmente igualado seu pico pré- impacto do colapso.
50.000,0
crescimento do emprego foi gran- -crise em 2014, na Zona do Euro, Por fim, a figura 7 mostra que
n União Europeia (28 países) n Zona do Euro (19 países)
0,0
de o bastante para absorver os tra- segundo os últimos números di- a situação na Espanha e em Por-
balhadores que voltaram a procu- vulgados pelo Eurostat, ele ainda tugal continuava delicada (como
2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013

2014

rar trabalho, depois de passarem estava consideravelmente abaixo na Itália) no fim de 2014, apresen-
Fonte: Eurostat. algum tempo afastados do mercado. dessa marca no mesmo ano. tando ainda redução no nível do

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economia internacional Fernando Cardim de Carvalho A grande crise da década de 2010 e a reforma do capitalismo moderno

Figura 3 Índice dos níveis do PIB real – Portugal e Espanha Figura 6 Níveis totais de emprego nas três principais economias da Zona do Euro

120 45.000,0
40.000,0
115
35.000,0
110
30.000,0
105 25.000,0
100 20.000,0
15.000,0
95
10.000,0
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Espanha Portugal 5.000,0
n n n Alemanha (até 1990, ex-território da RFA) n França n Itália
85 0,0

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Fonte: Eurostat. Fonte: Eurostat.

Figura 4 Total do emprego não agrícola nos Estados Unidos Figura 7 Níveis totais de emprego na Espanha e em Portugal

25.000,0
150000
n Espanha n Portugal
145000 20.000,0

140000
15.000,0
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Fonte: Eurostat.

Fonte: Federal Reserve Bank of St Louis.

Se olharmos para a situação do Isso resultou numa queda dos ín- A figura 6 mostra que as três
Figura 5 Níveis totais de emprego na Europa emprego, veremos um quadro pa- dices de desemprego, mesmo com principais nações da Zona do Eu-
recido.10 A figura 4 mostra a evo- o aumento do número dos que es- ro exibiram trajetórias distintas
250.000,0
lução do emprego não agrícola nos tavam à procura de trabalho. depois da crise. Enquanto a Ale-
200.000,0 Estados Unidos. Mais uma vez, Tendências menos favoráveis manha estampou um aumento
levou um bom tempo para que o podem ser observadas na Europa mais vigoroso do emprego, a Fran-
150.000,0 emprego alcançasse seu pico pré- Ocidental desde o colapso. Como ça parece haver estagnado, e a Itá-
-crise, mas a expansão parece ter mostra a figura 5, embora o em- lia ainda está por reverter a queda
100.000,0 sido menos volátil, depois que ele prego na União Europeia tenha sofrida logo depois de suportar o
voltou a crescer. Na verdade, o finalmente igualado seu pico pré- impacto do colapso.
50.000,0
crescimento do emprego foi gran- -crise em 2014, na Zona do Euro, Por fim, a figura 7 mostra que
n União Europeia (28 países) n Zona do Euro (19 países)
0,0
de o bastante para absorver os tra- segundo os últimos números di- a situação na Espanha e em Por-
balhadores que voltaram a procu- vulgados pelo Eurostat, ele ainda tugal continuava delicada (como
2005

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2010

2011

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rar trabalho, depois de passarem estava consideravelmente abaixo na Itália) no fim de 2014, apresen-
Fonte: Eurostat. algum tempo afastados do mercado. dessa marca no mesmo ano. tando ainda redução no nível do

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economia internacional Fernando Cardim de Carvalho A grande crise da década de 2010 e a reforma do capitalismo moderno

emprego. A melhor notícia naque- dos. Dois aspectos dessa evolução na melhor das hipóteses, que a últimos anos? São muitos os can- de que a progressividade dos im- cadorias e de (alguns) serviços te-
la data (e, na verdade, há indícios prontamente saltam aos olhos. Pri- maioria dos trabalhadores obtive- didatos. Os sindicatos perderam postos tinha ido longe demais, tor- riam dado às empresas locais o
de melhora da situação em 2015 e meiro, os bons tempos que prece- ra poucas recompensas com a ex- quase todo o poder de sustentar nando-se incompatível com os in- pretexto de que elas precisavam
2016) parece ter sido que essas eco- deram a crise não eram realmen- plosão de crescimento, mesmo ten- os níveis salariais em quase todos centivos necessários para expandir para arrochar os salários e os be-
nomias haviam atingido o ponto te tão bons assim para todos. Esta do sido os que mais sofreram du- os países desenvolvidos. Em alguns a produção e o investimento no nefícios dos trabalhadores a fim
mais baixo em termos do emprego. não é, com certeza, uma notícia rante a contração posterior a ela. casos adotaram-se políticas ativas setor privado. de aumentar sua competitividade.
Dali em diante podia-se esperar, se chocante ou uma grande novida- Por que a concentração de ren- contra os sindicatos, como nos Es- Como a liberalização do comércio
não uma reação forte no futuro de. Já faz algum tempo que traba- da aumentou nesse ritmo e duran- tados Unidos do governo de Ro- abriu muito mais os mercados das
próximo, certa estabilidade. lhos como o de Thomas Picketty te tanto tempo, não somente nos nald Reagan ou no Reino Unido
O desemprego não economias avançadas que os dos
À primeira vista, mesmo que chamam atenção para o aumento Estados Unidos, é um fenômeno do governo de Margaret Thatcher, é um problema tão países em desenvolvimento, os tra-
a produção tenha-se expandido da concentração da renda nos Es- complexo que deve ser examinado às vezes a ponto de envolver atos balhadores dos países desenvolvi-
abaixo do que seria o nível satis- tados Unidos e em outros países por seus méritos no lugar apropria- de força, como a demissão em mas- crucial quanto já dos não tiveram alternativa a acei-
fatório, os trabalhadores dos países avançados. Examinando as figuras do, não neste artigo. Todavia, al- sa de controladores aéreos pelo tar salários mais baixos, menos
desenvolvidos devem sentir-se 5 e 8, vemos que o aumento da guns aspectos desse processo pre- presidente Reagan e a repressão
foi, mas a renda benefícios e menor inf luência nas
bem melhor do que em 2009, da- produção exibido na figura 1 não cisam ser mencionados, no mínimo que a primeira-ministra Thatcher não acompanhou decisões empresariais, a fim de
da a aparente redução da ameaça se traduziu em melhora da quali- por se terem tornado cada vez mais lançou contra o sindicato dos mi- conservar seus empregos. Embora
de desemprego. Entretanto, como dade de vida da família média nor- importantes em época recente, neradores de carvão. Em outros o crescimento do os trabalhadores dos países em de-
veremos adiante, a insatisfação dos te-americana. Não há tendência quando a penosa situação dos tra- casos, os sindicatos perderam po- senvolvimento provavelmente dis-
trabalhadores dos Estados Unidos crescente visível na série da renda balhadores ocupou o centro do pal- der em decorrência de mudanças emprego. Isso gera cordem dessa visão, seus equiva-
e de outros países, como França e
Itália, aparenta ser grande – maior
familiar, pelo menos desde 2000.
Seria de esperar que o empobre-
co no processo político de muitos
países avançados. Isso levou líderes
nos próprios processos de produ-
ção. Além do velho fantasma da
um acúmulo de lentes nas economias avançadas
tendem a achar que são forçados a
do que seria razoável – se a única cimento causado pela crise se re- políticos extremistas a uma posição automação, que muitos acreditam tensões, com claras arcar com o ônus da concorrência
preocupação dessas nações for ti- f letisse na queda observada nessa de destaque que a maioria das pes- ter tornado supérf luo um número desleal das regiões em desenvol-
rar pessoas da inatividade forçada. renda depois de 2007, mas o pe- soas do mundo teria julgado im- crescente de trabalhadores, outras repercussões na vimento, o que leva ao que se cos-
O mistério se resolve facilmen-
te observando-se a figura 8, que
ríodo até 2007 foi de expansão
para a economia norte-americana
provável apenas alguns anos atrás.
Que elemento mais inf luiu no
mudanças nos processos produti-
vos empurram na mesma direção,
atividade política. tuma chamar de “corrida para o
fundo” nas condições de trabalho.11
mostra a evolução da renda real e, mesmo naquela fase, a renda fa- aumento da concentração de ren- como as que abrem novas possibi- Efeitos similares de redução da
da família média nos Estados Uni- miliar média estagnada mostrou, da nas economias avançadas nos lidades de se trabalhar em casa, Aqui, não podemos examinar remuneração e dos benefícios tra-
com horários f lexíveis. A disper- adequadamente esse difícil pro- balhistas também viriam a resultar
são dos trabalhadores contribui blema. De qualquer modo, bem de fenômenos como o incentivo
Figura 8 Renda real da família média – Estados Unidos para reduzir o incentivo à solida- orientadas ou não, a maioria das às empresas nacionais dos países
riedade entre eles, condição para pessoas pareceu convencer-se de desenvolvidos para terceirizar
72000 que se criem sindicatos fortes. que, nas últimas décadas, a guina- suas atividades em países mais po-
Houve outras mudanças im- da decisiva para a globalização te- bres, onde o custo da mão de obra
70000
portantes, como o recurso cres- ve boa parcela de responsabilidade, é mais barato, reduzindo com isso
68000 cente a reformas fiscais regressivas. talvez a maior, nesses desdobra- as oportunidades oferecidas nesses
Reduzir a progressividade dos im- mentos. Culpou-se a globalização países pelo setor industrial, no qual,
66000
postos, ou até invertê-la, tornou- pela concentração da renda nos historicamente, a remuneração do
64000 -se um marco das políticas “mo- países avançados, em especial nos trabalho era a mais alta. Na me-
dernas”, pelo menos até a década Estados Unidos, particularmente dida em que o progresso técnico
62000 de 2000, não só nos grupos polí- pela expansão do comércio inter- foi simplificando muitas das tare-
n MFAINUSA672N = Família média nos Estados Unidos, n = 672
ticos conservadores, mas também nacional e pelos problemas corre- fas envolvidas na fabricação de pro-
60000
em partidos políticos mais pro- latos criados pela terceirização da dutos e tornando-as acessíveis a
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gressistas, como os democratas de produção e pelo aumento da imi- operários menos qualificados, ao
Bill Clinton, nos Estados Unidos, gração. O crescimento do comér- mesmo tempo que trabalhadores
e o novo trabalhismo de Tony Blair. cio internacional e a eliminação de dos países em desenvolvimento se
Fonte: Federal Reserve Bank of St. Louis. Ambos pareceram aceitar a ideia barreiras à livre circulação de mer- preparavam melhor para executar

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economia internacional Fernando Cardim de Carvalho A grande crise da década de 2010 e a reforma do capitalismo moderno

emprego. A melhor notícia naque- dos. Dois aspectos dessa evolução na melhor das hipóteses, que a últimos anos? São muitos os can- de que a progressividade dos im- cadorias e de (alguns) serviços te-
la data (e, na verdade, há indícios prontamente saltam aos olhos. Pri- maioria dos trabalhadores obtive- didatos. Os sindicatos perderam postos tinha ido longe demais, tor- riam dado às empresas locais o
de melhora da situação em 2015 e meiro, os bons tempos que prece- ra poucas recompensas com a ex- quase todo o poder de sustentar nando-se incompatível com os in- pretexto de que elas precisavam
2016) parece ter sido que essas eco- deram a crise não eram realmen- plosão de crescimento, mesmo ten- os níveis salariais em quase todos centivos necessários para expandir para arrochar os salários e os be-
nomias haviam atingido o ponto te tão bons assim para todos. Esta do sido os que mais sofreram du- os países desenvolvidos. Em alguns a produção e o investimento no nefícios dos trabalhadores a fim
mais baixo em termos do emprego. não é, com certeza, uma notícia rante a contração posterior a ela. casos adotaram-se políticas ativas setor privado. de aumentar sua competitividade.
Dali em diante podia-se esperar, se chocante ou uma grande novida- Por que a concentração de ren- contra os sindicatos, como nos Es- Como a liberalização do comércio
não uma reação forte no futuro de. Já faz algum tempo que traba- da aumentou nesse ritmo e duran- tados Unidos do governo de Ro- abriu muito mais os mercados das
próximo, certa estabilidade. lhos como o de Thomas Picketty te tanto tempo, não somente nos nald Reagan ou no Reino Unido
O desemprego não economias avançadas que os dos
À primeira vista, mesmo que chamam atenção para o aumento Estados Unidos, é um fenômeno do governo de Margaret Thatcher, é um problema tão países em desenvolvimento, os tra-
a produção tenha-se expandido da concentração da renda nos Es- complexo que deve ser examinado às vezes a ponto de envolver atos balhadores dos países desenvolvi-
abaixo do que seria o nível satis- tados Unidos e em outros países por seus méritos no lugar apropria- de força, como a demissão em mas- crucial quanto já dos não tiveram alternativa a acei-
fatório, os trabalhadores dos países avançados. Examinando as figuras do, não neste artigo. Todavia, al- sa de controladores aéreos pelo tar salários mais baixos, menos
desenvolvidos devem sentir-se 5 e 8, vemos que o aumento da guns aspectos desse processo pre- presidente Reagan e a repressão
foi, mas a renda benefícios e menor inf luência nas
bem melhor do que em 2009, da- produção exibido na figura 1 não cisam ser mencionados, no mínimo que a primeira-ministra Thatcher não acompanhou decisões empresariais, a fim de
da a aparente redução da ameaça se traduziu em melhora da quali- por se terem tornado cada vez mais lançou contra o sindicato dos mi- conservar seus empregos. Embora
de desemprego. Entretanto, como dade de vida da família média nor- importantes em época recente, neradores de carvão. Em outros o crescimento do os trabalhadores dos países em de-
veremos adiante, a insatisfação dos te-americana. Não há tendência quando a penosa situação dos tra- casos, os sindicatos perderam po- senvolvimento provavelmente dis-
trabalhadores dos Estados Unidos crescente visível na série da renda balhadores ocupou o centro do pal- der em decorrência de mudanças emprego. Isso gera cordem dessa visão, seus equiva-
e de outros países, como França e
Itália, aparenta ser grande – maior
familiar, pelo menos desde 2000.
Seria de esperar que o empobre-
co no processo político de muitos
países avançados. Isso levou líderes
nos próprios processos de produ-
ção. Além do velho fantasma da
um acúmulo de lentes nas economias avançadas
tendem a achar que são forçados a
do que seria razoável – se a única cimento causado pela crise se re- políticos extremistas a uma posição automação, que muitos acreditam tensões, com claras arcar com o ônus da concorrência
preocupação dessas nações for ti- f letisse na queda observada nessa de destaque que a maioria das pes- ter tornado supérf luo um número desleal das regiões em desenvol-
rar pessoas da inatividade forçada. renda depois de 2007, mas o pe- soas do mundo teria julgado im- crescente de trabalhadores, outras repercussões na vimento, o que leva ao que se cos-
O mistério se resolve facilmen-
te observando-se a figura 8, que
ríodo até 2007 foi de expansão
para a economia norte-americana
provável apenas alguns anos atrás.
Que elemento mais inf luiu no
mudanças nos processos produti-
vos empurram na mesma direção,
atividade política. tuma chamar de “corrida para o
fundo” nas condições de trabalho.11
mostra a evolução da renda real e, mesmo naquela fase, a renda fa- aumento da concentração de ren- como as que abrem novas possibi- Efeitos similares de redução da
da família média nos Estados Uni- miliar média estagnada mostrou, da nas economias avançadas nos lidades de se trabalhar em casa, Aqui, não podemos examinar remuneração e dos benefícios tra-
com horários f lexíveis. A disper- adequadamente esse difícil pro- balhistas também viriam a resultar
são dos trabalhadores contribui blema. De qualquer modo, bem de fenômenos como o incentivo
Figura 8 Renda real da família média – Estados Unidos para reduzir o incentivo à solida- orientadas ou não, a maioria das às empresas nacionais dos países
riedade entre eles, condição para pessoas pareceu convencer-se de desenvolvidos para terceirizar
72000 que se criem sindicatos fortes. que, nas últimas décadas, a guina- suas atividades em países mais po-
Houve outras mudanças im- da decisiva para a globalização te- bres, onde o custo da mão de obra
70000
portantes, como o recurso cres- ve boa parcela de responsabilidade, é mais barato, reduzindo com isso
68000 cente a reformas fiscais regressivas. talvez a maior, nesses desdobra- as oportunidades oferecidas nesses
Reduzir a progressividade dos im- mentos. Culpou-se a globalização países pelo setor industrial, no qual,
66000
postos, ou até invertê-la, tornou- pela concentração da renda nos historicamente, a remuneração do
64000 -se um marco das políticas “mo- países avançados, em especial nos trabalho era a mais alta. Na me-
dernas”, pelo menos até a década Estados Unidos, particularmente dida em que o progresso técnico
62000 de 2000, não só nos grupos polí- pela expansão do comércio inter- foi simplificando muitas das tare-
n MFAINUSA672N = Família média nos Estados Unidos, n = 672
ticos conservadores, mas também nacional e pelos problemas corre- fas envolvidas na fabricação de pro-
60000
em partidos políticos mais pro- latos criados pela terceirização da dutos e tornando-as acessíveis a
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gressistas, como os democratas de produção e pelo aumento da imi- operários menos qualificados, ao
Bill Clinton, nos Estados Unidos, gração. O crescimento do comér- mesmo tempo que trabalhadores
e o novo trabalhismo de Tony Blair. cio internacional e a eliminação de dos países em desenvolvimento se
Fonte: Federal Reserve Bank of St. Louis. Ambos pareceram aceitar a ideia barreiras à livre circulação de mer- preparavam melhor para executar

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


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economia internacional Fernando Cardim de Carvalho A grande crise da década de 2010 e a reforma do capitalismo moderno

essas tarefas, esses postos de traba- nais aparentemente confinados a devidas providências em tempo além disso, é possível tomar em- mento da especulação, da alavan-
lho deixaram de ser oferecidos a um segmento muito específico do hábil, pois as mesmas autoridades préstimos mediante a emissão de cagem financeira e da falta de li-
É quase inacreditável
trabalhadores dos países avançados mercado de títulos hipotecários, pareceram incapazes de avaliar as obrigações de curto prazo para quidez foi uma das grandes a resiliência da ideia
e foram deslocados para áreas mais pareceu um excesso de imagina- consequências das políticas das ins- comprar esses ativos, obtém-se um prioridades dos chefes de Estado
pobres. O que restou para os tra- ção considerar-se a possibilidade tituições financeiras e de suas pró- lucro adicional pela diferença cos- e de governo congregados no G20, de austeridade fiscal.
balhadores nacionais foram os em- de que as autoridades norte-ame- prias medidas.13 tumeira entre as taxas de juros em que se reuniu pela primeira vez no
pregos mal-remunerados em ser- ricanas fossem incapazes de conter No começo de 2009 já estava curto prazo e os retornos de títu- fim de 2008, em Washington. Fo- Ainda se espera que
viços de baixa qualificação, como seus impactos e de impedir o con- claro que o sistema bancário de los de prazo mais longo (costu- ros reguladores, como o Comitê os empresários
os do comércio varejista ou de lan- tágio de outros mercados finan- países como os Estados Unidos, o mando as primeiras ser menores de Supervisão Bancária de Basileia
chonetes. Na medida em que a ceiros. Do mesmo modo, pratica- Reino Unido, a Suíça e a Alema- do que estes últimos). O proble- e o Fórum de Estabilidade Finan- resolvam aumentar
imigração aumentou, mais ou me- mente ninguém conseguia acre- nha, entre outros, tinha sido der- ma, claro, é que mais especulação ceira, rebatizado de Diretoria de
nos na mesma época, na maioria ditar nem mesmo na remota rubado pelos suspeitos de sempre: significa maior exposição à frus- Estabilidade Financeira, amplia- uma produção que
dos países desenvolvidos – em par-
te, por razões independentes, co-
possibilidade de que mercados fi-
nanceiros maiores viessem a ser
especulação, alavancagem finan-
ceira e falta de liquidez. As insti-
tração das expectativas; maior ala-
vancagem implica maior probabi-
ram o número de membros, a fim
de incluir países como Argentina,
não encontra demanda
mo a disseminação de violentos prejudicados por problemas dessa tuições financeiras, em geral, e os lidade de falência, caso essa frus- Brasil, México, Índia e China, en- e investir em novos
conf litos políticos e sociais em al- natureza, ou de que o governo fe- bancos, em particular, tinham tração ocorra de fato; e falta de tre outros. Um novo Acordo de
gumas regiões, mas também pelas deral norte-americano os deixas- apostado em ativos altamente es- liquidez significa que a emissão de Basileia foi rapidamente produzi- equipamentos que
necessidades materiais prementes se impactar negativamente as ati- peculativos, criados pela chamada obrigações de curto prazo requer do, para vedar as brechas da regu-
nas áreas mais pobres –, os traba- vidades reais. Afinal, tratava-se do securitização, isto é, a criação de a aceitação contínua, por parte dos lamentação prudencial bancária
não são necessários.
lhadores dispensados desses países país de Franklin Roosevelt. Era ativos financeiros com base no re- credores, dos pedidos dos devedo- que haviam deixado a porta aber- Por que eles tomariam
desenvolvidos tenderam a culpá-la inconcebível que as lições da dé- torno esperado de outros ativos res para rolar suas dívidas. Em 2007 ta para os bancos aumentarem a
por grande parte de seus proble- cada de 1930 pudessem ter sido financeiros. A securitização pode e 2008, essas três ameaças se ma- alavancagem e comprometerem a essas decisões?
mas, embora seja do conhecimen- esquecidas pelas autoridades no ter algumas virtudes, mas uma de terializaram e o sistema financei- liquidez de seus balanços. A Di-
to geral que as provas em que se poder em 2007 e 2008. suas características mais importan- ro, frágil como era, desmoronou. retoria de Estabilidade Financei-
baseiam essas ideias são insuficien- Mas o impensável aconteceu tes é obscurecer o verdadeiro per- Reformar as práticas financei- ra, por sua vez, definiu regras pa-
tes ou, simplesmente, inexistentes. – em parte porque as autoridades fil de risco dos ativos por trás dos ras que haviam permitido esse au- ra aumentar a transparência das
Seja como for, dado que o de- estadunidenses e de outros países papéis negociados entre institui-
semprego certamente não é hoje avançados pareceram, realmente, ções financeiras, bem como entre
um problema tão crucial quanto desconhecer alguns canais cruciais estas e investidores não financei-
foi em 2009 e 2010, mas, para uma de contágio entre os próprios mer- ros. O potencial da especulação
grande parcela da população, a cados financeiros e entre estes e a desinformada ou impropriamente
renda não aumentou pari passu com economia “real”. Os governos dos informada aumenta rapidamente
o crescimento do emprego, era de países desenvolvidos tinham cul- quando ativos de risco são subme-
esperar a acumulação de tensões tivado durante tanto tempo a fic- tidos a esses processos de disfarce.
políticas que se deu durante esse ção dos mercados financeiros efi- Atraídas pelos altos lucros ofe-
período. Voltaremos a este ponto cientes e autorreguladores, antes recidos por ativos cuja exposição
nas seções 5 e 6. da crise, que pareceram reagir ao a riscos parecia ser limitada, as ins-
acúmulo de problemas de 2007 e tituições financeiras recorreram à
2008 com choque e paralisia. Em alavancagem crescente, a fim de
3. Os mercados financeiros muitas ocasiões, as autoridades pa- aumentar seus próprios lucros.
depois do colapso receram genuinamente surpresas Quando se pode usar dinheiro de
Quando surgiram os primeiros si- ao descobrir como algumas insti- terceiros para adquirir ativos fi-

wikimedia commons - Dexxter


nais de inquietação nos mercados tuições financeiras eram alavan- nanceiros que pagam menos juros
financeiros dos Estados Unidos, cadas por empréstimos de terceiros do que se espera ganhar, alavan-
no final de 2006, a maioria dos e quão frágil era a situação do sis- cando assim as próprias apostas,
analistas tendeu a desconsiderar a tema financeiro no fim de 2006. não há limite para o volume do
importância deles.12 Estando os si- Além disso, não foram tomadas as lucro que se pode obter. Quando,

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economia internacional Fernando Cardim de Carvalho A grande crise da década de 2010 e a reforma do capitalismo moderno

essas tarefas, esses postos de traba- nais aparentemente confinados a devidas providências em tempo além disso, é possível tomar em- mento da especulação, da alavan-
lho deixaram de ser oferecidos a um segmento muito específico do hábil, pois as mesmas autoridades préstimos mediante a emissão de cagem financeira e da falta de li-
É quase inacreditável
trabalhadores dos países avançados mercado de títulos hipotecários, pareceram incapazes de avaliar as obrigações de curto prazo para quidez foi uma das grandes a resiliência da ideia
e foram deslocados para áreas mais pareceu um excesso de imagina- consequências das políticas das ins- comprar esses ativos, obtém-se um prioridades dos chefes de Estado
pobres. O que restou para os tra- ção considerar-se a possibilidade tituições financeiras e de suas pró- lucro adicional pela diferença cos- e de governo congregados no G20, de austeridade fiscal.
balhadores nacionais foram os em- de que as autoridades norte-ame- prias medidas.13 tumeira entre as taxas de juros em que se reuniu pela primeira vez no
pregos mal-remunerados em ser- ricanas fossem incapazes de conter No começo de 2009 já estava curto prazo e os retornos de títu- fim de 2008, em Washington. Fo- Ainda se espera que
viços de baixa qualificação, como seus impactos e de impedir o con- claro que o sistema bancário de los de prazo mais longo (costu- ros reguladores, como o Comitê os empresários
os do comércio varejista ou de lan- tágio de outros mercados finan- países como os Estados Unidos, o mando as primeiras ser menores de Supervisão Bancária de Basileia
chonetes. Na medida em que a ceiros. Do mesmo modo, pratica- Reino Unido, a Suíça e a Alema- do que estes últimos). O proble- e o Fórum de Estabilidade Finan- resolvam aumentar
imigração aumentou, mais ou me- mente ninguém conseguia acre- nha, entre outros, tinha sido der- ma, claro, é que mais especulação ceira, rebatizado de Diretoria de
nos na mesma época, na maioria ditar nem mesmo na remota rubado pelos suspeitos de sempre: significa maior exposição à frus- Estabilidade Financeira, amplia- uma produção que
dos países desenvolvidos – em par-
te, por razões independentes, co-
possibilidade de que mercados fi-
nanceiros maiores viessem a ser
especulação, alavancagem finan-
ceira e falta de liquidez. As insti-
tração das expectativas; maior ala-
vancagem implica maior probabi-
ram o número de membros, a fim
de incluir países como Argentina,
não encontra demanda
mo a disseminação de violentos prejudicados por problemas dessa tuições financeiras, em geral, e os lidade de falência, caso essa frus- Brasil, México, Índia e China, en- e investir em novos
conf litos políticos e sociais em al- natureza, ou de que o governo fe- bancos, em particular, tinham tração ocorra de fato; e falta de tre outros. Um novo Acordo de
gumas regiões, mas também pelas deral norte-americano os deixas- apostado em ativos altamente es- liquidez significa que a emissão de Basileia foi rapidamente produzi- equipamentos que
necessidades materiais prementes se impactar negativamente as ati- peculativos, criados pela chamada obrigações de curto prazo requer do, para vedar as brechas da regu-
nas áreas mais pobres –, os traba- vidades reais. Afinal, tratava-se do securitização, isto é, a criação de a aceitação contínua, por parte dos lamentação prudencial bancária
não são necessários.
lhadores dispensados desses países país de Franklin Roosevelt. Era ativos financeiros com base no re- credores, dos pedidos dos devedo- que haviam deixado a porta aber- Por que eles tomariam
desenvolvidos tenderam a culpá-la inconcebível que as lições da dé- torno esperado de outros ativos res para rolar suas dívidas. Em 2007 ta para os bancos aumentarem a
por grande parte de seus proble- cada de 1930 pudessem ter sido financeiros. A securitização pode e 2008, essas três ameaças se ma- alavancagem e comprometerem a essas decisões?
mas, embora seja do conhecimen- esquecidas pelas autoridades no ter algumas virtudes, mas uma de terializaram e o sistema financei- liquidez de seus balanços. A Di-
to geral que as provas em que se poder em 2007 e 2008. suas características mais importan- ro, frágil como era, desmoronou. retoria de Estabilidade Financei-
baseiam essas ideias são insuficien- Mas o impensável aconteceu tes é obscurecer o verdadeiro per- Reformar as práticas financei- ra, por sua vez, definiu regras pa-
tes ou, simplesmente, inexistentes. – em parte porque as autoridades fil de risco dos ativos por trás dos ras que haviam permitido esse au- ra aumentar a transparência das
Seja como for, dado que o de- estadunidenses e de outros países papéis negociados entre institui-
semprego certamente não é hoje avançados pareceram, realmente, ções financeiras, bem como entre
um problema tão crucial quanto desconhecer alguns canais cruciais estas e investidores não financei-
foi em 2009 e 2010, mas, para uma de contágio entre os próprios mer- ros. O potencial da especulação
grande parcela da população, a cados financeiros e entre estes e a desinformada ou impropriamente
renda não aumentou pari passu com economia “real”. Os governos dos informada aumenta rapidamente
o crescimento do emprego, era de países desenvolvidos tinham cul- quando ativos de risco são subme-
esperar a acumulação de tensões tivado durante tanto tempo a fic- tidos a esses processos de disfarce.
políticas que se deu durante esse ção dos mercados financeiros efi- Atraídas pelos altos lucros ofe-
período. Voltaremos a este ponto cientes e autorreguladores, antes recidos por ativos cuja exposição
nas seções 5 e 6. da crise, que pareceram reagir ao a riscos parecia ser limitada, as ins-
acúmulo de problemas de 2007 e tituições financeiras recorreram à
2008 com choque e paralisia. Em alavancagem crescente, a fim de
3. Os mercados financeiros muitas ocasiões, as autoridades pa- aumentar seus próprios lucros.
depois do colapso receram genuinamente surpresas Quando se pode usar dinheiro de
Quando surgiram os primeiros si- ao descobrir como algumas insti- terceiros para adquirir ativos fi-

wikimedia commons - Dexxter


nais de inquietação nos mercados tuições financeiras eram alavan- nanceiros que pagam menos juros
financeiros dos Estados Unidos, cadas por empréstimos de terceiros do que se espera ganhar, alavan-
no final de 2006, a maioria dos e quão frágil era a situação do sis- cando assim as próprias apostas,
analistas tendeu a desconsiderar a tema financeiro no fim de 2006. não há limite para o volume do
importância deles.12 Estando os si- Além disso, não foram tomadas as lucro que se pode obter. Quando,

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economia internacional Fernando Cardim de Carvalho A grande crise da década de 2010 e a reforma do capitalismo moderno

negociações financeiras, em es- de reativar o crédito, aos olhos das gerado pelas políticas fiscais ex- recessões. Os orçamentos equi- simplificação dos impostos, o con-
pecial as relacionadas com a se- autoridades nacionais. Como re-
Políticas econômicas baseadas pansionistas de 2009. librados podem não passar de um trole dos monopólios e, acima de
curitização e os chamados deri- sultado, a preocupação com a ex- em austeridade associam-se a Diversos analistas tentaram ex- fetiche, mas isso não explica a tudo, a f lexibilização dos mercados
vativos de balcão – de longe, a posição excessiva transformou-se plicar por que essa política pode durabilidade desse fetiche, mes- de trabalho são as reformas essen-
área mais obscura dos sistemas na preocupação com a exposição programas sociais regressivos, ser tão atraente para tantas pes- mo diante dos pesados custos que ciais, a serem combinadas com po-
financeiros modernos. insuficiente, isto é, com a dispo- soas, muitas delas no exercício do ele inf lige às economias que atra- líticas de austeridade, para criar
As instituições financeiras, des- sição muito reduzida, por parte
tendo em vista aumentar a poder executivo. Alguns defendem vessam uma recessão. um ambiente propício à inovação
tacando-se entre elas os bancos, dos bancos e outras instituições competitividade. Cria-se assim a ideia de que tudo é pura simu- Como no caso da concentra- e à acumulação de capital. O ob-
protestaram e questionaram pra- financeiras, de retomar a conces- lação. Os grupos dominantes da ção da renda, este também não é jetivo é aumentar a competitividade,
ticamente cada passo proposto por são de empréstimos e a compra de um jogo de soma zero, pois o sociedade, os “capitalistas”, pro- o lugar para desenvolvermos uma isto é, a capacidade de superar os
essas entidades. É importante res- ativos. Isso, é claro, reforçou o po- curam transferir os custos das cri- discussão completa sobre a auste- concorrentes nos mercados locais
saltar que o Comitê de Basileia, a der do setor bancário, que exigiu objetivo último é afastar outros ses geradas por sua gananciosa bus- ridade fiscal. Todavia, é impor- e internacionais. Em outras pala-
Diretoria de Estabilidade Finan-
ceira e outros foros similares não
mais e mais concessões, a ponto
de levantar dúvidas sobre quão
produtores dos mercados. ca de lucros defendendo a neces-
sidade de um esforço coletivo de
tante notar que as visões modernas
da austeridade diferem da visão
vras, a austeridade faz parte de uma
estratégia que se traduz em um
têm status oficial. Suas propostas eficiente seria a nova regulamen- apertar o cinto, a fim de equilibrar clássica exposta pelo Ministério jogo de soma zero, pois aumentar
são aceitas por países isolados co- tação para impedir, de fato, novos na esperança de que os empresá- as contas públicas. Está implícita da Fazenda britânico na década de a competitividade é, em última
mo lhes apraz, para serem tradu- excessos financeiros. rios sejam impelidos por esses sa- nessa postura a ideia de que o Es- 1920 e no início da década de 1930, instância, uma estratégia para afas-
zidas em legislação nacional con- Não há dúvida, porém, de que crifícios a expandir uma produção tado, não a ganância privada, foi pelo menos num aspecto signifi- tar outros produtores. Nesse con-
forme eles as considerem apro- algumas medidas importantes fo- para a qual não existe demanda e o verdadeiro perpetrador dos erros cativo. A visão britânica da auste- texto, a austeridade reduz o tama-
priadas e na medida em que as ram geralmente adotadas. Algum a investir em novos equipamentos que levaram ao colapso. Apelando ridade era conservadora, no sentido nho do aparelho estatal e sinaliza
julguem necessárias. É claro que controle sobre a alavancagem e a que não são necessários. para noções simplistas de como mais rigoroso, destinada a garan- para os integrantes da iniciativa
se exerce uma persuasão moral liquidez, uma nova compreensão Em sua encarnação mais re- funcionam as economias, para pre- tir que o Estado não perturbasse privada que não há nada a temer
sobre os países que tentam con- da natureza dos riscos sistêmicos cente, as políticas de austeridade conceitos e juízos equivocados e a economia privada. A austerida- na propensão do governo a inter-
tornar as medidas prudenciais co- criados pelo funcionamento dos seguiram as políticas razoavelmen- populares, respaldados pelo bom- de foi defendida porque pareceu vir em áreas das quais, na opinião
letivamente consideradas necessá- mercados financeiros e suas insti- te bem-sucedidas de estímulo da bardeio concentrado de uma im- ser a melhor maneira de minimi- deles, deveria manter-se afastado.14
rias, mas é só essa a extensão do tuições, o reconhecimento de que demanda adotadas no período ime- prensa predominantemente servil, zar o impacto da ação do governo
poder do Comitê de Supervisão mesmo as empresas não financei- diatamente posterior à crise finan- a austeridade não estava destinada sobre os mercados. Do mesmo mo-
Bancária de Basileia ou da Dire- ras podiam ser participantes des- ceira. Obviamente, tais políticas a ser levada a sério. Analistas lú- do, o controle da dívida pública 5. Repercussão política
toria de Estabilidade Financeira. tacadas dos mercados financeiros, não lograram êxito em reerguer cidos deveriam denunciar essas ajudava a preservar as condições negativa?
No fim de 2009 e início de tudo isso tendeu a permanecer na de fato as economias, por ser a posturas pelo que elas são: um sim- operacionais exigidas pelos mer- O sr. Schäuble, ministro das Fi-
2010, algumas regras já adotadas consciência dos reguladores e le- maioria delas tímida demais para ples instrumento de dominação. cados financeiros privados. nanças da Alemanha, af irmou
ou em discussão pareceram muito gisladores dos países desenvolvi- aspirar a tal impacto. Mas não há É óbvio que há alguns lampe- As visões modernas da auste- repetidas vezes que os efeitos po-
rigorosas. Com o tempo, entre- dos, ainda que eles efetivamente dúvida de que elas impediram que jos de verdade por trás dessa teoria ridade, em contraste, constituem, sitivos da austeridade, ao levarem
tanto, muitas delas se diluíram, ajam, como talvez seja inevitável, a queda nas atividades atingisse a conspiratória da austeridade. Em explicitamente, um elemento de os homens de negócios a confiar
seja por esclarecimentos e inter- para afrouxar o controle sobre o profundidade observada no come- todas as experiências de austeri- um programa reformista socialmen- em que os governos não interfe-
pretações emitidos pelos propo- sistema financeiro. ço da década de 1930. Com efeito, dade, o ônus principal da estraté- te regressivo. A austeridade é pro- rirão em suas atividades, mais do
nentes originais, seja por decisão nem mesmo os mais ardorosos de- gia realmente recai sobre os tra- posta como uma forma de conter que compensariam qualquer
das autoridades nacionais, ao pre- fensores de políticas de austerida- balhadores e a classe média, que o Estado, de diminuir seu tama- eventual impacto de contração
pararem sua própria versão da re- 4. O aumento da de, como Wolfgang Schäuble, mi- não lucraram tanto com a prospe- nho, e deve ser buscada paralela- na demanda agregada.15 Mas o
gulamentação financeira a ser le- austeridade nistro das Finanças da Alemanha, ridade quanto homens de negó- mente à promoção de reformas es- ministro Schäuble foi além des-
gislada ou adotada em seus ma- Um traço comum das décadas de questionam a eficácia das políticas cios, banqueiros, especuladores truturais. Essas reformas devem ser se argumento ao afirmar que as
nuais de normas. Na medida em 1930 e 2010 é a resiliência políti- adotadas em 2009. Schäuble pro- f inanceiros e outros. Mas isso propícias ao mercado, tidas como políticas de austeridade exigidas
que a crise se atenuou, a urgência ca quase inacreditável da ideia de pôs políticas de austeridade, inclu- dificilmente explicaria o forte algo que aumente a capacidade de pela Comissão Europeia, pres-
do assunto reduziu-se mais e mais. austeridade fiscal. Até mesmo a sive para a própria Alemanha, como apelo político de uma estratégia os mercados privados promove- sionada por um grupo de países
A necessidade de estabilizar os comprovação empírica dos pre- o suplemento necessário à interven- de austeridade, ou seja, a ideia de rem a inovação e reagirem com liderado pela Alemanha, nada
mercados financeiros foi sendo aos juízos que ela causou a economias ção, a fim de conter os déficits fis- que os orçamentos fiscais devem eficiência aos choques. A desre- tinham de “draconianas”, como
poucos substituída pela necessidade em crise deixa de ser considerada, cais e o aumento da dívida pública equilibrar-se mesmo durante as gulamentação, a privatização, a acusavam seus críticos. A prova

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economia internacional Fernando Cardim de Carvalho A grande crise da década de 2010 e a reforma do capitalismo moderno

negociações financeiras, em es- de reativar o crédito, aos olhos das gerado pelas políticas fiscais ex- recessões. Os orçamentos equi- simplificação dos impostos, o con-
pecial as relacionadas com a se- autoridades nacionais. Como re-
Políticas econômicas baseadas pansionistas de 2009. librados podem não passar de um trole dos monopólios e, acima de
curitização e os chamados deri- sultado, a preocupação com a ex- em austeridade associam-se a Diversos analistas tentaram ex- fetiche, mas isso não explica a tudo, a f lexibilização dos mercados
vativos de balcão – de longe, a posição excessiva transformou-se plicar por que essa política pode durabilidade desse fetiche, mes- de trabalho são as reformas essen-
área mais obscura dos sistemas na preocupação com a exposição programas sociais regressivos, ser tão atraente para tantas pes- mo diante dos pesados custos que ciais, a serem combinadas com po-
financeiros modernos. insuficiente, isto é, com a dispo- soas, muitas delas no exercício do ele inf lige às economias que atra- líticas de austeridade, para criar
As instituições financeiras, des- sição muito reduzida, por parte
tendo em vista aumentar a poder executivo. Alguns defendem vessam uma recessão. um ambiente propício à inovação
tacando-se entre elas os bancos, dos bancos e outras instituições competitividade. Cria-se assim a ideia de que tudo é pura simu- Como no caso da concentra- e à acumulação de capital. O ob-
protestaram e questionaram pra- financeiras, de retomar a conces- lação. Os grupos dominantes da ção da renda, este também não é jetivo é aumentar a competitividade,
ticamente cada passo proposto por são de empréstimos e a compra de um jogo de soma zero, pois o sociedade, os “capitalistas”, pro- o lugar para desenvolvermos uma isto é, a capacidade de superar os
essas entidades. É importante res- ativos. Isso, é claro, reforçou o po- curam transferir os custos das cri- discussão completa sobre a auste- concorrentes nos mercados locais
saltar que o Comitê de Basileia, a der do setor bancário, que exigiu objetivo último é afastar outros ses geradas por sua gananciosa bus- ridade fiscal. Todavia, é impor- e internacionais. Em outras pala-
Diretoria de Estabilidade Finan-
ceira e outros foros similares não
mais e mais concessões, a ponto
de levantar dúvidas sobre quão
produtores dos mercados. ca de lucros defendendo a neces-
sidade de um esforço coletivo de
tante notar que as visões modernas
da austeridade diferem da visão
vras, a austeridade faz parte de uma
estratégia que se traduz em um
têm status oficial. Suas propostas eficiente seria a nova regulamen- apertar o cinto, a fim de equilibrar clássica exposta pelo Ministério jogo de soma zero, pois aumentar
são aceitas por países isolados co- tação para impedir, de fato, novos na esperança de que os empresá- as contas públicas. Está implícita da Fazenda britânico na década de a competitividade é, em última
mo lhes apraz, para serem tradu- excessos financeiros. rios sejam impelidos por esses sa- nessa postura a ideia de que o Es- 1920 e no início da década de 1930, instância, uma estratégia para afas-
zidas em legislação nacional con- Não há dúvida, porém, de que crifícios a expandir uma produção tado, não a ganância privada, foi pelo menos num aspecto signifi- tar outros produtores. Nesse con-
forme eles as considerem apro- algumas medidas importantes fo- para a qual não existe demanda e o verdadeiro perpetrador dos erros cativo. A visão britânica da auste- texto, a austeridade reduz o tama-
priadas e na medida em que as ram geralmente adotadas. Algum a investir em novos equipamentos que levaram ao colapso. Apelando ridade era conservadora, no sentido nho do aparelho estatal e sinaliza
julguem necessárias. É claro que controle sobre a alavancagem e a que não são necessários. para noções simplistas de como mais rigoroso, destinada a garan- para os integrantes da iniciativa
se exerce uma persuasão moral liquidez, uma nova compreensão Em sua encarnação mais re- funcionam as economias, para pre- tir que o Estado não perturbasse privada que não há nada a temer
sobre os países que tentam con- da natureza dos riscos sistêmicos cente, as políticas de austeridade conceitos e juízos equivocados e a economia privada. A austerida- na propensão do governo a inter-
tornar as medidas prudenciais co- criados pelo funcionamento dos seguiram as políticas razoavelmen- populares, respaldados pelo bom- de foi defendida porque pareceu vir em áreas das quais, na opinião
letivamente consideradas necessá- mercados financeiros e suas insti- te bem-sucedidas de estímulo da bardeio concentrado de uma im- ser a melhor maneira de minimi- deles, deveria manter-se afastado.14
rias, mas é só essa a extensão do tuições, o reconhecimento de que demanda adotadas no período ime- prensa predominantemente servil, zar o impacto da ação do governo
poder do Comitê de Supervisão mesmo as empresas não financei- diatamente posterior à crise finan- a austeridade não estava destinada sobre os mercados. Do mesmo mo-
Bancária de Basileia ou da Dire- ras podiam ser participantes des- ceira. Obviamente, tais políticas a ser levada a sério. Analistas lú- do, o controle da dívida pública 5. Repercussão política
toria de Estabilidade Financeira. tacadas dos mercados financeiros, não lograram êxito em reerguer cidos deveriam denunciar essas ajudava a preservar as condições negativa?
No fim de 2009 e início de tudo isso tendeu a permanecer na de fato as economias, por ser a posturas pelo que elas são: um sim- operacionais exigidas pelos mer- O sr. Schäuble, ministro das Fi-
2010, algumas regras já adotadas consciência dos reguladores e le- maioria delas tímida demais para ples instrumento de dominação. cados financeiros privados. nanças da Alemanha, af irmou
ou em discussão pareceram muito gisladores dos países desenvolvi- aspirar a tal impacto. Mas não há É óbvio que há alguns lampe- As visões modernas da auste- repetidas vezes que os efeitos po-
rigorosas. Com o tempo, entre- dos, ainda que eles efetivamente dúvida de que elas impediram que jos de verdade por trás dessa teoria ridade, em contraste, constituem, sitivos da austeridade, ao levarem
tanto, muitas delas se diluíram, ajam, como talvez seja inevitável, a queda nas atividades atingisse a conspiratória da austeridade. Em explicitamente, um elemento de os homens de negócios a confiar
seja por esclarecimentos e inter- para afrouxar o controle sobre o profundidade observada no come- todas as experiências de austeri- um programa reformista socialmen- em que os governos não interfe-
pretações emitidos pelos propo- sistema financeiro. ço da década de 1930. Com efeito, dade, o ônus principal da estraté- te regressivo. A austeridade é pro- rirão em suas atividades, mais do
nentes originais, seja por decisão nem mesmo os mais ardorosos de- gia realmente recai sobre os tra- posta como uma forma de conter que compensariam qualquer
das autoridades nacionais, ao pre- fensores de políticas de austerida- balhadores e a classe média, que o Estado, de diminuir seu tama- eventual impacto de contração
pararem sua própria versão da re- 4. O aumento da de, como Wolfgang Schäuble, mi- não lucraram tanto com a prospe- nho, e deve ser buscada paralela- na demanda agregada.15 Mas o
gulamentação financeira a ser le- austeridade nistro das Finanças da Alemanha, ridade quanto homens de negó- mente à promoção de reformas es- ministro Schäuble foi além des-
gislada ou adotada em seus ma- Um traço comum das décadas de questionam a eficácia das políticas cios, banqueiros, especuladores truturais. Essas reformas devem ser se argumento ao afirmar que as
nuais de normas. Na medida em 1930 e 2010 é a resiliência políti- adotadas em 2009. Schäuble pro- f inanceiros e outros. Mas isso propícias ao mercado, tidas como políticas de austeridade exigidas
que a crise se atenuou, a urgência ca quase inacreditável da ideia de pôs políticas de austeridade, inclu- dificilmente explicaria o forte algo que aumente a capacidade de pela Comissão Europeia, pres-
do assunto reduziu-se mais e mais. austeridade fiscal. Até mesmo a sive para a própria Alemanha, como apelo político de uma estratégia os mercados privados promove- sionada por um grupo de países
A necessidade de estabilizar os comprovação empírica dos pre- o suplemento necessário à interven- de austeridade, ou seja, a ideia de rem a inovação e reagirem com liderado pela Alemanha, nada
mercados financeiros foi sendo aos juízos que ela causou a economias ção, a fim de conter os déficits fis- que os orçamentos fiscais devem eficiência aos choques. A desre- tinham de “draconianas”, como
poucos substituída pela necessidade em crise deixa de ser considerada, cais e o aumento da dívida pública equilibrar-se mesmo durante as gulamentação, a privatização, a acusavam seus críticos. A prova

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economia internacional Fernando Cardim de Carvalho A grande crise da década de 2010 e a reforma do capitalismo moderno

dessa pressão atenuada em prol Porém, nem mesmo as apa- la rejeição explícita da globali-
da austeridade era que muitos dos rentes melhoras na situação de zação e da interdependência in-
países dos quais se havia exigido emprego foram suficientes para ternacional, que foram dogmas
austeridade fiscal continuavam a melhorar de forma significativa no Ocidente nas últimas décadas.
exibir déficits fiscais significati- a situação de um grande número Se a globalização foi fonte de al-
vos, além de uma dívida pública de famílias nos países avançados. guns benefícios, quando as eco-
que continuava a crescer. Esta é a explicação mais imedia- nomias estavam prosperando, co-
Não é preciso um grande esfor- ta para desdobramentos políticos mo ilustrado pela evolução da
ço para perceber que o sr. Schäuble que se tornaram mais acentuados renda real das famílias nos Esta-
não estava sendo sincero. Os défi- a partir de 2013-2014. Na Euro- dos Unidos (figura 8, supra), e se
cits e a dívida pública aumentam pa, a ascensão de governos direi- ela foi a causa dos grandes pre-
por causa das políticas severas de tistas autoritários, no seio da pró- juízos sofridos, depois da crise,
austeridade, não apesar delas. A re- pria União Europeia, foi mais nos salários, nos benefícios e na
ceita tributária caiu e os déficits evidente em países do Leste Eu- segurança no emprego, é possí-
fiscais cresceram enormemente por- ropeu que antes pertenciam ao vel que a retórica nacionalista se

wikimedia commons - Bulverton


que as medidas de austeridade fo- “bloco soviético”. Mas a ameaça torne muito eficaz para canalizar
ram eficazes na contração da pro- se espalhou para os países do Oci- sentimentos contrários à ordem
dução. Se os déficits fiscais aumen- dente que tinham mantido uma social vigente e apoiar movimen-
taram, a dívida pública, por “tradição” democrática mais con- tos autoritários. O grande apoio
definição, tinha que aumentar. sistente, no período posterior à a grupos políticos isolacionistas
A combinação de políticas de Segunda Guerra Mundial. A Fran- entre os trabalhadores da União
austeridade, que aumentaram o ça, a Holanda e a Itália assistiram Europeia, e agora também dos
desemprego e reduziram os sa- à ascensão de grupos populistas de Estados Unidos, vem reproduzir
lários e benefícios dos trabalha- direita que estão perigosamente tardiamente a onda autoritária cimento sustentável. Pode-se ar- Uma diferença significativa
dores, com reformas estruturais perto de se tornar a “corrente do- que dominou a Europa na déca- gumentar que a evitação de desas- entre a década de 1930 e a de 2010
Uma diferença entre as
destinadas a aumentar a f lexibi- minante” nas próximas eleições. da de 1930. tres eliminou ou atenuou substan- é que hoje, entre os desdobra- depressões das décadas de
lidade dos mercados de trabalho, No Reino Unido, o populismo cialmente o sentimento de que mentos possíveis no futuro ime-
tornando mais fácil demitir em- direitista teve força suficiente pa- havia necessidade de reformas pro- diato e em médio prazo, já não 1930 e de 2010 é que hoje já
pregados, por exemplo, na espe- ra propor e ganhar um plebiscito 6. Perspectivas fundas, para tentar corrigir os de- se esperam revoluções comunis-
rança de que isso estimulasse as sobre a saída do país da União Eu- Talvez seja um lugar-comum ob- sequilíbrios passados e prevenir no- tas. Na verdade, nos países mais
não se esperam revoluções
empresas a ampliarem o empre- ropeia. Partidos extremistas al- servar que o mundo está atraves- vas crises, pelo menos em curto e desenvolvidos do Ocidente, o fu- comunistas. O futuro está
go, submeteu os trabalhadores ternativos vêm crescendo inclu- sando um período de insegurança médio prazo no futuro. As medidas turo parece estar sendo disputado,
dos países desenvolvidos a uma sive na Alemanha, que até agora excepcionalmente alta. Os lugares- mais rigorosas de reforma foram fundamentalmente, por três gru- sendo disputado por outros
dupla ameaça. Os salários foram parecia imune a tais movimentos. -comuns não se tornam lugares- poucas e não se concentraram nos pos, ou talvez quatro, se conside-
reduzidos, como resultado do de- Países menores, como a Áustria, -comuns por acaso. Tendem a des- responsáveis pela crise, mas nos rarmos a possibilidade de que os grupos. Não podemos fazer
semprego, ao mesmo tempo que
os benefícios e a estabilidade no
também mostraram como podem
estar perto de um retorno aos re-
tilar aquilo que é tão óbvio que
não precisa de justificação explí-
suspeitos de praxe, trabalhadores e
empregados, que pagaram pela es-
arranjos atuais sobrevivam à tur-
bulência política que vem des-
muitas previsões a partir das
emprego diminuíram, como uma gimes de extrema direita que man- cita, nem a merece. tabilidade recém-readquirida com pontando no horizonte, e de que circunstâncias vigentes.
componente central das “refor- tinham na década de 1930. Mais A década de 2010 contrasta cortes salariais e a perda de bene- os grupos políticos “da corrente
mas estruturais” destinadas a criar recentemente, a chocante eleição favoravelmente com a de 1930 na fícios. E, o que com certeza é pior, dominante” se mostrem capazes
empresas mais competitivas. A de Donald Trump para suceder o medida em que foram evitados os resultados dos sacrifícios impos- de superar, de um jeito ou de ou-
expansão econômica geraria pou- presidente Obama acrescentou grandes desastres econômicos, a tos a grandes grupos da população tro, as dificuldades. Mas esse des-
cos ganhos para os trabalhadores enormes incertezas sobre o futuro despeito da violência da crise fi- foram escassos, se tanto. Não deve dobramento parece cada vez me-
de início, mas um dia os benefí- da democracia ocidental. nanceira de 2008-2009. Evitar causar surpresa que tenha tido iní- nos provável, na medida em que
cios do crescimento mais rápido O que todos esses desdobra- o desastre, porém, não foi sufi- cio uma reação política negativa, se tornam públicos os novos re-
viriam em cascata, até melhora- mentos têm em comum? Não ciente para repor as economias e sim que ela tenha demorado tan- sultados eleitorais ou as pesquisas
rem o bem-estar deles. muito, ao que parece, exceto pe- desenvolvidas nos trilhos do cres- to para começar. de intenção de voto.

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dessa pressão atenuada em prol Porém, nem mesmo as apa- la rejeição explícita da globali-
da austeridade era que muitos dos rentes melhoras na situação de zação e da interdependência in-
países dos quais se havia exigido emprego foram suficientes para ternacional, que foram dogmas
austeridade fiscal continuavam a melhorar de forma significativa no Ocidente nas últimas décadas.
exibir déficits fiscais significati- a situação de um grande número Se a globalização foi fonte de al-
vos, além de uma dívida pública de famílias nos países avançados. guns benefícios, quando as eco-
que continuava a crescer. Esta é a explicação mais imedia- nomias estavam prosperando, co-
Não é preciso um grande esfor- ta para desdobramentos políticos mo ilustrado pela evolução da
ço para perceber que o sr. Schäuble que se tornaram mais acentuados renda real das famílias nos Esta-
não estava sendo sincero. Os défi- a partir de 2013-2014. Na Euro- dos Unidos (figura 8, supra), e se
cits e a dívida pública aumentam pa, a ascensão de governos direi- ela foi a causa dos grandes pre-
por causa das políticas severas de tistas autoritários, no seio da pró- juízos sofridos, depois da crise,
austeridade, não apesar delas. A re- pria União Europeia, foi mais nos salários, nos benefícios e na
ceita tributária caiu e os déficits evidente em países do Leste Eu- segurança no emprego, é possí-
fiscais cresceram enormemente por- ropeu que antes pertenciam ao vel que a retórica nacionalista se

wikimedia commons - Bulverton


que as medidas de austeridade fo- “bloco soviético”. Mas a ameaça torne muito eficaz para canalizar
ram eficazes na contração da pro- se espalhou para os países do Oci- sentimentos contrários à ordem
dução. Se os déficits fiscais aumen- dente que tinham mantido uma social vigente e apoiar movimen-
taram, a dívida pública, por “tradição” democrática mais con- tos autoritários. O grande apoio
definição, tinha que aumentar. sistente, no período posterior à a grupos políticos isolacionistas
A combinação de políticas de Segunda Guerra Mundial. A Fran- entre os trabalhadores da União
austeridade, que aumentaram o ça, a Holanda e a Itália assistiram Europeia, e agora também dos
desemprego e reduziram os sa- à ascensão de grupos populistas de Estados Unidos, vem reproduzir
lários e benefícios dos trabalha- direita que estão perigosamente tardiamente a onda autoritária cimento sustentável. Pode-se ar- Uma diferença significativa
dores, com reformas estruturais perto de se tornar a “corrente do- que dominou a Europa na déca- gumentar que a evitação de desas- entre a década de 1930 e a de 2010
Uma diferença entre as
destinadas a aumentar a f lexibi- minante” nas próximas eleições. da de 1930. tres eliminou ou atenuou substan- é que hoje, entre os desdobra- depressões das décadas de
lidade dos mercados de trabalho, No Reino Unido, o populismo cialmente o sentimento de que mentos possíveis no futuro ime-
tornando mais fácil demitir em- direitista teve força suficiente pa- havia necessidade de reformas pro- diato e em médio prazo, já não 1930 e de 2010 é que hoje já
pregados, por exemplo, na espe- ra propor e ganhar um plebiscito 6. Perspectivas fundas, para tentar corrigir os de- se esperam revoluções comunis-
rança de que isso estimulasse as sobre a saída do país da União Eu- Talvez seja um lugar-comum ob- sequilíbrios passados e prevenir no- tas. Na verdade, nos países mais
não se esperam revoluções
empresas a ampliarem o empre- ropeia. Partidos extremistas al- servar que o mundo está atraves- vas crises, pelo menos em curto e desenvolvidos do Ocidente, o fu- comunistas. O futuro está
go, submeteu os trabalhadores ternativos vêm crescendo inclu- sando um período de insegurança médio prazo no futuro. As medidas turo parece estar sendo disputado,
dos países desenvolvidos a uma sive na Alemanha, que até agora excepcionalmente alta. Os lugares- mais rigorosas de reforma foram fundamentalmente, por três gru- sendo disputado por outros
dupla ameaça. Os salários foram parecia imune a tais movimentos. -comuns não se tornam lugares- poucas e não se concentraram nos pos, ou talvez quatro, se conside-
reduzidos, como resultado do de- Países menores, como a Áustria, -comuns por acaso. Tendem a des- responsáveis pela crise, mas nos rarmos a possibilidade de que os grupos. Não podemos fazer
semprego, ao mesmo tempo que
os benefícios e a estabilidade no
também mostraram como podem
estar perto de um retorno aos re-
tilar aquilo que é tão óbvio que
não precisa de justificação explí-
suspeitos de praxe, trabalhadores e
empregados, que pagaram pela es-
arranjos atuais sobrevivam à tur-
bulência política que vem des-
muitas previsões a partir das
emprego diminuíram, como uma gimes de extrema direita que man- cita, nem a merece. tabilidade recém-readquirida com pontando no horizonte, e de que circunstâncias vigentes.
componente central das “refor- tinham na década de 1930. Mais A década de 2010 contrasta cortes salariais e a perda de bene- os grupos políticos “da corrente
mas estruturais” destinadas a criar recentemente, a chocante eleição favoravelmente com a de 1930 na fícios. E, o que com certeza é pior, dominante” se mostrem capazes
empresas mais competitivas. A de Donald Trump para suceder o medida em que foram evitados os resultados dos sacrifícios impos- de superar, de um jeito ou de ou-
expansão econômica geraria pou- presidente Obama acrescentou grandes desastres econômicos, a tos a grandes grupos da população tro, as dificuldades. Mas esse des-
cos ganhos para os trabalhadores enormes incertezas sobre o futuro despeito da violência da crise fi- foram escassos, se tanto. Não deve dobramento parece cada vez me-
de início, mas um dia os benefí- da democracia ocidental. nanceira de 2008-2009. Evitar causar surpresa que tenha tido iní- nos provável, na medida em que
cios do crescimento mais rápido O que todos esses desdobra- o desastre, porém, não foi sufi- cio uma reação política negativa, se tornam públicos os novos re-
viriam em cascata, até melhora- mentos têm em comum? Não ciente para repor as economias e sim que ela tenha demorado tan- sultados eleitorais ou as pesquisas
rem o bem-estar deles. muito, ao que parece, exceto pe- desenvolvidas nos trilhos do cres- to para começar. de intenção de voto.

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economia internacional Fernando Cardim de Carvalho A grande crise da década de 2010 e a reforma do capitalismo moderno

O primeiro grupo é uma va- bodes expiatórios para os even- Notas


riação do status quo, meio rejuve- tuais fracassos e deficiências.
nescido pela implementação em A terceira alternativa inclui- 1.É claro que esta denominação frisa a extensão temporal Central tenta levar um alívio direto oferecem uma medida melhor. Não sity.html> e em <http://www.bun-
larga escala de um vasto conjun- ria uma variedade de grupos de durante a qual a produção e o emprego pareceram estag- aos mercados financeiros, pronto pa- é um índice perfeito, porque ainda desfinanzministerium.de/Content/
to de reformas estruturais que inclinação esquerdista que pro- nar ou crescer lentamente, não o craque financeiro inicial ra comprar ativos de classes previa- mistura situações diferentes ou des- EN/Interviews/ 2015/2015-04-16-
aumentarão a competitividade põem algum tipo de reforma pro- – exatamente como falamos da Grande Depressão dos anos mente definidas, a fim de aumentar conhece aspectos importantes do pro- new-york-times.html>.
1930, embora o craque financeiro que originou a contra- sua liquidez e, desse modo, reduzir blema (no tratamento de empregados 15.Na verdade, Schäuble duvidou de
de economias isoladas, e que per- gressista dos arranjos atuais – que
ção da produção tenha ocorrido em 1929. diretamente as taxas de juros em lon- em horário integral ou meio expe- que esses efeitos contrativos na de-
durarão enquanto a maioria dos iria da democracia social de Ber- go prazo. A ideia é que se podem diente, por exemplo, ou do número
2. Por exemplo, numa recessão normal, as empresas podem manda fossem mesmo relevantes. De
participantes do sistema interna- nie Sanders, na qual os direitos atingir dois objetivos com a FQ. Por dos que perderam o emprego e tive- qualquer modo, eles se dissipariam
assistir a um aumento da capacidade ociosa, a qual volta a
cional vir a possibilidade de ocu- dos trabalhadores seriam amplia- ser ocupada quando a demanda se recupera. Em contraste,
um lado, o aumento da liquidez de- ram de aceitar postos com níveis de em curto prazo, ao passo que a con-
par um lugar entre os vencedo- dos e o Estado de bem-estar se ve reduzir os temores de uma queima remuneração muito inferiores), mas fiança, por alguma razão, deveria ser
quando o colapso é violento a ponto de causar numerosas
res do jogo. Esse parece ser o estenderia a uma parcela cada vez de estoques de ativos entre os inves- ainda é melhor do que as taxas de tão duradoura que levaria o empre-
falências, talvez não reste ninguém para reagir à possibi-
tidores, reduzindo os riscos da aqui- desemprego como indicador da ten- sariado a aumentar os investimentos
cerne da visão schäubliana do maior da população, a grupos lidade de um reaquecimento da demanda que aumente a
sição de títulos com prazos mais lon- são nos mercados de trabalho.
produção e o emprego. em equipamentos de longa duração.
capitalismo reformado, um sis- como o Podemos, na Espanha, gos de vencimento, já que o Banco 11.Os impactos desfavoráveis da expan- Schäuble insistiu em que era impor-
tema em que se espera que os ou o antigo Syriza, na Grécia. 3. Foi essa impossibilidade de a economia se recuperar sozi- Central funcionaria como “comprador são do comércio nos salários e bene- tante compreender os aspectos psi-
nha que impressionou muitos teóricos, como John May-
trabalhadores, em particular, No entanto, viabilizar essa alter- de último recurso”. Por outro lado, a fícios do trabalho viriam a ser agra- cológicos das decisões de investimen-
nard Keynes e Joseph Schumpeter, ao observarem o com- esperança do Banco Central é que a
abram mão de muitas conquistas nativa exigiria alguma limitação portamento das economias mais avançadas nos anos 1930.
vados pelos efeitos contrativos das to, atribuindo essa ideia a Ludwig
redução das taxas de juros em longo políticas de austeridade fiscal, ado- Erhard, o primeiro-ministro da Eco-
obtidas nas últimas décadas em da concorrência internacional ou
4. É claro que, quando a crise acontece numa sociedade em prazo estimule os investimentos em tadas, sobretudo, na Europa Ociden- nomia do pós-guerra, geralmente
troca de maior segurança no em- uma mudança de suas normas, que há boas razões para suspeitar que o Estado esteja en- bens de capital. O sucesso na conse- tal, sob a instigação do governo da considerado o “pai do milagre ale-
prego, obtida não pela ação le- que criam a necessidade constan- volvido em negociações obscuras, para favorecer grupos cução do primeiro desses objetivos Alemanha. A austeridade reduz os mão”. É claro que, no caso de Erhard,
gislativa, mas por meio da con- te de reduzir o custo da mão de privilegiados, a gestão da demanda fica fadada ao fracasso, tem sido visivelmente mais impres- mercados internos, tornando mais a questão não era escolher uma po-
corrência. Essa visão era mais obra nos países participantes. Tal pois qualquer consideração da eficiência “abstrata” de de- sionante do que o obtido no segundo. feroz a concorrência com fornecedo- lítica anticíclica, mas rejeitar, nos ter-
terminada estratégia política será dominada pela preocu-
forte há dois ou três anos, quan- grupo político poderia ser defi- 9. O caso da Grécia, é claro, já é por de- res estrangeiros, e obriga as empresas mos mais categóricos possíveis, o
pação de que os argumentos sejam viciados por interesses mais conhecido para merecer uma re- a buscarem mercados no exterior, o “modelo” de economia planificada
do vários países da União Eu- nido, provavelmente, como fa- pessoais dos líderes políticos e seus cupinchas. petição aqui. que opera no mesmo sentido. da Alemanha Oriental, imposto pe-
ropeia pareciam respaldá-la. vorável à globalização cultural, 5. Restringiremos a discussão desta seção às economias avan- 10.Numa crise profunda, é melhor exa- 12.A bem da lisura e da transparência, los ocupantes soviéticos, que parecia
Desde 2015, pelo menos, pode- mas muito cauteloso em sua apre- çadas. No entanto, nela não incluiremos o Japão, visto que ser preferido por alguns membros da
minar o emprego total do que as ta- tenho de admitir que o autor deste
mos ver uma insatisfação cres- ciação da integração econômica. sua economia tem exibido um padrão bastante peculiar de xas de desemprego. As pesquisas so- artigo foi um deles. oposição da época. Sobre a visão de
cente com os sacrifícios acarre- É claro que, neste momento, evolução desde o começo da década de 1990. Após um bre o desemprego contam apenas Erhard, sua coleção de discursos de
13.A incrível confusão criada pelo De-
tados por essa trajetória política. a pergunta mais importante tem período de crescimento rápido, que gerou intensas espe- aqueles que estão procurando empre- 1963 foi publicada pela Princeton
partamento do Tesouro dos Estados
culações sobre a possibilidade de o Japão estar prestes a se University Press sob o título The Eco-
A segunda alternativa seria, na que ser: onde se encaixa Donald go ativamente, mas sem sucesso, du- Unidos ao lidar com o caso do banco
tornar a principal economia capitalista do mundo, o país rante o período do levantamento. Os nomics of Success.
verdade, uma mescla de movi- Trump? É possível que, quando atolou-se em uma depressão predominantemente causada
Lehman Brothers, em decorrência de
que perderam o ânimo diante da si- suas preocupações com o risco mo-
mentos políticos que vão dos con- este artigo for publicado, a res- por razões internas. Quando veio o colapso de 2008, é tuação af litiva e desistiram de tentar ral, é um exemplo revelador da aten-
servadores de Theresa May, no posta a esta pergunta já seja co- claro que o Japão foi atingido pelo choque negativo, so- encontrar trabalho são excluídos do ção mal orientada para problemas
Reino Unido, à Frente Nacional nhecida. Na medida em que o bretudo por seu impacto no comércio internacional, mas, cálculo. Em condições normais, esse menores, quando o mundo se prepa-
de Marine Le Pen, na França, na texto vai sendo concluído, a àquela altura, já fazia muito tempo que o país vinha lu- procedimento pode justificar-se, já rava para desmoronar.
tando contra as forças de estagnação. que é possível argumentar que nin-
qual as demandas dos trabalhado- maioria dos indícios aponta pa- 14.Duas formulações sucintas da mo-
6. Uma excelente introdução a esses dois episódios históricos, guém é efetivamente obrigado a tra-
res são pelo menos parcialmente ra a segunda das trajetórias al- derna doutrina da austeridade foram
enfatizando suas semelhanças e diferenças, encontra-se em balhar, se não quiser fazê-lo, ou se
contempladas, num arranjo que ternativas que acabamos de lis- Barry Eichengreen, Hall of Mirrors. The Great Depression, achar que a remuneração oferecida
oferecidas pelo próprio ministro
sacrifica a globalização e a inter- tar, mas isso ainda é especulação. Schäuble num artigo publicado na
The Great Recessions and the Uses and Misuses of History, pelos empregadores não é suficien-
coluna de opiniões do New York Ti-
dependência internacional em Seja qual for a trajetória que os Oxford e Nova York, Oxford University Press, 2015. temente atraente. Numa crise grave,
mes, bem como numa apresentação
prol de uma abordagem naciona- Estados Unidos acabarão seguin- 7. Além de incluírem toda sorte de medidas possíveis para por outro lado, é óbvio que a maio-
num simpósio realizado na Univer-
lista em que a livre movimenta- do, é claro que ela terá uma enor- reduzir a eficiência do pacote fiscal como um todo, em ria dos desempregados perdeu o em-
sidade Columbia em 15 e 16 de abril
decorrência das negociações políticas com o Congresso. prego, não pediu demissão. O desâ-
ção dos bens e dos fatores de pro- me importância na determina- de 2015. Os dois textos do Bundes-
nimo torna-se, de fato, uma razão
dução seja cerceada. Essa alterna- ção do futuro das relações in- 8. F lexibilização quantitativa [FQ] é o conjunto de políticas finanzministerium estão disponíveis
relevante para explicar o número de
que vão além da simples manipulação das taxas de juros em <http://www.bundesfinanzmi-
tiva pode resvalar facilmente ternacionais. Porém, não há trabalhadores desempregados. Nessas
da política de curto prazo, que constitui a base da política nisterium.de/Content/EN/Reden/
para formas de autoritarismo na- muito que se possa prever nas monetária, em condições normais. Com a FQ, o Banco
condições, os níveis de emprego, em-
2015/2015-04-15-columbia-univer-
cionalista nas quais se encontrem circunstâncias vigentes. n bora estejam longe de ser perfeitos,

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economia internacional Fernando Cardim de Carvalho A grande crise da década de 2010 e a reforma do capitalismo moderno

O primeiro grupo é uma va- bodes expiatórios para os even- Notas


riação do status quo, meio rejuve- tuais fracassos e deficiências.
nescido pela implementação em A terceira alternativa inclui- 1.É claro que esta denominação frisa a extensão temporal Central tenta levar um alívio direto oferecem uma medida melhor. Não sity.html> e em <http://www.bun-
larga escala de um vasto conjun- ria uma variedade de grupos de durante a qual a produção e o emprego pareceram estag- aos mercados financeiros, pronto pa- é um índice perfeito, porque ainda desfinanzministerium.de/Content/
to de reformas estruturais que inclinação esquerdista que pro- nar ou crescer lentamente, não o craque financeiro inicial ra comprar ativos de classes previa- mistura situações diferentes ou des- EN/Interviews/ 2015/2015-04-16-
aumentarão a competitividade põem algum tipo de reforma pro- – exatamente como falamos da Grande Depressão dos anos mente definidas, a fim de aumentar conhece aspectos importantes do pro- new-york-times.html>.
1930, embora o craque financeiro que originou a contra- sua liquidez e, desse modo, reduzir blema (no tratamento de empregados 15.Na verdade, Schäuble duvidou de
de economias isoladas, e que per- gressista dos arranjos atuais – que
ção da produção tenha ocorrido em 1929. diretamente as taxas de juros em lon- em horário integral ou meio expe- que esses efeitos contrativos na de-
durarão enquanto a maioria dos iria da democracia social de Ber- go prazo. A ideia é que se podem diente, por exemplo, ou do número
2. Por exemplo, numa recessão normal, as empresas podem manda fossem mesmo relevantes. De
participantes do sistema interna- nie Sanders, na qual os direitos atingir dois objetivos com a FQ. Por dos que perderam o emprego e tive- qualquer modo, eles se dissipariam
assistir a um aumento da capacidade ociosa, a qual volta a
cional vir a possibilidade de ocu- dos trabalhadores seriam amplia- ser ocupada quando a demanda se recupera. Em contraste,
um lado, o aumento da liquidez de- ram de aceitar postos com níveis de em curto prazo, ao passo que a con-
par um lugar entre os vencedo- dos e o Estado de bem-estar se ve reduzir os temores de uma queima remuneração muito inferiores), mas fiança, por alguma razão, deveria ser
quando o colapso é violento a ponto de causar numerosas
res do jogo. Esse parece ser o estenderia a uma parcela cada vez de estoques de ativos entre os inves- ainda é melhor do que as taxas de tão duradoura que levaria o empre-
falências, talvez não reste ninguém para reagir à possibi-
tidores, reduzindo os riscos da aqui- desemprego como indicador da ten- sariado a aumentar os investimentos
cerne da visão schäubliana do maior da população, a grupos lidade de um reaquecimento da demanda que aumente a
sição de títulos com prazos mais lon- são nos mercados de trabalho.
produção e o emprego. em equipamentos de longa duração.
capitalismo reformado, um sis- como o Podemos, na Espanha, gos de vencimento, já que o Banco 11.Os impactos desfavoráveis da expan- Schäuble insistiu em que era impor-
tema em que se espera que os ou o antigo Syriza, na Grécia. 3. Foi essa impossibilidade de a economia se recuperar sozi- Central funcionaria como “comprador são do comércio nos salários e bene- tante compreender os aspectos psi-
nha que impressionou muitos teóricos, como John May-
trabalhadores, em particular, No entanto, viabilizar essa alter- de último recurso”. Por outro lado, a fícios do trabalho viriam a ser agra- cológicos das decisões de investimen-
nard Keynes e Joseph Schumpeter, ao observarem o com- esperança do Banco Central é que a
abram mão de muitas conquistas nativa exigiria alguma limitação portamento das economias mais avançadas nos anos 1930.
vados pelos efeitos contrativos das to, atribuindo essa ideia a Ludwig
redução das taxas de juros em longo políticas de austeridade fiscal, ado- Erhard, o primeiro-ministro da Eco-
obtidas nas últimas décadas em da concorrência internacional ou
4. É claro que, quando a crise acontece numa sociedade em prazo estimule os investimentos em tadas, sobretudo, na Europa Ociden- nomia do pós-guerra, geralmente
troca de maior segurança no em- uma mudança de suas normas, que há boas razões para suspeitar que o Estado esteja en- bens de capital. O sucesso na conse- tal, sob a instigação do governo da considerado o “pai do milagre ale-
prego, obtida não pela ação le- que criam a necessidade constan- volvido em negociações obscuras, para favorecer grupos cução do primeiro desses objetivos Alemanha. A austeridade reduz os mão”. É claro que, no caso de Erhard,
gislativa, mas por meio da con- te de reduzir o custo da mão de privilegiados, a gestão da demanda fica fadada ao fracasso, tem sido visivelmente mais impres- mercados internos, tornando mais a questão não era escolher uma po-
corrência. Essa visão era mais obra nos países participantes. Tal pois qualquer consideração da eficiência “abstrata” de de- sionante do que o obtido no segundo. feroz a concorrência com fornecedo- lítica anticíclica, mas rejeitar, nos ter-
terminada estratégia política será dominada pela preocu-
forte há dois ou três anos, quan- grupo político poderia ser defi- 9. O caso da Grécia, é claro, já é por de- res estrangeiros, e obriga as empresas mos mais categóricos possíveis, o
pação de que os argumentos sejam viciados por interesses mais conhecido para merecer uma re- a buscarem mercados no exterior, o “modelo” de economia planificada
do vários países da União Eu- nido, provavelmente, como fa- pessoais dos líderes políticos e seus cupinchas. petição aqui. que opera no mesmo sentido. da Alemanha Oriental, imposto pe-
ropeia pareciam respaldá-la. vorável à globalização cultural, 5. Restringiremos a discussão desta seção às economias avan- 10.Numa crise profunda, é melhor exa- 12.A bem da lisura e da transparência, los ocupantes soviéticos, que parecia
Desde 2015, pelo menos, pode- mas muito cauteloso em sua apre- çadas. No entanto, nela não incluiremos o Japão, visto que ser preferido por alguns membros da
minar o emprego total do que as ta- tenho de admitir que o autor deste
mos ver uma insatisfação cres- ciação da integração econômica. sua economia tem exibido um padrão bastante peculiar de xas de desemprego. As pesquisas so- artigo foi um deles. oposição da época. Sobre a visão de
cente com os sacrifícios acarre- É claro que, neste momento, evolução desde o começo da década de 1990. Após um bre o desemprego contam apenas Erhard, sua coleção de discursos de
13.A incrível confusão criada pelo De-
tados por essa trajetória política. a pergunta mais importante tem período de crescimento rápido, que gerou intensas espe- aqueles que estão procurando empre- 1963 foi publicada pela Princeton
partamento do Tesouro dos Estados
culações sobre a possibilidade de o Japão estar prestes a se University Press sob o título The Eco-
A segunda alternativa seria, na que ser: onde se encaixa Donald go ativamente, mas sem sucesso, du- Unidos ao lidar com o caso do banco
tornar a principal economia capitalista do mundo, o país rante o período do levantamento. Os nomics of Success.
verdade, uma mescla de movi- Trump? É possível que, quando atolou-se em uma depressão predominantemente causada
Lehman Brothers, em decorrência de
que perderam o ânimo diante da si- suas preocupações com o risco mo-
mentos políticos que vão dos con- este artigo for publicado, a res- por razões internas. Quando veio o colapso de 2008, é tuação af litiva e desistiram de tentar ral, é um exemplo revelador da aten-
servadores de Theresa May, no posta a esta pergunta já seja co- claro que o Japão foi atingido pelo choque negativo, so- encontrar trabalho são excluídos do ção mal orientada para problemas
Reino Unido, à Frente Nacional nhecida. Na medida em que o bretudo por seu impacto no comércio internacional, mas, cálculo. Em condições normais, esse menores, quando o mundo se prepa-
de Marine Le Pen, na França, na texto vai sendo concluído, a àquela altura, já fazia muito tempo que o país vinha lu- procedimento pode justificar-se, já rava para desmoronar.
tando contra as forças de estagnação. que é possível argumentar que nin-
qual as demandas dos trabalhado- maioria dos indícios aponta pa- 14.Duas formulações sucintas da mo-
6. Uma excelente introdução a esses dois episódios históricos, guém é efetivamente obrigado a tra-
res são pelo menos parcialmente ra a segunda das trajetórias al- derna doutrina da austeridade foram
enfatizando suas semelhanças e diferenças, encontra-se em balhar, se não quiser fazê-lo, ou se
contempladas, num arranjo que ternativas que acabamos de lis- Barry Eichengreen, Hall of Mirrors. The Great Depression, achar que a remuneração oferecida
oferecidas pelo próprio ministro
sacrifica a globalização e a inter- tar, mas isso ainda é especulação. Schäuble num artigo publicado na
The Great Recessions and the Uses and Misuses of History, pelos empregadores não é suficien-
coluna de opiniões do New York Ti-
dependência internacional em Seja qual for a trajetória que os Oxford e Nova York, Oxford University Press, 2015. temente atraente. Numa crise grave,
mes, bem como numa apresentação
prol de uma abordagem naciona- Estados Unidos acabarão seguin- 7. Além de incluírem toda sorte de medidas possíveis para por outro lado, é óbvio que a maio-
num simpósio realizado na Univer-
lista em que a livre movimenta- do, é claro que ela terá uma enor- reduzir a eficiência do pacote fiscal como um todo, em ria dos desempregados perdeu o em-
sidade Columbia em 15 e 16 de abril
decorrência das negociações políticas com o Congresso. prego, não pediu demissão. O desâ-
ção dos bens e dos fatores de pro- me importância na determina- de 2015. Os dois textos do Bundes-
nimo torna-se, de fato, uma razão
dução seja cerceada. Essa alterna- ção do futuro das relações in- 8. F lexibilização quantitativa [FQ] é o conjunto de políticas finanzministerium estão disponíveis
relevante para explicar o número de
que vão além da simples manipulação das taxas de juros em <http://www.bundesfinanzmi-
tiva pode resvalar facilmente ternacionais. Porém, não há trabalhadores desempregados. Nessas
da política de curto prazo, que constitui a base da política nisterium.de/Content/EN/Reden/
para formas de autoritarismo na- muito que se possa prever nas monetária, em condições normais. Com a FQ, o Banco
condições, os níveis de emprego, em-
2015/2015-04-15-columbia-univer-
cionalista nas quais se encontrem circunstâncias vigentes. n bora estejam longe de ser perfeitos,

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


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A nova geopolítica da Ásia após a Guerra Fria

A nova geopolítica da Ásia


Desde o surgimento do estudo da geopolítica, a Rússia (depois a União Soviética) foi o centro do
heartland eurasiano. Na Ásia, especificamente, o Japão ocupou a posição de pivô até o fim da
Segunda Guerra Mundial. A recuperação da centralidade chinesa durou apenas de 1945 a 1949, com
o triunfo da Revolução. Durante a Guerra Fria ela esteve dividida, mas hoje a China recuperou sua

após a Guerra Fria


posição como epicentro da geopolítica asiática. A criação da Organização de Cooperação de Xangai,
de um lado, e a tentativa norte-americana de recuperar o controle da região, de outro, têm sido a
clivagem principal nos últimos vinte anos.

A Ásia Oriental e Meridional, do A Ásia Oriental e, em menor


Japão ao Paquistão, abriga mais da medida, Meridional é a região de
metade da população mundial e maior dinamismo econômico no
várias das mais sólidas e antigas ci- mundo há quatro décadas ( Japão,
vilizações. Durante cinco séculos “Tigres Asiáticos”, China e Índia),
os impérios continentais da região o que tem produzido uma nova
foram eclipsados pelos impérios configuração nas relações de po-
marítimos do Ocidente. No sécu- der regionais e globais, com a
lo XX começou um processo de ascensão de novos polos de po- Paulo G. Fagundes
transformações múltiplas que está der. Esse fenômeno não tem sido Visentini
impulsionando o desenvolvimen- apreendido em toda sua dimensão Professor titular de Relações
to econômico-social da região e e complexidade. O processo de in- Internacionais na UFRGS, onde
coordena o Núcleo Brasileiro
alterando não apenas sua posição serção internacional da região con-
ESB Professional/shutterstock.com

de Estratégia e Relações
dentro do sistema mundial, mas as tinua a ser comumente analisado a Internacionais (Nerint) e edita a
próprias estrutura e essência deste. partir de premissas inadequadas. revista Austral: Brazilian Journal
of Strategy and International
Durante os últimos cem anos A Ásia não constitui um “blo- Relations. Pesquisador
a Ásia foi marcada por grandes co”. Embora estejam articulados do CNPq. Doutor pela
acontecimentos internacionais, ao conjunto das transformações Universidade de São Paulo e
como a emergência do Japão co- globais, os fenômenos em curso Pós-Doutorado pela London
School of Economics. Ocupou
mo potência em 1905, a Guerra apresentam formas peculiares. O cátedras nas Universidades
do Pacífico, a Revolução Chine- continente contém vários núcleos de Leiden (Holanda) e Oxford
sa e as guerras da Coreia, da In- de poder, onde podem estar as ba- (Reino Unido).
dochina e do subcontinente in- ses para um sistema mundial mul-
diano. Importantes alterações es- tipolar. Pode-se especular sobre a
tratégicas, de alcance regional e gradual formação de um amplo
mundial, também ocorreram, co- espaço eurasiano.
mo a cisão sino-soviética e a alian- O Japão foi deixando de ser o
ça sino-americana, junto do sur- centro dinamizador da região. A
gimento de potências nucleares. China emergiu gradualmente co-
Um amplo e diversificado pro- mo polo articulador, com base na
cesso de modernização econômi- economia e no resgate de seu pa-
ca e política provocou a ascensão pel histórico. Na Ásia Oriental e
de potências regionais e mundiais, Meridional há quatro Estados de
no quadro de recuperação das na- grande porte em termos de exten-
ções asiáticas e de afirmação dos são territorial, população e/ou di-
princípios da soberania, caracte- mensão do PIB – a China, a Índia,
rísticos do sistema westfaliano. o Japão e a Indonésia –, além de

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A nova geopolítica da Ásia após a Guerra Fria

A nova geopolítica da Ásia


Desde o surgimento do estudo da geopolítica, a Rússia (depois a União Soviética) foi o centro do
heartland eurasiano. Na Ásia, especificamente, o Japão ocupou a posição de pivô até o fim da
Segunda Guerra Mundial. A recuperação da centralidade chinesa durou apenas de 1945 a 1949, com
o triunfo da Revolução. Durante a Guerra Fria ela esteve dividida, mas hoje a China recuperou sua

após a Guerra Fria


posição como epicentro da geopolítica asiática. A criação da Organização de Cooperação de Xangai,
de um lado, e a tentativa norte-americana de recuperar o controle da região, de outro, têm sido a
clivagem principal nos últimos vinte anos.

A Ásia Oriental e Meridional, do A Ásia Oriental e, em menor


Japão ao Paquistão, abriga mais da medida, Meridional é a região de
metade da população mundial e maior dinamismo econômico no
várias das mais sólidas e antigas ci- mundo há quatro décadas ( Japão,
vilizações. Durante cinco séculos “Tigres Asiáticos”, China e Índia),
os impérios continentais da região o que tem produzido uma nova
foram eclipsados pelos impérios configuração nas relações de po-
marítimos do Ocidente. No sécu- der regionais e globais, com a
lo XX começou um processo de ascensão de novos polos de po- Paulo G. Fagundes
transformações múltiplas que está der. Esse fenômeno não tem sido Visentini
impulsionando o desenvolvimen- apreendido em toda sua dimensão Professor titular de Relações
to econômico-social da região e e complexidade. O processo de in- Internacionais na UFRGS, onde
coordena o Núcleo Brasileiro
alterando não apenas sua posição serção internacional da região con-
ESB Professional/shutterstock.com

de Estratégia e Relações
dentro do sistema mundial, mas as tinua a ser comumente analisado a Internacionais (Nerint) e edita a
próprias estrutura e essência deste. partir de premissas inadequadas. revista Austral: Brazilian Journal
of Strategy and International
Durante os últimos cem anos A Ásia não constitui um “blo- Relations. Pesquisador
a Ásia foi marcada por grandes co”. Embora estejam articulados do CNPq. Doutor pela
acontecimentos internacionais, ao conjunto das transformações Universidade de São Paulo e
como a emergência do Japão co- globais, os fenômenos em curso Pós-Doutorado pela London
School of Economics. Ocupou
mo potência em 1905, a Guerra apresentam formas peculiares. O cátedras nas Universidades
do Pacífico, a Revolução Chine- continente contém vários núcleos de Leiden (Holanda) e Oxford
sa e as guerras da Coreia, da In- de poder, onde podem estar as ba- (Reino Unido).
dochina e do subcontinente in- ses para um sistema mundial mul-
diano. Importantes alterações es- tipolar. Pode-se especular sobre a
tratégicas, de alcance regional e gradual formação de um amplo
mundial, também ocorreram, co- espaço eurasiano.
mo a cisão sino-soviética e a alian- O Japão foi deixando de ser o
ça sino-americana, junto do sur- centro dinamizador da região. A
gimento de potências nucleares. China emergiu gradualmente co-
Um amplo e diversificado pro- mo polo articulador, com base na
cesso de modernização econômi- economia e no resgate de seu pa-
ca e política provocou a ascensão pel histórico. Na Ásia Oriental e
de potências regionais e mundiais, Meridional há quatro Estados de
no quadro de recuperação das na- grande porte em termos de exten-
ções asiáticas e de afirmação dos são territorial, população e/ou di-
princípios da soberania, caracte- mensão do PIB – a China, a Índia,
rísticos do sistema westfaliano. o Japão e a Indonésia –, além de

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a geopolítica da ásia Paulo G. Fagundes Visentini A nova geopolítica da Ásia após a Guerra Fria

outros de dimensão média. Eles (Joyaux, 1991). Na década seguin- ções do Sudeste Asiático (Asean), bal impulsionado pela economia de passou, cada vez mais, pela regio- A cooperação entre Rússia e
podem ser agrupados em duas ma- te a China lançou seu processo de lograva um bem-sucedido pro- mercado socialista chinesa cria co- nalização, isto é, a formação de po-
trizes civilizacionais, a chinesa modernização e desenvolvimento. cesso de integração e desenvol- nexões asiáticas e conquista merca- los econômicos apoiados na inte- China tem sido intensa em áreas
(confuciana) e a indiana. O Japão No início da década de 1990 a vimento que reúne repúblicas e dos além-mar. Mais ainda, na fre- gração supranacional em escala re-
pertence à primeira. A Indonésia União Soviética desapareceu e a monarquias, democracias e regi- nética busca de fontes de energia e gional, com profundos efeitos variadas, inclusive com
é uma nação muçulmana (a maior
do mundo em seguidores dessa
Guerra Fria terminou.
Enquanto os “muros asiáticos”
mes militares, modelos capitalis-
tas e socialistas, Estados mais e
matérias-primas, os “Cinco prin-
cípios da coexistência pacífica” es-
desestabilizadores na periferia. Nes-
se quadro de reordenamento mun-
transferência de tecnologia
religião), malaia e, por seu passa- ruíam e a região restabelecia fluxos menos desenvolvidos, grandes e tabelecem novos eixos de coopera- dial, a Ásia Oriental emergiu como aeroespacial e militar de ponta.
do budista, guarda vestígios socie- interrompidos, a China desponta- minúsculos. A reconstrução do es- ção Sul-Sul, como os da China e uma nova fronteira econômica, dan-
tários da matriz indiana. va com um crescimento irreversí- paço geopolítico prossegue no Nor- da Índia com a África, alterando o do sentido ao conceito braudeliano Essa cooperação tem integrado
Do ponto de vista geopolítico, vel e uma posição internacional deste Asiático, apesar das tensões equilíbrio mundial e conferindo de economia-mundo, agora cen-
o continente esteve dividido du- ascendente, enquanto o Japão en- calculadas e teatrais na península substância a um sistema multipolar trada no Pacífico, em substituição
a Sibéria ao dinamismo asiático,
rante a Guerra Fria. O Japão foi o trava num longo processo de es- coreana e da estagnação do Japão. em formação. à do Atlântico. com grande impacto geopolítico.
centro do desenvolvimento eco- tagnação. Na sequência, a Índia Esse movimento abarca o conjunto Mas o sucesso asiático tem con-
nômico, numa aliança subordina- também iniciou um ciclo que tem do continente, através da Organi- trapartidas. Muitos países da região,
da com os Estados Unidos. Mas combinado crescimento econômi- zação de Cooperação de Xangai. O impacto imediato do fim especialmente a China, enfrenta- potencializa o incremento e a mo-
na década de 1970 houve a derro- co, internacionalização, integração Os postulados westfalianos de da Guerra Fria na Ásia vam tendências desestabilizadoras, dernização de sua capacidade mi-
ta dos Estados Unidos no Sudeste regional com a Southern Asia Area soberania são matizados pelos con- No final da década de 1980, com a fruto do crescimento acelerado e litar e amplia sua autonomia polí-
Asiático, a aliança sino-americana of Regional Cooperation (Saarc) e ceitos asiáticos de hierarquia e es- convergência soviético-americana da introdução de mecanismos de tica e diplomática. Esse processo
(que permitiu a Pequim ocupar uma reconhecimento de seu status de tabilidade, numa visão sistêmica de durante a perestroika, os Estados Uni- mercado numa sociedade ainda passou a preocupar particularmen-
vaga permanente no Conselho de potência nuclear. longo prazo, baseada na diplomacia dos perdem o interesse pela aliança marcada pelas formas socialistas na te os Estados Unidos, que buscam
Segurança da ONU) e o desen- Enquanto isso, o Sudeste Asiá- (Kang: 153, in Ikenberry e Mas- político-estratégica com a China e esfera sociopolítica. Os fenômenos reafirmar seu predomínio com um
volvimento dos Tigres Asiáticos tico, por meio da Associação de Na- tanduno, 2003). O capitalismo glo- pela heterodoxia dos modelos de do incremento migratório e demo- custo mais baixo do que aquele que
desenvolvimento dos “tigres” e do gráfico e da urbanização vertigino- existia durante a Guerra Fria, em
“dragão”, até então tolerados. En- sa e caótica atingiam toda a região um cenário internacional de con-
cerrava-se a fase em que as conces- (exceto o Japão), mas eram parti- tornos pós-hegemônicos.
sões econômicas eram compensadas cularmente preocupantes na China
pelos ganhos político-militares. O (Wenquan, 2007).
desenvolvimento da Ásia Oriental Além disso, a Ásia-Pacífico de-
A reconfiguração do
passa a ser visto por Washington pende do mercado mundial, sen- espaço geopolítico
como incômodo. Deveria ser de- do vulnerável à pressão de outros asiático
sarticulado, invertendo-se os fluxos países ou a uma eventual crise que As reformas internas rumo ao mer-
econômicos transpacíficos, pois a desarticule o sistema comercial e cado e a abertura externa do Vietnã,
América necessitava gerar superá- financeiro internacional. Finalmen- com a permanência de um sistema
vits comerciais. Daí a pressão pela te, deve-se assinalar que o “bloco” político baseado no marxismo-
democratização de Coreia, Taiwan asiático não existe como tal, pois -leninismo, aproximam o país do
e China e a abertura do Japão, que não vive um processo de integração exemplo chinês. Dramaticamente
são processos simultâneos. institucionalizado como a União afetado pelo desaparecimento do
O declínio e, finalmente, a de- Europeia e o Nafta. Trata-se de um campo soviético, o Vietnã restabe-
sintegração da União Soviética pu- conjunto de economias articuladas leceu relações com a China em 1992
seram fim à Guerra Fria e ao siste- por certa divisão de trabalho. e com os Estados Unidos em 1995,
ma bipolar, abrindo uma nova era Mas os problemas e perspectivas integrando-se rapidamente à eco-
de incertezas na construção de uma da Ásia-Pacífico não podem ser ava- nomia mundial graças a uma legis-
nova ordem mundial, numa con- liados apenas a partir da perspecti- lação de investimentos ainda mais
Petr Pavlicek/IAEA

juntura marcada pelo acirramento va econômica. A segurança regional liberal que a chinesa. Washington
da competição econômico-tecno- levanta uma série de interrogações. aproximou-se do mais jovem can-
lógica. O fenômeno da globalização A ascensão econômica da China didato a Tigre Asiático, explicita-

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a geopolítica da ásia Paulo G. Fagundes Visentini A nova geopolítica da Ásia após a Guerra Fria

outros de dimensão média. Eles (Joyaux, 1991). Na década seguin- ções do Sudeste Asiático (Asean), bal impulsionado pela economia de passou, cada vez mais, pela regio- A cooperação entre Rússia e
podem ser agrupados em duas ma- te a China lançou seu processo de lograva um bem-sucedido pro- mercado socialista chinesa cria co- nalização, isto é, a formação de po-
trizes civilizacionais, a chinesa modernização e desenvolvimento. cesso de integração e desenvol- nexões asiáticas e conquista merca- los econômicos apoiados na inte- China tem sido intensa em áreas
(confuciana) e a indiana. O Japão No início da década de 1990 a vimento que reúne repúblicas e dos além-mar. Mais ainda, na fre- gração supranacional em escala re-
pertence à primeira. A Indonésia União Soviética desapareceu e a monarquias, democracias e regi- nética busca de fontes de energia e gional, com profundos efeitos variadas, inclusive com
é uma nação muçulmana (a maior
do mundo em seguidores dessa
Guerra Fria terminou.
Enquanto os “muros asiáticos”
mes militares, modelos capitalis-
tas e socialistas, Estados mais e
matérias-primas, os “Cinco prin-
cípios da coexistência pacífica” es-
desestabilizadores na periferia. Nes-
se quadro de reordenamento mun-
transferência de tecnologia
religião), malaia e, por seu passa- ruíam e a região restabelecia fluxos menos desenvolvidos, grandes e tabelecem novos eixos de coopera- dial, a Ásia Oriental emergiu como aeroespacial e militar de ponta.
do budista, guarda vestígios socie- interrompidos, a China desponta- minúsculos. A reconstrução do es- ção Sul-Sul, como os da China e uma nova fronteira econômica, dan-
tários da matriz indiana. va com um crescimento irreversí- paço geopolítico prossegue no Nor- da Índia com a África, alterando o do sentido ao conceito braudeliano Essa cooperação tem integrado
Do ponto de vista geopolítico, vel e uma posição internacional deste Asiático, apesar das tensões equilíbrio mundial e conferindo de economia-mundo, agora cen-
o continente esteve dividido du- ascendente, enquanto o Japão en- calculadas e teatrais na península substância a um sistema multipolar trada no Pacífico, em substituição
a Sibéria ao dinamismo asiático,
rante a Guerra Fria. O Japão foi o trava num longo processo de es- coreana e da estagnação do Japão. em formação. à do Atlântico. com grande impacto geopolítico.
centro do desenvolvimento eco- tagnação. Na sequência, a Índia Esse movimento abarca o conjunto Mas o sucesso asiático tem con-
nômico, numa aliança subordina- também iniciou um ciclo que tem do continente, através da Organi- trapartidas. Muitos países da região,
da com os Estados Unidos. Mas combinado crescimento econômi- zação de Cooperação de Xangai. O impacto imediato do fim especialmente a China, enfrenta- potencializa o incremento e a mo-
na década de 1970 houve a derro- co, internacionalização, integração Os postulados westfalianos de da Guerra Fria na Ásia vam tendências desestabilizadoras, dernização de sua capacidade mi-
ta dos Estados Unidos no Sudeste regional com a Southern Asia Area soberania são matizados pelos con- No final da década de 1980, com a fruto do crescimento acelerado e litar e amplia sua autonomia polí-
Asiático, a aliança sino-americana of Regional Cooperation (Saarc) e ceitos asiáticos de hierarquia e es- convergência soviético-americana da introdução de mecanismos de tica e diplomática. Esse processo
(que permitiu a Pequim ocupar uma reconhecimento de seu status de tabilidade, numa visão sistêmica de durante a perestroika, os Estados Uni- mercado numa sociedade ainda passou a preocupar particularmen-
vaga permanente no Conselho de potência nuclear. longo prazo, baseada na diplomacia dos perdem o interesse pela aliança marcada pelas formas socialistas na te os Estados Unidos, que buscam
Segurança da ONU) e o desen- Enquanto isso, o Sudeste Asiá- (Kang: 153, in Ikenberry e Mas- político-estratégica com a China e esfera sociopolítica. Os fenômenos reafirmar seu predomínio com um
volvimento dos Tigres Asiáticos tico, por meio da Associação de Na- tanduno, 2003). O capitalismo glo- pela heterodoxia dos modelos de do incremento migratório e demo- custo mais baixo do que aquele que
desenvolvimento dos “tigres” e do gráfico e da urbanização vertigino- existia durante a Guerra Fria, em
“dragão”, até então tolerados. En- sa e caótica atingiam toda a região um cenário internacional de con-
cerrava-se a fase em que as conces- (exceto o Japão), mas eram parti- tornos pós-hegemônicos.
sões econômicas eram compensadas cularmente preocupantes na China
pelos ganhos político-militares. O (Wenquan, 2007).
desenvolvimento da Ásia Oriental Além disso, a Ásia-Pacífico de-
A reconfiguração do
passa a ser visto por Washington pende do mercado mundial, sen- espaço geopolítico
como incômodo. Deveria ser de- do vulnerável à pressão de outros asiático
sarticulado, invertendo-se os fluxos países ou a uma eventual crise que As reformas internas rumo ao mer-
econômicos transpacíficos, pois a desarticule o sistema comercial e cado e a abertura externa do Vietnã,
América necessitava gerar superá- financeiro internacional. Finalmen- com a permanência de um sistema
vits comerciais. Daí a pressão pela te, deve-se assinalar que o “bloco” político baseado no marxismo-
democratização de Coreia, Taiwan asiático não existe como tal, pois -leninismo, aproximam o país do
e China e a abertura do Japão, que não vive um processo de integração exemplo chinês. Dramaticamente
são processos simultâneos. institucionalizado como a União afetado pelo desaparecimento do
O declínio e, finalmente, a de- Europeia e o Nafta. Trata-se de um campo soviético, o Vietnã restabe-
sintegração da União Soviética pu- conjunto de economias articuladas leceu relações com a China em 1992
seram fim à Guerra Fria e ao siste- por certa divisão de trabalho. e com os Estados Unidos em 1995,
ma bipolar, abrindo uma nova era Mas os problemas e perspectivas integrando-se rapidamente à eco-
de incertezas na construção de uma da Ásia-Pacífico não podem ser ava- nomia mundial graças a uma legis-
nova ordem mundial, numa con- liados apenas a partir da perspecti- lação de investimentos ainda mais
Petr Pavlicek/IAEA

juntura marcada pelo acirramento va econômica. A segurança regional liberal que a chinesa. Washington
da competição econômico-tecno- levanta uma série de interrogações. aproximou-se do mais jovem can-
lógica. O fenômeno da globalização A ascensão econômica da China didato a Tigre Asiático, explicita-

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a geopolítica da ásia Paulo G. Fagundes Visentini A nova geopolítica da Ásia após a Guerra Fria

mente, a fim de fortalecer um gru- fusão em um único cenário estra- do chinês. A implantação de um Com a presença no Afeganistão,
po de países que pudesse contraba- tégico. De fato, o continente asiá- grande número de joint-ventures, en-
lançar o peso da China, explorando tico esteve submetido a uma série volvendo as mais curiosas parcerias os EUA tentam introduzir uma
o contencioso Pequim-Hanói das de divisões no século XX. As for- (por exemplo, sino-sul-coreana),
ilhas Spratli, ricas em petróleo, lo- mas e a abrangência dessas divisões está transformando estruturalmen- cunha na Ásia Central, para
calizadas no mar da China Meri- se alteraram, sem que o problema te a geografia econômica da região
dional. Esse também parece ser o desaparecesse. A Guerra Fria fechou siberiana e, consequentemente, a ter acesso direto a recursos
caso da Índia, outra antiga aliada
da União Soviética, que hoje se in-
ainda mais as fronteiras entre as re-
giões, tais como o anel insular sob
geopolítica da Ásia.
A normalização política que se
econômicos e evitar que a região
tegra à economia mundial e tem o controle norte-americano, a mas- seguiu aos acordos de paz do Cam- seja uma zona de contato entre
sido aventada como uma alterna- sa continental socialista (dividida boja em 1992 acabou com o isola-
tiva à China. desde a década de 1960 entre a Re- mento da Indochina em relação ao o Extremo Oriente e a Europa.
Mais do que meros apêndices da pública Popular da China, a Ásia restante do Sudeste Asiático. Essa
economia japonesa, a China e os Central soviética e a Sibéria), o sub- nova dimensão diplomático-estra-
Tigres (de primeira e de segunda continente indiano influenciado pe- tégica, associada ao dinamismo eco- Índia mais para o cenário do oceano Índico do que
geração) estão se tornando compe- lo neutralismo (onde Índia e Pa- nômico da região, propiciou o acer- para a Ásia-Pacífico (Khurana, 2008). O colapso da
tidores ambiciosos, embora suas eco- quistão eram inimigos permanentes) camento sino-vietnamita e uma União Soviética, a ascensão econômica da Ásia Orien-
nomias continuem fortemente in- e o Sudeste Asiático em conflito e crescente cooperação de Pequim tal e do Sudeste Asiático, os efeitos da globalização
terdependentes, o que, aliás, tam- em disputa. com a Asean. Embora a mídia res- econômica e da revolução científico-tecnológica, a
bém ocorre em relação à economia Com o fim da Guerra Fria, vá- salte a existência de um “expansio- normalização das relações da China com seus vizinhos
americana. Por outro lado, o Japão rios “muros” asiáticos ruíram. A nismo chinês” na região e exagere e as novas ameaças à segurança indiana levaram Nova
tem conhecido uma prolongada re- normalização sino-soviética, reali- o litígio das ilhas Spratli, os interes- Delhi a abrir sua economia e a esboçar algo mais que
cessão econômica e alguma incer- zada durante a perestroika de Gorba- ses econômicos e a criação de um um simples modus vivendi com a China, integrando-se
teza política, mas se recusa a fazer chov, aprofundou-se ainda mais com diálogo permanente no campo da ao ciclo de desenvolvimento asiático. Evolução idên-
reformas neoliberais. A falta de cres- a desintegração da União Soviéti- segurança têm aumentado a coo- tica, mas mais radical, ocorreu em Myanmar, onde a
cimento evita um confronto com ca em fins de 1991. Desde então, a peração entre a China e o Sudeste junta militar fomenta a captação de investimentos es-
os Estados Unidos (Uehara: 2003). cooperação entre Rússia e China Asiático. Não apenas desapareceu o trangeiros e a inserção na economia mundial enquan-
Mas os Estados Unidos parecem tem sido intensa nos campos econô- fosso que separava a Indochina da to consolida um regime autoritário com o apoio polí-
querer afastar o Japão do multilate- mico-comercial, tecnológico-mili- Asean, como também se iniciou um tico e econômico da China.
ralismo, aproximando-o do regio- tar, diplomático e de segurança (Ball: crescente relacionamento econômi- Quase simultaneamente, o espaço geopolítico
nalismo (a “comunidade do Pacífi- 1996). Especialmente importante co e político do gigante chinês com asiático se ampliou ainda mais com o surgimento de
co”). A interdependência bilateral têm sido a venda de armamento so- toda a área. Anteriormente, o con- novos Estados, resultantes do desmembramento da
desses países ensejaria a criação da fisticado e a transferência de tecno- flito indo-chinês contribuía para União Soviética: Cazaquistão, Uzbequistão, Quir-
economia “nichibei” – expressão logia avançada no campo aeroespa- isolar os atores regionais. guistão, Tadjiquistão e Turcomenistão. A antiga Ásia
cunhada a partir dos caracteres ja- cial e nuclear. Independentemente Outra região que tinha uma di- Central soviética, detentora de uma posição geográ-
poneses Nihon (Japão) e Beikoku das possíveis mudanças que venham nâmica própria e uma inserção in- fica privilegiada e de imensos recursos naturais, en-
(Estados Unidos). a ocorrer na política interna russa, ternacional específica, e que hoje tre eles gás e petróleo, inicialmente se manteve de-
A evolução da Ásia a partir do tal cooperação tende a se manter, começa a se vincular ao dinamismo pendente da Rússia, mas obteve uma posição de
fim da Guerra Fria e do desapare- especialmente com a pressão oci- da Ásia Oriental, é o subcontinen- equilíbrio entre Moscou e Pequim dentro da Orga-
cimento da União Soviética foi rá- dental sobre Moscou por causa do te indiano. A Índia realizava uma nização de Cooperação de Xangai.
pida e profunda, gerando uma no- contencioso na Ucrânia desde 2014. industrialização substitutiva de im- Esse é um dos motivos da presença americana na
va realidade ainda não consolidada. A queda do “muro” sino-sovié- portações autocentrada e, no plano região desde a Guerra do Golfo, na tentativa de in-

Hung Chung Chih/shutterstock.com


É preciso pensá-la num contexto tico, por outro lado, também per- estratégico, era aliada de Moscou troduzir uma cunha na Ásia Central via Afeganistão.
mais amplo, pois nos últimos anos mitiu integrar progressivamente a (isto é, antichinesa), apesar de man- Washington busca ter um acesso direto aos recursos
suas diversas regiões constitutivas, Sibéria ao dinamismo econômico ter uma diplomacia neutralista, vol- econômicos da Ásia Central e procura evitar que a re-
que se encontravam compartimen- da Ásia por meio da cooperação bi- tada para o não alinhamento e o gião se torne uma espécie de zona de contato entre a
tadas, têm se encaminhado para a lateral com o socialismo de merca- Terceiro Mundo. Isso projetava a Ásia e a Europa (via Rússia). A reabertura da Rota da

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a geopolítica da ásia Paulo G. Fagundes Visentini A nova geopolítica da Ásia após a Guerra Fria

mente, a fim de fortalecer um gru- fusão em um único cenário estra- do chinês. A implantação de um Com a presença no Afeganistão,
po de países que pudesse contraba- tégico. De fato, o continente asiá- grande número de joint-ventures, en-
lançar o peso da China, explorando tico esteve submetido a uma série volvendo as mais curiosas parcerias os EUA tentam introduzir uma
o contencioso Pequim-Hanói das de divisões no século XX. As for- (por exemplo, sino-sul-coreana),
ilhas Spratli, ricas em petróleo, lo- mas e a abrangência dessas divisões está transformando estruturalmen- cunha na Ásia Central, para
calizadas no mar da China Meri- se alteraram, sem que o problema te a geografia econômica da região
dional. Esse também parece ser o desaparecesse. A Guerra Fria fechou siberiana e, consequentemente, a ter acesso direto a recursos
caso da Índia, outra antiga aliada
da União Soviética, que hoje se in-
ainda mais as fronteiras entre as re-
giões, tais como o anel insular sob
geopolítica da Ásia.
A normalização política que se
econômicos e evitar que a região
tegra à economia mundial e tem o controle norte-americano, a mas- seguiu aos acordos de paz do Cam- seja uma zona de contato entre
sido aventada como uma alterna- sa continental socialista (dividida boja em 1992 acabou com o isola-
tiva à China. desde a década de 1960 entre a Re- mento da Indochina em relação ao o Extremo Oriente e a Europa.
Mais do que meros apêndices da pública Popular da China, a Ásia restante do Sudeste Asiático. Essa
economia japonesa, a China e os Central soviética e a Sibéria), o sub- nova dimensão diplomático-estra-
Tigres (de primeira e de segunda continente indiano influenciado pe- tégica, associada ao dinamismo eco- Índia mais para o cenário do oceano Índico do que
geração) estão se tornando compe- lo neutralismo (onde Índia e Pa- nômico da região, propiciou o acer- para a Ásia-Pacífico (Khurana, 2008). O colapso da
tidores ambiciosos, embora suas eco- quistão eram inimigos permanentes) camento sino-vietnamita e uma União Soviética, a ascensão econômica da Ásia Orien-
nomias continuem fortemente in- e o Sudeste Asiático em conflito e crescente cooperação de Pequim tal e do Sudeste Asiático, os efeitos da globalização
terdependentes, o que, aliás, tam- em disputa. com a Asean. Embora a mídia res- econômica e da revolução científico-tecnológica, a
bém ocorre em relação à economia Com o fim da Guerra Fria, vá- salte a existência de um “expansio- normalização das relações da China com seus vizinhos
americana. Por outro lado, o Japão rios “muros” asiáticos ruíram. A nismo chinês” na região e exagere e as novas ameaças à segurança indiana levaram Nova
tem conhecido uma prolongada re- normalização sino-soviética, reali- o litígio das ilhas Spratli, os interes- Delhi a abrir sua economia e a esboçar algo mais que
cessão econômica e alguma incer- zada durante a perestroika de Gorba- ses econômicos e a criação de um um simples modus vivendi com a China, integrando-se
teza política, mas se recusa a fazer chov, aprofundou-se ainda mais com diálogo permanente no campo da ao ciclo de desenvolvimento asiático. Evolução idên-
reformas neoliberais. A falta de cres- a desintegração da União Soviéti- segurança têm aumentado a coo- tica, mas mais radical, ocorreu em Myanmar, onde a
cimento evita um confronto com ca em fins de 1991. Desde então, a peração entre a China e o Sudeste junta militar fomenta a captação de investimentos es-
os Estados Unidos (Uehara: 2003). cooperação entre Rússia e China Asiático. Não apenas desapareceu o trangeiros e a inserção na economia mundial enquan-
Mas os Estados Unidos parecem tem sido intensa nos campos econô- fosso que separava a Indochina da to consolida um regime autoritário com o apoio polí-
querer afastar o Japão do multilate- mico-comercial, tecnológico-mili- Asean, como também se iniciou um tico e econômico da China.
ralismo, aproximando-o do regio- tar, diplomático e de segurança (Ball: crescente relacionamento econômi- Quase simultaneamente, o espaço geopolítico
nalismo (a “comunidade do Pacífi- 1996). Especialmente importante co e político do gigante chinês com asiático se ampliou ainda mais com o surgimento de
co”). A interdependência bilateral têm sido a venda de armamento so- toda a área. Anteriormente, o con- novos Estados, resultantes do desmembramento da
desses países ensejaria a criação da fisticado e a transferência de tecno- flito indo-chinês contribuía para União Soviética: Cazaquistão, Uzbequistão, Quir-
economia “nichibei” – expressão logia avançada no campo aeroespa- isolar os atores regionais. guistão, Tadjiquistão e Turcomenistão. A antiga Ásia
cunhada a partir dos caracteres ja- cial e nuclear. Independentemente Outra região que tinha uma di- Central soviética, detentora de uma posição geográ-
poneses Nihon (Japão) e Beikoku das possíveis mudanças que venham nâmica própria e uma inserção in- fica privilegiada e de imensos recursos naturais, en-
(Estados Unidos). a ocorrer na política interna russa, ternacional específica, e que hoje tre eles gás e petróleo, inicialmente se manteve de-
A evolução da Ásia a partir do tal cooperação tende a se manter, começa a se vincular ao dinamismo pendente da Rússia, mas obteve uma posição de
fim da Guerra Fria e do desapare- especialmente com a pressão oci- da Ásia Oriental, é o subcontinen- equilíbrio entre Moscou e Pequim dentro da Orga-
cimento da União Soviética foi rá- dental sobre Moscou por causa do te indiano. A Índia realizava uma nização de Cooperação de Xangai.
pida e profunda, gerando uma no- contencioso na Ucrânia desde 2014. industrialização substitutiva de im- Esse é um dos motivos da presença americana na
va realidade ainda não consolidada. A queda do “muro” sino-sovié- portações autocentrada e, no plano região desde a Guerra do Golfo, na tentativa de in-

Hung Chung Chih/shutterstock.com


É preciso pensá-la num contexto tico, por outro lado, também per- estratégico, era aliada de Moscou troduzir uma cunha na Ásia Central via Afeganistão.
mais amplo, pois nos últimos anos mitiu integrar progressivamente a (isto é, antichinesa), apesar de man- Washington busca ter um acesso direto aos recursos
suas diversas regiões constitutivas, Sibéria ao dinamismo econômico ter uma diplomacia neutralista, vol- econômicos da Ásia Central e procura evitar que a re-
que se encontravam compartimen- da Ásia por meio da cooperação bi- tada para o não alinhamento e o gião se torne uma espécie de zona de contato entre a
tadas, têm se encaminhado para a lateral com o socialismo de merca- Terceiro Mundo. Isso projetava a Ásia e a Europa (via Rússia). A reabertura da Rota da

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a geopolítica da ásia Paulo G. Fagundes Visentini A nova geopolítica da Ásia após a Guerra Fria

Seda, antiga ligação terrestre entre co soviético, havia ainda 1,3 bilhão A economia nipônica tem se vol- Sem alterar significativamente a es- na área. Trata-se de uma postu-
a Europa e a Ásia, anterior à era nessa situação. Não se trata de um
Referência do desenvolvimento tado progressivamente para o con- trutura socioeconômica, o governo ra defensiva que, em certa me-
das navegações, é significativa. simples elemento residual. Assim, asiático durante muito tempo, tinente; as questões de segurança norte-coreano tem atraído investi- dida, legitima a China aos olhos
Lentamente, a Ásia política co- o “novo Segundo Mundo” experi- regional têm obrigado o país a acei- mentos estrangeiros, estabelecendo de seus vizinhos. Mas as nações
meça a se identificar com a Ásia menta uma Nova Política Econô- o Japão está numa encruzilhada, tar um maior envolvimento local, joint-ventures e abrindo zonas eco- asiáticas rechaçam as pressões
geográfica e, ainda mais impor- mica (NEP)1 que, diferentemente como no caso da península coreana; nômicas especiais na região do rio econômicas e as ingerências po-
tante, se esboça progressivamen- da soviética, não se limita a um só
enfrentando uma prolongada e as pressões norte-americanas para Tumen, na fronteira com a Rússia, líticas norte-americanas, tanto
te a noção de Eurásia. país, mas está inserida na economia estagnação e um esgotamento que o Japão se enquadre no novo em Sinuju, na fronteira com a Chi- em questões internas como ex-
A expansão do cenário geopo- mundial, na qual influi cada vez padrão que a potência “protetora” na, e em Kaesong, próximo à linha ternas, que constituem justamen-
lítico asiático para o interior da Eu- mais. Além disso, ele está gestando do consenso social interno. procura implementar na economia de demarcação – todas com inves- te os temas relevantes para a Ca-
rásia amplia seus recursos naturais um paradigma alternativo para a mundial – tudo isso leva muitos es- timentos sul-coreanos. sa Branca, já que seu poder béli-
e industriais. Mas, diante de maior construção de uma nova ordem Seu lugar ainda não está claro. tadistas e empresários a defender Por mais contraditório que pos- co é usado indiretamente.
diversidade, surgem novos proble- mundial multipolar não hegemôni- uma maior autonomia para a nação, sa parecer, Japão e Estados Unidos Para evitar o surgimento de
mas e tensões que afetam tanto as ca, com um modelo próprio de de- comum a ser preservado. Da pers- apoiando-se no continente. Mas o percebem a improvável unificação polos de poder e de desenvolvi-
nações da Ásia quanto os Estados senvolvimento nacional e social, pectiva da geopolítica clássica, não Japão ainda depende significativa- das Coreias como uma possível fon- mento autônomos na Ásia, os Es-
Unidos. Com isso, as primeiras con- segurança e governabilidade. seria absurdo visualizar que a massa mente do mercado dos Estados Uni- te de novos problemas, dependendo tados Unidos adotam uma série
seguem ampliar seu espaço de ma- Como vimos, esse “novo Se- continental, ou heartland, passa a dos; por ser dependente em matéria de como ela ocorra. O desenvolvi- de atitudes que acabam favore-
nobra econômica e diplomática, mas gundo Mundo”2 mantém uma dis- desafiar a “ilha mundial”. Estaria de segurança, é tremendamente vul- mento sul-coreano atingiu tal nível cendo uma razoável acomodação
a complexidade da nova realidade creta e sutil cooperação estratégi- essa economia, cada vez mais cen- nerável às pressões diplomáticas e que o país passou a ser visto pelo Ja- das divergências entre Pequim e
em formação acrescenta dificulda- ca com o “velho Segundo Mundo” trada na Ásia continental e menos militares; e encontra fortes restrições pão como um concorrente. A Co- seus vizinhos. Os Estados Unidos
des a uma região que experimenta e também tem uma relação menos no oceano Pacífico, em condições de entre os países do continente, pois, reia do Sul também assumiu postu- têm procurado estabelecer um
uma evolução acelerada, com todas antagônica do que se poderia pen- ameaçar a hegemonia da economia ao contrário do que ocorre na Eu- ras que não agradam Washington, cerco geopolítico à China, como
as suas implicações, e não conta com sar com os países capitalistas da anglo-saxônica centrada nos grandes ropa, as grandes questões herdadas como a crescente vinculação com a bem o demonstram seus acordos
mecanismos próprios de segurança Ásia. Os modelos de desenvolvi- espaços marítimos planetários? da Segunda Guerra Mundial ainda economia chinesa, desde o restabe- com a Mongólia, o Japão e a Ín-
coletiva. Uma Ásia ampliada, com mento e os regimes políticos dos Um elemento-chave para res- não estão solucionadas. lecimento de relações entre os dois dia, além do apoio ao separatismo
mais atores políticos e uma econo- países asiáticos apresentam fortes ponder a essa questão é a futura po- A península coreana constitui países em 1992. Além disso, a uni- no Tibete e em Taiwan.
mia que progressivamente se volta semelhanças e importantes inte- sição do Japão. Considerado até re- outra região sensível e importante ficação da península criaria uma no- Os Estados Unidos também
para o próprio continente, dificulta resses comuns, sejam eles formal- centemente o paradigma do desen- na Ásia, sobretudo com as possibi- va potência regional de razoável por- parecem dispostos a instrumen-
o controle dos Estados Unidos so- mente capitalistas ou socialistas. volvimento asiático, o Japão está na lidades de reunificação e de uma te demográfico, econômico e mili- talizar política e economicamen-
bre a evolução política e econômi- Esses modelos políticos e econô- encruzilhada de grandes e inadiáveis associação econômica mais íntima tar (possivelmente também nuclear). te a Índia e o Vietnã como parte
ca da região. micos, “autoritários” e “estatistas” decisões. Sua economia enfrenta com as regiões vizinhas, em parti- de sua estratégia de isolar a Chi-
na perspectiva anglo-norte-ame- uma prolongada estagnação, a po- cular a China. A crise econômica na e conter seu desenvolvimento,
ricana, encontram-se sob a pressão pulação está envelhecida, o con- do regime socialista norte-coreano A adaptação da tirando proveito da rivalidade
Um novo Segundo Mundo: ocidental, que vai dos direitos hu- senso social começa a dar sinais introduziu novas dimensões no jo- diplomacia asiática desses dois países em relação a
o socialismo de mercado manos aos mecanismos comerciais. de esgotamento e o sistema polí- go regional e coincidiu com as pres- dos Estados Unidos Pequim. Contudo, Washington
Outra realidade nova precisa ser Outro fator de longo prazo está tico organizado em 1955, duran- sões norte-americanas para uma Num plano mais geral, a situação parece não levar em conta que
levada em conta quando se analisa associado a esse fenômeno. Com a te a Guerra Fria, entrou em colap- maior abertura da economia sul- da Ásia mostra uma série de con- Nova Delhi e Hanói seguem es-
o fenômeno asiático. No estudo reincorporação de Hong Kong em so, exigindo redefinições que ainda -coreana. As duas Coreias ingres- tradições. Os países asiáticos, in- trategicamente, assim como a
dos cenários estratégicos da década 1997 e de Macau em 1999, encer- não estão claras. Contudo, o nó da saram na ONU em 1991. Mesmo clusive a China, continuam fa- China, os chamados “cinco prin-
de 1990, alguns especialistas men- rou-se para os asiáticos o ciclo co- questão está justamente na política assim, Pyongyang tem usado a ques- voráveis à manutenção da pre- cípios da coexistência pacífica”
cionam a formação de um “novo lonial, o que coincide com a ascen- internacional, em relação à qual Tó- tão nuclear, a tensão calculada com sença militar norte-americana e o ideário de Bandung. Apesar
Segundo Mundo”, nucleado pela são econômica da região. Todos têm quio precisa se definir: será parte da o sul e os riscos que o colapso do na região, pois ela garante a se- de existirem divergências, esses
China. De fato, como destacou o consciência de que isto não seria economia “nichibei”, ou seja, a fron- regime poderia produzir (sobretudo gurança regional a um custo re- três importantes países asiáticos
politólogo britânico Fred Halliday, possível sem a China, o que não sig- teira oriental do império americano após a morte do líder Kim Il Sung) duzido e ainda, no caso de Pe- têm interesses comuns de longo
até 1989 viviam em países classifi- nifica ignorar as persistentes diver- (os “asiáticos ocidentalizados”, se- como moeda de troca na negocia- quim, justifica uma aproximação prazo. A evolução de seu inter-
cados como socialistas 1,7 bilhão gências intra-asiáticas. Mas agora gundo a tipologia de Huntington), ção de um acordo geral que permi- entre os asiáticos para conter o -relacionamento recente parece
de pessoas. Após o colapso do blo- está se formando um patrimônio ou será a fronteira ocidental da Ásia. ta pôr fim ao isolamento do país. “hegemonismo” de Washington apontar nessa direção.

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a geopolítica da ásia Paulo G. Fagundes Visentini A nova geopolítica da Ásia após a Guerra Fria

Seda, antiga ligação terrestre entre co soviético, havia ainda 1,3 bilhão A economia nipônica tem se vol- Sem alterar significativamente a es- na área. Trata-se de uma postu-
a Europa e a Ásia, anterior à era nessa situação. Não se trata de um
Referência do desenvolvimento tado progressivamente para o con- trutura socioeconômica, o governo ra defensiva que, em certa me-
das navegações, é significativa. simples elemento residual. Assim, asiático durante muito tempo, tinente; as questões de segurança norte-coreano tem atraído investi- dida, legitima a China aos olhos
Lentamente, a Ásia política co- o “novo Segundo Mundo” experi- regional têm obrigado o país a acei- mentos estrangeiros, estabelecendo de seus vizinhos. Mas as nações
meça a se identificar com a Ásia menta uma Nova Política Econô- o Japão está numa encruzilhada, tar um maior envolvimento local, joint-ventures e abrindo zonas eco- asiáticas rechaçam as pressões
geográfica e, ainda mais impor- mica (NEP)1 que, diferentemente como no caso da península coreana; nômicas especiais na região do rio econômicas e as ingerências po-
tante, se esboça progressivamen- da soviética, não se limita a um só
enfrentando uma prolongada e as pressões norte-americanas para Tumen, na fronteira com a Rússia, líticas norte-americanas, tanto
te a noção de Eurásia. país, mas está inserida na economia estagnação e um esgotamento que o Japão se enquadre no novo em Sinuju, na fronteira com a Chi- em questões internas como ex-
A expansão do cenário geopo- mundial, na qual influi cada vez padrão que a potência “protetora” na, e em Kaesong, próximo à linha ternas, que constituem justamen-
lítico asiático para o interior da Eu- mais. Além disso, ele está gestando do consenso social interno. procura implementar na economia de demarcação – todas com inves- te os temas relevantes para a Ca-
rásia amplia seus recursos naturais um paradigma alternativo para a mundial – tudo isso leva muitos es- timentos sul-coreanos. sa Branca, já que seu poder béli-
e industriais. Mas, diante de maior construção de uma nova ordem Seu lugar ainda não está claro. tadistas e empresários a defender Por mais contraditório que pos- co é usado indiretamente.
diversidade, surgem novos proble- mundial multipolar não hegemôni- uma maior autonomia para a nação, sa parecer, Japão e Estados Unidos Para evitar o surgimento de
mas e tensões que afetam tanto as ca, com um modelo próprio de de- comum a ser preservado. Da pers- apoiando-se no continente. Mas o percebem a improvável unificação polos de poder e de desenvolvi-
nações da Ásia quanto os Estados senvolvimento nacional e social, pectiva da geopolítica clássica, não Japão ainda depende significativa- das Coreias como uma possível fon- mento autônomos na Ásia, os Es-
Unidos. Com isso, as primeiras con- segurança e governabilidade. seria absurdo visualizar que a massa mente do mercado dos Estados Uni- te de novos problemas, dependendo tados Unidos adotam uma série
seguem ampliar seu espaço de ma- Como vimos, esse “novo Se- continental, ou heartland, passa a dos; por ser dependente em matéria de como ela ocorra. O desenvolvi- de atitudes que acabam favore-
nobra econômica e diplomática, mas gundo Mundo”2 mantém uma dis- desafiar a “ilha mundial”. Estaria de segurança, é tremendamente vul- mento sul-coreano atingiu tal nível cendo uma razoável acomodação
a complexidade da nova realidade creta e sutil cooperação estratégi- essa economia, cada vez mais cen- nerável às pressões diplomáticas e que o país passou a ser visto pelo Ja- das divergências entre Pequim e
em formação acrescenta dificulda- ca com o “velho Segundo Mundo” trada na Ásia continental e menos militares; e encontra fortes restrições pão como um concorrente. A Co- seus vizinhos. Os Estados Unidos
des a uma região que experimenta e também tem uma relação menos no oceano Pacífico, em condições de entre os países do continente, pois, reia do Sul também assumiu postu- têm procurado estabelecer um
uma evolução acelerada, com todas antagônica do que se poderia pen- ameaçar a hegemonia da economia ao contrário do que ocorre na Eu- ras que não agradam Washington, cerco geopolítico à China, como
as suas implicações, e não conta com sar com os países capitalistas da anglo-saxônica centrada nos grandes ropa, as grandes questões herdadas como a crescente vinculação com a bem o demonstram seus acordos
mecanismos próprios de segurança Ásia. Os modelos de desenvolvi- espaços marítimos planetários? da Segunda Guerra Mundial ainda economia chinesa, desde o restabe- com a Mongólia, o Japão e a Ín-
coletiva. Uma Ásia ampliada, com mento e os regimes políticos dos Um elemento-chave para res- não estão solucionadas. lecimento de relações entre os dois dia, além do apoio ao separatismo
mais atores políticos e uma econo- países asiáticos apresentam fortes ponder a essa questão é a futura po- A península coreana constitui países em 1992. Além disso, a uni- no Tibete e em Taiwan.
mia que progressivamente se volta semelhanças e importantes inte- sição do Japão. Considerado até re- outra região sensível e importante ficação da península criaria uma no- Os Estados Unidos também
para o próprio continente, dificulta resses comuns, sejam eles formal- centemente o paradigma do desen- na Ásia, sobretudo com as possibi- va potência regional de razoável por- parecem dispostos a instrumen-
o controle dos Estados Unidos so- mente capitalistas ou socialistas. volvimento asiático, o Japão está na lidades de reunificação e de uma te demográfico, econômico e mili- talizar política e economicamen-
bre a evolução política e econômi- Esses modelos políticos e econô- encruzilhada de grandes e inadiáveis associação econômica mais íntima tar (possivelmente também nuclear). te a Índia e o Vietnã como parte
ca da região. micos, “autoritários” e “estatistas” decisões. Sua economia enfrenta com as regiões vizinhas, em parti- de sua estratégia de isolar a Chi-
na perspectiva anglo-norte-ame- uma prolongada estagnação, a po- cular a China. A crise econômica na e conter seu desenvolvimento,
ricana, encontram-se sob a pressão pulação está envelhecida, o con- do regime socialista norte-coreano A adaptação da tirando proveito da rivalidade
Um novo Segundo Mundo: ocidental, que vai dos direitos hu- senso social começa a dar sinais introduziu novas dimensões no jo- diplomacia asiática desses dois países em relação a
o socialismo de mercado manos aos mecanismos comerciais. de esgotamento e o sistema polí- go regional e coincidiu com as pres- dos Estados Unidos Pequim. Contudo, Washington
Outra realidade nova precisa ser Outro fator de longo prazo está tico organizado em 1955, duran- sões norte-americanas para uma Num plano mais geral, a situação parece não levar em conta que
levada em conta quando se analisa associado a esse fenômeno. Com a te a Guerra Fria, entrou em colap- maior abertura da economia sul- da Ásia mostra uma série de con- Nova Delhi e Hanói seguem es-
o fenômeno asiático. No estudo reincorporação de Hong Kong em so, exigindo redefinições que ainda -coreana. As duas Coreias ingres- tradições. Os países asiáticos, in- trategicamente, assim como a
dos cenários estratégicos da década 1997 e de Macau em 1999, encer- não estão claras. Contudo, o nó da saram na ONU em 1991. Mesmo clusive a China, continuam fa- China, os chamados “cinco prin-
de 1990, alguns especialistas men- rou-se para os asiáticos o ciclo co- questão está justamente na política assim, Pyongyang tem usado a ques- voráveis à manutenção da pre- cípios da coexistência pacífica”
cionam a formação de um “novo lonial, o que coincide com a ascen- internacional, em relação à qual Tó- tão nuclear, a tensão calculada com sença militar norte-americana e o ideário de Bandung. Apesar
Segundo Mundo”, nucleado pela são econômica da região. Todos têm quio precisa se definir: será parte da o sul e os riscos que o colapso do na região, pois ela garante a se- de existirem divergências, esses
China. De fato, como destacou o consciência de que isto não seria economia “nichibei”, ou seja, a fron- regime poderia produzir (sobretudo gurança regional a um custo re- três importantes países asiáticos
politólogo britânico Fred Halliday, possível sem a China, o que não sig- teira oriental do império americano após a morte do líder Kim Il Sung) duzido e ainda, no caso de Pe- têm interesses comuns de longo
até 1989 viviam em países classifi- nifica ignorar as persistentes diver- (os “asiáticos ocidentalizados”, se- como moeda de troca na negocia- quim, justifica uma aproximação prazo. A evolução de seu inter-
cados como socialistas 1,7 bilhão gências intra-asiáticas. Mas agora gundo a tipologia de Huntington), ção de um acordo geral que permi- entre os asiáticos para conter o -relacionamento recente parece
de pessoas. Após o colapso do blo- está se formando um patrimônio ou será a fronteira ocidental da Ásia. ta pôr fim ao isolamento do país. “hegemonismo” de Washington apontar nessa direção.

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a geopolítica da ásia Paulo G. Fagundes Visentini A nova geopolítica da Ásia após a Guerra Fria

larmente com o Brasil. Assim, o A China se tornou forma prudente, mas segura, da
oceano Índico estaria se tornando grande diplomacia mundial. Além
uma espécie de rota de ligação o centro de disso, desde 2009 vem estreitando
com as demais nações do Sul. O sua cooperação com a África, a
impacto ainda se limita ao plano gravidade da Ásia, América Latina e os chamados
econômico, mas a cooperação mais
estreita com essas regiões tem um
participando de Brics. Junto de alguns países vizi-
nhos, a China tende a compor um
potencial promissor de médio e forma prudente, polo de poder num sistema inter-
longo prazo, além de constituir nacional multipolar, regido por
um elemento estratégico na com- mas segura, da uma ONU redimensionada pelo
petição entre os polos desenvolvi- novo equilíbrio de forças que de-
dos do hemisfério Norte. Como
grande diplomacia verá se formar.
o polo asiático constitui, em linhas mundial, com grande
gerais, uma área em desenvolvi-
presença na África. A Índia e a Ásia

Casper1774 Studio/shutterstock.com
mento, existe um amplo espaço
para estabelecer com os países
Meridional em face
emergentes uma parceria estra- da reconfiguração
tégica capaz de influenciar a or- sul das Filipinas ao Paquistão. das alianças
dem internacional do futuro. Os Parece clara a intenção de in- Outra região com dinâmica de
encontros trianuais do Fórum de troduzir uma cunha no centro crescimento e inserção mundial
Cooperação China-África, desde geopolítico da Eurásia, dificul- próprias é o subcontinente in-
2006, reúnem mais de cinquenta tando a integração física da Rús- diano. A Índia caracterizava-se
chefes de Estado em Pequim e na sia com a China – o que denun- por uma industrialização auto-
O retorno da geopolítica: ses-chave da Ásia uma crescente Trata-se de um acordo de caráter África, alternadamente, levando cia, discretamente, o cerco es- centrada e, apesar de sua diplo-
a emergência do cooperação em campos particu- diplomático, econômico e de se- adiante uma espécie de Plano Mar- tratégico que Washington tenta macia neutralista, era aliada de
larmente sensíveis, como vimos. gurança, que originalmente en- shall para a África, um exemplo estabelecer, além da ameaça que Moscou no plano estratégico
heartland eurasiano Além disso, ela constitui o elo ter- globava China, Rússia, Cazaquis- do protagonismo global chinês. paira sobre o acesso chinês ao (uma aliança antichinesa). Tal
Para muitos analistas está ocorren- restre que pode servir de base pa- tão, Uzbequistão, Tadjiquistão e petróleo da Ásia Central. situação se esgotou no fim da dé-
do a emergência da Eurásia como ra a constituição de um grande Quirguistão, passando a contar A China teve uma atuação dis- cada de 1980. Com isso, a Índia
região geopolítica e geoeconômica. espaço econômico eurasiano. Des- depois com vários outros Estados A Ásia e a geopolítica creta no período da guerra contra buscou normalizar as relações
Entre os três grandes centros de de que Evgueni Primakov se tor- associados ou observadores. A Ásia da guerra ao terrorismo o Iraque, evitando polemizar com com a China, integrar-se ao ci-
desenvolvimento do hemisfério nou primeiro-ministro e, espe- Central possui, em gás e petróleo, A guerra ao terrorismo, que os os Estados Unidos. O intercâmbio clo de desenvolvimento asiático
Norte, sempre houve vínculos es- cialmente, desde que Vladimir Pu- recursos indispensáveis ao desen- Estados Unidos desencadearam econômico com Washington é e resolver seus dilemas com o
treitos através dos oceanos Pacífico tin se tornou presidente, a Rússia volvimento chinês. A Rússia, por após os atentados de 11 de se- vantajoso, e Pequim precisa man- Paquistão. Em 1985 foi estabe-
e Atlântico, associando a economia se reorganizou, voltou a crescer sua vez, tornou-se uma potência tembro de 2001, iniciou uma ter seu crescimento econômico lecida a Área de Cooperação
da América do Norte com as da economicamente, recuperou par- energética (petróleo, gás, carvão ampla intervenção na Ásia Cen- por, pelo menos, mais uma déca- Regional da Ásia Meridional
Ásia Oriental e da Europa Ociden- cialmente a capacidade militar e e urânio) e tecnológico-militar tral e Ocidental. O perfil da po- da. Por outro lado, a China tem (Saarc),4 dinamizada na década
tal, respectivamente. Desde a der- desenvolveu um significativo pro- (indústria aeroespacial, nuclear, lítica externa dos governos Bush tido sucesso em associar cada vez de 1990 com a abertura e o ace-
rocada do sistema colonial, porém, tagonismo diplomático. mísseis etc.). e Obama para a Ásia ficou evi- mais os vizinhos ao seu processo lerado desenvolvimento da eco-
Ásia e Europa têm caminhado se- Além da parceria estratégica Por fim, importantes países denciado com a invasão norte- de desenvolvimento econômico, nomia na Índia, que se tornou
paradas, o que agora começa a mu- estabelecida com a China, ambos asiáticos têm buscado maior coo- -americana do Afeganistão e do ao mesmo tempo que participa de um dos polos mundiais de infor-
dar. A eventual consolidação de os países criaram com Estados da peração com países-chave do Ter- Iraque e a parcial presença mi- iniciativas regionais de coopera- mática (Chaudhury, 2006: 212).
um espaço eurasiano pode alterar Ásia Central o grupo denomina- ceiro Mundo, particularmente litar no Cáucaso e em ex-repú- ção, seja econômica, política ou Além disso, a Índia é uma po-
o equilíbrio internacional. do “os cinco de Xangai” (1996), com as chamadas nações emergen- blicas soviéticas da Ásia Cen- de segurança, como a Asean. As- tência nuclear (não signatária do
A Rússia, ainda que seja um depois rebatizado Organização de tes, como o conjunto da África tral, além da exploração da cri- sim, a China vem se tornando o Tratado de Não-Proliferação), as-
parceiro inferior à antiga União Cooperação de Xangai, quando o Austral, nucleado pela África do se coreana e da luta contra o centro de gravidade da Ásia e, dis- pira à condição de membro do Con-
Soviética, tem mantido com paí- Uzbequistão ingressou (2001). 3 Sul, e com o Mercosul, particu- terrorismo na faixa que vai do cretamente, vem participando de selho de Segurança da ONU, pro-

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


50 51
a geopolítica da ásia Paulo G. Fagundes Visentini A nova geopolítica da Ásia após a Guerra Fria

larmente com o Brasil. Assim, o A China se tornou forma prudente, mas segura, da
oceano Índico estaria se tornando grande diplomacia mundial. Além
uma espécie de rota de ligação o centro de disso, desde 2009 vem estreitando
com as demais nações do Sul. O sua cooperação com a África, a
impacto ainda se limita ao plano gravidade da Ásia, América Latina e os chamados
econômico, mas a cooperação mais
estreita com essas regiões tem um
participando de Brics. Junto de alguns países vizi-
nhos, a China tende a compor um
potencial promissor de médio e forma prudente, polo de poder num sistema inter-
longo prazo, além de constituir nacional multipolar, regido por
um elemento estratégico na com- mas segura, da uma ONU redimensionada pelo
petição entre os polos desenvolvi- novo equilíbrio de forças que de-
dos do hemisfério Norte. Como
grande diplomacia verá se formar.
o polo asiático constitui, em linhas mundial, com grande
gerais, uma área em desenvolvi-
presença na África. A Índia e a Ásia

Casper1774 Studio/shutterstock.com
mento, existe um amplo espaço
para estabelecer com os países
Meridional em face
emergentes uma parceria estra- da reconfiguração
tégica capaz de influenciar a or- sul das Filipinas ao Paquistão. das alianças
dem internacional do futuro. Os Parece clara a intenção de in- Outra região com dinâmica de
encontros trianuais do Fórum de troduzir uma cunha no centro crescimento e inserção mundial
Cooperação China-África, desde geopolítico da Eurásia, dificul- próprias é o subcontinente in-
2006, reúnem mais de cinquenta tando a integração física da Rús- diano. A Índia caracterizava-se
chefes de Estado em Pequim e na sia com a China – o que denun- por uma industrialização auto-
O retorno da geopolítica: ses-chave da Ásia uma crescente Trata-se de um acordo de caráter África, alternadamente, levando cia, discretamente, o cerco es- centrada e, apesar de sua diplo-
a emergência do cooperação em campos particu- diplomático, econômico e de se- adiante uma espécie de Plano Mar- tratégico que Washington tenta macia neutralista, era aliada de
larmente sensíveis, como vimos. gurança, que originalmente en- shall para a África, um exemplo estabelecer, além da ameaça que Moscou no plano estratégico
heartland eurasiano Além disso, ela constitui o elo ter- globava China, Rússia, Cazaquis- do protagonismo global chinês. paira sobre o acesso chinês ao (uma aliança antichinesa). Tal
Para muitos analistas está ocorren- restre que pode servir de base pa- tão, Uzbequistão, Tadjiquistão e petróleo da Ásia Central. situação se esgotou no fim da dé-
do a emergência da Eurásia como ra a constituição de um grande Quirguistão, passando a contar A China teve uma atuação dis- cada de 1980. Com isso, a Índia
região geopolítica e geoeconômica. espaço econômico eurasiano. Des- depois com vários outros Estados A Ásia e a geopolítica creta no período da guerra contra buscou normalizar as relações
Entre os três grandes centros de de que Evgueni Primakov se tor- associados ou observadores. A Ásia da guerra ao terrorismo o Iraque, evitando polemizar com com a China, integrar-se ao ci-
desenvolvimento do hemisfério nou primeiro-ministro e, espe- Central possui, em gás e petróleo, A guerra ao terrorismo, que os os Estados Unidos. O intercâmbio clo de desenvolvimento asiático
Norte, sempre houve vínculos es- cialmente, desde que Vladimir Pu- recursos indispensáveis ao desen- Estados Unidos desencadearam econômico com Washington é e resolver seus dilemas com o
treitos através dos oceanos Pacífico tin se tornou presidente, a Rússia volvimento chinês. A Rússia, por após os atentados de 11 de se- vantajoso, e Pequim precisa man- Paquistão. Em 1985 foi estabe-
e Atlântico, associando a economia se reorganizou, voltou a crescer sua vez, tornou-se uma potência tembro de 2001, iniciou uma ter seu crescimento econômico lecida a Área de Cooperação
da América do Norte com as da economicamente, recuperou par- energética (petróleo, gás, carvão ampla intervenção na Ásia Cen- por, pelo menos, mais uma déca- Regional da Ásia Meridional
Ásia Oriental e da Europa Ociden- cialmente a capacidade militar e e urânio) e tecnológico-militar tral e Ocidental. O perfil da po- da. Por outro lado, a China tem (Saarc),4 dinamizada na década
tal, respectivamente. Desde a der- desenvolveu um significativo pro- (indústria aeroespacial, nuclear, lítica externa dos governos Bush tido sucesso em associar cada vez de 1990 com a abertura e o ace-
rocada do sistema colonial, porém, tagonismo diplomático. mísseis etc.). e Obama para a Ásia ficou evi- mais os vizinhos ao seu processo lerado desenvolvimento da eco-
Ásia e Europa têm caminhado se- Além da parceria estratégica Por fim, importantes países denciado com a invasão norte- de desenvolvimento econômico, nomia na Índia, que se tornou
paradas, o que agora começa a mu- estabelecida com a China, ambos asiáticos têm buscado maior coo- -americana do Afeganistão e do ao mesmo tempo que participa de um dos polos mundiais de infor-
dar. A eventual consolidação de os países criaram com Estados da peração com países-chave do Ter- Iraque e a parcial presença mi- iniciativas regionais de coopera- mática (Chaudhury, 2006: 212).
um espaço eurasiano pode alterar Ásia Central o grupo denomina- ceiro Mundo, particularmente litar no Cáucaso e em ex-repú- ção, seja econômica, política ou Além disso, a Índia é uma po-
o equilíbrio internacional. do “os cinco de Xangai” (1996), com as chamadas nações emergen- blicas soviéticas da Ásia Cen- de segurança, como a Asean. As- tência nuclear (não signatária do
A Rússia, ainda que seja um depois rebatizado Organização de tes, como o conjunto da África tral, além da exploração da cri- sim, a China vem se tornando o Tratado de Não-Proliferação), as-
parceiro inferior à antiga União Cooperação de Xangai, quando o Austral, nucleado pela África do se coreana e da luta contra o centro de gravidade da Ásia e, dis- pira à condição de membro do Con-
Soviética, tem mantido com paí- Uzbequistão ingressou (2001). 3 Sul, e com o Mercosul, particu- terrorismo na faixa que vai do cretamente, vem participando de selho de Segurança da ONU, pro-

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52 53
a geopolítica da ásia Paulo G. Fagundes Visentini A nova geopolítica da Ásia após a Guerra Fria

duz mísseis e defende a noção de ma de construir alianças antichi- Em 2008 eclodiu a crise fi- taristas também emergem no plano global, com a Referências bibliográficas
independência e interesse nacional. nesas, explorando as rivalidades nanceira nos Estados Unidos, que desestabilização dos países árabes, a intervenção
Da mesma forma, a economia in- de ambos os países. Tal tendên- atingiu a Europa. Quando o pre- da OTAN na Líbia, as guerras civis na Síria e no ADSHEAD, S. A. M. China in World JOYAU X , François. Géopolitique de
diana possui bases sólidas e mo- cia, esboçada já no governo Clin- sidente Obama tomou posse em Iêmen, bem como a crise dos refugiados na Eu- History. Londres: Macmillan/Pal- L’Extrême-Orient. 2 v. Bruxelas: Com-
dernas, apesar de essa moderni- ton, foi intensificada no início 2009 havia três áreas críticas: a ropa e na Turquia. grave, 2000. plexe, 1991.
dade conviver com arcaicos sis- do governo Bush. Contudo, os economia (interna e externa), a BALL, Desdmond (ed.). The Transformation KHURANA , Gurpreet S. MaritimeFforces
temas de castas e uma pobreza atentados de 11 de setembro de necessidade de retirar os Estados of Security in the Asia/Pacific Region. Lon- in Pursuit of National Security. Policy Im-
impressionante. Contudo, desde 2001 e a guerra ao terrorismo Unidos das guerras não vencidas Tendências da dres: Frank Cass, 1996. peratives for India. Nova Delhi: Institute
o início do século XXI, segundo mudaram completamente o ce- no Iraque e no Afeganistão e o geopolítica da Ásia BOQUÉRAT, Gilles; GRARE, Frédéric
for Defense Studies and Analyses/Shipra
(eds.). India, China, Russia. Intricacies of Publications, 2008.
a ONU, 150 milhões de india- nário. Para o ataque ao Afega- novo status econômico e político Na geopolítica da Ásia, a China busca evitar que
an Asian Triangle. Nova Delhi: India Re- KISSINGER, Henry. On China. Nova York:
nos saíram da faixa de pobreza nistão e a neutralização do ter- alcançado pelos Brics (Brasil, Rús- transpareça alguma pretensão de restaurar o siste-
search Press, 2004. Penguin, 2011.
(na China, 350 milhões deixa- rorismo, o Paquistão era um ele- sia, Índia, China e, desde dezem- ma tributário que prevalecia na era imperial (Ad-
CAMPBELL, Gwyn (ed.). The Indian Oce- MACKERRAS, Colin; TANEJA , Prade-
ram de ser pobres). mento estratégico. bro de 2010, África do Sul), gru- shead, 2000: 35). Mesmo assim, algo semelhante ep; YOUNG, Graham. China Since 1978:
an Rim. Southern Africa and Regional Co-
Essa maior aproximação dos po que criou uma agenda própria. ocorre no campo econômico, embora os papéis do -operation. Londres/Nova York: Rou- Reform, Modernization and “Socialism wi-
Estados Unidos com o Paquistão A extensão da Guerra do Afega- Japão, da Rússia, da Índia, dos Estados Unidos e tledge, 2003. th Chinese Characteristics”. Sydney: Long-
A Índia aumentou a prioridade e a China não impediu que hou- nistão ao Paquistão e a pressão da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) CHAUDHURY, Anasua Basu Ray. SA- man, 1997.

de suas relações bilaterais com vesse uma mudança na política


norte-americana em relação à
americana sobre esse país, que
culminou com o obscuro assassi-
sirvam de contrapeso político. A China, que cons-
titui o epicentro da geopolítica asiática, consegue
ARC at Crossroads, The Fate of Regional
Co-operation in South Asia. Nova Delhi:
TOGO, Kazuhiko. Japan’s Foreign Policy,
1945-2003. Leiden/Boston: Brill, 2005.
os Estados Unidos, tendo sido Índia, por causa do crescente po- nato de Bin Laden em 2011 em consolidar sua posição por meio de constantes adap- SAMSKRITI, 2006. UEHARA , Alexandre Ratsuo. A política
derio chinês e das ações terroris- seu território, produziram uma tações e de estratégias flexíveis (Kissinger, 2011). CLEGG, Jenny. China’s Global Strategy. To- externa do Japão no final do século XX: o
reconhecida, de fato, como tas em solo indiano. A Índia pas- forte desestabilização no Paquistão A aliança com a Rússia é interessante, amplian- wards a Multipolar World. Londres: Pluto que faltou? São Paulo: Annablume, Fun-
Press, 2009. dação Japão.
sou a funcionar como um con- e estremeceram as relações bilate- do a região em direção a um espaço eurasiano,
potência nuclear. Os indianos traponto às duas outras nações rais americano-paquistanesas. mas tem suas contradições. Há complementarida- COHEN, Stephen. India, Emerging Power. VISENTINI, Paulo. As relações diplomáticas
Oxford: Oxford University Press, 2001. da Ásia. Belo Horizonte: Fino Traço,
tiram proveito dessa situação, (Deepak, 2005). Além disso, a Nesse quadro, a China ganhou des entre os dois países, mas também há compe-
DEEPAK, B. R . India & China, 1904- 2012.
própria Índia, também pressio- ainda mais projeção, aproximan- tição e desconfiança. A maior zona de tensão tem
sem perder de vista seus nada por essa situação externa, do-se do Paquistão e sendo cor- sido o mar da China Meridional, situação que po-
2004. A Century of Peace and Conflict.
Nova Delhi: Manak Publications, 2005.
WEATHERBEE , Donald. International
Relations in South East Asia. The Struggle
aumentou a prioridade de suas tejada pelos Estados Unidos para de se agravar no governo Donald Trump. Porém,
vínculos permanentes com relações bilaterais com os Esta- auxiliar o dólar e a recuperação da parece que o novo presidente americano buscará,
DITTMER, Lowell; YU, George T. (eds.). for Autonomy. Lanham, MD: Rowan &
Littlefield Publishers, 2005.
China, the Developing World, and the New
os vizinhos asiáticos. dos Unidos. Em março de 2006 abalada economia dos países da mais que um confronto com a China, um novo Global Dynamic. Boulder/Londres: Lynnr WENQUAN, Yin. Desarrollo de China den-
os dois países concluíram um OCDE. Os Brics e a Ásia seguem arranjo bilateral mais favorável aos Estados Uni- Rienner Publishers, 2010. tro de la Globalización. Pequim: Ediciones
acordo que culminou com o re- com boas taxas de crescimento dos. Daí a grande “amizade” com Vladimir Putin, IKENBERRY, G. John; MASTANDU- en Lenguas Extrajeras, 2007.
A tradicional rivalidade entre conhecimento de fato do status econômico, enquanto o Japão, es- que reduziria a solidez da Organização de Coo- NO, Michael. (eds.). International Rela- WILD, Leni; MEDHAM , David (eds.).
Índia e Paquistão está relaciona- nuclear da Índia por Washing- tagnado, ainda sofre os imensos peração de Xangai. tions Theory and the Sia-Pacific. Nova York: The New Sinosphere. Londres: Institute
Columbia University Press, 2003. for Public Policy Research, 2006.
da à traumática independência, ton. Formou-se uma aliança Es- efeitos do megaterremoto que O peso da economia chinesa, por outro lado,
em 1947, especialmente em re- tados Unidos-Japão-Austrália- gerou um tsunami que arrasou acaba sendo o elemento catalisador de qualquer
lação à região da Caxemira, que -Índia. Os indianos tiram pro- o norte e produziu uma crise nu- arranjo geopolítico na Ásia. Cada zona de tensão
foi dividida. A tensão entre os veito de tal situação, sem perder clear sem precedentes. acaba sendo administrada separadamente, sem se
Notas
dois Estados detentores de armas de vista seus vínculos permanen- A crise econômica, longe de fundir em um único cenário antichinês. Apesar
nucleares, com constantes en- tes com os vizinhos asiáticos. In- amainar, tem ameaçado o con- das tentativas de cerco e do estabelecimento de 1. A política econômica socialista apoiada no mercado, que vigorou na União So-
frentamentos armados na região dagado por uma jornalista norte- junto da economia mundial e a alianças pelos Estados Unidos, a tendência tem si- viética entre 1921 e 1927.
de fronteira, tem causado grande -americana se adiantava resistir estabilidade diplomática. Está em do a gradual organização da geopolítica asiática 2. O conceito de “novo Segundo Mundo” foi apresentado no estudo de macrocená-
apreensão, embora haja negocia- à unipolaridade americana, quan- curso uma campanha contra as em um único cenário, marcando o retorno das rios realizado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da Re-
ções que buscam a normalização do “até a Índia já estava no bol- exportações chinesas, apontadas potências terrestres, que limitam a ingerência da pública durante o governo Fernando Henrique Cardoso.
das relações desde o início da so dos Estados Unidos”, Fidel como vilãs da crise, no lugar da potência marítima na região. Parece que a geopo- 3. A Índia e o Paquistão ingressaram na Organização em 2016.
Guerra do Afeganistão, em 2001. Castro respondeu: “A Índia é desenfreada especulação finan- lítica da Ásia se baseia em pressupostos distintos 4. É integrada por Índia, Paquistão, Bangladesh, Sri Lanka, Nepal, Butão e Maldivas,
A Casa Branca buscava coo- grande demais para caber no bol- ceira que marcou as últimas três da geopolítica tradicional das potências anglo-sa- com uma população equivalente à da China (1,3 bilhão de habitantes). O Afeganistão
perar com a Índia como uma for- so de quem quer que seja.” décadas. Novas tendências mili- xônicas de um século atrás. n ingressou em 2010.

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52 53
a geopolítica da ásia Paulo G. Fagundes Visentini A nova geopolítica da Ásia após a Guerra Fria

duz mísseis e defende a noção de ma de construir alianças antichi- Em 2008 eclodiu a crise fi- taristas também emergem no plano global, com a Referências bibliográficas
independência e interesse nacional. nesas, explorando as rivalidades nanceira nos Estados Unidos, que desestabilização dos países árabes, a intervenção
Da mesma forma, a economia in- de ambos os países. Tal tendên- atingiu a Europa. Quando o pre- da OTAN na Líbia, as guerras civis na Síria e no ADSHEAD, S. A. M. China in World JOYAU X , François. Géopolitique de
diana possui bases sólidas e mo- cia, esboçada já no governo Clin- sidente Obama tomou posse em Iêmen, bem como a crise dos refugiados na Eu- History. Londres: Macmillan/Pal- L’Extrême-Orient. 2 v. Bruxelas: Com-
dernas, apesar de essa moderni- ton, foi intensificada no início 2009 havia três áreas críticas: a ropa e na Turquia. grave, 2000. plexe, 1991.
dade conviver com arcaicos sis- do governo Bush. Contudo, os economia (interna e externa), a BALL, Desdmond (ed.). The Transformation KHURANA , Gurpreet S. MaritimeFforces
temas de castas e uma pobreza atentados de 11 de setembro de necessidade de retirar os Estados of Security in the Asia/Pacific Region. Lon- in Pursuit of National Security. Policy Im-
impressionante. Contudo, desde 2001 e a guerra ao terrorismo Unidos das guerras não vencidas Tendências da dres: Frank Cass, 1996. peratives for India. Nova Delhi: Institute
o início do século XXI, segundo mudaram completamente o ce- no Iraque e no Afeganistão e o geopolítica da Ásia BOQUÉRAT, Gilles; GRARE, Frédéric
for Defense Studies and Analyses/Shipra
(eds.). India, China, Russia. Intricacies of Publications, 2008.
a ONU, 150 milhões de india- nário. Para o ataque ao Afega- novo status econômico e político Na geopolítica da Ásia, a China busca evitar que
an Asian Triangle. Nova Delhi: India Re- KISSINGER, Henry. On China. Nova York:
nos saíram da faixa de pobreza nistão e a neutralização do ter- alcançado pelos Brics (Brasil, Rús- transpareça alguma pretensão de restaurar o siste-
search Press, 2004. Penguin, 2011.
(na China, 350 milhões deixa- rorismo, o Paquistão era um ele- sia, Índia, China e, desde dezem- ma tributário que prevalecia na era imperial (Ad-
CAMPBELL, Gwyn (ed.). The Indian Oce- MACKERRAS, Colin; TANEJA , Prade-
ram de ser pobres). mento estratégico. bro de 2010, África do Sul), gru- shead, 2000: 35). Mesmo assim, algo semelhante ep; YOUNG, Graham. China Since 1978:
an Rim. Southern Africa and Regional Co-
Essa maior aproximação dos po que criou uma agenda própria. ocorre no campo econômico, embora os papéis do -operation. Londres/Nova York: Rou- Reform, Modernization and “Socialism wi-
Estados Unidos com o Paquistão A extensão da Guerra do Afega- Japão, da Rússia, da Índia, dos Estados Unidos e tledge, 2003. th Chinese Characteristics”. Sydney: Long-
A Índia aumentou a prioridade e a China não impediu que hou- nistão ao Paquistão e a pressão da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) CHAUDHURY, Anasua Basu Ray. SA- man, 1997.

de suas relações bilaterais com vesse uma mudança na política


norte-americana em relação à
americana sobre esse país, que
culminou com o obscuro assassi-
sirvam de contrapeso político. A China, que cons-
titui o epicentro da geopolítica asiática, consegue
ARC at Crossroads, The Fate of Regional
Co-operation in South Asia. Nova Delhi:
TOGO, Kazuhiko. Japan’s Foreign Policy,
1945-2003. Leiden/Boston: Brill, 2005.
os Estados Unidos, tendo sido Índia, por causa do crescente po- nato de Bin Laden em 2011 em consolidar sua posição por meio de constantes adap- SAMSKRITI, 2006. UEHARA , Alexandre Ratsuo. A política
derio chinês e das ações terroris- seu território, produziram uma tações e de estratégias flexíveis (Kissinger, 2011). CLEGG, Jenny. China’s Global Strategy. To- externa do Japão no final do século XX: o
reconhecida, de fato, como tas em solo indiano. A Índia pas- forte desestabilização no Paquistão A aliança com a Rússia é interessante, amplian- wards a Multipolar World. Londres: Pluto que faltou? São Paulo: Annablume, Fun-
Press, 2009. dação Japão.
sou a funcionar como um con- e estremeceram as relações bilate- do a região em direção a um espaço eurasiano,
potência nuclear. Os indianos traponto às duas outras nações rais americano-paquistanesas. mas tem suas contradições. Há complementarida- COHEN, Stephen. India, Emerging Power. VISENTINI, Paulo. As relações diplomáticas
Oxford: Oxford University Press, 2001. da Ásia. Belo Horizonte: Fino Traço,
tiram proveito dessa situação, (Deepak, 2005). Além disso, a Nesse quadro, a China ganhou des entre os dois países, mas também há compe-
DEEPAK, B. R . India & China, 1904- 2012.
própria Índia, também pressio- ainda mais projeção, aproximan- tição e desconfiança. A maior zona de tensão tem
sem perder de vista seus nada por essa situação externa, do-se do Paquistão e sendo cor- sido o mar da China Meridional, situação que po-
2004. A Century of Peace and Conflict.
Nova Delhi: Manak Publications, 2005.
WEATHERBEE , Donald. International
Relations in South East Asia. The Struggle
aumentou a prioridade de suas tejada pelos Estados Unidos para de se agravar no governo Donald Trump. Porém,
vínculos permanentes com relações bilaterais com os Esta- auxiliar o dólar e a recuperação da parece que o novo presidente americano buscará,
DITTMER, Lowell; YU, George T. (eds.). for Autonomy. Lanham, MD: Rowan &
Littlefield Publishers, 2005.
China, the Developing World, and the New
os vizinhos asiáticos. dos Unidos. Em março de 2006 abalada economia dos países da mais que um confronto com a China, um novo Global Dynamic. Boulder/Londres: Lynnr WENQUAN, Yin. Desarrollo de China den-
os dois países concluíram um OCDE. Os Brics e a Ásia seguem arranjo bilateral mais favorável aos Estados Uni- Rienner Publishers, 2010. tro de la Globalización. Pequim: Ediciones
acordo que culminou com o re- com boas taxas de crescimento dos. Daí a grande “amizade” com Vladimir Putin, IKENBERRY, G. John; MASTANDU- en Lenguas Extrajeras, 2007.
A tradicional rivalidade entre conhecimento de fato do status econômico, enquanto o Japão, es- que reduziria a solidez da Organização de Coo- NO, Michael. (eds.). International Rela- WILD, Leni; MEDHAM , David (eds.).
Índia e Paquistão está relaciona- nuclear da Índia por Washing- tagnado, ainda sofre os imensos peração de Xangai. tions Theory and the Sia-Pacific. Nova York: The New Sinosphere. Londres: Institute
Columbia University Press, 2003. for Public Policy Research, 2006.
da à traumática independência, ton. Formou-se uma aliança Es- efeitos do megaterremoto que O peso da economia chinesa, por outro lado,
em 1947, especialmente em re- tados Unidos-Japão-Austrália- gerou um tsunami que arrasou acaba sendo o elemento catalisador de qualquer
lação à região da Caxemira, que -Índia. Os indianos tiram pro- o norte e produziu uma crise nu- arranjo geopolítico na Ásia. Cada zona de tensão
foi dividida. A tensão entre os veito de tal situação, sem perder clear sem precedentes. acaba sendo administrada separadamente, sem se
Notas
dois Estados detentores de armas de vista seus vínculos permanen- A crise econômica, longe de fundir em um único cenário antichinês. Apesar
nucleares, com constantes en- tes com os vizinhos asiáticos. In- amainar, tem ameaçado o con- das tentativas de cerco e do estabelecimento de 1. A política econômica socialista apoiada no mercado, que vigorou na União So-
frentamentos armados na região dagado por uma jornalista norte- junto da economia mundial e a alianças pelos Estados Unidos, a tendência tem si- viética entre 1921 e 1927.
de fronteira, tem causado grande -americana se adiantava resistir estabilidade diplomática. Está em do a gradual organização da geopolítica asiática 2. O conceito de “novo Segundo Mundo” foi apresentado no estudo de macrocená-
apreensão, embora haja negocia- à unipolaridade americana, quan- curso uma campanha contra as em um único cenário, marcando o retorno das rios realizado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da Re-
ções que buscam a normalização do “até a Índia já estava no bol- exportações chinesas, apontadas potências terrestres, que limitam a ingerência da pública durante o governo Fernando Henrique Cardoso.
das relações desde o início da so dos Estados Unidos”, Fidel como vilãs da crise, no lugar da potência marítima na região. Parece que a geopo- 3. A Índia e o Paquistão ingressaram na Organização em 2016.
Guerra do Afeganistão, em 2001. Castro respondeu: “A Índia é desenfreada especulação finan- lítica da Ásia se baseia em pressupostos distintos 4. É integrada por Índia, Paquistão, Bangladesh, Sri Lanka, Nepal, Butão e Maldivas,
A Casa Branca buscava coo- grande demais para caber no bol- ceira que marcou as últimas três da geopolítica tradicional das potências anglo-sa- com uma população equivalente à da China (1,3 bilhão de habitantes). O Afeganistão
perar com a Índia como uma for- so de quem quer que seja.” décadas. Novas tendências mili- xônicas de um século atrás. n ingressou em 2010.

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


54 55
África: o que quer que você tenha pensado, repense

África
Os países africanos estão em boas condições de captar
empregos de baixa qualificação liberados pelos países
bem-sucedidos de renda média, que vêm experimentando
salários mais altos e perdendo competitividade em muitas

O que quer que você indústrias. Embora alguns desses empregos tendam a
desaparecer, um número ainda muito grande deles terá que
ser relocado. A África pode saltar diretamente para a

tenha pensado, repense economia global, mediante a construção de parques


industriais e zonas de processamento de exportações ligadas
a mercados mundiais. Ela pode alavancar essas zonas para
Os dividendos da decepção, da dor e da vergonha atrair a indústria leve de economias mais avançadas, como
fizeram os países do Leste Asiático na década de 1960 e a
China na década de 1980.

Célestin Monga
Banco Africano de
Desenvolvimento
Universidade de Paris 1,

atm2003/shutterstock.com
Panthéon-Sorbonne.

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


54 55
África: o que quer que você tenha pensado, repense

África
Os países africanos estão em boas condições de captar
empregos de baixa qualificação liberados pelos países
bem-sucedidos de renda média, que vêm experimentando
salários mais altos e perdendo competitividade em muitas

O que quer que você indústrias. Embora alguns desses empregos tendam a
desaparecer, um número ainda muito grande deles terá que
ser relocado. A África pode saltar diretamente para a

tenha pensado, repense economia global, mediante a construção de parques


industriais e zonas de processamento de exportações ligadas
a mercados mundiais. Ela pode alavancar essas zonas para
Os dividendos da decepção, da dor e da vergonha atrair a indústria leve de economias mais avançadas, como
fizeram os países do Leste Asiático na década de 1960 e a
China na década de 1980.

Célestin Monga
Banco Africano de
Desenvolvimento
Universidade de Paris 1,

atm2003/shutterstock.com
Panthéon-Sorbonne.

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56 57
o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

1. Introdução seus compatriotas eram genetica-


O governo de Obama frustrou Pessoalmente, Obama nunca “negro” (o que quer que isto sig- desdém benignos pelos assuntos
mente despreparados para gover- disse nada de notável sobre a Áfri- nifique) haver conseguido entrar do continente. A rigor, o princi-
Decididamente, o tempo é o gran- nar uma nação independente no os africanos, que esperavam ca (nem mostrou um interesse par- na Casa Branca. pal lema e o pilar estratégico de
de escultor, como várias vezes con- mundo moderno... ticular pelo continente) durante Naturalmente, jamais cônscio sua política externa era “a guina-
jecturou Marguerite Yourcenar. Em muitos lugares da África, muito dele. Isso teve um lado sua campanha para a Presidência de sua suposta africanidade, Obama da para a Ásia”, o que foi enten-
As últimas décadas foram uma su- a vida parecia um filme de terror: dos Estados Unidos. Ele foi tão não pôde atender às expectativas dido em todas as capitais, de Ra-
cessão de tempos diferentes para o desempenho econômico e social
bom: hoje, sabemos que pouco “africanista” quanto seus de seus primos e sobrinhos africa- bat a Joanesburgo e de Dacar a
a África. Após o breve momento precário era agravado por regimes nosso destino está em nossas adversários políticos. Ainda assim, nos. Agiu como qualquer outro Djibuti, como uma declaração
de otimismo que se seguiu à onda políticos disfuncionais e por con- foi imediatamente saudado como presidente norte-americano tra- “oficial” de descaso para com o
de descolonização e de proclama- f litos de pavorosa violência. Na mãos. A África está pronta o salvador e celebrado como uma dicional, bombardeando a Líbia continente africano.
ções de independência, no come- Libéria, um líder político chama- mescla de Martin Luther King e sem consultar chefes de Estado Os tempos mudaram. Ficou
ço da década de 1960, o clima ge- do Prince Johnson pôde torturar para se desenvolver. Nelson Mandela. Afinal, tinha re- africanos, fechando os olhos ou claro que Barack Obama não po-
ral da África tem sido, há muito e mutilar o ex-presidente Samuel cebido o Prêmio Nobel da Paz oferecendo ajuda militar a diver- deria fazer pela África o que os
tempo, de decepções e desespero. Doe diante das câmeras de televi- sempenho econômico melhor. Se- apenas alguns meses depois de se sos ditadores africanos considera- próprios africanos não faziam. Afi-
As notícias políticas e econômicas são (Monga, 2010). Nem mesmo ja qual for a explicação, parece tornar presidente dos Estados Uni- dos “amigos dos Estados Unidos”, nal, diversos grandes líderes polí-
do continente não têm sido boas, a libertação de Nelson Mandela claro que a circulação de boas dos. Muitos africanos e “africanis- perseguindo suspeitos de terroris- ticos africano-americanos, bem
e os níveis de vergonha e amar- do presídio, em 1990, pareceu cau- ideias e conhecimentos foi um mo- tas especializados” presumiram, mo com drones, sempre que con- como figuras sumamente inf luen-
gura, dentro e fora da África, atin- sar uma mudança de rumo. Con- tor essencial da mudança, à medi- simplesmente, que as raízes que- seguia achá-los no deserto sahe- tes da mesma origem, tinham do-
giram níveis recordes. A miséria tinuaram a acontecer tragédias em da que muitas pessoas da África nianas de Obama e a óbvia cor de liano ou no Chifre da África, ra- minado o palco mundial muito
política e a miséria econômica se massa. O ponto culminante desse entenderam a necessidade de abra- sua pele fariam dele um defensor ramente viajando ao continente antes dele, sem nada modificarem
alimentaram mutuamente e agra- filme de terror foi o genocídio de çar seu futuro. natural do continente no cenário – tipicamente, em viagens curtas, a respeito da percepção global da
varam a já precária reputação do Ruanda, em 1994. Esse talvez te- E então veio Barack Hussein mundial. Em certo sentido, isso sobretudo para fazer palestras pa- África ou de seu destino. Essa lon-
continente conhecido como o ber- nha sido o evento cataclísmico de Obama. A notícia de sua eleição foi uma leitura descaradamente ra seus pares africanos sobre o mau ga lista inclui Martin Luther King,
ço da humanidade. que as sociedades africanas preci- como 44º presidente dos Estados essencialista da história. Mas quem comportamento deles na gover- o general Colin Powell e algumas
Tantas foram as decepções e a savam para estabelecer firmemen- Unidos consolidou e sustentou o se importava? O planeta inteiro nança – e, na verdade, exibindo figuras míticas, também de enor-
dor, que muitos intelectuais e emi- te a ruptura com um passado som- entusiasmo já marcante que muitos estava fascinado com o fato de um mais que uma negligência e um me inf luência, como os prodígios
nentes estrategistas políticos afri- brio e vergonhoso. Numa repor- africanos sentiam a respeito de si
canos se encarregaram de ressus- tagem de capa, datada de maio de mesmos. Súbito, voltou a entrar na
citar e endossar os piores chavões 2000, a África foi denominada moda, de maneira ainda mais acen-
raciais que foram populares entre “continente sem esperança” pela tuada, o otimismo em relação às
os pesquisadores coloniais euro- inf luente revista The Economist. perspectivas econômicas da África
peus sobre a África ( Jones, 1960). Os tempos começaram a mu- e ao papel potencialmente impor-
Uns se perguntaram em voz alta dar logo depois disso, e a história tante que ela poderia desempenhar
se a África simplesmente se rebe- também mudou. A reputação da no mundo. Enquanto alguns in-
lava contra a própria ideia de de- África começou a melhorar. Os telectuais negros da África e ao
senvolvimento econômico (Ka- futuros historiadores esmiuçarão redor do mundo celebravam a re-
bou, 1991). Outros exploraram a os argumentos e explicarão se a tórica altiva de Obama e o sim-
“psique” e a “cultura” africanas mudança se deveu à retomada do bolismo de sua biografia, muitos
para tentar identificar os germes crescimento econômico, fomen- derivaram um sentimento intenso
do fracasso. Ngangbet (1984), um tada pelos preços elevados das com- de orgulho coletivo de sua ascen-
respeitável ex-ministro do gover- modities e pelo aprimoramento da são ao comando do poder global.
no do Chade, publicou um ensaio gestão econômica, a uma lideran- As expectativas logo entraram em
em 1985 para recomendar que seu ça superior e a instituições sociais alta, à medida que as pessoas nas

Pecold/shutterstock.com
país voltasse a ser colonizado e, e políticas mais fortes e mais legí- ruas das cidades e aldeias africanas
quem sabe, colocado sob a tutela timas ou se foi o inverso, isto é, se viram no triunfo de Obama a tão
da Organização das Nações Uni- um estado de ânimo positivo em esperada comprovação de que era
das – talvez apenas achasse que todo o continente levou a um de- chegada a vez da África...

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


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o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

1. Introdução seus compatriotas eram genetica-


O governo de Obama frustrou Pessoalmente, Obama nunca “negro” (o que quer que isto sig- desdém benignos pelos assuntos
mente despreparados para gover- disse nada de notável sobre a Áfri- nifique) haver conseguido entrar do continente. A rigor, o princi-
Decididamente, o tempo é o gran- nar uma nação independente no os africanos, que esperavam ca (nem mostrou um interesse par- na Casa Branca. pal lema e o pilar estratégico de
de escultor, como várias vezes con- mundo moderno... ticular pelo continente) durante Naturalmente, jamais cônscio sua política externa era “a guina-
jecturou Marguerite Yourcenar. Em muitos lugares da África, muito dele. Isso teve um lado sua campanha para a Presidência de sua suposta africanidade, Obama da para a Ásia”, o que foi enten-
As últimas décadas foram uma su- a vida parecia um filme de terror: dos Estados Unidos. Ele foi tão não pôde atender às expectativas dido em todas as capitais, de Ra-
cessão de tempos diferentes para o desempenho econômico e social
bom: hoje, sabemos que pouco “africanista” quanto seus de seus primos e sobrinhos africa- bat a Joanesburgo e de Dacar a
a África. Após o breve momento precário era agravado por regimes nosso destino está em nossas adversários políticos. Ainda assim, nos. Agiu como qualquer outro Djibuti, como uma declaração
de otimismo que se seguiu à onda políticos disfuncionais e por con- foi imediatamente saudado como presidente norte-americano tra- “oficial” de descaso para com o
de descolonização e de proclama- f litos de pavorosa violência. Na mãos. A África está pronta o salvador e celebrado como uma dicional, bombardeando a Líbia continente africano.
ções de independência, no come- Libéria, um líder político chama- mescla de Martin Luther King e sem consultar chefes de Estado Os tempos mudaram. Ficou
ço da década de 1960, o clima ge- do Prince Johnson pôde torturar para se desenvolver. Nelson Mandela. Afinal, tinha re- africanos, fechando os olhos ou claro que Barack Obama não po-
ral da África tem sido, há muito e mutilar o ex-presidente Samuel cebido o Prêmio Nobel da Paz oferecendo ajuda militar a diver- deria fazer pela África o que os
tempo, de decepções e desespero. Doe diante das câmeras de televi- sempenho econômico melhor. Se- apenas alguns meses depois de se sos ditadores africanos considera- próprios africanos não faziam. Afi-
As notícias políticas e econômicas são (Monga, 2010). Nem mesmo ja qual for a explicação, parece tornar presidente dos Estados Uni- dos “amigos dos Estados Unidos”, nal, diversos grandes líderes polí-
do continente não têm sido boas, a libertação de Nelson Mandela claro que a circulação de boas dos. Muitos africanos e “africanis- perseguindo suspeitos de terroris- ticos africano-americanos, bem
e os níveis de vergonha e amar- do presídio, em 1990, pareceu cau- ideias e conhecimentos foi um mo- tas especializados” presumiram, mo com drones, sempre que con- como figuras sumamente inf luen-
gura, dentro e fora da África, atin- sar uma mudança de rumo. Con- tor essencial da mudança, à medi- simplesmente, que as raízes que- seguia achá-los no deserto sahe- tes da mesma origem, tinham do-
giram níveis recordes. A miséria tinuaram a acontecer tragédias em da que muitas pessoas da África nianas de Obama e a óbvia cor de liano ou no Chifre da África, ra- minado o palco mundial muito
política e a miséria econômica se massa. O ponto culminante desse entenderam a necessidade de abra- sua pele fariam dele um defensor ramente viajando ao continente antes dele, sem nada modificarem
alimentaram mutuamente e agra- filme de terror foi o genocídio de çar seu futuro. natural do continente no cenário – tipicamente, em viagens curtas, a respeito da percepção global da
varam a já precária reputação do Ruanda, em 1994. Esse talvez te- E então veio Barack Hussein mundial. Em certo sentido, isso sobretudo para fazer palestras pa- África ou de seu destino. Essa lon-
continente conhecido como o ber- nha sido o evento cataclísmico de Obama. A notícia de sua eleição foi uma leitura descaradamente ra seus pares africanos sobre o mau ga lista inclui Martin Luther King,
ço da humanidade. que as sociedades africanas preci- como 44º presidente dos Estados essencialista da história. Mas quem comportamento deles na gover- o general Colin Powell e algumas
Tantas foram as decepções e a savam para estabelecer firmemen- Unidos consolidou e sustentou o se importava? O planeta inteiro nança – e, na verdade, exibindo figuras míticas, também de enor-
dor, que muitos intelectuais e emi- te a ruptura com um passado som- entusiasmo já marcante que muitos estava fascinado com o fato de um mais que uma negligência e um me inf luência, como os prodígios
nentes estrategistas políticos afri- brio e vergonhoso. Numa repor- africanos sentiam a respeito de si
canos se encarregaram de ressus- tagem de capa, datada de maio de mesmos. Súbito, voltou a entrar na
citar e endossar os piores chavões 2000, a África foi denominada moda, de maneira ainda mais acen-
raciais que foram populares entre “continente sem esperança” pela tuada, o otimismo em relação às
os pesquisadores coloniais euro- inf luente revista The Economist. perspectivas econômicas da África
peus sobre a África ( Jones, 1960). Os tempos começaram a mu- e ao papel potencialmente impor-
Uns se perguntaram em voz alta dar logo depois disso, e a história tante que ela poderia desempenhar
se a África simplesmente se rebe- também mudou. A reputação da no mundo. Enquanto alguns in-
lava contra a própria ideia de de- África começou a melhorar. Os telectuais negros da África e ao
senvolvimento econômico (Ka- futuros historiadores esmiuçarão redor do mundo celebravam a re-
bou, 1991). Outros exploraram a os argumentos e explicarão se a tórica altiva de Obama e o sim-
“psique” e a “cultura” africanas mudança se deveu à retomada do bolismo de sua biografia, muitos
para tentar identificar os germes crescimento econômico, fomen- derivaram um sentimento intenso
do fracasso. Ngangbet (1984), um tada pelos preços elevados das com- de orgulho coletivo de sua ascen-
respeitável ex-ministro do gover- modities e pelo aprimoramento da são ao comando do poder global.
no do Chade, publicou um ensaio gestão econômica, a uma lideran- As expectativas logo entraram em
em 1985 para recomendar que seu ça superior e a instituições sociais alta, à medida que as pessoas nas

Pecold/shutterstock.com
país voltasse a ser colonizado e, e políticas mais fortes e mais legí- ruas das cidades e aldeias africanas
quem sabe, colocado sob a tutela timas ou se foi o inverso, isto é, se viram no triunfo de Obama a tão
da Organização das Nações Uni- um estado de ânimo positivo em esperada comprovação de que era
das – talvez apenas achasse que todo o continente levou a um de- chegada a vez da África...

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o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

musicais Michael Jackson e Prin- não “fazer alguma coisa” pelo con- tinente, daria o tão necessário im- dados do Banco Mundial. Embora ruas comemorar alguma coisa pro- O restante deste artigo é orga-
ce, ou as lendas do basquete Mi- tinente em que seu pai nasceu, na pulso à demanda agregada e aumen- países africanos dilacerados pela veniente da África – tipicamente, nizado desta forma: a seção 2 dis-
chael Jordan e Lebron James. Na verdade, forçou os líderes africa- taria o crescimento global, gerando, guerra e afetados por conflitos, co- só o fazem para pedir mais ajuda cute os custos pesados da não in-
verdade, existe hoje uma convic- nos, assim como muitas outras pes- ao mesmo tempo, novas oportuni- mo a Líbia e o Burundi, figurem humanitária para lidar com crises, dustrialização africana e a incapa-
ção geral de que George W. Bush, soas do continente, a se darem con- dades de emprego nas economias na lista dos que tiveram pior desem- ou para pressionar seus governos pe- cidade dos líderes globais de
o 43º presidente norte-americano, ta de que seu destino está inteira- avançadas e em desenvolvimento. penho em 2015, o continente tam- lo perdão da dívida dos países pobres. observar essa realidade. A seção 3
teria feito muito mais para reno- mente em suas mãos – não nas de O artigo se inicia pela observa- bém tem algumas das economias apresenta uma estrutura política ge-
var e fortalecer as relações entre ninguém nos Estados Unidos ou ção de que, na verdade, existem de crescimento mais acelerado no ral para arquitetar a industrialização
Estados Unidos e África do que em outra parte do mundo. Em su- muitas Áfricas. Hoje em dia, a União mundo (Costa do Marfim, Etiópia, Só acontecimentos africana. A seção 4 oferece algumas
Obama, o africano. ma, agora a África está pronta pa- Africana conta com 54 Estados Ruanda, Tanzânia e Senegal). Na reflexões a título de conclusão.
A razão pela qual nenhuma fi- ra colher os dividendos da decep- membros. Esses numerosos países verdade, poucos comentaristas es-
ruins são notícia. Por
gura “negra” pode melhorar a ima- ção, da dor e da vergonha. têm diferentes trajetórias históricas, pecializados em assuntos globais apa- isso, a dinâmica 2. A África como principal
gem e elevar a reputação global da Este artigo discute a contribui- heranças filosóficas e culturais, es- rentam haver percebido que a Áfri-
África é simples: essa percepção ção potencial da África para o mun- truturas econômicas e tradições ad- ca tem quase trinta países de renda positiva dos 54 fonte das ameaças globais
depende do desempenho (econô- do. Em termos específicos, afirma ministrativas. Seus desempenhos média. A classe média do continen- Considera-se que a humanidade
mico). A África ainda é percebida que a industrialização africana é o econômicos diferem, uma vez que te vem crescendo em um ritmo ace- países africanos não deu passos largos no desenvolvi-
como a região mais pobre do mun- impulsionador mais confiável da paz seu produto interno bruto (PIB) per lerado, e estima-se que cerca de 300
do e como fonte de algumas das e da prosperidade mundiais. Com capita, em 2015, variou entre 250 milhões de pessoas tenham um po-
vai para o noticiário mento de tecnologias da informa-
ção que ligam pessoas de todos os
principais ameaças mundiais. Fe- a estrutura certa, ela instigaria o de- dólares no Malávi e 19 mil dólares der aquisitivo decente. internacional. Parece cantos do planeta e permitem que
lizmente, o fato de Barack Obama senvolvimento econômico do con- na Guiné Equatorial, de acordo com Apesar de sua diversidade de ex- elas se relacionem através de fron-
periências e desempenhos econô- que vivemos em teiras reais e imaginárias. Novas
micos, as contribuições extraordi- formas de meios de comunicação
nárias da África ainda são predomi- uma eterna crise. sociais, continuamente usadas de

atm2003/shutterstock.com
nantemente desconhecidas, até modos que ninguém havia con-
mesmo pelas pessoas instruídas dos templado na ocasião do seu surgi-
países desenvolvidos. O tom geral Entretanto, num mundo de mento, vêm de fato ajudando a
da cobertura midiática internacio- interdependência cada vez maior, lançar luz sobre a dor, o sofrimen-
nal da África melhorou nos últimos a África detém as chaves da paz to e a esperança de todas as pes-
anos (passando das manchetes ig- e da prosperidade globais. O soas – inclusive as aprisionadas nas
norantes e grosseiramente racistas mundo é cada vez mais interde- partes mais remotas do mundo.
de algumas décadas atrás para co- pendente – não apenas pela pers- Entretanto, embora esses canais de
mentários cautelosamente otimis- pectiva da economia, mas tam- comunicação possam ter expan-
tas). Entretanto, o ceticismo ou a bém por questões políticas e de dido o estoque global de conhe-
indiferença ainda predominam segurança. As migrações em mas- cimentos, talvez não tenham es-
nos grandes círculos empresariais. sa, as ameaças terroristas, a vio- timulado a verdadeira aprendiza-
E a África ainda é praticamente ex- lência aleatória e as pandemias gem. Até hoje, o cidadão médio
cluída dos cenáculos internacionais globais têm mostrado que ne- da América Latina, dos Estados
em que são tomadas as decisões so- nhum país da Terra pode ser su- Unidos, da Europa ou da Ásia,
bre a governança global. Talvez se- f icientemente rico e poderoso qualquer um que nunca tenha ido
ja até pior: o continente que produ- para estar seguro num mundo à África e não possua grande co-
ziu Nelson Mandela ainda é classi- em que existe um excesso de so- nhecimento sobre ela, pode ser
ficado, no imaginário coletivo, frimento e de desespero. Nenhu- profundamente enganado pelas
tanto no Ocidente quanto no Orien- ma fronteira é capaz de proteger matérias de primeira página dedi-
te, como um reservatório de misé- as economias avançadas dos de- cadas ao continente africano, até
ria e compaixão. As pessoas bem- safios econômicos, sociais e po- mesmo pelas mais conceituadas
-intencionadas de países ocidentais líticos enfrentados pelas pessoas fontes tradicionais de notícias e
raras vezes se mobilizam e vão às dos países pobres. programas de televisão.

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o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

musicais Michael Jackson e Prin- não “fazer alguma coisa” pelo con- tinente, daria o tão necessário im- dados do Banco Mundial. Embora ruas comemorar alguma coisa pro- O restante deste artigo é orga-
ce, ou as lendas do basquete Mi- tinente em que seu pai nasceu, na pulso à demanda agregada e aumen- países africanos dilacerados pela veniente da África – tipicamente, nizado desta forma: a seção 2 dis-
chael Jordan e Lebron James. Na verdade, forçou os líderes africa- taria o crescimento global, gerando, guerra e afetados por conflitos, co- só o fazem para pedir mais ajuda cute os custos pesados da não in-
verdade, existe hoje uma convic- nos, assim como muitas outras pes- ao mesmo tempo, novas oportuni- mo a Líbia e o Burundi, figurem humanitária para lidar com crises, dustrialização africana e a incapa-
ção geral de que George W. Bush, soas do continente, a se darem con- dades de emprego nas economias na lista dos que tiveram pior desem- ou para pressionar seus governos pe- cidade dos líderes globais de
o 43º presidente norte-americano, ta de que seu destino está inteira- avançadas e em desenvolvimento. penho em 2015, o continente tam- lo perdão da dívida dos países pobres. observar essa realidade. A seção 3
teria feito muito mais para reno- mente em suas mãos – não nas de O artigo se inicia pela observa- bém tem algumas das economias apresenta uma estrutura política ge-
var e fortalecer as relações entre ninguém nos Estados Unidos ou ção de que, na verdade, existem de crescimento mais acelerado no ral para arquitetar a industrialização
Estados Unidos e África do que em outra parte do mundo. Em su- muitas Áfricas. Hoje em dia, a União mundo (Costa do Marfim, Etiópia, Só acontecimentos africana. A seção 4 oferece algumas
Obama, o africano. ma, agora a África está pronta pa- Africana conta com 54 Estados Ruanda, Tanzânia e Senegal). Na reflexões a título de conclusão.
A razão pela qual nenhuma fi- ra colher os dividendos da decep- membros. Esses numerosos países verdade, poucos comentaristas es-
ruins são notícia. Por
gura “negra” pode melhorar a ima- ção, da dor e da vergonha. têm diferentes trajetórias históricas, pecializados em assuntos globais apa- isso, a dinâmica 2. A África como principal
gem e elevar a reputação global da Este artigo discute a contribui- heranças filosóficas e culturais, es- rentam haver percebido que a Áfri-
África é simples: essa percepção ção potencial da África para o mun- truturas econômicas e tradições ad- ca tem quase trinta países de renda positiva dos 54 fonte das ameaças globais
depende do desempenho (econô- do. Em termos específicos, afirma ministrativas. Seus desempenhos média. A classe média do continen- Considera-se que a humanidade
mico). A África ainda é percebida que a industrialização africana é o econômicos diferem, uma vez que te vem crescendo em um ritmo ace- países africanos não deu passos largos no desenvolvi-
como a região mais pobre do mun- impulsionador mais confiável da paz seu produto interno bruto (PIB) per lerado, e estima-se que cerca de 300
do e como fonte de algumas das e da prosperidade mundiais. Com capita, em 2015, variou entre 250 milhões de pessoas tenham um po-
vai para o noticiário mento de tecnologias da informa-
ção que ligam pessoas de todos os
principais ameaças mundiais. Fe- a estrutura certa, ela instigaria o de- dólares no Malávi e 19 mil dólares der aquisitivo decente. internacional. Parece cantos do planeta e permitem que
lizmente, o fato de Barack Obama senvolvimento econômico do con- na Guiné Equatorial, de acordo com Apesar de sua diversidade de ex- elas se relacionem através de fron-
periências e desempenhos econô- que vivemos em teiras reais e imaginárias. Novas
micos, as contribuições extraordi- formas de meios de comunicação
nárias da África ainda são predomi- uma eterna crise. sociais, continuamente usadas de

atm2003/shutterstock.com
nantemente desconhecidas, até modos que ninguém havia con-
mesmo pelas pessoas instruídas dos templado na ocasião do seu surgi-
países desenvolvidos. O tom geral Entretanto, num mundo de mento, vêm de fato ajudando a
da cobertura midiática internacio- interdependência cada vez maior, lançar luz sobre a dor, o sofrimen-
nal da África melhorou nos últimos a África detém as chaves da paz to e a esperança de todas as pes-
anos (passando das manchetes ig- e da prosperidade globais. O soas – inclusive as aprisionadas nas
norantes e grosseiramente racistas mundo é cada vez mais interde- partes mais remotas do mundo.
de algumas décadas atrás para co- pendente – não apenas pela pers- Entretanto, embora esses canais de
mentários cautelosamente otimis- pectiva da economia, mas tam- comunicação possam ter expan-
tas). Entretanto, o ceticismo ou a bém por questões políticas e de dido o estoque global de conhe-
indiferença ainda predominam segurança. As migrações em mas- cimentos, talvez não tenham es-
nos grandes círculos empresariais. sa, as ameaças terroristas, a vio- timulado a verdadeira aprendiza-
E a África ainda é praticamente ex- lência aleatória e as pandemias gem. Até hoje, o cidadão médio
cluída dos cenáculos internacionais globais têm mostrado que ne- da América Latina, dos Estados
em que são tomadas as decisões so- nhum país da Terra pode ser su- Unidos, da Europa ou da Ásia,
bre a governança global. Talvez se- f icientemente rico e poderoso qualquer um que nunca tenha ido
ja até pior: o continente que produ- para estar seguro num mundo à África e não possua grande co-
ziu Nelson Mandela ainda é classi- em que existe um excesso de so- nhecimento sobre ela, pode ser
ficado, no imaginário coletivo, frimento e de desespero. Nenhu- profundamente enganado pelas
tanto no Ocidente quanto no Orien- ma fronteira é capaz de proteger matérias de primeira página dedi-
te, como um reservatório de misé- as economias avançadas dos de- cadas ao continente africano, até
ria e compaixão. As pessoas bem- safios econômicos, sociais e po- mesmo pelas mais conceituadas
-intencionadas de países ocidentais líticos enfrentados pelas pessoas fontes tradicionais de notícias e
raras vezes se mobilizam e vão às dos países pobres. programas de televisão.

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o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

Normalmente, notícia é a no- e Léopold Sédar Senghor, só é Economias africanas sofreram Figura 1 Caricaturas da África em alguns meios de comunicação da corrente dominante no Ocidente
tícia ruim, diz o velho ditado. Tal- mencionado no noticiário inter-
vez seja por isso que a infinita di- nacional como uma exótica ex- alterações nos últimos 50 anos,
nâmica positiva que se dá conti- -colônia francesa a serviço do tu-
nuamente em qualquer dos 54 rismo de segunda classe. Cama- mas essa evolução não repetiu
países africanos não é encontrada
nas primeiras páginas das revistas
rões, país que produziu alguns dos
mais criativos intelectuais e artis-
o que ocorreu em outras
internacionais, tampouco nas re- tas contemporâneos (Fabien regiões periféricas, como Ásia e
portagens do horário nobre dos Eboussi Boulaga, Jean-Marc Ela,
canais de televisão. Em contraste, Manu Dibango, Richard Bona, América Latina. Parte da força
cada problema político ou econô- entre outros), é retratado apenas
mico que acontece no continente como um lugar em que as crianças
de trabalho se deslocou para
é amplamente divulgado, como jogam futebol na rua, todas so- setores menos produtivos.
prova de uma região do mundo nhando tornar-se o próximo Ro-
que vive em perpétua crise – o ger Milla ou Samuel Eto’o...
que faz dela a principal fonte de Tom Hanks, agraciado com a pital) da nação são deslocados de
ameaças globais. O Marrocos e a Medalha da Liberdade dos Estados atividades informais e de subsistên-
Tunísia são reduzidos a lugares de Unidos, imortalizou recentemen- cia para atividades de alta produti-
onde hordas de invasores se dis- te o heroísmo natural norte-ame- vidade. O desenvolvimento eco-
põem a morrer na tentativa de atra- ricano num campeão de bilheteria nômico dos países industrializados
vessar o mar Mediterrâneo e de se de Hollywood que retrata o Chi- de hoje foi quase universalmente
tornarem imigrantes ilegais na Eu- fre da África como um território acompanhado por um aumento da
ropa. O Egito, berço das mais cin- de piratas – repleto de estereóti- produtividade agrícola, nas etapas
tilantes civilizações do mundo, é pos, o filme inteiro não mostra iniciais do desenvolvimento. Tipi-
descrito como um país de radicais um único personagem africano camente, o desenvolvimento eco- nhou um papel maior na produção maior na produção total dos países razão do crescimento na indus-
islâmicos. A Nigéria, uma nação que tenha o mínimo de dignidade nômico sustentável exige que a agri- total dos países mais ricos, e que é bem-sucedidos, cujas rendas mais trialização é o fato de seu poten-
dinâmica de 180 milhões de ha- e humanidade.1 Sim, a África con- cultura, por meio de uma produ- típico os países com rendas mais altas foram associadas a um papel cial ser praticamente ilimitado,
bitantes, responsável por 30% do tinua a ser retratada, em muitos tividade maior, forneça alimentos, altas serem os que recebem uma substancialmente maior dos seto- sobretudo num mundo cada vez
produto interno bruto (PIB) da meios de comunicação internacio- mão de obra e até poupança ao contribuição econômica substan- res de transportes e maquinaria. mais globalizado. À medida que
África, é discutida principalmen- nais da corrente dominante, com processo de urbanização e indus- cialmente maior dos setores de No correr dos séculos XIX e XX, se expandem, as atividades agrí-
te quando há um ataque terroris- generalizações e caricaturas ver- trialização. Um setor agrícola di- transportes e equipamento pesado. alguns países da América do Nor- colas ou puramente extrativas cos-
ta do Boko Haram. Ruanda só se gonhosas (ver figura 1). nâmico eleva a produtividade da As nações que conseguem sair da te, da Europa Ocidental e da Ásia tumam enfrentar a escassez de ter-
faz referência pelo genocídio de Deveria ser óbvio para todos mão de obra na economia rural, pobreza e enriquecer são as que se conseguiram transformar suas eco- ras, água ou outros recursos. Em
1994, não pelo espetacular cresci- que não há nada de intrinseca- puxa os salários para cima e elimi- mostram capazes de diversificação, nomias, passando de economias contraste, a indústria se beneficia
mento econômico que apresenta mente “mau” ou “vergonhoso” na na aos poucos as piores dimensões fora da agricultura e de outros pro- agrárias a potências industriais, o facilmente de economias de esca-
desde então. A Etiópia não é re- África. Ocorre apenas que o con- da pobreza absoluta. dutos tradicionais. que incluiu um setor de serviços la: graças a novas invenções e ao
tratada por sua contínua transfor- tinente não conseguiu arquitetar O crescimento agrícola também A industrialização sempre de- de crescimento acelerado, impul- desenvolvimento tecnológico, bem
mação econômica estrutural, mas e sustentar o tipo de desenvolvi- estimula o crescimento de setores sempenhou um papel-chave nos sionado, em grande parte, pelo como a mudanças nas regras de
pelas agitações políticas que sem- mento industrial inclusivo que não agrícolas, com isso impulsio- processos de aceleração do cresci- efeito multiplicador da indústria. comércio globais, o custo dos
pre marcam esse tipo de processo transforma as sociedades, passan- nando os processos de transforma- mento que se sustentam ao longo Como resultado, esses países cons- transportes e os custos unitários
desafiador. A África do Sul, terra do-as da condição de baixa renda ção estrutural e de industrialização. do tempo e acabam por transfor- truíram uma classe média próspe- da produção tiveram um declínio
natal de Nelson Mandela, lugar para a de alta renda. Trata-se de O desenvolvimento de um setor mar economias “pobres” em “ri- ra e elevaram seu padrão de vida. substancial nas últimas décadas, o
em que vêm ocorrendo os mais falta de liderança e de falha no uso industrial competitivo gera recom- cas”. Na fase inicial do crescimen- Além de a indústria (especial- que também facilita o desenvol-
ousados experimentos sociais, é de boas ideias. pensas ainda maiores. Os econo- to econômico moderno, que co- mente a manufatureira) geralmen- vimento industrial. Hoje em dia,
relegada à fama de terra do racis- Em qualquer país, a prosperi- mistas estabeleceram, pelo menos meçou com a Revolução Industrial, te apresentar níveis de produtivi- quase qualquer país pequeno pode
mo e da violência. O Senegal, ter- dade só é alcançada quando os re- desde o início da década de 1960, a indústria manufatureira, em par- dade muito mais altos do que a ter acesso ao mercado mundial,
ra que produziu Cheikh Anta Diop cursos (humanos, naturais e de ca- que a indústria sempre desempe- ticular, desempenhou um papel agricultura tradicional, a principal encontrar um nicho específico e

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


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o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

Normalmente, notícia é a no- e Léopold Sédar Senghor, só é Economias africanas sofreram Figura 1 Caricaturas da África em alguns meios de comunicação da corrente dominante no Ocidente
tícia ruim, diz o velho ditado. Tal- mencionado no noticiário inter-
vez seja por isso que a infinita di- nacional como uma exótica ex- alterações nos últimos 50 anos,
nâmica positiva que se dá conti- -colônia francesa a serviço do tu-
nuamente em qualquer dos 54 rismo de segunda classe. Cama- mas essa evolução não repetiu
países africanos não é encontrada
nas primeiras páginas das revistas
rões, país que produziu alguns dos
mais criativos intelectuais e artis-
o que ocorreu em outras
internacionais, tampouco nas re- tas contemporâneos (Fabien regiões periféricas, como Ásia e
portagens do horário nobre dos Eboussi Boulaga, Jean-Marc Ela,
canais de televisão. Em contraste, Manu Dibango, Richard Bona, América Latina. Parte da força
cada problema político ou econô- entre outros), é retratado apenas
mico que acontece no continente como um lugar em que as crianças
de trabalho se deslocou para
é amplamente divulgado, como jogam futebol na rua, todas so- setores menos produtivos.
prova de uma região do mundo nhando tornar-se o próximo Ro-
que vive em perpétua crise – o ger Milla ou Samuel Eto’o...
que faz dela a principal fonte de Tom Hanks, agraciado com a pital) da nação são deslocados de
ameaças globais. O Marrocos e a Medalha da Liberdade dos Estados atividades informais e de subsistên-
Tunísia são reduzidos a lugares de Unidos, imortalizou recentemen- cia para atividades de alta produti-
onde hordas de invasores se dis- te o heroísmo natural norte-ame- vidade. O desenvolvimento eco-
põem a morrer na tentativa de atra- ricano num campeão de bilheteria nômico dos países industrializados
vessar o mar Mediterrâneo e de se de Hollywood que retrata o Chi- de hoje foi quase universalmente
tornarem imigrantes ilegais na Eu- fre da África como um território acompanhado por um aumento da
ropa. O Egito, berço das mais cin- de piratas – repleto de estereóti- produtividade agrícola, nas etapas
tilantes civilizações do mundo, é pos, o filme inteiro não mostra iniciais do desenvolvimento. Tipi-
descrito como um país de radicais um único personagem africano camente, o desenvolvimento eco- nhou um papel maior na produção maior na produção total dos países razão do crescimento na indus-
islâmicos. A Nigéria, uma nação que tenha o mínimo de dignidade nômico sustentável exige que a agri- total dos países mais ricos, e que é bem-sucedidos, cujas rendas mais trialização é o fato de seu poten-
dinâmica de 180 milhões de ha- e humanidade.1 Sim, a África con- cultura, por meio de uma produ- típico os países com rendas mais altas foram associadas a um papel cial ser praticamente ilimitado,
bitantes, responsável por 30% do tinua a ser retratada, em muitos tividade maior, forneça alimentos, altas serem os que recebem uma substancialmente maior dos seto- sobretudo num mundo cada vez
produto interno bruto (PIB) da meios de comunicação internacio- mão de obra e até poupança ao contribuição econômica substan- res de transportes e maquinaria. mais globalizado. À medida que
África, é discutida principalmen- nais da corrente dominante, com processo de urbanização e indus- cialmente maior dos setores de No correr dos séculos XIX e XX, se expandem, as atividades agrí-
te quando há um ataque terroris- generalizações e caricaturas ver- trialização. Um setor agrícola di- transportes e equipamento pesado. alguns países da América do Nor- colas ou puramente extrativas cos-
ta do Boko Haram. Ruanda só se gonhosas (ver figura 1). nâmico eleva a produtividade da As nações que conseguem sair da te, da Europa Ocidental e da Ásia tumam enfrentar a escassez de ter-
faz referência pelo genocídio de Deveria ser óbvio para todos mão de obra na economia rural, pobreza e enriquecer são as que se conseguiram transformar suas eco- ras, água ou outros recursos. Em
1994, não pelo espetacular cresci- que não há nada de intrinseca- puxa os salários para cima e elimi- mostram capazes de diversificação, nomias, passando de economias contraste, a indústria se beneficia
mento econômico que apresenta mente “mau” ou “vergonhoso” na na aos poucos as piores dimensões fora da agricultura e de outros pro- agrárias a potências industriais, o facilmente de economias de esca-
desde então. A Etiópia não é re- África. Ocorre apenas que o con- da pobreza absoluta. dutos tradicionais. que incluiu um setor de serviços la: graças a novas invenções e ao
tratada por sua contínua transfor- tinente não conseguiu arquitetar O crescimento agrícola também A industrialização sempre de- de crescimento acelerado, impul- desenvolvimento tecnológico, bem
mação econômica estrutural, mas e sustentar o tipo de desenvolvi- estimula o crescimento de setores sempenhou um papel-chave nos sionado, em grande parte, pelo como a mudanças nas regras de
pelas agitações políticas que sem- mento industrial inclusivo que não agrícolas, com isso impulsio- processos de aceleração do cresci- efeito multiplicador da indústria. comércio globais, o custo dos
pre marcam esse tipo de processo transforma as sociedades, passan- nando os processos de transforma- mento que se sustentam ao longo Como resultado, esses países cons- transportes e os custos unitários
desafiador. A África do Sul, terra do-as da condição de baixa renda ção estrutural e de industrialização. do tempo e acabam por transfor- truíram uma classe média próspe- da produção tiveram um declínio
natal de Nelson Mandela, lugar para a de alta renda. Trata-se de O desenvolvimento de um setor mar economias “pobres” em “ri- ra e elevaram seu padrão de vida. substancial nas últimas décadas, o
em que vêm ocorrendo os mais falta de liderança e de falha no uso industrial competitivo gera recom- cas”. Na fase inicial do crescimen- Além de a indústria (especial- que também facilita o desenvol-
ousados experimentos sociais, é de boas ideias. pensas ainda maiores. Os econo- to econômico moderno, que co- mente a manufatureira) geralmen- vimento industrial. Hoje em dia,
relegada à fama de terra do racis- Em qualquer país, a prosperi- mistas estabeleceram, pelo menos meçou com a Revolução Industrial, te apresentar níveis de produtivi- quase qualquer país pequeno pode
mo e da violência. O Senegal, ter- dade só é alcançada quando os re- desde o início da década de 1960, a indústria manufatureira, em par- dade muito mais altos do que a ter acesso ao mercado mundial,
ra que produziu Cheikh Anta Diop cursos (humanos, naturais e de ca- que a indústria sempre desempe- ticular, desempenhou um papel agricultura tradicional, a principal encontrar um nicho específico e

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o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

em termos de transformação es- isso a transformação de algumas ra permitir que os mercados fun-
trutural nos últimos cinquenta dessas economias deu-se em dire- cionem bem e que as empresas
anos. Convém notar, entretanto, ção aos setores errados. potencialmente competitivas cres-
que há grandes heterogeneidades çam. Primeiro, seja qual for seu
nesse grupo de nações. Hoje, al- O que aconteceu? sucesso ou seu fracasso, a empresa
guns países encontram-se num Os líderes políticos tinham espe- pioneira na atualização e na diver-
processo de desindustrialização, rança de transformar a África e sificação industriais fornece ex-
enquanto outros, digamos assim, outros países menos desenvolvi- ternalidades de informação a ou-
nunca se industrializaram. Na ver- dos (PMD) em economias avan- tras firmas. Se fracassar, a firma
dade, as economias africanas evo- çadas, imediatamente depois da precisará arcar com todos os custos
luíram neste último meio século, independência. De modo geral, do fracasso. Se obtiver êxito, ou-
porém a natureza dessa mudança, adotaram a estratégia de construir tras empresas competitivas entra-
de modo geral, não foi a mesma indústrias avançadas intensivas rão em campo e a empresa pionei-
que impulsionou o crescimento em capital e tecnologia, embora ra não conseguirá auferir lucros
em outras regiões do mundo. En- tais países fossem principalmen- extraordinários. Em função da as-
quanto em países da Ásia e da te economias agrárias. Nessas cir- simetria entre o custo do fracasso

africa924/shutterstock.com
América Latina a mão de obra, em cunstâncias, as indústrias priori- e o lucro do sucesso, é baixo o in-
geral, passou para setores de maior tárias do governo foram de en- centivo para que as empresas sejam
produtividade, na África ela se contro às vantagens comparativas pioneiras. Uma intervenção de ba-
transferiu para setores de produ- da economia. O governo precisou se ampla não pode solucionar a
tividade mais baixa. Embora os protegê-las, dando-lhes posições necessidade de recompensar as em-
lavradores tenham saído das áreas de monopólio e subsidiando-as presas pioneiras.
se estabelecer como uma sede glo- gitais, o declínio dos custos de satisfazer as necessidades da clien- rurais e a parcela da agricultura por meio de várias distorções dos Em segundo lugar, os aperfei-
bal dessa indústria. Por exemplo, transporte, o desenvolvimento da tela em mercados distantes. no emprego e no valor agregado preços, inclusive taxas de juros çoamentos infraestruturais neces-
Qiaotou e Yiwu, dois vilarejos infraestrutura física e financeira, Portanto, a globalização da tenha caído desde a década de reduzidas, taxas de câmbio su- sários costumam ser específicos de
chineses anteriormente pequenos, as tecnologias industriais compu- indústria permitiu que as econo- 1960, os principais beneficiários pervalorizadas e assim por dian- cada indústria. A indústria têxtil e
tornaram-se verdadeiras usinas ge- tadorizadas e a proliferação de mias desenvolvidas se beneficias- foram os serviços urbanos, amiú- te. As distorções dos preços cria- a de f lores de corte requerem in-
radoras, produzindo mais de 2/3 acordos de comércio bilaterais e sem de produtos de custo mais de informais, não as fábricas. Por ram situações de escassez, e o go- fraestruturas diferentes para suas
dos botões e zíperes do mundo, multilaterais, tudo isso contribuiu baixo, impulsionados pelos me- verno foi obrigado a usar medidas exportações. Como os recursos tri-
respectivamente! para a globalização da indústria nores salários pagos pela produção administrativas para mobilizar e butários e a capacidade de imple-
A industrialização também manufatureira. Esses fenômenos em países em desenvolvimento, Os governos devem alocar recursos diretamente nas mentação dos países em desenvol-
promove o desenvolvimento in- permitiram a descentralização das como China, Índia, Bangladesh, empresas inviáveis das indústrias vimento são limitados, o governo
clusivo, ao expandir o espaço fis- cadeias de fornecimento em redes Costa Rica, México ou Brasil, ao desempenhar um papel prioritárias. Por meio dessas in- tem que priorizar o aprimoramen-
cal dos investimentos sociais. Nes- globais independentes, mas coe- mesmo tempo que gera empregos tervenções, em alguns momentos to da infraestrutura de acordo com
se contexto, a receita tributária rentes, que permitem às empresas e oportunidades de aprendizagem facilitador do desenvolvimento o governo pôde instalar indús- as indústrias almejadas.
tende a aumentar, graças a expor- transnacionais situarem várias par- nessas nações formalmente po- para permitir que os mercados trias avançadas modernas, mas os Em terceiro lugar, para com-
tações de maior valor agregado, tes de seus negócios em diferentes bres. A intensidade dessas trocas recursos foram erroneamente alo- petir no mundo globalizado, a no-
aos lucros crescentes das empresas lugares do mundo. A concepção levou a novas formas de compe- funcionem bem e que as cados e os incentivos foram re- va indústria deve não apenas ali-
e a rendas melhores, auferidas por criativa dos produtos, a terceiri- tição e codependência.2 duzidos. O desenvolvimento eco- nhar-se com a vantagem compa-
uma força de trabalho mais pro- zação de matérias-primas e com- Depois da independência, empresas potencialmente nômico acabou sendo muito pre- rativa de seu país, a fim de que
dutiva e inovadora. No setor in-
dustrial, a manufatura evoluiu e
ponentes e a fabricação dos pro-
dutos podem agora ser feitos por
grande parte da África teve cres-
cimento lento na produtividade
competitivas cresçam. É preciso cário. Nas palavras de Lin (2012),
a pressa gerou desperdício.
seus custos dos fatores de produção
fiquem no menor nível possível,
modificou a dinâmica da econo- menores preços, e com mais efi- média da mão de obra do setor recompensar as empresas As experiências bem-sucedidas mas também tornar tão baixos
mia mundial. Mudanças profundas ciência, em praticamente qualquer agrícola, o que indica que poucas de desenvolvimento e as lições da quanto possível os seus custos
nas relações geopolíticas entre as região do planeta, enquanto os transformações estruturais ocor- pioneiras e investir bastante política econômica destacam o in- correlatos de transação. Supo-
nações do mundo, o crescimento produtos finais e os serviços são reram nesse setor. Como resulta- dispensável papel facilitador que nhamos que um país tenha uma
generalizado das informações di- personalizados e embalados para do, o histórico foi decepcionante,
em infraestrutura. o governo deve desempenhar, pa- boa infraestrutura e um bom am-

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em termos de transformação es- isso a transformação de algumas ra permitir que os mercados fun-
trutural nos últimos cinquenta dessas economias deu-se em dire- cionem bem e que as empresas
anos. Convém notar, entretanto, ção aos setores errados. potencialmente competitivas cres-
que há grandes heterogeneidades çam. Primeiro, seja qual for seu
nesse grupo de nações. Hoje, al- O que aconteceu? sucesso ou seu fracasso, a empresa
guns países encontram-se num Os líderes políticos tinham espe- pioneira na atualização e na diver-
processo de desindustrialização, rança de transformar a África e sificação industriais fornece ex-
enquanto outros, digamos assim, outros países menos desenvolvi- ternalidades de informação a ou-
nunca se industrializaram. Na ver- dos (PMD) em economias avan- tras firmas. Se fracassar, a firma
dade, as economias africanas evo- çadas, imediatamente depois da precisará arcar com todos os custos
luíram neste último meio século, independência. De modo geral, do fracasso. Se obtiver êxito, ou-
porém a natureza dessa mudança, adotaram a estratégia de construir tras empresas competitivas entra-
de modo geral, não foi a mesma indústrias avançadas intensivas rão em campo e a empresa pionei-
que impulsionou o crescimento em capital e tecnologia, embora ra não conseguirá auferir lucros
em outras regiões do mundo. En- tais países fossem principalmen- extraordinários. Em função da as-
quanto em países da Ásia e da te economias agrárias. Nessas cir- simetria entre o custo do fracasso

africa924/shutterstock.com
América Latina a mão de obra, em cunstâncias, as indústrias priori- e o lucro do sucesso, é baixo o in-
geral, passou para setores de maior tárias do governo foram de en- centivo para que as empresas sejam
produtividade, na África ela se contro às vantagens comparativas pioneiras. Uma intervenção de ba-
transferiu para setores de produ- da economia. O governo precisou se ampla não pode solucionar a
tividade mais baixa. Embora os protegê-las, dando-lhes posições necessidade de recompensar as em-
lavradores tenham saído das áreas de monopólio e subsidiando-as presas pioneiras.
se estabelecer como uma sede glo- gitais, o declínio dos custos de satisfazer as necessidades da clien- rurais e a parcela da agricultura por meio de várias distorções dos Em segundo lugar, os aperfei-
bal dessa indústria. Por exemplo, transporte, o desenvolvimento da tela em mercados distantes. no emprego e no valor agregado preços, inclusive taxas de juros çoamentos infraestruturais neces-
Qiaotou e Yiwu, dois vilarejos infraestrutura física e financeira, Portanto, a globalização da tenha caído desde a década de reduzidas, taxas de câmbio su- sários costumam ser específicos de
chineses anteriormente pequenos, as tecnologias industriais compu- indústria permitiu que as econo- 1960, os principais beneficiários pervalorizadas e assim por dian- cada indústria. A indústria têxtil e
tornaram-se verdadeiras usinas ge- tadorizadas e a proliferação de mias desenvolvidas se beneficias- foram os serviços urbanos, amiú- te. As distorções dos preços cria- a de f lores de corte requerem in-
radoras, produzindo mais de 2/3 acordos de comércio bilaterais e sem de produtos de custo mais de informais, não as fábricas. Por ram situações de escassez, e o go- fraestruturas diferentes para suas
dos botões e zíperes do mundo, multilaterais, tudo isso contribuiu baixo, impulsionados pelos me- verno foi obrigado a usar medidas exportações. Como os recursos tri-
respectivamente! para a globalização da indústria nores salários pagos pela produção administrativas para mobilizar e butários e a capacidade de imple-
A industrialização também manufatureira. Esses fenômenos em países em desenvolvimento, Os governos devem alocar recursos diretamente nas mentação dos países em desenvol-
promove o desenvolvimento in- permitiram a descentralização das como China, Índia, Bangladesh, empresas inviáveis das indústrias vimento são limitados, o governo
clusivo, ao expandir o espaço fis- cadeias de fornecimento em redes Costa Rica, México ou Brasil, ao desempenhar um papel prioritárias. Por meio dessas in- tem que priorizar o aprimoramen-
cal dos investimentos sociais. Nes- globais independentes, mas coe- mesmo tempo que gera empregos tervenções, em alguns momentos to da infraestrutura de acordo com
se contexto, a receita tributária rentes, que permitem às empresas e oportunidades de aprendizagem facilitador do desenvolvimento o governo pôde instalar indús- as indústrias almejadas.
tende a aumentar, graças a expor- transnacionais situarem várias par- nessas nações formalmente po- para permitir que os mercados trias avançadas modernas, mas os Em terceiro lugar, para com-
tações de maior valor agregado, tes de seus negócios em diferentes bres. A intensidade dessas trocas recursos foram erroneamente alo- petir no mundo globalizado, a no-
aos lucros crescentes das empresas lugares do mundo. A concepção levou a novas formas de compe- funcionem bem e que as cados e os incentivos foram re- va indústria deve não apenas ali-
e a rendas melhores, auferidas por criativa dos produtos, a terceiri- tição e codependência.2 duzidos. O desenvolvimento eco- nhar-se com a vantagem compa-
uma força de trabalho mais pro- zação de matérias-primas e com- Depois da independência, empresas potencialmente nômico acabou sendo muito pre- rativa de seu país, a fim de que
dutiva e inovadora. No setor in-
dustrial, a manufatura evoluiu e
ponentes e a fabricação dos pro-
dutos podem agora ser feitos por
grande parte da África teve cres-
cimento lento na produtividade
competitivas cresçam. É preciso cário. Nas palavras de Lin (2012),
a pressa gerou desperdício.
seus custos dos fatores de produção
fiquem no menor nível possível,
modificou a dinâmica da econo- menores preços, e com mais efi- média da mão de obra do setor recompensar as empresas As experiências bem-sucedidas mas também tornar tão baixos
mia mundial. Mudanças profundas ciência, em praticamente qualquer agrícola, o que indica que poucas de desenvolvimento e as lições da quanto possível os seus custos
nas relações geopolíticas entre as região do planeta, enquanto os transformações estruturais ocor- pioneiras e investir bastante política econômica destacam o in- correlatos de transação. Supo-
nações do mundo, o crescimento produtos finais e os serviços são reram nesse setor. Como resulta- dispensável papel facilitador que nhamos que um país tenha uma
generalizado das informações di- personalizados e embalados para do, o histórico foi decepcionante,
em infraestrutura. o governo deve desempenhar, pa- boa infraestrutura e um bom am-

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o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

Quase todos os países da África da tem sido fraca em muitas eco- Europa, a inflexibilidade do mer- Figura 2 Distribuição do emprego primário na África subsaariana (percentagens)
nomias avançadas, em função de cado de trabalho resulta num alto
subsaariana fizeram reformas balanços familiares def lacionados, índice de desemprego entre os jo- n Salários, setor público n Salários, setor privado n Empresa familiar n Salários, agricultura n Agricultura familiar
desalavancagem do setor financei- vens, apesar de tendências demo-
econômicas liberalizantes desde ro, aumento da tensão nos balan- gráficas que deveriam favorecer uma
100

90
a década de 1970. Os mercados ços públicos e cerceamento das
opções tributárias. Essas condições
possibilidade maior de empregá-los.
E, nas economias em desenvolvi- 80
de trabalho foram deixados contribuíram para baixas perspec- mento, a falta de perspectiva de tra-
70
tivas de crescimento, as quais limi- balho, especialmente entre jovens
sem regulamentação. Mesmo taram os investimentos privados, trabalhadores em potencial, produz 60

Distribuição (%)
apesar das taxas de juros historica- um excesso de mão de obra que
assim, o emprego formal mente baixas. O FMI destacou la- permanece ociosa e que tem enco-
50

não cresceu. A dinâmica cunas na produção e uma persis- rajado a migração. A falta de indus- 40

tência do subdesempenho conjun- trialização da África vem agravando 30


populacional da região torna to da economia global na faixa esse efeito indesejável de capacida-
20
entre 1,5% e 2,0% a mais do que de ociosa, mão de obra não utiliza-
tudo ainda mais desafiador. cinco anos depois da Grande Re- da e baixos retornos do capital. 10
cessão. Agora, parece que o cres- Motivados pela necessidade 0
biente empresarial, e que a mo- cimento das economias de merca- de preservar a estabilidade so-

Malávi

Burkina Faso

Moçambique

Ruanda

Serra Leoa

Costa do Marfim

Gana

Senegal
Tanzânia

Uganda

Quênia
Camarões

Zâmbia

Média ponderada
dernização e a diversificação in- do emergentes teve o seu ritmo ciopolítica, muitos governos afri-
dustriais ocorram espontanea- reduzido. Dada a população cole- canos usaram o emprego no ser-
mente. Sem a coordenação do tiva da África e sua classe média viço público como um instru-
governo, as empresas podem en- ascendente, com um poder aqui- mento de redistribuição social.
trar num excesso de indústrias sitivo substancial, o continente se- Assim, é comum se recrutarem Fonte: Fox e Sohnesen, 2012.
diferentes, todas compatíveis com ria capaz de dar uma contribuição funcionários públicos com base
a vantagem comparativa do país. valiosa para o crescimento global, nas credenciais de instrução – Na África subsaariana, em particular, vado (Fox e Gaal, 2008). Os dados de le-
Como resultado, a maioria des- se pudesse seguir estratégias viá- não com base nas necessidades 70% a 90% da força de trabalho estão en- vantamentos domiciliares mostram que, nas
sas indústrias pode não formar veis de industrialização. econômicas do país. Os salários gajados em empregos informais. Aproxi- últimas décadas, o setor informal (não agrí-
aglomerados suf icientemente Em quarto lugar, alterações de- da administração pública ba- madamente 80% desses empregos informais cola) foi uma fonte crescente de emprego
grandes no país e não ser com- mográficas de grandes proporções seiam-se com frequência na an- encontram-se na agricultura, e 10% a 30% para uma grande parcela da juventude afri-
petitiva no mercado interno e no também vêm ocorrendo, se bem tiguidade no cargo (não na pro- estão em empresas familiares ou microem- cana, mas também para os trabalhadores
internacional. Só depois de mui- que diferentemente entre os vários dutividade do indivíduo, ou nas presas (apenas em empregos primários). mais velhos que tentam aproveitar as opor-
tos fracassos é que alguns aglo- países e de modo irregular nas re- condições do mercado). As po- Cerca de um terço dos que estão fora do tunidades empresariais. Sua contribuição
merados acabam emergindo. Es- giões. Em algumas grandes eco- líticas públicas tendem a recom- setor de empregos formais relata, tipica- para o PIB e para a redução da pobreza foi
se “ensaio e erro” tende a ser um nomias, como o Japão e a Repú- pensar os diplomas educacionais mente, múltiplas atividades econômicas ao substancial, e, para muitas pessoas, ele se
processo demorado e caro, que blica da Coreia, a força de trabalho e não a produtividade, e é fre- longo do ano, combinando empresas agrí- tornou um grande ponto de entrada no
reduz os retornos esperados por vem declinando em consequência quente se adotarem leis traba- colas e não agrícolas. Quase todos os par- mercado de trabalho. Para os jovens de ci-
cada empresa e os incentivos para de fatores demográficos e do mer- lhistas para estender essas regras ticipantes da força de trabalho inseridos em dades grandes, como Adis Abeba, Lagos,
a modernização ou a diversifica- cado de trabalho. Em outras, como ao setor privado formal. Tais po- famílias de baixa renda estão engajados em Kinshasa, Abidjan, Duala, Nairóbi e Dar
ção em novas indústrias. Isso, por os Estados Unidos, o subemprego líticas são tentativas equivocadas atividades baseadas na família – agricultu- es Salaam, o setor informal é mesmo a
sua vez, pode retardar o desenvol- (tal como visto em estatísticas da de proporcionar emprego em ra familiar e empresas não agrícolas muito única opção viável para se ganhar a vida
vimento econômico do país. participação mais ampla da força de países nos quais ele é visto como pequenas, comumente chamadas de “em- modestamente, inclusive para os que têm
O crescimento mais lento que trabalho) é um obstáculo à recupe- o principal determinante da re- presas informais” (figura 2). instrução secundária, profissionalizante e
o normal na África também ref le- ração, embora uma parte do declí- dução da pobreza. Elas ref letem O setor de empresas familiares gera a universitária, visto que o número de em-
te algumas oportunidades perdidas nio da participação da força de tra- a escassez de bons empregos e as maioria dos novos empregos não agrícolas pregadores do setor formal é limitado e há
na economia mundial. Desde a balho possa ser atribuída ao enve- incômodas realidades dos mer- em quase todos os países africanos, mesmo provas de inadequação das competências
crise de 2008, a demanda agrega- lhecimento da população. Na cados de trabalho africanos. em épocas de crescimento econômico ele- no mercado de trabalho.

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o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

Quase todos os países da África da tem sido fraca em muitas eco- Europa, a inflexibilidade do mer- Figura 2 Distribuição do emprego primário na África subsaariana (percentagens)
nomias avançadas, em função de cado de trabalho resulta num alto
subsaariana fizeram reformas balanços familiares def lacionados, índice de desemprego entre os jo- n Salários, setor público n Salários, setor privado n Empresa familiar n Salários, agricultura n Agricultura familiar
desalavancagem do setor financei- vens, apesar de tendências demo-
econômicas liberalizantes desde ro, aumento da tensão nos balan- gráficas que deveriam favorecer uma
100

90
a década de 1970. Os mercados ços públicos e cerceamento das
opções tributárias. Essas condições
possibilidade maior de empregá-los.
E, nas economias em desenvolvi- 80
de trabalho foram deixados contribuíram para baixas perspec- mento, a falta de perspectiva de tra-
70
tivas de crescimento, as quais limi- balho, especialmente entre jovens
sem regulamentação. Mesmo taram os investimentos privados, trabalhadores em potencial, produz 60

Distribuição (%)
apesar das taxas de juros historica- um excesso de mão de obra que
assim, o emprego formal mente baixas. O FMI destacou la- permanece ociosa e que tem enco-
50

não cresceu. A dinâmica cunas na produção e uma persis- rajado a migração. A falta de indus- 40

tência do subdesempenho conjun- trialização da África vem agravando 30


populacional da região torna to da economia global na faixa esse efeito indesejável de capacida-
20
entre 1,5% e 2,0% a mais do que de ociosa, mão de obra não utiliza-
tudo ainda mais desafiador. cinco anos depois da Grande Re- da e baixos retornos do capital. 10
cessão. Agora, parece que o cres- Motivados pela necessidade 0
biente empresarial, e que a mo- cimento das economias de merca- de preservar a estabilidade so-

Malávi

Burkina Faso

Moçambique

Ruanda

Serra Leoa

Costa do Marfim

Gana

Senegal
Tanzânia

Uganda

Quênia
Camarões

Zâmbia

Média ponderada
dernização e a diversificação in- do emergentes teve o seu ritmo ciopolítica, muitos governos afri-
dustriais ocorram espontanea- reduzido. Dada a população cole- canos usaram o emprego no ser-
mente. Sem a coordenação do tiva da África e sua classe média viço público como um instru-
governo, as empresas podem en- ascendente, com um poder aqui- mento de redistribuição social.
trar num excesso de indústrias sitivo substancial, o continente se- Assim, é comum se recrutarem Fonte: Fox e Sohnesen, 2012.
diferentes, todas compatíveis com ria capaz de dar uma contribuição funcionários públicos com base
a vantagem comparativa do país. valiosa para o crescimento global, nas credenciais de instrução – Na África subsaariana, em particular, vado (Fox e Gaal, 2008). Os dados de le-
Como resultado, a maioria des- se pudesse seguir estratégias viá- não com base nas necessidades 70% a 90% da força de trabalho estão en- vantamentos domiciliares mostram que, nas
sas indústrias pode não formar veis de industrialização. econômicas do país. Os salários gajados em empregos informais. Aproxi- últimas décadas, o setor informal (não agrí-
aglomerados suf icientemente Em quarto lugar, alterações de- da administração pública ba- madamente 80% desses empregos informais cola) foi uma fonte crescente de emprego
grandes no país e não ser com- mográficas de grandes proporções seiam-se com frequência na an- encontram-se na agricultura, e 10% a 30% para uma grande parcela da juventude afri-
petitiva no mercado interno e no também vêm ocorrendo, se bem tiguidade no cargo (não na pro- estão em empresas familiares ou microem- cana, mas também para os trabalhadores
internacional. Só depois de mui- que diferentemente entre os vários dutividade do indivíduo, ou nas presas (apenas em empregos primários). mais velhos que tentam aproveitar as opor-
tos fracassos é que alguns aglo- países e de modo irregular nas re- condições do mercado). As po- Cerca de um terço dos que estão fora do tunidades empresariais. Sua contribuição
merados acabam emergindo. Es- giões. Em algumas grandes eco- líticas públicas tendem a recom- setor de empregos formais relata, tipica- para o PIB e para a redução da pobreza foi
se “ensaio e erro” tende a ser um nomias, como o Japão e a Repú- pensar os diplomas educacionais mente, múltiplas atividades econômicas ao substancial, e, para muitas pessoas, ele se
processo demorado e caro, que blica da Coreia, a força de trabalho e não a produtividade, e é fre- longo do ano, combinando empresas agrí- tornou um grande ponto de entrada no
reduz os retornos esperados por vem declinando em consequência quente se adotarem leis traba- colas e não agrícolas. Quase todos os par- mercado de trabalho. Para os jovens de ci-
cada empresa e os incentivos para de fatores demográficos e do mer- lhistas para estender essas regras ticipantes da força de trabalho inseridos em dades grandes, como Adis Abeba, Lagos,
a modernização ou a diversifica- cado de trabalho. Em outras, como ao setor privado formal. Tais po- famílias de baixa renda estão engajados em Kinshasa, Abidjan, Duala, Nairóbi e Dar
ção em novas indústrias. Isso, por os Estados Unidos, o subemprego líticas são tentativas equivocadas atividades baseadas na família – agricultu- es Salaam, o setor informal é mesmo a
sua vez, pode retardar o desenvol- (tal como visto em estatísticas da de proporcionar emprego em ra familiar e empresas não agrícolas muito única opção viável para se ganhar a vida
vimento econômico do país. participação mais ampla da força de países nos quais ele é visto como pequenas, comumente chamadas de “em- modestamente, inclusive para os que têm
O crescimento mais lento que trabalho) é um obstáculo à recupe- o principal determinante da re- presas informais” (figura 2). instrução secundária, profissionalizante e
o normal na África também ref le- ração, embora uma parte do declí- dução da pobreza. Elas ref letem O setor de empresas familiares gera a universitária, visto que o número de em-
te algumas oportunidades perdidas nio da participação da força de tra- a escassez de bons empregos e as maioria dos novos empregos não agrícolas pregadores do setor formal é limitado e há
na economia mundial. Desde a balho possa ser atribuída ao enve- incômodas realidades dos mer- em quase todos os países africanos, mesmo provas de inadequação das competências
crise de 2008, a demanda agrega- lhecimento da população. Na cados de trabalho africanos. em épocas de crescimento econômico ele- no mercado de trabalho.

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


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o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

Não surpreende que as políti- ços da população da região têm


Figura 3 População por grupos etários e sexo (números absolutos)
cas de geração de emprego tenham menos de 24 anos e estão subem-
Instituições globais,
levado a resultados decepcionan- pregados – inclusive os que têm públicas ou privadas,
tes: quase todos os países da Áfri- diplomas do curso médio e uni-
África 1950 África 2010 ca subsaariana começaram a libe- versitários. A maioria dos traba- poderiam organizar
ralizar a economia nos anos 1970 lhadores está presa em atividades
105 105
e 1980, e implementaram sérias de produtividade baixíssima, na a transferência
100 100

90 Homens Mulheres 90 Homens Mulheres


reformas do mercado durante vá-
rias décadas. A regulamentação do
agricultura de subsistência e no
setor informal. A África subsaa-
de poupança dos
80 80 mercado de trabalho foi substan- riana terá que gerar grandes opor- países desenvolvidos
cialmente relaxada, a fim de faci- tunidades de emprego, anualmen-
70 70
litar as decisões de demissão to- te, para absorver a taxa elevada de para oportunidades
60
60 madas pelas empresas. Embora ha-
ja relatos de que a produtividade
crescimento populacional.
A não industrialização da Áfri-
de investimentos
50 50

40 40
da mão de obra (medida como ca tem implicações não apenas pa- produtivos em
crescimento percentual do PIB ra o continente, mas também pa-
30 30 por pessoa empregada) tenha au- ra a economia global e para a paz economias de
mentado de 5,3 em 1990-1992 e a estabilidade mundiais. Primei-
20 20
para 4,4 em 2005-2008, a taxa de ro, ela impede que grandes seg-
baixa renda. Mas
10 10 emprego em relação à população mentos da população contribuam isso não ocorre.
0 0 não mostrou grande mudança: em para a produção e se beneficiem
100 50 0 50 100 100 50 0 50 100 2008, ainda estava na média de do crescimento econômico, o que
(milhões) (milhões)
64% da população total (de 15 anos cria desigualdades e várias formas commodities e a subsequente rápida
ou mais), o mesmo nível observa- de desequilíbrios sociais, com um desaceleração do crescimento em
do em 1991. Entre os jovens (15 a potencial de repercussões políti- diversos países africanos, desde
24 anos), ela sofreu um ligeiro de- cas. Nesses casos, a economia ten- meados de 2014, só sublinham a
África 2050 África 2100 clínio nesse período de vinte anos, de a depender, em larguíssima me- significativa dependência da re-
baixando de 50% para 49%.3 Cla- dida, da criação de empregos no ceita das commodities para que haja
105 105 ramente, as reformas do mercado setor informal. Tipicamente, a in- crescimento, bem como a neces-
100 100
de trabalho não levaram à criação dústria manufatureira formal é o sidade de criar novas fontes de cres-
Homens Mulheres Homens Mulheres
90 90 de novas oportunidades de em- setor mais dinâmico, o principal cimento para garantir a estabili-
80 80
prego no setor formal. propulsor do desenvolvimento dade macroeconômica e o cresci-
A dinâmica do crescimento po- tecnológico e das inovações, bem mento duradouro e equitativo. A
70 70 pulacional torna as coisas ainda como um grande impulsionador não adoção de políticas para fo-
60 60 mais desafiadoras (figura 3). Com da produtividade setorial mais am- mentar a transformação estrutural
um aumento da população proje- pla e do crescimento econômico. em países pobres já custou caro
50 50
tado em 2,2% nos próximos 25 Assim, a desindustrialização pre- não apenas para essas economias,
40 40 anos, e com cerca de 2 a 3 milhões matura constitui uma grave ame- como também para a economia
30 30 de jovens entrando todos os anos aça ao crescimento nos países em global e para a paz mundial, uma
na força de trabalho, a mão de obra desenvolvimento. vez que a pobreza e o desemprego
20 20
terá, na África, um crescimento Os portentosos desaf ios da na África são comumente associa-
10 10 de 11 a 14 milhões por ano nas transição demográfica que vem dos à instabilidade, aos conf litos,
0 duas próximas décadas. O setor por aí tornam indispensável que a à violência e à vulnerabilidade a
0
100 50 0 50 100 100 50 0 50 100 privado africano enfrenta o desa- África crie novas fontes de cresci- desordenadas migrações em mas-
(milhões) (milhões) fio de criar oportunidades de em- mento que também tragam uma sa, que exacerbam os temores eco-
prego que absorvam essa bolha geração substancial de empregos. nômicos e as ansiedades sociais nas
Fonte: Dados da Organização das Nações Unidas. juvenil: aproximadamente dois ter- Além disso, a queda nos preços das economias adiantadas.

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o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

Não surpreende que as políti- ços da população da região têm


Figura 3 População por grupos etários e sexo (números absolutos)
cas de geração de emprego tenham menos de 24 anos e estão subem-
Instituições globais,
levado a resultados decepcionan- pregados – inclusive os que têm públicas ou privadas,
tes: quase todos os países da Áfri- diplomas do curso médio e uni-
África 1950 África 2010 ca subsaariana começaram a libe- versitários. A maioria dos traba- poderiam organizar
ralizar a economia nos anos 1970 lhadores está presa em atividades
105 105
e 1980, e implementaram sérias de produtividade baixíssima, na a transferência
100 100

90 Homens Mulheres 90 Homens Mulheres


reformas do mercado durante vá-
rias décadas. A regulamentação do
agricultura de subsistência e no
setor informal. A África subsaa-
de poupança dos
80 80 mercado de trabalho foi substan- riana terá que gerar grandes opor- países desenvolvidos
cialmente relaxada, a fim de faci- tunidades de emprego, anualmen-
70 70
litar as decisões de demissão to- te, para absorver a taxa elevada de para oportunidades
60
60 madas pelas empresas. Embora ha-
ja relatos de que a produtividade
crescimento populacional.
A não industrialização da Áfri-
de investimentos
50 50

40 40
da mão de obra (medida como ca tem implicações não apenas pa- produtivos em
crescimento percentual do PIB ra o continente, mas também pa-
30 30 por pessoa empregada) tenha au- ra a economia global e para a paz economias de
mentado de 5,3 em 1990-1992 e a estabilidade mundiais. Primei-
20 20
para 4,4 em 2005-2008, a taxa de ro, ela impede que grandes seg-
baixa renda. Mas
10 10 emprego em relação à população mentos da população contribuam isso não ocorre.
0 0 não mostrou grande mudança: em para a produção e se beneficiem
100 50 0 50 100 100 50 0 50 100 2008, ainda estava na média de do crescimento econômico, o que
(milhões) (milhões)
64% da população total (de 15 anos cria desigualdades e várias formas commodities e a subsequente rápida
ou mais), o mesmo nível observa- de desequilíbrios sociais, com um desaceleração do crescimento em
do em 1991. Entre os jovens (15 a potencial de repercussões políti- diversos países africanos, desde
24 anos), ela sofreu um ligeiro de- cas. Nesses casos, a economia ten- meados de 2014, só sublinham a
África 2050 África 2100 clínio nesse período de vinte anos, de a depender, em larguíssima me- significativa dependência da re-
baixando de 50% para 49%.3 Cla- dida, da criação de empregos no ceita das commodities para que haja
105 105 ramente, as reformas do mercado setor informal. Tipicamente, a in- crescimento, bem como a neces-
100 100
de trabalho não levaram à criação dústria manufatureira formal é o sidade de criar novas fontes de cres-
Homens Mulheres Homens Mulheres
90 90 de novas oportunidades de em- setor mais dinâmico, o principal cimento para garantir a estabili-
80 80
prego no setor formal. propulsor do desenvolvimento dade macroeconômica e o cresci-
A dinâmica do crescimento po- tecnológico e das inovações, bem mento duradouro e equitativo. A
70 70 pulacional torna as coisas ainda como um grande impulsionador não adoção de políticas para fo-
60 60 mais desafiadoras (figura 3). Com da produtividade setorial mais am- mentar a transformação estrutural
um aumento da população proje- pla e do crescimento econômico. em países pobres já custou caro
50 50
tado em 2,2% nos próximos 25 Assim, a desindustrialização pre- não apenas para essas economias,
40 40 anos, e com cerca de 2 a 3 milhões matura constitui uma grave ame- como também para a economia
30 30 de jovens entrando todos os anos aça ao crescimento nos países em global e para a paz mundial, uma
na força de trabalho, a mão de obra desenvolvimento. vez que a pobreza e o desemprego
20 20
terá, na África, um crescimento Os portentosos desaf ios da na África são comumente associa-
10 10 de 11 a 14 milhões por ano nas transição demográfica que vem dos à instabilidade, aos conf litos,
0 duas próximas décadas. O setor por aí tornam indispensável que a à violência e à vulnerabilidade a
0
100 50 0 50 100 100 50 0 50 100 privado africano enfrenta o desa- África crie novas fontes de cresci- desordenadas migrações em mas-
(milhões) (milhões) fio de criar oportunidades de em- mento que também tragam uma sa, que exacerbam os temores eco-
prego que absorvam essa bolha geração substancial de empregos. nômicos e as ansiedades sociais nas
Fonte: Dados da Organização das Nações Unidas. juvenil: aproximadamente dois ter- Além disso, a queda nos preços das economias adiantadas.

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o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

nômicos e sociopolíticos fortes e n porque os déficits de investimento podem ser movidos por motivos
amiúde despercebidos que exis- enfraquecem as perspectivas de diferentes. Mas todos lutam pelos
tem entre as regiões do mundo crescimento e perpetuam a mi- mesmos objetivos.
– independentemente das fron- séria econômica e social, na Áfri- Por que não estão acontecendo
teiras territoriais e das culturas. ca e em outras regiões do mundo intercâmbios econômicos e finan-
Imaginemos por um minuto que que estão em desenvolvimento ceiros harmoniosos entre os agen-
haja um grupo de macroecono- – problemas que acabam por le- tes econômicos de todo o mundo?
mistas marcianos observando ho- var à pobreza, à raiva e à instabi- Por que a renda per capita no Ma-
je o planeta Terra, de longe. O lidade política. lávi foi de 350 dólares em 2015,
que veriam, de sua perspectiva enquanto foi de 102 mil dólares em
macroeconômica? É provável que Os países ricos têm excesso de Luxemburgo, e a comunidade hu-
se impressionassem com a velo- poupança. Em contraste, os paí- mana demonstra aceitar isso? Se,
cidade das inovações e dos avan- ses pobres têm déficits de inves- através de suas instituições públicas
ços tecnológicos na Terra. Mas timento que poderiam ser absor- globais ou de canais internacionais
também ficariam surpresos com vidos pelos abundantes recursos privados, o mundo pudesse orga-
as discrepâncias e incoerências nas financeiros e pelos conhecimen- nizar a transferência da poupança
maneiras de a prosperidade ser tos dos países ricos. Os macroe- das economias desenvolvidas para
distribuída entre a população ter- conomistas marcianos chegariam oportunidades produtivas de inves-
restre. Provavelmente, os obser- à conclusão lógica de que o pla- timento em economias de baixa
vadores marcianos se pergunta- neta Terra seria um lugar muito renda (em especial na África), o
riam por que algumas pessoas têm melhor se fosse possível estabele- resultado seria uma situação de be-
alimentos em excesso, que des- cer elos e laços de solidariedade nefício generalizado para todos os

Mark52/shutterstock.com
troem cotidianamente, enquanto entre seres humanos que, basica- países do mundo, ricos e pobres.
outras vão dormir com fome to- mente, compartilham as mesmas No entanto, isso não vem aconte-
dos os dias. Também se intriga- aspirações e objetivos, indepen- cendo. Como a formulação de po-
riam com o fato de haver excesso dentemente de onde vivam. To- líticas econômicas continua a ser
de poupança em alguns lugares dos os governos querem criar con- predominantemente concebida e
do mundo, enquanto outros so- dições ótimas para um desenvol- implementada tendo por referência
3. África, o continente está claro que o desenvolvimento
Se quisermos reduzir frem uma dolorosa falta de inves- vimento harmonioso, que gere as fronteiras nacionais e os eleito-
indispensável econômico da África não apenas timentos. Essa discrepância entre uma prosperidade duradoura e o rados políticos nacionais, o mundo
aliviaria a dor e o sofrimento de as tensões e os conflitos a poupança e o investimento seria bom nome de seu país, para que não colhe os dividendos potenciais
Talvez o maior paradoxo dos tem- mais de 1 bilhão de pessoas que um mistério particular para eles. seus dirigentes políticos possam da cooperação internacional. Os
pos atuais seja que muitos dos prin- nela vivem atualmente, como tam- internacionais, precisamos continuar no poder pelo maior marcianos, observando de longe o
cipais problemas do mundo, que bém contribuiria, de muitas ma- Por quê? Ora, prazo possível, e entrar com hon- planeta Terra, e não compreenden-
alguns atribuem à incapacidade neiras, para a resolução da pobre-
adotar um Acordo Global ra nos livros de história. As pes- do o grande mistério das fronteiras
africana de deslanchar e sustentar za global que sustenta a violência, de Industrialização da África. n porque o excesso de poupança soas do setor privado, em todos nacionais, ficariam surpresos ao ver
o crescimento econômico e de se o terrorismo e as tensões sociopo- vem criando problemas finan- os lugares do mundo, querem ga- os seres humanos sofrerem de pro-
livrar da pobreza material, só pos- líticas, as migrações em massa de As economias avançadas ceiros e econômicos em países nhar dinheiro e, quem sabe, con- blemas econômicos que poderiam
sam ser resolvidos ao se arquitetar trabalhadores não qualificados e ricos do planeta Terra (problemas tribuir para boas causas. Na ver- ser facilmente resolvidos, se eles
a prosperidade econômica da Áfri- os altos níveis de desemprego em também se beneficiariam disso, como taxas de juros baixas de- dade, precisam ganhar dinheiro pudessem simplesmente mudar de
ca. É verdade que sempre haverá alguns países desenvolvidos – prin- abrindo novas frentes mais, que incentivam a má con- para continuar em atividade. As ponto de vista.
uma dose irreprimível de ansie- cipalmente na Europa. duta dos banqueiros, que correm organizações da sociedade civil A melhor estrutura política pa-
dade, tensões políticas, desempre- Para imaginar como isso seria de investimento produtivo. riscos em demasia para encontrar em todo o planeta querem, de ra chegarmos ao crescimento global
go global e insegurança econômi- possível, é preciso se distanciar meios de obter retornos e acabam modo geral, garantir boas opor- e à prosperidade comum (que são
ca, num planeta habitado por seres dos problemas específ icos da criando bolhas financeiras que tunidades para todos os cidadãos as metas recém-estabelecidas pela
humanos congenitamente insatis- África, examinar o panorama ameaçam o tecido econômico e e criar a paz social. Todos esses Organização das Nações Unidas
feitos e imprevisíveis. Contudo, global e compreender os elos eco- social das sociedades); principais jogadores e entidades para 2030), para reduzirmos as ten-

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o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

nômicos e sociopolíticos fortes e n porque os déficits de investimento podem ser movidos por motivos
amiúde despercebidos que exis- enfraquecem as perspectivas de diferentes. Mas todos lutam pelos
tem entre as regiões do mundo crescimento e perpetuam a mi- mesmos objetivos.
– independentemente das fron- séria econômica e social, na Áfri- Por que não estão acontecendo
teiras territoriais e das culturas. ca e em outras regiões do mundo intercâmbios econômicos e finan-
Imaginemos por um minuto que que estão em desenvolvimento ceiros harmoniosos entre os agen-
haja um grupo de macroecono- – problemas que acabam por le- tes econômicos de todo o mundo?
mistas marcianos observando ho- var à pobreza, à raiva e à instabi- Por que a renda per capita no Ma-
je o planeta Terra, de longe. O lidade política. lávi foi de 350 dólares em 2015,
que veriam, de sua perspectiva enquanto foi de 102 mil dólares em
macroeconômica? É provável que Os países ricos têm excesso de Luxemburgo, e a comunidade hu-
se impressionassem com a velo- poupança. Em contraste, os paí- mana demonstra aceitar isso? Se,
cidade das inovações e dos avan- ses pobres têm déficits de inves- através de suas instituições públicas
ços tecnológicos na Terra. Mas timento que poderiam ser absor- globais ou de canais internacionais
também ficariam surpresos com vidos pelos abundantes recursos privados, o mundo pudesse orga-
as discrepâncias e incoerências nas financeiros e pelos conhecimen- nizar a transferência da poupança
maneiras de a prosperidade ser tos dos países ricos. Os macroe- das economias desenvolvidas para
distribuída entre a população ter- conomistas marcianos chegariam oportunidades produtivas de inves-
restre. Provavelmente, os obser- à conclusão lógica de que o pla- timento em economias de baixa
vadores marcianos se pergunta- neta Terra seria um lugar muito renda (em especial na África), o
riam por que algumas pessoas têm melhor se fosse possível estabele- resultado seria uma situação de be-
alimentos em excesso, que des- cer elos e laços de solidariedade nefício generalizado para todos os

Mark52/shutterstock.com
troem cotidianamente, enquanto entre seres humanos que, basica- países do mundo, ricos e pobres.
outras vão dormir com fome to- mente, compartilham as mesmas No entanto, isso não vem aconte-
dos os dias. Também se intriga- aspirações e objetivos, indepen- cendo. Como a formulação de po-
riam com o fato de haver excesso dentemente de onde vivam. To- líticas econômicas continua a ser
de poupança em alguns lugares dos os governos querem criar con- predominantemente concebida e
do mundo, enquanto outros so- dições ótimas para um desenvol- implementada tendo por referência
3. África, o continente está claro que o desenvolvimento
Se quisermos reduzir frem uma dolorosa falta de inves- vimento harmonioso, que gere as fronteiras nacionais e os eleito-
indispensável econômico da África não apenas timentos. Essa discrepância entre uma prosperidade duradoura e o rados políticos nacionais, o mundo
aliviaria a dor e o sofrimento de as tensões e os conflitos a poupança e o investimento seria bom nome de seu país, para que não colhe os dividendos potenciais
Talvez o maior paradoxo dos tem- mais de 1 bilhão de pessoas que um mistério particular para eles. seus dirigentes políticos possam da cooperação internacional. Os
pos atuais seja que muitos dos prin- nela vivem atualmente, como tam- internacionais, precisamos continuar no poder pelo maior marcianos, observando de longe o
cipais problemas do mundo, que bém contribuiria, de muitas ma- Por quê? Ora, prazo possível, e entrar com hon- planeta Terra, e não compreenden-
alguns atribuem à incapacidade neiras, para a resolução da pobre-
adotar um Acordo Global ra nos livros de história. As pes- do o grande mistério das fronteiras
africana de deslanchar e sustentar za global que sustenta a violência, de Industrialização da África. n porque o excesso de poupança soas do setor privado, em todos nacionais, ficariam surpresos ao ver
o crescimento econômico e de se o terrorismo e as tensões sociopo- vem criando problemas finan- os lugares do mundo, querem ga- os seres humanos sofrerem de pro-
livrar da pobreza material, só pos- líticas, as migrações em massa de As economias avançadas ceiros e econômicos em países nhar dinheiro e, quem sabe, con- blemas econômicos que poderiam
sam ser resolvidos ao se arquitetar trabalhadores não qualificados e ricos do planeta Terra (problemas tribuir para boas causas. Na ver- ser facilmente resolvidos, se eles
a prosperidade econômica da Áfri- os altos níveis de desemprego em também se beneficiariam disso, como taxas de juros baixas de- dade, precisam ganhar dinheiro pudessem simplesmente mudar de
ca. É verdade que sempre haverá alguns países desenvolvidos – prin- abrindo novas frentes mais, que incentivam a má con- para continuar em atividade. As ponto de vista.
uma dose irreprimível de ansie- cipalmente na Europa. duta dos banqueiros, que correm organizações da sociedade civil A melhor estrutura política pa-
dade, tensões políticas, desempre- Para imaginar como isso seria de investimento produtivo. riscos em demasia para encontrar em todo o planeta querem, de ra chegarmos ao crescimento global
go global e insegurança econômi- possível, é preciso se distanciar meios de obter retornos e acabam modo geral, garantir boas opor- e à prosperidade comum (que são
ca, num planeta habitado por seres dos problemas específ icos da criando bolhas financeiras que tunidades para todos os cidadãos as metas recém-estabelecidas pela
humanos congenitamente insatis- África, examinar o panorama ameaçam o tecido econômico e e criar a paz social. Todos esses Organização das Nações Unidas
feitos e imprevisíveis. Contudo, global e compreender os elos eco- social das sociedades); principais jogadores e entidades para 2030), para reduzirmos as ten-

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o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

sões e os conflitos internacionais e breza e as políticas de desenvolvi- A África pode impulsionar a renda média dessas economias dólares e o consumo per capita mias do G20, bem como na Áfri-
para conduzirmos o planeta Terra mento regional. A industrialização e elevaria o consumo interno, no aumentaria 190 dólares. Esse im- ca e nos PMD, também acionaria
à paz e à segurança, seria a rápida também pode instigar o progres- o crescimento global, tal como contexto de uma classe média pulso dado aos investimentos e vários efeitos multiplicadores, ge-
adoção, pela comunidade interna- so tecnológico e suas inovações, em rápido crescimento e da gran- ao consumo, por sua vez, aumen- rando uma demanda adicional de
cional, talvez através do G20, de um bem como ganhos de produtivi- ocorreu com a Ásia. Além disso, de demanda de bens de capital taria as necessidades de importa- insumos intermediários, elevando
Acordo Global de Industrialização
da África.4 Tal instrumento permi-
dade. Com efeito, praticamente
todos os países de sucesso e países
empregos decentes aliviariam importados. Segundo pesquisas
da UNIDO, para cada ponto per-
ção de bens de capital e de con-
sumo de outras regiões do mundo,
a renda e aumentando o emprego.
A UNIDO fez um exercício sim-
tiria não apenas que a África abor- emergentes reconheceram o pa- tensões sociopolíticas e centual de aumento na partici- particularmente das economias ples de simulação para estimar a
dasse seus principais problemas eco- pel crucial da industrialização im- pação dos produtos manufatu- do G20, de onde vem a maioria dinâmica positiva do crescimento
nômicos e sociopolíticos e assumis- pulsionada pelo aumento da par- diminuiriam os riscos de adesão rados no PIB (dentro da faixa das importações da África e dos industrial e seus efeitos nas eco-
se seu lugar natural no mundo, cela de manufaturados no PIB, e pertinente aos países africanos e PMD, como mostra a figura 4. nomias do G20. Esse exercício ba-
como também proporcionaria às apoiaram ativamente suas indús-
a grupos radicais que ameaçam aos PMD),5 os investimentos per A maior produção de bens de seou-se em técnicas multirregio-
economias avançadas, imediatamen- trias, por meio de políticas dire- a segurança de todos. capita teriam um aumento de 66 capital e de consumo nas econo- nais de produto-insumo. Estimou-
te, oportunidades sem precedentes cionadas e investimentos adequa-
de canalizar o excesso de sua pou- dos nas instituições.
pança para iniciativas de investi- Tipicamente, a indústria tem ní- bitantes em 2015, o que representa Tabela 1 Projeções da população mundial, da África e dos PMD, 2015-2050 (em milhares)
mento produtivas, e lhes permitiria veis mais altos de produtividade que mais de 20% da população mundial.
gerar empregos em muitas indústrias outros setores. Também proporcio- De acordo com as projeções da 2015 2030 2050
dentro de suas próprias fronteiras. na oportunidades especiais de acu- ONU, essa cifra terá duplicado em Mundo 7,349,472 8,500,766 9,725,148
Em última análise, a África se tor- mulação de capital, concentração 2050, ano em que se espera que Africa 1,186,178 1,679,301 2,477,536
naria um novo mercado ainda maior espacial, economias de aglomeração esse grupo de países responda por
PMD africanos 615,371 921,916 1,440,177
e contribuiria substancialmente pa- e economias dinâmicas de escala. 30% da população mundial (ver
Africanos, não PMD (África Subsaariana) 346,915 474,937 683,055
ra a demanda global. Desempenha um papel especial co- tabela 1). Setenta por cento da po-
É impossível enfatizar em de- mo impulsionadora de mudanças pulação africana têm menos de 30 Africanos, não PMD (África Setentrional) 223,892 282,448 354,304
masia a importância da industria- tecnológicas e apresenta muitas anos, e mais de 80% da força de PMD não africanos 338,786 403,778 456,744
lização africana como motor do oportunidades de aprendizagem e trabalho do continente estão de- PMD 954,158 1,325,694 1,896,921
crescimento e do desenvolvimen- atualização; além disso, seus efeitos sempregados ou ligados a ativida-
África e PMD 1,524,965 2,083,079 2,934,280
to econômicos globais. A produção positivos de difusão e seus laços com des informais e de subsistência. A
industrial cria oportunidades de a economia são tipicamente mais menos que haja um desenvolvi- Parcela da população mundial 21% 25% 30%
emprego em níveis mais elevados fortes. Em comparação com outros mento industrial rápido e susten- Fonte: Elaboração do autor, com base em dados da ONU. Projeções populacionais probabilísticas baseadas no relatório
de qualificação, facilita ligações setores, a indústria está particular- tável em toda a África, é provável Perspectivas da população mundial: revisão de 2015, ONU, Divisão Populacional/DESA, <http://esa.un.org/unpd/ppp/>.
mais sólidas entre o setor agrícola mente apta a criar empregos diretos que os problemas de desemprego
e o de serviços, entre as economias e indiretos, mais bem-remunerados e subemprego lá existentes se agra-
rurais e urbanas e entre consumi- e sempre com melhores condições vem no futuro imediato. A não Figura 4 Participação das economias do G20 no total das importações
dores, intermediários e indústrias de trabalho. A geração de empregos consecução de uma rápida trans- de capital e bens de consumo na África e nos PMD, 2013
de bens de capital. Além disso, os diretos e indiretos na indústria e nos formação estrutural impeliria os

Participação do G20 nas importações


preços de exportação de produtos serviços relacionados com a produ- trabalhadores para fora dessa região 100%
n Não PMD africanos (África Setentrional)
manufaturados são menos voláteis ção fabril leva à inclusão de um nú- e aumentaria o número de migran- 80%
e menos passíveis de deterioração mero maior de pessoas no processo tes que chegam a outras regiões do n Não PMD africanos (África Subsaariana)
60%
em longo prazo do que os de pro- de crescimento. Também aumenta mundo, especialmente à Europa. n PMD africanos
dutos primários, o que os torna a produtividade média, os salários Entretanto, com políticas apro- 40%
n PMD não africanos
particularmente estratégicos nos e a renda familiar, reduzindo com priadas, a industrialização da Áfri- 20%
Economias em desenvolvimento
países em desenvolvimento com isso a pobreza. ca e dos PMD estimularia o cres- 0%
n

grande dependência de commodities. A África e os países menos de- cimento e contribuiria para a de- Bens de capital Bens de consumo
Outrossim, a industrialização é um senvolvidos (PMD) de outras par- manda global. Ao elevar os níveis
instrumento crucial para a geração tes do mundo tinham uma popu- de produtividade e criar empregos Nota: O conjunto das economias em desenvolvimento inclui África, Ásia (exceto o Japão), América Latina e Caribe, e Oceania (exceto Austrália e Nova Zelândia).

de emprego, a erradicação da po- lação de mais de 1,5 bilhão de ha- no setor formal, ela aumentaria Fonte: Elaboração baseada no UN Comtrade.

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


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o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

sões e os conflitos internacionais e breza e as políticas de desenvolvi- A África pode impulsionar a renda média dessas economias dólares e o consumo per capita mias do G20, bem como na Áfri-
para conduzirmos o planeta Terra mento regional. A industrialização e elevaria o consumo interno, no aumentaria 190 dólares. Esse im- ca e nos PMD, também acionaria
à paz e à segurança, seria a rápida também pode instigar o progres- o crescimento global, tal como contexto de uma classe média pulso dado aos investimentos e vários efeitos multiplicadores, ge-
adoção, pela comunidade interna- so tecnológico e suas inovações, em rápido crescimento e da gran- ao consumo, por sua vez, aumen- rando uma demanda adicional de
cional, talvez através do G20, de um bem como ganhos de produtivi- ocorreu com a Ásia. Além disso, de demanda de bens de capital taria as necessidades de importa- insumos intermediários, elevando
Acordo Global de Industrialização
da África.4 Tal instrumento permi-
dade. Com efeito, praticamente
todos os países de sucesso e países
empregos decentes aliviariam importados. Segundo pesquisas
da UNIDO, para cada ponto per-
ção de bens de capital e de con-
sumo de outras regiões do mundo,
a renda e aumentando o emprego.
A UNIDO fez um exercício sim-
tiria não apenas que a África abor- emergentes reconheceram o pa- tensões sociopolíticas e centual de aumento na partici- particularmente das economias ples de simulação para estimar a
dasse seus principais problemas eco- pel crucial da industrialização im- pação dos produtos manufatu- do G20, de onde vem a maioria dinâmica positiva do crescimento
nômicos e sociopolíticos e assumis- pulsionada pelo aumento da par- diminuiriam os riscos de adesão rados no PIB (dentro da faixa das importações da África e dos industrial e seus efeitos nas eco-
se seu lugar natural no mundo, cela de manufaturados no PIB, e pertinente aos países africanos e PMD, como mostra a figura 4. nomias do G20. Esse exercício ba-
como também proporcionaria às apoiaram ativamente suas indús-
a grupos radicais que ameaçam aos PMD),5 os investimentos per A maior produção de bens de seou-se em técnicas multirregio-
economias avançadas, imediatamen- trias, por meio de políticas dire- a segurança de todos. capita teriam um aumento de 66 capital e de consumo nas econo- nais de produto-insumo. Estimou-
te, oportunidades sem precedentes cionadas e investimentos adequa-
de canalizar o excesso de sua pou- dos nas instituições.
pança para iniciativas de investi- Tipicamente, a indústria tem ní- bitantes em 2015, o que representa Tabela 1 Projeções da população mundial, da África e dos PMD, 2015-2050 (em milhares)
mento produtivas, e lhes permitiria veis mais altos de produtividade que mais de 20% da população mundial.
gerar empregos em muitas indústrias outros setores. Também proporcio- De acordo com as projeções da 2015 2030 2050
dentro de suas próprias fronteiras. na oportunidades especiais de acu- ONU, essa cifra terá duplicado em Mundo 7,349,472 8,500,766 9,725,148
Em última análise, a África se tor- mulação de capital, concentração 2050, ano em que se espera que Africa 1,186,178 1,679,301 2,477,536
naria um novo mercado ainda maior espacial, economias de aglomeração esse grupo de países responda por
PMD africanos 615,371 921,916 1,440,177
e contribuiria substancialmente pa- e economias dinâmicas de escala. 30% da população mundial (ver
Africanos, não PMD (África Subsaariana) 346,915 474,937 683,055
ra a demanda global. Desempenha um papel especial co- tabela 1). Setenta por cento da po-
É impossível enfatizar em de- mo impulsionadora de mudanças pulação africana têm menos de 30 Africanos, não PMD (África Setentrional) 223,892 282,448 354,304
masia a importância da industria- tecnológicas e apresenta muitas anos, e mais de 80% da força de PMD não africanos 338,786 403,778 456,744
lização africana como motor do oportunidades de aprendizagem e trabalho do continente estão de- PMD 954,158 1,325,694 1,896,921
crescimento e do desenvolvimen- atualização; além disso, seus efeitos sempregados ou ligados a ativida-
África e PMD 1,524,965 2,083,079 2,934,280
to econômicos globais. A produção positivos de difusão e seus laços com des informais e de subsistência. A
industrial cria oportunidades de a economia são tipicamente mais menos que haja um desenvolvi- Parcela da população mundial 21% 25% 30%
emprego em níveis mais elevados fortes. Em comparação com outros mento industrial rápido e susten- Fonte: Elaboração do autor, com base em dados da ONU. Projeções populacionais probabilísticas baseadas no relatório
de qualificação, facilita ligações setores, a indústria está particular- tável em toda a África, é provável Perspectivas da população mundial: revisão de 2015, ONU, Divisão Populacional/DESA, <http://esa.un.org/unpd/ppp/>.
mais sólidas entre o setor agrícola mente apta a criar empregos diretos que os problemas de desemprego
e o de serviços, entre as economias e indiretos, mais bem-remunerados e subemprego lá existentes se agra-
rurais e urbanas e entre consumi- e sempre com melhores condições vem no futuro imediato. A não Figura 4 Participação das economias do G20 no total das importações
dores, intermediários e indústrias de trabalho. A geração de empregos consecução de uma rápida trans- de capital e bens de consumo na África e nos PMD, 2013
de bens de capital. Além disso, os diretos e indiretos na indústria e nos formação estrutural impeliria os

Participação do G20 nas importações


preços de exportação de produtos serviços relacionados com a produ- trabalhadores para fora dessa região 100%
n Não PMD africanos (África Setentrional)
manufaturados são menos voláteis ção fabril leva à inclusão de um nú- e aumentaria o número de migran- 80%
e menos passíveis de deterioração mero maior de pessoas no processo tes que chegam a outras regiões do n Não PMD africanos (África Subsaariana)
60%
em longo prazo do que os de pro- de crescimento. Também aumenta mundo, especialmente à Europa. n PMD africanos
dutos primários, o que os torna a produtividade média, os salários Entretanto, com políticas apro- 40%
n PMD não africanos
particularmente estratégicos nos e a renda familiar, reduzindo com priadas, a industrialização da Áfri- 20%
Economias em desenvolvimento
países em desenvolvimento com isso a pobreza. ca e dos PMD estimularia o cres- 0%
n

grande dependência de commodities. A África e os países menos de- cimento e contribuiria para a de- Bens de capital Bens de consumo
Outrossim, a industrialização é um senvolvidos (PMD) de outras par- manda global. Ao elevar os níveis
instrumento crucial para a geração tes do mundo tinham uma popu- de produtividade e criar empregos Nota: O conjunto das economias em desenvolvimento inclui África, Ásia (exceto o Japão), América Latina e Caribe, e Oceania (exceto Austrália e Nova Zelândia).

de emprego, a erradicação da po- lação de mais de 1,5 bilhão de ha- no setor formal, ela aumentaria Fonte: Elaboração baseada no UN Comtrade.

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o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

Tabela 2 Projeção do aumento da produção e do emprego nos países do G20


em decorrência da industrialização da África e dos PMD

Investimento Consumo Total


Exportações diretas do G20 (em milhões 28,538 63,586 92,123
de dólares)
Efeitos indiretos das exportações (em 45,805 85,841 131,647
milhões de dólares)
Efeitos indiretos do aumento da 109,478 204,026 313,504
produção dos PMD e da África (em
milhões de dólares)
Aumento total da produção (em milhões 183,821 353,453 537,274
de dólares)
Aumento total do emprego (em milhares 2,171 5,332 7,503
de trabalhadores)

Nota: As cifras referentes ao emprego foram calculadas a partir de dados setoriais do emprego extraídos do relatório WESO 2015, da OIT. Os coeficientes dos
requisitos de emprego direto foram calculados dividindo-se o emprego setorial de 2013 (conforme divulgado no relatório ILO WESO 2015) pela produção setorial de

Monkey Business Images/shutterstock.com


2013 (conforme divulgada no relatório EORA). Calculou-se então o aumento do emprego da última linha da tabela, multiplicando-se esses coeficientes do emprego
direto pela mudança correspondente na produção, por setor e por país do G20.

Fonte: Simulações baseadas na Tabela EORA Multirregional de Insumo-Produto, 2013 [Eora Multi-Regional Input Output Table, 2013].

-se que aumentar a participação investimento e bens de consumo. exerceria em outras partes do
dos produtos manufaturados no A tabela 2 fornece os detalhes. mundo, em particular nos países
PIB da África e dos PMD poderia Os resultados dessas simula- do G20. As estimativas sugerem
levar a um impacto positivo con- ções sugerem um impacto posi- um aumento total de quase 315
junto dos investimentos, da ordem tivo importantíssimo da indus- bilhões de dólares, graças a esses
de aproximadamente 485 bilhões trialização da África e dos PMD efeitos indiretos. Em termos da as tensões sociopolíticas e miti- 4. Conclusão Os governantes dos países do
de dólares, assim como a um au- nas economias do G20. As ex- criação de emprego, o nível es- gariam os riscos de vermos inú-
mento do consumo familiar de portações diretas de bens de ca- pecificado de desenvolvimento meros jovens, privados de seus In fine, pode-se dizer que, apesar de G20 deixaram de tomar as
cerca de 1,4 bilhão de dólares. pital e de consumo teriam um industrial da África e dos PMD direitos, unirem-se a grupos mi- sua reputação global abaixo do óti-
Usando o mesmo método, aumento superior a 92 bilhões de (com a produção fabril represen- litantes radicais e ameaçarem a mo, a África, na verdade, encontra-
providências necessárias para
também é possível estimar: (a) o dólares. E, o que é mais impor- tando 15% do PIB) geraria 7,5 paz e a segurança do planeta. Ta- -se hoje em melhores condições de gerar benefícios para todos.
aumento direto das exportações tante, os efeitos indiretos associa- milhões de empregos nas econo- xas de crescimento mais altas na moldar o curso da história humana
de bens de consumo e de capital dos a esse aumento das exporta- mias do G20 – o que representa África e nos PMD gerariam be- do que qualquer outra região do O ex-presidente Obama tem
do G20 para a África e os PMD, ções (dadas todas as ligações in- cerca de 0,4% do total do empre- nefícios globais adicionais. Leva- mundo. Foi uma falha coletiva de
desencadeado pela industrializa- ternas entre o setor de exportações go nos países do G20 em 2013.6 riam maiores receitas tributárias visão e coragem política que levou alguma responsabilidade pelas
ção destes últimos; (b) o aumen- do G20 e outros produtores do- Nas décadas vindouras, é pos- – e menor dependência da ajuda os governantes dos países do G20 a chances desperdiçadas. Mas
to indireto da produção dos países mésticos) elevariam a produção sível que a África e os PMD se externa – a muitos países de bai- perderem a oportunidade de tomar
do G20, desencadeado por esse do G20 em mais 130 bilhões de tornem grandes contribuintes e xa renda, e ajudariam a melhorar as providências necessárias para ge- as expectativas nele eram,
crescimento das exportações; e dólares. O efeito mais significa- impulsionadores do crescimento seus sistemas de saúde nacionais rar benefícios para as economias
(c) o aumento indireto da pro- tivo, entretanto, relaciona-se com global, tal como se deu com a e a reforçar sua capacidade de pre- avançadas e os países de baixa ren- talvez, exageradamente altas.
dução nos países do G20, desen- o aumento da produção domés- Ásia. Novas oportunidades de em- venir e lidar com surtos de doen- da. Às vésperas de encerrar seu du-
cadeado pela maior produção ne- tica de bens de consumo e de ca- pregos decentes, especialmente ças, como nas crises causadas pe- plo mandato (oito anos) no co-
cessária na África e nos PMD pital na África e nos PMD, e com para os jovens do mundo árabe e los vírus Ebola e Zika, que repre- mando da nação mais poderosa do
para a produção doméstica de o impacto multiplicador que ele da África subsaariana, aliviariam sentam ameaças globais. mundo, Barack Obama tem certa

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Tabela 2 Projeção do aumento da produção e do emprego nos países do G20


em decorrência da industrialização da África e dos PMD

Investimento Consumo Total


Exportações diretas do G20 (em milhões 28,538 63,586 92,123
de dólares)
Efeitos indiretos das exportações (em 45,805 85,841 131,647
milhões de dólares)
Efeitos indiretos do aumento da 109,478 204,026 313,504
produção dos PMD e da África (em
milhões de dólares)
Aumento total da produção (em milhões 183,821 353,453 537,274
de dólares)
Aumento total do emprego (em milhares 2,171 5,332 7,503
de trabalhadores)

Nota: As cifras referentes ao emprego foram calculadas a partir de dados setoriais do emprego extraídos do relatório WESO 2015, da OIT. Os coeficientes dos
requisitos de emprego direto foram calculados dividindo-se o emprego setorial de 2013 (conforme divulgado no relatório ILO WESO 2015) pela produção setorial de

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2013 (conforme divulgada no relatório EORA). Calculou-se então o aumento do emprego da última linha da tabela, multiplicando-se esses coeficientes do emprego
direto pela mudança correspondente na produção, por setor e por país do G20.

Fonte: Simulações baseadas na Tabela EORA Multirregional de Insumo-Produto, 2013 [Eora Multi-Regional Input Output Table, 2013].

-se que aumentar a participação investimento e bens de consumo. exerceria em outras partes do
dos produtos manufaturados no A tabela 2 fornece os detalhes. mundo, em particular nos países
PIB da África e dos PMD poderia Os resultados dessas simula- do G20. As estimativas sugerem
levar a um impacto positivo con- ções sugerem um impacto posi- um aumento total de quase 315
junto dos investimentos, da ordem tivo importantíssimo da indus- bilhões de dólares, graças a esses
de aproximadamente 485 bilhões trialização da África e dos PMD efeitos indiretos. Em termos da as tensões sociopolíticas e miti- 4. Conclusão Os governantes dos países do
de dólares, assim como a um au- nas economias do G20. As ex- criação de emprego, o nível es- gariam os riscos de vermos inú-
mento do consumo familiar de portações diretas de bens de ca- pecificado de desenvolvimento meros jovens, privados de seus In fine, pode-se dizer que, apesar de G20 deixaram de tomar as
cerca de 1,4 bilhão de dólares. pital e de consumo teriam um industrial da África e dos PMD direitos, unirem-se a grupos mi- sua reputação global abaixo do óti-
Usando o mesmo método, aumento superior a 92 bilhões de (com a produção fabril represen- litantes radicais e ameaçarem a mo, a África, na verdade, encontra-
providências necessárias para
também é possível estimar: (a) o dólares. E, o que é mais impor- tando 15% do PIB) geraria 7,5 paz e a segurança do planeta. Ta- -se hoje em melhores condições de gerar benefícios para todos.
aumento direto das exportações tante, os efeitos indiretos associa- milhões de empregos nas econo- xas de crescimento mais altas na moldar o curso da história humana
de bens de consumo e de capital dos a esse aumento das exporta- mias do G20 – o que representa África e nos PMD gerariam be- do que qualquer outra região do O ex-presidente Obama tem
do G20 para a África e os PMD, ções (dadas todas as ligações in- cerca de 0,4% do total do empre- nefícios globais adicionais. Leva- mundo. Foi uma falha coletiva de
desencadeado pela industrializa- ternas entre o setor de exportações go nos países do G20 em 2013.6 riam maiores receitas tributárias visão e coragem política que levou alguma responsabilidade pelas
ção destes últimos; (b) o aumen- do G20 e outros produtores do- Nas décadas vindouras, é pos- – e menor dependência da ajuda os governantes dos países do G20 a chances desperdiçadas. Mas
to indireto da produção dos países mésticos) elevariam a produção sível que a África e os PMD se externa – a muitos países de bai- perderem a oportunidade de tomar
do G20, desencadeado por esse do G20 em mais 130 bilhões de tornem grandes contribuintes e xa renda, e ajudariam a melhorar as providências necessárias para ge- as expectativas nele eram,
crescimento das exportações; e dólares. O efeito mais significa- impulsionadores do crescimento seus sistemas de saúde nacionais rar benefícios para as economias
(c) o aumento indireto da pro- tivo, entretanto, relaciona-se com global, tal como se deu com a e a reforçar sua capacidade de pre- avançadas e os países de baixa ren- talvez, exageradamente altas.
dução nos países do G20, desen- o aumento da produção domés- Ásia. Novas oportunidades de em- venir e lidar com surtos de doen- da. Às vésperas de encerrar seu du-
cadeado pela maior produção ne- tica de bens de consumo e de ca- pregos decentes, especialmente ças, como nas crises causadas pe- plo mandato (oito anos) no co-
cessária na África e nos PMD pital na África e nos PMD, e com para os jovens do mundo árabe e los vírus Ebola e Zika, que repre- mando da nação mais poderosa do
para a produção doméstica de o impacto multiplicador que ele da África subsaariana, aliviariam sentam ameaças globais. mundo, Barack Obama tem certa

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o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

responsabilidade pelas chances per- industriais que evitem as armadi-


A África pode ajudar a salvar Notas
didas. Mas as expectativas em rela- lhas do passado.
ção a ele talvez tenham sido injus- O sucesso econômico de gran- a economia global. Cabe aos 1. O filme é Capitão Philips, dirigido por Paul Gre- desses países. Neste exercício, o foco voltou-se
tamente altas – sobretudo por par- des países emergentes, como a Chi- engrass (2013). Supõe-se que narre a história para a demanda global final, de modo que se
te de muitas pessoas da África que, na, o Vietnã, a Indonésia ou o Bra- líderes mundiais desenvolver verídica do capitão Richard Phillips e do seques- considerou apenas a absorção doméstica. (iv)
erroneamente, tomaram-no por sil nos anos 2000, reflete a evolução tro, perpetrado em 2009 por piratas somalis, do Não há especificação do intervalo de tempo em
uma delas, não apenas por presiden- de suas estruturas de dotações e a
o arcabouço de políticas navio Maersk Alabama, de bandeira norte-ame- que se darão todos esses impactos. Isto depen-
ricana, o primeiro navio mercante dos Estados derá do tempo necessário para aumentar as par-
te dos Estados Unidos. mudança das vantagens comparati- necessárias para fazer com Unidos a ser sequestrado em duzentos anos. ticipações atuais da produção fabril da África e
Quem sabe? Talvez as relações vas. Também tem estimulado uma 2. Nas últimas décadas, a inovação, o desenvolvi- dos PMD, até chegar à meta de 15% do PIB.
frias, arrogantes e de estilo comer- nova dinâmica na distribuição das que isso aconteça. Todos mento tecnológico e novas fontes de crescimen-
cial que Donald Trump, o novo lí- responsabilidades no sistema global to econômico levaram alguns economistas a
der mundial, prometeu introduzir de produção: esses recém-chegados
serão beneficiados. questionar se a indústria ainda tem importância.
nos assuntos globais possam ajudar estão agora em boas condições de Ver em Monga (2014) uma avaliação crítica dos
argumentos desse debate. Referências bibliográficas
a África e o mundo – até sem que- produzir, cada vez mais, muitos pro- global, mediante a construção de
3. Fonte: Indicadores do Desenvolvimento Mundial.
rer. Ao ver os países africanos sem dutos de alto valor agregado, o que parques industriais e zonas de pro-
4. A Cúpula do G20 reunida em Cantão, na Chi- Fox, L.; Gaal, M. S. Working out of Poverty: Job
emoção, não como uma região ne- era antes uma prerrogativa exclusi- cessamento de exportações ligadas Creation and the Quality of Growth in Africa.
na, em setembro de 2015, teve a sensatez de
cessitada de piedade, ajuda externa va das economias avançadas. Para a mercados globais. Podem alavan- identificar a industrialização africana como uma Washington: Banco Mundial, 2008.
e sermões sobre a governança po- continuar a ter sucesso, eles preci- car essas zonas para atrair a indústria grande prioridade mundial. Infelizmente, não Fox, L.; Sohnesen, T. P. “Household En-
lítica e econômica, o novo presi- sam continuar a subir na escala in- leve de economias mais avançadas, adotou nenhum plano de ação plausível para terprise in Sub-Saharan Africa: Why they
dente norte-americano pode acabar dustrial e tecnológica, e precisam como fizeram os países do Leste fazer com que ela acontecesse. matter for growth, jobs, and livelihoods”.
estabelecendo com o continente o se envolver mais em indústrias in- Asiático na década de 1960 e a 5. Esta cifra considera apenas os países com renda Washington: Banco Mundial, texto mi-
tipo de relações empresariais nor- tensivas em capital. Ao mesmo tem- China nos anos 1980. Atraindo per capita abaixo de 25 mil dólares internacio- meografado, 2012.
nais de 2005 e com participação dos produtos Jones, William O. “Economic Man in Africa”.
mais capazes de deslanchar o tão po, terão que liberar grande parte empresas e investimentos estran-
manufaturados inferior a 25% do PIB. Food Research Institute Studies, v. 1, n. 2,
esperado processo de transformação de seu espaço industrial de hoje pa- geiros, até os países africanos mais
6. É importante enfatizar algumas limitações da 1960, p. 107-134 (Stanford University).
econômica e social sustentável. ra países de baixa renda que possam pobres poderão aprimorar sua lo- abordagem utilizada. (i) As simulações basea- Kabou, Axelle. Et si l’Afrique refusait le dévelo-
É realmente necessário extrair ser mais competitivos nas indústrias gística de comércio, aumentar os ram-se nas tabelas de insumo-produto de 2013. ppement?. Paris: L’Harmattan, 1991.
lições da história econômica e da intensivas em mão de obra. A relo- conhecimentos e as habilidades Ou seja, presume-se que as relações insumo- Monga , Célestin. “Winning the Jackpot: Jobs
experiência de outros países em cação necessária de grandes partes dos empresários locais, conquis- -produto (transações intersetoriais) se mante- Dividends in a Multipolar World”, in Jo-
que as mudanças estruturais envol- de sua cadeia de fornecedores para tar a confiança de compradores nham inalteradas, mesmo depois de projetar que seph E. Stiglitz, Justin Yifu Lin e Ebrahim
a participação dos manufaturados no PIB suba
veram uma variedade de processos países com baixo custo de produção internacionais e, aos poucos, tor- Patel (orgs.), The Industrial Policy Revolution
para 15%. Levar em consideração as mudanças II – Africa in the 21st Century. Nova York:
industriais. A transformação da afetará o preço das mercadorias, os nar competitivas as empresas lo- nas relações intersetoriais acarretadas pela in- Palgrave MacMillan, 2013, p. 135-171.
economia mundial e a emergência padrões de emprego e os salários cais. Essa estratégia já vem sen- dustrialização afetaria os resultados, certamen-
de grandes países em desenvolvi- em toda parte (Spence, 2011). do usada com grande sucesso no te. Mas isso exigiria uma nova estimativa de Monga , Célestin. Niilismo e negritude: as artes
cada tabela de insumo-produto da África e dos de viver na África. São Paulo: Martins Fon-
mento abrem novas possibilidades Os países africanos se encontram Vietnã, no Camboja, em Bangla- tes, 2010.
para os retardatários. Os países afri- em boas condições de captar muitos desh, nas Ilhas Maurício, na Etió- PMD, o que ultrapassa o alcance deste exercí-
cio simples. (ii) Presume-se que a estrutura de Ngangbet, Michel. Peut-on encore sauver le
canos podem acelerar a transição dos empregos de baixa qualificação pia, em Ruanda e em outros países. consumo e investimento da África e dos PMD Tchad?. Paris: Karthala, 1984.
da mão de obra de empregos de liberados pelos países bem-sucedidos E tal estratégia não precisa limi- permaneça igual à de 2013. A única coisa alte-
baixa produtividade, na agricultu- de renda média, que vêm experi- tar-se à indústria manufatureira rada para estas projeções foi o total do dinheiro
ra e no setor informal, para em- mentando salários mais altos e per- tradicional, podendo também in- canalizado para o investimento e o consumo.
pregos de maior produtividade, na dendo competitividade em muitas cluir a agricultura, o setor de ser- Mas a forma de alocação desse dinheiro, em
termos do tipo de bens adquiridos (estrutura
agroindústria, na indústria fabril indústrias. Embora alguns desses viços e outras atividades. A Áfri-
setorial), a origem dos bens (doméstica ou es-
ou em serviços comercializáveis, e empregos tendam a desaparecer, por ca, portanto, acha-se em boas con- trangeira) e o país específico em que se origi-
alcançar o crescimento sustentável causa das inovações tecnológicas e dições de salvar a economia nam as importações foram mantidos constantes
e a redução da pobreza. Para isso, da automação, um número ainda global. Cabe aos líderes mundiais (tal como foi publicado no relatório EORA
contudo, é preciso que sejam con- muito grande deles terá que ser re- desenvolver o arcabouço de po- 2013). (iii) Não calculamos o efeito que a in-
cebidas e implementadas novas for- locado. Os países africanos podem líticas necessárias para fazer com dustrialização da África e dos PMD poderia
surtir em termos do aumento das exportações
mas, mais estratégicas, de políticas saltar diretamente para a economia que isso aconteça. n

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o desenvolvimento da áfrica Célestin Monga África: o que quer que você tenha pensado, repense

responsabilidade pelas chances per- industriais que evitem as armadi-


A África pode ajudar a salvar Notas
didas. Mas as expectativas em rela- lhas do passado.
ção a ele talvez tenham sido injus- O sucesso econômico de gran- a economia global. Cabe aos 1. O filme é Capitão Philips, dirigido por Paul Gre- desses países. Neste exercício, o foco voltou-se
tamente altas – sobretudo por par- des países emergentes, como a Chi- engrass (2013). Supõe-se que narre a história para a demanda global final, de modo que se
te de muitas pessoas da África que, na, o Vietnã, a Indonésia ou o Bra- líderes mundiais desenvolver verídica do capitão Richard Phillips e do seques- considerou apenas a absorção doméstica. (iv)
erroneamente, tomaram-no por sil nos anos 2000, reflete a evolução tro, perpetrado em 2009 por piratas somalis, do Não há especificação do intervalo de tempo em
uma delas, não apenas por presiden- de suas estruturas de dotações e a
o arcabouço de políticas navio Maersk Alabama, de bandeira norte-ame- que se darão todos esses impactos. Isto depen-
ricana, o primeiro navio mercante dos Estados derá do tempo necessário para aumentar as par-
te dos Estados Unidos. mudança das vantagens comparati- necessárias para fazer com Unidos a ser sequestrado em duzentos anos. ticipações atuais da produção fabril da África e
Quem sabe? Talvez as relações vas. Também tem estimulado uma 2. Nas últimas décadas, a inovação, o desenvolvi- dos PMD, até chegar à meta de 15% do PIB.
frias, arrogantes e de estilo comer- nova dinâmica na distribuição das que isso aconteça. Todos mento tecnológico e novas fontes de crescimen-
cial que Donald Trump, o novo lí- responsabilidades no sistema global to econômico levaram alguns economistas a
der mundial, prometeu introduzir de produção: esses recém-chegados
serão beneficiados. questionar se a indústria ainda tem importância.
nos assuntos globais possam ajudar estão agora em boas condições de Ver em Monga (2014) uma avaliação crítica dos
argumentos desse debate. Referências bibliográficas
a África e o mundo – até sem que- produzir, cada vez mais, muitos pro- global, mediante a construção de
3. Fonte: Indicadores do Desenvolvimento Mundial.
rer. Ao ver os países africanos sem dutos de alto valor agregado, o que parques industriais e zonas de pro-
4. A Cúpula do G20 reunida em Cantão, na Chi- Fox, L.; Gaal, M. S. Working out of Poverty: Job
emoção, não como uma região ne- era antes uma prerrogativa exclusi- cessamento de exportações ligadas Creation and the Quality of Growth in Africa.
na, em setembro de 2015, teve a sensatez de
cessitada de piedade, ajuda externa va das economias avançadas. Para a mercados globais. Podem alavan- identificar a industrialização africana como uma Washington: Banco Mundial, 2008.
e sermões sobre a governança po- continuar a ter sucesso, eles preci- car essas zonas para atrair a indústria grande prioridade mundial. Infelizmente, não Fox, L.; Sohnesen, T. P. “Household En-
lítica e econômica, o novo presi- sam continuar a subir na escala in- leve de economias mais avançadas, adotou nenhum plano de ação plausível para terprise in Sub-Saharan Africa: Why they
dente norte-americano pode acabar dustrial e tecnológica, e precisam como fizeram os países do Leste fazer com que ela acontecesse. matter for growth, jobs, and livelihoods”.
estabelecendo com o continente o se envolver mais em indústrias in- Asiático na década de 1960 e a 5. Esta cifra considera apenas os países com renda Washington: Banco Mundial, texto mi-
tipo de relações empresariais nor- tensivas em capital. Ao mesmo tem- China nos anos 1980. Atraindo per capita abaixo de 25 mil dólares internacio- meografado, 2012.
nais de 2005 e com participação dos produtos Jones, William O. “Economic Man in Africa”.
mais capazes de deslanchar o tão po, terão que liberar grande parte empresas e investimentos estran-
manufaturados inferior a 25% do PIB. Food Research Institute Studies, v. 1, n. 2,
esperado processo de transformação de seu espaço industrial de hoje pa- geiros, até os países africanos mais
6. É importante enfatizar algumas limitações da 1960, p. 107-134 (Stanford University).
econômica e social sustentável. ra países de baixa renda que possam pobres poderão aprimorar sua lo- abordagem utilizada. (i) As simulações basea- Kabou, Axelle. Et si l’Afrique refusait le dévelo-
É realmente necessário extrair ser mais competitivos nas indústrias gística de comércio, aumentar os ram-se nas tabelas de insumo-produto de 2013. ppement?. Paris: L’Harmattan, 1991.
lições da história econômica e da intensivas em mão de obra. A relo- conhecimentos e as habilidades Ou seja, presume-se que as relações insumo- Monga , Célestin. “Winning the Jackpot: Jobs
experiência de outros países em cação necessária de grandes partes dos empresários locais, conquis- -produto (transações intersetoriais) se mante- Dividends in a Multipolar World”, in Jo-
que as mudanças estruturais envol- de sua cadeia de fornecedores para tar a confiança de compradores nham inalteradas, mesmo depois de projetar que seph E. Stiglitz, Justin Yifu Lin e Ebrahim
a participação dos manufaturados no PIB suba
veram uma variedade de processos países com baixo custo de produção internacionais e, aos poucos, tor- Patel (orgs.), The Industrial Policy Revolution
para 15%. Levar em consideração as mudanças II – Africa in the 21st Century. Nova York:
industriais. A transformação da afetará o preço das mercadorias, os nar competitivas as empresas lo- nas relações intersetoriais acarretadas pela in- Palgrave MacMillan, 2013, p. 135-171.
economia mundial e a emergência padrões de emprego e os salários cais. Essa estratégia já vem sen- dustrialização afetaria os resultados, certamen-
de grandes países em desenvolvi- em toda parte (Spence, 2011). do usada com grande sucesso no te. Mas isso exigiria uma nova estimativa de Monga , Célestin. Niilismo e negritude: as artes
cada tabela de insumo-produto da África e dos de viver na África. São Paulo: Martins Fon-
mento abrem novas possibilidades Os países africanos se encontram Vietnã, no Camboja, em Bangla- tes, 2010.
para os retardatários. Os países afri- em boas condições de captar muitos desh, nas Ilhas Maurício, na Etió- PMD, o que ultrapassa o alcance deste exercí-
cio simples. (ii) Presume-se que a estrutura de Ngangbet, Michel. Peut-on encore sauver le
canos podem acelerar a transição dos empregos de baixa qualificação pia, em Ruanda e em outros países. consumo e investimento da África e dos PMD Tchad?. Paris: Karthala, 1984.
da mão de obra de empregos de liberados pelos países bem-sucedidos E tal estratégia não precisa limi- permaneça igual à de 2013. A única coisa alte-
baixa produtividade, na agricultu- de renda média, que vêm experi- tar-se à indústria manufatureira rada para estas projeções foi o total do dinheiro
ra e no setor informal, para em- mentando salários mais altos e per- tradicional, podendo também in- canalizado para o investimento e o consumo.
pregos de maior produtividade, na dendo competitividade em muitas cluir a agricultura, o setor de ser- Mas a forma de alocação desse dinheiro, em
termos do tipo de bens adquiridos (estrutura
agroindústria, na indústria fabril indústrias. Embora alguns desses viços e outras atividades. A Áfri-
setorial), a origem dos bens (doméstica ou es-
ou em serviços comercializáveis, e empregos tendam a desaparecer, por ca, portanto, acha-se em boas con- trangeira) e o país específico em que se origi-
alcançar o crescimento sustentável causa das inovações tecnológicas e dições de salvar a economia nam as importações foram mantidos constantes
e a redução da pobreza. Para isso, da automação, um número ainda global. Cabe aos líderes mundiais (tal como foi publicado no relatório EORA
contudo, é preciso que sejam con- muito grande deles terá que ser re- desenvolver o arcabouço de po- 2013). (iii) Não calculamos o efeito que a in-
cebidas e implementadas novas for- locado. Os países africanos podem líticas necessárias para fazer com dustrialização da África e dos PMD poderia
surtir em termos do aumento das exportações
mas, mais estratégicas, de políticas saltar diretamente para a economia que isso aconteça. n

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A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

A Ressurreição de Ali
Considerações intempestivas sobre a Síria
Este ensaio procura delinear o processo das revoltas árabes ocorridas
na Síria e sua inflexão quase imediata para uma guerra civil.
A argumentação baseia-se num fragmento do poema “Prólogo à história
dos reis de taifas”, de Adonis, no qual a figura de Ali constitui o modo
de o poeta contemplar a catástrofe na relação com a “traição” que
sobreveio como história do mundo árabe moderno. Para isso, o ensaio Rodrigo Karmy Bolton
propõe dois tempos: num primeiro momento, consideramos que o Baath Universidade do Chile.
sírio teria derivado para um processo de “etnoconfessionalismo” que
configurou sua eficácia política como o que Giorgio Agamben denomina
de “máquina governamental”; num segundo momento, propomos que,
tal como na Tunísia, as revoltas na Síria surgiram a partir de uma
imolação que, como tal, põe em dúvida o dispositivo sacrificial sobre “A tradição dos oprimidos nos ensina que o
o qual se sustenta a máquina governamental do Baath. ‘estado de exceção’ em que vivemos é a regra.

ART production/shutterstock.com
Temos que chegar a um conceito de história
que lhe seja correspondente.”
Wal t e r Be n j am i n

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


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A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

A Ressurreição de Ali
Considerações intempestivas sobre a Síria
Este ensaio procura delinear o processo das revoltas árabes ocorridas
na Síria e sua inflexão quase imediata para uma guerra civil.
A argumentação baseia-se num fragmento do poema “Prólogo à história
dos reis de taifas”, de Adonis, no qual a figura de Ali constitui o modo
de o poeta contemplar a catástrofe na relação com a “traição” que
sobreveio como história do mundo árabe moderno. Para isso, o ensaio Rodrigo Karmy Bolton
propõe dois tempos: num primeiro momento, consideramos que o Baath Universidade do Chile.
sírio teria derivado para um processo de “etnoconfessionalismo” que
configurou sua eficácia política como o que Giorgio Agamben denomina
de “máquina governamental”; num segundo momento, propomos que,
tal como na Tunísia, as revoltas na Síria surgiram a partir de uma
imolação que, como tal, põe em dúvida o dispositivo sacrificial sobre “A tradição dos oprimidos nos ensina que o
o qual se sustenta a máquina governamental do Baath. ‘estado de exceção’ em que vivemos é a regra.

ART production/shutterstock.com
Temos que chegar a um conceito de história
que lhe seja correspondente.”
Wal t e r Be n j am i n

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guerra na síria 78 79
Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

Ali de rosa, mas que, ao mesmo tem- parecia descortinar as condições Durante a Primeira Guerra,
po, foi inteiramente sepultado. Os para esconjurá-los. Adonis proje-
O fragmento ao lado faz parte do poema “Prólogo à “Vacilo, a cada instante te vejo, país meu, revolucionários de ontem vieram ta a imagem do passado na con- Inglaterra, França e
história dos reis de taifas”, escrito por Adonis entre o em uma imagem. a ser os tecnocratas de hoje, os re- tenda do presente: é como na an-
final da década de 1960 e o início da década de 1970. Agora te levo à minha frente, entre meu sangue volucionários que prometiam a tiga Al-Andalus, onde os reis de Rússia assinaram acordos
Dois elementos são fundamentais para começarmos a e minha morte: és rosa união acabaram convertidos nos taifas negociavam com o cruzado
análise: em primeiro lugar, não pode passar desper- ou sepultura? novos reis de taifas, disputando mes- cristão para conspirar contra ou- secretos sobre o futuro
cebido o termo “taifa”, que Adonis usa no título e quinhas cotas de poder numa região tras taifas; é a reprodução incon-
que constitui a coluna vertebral de todo o texto. Tai- Vejo-te em filas de crianças que arrastam devastada em termos geopolíticos dicionada das taifas como em- do Oriente Médio.
fa designa a divisão sectária entre os senhores da guer- suas entranhas, escutam e obedecem, e com o imaginário derrotado. blema da derrota de 1967. Mas a
ra da época andaluza, que Adonis recuperou para prostram-se diante das correntes, mudam Adonis vacila. Contempla a derrota não foi total. Nunca é. Eles contrariavam
pensar o presente. Em segundo lugar, o poema foi de pele a cada golpe do açoite… Rosa imagem de seu “país” e tenta agar- A situação sempre soa indecidí-
escrito por ocasião da naksa, o “desastre” de 1967 em ou sepultura? rar-se aos últimos restos de seu vel; torna-se impossível suprimi- a promessa de que os
que, na conhecida Guerra dos Seis Dias, Israel esma- “habitar”. O poema se desenvol- -la por completo. O frágil equi-
gou as forças egípcias, conquistando o Sinai, dominou Feriste-me de morte, mataste minhas canções, ve como o lugar desse “habitar”, líbrio geopolítico está sempre a árabes alcançariam a
territórios palestinos (ocupados até hoje) e estendeu és revolução ou matadouro? um poema que já não pode ser ponto de explodir. Esse “possí-
seu poder até as colinas de Golan, na Síria. Vacilo, a cada instante te vejo, país meu, amigo da história, mas que reco- vel”, o irredutível que, apesar da
independência nacional.
Com isso, o discurso nacional-popular árabe, em uma imagem… lhe o pranto da memória: as derrota, nos permite continuar
que, depois de anos de colonização franco-britânica, “crianças arrastam suas entra- a respirar em meio à ocupação, Ali é o lugar em que a histori-
havia emergido como uma força de cunho anti-im- Ali, com sua história assassinada sobre os ombros, nhas”; a imagem do futuro vol- chama-se Ali. cidade toca os ventos da eternida-
perialista, iniciou sua derrocada fatal. Na edição de vai perguntando à luz, de choça em choça: tou-se para o passado, a liberdade Mas Ali acontece como um de, em que o caráter finito de um
1988, Adonis eliminou uma nota que antecedia a transformou-se em escravidão, a nome duplo. Por um lado, é o homem (Adonis) assume a infini-
versão do poema de 1971 (um ano depois da morte ‘Disseram-me que tenho uma casa emancipação prometida acabou nome de Adonis (Ali Ahmad Said tude de uma força espiritual (Ali).
de Gamal Abdel Nasser): “Saúde a Gamal Abdel como minha casa em Jericó, brutalmente num novo acor- Esber), marca pessoal que assina- O poeta derrama palavras, perpas-
Nasser, primeiro dirigente árabe moderno que se que tenho irmãos no Cairo, rentamento, na consolidação da la a finitude de uma história; por sado pela lembrança dos que caí-
esforçou para acabar com a época dos reis de taifas que a fronteira de Nazaré geopolítica imperialista, liderada outro, Ali seria o nome do quar- ram, singulariza seus versos à luz
e inaugurar uma nova era.”2 A naksa e os aconteci- fica em Meca.’ regionalmente por Israel e mun- to califa do islamismo xiita, que do sangue repartido, compõe suas
mentos posteriores impeliram Adonis a apagar essa dialmente pelos Estados Unidos. foi assassinado depois de haver obras, marcado pela voz dos mor-
dedicatória em que saudava o presidente Nasser por Como foi o conhecimento transformado Mas sob a cartografia imperial tentado derrubar a oligarquia de tos. À luz disso, Ali se projeta co-
unificar os árabes. Israel impôs seu peso e as forças em grilhões? sobrevive a topologia onírica dos Meca. Esse evento deu origem ao mo o nome que leva consigo a ir-
árabes retrocederam, apanhadas de surpresa. E a distância, em fogo de assédio, em vítima? povos, como uma rugosidade que cisma muçulmano que foi o di- redutibilidade de uma justiça por
Todas as forças populares cujo movimento de- Por isso a história rechaça meu rosto? impede a plena coincidência do visor de águas entre xiitas e su- vir, de uma traição praticada por
sembocou na revolução dos “oficiais livres”, em 1952 Por isso não vejo nenhum sol árabe projeto cartográfico; a irreduti- nitas. Desse prisma, o poeta (Ado- seus pares, mas de uma sobrevivên-
– com enorme repercussão em nível regional, in- no horizonte?”1 bilidade onírica retira os escom- nis) e o califa derrotado (Ali), o cia “espiritual” que mantém viva
f luindo diretamente na revolução no Iraque (1958) bros, como uma vida que desafia, falante diante da catástrofe con- a intensidade martirológica e sua
e, posteriormente, na Síria (1963) –, foram trunca- vez após outra, a geopolítica da sumada e o mártir que desafiou a aposta na redenção. Ali é a imagem
das, quebradas pela história, arrancadas pela raiz em devastação do “habitar”. oligarquia de sua época, encon- na qual se condensa o presente, que
apenas seis dias.3 Embora tenha havido conf litos perante a imagem que exibe a derrocada de seu “Feriste-me de morte, matas- tram-se num mesmo lugar de o poeta vê no instante em que tu-
posteriores nos quais o Egito acabou por negociar a país. Se a Guerra dos Seis Dias implicou a naksa, é te minhas canções / és revolução enunciação, numa mesma voz. Ali do parece haver desmoronado. No
paz com Israel (em 1979, em Camp David, com a porque houve não apenas uma derrota das forças ou matadouro?”, escreve Adonis. não designa apenas a experiência pior dos mundos, quando apenas
intermediação de Jimmy Carter), o discurso nacio- árabes, mas também, antes de tudo, uma destruição A situação é indecidível. Revolu- pessoal do poeta, tampouco sim- algo como “o mundo” pode sobre-
nal-popular naufragou de maneira irreversível. As do sonho de emancipação articulado no discurso ção ou matadouro, emancipação plesmente a história religiosa do viver, surge Ali. A fortaleza dos
taifas, que haviam conseguido ser deixadas para trás, pan-árabe liderado pelo antigo presidente Gamal ou nova escravidão, a catástrofe mundo árabe e islâmico, mas o pon- vencidos, a imagem que identifica
persistiram. Israel roubou o sonho dos árabes, e Ado- Abdel Nasser. O poema nasce à luz de uma ruptura, dos novos tempos exibe a cumpli- to de cruzamento entre as duas, Ali como um resto por vir.
nis deu testemunho dessa naksa em seu poema. de um ponto de inf lexão na história, que destruiria cidade entre os antigos libertado- sua interseção: o eu e a história, “Com sua história assassinada
As palavras de Adonis têm vários níveis de sig- a “nova era” que parecia se abrir com o presidente res e os novos opressores; os reis o presente e o passado, enredados sobre os ombros.” Ali encontra,
nificado. Sobrevive a “vacilação” de um homem Nasser. Um sonho que seduziu e teve um perfume de taifas voltaram, quando tudo numa mesma escrita. porém, uma “casa” em meio à in-

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guerra na síria 78 79
Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

Ali de rosa, mas que, ao mesmo tem- parecia descortinar as condições Durante a Primeira Guerra,
po, foi inteiramente sepultado. Os para esconjurá-los. Adonis proje-
O fragmento ao lado faz parte do poema “Prólogo à “Vacilo, a cada instante te vejo, país meu, revolucionários de ontem vieram ta a imagem do passado na con- Inglaterra, França e
história dos reis de taifas”, escrito por Adonis entre o em uma imagem. a ser os tecnocratas de hoje, os re- tenda do presente: é como na an-
final da década de 1960 e o início da década de 1970. Agora te levo à minha frente, entre meu sangue volucionários que prometiam a tiga Al-Andalus, onde os reis de Rússia assinaram acordos
Dois elementos são fundamentais para começarmos a e minha morte: és rosa união acabaram convertidos nos taifas negociavam com o cruzado
análise: em primeiro lugar, não pode passar desper- ou sepultura? novos reis de taifas, disputando mes- cristão para conspirar contra ou- secretos sobre o futuro
cebido o termo “taifa”, que Adonis usa no título e quinhas cotas de poder numa região tras taifas; é a reprodução incon-
que constitui a coluna vertebral de todo o texto. Tai- Vejo-te em filas de crianças que arrastam devastada em termos geopolíticos dicionada das taifas como em- do Oriente Médio.
fa designa a divisão sectária entre os senhores da guer- suas entranhas, escutam e obedecem, e com o imaginário derrotado. blema da derrota de 1967. Mas a
ra da época andaluza, que Adonis recuperou para prostram-se diante das correntes, mudam Adonis vacila. Contempla a derrota não foi total. Nunca é. Eles contrariavam
pensar o presente. Em segundo lugar, o poema foi de pele a cada golpe do açoite… Rosa imagem de seu “país” e tenta agar- A situação sempre soa indecidí-
escrito por ocasião da naksa, o “desastre” de 1967 em ou sepultura? rar-se aos últimos restos de seu vel; torna-se impossível suprimi- a promessa de que os
que, na conhecida Guerra dos Seis Dias, Israel esma- “habitar”. O poema se desenvol- -la por completo. O frágil equi-
gou as forças egípcias, conquistando o Sinai, dominou Feriste-me de morte, mataste minhas canções, ve como o lugar desse “habitar”, líbrio geopolítico está sempre a árabes alcançariam a
territórios palestinos (ocupados até hoje) e estendeu és revolução ou matadouro? um poema que já não pode ser ponto de explodir. Esse “possí-
seu poder até as colinas de Golan, na Síria. Vacilo, a cada instante te vejo, país meu, amigo da história, mas que reco- vel”, o irredutível que, apesar da
independência nacional.
Com isso, o discurso nacional-popular árabe, em uma imagem… lhe o pranto da memória: as derrota, nos permite continuar
que, depois de anos de colonização franco-britânica, “crianças arrastam suas entra- a respirar em meio à ocupação, Ali é o lugar em que a histori-
havia emergido como uma força de cunho anti-im- Ali, com sua história assassinada sobre os ombros, nhas”; a imagem do futuro vol- chama-se Ali. cidade toca os ventos da eternida-
perialista, iniciou sua derrocada fatal. Na edição de vai perguntando à luz, de choça em choça: tou-se para o passado, a liberdade Mas Ali acontece como um de, em que o caráter finito de um
1988, Adonis eliminou uma nota que antecedia a transformou-se em escravidão, a nome duplo. Por um lado, é o homem (Adonis) assume a infini-
versão do poema de 1971 (um ano depois da morte ‘Disseram-me que tenho uma casa emancipação prometida acabou nome de Adonis (Ali Ahmad Said tude de uma força espiritual (Ali).
de Gamal Abdel Nasser): “Saúde a Gamal Abdel como minha casa em Jericó, brutalmente num novo acor- Esber), marca pessoal que assina- O poeta derrama palavras, perpas-
Nasser, primeiro dirigente árabe moderno que se que tenho irmãos no Cairo, rentamento, na consolidação da la a finitude de uma história; por sado pela lembrança dos que caí-
esforçou para acabar com a época dos reis de taifas que a fronteira de Nazaré geopolítica imperialista, liderada outro, Ali seria o nome do quar- ram, singulariza seus versos à luz
e inaugurar uma nova era.”2 A naksa e os aconteci- fica em Meca.’ regionalmente por Israel e mun- to califa do islamismo xiita, que do sangue repartido, compõe suas
mentos posteriores impeliram Adonis a apagar essa dialmente pelos Estados Unidos. foi assassinado depois de haver obras, marcado pela voz dos mor-
dedicatória em que saudava o presidente Nasser por Como foi o conhecimento transformado Mas sob a cartografia imperial tentado derrubar a oligarquia de tos. À luz disso, Ali se projeta co-
unificar os árabes. Israel impôs seu peso e as forças em grilhões? sobrevive a topologia onírica dos Meca. Esse evento deu origem ao mo o nome que leva consigo a ir-
árabes retrocederam, apanhadas de surpresa. E a distância, em fogo de assédio, em vítima? povos, como uma rugosidade que cisma muçulmano que foi o di- redutibilidade de uma justiça por
Todas as forças populares cujo movimento de- Por isso a história rechaça meu rosto? impede a plena coincidência do visor de águas entre xiitas e su- vir, de uma traição praticada por
sembocou na revolução dos “oficiais livres”, em 1952 Por isso não vejo nenhum sol árabe projeto cartográfico; a irreduti- nitas. Desse prisma, o poeta (Ado- seus pares, mas de uma sobrevivên-
– com enorme repercussão em nível regional, in- no horizonte?”1 bilidade onírica retira os escom- nis) e o califa derrotado (Ali), o cia “espiritual” que mantém viva
f luindo diretamente na revolução no Iraque (1958) bros, como uma vida que desafia, falante diante da catástrofe con- a intensidade martirológica e sua
e, posteriormente, na Síria (1963) –, foram trunca- vez após outra, a geopolítica da sumada e o mártir que desafiou a aposta na redenção. Ali é a imagem
das, quebradas pela história, arrancadas pela raiz em devastação do “habitar”. oligarquia de sua época, encon- na qual se condensa o presente, que
apenas seis dias.3 Embora tenha havido conf litos perante a imagem que exibe a derrocada de seu “Feriste-me de morte, matas- tram-se num mesmo lugar de o poeta vê no instante em que tu-
posteriores nos quais o Egito acabou por negociar a país. Se a Guerra dos Seis Dias implicou a naksa, é te minhas canções / és revolução enunciação, numa mesma voz. Ali do parece haver desmoronado. No
paz com Israel (em 1979, em Camp David, com a porque houve não apenas uma derrota das forças ou matadouro?”, escreve Adonis. não designa apenas a experiência pior dos mundos, quando apenas
intermediação de Jimmy Carter), o discurso nacio- árabes, mas também, antes de tudo, uma destruição A situação é indecidível. Revolu- pessoal do poeta, tampouco sim- algo como “o mundo” pode sobre-
nal-popular naufragou de maneira irreversível. As do sonho de emancipação articulado no discurso ção ou matadouro, emancipação plesmente a história religiosa do viver, surge Ali. A fortaleza dos
taifas, que haviam conseguido ser deixadas para trás, pan-árabe liderado pelo antigo presidente Gamal ou nova escravidão, a catástrofe mundo árabe e islâmico, mas o pon- vencidos, a imagem que identifica
persistiram. Israel roubou o sonho dos árabes, e Ado- Abdel Nasser. O poema nasce à luz de uma ruptura, dos novos tempos exibe a cumpli- to de cruzamento entre as duas, Ali como um resto por vir.
nis deu testemunho dessa naksa em seu poema. de um ponto de inf lexão na história, que destruiria cidade entre os antigos libertado- sua interseção: o eu e a história, “Com sua história assassinada
As palavras de Adonis têm vários níveis de sig- a “nova era” que parecia se abrir com o presidente res e os novos opressores; os reis o presente e o passado, enredados sobre os ombros.” Ali encontra,
nificado. Sobrevive a “vacilação” de um homem Nasser. Um sonho que seduziu e teve um perfume de taifas voltaram, quando tudo numa mesma escrita. porém, uma “casa” em meio à in-

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guerra na síria 80 81
Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

vasão (o termo árabe que Adonis tratados os crimes permanentes -se em 1920 (Conferência de San dência nacional. Assim, não é de décadas do século XX, quando as proclamada por Faiçal chocou-se
usa para “casa” é bayt, que a tra- dessa nação; traídos por seus liber- Remo) – e pelo Tratado de Lau- estranhar que, uma vez conheci- tropas de Abdalá e Faiçal – apoia- com os interesses franco-britâni-
dição identifica como um “habi- tadores, que, abrindo o discurso sanne (estipulado entre dezembro dos os acordos de Sykes-Picot (pu- dos pela Grã-Bretanha, como cos, que, aproveitando o esfacela-
tar”, mais do que como um “ter- nacional-popular, terminaram por de 1922 e julho de 1923). Neles, blicados num periódico pela nas- consta na carta de McMahon – mento do Império Turco-Otoma-
ritório” de recorte político-esta- sucumbir às premissas imperialis- as potências franco-britânicas im- cente União Soviética em 1917), iniciaram sua derrubada defini- no, esqueceram as promessas feitas
tal): Jericó, a cidade do Cairo, tas. “Traição” sofrida pelos árabes puseram seu domínio, estabelece- as ruas árabes tenham acendido tiva, augurando a independência aos árabes e consumaram sua “trai-
Nazaré, Meca, fronteiras domina- de hoje, assim como “traição” de ram divisões territoriais e repar- um novo ciclo de revoltas. A his- nacional árabe. Sykes-Picot con- ção”: sob a pressão franco-britâ-
das pela cartografia imperial, mas, ontem, instigada contra Ali ime- tiram o butim da exploração eco- tória vista pelos árabes – como sumou a divisão da “Grande Sí- nica, a Conferência de San Remo
em seu submundo, ainda “habita- diatamente após a morte do Pro- nômica. A figura colonial que Adonis indicaria em seu poema ria”, não só separando a Síria e o ratificou os acordos de Sykes-Picot
das” por Ali. É Ali que, em sua feta. Ao ser concebida sob o signo começou a funcionar foi a do – destacou esse episódio como Líbano, mas também deixando em 26 de maio de 1920, outor-
sabedoria espiritual, como uma da “traição”, a história revela-se a “mandato” configurador, “uma uma “traição” praticada pelas po- ambos os territórios sob a domi- gando “mandatos” para a Grã-
voz do passado, como um mora- dos reis de taifas. A nova subleva- espécie de administração fiduciá- tências ocidentais. nação francesa. -Bretanha, na Palestina, Transjor-
dor dos árabes, um guardião de ção dos reis de taifas “rechaça o ria dos territórios”.5 Advertido so- Os acordos de Sykes-Picot con- dânia e Iraque, e para a França, na
seu legado, pergunta “de choça rosto”, e nenhum “sol árabe” se bre a “traição” instigada pelas po- figurariam o nomos imperial. A Grã- Síria e no Líbano.
em choça”: “Como foi o conhe- deixa ver no horizonte. A catás- tências ocidentais, que, através do -Bretanha ficaria no comando da
Com o avanço do O sonho da Grande Síria ficou
cimento transformado em gri- trofe arrasou. A esperança em re- general McMahon – alto comis- Palestina, Jordânia e Iraque, en- nacionalismo árabe, relegado, mas não foi vencido: o
lhões?” Ali percorre como um lação a Nasser dissipou-se, Israel sário do Império Britânico – ha- quanto a França dividiria a “Gran- ingresso das tropas francesas em
espírito as cidades invadidas, talvez consumou sua invasão e, com isso, viam prometido aos árabes uma de Síria”, reconhecida sob a anti- a França jogou a território sírio deparou com gran-
como o célebre “anjo da história” o sonho árabe foi parcialmente independência nacional que con- ga tutela do Império Turco-Oto- de hostilidade da população. Sob
problematizado por Walter Ben- aniquilado. Os revolucionários fir- tradizia os planos traçados pelos mano no Líbano e na Síria: “O cartada das a figura do emir Faiçal, ela se agru-
jamin em sua referência ao quadro maram um pacto com o inimigo, acordos de Sykes-Picot, o espírito desmembramento da Grande Síria pou num grande movimento na-
de Paul Klee.4 Para Adonis, Ali é fingiram normalizar as relações e, de Ali ingressou nas ruas árabes, resultou principalmente da polí-
minorias, dividindo cionalista, do qual brotariam duas
a voz do passado que irrompe no com isso, sucumbiram à violência desencadeando um incontável con- tica colonial. O Acordo Sykes- a Síria em cartas intelectuais decisivas, não
presente, o “anjo da história” que que os abandonou. Ali é a força junto de revoltas cuja força desem- -Picot, de 1916, entre Grã-Breta- apenas para o nacionalismo sírio,
exibe o “progresso” da revolução que não lhes pertence, mas que os bocaria, anos depois, no custoso nha e França, separou dela o Lí- identidades tribais, mas para o nacionalismo árabe em
como um verdadeiro “matadou- perpassa. Como uma palavra que processo de independência e no bano, a Jordânia e a Palestina, e a geral. São as cartas de Michel Af laq
ro”, e se pergunta por que o “co- leva em si a autêntica mensagem conjunto de resistências ocorridas Declaração de Balfour, de 1917, confessionais e e Salah Bitar, que viriam a elabo-
nhecimento”, que prometia liber-
tar, teria terminado por acorrentar.
do Profeta destinado à insurreição
contra os poderes vigentes, Ali é
para se opor ao permanente assé-
dio imperialista.
desembocou na judaização oficial
desta última. Mais ainda, os refe-
étnicas, entre outras. rar um nacionalismo pluralista de
feição socialista, cujas ideias se cris-
A história sangra em seu espí- a imagem que mantém vivo o brio Em sua carta de 24 de outubro ridos ‘países’ passaram a ser gover- talizariam na constituição do par-
rito e está longe de encontrar ne- de uma luta, o súbito advento do de 1915 (a menos de um ano dos nados por potências coloniais dis- No interregno aberto entre a tido pan-árabe Baath [Ressurrei-
le algum consolo. Ali não se en- passado atravessando os contornos acordos de Sykes-Picot), o general tintas (e em conf lito). O Estado queda otomana e o domínio fran- ção], sob o lema “Unidade, liber-
quadra na catástrofe, mas a con- do presente, que, na fugacidade McMahon escreveu ao rei Hussein da Síria, tal como hoje o conhe- co-britânico, tropas árabes chega- dade, socialismo”. “A carta
templa, atônito. Como símbolo de sua vinda, reserva um porvir. (pai do rei Faiçal, que dirigiria a cemos, era, em certos aspectos, ram a Damasco em 1918, sob a fundacional do partido afirmava
daquele que foi assassinado por grande revolta contra a domina- um ‘Estado residual’ do que sobrou liderança do emir Faiçal, que ar- que os árabes compunham uma
“traição”, ele vem expressar os ára- ção otomana): “Estou autorizado, da Síria natural, depois que mui- ticulou uma espécie de governo única nação, a qual tinha uma mis-
bes do século XX: traídos pelas Baath em nome do governo da Grã-Bre- tas das áreas periféricas seguiram independente, ratif icado pelo são universal e eterna, voltada pa-
potências ocidentais, que, uma vez A catástrofe dos reis de taifas foi tanha, a dar as seguintes garantias seu próprio caminho.” 7 A “Gran- Congresso Nacional Sírio em 1919, ra promover o desenvolvimento e
derrubado o Império Turco-Oto- assinada pelos acordos de Sykes- em resposta à sua carta. (1) A Grã- de Síria” (Bilad Shams) tinha sido, que terminou por estatuir uma favorecer a concórdia entre os Es-
mano, não outorgaram a “inde- -Picot – elaborados em segredo -Bretanha está disposta a reconhe- originalmente, uma região domi- “lei orgânica que estabelecia o tados. O partido considerava fun-
pendência nacional” aos árabes pela Grã-Bretanha, França e Rús- cer e respaldar a independência nada pelo Império Turco-Otoma- princípio da soberania nacional e damentais as liberdades de expres-
que haviam lutado por ela, formu- sia, em 3 de janeiro de 1916 (sob dos árabes em todas as regiões dos no, que a dividia em quatro gran- um regime parlamentar federal são e de credo, e acentuava o valor
lando em segredo os famosos acor- o mesmo impulso que teria a De- limites requeridos pelo xerife de des províncias. Elas foram unifi- entre Síria, Palestina, Transjordâ- dos indivíduos. Seus objetivos ime-
dos de Sykes-Picot; traídos por claração de Balfour de 1917, que Meca.”6 Abdalá e Faiçal, filhos de cadas durante o governo de nia e Líbano”,8 tal como figurava diatos eram a luta contra o colo-
essas mesmas potências depois de proclamou o apoio da Grã-Breta- Hussein, viriam a liderar a revol- Ibrahim Pasha, em 1841, antes que originalmente na “Grande Síria” nialismo e a união de todos os po-
1948, com a criação do Estado de nha à criação de um “lar nacional ta contra a dominação otomana, a dominação turco-otomana vol- vislumbrada sob o Império Turco- vos árabes. O partido se procla-
Israel e a impunidade com que são judaico” na Palestina), ratificando- em troca da promessa de indepen- tasse a se impor, até as primeiras -Otomano. Contudo, a soberania mava socialista e considerava o

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


guerra na síria 80 81
Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

vasão (o termo árabe que Adonis tratados os crimes permanentes -se em 1920 (Conferência de San dência nacional. Assim, não é de décadas do século XX, quando as proclamada por Faiçal chocou-se
usa para “casa” é bayt, que a tra- dessa nação; traídos por seus liber- Remo) – e pelo Tratado de Lau- estranhar que, uma vez conheci- tropas de Abdalá e Faiçal – apoia- com os interesses franco-britâni-
dição identifica como um “habi- tadores, que, abrindo o discurso sanne (estipulado entre dezembro dos os acordos de Sykes-Picot (pu- dos pela Grã-Bretanha, como cos, que, aproveitando o esfacela-
tar”, mais do que como um “ter- nacional-popular, terminaram por de 1922 e julho de 1923). Neles, blicados num periódico pela nas- consta na carta de McMahon – mento do Império Turco-Otoma-
ritório” de recorte político-esta- sucumbir às premissas imperialis- as potências franco-britânicas im- cente União Soviética em 1917), iniciaram sua derrubada defini- no, esqueceram as promessas feitas
tal): Jericó, a cidade do Cairo, tas. “Traição” sofrida pelos árabes puseram seu domínio, estabelece- as ruas árabes tenham acendido tiva, augurando a independência aos árabes e consumaram sua “trai-
Nazaré, Meca, fronteiras domina- de hoje, assim como “traição” de ram divisões territoriais e repar- um novo ciclo de revoltas. A his- nacional árabe. Sykes-Picot con- ção”: sob a pressão franco-britâ-
das pela cartografia imperial, mas, ontem, instigada contra Ali ime- tiram o butim da exploração eco- tória vista pelos árabes – como sumou a divisão da “Grande Sí- nica, a Conferência de San Remo
em seu submundo, ainda “habita- diatamente após a morte do Pro- nômica. A figura colonial que Adonis indicaria em seu poema ria”, não só separando a Síria e o ratificou os acordos de Sykes-Picot
das” por Ali. É Ali que, em sua feta. Ao ser concebida sob o signo começou a funcionar foi a do – destacou esse episódio como Líbano, mas também deixando em 26 de maio de 1920, outor-
sabedoria espiritual, como uma da “traição”, a história revela-se a “mandato” configurador, “uma uma “traição” praticada pelas po- ambos os territórios sob a domi- gando “mandatos” para a Grã-
voz do passado, como um mora- dos reis de taifas. A nova subleva- espécie de administração fiduciá- tências ocidentais. nação francesa. -Bretanha, na Palestina, Transjor-
dor dos árabes, um guardião de ção dos reis de taifas “rechaça o ria dos territórios”.5 Advertido so- Os acordos de Sykes-Picot con- dânia e Iraque, e para a França, na
seu legado, pergunta “de choça rosto”, e nenhum “sol árabe” se bre a “traição” instigada pelas po- figurariam o nomos imperial. A Grã- Síria e no Líbano.
em choça”: “Como foi o conhe- deixa ver no horizonte. A catás- tências ocidentais, que, através do -Bretanha ficaria no comando da
Com o avanço do O sonho da Grande Síria ficou
cimento transformado em gri- trofe arrasou. A esperança em re- general McMahon – alto comis- Palestina, Jordânia e Iraque, en- nacionalismo árabe, relegado, mas não foi vencido: o
lhões?” Ali percorre como um lação a Nasser dissipou-se, Israel sário do Império Britânico – ha- quanto a França dividiria a “Gran- ingresso das tropas francesas em
espírito as cidades invadidas, talvez consumou sua invasão e, com isso, viam prometido aos árabes uma de Síria”, reconhecida sob a anti- a França jogou a território sírio deparou com gran-
como o célebre “anjo da história” o sonho árabe foi parcialmente independência nacional que con- ga tutela do Império Turco-Oto- de hostilidade da população. Sob
problematizado por Walter Ben- aniquilado. Os revolucionários fir- tradizia os planos traçados pelos mano no Líbano e na Síria: “O cartada das a figura do emir Faiçal, ela se agru-
jamin em sua referência ao quadro maram um pacto com o inimigo, acordos de Sykes-Picot, o espírito desmembramento da Grande Síria pou num grande movimento na-
de Paul Klee.4 Para Adonis, Ali é fingiram normalizar as relações e, de Ali ingressou nas ruas árabes, resultou principalmente da polí-
minorias, dividindo cionalista, do qual brotariam duas
a voz do passado que irrompe no com isso, sucumbiram à violência desencadeando um incontável con- tica colonial. O Acordo Sykes- a Síria em cartas intelectuais decisivas, não
presente, o “anjo da história” que que os abandonou. Ali é a força junto de revoltas cuja força desem- -Picot, de 1916, entre Grã-Breta- apenas para o nacionalismo sírio,
exibe o “progresso” da revolução que não lhes pertence, mas que os bocaria, anos depois, no custoso nha e França, separou dela o Lí- identidades tribais, mas para o nacionalismo árabe em
como um verdadeiro “matadou- perpassa. Como uma palavra que processo de independência e no bano, a Jordânia e a Palestina, e a geral. São as cartas de Michel Af laq
ro”, e se pergunta por que o “co- leva em si a autêntica mensagem conjunto de resistências ocorridas Declaração de Balfour, de 1917, confessionais e e Salah Bitar, que viriam a elabo-
nhecimento”, que prometia liber-
tar, teria terminado por acorrentar.
do Profeta destinado à insurreição
contra os poderes vigentes, Ali é
para se opor ao permanente assé-
dio imperialista.
desembocou na judaização oficial
desta última. Mais ainda, os refe-
étnicas, entre outras. rar um nacionalismo pluralista de
feição socialista, cujas ideias se cris-
A história sangra em seu espí- a imagem que mantém vivo o brio Em sua carta de 24 de outubro ridos ‘países’ passaram a ser gover- talizariam na constituição do par-
rito e está longe de encontrar ne- de uma luta, o súbito advento do de 1915 (a menos de um ano dos nados por potências coloniais dis- No interregno aberto entre a tido pan-árabe Baath [Ressurrei-
le algum consolo. Ali não se en- passado atravessando os contornos acordos de Sykes-Picot), o general tintas (e em conf lito). O Estado queda otomana e o domínio fran- ção], sob o lema “Unidade, liber-
quadra na catástrofe, mas a con- do presente, que, na fugacidade McMahon escreveu ao rei Hussein da Síria, tal como hoje o conhe- co-britânico, tropas árabes chega- dade, socialismo”. “A carta
templa, atônito. Como símbolo de sua vinda, reserva um porvir. (pai do rei Faiçal, que dirigiria a cemos, era, em certos aspectos, ram a Damasco em 1918, sob a fundacional do partido afirmava
daquele que foi assassinado por grande revolta contra a domina- um ‘Estado residual’ do que sobrou liderança do emir Faiçal, que ar- que os árabes compunham uma
“traição”, ele vem expressar os ára- ção otomana): “Estou autorizado, da Síria natural, depois que mui- ticulou uma espécie de governo única nação, a qual tinha uma mis-
bes do século XX: traídos pelas Baath em nome do governo da Grã-Bre- tas das áreas periféricas seguiram independente, ratif icado pelo são universal e eterna, voltada pa-
potências ocidentais, que, uma vez A catástrofe dos reis de taifas foi tanha, a dar as seguintes garantias seu próprio caminho.” 7 A “Gran- Congresso Nacional Sírio em 1919, ra promover o desenvolvimento e
derrubado o Império Turco-Oto- assinada pelos acordos de Sykes- em resposta à sua carta. (1) A Grã- de Síria” (Bilad Shams) tinha sido, que terminou por estatuir uma favorecer a concórdia entre os Es-
mano, não outorgaram a “inde- -Picot – elaborados em segredo -Bretanha está disposta a reconhe- originalmente, uma região domi- “lei orgânica que estabelecia o tados. O partido considerava fun-
pendência nacional” aos árabes pela Grã-Bretanha, França e Rús- cer e respaldar a independência nada pelo Império Turco-Otoma- princípio da soberania nacional e damentais as liberdades de expres-
que haviam lutado por ela, formu- sia, em 3 de janeiro de 1916 (sob dos árabes em todas as regiões dos no, que a dividia em quatro gran- um regime parlamentar federal são e de credo, e acentuava o valor
lando em segredo os famosos acor- o mesmo impulso que teria a De- limites requeridos pelo xerife de des províncias. Elas foram unifi- entre Síria, Palestina, Transjordâ- dos indivíduos. Seus objetivos ime-
dos de Sykes-Picot; traídos por claração de Balfour de 1917, que Meca.”6 Abdalá e Faiçal, filhos de cadas durante o governo de nia e Líbano”,8 tal como figurava diatos eram a luta contra o colo-
essas mesmas potências depois de proclamou o apoio da Grã-Breta- Hussein, viriam a liderar a revol- Ibrahim Pasha, em 1841, antes que originalmente na “Grande Síria” nialismo e a união de todos os po-
1948, com a criação do Estado de nha à criação de um “lar nacional ta contra a dominação otomana, a dominação turco-otomana vol- vislumbrada sob o Império Turco- vos árabes. O partido se procla-
Israel e a impunidade com que são judaico” na Palestina), ratificando- em troca da promessa de indepen- tasse a se impor, até as primeiras -Otomano. Contudo, a soberania mava socialista e considerava o

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Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

patrimônio econômico uma pro- essa breve e trágica história. Ela o novo imaginário árabe, de orien- diretamente uma luta com a União o ensino do islamismo ainda fosse
priedade da nação, apesar de de- mostra que foram os sírios que de- tação estatal-nacionalista, e que Soviética pelas zonas de inf luên- permitido nas escolas, a Irmanda-
fender a conservação da peque- fenderam a união nacional, não os viria a desencadear o processo que cia. Em 1957, Washington havia de Muçulmana síria e egípcia foi
na propriedade privada, tanto franceses, que optaram pela divi- levaria os países árabes a configu- mobilizado as tropas turcas para duramente reprimida, do mesmo
agrícola quanto empresarial.” 9 são sectária. rarem um espaço interestatal iné- as fronteiras sírias. O Kremlin modo que ocorreu com o Partido
O Baath proveio de um mito his- Sob a legitimidade do rei Fai- dito em sua história moderna. En- reagiu, acusando Washington de Comunista (sobretudo no Egito,
toricamente articulado para os ára- çal, os sírios reivindicaram a Gran- tretanto, como atesta o poema de tentar derrubar o regime sírio, en- onde ele passou para a clandesti-
bes. Foi como se ele atualizasse o de Síria em oposição ao colonia- Adonis, depois dos acontecimen- quanto Nasser ordenou o envio nidade).14 Três anos depois, tudo
mito da “Grande Síria” sob a for- lismo francês, o qual, no entanto, tos de 1967 tal união se veria pro- imediato de tropas à referida zona. explodiu: em 28 de setembro de
ma do mito da união socialista acabou por dividi-la para sempre. gressivamente truncada pela he- Essa situação impeliu os sírios a 1961, os sírios desencadearam um
árabe, orientada para sua luta con- O reconhecimento da indepen- gemonia israelense e pelo relevo consolidarem a RAU com o Egi- golpe de Estado que cortou suas
tra o colonialismo franco-britâni- dência nacional síria, em 1943, imperialista, que substituiria o ei- to, tendo em vista diminuírem sua relações com o Egito e, passados
co. A força do Baath consistiu em consolidada em 1946 sob a forma xo franco-britânico pelo norte- vulnerabilidade ante as potências mais dois anos, o Baath reivin-
ter dado uma saída política para as de uma monarquia parlamentaris- -americano-atlântico, assim inau- regionais (Turquia e Israel) e oci- dicou sua revolução, tornando-
lutas nacionalistas que impregna- ta, não demarcou seu território gurando uma nova época que de- dentais (Estados Unidos).12 -se o poder estatal sírio. Todavia,
vam o mundo árabe da época, im- com base na Grande Síria, mas rivaria para o desenvolvimento dos Todavia, a RAU estava com os entre o golpe sírio, a RAU e a
pugnando o novo colonialismo adotou os contornos fronteiriços antigos reis de taifas. dias contados. A tentativa nasse- tomada do poder por parte do

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franco-britânico. básicos estabelecidos pelos acordos rista de cooptar o espaço do poder, Baath, na Síria, houve um inter-
Diante da insurreição nacio- de Sykes-Picot, que fizeram da Às vezes, os grandes triunfos contrariando os sírios – impondo regno: os mais afetados pelas me-
nalista operada por múltiplas for- Síria um verdadeiro Estado “resi- são grandes fracassos. Em 1963, o suas diretrizes, omitindo qualquer didas econômicas de nacionaliza-
ças – entre elas o Baath – que rei- dual”. A Síria moderna foi, desde Baath chegou ao poder após uma referência a suas condições locais ção e reforma agrária impostas
vindicavam a união em face da o princípio, um país que, parado- série de tentativas baathistas de e devorando inteiramente o pró- pela RAU (grandes latifundiários
imposição imperialista, a França xalmente, havia perdido território aproximação com o Egito de Nas- prio Baath sírio, ao proibir a di- e a burguesia urbana) acolheram
dividiu o território em três regiões para ganhar território, distancian- ser, que foram marcadas pela pro- versidade de partidos políticos (in- de bom grado a ruptura síria; a
independentes, sob um critério do-se da unificação nacional ori- clamação, em 1º de fevereiro de clusive o Baath), para fazê-los con- Jordânia e a Arábia Saudita tam-
etno-confessional: “A França, ginal oferecida pela imagem da
Em fevereiro de 1958 foi 1958, da República Árabe Unida vergir para a famosa União bém a respaldaram.
diante do nacionalismo, jogou a Grande Síria. proclamada a República (RAU). Com sua capital no Cai- Nacional, que foi considerada a Em 1º de dezembro daquele
cartada das tribos e das minorias, O triunfo independentista sí- ro, a Síria passou a ser a província única entidade partidária da RAU mesmo ano, realizaram-se as elei-
fragmentando a Grande Síria em rio, por sua vez, foi um relativo Árabe Unida, com Egito do Norte, e o Egito, a província e que, em sua grande maioria, era ções. Nazim Al-Kudsi foi eleito
três territórios autônomos: o sírio fracasso, por não poder senão aco- do Sul. A conformação da RAU dirigida por egípcios –, essa ten- presidente, substituindo Nasser
– Damasco e Alepo – o druso e o modar-se às fronteiras nomísticas e Síria formando um só país. inseriu-se no novo horizonte tra- tativa gerou atritos internos e dis- (que fora designado presidente da
alaui. Ao discurso unificador e in- de Sykes-Picot. Talvez o sonho da A experiência durou até çado pela Guerra Fria e pela cria- sidências que, alguns anos mais RAU, à qual a Síria pertencia).
tegrador dirigido à população síria Grande Síria continuasse a fun- ção, em 1948, do Estado de Israel. tarde, viriam a aceitar o processo Al-Kudsi restabeleceu as relações
pelos nacionalistas, os franceses cionar miticamente nas futuras setembro de 1961. Depois, Isso introduziu dois elementos es- de ruptura. A RAU resolveu im- com Washington e o Banco Mun-
responderam com uma hábil po- pretensões baathistas pela união senciais: por um lado, a aposta por o controle estatal da economia, dial, que concederam créditos im-
lítica de divisão do país em nume- árabe, cujo auge e a queda atra- o partido Baath tornou-se estratégica, por parte da nova nacionalizando as empresas e ex- portantes em apoio à economía
rosas entidades territoriais, basea-
das na pertença étnica, confessio-
vessariam toda a época pós-colo-
nial: “A união árabe”, escreveu
o poder estatal sírio. entidade árabe, de buscar apoio
na União Soviética; por outro, a
propiando as “grandes proprieda-
des agrícolas”.13 Por fim, Nasser
síria e fomentaram a privatização
de empresas nacionalizadas duran-
nal e tribal.”10 Contrariando o Af laq, “é um ideal e um modelo. preocupação de Washington e Tel designou Abdel Hakim para o car- te a curta duração da RAU, fazen-
discurso orientalista, tão frequen- Não é o resultado nem a conse- Aviv, porque a RAU constituiria go de “procônsul” na Síria, encar- do retroceder a reforma agrária e
te nas análises da região que ten- quência da luta que dirige o povo uma plataforma a mais da expan- regando-o de reformar o Exército abrindo caminho para a plurali-
tam explicar o fracasso do Estado árabe para conquistar a liberdade são do comunismo e das zonas de sírio e de estabelecer um rígido dade partidária, com a legalização
árabe moderno com base na cli- e alcançar o socialismo; é a ideia inf luência soviética no Oriente controle policial, que se dissemi- dos partidos políticos que tinham
vagem “culturalista”, a qual enfa- nova que deveria acompanhar e Médio. Para Israel, isso implicava nou por todas as cidades. Além sido proibidos durante a RAU.
tiza a suposta e milenar configu- dirigir a luta.”11 É crucial o fato a possibilidade de a Síria desafiar disso, houve mudanças legais de- Mas as lutas não cessaram: os mi-
ração sectária do mundo árabe e de se conceber a união árabe co- a hegemonia militar israelense. Pa- cisivas: foram definitivamente abo- litares baathistas não deixariam
islâmico, seria preciso recorrer a mo a “ideia nova” que articulou ra os Estados Unidos, implicava lidas as cortes islâmicas e, embora impune o novo governo. Em seu

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guerra na síria 82 83
Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

patrimônio econômico uma pro- essa breve e trágica história. Ela o novo imaginário árabe, de orien- diretamente uma luta com a União o ensino do islamismo ainda fosse
priedade da nação, apesar de de- mostra que foram os sírios que de- tação estatal-nacionalista, e que Soviética pelas zonas de inf luên- permitido nas escolas, a Irmanda-
fender a conservação da peque- fenderam a união nacional, não os viria a desencadear o processo que cia. Em 1957, Washington havia de Muçulmana síria e egípcia foi
na propriedade privada, tanto franceses, que optaram pela divi- levaria os países árabes a configu- mobilizado as tropas turcas para duramente reprimida, do mesmo
agrícola quanto empresarial.” 9 são sectária. rarem um espaço interestatal iné- as fronteiras sírias. O Kremlin modo que ocorreu com o Partido
O Baath proveio de um mito his- Sob a legitimidade do rei Fai- dito em sua história moderna. En- reagiu, acusando Washington de Comunista (sobretudo no Egito,
toricamente articulado para os ára- çal, os sírios reivindicaram a Gran- tretanto, como atesta o poema de tentar derrubar o regime sírio, en- onde ele passou para a clandesti-
bes. Foi como se ele atualizasse o de Síria em oposição ao colonia- Adonis, depois dos acontecimen- quanto Nasser ordenou o envio nidade).14 Três anos depois, tudo
mito da “Grande Síria” sob a for- lismo francês, o qual, no entanto, tos de 1967 tal união se veria pro- imediato de tropas à referida zona. explodiu: em 28 de setembro de
ma do mito da união socialista acabou por dividi-la para sempre. gressivamente truncada pela he- Essa situação impeliu os sírios a 1961, os sírios desencadearam um
árabe, orientada para sua luta con- O reconhecimento da indepen- gemonia israelense e pelo relevo consolidarem a RAU com o Egi- golpe de Estado que cortou suas
tra o colonialismo franco-britâni- dência nacional síria, em 1943, imperialista, que substituiria o ei- to, tendo em vista diminuírem sua relações com o Egito e, passados
co. A força do Baath consistiu em consolidada em 1946 sob a forma xo franco-britânico pelo norte- vulnerabilidade ante as potências mais dois anos, o Baath reivin-
ter dado uma saída política para as de uma monarquia parlamentaris- -americano-atlântico, assim inau- regionais (Turquia e Israel) e oci- dicou sua revolução, tornando-
lutas nacionalistas que impregna- ta, não demarcou seu território gurando uma nova época que de- dentais (Estados Unidos).12 -se o poder estatal sírio. Todavia,
vam o mundo árabe da época, im- com base na Grande Síria, mas rivaria para o desenvolvimento dos Todavia, a RAU estava com os entre o golpe sírio, a RAU e a
pugnando o novo colonialismo adotou os contornos fronteiriços antigos reis de taifas. dias contados. A tentativa nasse- tomada do poder por parte do

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franco-britânico. básicos estabelecidos pelos acordos rista de cooptar o espaço do poder, Baath, na Síria, houve um inter-
Diante da insurreição nacio- de Sykes-Picot, que fizeram da Às vezes, os grandes triunfos contrariando os sírios – impondo regno: os mais afetados pelas me-
nalista operada por múltiplas for- Síria um verdadeiro Estado “resi- são grandes fracassos. Em 1963, o suas diretrizes, omitindo qualquer didas econômicas de nacionaliza-
ças – entre elas o Baath – que rei- dual”. A Síria moderna foi, desde Baath chegou ao poder após uma referência a suas condições locais ção e reforma agrária impostas
vindicavam a união em face da o princípio, um país que, parado- série de tentativas baathistas de e devorando inteiramente o pró- pela RAU (grandes latifundiários
imposição imperialista, a França xalmente, havia perdido território aproximação com o Egito de Nas- prio Baath sírio, ao proibir a di- e a burguesia urbana) acolheram
dividiu o território em três regiões para ganhar território, distancian- ser, que foram marcadas pela pro- versidade de partidos políticos (in- de bom grado a ruptura síria; a
independentes, sob um critério do-se da unificação nacional ori- clamação, em 1º de fevereiro de clusive o Baath), para fazê-los con- Jordânia e a Arábia Saudita tam-
etno-confessional: “A França, ginal oferecida pela imagem da
Em fevereiro de 1958 foi 1958, da República Árabe Unida vergir para a famosa União bém a respaldaram.
diante do nacionalismo, jogou a Grande Síria. proclamada a República (RAU). Com sua capital no Cai- Nacional, que foi considerada a Em 1º de dezembro daquele
cartada das tribos e das minorias, O triunfo independentista sí- ro, a Síria passou a ser a província única entidade partidária da RAU mesmo ano, realizaram-se as elei-
fragmentando a Grande Síria em rio, por sua vez, foi um relativo Árabe Unida, com Egito do Norte, e o Egito, a província e que, em sua grande maioria, era ções. Nazim Al-Kudsi foi eleito
três territórios autônomos: o sírio fracasso, por não poder senão aco- do Sul. A conformação da RAU dirigida por egípcios –, essa ten- presidente, substituindo Nasser
– Damasco e Alepo – o druso e o modar-se às fronteiras nomísticas e Síria formando um só país. inseriu-se no novo horizonte tra- tativa gerou atritos internos e dis- (que fora designado presidente da
alaui. Ao discurso unificador e in- de Sykes-Picot. Talvez o sonho da A experiência durou até çado pela Guerra Fria e pela cria- sidências que, alguns anos mais RAU, à qual a Síria pertencia).
tegrador dirigido à população síria Grande Síria continuasse a fun- ção, em 1948, do Estado de Israel. tarde, viriam a aceitar o processo Al-Kudsi restabeleceu as relações
pelos nacionalistas, os franceses cionar miticamente nas futuras setembro de 1961. Depois, Isso introduziu dois elementos es- de ruptura. A RAU resolveu im- com Washington e o Banco Mun-
responderam com uma hábil po- pretensões baathistas pela união senciais: por um lado, a aposta por o controle estatal da economia, dial, que concederam créditos im-
lítica de divisão do país em nume- árabe, cujo auge e a queda atra- o partido Baath tornou-se estratégica, por parte da nova nacionalizando as empresas e ex- portantes em apoio à economía
rosas entidades territoriais, basea-
das na pertença étnica, confessio-
vessariam toda a época pós-colo-
nial: “A união árabe”, escreveu
o poder estatal sírio. entidade árabe, de buscar apoio
na União Soviética; por outro, a
propiando as “grandes proprieda-
des agrícolas”.13 Por fim, Nasser
síria e fomentaram a privatização
de empresas nacionalizadas duran-
nal e tribal.”10 Contrariando o Af laq, “é um ideal e um modelo. preocupação de Washington e Tel designou Abdel Hakim para o car- te a curta duração da RAU, fazen-
discurso orientalista, tão frequen- Não é o resultado nem a conse- Aviv, porque a RAU constituiria go de “procônsul” na Síria, encar- do retroceder a reforma agrária e
te nas análises da região que ten- quência da luta que dirige o povo uma plataforma a mais da expan- regando-o de reformar o Exército abrindo caminho para a plurali-
tam explicar o fracasso do Estado árabe para conquistar a liberdade são do comunismo e das zonas de sírio e de estabelecer um rígido dade partidária, com a legalização
árabe moderno com base na cli- e alcançar o socialismo; é a ideia inf luência soviética no Oriente controle policial, que se dissemi- dos partidos políticos que tinham
vagem “culturalista”, a qual enfa- nova que deveria acompanhar e Médio. Para Israel, isso implicava nou por todas as cidades. Além sido proibidos durante a RAU.
tiza a suposta e milenar configu- dirigir a luta.”11 É crucial o fato a possibilidade de a Síria desafiar disso, houve mudanças legais de- Mas as lutas não cessaram: os mi-
ração sectária do mundo árabe e de se conceber a união árabe co- a hegemonia militar israelense. Pa- cisivas: foram definitivamente abo- litares baathistas não deixariam
islâmico, seria preciso recorrer a mo a “ideia nova” que articulou ra os Estados Unidos, implicava lidas as cortes islâmicas e, embora impune o novo governo. Em seu

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guerra na síria 84 85
Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

Comitê Militar do partido Baath, a necessidade de impor a dita re- Baath, que poderia caracterizar-se permitiu institucionalizar o golpe de al- Guerra Fria. Em terceiro lugar, houve uma
que operava na clandestinidade, volução “de cima para baixo”, por por dois assuntos fundamentais,
A Guerra dos Seis -Assad, colocando-o como presidente. derrota ideológico-intelectual do mundo
prepararam um novo ataque. Du- meio de um golpe militar).15 Jo- um interno e outro externo: em Dias, em 1967, foi Entrementes, o ano de 1967 desenca- árabe, que teve duas consequências: a pri-
rante esse processo, tudo ficou ten- gou-se aí a refundação do Baath, primeiro lugar, o progressivo pre- deou a Guerra dos Seis Dias, que traria meira foi o progressivo esvaziamento do
so. Consolidaram-se duas tendên- que deixou para trás a concepção domínio de minorias religiosas, um acontecimento enormes consequências para a geopolítica projeto pan-árabe promovido nos anos an-
cias em conf lito, que convergiram de seus fundadores (Af laq e Bitar como a alaui (à qual pertencia Ha- da região e para a deriva do Baath em nível teriores, desde o discurso egípcio e seu en-
no Congresso Regional do Baath, seriam exilados no Iraque) e se fez al-Assad) e a drusa, sobre o
decisivo para o regional. Ela seria a naksa, cuja força de clave na RAU; a segunda foi o início de
realizado em 1966: por um lado, desviou, decididamente, para uma partido, reestruturando profun- Oriente Médio. acontecimento ainda sustenta a visão do uma presença maior, na política árabe, do
os partidários do socialismo libe- concepção marxista de inspiração damente a liderança síria e seu sis- presente: “O ano de 1967”, disse Campa- discurso islamista-populista. Em quarto lu-
ral (Af laq e Bitar) e, por outro, os soviética (stalinista). tema de alianças; em segundo lu- Os árabes ficaram nini, “deve ser considerado uma linha di- gar, a derrota congelou e atomizou ainda
do socialismo puro e simples, que Em 23 de fevereiro de 1966, gar, a acentuação do discurso mar- visória fundamental na história do Orien- mais a colonização israelense na Palestina,
acreditavam numa democracia po- produziu-se um novo golpe de xista do tipo soviético, investindo
prostrados por te Médio.”18 O impacto de 1967 deve ser pois, implodido o legado pan-árabe, a ques-
pular chefiada pelos trabalhadores, Estado, liderado por Salah Jadid e a liderança síria de uma legitimi- uma derrota de medido pela derrocada progressiva do dis- tão palestina deixou de fazer parte da an-
tendência liderada por Nureddin um jovem oficial da aviação cha- dade que a tornava depositária das curso pan-arabista. O projeto do Baath co- tiga “guerra árabe-israelense” (horizonte
al-Atassi e outros militares, mas mado Hafez al-Assad. Ele catali- lutas anti-imperialistas do Tercei- grandes proporções, meçou a se “nacionalizar” e o Egito viu-se maior em que se inscrevia o conjunto das
ideologicamente concebida por sou e fez triunfar a ala “esquerda” ro Mundo.16 cada vez mais forçado a se submeter aos di- lutas pela libertação nacional) e se atomi-
Yasin al-Hafez. Como bem subli- do Baath, exilando Af laq e Bitar Mas o golpe de 1966 não con- inesperada. tames imperiais dos Estados Unidos, pro- zou no sintagma atual, que lhe dá o nome
nhou Álvarez, é crucial notar que
o projeto neobaathista não tinha
e convertendo Atassi em presiden-
te (Atassi era o único conhecido
seguiu corrigir o curso da econo-
mia nem institucionalizar a nova
O discurso cesso que culminaria em 1979, quando os
egípcios firmaram a paz com Israel nos
de conf lito “palestino-israelense”. Essa mu-
dança de nome implica uma guinada geo-
apoio social: gozava exclusiva- pelo povo, dentre os novos diri- reestruturação da elite. Assim, o pan-arabista acordos de Camp David. Seu Exército na- política decisiva, orientada para o abando-
mente de apoio militar (de modo gentes e militares). Como bem processo parecia orientar-se cada cionalista acabou cooptado pelas forças nor- no progressivo do tema palestino por par-
coerente com a visão de alguns de identificou Campanini, assistimos vez mais para a necessidade de uma arrefeceu. te-americanas, até os dias atuais: “A sus- te dos países árabes, em nível regional.
seus intelectuais, que sustentavam aí a uma “terceira fase” da vida do refundação do Estado sírio, que pensão das hostilidades no dia 10 de junho Voltando à situação síria, como efeito
daria início a um novo périplo. teve como resultado a aniquilação dos ára- da ruptura com a RAU e das graves con-
Em 16 de novembro de 1970, Ha- bes, prostrados por uma derrota político- sequências da Guerra dos Seis Dias, o triun-
fez al-Assad deu um novo golpe -militar de proporções inesperadas, e dei- fo das forças baathistas implicou, por sua
de Estado e estabeleceu reformas xou Israel dominando uma extensão notá- vez, sua maior oligarquização: a reestrutu-
econômicas decisivas, que permi- vel de terras árabes, multiplicando seu ração econômica e política levada a cabo
tiram a “emergência de uma nova próprio território.”19 A Guerra dos Seis Dias de 1963 a 1970 terminou por “tribalizar”
burguesia comercial, que, situada foi o acontecimento que marcou a região, o Baath, transformando o antigo partido
entre o comércio de Estado e a até hoje, por uma série de consequências. pan-árabe em um novo partido nacionalis-
distribuição, converteu-se em in- Em primeiro lugar, a progressiva derrocada ta.20 O rompimento com o Egito em 1961
termediária entre as companhias do nasserismo e do pan-arabismo em geral, e o processo que se desencadeou a posterio-
estrangeiras e as empresas estatais”.17 com este encerrando-se cada vez mais nas ri foram cruciais para a mutação interna do
Em termos políticos, a reestrutu- fronteiras nacionais e, depois, etno-confes- Baath sírio e sua progressiva atomização.
ração implicou a criação do Par- sionais do respectivo Baath, o que substi- Tanto Campanini (na identificação do con-
lamento em 1971, eleito pela pri- tuiu a hegemonia egípcia sobre o mundo fessionalismo da terceira etapa do Baath sí-
meira vez em 1973, a criação da árabe pela ascendente hegemonia saudita. rio) quanto Ayubi (na caracterização da
Frente Nacional Progressista, uma Em segundo lugar, a consolidação da alian- progressiva “tribalização” do regime) e Mar-
coalizão na qual o partido Baath ça Estados Unidos-Israel, sobretudo a in- tín Muñoz (na indicação sobre o modo co-
convergiu com um conjunto de f luência da potência norte-americana como mo o pan-arabismo acabou dominado por
forças políticas diversas (o Partido ator político decisivo na geopolítica do uma “hegemonia confessional” alaui) con-
Hadrian/shutterstock.com

Comunista Sírio, a União Socia- Oriente Médio, o que, em parte, promo- cordam em caracterizar o processo como
lista Árabe e outros), e a promul- veu um retrocesso contínuo das posições o que denominaremos “etno-confessiona-
gação da Constituição de 1973, soviéticas, e o que, por conseguinte, pelo lismo baathista”, que define inteiramente
que, em conjunto com a celebra- menos nessa região, poderíamos dizer que o conjunto da nova elite surgida desses pro-
ção de um “referendo-plebiscito”, converteu essa guerra no início do fim da cessos que refundaram o Estado sírio e que,

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Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

Comitê Militar do partido Baath, a necessidade de impor a dita re- Baath, que poderia caracterizar-se permitiu institucionalizar o golpe de al- Guerra Fria. Em terceiro lugar, houve uma
que operava na clandestinidade, volução “de cima para baixo”, por por dois assuntos fundamentais,
A Guerra dos Seis -Assad, colocando-o como presidente. derrota ideológico-intelectual do mundo
prepararam um novo ataque. Du- meio de um golpe militar).15 Jo- um interno e outro externo: em Dias, em 1967, foi Entrementes, o ano de 1967 desenca- árabe, que teve duas consequências: a pri-
rante esse processo, tudo ficou ten- gou-se aí a refundação do Baath, primeiro lugar, o progressivo pre- deou a Guerra dos Seis Dias, que traria meira foi o progressivo esvaziamento do
so. Consolidaram-se duas tendên- que deixou para trás a concepção domínio de minorias religiosas, um acontecimento enormes consequências para a geopolítica projeto pan-árabe promovido nos anos an-
cias em conf lito, que convergiram de seus fundadores (Af laq e Bitar como a alaui (à qual pertencia Ha- da região e para a deriva do Baath em nível teriores, desde o discurso egípcio e seu en-
no Congresso Regional do Baath, seriam exilados no Iraque) e se fez al-Assad) e a drusa, sobre o
decisivo para o regional. Ela seria a naksa, cuja força de clave na RAU; a segunda foi o início de
realizado em 1966: por um lado, desviou, decididamente, para uma partido, reestruturando profun- Oriente Médio. acontecimento ainda sustenta a visão do uma presença maior, na política árabe, do
os partidários do socialismo libe- concepção marxista de inspiração damente a liderança síria e seu sis- presente: “O ano de 1967”, disse Campa- discurso islamista-populista. Em quarto lu-
ral (Af laq e Bitar) e, por outro, os soviética (stalinista). tema de alianças; em segundo lu- Os árabes ficaram nini, “deve ser considerado uma linha di- gar, a derrota congelou e atomizou ainda
do socialismo puro e simples, que Em 23 de fevereiro de 1966, gar, a acentuação do discurso mar- visória fundamental na história do Orien- mais a colonização israelense na Palestina,
acreditavam numa democracia po- produziu-se um novo golpe de xista do tipo soviético, investindo
prostrados por te Médio.”18 O impacto de 1967 deve ser pois, implodido o legado pan-árabe, a ques-
pular chefiada pelos trabalhadores, Estado, liderado por Salah Jadid e a liderança síria de uma legitimi- uma derrota de medido pela derrocada progressiva do dis- tão palestina deixou de fazer parte da an-
tendência liderada por Nureddin um jovem oficial da aviação cha- dade que a tornava depositária das curso pan-arabista. O projeto do Baath co- tiga “guerra árabe-israelense” (horizonte
al-Atassi e outros militares, mas mado Hafez al-Assad. Ele catali- lutas anti-imperialistas do Tercei- grandes proporções, meçou a se “nacionalizar” e o Egito viu-se maior em que se inscrevia o conjunto das
ideologicamente concebida por sou e fez triunfar a ala “esquerda” ro Mundo.16 cada vez mais forçado a se submeter aos di- lutas pela libertação nacional) e se atomi-
Yasin al-Hafez. Como bem subli- do Baath, exilando Af laq e Bitar Mas o golpe de 1966 não con- inesperada. tames imperiais dos Estados Unidos, pro- zou no sintagma atual, que lhe dá o nome
nhou Álvarez, é crucial notar que
o projeto neobaathista não tinha
e convertendo Atassi em presiden-
te (Atassi era o único conhecido
seguiu corrigir o curso da econo-
mia nem institucionalizar a nova
O discurso cesso que culminaria em 1979, quando os
egípcios firmaram a paz com Israel nos
de conf lito “palestino-israelense”. Essa mu-
dança de nome implica uma guinada geo-
apoio social: gozava exclusiva- pelo povo, dentre os novos diri- reestruturação da elite. Assim, o pan-arabista acordos de Camp David. Seu Exército na- política decisiva, orientada para o abando-
mente de apoio militar (de modo gentes e militares). Como bem processo parecia orientar-se cada cionalista acabou cooptado pelas forças nor- no progressivo do tema palestino por par-
coerente com a visão de alguns de identificou Campanini, assistimos vez mais para a necessidade de uma arrefeceu. te-americanas, até os dias atuais: “A sus- te dos países árabes, em nível regional.
seus intelectuais, que sustentavam aí a uma “terceira fase” da vida do refundação do Estado sírio, que pensão das hostilidades no dia 10 de junho Voltando à situação síria, como efeito
daria início a um novo périplo. teve como resultado a aniquilação dos ára- da ruptura com a RAU e das graves con-
Em 16 de novembro de 1970, Ha- bes, prostrados por uma derrota político- sequências da Guerra dos Seis Dias, o triun-
fez al-Assad deu um novo golpe -militar de proporções inesperadas, e dei- fo das forças baathistas implicou, por sua
de Estado e estabeleceu reformas xou Israel dominando uma extensão notá- vez, sua maior oligarquização: a reestrutu-
econômicas decisivas, que permi- vel de terras árabes, multiplicando seu ração econômica e política levada a cabo
tiram a “emergência de uma nova próprio território.”19 A Guerra dos Seis Dias de 1963 a 1970 terminou por “tribalizar”
burguesia comercial, que, situada foi o acontecimento que marcou a região, o Baath, transformando o antigo partido
entre o comércio de Estado e a até hoje, por uma série de consequências. pan-árabe em um novo partido nacionalis-
distribuição, converteu-se em in- Em primeiro lugar, a progressiva derrocada ta.20 O rompimento com o Egito em 1961
termediária entre as companhias do nasserismo e do pan-arabismo em geral, e o processo que se desencadeou a posterio-
estrangeiras e as empresas estatais”.17 com este encerrando-se cada vez mais nas ri foram cruciais para a mutação interna do
Em termos políticos, a reestrutu- fronteiras nacionais e, depois, etno-confes- Baath sírio e sua progressiva atomização.
ração implicou a criação do Par- sionais do respectivo Baath, o que substi- Tanto Campanini (na identificação do con-
lamento em 1971, eleito pela pri- tuiu a hegemonia egípcia sobre o mundo fessionalismo da terceira etapa do Baath sí-
meira vez em 1973, a criação da árabe pela ascendente hegemonia saudita. rio) quanto Ayubi (na caracterização da
Frente Nacional Progressista, uma Em segundo lugar, a consolidação da alian- progressiva “tribalização” do regime) e Mar-
coalizão na qual o partido Baath ça Estados Unidos-Israel, sobretudo a in- tín Muñoz (na indicação sobre o modo co-
convergiu com um conjunto de f luência da potência norte-americana como mo o pan-arabismo acabou dominado por
forças políticas diversas (o Partido ator político decisivo na geopolítica do uma “hegemonia confessional” alaui) con-
Hadrian/shutterstock.com

Comunista Sírio, a União Socia- Oriente Médio, o que, em parte, promo- cordam em caracterizar o processo como
lista Árabe e outros), e a promul- veu um retrocesso contínuo das posições o que denominaremos “etno-confessiona-
gação da Constituição de 1973, soviéticas, e o que, por conseguinte, pelo lismo baathista”, que define inteiramente
que, em conjunto com a celebra- menos nessa região, poderíamos dizer que o conjunto da nova elite surgida desses pro-
ção de um “referendo-plebiscito”, converteu essa guerra no início do fim da cessos que refundaram o Estado sírio e que,

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Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

de certo modo, mantêm-se vigen- rizações, permissões e licenças do mandade Muçulmana, que cons- interesses é reforçada por enlaces volução proletária deu lugar a uma Reagan, que considerava a Síria
tes até hoje.21 Estado. A burguesia burocrática titui uma de suas expressões polí- matrimoniais e projetos empresa- nova forma de servidão, passando uma promotora do terrorismo in-
É crucial, entretanto, a obser- não pode favorecer um programa ticas num contexto ditatorial). riais conjuntos, entabulados pelas de uma revolução que prometia ternacional, Bush interpretou que
vação elaborada por Ayubi para de privatização plena, que a des- Curioso destino o que se deu novas gerações dos Assad e pelo liberdade a um processo de oligar- Damasco era uma peça central no
elucidar esse processo, sobretudo pojaria de suas vantagens. […] A com o Baath sírio: primeiro hou- resto das famílias políticas e mili- quização que acabou por consoli- processo de paz e propôs um novo
atentando a reforma econômica privatização plena, ao contrário, ve a tentativa de restaurar a Gran- tares poderosas, bem como pelos dar um regime ditatorial. Um par- ‘marco de ação e cooperação’. Em
em curso desde a década de 1980 comporta o risco político de de- de Síria, que obteve a indepen- herdeiros de algumas das fortunas tido pan-árabe, que prometia a 23 de novembro de 1990, Geor-
(a infitah). Houve um complexo volver a preponderância anterior, dência, como Estado “residual”, mais relevantes do país. Um bom união nacional em nível regional, ge Bush e Hafez al-Assad encon-
processo de liberalização. Ayubi atualmente restringida, à burgue- em 1946-1949; depois, a institu- exemplo é o do próprio Bashar, converteu-se num reduto etno- traram-se em Genebra.”26 Com
explica de que modo, desde a dé- sía comercial sunita, com sua ex- cionalização da RAU junto do casado em 2001 com Asma al- -confessional de uma burguesia esse novo marco, a Síria reforçou
cada de 1980, as políticas de libe- tensão militar subsidiária da Ir- Egito, em 1961, e o desencadea- -Akhras, uma especialista em ad- dividida e, ao mesmo tempo, ar- seu controle sobre o Líbano, com
ralização econômica surgiram do mandade Muçulmana, perspecti- mento de lutas internas que aca- ministração bancária pertencente ticulada entre uma facção estatal respaldo dos Estados Unidos. Aci-
atraso do sexto plano de desenvol- va que não agrada à elite baram por desviar o processo até, a uma família de antiga linhagem e uma comercial, entre um poder ma de tudo, ela teria uma parti-
vimento, decorrente de um finan- dirigente.”22 A observação ayubia- finalmente, desembocarem no gol- de Homs, cidade sunita por exce- que controla o poder político e cipação-chave durante a Guerra
ciamento externo cada vez maior na revela-se de importância cru- pe de Estado de 1970. Ocorreu lência.”23 A observação de Álvarez outro que controla o poder eco- do Golfo, dando apoio militar e
e do aumento exponencial da dí- cial, considerando os aconteci- então uma reestruturação do par- coincide com a de Ayubi em situar nômico. Na perspectiva do filó- logístico à intervenção contra o
vida síria. mentos que tiveram lugar desde tido Baath, liderado por Hafez al- as duas facções “burguesas” numa sofo Giorgio Agamben, a dialéti- Iraque. Com isso, os sírios tenta-
2011. Com efeito, aos olhos de -Assad, que terminou por expe- aliança estratégica. A facção esta- ca entre a facção estatal e a comer- vam prevenir a derrocada sofrida
Há um acordo tácito entre o Ayubi, o processo sírio parece ter-
minar configurando um conf lito
rimentar um progressivo etno-
-confessionalismo. Uma facção
tal proporciona respaldo militar e
legal à facção comercial; esta, por
cial configura uma verdadeira
“máquina governamental”, que
pelas repúblicas socialistas do Les-
te Europeu, aproximando-se dos
regime de Assad e certas intraburguês em que sobrevive comercial da burguesia, de maio- sua vez, concede grandes somas articula e, ao mesmo tempo, se- Estados Unidos – a única potên-
uma facção estatal ou burocrática ria sunita, promoveu uma libera- financeiras à primeira. para tanto a soberania quanto o cia mundial a se erguer, triun-
elites econômicas. O poder da burguesia, cada vez mais res- lização econômica, articulou-se e Um processo que poderia ter governo, graças à produção incon- fante, sobre a decomposição da
trita e unificada sob a identidade se separou de sua facção estatal de sido um fracasso, com um conf li- dicional de signos de poder (for- União Soviética – e consolidan-
fornece cobertura jurídica e etno-confessional da liderança orientação alaui, que tendia para to de classes, acabou por se arti- mas de glorificação como “apolo- do seu regime no processo de
política às oligarquias em alaui-drusa, formada pelo gover- o enrijecimento do sistema buro- cular como um círculo virtuoso, gias, aclamações eficazes e outros etno-confessionalismo de que
no e o Exército, respectivamente, crático próprio do Estado. Uma no qual ambas as facções se ali- signos performativos”) que exibem vimos tratando.
troca de apoio empresarial. e, por outro lado, uma maioria facção burguesa desprovida de po- mentam mutuamente, mantendo imagens e performances litúrgicas Quando Bashar al-Assad che-
sunita cuja burguesia comercial der político, mas cheia de poder o controle do Estado e da econo- acerca de Bashar al-Assad no ní- gou ao poder, correram boatos
parece demandar maior espaço de econômico, contra uma facção mia. Álvarez observa que esse sis- vel dos “aparelhos ideológicos de sobre promessas de mudanças. Mas
O regime não optou por uma liberalização econômica. burguesa carente de poder econô- tema de alianças funcionou na pró- Estado” (escolas, hospitais, repar- elas não ocorreram. Por um lado,
completa reforma liberalizante, A observação ayubiana mostra mico, mas cheia de poder político. pria figura do filho de Hafez al- tições públicas, entre outros), 24 o regime ficou cada vez mais ato-
mas abriu espaço para ela, estabe- o problema da estruturação do po- Os equilíbrios começaram a se -Assad, que assumiu o poder em impregnando bairros, esquinas e mizado, graças ao círculo virtuo-
lecendo uma política de cortes, der na Síria: se o regime concede evidenciar e o processo de infitah, 2000, um mês depois da morte do ruas de diversas cidades.25 so articulado entre a facção co-
por parte do Estado, nos quais se maior liberdade de comércio, per- conduzido desde a década de 1980, pai, ao contrair matrimônio com mercial e a estatal, enquanto a so-
privilegiou o capital “nacional e de o controle sobre a dita burgue- promoveu cada vez mais uma Asma al-Akhras, que pertence à O fim da Guerra Fria trouxe ciedade civil exigia cada vez mais
privado” na indústria alimentícia, sia; ao contrário, se procura man- aliança entre as duas facções, com facção comercial. A facção políti- transformações fundamentais pa- reformas políticas fundamentais:
na agricultura e no turismo. Se- ter o estado de coisas atual, res- base nos laços comerciais, políti- ca e a comercial encontram na ra o regime sírio. Não obstante, o em primeiro lugar, o fim do esta-
gundo Ayubi, isso levou à situação tringe cada vez mais a burguesia cos e familiares dos Assad: “O ele- pessoa de Bashar al-Assad a con- processo de etno-confessionalismo do de sítio imposto em 1963, um
paradoxal de um setor privado ati- comercial. O conf lito de classes mento fundamental da relação en- vergência estratégica, aceitando a baathista acentuou-se ainda mais, lema que não deixaria de se repe-
vo que, no entanto, permanecia percorre silenciosamente as insti- tre o regime dos Assad e certas máquina de controle estatal. O articulando uma aliança tática pa- tir durante os protestos que come-
subordinado a um aparelho estatal tuições sírias. A facção estatal, do- elites econômicas baseia-se num etno-confessionalismo do Baath ra os Estados Unidos através da çaram a se articular a partir dessa
de feição burocrática: “Surgiu uma minada pelos Assad, tem que ela- acordo tácito pelo qual o poder implicou uma oligarquização do Guerra do Golfo de 1991: “A che- data e que foram um dos núcleos
situação na qual existe um setor borar estratégias para lidar com o fornece cobertura jurídica e polí- poder na qual o poema de Adonis gada de George Bush à Casa Bran- das revoltas ocorridas na Síria em
privado muito ativo, mas que ain- poder da facção comercial de fei- tica às oligarquias afins e estas as- torna a encontrar ressonância: “re- ca, em 1989, favoreceu uma apro- 2011. Em 27 de setembro de 2000
da precisa operar nos limites dos ção sunita (às vezes, uma parte de seguram seu respaldo financeiro e volução ou matadouro?”. Tudo ximação entre os dois países. Em foi publicado o “Manifesto dos
meticulosos requerimentos, auto- seu setor se alia a um ramo da Ir- empresarial. Hoje, essa aliança de parece ter-se transfigurado. A re- contraste com a atitude hostil de 99”, firmado por um conjunto di-

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Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

de certo modo, mantêm-se vigen- rizações, permissões e licenças do mandade Muçulmana, que cons- interesses é reforçada por enlaces volução proletária deu lugar a uma Reagan, que considerava a Síria
tes até hoje.21 Estado. A burguesia burocrática titui uma de suas expressões polí- matrimoniais e projetos empresa- nova forma de servidão, passando uma promotora do terrorismo in-
É crucial, entretanto, a obser- não pode favorecer um programa ticas num contexto ditatorial). riais conjuntos, entabulados pelas de uma revolução que prometia ternacional, Bush interpretou que
vação elaborada por Ayubi para de privatização plena, que a des- Curioso destino o que se deu novas gerações dos Assad e pelo liberdade a um processo de oligar- Damasco era uma peça central no
elucidar esse processo, sobretudo pojaria de suas vantagens. […] A com o Baath sírio: primeiro hou- resto das famílias políticas e mili- quização que acabou por consoli- processo de paz e propôs um novo
atentando a reforma econômica privatização plena, ao contrário, ve a tentativa de restaurar a Gran- tares poderosas, bem como pelos dar um regime ditatorial. Um par- ‘marco de ação e cooperação’. Em
em curso desde a década de 1980 comporta o risco político de de- de Síria, que obteve a indepen- herdeiros de algumas das fortunas tido pan-árabe, que prometia a 23 de novembro de 1990, Geor-
(a infitah). Houve um complexo volver a preponderância anterior, dência, como Estado “residual”, mais relevantes do país. Um bom união nacional em nível regional, ge Bush e Hafez al-Assad encon-
processo de liberalização. Ayubi atualmente restringida, à burgue- em 1946-1949; depois, a institu- exemplo é o do próprio Bashar, converteu-se num reduto etno- traram-se em Genebra.”26 Com
explica de que modo, desde a dé- sía comercial sunita, com sua ex- cionalização da RAU junto do casado em 2001 com Asma al- -confessional de uma burguesia esse novo marco, a Síria reforçou
cada de 1980, as políticas de libe- tensão militar subsidiária da Ir- Egito, em 1961, e o desencadea- -Akhras, uma especialista em ad- dividida e, ao mesmo tempo, ar- seu controle sobre o Líbano, com
ralização econômica surgiram do mandade Muçulmana, perspecti- mento de lutas internas que aca- ministração bancária pertencente ticulada entre uma facção estatal respaldo dos Estados Unidos. Aci-
atraso do sexto plano de desenvol- va que não agrada à elite baram por desviar o processo até, a uma família de antiga linhagem e uma comercial, entre um poder ma de tudo, ela teria uma parti-
vimento, decorrente de um finan- dirigente.”22 A observação ayubia- finalmente, desembocarem no gol- de Homs, cidade sunita por exce- que controla o poder político e cipação-chave durante a Guerra
ciamento externo cada vez maior na revela-se de importância cru- pe de Estado de 1970. Ocorreu lência.”23 A observação de Álvarez outro que controla o poder eco- do Golfo, dando apoio militar e
e do aumento exponencial da dí- cial, considerando os aconteci- então uma reestruturação do par- coincide com a de Ayubi em situar nômico. Na perspectiva do filó- logístico à intervenção contra o
vida síria. mentos que tiveram lugar desde tido Baath, liderado por Hafez al- as duas facções “burguesas” numa sofo Giorgio Agamben, a dialéti- Iraque. Com isso, os sírios tenta-
2011. Com efeito, aos olhos de -Assad, que terminou por expe- aliança estratégica. A facção esta- ca entre a facção estatal e a comer- vam prevenir a derrocada sofrida
Há um acordo tácito entre o Ayubi, o processo sírio parece ter-
minar configurando um conf lito
rimentar um progressivo etno-
-confessionalismo. Uma facção
tal proporciona respaldo militar e
legal à facção comercial; esta, por
cial configura uma verdadeira
“máquina governamental”, que
pelas repúblicas socialistas do Les-
te Europeu, aproximando-se dos
regime de Assad e certas intraburguês em que sobrevive comercial da burguesia, de maio- sua vez, concede grandes somas articula e, ao mesmo tempo, se- Estados Unidos – a única potên-
uma facção estatal ou burocrática ria sunita, promoveu uma libera- financeiras à primeira. para tanto a soberania quanto o cia mundial a se erguer, triun-
elites econômicas. O poder da burguesia, cada vez mais res- lização econômica, articulou-se e Um processo que poderia ter governo, graças à produção incon- fante, sobre a decomposição da
trita e unificada sob a identidade se separou de sua facção estatal de sido um fracasso, com um conf li- dicional de signos de poder (for- União Soviética – e consolidan-
fornece cobertura jurídica e etno-confessional da liderança orientação alaui, que tendia para to de classes, acabou por se arti- mas de glorificação como “apolo- do seu regime no processo de
política às oligarquias em alaui-drusa, formada pelo gover- o enrijecimento do sistema buro- cular como um círculo virtuoso, gias, aclamações eficazes e outros etno-confessionalismo de que
no e o Exército, respectivamente, crático próprio do Estado. Uma no qual ambas as facções se ali- signos performativos”) que exibem vimos tratando.
troca de apoio empresarial. e, por outro lado, uma maioria facção burguesa desprovida de po- mentam mutuamente, mantendo imagens e performances litúrgicas Quando Bashar al-Assad che-
sunita cuja burguesia comercial der político, mas cheia de poder o controle do Estado e da econo- acerca de Bashar al-Assad no ní- gou ao poder, correram boatos
parece demandar maior espaço de econômico, contra uma facção mia. Álvarez observa que esse sis- vel dos “aparelhos ideológicos de sobre promessas de mudanças. Mas
O regime não optou por uma liberalização econômica. burguesa carente de poder econô- tema de alianças funcionou na pró- Estado” (escolas, hospitais, repar- elas não ocorreram. Por um lado,
completa reforma liberalizante, A observação ayubiana mostra mico, mas cheia de poder político. pria figura do filho de Hafez al- tições públicas, entre outros), 24 o regime ficou cada vez mais ato-
mas abriu espaço para ela, estabe- o problema da estruturação do po- Os equilíbrios começaram a se -Assad, que assumiu o poder em impregnando bairros, esquinas e mizado, graças ao círculo virtuo-
lecendo uma política de cortes, der na Síria: se o regime concede evidenciar e o processo de infitah, 2000, um mês depois da morte do ruas de diversas cidades.25 so articulado entre a facção co-
por parte do Estado, nos quais se maior liberdade de comércio, per- conduzido desde a década de 1980, pai, ao contrair matrimônio com mercial e a estatal, enquanto a so-
privilegiou o capital “nacional e de o controle sobre a dita burgue- promoveu cada vez mais uma Asma al-Akhras, que pertence à O fim da Guerra Fria trouxe ciedade civil exigia cada vez mais
privado” na indústria alimentícia, sia; ao contrário, se procura man- aliança entre as duas facções, com facção comercial. A facção políti- transformações fundamentais pa- reformas políticas fundamentais:
na agricultura e no turismo. Se- ter o estado de coisas atual, res- base nos laços comerciais, políti- ca e a comercial encontram na ra o regime sírio. Não obstante, o em primeiro lugar, o fim do esta-
gundo Ayubi, isso levou à situação tringe cada vez mais a burguesia cos e familiares dos Assad: “O ele- pessoa de Bashar al-Assad a con- processo de etno-confessionalismo do de sítio imposto em 1963, um
paradoxal de um setor privado ati- comercial. O conf lito de classes mento fundamental da relação en- vergência estratégica, aceitando a baathista acentuou-se ainda mais, lema que não deixaria de se repe-
vo que, no entanto, permanecia percorre silenciosamente as insti- tre o regime dos Assad e certas máquina de controle estatal. O articulando uma aliança tática pa- tir durante os protestos que come-
subordinado a um aparelho estatal tuições sírias. A facção estatal, do- elites econômicas baseia-se num etno-confessionalismo do Baath ra os Estados Unidos através da çaram a se articular a partir dessa
de feição burocrática: “Surgiu uma minada pelos Assad, tem que ela- acordo tácito pelo qual o poder implicou uma oligarquização do Guerra do Golfo de 1991: “A che- data e que foram um dos núcleos
situação na qual existe um setor borar estratégias para lidar com o fornece cobertura jurídica e polí- poder na qual o poema de Adonis gada de George Bush à Casa Bran- das revoltas ocorridas na Síria em
privado muito ativo, mas que ain- poder da facção comercial de fei- tica às oligarquias afins e estas as- torna a encontrar ressonância: “re- ca, em 1989, favoreceu uma apro- 2011. Em 27 de setembro de 2000
da precisa operar nos limites dos ção sunita (às vezes, uma parte de seguram seu respaldo financeiro e volução ou matadouro?”. Tudo ximação entre os dois países. Em foi publicado o “Manifesto dos
meticulosos requerimentos, auto- seu setor se alia a um ramo da Ir- empresarial. Hoje, essa aliança de parece ter-se transfigurado. A re- contraste com a atitude hostil de 99”, firmado por um conjunto di-

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


guerra na síria 88 89
Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

versificado de intelectuais para exi- dos Estados Unidos – que, depois pudessem ser espalhadas. Mas em 20
gir mudanças (entre eles, Burhan da invasão do Iraque em 2003, fo- de março do mesmo ano, em Deraa,
Ghalioun e o nosso poeta Adonis): caram a Síria – e os intermináveis uma multidão ateou fogo à sede do
“Nosso povo pode, mais do que protestos realizados no mundo ára- partido Baath. No dia seguinte, o
nunca, participar do presente e do be contra a referida invasão,29 tu- Exército sírio cercou Deraa para su-
futuro da Síria. Partindo desta ne- do isso fez com que o regime se focar os protestos. Eles continuaram
cessidade objetiva e com a inten- afastasse cada vez mais de uma e ganharam mais força.
ção de assegurar nossa união na- possível democratização: o círcu- Em 24 de março o governo
cional, crendo que o futuro de lo virtuoso entre a facção econô- concordou em aumentar o salário
nosso país não pode ser ditado, e mica e a estatal manteve-se estável, dos funcionários e em revisar o
sendo cidadãos de um sistema re- ao preço da exclusão da sociedade decreto do estado de exceção vi-
publicano em que toda pessoa tem civil, que, desde a invasão do Ira- gente desde 1963, dando sinal aos
o direito de se expressar livremen- que, em 2003, passou a demandar manifestantes de uma possível ne-
te.”27 O manifesto exigiu maior reformas radicais de um regime gociação. Em 26 de março os pro-
liberdade pública, libertação dos ditatorial, que só podia ouvi-las testos chegaram a Damasco e ou-
presos políticos (retorno dos exi- como uma afronta a seu atomiza- tras tantas cidades. As forças de
lados e deportados), liberdade de do sistema de poder. segurança dispararam à vontade
reunião, imprensa e expressão, bem contra a multidão. Houve dezenas
como libertação das formas de vi- de mortos. Os protestos cessaram
gilância permanente, impostas pe- Revolta por um instante, mas foram reto-
lo regime contra milhares de ci- Nada parecia antecipá-las, mas elas mados no dia 29 do mesmo mês,
dadãos. O regime foi inteiramen- irromperam. As revoltas na Síria apesar das propostas do regime.

Sadik Gulec/shutterstock.com
te refratário à demanda do começaram em 26 de janeiro de Em 4 de abril os protestos em De-
“Manifesto dos 99”: cerrou filei- 2011, quando, no mesmo espírito raa cessaram, como efeito da vio-
ras e deu início a um processo de que Mohamed Bouazizi – o ver- lência sistemática desencadeada
encarceramento dos membros da dureiro tunisiano –, um jovem pelas forças de segurança, que im-
sociedade civil que haviam propi- identificado como Hassam Ali plementaram torturas e detenções
ciado o Manifesto. Intelectuais Akhle imolou-se na localidade de em massa, além de disparar con-
foram presos, jornalistas e ativistas Hasaka, no nordeste do país. Es- tra a multidão: no dia 8 de abril, presidente al-Assad, enquanto se as forças de segurança, cuja vio-
em geral foram perseguidos, exi- palhou-se o boato: sua imolação as forças de segurança mataram realizava o funeral de oito mani- lência persistiu até deixar mais e
Em árabe, martírio
lados e novamente encarcerados. tinha sido um ato dirigido ao re- mais de quinze manifestantes. No festantes mortos durante os pro- mais mortos pelas ruas. No co- [shahid] tem a mesma
A prometida abertura, que deveria gime. Dois dias depois houve uma dia 13 de abril o Exército sírio testos. No dia seguinte, o governo meço do mês de maio houve mi-
ter chegado com Bashar al-Assad, manifestação em Raqqa, em re- atacou alguns povoados, para si- sírio revogou o estado de exceção. lhares de detenções em Damasco. raiz que atestação
não chegou. Em 16 de outubro de púdio ao assassinato de dois sol- lenciar os protestos; dois dias de- Mas, em 22 de abril, foi def lagra- A cidade de Deraa foi abando-
2005 surgiu outra dissidência, com dados de origem curda. Os pro- pois (15 de abril), def lagrou-se a da a “grande sexta-feira”, que con- nada pelo Exército, mas foi man-
[shahada]. Designa
a Declaração de Damasco, que sus- testos começaram a se expandir: disputa pela praça pública: mi- vocou uma enorme quantidade de tida cercada nas semanas seguin- um abandono
tentou três pontos centrais: um em 4 de fevereiro houve a convo- lhares de sírios manifestaram-se manifestantes, os quais, agora sem tes. No outro dia, o Exército to-
governo democrático, supressão cação para uma manifestação na nas ruas de Damasco, exigindo a lei de exceção, exigiram a saída mou de assalto a cidade de Banias completo a Deus,
das leis de exceção e plena igual- chamada “sexta-feira da ira”, mas liberdade, enquanto as forças de de al-Assad. Cerca de 88 manifes- e, dias depois, a União Europeia
dade de direitos de todos os cida- essas tentativas foram sufocadas segurança tentavam impedir que tantes foram mortos pelas forças estabeleceu sanções contra o re- justamente o que
dãos, independentemente de suas pelas forças de segurança do regi- eles chegassem à praça principal de segurança do regime. gime (embargo de armas e um deu origem ao
respectivas etnias. 28 De 2000 a me. Os focos de insurreição con- da cidade. No dia seguinte, al- Em 25 de abril tanques e sol- pacote de sanções); em 11 de
2005 a sociedade civil síria não se tinuaram tímidos. A revolta ainda -Assad declarou que o Executivo dados sírios tomaram a cidade de maio, tanques entraram em termo islã.
cansou de exigir mudanças ao re- não havia encontrado sua explo- se pronunciaria a favor da revo- Deraa, fechando a fronteira com Homs, e em 13 de maio a oração
gime. As tensões internas desen- são, talvez porque o regime não gação da lei de exceção de 1963. a Jordânia. Em 29 de abril, outra da sexta-feira def lagrou um no-
cadeadas pela dissenção na socie- tivesse acabado de conquistar to- Em 18 de abril milhares de “sexta-feira da ira” abriu um con- vo protesto coordenado entre
dade civil, a pressão internacional das as praças em que as imagens pessoas exigiram a renúncia do f lito direto entre os protestos e Homs, Damasco e Deraa.

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Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

versificado de intelectuais para exi- dos Estados Unidos – que, depois pudessem ser espalhadas. Mas em 20
gir mudanças (entre eles, Burhan da invasão do Iraque em 2003, fo- de março do mesmo ano, em Deraa,
Ghalioun e o nosso poeta Adonis): caram a Síria – e os intermináveis uma multidão ateou fogo à sede do
“Nosso povo pode, mais do que protestos realizados no mundo ára- partido Baath. No dia seguinte, o
nunca, participar do presente e do be contra a referida invasão,29 tu- Exército sírio cercou Deraa para su-
futuro da Síria. Partindo desta ne- do isso fez com que o regime se focar os protestos. Eles continuaram
cessidade objetiva e com a inten- afastasse cada vez mais de uma e ganharam mais força.
ção de assegurar nossa união na- possível democratização: o círcu- Em 24 de março o governo
cional, crendo que o futuro de lo virtuoso entre a facção econô- concordou em aumentar o salário
nosso país não pode ser ditado, e mica e a estatal manteve-se estável, dos funcionários e em revisar o
sendo cidadãos de um sistema re- ao preço da exclusão da sociedade decreto do estado de exceção vi-
publicano em que toda pessoa tem civil, que, desde a invasão do Ira- gente desde 1963, dando sinal aos
o direito de se expressar livremen- que, em 2003, passou a demandar manifestantes de uma possível ne-
te.”27 O manifesto exigiu maior reformas radicais de um regime gociação. Em 26 de março os pro-
liberdade pública, libertação dos ditatorial, que só podia ouvi-las testos chegaram a Damasco e ou-
presos políticos (retorno dos exi- como uma afronta a seu atomiza- tras tantas cidades. As forças de
lados e deportados), liberdade de do sistema de poder. segurança dispararam à vontade
reunião, imprensa e expressão, bem contra a multidão. Houve dezenas
como libertação das formas de vi- de mortos. Os protestos cessaram
gilância permanente, impostas pe- Revolta por um instante, mas foram reto-
lo regime contra milhares de ci- Nada parecia antecipá-las, mas elas mados no dia 29 do mesmo mês,
dadãos. O regime foi inteiramen- irromperam. As revoltas na Síria apesar das propostas do regime.

Sadik Gulec/shutterstock.com
te refratário à demanda do começaram em 26 de janeiro de Em 4 de abril os protestos em De-
“Manifesto dos 99”: cerrou filei- 2011, quando, no mesmo espírito raa cessaram, como efeito da vio-
ras e deu início a um processo de que Mohamed Bouazizi – o ver- lência sistemática desencadeada
encarceramento dos membros da dureiro tunisiano –, um jovem pelas forças de segurança, que im-
sociedade civil que haviam propi- identificado como Hassam Ali plementaram torturas e detenções
ciado o Manifesto. Intelectuais Akhle imolou-se na localidade de em massa, além de disparar con-
foram presos, jornalistas e ativistas Hasaka, no nordeste do país. Es- tra a multidão: no dia 8 de abril, presidente al-Assad, enquanto se as forças de segurança, cuja vio-
em geral foram perseguidos, exi- palhou-se o boato: sua imolação as forças de segurança mataram realizava o funeral de oito mani- lência persistiu até deixar mais e
Em árabe, martírio
lados e novamente encarcerados. tinha sido um ato dirigido ao re- mais de quinze manifestantes. No festantes mortos durante os pro- mais mortos pelas ruas. No co- [shahid] tem a mesma
A prometida abertura, que deveria gime. Dois dias depois houve uma dia 13 de abril o Exército sírio testos. No dia seguinte, o governo meço do mês de maio houve mi-
ter chegado com Bashar al-Assad, manifestação em Raqqa, em re- atacou alguns povoados, para si- sírio revogou o estado de exceção. lhares de detenções em Damasco. raiz que atestação
não chegou. Em 16 de outubro de púdio ao assassinato de dois sol- lenciar os protestos; dois dias de- Mas, em 22 de abril, foi def lagra- A cidade de Deraa foi abando-
2005 surgiu outra dissidência, com dados de origem curda. Os pro- pois (15 de abril), def lagrou-se a da a “grande sexta-feira”, que con- nada pelo Exército, mas foi man-
[shahada]. Designa
a Declaração de Damasco, que sus- testos começaram a se expandir: disputa pela praça pública: mi- vocou uma enorme quantidade de tida cercada nas semanas seguin- um abandono
tentou três pontos centrais: um em 4 de fevereiro houve a convo- lhares de sírios manifestaram-se manifestantes, os quais, agora sem tes. No outro dia, o Exército to-
governo democrático, supressão cação para uma manifestação na nas ruas de Damasco, exigindo a lei de exceção, exigiram a saída mou de assalto a cidade de Banias completo a Deus,
das leis de exceção e plena igual- chamada “sexta-feira da ira”, mas liberdade, enquanto as forças de de al-Assad. Cerca de 88 manifes- e, dias depois, a União Europeia
dade de direitos de todos os cida- essas tentativas foram sufocadas segurança tentavam impedir que tantes foram mortos pelas forças estabeleceu sanções contra o re- justamente o que
dãos, independentemente de suas pelas forças de segurança do regi- eles chegassem à praça principal de segurança do regime. gime (embargo de armas e um deu origem ao
respectivas etnias. 28 De 2000 a me. Os focos de insurreição con- da cidade. No dia seguinte, al- Em 25 de abril tanques e sol- pacote de sanções); em 11 de
2005 a sociedade civil síria não se tinuaram tímidos. A revolta ainda -Assad declarou que o Executivo dados sírios tomaram a cidade de maio, tanques entraram em termo islã.
cansou de exigir mudanças ao re- não havia encontrado sua explo- se pronunciaria a favor da revo- Deraa, fechando a fronteira com Homs, e em 13 de maio a oração
gime. As tensões internas desen- são, talvez porque o regime não gação da lei de exceção de 1963. a Jordânia. Em 29 de abril, outra da sexta-feira def lagrou um no-
cadeadas pela dissenção na socie- tivesse acabado de conquistar to- Em 18 de abril milhares de “sexta-feira da ira” abriu um con- vo protesto coordenado entre
dade civil, a pressão internacional das as praças em que as imagens pessoas exigiram a renúncia do f lito direto entre os protestos e Homs, Damasco e Deraa.

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guerra na síria 90 91
Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

Em 17 de maio foram descober- 2 de junho a oposição no exilio após a tomada de cidades, o assas- 2011. Várias manifestações a seu desloca-se: as imagens começam
tas em Deraa duas fossas comuns organizou um conselho de 31 sinato de manifestantes e a deten- favor tiveram lugar em diversas
A imolação que a escrever – a inventar – outro
com mais de vinte mortos cada uma; membros para propiciar as mudan- ção de milhares de pessoas. En- cidades do país. Mas, em 1º de provocou a revolta mundo por vir.
em 19 de maio Obama enviou uma ças. Na sexta-feira dessa semana quanto isso, em 12 de junho, as julho, reacenderam-se os protes-
mensagem ao regime sírio, conde- os manifestantes de Hama denun- autoridades turcas anunciaram a tos em Hama, Deraa, Damasco e foi singular, pois Mas essa revolta teve um acon-
nando as mortes causadas pela re- ciaram um novo massacre de mais chegada de mais de 4 mil refugia- Alepo. Houve mais repressão do tecimento que a incendiou e ain-
pressão. No dia seguinte houve uma de sessenta manifestantes, assassi- dos sírios. Alepo uniu-se aos pro- Exército contra eles.
aqueles que a da não foi suficientemente pensa-
nova “sexta-feira da ira”, e as tropas nados pelo Exército (Hama foi testos contra o cerco imposto pe- praticaram eram do: tal como a tunisiana, a revol-
do regime abriram fogo indiscrimi- crucial porque, na década de 1980, lo Exército à cidade. Em 20 de A resposta do regime à revolta ta síria iniciou-se com o gesto da
nadamente em várias cidades (Homs, já tinha sido bombardeada por Ha- junho al-Assad denunciou uma foi a repressão. Mas revelou-se desconhecidos, imolação do jovem Hassan Ali
Daraya, Sanamein, Boumakal). Em fez al-Assad contra a facção da Ir- conspiração internacional para der- decisivo o modo como a revolta Akhle. Que é uma imolação? Em
21 de maio as forças de segurança mandade Muçulmana). Entre 7 e rubar o regime e anunciou que, atualizou o gesto outrora anun- eram “qualquer um”. árabe, o termo shahid (martírio)
abriram fogo durante um funeral de 9 de junho, o número de refugia- apesar disso, abriria um diálogo ciado por Adonis no “Prólogo a O gesto deles aparenta-se com shahada (atesta-
manifestantes mortos em Nasra. dos sírios na fronteira turca che- nacional a fim de discutir refor- uma história dos reis de taifas”: ção, termo fundamental no isla-
Em 31 de maio o presidente gou a 2.400. Um grande êxodo mas. No dia seguinte o regime a adoração do líder, produzida revogou a ordem. mismo) e designa a força martiro-
Bashar al-Assad decretou anistia teve início em consequência da anunciou anistia geral para todos graças à máquina governamen- lógica: um abandono completo a
para os prisioneiros políticos. Em repressão perpetrada pelo regime, os delitos cometidos durante tal, sofreu o repúdio. O partido tornaria possível o processo de Deus ( justamente, uma “submis-
Baath, antes adorado, enaltecido, subjetivação), abre-se em seu pró- são” exclusiva a Deus, que deu
produtor de signos do poder que prio seio um abismo que acaba origem ao termo “islã”), um des-
permitiam a sujeição dos povos, confrontando o Estado com a so- prendimento total que quebra e
já não pôde produzir “glória”, ciedade civil, como as revoltas tensiona qualquer institucionali-
pois a revolta o havia eliminado. árabes vieram a confirmar. O re- dade mundana. Entretanto, não
O regime que deveria contrapor- gime sírio exibe seu vazio – o presumimos a tese “culturalista”
-se à naksa revelou-se sua forma- trono vazio – porque a ideologia de que a presença da imolação na
ção mais eloquente. Assim, a naksa que o sustentava não pode pro- revolta se daria “por causa” da cul-
apareceu não mais como um fato duzir novos signos do poder e tura islâmica (tal como o discurso
historicamente datável, mas co- carece, portanto, de qualquer pos- orientalista aponta o islamismo
mo um acontecimento cuja for- sibilidade de construção hegemô- como religião “guerreira”, “faná-
ça continuava em vigor para re- nica. A máquina não pode mais tica” e inteiramente “sacrificial”).
ordenar as tramas da luta e suas produzir signos de poder. Se pre- O islamismo político supõe uma
derrotas. Aí se articulou a respos- ferirmos, podemos dizer que seus estética martirológica, tal como
ta do regime; a repressão policial signos tornaram-se extemporâ- ocorre com os milhares de jiha-
e militar foi inversamente pro- neos, pois pertencem a um hori- distas que todos os anos sacrificam
porcional a seus graus de produ- zonte (o do discurso pós-colonial a vida pela suposta causa de Deus.
ção “gloriosa”: 30 “O poder ‘in- do nacionalismo populista) do A tese culturalista fornecida pelo
terpelador’ de ideologias como o qual só resta poeira. O etno-con- discurso orientalista é equivocada:
nacionalismo e o socialismo está fessionalismo do regime não é embora o islamismo – tal como o
praticamente esgotado, e os regi- outra coisa senão a sutura da má- cristianismo, em seus momentos
mes são, em geral, incapazes de quina, que a revolta simplemente de perseguição por parte do Im-
formular ideologias interpelado- explicita e decide apagar: a assi- pério Romano – traga em si cer-
ras alternativas e de construir no- natura do Baath não se sustenta, ta tradição martirológica, todos os
vos blocos de poder. […] Trata-se apaga-se como Adonis apagou a anos existem atos considerados de
de uma crise enfrentada pelo Es- dedicatória a Nasser. A esperança martírio por parte dos militantes
Adwo/shutterstock.com

tado e pela sociedade civil […].”31 no líder como alguém capaz de islamitas, assim como por parte
Se o nacionalismo e o socialismo desativar os reis de taifas acaba dos nacionalistas, mas nenhum
perdem seu “poder interpelador” sucumbindo à crueza dos acon- deles foi capaz de def lagrar uma
(o poder que, segundo Althusser, tecimentos. A esperança no líder revolta. E mais: afirmo que o su-

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guerra na síria 90 91
Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

Em 17 de maio foram descober- 2 de junho a oposição no exilio após a tomada de cidades, o assas- 2011. Várias manifestações a seu desloca-se: as imagens começam
tas em Deraa duas fossas comuns organizou um conselho de 31 sinato de manifestantes e a deten- favor tiveram lugar em diversas
A imolação que a escrever – a inventar – outro
com mais de vinte mortos cada uma; membros para propiciar as mudan- ção de milhares de pessoas. En- cidades do país. Mas, em 1º de provocou a revolta mundo por vir.
em 19 de maio Obama enviou uma ças. Na sexta-feira dessa semana quanto isso, em 12 de junho, as julho, reacenderam-se os protes-
mensagem ao regime sírio, conde- os manifestantes de Hama denun- autoridades turcas anunciaram a tos em Hama, Deraa, Damasco e foi singular, pois Mas essa revolta teve um acon-
nando as mortes causadas pela re- ciaram um novo massacre de mais chegada de mais de 4 mil refugia- Alepo. Houve mais repressão do tecimento que a incendiou e ain-
pressão. No dia seguinte houve uma de sessenta manifestantes, assassi- dos sírios. Alepo uniu-se aos pro- Exército contra eles.
aqueles que a da não foi suficientemente pensa-
nova “sexta-feira da ira”, e as tropas nados pelo Exército (Hama foi testos contra o cerco imposto pe- praticaram eram do: tal como a tunisiana, a revol-
do regime abriram fogo indiscrimi- crucial porque, na década de 1980, lo Exército à cidade. Em 20 de A resposta do regime à revolta ta síria iniciou-se com o gesto da
nadamente em várias cidades (Homs, já tinha sido bombardeada por Ha- junho al-Assad denunciou uma foi a repressão. Mas revelou-se desconhecidos, imolação do jovem Hassan Ali
Daraya, Sanamein, Boumakal). Em fez al-Assad contra a facção da Ir- conspiração internacional para der- decisivo o modo como a revolta Akhle. Que é uma imolação? Em
21 de maio as forças de segurança mandade Muçulmana). Entre 7 e rubar o regime e anunciou que, atualizou o gesto outrora anun- eram “qualquer um”. árabe, o termo shahid (martírio)
abriram fogo durante um funeral de 9 de junho, o número de refugia- apesar disso, abriria um diálogo ciado por Adonis no “Prólogo a O gesto deles aparenta-se com shahada (atesta-
manifestantes mortos em Nasra. dos sírios na fronteira turca che- nacional a fim de discutir refor- uma história dos reis de taifas”: ção, termo fundamental no isla-
Em 31 de maio o presidente gou a 2.400. Um grande êxodo mas. No dia seguinte o regime a adoração do líder, produzida revogou a ordem. mismo) e designa a força martiro-
Bashar al-Assad decretou anistia teve início em consequência da anunciou anistia geral para todos graças à máquina governamen- lógica: um abandono completo a
para os prisioneiros políticos. Em repressão perpetrada pelo regime, os delitos cometidos durante tal, sofreu o repúdio. O partido tornaria possível o processo de Deus ( justamente, uma “submis-
Baath, antes adorado, enaltecido, subjetivação), abre-se em seu pró- são” exclusiva a Deus, que deu
produtor de signos do poder que prio seio um abismo que acaba origem ao termo “islã”), um des-
permitiam a sujeição dos povos, confrontando o Estado com a so- prendimento total que quebra e
já não pôde produzir “glória”, ciedade civil, como as revoltas tensiona qualquer institucionali-
pois a revolta o havia eliminado. árabes vieram a confirmar. O re- dade mundana. Entretanto, não
O regime que deveria contrapor- gime sírio exibe seu vazio – o presumimos a tese “culturalista”
-se à naksa revelou-se sua forma- trono vazio – porque a ideologia de que a presença da imolação na
ção mais eloquente. Assim, a naksa que o sustentava não pode pro- revolta se daria “por causa” da cul-
apareceu não mais como um fato duzir novos signos do poder e tura islâmica (tal como o discurso
historicamente datável, mas co- carece, portanto, de qualquer pos- orientalista aponta o islamismo
mo um acontecimento cuja for- sibilidade de construção hegemô- como religião “guerreira”, “faná-
ça continuava em vigor para re- nica. A máquina não pode mais tica” e inteiramente “sacrificial”).
ordenar as tramas da luta e suas produzir signos de poder. Se pre- O islamismo político supõe uma
derrotas. Aí se articulou a respos- ferirmos, podemos dizer que seus estética martirológica, tal como
ta do regime; a repressão policial signos tornaram-se extemporâ- ocorre com os milhares de jiha-
e militar foi inversamente pro- neos, pois pertencem a um hori- distas que todos os anos sacrificam
porcional a seus graus de produ- zonte (o do discurso pós-colonial a vida pela suposta causa de Deus.
ção “gloriosa”: 30 “O poder ‘in- do nacionalismo populista) do A tese culturalista fornecida pelo
terpelador’ de ideologias como o qual só resta poeira. O etno-con- discurso orientalista é equivocada:
nacionalismo e o socialismo está fessionalismo do regime não é embora o islamismo – tal como o
praticamente esgotado, e os regi- outra coisa senão a sutura da má- cristianismo, em seus momentos
mes são, em geral, incapazes de quina, que a revolta simplemente de perseguição por parte do Im-
formular ideologias interpelado- explicita e decide apagar: a assi- pério Romano – traga em si cer-
ras alternativas e de construir no- natura do Baath não se sustenta, ta tradição martirológica, todos os
vos blocos de poder. […] Trata-se apaga-se como Adonis apagou a anos existem atos considerados de
de uma crise enfrentada pelo Es- dedicatória a Nasser. A esperança martírio por parte dos militantes
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tado e pela sociedade civil […].”31 no líder como alguém capaz de islamitas, assim como por parte
Se o nacionalismo e o socialismo desativar os reis de taifas acaba dos nacionalistas, mas nenhum
perdem seu “poder interpelador” sucumbindo à crueza dos acon- deles foi capaz de def lagrar uma
(o poder que, segundo Althusser, tecimentos. A esperança no líder revolta. E mais: afirmo que o su-

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guerra na síria 92 93
Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

posto “martírio” dos islamitas – cordado, que o “qualquer um” ‘pertencimento’ e ‘cidadania’, que verso diametral da purificação exe- Em vista disso, caberia dizer A revolta foi a ressurreição
que hoje não passa de uma indús- inunde a memória dos povos, pois pareciam existir apenas nos dis- cutada pelas forças do regime: se que as revoltas carecem de qual-
tria do espectáculo – prescinde da o regime tem que garantir a ex- cursos de Hosni Mubarak e nos estas tendem a produzir uma co- quer “razão” e, atendendo à clás- de Ali, o instante que marcou
imolação e afirma o sacrifício. Se- clusividade da f igura do líder poemas e canções de poetas e can- munidade “pura”, plena e isenta sica crítica reacionária, afirmar seu
rá que sacrifício e imolação são (Bashar al-Assad), aquela que do- tores medíocres, ou nas cadeias do “outro” passível de discordar, caráter “irracional”? Longe disso: o fim da razão imperialista e
termos equivalentes? 32 Diferente-
mente da tese culturalista, susten-
mina todos os discursos. Embora
a figura de Bashar inundasse todas
nacionais de televisão; palavras que
agora se tornaram claras, lavadas
a revolta trabalha em função de
purificar o homem comum de sua
as revoltas trazem em si uma “ra-
zão” que Hamid Dabashi deno-
seus binômios estampados
tarei uma tese abertamente polí- as esquinas, embora parecesse mul- do lastro da ditadura.”34 Os termos captura soberana e, portanto, em mina “estética”: “São precisamen- nos dois grandes discursos
tica, que pode ser resumida na se- tiplicar-se por todos os bairros, foi que tinham sido capturados pelo função de abrir o hiato do povo te essas qualidades”, diz Dabashi,
guinte fórmula: a imolação não é a imolação dos que eram “qual- regime e subtraídos do uso comum que deixa abismado o referido po- “inclusive a música de Mohsen de orientação pós-colonial.
o sacrifício; a primeira faz o cor- quer um” – em seu martírio não foram profanados, para se imagi- der. Para o poder soberano, o ho- Namjoo, inclusive a arte de Mona
po estourar, libertando o homem processável sob os signos nacionais narem de outro modo. A imolação mem comum designa um sujeito; Hatoum, inclusive a ficção de So- volta acaba por “lavar” as palavras
comum de sua captura político- nem administrável pela indústria abre aquilo que o sacrifício fecha. para a revolta, o homem comum não nallah Ibrahim, que sugerem uma urdidas sob o “lastro da ditadura”.
-estatal; o segundo constitui o dis- jihadista do espectáculo – que li- A imolação traz o ardor de um é mais que uma potência impes- razão estética que trabalha além A “razão estética” da revolta não
positivo propriamente soberano bertou o homem comum de seus martírio irredutível às formas de soal. Lavar das palavras o “lastro do raciocínio ideológico e fala de aponta para além dela, apenas inter-
que, ao capturar o homem co- grilhões. A revolta alimenta-se da glorificação do discurso pós-co- da ditadura” implica a imolação uma modernidade social que não rompe a sutura que o regime esta-
mum, apropria-se dele com base memória dos que tombaram, e o lonial (nacionalista ou islamita). como gesto no qual tais palavras pode ser detida, torturada e assas- beleceu entre palavras e coisas, en-
no télos que funda e conserva uma regime, da universalidade de seus A imolação é uma afronta, um podem adquirir novos usos. sinada nos calabouços de qualquer tre letra e sentido. “Lavar o lastro
ordem político-estatal. A imola- monumentos. A revolta enterra desafio ao regime, pois interpela A revolta liberta o povo do po- tirania pós-colonial.”35 Neste sen- da ditadura” significa pôr em jogo
ção faz eclodir a violência estatal; seus mortos, pois entende que só diretamente o núcleo sacrificial der. A imolação constitui uma es- tido, a “razão z” é aquela que “ape- a devolução dos signos a sua força
o sacrifício, ao contrário, será sua assim eles poderão viver junto dos sobre o qual se apoiam os signos pécie de ascetismo revolucionário que nas nega, ipso facto, sem apontar imaginal. Como indica Mersal, num
pedra fundamental. A imolação revoltosos; o regime tenta fazer os do poder. A imolação pareceria contraria a lógica do capital: se esta para nada […]”.36 As palavras de instante as palavras se tornam cla-
é um gesto que leva o dispositivo mortos desaparecerem, para que ser um ato cuja impugnação resi- assume o télos da acumulação infi- Dabashi revelam-se essenciais: a ras, prístinas, assumem o caráter co-
sacrificial ao ponto zero, ao es- nunca habitem na memória e pa- de em queimar o próprio corpo nita, a revolta acontece como gasto “razão estética” posta em jogo nas mum que as constituiu. Não são de
vaziamento absoluto, ao instante ra que os povos sejam “glorifica- para purificá-lo do mal que o apri- sem medida nem cálculo, sem limi- revoltas é a “negação pura e sim- ninguém, mas de todos. Não se iden-
em que ele não funda nem con- dos” pelos signos do regime. siona, para “lavar o lastro da dita- te nem estratégia. O capital requer ples” que não “aponta para nada”. tifican com um “sujeito suposto sa-
serva nada. 33 A imolação não é o sacrifício. Se dura”, justamente. A imolação de sacrifício para desenvolver a acu- Como tal, é uma “razão” ateleoló- ber”. Com isso, a imolação trabalha
Por que as forças policiais e preferirmos, é o sacrifício às aves- Bouazizi e Ali Akhle constituiu mulação, mas a revolta impugna gica e completamente fora do ho- no sentido inverso ao do sacrifício,
militares de Assad dispararam con- sas. Melhor dizendo, a imolação é uma forma de imolação singular esse sacrifício com um gasto irre- rizonte de destino e de feição sa- pois, ao “lavar” das palavras o “las-
tra os que assistiam ao enterro dos o sacrifício que passa ao largo, por- precisamente porque aqueles que dutível a qualquer tabela de custos: crificial concebido pela “filosofia tro da ditadura”, abre o umbral pe-
que tinham sido mortos em pro- que não funda nem conserva a or- a praticaram eram desconhecidos, porventura os manifestantes de De- da história do capital”, sobre a qual lo qual o povo começa a aprender
testos? Que perigo traz o funeral dem, apenas a impugna. É o sa- eram “qualquer um”. Todos e nin- raa, Alepo ou Damasco mediram se atou o discurso pós-colonial.37 uma nova língua, dando novos usos
dos mortos em luta? Nossa hipó- crifício invertido, que, em vez de guém, ao mesmo tempo, podem os custos de se somarem aos protes- Toda “tirania pós-colonial” – a às palavras anquilosadas pelas pan-
tese é que o perigo que entrou em fundar um totem, o revoga. A imo- praticar o ato de purificação mais tos contra o regime? A revolta não tirania síria, antes de tudo – con- cadas do poder: “Todos experimen-
jogo na imolação de Hassan Ali lação prescinde de qualquer voca- absoluto, que não consiste em fun- calcula, mas imagina; não acumula templa sua própria destruição, em tam a epifania dos mesmos símbo-
Akhle e nos funerais reside no des- ção fundadora porque descortina dar uma ordem pura, mas em re- o expropriado, mas gasta o que não face de uma “razão” inteiramente los”, escreveu Furio Jesi. “O espaço
pertar da força que o poema de o homem comum, liberta os corpos vogar a ordem estabelecida, dando tem. A imolação liberta o “qualquer inovadora que apenas imagina, individual de cada um, dominado
Adonis chama de Ali, no restabe- do discurso hegemônico. Os an- curso à revolta. um” dos poderes que o subjugam; gasta e se liberta dos dispositivos pelos próprios símbolos pessoais, o
lecimento do povo como uma for- tigos mártires morriam na boca Se a revolta é um operador da o sacrifício termina fundando uma que disputam sua captura. Uma refúgio em relação ao tempo histó-
ça irredutível ao dispositivo do do Anticristo para impugnar o po- imaginação, a imolação constitui nova ordem soberana que subordi- política isenta de Estado e um Es- rico que cada um encontra em sua
regime. Enterrar os mortos signi- der soberano, desativar sua pre- seu umbral. Bouazizi ou Ali Akh- na os “quaisquer” ao carisma de um tado isento de política seriam o própria simbologia e em sua própria
fica enterrar o “qualquer um”, tensão de sacralidade e restabelecer le são a imagem que condensa a líder. Estranhamente, nesse caso, a abismo aberto pela revolta contra mitologia individuais, amplia-se e
aquele que, sendo “ninguém” (e o caráter comum dos signos: “Esta sociedade inteira, a partir da qual imolação que desencadeou a inten- o regime. Não há teleologia que se converte no espaço simbólico
“todos” ao mesmo tempo), im- revolução”, declarou a poetisa a sociedade se liberta do poder que sidade das revoltas fez com que to- resista à “razão estética”, apenas a comum a toda a comunidade, no
pugna os “heróis” da iconografia egípcia Imam Mersal numa entre- a aprisiona. Lavar das palavras o do sagrado fosse profanado, fez com inapropriável apropriação do ho- refúgio em relação ao tempo his-
do regime. O regime precisa evi- vista recente, “modificou algo pro- “lastro da ditadura” implica um que tudo que tinha sido capturado mem comum que estava capturado.38 tórico em que toda a comunidade
tar que o “qualquer um” seja re- fundo em palavras como ‘pátria’, gesto de purificação que é o in- fosse inteiramente libertado. A “razão estética” aberta pela re- encontra uma escapatória.”39 A re-

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Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

posto “martírio” dos islamitas – cordado, que o “qualquer um” ‘pertencimento’ e ‘cidadania’, que verso diametral da purificação exe- Em vista disso, caberia dizer A revolta foi a ressurreição
que hoje não passa de uma indús- inunde a memória dos povos, pois pareciam existir apenas nos dis- cutada pelas forças do regime: se que as revoltas carecem de qual-
tria do espectáculo – prescinde da o regime tem que garantir a ex- cursos de Hosni Mubarak e nos estas tendem a produzir uma co- quer “razão” e, atendendo à clás- de Ali, o instante que marcou
imolação e afirma o sacrifício. Se- clusividade da f igura do líder poemas e canções de poetas e can- munidade “pura”, plena e isenta sica crítica reacionária, afirmar seu
rá que sacrifício e imolação são (Bashar al-Assad), aquela que do- tores medíocres, ou nas cadeias do “outro” passível de discordar, caráter “irracional”? Longe disso: o fim da razão imperialista e
termos equivalentes? 32 Diferente-
mente da tese culturalista, susten-
mina todos os discursos. Embora
a figura de Bashar inundasse todas
nacionais de televisão; palavras que
agora se tornaram claras, lavadas
a revolta trabalha em função de
purificar o homem comum de sua
as revoltas trazem em si uma “ra-
zão” que Hamid Dabashi deno-
seus binômios estampados
tarei uma tese abertamente polí- as esquinas, embora parecesse mul- do lastro da ditadura.”34 Os termos captura soberana e, portanto, em mina “estética”: “São precisamen- nos dois grandes discursos
tica, que pode ser resumida na se- tiplicar-se por todos os bairros, foi que tinham sido capturados pelo função de abrir o hiato do povo te essas qualidades”, diz Dabashi,
guinte fórmula: a imolação não é a imolação dos que eram “qual- regime e subtraídos do uso comum que deixa abismado o referido po- “inclusive a música de Mohsen de orientação pós-colonial.
o sacrifício; a primeira faz o cor- quer um” – em seu martírio não foram profanados, para se imagi- der. Para o poder soberano, o ho- Namjoo, inclusive a arte de Mona
po estourar, libertando o homem processável sob os signos nacionais narem de outro modo. A imolação mem comum designa um sujeito; Hatoum, inclusive a ficção de So- volta acaba por “lavar” as palavras
comum de sua captura político- nem administrável pela indústria abre aquilo que o sacrifício fecha. para a revolta, o homem comum não nallah Ibrahim, que sugerem uma urdidas sob o “lastro da ditadura”.
-estatal; o segundo constitui o dis- jihadista do espectáculo – que li- A imolação traz o ardor de um é mais que uma potência impes- razão estética que trabalha além A “razão estética” da revolta não
positivo propriamente soberano bertou o homem comum de seus martírio irredutível às formas de soal. Lavar das palavras o “lastro do raciocínio ideológico e fala de aponta para além dela, apenas inter-
que, ao capturar o homem co- grilhões. A revolta alimenta-se da glorificação do discurso pós-co- da ditadura” implica a imolação uma modernidade social que não rompe a sutura que o regime esta-
mum, apropria-se dele com base memória dos que tombaram, e o lonial (nacionalista ou islamita). como gesto no qual tais palavras pode ser detida, torturada e assas- beleceu entre palavras e coisas, en-
no télos que funda e conserva uma regime, da universalidade de seus A imolação é uma afronta, um podem adquirir novos usos. sinada nos calabouços de qualquer tre letra e sentido. “Lavar o lastro
ordem político-estatal. A imola- monumentos. A revolta enterra desafio ao regime, pois interpela A revolta liberta o povo do po- tirania pós-colonial.”35 Neste sen- da ditadura” significa pôr em jogo
ção faz eclodir a violência estatal; seus mortos, pois entende que só diretamente o núcleo sacrificial der. A imolação constitui uma es- tido, a “razão z” é aquela que “ape- a devolução dos signos a sua força
o sacrifício, ao contrário, será sua assim eles poderão viver junto dos sobre o qual se apoiam os signos pécie de ascetismo revolucionário que nas nega, ipso facto, sem apontar imaginal. Como indica Mersal, num
pedra fundamental. A imolação revoltosos; o regime tenta fazer os do poder. A imolação pareceria contraria a lógica do capital: se esta para nada […]”.36 As palavras de instante as palavras se tornam cla-
é um gesto que leva o dispositivo mortos desaparecerem, para que ser um ato cuja impugnação resi- assume o télos da acumulação infi- Dabashi revelam-se essenciais: a ras, prístinas, assumem o caráter co-
sacrificial ao ponto zero, ao es- nunca habitem na memória e pa- de em queimar o próprio corpo nita, a revolta acontece como gasto “razão estética” posta em jogo nas mum que as constituiu. Não são de
vaziamento absoluto, ao instante ra que os povos sejam “glorifica- para purificá-lo do mal que o apri- sem medida nem cálculo, sem limi- revoltas é a “negação pura e sim- ninguém, mas de todos. Não se iden-
em que ele não funda nem con- dos” pelos signos do regime. siona, para “lavar o lastro da dita- te nem estratégia. O capital requer ples” que não “aponta para nada”. tifican com um “sujeito suposto sa-
serva nada. 33 A imolação não é o sacrifício. Se dura”, justamente. A imolação de sacrifício para desenvolver a acu- Como tal, é uma “razão” ateleoló- ber”. Com isso, a imolação trabalha
Por que as forças policiais e preferirmos, é o sacrifício às aves- Bouazizi e Ali Akhle constituiu mulação, mas a revolta impugna gica e completamente fora do ho- no sentido inverso ao do sacrifício,
militares de Assad dispararam con- sas. Melhor dizendo, a imolação é uma forma de imolação singular esse sacrifício com um gasto irre- rizonte de destino e de feição sa- pois, ao “lavar” das palavras o “las-
tra os que assistiam ao enterro dos o sacrifício que passa ao largo, por- precisamente porque aqueles que dutível a qualquer tabela de custos: crificial concebido pela “filosofia tro da ditadura”, abre o umbral pe-
que tinham sido mortos em pro- que não funda nem conserva a or- a praticaram eram desconhecidos, porventura os manifestantes de De- da história do capital”, sobre a qual lo qual o povo começa a aprender
testos? Que perigo traz o funeral dem, apenas a impugna. É o sa- eram “qualquer um”. Todos e nin- raa, Alepo ou Damasco mediram se atou o discurso pós-colonial.37 uma nova língua, dando novos usos
dos mortos em luta? Nossa hipó- crifício invertido, que, em vez de guém, ao mesmo tempo, podem os custos de se somarem aos protes- Toda “tirania pós-colonial” – a às palavras anquilosadas pelas pan-
tese é que o perigo que entrou em fundar um totem, o revoga. A imo- praticar o ato de purificação mais tos contra o regime? A revolta não tirania síria, antes de tudo – con- cadas do poder: “Todos experimen-
jogo na imolação de Hassan Ali lação prescinde de qualquer voca- absoluto, que não consiste em fun- calcula, mas imagina; não acumula templa sua própria destruição, em tam a epifania dos mesmos símbo-
Akhle e nos funerais reside no des- ção fundadora porque descortina dar uma ordem pura, mas em re- o expropriado, mas gasta o que não face de uma “razão” inteiramente los”, escreveu Furio Jesi. “O espaço
pertar da força que o poema de o homem comum, liberta os corpos vogar a ordem estabelecida, dando tem. A imolação liberta o “qualquer inovadora que apenas imagina, individual de cada um, dominado
Adonis chama de Ali, no restabe- do discurso hegemônico. Os an- curso à revolta. um” dos poderes que o subjugam; gasta e se liberta dos dispositivos pelos próprios símbolos pessoais, o
lecimento do povo como uma for- tigos mártires morriam na boca Se a revolta é um operador da o sacrifício termina fundando uma que disputam sua captura. Uma refúgio em relação ao tempo histó-
ça irredutível ao dispositivo do do Anticristo para impugnar o po- imaginação, a imolação constitui nova ordem soberana que subordi- política isenta de Estado e um Es- rico que cada um encontra em sua
regime. Enterrar os mortos signi- der soberano, desativar sua pre- seu umbral. Bouazizi ou Ali Akh- na os “quaisquer” ao carisma de um tado isento de política seriam o própria simbologia e em sua própria
fica enterrar o “qualquer um”, tensão de sacralidade e restabelecer le são a imagem que condensa a líder. Estranhamente, nesse caso, a abismo aberto pela revolta contra mitologia individuais, amplia-se e
aquele que, sendo “ninguém” (e o caráter comum dos signos: “Esta sociedade inteira, a partir da qual imolação que desencadeou a inten- o regime. Não há teleologia que se converte no espaço simbólico
“todos” ao mesmo tempo), im- revolução”, declarou a poetisa a sociedade se liberta do poder que sidade das revoltas fez com que to- resista à “razão estética”, apenas a comum a toda a comunidade, no
pugna os “heróis” da iconografia egípcia Imam Mersal numa entre- a aprisiona. Lavar das palavras o do sagrado fosse profanado, fez com inapropriável apropriação do ho- refúgio em relação ao tempo his-
do regime. O regime precisa evi- vista recente, “modificou algo pro- “lastro da ditadura” implica um que tudo que tinha sido capturado mem comum que estava capturado.38 tórico em que toda a comunidade
tar que o “qualquer um” seja re- fundo em palavras como ‘pátria’, gesto de purificação que é o in- fosse inteiramente libertado. A “razão estética” aberta pela re- encontra uma escapatória.”39 A re-

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guerra na síria 94 95
Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

volta não teve télos nem obra: def lagrada a legado é a memória que, nesse cenário, con- Notas 13. Massimo Campanini, História de Orien- sua força o sinal de sua debilidade, e violência, ou o tipo de violência que
partir da imolação, careceu de vanguarda e verte-se em parte ativa da luta pelo poder te Medio, op. cit. faz de sua violência a marca do seu va- um discurso e outro põem em jogo.
14. Ignacio Alvarez Osorio, Siria contem- zio: “Que o Estado árabe seja um Es- 33. Em sua discussão com Carl Schmitt,
aconteceu como um relâmpago em meio à comum, toda vez que se enche de seus “quais- 1. Adonis, Prólogo a la historia de los reyes tado autoritário, e que se mostre tão
porânea, op. cit. Walter Benjamin contrastou estes dois
sombra de um povo. A imolação contornou quer”. Trata-se de uma memória impessoal, de taifas, in Adonis, Este es mi nombre, reativo à democracia e tão resistente a
15. Idem, p. 88-89. tipos de violência – a que denominou
o sacrifício e possibilitou que os mitos alcan- coletiva, que não pertence a “alguém”. Seus Madri, Ed. Aliança Literaria, 2006. suas pressões, não deve ser interpreta- “violência mítica”, que funda e con-
çassem sua historicidade, que a eternidade mortos pertencem a todos os que lutam con- 2. Adonis, Prólogo a la historia de los reyes 16. Massimo Campanini, História de Orien- do, evidentemente, como um sinal de serva o direito, e a que chamou de
de taifas, op. cit., p. 25. te Medio, op. cit. força, mas exatamente o contrário”;
encontrasse seu tempo, que os signos captu- tra o regime, os mortos que protestaram e “divina” ou “pura”, que não funda
17. Gema Martín Muñoz, El Estado árabe, para Ayubi, o Estado árabe moderno nem conserva nada. Na perspectiva
rados pelo líder se “ampliassem”, para se con- exibiram o vazio da máquina do regime, que 3. Samir Amin, ¿Primavera árabe? El mun-
do árabe en la larga duración, Barcelona, op. cit. funciona na base de uma relação in- em que trabalho, essa distinção é aná-
verterem nos de “qualquer um”. Como uma indicaram que atrás dele não há “ninguém”, versamente proporcional entre auto-
Ed. Viejo Topo, 2011. 18. Massimo Campanini, História de Orien- loga à que diferencia sacrifício de imo-
porta que se abre para a imaginação, a revol- nem líder nem herói. Atrás do poder não re- te Medio, op. cit., p. 170. ritarismo e hegemonia: quanto maior lação, dois usos do termo árabe shahid.
ta síria – e árabe em geral – foi desencade- side “ninguém”, nenhum sujeito, porque não 4. Walter Benjamin escreveu, na tese o autoritarismo, menor a hegemonia;
IX: “Há um quadro de Klee chamado 19. Idem, p. 172. Ver Walter Benjamin, Para una crítica
ada por uma imolação, pois esse foi o gesto há “atrás” algum, apenas fluxos, superfícies, quanto maior a força, menor a forta- de la violencia, Buenos Aires, Ed. Mu-
Angelus Novus. Nele é representado 20. Nazih Ayubi, Política y sociedad en leza: “O autêntico poder de regulação
capaz de profanar a narrativa sacrificial campos de força que definem a vida comum. um anjo que dá a impressão de estar Oriente Próximo, op. cit.
rena, 1967.
desses Estados não é tão impressionan-
enaltecida pelo Baath. Diante do sacrifício A lógica exterminadora do regime sabe prestes a se afastar de algo que ele fita, te”, frisa Ayubi. “Sua capacidade de
34. Imã Mersal, “S. J. Fowler interviews
21. Diz Martín Muñoz: “Desde então, o
do líder que diz “estou aqui por vocês” – que não se destroem os vivos, mas se des- atônito. Seus olhos estão exagerada- Imam Mersal”, in Poetry Parnassus Re-
pan-arabismo baathista original trans- fazer cumprir as leis é muito mais dé-
mente arregalados, aberta a boca, as view ( julho de 2012).
sacrifício que funciona como um disposi- troem seus mortos. A “ordem das coisas” não formou-se num grande nacionalismo bil que sua faculdade de promulgá-las;
asas estendidas. O anjo da história de- 35. Hamid Dabashi, The Arab Spring. The
tivo “pastoral”, pois o sacrifício dele traba- se imporá se os povos recordarem os “qual- sírio, o socialismo converteu-se num sua capacidade de levar a cabo os pla-
ve ter esse aspecto. Tem o rosto vol- nos de desenvolvimento é muito me- end of postcolonialism, Londres, Ed. Zed
lha pelo “bem” da comunidade – o “qual- quer um” em vez de propiciarem a liturgia liberalismo econômico autocratica-
tado para o passado. Naquilo que se nor que sua faculdade de elaborá-los Books, 2012, p. 168 (tradução minha).
mente protegido, e a sensibilidade lai-
quer um” retruca: “não queremos os seus dos “grandes homens”, como Bashar al-Assad. nos afigura uma cadeia de aconteci-
ca inicial desviou-se para uma hege- […]” (p. 663). O Estado árabe torna- 36. Idem.
serviços”. A imolação revoga a dinâmica A memória dos “quaisquer”, através do ideo- mentos ele vê uma só catástrofe, que
monia confessional da minoria alaui- -se “hipertrófico”, porque desenvol-
empilha incessantemente uma ruína 37. Sergio Villalobos-Ruminott, Soberanías
pastoral-sacrificial exposta como pilar da logema das pessoas em particular, foi a luta ta (11% da população).” Em Gema ve excessivamente o Exército e a po- en suspenso. Imaginación y violencia en Amé-
ordem. A revogação da dinâmica pastoral- semiótica em que o regime entrou para res- sobre outra e as atira a seus pés.” “So- lícia, precisamente por ter um déficit
Martin Muñoz, El Estado árabe, op. rica Latina, Lanús, Ed. A Cebra, 2013.
bre el concepto de história”, in Walter de “hegemonia” (ou de governo, se
-sacrificial se dá graças ao acontecimento tabelecer a dinâmica do dispositivo sacrificial Benjamin, La dialéctica en suspenso. Frag-
cit., p. 88.
38. Giorgio Agamben, L`uso dei corpi. Ho-
imolador que condensa a força que torna que servia de alicerce para sua ideología es- 22. Nazih Ayubi, Política y sociedad en preferirmos). Trata-se de um gigan-
mentos sobre la história, tradução, intro- mo sacer, IV, 2, Vicenza, Ed. Neri Po-
Oriente Próximo, op. cit., p. 525. te com pés de barro, que assume uma
os signos cheios de historicidade, para con- tatal-nacional. Por isso, apesar de Bashar al- dução e notas de Pablo Oyarzún Ro- dimensão “feroz” e não “forte”, “au-
zza, 2014.
vertê-los no que Jesi chama de uma verda- -Assad ter revogado o estado de exceção de bles, Santiago do Chile, p. 54-55. 23. Ignacio Álvarez Osório, Siria Contem-
toritária” e, por essa razão, absoluta- 39. Furio Jesi, Spartakus. Simbología de la
deira simbologia da revolta.40 1963 e ter convidado a “oposição” a dialogar, 5. Massimo Campanini, Historia de poránea, op. cit., p. 182. revuelta, Buenos Aires, Ed. Adriana
mente “frágil”.
A luta semiótica levou o Exército sírio e os manifestantes exigiram sua renúncia. Não Oriente Medio. De 1798 hasta nuestros 24. Louis Althusser, Ideología y aparato ide- Hidalgo, 2015, p. 71.
31. Idem, p. 663-664.
días, Madri, Ed. Machado Libros, ológico de Estado, Cidade do México, 40. Idem.
suas forças de segurança a temerem mais o se tratava de buscar tal ou qual reforma, mas 32. É interessante notar que tanto os mu-
2006, p. 78. Ed. Siglo XXI, 2003.
espectro dos mortos do que a presença dos de fazer cair a totalidade de um regime. To- çulmanos quanto os nacionalistas usam 41. Hamid Dabashi, The Arab Spring, op. cit.
6. Citado em Ignacio Álvarez-Osorio, 25. Giorgio Agamben, Il Regno e la gloria.
vivos. Massacrar a multidão que assistia aos davia, o termo “regime” aqui não designa Per una genealogia della economia e del
o termo shahid para designar seus res- 42. Samir Amin, ¿Tienen futuro las revueltas
Siria Contemporánea, Madri, Ed. Sín- pectivos “mártires”, seja os que mor-
funerais dos que tinham sido assassinados du- simplesmente o regime etno-confesional de árabes?, Barcelona, Ed. Viejo Topo, 2015.
tesis, 2009, p. 23-24. governo. Homo sacer II, 2, Vicenzag Ed.
rem por causa de Deus, seja os que
rante os protestos era uma operação sacrifi- al-Assad, mas, como indicou Dabashi, o “re- 7. Nazih Ayubi, Política y sociedad en Orien- Bollati Borighieri, 2007.
morrem por causa do Estado. Neste
cial, para fazer desaparecer a simbologia da re- gime de conhecimento” articulado a partir te próximo, Barcelona, Ed. Bellaterra, 26. Ignacio Álvarez Osório, Siria Con- sentido, sustentarei que os manifes-
volta e substituí-la pela do regime. A grande dos binômios característicos da razão impe- p. 174. temporánea, op. cit., p. 154-155. tantes das revoltas também falam de
liturgia baathista pretendeu encher a memó- rialista com base nos quais foi traçado o nomos 8. Gema Martín Muñoz, El Estado árabe. 27. http://elpais.com/diario/2005/10/20/ shahid, mas lhe dão um uso inteira-
ria do povo com seus signos, mas não pôde dos acordos de Sykes-Picot: “nós-eles”, “ami- Crisis de legitimidad y contestación isla- internacional/1129759208_850215. mente diferente do uso “sacrificial”
mista, Barcelona, Ed. Bellaterra, p. 72. html. apresentado nos dois grandes discursos
produzi-los. Então, diante do tumulto ima- gos-inimigos”, “civilizados-bárbaros”, “di-
28. Ignacio Álvarez Osório, Siria contem- pós-coloniais. Utilizarei operativa-
ginal da revolta, lançou-se a fazê-la desapa- tadores-democratas”, “Oriente-Ocidente”. 9. Massimo Campanini, História de Orien-
poránea, op. cit., p.184. mente a diferença entre “imolação” e
recer, propiciando seu extermínio: não pre- A revolta foi a ressurreição de Ali, o instante te Medio, op. cit.
“sacrifício” na língua castelhana para
cisava apenas matar, mas exterminar, isto é, que marcou o fim da razão imperialista e seus 10. Gema Martín Muñoz, El Estado árabe. 29. Tariq Ali, Bush en Babilonia. La reco-
distinguir o efeito que instala a revol-
Crisis de legitimidad y contestación isla- lonización de Irak, Madri, Ed. Alianza,
fazer desaparecer os vestígios dos vivos, os binômios estampados nos dois grandes dis- ta nos dois grandes discursos assinala-
mista, Barcelona, Ed. Bellaterra, p. 72. 2003.
traços dos que estiveram ali e foram assassi- cursos de orientação pós-colonial.41 Uma res- dos: o primeiro usaria o termo shahid
11. Citado em Ignacio Álvarez-Osorio, 30. Essa leitura nos liga diretamente à fe- como o que chamamos aqui de imo-
nados às bateladas, pelo assédio indiscrimi- surreição que, apesar de tudo, continua vi- Siria Contemporânea, op. cit., p. 50. nomenologia política desenvolvida por lação, e o segundo, como o que aqui
nado tanto das forças de segurança quanto do gente, pois, como se lia em algumas paredes Ayubi em torno do Estado árabe mo- denominamos sacrifício. É crucial nes-
12. Ignacio Álvarez-Osorio, Siria Con-
Exército. Destruir não apenas os vivos, mas da cidade do Cairo, a revolução não mudou o temporánea, op. cit. derno: este último experimentaria um se sentido o fato de que o que pesa
os ecos que os mortos legavam aos vivos. Esse regime, mas mudou o povo.42 n fenômeno de “hipertrofia” que faz de nessa diferença é o próprio estatuto da

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


guerra na síria 94 95
Rodrigo Karmy Bolton A Ressurreição de Ali - Considerações intempestivas sobre a Síria

volta não teve télos nem obra: def lagrada a legado é a memória que, nesse cenário, con- Notas 13. Massimo Campanini, História de Orien- sua força o sinal de sua debilidade, e violência, ou o tipo de violência que
partir da imolação, careceu de vanguarda e verte-se em parte ativa da luta pelo poder te Medio, op. cit. faz de sua violência a marca do seu va- um discurso e outro põem em jogo.
14. Ignacio Alvarez Osorio, Siria contem- zio: “Que o Estado árabe seja um Es- 33. Em sua discussão com Carl Schmitt,
aconteceu como um relâmpago em meio à comum, toda vez que se enche de seus “quais- 1. Adonis, Prólogo a la historia de los reyes tado autoritário, e que se mostre tão
porânea, op. cit. Walter Benjamin contrastou estes dois
sombra de um povo. A imolação contornou quer”. Trata-se de uma memória impessoal, de taifas, in Adonis, Este es mi nombre, reativo à democracia e tão resistente a
15. Idem, p. 88-89. tipos de violência – a que denominou
o sacrifício e possibilitou que os mitos alcan- coletiva, que não pertence a “alguém”. Seus Madri, Ed. Aliança Literaria, 2006. suas pressões, não deve ser interpreta- “violência mítica”, que funda e con-
çassem sua historicidade, que a eternidade mortos pertencem a todos os que lutam con- 2. Adonis, Prólogo a la historia de los reyes 16. Massimo Campanini, História de Orien- do, evidentemente, como um sinal de serva o direito, e a que chamou de
de taifas, op. cit., p. 25. te Medio, op. cit. força, mas exatamente o contrário”;
encontrasse seu tempo, que os signos captu- tra o regime, os mortos que protestaram e “divina” ou “pura”, que não funda
17. Gema Martín Muñoz, El Estado árabe, para Ayubi, o Estado árabe moderno nem conserva nada. Na perspectiva
rados pelo líder se “ampliassem”, para se con- exibiram o vazio da máquina do regime, que 3. Samir Amin, ¿Primavera árabe? El mun-
do árabe en la larga duración, Barcelona, op. cit. funciona na base de uma relação in- em que trabalho, essa distinção é aná-
verterem nos de “qualquer um”. Como uma indicaram que atrás dele não há “ninguém”, versamente proporcional entre auto-
Ed. Viejo Topo, 2011. 18. Massimo Campanini, História de Orien- loga à que diferencia sacrifício de imo-
porta que se abre para a imaginação, a revol- nem líder nem herói. Atrás do poder não re- te Medio, op. cit., p. 170. ritarismo e hegemonia: quanto maior lação, dois usos do termo árabe shahid.
ta síria – e árabe em geral – foi desencade- side “ninguém”, nenhum sujeito, porque não 4. Walter Benjamin escreveu, na tese o autoritarismo, menor a hegemonia;
IX: “Há um quadro de Klee chamado 19. Idem, p. 172. Ver Walter Benjamin, Para una crítica
ada por uma imolação, pois esse foi o gesto há “atrás” algum, apenas fluxos, superfícies, quanto maior a força, menor a forta- de la violencia, Buenos Aires, Ed. Mu-
Angelus Novus. Nele é representado 20. Nazih Ayubi, Política y sociedad en leza: “O autêntico poder de regulação
capaz de profanar a narrativa sacrificial campos de força que definem a vida comum. um anjo que dá a impressão de estar Oriente Próximo, op. cit.
rena, 1967.
desses Estados não é tão impressionan-
enaltecida pelo Baath. Diante do sacrifício A lógica exterminadora do regime sabe prestes a se afastar de algo que ele fita, te”, frisa Ayubi. “Sua capacidade de
34. Imã Mersal, “S. J. Fowler interviews
21. Diz Martín Muñoz: “Desde então, o
do líder que diz “estou aqui por vocês” – que não se destroem os vivos, mas se des- atônito. Seus olhos estão exagerada- Imam Mersal”, in Poetry Parnassus Re-
pan-arabismo baathista original trans- fazer cumprir as leis é muito mais dé-
mente arregalados, aberta a boca, as view ( julho de 2012).
sacrifício que funciona como um disposi- troem seus mortos. A “ordem das coisas” não formou-se num grande nacionalismo bil que sua faculdade de promulgá-las;
asas estendidas. O anjo da história de- 35. Hamid Dabashi, The Arab Spring. The
tivo “pastoral”, pois o sacrifício dele traba- se imporá se os povos recordarem os “qual- sírio, o socialismo converteu-se num sua capacidade de levar a cabo os pla-
ve ter esse aspecto. Tem o rosto vol- nos de desenvolvimento é muito me- end of postcolonialism, Londres, Ed. Zed
lha pelo “bem” da comunidade – o “qual- quer um” em vez de propiciarem a liturgia liberalismo econômico autocratica-
tado para o passado. Naquilo que se nor que sua faculdade de elaborá-los Books, 2012, p. 168 (tradução minha).
mente protegido, e a sensibilidade lai-
quer um” retruca: “não queremos os seus dos “grandes homens”, como Bashar al-Assad. nos afigura uma cadeia de aconteci-
ca inicial desviou-se para uma hege- […]” (p. 663). O Estado árabe torna- 36. Idem.
serviços”. A imolação revoga a dinâmica A memória dos “quaisquer”, através do ideo- mentos ele vê uma só catástrofe, que
monia confessional da minoria alaui- -se “hipertrófico”, porque desenvol-
empilha incessantemente uma ruína 37. Sergio Villalobos-Ruminott, Soberanías
pastoral-sacrificial exposta como pilar da logema das pessoas em particular, foi a luta ta (11% da população).” Em Gema ve excessivamente o Exército e a po- en suspenso. Imaginación y violencia en Amé-
ordem. A revogação da dinâmica pastoral- semiótica em que o regime entrou para res- sobre outra e as atira a seus pés.” “So- lícia, precisamente por ter um déficit
Martin Muñoz, El Estado árabe, op. rica Latina, Lanús, Ed. A Cebra, 2013.
bre el concepto de história”, in Walter de “hegemonia” (ou de governo, se
-sacrificial se dá graças ao acontecimento tabelecer a dinâmica do dispositivo sacrificial Benjamin, La dialéctica en suspenso. Frag-
cit., p. 88.
38. Giorgio Agamben, L`uso dei corpi. Ho-
imolador que condensa a força que torna que servia de alicerce para sua ideología es- 22. Nazih Ayubi, Política y sociedad en preferirmos). Trata-se de um gigan-
mentos sobre la história, tradução, intro- mo sacer, IV, 2, Vicenza, Ed. Neri Po-
Oriente Próximo, op. cit., p. 525. te com pés de barro, que assume uma
os signos cheios de historicidade, para con- tatal-nacional. Por isso, apesar de Bashar al- dução e notas de Pablo Oyarzún Ro- dimensão “feroz” e não “forte”, “au-
zza, 2014.
vertê-los no que Jesi chama de uma verda- -Assad ter revogado o estado de exceção de bles, Santiago do Chile, p. 54-55. 23. Ignacio Álvarez Osório, Siria Contem-
toritária” e, por essa razão, absoluta- 39. Furio Jesi, Spartakus. Simbología de la
deira simbologia da revolta.40 1963 e ter convidado a “oposição” a dialogar, 5. Massimo Campanini, Historia de poránea, op. cit., p. 182. revuelta, Buenos Aires, Ed. Adriana
mente “frágil”.
A luta semiótica levou o Exército sírio e os manifestantes exigiram sua renúncia. Não Oriente Medio. De 1798 hasta nuestros 24. Louis Althusser, Ideología y aparato ide- Hidalgo, 2015, p. 71.
31. Idem, p. 663-664.
días, Madri, Ed. Machado Libros, ológico de Estado, Cidade do México, 40. Idem.
suas forças de segurança a temerem mais o se tratava de buscar tal ou qual reforma, mas 32. É interessante notar que tanto os mu-
2006, p. 78. Ed. Siglo XXI, 2003.
espectro dos mortos do que a presença dos de fazer cair a totalidade de um regime. To- çulmanos quanto os nacionalistas usam 41. Hamid Dabashi, The Arab Spring, op. cit.
6. Citado em Ignacio Álvarez-Osorio, 25. Giorgio Agamben, Il Regno e la gloria.
vivos. Massacrar a multidão que assistia aos davia, o termo “regime” aqui não designa Per una genealogia della economia e del
o termo shahid para designar seus res- 42. Samir Amin, ¿Tienen futuro las revueltas
Siria Contemporánea, Madri, Ed. Sín- pectivos “mártires”, seja os que mor-
funerais dos que tinham sido assassinados du- simplesmente o regime etno-confesional de árabes?, Barcelona, Ed. Viejo Topo, 2015.
tesis, 2009, p. 23-24. governo. Homo sacer II, 2, Vicenzag Ed.
rem por causa de Deus, seja os que
rante os protestos era uma operação sacrifi- al-Assad, mas, como indicou Dabashi, o “re- 7. Nazih Ayubi, Política y sociedad en Orien- Bollati Borighieri, 2007.
morrem por causa do Estado. Neste
cial, para fazer desaparecer a simbologia da re- gime de conhecimento” articulado a partir te próximo, Barcelona, Ed. Bellaterra, 26. Ignacio Álvarez Osório, Siria Con- sentido, sustentarei que os manifes-
volta e substituí-la pela do regime. A grande dos binômios característicos da razão impe- p. 174. temporánea, op. cit., p. 154-155. tantes das revoltas também falam de
liturgia baathista pretendeu encher a memó- rialista com base nos quais foi traçado o nomos 8. Gema Martín Muñoz, El Estado árabe. 27. http://elpais.com/diario/2005/10/20/ shahid, mas lhe dão um uso inteira-
ria do povo com seus signos, mas não pôde dos acordos de Sykes-Picot: “nós-eles”, “ami- Crisis de legitimidad y contestación isla- internacional/1129759208_850215. mente diferente do uso “sacrificial”
mista, Barcelona, Ed. Bellaterra, p. 72. html. apresentado nos dois grandes discursos
produzi-los. Então, diante do tumulto ima- gos-inimigos”, “civilizados-bárbaros”, “di-
28. Ignacio Álvarez Osório, Siria contem- pós-coloniais. Utilizarei operativa-
ginal da revolta, lançou-se a fazê-la desapa- tadores-democratas”, “Oriente-Ocidente”. 9. Massimo Campanini, História de Orien-
poránea, op. cit., p.184. mente a diferença entre “imolação” e
recer, propiciando seu extermínio: não pre- A revolta foi a ressurreição de Ali, o instante te Medio, op. cit.
“sacrifício” na língua castelhana para
cisava apenas matar, mas exterminar, isto é, que marcou o fim da razão imperialista e seus 10. Gema Martín Muñoz, El Estado árabe. 29. Tariq Ali, Bush en Babilonia. La reco-
distinguir o efeito que instala a revol-
Crisis de legitimidad y contestación isla- lonización de Irak, Madri, Ed. Alianza,
fazer desaparecer os vestígios dos vivos, os binômios estampados nos dois grandes dis- ta nos dois grandes discursos assinala-
mista, Barcelona, Ed. Bellaterra, p. 72. 2003.
traços dos que estiveram ali e foram assassi- cursos de orientação pós-colonial.41 Uma res- dos: o primeiro usaria o termo shahid
11. Citado em Ignacio Álvarez-Osorio, 30. Essa leitura nos liga diretamente à fe- como o que chamamos aqui de imo-
nados às bateladas, pelo assédio indiscrimi- surreição que, apesar de tudo, continua vi- Siria Contemporânea, op. cit., p. 50. nomenologia política desenvolvida por lação, e o segundo, como o que aqui
nado tanto das forças de segurança quanto do gente, pois, como se lia em algumas paredes Ayubi em torno do Estado árabe mo- denominamos sacrifício. É crucial nes-
12. Ignacio Álvarez-Osorio, Siria Con-
Exército. Destruir não apenas os vivos, mas da cidade do Cairo, a revolução não mudou o temporánea, op. cit. derno: este último experimentaria um se sentido o fato de que o que pesa
os ecos que os mortos legavam aos vivos. Esse regime, mas mudou o povo.42 n fenômeno de “hipertrofia” que faz de nessa diferença é o próprio estatuto da

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96 97
A Era Trump

A ERA
TRUMP
O mundo que Trump vai herdar, em 20 de janeiro de 2017, é muito complexo e perigoso.
Mais, talvez, do que em qualquer outra época desde o fim da Segunda Guerra Mundial. As
placas tectônicas estão em movimento, e o futuro é mais incerto do que nunca. Pela primeira
vez, o cidadão médio sente que seus filhos não desfrutarão de uma vida melhor. Há um clima
de profundo pessimismo. Até o presidente do Banco da Inglaterra, Mark Carney, alertou para o
fato de que a situação da classe trabalhadora assemelha-se às condições da década de 1860,
que deram origem a Karl Marx. Estamos navegando em direção a águas muito revoltas. Evitar
a xenofobia será difícil. O presidente Trump terá pela frente desafios realmente portentosos.

A Era Trump está prestes a começar. O que quado para ocupar o mais alto cargo da na-
a posse de Donald Trump nos diz sobre os ção. As diatribes sexistas, misantrópicas e
Estados Unidos e sua política? Qual será seu hostis aos imigrantes serviam para confirmar
impacto nos Estados Unidos e no relaciona- essa opinião.
mento do país com aliados, concorrentes e Apesar de ser um empreiteiro bilionário
inimigos? Muitos estão preocupados com as de Nova York, Donald Trump nunca foi acei-
perspectivas. Devem estar? to como membro da elite de Manhattan. Nem
A eleição de Donald Trump desencadeou mesmo sua espalhafatosa Trump Tower, vi-
Kenneth Maxwell ondas de choque no mundo inteiro. Não foi zinha de um símbolo da classe dominante
Diretor do Programa prevista por muitos observadores que deve- nova-iorquina na Quinta Avenida – o edifí-
de Estudos Brasileiros riam, pelo menos, ter-se preparado para essa cio-sede da Tiffany and Company – conse-
do Centro David
Rockefeller para Estudos eventualidade. A “mídia da corrente domi- guiu ajudar. Ele veio dos distritos periféricos.
Latino-americanos da nante”, violentamente atacada por Trump ao Nos termos da cidade de Nova York, isso
Universidade Harvard. longo de toda a campanha, afirmava reitera- significa que nunca poderia frequentar os se-
damente que a eleição dele era impossível. letos corredores da alta sociedade local. Trump
Ele era, afinal, o suprassumo do azarão. se ressente disso. É um bilionário de fora,
Nunca fora levado a sério, muito menos vindo das áreas pobres da cidade, como se
aceito, pelos “sumos sacerdotes” da ordem costuma dizer, e de índole agressiva.
estabelecida da política externa. Aliás, qua- Mas Donald sabia uma coisa que eles
master24/shutterstock.com

se todos haviam assinado uma carta em que desconheciam. Como produtor de espetá-
declaravam que Trump era incapaz e inade- culos e astro de sucesso em reality shows,

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


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A Era Trump

A ERA
TRUMP
O mundo que Trump vai herdar, em 20 de janeiro de 2017, é muito complexo e perigoso.
Mais, talvez, do que em qualquer outra época desde o fim da Segunda Guerra Mundial. As
placas tectônicas estão em movimento, e o futuro é mais incerto do que nunca. Pela primeira
vez, o cidadão médio sente que seus filhos não desfrutarão de uma vida melhor. Há um clima
de profundo pessimismo. Até o presidente do Banco da Inglaterra, Mark Carney, alertou para o
fato de que a situação da classe trabalhadora assemelha-se às condições da década de 1860,
que deram origem a Karl Marx. Estamos navegando em direção a águas muito revoltas. Evitar
a xenofobia será difícil. O presidente Trump terá pela frente desafios realmente portentosos.

A Era Trump está prestes a começar. O que quado para ocupar o mais alto cargo da na-
a posse de Donald Trump nos diz sobre os ção. As diatribes sexistas, misantrópicas e
Estados Unidos e sua política? Qual será seu hostis aos imigrantes serviam para confirmar
impacto nos Estados Unidos e no relaciona- essa opinião.
mento do país com aliados, concorrentes e Apesar de ser um empreiteiro bilionário
inimigos? Muitos estão preocupados com as de Nova York, Donald Trump nunca foi acei-
perspectivas. Devem estar? to como membro da elite de Manhattan. Nem
A eleição de Donald Trump desencadeou mesmo sua espalhafatosa Trump Tower, vi-
Kenneth Maxwell ondas de choque no mundo inteiro. Não foi zinha de um símbolo da classe dominante
Diretor do Programa prevista por muitos observadores que deve- nova-iorquina na Quinta Avenida – o edifí-
de Estudos Brasileiros riam, pelo menos, ter-se preparado para essa cio-sede da Tiffany and Company – conse-
do Centro David
Rockefeller para Estudos eventualidade. A “mídia da corrente domi- guiu ajudar. Ele veio dos distritos periféricos.
Latino-americanos da nante”, violentamente atacada por Trump ao Nos termos da cidade de Nova York, isso
Universidade Harvard. longo de toda a campanha, afirmava reitera- significa que nunca poderia frequentar os se-
damente que a eleição dele era impossível. letos corredores da alta sociedade local. Trump
Ele era, afinal, o suprassumo do azarão. se ressente disso. É um bilionário de fora,
Nunca fora levado a sério, muito menos vindo das áreas pobres da cidade, como se
aceito, pelos “sumos sacerdotes” da ordem costuma dizer, e de índole agressiva.
estabelecida da política externa. Aliás, qua- Mas Donald sabia uma coisa que eles
master24/shutterstock.com

se todos haviam assinado uma carta em que desconheciam. Como produtor de espetá-
declaravam que Trump era incapaz e inade- culos e astro de sucesso em reality shows,

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98 99
estados unidos Kenneth Maxwell A Era Trump

tendo acabado de completar ca- Trump também sabe que a –, Hillary Clinton também era ropeia, deveria ter sinalizado que ricanos revelou que 36% deles, so- em oposição ao que ele chama de
torze temporadas como apresen- “verdade” ou os “fatos”, nesta parte integrante de outra recen- nem tudo ia bem no campo da bretudo os mais ricos, não disse- conspiração “dos maçons, dos
tador do programa O aprendiz, nova era da comunicação pela in- te família dinástica da política previsão e da avaliação da opinião ram aos amigos em quem preten- grandes conglomerados bancários
ele compreendeu que o mundo ternet, são muito relativos. Sua norte-americana, a do seu mari- pública, uma lição que Trump diam votar, para “fugir de e dos chineses”.
da comunicação sofreu uma mu- verdade é aquilo que ele acha (em do e ex-presidente Bill Clinton. enxergou com clareza. Em suas discussões e evitar julgamentos”. Trump, é claro, também ata-
dança drástica na última década, cada momento) que é. Não se Nunca poderia escapar da com- aparições, ele passou a ter a com- cou os chineses. E sua conversa
especialmente nos Estados Uni- deixa constranger pelo que cha- prometida herança dos anos que panhia de Nigel Farage, que tinha pós-eleitoral com Tsai Ing-wen,
dos, mas também em outras par- ma de “censura” ou “correção Clinton passou no poder, dos inventado o Partido da Indepen- O presidente presidente de Taiwan, rompeu com
tes do mundo, por causa da di- política” da corrente dominante escândalos sexuais no salão oval, dência do Reino Unido (UKIP) a política norte-americana de “am-
fusão quase universal da internet da mídia. Na campanha, trans- da posterior mania de lucros da e f izera a campanha mais ef i- Trump prometeu biguidade deliberada” em relação
e da possibilidade de qualquer formou os ataques ao “politica- Bill Clinton Ltd. e das compli- ciente pela saída da Grã-Breta- à política da “uma só China” bem
pessoa, em qualquer lugar, rece- mente correto” num grito de cadas operações internacionais nha da União Europeia. Uma
“drenar o lodaçal” como com a “concordância (não
ber as notícias que preferir, in- guerra dos excluídos, arrebatando da Fundação Clinton. vez eleito, encontrou Farage na de Washington, dita) em discordar”, que vigora-
dependentemente da filtragem e o apoio apaixonado dos segmen- As alegações contra Hillary Trump Tower, em Nova York, e vam desde a gestão de Jimmy Car-
da interpretação dos editores e tos da sociedade que mais sofre- Clinton a propósito dos e-mails postou no Twitter uma mensagem mas entre os ter, em 1979. É improvável que
colunistas dos jornais da corren- ram com as últimas duas décadas que tratavam de “dinheiro em tro- dizendo que ele daria um exce- esse telefonema tenha sido um aci-
te dominante e das grandes redes de globalização desenfreada, de ca de acesso”, quando ela ocupava lente embaixador da Grã-Bretanha novos ministros dente. Muitos partidários linha-
de televisão. renda e oportunidades estagnadas o cargo de secretária de Estado de nos Estados Unidos. -dura de Trump, nas forças arma-
Seus ataques à mídia da cor- e decrescentes, especialmente no Barack Obama, acertaram o alvo. Theresa May, a primeira-mi- estão três das e no aparato de segurança na-
rente dominante tornaram-se um chamado “cinturão de ferrugem” Nesse imbróglio, não ajudou mui- nistra britânica pós-plebiscito, cional norte-americanos, estão
de seus motes mais populares. O da região setentrional do Centro- to o envolvimento de Anthony foi a décima primeira na lista de
bilionários que se preocupados, há algum tempo,
uso de mensagens curtas e mor- -Oeste. Ali, a antiga classe traba- Weiner, o ex-deputado das insa- telefonemas dados por Trump formaram no com o comportamento agressivo
dazes no Twitter também foi um lhadora viu as indústrias serem ciáveis mensagens de sexo explí- depois de sua vitória. Isso não dos chineses no mar da China Me-
traço característico de sua cam- devastadas e perdeu os empregos cito, e sua mulher (agora ex), Hu- caiu bem na Downing Street. Goldman Sachs, ridional, com a construção, pela
panha presidencial, além da prá- formais e seguros, sindicalizados ma Abedin, que era assessora e Boris Johnson, o novo ministro China, de ilhas artificiais em águas
tica de enviar mensagens notur- e bem remunerados, na medida amiga íntima de Hillary Clinton. britânico das Relações Exterio- o maior símbolo disputadas e com seus esforços ex-
nas para o público em geral, des- em que as empresas transferiam Os gritos de “mande-a para a ca- res (pós-Brexit) – um Trump pansionistas nessa região sensível
de que foi eleito. Ele usa o as fábricas para o México, onde deia” referentes à candidata demo- “versão leve”, com o mesmo ar da banca de e territorialmente polêmica do
Twitter em vez das tradicionais os salários são baixos. crata foram puro teatro em todas de palhaço e com a mesma ca- mundo. Trump também já indi-
coletivas de imprensa ou do aces- Os ataques de Trump ao livre- as apresentações da campanha de beleira –, disse à Câmara dos Co-
Wall Street. cou que vai retirar os Estados Uni-
so especial concedido a jornalis- -comércio e ao Acordo de Livre Trump. Mas repercutiram junto a muns, bastante mal-humorado, dos das negociações da Parceria
tas favoritos. Prefere métodos di- Comércio da América do Norte um público desencantado e já pro- que “o posto não estava vago”. A incapacidade que as pesqui- Transpacífica (TPP), liquidando
retos, como os anteriormente em- (Nafta) foram voltados contra uma fundamente perturbado por per- Mas o erro das pesquisas de opi- sas demonstraram de prever os re- uma das principais iniciativas da
pregados por Fiorello La Guardia, das realizações mais alardeadas do guntas sobre a integridade e a sin- nião sobre o Brexit e sobre a pos- sultados eleitorais é muito signi- política externa do governo Oba-
o lendário prefeito de Nova York governo Clinton, quando esse ceridade de Hillary. Mais do que sibilidade da vitória de Trump ficativa. Não constitui um bom ma. O valor do peso mexicano já
que transmitia suas mensagens acordo foi negociado e assinado. qualquer outro candidato, ela re- revelou que o desencanto com a augúrio para sua capacidade de oscilou brutalmente em resposta
por meio de tirinhas, ou por Seus ataques ao México e aos imi- presentava a situação na política, situação também se estendia ao prever os resultados eleitorais do à vitória de Trump.
Franklin Roosevelt, que recorria grantes mexicanos, bem como sua que os eleitores consideravam ca- que as pessoas diziam aos pes- próximo ano na França, na Ho- O presidente eleito prometeu
a “conversas” de rádio para se afirmação de que construirá um da vez mais impalatável, respon- quisadores. landa ou na Itália. É possível que “fazer os Estados Unidos voltarem
comunicar com a população. muro para isolá-los dos Estados sabilizando-a por muitas de suas É evidente que os eleitores de escolhas “não tradicionais”, como a ser grandes”, e ninguém deve
Trump usa mensagens no Twit- Unidos, foram suas palavras de or- insatisfações atuais. Trump mentiram para os pesqui- Farage e Trump, venham a ser a subestimar seu desejo de atingir
ter com o mesmo fim. Tal como dem de maior sucesso. Nesses ata- Os pesquisadores de opinião sadores. Não lhes disseram em nova norma. Após a fragorosa der- esse objetivo. Sua eleição, nesse
La Guardia e Franklin Roose- ques, Hillary Clinton era o mais também entenderam mal as coi- quem realmente pretendiam votar, rota de Matteo Renzi no plebis- sentido, é uma revolução em pro-
velt, faz isso sem que interme- vulnerável dos alvos. Tal como sas, e não têm desculpas para isso. por exemplo, na Pensilvânia e em cito constitucional italiano, Beppe cesso. Ou talvez, em termos mais
diários, críticos especializados, uma das primeiras vítimas de Do- Não faltaram avisos. A vitória do Michigan. Depois das eleições, uma Grillo já celebrou a ascensão de exatos, uma contrarrevolução
editores ou jornalistas interpre- nald – Jeb Bush, o medíocre her- Brexit, no plebiscito britânico so- pesquisa feita pelo banco suíço UBS forças nacionalistas e populistas oposta à globalização, com uma
tem o que ele diz. deiro presumível da dinastia Bush bre a participação na União Eu- com 1,2 mil clientes norte-ame- contrárias à ordem estabelecida, linguagem que recorre às raízes

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


98 99
estados unidos Kenneth Maxwell A Era Trump

tendo acabado de completar ca- Trump também sabe que a –, Hillary Clinton também era ropeia, deveria ter sinalizado que ricanos revelou que 36% deles, so- em oposição ao que ele chama de
torze temporadas como apresen- “verdade” ou os “fatos”, nesta parte integrante de outra recen- nem tudo ia bem no campo da bretudo os mais ricos, não disse- conspiração “dos maçons, dos
tador do programa O aprendiz, nova era da comunicação pela in- te família dinástica da política previsão e da avaliação da opinião ram aos amigos em quem preten- grandes conglomerados bancários
ele compreendeu que o mundo ternet, são muito relativos. Sua norte-americana, a do seu mari- pública, uma lição que Trump diam votar, para “fugir de e dos chineses”.
da comunicação sofreu uma mu- verdade é aquilo que ele acha (em do e ex-presidente Bill Clinton. enxergou com clareza. Em suas discussões e evitar julgamentos”. Trump, é claro, também ata-
dança drástica na última década, cada momento) que é. Não se Nunca poderia escapar da com- aparições, ele passou a ter a com- cou os chineses. E sua conversa
especialmente nos Estados Uni- deixa constranger pelo que cha- prometida herança dos anos que panhia de Nigel Farage, que tinha pós-eleitoral com Tsai Ing-wen,
dos, mas também em outras par- ma de “censura” ou “correção Clinton passou no poder, dos inventado o Partido da Indepen- O presidente presidente de Taiwan, rompeu com
tes do mundo, por causa da di- política” da corrente dominante escândalos sexuais no salão oval, dência do Reino Unido (UKIP) a política norte-americana de “am-
fusão quase universal da internet da mídia. Na campanha, trans- da posterior mania de lucros da e f izera a campanha mais ef i- Trump prometeu biguidade deliberada” em relação
e da possibilidade de qualquer formou os ataques ao “politica- Bill Clinton Ltd. e das compli- ciente pela saída da Grã-Breta- à política da “uma só China” bem
pessoa, em qualquer lugar, rece- mente correto” num grito de cadas operações internacionais nha da União Europeia. Uma
“drenar o lodaçal” como com a “concordância (não
ber as notícias que preferir, in- guerra dos excluídos, arrebatando da Fundação Clinton. vez eleito, encontrou Farage na de Washington, dita) em discordar”, que vigora-
dependentemente da filtragem e o apoio apaixonado dos segmen- As alegações contra Hillary Trump Tower, em Nova York, e vam desde a gestão de Jimmy Car-
da interpretação dos editores e tos da sociedade que mais sofre- Clinton a propósito dos e-mails postou no Twitter uma mensagem mas entre os ter, em 1979. É improvável que
colunistas dos jornais da corren- ram com as últimas duas décadas que tratavam de “dinheiro em tro- dizendo que ele daria um exce- esse telefonema tenha sido um aci-
te dominante e das grandes redes de globalização desenfreada, de ca de acesso”, quando ela ocupava lente embaixador da Grã-Bretanha novos ministros dente. Muitos partidários linha-
de televisão. renda e oportunidades estagnadas o cargo de secretária de Estado de nos Estados Unidos. -dura de Trump, nas forças arma-
Seus ataques à mídia da cor- e decrescentes, especialmente no Barack Obama, acertaram o alvo. Theresa May, a primeira-mi- estão três das e no aparato de segurança na-
rente dominante tornaram-se um chamado “cinturão de ferrugem” Nesse imbróglio, não ajudou mui- nistra britânica pós-plebiscito, cional norte-americanos, estão
de seus motes mais populares. O da região setentrional do Centro- to o envolvimento de Anthony foi a décima primeira na lista de
bilionários que se preocupados, há algum tempo,
uso de mensagens curtas e mor- -Oeste. Ali, a antiga classe traba- Weiner, o ex-deputado das insa- telefonemas dados por Trump formaram no com o comportamento agressivo
dazes no Twitter também foi um lhadora viu as indústrias serem ciáveis mensagens de sexo explí- depois de sua vitória. Isso não dos chineses no mar da China Me-
traço característico de sua cam- devastadas e perdeu os empregos cito, e sua mulher (agora ex), Hu- caiu bem na Downing Street. Goldman Sachs, ridional, com a construção, pela
panha presidencial, além da prá- formais e seguros, sindicalizados ma Abedin, que era assessora e Boris Johnson, o novo ministro China, de ilhas artificiais em águas
tica de enviar mensagens notur- e bem remunerados, na medida amiga íntima de Hillary Clinton. britânico das Relações Exterio- o maior símbolo disputadas e com seus esforços ex-
nas para o público em geral, des- em que as empresas transferiam Os gritos de “mande-a para a ca- res (pós-Brexit) – um Trump pansionistas nessa região sensível
de que foi eleito. Ele usa o as fábricas para o México, onde deia” referentes à candidata demo- “versão leve”, com o mesmo ar da banca de e territorialmente polêmica do
Twitter em vez das tradicionais os salários são baixos. crata foram puro teatro em todas de palhaço e com a mesma ca- mundo. Trump também já indi-
coletivas de imprensa ou do aces- Os ataques de Trump ao livre- as apresentações da campanha de beleira –, disse à Câmara dos Co-
Wall Street. cou que vai retirar os Estados Uni-
so especial concedido a jornalis- -comércio e ao Acordo de Livre Trump. Mas repercutiram junto a muns, bastante mal-humorado, dos das negociações da Parceria
tas favoritos. Prefere métodos di- Comércio da América do Norte um público desencantado e já pro- que “o posto não estava vago”. A incapacidade que as pesqui- Transpacífica (TPP), liquidando
retos, como os anteriormente em- (Nafta) foram voltados contra uma fundamente perturbado por per- Mas o erro das pesquisas de opi- sas demonstraram de prever os re- uma das principais iniciativas da
pregados por Fiorello La Guardia, das realizações mais alardeadas do guntas sobre a integridade e a sin- nião sobre o Brexit e sobre a pos- sultados eleitorais é muito signi- política externa do governo Oba-
o lendário prefeito de Nova York governo Clinton, quando esse ceridade de Hillary. Mais do que sibilidade da vitória de Trump ficativa. Não constitui um bom ma. O valor do peso mexicano já
que transmitia suas mensagens acordo foi negociado e assinado. qualquer outro candidato, ela re- revelou que o desencanto com a augúrio para sua capacidade de oscilou brutalmente em resposta
por meio de tirinhas, ou por Seus ataques ao México e aos imi- presentava a situação na política, situação também se estendia ao prever os resultados eleitorais do à vitória de Trump.
Franklin Roosevelt, que recorria grantes mexicanos, bem como sua que os eleitores consideravam ca- que as pessoas diziam aos pes- próximo ano na França, na Ho- O presidente eleito prometeu
a “conversas” de rádio para se afirmação de que construirá um da vez mais impalatável, respon- quisadores. landa ou na Itália. É possível que “fazer os Estados Unidos voltarem
comunicar com a população. muro para isolá-los dos Estados sabilizando-a por muitas de suas É evidente que os eleitores de escolhas “não tradicionais”, como a ser grandes”, e ninguém deve
Trump usa mensagens no Twit- Unidos, foram suas palavras de or- insatisfações atuais. Trump mentiram para os pesqui- Farage e Trump, venham a ser a subestimar seu desejo de atingir
ter com o mesmo fim. Tal como dem de maior sucesso. Nesses ata- Os pesquisadores de opinião sadores. Não lhes disseram em nova norma. Após a fragorosa der- esse objetivo. Sua eleição, nesse
La Guardia e Franklin Roose- ques, Hillary Clinton era o mais também entenderam mal as coi- quem realmente pretendiam votar, rota de Matteo Renzi no plebis- sentido, é uma revolução em pro-
velt, faz isso sem que interme- vulnerável dos alvos. Tal como sas, e não têm desculpas para isso. por exemplo, na Pensilvânia e em cito constitucional italiano, Beppe cesso. Ou talvez, em termos mais
diários, críticos especializados, uma das primeiras vítimas de Do- Não faltaram avisos. A vitória do Michigan. Depois das eleições, uma Grillo já celebrou a ascensão de exatos, uma contrarrevolução
editores ou jornalistas interpre- nald – Jeb Bush, o medíocre her- Brexit, no plebiscito britânico so- pesquisa feita pelo banco suíço UBS forças nacionalistas e populistas oposta à globalização, com uma
tem o que ele diz. deiro presumível da dinastia Bush bre a participação na União Eu- com 1,2 mil clientes norte-ame- contrárias à ordem estabelecida, linguagem que recorre às raízes

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estados unidos Kenneth Maxwell A Era Trump

profundas do populismo do Centro-


-Oeste, que sempre teve um ideário ra-
po Goldman Sachs e produtor de ci-
nema em Hollywood, será o secretário
de Trump durante a campanha presi-
dencial. Ele deseja oferecer aos consu-
Os americanos mais ricos mismo. Até o presidente do Ban-
co da Inglaterra, Mark Carney,
Trump também atacou os muçul-
manos em sua campanha, decla-
dical que é frequentemente despercebi- do Tesouro. E Wilbur Ross, o mag- midores opções mais calcadas no mer- se apropriam de uma parcela um canadense que é ex-banquei- rou que deportaria criminosos
do em razão de sua linguagem com maior nata dos investimentos em empresas cado, o que é uma postura muito po- ro do grupo Goldman Sachs, aler- estrangeiros condenados e pro-
carga racial, como na retórica de cam- de capital fechado, vai se tornar secre- pular entre os congressistas republicanos crescente da renda nacional. tou para o fato de que a situação meteu intensificar severamente
panha de Trump. Esse populismo é im- tário do Comércio. Os dois promete- que passaram a controlar as duas casas da classe trabalhadora assemelha- as exigências para a concessão de
pulsionado pela profunda insatisfação ram implantar as propostas de Trump do Congresso depois das eleições. A atual desigualdade social -se às condições da década de vistos. Criticou o acordo nuclear
com o status quo e a raiva contra políti- de reduzir impostos, afrouxar a regu- Alguns observadores disseram que 1860, que deram origem a Karl iraniano, uma das grandes nego-
cos, banqueiros e líderes empresariais, será um gabinete ministerial parecido é aterradora e traz riscos Marx. Ele diz que a remunera- ciações do presidente Obama.
que se saíram muito bem na última dé- com o que havia no fim do século XIX, ção exagerada dos executivos pre- Cuba também enfrentará maiores
cada enquanto os salários, as condições uma época de governo plutocrático, bastante reais. Trump cisa ser reduzida e que a raiva e dif iculdades na vigência de
de vida e as perspectivas de futuro do batizada de “era dourada” pelo o desespero legítimos das vítimas Trump. Os aliados da OTAN es-
cidadão médio estagnavam ou de- grande escritor norte-america- enfrentará situações de esquecidas da globalização pre- tão apreensivos com os apelos do
cresciam. Foi essa a causa fun- no Mark Twain. Trump dis- cisam ser abordados pelos líderes presidente eleito para aumentar
damental do êxito do Brexit se que ia “drenar o lodaçal”
grande complexidade. políticos. Carney assinala que a os gastos com defesa. E a Europa
no Reino Unido e da vi- de Washington, mas entre proporção da riqueza do 1% mais também enfrentará novas eleições
tória decisiva de Trump seus indicados estão três livraria de ônus ou obrigações pa- rico da população norte-ameri- no próximo ano, nas quais é bem
nos principais estados bilionários, como ele. ra com interesses especiais, ao con- cana subiu de 25% em 1990 pa- possível que vejamos Marine Le
americanos onde havia Muitos se formaram trário do que acontece com os ra 40% em 2012 e que, no plano Pen, uma nacionalista e populis-
eleitores indecisos. no Goldman Sachs, o Clinton. Isso não deve surpreen- global, a parcela da riqueza em ta de extrema direita que é anti-
supremo baluarte de der ninguém. De fato, Trump poder do 1% mais rico da popu- -islamita e antiamericana, tornar-

egorkeon/shutterstock.com
Wall Street. O pró- almeja ser imprevisível, mas tam- lação mundial subiu de 1/3, em -se a presidenta da França e levar
A equipe prio Trump tem uma bém tem que dirigir o governo. 2000, para 1/2, em 2010. Essa o sucesso eleitoral do nacionalis-
anunciada fortuna estimada em Tem que preencher 4 mil cargos espantosa desigualdade tem le- mo populista à Holanda. As ne-
É cedo para dizer como US $ 3,7 bi lhões. na Casa Branca e no Executivo, vado ao “isolamento e ao desin- gociações do Brexit ainda estarão
serão os desdobramentos Betsy DeVos, futura inclusive mais de 1 mil que exi- teresse” dos que foram deixados em seu tortuoso começo.
disso tudo. Mas Trump secretária da Educação, gem confirmação do Senado. E para trás pela globalização e so- Os populistas tiraram o apoio
já indicou seus principais é nora de Richard De- todos esses indivíduos terão que frem com “baixos salários, inse- da esquerda e da direita. A velha
auxiliares. Ele deseja que Vos, cuja família tem uma passar pela liberação de seguran- gurança no emprego, empresas esquerda política europeia foi
James Mattis, general refor- fortuna de US$ 5,1 bilhões. ça do FBI, por minuciosas ava- apátridas e desigualdades mar- substituída por uma onda nacio-
mado do Corpo de Fuzileiros Wilbur Ross, nomeado secre- liações políticas e por um exame cantes”. Carney alertou para o nalista de eleitores contrários à
Navais, conhecido pelo apelido de tário do Comércio, possui US$ do Gabinete de Ética do Gover- risco social dessas “aterradoras ordem estabelecida e à imigração,
“cão raivoso”, seja o secretário da De- 2,5 bilhões. Todd Rickets, escolhi- no, para evitar conf litos de inte- desigualdades de riqueza”. os quais, na Grã-Bretanha, aban-
fesa. Isso exigirá do Congresso uma isen- do como subsecretário do Comércio, é resses. Nenhum desses processos Enquanto isso, a Rússia é pre- donaram o Partido Trabalhista
ção especial para que ele ocupe o cargo. coproprietário do time de basquete Chi- será rápido ou descomplicado. sidida por um estrategista resolu- para apoiar o Brexit, assim como,
De acordo com Trump, Mattis é um ho- cago Cubs e dono de US$ 1,8 bilhão. O mundo que Trump vai her- to, habilidoso e implacável, que nos Estados Unidos, eleitores da
mem com o espírito do general George lamentação dos bancos e dar uma sa- Elaine Chao, casada com Mitch Mc- dar, em 20 de janeiro de 2017, é não hesita em usar a força quando antiga classe trabalhadora, soli-
Patton, o lendário, agressivo e muito con- cudida nas relações comerciais com a Connell, líder da maioria republicana muito complexo e perigoso. Mais, ela pode ser eficaz para beneficiar damente democrata, resolveram
trovertido comandante do 3º Exército China e outros parceiros. Ross rejei- no Senado, é filha de um magnata dos talvez, do que em qualquer outra os interesses nacionais. A China votar em Donald Trump. Eles
norte-americano na Segunda Guerra tou o rótulo de “protecionista”: “Há transportes marítimos. época desde o fim da Segunda vem-se tornando mais poderosa, tendem a admirar líderes fortes.
Mundial. Se Mattis for confirmado, será comércio sensato e comércio burro. Mas ninguém jamais disse que Guerra Mundial. As placas tec- com um papel econômico e po- Chegam até, como Trump, a ad-
o primeiro general da reserva a dirigir o Temos feito muito comércio burro, e Trump era pobre, não gostava de mó- tônicas estão em movimento, e o lítico cada vez maior na África e mirar Vladimir Putin. Estamos
Pentágono desde George Marshall, após é essa parte que será corrigida.” Trump veis de ouro ou não se deleitava com futuro é mais incerto do que nun- na América Latina, assim como navegando em direção a águas
o término da Segunda Guerra Mundial. quer Elaine Chao como secretária de quinquilharias ostentosas. Ele é produ- ca. Pela primeira vez, o cidadão em sua vizinhança próxima. A muito revoltas. Evitar a xenofo-
Trump quer Betsy DeVos como se- Transportes. Para secretário da Saúde, tor e apresentador de espetáculos. Seus médio sente que seus filhos não guerra na Síria continua sem tré- bia será difícil. O presidente
cretária da Educação. Steven Mnuchin, quer Tom Price, um ardoroso crítico eleitores não fizeram objeção à sua for- desfrutarão de uma vida melhor. gua. O conf lito entre israelenses Trump terá pela frente desafios
ex-banqueiro de investimentos do gru- do Obamacare, um dos principais alvos tuna. Na verdade, acharam que ela o Há um clima de profundo pessi- e palestinos não foi resolvido. realmente portentosos. n

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estados unidos Kenneth Maxwell A Era Trump

profundas do populismo do Centro-


-Oeste, que sempre teve um ideário ra-
po Goldman Sachs e produtor de ci-
nema em Hollywood, será o secretário
de Trump durante a campanha presi-
dencial. Ele deseja oferecer aos consu-
Os americanos mais ricos mismo. Até o presidente do Ban-
co da Inglaterra, Mark Carney,
Trump também atacou os muçul-
manos em sua campanha, decla-
dical que é frequentemente despercebi- do Tesouro. E Wilbur Ross, o mag- midores opções mais calcadas no mer- se apropriam de uma parcela um canadense que é ex-banquei- rou que deportaria criminosos
do em razão de sua linguagem com maior nata dos investimentos em empresas cado, o que é uma postura muito po- ro do grupo Goldman Sachs, aler- estrangeiros condenados e pro-
carga racial, como na retórica de cam- de capital fechado, vai se tornar secre- pular entre os congressistas republicanos crescente da renda nacional. tou para o fato de que a situação meteu intensificar severamente
panha de Trump. Esse populismo é im- tário do Comércio. Os dois promete- que passaram a controlar as duas casas da classe trabalhadora assemelha- as exigências para a concessão de
pulsionado pela profunda insatisfação ram implantar as propostas de Trump do Congresso depois das eleições. A atual desigualdade social -se às condições da década de vistos. Criticou o acordo nuclear
com o status quo e a raiva contra políti- de reduzir impostos, afrouxar a regu- Alguns observadores disseram que 1860, que deram origem a Karl iraniano, uma das grandes nego-
cos, banqueiros e líderes empresariais, será um gabinete ministerial parecido é aterradora e traz riscos Marx. Ele diz que a remunera- ciações do presidente Obama.
que se saíram muito bem na última dé- com o que havia no fim do século XIX, ção exagerada dos executivos pre- Cuba também enfrentará maiores
cada enquanto os salários, as condições uma época de governo plutocrático, bastante reais. Trump cisa ser reduzida e que a raiva e dif iculdades na vigência de
de vida e as perspectivas de futuro do batizada de “era dourada” pelo o desespero legítimos das vítimas Trump. Os aliados da OTAN es-
cidadão médio estagnavam ou de- grande escritor norte-america- enfrentará situações de esquecidas da globalização pre- tão apreensivos com os apelos do
cresciam. Foi essa a causa fun- no Mark Twain. Trump dis- cisam ser abordados pelos líderes presidente eleito para aumentar
damental do êxito do Brexit se que ia “drenar o lodaçal”
grande complexidade. políticos. Carney assinala que a os gastos com defesa. E a Europa
no Reino Unido e da vi- de Washington, mas entre proporção da riqueza do 1% mais também enfrentará novas eleições
tória decisiva de Trump seus indicados estão três livraria de ônus ou obrigações pa- rico da população norte-ameri- no próximo ano, nas quais é bem
nos principais estados bilionários, como ele. ra com interesses especiais, ao con- cana subiu de 25% em 1990 pa- possível que vejamos Marine Le
americanos onde havia Muitos se formaram trário do que acontece com os ra 40% em 2012 e que, no plano Pen, uma nacionalista e populis-
eleitores indecisos. no Goldman Sachs, o Clinton. Isso não deve surpreen- global, a parcela da riqueza em ta de extrema direita que é anti-
supremo baluarte de der ninguém. De fato, Trump poder do 1% mais rico da popu- -islamita e antiamericana, tornar-

egorkeon/shutterstock.com
Wall Street. O pró- almeja ser imprevisível, mas tam- lação mundial subiu de 1/3, em -se a presidenta da França e levar
A equipe prio Trump tem uma bém tem que dirigir o governo. 2000, para 1/2, em 2010. Essa o sucesso eleitoral do nacionalis-
anunciada fortuna estimada em Tem que preencher 4 mil cargos espantosa desigualdade tem le- mo populista à Holanda. As ne-
É cedo para dizer como US $ 3,7 bi lhões. na Casa Branca e no Executivo, vado ao “isolamento e ao desin- gociações do Brexit ainda estarão
serão os desdobramentos Betsy DeVos, futura inclusive mais de 1 mil que exi- teresse” dos que foram deixados em seu tortuoso começo.
disso tudo. Mas Trump secretária da Educação, gem confirmação do Senado. E para trás pela globalização e so- Os populistas tiraram o apoio
já indicou seus principais é nora de Richard De- todos esses indivíduos terão que frem com “baixos salários, inse- da esquerda e da direita. A velha
auxiliares. Ele deseja que Vos, cuja família tem uma passar pela liberação de seguran- gurança no emprego, empresas esquerda política europeia foi
James Mattis, general refor- fortuna de US$ 5,1 bilhões. ça do FBI, por minuciosas ava- apátridas e desigualdades mar- substituída por uma onda nacio-
mado do Corpo de Fuzileiros Wilbur Ross, nomeado secre- liações políticas e por um exame cantes”. Carney alertou para o nalista de eleitores contrários à
Navais, conhecido pelo apelido de tário do Comércio, possui US$ do Gabinete de Ética do Gover- risco social dessas “aterradoras ordem estabelecida e à imigração,
“cão raivoso”, seja o secretário da De- 2,5 bilhões. Todd Rickets, escolhi- no, para evitar conf litos de inte- desigualdades de riqueza”. os quais, na Grã-Bretanha, aban-
fesa. Isso exigirá do Congresso uma isen- do como subsecretário do Comércio, é resses. Nenhum desses processos Enquanto isso, a Rússia é pre- donaram o Partido Trabalhista
ção especial para que ele ocupe o cargo. coproprietário do time de basquete Chi- será rápido ou descomplicado. sidida por um estrategista resolu- para apoiar o Brexit, assim como,
De acordo com Trump, Mattis é um ho- cago Cubs e dono de US$ 1,8 bilhão. O mundo que Trump vai her- to, habilidoso e implacável, que nos Estados Unidos, eleitores da
mem com o espírito do general George lamentação dos bancos e dar uma sa- Elaine Chao, casada com Mitch Mc- dar, em 20 de janeiro de 2017, é não hesita em usar a força quando antiga classe trabalhadora, soli-
Patton, o lendário, agressivo e muito con- cudida nas relações comerciais com a Connell, líder da maioria republicana muito complexo e perigoso. Mais, ela pode ser eficaz para beneficiar damente democrata, resolveram
trovertido comandante do 3º Exército China e outros parceiros. Ross rejei- no Senado, é filha de um magnata dos talvez, do que em qualquer outra os interesses nacionais. A China votar em Donald Trump. Eles
norte-americano na Segunda Guerra tou o rótulo de “protecionista”: “Há transportes marítimos. época desde o fim da Segunda vem-se tornando mais poderosa, tendem a admirar líderes fortes.
Mundial. Se Mattis for confirmado, será comércio sensato e comércio burro. Mas ninguém jamais disse que Guerra Mundial. As placas tec- com um papel econômico e po- Chegam até, como Trump, a ad-
o primeiro general da reserva a dirigir o Temos feito muito comércio burro, e Trump era pobre, não gostava de mó- tônicas estão em movimento, e o lítico cada vez maior na África e mirar Vladimir Putin. Estamos
Pentágono desde George Marshall, após é essa parte que será corrigida.” Trump veis de ouro ou não se deleitava com futuro é mais incerto do que nun- na América Latina, assim como navegando em direção a águas
o término da Segunda Guerra Mundial. quer Elaine Chao como secretária de quinquilharias ostentosas. Ele é produ- ca. Pela primeira vez, o cidadão em sua vizinhança próxima. A muito revoltas. Evitar a xenofo-
Trump quer Betsy DeVos como se- Transportes. Para secretário da Saúde, tor e apresentador de espetáculos. Seus médio sente que seus filhos não guerra na Síria continua sem tré- bia será difícil. O presidente
cretária da Educação. Steven Mnuchin, quer Tom Price, um ardoroso crítico eleitores não fizeram objeção à sua for- desfrutarão de uma vida melhor. gua. O conf lito entre israelenses Trump terá pela frente desafios
ex-banqueiro de investimentos do gru- do Obamacare, um dos principais alvos tuna. Na verdade, acharam que ela o Há um clima de profundo pessi- e palestinos não foi resolvido. realmente portentosos. n

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102 ´ ^
103
A Rússia, o Ocidente e o retorno da geopolítica

|
A RÚSSIA, O OCIDENTE
^
Janis Berzins ´ Na Rússia, muitos acolheram a eleição de Donald Trump como uma possibilidade de normalizar as
Diretor do Centro relações entre o país e o Ocidente. Essa ideia baseia-se na pressuposição de que Trump se voltará
de Segurança para a política interna, diminuindo o papel dos Estados Unidos no mundo. Ele não considera a
e Pesquisa
Estratégica
Rússia um adversário e mencionou a necessidade de chegar a um acordo mutuamente benéfico
da Academia entre os dois países. Embora a política externa de Trump tenha muitos pontos em comum com a

E O RETORNO DA GEOPOLÍTICA
Nacional de russa, o novo presidente americano é adepto de negociações a partir de uma posição de força, nas
Defesa da Letônia. quais os Estados Unidos sejam respeitados como “a” superpotência mundial. Dada a assertividade
da Rússia, ainda estamos por ver se será possível que os dois países cheguem a um acordo.

Com o colapso da União Soviética e o fim A ideia de que a comunidade transatlân-


da Guerra Fria, muitos acreditaram que o tica, em especial os Estados Unidos, é o prin-
mundo estava entrando num longo período cipal inimigo da Rússia vem-se desenvolven-
de paz. Mais que isso, alguns autores, como do no país há alguns anos. Apesar de relati-
Francis Fukuyama (1992), chegaram a anun- vamente marginal até mais ou menos 2005,
ciar o fim da História, enquanto Charles a ideia de que a Rússia é vítima de interesses
Krauthammer (1991) declarou o início do ocidentais estabelecidos, que vêm sendo im-
momento unipolar e da completa supremacia plementados e postos em prática pela União
dos Estados Unidos no planeta. Em 2008, Europeia, por agências multilaterais e pela
com a Guerra da Geórgia, a Rússia anunciou OTAN, vem ganhando legitimidade e vem
que o momento unipolar havia acabado, en- sendo incorporada, aos poucos, na formula-
quanto a anexação da Crimeia foi o símbolo ção das políticas russas nos últimos dez anos.
de que a geopolítica voltou, a História não Não deve surpreender que a Rússia venha-se
morreu e o momento unipolar foi um sonho mostrando cada vez mais assertiva na garan-
curto, em termos históricos. tia de seus interesses, chegando inclusive à
A Rússia é um mundo em si. Trata-se de utilização de instrumentos militares. O país
um país com 35 línguas oficiais diferentes. se acha no direito de fazê-lo, não só porque
Mais de uma centena de línguas minoritárias o Ocidente supostamente estaria fazendo a
são faladas em seu território. Sua diversidade mesma coisa, mas também por ser uma gran-
cultural é riquíssima, uma vez que a nação é de potência, embora seja, historicamente, um
habitada por mais de 170 grupos étnicos, que Estado inseguro em termos geopolíticos.
são considerados nacionalidades (Gil-Robles,
2005). Seu território estende-se da Europa
ao Japão, o que faz dela um ator global. A A Rússia e o mundo
ideia da Rússia como grande potência é um A Rússia tem um sentimento de insuficiên-
dos componentes mais cruciais de sua políti- cia nacional e uma preocupação exagerada
ca externa, embora sua capacidade de proje- de que o Ocidente não leve em consideração
tar o poder esteja muito mais concentrada no os interesses russos na arena internacional
território exterior formado pelos países vizi- (Tsygankov e Tarver-Wahlquist, 2009; Tsy-
nhos. Como afirmou Leichtova (2016), ape- gankov, 2012). Em outras palavras, suas es-
sar de seu sistema ser presidencial, ele também colhas na política externa são frequentemen-

Maxim Apryatin/shutterstock.com
pode ser semipresidencial; o país é membro te determinadas na base de “os atos interna-
da Organização Mundial do Comércio, po- cionais do Ocidente serem ou não percebidos
rém grande parte de sua economia depende pelas autoridades russas como uma aceitação
de empresas estatais; ele tem muitas caracte- da Rússia como membro igual e legítimo do
rísticas de um sistema democrático, mas não mundo” (Tsygankov, 2016: 1). A Rússia pós-
é democrático pelos padrões ocidentais. -soviética esperava ser recebida pelo Ociden-

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A Rússia, o Ocidente e o retorno da geopolítica

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A RÚSSIA, O OCIDENTE
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Janis Berzins ´ Na Rússia, muitos acolheram a eleição de Donald Trump como uma possibilidade de normalizar as
Diretor do Centro relações entre o país e o Ocidente. Essa ideia baseia-se na pressuposição de que Trump se voltará
de Segurança para a política interna, diminuindo o papel dos Estados Unidos no mundo. Ele não considera a
e Pesquisa
Estratégica
Rússia um adversário e mencionou a necessidade de chegar a um acordo mutuamente benéfico
da Academia entre os dois países. Embora a política externa de Trump tenha muitos pontos em comum com a

E O RETORNO DA GEOPOLÍTICA
Nacional de russa, o novo presidente americano é adepto de negociações a partir de uma posição de força, nas
Defesa da Letônia. quais os Estados Unidos sejam respeitados como “a” superpotência mundial. Dada a assertividade
da Rússia, ainda estamos por ver se será possível que os dois países cheguem a um acordo.

Com o colapso da União Soviética e o fim A ideia de que a comunidade transatlân-


da Guerra Fria, muitos acreditaram que o tica, em especial os Estados Unidos, é o prin-
mundo estava entrando num longo período cipal inimigo da Rússia vem-se desenvolven-
de paz. Mais que isso, alguns autores, como do no país há alguns anos. Apesar de relati-
Francis Fukuyama (1992), chegaram a anun- vamente marginal até mais ou menos 2005,
ciar o fim da História, enquanto Charles a ideia de que a Rússia é vítima de interesses
Krauthammer (1991) declarou o início do ocidentais estabelecidos, que vêm sendo im-
momento unipolar e da completa supremacia plementados e postos em prática pela União
dos Estados Unidos no planeta. Em 2008, Europeia, por agências multilaterais e pela
com a Guerra da Geórgia, a Rússia anunciou OTAN, vem ganhando legitimidade e vem
que o momento unipolar havia acabado, en- sendo incorporada, aos poucos, na formula-
quanto a anexação da Crimeia foi o símbolo ção das políticas russas nos últimos dez anos.
de que a geopolítica voltou, a História não Não deve surpreender que a Rússia venha-se
morreu e o momento unipolar foi um sonho mostrando cada vez mais assertiva na garan-
curto, em termos históricos. tia de seus interesses, chegando inclusive à
A Rússia é um mundo em si. Trata-se de utilização de instrumentos militares. O país
um país com 35 línguas oficiais diferentes. se acha no direito de fazê-lo, não só porque
Mais de uma centena de línguas minoritárias o Ocidente supostamente estaria fazendo a
são faladas em seu território. Sua diversidade mesma coisa, mas também por ser uma gran-
cultural é riquíssima, uma vez que a nação é de potência, embora seja, historicamente, um
habitada por mais de 170 grupos étnicos, que Estado inseguro em termos geopolíticos.
são considerados nacionalidades (Gil-Robles,
2005). Seu território estende-se da Europa
ao Japão, o que faz dela um ator global. A A Rússia e o mundo
ideia da Rússia como grande potência é um A Rússia tem um sentimento de insuficiên-
dos componentes mais cruciais de sua políti- cia nacional e uma preocupação exagerada
ca externa, embora sua capacidade de proje- de que o Ocidente não leve em consideração
tar o poder esteja muito mais concentrada no os interesses russos na arena internacional
território exterior formado pelos países vizi- (Tsygankov e Tarver-Wahlquist, 2009; Tsy-
nhos. Como afirmou Leichtova (2016), ape- gankov, 2012). Em outras palavras, suas es-
sar de seu sistema ser presidencial, ele também colhas na política externa são frequentemen-

Maxim Apryatin/shutterstock.com
pode ser semipresidencial; o país é membro te determinadas na base de “os atos interna-
da Organização Mundial do Comércio, po- cionais do Ocidente serem ou não percebidos
rém grande parte de sua economia depende pelas autoridades russas como uma aceitação
de empresas estatais; ele tem muitas caracte- da Rússia como membro igual e legítimo do
rísticas de um sistema democrático, mas não mundo” (Tsygankov, 2016: 1). A Rússia pós-
é democrático pelos padrões ocidentais. -soviética esperava ser recebida pelo Ociden-

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


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geopolítica na rússia ´
Janis Berzins
^

A Rússia, o Ocidente e o retorno da geopolítica

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te como uma nova parceira, com nômica. Ele se tornou uma pa-
A consciência de fazer parte Brezhnev almejou cercear a in- 3. antropologia coletiva (o povo sia o seu status de direito no sistema
isso estabelecendo uma nova ordem naceia para todos os países, to- f luência do Ocidente no nível glo- é mais importante que o indi- europeu (Baranovsky, 2012).
mundial (Baranovsky, 2002). Visto mando-se as dez conclusões do de um império terrestre bal. Até os estatistas liberais que víduo); No caso do paradigma asiático,
que o Ocidente não a aceita como Consenso de Washington como a apoiavam as reformas de Gorba- o ponto principal é a ideia de que a
uma parceira em igualdade de con- nova versão dos Dez Mandamen- formou a base social e chev, além de acreditarem na cons- 4. sacrifício; Rússia tem que se proteger do ex-
dições, pelo menos na percepção tos. Grande parte da base filosófica trução de uma economia de mer- pansionismo do Ocidente, para po-
russa o resultado é uma reorienta- do neoliberalismo veio da ideologia
cultural da nação russa, cado e de uma democracia, estavam 5. orientação idealista; der desenvolver plenamente seu po-
ção da identidade da nação, que econômica desenvolvida por Mil- moldando seus valores. convencidos de que deviam au- tencial de país soberano. Por isso o
deixa de olhar para o Ocidente e se ton Friedman e George Stigler, da mentar o status de grande potência 6. valores de fidelidade, ascetismo, fato de estar perto da Europa, so-
volta para valores tradicionais rus- Faculdade de Economia da Uni- O povo é mais importante da Rússia para lidar com o núme- honra e lealdade (ibid.). bretudo da União Europeia, resul-
sos. Historicamente, a política ex- versidade de Chicago. Como ideo- ro crescente de ameaças externas taria em o país experimentar um
terna russa pode ser dividida em três logia, ele é mais do que apenas um
do que o indivíduo. no nível global. O estatismo defi- A Rússia tem necessidade não processo de desenvolvimento subal-
grupos que determinam a forma de conjunto de receitas de política eco- ne as políticas de Putin. Ao mesmo apenas de se expandir territorial- terno, que resultaria numa forma
comportamento do país no sistema nômica. Trata-se, antes, de um sis- gem mais estatizante da política tempo, esse presidente assumiu o mente, mas também de difundir subalterna de desenvolvimento e de
internacional como resultado das tema completo de governança que externa russa. Pode-se dizer que o controle da vida social e política, do sua cultura e seus valores, e a for- status no sistema internacional. O
imagens construídas da Rússia e do ref lete uma visão de mundo e uma estatismo foi a escola de política Legislativo, da criação de partidos, ma de organização política e social terceiro paradigma, o eurasianismo
mundo externo: ocidentalistas, es- moral particulares, alicerçadas no externa mais popular na Rússia das regiões e dos meios de comu- é a maneira de garantir sua segu- da Rússia, baseia-se na ideia de que
tatizadores e civilizacionistas (Tsy- individualismo metodológico. (Tsygankov, 2012). Ele se centra nicação eletrônicos, paralelamente rança. O neoeurasianismo “forne- a civilização russa é especial, como
gankov, 2016). Com a noção da falta de alter- no poder e na estabilidade, mais apoiando as instituições políticas ceu à Rússia a chave da identidade já foi discutido. O país deve seguir
Pedro, o Grande foi o primeiro nativa, os ocidentalistas ganharam do que na liberdade e na democra- pós-soviéticas e o processo de libe- geopolítica e também espiritual- sua via de desenvolvimento, e o ex-
ocidentalista. Percebeu que o Oci- inf luência, conseguindo promover cia, ao passo que as ameaças exter- ralização econômica (ibid.). -humanista da nação russa, bem pansionismo ocidental poderia ser
dente havia desenvolvido uma tec- consideravelmente a ideia de que nas são a preocupação principal da Os civilizacionistas, a exemplo como o segredo espiritual da civi- considerado uma confrontação de
nologia muito superior e que a oci- só adotando um modelo ocidental segurança russa. O estatismo não de Alexander Dugin, consideram a lização russa, sua teleologia e a pe- seus direitos e de seu status naturais.
dentalização era a maneira de su- a Rússia seria capaz de reverter o é necessariamente antiocidental, Rússia uma civilização especial, sin- dra angular de seus princípios” (Ti- Desde o colapso da União Soviéti-
perar o subdesenvolvimento da atraso soviético. Por isso a Rússia mas busca reconhecimento e acei- gular, que tem a missão de dissemi- tarenko e Petrovsky, 2016: 26). ca, as relações da Rússia com a Eu-
Rússia. Os ocidentalistas liberais adotou um programa de reforma tação usando o poder econômico nar os valores russos pelo globo. Como resultado, a Rússia tem ropa, em particular com a União
identificavam-se com valores como neoliberal muito radical, embora e a capacidade militar. Para alguns, Essa ideia ligou-se à noção de in- três paradigmas de política inter- Europeia, têm oscilado entre as di-
a liberdade constitucional e a igual- alguns autores, como Rutland sua origem intelectual encontra-se ternacionalismo socialista e ao con- nacional, no tocante à busca de sua versas combinações possíveis desses
dade política, e o czar Alexandre II (2013), afirmem que as políticas nas políticas do príncipe Alexander ceito leninista e trotskista de revo- identidade geopolítica (Baranovsky, paradigmas. Tem sido visivelmente
chegou a realinhar a política exter- neoliberais implementadas no país Gorchakov, ministro das Relações lução socialista global permanente, 2012): um paradigma europeu, no difícil o país se manter numa via
na russa pela de outros países, da não foram exatamente neoliberais, Exteriores de Alexandre II, conhe- tendo a Rússia como principal cen- qual ela pertence ao Ocidente; um específica e direta, em decorrência
Alemanha à França e ao Reino Uni- uma vez que foram moldadas, em cidas como “concentração”, ou cria- tro de poder (ibid.). O neoeurasia- paradigma asiático, no qual ela é de sua identidade europeia e sua
do, a fim de emular esses valores na larga escala, pelos interesses parti- ção de alianças f lexíveis, e como nismo de Dugin é sua versão mais mais próxima da Ásia; e um para- história eurasiana.
Rússia. Na União Soviética, os culares da elite política. A crise fi- limitação do envolvimento da Rús- recente. Ele considera a Rússia um digma eurasiano, no qual ela é uma Desde o colapso da União So-
ocidentalistas aproximaram-se dos nanceira russa de 1998 e, mais tar- sia nos assuntos europeus. Outros império terrestre em permanente civilização especial, que segue suas viética, a maneira de a Rússia en-
ideais social-democratas. Gorba- de, a crise global de 2008, somadas acentuam a competitividade militar expansão, ameaçado pela Aliança ambições e suas normas. No pri- carar suas relações com o Ocidente
chev, por exemplo, era favorável à à incapacidade do neoliberalismo de Pedro, o Grande afirmando que do Atlântico e, em especial, pelos meiro caso, a Rússia se consideraria modificou-se três vezes. Primeiro,
ideia de que a URSS tinha que se russo de promover um desenvol- foi a preocupação do czar com a se- Estados Unidos (Dugin, 2012). A uma parte intrínseca da identidade passou do estatismo soviético ao eu-
tornar uma versão democrática e vimento econômico e social sus- gurança do Estado que o aproximou consciência de fazer parte de um europeia. Nessas condições, sua po- ropeanismo ocidental. No começo
humana do comunismo. Sua polí- tentável, resultaram na negação mais da Europa (ibid.). império terrestre formou a base so- lítica externa se concentraria em se da década de 1990, havia uma con-
tica externa endossou a ideia da se- crescente, por parte do povo russo, Durante o período da União cial e cultural da nação russa, refle- aliar à União Europeia, visando al- vicção profunda de que a Rússia
gurança mútua com o Ocidente, de seus componentes não econô- Soviética, Stalin e Brezhnev foram tindo seis pontos principais: cançar um nível profundo de inte- deveria escolher o caminho ociden-
introduzindo o conceito de um lar micos, como a democracia e os di- estatistas. O tratado de amizade de gração nos assuntos europeus e na tal. Nesse caso, a motivação primá-
europeu comum (ibid.). reitos humanos. Stalin com a Alemanha nazista te- 1. conservadorismo; ocidentalização. Ao mesmo tempo, ria não era, necessariamente, tornar-
O colapso da União Soviética A ascensão de Putin ao poder, ve o objetivo de isolar a Rússia da a não consecução dessa meta pode- -se um país aberto e ocidentalizado,
legitimou o neoliberalismo ociden- em 31 de dezembro de 1999, re- Segunda Guerra Mundial. A po- 2. holismo, no sentido de que o todo ria gerar ressentimentos políticos e mas readquirir o status de membro
tal como a principal ideologia eco- presentou a volta de uma aborda- lítica de “correlação de forças” de é maior do que a soma das partes; psicológicos, por ser negado à Rús- da comunidade internacional, da

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A Rússia, o Ocidente e o retorno da geopolítica

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te como uma nova parceira, com nômica. Ele se tornou uma pa-
A consciência de fazer parte Brezhnev almejou cercear a in- 3. antropologia coletiva (o povo sia o seu status de direito no sistema
isso estabelecendo uma nova ordem naceia para todos os países, to- f luência do Ocidente no nível glo- é mais importante que o indi- europeu (Baranovsky, 2012).
mundial (Baranovsky, 2002). Visto mando-se as dez conclusões do de um império terrestre bal. Até os estatistas liberais que víduo); No caso do paradigma asiático,
que o Ocidente não a aceita como Consenso de Washington como a apoiavam as reformas de Gorba- o ponto principal é a ideia de que a
uma parceira em igualdade de con- nova versão dos Dez Mandamen- formou a base social e chev, além de acreditarem na cons- 4. sacrifício; Rússia tem que se proteger do ex-
dições, pelo menos na percepção tos. Grande parte da base filosófica trução de uma economia de mer- pansionismo do Ocidente, para po-
russa o resultado é uma reorienta- do neoliberalismo veio da ideologia
cultural da nação russa, cado e de uma democracia, estavam 5. orientação idealista; der desenvolver plenamente seu po-
ção da identidade da nação, que econômica desenvolvida por Mil- moldando seus valores. convencidos de que deviam au- tencial de país soberano. Por isso o
deixa de olhar para o Ocidente e se ton Friedman e George Stigler, da mentar o status de grande potência 6. valores de fidelidade, ascetismo, fato de estar perto da Europa, so-
volta para valores tradicionais rus- Faculdade de Economia da Uni- O povo é mais importante da Rússia para lidar com o núme- honra e lealdade (ibid.). bretudo da União Europeia, resul-
sos. Historicamente, a política ex- versidade de Chicago. Como ideo- ro crescente de ameaças externas taria em o país experimentar um
terna russa pode ser dividida em três logia, ele é mais do que apenas um
do que o indivíduo. no nível global. O estatismo defi- A Rússia tem necessidade não processo de desenvolvimento subal-
grupos que determinam a forma de conjunto de receitas de política eco- ne as políticas de Putin. Ao mesmo apenas de se expandir territorial- terno, que resultaria numa forma
comportamento do país no sistema nômica. Trata-se, antes, de um sis- gem mais estatizante da política tempo, esse presidente assumiu o mente, mas também de difundir subalterna de desenvolvimento e de
internacional como resultado das tema completo de governança que externa russa. Pode-se dizer que o controle da vida social e política, do sua cultura e seus valores, e a for- status no sistema internacional. O
imagens construídas da Rússia e do ref lete uma visão de mundo e uma estatismo foi a escola de política Legislativo, da criação de partidos, ma de organização política e social terceiro paradigma, o eurasianismo
mundo externo: ocidentalistas, es- moral particulares, alicerçadas no externa mais popular na Rússia das regiões e dos meios de comu- é a maneira de garantir sua segu- da Rússia, baseia-se na ideia de que
tatizadores e civilizacionistas (Tsy- individualismo metodológico. (Tsygankov, 2012). Ele se centra nicação eletrônicos, paralelamente rança. O neoeurasianismo “forne- a civilização russa é especial, como
gankov, 2016). Com a noção da falta de alter- no poder e na estabilidade, mais apoiando as instituições políticas ceu à Rússia a chave da identidade já foi discutido. O país deve seguir
Pedro, o Grande foi o primeiro nativa, os ocidentalistas ganharam do que na liberdade e na democra- pós-soviéticas e o processo de libe- geopolítica e também espiritual- sua via de desenvolvimento, e o ex-
ocidentalista. Percebeu que o Oci- inf luência, conseguindo promover cia, ao passo que as ameaças exter- ralização econômica (ibid.). -humanista da nação russa, bem pansionismo ocidental poderia ser
dente havia desenvolvido uma tec- consideravelmente a ideia de que nas são a preocupação principal da Os civilizacionistas, a exemplo como o segredo espiritual da civi- considerado uma confrontação de
nologia muito superior e que a oci- só adotando um modelo ocidental segurança russa. O estatismo não de Alexander Dugin, consideram a lização russa, sua teleologia e a pe- seus direitos e de seu status naturais.
dentalização era a maneira de su- a Rússia seria capaz de reverter o é necessariamente antiocidental, Rússia uma civilização especial, sin- dra angular de seus princípios” (Ti- Desde o colapso da União Soviéti-
perar o subdesenvolvimento da atraso soviético. Por isso a Rússia mas busca reconhecimento e acei- gular, que tem a missão de dissemi- tarenko e Petrovsky, 2016: 26). ca, as relações da Rússia com a Eu-
Rússia. Os ocidentalistas liberais adotou um programa de reforma tação usando o poder econômico nar os valores russos pelo globo. Como resultado, a Rússia tem ropa, em particular com a União
identificavam-se com valores como neoliberal muito radical, embora e a capacidade militar. Para alguns, Essa ideia ligou-se à noção de in- três paradigmas de política inter- Europeia, têm oscilado entre as di-
a liberdade constitucional e a igual- alguns autores, como Rutland sua origem intelectual encontra-se ternacionalismo socialista e ao con- nacional, no tocante à busca de sua versas combinações possíveis desses
dade política, e o czar Alexandre II (2013), afirmem que as políticas nas políticas do príncipe Alexander ceito leninista e trotskista de revo- identidade geopolítica (Baranovsky, paradigmas. Tem sido visivelmente
chegou a realinhar a política exter- neoliberais implementadas no país Gorchakov, ministro das Relações lução socialista global permanente, 2012): um paradigma europeu, no difícil o país se manter numa via
na russa pela de outros países, da não foram exatamente neoliberais, Exteriores de Alexandre II, conhe- tendo a Rússia como principal cen- qual ela pertence ao Ocidente; um específica e direta, em decorrência
Alemanha à França e ao Reino Uni- uma vez que foram moldadas, em cidas como “concentração”, ou cria- tro de poder (ibid.). O neoeurasia- paradigma asiático, no qual ela é de sua identidade europeia e sua
do, a fim de emular esses valores na larga escala, pelos interesses parti- ção de alianças f lexíveis, e como nismo de Dugin é sua versão mais mais próxima da Ásia; e um para- história eurasiana.
Rússia. Na União Soviética, os culares da elite política. A crise fi- limitação do envolvimento da Rús- recente. Ele considera a Rússia um digma eurasiano, no qual ela é uma Desde o colapso da União So-
ocidentalistas aproximaram-se dos nanceira russa de 1998 e, mais tar- sia nos assuntos europeus. Outros império terrestre em permanente civilização especial, que segue suas viética, a maneira de a Rússia en-
ideais social-democratas. Gorba- de, a crise global de 2008, somadas acentuam a competitividade militar expansão, ameaçado pela Aliança ambições e suas normas. No pri- carar suas relações com o Ocidente
chev, por exemplo, era favorável à à incapacidade do neoliberalismo de Pedro, o Grande afirmando que do Atlântico e, em especial, pelos meiro caso, a Rússia se consideraria modificou-se três vezes. Primeiro,
ideia de que a URSS tinha que se russo de promover um desenvol- foi a preocupação do czar com a se- Estados Unidos (Dugin, 2012). A uma parte intrínseca da identidade passou do estatismo soviético ao eu-
tornar uma versão democrática e vimento econômico e social sus- gurança do Estado que o aproximou consciência de fazer parte de um europeia. Nessas condições, sua po- ropeanismo ocidental. No começo
humana do comunismo. Sua polí- tentável, resultaram na negação mais da Europa (ibid.). império terrestre formou a base so- lítica externa se concentraria em se da década de 1990, havia uma con-
tica externa endossou a ideia da se- crescente, por parte do povo russo, Durante o período da União cial e cultural da nação russa, refle- aliar à União Europeia, visando al- vicção profunda de que a Rússia
gurança mútua com o Ocidente, de seus componentes não econô- Soviética, Stalin e Brezhnev foram tindo seis pontos principais: cançar um nível profundo de inte- deveria escolher o caminho ociden-
introduzindo o conceito de um lar micos, como a democracia e os di- estatistas. O tratado de amizade de gração nos assuntos europeus e na tal. Nesse caso, a motivação primá-
europeu comum (ibid.). reitos humanos. Stalin com a Alemanha nazista te- 1. conservadorismo; ocidentalização. Ao mesmo tempo, ria não era, necessariamente, tornar-
O colapso da União Soviética A ascensão de Putin ao poder, ve o objetivo de isolar a Rússia da a não consecução dessa meta pode- -se um país aberto e ocidentalizado,
legitimou o neoliberalismo ociden- em 31 de dezembro de 1999, re- Segunda Guerra Mundial. A po- 2. holismo, no sentido de que o todo ria gerar ressentimentos políticos e mas readquirir o status de membro
tal como a principal ideologia eco- presentou a volta de uma aborda- lítica de “correlação de forças” de é maior do que a soma das partes; psicológicos, por ser negado à Rús- da comunidade internacional, da

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A Rússia, o Ocidente e o retorno da geopolítica

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mesma estatura que a Alemanha ou o país do europeanismo ocidental ciativa Estratégica de Cooperação Entretanto, a Lei Russo-Ame- Diante de tais ameaças, a Rússia se para barrar os interesses russos. Pa-
o Reino Unido. Depois da crise fi- ao estatismo. Logo no começo de para a Estabilidade entre Estados ricana de Confiança e Cooperação, considera um país frágil. Putin e os ra os russos, o Ocidente criou um
nanceira de 1998 e do fracasso das seu primeiro mandato, Vladimir Pu- Unidos e Rússia, datada do ano 2000, aprovada pelo Congresso dos Esta- integrantes de seu círculo íntimo tipo de arma subversiva chamada
políticas neoliberais na obtenção do tin já sugeriu que a Rússia deveria é um bom exemplo. O documento dos Unidos, proibiu a Casa Branca entendem que a economia do país “ocidentalização”. Trata-se de im-
nível prometido de desenvolvimen- reassegurar seu papel num mundo assinado pelos presidentes Bill Clin- de reestruturar a dívida externa da é demasiadamente dependente do por a outros países um sistema so-
to econômico e social, o atrativo do multipolar em que nenhum regime ton e Vladimir Putin almejava ser Rússia até o fechamento do centro petróleo e do gás. Não há energia cial, uma economia, uma ideologia,
modelo ocidental esmaeceu. A Rús- único detinha a soberania. Ainda uma “base construtiva para o forta- radioelétrico de Lourdes, em Cuba. suficiente para uma expansão. Ao uma cultura e um estilo de vida si-
sia é um caso claro em que o fracas- assim, ele procurou desenvolver la- lecimento da confiança entre os dois Sem alternativa, a Rússia foi obri- mesmo tempo, é necessário manter milares aos ocidentais. O objetivo
so das políticas neoliberais desacre- ços de amizade com o Ocidente, em lados, e para o desenvolvimento adi- gada a fechá-lo. A Rússia está con- a influência regional russa, por to- é desacreditar o sistema político e
ditou os aspectos políticos e sociais particular com os Estados Unidos, cional das medidas acordadas para vencida de que os termos da rees- social local, o que resulta numa es-
do modelo ocidental, sobretudo a apesar de haver claros sinais de apro- promover a estabilidade estratégica truturação de sua dívida externa tratificação da população em grupos
democracia e os direitos humanos. fundamento da tendência eurasiana e barrar a proliferação de armas de foram especialmente concebidos pa- Para os russos, hostis, que então recebem apoio dos
A eleição de Putin para a Presi-
dência, no ano 2000, consolidou a
na política externa russa. Ele não
tardou a compreender que essas re-
destruição em massa, mísseis e tec-
nologias de mísseis, em todo o mun-
ra enfraquecer seu poder econômi-
co e, com isso, sua capacidade mi-
o Ocidente criou Estados Unidos e da OTAN (Na-
gorny e Shurygin, 2013). Yevgeny
segunda oscilação, que reconduziu lações não seriam tranquilas. A Ini- do” (Casa Branca, 2000). litar. O fechamento da base naval um tipo de arma Bazhanov, reitor da Academia Di-
de Cam Ranh, no Vietnã, por falta plomática da Rússia, declarou que
de recursos para pagamento do alu- subversiva, a “as pessoas no poder não objetaram

Mary_Photo/shutterstock.com
guel das instalações constitui um aos esforços ocidentais de plantar
exemplo disso. Putin entendeu que
“ocidentalização”. valores democráticos na Rússia e
o relacionamento não seria tranqui- Ele tenta dividir ensinar a nação a viver num ‘Estado
lo e que a Rússia não podia inte- livre’, ou até os acolheram de bom
grar-se ao Ocidente nos termos des- a população em grado. Hoje em dia, isso parece uma
te. O país seria levado a afirmar seus tentativa de enfraquecer o poder na
interesses econômicos e geopolíticos
grupos hostis, que Rússia e ‘forçá-la a se ajoelhar’”
como uma força marginal, não co- então passam a (Bazhanov, 2013: 23).
mo um parceiro. A democracia e As guerras do Afeganistão e do
valores como os direitos humanos receber apoio dos Iraque, assim como outras interven-
e a liberdade individual são pilares ções militares dos Estados Unidos/
do sistema político e social do Oci- Estados Unidos OTAN, confirmaram, para Putin,
dente. No entanto, como afirmou e da OTAN. a imagem de que o Ocidente é im-
Trenin (2007), os dirigentes russos previsível. Ao mesmo tempo, Putin
estão convencidos de que a obser- tem a convicção de que defender os
vância desses valores não resultará do e qualquer meio. Em vista da interesses privados dele e de seu cír-
na aceitação da Rússia como uma existência de muitos fatores que es- culo íntimo equivale a proteger os
parceira igual e debilitará sua capa- capam ao controle russo, Putin acre- interesses nacionais da Rússia. Por
cidade de buscar seus interesses. dita que fatores externos podem isso qualquer tentativa de tornar a
Putin concluiu que o Ocidente afetar os internos e resultar num nação mais transparente, democrá-
é perigoso. A comunidade transa- colapso da nação. Isso explica por tica e tolerante é considerada não
tlântica, em especial os Estados Uni- que o país se empenha em não dei- apenas um ataque pessoal a Putin e
dos, usa instrumentos de guerra ir- xar que a Ucrânia se aproxime mais seus aliados, mas à própria Rússia,
regulares, como organizações não do Ocidente. como Estado.
governamentais e instituições mul- A promoção desses valores é vis- Essa visão reforça a ideia de que
tilaterais (FMI, Banco Mundial), ta pelos dirigentes russos como um a Rússia é uma vítima permanente
para desestabilizar a Rússia. Por is- instrumento de política externa que de outras potências, sobretudo do
so tornou-se dominante a visão de é ignorado, quando assim convém Ocidente. Ela tem tentado apresen-
que a Rússia enfrenta sistemáticas aos interesses dos Estados Unidos tar-se como um ator global sério.
ameaças provenientes do exterior. ou da União Europeia, mas é usado Nesse sentido, a Guerra da Geórgia,

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A Rússia, o Ocidente e o retorno da geopolítica

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mesma estatura que a Alemanha ou o país do europeanismo ocidental ciativa Estratégica de Cooperação Entretanto, a Lei Russo-Ame- Diante de tais ameaças, a Rússia se para barrar os interesses russos. Pa-
o Reino Unido. Depois da crise fi- ao estatismo. Logo no começo de para a Estabilidade entre Estados ricana de Confiança e Cooperação, considera um país frágil. Putin e os ra os russos, o Ocidente criou um
nanceira de 1998 e do fracasso das seu primeiro mandato, Vladimir Pu- Unidos e Rússia, datada do ano 2000, aprovada pelo Congresso dos Esta- integrantes de seu círculo íntimo tipo de arma subversiva chamada
políticas neoliberais na obtenção do tin já sugeriu que a Rússia deveria é um bom exemplo. O documento dos Unidos, proibiu a Casa Branca entendem que a economia do país “ocidentalização”. Trata-se de im-
nível prometido de desenvolvimen- reassegurar seu papel num mundo assinado pelos presidentes Bill Clin- de reestruturar a dívida externa da é demasiadamente dependente do por a outros países um sistema so-
to econômico e social, o atrativo do multipolar em que nenhum regime ton e Vladimir Putin almejava ser Rússia até o fechamento do centro petróleo e do gás. Não há energia cial, uma economia, uma ideologia,
modelo ocidental esmaeceu. A Rús- único detinha a soberania. Ainda uma “base construtiva para o forta- radioelétrico de Lourdes, em Cuba. suficiente para uma expansão. Ao uma cultura e um estilo de vida si-
sia é um caso claro em que o fracas- assim, ele procurou desenvolver la- lecimento da confiança entre os dois Sem alternativa, a Rússia foi obri- mesmo tempo, é necessário manter milares aos ocidentais. O objetivo
so das políticas neoliberais desacre- ços de amizade com o Ocidente, em lados, e para o desenvolvimento adi- gada a fechá-lo. A Rússia está con- a influência regional russa, por to- é desacreditar o sistema político e
ditou os aspectos políticos e sociais particular com os Estados Unidos, cional das medidas acordadas para vencida de que os termos da rees- social local, o que resulta numa es-
do modelo ocidental, sobretudo a apesar de haver claros sinais de apro- promover a estabilidade estratégica truturação de sua dívida externa tratificação da população em grupos
democracia e os direitos humanos. fundamento da tendência eurasiana e barrar a proliferação de armas de foram especialmente concebidos pa- Para os russos, hostis, que então recebem apoio dos
A eleição de Putin para a Presi-
dência, no ano 2000, consolidou a
na política externa russa. Ele não
tardou a compreender que essas re-
destruição em massa, mísseis e tec-
nologias de mísseis, em todo o mun-
ra enfraquecer seu poder econômi-
co e, com isso, sua capacidade mi-
o Ocidente criou Estados Unidos e da OTAN (Na-
gorny e Shurygin, 2013). Yevgeny
segunda oscilação, que reconduziu lações não seriam tranquilas. A Ini- do” (Casa Branca, 2000). litar. O fechamento da base naval um tipo de arma Bazhanov, reitor da Academia Di-
de Cam Ranh, no Vietnã, por falta plomática da Rússia, declarou que
de recursos para pagamento do alu- subversiva, a “as pessoas no poder não objetaram

Mary_Photo/shutterstock.com
guel das instalações constitui um aos esforços ocidentais de plantar
exemplo disso. Putin entendeu que
“ocidentalização”. valores democráticos na Rússia e
o relacionamento não seria tranqui- Ele tenta dividir ensinar a nação a viver num ‘Estado
lo e que a Rússia não podia inte- livre’, ou até os acolheram de bom
grar-se ao Ocidente nos termos des- a população em grado. Hoje em dia, isso parece uma
te. O país seria levado a afirmar seus tentativa de enfraquecer o poder na
interesses econômicos e geopolíticos
grupos hostis, que Rússia e ‘forçá-la a se ajoelhar’”
como uma força marginal, não co- então passam a (Bazhanov, 2013: 23).
mo um parceiro. A democracia e As guerras do Afeganistão e do
valores como os direitos humanos receber apoio dos Iraque, assim como outras interven-
e a liberdade individual são pilares ções militares dos Estados Unidos/
do sistema político e social do Oci- Estados Unidos OTAN, confirmaram, para Putin,
dente. No entanto, como afirmou e da OTAN. a imagem de que o Ocidente é im-
Trenin (2007), os dirigentes russos previsível. Ao mesmo tempo, Putin
estão convencidos de que a obser- tem a convicção de que defender os
vância desses valores não resultará do e qualquer meio. Em vista da interesses privados dele e de seu cír-
na aceitação da Rússia como uma existência de muitos fatores que es- culo íntimo equivale a proteger os
parceira igual e debilitará sua capa- capam ao controle russo, Putin acre- interesses nacionais da Rússia. Por
cidade de buscar seus interesses. dita que fatores externos podem isso qualquer tentativa de tornar a
Putin concluiu que o Ocidente afetar os internos e resultar num nação mais transparente, democrá-
é perigoso. A comunidade transa- colapso da nação. Isso explica por tica e tolerante é considerada não
tlântica, em especial os Estados Uni- que o país se empenha em não dei- apenas um ataque pessoal a Putin e
dos, usa instrumentos de guerra ir- xar que a Ucrânia se aproxime mais seus aliados, mas à própria Rússia,
regulares, como organizações não do Ocidente. como Estado.
governamentais e instituições mul- A promoção desses valores é vis- Essa visão reforça a ideia de que
tilaterais (FMI, Banco Mundial), ta pelos dirigentes russos como um a Rússia é uma vítima permanente
para desestabilizar a Rússia. Por is- instrumento de política externa que de outras potências, sobretudo do
so tornou-se dominante a visão de é ignorado, quando assim convém Ocidente. Ela tem tentado apresen-
que a Rússia enfrenta sistemáticas aos interesses dos Estados Unidos tar-se como um ator global sério.
ameaças provenientes do exterior. ou da União Europeia, mas é usado Nesse sentido, a Guerra da Geórgia,

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


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geopolítica na rússia ´
Janis Berzins
^

A Rússia, o Ocidente e o retorno da geopolítica

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em 2007, vista de uma perspectiva Com o início do mandato de ma iniciativa militar. Apesar de A elite e a sociedade russas têm-se
psicológica, serviu como um modo Medvedev na Presidência, muitos Medvedev ter tentado modernizar
de tranquilizar a população russa. acreditaram que a Rússia retomaria alguns aspectos do governo russo, aproximado do nacionalismo de Estado,
Ref letiu também um choque de o processo das reformas de estilo a postura da Rússia em relação à
visões de mundo. Por um lado, o ocidental, afastando-se do estatismo Europa manteve-se inalterada. O do cristianismo e de outros antigos
Ocidente tenta impor seu modelo, e do eurasianismo de Putin, um eu- novo arranjo de segurança propos- valores europeus, justamente quando os
um modelo que é falho. Os atos da rasianismo que na época era leve. to por Medvedev deve ser entendi-
OTAN, dos Estados Unidos e da Foi uma visão equivocada de sua do como um desdobramento da co- europeus vêm-se afastando deles.
União Europeia são unilaterais e postura, uma vez que a ideia de que locação feita por Putin em Munique,
desconsideram seus efeitos em ca- a Rússia só poderia desenvolver-se no ano anterior. Ele fracassou, uma O distanciamento, agora, pode aumentar.
deia. É o caso, por exemplo, da subs- de maneira independente já estava vez que o Ocidente ficou extrema-
tituição de uma ditadura islâmica arraigada na mentalidade da elite mente desconfiado das intenções da Esse distanciamento da Euro- grande guerra com a OTAN e o
por regimes fundamentalistas. Por política do país. Medvedev deixou Rússia depois da Guerra da Geórgia. pa poderá ser ainda mais profundo Japão; segundo, uma situação re-
outro lado, Putin considera o de- isso claro em seu discurso numa Não deve ser surpresa que o do que foi o soviético. Como afir- gional de conflito de fronteiras, is-
senvolvimento internacional como reunião com líderes políticos, par- terceiro mandato presidencial de mou Karaganov (2015), a elite e a to é, de territórios disputados; ter-
um processo abrangente, no qual lamentares e civis da Alemanha, Putin marque uma ação mais as- sociedade russas têm-se aproxima- ceiro, um conflito militar interno,
não há lugar para uma política ba- realizada em Berlim em 5 de junho sertiva da Rússia para defender seus do do nacionalismo de Estado, do decorrente do terrorismo. Não se
seada em valores. de 2008, na qual ele clamou por interesses, inclusive usando o po- cristianismo e de outros antigos va- deve crer que um conflito militar
Apesar de não ter sido o mo- uma nova arquitetura da segurança derio militar. Neste momento, há lores europeus justo no momento direto com a OTAN seja esperável
mento de virada das relações da europeia. Esse discurso foi a base do um divórcio civilizacional artificial em que os europeus vêm-se distan- em curto prazo. Todavia, a Rússia
Rússia com o Ocidente, o discur- rascunho de um tratado de segu- entre ela e o Ocidente. Isso é con- ciando deles. Como mencionou Ale- tem enfrentado intensas pressões
so de Putin na Conferência de Se- rança europeu publicado em 2009. sequência da falta de convergência xey Meshkov (2015), vice-ministro decorrentes da violação de seus in-
gurança realizada em Munique em O ponto mais importante foi a re- entre as visões estratégicas da Eu- russo das Relações Exteriores, isso teresses estratégicos nacionais. A
2007 foi, com certeza, a mais cla- jeição da base transatlântica do es- ropa, da Rússia e dos Estados Uni- é agravado pela percepção de que a OTAN eliminou, política e mili-
ra expressão do mal-estar da Rús- quema de segurança vigente no Oci- dos, que resultam em diferentes União Europeia se recusa a consi- tarmente, a maioria dos potenciais
sia com o unilateralismo ocidental. dente, considerada uma reminis- níveis de confrontação. No caso da derar os interesses da Rússia, inclu- aliados naturais da Rússia, o que
A ideia principal de Putin foi que cência da Guerra Fria. Medvedev Europa, isso é agravado pela falta sive em questões vitais como o acor- pode ser exemplificado pela expan-
o mundo unipolar posterior à também frisou a ideia de que a de convergência também no nível do de associação entre a Ucrânia e são dela no espaço do antigo Pacto
Guerra Fria constituiu um fracas- OSCE e a OTAN eram organiza- interno. Embora veja a Europa co- a UE. Embora a Europa tenha sido de Varsóvia. A ideologia econômi-
so. Sem meias palavras, ele afirmou ções obsoletas, bem como a neces- mo sua parceira mais importante apanhada de surpresa pela atitude ca monetarista, imposta pelo Fundo
que o esforço ocidental inútil de sidade de haver um espaço comum em muitas áreas, a Rússia conside- hostil da Rússia para com a Ucrânia, Monetário Internacional, pelo Ban-
impor um modelo unipolar havia de segurança, de Vancouver a Vla- ra que a disseminação dos valores Meshkov afirma que a União Eu- co Mundial e por outras organiza-
criado novos conf litos, mediante divostok. Todos os atos militares ocidentais faz parte de uma estra- ropeia ignorou todos os argumentos ções multilaterais, não apenas teve
o uso ilimitado da força nas rela- teriam que ser aprovados pelo Con- tégia de estabelecimento de rela- em prol do estabelecimento de um o objetivo de enfraquecer a socie-
ções internacionais. Em seu dis- selho de Segurança da ONU. Em ções neocoloniais por meio do po- diálogo UE-Ucrânia-Rússia para dade russa em geral, como também
curso, o presidente acrescentou que termos práticos, a proposta de Med- der. O país está convencido de que, considerar “as consequências nega- resultou no financiamento insufi-
o uso unilateral da força pelo Oci- vedev foi uma tentativa de estabe- se o Ocidente não puder alcançar tivas da sua adoção” (sic) (Meshkov, ciente das forças armadas e, portan-
dente só fazia gerar novos conf li- lecer a Rússia como um ator em seus objetivos por instrumentos do 2015). O resultado foi a anexação to, numa degradação operacional
tos, tornando o mundo menos es- igualdade de condições, inf luente poder brando, usará a força militar da Crimeia pela Rússia e a desesta- (Nagorny e Shurygin, 2013).

Frederic Legrand - COMEO/shutterstock.com


tável. Ele denunciou esse uso ex- no teatro de segurança na esfera de para derrubar regimes estabeleci- bilização da Ucrânia Oriental. A solução é criar, como estraté-
cessivo da força no mundo, a seus interesses geopolíticos. O se- dos, impondo seus governos fan- Para a maioria das pessoas, uma gia militar, uma realidade alterna-
expansão provocadora da OTAN, gundo objetivo era isolar os Estados toches no final. Isso é inaceitável guerra dentro das fronteiras euro- tiva em que o apoio aos objetivos
a tentativa do Ocidente de con- Unidos do espaço de segurança eu- para a Rússia, que lutará bravamen- peias no século XXI, o século pós- estratégicos, por parte da sociedade
trolar a Organização para a Se- ropeu. A terceira meta era manter te para manter não apenas sua in- -moderno, era algo inimaginável. de um país em guerra – isto é, a le-
gurança e Cooperação na Europa a União Europeia, a OTAN e a f luência geopolítica, mas também No entanto, a Rússia vem-se pre- gitimação da guerra –, seja funda-
(OSCE), e insistiu em novos con- OSCE fora do processo decisório, sua independência de pressões ex- parando para três cenários possíveis mental para se chegar à vitória. Em
troles dos armamentos (Putin, 2007). tornando-lhes impossível ter algu- ternas sobre assuntos internos. de conflito militar: primeiro, uma outras palavras, o sucesso de cam-

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em 2007, vista de uma perspectiva Com o início do mandato de ma iniciativa militar. Apesar de A elite e a sociedade russas têm-se
psicológica, serviu como um modo Medvedev na Presidência, muitos Medvedev ter tentado modernizar
de tranquilizar a população russa. acreditaram que a Rússia retomaria alguns aspectos do governo russo, aproximado do nacionalismo de Estado,
Ref letiu também um choque de o processo das reformas de estilo a postura da Rússia em relação à
visões de mundo. Por um lado, o ocidental, afastando-se do estatismo Europa manteve-se inalterada. O do cristianismo e de outros antigos
Ocidente tenta impor seu modelo, e do eurasianismo de Putin, um eu- novo arranjo de segurança propos- valores europeus, justamente quando os
um modelo que é falho. Os atos da rasianismo que na época era leve. to por Medvedev deve ser entendi-
OTAN, dos Estados Unidos e da Foi uma visão equivocada de sua do como um desdobramento da co- europeus vêm-se afastando deles.
União Europeia são unilaterais e postura, uma vez que a ideia de que locação feita por Putin em Munique,
desconsideram seus efeitos em ca- a Rússia só poderia desenvolver-se no ano anterior. Ele fracassou, uma O distanciamento, agora, pode aumentar.
deia. É o caso, por exemplo, da subs- de maneira independente já estava vez que o Ocidente ficou extrema-
tituição de uma ditadura islâmica arraigada na mentalidade da elite mente desconfiado das intenções da Esse distanciamento da Euro- grande guerra com a OTAN e o
por regimes fundamentalistas. Por política do país. Medvedev deixou Rússia depois da Guerra da Geórgia. pa poderá ser ainda mais profundo Japão; segundo, uma situação re-
outro lado, Putin considera o de- isso claro em seu discurso numa Não deve ser surpresa que o do que foi o soviético. Como afir- gional de conflito de fronteiras, is-
senvolvimento internacional como reunião com líderes políticos, par- terceiro mandato presidencial de mou Karaganov (2015), a elite e a to é, de territórios disputados; ter-
um processo abrangente, no qual lamentares e civis da Alemanha, Putin marque uma ação mais as- sociedade russas têm-se aproxima- ceiro, um conflito militar interno,
não há lugar para uma política ba- realizada em Berlim em 5 de junho sertiva da Rússia para defender seus do do nacionalismo de Estado, do decorrente do terrorismo. Não se
seada em valores. de 2008, na qual ele clamou por interesses, inclusive usando o po- cristianismo e de outros antigos va- deve crer que um conflito militar
Apesar de não ter sido o mo- uma nova arquitetura da segurança derio militar. Neste momento, há lores europeus justo no momento direto com a OTAN seja esperável
mento de virada das relações da europeia. Esse discurso foi a base do um divórcio civilizacional artificial em que os europeus vêm-se distan- em curto prazo. Todavia, a Rússia
Rússia com o Ocidente, o discur- rascunho de um tratado de segu- entre ela e o Ocidente. Isso é con- ciando deles. Como mencionou Ale- tem enfrentado intensas pressões
so de Putin na Conferência de Se- rança europeu publicado em 2009. sequência da falta de convergência xey Meshkov (2015), vice-ministro decorrentes da violação de seus in-
gurança realizada em Munique em O ponto mais importante foi a re- entre as visões estratégicas da Eu- russo das Relações Exteriores, isso teresses estratégicos nacionais. A
2007 foi, com certeza, a mais cla- jeição da base transatlântica do es- ropa, da Rússia e dos Estados Uni- é agravado pela percepção de que a OTAN eliminou, política e mili-
ra expressão do mal-estar da Rús- quema de segurança vigente no Oci- dos, que resultam em diferentes União Europeia se recusa a consi- tarmente, a maioria dos potenciais
sia com o unilateralismo ocidental. dente, considerada uma reminis- níveis de confrontação. No caso da derar os interesses da Rússia, inclu- aliados naturais da Rússia, o que
A ideia principal de Putin foi que cência da Guerra Fria. Medvedev Europa, isso é agravado pela falta sive em questões vitais como o acor- pode ser exemplificado pela expan-
o mundo unipolar posterior à também frisou a ideia de que a de convergência também no nível do de associação entre a Ucrânia e são dela no espaço do antigo Pacto
Guerra Fria constituiu um fracas- OSCE e a OTAN eram organiza- interno. Embora veja a Europa co- a UE. Embora a Europa tenha sido de Varsóvia. A ideologia econômi-
so. Sem meias palavras, ele afirmou ções obsoletas, bem como a neces- mo sua parceira mais importante apanhada de surpresa pela atitude ca monetarista, imposta pelo Fundo
que o esforço ocidental inútil de sidade de haver um espaço comum em muitas áreas, a Rússia conside- hostil da Rússia para com a Ucrânia, Monetário Internacional, pelo Ban-
impor um modelo unipolar havia de segurança, de Vancouver a Vla- ra que a disseminação dos valores Meshkov afirma que a União Eu- co Mundial e por outras organiza-
criado novos conf litos, mediante divostok. Todos os atos militares ocidentais faz parte de uma estra- ropeia ignorou todos os argumentos ções multilaterais, não apenas teve
o uso ilimitado da força nas rela- teriam que ser aprovados pelo Con- tégia de estabelecimento de rela- em prol do estabelecimento de um o objetivo de enfraquecer a socie-
ções internacionais. Em seu dis- selho de Segurança da ONU. Em ções neocoloniais por meio do po- diálogo UE-Ucrânia-Rússia para dade russa em geral, como também
curso, o presidente acrescentou que termos práticos, a proposta de Med- der. O país está convencido de que, considerar “as consequências nega- resultou no financiamento insufi-
o uso unilateral da força pelo Oci- vedev foi uma tentativa de estabe- se o Ocidente não puder alcançar tivas da sua adoção” (sic) (Meshkov, ciente das forças armadas e, portan-
dente só fazia gerar novos conf li- lecer a Rússia como um ator em seus objetivos por instrumentos do 2015). O resultado foi a anexação to, numa degradação operacional
tos, tornando o mundo menos es- igualdade de condições, inf luente poder brando, usará a força militar da Crimeia pela Rússia e a desesta- (Nagorny e Shurygin, 2013).

Frederic Legrand - COMEO/shutterstock.com


tável. Ele denunciou esse uso ex- no teatro de segurança na esfera de para derrubar regimes estabeleci- bilização da Ucrânia Oriental. A solução é criar, como estraté-
cessivo da força no mundo, a seus interesses geopolíticos. O se- dos, impondo seus governos fan- Para a maioria das pessoas, uma gia militar, uma realidade alterna-
expansão provocadora da OTAN, gundo objetivo era isolar os Estados toches no final. Isso é inaceitável guerra dentro das fronteiras euro- tiva em que o apoio aos objetivos
a tentativa do Ocidente de con- Unidos do espaço de segurança eu- para a Rússia, que lutará bravamen- peias no século XXI, o século pós- estratégicos, por parte da sociedade
trolar a Organização para a Se- ropeu. A terceira meta era manter te para manter não apenas sua in- -moderno, era algo inimaginável. de um país em guerra – isto é, a le-
gurança e Cooperação na Europa a União Europeia, a OTAN e a f luência geopolítica, mas também No entanto, a Rússia vem-se pre- gitimação da guerra –, seja funda-
(OSCE), e insistiu em novos con- OSCE fora do processo decisório, sua independência de pressões ex- parando para três cenários possíveis mental para se chegar à vitória. Em
troles dos armamentos (Putin, 2007). tornando-lhes impossível ter algu- ternas sobre assuntos internos. de conflito militar: primeiro, uma outras palavras, o sucesso de cam-

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panhas militares com conf litos ar- 5. estimulação de crises sociopolí- A Rússia certamente continuará também deve levar em conta os interesses da popula- Referências bibliográficas
mados e guerras locais depende ticas; a usar essa estratégia para defen- ção e não ser concebida meramente para dar apoio aos
muito mais da relação entre fato- der seus interesses, o que signi- interesses do setor bancário. Infelizmente, mesmo na BARANOVSKY, Vladimir. Russia’s Attitu- NAGORNY, Aleksandr; SHURYGIN, Vla-
res militares e não militares – os 6. intensificação de formas e mo- fica que as relações com a Eu- Europa, essa tarefa às vezes parece ser bem difícil. des Towards the EU: Political Aspects. Hel- dislav (orgs.). “Voyennaya reforma kak
elementos políticos, psicológicos, delos simultâneos de guerra psi- ropa e os Estados Unidos conti- A estratégia russa baseia-se em explorar as fraque- sinque/Berlim: Ulkopoliittinen insti- sostavnaya chast’ kontseptsii bezopasnos-
ideológicos e informacionais da cológica; nuarão a ser turbulentas. zas do adversário (os pontos fracos) e jogá-las contra tuutti/Institut für Europäische Politik, ti RF: sistemno-dinamicheskaya otsenka”
campanha – do que do poder mi- ele. Alguns disseram que a região báltica é o ponto 2002. [Reforma da Defesa como parte inte-
grante de uma concepção de segurança
litar como variável isolada (Cheki- 7. incitação ao pânico em massa, fraco mais importante na segurança europeia. Não é. CHEKINOV, Sergey; BOGDANOV, Ser-
para a Federação Russa: avaliação sistê-
nov e Bogdanov, 2010). com perda da confiança nas gran- Observações finais Do ponto de vista da defesa, a má gestão da econo- gey. “Asimmetrichnyye deystviya po
mica e dinâmica]. Moscou: Izborsky Club,
obespecheniyu voyennoy bezopasnosti
A guerra assimétrica tem por des instituições de governo; A Rússia tem defendido ativamen- mia europeia, em nome de ideologias econômicas 2013. Disponível em: http://www.dy-
Rossii” [Ações assimétricas para garan-
objetivo evitar as operações militares te seus interesses, usando inclusive específicas e dos interesses do sistema financeiro, é a tir a segurança militar da Rússia]. Vo-
nacon .ru/content/articles/994/.
diretas e a interferência nos conflitos 8. difamação de líderes políticos o poder militar. Esse é o resultado ameaça mais grave à segurança europeia. Põe em ris- ennaia Mysl (3), 2010, p. 13-22. PUTIN, Vladimir. Discurso na Conferência
internos de outros países. Por isso, que não se alinhem com os in- da incompatibilidade entre as con- co a legitimidade do Estado (e da União Europeia) de Segurança de Munique, 2007. Dispo-
DUGIN, Aleksandr. Geopolitika Rossii [Geo-
como resultado das especificidades teresses da Rússia; cepções estratégicas russas e as do como instituição democrática, por causa do resultado nível em: https://www.youtube.com/
política da Rússia]. Moscou: Akademi-
watch?v=ZlY5aZfOgPA.
da luta com adversários mais fracos, Ocidente a respeito do caráter direto do aumento do desemprego combinado com cheskiy Proyekt, 2012.
PUTIN, Vladimir. “Predsedatel Pravitelstva
a seguinte estratégia tornou-se pre- 9. aniquilação das possibilidades de geopolítico das relações internacio- a baixa segurança social. Um indicador preciso dessa FUKUYAMA, Francis. The End of History
Rossiyskoy Federatsii V. V. Putin vstre-
dominante: emprego de tropas pe- formação de coalizões com alia- nais, bem como de um claro con- tendência é, por exemplo, o aumento significativo do and the Last Man. Nova York: Free Press,
tilsya s aktivom partii Yedinaya Rossiya”
quenas, especialmente treinadas; dos estrangeiros. flito de interesses. Na Europa, a es- ceticismo europeu, bem como o aumento da popu- 1992 (O fim da história e o último homem,
[O primeiro-ministro V. V. Putin reúne-
ações preventivas contra forças irre- tratégia russa tem-se concentrado laridade de partidos políticos nacionalistas e populis- trad. Aulyde Soares Rodrigues. Rio de
-se com membros do partido Rússia Uni-
janeiro: Rocco, 1992).
gulares; propaganda entre as popu- No campo, a discussão acima em estimular a falta de convergên- tas com plataformas radicais. da], 2012. Disponível em: http://archi-
GIL-ROBLES, Alvaro. “Report by Mr. Al- ve.premier.gov.ru/events/news/ 18763/.
lações locais que o inimigo mais fra- significa o emprego de armas não cia para interesses comuns de segu- Na Rússia, muitos acolheram a eleição de Do-
varo Gil-Robles on his Visits to the Rus- RUTLAND, Peter. “Neoliberalism and the
co pretenda defender; fornecimento nucleares de alta precisão, junto rança por meios políticos. Isto inclui nald Trump para a Presidência dos Estados Unidos sian Federation” [Relatório do Sr. Alva- Russian Transition”. Review of Interna-
de apoio militar e material a grupos com o apoio a grupos subversivos grupos de pressão monotemáticos como uma possibilidade de normalização das rela- ro Gil-Robles sobre suas visitas à Fede- tional Political Economy (20), n. 02, 2013,
de apoio dentro do país atacado; re- e de reconhecimento. Os alvos es- com mensagens divisionistas, par- ções entre o país e o Ocidente. Essa ideia baseia-se ração Russa]. Comissário para os p. 332-362.
dução da escala das operações de tratégicos são aqueles que, ao se- tidos marginais bem financiados, o na pressuposição de que Trump se voltará para a po- Direitos Humanos do Conselho da Eu-
TITARENKO, Mikhail; PETROVSKY,
combate; e emprego de métodos não rem destruídos, resultarão em da- canal televisivo de notícias Russia lítica interna, diminuindo o papel dos Estados Uni- ropa, 20 de abril de 2005, consultado em
Vladimir. “O neoyevraziyskoy identi-
militares para pressionar o adversário nos inaceitáveis para o país ataca- Today, centros estratégicos de pes- dos no mundo. Ele não considera a Rússia um ad- 11 de outubro de 2016 em https://wcd.
chnosti Rossii” [A identidade neoeura-
coe.int/ViewDoc.jsp?p=&id=846655.
(Kremenyuk, 2003). A estratégia do. Entre eles se incluem os quisa e lobbies empresariais, para ci- versário e mencionou a necessidade de chegar a um siana da Rússia]. Mezhdunarodnaya zhizn,
KARAGANOV, Sergey. “Net prostykh re- n. 4, 2016, p. 20-44.
russa baseia-se em nove pontos (Na- principais sistemas de controle do tar apenas alguns. Portanto, o ob- acordo mutuamente benéfico entre os dois países
shenii” [Não há soluções simples]. Me-
gorny e Shurygin, 2013): governo e das forças armadas; jetivo não é, necessariamente, obter (Trump, 2016). Embora a política externa de Trump TRENIN, Dmitri. Getting Russia Right.
zhdunarodnaya zhizn, n. 9, 2015, p. 16-25. Moscou: Carnegie Endowment for Interna-
grandes instalações industriais, de um apoio direto para a Rússia, mas tenha muitos pontos em comum com a russa, tais
KRAUTHAMMER, Charles. “The Uni- tional Peace, 2007.
1. estimulação e apoio às ações ar- combustíveis e de energia; centrais para o programa de ação russo, no como a visão de que as ações norte-americanas no polar Moment”. Foreign Affairs (70), n. TSYGANKOV, Andrei. Honor in Internatio-
madas de grupos separatistas, com e instalações de transportes (cen- intuito de reduzir o apoio à OTAN Oriente Médio, sobretudo no Iraque, resultaram 4, 1991, p. 23-33. nal Relations: Russia and the West from
o objetivo de promover o caos e trais ferroviárias, pontes, portos, e à União Europeia. No primeiro numa instabilidade significativa, Trump é adepto de KREMENYUK, Viktor. “Sovremenny me- Alexander to Putin. Cambridge: Cam-
a desintegração territorial; aeroportos, túneis etc.); objetos caso, trata-se de eliminar a garantia negociações a partir de uma posição de força (Trump, zhdunarodny konf likt” [Conf lito in- bridge University Press, 2012.
potencialmente perigosos (barra- do Artigo 5; no segundo, de enfra- 2016), nas quais os Estados Unidos sejam respeitados ternacional de hoje]. Mezhdunarodnye TSYGANKOV, Andrei. Russia’s Foreign Po-
2. polarização entre a elite e a so- gens de usinas hidrelétricas e usi- quecer a influência geopolítica do como “a” superpotência mundial. Dada a assertivi- protsessy (01), n. 01, 2003. licy: Change and Continuity in National
ciedade, resultando numa crise nas hidrelétricas; unidades de pro- Ocidente. Em outras palavras, a dade da Rússia, ainda estamos por ver se será pos- LEICHTOVA, Magda. Misunderstanding Rus- Identity. Lanham, Maryland: Rowman
de valores, seguida por um pro- cessamento da indústria química; Rússia usa ferramentas democráti- sível que os dois países cheguem a um acordo. A sia: Russian Foreign Policy and the West. & Littlefield, 2016.
cesso de orientação da realidade usinas nucleares; depósitos de cas para lutar contra a própria de- levarmos em consideração os interesses russos em Londres: Routledge, 2016. TSYGANKOV, Andrei; TARVER-WAHL-
para valores ocidentais; produtos tóxicos etc.) (Chekinov mocracia. A única maneira de lidar áreas externas próximas, é provável que isso signi- MEDVEDED, Dmitri. Discurso perante lí- QUIST, Matthew. “Dueling Honors:
deres políticos, parlamentares e civis em Power, Identity, and the Russia-Georgia
e Bogdanov, 2010). O objetivo com esse tipo de guerra é mais de- fique a transformação permanente da Ucrânia e da
Berlim, em 5 de junho de 2008. Dispo- Divide”. Foreign Policy Analysis (5), n. 4,
3. debilitação das forças armadas e da Rússia, portanto, é fazer o mocracia. Isso significa mais infor- Bielorrússia numa zona tampão intermediária, en-
nível em: <http://brazil.mid.ru/web/ 2009, p. 307-326.
da elite militar; adversário compreender que po- mações, análises e educação neutras. quanto os membros da antiga União Soviética e do brasil_pt/-/president-of-russia-dmitry- TRUMP, Donald. Discurso sobre política
derá enfrentar uma catástrofe Os políticos precisam ser mais fran- Pacto de Varsóvia não ligados à OTAN continuarão -medvedev-s-speech-at-meeting-with- externa em Youngstown, Ohio (15 de
4. degradação estratégica controla- ambiental e sociopolítica e, em cos, transparentes e ligados às pes- aprisionados na zona de inf luência russa, sem alter- -german-political-parliamentary-and- agosto de 2016). Disponível em: https://
da da situação socioeconômica; função disso, evitar o combate. soas comuns. A política econômica nativa de aproximação do Ocidente. n -civic-leaders-berlin-june-5-2008>. youtu.be/bpLR4GgAL2g.

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A Rússia, o Ocidente e o retorno da geopolítica

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panhas militares com conf litos ar- 5. estimulação de crises sociopolí- A Rússia certamente continuará também deve levar em conta os interesses da popula- Referências bibliográficas
mados e guerras locais depende ticas; a usar essa estratégia para defen- ção e não ser concebida meramente para dar apoio aos
muito mais da relação entre fato- der seus interesses, o que signi- interesses do setor bancário. Infelizmente, mesmo na BARANOVSKY, Vladimir. Russia’s Attitu- NAGORNY, Aleksandr; SHURYGIN, Vla-
res militares e não militares – os 6. intensificação de formas e mo- fica que as relações com a Eu- Europa, essa tarefa às vezes parece ser bem difícil. des Towards the EU: Political Aspects. Hel- dislav (orgs.). “Voyennaya reforma kak
elementos políticos, psicológicos, delos simultâneos de guerra psi- ropa e os Estados Unidos conti- A estratégia russa baseia-se em explorar as fraque- sinque/Berlim: Ulkopoliittinen insti- sostavnaya chast’ kontseptsii bezopasnos-
ideológicos e informacionais da cológica; nuarão a ser turbulentas. zas do adversário (os pontos fracos) e jogá-las contra tuutti/Institut für Europäische Politik, ti RF: sistemno-dinamicheskaya otsenka”
campanha – do que do poder mi- ele. Alguns disseram que a região báltica é o ponto 2002. [Reforma da Defesa como parte inte-
grante de uma concepção de segurança
litar como variável isolada (Cheki- 7. incitação ao pânico em massa, fraco mais importante na segurança europeia. Não é. CHEKINOV, Sergey; BOGDANOV, Ser-
para a Federação Russa: avaliação sistê-
nov e Bogdanov, 2010). com perda da confiança nas gran- Observações finais Do ponto de vista da defesa, a má gestão da econo- gey. “Asimmetrichnyye deystviya po
mica e dinâmica]. Moscou: Izborsky Club,
obespecheniyu voyennoy bezopasnosti
A guerra assimétrica tem por des instituições de governo; A Rússia tem defendido ativamen- mia europeia, em nome de ideologias econômicas 2013. Disponível em: http://www.dy-
Rossii” [Ações assimétricas para garan-
objetivo evitar as operações militares te seus interesses, usando inclusive específicas e dos interesses do sistema financeiro, é a tir a segurança militar da Rússia]. Vo-
nacon .ru/content/articles/994/.
diretas e a interferência nos conflitos 8. difamação de líderes políticos o poder militar. Esse é o resultado ameaça mais grave à segurança europeia. Põe em ris- ennaia Mysl (3), 2010, p. 13-22. PUTIN, Vladimir. Discurso na Conferência
internos de outros países. Por isso, que não se alinhem com os in- da incompatibilidade entre as con- co a legitimidade do Estado (e da União Europeia) de Segurança de Munique, 2007. Dispo-
DUGIN, Aleksandr. Geopolitika Rossii [Geo-
como resultado das especificidades teresses da Rússia; cepções estratégicas russas e as do como instituição democrática, por causa do resultado nível em: https://www.youtube.com/
política da Rússia]. Moscou: Akademi-
watch?v=ZlY5aZfOgPA.
da luta com adversários mais fracos, Ocidente a respeito do caráter direto do aumento do desemprego combinado com cheskiy Proyekt, 2012.
PUTIN, Vladimir. “Predsedatel Pravitelstva
a seguinte estratégia tornou-se pre- 9. aniquilação das possibilidades de geopolítico das relações internacio- a baixa segurança social. Um indicador preciso dessa FUKUYAMA, Francis. The End of History
Rossiyskoy Federatsii V. V. Putin vstre-
dominante: emprego de tropas pe- formação de coalizões com alia- nais, bem como de um claro con- tendência é, por exemplo, o aumento significativo do and the Last Man. Nova York: Free Press,
tilsya s aktivom partii Yedinaya Rossiya”
quenas, especialmente treinadas; dos estrangeiros. flito de interesses. Na Europa, a es- ceticismo europeu, bem como o aumento da popu- 1992 (O fim da história e o último homem,
[O primeiro-ministro V. V. Putin reúne-
ações preventivas contra forças irre- tratégia russa tem-se concentrado laridade de partidos políticos nacionalistas e populis- trad. Aulyde Soares Rodrigues. Rio de
-se com membros do partido Rússia Uni-
janeiro: Rocco, 1992).
gulares; propaganda entre as popu- No campo, a discussão acima em estimular a falta de convergên- tas com plataformas radicais. da], 2012. Disponível em: http://archi-
GIL-ROBLES, Alvaro. “Report by Mr. Al- ve.premier.gov.ru/events/news/ 18763/.
lações locais que o inimigo mais fra- significa o emprego de armas não cia para interesses comuns de segu- Na Rússia, muitos acolheram a eleição de Do-
varo Gil-Robles on his Visits to the Rus- RUTLAND, Peter. “Neoliberalism and the
co pretenda defender; fornecimento nucleares de alta precisão, junto rança por meios políticos. Isto inclui nald Trump para a Presidência dos Estados Unidos sian Federation” [Relatório do Sr. Alva- Russian Transition”. Review of Interna-
de apoio militar e material a grupos com o apoio a grupos subversivos grupos de pressão monotemáticos como uma possibilidade de normalização das rela- ro Gil-Robles sobre suas visitas à Fede- tional Political Economy (20), n. 02, 2013,
de apoio dentro do país atacado; re- e de reconhecimento. Os alvos es- com mensagens divisionistas, par- ções entre o país e o Ocidente. Essa ideia baseia-se ração Russa]. Comissário para os p. 332-362.
dução da escala das operações de tratégicos são aqueles que, ao se- tidos marginais bem financiados, o na pressuposição de que Trump se voltará para a po- Direitos Humanos do Conselho da Eu-
TITARENKO, Mikhail; PETROVSKY,
combate; e emprego de métodos não rem destruídos, resultarão em da- canal televisivo de notícias Russia lítica interna, diminuindo o papel dos Estados Uni- ropa, 20 de abril de 2005, consultado em
Vladimir. “O neoyevraziyskoy identi-
militares para pressionar o adversário nos inaceitáveis para o país ataca- Today, centros estratégicos de pes- dos no mundo. Ele não considera a Rússia um ad- 11 de outubro de 2016 em https://wcd.
chnosti Rossii” [A identidade neoeura-
coe.int/ViewDoc.jsp?p=&id=846655.
(Kremenyuk, 2003). A estratégia do. Entre eles se incluem os quisa e lobbies empresariais, para ci- versário e mencionou a necessidade de chegar a um siana da Rússia]. Mezhdunarodnaya zhizn,
KARAGANOV, Sergey. “Net prostykh re- n. 4, 2016, p. 20-44.
russa baseia-se em nove pontos (Na- principais sistemas de controle do tar apenas alguns. Portanto, o ob- acordo mutuamente benéfico entre os dois países
shenii” [Não há soluções simples]. Me-
gorny e Shurygin, 2013): governo e das forças armadas; jetivo não é, necessariamente, obter (Trump, 2016). Embora a política externa de Trump TRENIN, Dmitri. Getting Russia Right.
zhdunarodnaya zhizn, n. 9, 2015, p. 16-25. Moscou: Carnegie Endowment for Interna-
grandes instalações industriais, de um apoio direto para a Rússia, mas tenha muitos pontos em comum com a russa, tais
KRAUTHAMMER, Charles. “The Uni- tional Peace, 2007.
1. estimulação e apoio às ações ar- combustíveis e de energia; centrais para o programa de ação russo, no como a visão de que as ações norte-americanas no polar Moment”. Foreign Affairs (70), n. TSYGANKOV, Andrei. Honor in Internatio-
madas de grupos separatistas, com e instalações de transportes (cen- intuito de reduzir o apoio à OTAN Oriente Médio, sobretudo no Iraque, resultaram 4, 1991, p. 23-33. nal Relations: Russia and the West from
o objetivo de promover o caos e trais ferroviárias, pontes, portos, e à União Europeia. No primeiro numa instabilidade significativa, Trump é adepto de KREMENYUK, Viktor. “Sovremenny me- Alexander to Putin. Cambridge: Cam-
a desintegração territorial; aeroportos, túneis etc.); objetos caso, trata-se de eliminar a garantia negociações a partir de uma posição de força (Trump, zhdunarodny konf likt” [Conf lito in- bridge University Press, 2012.
potencialmente perigosos (barra- do Artigo 5; no segundo, de enfra- 2016), nas quais os Estados Unidos sejam respeitados ternacional de hoje]. Mezhdunarodnye TSYGANKOV, Andrei. Russia’s Foreign Po-
2. polarização entre a elite e a so- gens de usinas hidrelétricas e usi- quecer a influência geopolítica do como “a” superpotência mundial. Dada a assertivi- protsessy (01), n. 01, 2003. licy: Change and Continuity in National
ciedade, resultando numa crise nas hidrelétricas; unidades de pro- Ocidente. Em outras palavras, a dade da Rússia, ainda estamos por ver se será pos- LEICHTOVA, Magda. Misunderstanding Rus- Identity. Lanham, Maryland: Rowman
de valores, seguida por um pro- cessamento da indústria química; Rússia usa ferramentas democráti- sível que os dois países cheguem a um acordo. A sia: Russian Foreign Policy and the West. & Littlefield, 2016.
cesso de orientação da realidade usinas nucleares; depósitos de cas para lutar contra a própria de- levarmos em consideração os interesses russos em Londres: Routledge, 2016. TSYGANKOV, Andrei; TARVER-WAHL-
para valores ocidentais; produtos tóxicos etc.) (Chekinov mocracia. A única maneira de lidar áreas externas próximas, é provável que isso signi- MEDVEDED, Dmitri. Discurso perante lí- QUIST, Matthew. “Dueling Honors:
deres políticos, parlamentares e civis em Power, Identity, and the Russia-Georgia
e Bogdanov, 2010). O objetivo com esse tipo de guerra é mais de- fique a transformação permanente da Ucrânia e da
Berlim, em 5 de junho de 2008. Dispo- Divide”. Foreign Policy Analysis (5), n. 4,
3. debilitação das forças armadas e da Rússia, portanto, é fazer o mocracia. Isso significa mais infor- Bielorrússia numa zona tampão intermediária, en-
nível em: <http://brazil.mid.ru/web/ 2009, p. 307-326.
da elite militar; adversário compreender que po- mações, análises e educação neutras. quanto os membros da antiga União Soviética e do brasil_pt/-/president-of-russia-dmitry- TRUMP, Donald. Discurso sobre política
derá enfrentar uma catástrofe Os políticos precisam ser mais fran- Pacto de Varsóvia não ligados à OTAN continuarão -medvedev-s-speech-at-meeting-with- externa em Youngstown, Ohio (15 de
4. degradação estratégica controla- ambiental e sociopolítica e, em cos, transparentes e ligados às pes- aprisionados na zona de inf luência russa, sem alter- -german-political-parliamentary-and- agosto de 2016). Disponível em: https://
da da situação socioeconômica; função disso, evitar o combate. soas comuns. A política econômica nativa de aproximação do Ocidente. n -civic-leaders-berlin-june-5-2008>. youtu.be/bpLR4GgAL2g.

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


112 113

Diário de um colapso Houve um colapso, que dificilmente será revertido, nas relações entre a
Federação Russa e o Ocidente. Ele foi provocado por ambos os lados. O
Ocidente perdeu uma grande chance: sem a expansão da Otan, sem o escudo
de defesa contra mísseis, sem um comportamento arrogante, sobretudo dos
Estados Unidos, diante da Federação Russa e sem a convicção inflada de deter
Alexander
Blankenagel
Professor de
direito público
e direito russo

As relações externas entre a Federação Russa, os Estados Unidos uma superioridade moral, é provável que a Federação Russa tivesse tomado
da Universidade
Humboldt de
Berlim.
outro curso na primeira década deste milênio, tanto na política doméstica
e os Estados da Europa Ocidental quanto na política externa.

1. Introdução desse desenvolvimento da polí-


tica interna uma equação apa-
As relações entre a Federação rentemente lógica: quem é auto-
Russa e o Ocidente (sobretudo ritário e corrupto na política do-
os Estados Unidos e os Estados méstica só pode ser vilão na
da Europa Ocidental)1 alcança- política externa! Uma análise mais
ram um ponto baixo e reprodu- minuciosa, porém, levanta per-
zem, nos posicionamentos dos guntas.2 Mas nem todos têm tem-
políticos, na mídia e na opinião po para uma análise cuidadosa.
pública, a imagem, criada duran- Isso não foi sempre assim. Na
te a Guerra Fria, do vilão no Orien- década de 1990, as relações, vistas
te que, por causa de seus desejos de fora, eram próximas e coope-
expansionistas, sua agressividade rativas. Havia o desejo geral – ou
e sua brutalidade, representa um pelo menos os políticos se expres-
perigo para os “Estados civiliza- savam como se esse desejo geral
dos”, os quais precisam tomar existisse – de ajudar a Federação
firmes contramedidas. E, real- Russa, enfraquecida pelo caos da
mente, à primeira vista, a políti- transformação, em seu difícil pro-
ca russa não parece boa: a guer- cesso de criar simultaneamente a
ra na Geórgia, a anexação da Cri- democracia e um Estado de direi-
meia, o conf lito no leste da to, de um lado, e um sistema de
Ucrânia, o apoio ao regime de economia privada, de outro (sem
Assad na guerra civil na Síria, os falar da necessidade de encontrar
ataques de hackers durante a cam- uma nova identidade russa coleti-
panha eleitoral à Presidência nor- va). Apoio financeiro, programas
te-americana – tudo isso faz a de ajuda, 3 contatos intensivos e
Federação Russa se apresentar compartilhamento de experiências
como o vilão e arruaceiro par ex- faziam parecer reais eventuais ex-
cellence. Soma-se a isso o fato de pressões de amizade e relações só-
que, no interior, pouco restou da lidas. A partir da segunda metade
democracia e do Estado de di- da década de 1990, porém, foi prin-

M-SUR/Shutterstock.com
reito que a Federação Russa se cipalmente a Europa Ocidental
comprometeu a realizar após que buscou proximidade e ami-
1991: a Rússia é um Estado au- zade; os Estados Unidos eram mais
toritário e corrupto. Deduz-se discretos, mas também estavam

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Diário de um colapso Houve um colapso, que dificilmente será revertido, nas relações entre a
Federação Russa e o Ocidente. Ele foi provocado por ambos os lados. O
Ocidente perdeu uma grande chance: sem a expansão da Otan, sem o escudo
de defesa contra mísseis, sem um comportamento arrogante, sobretudo dos
Estados Unidos, diante da Federação Russa e sem a convicção inflada de deter
Alexander
Blankenagel
Professor de
direito público
e direito russo

As relações externas entre a Federação Russa, os Estados Unidos uma superioridade moral, é provável que a Federação Russa tivesse tomado
da Universidade
Humboldt de
Berlim.
outro curso na primeira década deste milênio, tanto na política doméstica
e os Estados da Europa Ocidental quanto na política externa.

1. Introdução desse desenvolvimento da polí-


tica interna uma equação apa-
As relações entre a Federação rentemente lógica: quem é auto-
Russa e o Ocidente (sobretudo ritário e corrupto na política do-
os Estados Unidos e os Estados méstica só pode ser vilão na
da Europa Ocidental)1 alcança- política externa! Uma análise mais
ram um ponto baixo e reprodu- minuciosa, porém, levanta per-
zem, nos posicionamentos dos guntas.2 Mas nem todos têm tem-
políticos, na mídia e na opinião po para uma análise cuidadosa.
pública, a imagem, criada duran- Isso não foi sempre assim. Na
te a Guerra Fria, do vilão no Orien- década de 1990, as relações, vistas
te que, por causa de seus desejos de fora, eram próximas e coope-
expansionistas, sua agressividade rativas. Havia o desejo geral – ou
e sua brutalidade, representa um pelo menos os políticos se expres-
perigo para os “Estados civiliza- savam como se esse desejo geral
dos”, os quais precisam tomar existisse – de ajudar a Federação
firmes contramedidas. E, real- Russa, enfraquecida pelo caos da
mente, à primeira vista, a políti- transformação, em seu difícil pro-
ca russa não parece boa: a guer- cesso de criar simultaneamente a
ra na Geórgia, a anexação da Cri- democracia e um Estado de direi-
meia, o conf lito no leste da to, de um lado, e um sistema de
Ucrânia, o apoio ao regime de economia privada, de outro (sem
Assad na guerra civil na Síria, os falar da necessidade de encontrar
ataques de hackers durante a cam- uma nova identidade russa coleti-
panha eleitoral à Presidência nor- va). Apoio financeiro, programas
te-americana – tudo isso faz a de ajuda, 3 contatos intensivos e
Federação Russa se apresentar compartilhamento de experiências
como o vilão e arruaceiro par ex- faziam parecer reais eventuais ex-
cellence. Soma-se a isso o fato de pressões de amizade e relações só-
que, no interior, pouco restou da lidas. A partir da segunda metade
democracia e do Estado de di- da década de 1990, porém, foi prin-

M-SUR/Shutterstock.com
reito que a Federação Russa se cipalmente a Europa Ocidental
comprometeu a realizar após que buscou proximidade e ami-
1991: a Rússia é um Estado au- zade; os Estados Unidos eram mais
toritário e corrupto. Deduz-se discretos, mas também estavam

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rússia, estados unidos e europa Alexander Blankenagel As relações externas entre a Federação Russa, os Estados Unidos e os Estados da Europa Ocidental

muito distantes da intensidade das cal desfuncional, que teria garan- da República Federativa da Ale- Estado considerado uma ameaça proclamada pelo presidente nor- da Alemanha após a reunificação
relações econômicas dos Estados tido um cumprimento satisfatório manha, que, em virtude da pro- pelos Estados Unidos, por exem- te-americano em 1947 na forma em vista do alargamento a Leste da
da Europa Ocidental. Irritações das obrigações estatais – “teria”, ximidade e da história, deveria plo, a República Popular da Chi- de “política de containment” tendo OTAN. O que sabemos é que Gor-
causadas pela política russa eram pois as obrigações estatais não fo- ter uma compreensão maior dos na? Encontramos a resposta na em mira Estados sul-americanos bachev recebeu a promessa verbal
descartadas como “dificuldades ram cumpridas em medida con- temores russos. A fim de ilustrar crise dos mísseis de Cuba, no gol- “desviados”, até hoje não foi ofi- de que nenhuma tropa da OTAN
de transição”. Irritações do lado siderável. Já na década de 1990, a importância desse processo pa- pe de Pinochet no Chile e nas cialmente revertida.7 seria estacionada a leste do terri-
russo diante de políticas concretas na verdade, desde o início da ra a Federação Russa, permito- inúmeras tentativas dos Estados Contemplemos primeiramen- tório da antiga RDA. Não sabe-
dos Estados Unidos ou dos Esta- transformação, o curso que a -me uma pequena comparação. Unidos de impor, com todos os te as estações do alargamento a Les- mos se essa promessa tinha algum
dos da Europa Ocidental eram – Rússia deveria e queria tomar O que fariam os Estados Unidos meios, aos seus vizinhos na Amé- te. Não temos certeza se o Oci- valor jurídico. Em todo caso, nin-
acreditava-se – neutralizadas com era controverso na própria Rús- se um de seus vizinhos – ou seja, rica Central e na América do Sul dente deu quaisquer garantias guém se sentiu na obrigação de
uma referência às boas intenções sia. As elites que detinham o po- o Canadá ou o México – firmas- uma conduta favorável aos Esta- em troca da retirada das tropas respeitar quaisquer garantias des-
próprias e a consciência de ser “o der e grande parte da população se uma aliança de defesa com um dos Unidos. A Doutrina Monroe, soviéticas da República Federativa se tipo. A resposta fria e arrogan-
mocinho” na história.4 Por isso o queriam um Estado e uma socie-
choque foi tão grande quando, dade nos moldes ocidentais. Ou-
em algum momento após a vira- tra parte da elite e outra parte da
da do milênio, ficou claro repen- população, retomando o conf lito
Gorbachev recebeu

Rokas Tenys/shutterstock.com
tinamente que existiam problemas histórico do século XIX entre os
consideráveis nas relações recí- ocidentais e os defensores do ca- uma promessa
procas e que, “escandolosamen- minho russo,5 acreditavam, porém,
te”, também no âmbito domésti- que a Rússia deveria buscar o pró- meramente verbal
co, a Federação Russa não se de- prio caminho. Já em 1992, o mi-
senvolvia como todos imaginavam nistro do Exterior Kozyrev, ex-
de que nenhuma
– para não dizer do modo impos- tremamente favorável ao Ociden- tropa da OTAN seria
to aos russos. O que havia acon- te, aler tou que uma ajuda
tecido? Tentarei dar uma respos- excessivamente hesitante e a ar- estacionada a leste
ta a essa pergunta, identificar as rogância do Ocidente na intera-
estações essenciais desse colapso, ção com a Rússia levariam a Rús- do território da
após o início tão esperançoso em sia a seguir seu próprio caminho
1991, e também identif icar na nacional.6 Infelizmente, a adver-
antiga Alemanha
política russa outro papel além do tência não foi ouvida, como mos- Oriental. Ninguém se
vilão eterno. tram o alargamento a Leste da
OTAN e o tratamento desdenho- sentiu na obrigação
so da Rússia pelo Ocidente, prin-
2. Os últimos 25 anos cipalmente pelos Estados Unidos.
de respeitar
– a lua de mel antes
da guerra de rosas
garantias desse
O alargamento da OTAN
A década de 1990 foi para a Fe- O alargamento da OTAN é um tipo. O Ocidente foi
deração Russa – respectivamente, processo que ilustra muito bem
para seu antecessor histórico, a como o Ocidente provocou, de arrogante.
RSFSR – um tempo difícil não olhos abertos, um confronto com
só pela transformação do Estado a Federação Russa. Tudo indica
e da economia, mas também por- que os Estados Unidos foram a
que o Estado russo era extrema- força impulsionadora desse pro-
mente pobre, por causa das dívidas cesso; mesmo sendo esse o caso,
gigantescas deixadas pela União apresenta-se como uma tragédia
Soviética e em virtude do baixo a falta de resistência por parte dos
preço do petróleo e do sistema fis- países europeus, principalmente

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


114 115
rússia, estados unidos e europa Alexander Blankenagel As relações externas entre a Federação Russa, os Estados Unidos e os Estados da Europa Ocidental

muito distantes da intensidade das cal desfuncional, que teria garan- da República Federativa da Ale- Estado considerado uma ameaça proclamada pelo presidente nor- da Alemanha após a reunificação
relações econômicas dos Estados tido um cumprimento satisfatório manha, que, em virtude da pro- pelos Estados Unidos, por exem- te-americano em 1947 na forma em vista do alargamento a Leste da
da Europa Ocidental. Irritações das obrigações estatais – “teria”, ximidade e da história, deveria plo, a República Popular da Chi- de “política de containment” tendo OTAN. O que sabemos é que Gor-
causadas pela política russa eram pois as obrigações estatais não fo- ter uma compreensão maior dos na? Encontramos a resposta na em mira Estados sul-americanos bachev recebeu a promessa verbal
descartadas como “dificuldades ram cumpridas em medida con- temores russos. A fim de ilustrar crise dos mísseis de Cuba, no gol- “desviados”, até hoje não foi ofi- de que nenhuma tropa da OTAN
de transição”. Irritações do lado siderável. Já na década de 1990, a importância desse processo pa- pe de Pinochet no Chile e nas cialmente revertida.7 seria estacionada a leste do terri-
russo diante de políticas concretas na verdade, desde o início da ra a Federação Russa, permito- inúmeras tentativas dos Estados Contemplemos primeiramen- tório da antiga RDA. Não sabe-
dos Estados Unidos ou dos Esta- transformação, o curso que a -me uma pequena comparação. Unidos de impor, com todos os te as estações do alargamento a Les- mos se essa promessa tinha algum
dos da Europa Ocidental eram – Rússia deveria e queria tomar O que fariam os Estados Unidos meios, aos seus vizinhos na Amé- te. Não temos certeza se o Oci- valor jurídico. Em todo caso, nin-
acreditava-se – neutralizadas com era controverso na própria Rús- se um de seus vizinhos – ou seja, rica Central e na América do Sul dente deu quaisquer garantias guém se sentiu na obrigação de
uma referência às boas intenções sia. As elites que detinham o po- o Canadá ou o México – firmas- uma conduta favorável aos Esta- em troca da retirada das tropas respeitar quaisquer garantias des-
próprias e a consciência de ser “o der e grande parte da população se uma aliança de defesa com um dos Unidos. A Doutrina Monroe, soviéticas da República Federativa se tipo. A resposta fria e arrogan-
mocinho” na história.4 Por isso o queriam um Estado e uma socie-
choque foi tão grande quando, dade nos moldes ocidentais. Ou-
em algum momento após a vira- tra parte da elite e outra parte da
da do milênio, ficou claro repen- população, retomando o conf lito
Gorbachev recebeu

Rokas Tenys/shutterstock.com
tinamente que existiam problemas histórico do século XIX entre os
consideráveis nas relações recí- ocidentais e os defensores do ca- uma promessa
procas e que, “escandolosamen- minho russo,5 acreditavam, porém,
te”, também no âmbito domésti- que a Rússia deveria buscar o pró- meramente verbal
co, a Federação Russa não se de- prio caminho. Já em 1992, o mi-
senvolvia como todos imaginavam nistro do Exterior Kozyrev, ex-
de que nenhuma
– para não dizer do modo impos- tremamente favorável ao Ociden- tropa da OTAN seria
to aos russos. O que havia acon- te, aler tou que uma ajuda
tecido? Tentarei dar uma respos- excessivamente hesitante e a ar- estacionada a leste
ta a essa pergunta, identificar as rogância do Ocidente na intera-
estações essenciais desse colapso, ção com a Rússia levariam a Rús- do território da
após o início tão esperançoso em sia a seguir seu próprio caminho
1991, e também identif icar na nacional.6 Infelizmente, a adver-
antiga Alemanha
política russa outro papel além do tência não foi ouvida, como mos- Oriental. Ninguém se
vilão eterno. tram o alargamento a Leste da
OTAN e o tratamento desdenho- sentiu na obrigação
so da Rússia pelo Ocidente, prin-
2. Os últimos 25 anos cipalmente pelos Estados Unidos.
de respeitar
– a lua de mel antes
da guerra de rosas
garantias desse
O alargamento da OTAN
A década de 1990 foi para a Fe- O alargamento da OTAN é um tipo. O Ocidente foi
deração Russa – respectivamente, processo que ilustra muito bem
para seu antecessor histórico, a como o Ocidente provocou, de arrogante.
RSFSR – um tempo difícil não olhos abertos, um confronto com
só pela transformação do Estado a Federação Russa. Tudo indica
e da economia, mas também por- que os Estados Unidos foram a
que o Estado russo era extrema- força impulsionadora desse pro-
mente pobre, por causa das dívidas cesso; mesmo sendo esse o caso,
gigantescas deixadas pela União apresenta-se como uma tragédia
Soviética e em virtude do baixo a falta de resistência por parte dos
preço do petróleo e do sistema fis- países europeus, principalmente

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rússia, estados unidos e europa Alexander Blankenagel As relações externas entre a Federação Russa, os Estados Unidos e os Estados da Europa Ocidental

te a qualquer questionamento era


que Gorbachev poderia ter pedido
Em todo caso, aconteceu o que
não poderia ter acontecido. Em
Em 2001, Putin indagou sobre soviéticas Armênia, Azerbaijão,
Geórgia, Modávia, Bielorrússia e
vos, o memorando corresponden-
te nunca saiu da escrivaninha de
tinha a mensagem clara: ou vocês
voltam atrás ou vocês se surpreen-
uma confirmação por escrito. O março de 1999, a Polônia, a Re- a possibilidade de a Rússia Ucrânia e que, segundo as inten- Powell, como escreve Stent. Em derão. Putin foi acusado de trair o
primeiro passo no início de 1994 pública Tcheca e a Hungria se tor- ções de seus fundadores, pretendia outras palavras, a iniciativa foi obs- espírito de amizade e cooperação.19
foi a fundação pela OTAN da “Par- naram membros da OTAN. Como aderir à OTAN. A iniciativa foi explicitamente excluir a Federação truída, para não dizer solapada.16 Os eventos subsequentes mos-
ceria para a paz”, cujo propósito que para demonstrar as intenções Russa. No início, as reações russas Depois disso, as manifestações de traram que os russos estavam fa-
era oferecer uma estrutura insti- pacíficas da OTAN, entre março
obstruída e solapada. foram negativas; pouco tempo de- desagrado por parte dos russos se lando sério. Em 2008, irrompeu a
tucional para a cooperação militar e junho daquele ano a OTAN, Depois disso, manifestações pois, o Ministério do Exterior tornaram cada vez mais frequen- guerra russo-georgiana. A Geórgia
entre a OTAN e países não mem- simplesmente ignorando as repe- declarou que conseguiria imagi- tes. Em julho de 2005, Putin de- estava desestabilizada; perdeu os
bros da OTAN. Em junho, a Fe- tidas ressalvas da Rússia, bombar- de desagrado dos russos nar uma adesão a essa parceria.15 clarou, em reação às chamadas “re- territórios da Abecásia e da Os-
deração Russa aderiu – nolens vo- deou a Sérvia sob o pretexto de Em 2013, a Croácia, por en- voluções das f lores” na Ucrânica, sétia do Sul, há muito tempo dis-
lens – à parceria. No entanto, te- uma “intervenção militar huma-
tornaram-se cada vez mais quanto o último país candidato, na Geórgia e no Quirguistão, que, postos a se separar, e assim se des-
mia-se já então que esse seria o nitária” não sancionada pela ONU. intensas e frequentes. foi aceita como membro da UE. no futuro, não permitiria mais o qualif icou como candidata a
primeiro passo em direção a uma Do ponto de vista do direito das Em 2014, por f im, a Ucrânia, a f inanciamento estrangeiro de membro da OTAN por causa dos
amplição oriental da OTAN.8 Já gentes, esse bombardeio sem man- Geórgia e a Moldávia se tornaram ONGs.17 Em seu discurso à nação conf litos territoriais. Em setem-
em 1994 o presidente Jelzin aler- dato explícito da ONU represen- OTAN decidiu aceitar como no- membros associados da UE. No em maio de 2006, Putin anunciou bro de 2008, foram formulados
tou o presidente norte-americano tava, pelo menos segundo a inter- vos membros da OTAN a Croá- caso da Ucrânia, que mantinha o fortalecimento do exército e do os duríssimos “Princípios da po-
Clinton quanto ao perigo de uma pretação do direito das gentes até cia, a Albânia e o Kosovo, e ofe- relações econômicas especialmen- armamento e o desenvolvimento lítica de defesa russa 2020”. Em
guerra fria em decorrência de um então vigente, o direito das gentes. receu à Macedônia, a Bósnia e Her- te estreitas com a Rússia e que de armas estratégicas. Em feverei- novembro de 2011, o presidente
alargamento a Leste da OTAN.9 É claro que, antes e depois dessa zegovina e a Montenegro uma queria ter a Rússia como membro ro de 2007, ocorreu o famoso dis- Medvedev fez uma declaração
O problema permaneceu na pau- missão, muitos apologetas defen- perspectiva concreta de adesão. da União Econômica Eurasiática, curso de Putin na Conferência de afiada criticando o escudo de de-
ta do dia. Na década de 1990, a deram essa intervenção humani- Uma adesão à OTAN da Geórgia isso só foi possível graças a um Segurança de Munique.18 Putin fesa contra mísseis que os Estados
posição russa oscilava entre o re- tária não sancionada pela ONU, e da Ucrânia, já aprovada pelo golpe de governo, que levou à se- acusou os Estados Unidos de bus- Unidos haviam planejado. Em
púdio e a tentativa de impedir o reinterpretando essa violação do Congresso dos Estados Unidos em paração/anexação da Crimeia e à carem o “domínio mundial mo- 2013, Gerassimov, o alto coman-
pior por meio da participação.10 direito das gentes como evolução 2007, foi rejeitada, mas permane- guerra civil na Ucrânia oriental. nopolar” e de terem “ultrapassa- dante das forças militares, fez um
Foram principalmente os Estados do direito das gentes.12 Em no- ceu na pauta como possibilidade No mesmo ano, como resposta à do seus limites em quase todas as apelo para que o país se prepa-
Unidos que trataram da questão vembro de 2002, a Bulgária, a futura e como espada de Dâmocles ameaça representada pela agres- áreas”. Ele advertiu a OTAN con- rasse para a guerra do século
de modo muito peculiar: já que, Romênia, a Lituânia, a Letônia, sobre a Federação Russa.13 sividade russa, a OTAN criou a tra um “emprego militar desen- XXI. No mesmo ano, a Federa-
de acordo com a posição dos Es- a Estônia, a Eslovênia e a Eslo- Paralelamente ao acolhimento tropa de intervenção rápida para freado”. A Aliança do Atlântico ção Russa ofereceu asilo político
tados Unidos, não havia más in- váquia foram convidadas a iniciar dos Estados da Europa Oriental a Europa Oriental. Norte e a União Europeia esta- a E. Snowden, um evento simbó-
tenções por trás do alargamento negociações de adesão com a central, ocorreu também um alar- A Federação Russa jamais dei- riam impondo sua vontade a ou- lico de grande força política que
da OTAN, era preciso convencer OTAN; a adesão desses Estados gamento da UE com esses Estados. xou ao Ocidente e à OTAN ne- tros países e apostando na violên- evidenciou a deterioração das re-
os russos de que um alargamento ocorreu em março de 2004. Co- Em maio de 2004, os três Estados nhuma dúvida de que consideraria cia, disse Putin. O presidente da lações entre a Federação Russa e
a Leste da OTAN não represen- mo que para ressaltar mais uma bálticos, Estônia, Letônia e Lituâ- o alargamento a Leste da OTAN Rússia criticou fortemente o alar- os Estados Unidos. Já mencionei
taria nenhuma ameaça para eles.11 vez sua inocuidade, os Estados nia, como também a Polônia, a um ato hostil e de que, diante do gamento a Leste da OTAN, por- a Crimeia e a Ucrânia oriental.
Em outras palavras, ninguém se Unidos começaram, paralelamen- República Tcheca, a Hungria, a colapso progressivo das relações, que sua infraestrutura militar se
deu o trabalho de submeter a po- te a esse processo de alargamento, Eslovênia e a Eslováquia, se tor- nem mesmo um cânone de aspec- estendia “até as nossas fronteiras”. O escudo de defesa
lítica do alargamento a Leste da a segunda guerra contra o Iraque, naram membros da UE.14 Em 2007, tos comuns a impediria de defen- Podemos dizer sem exagero que contra mísseis
OTAN a uma revisão. Todos par- novamente em violação do direi- a Romênia e a Bulgária se junta- der seus interesses. Já menciona- esse discurso continha a mensa- O alargamento a Leste da OTAN
tiam da convicção de que conse- to das gentes, e após, ainda em fe- ram à UE, mesmo que sob condi- mos algumas declarações de na- gem clara de que, caso a OTAN não foi o único ponto de conf lito
guiriam convencer os russos. vereiro de 2004, Putin ter comu- ções rígidas. Em maio de 2009, a tureza mais informal. Em 2001, não mudasse ou revertesse sua po- no âmbito militar. O segundo con-
Creio que existia também o con- nicado ao presidente norte-ame- UE decidiu, a partir de uma ini- Putin tentou solucionar essa pro- lítica de expansão, as relações re- f lito encarniçado dizia respeito ao
senso geral, porém velado, de que ricano que, segundo informações ciativa polonesa e sueca e como blemática ao indagar, como já fi- cípricas decorreriam de modo di- plano norte-americano de criar
não haveria problema se eles não russas validadas, o Iraque não pos- reação à guerra russo-georgiana, zera Jelzin antes dele, da possibi- ferente e confrontativo. A reação um escudo de defesa contra mís-
pudessem ser convencidos, já que suía armas de destruição em mas- criar a Associação Oriental, que lidade de uma adesão da Federação da OTAN era marcada por uma seis, anunciado em 2001 pelo pre-
eram muito fracos para se defen- sa. Em sua reunião de cúpula em visava à aproximação econômica Russa à OTAN: a despeito de uma cegueira peculiar – ninguém que- sidente Bush, que também revo-
der de uma forma eficaz. Bucareste, em abril de 2008, a e política das antigas repúblicas série de posicionamentos positi- ria perceber que o discurso con- gou o tratado sobre mísseis anti-

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


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rússia, estados unidos e europa Alexander Blankenagel As relações externas entre a Federação Russa, os Estados Unidos e os Estados da Europa Ocidental

te a qualquer questionamento era


que Gorbachev poderia ter pedido
Em todo caso, aconteceu o que
não poderia ter acontecido. Em
Em 2001, Putin indagou sobre soviéticas Armênia, Azerbaijão,
Geórgia, Modávia, Bielorrússia e
vos, o memorando corresponden-
te nunca saiu da escrivaninha de
tinha a mensagem clara: ou vocês
voltam atrás ou vocês se surpreen-
uma confirmação por escrito. O março de 1999, a Polônia, a Re- a possibilidade de a Rússia Ucrânia e que, segundo as inten- Powell, como escreve Stent. Em derão. Putin foi acusado de trair o
primeiro passo no início de 1994 pública Tcheca e a Hungria se tor- ções de seus fundadores, pretendia outras palavras, a iniciativa foi obs- espírito de amizade e cooperação.19
foi a fundação pela OTAN da “Par- naram membros da OTAN. Como aderir à OTAN. A iniciativa foi explicitamente excluir a Federação truída, para não dizer solapada.16 Os eventos subsequentes mos-
ceria para a paz”, cujo propósito que para demonstrar as intenções Russa. No início, as reações russas Depois disso, as manifestações de traram que os russos estavam fa-
era oferecer uma estrutura insti- pacíficas da OTAN, entre março
obstruída e solapada. foram negativas; pouco tempo de- desagrado por parte dos russos se lando sério. Em 2008, irrompeu a
tucional para a cooperação militar e junho daquele ano a OTAN, Depois disso, manifestações pois, o Ministério do Exterior tornaram cada vez mais frequen- guerra russo-georgiana. A Geórgia
entre a OTAN e países não mem- simplesmente ignorando as repe- declarou que conseguiria imagi- tes. Em julho de 2005, Putin de- estava desestabilizada; perdeu os
bros da OTAN. Em junho, a Fe- tidas ressalvas da Rússia, bombar- de desagrado dos russos nar uma adesão a essa parceria.15 clarou, em reação às chamadas “re- territórios da Abecásia e da Os-
deração Russa aderiu – nolens vo- deou a Sérvia sob o pretexto de Em 2013, a Croácia, por en- voluções das f lores” na Ucrânica, sétia do Sul, há muito tempo dis-
lens – à parceria. No entanto, te- uma “intervenção militar huma-
tornaram-se cada vez mais quanto o último país candidato, na Geórgia e no Quirguistão, que, postos a se separar, e assim se des-
mia-se já então que esse seria o nitária” não sancionada pela ONU. intensas e frequentes. foi aceita como membro da UE. no futuro, não permitiria mais o qualif icou como candidata a
primeiro passo em direção a uma Do ponto de vista do direito das Em 2014, por f im, a Ucrânia, a f inanciamento estrangeiro de membro da OTAN por causa dos
amplição oriental da OTAN.8 Já gentes, esse bombardeio sem man- Geórgia e a Moldávia se tornaram ONGs.17 Em seu discurso à nação conf litos territoriais. Em setem-
em 1994 o presidente Jelzin aler- dato explícito da ONU represen- OTAN decidiu aceitar como no- membros associados da UE. No em maio de 2006, Putin anunciou bro de 2008, foram formulados
tou o presidente norte-americano tava, pelo menos segundo a inter- vos membros da OTAN a Croá- caso da Ucrânia, que mantinha o fortalecimento do exército e do os duríssimos “Princípios da po-
Clinton quanto ao perigo de uma pretação do direito das gentes até cia, a Albânia e o Kosovo, e ofe- relações econômicas especialmen- armamento e o desenvolvimento lítica de defesa russa 2020”. Em
guerra fria em decorrência de um então vigente, o direito das gentes. receu à Macedônia, a Bósnia e Her- te estreitas com a Rússia e que de armas estratégicas. Em feverei- novembro de 2011, o presidente
alargamento a Leste da OTAN.9 É claro que, antes e depois dessa zegovina e a Montenegro uma queria ter a Rússia como membro ro de 2007, ocorreu o famoso dis- Medvedev fez uma declaração
O problema permaneceu na pau- missão, muitos apologetas defen- perspectiva concreta de adesão. da União Econômica Eurasiática, curso de Putin na Conferência de afiada criticando o escudo de de-
ta do dia. Na década de 1990, a deram essa intervenção humani- Uma adesão à OTAN da Geórgia isso só foi possível graças a um Segurança de Munique.18 Putin fesa contra mísseis que os Estados
posição russa oscilava entre o re- tária não sancionada pela ONU, e da Ucrânia, já aprovada pelo golpe de governo, que levou à se- acusou os Estados Unidos de bus- Unidos haviam planejado. Em
púdio e a tentativa de impedir o reinterpretando essa violação do Congresso dos Estados Unidos em paração/anexação da Crimeia e à carem o “domínio mundial mo- 2013, Gerassimov, o alto coman-
pior por meio da participação.10 direito das gentes como evolução 2007, foi rejeitada, mas permane- guerra civil na Ucrânia oriental. nopolar” e de terem “ultrapassa- dante das forças militares, fez um
Foram principalmente os Estados do direito das gentes.12 Em no- ceu na pauta como possibilidade No mesmo ano, como resposta à do seus limites em quase todas as apelo para que o país se prepa-
Unidos que trataram da questão vembro de 2002, a Bulgária, a futura e como espada de Dâmocles ameaça representada pela agres- áreas”. Ele advertiu a OTAN con- rasse para a guerra do século
de modo muito peculiar: já que, Romênia, a Lituânia, a Letônia, sobre a Federação Russa.13 sividade russa, a OTAN criou a tra um “emprego militar desen- XXI. No mesmo ano, a Federa-
de acordo com a posição dos Es- a Estônia, a Eslovênia e a Eslo- Paralelamente ao acolhimento tropa de intervenção rápida para freado”. A Aliança do Atlântico ção Russa ofereceu asilo político
tados Unidos, não havia más in- váquia foram convidadas a iniciar dos Estados da Europa Oriental a Europa Oriental. Norte e a União Europeia esta- a E. Snowden, um evento simbó-
tenções por trás do alargamento negociações de adesão com a central, ocorreu também um alar- A Federação Russa jamais dei- riam impondo sua vontade a ou- lico de grande força política que
da OTAN, era preciso convencer OTAN; a adesão desses Estados gamento da UE com esses Estados. xou ao Ocidente e à OTAN ne- tros países e apostando na violên- evidenciou a deterioração das re-
os russos de que um alargamento ocorreu em março de 2004. Co- Em maio de 2004, os três Estados nhuma dúvida de que consideraria cia, disse Putin. O presidente da lações entre a Federação Russa e
a Leste da OTAN não represen- mo que para ressaltar mais uma bálticos, Estônia, Letônia e Lituâ- o alargamento a Leste da OTAN Rússia criticou fortemente o alar- os Estados Unidos. Já mencionei
taria nenhuma ameaça para eles.11 vez sua inocuidade, os Estados nia, como também a Polônia, a um ato hostil e de que, diante do gamento a Leste da OTAN, por- a Crimeia e a Ucrânia oriental.
Em outras palavras, ninguém se Unidos começaram, paralelamen- República Tcheca, a Hungria, a colapso progressivo das relações, que sua infraestrutura militar se
deu o trabalho de submeter a po- te a esse processo de alargamento, Eslovênia e a Eslováquia, se tor- nem mesmo um cânone de aspec- estendia “até as nossas fronteiras”. O escudo de defesa
lítica do alargamento a Leste da a segunda guerra contra o Iraque, naram membros da UE.14 Em 2007, tos comuns a impediria de defen- Podemos dizer sem exagero que contra mísseis
OTAN a uma revisão. Todos par- novamente em violação do direi- a Romênia e a Bulgária se junta- der seus interesses. Já menciona- esse discurso continha a mensa- O alargamento a Leste da OTAN
tiam da convicção de que conse- to das gentes, e após, ainda em fe- ram à UE, mesmo que sob condi- mos algumas declarações de na- gem clara de que, caso a OTAN não foi o único ponto de conf lito
guiriam convencer os russos. vereiro de 2004, Putin ter comu- ções rígidas. Em maio de 2009, a tureza mais informal. Em 2001, não mudasse ou revertesse sua po- no âmbito militar. O segundo con-
Creio que existia também o con- nicado ao presidente norte-ame- UE decidiu, a partir de uma ini- Putin tentou solucionar essa pro- lítica de expansão, as relações re- f lito encarniçado dizia respeito ao
senso geral, porém velado, de que ricano que, segundo informações ciativa polonesa e sueca e como blemática ao indagar, como já fi- cípricas decorreriam de modo di- plano norte-americano de criar
não haveria problema se eles não russas validadas, o Iraque não pos- reação à guerra russo-georgiana, zera Jelzin antes dele, da possibi- ferente e confrontativo. A reação um escudo de defesa contra mís-
pudessem ser convencidos, já que suía armas de destruição em mas- criar a Associação Oriental, que lidade de uma adesão da Federação da OTAN era marcada por uma seis, anunciado em 2001 pelo pre-
eram muito fracos para se defen- sa. Em sua reunião de cúpula em visava à aproximação econômica Russa à OTAN: a despeito de uma cegueira peculiar – ninguém que- sidente Bush, que também revo-
der de uma forma eficaz. Bucareste, em abril de 2008, a e política das antigas repúblicas série de posicionamentos positi- ria perceber que o discurso con- gou o tratado sobre mísseis anti-

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rússia, estados unidos e europa Alexander Blankenagel As relações externas entre a Federação Russa, os Estados Unidos e os Estados da Europa Ocidental

balísticos. O plano consistia no de ameaça nuclear da Rússia por gada a retirar suas tropas dos Es-
posicionamento das respectivas causa do escudo de defesa contra tados bálticos sob a pressão dos
instalações nos países da Europa mísseis e que estava trabalhando Estados Unidos, que ameaçavam
Oriental central. E rapidamente para tomar contramedidas apropria- não conceder empréstimos à Rús-
alguns países da Europa Oriental das;21 o chefe do Estado-maior rus- sia. No mesmo ano, os russos ade-
central, mais especificamente a so chegou até a declarar em 2011 riram à “parceria da OTAN para
Polônia e a República Tcheca, se que, no caso da instalação do escu- a paz”, mesmo sabendo já na épo-
mostraram dispostos a permitir a do de defesa, reclamaria para si o ca que essa parceria levaria ao alar-
construção das respectivas insta- direito de uma guerra preventiva. gamento a Leste da OTAN. A re-
lações (inclusive mísseis, no caso f lexão incentivada repetidas vezes
da Polônia) em seu território. Pa- Inclusão, exclusão e pelos russos sobre a possibilidade
ra a Federação Russa, isso signifi- humilhante penetração de de uma adesão da Federação Rus-
cava que o funcionamento de um interesses sa à OTAN, que teria significado
escudo de defesa contra mísseis Além dessas políticas, que (com- uma transformação profunda da
anularia a capacidade de dissuasão preensivelmente) contrariavam os OTAN, jamais foi discutida seria-
nuclear da Rússia e suspenderia o interesses russos, houve também mente. Nos anos 1996-1998, o
equilíbrio no potencial de ameaça uma série de eventos e ocorrências Fundo Monetário Internacional
entre os Estados Unidos e a Fede- em que os norte-americanos e o concedeu à Rússia empréstimos

northfoto/shutterstock.com
ração Russa. Como no caso do Ocidente degradaram a Federação no valor de 21,8 bilhões de dóla-
alargamento a Leste da OTAN, os Russa com seu comportamento e res, e o Banco Mundial, emprés-
Estados Unidos tentaram também impuseram seus interesses nacio- timos no valor de 7,2 bilhões de
aqui acalmar a Federação Russa, nais à Rússia de modo humilhan- dólares, sob a condição de que as
afirmando que o escudo de defe- te. Isso é de importância especial, reformas seriam continuadas. Se
sa estaria voltado não contra a Rús- pois entramos agora no âmbito compararmos esses empréstimos
sia, mas contra os ataques de Es- crítico de um trauma russo: não aos trilhões concedidos durante a pósito humanitário da missão. O da.25 O mesmo vale para a segun-
tados vilões e terroristas. Isso, po- estar à altura do Ocidente e, por crise financeira de 2008, a vin- procedimento revela o padrão ge- da guerra do Iraque, a respeito da A política externa
rém, era pouco convincente em isso, ser tratada de modo degra- culação da concessão de somas ral das relações entre a Federação qual Putin havia alertado Bush
vista do fato de que nem os Esta- dante é um temor que assombra a tão pequenas a decisões funda- Russa e o Ocidente, a OTAN e explicitamente com base nos co-
russa sofreu grandes
dos vilões muçulmanos nem os Federação Russa, como já assom- mentais tão sérias referentes ao os Estados Unidos: decisões são nhecimentos do serviço secreto mudanças, com o
terroristas, muçulmanos ou não, brou a Rússia czarista e a União próprio destino chega a ser uma impostas contra as objeções ou os russo.26 O Conselho OTAN-Rús-
dispõem de sistemas portadores de Soviética.22 Quem não quiser pro- bofetada simbólica. As dívidas fo- protestos russos; e quando se per- sia, criado em 2002 durante a reu- país assumindo
armas nucleares. No máximo, te- vocar irritações na política inte- ram quitadas antecipadamente já cebe que interesses russos estão nião de cúpula da OTAN em Ro-
ria sentido erguer um escudo de restatal faz bem em respeitar essa em janeiro de 2006, o que signi- sendo afetados ou que a Rússia ma, não concede à Federação Rus-
para si uma missão
defesa contra mísseis em volta da sensibilidade russa especial. Em ficava, na autopercepção dos rus- pode se sentir ameaçada, o Oci- sa o direito de veto e permite assim, no mundo, paralela
Coreia do Norte. Após certo vai suma, podemos dizer que, se qui- sos, a recuperação de sua soberania. dente se contenta com uma rápida por 28 votos a 1, sua derrota per-
e vem e muitos protestos russos, sermos provocar irritações, nós Na Presidência de Bush, a Fede- menção à pureza moral da políti- manente pela maioria. Em junho à missão democrática
ameaças20 e, sobretudo, a oferta certamente as provocaremos. Um ração Russa se tornou, em termos ca ocidental e considera o assunto de 2008, Medvedev, na época pre-
supreendente de operar o sistema exemplo muito ilustrativo é a afir- administrativos, um dos 54 Esta- resolvido. Algo semelhante ocor- sidente recém-eleito, sugeriu, em que os Estados Unidos
de defesa em conjunto com os nor- mação do presidente Obama, após dos eurasiáticos; segundo Strobe reu por ocasião do reconhecimen- vista tanto do alargamento a Les- pretendem ter.
te-americanos, o presidente Oba- a anexação da Crimeia, de que a Talbott, objeto de uma “stratigic to da independência do Kosovo te da OTAN quanto da instalação
ma voltou atrás e desistiu princi- Rússia é uma “potência regio- demotion of Russia itself ”.24 em fevereiro de 2008: advertências de um novo escudo de defesa con- Algo novo surgiu.
palmente da instalação na Polônia nal”. 23 É fácil encontrar outros Os numerosos protestos russos russas acerca do exemplo negativo tra mísseis, uma nova arquitetura
e na República Tcheca. Esse rela- exemplos em que, do ponto de contra o bombardeio da Sérvia na para outros conf litos de minorias de segurança europeia.27 A suges-
xamento, porém, não durou mui- vista da Rússia, os interesses oci- guerra do Kosovo, em 1999, fo- irresolvidos foram simplesmente tão foi rejeitada rapidamente, sem
to. Em 2012, o presidente russo dentais foram impostos sem res- ram simplesmente ignorados; a ignoradas; a reação russa ao reco- uma discussão aprofundada, pelos
deixou claro mais uma vez que peito à dignidade da Rússia. Em evidente violação do direito das nhecimento da Abecásia e da Os- Estados Unidos e pelos aliados
não aceitaria a erosão do potencial 1994, a Federação Russa foi obri- gentes foi minimizada com o pro- sétia do Sul estava pré-programa- ocidentais – isso foi em 2008,

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


118 119
rússia, estados unidos e europa Alexander Blankenagel As relações externas entre a Federação Russa, os Estados Unidos e os Estados da Europa Ocidental

balísticos. O plano consistia no de ameaça nuclear da Rússia por gada a retirar suas tropas dos Es-
posicionamento das respectivas causa do escudo de defesa contra tados bálticos sob a pressão dos
instalações nos países da Europa mísseis e que estava trabalhando Estados Unidos, que ameaçavam
Oriental central. E rapidamente para tomar contramedidas apropria- não conceder empréstimos à Rús-
alguns países da Europa Oriental das;21 o chefe do Estado-maior rus- sia. No mesmo ano, os russos ade-
central, mais especificamente a so chegou até a declarar em 2011 riram à “parceria da OTAN para
Polônia e a República Tcheca, se que, no caso da instalação do escu- a paz”, mesmo sabendo já na épo-
mostraram dispostos a permitir a do de defesa, reclamaria para si o ca que essa parceria levaria ao alar-
construção das respectivas insta- direito de uma guerra preventiva. gamento a Leste da OTAN. A re-
lações (inclusive mísseis, no caso f lexão incentivada repetidas vezes
da Polônia) em seu território. Pa- Inclusão, exclusão e pelos russos sobre a possibilidade
ra a Federação Russa, isso signifi- humilhante penetração de de uma adesão da Federação Rus-
cava que o funcionamento de um interesses sa à OTAN, que teria significado
escudo de defesa contra mísseis Além dessas políticas, que (com- uma transformação profunda da
anularia a capacidade de dissuasão preensivelmente) contrariavam os OTAN, jamais foi discutida seria-
nuclear da Rússia e suspenderia o interesses russos, houve também mente. Nos anos 1996-1998, o
equilíbrio no potencial de ameaça uma série de eventos e ocorrências Fundo Monetário Internacional
entre os Estados Unidos e a Fede- em que os norte-americanos e o concedeu à Rússia empréstimos

northfoto/shutterstock.com
ração Russa. Como no caso do Ocidente degradaram a Federação no valor de 21,8 bilhões de dóla-
alargamento a Leste da OTAN, os Russa com seu comportamento e res, e o Banco Mundial, emprés-
Estados Unidos tentaram também impuseram seus interesses nacio- timos no valor de 7,2 bilhões de
aqui acalmar a Federação Russa, nais à Rússia de modo humilhan- dólares, sob a condição de que as
afirmando que o escudo de defe- te. Isso é de importância especial, reformas seriam continuadas. Se
sa estaria voltado não contra a Rús- pois entramos agora no âmbito compararmos esses empréstimos
sia, mas contra os ataques de Es- crítico de um trauma russo: não aos trilhões concedidos durante a pósito humanitário da missão. O da.25 O mesmo vale para a segun-
tados vilões e terroristas. Isso, po- estar à altura do Ocidente e, por crise financeira de 2008, a vin- procedimento revela o padrão ge- da guerra do Iraque, a respeito da A política externa
rém, era pouco convincente em isso, ser tratada de modo degra- culação da concessão de somas ral das relações entre a Federação qual Putin havia alertado Bush
vista do fato de que nem os Esta- dante é um temor que assombra a tão pequenas a decisões funda- Russa e o Ocidente, a OTAN e explicitamente com base nos co-
russa sofreu grandes
dos vilões muçulmanos nem os Federação Russa, como já assom- mentais tão sérias referentes ao os Estados Unidos: decisões são nhecimentos do serviço secreto mudanças, com o
terroristas, muçulmanos ou não, brou a Rússia czarista e a União próprio destino chega a ser uma impostas contra as objeções ou os russo.26 O Conselho OTAN-Rús-
dispõem de sistemas portadores de Soviética.22 Quem não quiser pro- bofetada simbólica. As dívidas fo- protestos russos; e quando se per- sia, criado em 2002 durante a reu- país assumindo
armas nucleares. No máximo, te- vocar irritações na política inte- ram quitadas antecipadamente já cebe que interesses russos estão nião de cúpula da OTAN em Ro-
ria sentido erguer um escudo de restatal faz bem em respeitar essa em janeiro de 2006, o que signi- sendo afetados ou que a Rússia ma, não concede à Federação Rus-
para si uma missão
defesa contra mísseis em volta da sensibilidade russa especial. Em ficava, na autopercepção dos rus- pode se sentir ameaçada, o Oci- sa o direito de veto e permite assim, no mundo, paralela
Coreia do Norte. Após certo vai suma, podemos dizer que, se qui- sos, a recuperação de sua soberania. dente se contenta com uma rápida por 28 votos a 1, sua derrota per-
e vem e muitos protestos russos, sermos provocar irritações, nós Na Presidência de Bush, a Fede- menção à pureza moral da políti- manente pela maioria. Em junho à missão democrática
ameaças20 e, sobretudo, a oferta certamente as provocaremos. Um ração Russa se tornou, em termos ca ocidental e considera o assunto de 2008, Medvedev, na época pre-
supreendente de operar o sistema exemplo muito ilustrativo é a afir- administrativos, um dos 54 Esta- resolvido. Algo semelhante ocor- sidente recém-eleito, sugeriu, em que os Estados Unidos
de defesa em conjunto com os nor- mação do presidente Obama, após dos eurasiáticos; segundo Strobe reu por ocasião do reconhecimen- vista tanto do alargamento a Les- pretendem ter.
te-americanos, o presidente Oba- a anexação da Crimeia, de que a Talbott, objeto de uma “stratigic to da independência do Kosovo te da OTAN quanto da instalação
ma voltou atrás e desistiu princi- Rússia é uma “potência regio- demotion of Russia itself ”.24 em fevereiro de 2008: advertências de um novo escudo de defesa con- Algo novo surgiu.
palmente da instalação na Polônia nal”. 23 É fácil encontrar outros Os numerosos protestos russos russas acerca do exemplo negativo tra mísseis, uma nova arquitetura
e na República Tcheca. Esse rela- exemplos em que, do ponto de contra o bombardeio da Sérvia na para outros conf litos de minorias de segurança europeia.27 A suges-
xamento, porém, não durou mui- vista da Rússia, os interesses oci- guerra do Kosovo, em 1999, fo- irresolvidos foram simplesmente tão foi rejeitada rapidamente, sem
to. Em 2012, o presidente russo dentais foram impostos sem res- ram simplesmente ignorados; a ignoradas; a reação russa ao reco- uma discussão aprofundada, pelos
deixou claro mais uma vez que peito à dignidade da Rússia. Em evidente violação do direito das nhecimento da Abecásia e da Os- Estados Unidos e pelos aliados
não aceitaria a erosão do potencial 1994, a Federação Russa foi obri- gentes foi minimizada com o pro- sétia do Sul estava pré-programa- ocidentais – isso foi em 2008,

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rússia, estados unidos e europa Alexander Blankenagel

quando, a despeito da guerra en-


tre a Rússia e a Geórgia, segundo
ria. Tabus foram ignorados, já que
o lado oposto também deixou de
vel com esta.31 No entanto, as pre-
condições eram especiais. A Rús-
tro da democracia soberana estão
a soberania e a autarquia; de forma
lação dos direitos pessoais de ter-
ceiros, sendo que, muitas vezes,
Na década de 1990, uma lei
o provérbio alemão, a criança ain- respeitar seus tabus. sia é um caso singular, pois abarca alguma, porém, a democracia. A esses terceiros são instituições. Es- estabeleceu formalmente
da não havia caído no poço, ou, três círculos culturais: a Europa, concepção demonstra a não iden- sa autoritarização da sociedade e
melhor, ainda nem havia se apro- Autopercepção e a Ásia e o islã. Juntou-se a isso tidade entre as noções de demo- do Estado sob a bandeira de valo- as relações especiais entre
ximado dele. autorrepresentação também a situação difícil após a cracia ocidental e democracia rus- res irrenunciáveis foi preparada
o Estado russo e a Igreja
No início da década de 1990, a ruína da União Soviética. Resta- sa; revela, sobretudo, o manuseio pelo alinhamento e o controle es-
3. A reação russa: Federação Russa se viu diante da va uma “pequena Rússia”, pro- ou o falseamento completamente tatal das grandes mídias durante a Ortodoxa, com apoio
autoconscientização tarefa de encontrar uma nova iden- fundamente abalada pelo processo despreocupado de símbolos. primeira Presidência de Putin e
e reorientação tidade coletiva. Do ponto de vis- de transformação econômica, po- Em decorrência das crescentes foi realizada por meio da restrição recíproco. Essa Igreja foi
ta histórico, desde Pedro, o Gran- lítica e jurídica. Parecia importan- tensões com o Ocidente, a auto- crescente dos direitos fundamen-
O conf lito com o Ocidente – com de a memória coletiva russa só con- te, também, como (pequena) Rús- concepção da Rússia se tornou tais políticos e da aplicação muito
colocada acima de outras
a UE, os Estados da UE e os Es- segue se lembrar da Rússia como sia, não fazer parte de comunida- mais espinhosa. Em sua autoper- dura das possibilidades jurídicas comunidades religiosas,
tados Unidos – levou a uma série grande potência. No período de des de Estados em que a Rússia cepção e sua pretensão, a Rússia recém-criadas, sem falar das me-
de mudanças fundamentais na transição, a pergunta era se a Rús- não ocupava a posição de líder, e se tornou guardiã da cultura eu- didas arbitrárias por parte das au- inclusive cristãs.
política russa. Essa nova política sia queria ser uma “grande potên- estaria submetida às decisões des- ropeia, aquela cultura que os Es- toridades na aplicação da lei.
russa, provocada pelo abalo das cia grande” ou “uma grande po- sa comunidade de Estados, ou se- tados da Europa ocidental já não Por outro lado, essa nova “au- sequência da construção de uma
relações com o Ocidente, foi pos- tência normal integrada no Oci- ja, em que ela não era soberana. eram mais capazes de preservar.36 toconcepção” teve também uma “ameaça russa”, alimentada espe-
sibilitada pela alta no preço do dente”. A segunda opção só teria A busca daquilo que a nova Isso devolveu à Federação Russa orientação e um efeito internacio- cialmente pelos Estados da Euro-
petróleo, que, na primeira década sido aceitável do ponto de vista Rússia poderia ser começou já na uma “mensagem para o mundo”, nais. A “independência soberana pa Oriental central: a Rússia vista
do novo milênio, presenteou a Fe- russo se isso significasse igualdade década de 1990, sob Jelzin. Ele como já havia sido o caso da União do Estado” era um elemento cen- como o “bárbaro aos portões”. No
deração Russa com altos lucros e plena. Como já mostramos, os Es- pediu a um grupo de pessoas de Soviética e como é o caso dos Es- tral dessa nova autocompreensão e entanto, é preciso dizer que a po-
taxas de crescimento anuais de tados ocidentais não estavam dis- diferentes setores da sociedade que tados Unidos. Essa preservação se posicionou em confronto com a lítica impiedosa da Rússia forne-
10%.28 Qual é a “novidade” na postos a lhe conceder isso. O alar- ref letisse sobre a substância da no- conservadora da cultura apresen- intervenção humana e a exporta- ceu bastante material para isso.40
política russa? De um lado, a au- gamento da OTAN, realizado sem va Rússia.32 A busca de uma nova tava dois lados. De um lado, a Rús- ção de democracia, percebida co-
topercepção e a autorrepresentação respeito pelos desejos e interesses identidade russa continuou sob sia se via e se posicionava como mo conspiração norte-americana,
são fundamentalmente diferentes russos, a intervenção militar con- Putin e Medvedev.33 A “democra- fortaleza contra a decadência e a na forma de diferentes revoluções Estado e Igreja ou
em comparação com o início da tra a Sérvia no conf lito do Koso- cia soberana”, concebida por V. liberalidade, com a consequência de cores.37 A grande potência da Igreja do Estado
década de 1990, mas recorrem a vo e o reconhecimento da inde- Surkov, foi um primeiro esboço da restrição das liberdades dos ci- Rússia se via também, no nível in- O Estado russo recorreu, já na dé-
padrões e precursores históricos. pendência do Kosovo mostraram próprio.34 Refere-se a um Estado dadãos. O exemplo mais conhe- ternacional, como guardiã da or- cada de 1990 e principalmente du-
De outro, a orientação da política que o Ocidente não tinha nenhum que, de um lado, consegue com- cido, certamente, é o modo de dem mundial democrática – direi- rante a Presidência de Putin, a ou-
externa também sofreu mudanças interesse de acolher a Rússia na petir em todas as áreas em nível tratar uma orientação sexual di- tos iguais entre os Estados – dian- tro elemento da identidade cole-
fundamentais. Ambas, a autorre- comunidade dos Estados ociden- internacional e, de outro, é autos- vergente: a homossexualidade po- te da dominação não democrática tiva russa: a Igreja Ortodoxa. As
presentação e a política externa, tais ou de lhe conceder o status de suficiente e não depende da ajuda de não ser considerada crime, mas de uma única superpotência.38 relações entre o Estado russo e a
contêm a noção de uma “missão” direitos iguais nessa comunidade.29 de ninguém. Essa “democracia a “propagação de orientações se- A nova autoconcepção como Igreja Ortodoxa sempre foram
da Rússia para o mundo e corres- Se, na década de 1990, a Rússia soberana” se insere no mito rea- xuais não tradicionais perante me- guardiã de valores irrenunciáveis muito estreitas; isso se evidencia
pondem assim à missão democrá- não tivesse sido tão fraca, a “paz vivado da singularidade da Rússia nores” é punível. A liberdade de é um contraprojeto à concepção de forma especialmente clara na
tica que os Estados Unidos pre- fria” teria sido estabelecida muito e, em decorrência desta, de seu opinião era interpretada num sen- de sociedade ocidental, multicul- caracterização já citada do Estado
tendem ter. Essa nova orientação antes da virada do milênio.30 A caminho especial, que só pode ser tido restrito e expressões de opi- tural, muito pluralista e voltada czarista pelo conde Uvarov: “Or-
nos âmbitos doméstico e externo variante “grande potência ociden- percorrido por ela. A Rússia co- niões extremas eram punidas, co- para o futuro. No entanto, isso todoxia, autocracia, folclore.” É
gerou um novo estilo político tal” como parte da comunidade mo sociedade europeia e asiática. mo mostra a punição da banda não se aplica à autocompreensão típico, por exemplo, que a guerra
(muito semelhante ao da antiga dos Estados ocidentais teve que ser A autonomia da “democracia so- Pussy Riot por sua apresentação como grande potência; esta não é da Crimeia tenha iniciado com
União Soviética), como mostram descartada em vista do decurso berana” remete e corresponde fun- blasfema na Catedral de Cristo automaticamente antiocidental, conf litos em torno da proteção
a anexação da Crimeia, a inter- dos eventos comentados acima. cionalmente à caracterização axio- Salvador, em fevereiro de 2012. mas formula concepções de polí- dos sítios sagrados em Jerusalém e
venção no conf lito no Leste da Restava, então, apenas a ideia mática do conde S. S. Uvarov no Outros exemplos são a proibição tica que concorrem com as con- do papel da Igreja Ortodoxa e do
Ucrânia e a participação da Fede- tradicional de grande potência e século XIX: “Ortodoxia, autocra- de exposições, apresentações de cepções de política ocidentais.39 A Estado russo nessa proteção e no
ração Russa na guerra civil na Sí- uma identidade coletiva compatí- cia, folclore [Volkstum].”35 No cen- teatro ou ópera por causa da vio- dinâmica antiocidental é uma con- uso dos sítios sagrados.41 As cone-

Nº 5 _ MARÇO 2017 PolitiKa


120 121
rússia, estados unidos e europa Alexander Blankenagel

quando, a despeito da guerra en-


tre a Rússia e a Geórgia, segundo
ria. Tabus foram ignorados, já que
o lado oposto também deixou de
vel com esta.31 No entanto, as pre-
condições eram especiais. A Rús-
tro da democracia soberana estão
a soberania e a autarquia; de forma
lação dos direitos pessoais de ter-
ceiros, sendo que, muitas vezes,
Na década de 1990, uma lei
o provérbio alemão, a criança ain- respeitar seus tabus. sia é um caso singular, pois abarca alguma, porém, a democracia. A esses terceiros são instituições. Es- estabeleceu formalmente
da não havia caído no poço, ou, três círculos culturais: a Europa, concepção demonstra a não iden- sa autoritarização da sociedade e
melhor, ainda nem havia se apro- Autopercepção e a Ásia e o islã. Juntou-se a isso tidade entre as noções de demo- do Estado sob a bandeira de valo- as relações especiais entre
ximado dele. autorrepresentação também a situação difícil após a cracia ocidental e democracia rus- res irrenunciáveis foi preparada
o Estado russo e a Igreja
No início da década de 1990, a ruína da União Soviética. Resta- sa; revela, sobretudo, o manuseio pelo alinhamento e o controle es-
3. A reação russa: Federação Russa se viu diante da va uma “pequena Rússia”, pro- ou o falseamento completamente tatal das grandes mídias durante a Ortodoxa, com apoio
autoconscientização tarefa de encontrar uma nova iden- fundamente abalada pelo processo despreocupado de símbolos. primeira Presidência de Putin e
e reorientação tidade coletiva. Do ponto de vis- de transformação econômica, po- Em decorrência das crescentes foi realizada por meio da restrição recíproco. Essa Igreja foi
ta histórico, desde Pedro, o Gran- lítica e jurídica. Parecia importan- tensões com o Ocidente, a auto- crescente dos direitos fundamen-
O conf lito com o Ocidente – com de a memória coletiva russa só con- te, também, como (pequena) Rús- concepção da Rússia se tornou tais políticos e da aplicação muito
colocada acima de outras
a UE, os Estados da UE e os Es- segue se lembrar da Rússia como sia, não fazer parte de comunida- mais espinhosa. Em sua autoper- dura das possibilidades jurídicas comunidades religiosas,
tados Unidos – levou a uma série grande potência. No período de des de Estados em que a Rússia cepção e sua pretensão, a Rússia recém-criadas, sem falar das me-
de mudanças fundamentais na transição, a pergunta era se a Rús- não ocupava a posição de líder, e se tornou guardiã da cultura eu- didas arbitrárias por parte das au- inclusive cristãs.
política russa. Essa nova política sia queria ser uma “grande potên- estaria submetida às decisões des- ropeia, aquela cultura que os Es- toridades na aplicação da lei.
russa, provocada pelo abalo das cia grande” ou “uma grande po- sa comunidade de Estados, ou se- tados da Europa ocidental já não Por outro lado, essa nova “au- sequência da construção de uma
relações com o Ocidente, foi pos- tência normal integrada no Oci- ja, em que ela não era soberana. eram mais capazes de preservar.36 toconcepção” teve também uma “ameaça russa”, alimentada espe-
sibilitada pela alta no preço do dente”. A segunda opção só teria A busca daquilo que a nova Isso devolveu à Federação Russa orientação e um efeito internacio- cialmente pelos Estados da Euro-
petróleo, que, na primeira década sido aceitável do ponto de vista Rússia poderia ser começou já na uma “mensagem para o mundo”, nais. A “independência soberana pa Oriental central: a Rússia vista
do novo milênio, presenteou a Fe- russo se isso significasse igualdade década de 1990, sob Jelzin. Ele como já havia sido o caso da União do Estado” era um elemento cen- como o “bárbaro aos portões”. No
deração Russa com altos lucros e plena. Como já mostramos, os Es- pediu a um grupo de pessoas de Soviética e como é o caso dos Es- tral dessa nova autocompreensão e entanto, é preciso dizer que a po-
taxas de crescimento anuais de tados ocidentais não estavam dis- diferentes setores da sociedade que tados Unidos. Essa preservação se posicionou em confronto com a lítica impiedosa da Rússia forne-
10%.28 Qual é a “novidade” na postos a lhe conceder isso. O alar- ref letisse sobre a substância da no- conservadora da cultura apresen- intervenção humana e a exporta- ceu bastante material para isso.40
política russa? De um lado, a au- gamento da OTAN, realizado sem va Rússia.32 A busca de uma nova tava dois lados. De um lado, a Rús- ção de democracia, percebida co-
topercepção e a autorrepresentação respeito pelos desejos e interesses identidade russa continuou sob sia se via e se posicionava como mo conspiração norte-americana,
são fundamentalmente diferentes russos, a intervenção militar con- Putin e Medvedev.33 A “democra- fortaleza contra a decadência e a na forma de diferentes revoluções Estado e Igreja ou
em comparação com o início da tra a Sérvia no conf lito do Koso- cia soberana”, concebida por V. liberalidade, com a consequência de cores.37 A grande potência da Igreja do Estado
década de 1990, mas recorrem a vo e o reconhecimento da inde- Surkov, foi um primeiro esboço da restrição das liberdades dos ci- Rússia se via também, no nível in- O Estado russo recorreu, já na dé-
padrões e precursores históricos. pendência do Kosovo mostraram próprio.34 Refere-se a um Estado dadãos. O exemplo mais conhe- ternacional, como guardiã da or- cada de 1990 e principalmente du-
De outro, a orientação da política que o Ocidente não tinha nenhum que, de um lado, consegue com- cido, certamente, é o modo de dem mundial democrática – direi- rante a Presidência de Putin, a ou-
externa também sofreu mudanças interesse de acolher a Rússia na petir em todas as áreas em nível tratar uma orientação sexual di- tos iguais entre os Estados – dian- tro elemento da identidade cole-
fundamentais. Ambas, a autorre- comunidade dos Estados ociden- internacional e, de outro, é autos- vergente: a homossexualidade po- te da dominação não democrática tiva russa: a Igreja Ortodoxa. As
presentação e a política externa, tais ou de lhe conceder o status de suficiente e não depende da ajuda de não ser considerada crime, mas de uma única superpotência.38 relações entre o Estado russo e a
contêm a noção de uma “missão” direitos iguais nessa comunidade.29 de ninguém. Essa “democracia a “propagação de orientações se- A nova autoconcepção como Igreja Ortodoxa sempre foram
da Rússia para o mundo e corres- Se, na década de 1990, a Rússia soberana” se insere no mito rea- xuais não tradicionais perante me- guardiã de valores irrenunciáveis muito estreitas; isso se evidencia
pondem assim à missão democrá- não tivesse sido tão fraca, a “paz vivado da singularidade da Rússia nores” é punível. A liberdade de é um contraprojeto à concepção de forma especialmente clara na
tica que os Estados Unidos pre- fria” teria sido estabelecida muito e, em decorrência desta, de seu opinião era interpretada num sen- de sociedade ocidental, multicul- caracterização já citada do Estado
tendem ter. Essa nova orientação antes da virada do milênio.30 A caminho especial, que só pode ser tido restrito e expressões de opi- tural, muito pluralista e voltada czarista pelo conde Uvarov: “Or-
nos âmbitos doméstico e externo variante “grande potência ociden- percorrido por ela. A Rússia co- niões extremas eram punidas, co- para o futuro. No entanto, isso todoxia, autocracia, folclore.” É
gerou um novo estilo político tal” como parte da comunidade mo sociedade europeia e asiática. mo mostra a punição da banda não se aplica à autocompreensão típico, por exemplo, que a guerra
(muito semelhante ao da antiga dos Estados ocidentais teve que ser A autonomia da “democracia so- Pussy Riot por sua apresentação como grande potência; esta não é da Crimeia tenha iniciado com
União Soviética), como mostram descartada em vista do decurso berana” remete e corresponde fun- blasfema na Catedral de Cristo automaticamente antiocidental, conf litos em torno da proteção
a anexação da Crimeia, a inter- dos eventos comentados acima. cionalmente à caracterização axio- Salvador, em fevereiro de 2012. mas formula concepções de polí- dos sítios sagrados em Jerusalém e
venção no conf lito no Leste da Restava, então, apenas a ideia mática do conde S. S. Uvarov no Outros exemplos são a proibição tica que concorrem com as con- do papel da Igreja Ortodoxa e do
Ucrânia e a participação da Fede- tradicional de grande potência e século XIX: “Ortodoxia, autocra- de exposições, apresentações de cepções de política ocidentais.39 A Estado russo nessa proteção e no
ração Russa na guerra civil na Sí- uma identidade coletiva compatí- cia, folclore [Volkstum].”35 No cen- teatro ou ópera por causa da vio- dinâmica antiocidental é uma con- uso dos sítios sagrados.41 As cone-

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122 123
rússia, estados unidos e europa Alexander Blankenagel As relações externas entre a Federação Russa, os Estados Unidos e os Estados da Europa Ocidental

xões entre o Estado russo e a Igre- de o início. Após a dissolução da no espaço pós-soviético. A desig- Ao lado dessa união, existem Armênia, Quirguistão e Tajiquis- parece bastante duvidoso em vis-
ja Ortodoxa foram reestabelecidas União Soviética foi criada a CEI, nação “União Econômica Eura- ainda outras cooperações e acordos tão, que pretende proteger e defen- ta dos Estados membros concre-
já na década de 1990 com a pro- que, em termos puramente teóricos, siática” remete politicamente a um bilaterais, que demonstram clara- der a segurança, a soberania e a in- tos). De grande importância prá-
mulgação da lei federal nº 125 – FZ em virtude do elevado grau de in- conceito ideológico-filosófico de- mente que a Federação Russa não tegridade territorial dos Estados tica é a Organização para Coope-
de 1997, “Sobre a liberdade de cons- tegração econômica e da extraor- senvolvido na década de 1920 por vê seu futuro nas relações com o membros. Esses Estados cooperam ração de Xangai, que reúne a
ciência e as associações religiosas”, dinária vantagem de uma língua emigrantes que define a Rússia não Ocidente. Devemos mencionar pri- na política externa, na política de Rússia, a China, o Quirguistão, o
que consolidou juridicamente uma comum, possuía precondições fan- como um Estado europeu, mas co- meiramente a Collective Security segurança, no combate ao terroris- Cazaquistão, o Uzbequistão e o
aliança funesta entre o Estado russo tásticas para uma integração supra- mo aquele Estado cujo lugar natu- Organisation, fundada já em 2002, mo e “na realização mundial da de- Tajiquistão e cujo objetivo é a co-
e a Igreja Ortodoxa: a obrigação da nacional bem-sucedida. No entan- ral são os territórios e as estepes da tendo como membros Federação mocracia na base dos princípios ge- operação abrangente dos Estados
Igreja Ortodoxa consistia e consis- to, não foi o que aconteceu: as an- massa continental eurasiática cen- Russa, Bielorrússia, Cazaquistão, rais do direito das gentes” (o que membros em numerosas áreas, des-
te no apoio ao Estado, e a do Esta- tigas e agora independentes tral, como critério de distinção da
do, na proteção dos privilégios da repúblicas da União Soviética res- Europa, de um lado, e dos Estados
Igrejas Ortodoxa, colocando-a aci- saltavam sua autonomia nacional, e asiáticos, de outro.47 Foi principal- O “mundo russo”
ma de outras comunidades religio- a CEI se transformou em uma so- mente o Cazaquistão, com seu pre-
sas, principalmente das religiões cris- ciedade de liquidação da União So- sidente N. Nazarbaev, que acatou é uma concepção
tãs concorrentes.42 viética e em um clube de presiden- esse conceito.48 Os membros da
Esses laços se tornaram ainda tes, onde os presidentes decidiam União Econômica Eurasiática,
significativa para
mais estreitos a partir de 1997, es- espontaneamente em quais áreas atualmente, são a Federação Russa, a política externa
pecialmente sob os presidentes Pu- haveria cooperação.46 Os motivos a Bielorrússia, o Cazaquistão, o
tin e Medvedev. Não existe uma disso foram a agenda nacional da Quirguistão e a Armênia. A União e remete a uma
política estatal que restrinja a liber- maioria dos Estados da antiga União Econômica Eurasiática foi fundada
dade de opinião e o pluralismo que Soviética e o medo de que uma as- em 1º de janeiro de 2015. Os ob- questão
não seja apoiada pela Igreja Orto- sociação supranacional que visava a jetivos de sua criação são uma união especificamente
doxa, e há uma série de exemplos uma integração maior submeteria aduaneira e uma coordenação da
de situações em que a repressão da esses Estados à influência do poder política econômica a exemplo da russa: com o fim
liberdade de opinião partiu da Igre- econômico da Federação Russa. Tão UE. O ponto de partida foi a
ja Ortodoxa: o mais espetacular é irreal quanto a CEI foi o Estado fe- criação simultânea de uma união da URSS, 25 milhões
o já mencionado processo contra a
banda Pussy Riot, com a punição
derativo Federação Russa-Bielor-
rússia, criado em 1997; o cálculo
aduaneira entre a Bielorrússia, o
Cazaquistão e a Federação Russa
de russos étnicos
draconiana dos membros da ban- político não deu certo nem para a em 2010 e da Comunidade Eco- passaram a viver
da.43 A Igreja Ortodoxa assumiu Federação Russa – integração da nômica Eurasiática, também em
parcialmente a função da ideologia Bielorrússia à Federação Russa – 2010.49 Adesões de outras repúbli- fora das fronteiras
comunista.44 Em termos empíricos, nem para a Bielorrússia – aproveitar cas da antiga União Soviética, de
a Igreja Ortodoxa goza de grande o desenvolvimento econômico rus- outros Estados (Mongólia) e, so-
de seu país.
respeito e confiança; no entanto, a so, preservando, ao mesmo tempo, bretudo, de não Estados (Abecásia,
maioria da população jamais se des- a autonomia. Transnístria, Ossétia do Sul) pa-
creveria como religiosa.45 recem possíveis. É difícil dizer no
Reorientação territorial momento se a União Econômica
Fracassos na política em direção ao Leste Eurasiática realmente se transfor-
externa e reorientação Todas essas tentativas, porém, fo- mará em uma estrutura suprana-
territorial e de conteúdo ram feitas num tempo em que uma cional semelhante à EU. O pro-
elvistudio/shutterstock.com

Por fim, a Federação Russa se reo- cooperação amigável com o Oci- blema fundamental da inf luência
rientou fundamentalmente em sua dente ainda parecia possível. Uma dominante da Federação Russa e
política externa, no que diz respei- verdadeira reorientação geográfi- de suas pretensões e intenções he-
to tanto à geografia quanto ao con- ca é a União Econômica Eurasiá- gemoniais permanece, como mos-
teúdo. É evidente que a orientação tica, que pretende criar uma es- tram as ressalvas dos presidentes
em direção ao Oriente existiu des- trutura integradora supranacional da Bielorrússia e do Cazaquistão.50

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rússia, estados unidos e europa Alexander Blankenagel As relações externas entre a Federação Russa, os Estados Unidos e os Estados da Europa Ocidental

xões entre o Estado russo e a Igre- de o início. Após a dissolução da no espaço pós-soviético. A desig- Ao lado dessa união, existem Armênia, Quirguistão e Tajiquis- parece bastante duvidoso em vis-
ja Ortodoxa foram reestabelecidas União Soviética foi criada a CEI, nação “União Econômica Eura- ainda outras cooperações e acordos tão, que pretende proteger e defen- ta dos Estados membros concre-
já na década de 1990 com a pro- que, em termos puramente teóricos, siática” remete politicamente a um bilaterais, que demonstram clara- der a segurança, a soberania e a in- tos). De grande importância prá-
mulgação da lei federal nº 125 – FZ em virtude do elevado grau de in- conceito ideológico-filosófico de- mente que a Federação Russa não tegridade territorial dos Estados tica é a Organização para Coope-
de 1997, “Sobre a liberdade de cons- tegração econômica e da extraor- senvolvido na década de 1920 por vê seu futuro nas relações com o membros. Esses Estados cooperam ração de Xangai, que reúne a
ciência e as associações religiosas”, dinária vantagem de uma língua emigrantes que define a Rússia não Ocidente. Devemos mencionar pri- na política externa, na política de Rússia, a China, o Quirguistão, o
que consolidou juridicamente uma comum, possuía precondições fan- como um Estado europeu, mas co- meiramente a Collective Security segurança, no combate ao terroris- Cazaquistão, o Uzbequistão e o
aliança funesta entre o Estado russo tásticas para uma integração supra- mo aquele Estado cujo lugar natu- Organisation, fundada já em 2002, mo e “na realização mundial da de- Tajiquistão e cujo objetivo é a co-
e a Igreja Ortodoxa: a obrigação da nacional bem-sucedida. No entan- ral são os territórios e as estepes da tendo como membros Federação mocracia na base dos princípios ge- operação abrangente dos Estados
Igreja Ortodoxa consistia e consis- to, não foi o que aconteceu: as an- massa continental eurasiática cen- Russa, Bielorrússia, Cazaquistão, rais do direito das gentes” (o que membros em numerosas áreas, des-
te no apoio ao Estado, e a do Esta- tigas e agora independentes tral, como critério de distinção da
do, na proteção dos privilégios da repúblicas da União Soviética res- Europa, de um lado, e dos Estados
Igrejas Ortodoxa, colocando-a aci- saltavam sua autonomia nacional, e asiáticos, de outro.47 Foi principal- O “mundo russo”
ma de outras comunidades religio- a CEI se transformou em uma so- mente o Cazaquistão, com seu pre-
sas, principalmente das religiões cris- ciedade de liquidação da União So- sidente N. Nazarbaev, que acatou é uma concepção
tãs concorrentes.42 viética e em um clube de presiden- esse conceito.48 Os membros da
Esses laços se tornaram ainda tes, onde os presidentes decidiam União Econômica Eurasiática,
significativa para
mais estreitos a partir de 1997, es- espontaneamente em quais áreas atualmente, são a Federação Russa, a política externa
pecialmente sob os presidentes Pu- haveria cooperação.46 Os motivos a Bielorrússia, o Cazaquistão, o
tin e Medvedev. Não existe uma disso foram a agenda nacional da Quirguistão e a Armênia. A União e remete a uma
política estatal que restrinja a liber- maioria dos Estados da antiga União Econômica Eurasiática foi fundada
dade de opinião e o pluralismo que Soviética e o medo de que uma as- em 1º de janeiro de 2015. Os ob- questão
não seja apoiada pela Igreja Orto- sociação supranacional que visava a jetivos de sua criação são uma união especificamente
doxa, e há uma série de exemplos uma integração maior submeteria aduaneira e uma coordenação da
de situações em que a repressão da esses Estados à influência do poder política econômica a exemplo da russa: com o fim
liberdade de opinião partiu da Igre- econômico da Federação Russa. Tão UE. O ponto de partida foi a
ja Ortodoxa: o mais espetacular é irreal quanto a CEI foi o Estado fe- criação simultânea de uma união da URSS, 25 milhões
o já mencionado processo contra a
banda Pussy Riot, com a punição
derativo Federação Russa-Bielor-
rússia, criado em 1997; o cálculo
aduaneira entre a Bielorrússia, o
Cazaquistão e a Federação Russa
de russos étnicos
draconiana dos membros da ban- político não deu certo nem para a em 2010 e da Comunidade Eco- passaram a viver
da.43 A Igreja Ortodoxa assumiu Federação Russa – integração da nômica Eurasiática, também em
parcialmente a função da ideologia Bielorrússia à Federação Russa – 2010.49 Adesões de outras repúbli- fora das fronteiras
comunista.44 Em termos empíricos, nem para a Bielorrússia – aproveitar cas da antiga União Soviética, de
a Igreja Ortodoxa goza de grande o desenvolvimento econômico rus- outros Estados (Mongólia) e, so-
de seu país.
respeito e confiança; no entanto, a so, preservando, ao mesmo tempo, bretudo, de não Estados (Abecásia,
maioria da população jamais se des- a autonomia. Transnístria, Ossétia do Sul) pa-
creveria como religiosa.45 recem possíveis. É difícil dizer no
Reorientação territorial momento se a União Econômica
Fracassos na política em direção ao Leste Eurasiática realmente se transfor-
externa e reorientação Todas essas tentativas, porém, fo- mará em uma estrutura suprana-
territorial e de conteúdo ram feitas num tempo em que uma cional semelhante à EU. O pro-
elvistudio/shutterstock.com

Por fim, a Federação Russa se reo- cooperação amigável com o Oci- blema fundamental da inf luência
rientou fundamentalmente em sua dente ainda parecia possível. Uma dominante da Federação Russa e
política externa, no que diz respei- verdadeira reorientação geográfi- de suas pretensões e intenções he-
to tanto à geografia quanto ao con- ca é a União Econômica Eurasiá- gemoniais permanece, como mos-
teúdo. É evidente que a orientação tica, que pretende criar uma es- tram as ressalvas dos presidentes
em direção ao Oriente existiu des- trutura integradora supranacional da Bielorrússia e do Cazaquistão.50

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124 125
rússia, estados unidos e europa Alexander Blankenagel As relações externas entre a Federação Russa, os Estados Unidos e os Estados da Europa Ocidental

da União Soviética, 25 milhões de 4. Conclusão Notas


russos étnicos de repente viviam
fora da Federação Russa. A Rús- Parece-me importante entender, de 1. As relações com os Estados da Europa Central, i.e., os Esta-
sia, i.e., o “ser russo” é tematizado um lado, que a primitiva equação dos que, após a Segunda Guerra Mundial, até 1991, perten-
como concepção cultural nesse ocidental “autoritário e antidemo- ciam ao bloco socialista, e sempre foram ruins por causa des-
“mundo russo”. A concepção re- crátio na política doméstica = agres- se passado “comum”.

mete a representações do século sivo e desumano na política exter- 2. Um pequeno exemplo é o conf lito entre a OTAN e a Fede-
ração Russa em torno da segurança aérea sobre o Bálitco. A
XIX e foi acatada pela política no na” não é correta; pois a equação
OTAN, principalmente o secretário geral Stoltenberg, há
início do novo milênio: os russos inversa “democrático na política muito tempo acusa a Federação Russa de instruir os aviões
domiciliados no exterior deveriam doméstica = pacífico e não agressi- russos a desligarem seu transponder sobre o Mar Báltico,
ou ser trazidos de volta ou prote- vo na política externa” também não tornando-os eletronicamente invisíveis e uma ameaça para
gidos pela Federação Russa no ex- é correta, como demonstra muito a segurança aérea. No entanto, os pilotos da OTAN também
terior, caso seu bem-estar fosse bem o exemplo dos Estados Unidos. desligam seu transponder, mas ninguém fala sobre isso. Pu-
tin sugeriu que ambos os lados deixassem seu transponder
ameaçado. A definição exata de Não se trata de um conflito entre sempre ligado sobre o Mar Báltico, mas até agora não rece-
um russo domiciliado no exterior o bem e o mal, mas de diferentes beu nenhuma resposta. Veja o artigo no Spiegel n. 50, 2016,
permaneceu um pouco nebulosa; concepções políticas. Remeto mais p. 50ss.
segundo a interpretação mais am- uma vez às concepções políticas di- 3. Menciono aqui o programa TACIS da UE, que, entre 1991
pla, seria qualquer um que se mos- vergentes – orientação democrática e 1999, concedeu 4,226 bilhões de euros a países da Europa
tre aberto e favorável à cultura do Ocidente versus orientação pela Oriental. Em 2007, o programa TACIS foi incorporado ao
Instrumento Europeu de Vizinhança e Parceria (ENPI), o
russa. Na compreensão filosófica estabilidade da Rússia – diante da
instrumento de financiamento da política europeia de vizi-
(G. Pavlovskij, S. ernyšev et al.), Primavera Árabe54 (além, é claro, nhança, que disponibilizou 11,2 bilhões de euros até 2013.
o mundo russo é ainda mais ex- dos respectivos interesses próprios).
4. Ver, por exemplo, a decepção de Jelzin com a política norte-
pansivo: a Rússia é vista como E também a recusa de uma “esfera

Kichigin/shutterstock.com
-americana e ocidental. A. Stent, The Limits of Partnership,
uma civilização específica que, de interesses especiais” da Rússia – 2014, p. 20.
com sua complexidade concisa, aquilo que os russos chamam de 5. Ver a representação concisa do ponto de vista da política ex-
sua permeabilidade e sua podero- “exterior próximo” – não é muito terna russa em I. Zevelev, “The Russian World Boundaries:
sa capacidade vocal e intelectual, útil, principalmente quando a Dou- Russia’s National Identity Transformation and New Foreign
que se dirige a todos os seres hu- trina Monroe é essencialmente man- Policy Doctrine”, em Russia in Global Affairs, 7/6/2014, dis-
ponível em http://eng.globalaffairs.ru/number/The-Rus-
de a economia até a ciência e a cul- guns dos “novos” parceiros havia manos, domina todas as outras ci- tida com pequenas adaptações.55
Não estamos diante de tura. Por fim, devemos mencionar conf litos irresolvidos e de longa vilizações. Ser russo não deve ser Como conclusão, não me resta
sian-World-Boundaries-16707, acessado em 25 de dezembro
de 2016.
um conflito entre o bem e também os BRICS – Brasil, Rús- data, como o conf lito com a Chi- uma questão do sangue; significa senão constatar um colapso total 6. No encontro da CSCE em Estocolmo, em 12 de dezembro
sia, Índia, China e África do Sul. na sobre a demarcação da fronteira um destino comum. O objetivo é das relações, que dificilmente po- de 1992, A. Kozyrev deu uma palestra na qual anunciou que,
o mal, mas de concepções Apesar de não ser uma organização ao longo do rio Ussuri, ou o con- a reconstituição pacífica da iden- derá ser revertido. Esse colapso em determinados casos, a Rússia aplicaria a violência contra
territorialmente evidente por cau- f lito com o Japão sobre as Ilhas tidade russa e sua reconexão com foi provocado por ambos os lados. repúblicas da antiga União Soviética e que, de modo análo-
diferentes de política. sa da África do Sul e do Brasil, a Curilas. O conf lito com a China seu passado e sua diáspora. Assim O Ocidente perdeu uma chance go à Doutrina Monroe, existia um espaço pós-imperial em
volta da Rússia, no qual a Rússia tinha o direito de defender
O Ocidente afirma sua fundação do Banco de Desenvol- foi resolvido contratualmente em a Rússia conseguiria vencer o de- realmente grande: sem a expansão seus interesses com todos os meios; ele acusou a OTAN de
vimento dos BRICS (New Deve- junho de 2005, e na questão das safio da globalização.53 da OTAN, sem escudo de defesa invadir “o quintal da Rússia”. Após ter deixado todos os par-
vocação democrática, lopment Bank) em julho de 2014 Ilhas Curilas algo também parece O conceito é tão florado ou mís- contra mísseis, sem um comporta- ticipantes da conferência em estado de choque, ele solucio-
demonstra que existe uma agenda estar acontecendo.52 tico quanto o conceito “Eurásia”. mento arrogante, sobretudo dos nou o enigma e declarou que só pretendera demonstrar o
enquanto a Federação clara voltada para a pluralização do Não surpreende que, principalmen- Estados Unidos, diante da Federa- que aconteceria se Jelzin e suas reformas fracassassem; o hu-
mor especial de Kozyrev era famoso. Ver o artigo em http://
Russa valoriza, antes sistema financeiro mundial. Há Reorientação em termos te após a anexação da Crimeia, esse ção Russa e sem a convicção inf la-
www.independent.co.uk/news/world/europe/diplomats-
também uma série de tratados bi- de conteúdo: o “mundo russo” conceito tenha causado uma inquie- da de sua superioridade moral, é -shocked-by-kozyrev-ploy-1563641.html, acessado em 17
de tudo, a estabilidade. laterias que revelam a reorientação O “mundo russo” é uma concep- tação considerável nos vizinhos da provável que a Federação Russa de dezembro de 2016. Do ponto de vista atual, só podemos
da Federação Russa em direção ao ção sociológico-cultural signifi- Federação Russa. Todos eles apre- tivesse tomado outro curso na pri- confirmar que ele estava correto em todos os aspectos.
Leste.51 Interessante é o pragmatis- cativa para a política externa e re- sentam, em decorrência da política meira década deste milênio, tanto 7. Ver H. Meiertöns, Die Doktrinen U.S.-amerikanischer Sicherheits-
mo que a Federação Russa revela mete a um problema especifica- soviética de russificação, uma po- na política doméstica quanto na politik. Völkerrechtliche Bewertung und ihr Einfluss auf das Völker-
nesses empreendimentos. Com al- mente russo: depois da dissolução pulação russa considerável. política externa. n recht, 2006.

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rússia, estados unidos e europa Alexander Blankenagel As relações externas entre a Federação Russa, os Estados Unidos e os Estados da Europa Ocidental

da União Soviética, 25 milhões de 4. Conclusão Notas


russos étnicos de repente viviam
fora da Federação Russa. A Rús- Parece-me importante entender, de 1. As relações com os Estados da Europa Central, i.e., os Esta-
sia, i.e., o “ser russo” é tematizado um lado, que a primitiva equação dos que, após a Segunda Guerra Mundial, até 1991, perten-
como concepção cultural nesse ocidental “autoritário e antidemo- ciam ao bloco socialista, e sempre foram ruins por causa des-
“mundo russo”. A concepção re- crátio na política doméstica = agres- se passado “comum”.

mete a representações do século sivo e desumano na política exter- 2. Um pequeno exemplo é o conf lito entre a OTAN e a Fede-
ração Russa em torno da segurança aérea sobre o Bálitco. A
XIX e foi acatada pela política no na” não é correta; pois a equação
OTAN, principalmente o secretário geral Stoltenberg, há
início do novo milênio: os russos inversa “democrático na política muito tempo acusa a Federação Russa de instruir os aviões
domiciliados no exterior deveriam doméstica = pacífico e não agressi- russos a desligarem seu transponder sobre o Mar Báltico,
ou ser trazidos de volta ou prote- vo na política externa” também não tornando-os eletronicamente invisíveis e uma ameaça para
gidos pela Federação Russa no ex- é correta, como demonstra muito a segurança aérea. No entanto, os pilotos da OTAN também
terior, caso seu bem-estar fosse bem o exemplo dos Estados Unidos. desligam seu transponder, mas ninguém fala sobre isso. Pu-
tin sugeriu que ambos os lados deixassem seu transponder
ameaçado. A definição exata de Não se trata de um conflito entre sempre ligado sobre o Mar Báltico, mas até agora não rece-
um russo domiciliado no exterior o bem e o mal, mas de diferentes beu nenhuma resposta. Veja o artigo no Spiegel n. 50, 2016,
permaneceu um pouco nebulosa; concepções políticas. Remeto mais p. 50ss.
segundo a interpretação mais am- uma vez às concepções políticas di- 3. Menciono aqui o programa TACIS da UE, que, entre 1991
pla, seria qualquer um que se mos- vergentes – orientação democrática e 1999, concedeu 4,226 bilhões de euros a países da Europa
tre aberto e favorável à cultura do Ocidente versus orientação pela Oriental. Em 2007, o programa TACIS foi incorporado ao
Instrumento Europeu de Vizinhança e Parceria (ENPI), o
russa. Na compreensão filosófica estabilidade da Rússia – diante da
instrumento de financiamento da política europeia de vizi-
(G. Pavlovskij, S. ernyšev et al.), Primavera Árabe54 (além, é claro, nhança, que disponibilizou 11,2 bilhões de euros até 2013.
o mundo russo é ainda mais ex- dos respectivos interesses próprios).
4. Ver, por exemplo, a decepção de Jelzin com a política norte-
pansivo: a Rússia é vista como E também a recusa de uma “esfera

Kichigin/shutterstock.com
-americana e ocidental. A. Stent, The Limits of Partnership,
uma civilização específica que, de interesses especiais” da Rússia – 2014, p. 20.
com sua complexidade concisa, aquilo que os russos chamam de 5. Ver a representação concisa do ponto de vista da política ex-
sua permeabilidade e sua podero- “exterior próximo” – não é muito terna russa em I. Zevelev, “The Russian World Boundaries:
sa capacidade vocal e intelectual, útil, principalmente quando a Dou- Russia’s National Identity Transformation and New Foreign
que se dirige a todos os seres hu- trina Monroe é essencialmente man- Policy Doctrine”, em Russia in Global Affairs, 7/6/2014, dis-
ponível em http://eng.globalaffairs.ru/number/The-Rus-
de a economia até a ciência e a cul- guns dos “novos” parceiros havia manos, domina todas as outras ci- tida com pequenas adaptações.55
Não estamos diante de tura. Por fim, devemos mencionar conf litos irresolvidos e de longa vilizações. Ser russo não deve ser Como conclusão, não me resta
sian-World-Boundaries-16707, acessado em 25 de dezembro
de 2016.
um conflito entre o bem e também os BRICS – Brasil, Rús- data, como o conf lito com a Chi- uma questão do sangue; significa senão constatar um colapso total 6. No encontro da CSCE em Estocolmo, em 12 de dezembro
sia, Índia, China e África do Sul. na sobre a demarcação da fronteira um destino comum. O objetivo é das relações, que dificilmente po- de 1992, A. Kozyrev deu uma palestra na qual anunciou que,
o mal, mas de concepções Apesar de não ser uma organização ao longo do rio Ussuri, ou o con- a reconstituição pacífica da iden- derá ser revertido. Esse colapso em determinados casos, a Rússia aplicaria a violência contra
territorialmente evidente por cau- f lito com o Japão sobre as Ilhas tidade russa e sua reconexão com foi provocado por ambos os lados. repúblicas da antiga União Soviética e que, de modo análo-
diferentes de política. sa da África do Sul e do Brasil, a Curilas. O conf lito com a China seu passado e sua diáspora. Assim O Ocidente perdeu uma chance go à Doutrina Monroe, existia um espaço pós-imperial em
volta da Rússia, no qual a Rússia tinha o direito de defender
O Ocidente afirma sua fundação do Banco de Desenvol- foi resolvido contratualmente em a Rússia conseguiria vencer o de- realmente grande: sem a expansão seus interesses com todos os meios; ele acusou a OTAN de
vimento dos BRICS (New Deve- junho de 2005, e na questão das safio da globalização.53 da OTAN, sem escudo de defesa invadir “o quintal da Rússia”. Após ter deixado todos os par-
vocação democrática, lopment Bank) em julho de 2014 Ilhas Curilas algo também parece O conceito é tão florado ou mís- contra mísseis, sem um comporta- ticipantes da conferência em estado de choque, ele solucio-
demonstra que existe uma agenda estar acontecendo.52 tico quanto o conceito “Eurásia”. mento arrogante, sobretudo dos nou o enigma e declarou que só pretendera demonstrar o
enquanto a Federação clara voltada para a pluralização do Não surpreende que, principalmen- Estados Unidos, diante da Federa- que aconteceria se Jelzin e suas reformas fracassassem; o hu-
mor especial de Kozyrev era famoso. Ver o artigo em http://
Russa valoriza, antes sistema financeiro mundial. Há Reorientação em termos te após a anexação da Crimeia, esse ção Russa e sem a convicção inf la-
www.independent.co.uk/news/world/europe/diplomats-
também uma série de tratados bi- de conteúdo: o “mundo russo” conceito tenha causado uma inquie- da de sua superioridade moral, é -shocked-by-kozyrev-ploy-1563641.html, acessado em 17
de tudo, a estabilidade. laterias que revelam a reorientação O “mundo russo” é uma concep- tação considerável nos vizinhos da provável que a Federação Russa de dezembro de 2016. Do ponto de vista atual, só podemos
da Federação Russa em direção ao ção sociológico-cultural signifi- Federação Russa. Todos eles apre- tivesse tomado outro curso na pri- confirmar que ele estava correto em todos os aspectos.
Leste.51 Interessante é o pragmatis- cativa para a política externa e re- sentam, em decorrência da política meira década deste milênio, tanto 7. Ver H. Meiertöns, Die Doktrinen U.S.-amerikanischer Sicherheits-
mo que a Federação Russa revela mete a um problema especifica- soviética de russificação, uma po- na política doméstica quanto na politik. Völkerrechtliche Bewertung und ihr Einfluss auf das Völker-
nesses empreendimentos. Com al- mente russo: depois da dissolução pulação russa considerável. política externa. n recht, 2006.

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rússia, estados unidos e europa Alexander Blankenagel As relações externas entre a Federação Russa, os Estados Unidos e os Estados da Europa Ocidental

8. Ver as advertências de Sopak e Kokoškin num nha boas razões para derrubar seus governos. F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: Operative in 36.F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: Operative in the from sovereign democracy to sovereign mo- 49.Ver a representação dos inícios em Kembayev,
simpósio da Fundação Körber em 1994, em A percepção russa ignora completamente es- the Kremlin, 2015, p. 36; sobre a recusa da Kremlin (anotação 29), p. 256; M. Laruelle, rality”, p. 615ss, e I. Yablokov, “Pussy Riot as Legal Aspects of Regional Integration (anotação
São Petersburgo. se aspecto. proposta de Medvedev referente a uma no- “The ‘Russian World’; Russia’s Soft Power agent provocateur: conspiracy theories and 46), p. 122ss, 129ss; ver também M. Schlade-
9. Ver a representação minuciosa dos eventos e 18.Ver o texto da palestra em alemão em www. va arquitetura de segurança europeia, ver and Geopolitical Imagination”, Center of Glo- the media construction of nation in Putin’s bach e V. Kim, “Die Eurasische Wirtschafts-
contextos em Stent, Limits of Partnership (ano- ag-friedensforschung.de/themen/Sicherheit Stent, Limits of Partnership (anotação 4), p. bal Interests, maio de 2015; disponível em www. Russia”, p. 622ss. Ver outro exemplo, o do gemeinschaft: Grundlagen, Ziele, Chancen”,
tação 4), p. 39ss; ibid. também a referência à skonferenz/2007-putin-dt.html 239. globalinterests.org, em programs/Russian cancelamento de uma apresentação do Tan- em WiRo 2015, p. 161ss.
opinião segundo a qual os Estados Unidos te- 19.Segundo Scheffer, o secretário geral da OTAN 30.F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: Operative in the World (acessado em 25 de dezembro de 2016), nhäuser em Novosibirsk após críticas por par-
riam tido a chance extraordinária de integrar 50.Em outrubro de 2013, Lukašenko afirmou
na época; ver o resumo das reações em Spiegel- Kremlin (anotação 29), p. 296ss. p. 20ss. te da Igreja Ortodoxa, em Die Welt de 31 de
a Rússia numa nova estrutura de segurança que não haveria uma moeda comum; no mes-
-online de 10 de fevereiro de 2007. Para uma 31.Essa identidade coletiva é precária e confusa 37.S. Stent, The Limits of Partnership (anotação março de 2015, disponível em www.welt.
europeia; o alargamento da OTAN teria des- mo mês, Nazarbaev informou que a União
análise extensa do discurso de Putin em Mu- até mesmo para os nacionalistas russos: como 4), p. 97ss; F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: de/.../Russischer-Operndirektor-setzt-Tan-
truído essa chance. Econômica Eurasiática deveria ser dissolvida
nique, ver Stent, Limits of Partnership (anotação grande potência, querem conquistar tudo a Operative in the Kremlin (anotação 20), p. nhaeuser-ab.html; ver ainda o conf lito em
e que a Turquia deveria ser incluída na união
10.Em maio de 1997, a Federação Russa assinou 4), p. 135ss. sua volta; por outro lado, querem ser uma so- 305ss. torno da exposição “Arte Proibida”, no qual
a Igreja Ortodoxa também prevaleceu, em Die aduaneira, “para que parem de dizer que es-
o “Ato Fundador das relações mútuas de 20.Ver Stent, Limits of Partnership (anotação 4), ciedade etnicamente homogênea. Ver P. Po- 38.F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: Operative in the
cooperação e de segurança entre a OTAN e Zeit de 13 de julho de 2010, disponível em taríamos pretendendo fundar novamente a
p. 72ss, 153ss, 225ss. mersantsev, Nothing is true. Everything is possi- Kremlin (anotação 29), p. 319ss, especialmen-
a Federação Russa”; em 2001, foram instala- www.zeit.de › Start › Kultur, acessado em 25 União Soviética!”. Em dezembro de 2013,
21.Ver, por exemplo, Focus-online de 13 de no- ble, 2014, p. 196. te p. 321ss, sobre o papel da China na com-
dos um escritório da OTAN em Moscou e de dezembro de 2015. Ver, por fim, sobre o Nazarbaev se opôs à politização da União
vembro de 2015; Tagesspiegel de 13 de maio 32.Ver Clunan, The Social Construction of Russia’s pensação do desequilíbrio provocado pelos
uma representação da Federação Russa junto poder da Igreja, o filme Leviathan, de A. Svja- Econômica Eurasiática; citado segundo o ar-
de 2016. Resurgence (anotação 29), p. 101ss; ver também Estados Unidos.
à OTAN. gincev, de 2014; ver a sinopse em Stent, The tigo russo na Wikipedia “Evrazijskij Sojuz”;
22.Ver, por exemplo, Stent, Limits of Partnership F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: Operative in the 39.Um exemplo ilustrativo é a reação muito re- referências bibliográficas, ibid. (acessado em
11.Em janeiro de 1997, após conversas em Mos- Limits of Partnership (anotação 4), p. 283.
(anotação 4), p. 48; segundo o autor, as refor- Kremlin (anotação 29), p. 45ss; V. Tolz, Rus- servada da Rússia à Primavera Árabe; os rus-
cou, constatou-se que os russos estavam insa- 44.F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: Operative in the 11 de dezembro de 2015).
mas da década de 1990 eram vistas por muitos sia: Inventing the Nation, 2001; K. E. Smith, sos não se renderam ao júbilo democrático dos
tisfeitos, mas não paranoicos; ver Stent, Limits Mythmaking in the New Russia: Politics and Me- Kremlin (anotação 29), p. 47: a ortodoxia co- 51.Ver, por exemplo, o contrato de forneceimen-
russos como humilhação. países ocidentais. Desde o início os russos
of Partnership (anotação 4), p. 77, segundo o mory during the Yeltsin Era, 2002. acreditavam que as revoltas terminariam em mo núcleo e essência do russo. to de gás, segundo o qual a China deverá re-
qual se alegava teimosamente que o alarga- 23.Ver Spiegel-online de 25 de março de 2014. ceber da Rússia 38 bilhões de metros cúbicos
33.Ver o artigo no jornal Kommersant de 16 de Estados islamistas e que toda a estabilidade na 45.Ver, por exemplo, os dados de uma enquete
mento da OTAN não ameaçava ninguém e 24.Stent, Limits of Partnership (anotação 4), região estaria ameaçada; por isso preferiam os em Ežegodnik obščestvennogo mnenija 2014 (Anuá- de gás da Rússia. Para tanto, deve ser cons-
dezembro de 2014, disponível em http://www.
que a Rússia não podia ter o direito de veto p. 59. regimes autocráticos que haviam existido até rio da opinião pública 2014), p. 128, 129, pu- truído o gasoduto “sila Sibirii” (força da Si-
kommersant.ru/doc/2634353, segundo o qual
em relação a quaisquer planos da OTAN. então. Seis anos mais tarde, a Tunísia sendo o blicado pelo Instituto Levada, segundo os béria); ver Deutsche Wirtschaftsnachrichten de
25.Stent, Limits of Partnership (anotação 4), as propostas para a formação da identidade
12.Ver, por exemplo, R. Merkel, Der Kosovo-Krieg p. 161. único país que aparenta estar seguindo na di- quais, em 2014, 54% dos entrevistados acre- 24 de abril de 2015. E com o Japão foi acor-
russa deveriam ser apresentadas até 1º de de-
und das Völkerrecht, 2000; ver também, como reção certa, mas que produz um grande nú- ditavam que a Igreja merecia sua confiança dada uma cooperação econômica mais próxi-
26.Putin informou Bush de que, segundo os co- zembro de 2015 (acessado em 21 de dezembro
representante da esquerda, W. Ruf, L. Jöst, mero de islamistas radicais, a posição russa plena e outros 20% confiavam basicamente na ma por ocasião da visita de Putin ao Japão.
nhecimentos absolutamente seguros do servi- de 2016); ver também R. Krumm, V. Med-
N. Strutynski e N. Zollet, Militärinterventionen parece ter sido confirmada, e a posição norte- Igreja; 42% consideravam apropriada a inf luên- Um mês depois, isso foi concretizado num
ço secreto russo, Saddam Hussein não possuía vedev e H.-H. Schröder, Constructing Identities
– verheerend und völkerrechtswidrig, 2009, p. 101ss. -americana e ocidental se apresenta como sim- cia política da Igreja, e 11% desejavam uma plano de oito pontos; ver sputnik news de 30
armas de destruição em massa. Quando, após in Europe. German and Russian Perspectives, 2012.
13.Em agosto de 2008, imediatamente após a o fim da segunda guerra do Iraque, isso se plesmente ingênua; ver Stent, Limits of Part- inf luência maior ou muito maior da Igreja de agosto de 2018.
34.V. Surkov, “Souveränität ist das politische Sy- nership (anotação 4), p. 247ss.
guerra russo-georgiana, foi fundada a comis- confirmou de modo inequívoco, Putin, cho- sobre a política; 70% dos entrevistados diziam 52.O governo japonês decidiu em 2 de março de
nonym für Konkurrenzfähigkeit”, http://web.
são OTAN-Geórgia para discutir a inclusão cado com a ingenuidade norte-americana, 40.Costumamos ignorar que a percepção russa do ser cristãos ortodoxos; no entanto, 37% dos
archive.org/web/20060418035317/http:// 2012 não falar mais de territórios “ilegalmen-
da Géorgia à OTAN. teria dito: “Se nós tivéssemos atacado o Ira- Ocidente também é uma ameaça, que não de- entrevistados nunca iam à Igreja, e 15% o fa-
www.edinros.ru/news.html?id=111148 (aces- te ocupados”, mas de territórios “assumidos
14.Além desses, Malta também se tornou mem- que, mesmo sabendo que ele não possuía ar- saparece simplesmente quando o Ocidente ga- ziam apenas uma vez ou menos do que uma
sado em 21 de dezembro de 2016); sobre o sem fundamento jurídico”; ver o artigo “Ku-
bro da UE, mas, do ponto de vista russo, isso mas de destruição em massa, teríamos tido rante à Federação Russa que ele não é uma vez por ano.
conceito, ver as representações críticas de P. riltorg. Rossija vernet Japonii Kuril’skie os-
era de interesse apenas secundário. pelo menos o cuidado de encontrar algumas ameaça; ver F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: Ope- 46.Ver Z. Kembayev, Legal Aspects of the Regional
W. Schulz, “Souveräne Demokratie: Kampf- trovq v 2018 g”, em Versija, n. 49, de 19 de
mesmo assim!” rative in the Kremlin (anotação 29), p. 392ss. Integration Processes in the Post-Soviet Area, 2009,
15.Ver Stent, Limits of Partnership (anotação 4), p. begriff oder Hilfskonstruktion für einen ei- dezembro de 2016 (Ilhas Curilas: A Rússia
287. 27.Ver Focus-online de 13 de novembro de 2008; genständigen Entwicklungsweg? – die ide- 41.O. Figes, Der Krim Krieg, 2014, p. 19ss. especialmente p. 34ss e a avaliação final, p. 90ss. devolverá ao Japão as Ilhas Curilas em 2018?),
16.Stent, Limits of Partnership (anotação 4), p. 75; ver também Stent, Limits of Partnership (ano- ologische Offensive des Vladislav Surkov”, 42. Ver I. Papkova, The Orthodox Church and 47.M. Laruelle, Russian Eurasianism. An Ideology que descreve o estado das negociações e o in-
ver ibid. também a descrição da frustração dos tação 4), p. 238ss, com uma representação de- em M. Buhbe e G. Gorzka (orgs.), Russland Russian Politics, 2011; M. Bennets, “Russlan- of Empire, 2008, especialmente p. 16ss e 202ss; teresse russo na resolução do conf lito.
russos diante do fato de que os norte-ameri- talhada da reação negativa do Ocidente. heute: Rezentralisierung des Staates unter Putin, ds ‘Heiliger Krieg’: Wie die russisch-ortho- a União Eurasiática está intimamente entre-
53.Ver a representação minuciosa em Laruelle,
canos falavam constantemente em parceria, 28.Sobre o desenvolvimento econômico da Fe- 2007, p. 293ss; Jin-Sook Ju, “Institutionelle doxe Kirche politische Deutungshoheit be- laçada com a concepção do “mundo russo”
Russian World (anotação 36).
mas sempre impunham seus interesses sem deração Russa entre 2000 e 2013, ver Stent, Reform und Demokratiediskurs in Russ- ansprucht”, em IPG de 14 de dezembro de (russkij mir), que determina a política externa;
2015. ver M. Laruelle, “The ‘Russian World’; 54.Ver a análise detalhada na anotação 39.
respeitar os desejos ou interesses russos. Limits of Partnership (anotação 4), p. 182ss. land”, em Russland-Analysen, n. 2011, de 3
de dezembro de 2010, p. 2ss; M. Mommsen, 43.Sobre o escândalo da apresentação da banda Russia’s Soft Power and Geopolitical Imagi- 55.S. Stent, Limits of Partnership (anotação 4),
17.A Rússia oficial entende que as três revolu- 29.Para uma análise minuciosa da política exter-
“Surkows ‘Souveräne Demokratie’ – Formel Pussy Riot e a sentença draconiana, ver o nú- nation”, Center of Global Interests, maio de 2015; p. 262.
ções foram def lagradas pelos Estados Unidos. na e dos diferentes grupos de interesse ativos
für einen russischen Sonderweg”, em Russ- mero dedicado exclusivamente a esse tema da disponível em www.globalinterests.org (pro-
É correto que dinheiro norte-americano e aqui e sua orientação, ver A. L. Clunan, The
land-Analysen, n. 114, de 20 de outubro de revista Nationalities Papers. The Journal of Na- grams/Russian World) (acessado em 25 de
dinheiro de G. Soros ajudaram a financiar Social Construction of Russia’s Resurgence Aspi-
2006, p. 2ss. tionalism and Ethnicity, v. 42, 2014, e especial- dezembro de 2016).
esses movimentos de protesto. É, porém, rations, Identity and Security Interests, 2009, p.
também correto que a corrupção e a fraude 75ss; ver também ibid., p. 145ss, sobre os in- 35.Assim também F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: mente as contribuições de G. Sharafutdinova, 48 Laruelle, Russian Eurasianism (anotação 47),
eleitoral eram tamanhas que a população ti- teresses de segurança da Rússia; ver também Operative in the Kremlin (anotação 29), p. 68. “The Pussy Riot Affair and Putin’s demarché p. 171ss.

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rússia, estados unidos e europa Alexander Blankenagel As relações externas entre a Federação Russa, os Estados Unidos e os Estados da Europa Ocidental

8. Ver as advertências de Sopak e Kokoškin num nha boas razões para derrubar seus governos. F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: Operative in 36.F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: Operative in the from sovereign democracy to sovereign mo- 49.Ver a representação dos inícios em Kembayev,
simpósio da Fundação Körber em 1994, em A percepção russa ignora completamente es- the Kremlin, 2015, p. 36; sobre a recusa da Kremlin (anotação 29), p. 256; M. Laruelle, rality”, p. 615ss, e I. Yablokov, “Pussy Riot as Legal Aspects of Regional Integration (anotação
São Petersburgo. se aspecto. proposta de Medvedev referente a uma no- “The ‘Russian World’; Russia’s Soft Power agent provocateur: conspiracy theories and 46), p. 122ss, 129ss; ver também M. Schlade-
9. Ver a representação minuciosa dos eventos e 18.Ver o texto da palestra em alemão em www. va arquitetura de segurança europeia, ver and Geopolitical Imagination”, Center of Glo- the media construction of nation in Putin’s bach e V. Kim, “Die Eurasische Wirtschafts-
contextos em Stent, Limits of Partnership (ano- ag-friedensforschung.de/themen/Sicherheit Stent, Limits of Partnership (anotação 4), p. bal Interests, maio de 2015; disponível em www. Russia”, p. 622ss. Ver outro exemplo, o do gemeinschaft: Grundlagen, Ziele, Chancen”,
tação 4), p. 39ss; ibid. também a referência à skonferenz/2007-putin-dt.html 239. globalinterests.org, em programs/Russian cancelamento de uma apresentação do Tan- em WiRo 2015, p. 161ss.
opinião segundo a qual os Estados Unidos te- 19.Segundo Scheffer, o secretário geral da OTAN 30.F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: Operative in the World (acessado em 25 de dezembro de 2016), nhäuser em Novosibirsk após críticas por par-
riam tido a chance extraordinária de integrar 50.Em outrubro de 2013, Lukašenko afirmou
na época; ver o resumo das reações em Spiegel- Kremlin (anotação 29), p. 296ss. p. 20ss. te da Igreja Ortodoxa, em Die Welt de 31 de
a Rússia numa nova estrutura de segurança que não haveria uma moeda comum; no mes-
-online de 10 de fevereiro de 2007. Para uma 31.Essa identidade coletiva é precária e confusa 37.S. Stent, The Limits of Partnership (anotação março de 2015, disponível em www.welt.
europeia; o alargamento da OTAN teria des- mo mês, Nazarbaev informou que a União
análise extensa do discurso de Putin em Mu- até mesmo para os nacionalistas russos: como 4), p. 97ss; F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: de/.../Russischer-Operndirektor-setzt-Tan-
truído essa chance. Econômica Eurasiática deveria ser dissolvida
nique, ver Stent, Limits of Partnership (anotação grande potência, querem conquistar tudo a Operative in the Kremlin (anotação 20), p. nhaeuser-ab.html; ver ainda o conf lito em
e que a Turquia deveria ser incluída na união
10.Em maio de 1997, a Federação Russa assinou 4), p. 135ss. sua volta; por outro lado, querem ser uma so- 305ss. torno da exposição “Arte Proibida”, no qual
a Igreja Ortodoxa também prevaleceu, em Die aduaneira, “para que parem de dizer que es-
o “Ato Fundador das relações mútuas de 20.Ver Stent, Limits of Partnership (anotação 4), ciedade etnicamente homogênea. Ver P. Po- 38.F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: Operative in the
cooperação e de segurança entre a OTAN e Zeit de 13 de julho de 2010, disponível em taríamos pretendendo fundar novamente a
p. 72ss, 153ss, 225ss. mersantsev, Nothing is true. Everything is possi- Kremlin (anotação 29), p. 319ss, especialmen-
a Federação Russa”; em 2001, foram instala- www.zeit.de › Start › Kultur, acessado em 25 União Soviética!”. Em dezembro de 2013,
21.Ver, por exemplo, Focus-online de 13 de no- ble, 2014, p. 196. te p. 321ss, sobre o papel da China na com-
dos um escritório da OTAN em Moscou e de dezembro de 2015. Ver, por fim, sobre o Nazarbaev se opôs à politização da União
vembro de 2015; Tagesspiegel de 13 de maio 32.Ver Clunan, The Social Construction of Russia’s pensação do desequilíbrio provocado pelos
uma representação da Federação Russa junto poder da Igreja, o filme Leviathan, de A. Svja- Econômica Eurasiática; citado segundo o ar-
de 2016. Resurgence (anotação 29), p. 101ss; ver também Estados Unidos.
à OTAN. gincev, de 2014; ver a sinopse em Stent, The tigo russo na Wikipedia “Evrazijskij Sojuz”;
22.Ver, por exemplo, Stent, Limits of Partnership F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: Operative in the 39.Um exemplo ilustrativo é a reação muito re- referências bibliográficas, ibid. (acessado em
11.Em janeiro de 1997, após conversas em Mos- Limits of Partnership (anotação 4), p. 283.
(anotação 4), p. 48; segundo o autor, as refor- Kremlin (anotação 29), p. 45ss; V. Tolz, Rus- servada da Rússia à Primavera Árabe; os rus-
cou, constatou-se que os russos estavam insa- 44.F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: Operative in the 11 de dezembro de 2015).
mas da década de 1990 eram vistas por muitos sia: Inventing the Nation, 2001; K. E. Smith, sos não se renderam ao júbilo democrático dos
tisfeitos, mas não paranoicos; ver Stent, Limits Mythmaking in the New Russia: Politics and Me- Kremlin (anotação 29), p. 47: a ortodoxia co- 51.Ver, por exemplo, o contrato de forneceimen-
russos como humilhação. países ocidentais. Desde o início os russos
of Partnership (anotação 4), p. 77, segundo o mory during the Yeltsin Era, 2002. acreditavam que as revoltas terminariam em mo núcleo e essência do russo. to de gás, segundo o qual a China deverá re-
qual se alegava teimosamente que o alarga- 23.Ver Spiegel-online de 25 de março de 2014. ceber da Rússia 38 bilhões de metros cúbicos
33.Ver o artigo no jornal Kommersant de 16 de Estados islamistas e que toda a estabilidade na 45.Ver, por exemplo, os dados de uma enquete
mento da OTAN não ameaçava ninguém e 24.Stent, Limits of Partnership (anotação 4), região estaria ameaçada; por isso preferiam os em Ežegodnik obščestvennogo mnenija 2014 (Anuá- de gás da Rússia. Para tanto, deve ser cons-
dezembro de 2014, disponível em http://www.
que a Rússia não podia ter o direito de veto p. 59. regimes autocráticos que haviam existido até rio da opinião pública 2014), p. 128, 129, pu- truído o gasoduto “sila Sibirii” (força da Si-
kommersant.ru/doc/2634353, segundo o qual
em relação a quaisquer planos da OTAN. então. Seis anos mais tarde, a Tunísia sendo o blicado pelo Instituto Levada, segundo os béria); ver Deutsche Wirtschaftsnachrichten de
25.Stent, Limits of Partnership (anotação 4), as propostas para a formação da identidade
12.Ver, por exemplo, R. Merkel, Der Kosovo-Krieg p. 161. único país que aparenta estar seguindo na di- quais, em 2014, 54% dos entrevistados acre- 24 de abril de 2015. E com o Japão foi acor-
russa deveriam ser apresentadas até 1º de de-
und das Völkerrecht, 2000; ver também, como reção certa, mas que produz um grande nú- ditavam que a Igreja merecia sua confiança dada uma cooperação econômica mais próxi-
26.Putin informou Bush de que, segundo os co- zembro de 2015 (acessado em 21 de dezembro
representante da esquerda, W. Ruf, L. Jöst, mero de islamistas radicais, a posição russa plena e outros 20% confiavam basicamente na ma por ocasião da visita de Putin ao Japão.
nhecimentos absolutamente seguros do servi- de 2016); ver também R. Krumm, V. Med-
N. Strutynski e N. Zollet, Militärinterventionen parece ter sido confirmada, e a posição norte- Igreja; 42% consideravam apropriada a inf luên- Um mês depois, isso foi concretizado num
ço secreto russo, Saddam Hussein não possuía vedev e H.-H. Schröder, Constructing Identities
– verheerend und völkerrechtswidrig, 2009, p. 101ss. -americana e ocidental se apresenta como sim- cia política da Igreja, e 11% desejavam uma plano de oito pontos; ver sputnik news de 30
armas de destruição em massa. Quando, após in Europe. German and Russian Perspectives, 2012.
13.Em agosto de 2008, imediatamente após a o fim da segunda guerra do Iraque, isso se plesmente ingênua; ver Stent, Limits of Part- inf luência maior ou muito maior da Igreja de agosto de 2018.
34.V. Surkov, “Souveränität ist das politische Sy- nership (anotação 4), p. 247ss.
guerra russo-georgiana, foi fundada a comis- confirmou de modo inequívoco, Putin, cho- sobre a política; 70% dos entrevistados diziam 52.O governo japonês decidiu em 2 de março de
nonym für Konkurrenzfähigkeit”, http://web.
são OTAN-Geórgia para discutir a inclusão cado com a ingenuidade norte-americana, 40.Costumamos ignorar que a percepção russa do ser cristãos ortodoxos; no entanto, 37% dos
archive.org/web/20060418035317/http:// 2012 não falar mais de territórios “ilegalmen-
da Géorgia à OTAN. teria dito: “Se nós tivéssemos atacado o Ira- Ocidente também é uma ameaça, que não de- entrevistados nunca iam à Igreja, e 15% o fa-
www.edinros.ru/news.html?id=111148 (aces- te ocupados”, mas de territórios “assumidos
14.Além desses, Malta também se tornou mem- que, mesmo sabendo que ele não possuía ar- saparece simplesmente quando o Ocidente ga- ziam apenas uma vez ou menos do que uma
sado em 21 de dezembro de 2016); sobre o sem fundamento jurídico”; ver o artigo “Ku-
bro da UE, mas, do ponto de vista russo, isso mas de destruição em massa, teríamos tido rante à Federação Russa que ele não é uma vez por ano.
conceito, ver as representações críticas de P. riltorg. Rossija vernet Japonii Kuril’skie os-
era de interesse apenas secundário. pelo menos o cuidado de encontrar algumas ameaça; ver F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: Ope- 46.Ver Z. Kembayev, Legal Aspects of the Regional
W. Schulz, “Souveräne Demokratie: Kampf- trovq v 2018 g”, em Versija, n. 49, de 19 de
mesmo assim!” rative in the Kremlin (anotação 29), p. 392ss. Integration Processes in the Post-Soviet Area, 2009,
15.Ver Stent, Limits of Partnership (anotação 4), p. begriff oder Hilfskonstruktion für einen ei- dezembro de 2016 (Ilhas Curilas: A Rússia
287. 27.Ver Focus-online de 13 de novembro de 2008; genständigen Entwicklungsweg? – die ide- 41.O. Figes, Der Krim Krieg, 2014, p. 19ss. especialmente p. 34ss e a avaliação final, p. 90ss. devolverá ao Japão as Ilhas Curilas em 2018?),
16.Stent, Limits of Partnership (anotação 4), p. 75; ver também Stent, Limits of Partnership (ano- ologische Offensive des Vladislav Surkov”, 42. Ver I. Papkova, The Orthodox Church and 47.M. Laruelle, Russian Eurasianism. An Ideology que descreve o estado das negociações e o in-
ver ibid. também a descrição da frustração dos tação 4), p. 238ss, com uma representação de- em M. Buhbe e G. Gorzka (orgs.), Russland Russian Politics, 2011; M. Bennets, “Russlan- of Empire, 2008, especialmente p. 16ss e 202ss; teresse russo na resolução do conf lito.
russos diante do fato de que os norte-ameri- talhada da reação negativa do Ocidente. heute: Rezentralisierung des Staates unter Putin, ds ‘Heiliger Krieg’: Wie die russisch-ortho- a União Eurasiática está intimamente entre-
53.Ver a representação minuciosa em Laruelle,
canos falavam constantemente em parceria, 28.Sobre o desenvolvimento econômico da Fe- 2007, p. 293ss; Jin-Sook Ju, “Institutionelle doxe Kirche politische Deutungshoheit be- laçada com a concepção do “mundo russo”
Russian World (anotação 36).
mas sempre impunham seus interesses sem deração Russa entre 2000 e 2013, ver Stent, Reform und Demokratiediskurs in Russ- ansprucht”, em IPG de 14 de dezembro de (russkij mir), que determina a política externa;
2015. ver M. Laruelle, “The ‘Russian World’; 54.Ver a análise detalhada na anotação 39.
respeitar os desejos ou interesses russos. Limits of Partnership (anotação 4), p. 182ss. land”, em Russland-Analysen, n. 2011, de 3
de dezembro de 2010, p. 2ss; M. Mommsen, 43.Sobre o escândalo da apresentação da banda Russia’s Soft Power and Geopolitical Imagi- 55.S. Stent, Limits of Partnership (anotação 4),
17.A Rússia oficial entende que as três revolu- 29.Para uma análise minuciosa da política exter-
“Surkows ‘Souveräne Demokratie’ – Formel Pussy Riot e a sentença draconiana, ver o nú- nation”, Center of Global Interests, maio de 2015; p. 262.
ções foram def lagradas pelos Estados Unidos. na e dos diferentes grupos de interesse ativos
für einen russischen Sonderweg”, em Russ- mero dedicado exclusivamente a esse tema da disponível em www.globalinterests.org (pro-
É correto que dinheiro norte-americano e aqui e sua orientação, ver A. L. Clunan, The
land-Analysen, n. 114, de 20 de outubro de revista Nationalities Papers. The Journal of Na- grams/Russian World) (acessado em 25 de
dinheiro de G. Soros ajudaram a financiar Social Construction of Russia’s Resurgence Aspi-
2006, p. 2ss. tionalism and Ethnicity, v. 42, 2014, e especial- dezembro de 2016).
esses movimentos de protesto. É, porém, rations, Identity and Security Interests, 2009, p.
também correto que a corrupção e a fraude 75ss; ver também ibid., p. 145ss, sobre os in- 35.Assim também F. Hill e C. Gaddy, Mr. Putin: mente as contribuições de G. Sharafutdinova, 48 Laruelle, Russian Eurasianism (anotação 47),
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editorial
Boletim Conjuntura Brasil O desenvolvimento das relações internacionais
128
editorial 129
O desenvolvimento das relações internacionais

A Fundação João Mangabeira apresenta boletim periódico com


temas de relevância nacional para o desenvolvimento do país.
Leia, participe dos debates e dê sua contribuição ao Brasil.
Acesse a coleção pelo site ou envie o endereço
de sua instituição para receber o impresso.

boletimconjuntura rasil 2
OUTUBRO 2015 | N.2
B boletimconjuntura rasil 3
NOVEMBRO 2015 | N.3
B

A crise
do setor
elétrico
brasileiro

DESINDUSTRIALIZAÇÃO DESEMPREGO
PODE O BRASIL SOBREVIVER SEM UM ESPECTRO RONDA O BRASIL E APONTA
UM EXPRESSIVO SETOR INDUSTRIAL? PARA O AGRAVAMENTO DA CRISE SOCIAL

boletimconjuntura rasil 4
JUNHO 2016 | N.4
B
1916 - 2016
boletimconjuntura rasil 5
NOVEMBRO 2016 | N.5
B
Visite a linha do tempo e conheça a vida e a trajetória do líder socialista.

WWW.FJMANGABEIRA.ORG.BR/MIGUELARRAES100ANOS

S100ANOS

eira e o Partido
eria com o Insti-
am o centenário
da luta em prol
no Brasil e no
vê diversas ativi-
ue objetivam o
s e o debate do
eiro Arraes. Serão
seminários temá-
special nos even-
de 2016.

mento, mas cons-


m Pernambuco e
s expoentes da
putado estadual,
nambuco por três
ionamento e par-
o pelo golpe mili-
epois exilado por
terior, participou
ndependência de
Acesse as publicações pelo
uguesa. Conheci-
integrantes dos QR Code ou pelo site:
CONCENTRAÇÃO DE RENDA PREVIDÊNCIA SOCIAL
ha uma relação
ação, em particu-

www.fjmangabeira.com.br
a metropolitana.

QUASE NADA MUDOU NOS ÚLTIMOS ANOS


"Nunca me preocupei com rótulos. O rótulo de radical, ou o de conciliador, não tem nenhum O BRASIL PRECISA DE UMA ALTERNATIVA
sentido para mim, como não tinha sentido me chamarem de comunista no passado. O que
importa é a prática política; o que importa são os posicionamentos que se toma ao lado de
determinadas camadas sociais em defesa de teses que interessam à nação como um todo".

Miguel Arraes, 1983.

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sentido para mim, como não tinha sentido me chamarem de comunista no passado. O que
importa é a prática política; o que importa são os posicionamentos que se toma ao lado de
determinadas camadas sociais em defesa de teses que interessam à nação como um todo".

Miguel Arraes, 1983.

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