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Capa:
Erick Alves
Projeto gráfico:
Sem Tinta
Revisões:
PREFÁCIO
PRÓLOGO
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EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
SOBRE O AUTOR
A EDITORA
PREFÁCIO
Joguei umas dez mil palavras fora em um protótipo há quase dois anos,
onde um garoto é levado como aprendiz de uma guerreira da ordem de Van
Ercelle. Essa foi a primeira versão de Rathla como personagem. Já tinha seu
nome e sua ordem de mantos vermelhos desde o início, mas ainda me
pareciam desencaixados. Eu estava começando neste ofício de escrever, e fui
me perdendo nas projeções grandiosas de um longo livro.
Em meio ao povo, Anahid viu um braço. A pele meio azulada dizia tudo
que a garota precisava saber. O que quer que tenha matado aquela pessoa,
tinha usado magia raskiana.
Assim, não se falava sobre os raskianos na vila. Era mais seguro não os
mencionar e fingir que não existiam, tirando qualquer referência deles do
cotidiano dos pescadores. Era quase uma crença comum de que, se evitassem
falar sobre eles, seria como se não existissem.
Não pela morte ou pelo perigo de algum mal estar a solto na vila.
Sequer pensou que poderia ser ela, deitada ali, sem vida. Sua mente vagava
pelo assunto não falado na vila, pela realidade que fora negligenciada e
tratada como mito até aquele momento. Anahid temeu o azul dos raskianos.
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Esperou até que o silêncio voltasse à mata. Quando teve certeza que não
restava mais monstro algum, saiu da posição de ataque.
***
— Quatro feras, oito peças de prata — disse Rathla, colocando o saco
com partes dos animais sobre o balcão para provar seu serviço. — Como
combinado.
— É claro, senhora.
A mulher o encarou.
— Não, não. Guarde isso. Será um favor para nós tê-la aqui. — Ele
sorriu, deixando à vista um dente faltando no canto da boca. — Vou chamar
Leena, e assim que o quarto estiver pronto eu lhe aviso.
— ... Parece que foram duas, já. A última estava na praia, afogada. — O
homem deu mais um trago na cerveja quente e abaixou o tom. — A pele
estava azul como... você sabe.
A bebida além da conta fazia com que os rostos dos dois homens
ficassem ainda mais expressivos. Estava claro que o primeiro deles estava
realmente perturbado. Não só pelas crianças morrendo afogadas, mas a pele
azul indicava que havia um mal maior. Um mal que aldeão nenhum desejava
ver em suas terras. Não era tão fácil quanto lidar com pragas e feras. Não se
podia pagar um mercenário para matar um raskiano.
No último ano, este havia sido o hábito que a mercenária criara: viajava
de aldeia em aldeia, ouvido boatos e eliminando pragas. Quando terminava,
seguia para a próxima. Não havia algo maior, não havia um objetivo. Apenas
sobrevivia.
Atravessou o limiar das pedras com a areia e parou por um instante para
respirar. Sua mente, sobrecarregada de pensamentos, não permitiu que visse a
sombra que dançava pelas pedras, oscilando com o reflexo da água, se
aproximando.
— T-tem razão.
— Eu... Eu vou ficar bem. — disse ele, mais para si mesmo do que para
a voz em sua cabeça. — Vai dar certo, não vai?
Vai! Logo, não vai sentir medo.
***
Não havia mais ninguém ali. Até mesmo o último bêbado já havia
partido, trôpego, vila afora. Entretanto, ainda havia trabalho a fazer. Já havia
limpado as mesas, levantado as cadeiras, varrido o chão e lavado os canecos.
Aos poucos, as tarefas pareciam chegar ao fim, mas a garota torcia para que
isso não acontecesse.
Se seus trabalhos acabassem, ela teria que voltar para casa, para perto
da mãe. Anahid odiava sua mãe.
— Sabe, estou cada vez mais velho para isso, garota. — disse enfim,
quebrando o longo silêncio costumeiro do fim de expediente. — Não é um
trabalho pesado como passar os dias no mar, mas a idade faz com que tudo
pareça exigir o dobro de esforço.
— É claro que sei, garota. No fim de tudo, estou lhe ensinando bem. —
Ele lhe deu um sorriso cansado.
***
Preparava-se para levantar quando ouviu mais passos. Desta vez, eram
pesados e vinham do mesmo lugar que o menino saíra. Era um homem — ou
pelo menos parecia ser. Tinha um manto sobre o corpo e levava nas costas
um fardo de lenha grande. Um capuz tornava a visão de seu rosto uma tarefa
difícil. Estava atravessando a entrada da cidade, indo em direção à trilha que
levava para o morro do lado direito da vila. Lá, só havia a casa do carpinteiro.
E aquele não poderia ser ele. Ao que tinha ouvido falar, o homem estava
doente e mal se levantava da cama.
Não havia como sair dali de uma forma fácil. Então, enquanto
murmurava uma prece em pensamento, Anahid esperou o momento certo.
Madin andou pelo perímetro da entrada da cabana, tentando discernir
qualquer coisa entre a mata.
— Sim, senhora. As redes não têm pegado nada no último mês. Não
acho que vá encontrar muita coisa por aqui.
Ao virar-se para olhar, Rathla notou uma casa maior que as outras.
Seguia o mesmo padrão de madeira e maus cuidados e tinha uma porta dupla.
Na frente, uma pequena placa apagada.
— Vahan nunca a fecha. Pode chegar lá agora mesmo que o homem vai
te receber.
Os dois pescadores permaneceram observando-a enquanto a guerreira se
virava e se misturava com a névoa da manhã.
— Não me admira que seja tão burro, garoto. Era uma sectária de
Ercelle. Ela cortaria essa sua língua antes de você terminar de abrir a boca.
***
— Anahid?
— Acho que vou precisar passar uns dias aqui — disse ao hospedeiro,
que parou a meio caminho da cozinha. — Pode me reservar um quarto?
— A areia estava toda revirada, como se ele tivesse tentado lutar. Mas
ele estava molhado. Tinha água por todo lado, e todo mundo ficou falando
que ele tinha se afogado.
— E a pele? É verdade?
— Não.
Anahid desviou o olhar mais uma vez; era estranho falar sobre aquilo.
Geralmente, quando acontecia, Vahan simplesmente desviava do assunto e
passava o dia tentando ser mais gentil com a garota. Nunca tivera coragem de
perguntar. Aquela era a primeira vez que alguém perguntava de forma direta.
***
Ela não levantava o olhar para conversar com a guerreira, mas também
não prestava atenção no trabalho que suas mãos faziam. Parecia ser quase
instintivo.
— Não lhe falaram nada depois? As outras crianças que estavam com
ele?
Um menino que parecia mais velho cuidava das poucas plantas, tinha o
rosto sério e o olhar distraído. Provavelmente, pelo golpe de realidade que
recebeu, pensou Rathla.
— Qualquer coisa que saiba pode ajudar, Tyla. — Rathla pousou a mão
enluvada no ombro da mulher, tentando soar mais leve. — Um boato, uma
suspeita. Alguém que desgoste de você e de seu marido.
— As coisas ficam difíceis nesta época. É claro que nem todo mundo
gosta de mim e de Otien. Estamos devendo para metade da vila e não
conseguimos puxar uma rede cheia desde o ano passado. Mas matar uma
criança por uma dívida? Que Agelle leve minha alma se isso não for um
absurdo.
Rathla ficou em silêncio, esperando algo mais. Seu olhar correu pela
vila, não mais escondida pela neblina. Dali dava para enxergar a fonte e a
trilha que levava para um dos penhascos. Realmente, havia bem poucas casas
e a grande maioria estava trancada e semiabandonada. Estão todos no mar,
tentando sobreviver.
Rathla sabia que não conseguiria muita coisa ali. No fim das contas,
Tyla era só mais uma pobre coitada que tivera a família desmembrada.
— Por que acha que elas deixaram isso acontecer com meu menino? —
perguntou a mulher em lágrimas, fazendo com que Rathla se virasse. — Eu
costumava rezar para elas. Achava que as deusas protegeriam meu menino,
mas, no fim, o abandonaram. Deixaram-no nas mãos de um raskiano.
— Não acho que seja culpa delas, Tyla. A falta de intervenção divina
não tira a responsabilidade de quem matou seu filho. E, quem matou seu
filho, veio do mar. Mais um motivo para não crer nele.
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— Eu?
— Sim, você — disse ela, acenando com a mão para que um deles se
aproximasse.
— Lefter, não é?
Ele assentiu.
Ele assentiu. Fazer com que falasse era uma tarefa árdua. Geralmente,
uma moeda era capaz de fazer qualquer garoto nas ruas lhe contar o que ela
quisesse.
— Que todo mundo partiu para a torre de Agelle, procurar o que restou
da magia. Ele disse que seu irmão mora lá e que ainda não é difícil de
conseguir armas mágicas, espadas que queimam e martelos que derrubariam
esse penhasco.
— Mas, você não acha que, se os objetos mágicos fossem tão fáceis de
conseguir assim, teríamos mais deles por aí?
— Bem...
— Ela nem sempre foi minha, vê esses três símbolos gravados nela?
***
— Ainda não.
— É...
— Algo errado?
Mesmo afastada, Rathla conseguia sentir o desconforto diante da casa.
— Ah, é?
— É... Sabe... ainda preciso ajudar meu pai, também preciso buscar
Kerne na fonte... Tenho muita coisa pra fazer... — O garoto já se afastava,
andando de costas enquanto falava.
A guerreira observou-o sumir e então voltou para sua busca. Nos três
cômodos da casa, construídos com tábuas mais finas que seria normal, mal
havia rastros de que houveram moradores ali. Três caixotes de madeira —
provavelmente uma bagagem inviável para uma mudança às pressas — e um
pequeno saco de cinzas era tudo que a família deixara.
Ercelle era apenas a irmã distante da deusa. Uma irmã que, aos olhos
dos extremistas de Agelle, não caía na simpatia de todos.
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— Garoto! Venha cá.
— Ele está consertando o fole, disse que vai aproveitar para consertar
tudo de uma vez.
— Agora?
— É claro! Veja se o velho Bajes já voltou com algum peixe. Não tenho
muita coisa para dar de comer à sectária e seria bom agradá-la.
***
— Aconteceu algo?
— O tempo voa, criança — disse o homem, com sua risada chiada que
quase se transformou em uma tosse.
— Posso cuidar dela. Fecho a hospedaria e abro logo cedo. Ela nem vai
notar que não está aqui.
O quarto não era muito maior que uma despensa, ficava no segundo
andar e parecia ter sido reformado havia pouco tempo. Uma velha cama com
o colchão de palha estava em um canto, e um lampião era toda a iluminação
do cômodo. Ao menos tem uma boa vista, pensou Rathla, olhando pela janela.
Podia ver a praia dali e uma das pedrarias que faziam a divisão do vilarejo.
Mesmo não sendo tão tarde, eram poucas as casas que ainda tinham algum
sinal de vida.
A garota lhe estendeu uma bandeja com pão e uma sopa quente.
Suas mãos e três quartos dos seus antebraços estavam negros como
carvão. A pele havia criado uma espécie de casca, como o magma
solidificado que escorre sobre os lados de um vulcão. Suas veias haviam
adquirido uma cor alaranjada semelhante à energia mágica que emanava de
sua espada.
Levou umas duas horas de sono para que Rathla cedesse ao que lhe
incomodava e levantasse da cama. A hospedaria estava tomada em uma
escuridão e apenas a luz do luar criava um tapete luminoso no chão do
quarto. O incômodo que a guerreira sentia era como uma vibração em seus
ouvidos. Sabia que não era exatamente um som, mas agia como se fosse.
Rathla sabia que era a única hóspede ali. Assim, apenas o quarto de
Vahan estaria ocupado. A guerreira não precisou pensar duas vezes para
deduzir que era o mesmo em que a vibração era mais forte.
Bateu com os nós dos dedos em cada tábua próximo à janela. Uma delas
fez um barulho oco, diferente das outras. A guerreira arrastou o criado-mudo,
e, enfiando a ponta da espada no vão entre as tábuas, conseguiu levantar a
que se encontrava solta.
Do vão, tirou uma pequena caixa de madeira que cabia na palma de suas
duas mãos.
Deu dois passos à frente até que viu Rathla sentada em uma das mesas;
o ar inquisitivo e sério a deixava mais velha. A placidez habitual em sua face
havia sumido. Um pouco do tremor de Anahid se transformou em medo.
— Ele foi até Altelo. — Anahid foi até a lareira, começando a acendê-
la. — Ele foi buscar o carregamento de cerveja do mês.
— Tem certeza?
— Porque não se pode confiar em tudo que um homem como ele diz.
— No fim do dia.
— Ótimo.
***
Olhou para a trilha que descia para a vila, se sentindo meio perdida.
Olhou para o lado oposto, para o caminho que seguia entre as moitas encosta
acima. Conseguia ver o telhado de uma cabana ao fundo. Decidiu subir,
lembrando-se do que duas noites atrás Anahid relatara.
De frente à cabana, Rathla não teve dúvidas de que aquela era a casa de
Madin. Ao lado do lugar havia uma parte coberta com telhas de barro, onde
ferramentas de marcenaria estavam organizadas sobre um chão forrado de
serragem.
— Vamos, Madin, eu sei que está aí! — Bateu outras três vezes na
porta. — Não quer mesmo que eu derrube esta cabana, não é?
— Quero saber sobre as crianças da vila. Tenho certeza que ouviu falar.
— Rathla bateu mais três vezes na porta. — Aposto que já ouviu por aí que
gente como eu não tem muita paciência. Quer descobrir se é verdade
também?
— Não sei nada sobre criança nenhuma. Por mim, toda essa corja de
Narba pode afundar no mar.
— Já mandei avisar que estou doente, sequer saio daqui. Você não tem
nada para me acusar.
— Não? Que tal perguntarmos para o garoto o que você anda fazendo
de madrugada?
— Está tudo bem, Lefter? Ele te machucou? Fez algo com você?
— Já disse que não tenho nada a ver com isso, sectária. O garoto só está
me ajudando. Eu disse que estava doente.
Ela encarou-o com um olhar duro, o olhar de alguém que poderia cortar
qualquer um até obter a verdade. Madin estremeceu.
Ela o ignorou.
Significa que está dando certo! Significa que logo teremos poder
suficiente para nos encontrarmos, ficarmos livres enfim, murmurou a voz na
mente dele, tentando motivá-lo... influenciá-lo.
Não pode acreditar nessas pessoas, o que elas fizeram por você?
Quantas delas riram de você?, a voz se intensificou, cortando sua fala. Elas
merecem isso.
— Tem uma guerreira na cidade, ela me dá medo. Não quero ter que
encontrá-la de novo.
Não precisa ter medo, ela não fará nada com você. Ela NÃO PODE
fazer nada com você até que tenha certeza.
— É uma sectária...
Por isso mesmo. Ela nunca quebraria o juramento que fez. Vai ficar
tudo bem. Você não acredita em mim?
— Acredito... Mas...
— Sabe, tem bastante aqui — disse ela, sem olhar para Lefter. — Acho
que Kerne não vai dar conta de comer tudo.
Lefter assentiu com a cabeça, pegando o pão que Anahid lhe oferecia.
Enquanto ele comia, a menina o observou. Parecia mais magro do que o
normal, e talvez um pouco pálido.
— Os últimos dias não foram muito bons para nós, não é? — Sua mão
instintivamente foi ao rosto, tocando o machucado que sua mãe lhe causara.
Lefter assentiu.
***
Isso! Ele está quase lá. Vai ser fácil, você já sabe como é, disse a voz
dentro de sua cabeça.
O garoto, magro e alto, não era tão jovem assim. Mas para Bajes
qualquer um que não fosse tão corpulento e barbado como ele, era um garoto.
Ambos, diferente dos outros pescadores de Narba, não passavam mais de um
dia no mar. Bajes dizia que estava velho demais para isso e preferia dormir
em sua cama. Assim, mesmo não sendo tão lucrativo quanto a tradicional
vida no mar, ele mantinha o hábito de navegar apenas durante o dia.
— Garoto?
Bajes foi até o rapaz, ajudando-o a puxar a rede. O barco sofreu uma
pequena inclinação pelo peso dos dois homens e logo se estabilizou.
Bajes o encarou e depois voltou os olhos para Narba, não muito distante
no horizonte,
— Mais essa, agora.
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— Não é segredo para ninguém que qualquer objeto que tenha alguma
energia mágica emite uma espécie de vibração.
— Disse que não é segredo, não disse que era fácil. Exige um
treinamento e concentração que leva um bom tempo para se aprender a sentir
essa vibração. Muitos acham que é um som e tentam ouvir a magia. Só
porque descrevemos com um som, não quer dizer que o é de fato.
— Com certeza deve haver uma dezena deles. Antes da queda, as duas
torres emanavam magia pelo continente e as ilhas ao redor. Armazenar a
energia delas em objetos era um trabalho relativamente comum nas cidades e
vilas um pouco maiores que Narba. — A guerreira separou a espinha do
peixe em seu prato e se forçou a comer mais um pedaço. Odiava peixe. —
Amaul era uma vila famosa por isso.
No pouco tempo que passara com a menina, Rathla se via criando uma
espécie de afeição. De algum modo, a garota lembrava ela mesma em seus
treze ou quatorze anos. Não fisicamente, é claro. Mas na curiosidade.
— E por que alguém iria energizar algo que não fosse uma arma?
***
— Como...?
— Não é meu. Isso faz tempo. Não tenho nada a ver com as crianças. —
A mão do hospedeiro segurou o coto do outro braço.
— São. São meus, mas não tive nada a ver com as crianças. Eu era
pescador, isso era normal antes da queda.
— E por que ainda estão carregados? Por que ainda tem eles?
— Foi a única coisa que trouxemos daquela antiga vida. Foi o pai dela
quem me tomou a mão. Na noite em que fugimos, eu quase morri. Não fosse
pela magia dos colares, meu corpo não teria se curado a tempo.
— Eu não sei.
— Estão guardados desde que Narian morreu. Prometi a ela que nunca
usaria.
Esse veio do mar, é diferente dos outros, pensou. Quem está fazendo
isso está com medo.
***
— Minha noção de certo, cada vez mais, parece ter caído junto com a
torre...
12
Alguns diriam que era por ser uma formidável guerreira, outros, que era
apenas a falta de experiência. Para ela, só tivera um pouco de sorte nos
últimos anos. Fosse nas batalhas, ou em não estar no lugar errado na hora
errada. Mas, principalmente, de não estar em Tiáfron quando a torre caiu.
O som da porta se abrindo chamou sua atenção. Mas antes que pudesse
falar alguma coisa, Anahid entrou de costas no quarto, puxando um balde e
um esfregão. Levou um segundo para notar que a guerreira estava ali,
estacando no mesmo instante. Sua face corou, e ela agitou as mãos em
desculpas.
— Anahid.
— Não tem problema. — Rathla foi até a porta, tentando não parecer
intimidadora.
***
— Mas eles provaram que a magia existe. Isso não devia ter parado?
— Como assim?
— Pois é. Levou anos para que a magia parasse de ser taxada como algo
profano. E só depois das torres é que se tornaram algo tão cotidiano.
— Pode ser que não haja outra torre. Mas, um dia, a magia irá retornar.
Ter a companhia de Rathla só tornaria a volta para casa mais rápida. Era
o contrário do que Anahid queria.
— Pode deixar.
***
Rathla esperou quase meia hora até que houvesse uma movimentação
na cabana. Madin saiu e trancou a porta. Usava um capuz e trazia um
machado em uma das mãos. A vibração confusa ainda estava no lugar, e
parecia vir do homem. Era estranho.
A mata era aberta e as árvores nela eram altas e não muito longas. Havia
uma grande quantidade de eucaliptos espalhados dentre outras espécies de
plantas. O cheiro róscido pairava no ar frio. Ambos andaram quase um
quilometro até que o homem parasse e começasse a examinar as árvores.
Não faz sentido trocar o dia pela noite, pensava. Andar até tão longe
para buscar madeira. Por que dizer a todos que estava doente, se o homem
continuava a trabalhar?
Pode ser uma maldição para você, mas para mim é uma bênção,
pensou, tocando com a espada na superfície das pedras.
***
— Cada dia chega mais tarde, não é, menina inútil? — A voz arrastada
trazia consigo o desprezo.
Mesmo que não houvesse sido certeiro, fora apenas o tapa inicial. A
mulher tentaria de novo. Ela sempre tentava
***
Os pés descalços andaram sem medo pela casa; depois que o álcool
derrubava sua mãe, era impossível acordá-la.
Andou até o quarto de sua mãe com o ódio à flor da pele. Anahid nunca
teria coragem de levantar uma mão contra sua progenitora. Sabia que a
bebida a tornava uma mulher horrível, mas também tinha consciência de que
o álcool apenas era um intensificador do mal que já havia na mulher. Porém,
a dor física não era a única forma de se vingar.
Era difícil de explicar, mas se algum dia fosse contar a alguém, Anahid
diria que se assemelhava ao que sentimos ao bater com uma barra metálica
em uma superfície sólida; a vibração depois do som. Aquilo ressoava em sua
mente e se intensificava à medida que a garota se aproximava da cômoda no
quarto.
A manhã parecia ter sido trazida com o vento que vinha do mar. A brisa
entrava pelas portas da hospedaria, oscilando o fogo da lareira e trazendo
areia para dentro do lugar. O céu estava calmo. Calmo até demais, pensou o
hospedeiro. Parecia a calmaria que anunciava uma tempestade.
— Se importaria?
— Acho que faz pouco mais de dois meses que os prendemos. Foi
depois que encontraram o terceiro cão morto. Então resolvemos mantê-los
trancados.
— Lobos?
— Foi uma boa prendê-los. Sei que, se fosse em alguma das vilas do
norte, eles provavelmente teriam sacrificado os animais.
— Nos preocupamos com eles aqui. Não fosse por eles, a maioria não
conseguiria sair para o mar e deixar as casas vazias. Já perdi a conta de
quantas vezes escutei marinheiros reclamando de casas infestadas de ratos
quando chegaram do mar. — O homem se pôs de pé, grunhindo ao fazer o
movimento. — No fim, é bom que tenha acabado com os lobos. Já estava
esperando o dia que o cachorro daquele moleque apareceria trucidado na vila.
— Qual moleque?
— Lefter. Aquele que fica jogado pela cidade. Foi o único que não
prendeu o cachorro. Mas para falar a verdade, não me impressiona muito.
Desde que o pai morreu, nem sei como ele tem sobrevivido.
Conseguiu, garoto?, disse uma voz em sua mente. Era a voz de seu pai
— pelo menos uma parecida com a que o garoto se lembrava. Thabo tinha
morrido havia mais de um ano, deixando o único filho abandonado à própria
sorte pela vila.
Não quer que eu volte, filho? Achei que o mar havia me trazido de volta
por sentir minha falta..., disse a voz.
***
A cabana tinha uma lanterna acesa do lado de fora, com sua chama
oscilando, amarelada.
Rathla socou a porta três vezes. Porém, não esperou que o homem a
abrisse. Forçando com os ombros, a guerreira arrebentou o trinco, dando de
cara com o homem que atravessava o cômodo em direção à entrada da casa.
— Que garoto? Espere aí, eu já disse que não fiz nada. — O carpinteiro
tremia de medo.
— Que gruta?
O homem aos seus pés ofegava e gemia, tentando lidar com a dor.
Rathla havia conversado com o garoto e não sentira nada mágico nele.
Se tivesse algo com energia raskiana, estaria nessa gruta.
Merda, pensou. Então saiu correndo mais uma vez, deixando o homem
doente abandonado à sua própria sorte, assim como fizera com as irmãs de
sua ordem.
Passara pelas pedras até a gruta, vigiando cada passo. A maré fazia com
que as ondas se estendessem por entre as pedras até se chocarem com a
lateral do penhasco. Às vezes, jurava que conseguia ver a água se esticando
em direção aos seus pés, tentando alcançá-la. Como se fossem os próprios
dedos de Vä Rask, pensou.
— Só quis dizer que está tudo bem. Vamos lá, pode aparecer agora.
— É mentira.
Com o canto do olho, Rathla notou que não via mais a sombra.
A guerreira hesitou por um momento; ainda não aceitara que alguém tão
novo quanto Lefter pudesse fazer tanto mal. Raskianos são velhos de pele
azul, não crianças assustadas, pensou.
A sombra puxou Rathla para baixo, cortando seu salto e deixando que
Lefter conseguisse escapar para fora da gruta. A guerreira caiu entre as
pedras, sentindo as dores do impacto.
Kerne corria ofegante ao lado de Lefter, como se tudo aquilo fosse uma
espécie de brincadeira macabra.
— Você disse que ainda faltava um. Como vai voltar sem terminarmos,
pai?
— Lefter, saia daí! — gritou Rathla, saindo da trilha que levava até a
pedreira.
— Lefter, ande. Venha para cá. — Rathla tentava imaginar como algo
mágico havia chegado nas mãos de Lefter. — O que quer que ele tenha
falado, é mentira!
— Meu pai nunca mentiria para mim — sussurrou ele, sobre o barulho
crescente das ondas do mar.
A maré subia e a água batia nas rochas abaixo dos dois, como o som de
uma plateia aplaudindo, esperando que o garoto mostrasse seu truque...
Esperando que ele pulasse.
— Quem quer que você esteja escutando, não é seu pai, garoto!
Ela vai te deixar sozinho de novo, filho. Ela vai embora daqui e vai te
deixar de novo na gruta.
Venha, filho.
Rathla agiu pelo instinto, sentindo a energia correr pelo corpo e dando
forças às suas pernas. Se jogou na direção do garoto, estendendo um braço
para agarrá-lo e o outro para sua espada. O frasco de vidro com a pedra
soltou-se da mão de Lefter quando seu corpo se chocou com a guerreira.
Agora, Rathla caía para a morte, abraçada com o garoto, em direção ao mar,
que parecia esticar suas ondas para virem ao seu encontro, ansiosas.
***
Era Vahan.
Vahan sorriu e agradeceu, mas Rathla pôde ver a tristeza em seus olhos.
O homem caminhou até a porta, se virou e disse antes de sair:
— Eram dos meus pais... Minha mãe não usa desde que meu pai
morreu. Espero que te ajude.
— Lefter é um raskiano?
— Se ninguém souber que foi ele, provavelmente nada. Ele não vai ter
uma vida normal, é claro, mas também não vai ferir ninguém. Ele só precisa
de alguém que cuide dele.
A garota sentiu o peso do metal em suas mãos. Boa parte era um peso
psicológico. Nunca tivera tantas moedas de prata nas mãos.
— Eu não posso...
***
— Pode deixar. Tenho certeza que não terá tanta neblina ao norte.
— Será bom tirá-lo de perto do mar. As coisas vão melhorar daqui para
frente, pelo menos para vocês.
Se você, leitor, for como eu, provavelmente pulará esta parte. O livro já
acabou, eu já lhe contei minha história e espero que esteja aqui em uma
próxima vez. Porém, tenho que contar que não trabalhei sozinho para que
este livro estivesse em suas mãos.
Agradeço aos meus pais e irmãos, que acompanham esta minha jornada
desde o começo, e me ensinaram um punhado de lições que dariam um livro
por si só. A confiança que têm em mim é algo inspirador.
Com a intenção de projetar cada livro como uma peça gráfica completa,
a Sem Tinta tem seu foco na fantasia, ficção-científica e no horror. Caso
queira fazer parte do nosso time, entre em contato pelas nossas redes sociais
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