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ANOS

PAULUS

“Edição Especial -1 o Centenário dos Paulinos”


Ano 55 - 2014 - número 300

Edição Especial
comunicação e pastoral
05 Alberione: carisma da
comunicação para a Igreja
Antonio F. da Silva, ssp

13
O itinerário da pastoral
nos últimos cem anos: de
Alberione a Aparecida
Agenor Brighenti

25 O Comum Digital: as
dimensões conectivas
e o surgimento de um
novo comunitarismo
Massimo Di Felice

35 Comunidade de
comunidades: evangelização
e cultura do encontro
Impulsos para uma
agenda pastoral
Paulo Suess

45 Comunicação: eixo da
ação pastoral da Igreja
Joana T. Puntel, fsp

53 Conversão pastoral:
desafios de renovação
da Igreja
João Décio Passos
Criação PAULUS / A PAULUS se reserva o direito de alterar ou retirar o produto do catálogo sem prévio aviso. Imagens meramente ilustrativas.
O EVANGELHO
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UMA EXORTAÇÃO
DO PAPA FRANCISCO
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Caros leitores e leitoras,


Graça e paz! rio etc. A eficácia da ação pastoral da Igre-
ja nos tempos atuais passa pela aplicação
Nesta edição especial de Vida Pastoral, da racionalidade comunicativa em todos
apresentamos o conteúdo do Simpósio de os seus âmbitos, levando em consideração
Pastoral e Comunicação, realizado pelos que o público está imerso nas formas de
paulinos do Brasil e pela revista, em come- existência e de compreensão da realidade
moração ao primeiro centenário de funda- gerada pela comunicação social.
ção da congregação. A equipe que prepa- As intuições carismáticas de padre Al-
rou esse simpósio, com base nas motiva- berione e os institutos que ele fundou não
ções da fundação da Família Paulina, no nasceram de uma hora para outra. Costu-
carisma e na história das instituições fun- mamos dizer que os fundadores e as pesso-
dadas pelo bem-aventurado Tiago Albe- as visionárias enxergam além de seu tempo,
rione, optou por fazer um simpósio aberto mas isso não se dá por acaso, nem simples-
a toda a Igreja e não focado apenas em mente por capacidades especiais que outras
uma reflexão interna. O carisma da comu- pessoas não tenham. Dá-se por sensibilida-
nicação iniciado por Alberione, a funda- des aos sinais e necessidades dos tempos,
mentação e a espiritualidade que lhe dão como pelo estudo e reflexão, oração. Não é
sentido e sustento são um dom para toda a possível perceber as perspectivas futuras
Igreja, que, como sabemos, vem fazendo sem conhecer bem o presente. As ideias de
grande esforço para progredir no campo Alberione quanto à comunicação na Igreja
da comunicação. Também, o carisma e as surgiram aos poucos, a partir de seu estudo
fundações nasceram em ligação com a rea- das encíclicas dos papas que lhe foram con-
lidade pastoral de toda a Igreja e em de- temporâneos, da sociologia, da história e de
corrência de suas necessidades. Dessa for- sua experiência, na primeira fase de seu mi-
ma, refletir juntamente com representan- nistério presbiteral, como padre diocesano
tes dos diversos seguimentos e pastorais preocupado com as dificuldades e desafios
eclesiais é fecundo tanto para estes como pastorais de então. Em sua paróquia, como
para a Família Paulina. nas demais paróquias de sua diocese e da
A comunicação é transversal a toda a Europa, ele encontrou uma pastoral centra-
ação pastoral. Não diz respeito somente lizada na administração dos sacramentos e
aos grupos especificamente ligados à pas- no padre, o típico modelo da “pastoral de
toral da comunicação ou ao uso de alguns conservação”, remanescente da cristandade
meios e tecnologias. A comunicação é ele- medieval. Ele percebia que o número de
mento importante na liturgia; na cateque- pessoas que frequentavam os templos di-
se; nas mais diversas pastorais; nas homi- minuía. Percebia também a capacidade
lias e mensagens escritas ou transmitidas crescente dos meios de comunicação de
por outros meios; nos planos de pastoral; chegar às pessoas e formar opinião. Sentiu-
na forma de constituição de paróquias, se -se então inspirado a desenvolver suas fun-
centralizadas ou em redes de comunidade; dações para, em ligação com toda a pastoral
nas formas de decisão em todas as instân- da Igreja, evangelizar com os meios de co-
cias eclesiais; nas concepções de Deus, de municação e ajudar a desenvolver a atuação
revelação, de Igreja, de moral, de magisté- eclesial no campo da comunicação. Suas
inspirações ganharam impulso quando res do passado e saudosistas” e que era
seu bispo o fez responsável pelo jornal da necessário desenvolver a pastoral com as
diocese. De igual maneira, ainda antes de pessoas que vivem hoje e não com as que
fundar os paulinos, ele fundou em 1913 a viveram há séculos. As iniciativas de pa-
revista Vida Pastoral, a qual dirigiu por al- dre Alberione, somadas a tantas outras,
guns anos. desembocaram na renovação do Vaticano
No início de seu ministério presbiteral, II, do qual ele participou e contribuiu
ele também formou um grupo de reflexão com uma lista de sugestões, algumas das
com vários párocos de sua diocese para es- quais, passando pelo filtro e enriqueci-
tudar os problemas e desafios da pastoral, mento dos padres conciliares, chegaram
o que resultou em seu livro Anotações de até os documentos do Concílio. A promul-
Teologia Pastoral, o qual, posteriormente, gação do Decreto Inter Mirífica, do Vatica-
recomendava com frequência aos mem- no II, reconhecendo e conclamando à
bros da Família Paulina, para que firmas- evangelização com os meios de comunica-
sem sua identidade pastoral e os vínculos ção, foi uma grande alegria para ele e para
do apostolado de cada instituto com toda toda a Família Paulina. Também foi de
a ação pastoral eclesial. Nesse mesmo pe- muita alegria o momento solene de audi-
ríodo, também a partir da experiência, es- ência com o papa Paulo VI, em julho de
creveu o livro A mulher associada ao zelo 1969, na qual, dentre outras coisas, o papa
sacerdotal, no qual está a base para os insti- diz: “Ele realizou, ante et post litteram,
tutos femininos posteriormente fundados muitos postulados do Concílio Ecumênico
por ele. Alberione concebeu o apostolado no campo das comunicações sociais. De
da comunicação como um novo tipo de sa- bom grado brindamos um reconhecimen-
cerdócio, por isso incluiu em suas funda- to, elogio e encorajamento. [...] Devemos
ções um instituto com o ministério ordena- ao vosso fundador, aqui presente, ao caro e
do, mas esse sacerdócio foi pensado para venerado padre Alberione, a construção
ser exercido pelo conjunto da Família Pau- do vosso monumental Instituto”.
lina, assim como a atuação dos leigos na Tendo presente tudo isso e a necessi-
comunicação pastoral é uma forma de dade de reflexão e aprofundamento quan-
exercício do sacerdócio comum dos fiéis. to à relação entre pastoral e comunicação e
Naquela época, ainda havia muitas re- quanto à realidade e desafios do tempo
sistências da Igreja em relação aos meios atual e do futuro nesse campo, o simpósio
de comunicação, também ainda era signi- e este número de Vida Pastoral reuniram
ficativo o conflito eclesial com a moder- estudiosos em pastoral, comunicação, so-
nidade; “uma parte do clero ainda estava ciologia, teologia, missiologia e do carisma
parada nos antigos métodos de vida e paulino, buscando luzes e inspirações
pastoral; a outra, convencida da necessi- para a atuação neste tempo de constantes
dade de sistemas, organizações e iniciati- transformações e revoluções.
vas pastorais atualizadas” (Alberione, AD
49). O fundador, no entanto, dizia que “o Pe. Jakson Alencar, ssp
mundo caminha, a despeito dos laudato- Editor
Revista bimestral para sacerdotes e agentes de pastoral
Ano 55 – número 300
Edição especial – Centenário dos Paulinos e da Família Paulina – 2014

Editora PIA SOCIEDADE DE SÃO PAULO Revisão Tiago J. Risi Leme


Diretor Pe. Claudiano Avelino dos Santos Assinaturas assinaturas@paulus.com.br
Editor Pe. Jakson F. de Alencar – MTB MG08279JP (11) 3789-4000 • FAX: 3789-4011
Conselho editorial Pe. Jakson F. de Alencar, Pe. Zulmiro Caon, Pe. Rua Francisco Cruz, 229
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Pe. Paulo Bazaglia, Pe. Darci Marin Redação © PAULUS – São Paulo (Brasil) • ISSN 0507-7184
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ano 55

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3
Vida Pastoral • ano 55 • nº- 300

4
Alberione: carisma da
comunicação para a Igreja
Antonio F. da Silva, ssp*

No início do século XX, na Itália, leigos católicos aspiravam a uma renovação


evangélica, para que a Igreja voltasse a ser ação e vida, segundo o Espírito de
Cristo. O movimento futurista, por sua vez, intuía as grandes transformações
do mundo, que as invenções modernas iriam causar, consagrando como nova
beleza a velocidade. Enquanto isso, o jovem Tiago Alberione se preparava para
um sacerdócio diferente, por meio do estudo da reflexão e da experiência
pastoral. Queria promover o exercício de uma pastoral atualizada, feita por
homens e mulheres, capazes de pôr as invenções modernas a serviço do
Evangelho. Anos mais tarde, quando as instituições da Família Paulina já
estavam consolidadas, Paulo VI reconheceu: “O nosso padre Tiago Alberione
deu à Igreja novos instrumentos para se comunicar, novos meios para dar vigor
e vastidão ao seu apostolado, nova capacidade e nova consciência do valor e da
nº- 300

possibilidade da sua missão no mundo moderno e com meios modernos”.



ano 55

* Padre paulino; fez mestrado em Teologia, com especialização em Espiritualidade, na Universidade Gregoriana (Roma);
pertenceu ao Centro de Espiritualidade da Família Paulina, em Ariccia e Roma, onde por três decênios se dedicou ao
estudo dos escritos e da preparação da obra completa do bem-aventurado Tiago Alberione. Por vários anos deu curso

Vida Pastoral

sobre o pensamento, a pessoa e o carisma do padre Alberione, no Curso de Formação sobre o Carisma da Família
Paulina, em Roma. Foi postulador geral da Família Paulina. E-mail: antfrasilva@gmail.com.

5
A 1.2. O postulado da atualidade
vida do bem-aventurado Tiago Albe-
rione transcorreu entre 1884 e 1971. pastoral
Teve como terra natal a região do Pie-
Em seus memoriais, Alberione descreve
monte, na Itália, e como raiz eclesial a diocese
como se encontrou em meio ao fogo cruzado
de Alba. Na paróquia de São Martinho, em
de duas correntes opostas do clero: “Uma
Cherasco, e nos seminários de Bra e Alba, re-
parte ainda parada nos antigos métodos de
cebeu a típica formação eclesiástica da época,
vida e pastoral; a outra, convencida da neces-
feita de assimilação dos valores
sidade de sistemas, organiza-
da tradição e, ao mesmo tempo,
não isenta de fechamento às ten-
“Tiago Alberione ções e iniciativas pastorais
se formou e iniciou atualizadas” (AD 49).
3
dências da atualidade.
Ao término da formação,
sua obra em meio Tiago Alberione se sente cha-
1. Postulados carismáticos ao conflito entre a mado a realizar o sacerdócio
de padre Alberione ministerial, usando os meios
Igreja e a sociedade mais aptos, oferecidos pela
Ao concluir a formação se-
minarística e ser ordenado sa- moderna.” modernidade, para responder
às necessidades pastorais da
cerdote, em 1907,1 Tiago Albe-
atualidade.
rione surpreende pela abertura ao tempo
presente, polarizada em algumas escolhas
que constituem verdadeiros postulados caris- 1.3. O postulado paulino
máticos de sua missão.
Leão XIII, por ocasião da passagem entre
o século XIX e o século XX, publicou a Encí-
1.1. O postulado da modernidade clica sobre Jesus Cristo Redentor, conhecida
pelas palavras iniciais como Tametsi futura.4
No memorial do itinerário da fundação
Alberione declara ter assumido esse docu-
da Pia Sociedade de São Paulo, de 1914 até
mento como herança sagrada.
1949, ano da aprovação pontifícia definitiva,
O papa inicia a encíclica analisando a si-
padre Tiago Alberione podia afirmar ponde-
tuação no final de século XIX à luz do pri-
radamente: “O Instituto [...] segue os tem-
meiro capítulo da Carta de São Paulo aos Ro-
pos, inspira-se em uma sã modernidade”.2
manos. Propõe como tarefa para a Igreja do
Essa afirmação teria sido problemática se
século XX a missão de “reunir todas as coisas
enunciada nos primeiros tempos da funda-
em Cristo Caminho, Verdade e Vida” (cf. Ef
ção. De fato, Tiago Alberione se formou e ini-
1,10; Jo 14,6).
ciou sua obra em meio ao conflito entre a
Na noite de 31 de dezembro de 1900, du-
Igreja e a sociedade moderna.
rante a solene adoração eucarística na catedral
Não se conhece o movente pelo qual o
de Alba, foi lida também a Tametsi futura. O
progresso das ciências e as possibilidades
jovem Alberione sentiu dirigidas a si as pala-
oferecidas pelas novas invenções encontra-
nº- 300

vras de Jesus no Evangelho: “Venham a mim,


ram no jovem Alberione uma sintonia inata.

ano 55

1 AA.VV., Conoscere don Alberione (1884-1907). 3 Cf. T. ALBERIONE, Abundantes divitiae gratiae suae,
Strumenti per una biografia, Roma, Centro di Spiritualità História carismática da Família Paulina, Paulus, 2000
Paolina, 1994, p. 321. (=AD).

Vida Pastoral

2 A. F. DA SILVA, Ser São Paulo vivente hoje, pro 4 R. ESPOSITO, L’Enciclica Tametsi futura e la notte
manuscripto, São Paulo, p. 71. eucaristica del secolo, San Paolo, 2000.

6
todos vocês que andam cansados e curvados cidades;6 e Krieg, Teologia Pastoral, 4 volumes,
pelo peso do fardo, e eu lhes darei descanso” que leu e releu durante dois anos”.7
(Mt 11,28). Sentiu também que Deus estaria Fundamental para Alberione, a obra de
chamando muitos outros para trabalhar com Swoboda veio ao encontro desse postulado
ele na missão de evangelizar, usando as mo- da atualidade pastoral. Trata-se, de fato, não
dernas invenções da comunicação. apenas de esplêndido exemplo de aplicação
É interessante notar como o estudo e a da Sociologia à Pastoral, mas também de um
meditação levaram Alberione a entrever que a estudo de Teologia Pastoral animado por
melhor interpretação da Tametsi futura apre- grande competência e zelo apostólico.
senta Cristo através da personalidade e das As obras de Cornélio Krieg tiveram como
cartas de São Paulo. Este mostra Jesus “como referência o conceito de enciclopédia,8 caro a
doutor, hóstia e sacerdote; apresenta-nos o padre Alberione e ao cônego Francisco Chie-
Cristo total, como ele mesmo já se definira: sa. Querem apresentar toda a pastoral unifi-
Caminho, Verdade e Vida” (cf. AD 159-160). cada segundo as três funções salvíficas de
Cristo, consideradas à luz de Cristo Cami-
nho, Verdade e Vida.9
1.4. O postulado da ação
O ensinamento de Krieg marcou profun-
pastoral da mulher
damente a personalidade e toda a obra de Al-
Sensível às necessidades do momento, Al- berione, até mesmo em relação ao projeto da
berione orientou-se decididamente a valorizar Família Paulina.10
a importância da mulher na ação pastoral: “O
nosso é o século XX; nele, nos toca viver e agir.
3. A Família Paulina11 – homens e
[...] Sejamos de nosso tempo, e façamos com
mulheres para a comunicação pastoral12
que a mulher seja de nosso tempo”.5

6 E. SWOBODA, A cura de almas nas grandes cidades,


2. Alberione e dois grandes Estudo de Teologia Pastoral, Roma: Livraria Pontifícia de F.
mestres de pastoral Pustet, 1912, p. 390.
7 C. KRIEG, Ciência Pastoral, Teologia Pastoral em quatro
Alberione escreveu que, naquela noite de livros. Versão autorizada a partir da 1ª edição alemã por
adoração eucarística, “sentiu-se profunda- Antônio Boni. Livro I. Cura especial de almas, Turim: Cav.
Pedro Marietti Editor, 1913, p. 652; Livro II. Catequética,
mente obrigado a preparar-se para fazer algo ou ciência do catecumenato eclesiástico, idem, 1915, p.
pelo Senhor e pelos homens do novo século 586; Livro III. Homilética, ou ciência da evangelização da
com os quais viveria” (AD 15). Palavra de Deus (livro póstumo), idem, 1920, p. 514.
Como se nota, somente três volumes estiveram à
Foi providencial, para o longo trabalho disposição de padre Alberione.
de preparação de Alberione, começado em 8 C. KRIEG, Enciclopédia científica e metodologia das
1900, encontrar um válido instrumento de ciências teológicas, Roma: Livraria Ecl. Editora Cav. Ernesto
Coletti, 1913, p. 392.
síntese na obra de dois mestres de pastoral:
9 C. KRIEG, Enciclopédia científica..., p. 326–327.
“Quanto ao caráter pastoral no apostolado 10 Cf. A. F. DA SILVA, “Cristo Caminho, Verdade e Vida,
paulino, tomou muito de dois grandes mes- centro da vida, da obra e do pensamento de Padre Tiago
nº- 300

tres: Swoboda, Cura de almas nas grandes Alberione”, em AA.VV., A herança cristocêntrica de padre
Alberione, Cinisello Balsamo (Milão): San Paolo, 1989, p.
250.

ano 55

5 T. ALBERIONE, A mulher associada ao zelo sacerdotal. 11 AA.VV, Dare al mondo Gesù Cristo Via e Verità e Vita,
Para o clero e para a mulher, Paulus, 2011, p. 249. A sigla Progetto unitario di Famiglia Paolina, Roma, 19 de março
oficial do livro é DA, em virtude do título italiano: La donna de 2001, p. 232.

Vida Pastoral

associata allo zelo sacerdotale. Per il clero e per la donna, 12 AA.VV., Donne e uomini oggi al servizio del vangelo,
Alba, Scuola Tipografica “Piccolo Operaio”, 1915, p. 342. Roma: Edizioni Centro Spiritualità Paolina, 1993, p. 358.

7
Conhecido como “senhor teólogo”, Albe- tulos da segunda parte: “Sobre a cura pasto-
rione, além do ministério de diretor espiritu- ral e seus meios gerais”. Alberione serve-se da
al do Seminário de Alba, assume o ensino de definição dada por Swoboda, que identifica a
Teologia Pastoral, que lhe dá a ocasião de pu- ação pastoral com o mesmo ministério de Je-
blicar duas obras programáticas, que contêm sus Cristo: “O que é. – É a ação de Jesus Cris-
os frutos de sua preparação para as futuras to e da sua Igreja, exercida pelo sacerdócio
fundações. para a salvação das almas” (p. 81).
Posto em evidência o “que” da ação pasto-
ral, identificando-a com ação de Cristo, e
3.1. Anotações de Teologia Pastoral
apontados os primeiros princí-
A edição de 1912 de Ano- pios que dela decorrem, padre
tações de Teologia Pastoral (=
“O mundo caminha, Alberione dá as indicações para
ATP) foi publicada principal- a despeito dos que a ação da Igreja, através da
mente como apostila para as comunidade sacerdotal, possa
saudosistas.”
aulas de pastoral. Depois de atualizar o tríplice ministério de
ser atentamente melhorada, Cristo. Para o presente trabalho,
veio à luz pelo editor pontifício Pietro Ma- merece atenção especial a exortação sobre a
rietti, em 1915.13 importância de dar endereço moderno às
Trata-se de manual prático para ajudar os obras:
jovens sacerdotes a assumir o trabalho pasto-
O mundo caminha, a despeito dos
ral nas paróquias, indicando outros autores
laudatores temporis anteacti [saudosistas]
para uma visão mais teórica.
[...] e o sacerdote que assume uma posição
O livro contém três partes, articuladas
contrária a essas boas novidades perderia
como fundamento, aplicação e atuação.
a estima e o afeto do povo, sobretudo do
Na primeira parte, “Os fundamentos do
grupo culto. [...] Nossa obrigação é con-
zelo”, padre Alberione põe como base da
duzir as almas ao paraíso, não aquelas que
ação pastoral a formação da personalidade do
viveram há dez séculos, mas aquelas que
pastor ou apóstolo, que deve ter como pro-
vivem hoje. É necessário que o mundo e
grama de vida a tríplice referência: Eu – Deus
os homens sejam assumidos como são
– Povo (p. 1).
hoje, para fazer o bem hoje (p. 91).
A este tríplice fundamento corresponde
uma tríplice referência, ou seja, ciência – san- Nos nove capítulos que compõem a ter-
tidade – apostolado: “O sacerdote, portanto, ceira parte de ATP, “Sobre algumas particu-
não é simples sábio; não é também um sim- lares próprias do zelo sacerdotal”, padre
ples santo; mas é um sábio-santo, que se ser- Alberione trata dos sacramentos da confis-
ve da ciência e da santidade para se tornar são e da comunhão, da liturgia, da prega-
apóstolo, isto é, para salvar as almas” (p. 2). ção, do catecismo, das devoções, da Ação
Colocado o fundamento do zelo na pri- Católica e suas obras, das vocações religio-
meira parte de ATP, padre Alberione passa a sas, da organização das festas e da constru-
nº- 300

aplicar as aquisições aí obtidas para descre- ção das Igrejas.


ver a ação pastoral nos quatro preciosos capí- Pode-se entrever o caráter programático

ano 55

do livro em relação às futuras fundações de


13 G. Alberione, Appunti di Teologia Pastorale, Pratica del padre Alberione, pelo fato de dedicar um
ministero sacerdotale per il giovane clero, Turim: P.
dos últimos capítulos às vocações religiosas

Marietti, 1915, p. I-X e 1-318 (= ATP). Cf. T. Alberione,


Vida Pastoral

Anotações de Teologia Pastoral, São Paulo: Paulus, 2012. (p. 354-358).

8
3.2. A mulher associada ao zelo lhar com a imprensa e dar início às suas fun-
sacerdotal dações. Em 8 de setembro de 1913, de fato,
Dom Francisco Re o convidou para assumir a
O tema do zelo percorre como fio con-
direção do jornal Gazzetta d’Alba. Imediata-
dutor todo o livro ATP. Mas padre Alberione
mente, ainda em 1913, Alberione deu início
achou importante reservar para outro livro a
também à revista Vida Pastoral.
aplicação do zelo sacerdotal à necessidade
Em 26 de julho de 1914, comprou as
de abrir espaço à mulher na ação pastoral.
máquinas tipográficas e alugou alguns locais
Por esse motivo, atesta que, logo depois da
no centro de Alba. Estando convencido, po-
ordenação sacerdotal, começou a redação
rém, de que as obras de Deus são realizadas
do livro A mulher associada ao zelo sacerdotal
por pessoas de Deus, em 20 de agosto reuniu
(= DA), publicado em 1915.
os primeiros jovens, embrião da futura Pia
As três partes do livro estão em perfeito
Sociedade de São Paulo.
paralelo com as de ATP. Põe os fundamen-
Em 15 de junho, padre Alberione deu
tos na primeira parte: “A mulher pode e
início à Oficina de costura, para as Alunas
deve tornar-se cooperadora do zelo sacer-
da Escola Tipográfica, primeiro núcleo da
dotal”. A segunda parte: “Em que obras a
futura Pia Sociedade Filhas de São Paulo.
mulher, nos dias de hoje, pode colaborar
Em 1917, elas abriram a primeira livraria.
com o zelo sacerdotal”. Expõe o perfil da
No fim de 1918, um pequeno grupo dessas
atuação da mulher na ação pastoral. Mere-
jovens entra no vivo do carisma da comuni-
cem destaque aqui as encorajantes considera-
cação, sendo enviadas a Susa, onde prodi-
ções de Alberione sobre o que a mulher pode
giosamente fazem renascer o jornal diocesa-
realizar na ação pastoral por meio da impren-
no La Valsusa.
sa. Terceira parte: “Como pode o sacerdote
Os ramos masculino e feminino das pri-
formar e dirigir a mulher em sua missão”. É
meiras fundações de padre Alberione se de-
um vade-mécum que ajuda os sacerdotes a
senvolveram rapidamente em número de
pôr em prática a atuação da mulher na ação
pessoas e de publicações. Vivia-se um clima
pastoral. É ao mesmo tempo um forte convi-
de entusiasmo apostólico. Todos estavam
te: “Formemo-nos para o conveniente cuida-
convencidos de que responder com publica-
do pastoral da mulher, com estudo e com
ções à sede popular de ler era tornar-se “São
ardente piedade” (p. 223).
Paulo redivivo”, pois diziam: “Se ele vivesse
Orientado a abrir espaço para a ação pas-
hoje, seria jornalista”.
toral da mulher, como fez em ATP, Alberione
Segundo Krieg, na pessoa do sacerdote há
termina o livro escrevendo sobre as religio-
três vocações especiais: uma para anunciar,
sas. Afirma: “Com razão, foram chamadas ir-
uma para celebrar, uma para catequizar. Padre
mãs do zelo sacerdotal” (p. 331).
Alberione quis que essa tríplice função sacerdo-
tal fosse assumida como pastoral de conjunto
3.3. “Escritores, técnicos e por sua família religiosa, atribuindo cada “voca-
propagandistas, porém religiosos ção especial” ou função salvífica, não a uma só
nº- 300

e religiosas” (AD 24) pessoa, mas a uma inteira congregação. Foi as-
sim que sentiu a exigência de fundar, em 1924,

Depois de longa preparação e amadureci-


ano 55

as Pias Discípulas do Divino Mestre, e, em


mento, padre Tiago Alberione recebeu um
1938, as Irmãs de Jesus Bom Pastor ou Pastori-
convite do bispo como sinal de Deus que in-

nhas. Atribuiu a função do Anúncio, expressa


Vida Pastoral

dicava o tempo de iniciar a missão de traba-


no título de Cristo Verdade ou Mestre, princi-

9
palmente à Sociedade de São Paulo e às Filhas dar senão a juventude”.15
de São Paulo. A função da Liturgia, expressa no Os jovens e as jovens se deixavam con-
título de Cristo Vida ou Sacerdote, especial- quistar por esse ideal, e numerosos entra-
mente às Pias Discípulas. A função da Cateque- vam a fazer parte da Família Paulina. Padre
se, expressa no título de Cristo Caminho ou Alberione sentiu a necessidade de lhes ofe-
Pastor, especialmente às Irmãs recer um vade-mécum forma-
Pastorinhas (Cf. AD 33-34). “Estas máquinas tivo. O livro Apostolado da im-
Mais tarde, padre Alberio- maravilhosas se prensa16 (1933) traça a ratio
ne fundou o Instituto das Ir- formationis do apostolado pau-
mãs Apostolinas, quatro insti-
tornam queridas e
lino. Oferece um rico quadro
tutos de vida secular consagra- veneráveis, como é de referência teológico e espi-
da, e deixou encaminhada a
sagrado e venerável o ritual, que serve para desen-
fundação de um instituto para volver uma ação apostólica
a família. Essas fundações, jun- púlpito para o orador com os meios modernos.17 O
tamente com a associação dos sagrado.” texto foi reelaborado e publi-
cooperadores paulinos, consti- cado em 1944, com o título O
tuem a Família Paulina, cha- apostolado da edição18.
mada a viver e dar Jesus Cristo, Caminho, Ver-
Como síntese do espírito pastoral desses
dade e Vida.
dois manuais, podemos considerar parte do
texto publicado no boletim interno sobre o
3.4. Alberione deu à Igreja novos apostolado da imprensa:
meios para se comunicar
O apostolado-imprensa é, como o
Desde os inícios da fundação, reinava na apostolado-palavra, a pregação, explicação
Família Paulina verdadeiro entusiasmo pe- e aplicação da divina verdade aos povos.
las invenções da modernidade. Exaltava-se a
imprensa como “rei dos tempos”.14 As má- Este pede, portanto: a mesma prepa-
quinas tipográficas postas a serviço da evan- ração, as mesmas disposições, os mesmos
gelização inspiravam aos paulinos a compo- meios. Dirigir um periódico é bem dife-
sição de um novo cântico das criaturas: “Es- rente de fazer um artigo ou livro, ou cola-
tas máquinas maravilhosas se tornam queri- borar numa revista.
das e veneráveis, como é sagrado e venerá-
vel o púlpito para o orador sagrado. Como O segredo da direção não é apenas di-
são belas as máquinas destinadas aos evan- rigir: requer mente, alma e coração sacer-
gelizadores do bem!”. dotal que decididamente caminha para o
Alberione proclamava a urgência de ser- céu e indica o caminho, inovando e atrain-
vir-se dos meios mais céleres para uma nova
evangelização: “O mundo precisa de uma 15 Cf. Unione Cooperatori Buona Stampa, anno IX, n. 8,
20 de Agosto de 1926, p. 3.
nova, longa e profunda evangelização. [...] O
nº- 300

16 G. Alberione, Apostolato stampa, Alba: Pia Società San


meio adequado não pode fornecê-lo senão a Paolo, 1933, p. 170.
imprensa, e apóstolos zelosos não os podem 17 R. Esposito, La teologia della pubblicistica secondo

ano 55

l’insegnamento di G. Alberione, Roma: Edizioni Paoline,


1972, p. 224.
18 G. Alberione, L’apostolato dell’edizione, Manuale

direttivo di formazione e di apostolato, Alba: Tip. Pia


Vida Pastoral

14 G. Borgna, Il Re dei tempi. Mano alla Stampa, Asti:


Premiata Scuola Tipografica Michelerio, 1914. Società delle Figlie di San Paolo, 1944, p. 487.

10
do consigo uma multidão de almas. A divulgação foi duramente comprometida
mente bem iluminada brilha como lâmpa- pela guerra.
da colocada no alto para iluminar a quan- Não obstante as grandes dificuldades do
tos se encontram na casa do Pai. Um cora- após-guerra, padre Alberione deu grande im-
ção cheio de graça entra nos corações pulso ao trabalho pastoral através do cinema.
como fermento evangélico colocado no Em agosto de 1950, começou a filmagem de
meio da massa. Uma vida ardente toda Mater Dei, que foi o primeiro filme totalmen-
para Deus realiza o mandamento do Mes- te a cores produzido na Itália, totalmente res-
tre, e resplandece diante dos homens que taurado pelo Centro Experimental de Cine-
veem as boas obras e glorificam o Pai ce- matografia italiano20. Foram produzidos do-
leste. [...] Dirigir verdadeiramente à ma- cumentários catequéticos e filmes bíblicos
neira de Jesus Cristo, inteiramente, tor- como O Filho do Homem, A Bíblia, Os Patriar-
nando-nos caminho, verdade e vida!19 cas, Jacó: o homem que lutou com Deus, Os
grandes guias, Saul e Davi, Gedeão e Sansão.
Respondendo ao chamado de Deus, pa-
Para oferecer diversão sadia, especial-
dre Alberione assim codificou, nas Constitui-
mente na Itália, a São Paulo Filmes comprou
ções, a missão da Pia Sociedade de São Paulo:
e pôs em circulação 400 filmes, distribuídos
Os membros trabalhem com todas as através de 35 agências e 45 subagências pró-
forças para a glória de Deus e a salvação prias, que serviam a cerca de 3.000 salas ci-
das almas... especialmente com o aposto- nematográficas.
lado das edições, isto é, com a imprensa, o A partir de 1958, padre Alberione quis
cinema e o rádio, e com os outros meios desenvolver novo setor de apostolado por
mais frutuosos e mais rápidos, quais são as meio da produção de discos e audiovisuais.
invenções que o progresso humano forne- Ao terminar a primeira visita às comu-
ce e que as necessidades e condições dos nidades paulinas do Brasil, em 1946, padre
tempos requerem. Cuidem, portanto, os Alberione deixou escritas algumas orienta-
superiores que não se deixe para a ruína ções. Numa delas, destaca a urgência de
dos homens coisa nenhuma de tudo aqui- iniciar o apostolado de um jornal diário e
lo que, por disposição de Deus, o progres- do rádio: “A iniciativa do jornal quotidiano
so inventou no campo das ciências huma- ou do rádio (ou de ambos) é considerada
nas e da técnica industrial (Art. n. 2). como tempestiva e da máxima importância
para o Brasil”.
Cuidado especial de Alberione foi a pu-
Na realidade, tal apostolado ou ação pasto-
blicação de Bíblias, livros de catequese, litur-
ral por meio do rádio só teve início anos de-
gia e patrística. Foram 23 as revistas por ele
pois, graças a seu apoio também econômico:
fundadas, algumas com edições em várias
Rádio Cultura da Bahia (1966) e Rádio Bahia
partes do mundo.
(1967), na Bahia; Rádio América, na cidade de
Em 1936, padre Alberione se orienta
São Paulo (1967); Rádio Vera Cruz, no Rio de
para dar início ao apostolado do cinema. Em
Janeiro (1967); Rádio 9 de Julho, em São Paulo
nº- 300

4 de dezembro de 1938, o filme Abuna Mes-


(1968); Rádio Olinda, em Pernambuco (1971);
sias, filmado na Etiópia pela São Paulo Fil-
Rádio Carioca, no Rio de Janeiro (1981). Em

mes, obtém o prêmio Leão de Ouro, na Ex-


ano 55

2000, teve início a Rede PAULUS SAT, com 51


posição Cinematográfica de Veneza, mas sua
20 AA.VV., Mater Dei, storia e rinascita del primo film

Vida Pastoral

italiano a colori, Roma: Fondazione Centro Sperimentale


19 San Paolo, n. 6, 15 dicembre 1934. di Cinematografia, 2005, p. 176.

11
emissoras afiliadas em todo o Brasil. Momento solene para toda a Família Pau-
Como o apóstolo Paulo, Alberione queria lina foi o reconhecimento eclesial da missão
chegar aos confins da Terra como comunicador do padre Alberione, na audiência do dia 28
do Evangelho. E de fato, por várias vezes, visi- de junho de 1969, quando Paulo VI disse:
tou as comunidades paulinas no mundo inteiro.
Nos inícios do último decênio de sua vida, A Pia Sociedade de São Paulo, com as
padre Alberione presenciou e seguiu atenta- diversas ramificações e com o volume da
mente os trabalhos do Concílio Vaticano II.21 sua produção e habilidade da sua irradia-
Suas propostas à Comissão pré-conciliar fo- ção, tornou-se tão grande e vital que cons-
ram vinte e quatro. Entre elas: pedido de de- titui um fato notável na vida da Igreja neste
claração da mediação universal século. Ela realizou, ante et post
de Maria; orientação pastoral “Como o apóstolo litteram, muitos postulados do
nos estudos teológicos; renova- Paulo, Alberione Concílio Ecumênico no campo
ção litúrgica e catequese; forma- das comunicações sociais. De
ção do clero secular e religioso;
queria chegar aos bom grado brindamos um reco-
instituição de um dicastério para confins da Terra como nhecimento, elogio e encoraja-
o uso dos meios de comunica- mento. [...] Devemos ao vosso
comunicador do
ção na evangelização. fundador, aqui presente, ao caro
Algumas de suas sugestões, Evangelho.” e venerado padre Alberione, a
passando através do filtro e en- construção do vosso monumen-
riquecimento dos padres conciliares, chega- tal instituto. Em nome de Cristo, nós lhe
ram até os documentos conciliares. Grande agradecemos e o abençoamos. Ei-lo: hu-
consolação foi para ele o Decreto Inter Mirí-
milde, silencioso, incansável, sempre vigi-
fica, de 4 de dezembro de 1966. Depois da
lante, recolhido nos seus pensamentos, que
promulgação, ele publicou na edição italia-
correm da oração à obra (segundo a fórmu-
na de Vida Pastoral um artigo intitulado: “A
la tradicional: ora et labora), sempre dedi-
máxima aprovação do apostolado paulino”.
cado a perscrutar os “sinais dos tempos”,
Aí escreve: “O apostolado das edições, o
nosso apostolado, foi aprovado, louvado e isto é, as formas mais geniais para se chegar
estabelecido como dever para toda a Igreja: às almas, o nosso padre Tiago Alberione
imprensa, cinema, rádio, televisão e deu à Igreja novos instrumentos para se co-
similares”. 22 municar, novos meios para dar vigor e vas-
tidão ao seu apostolado, nova capacidade e
nova consciência sobre o valor e a possibi-
21 A. Damino, Don Alberione al Concilio Vaticano II,
Proposte, Interventi e “Appunti”, Roma, 1994, p. 240. lidade da sua missão no mundo moderno e
22 Cf. G. Alberione, Vita Pastorale, janeiro de 1964, p. 1ss. com meios modernos.

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nº- 300

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ano 55

vidapastoral.com.br

Vida Pastoral

12
O itinerário da pastoral
nos últimos cem anos:
de Alberione a Aparecida
Agenor Brighenti*

Nos últimos cem anos, a pastoral percorreu um longo itinerário. No período


pré-conciliar, plasmaram-se modelos como a pastoral de conservação e a
pastoral de neocristandade, vigentes nas origens da obra de padre
Alberione. Suas iniciativas, somadas a tantas outras, desembocaram na
renovação do Vaticano II e da tradição libertadora latino-americana,
gestaram novos modelos de pastoral, como a pastoral orgânica e de
conjunto e a pastoral de comunhão e participação. Nas últimas décadas,
com a crise da modernidade, voltou com força a pastoral de neocristandade
e, com a irrupção de uma religiosidade eclética e difusa, uma pastoral
secularista. Diante disso, Aparecida vai conclamar a Igreja a continuar a
renovação do Vaticano II e da tradição latino-americana, através de uma
pastoral de conversão missionária.
nº- 300

ano 55

*Presbítero da diocese de Tubarão-SC, professor e coordenador do mestrado e doutorado em Teologia na PUC de


Curitiba, professor visitante na Universidade Pontifícia do México e no Instituto Teológico-Pastoral do CELAM.

Vida Pastoral

Membro da Equipe de Reflexão Teológica do CELAM. E-mail: agenor.brighenti@pucpr.br.

13
A
obra do padre Alberione teve seu iní- sionária, samaritana e profética, promotora
cio em 1914; portanto, há exatamente do Reino da Vida, sob o protagonismo dos
100 anos. Naquele momento, a Igreja, leigos, em especial das mulheres.
ainda prisioneira de uma mentalidade de cris-
tandade, se propunha a reconquistar a socie-
1. Padre Alberione e a pastoral
dade moderna, emancipada de sua tutela,
de seu tempo
através de uma “pastoral de neocristandade”.
O papa Pio X e a “crise moder- O início do século XX,
nista” são referenciais desse pe- “Na pastoral de momento histórico do nasci-
ríodo. Padre Alberione, entre- mento da obra de padre Albe-
tanto, mesmo atrelado à con-
conservação, o rione, era um tempo marcado
juntura de seu tempo, entendia administrativo por profundas mudanças: a
a pastoral como resposta aos predomina sobre passagem de uma sociedade
novos desafios da sociedade agrária, rural e medieval à civi-
emergente, especialmente no o pastoral; a lização industrial, moderna e
mundo urbano, à luz do Evan- sacramentalização urbana. No campo eclesial,
gelho de Cristo “Caminho, Ver- dava-se a passagem da pasto-
dade e Vida”. Tratava-se de sobre a evangelização; ral de conservação, de cristan-
uma perspectiva pioneira, que, a quantidade sobre a dade, para uma pastoral de
junto de outras oriundas do ca- neocristandade, de corte apo-
tolicismo social, depois acolhi-
qualidade.” logista e de embate com o
das pela Rerum Novarum, iria mundo moderno.
desembocar na renovação do Vaticano II, que
superou tanto a “pastoral de conservação” do
1.1. Padre Alberione e a pastoral
período de cristandade, como a pastoral de
de conservação
corte apologético, de neocristandade.
Na América Latina, a obra de padre Albe- O ministério presbiteral de padre Albe-
rione iria encontrar solo fértil para fazer fru- rione começou como vigário paroquial, em
tificar a “boa imprensa” ou o “apostolado da sua diocese italiana de Alba. Em sua paró-
edição”, como serviço à causa do Evangelho, quia, tal como nas demais paróquias de sua
num mundo secular e pluralista. A Conferên- diocese e da Europa naquele momento, ele
cia de Medellín (1968), ao fazer uma “recep- encontrou uma pastoral centralizada na ad-
ção criativa” do Concílio Vaticano II, propôs ministração dos sacramentos e no padre, o
uma “nova evangelização”, a ser levada a típico modelo da “pastoral de conservação”,
cabo por comunidades eclesiais inseridas oriundo da cristandade medieval.
profeticamente no seio da sociedade, à luz da
opção pelos pobres. Na sequência, Puebla ra- A pastoral de conservação
tificou essa perspectiva e Santo Domingo Assim denominada por Medellín (Med.
mostrou a exigência de uma “conversão pas- 6,1) e lembrada por Aparecida (DAp 370), é
nº- 300

toral” para levar adiante a renovação do Vati- um modelo de pastoral plasmado em dois
cano II. Mais recentemente, Aparecida, res- momentos distintos: em sua configuração

ano 55

gatando Medellín, ressaltou a urgência da pré-tridentina, a prática da fé é de cunho


superação da “pastoral de conservação”, de devocional, centrada no culto aos santos e
composta de procissões, romarias, novenas,

cristandade, bem como da “pastoral de neo-


Vida Pastoral

cristandade”, condição para uma Igreja mis- milagres e promessas, práticas típicas do ca-

14
tolicismo popular medieval; em sua confi- berione começa propondo aos párocos de sua
guração tridentina, a vivência cristã gira em diocese um maior conhecimento da realidade,
torno do padre, baseada na recepção dos inclusive com o auxílio das ciências, especial-
sacramentos e na observância dos manda- mente da sociologia. Estava certo, pois um
mentos da Igreja. “ver” mais analítico e objetivo permitiu-lhe
Resquício de uma sociedade teocrática e as- identificar elementos positivos da nova socie-
sentada sobre o denominado “substrato católi- dade emergente que, depois, procurou incor-
co” de uma cultura rural estática, a pastoral de porar na prática pastoral. Para ele, o pároco
conservação pressupõe que os cristãos já este- precisava ter um conhecimento concreto das
jam evangelizados, quando na realidade trata- misérias e das necessidades do povo, por meio
-se de católicos não convertidos, sem experiên-
de um conhecimento direto e objetivo. Ele é o
cia pessoal da fé. Consequentemente, não há
pastor de todos, não apenas do pequeno gru-
processos de iniciação cristã, catecumenato ou
po que acorre ao templo. Precisa chegar a to-
catequese permanente. A recepção dos sacra-
dos, sair ao encontro dos mais distantes, che-
mentos salva por si só, concebidos e acolhidos
gar a todas as classes sociais, precisa chegar às
como “remédio” ou “vacina espiritual”. A paró-
“massas”, dizia. Parecia-lhe claro que a pasto-
quia é territorial e, nela, em lugar de fiéis, na
ral precisava abarcar a realidade humana em
prática, há clientes que acorrem esporadica-
sua globalidade, todas as pessoas, de todas as
mente ao templo, para receber certos benefícios
condições sociais, com todos os meios que o
espirituais fornecidos pelo clero.
progresso humano ia colocando à disposição.
Na pastoral de conservação, o adminis-
Não basta, dizia, a pregação e a catequese, pois
trativo predomina sobre o pastoral; a sacra-
mentalização sobre a evangelização; a quanti- são meios incapazes de chegar além dos am-
dade ou o número dos adeptos sobre a quali- bientes estritamente eclesiais. Enfim, era pre-
dade; o pároco sobre o bispo; o padre sobre o ciso uma nova pastoral, tanto nos conteúdos
leigo; o rural sobre o urbano; o pré-moderno como em seus meios.
sobre o moderno; a massa sobre a comunida-
de. São elementos que caracterizam um mo- 1.2. Padre Alberione e a pastoral
delo de pastoral circunscrito ao mundo me- de neocristandade
dieval, pré-científico e teocrático.
Entretanto, não era a atitude positiva e
Inquietações do padre Alberione propositiva de padre Alberione que reinava
diante da pastoral de seu tempo na Igreja do início do século XX. A consciên-
Já como vigário paroquial, padre Alberio- cia do esgotamento da pastoral de conserva-
ne sentiu a necessidade da superação da pas- ção, de cristandade, não significava necessa-
toral de conservação, de algo novo, pois per- riamente a abertura da Igreja ao mundo mo-
cebeu que aquele modelo já não respondia às derno, a acolhida de seus valores e a intera-
novas exigências de seu tempo. Com o ad- ção com ele.
vento da civilização moderna, industrial e
nº- 300

urbana, haviam emergido desafios novos, A postura desqualificadora


que exigiam uma pastoral inovadora. Não se e apologética da Igreja

ano 55

justificava uma postura de oposição às novas A Igreja, sentindo-se destronada de seu


realidades, aparentemente hostis à fé cristã. lugar hegemônico na sociedade tradicional,
Com grande zelo pastoral e forte sensibili- vai levar a cabo um projeto de reconquista

Vida Pastoral

dade social, entre outras iniciativas, padre Al- da sociedade emancipada, mais tarde, proje-

15
to este denominado por Jacques Maritain de continuavam, em grande medida, atreladas
neocristandade. Desde o século XVI, com o à tradicional pastoral de conservação e os
surgimento do humanismo, da Reforma segmentos eclesiais mais aguerridos adota-
Protestante e o nascimento das ciências me- vam uma postura apologética diante da mo-
todologicamente irreligiosas, a Igreja havia dernidade, sem provocar divisões, padre
entrado num processo gradativo de fecha- Alberione vai saber combinar tradição e no-
mento sobre si mesma, que estender-se-ia vidade. Fidelidade à tradição sendo condes-
até as vésperas do Concílio Vaticano II. A cendente para com os colegas párocos da
Revolução Francesa (1789) havia acirrado paróquia tradicional e contemporizando
ainda mais essa postura desqualificadora e com a “crise modernista”, acirrada pelas
apologética. Como a modernidade havia posturas antimodernas do papa Pio X. Novi-
nascido fora da Igreja e, em grande medida, dade, pois há um claro distanciamento das
contra ela, dado que seus práticas da pastoral de conser-
centros de decisão haviam “Era preciso uma vação, como também da pas-
acompanhado de fora a evo- nova pastoral, tanto toral de neocristandade, ape-
lução dos fatos, encontrava- sar de seus escritos assumirem
-se incapacitada de perceber
nos conteúdos uma postura apologética. Na
nela valores evangélicos. Sen- como em seus realidade, padre Alberione
tindo-se profanada e humi- avança mais com as práticas
meios.”
lhada, passará a postular a do que com a teoria.
anulação da Revolução Fran-
cesa e a restauração da antiga “civilização A pastoral de neocristandade
cristã”. Para isso, combaterá tanto os deno- Como estratégia de evangelização, a
minados “liberais”, herdeiros da revolução e pastoral de neocristandade assume a defesa
adversários dos regimes monárquicos, como da instituição católica, diante de uma socie-
os socialistas, rotulados tanto quanto os li- dade supostamente anticlerical, assim como
berais de “doutrinadores da irreligião” e an- a guarda das verdades da fé perante uma ra-
ticlericais. zão dita secularizante, que não reconhece
Como o clero não é mais aceito, o com- senão o que pode ser comprovado pelas ci-
bate da Igreja é confiado à “milícia” dos lei- ências. À desconstrução da cristandade, que
gos, como extensão do braço do clero. Eles gera vazio, incertezas e medo, contrapõe-se
recebem o mandato de “recristianizar” a so- o “porto de certezas” da tradição católica e
ciedade emancipada, através de movimentos um elenco de verdades apoiadas numa ra-
e associações, saindo para fora da Igreja para cionalidade metafísica, nos padrões da esco-
trazer de volta a sociedade emancipada para lástica, que o Concílio Vaticano I reimpul-
dentro dela. Esse modelo de pastoral foi de- sionará. Se a pastoral de conservação era
nominado de “neocristandade”, por se pro- pré-moderna, a pastoral de neocristandade
por a resgatar a cristandade, através de uma é antimoderna.
recristianização da sociedade não de cima Na ação evangelizadora, a pastoral de ne-
nº- 300

para baixo, através da ação do clero, mas de ocristandade se apoia numa “missão centrí-
baixo para cima, pela ação capilar dos leigos, peta”: numa atitude apologética e proselitis-

ano 55

no seio da sociedade. ta, sair para fora da Igreja e trazer de volta as


Quanto ao padre Alberione, ele era um “ovelhas desgarradas” para dentro dela.

homem de seu tempo e, ao mesmo tempo, à Numa atitude hostil perante o mundo mo-
Vida Pastoral

frente de seu tempo. Enquanto as paróquias derno, cria seu próprio mundo, uma espécie

16
de “subcultura eclesiástica”, numa típica efeitos nefastos do capitalismo ou substituí-
mentalidade de seita ou gueto. A redogmati- -los por outro sistema.
zação da religião e o entrincheiramento iden- Fora do ambiente religioso ou católico,
titário são sua marca. três respostas se destacam: o socialismo utó-
Como quando se está em estado de guerra, pico, com Saint Simon, Fourier e Proudhon,
qualquer crítica é intolerada, pois enfraquece a que propunha os ideais socialistas, alternati-
resistência. Diante da dúvida, a certeza da tradi- vos ao capitalismo; o sindicalismo, movi-
ção e a obediência à autoridade monárquica, mento de associação operária nascida na In-
ícone da divindade na terra. Em lugar da Bíblia, glaterra no início de século XIX, que com seu
em contraposição aos protestantes, coloca-se na reconhecimento jurídico, passou a regular
mão do povo o catecismo da Igreja; em lugar de contratos de trabalho e o direito de greve; e o
teologia para formar cristãos adultos, enqua- socialismo científico, movimento revolucio-
dram-se os fiéis na doutrina e nos dogmas da fé nário na linha de Marx e Engels, que prega a
católica. Com naturalidade, fala-se em “refazer união do proletariado para fazer revolução,
o tecido cristão da sociedade”, em manter seu ou seja, instaurar o fim da propriedade priva-
“substrato católico” e em adotar o “método apo- da e a implantação do sistema de proprieda-
logético” na evangelização, ignorando um de coletiva dos meios de produção.
mundo autônomo da Igreja, pluralista, tanto no Nos meios católicos, há duas respostas
campo cultural como religioso. principais. A primeira é o assistencialismo, ten-
dência conservadora e acrítica, que pensa que a
Igreja não deve intervir nos problemas sociais.
2. Padre Alberione, a boa imprensa e
A miséria e as desigualdades devem ser mino-
o catolicismo social
radas com a caridade assistencial. Atreladas a
Consciente dos valores da modernidade, essa perspectiva, as intervenções do Magistério
com olhar crítico, mas positivo, padre Albe- defendem o direito absoluto de propriedade,
rione se insere no seio da sociedade moderna condenam as teses socialistas, exortam os po-
e passa a utilizar-se dos meios modernos para bres à resignação e propõem a caridade assis-
levar adiante os ideais evangélicos. Para isso, tencial como única solução. Em outra perspec-
soube sintonizar-se com um movimento tiva, está o catolicismo social, movimento pio-
novo na Igreja – o catolicismo social –, cujas neiro de reconciliação da Igreja com a moder-
iniciativas e práticas iriam desembocar na nidade, cujas iniciativas advogam por uma re-
publicação da Rerum Novarum, dar origem à forma social de tipo estrutural: concretamente,
Ação Católica e influenciar os demais movi- a organização dos trabalhadores, a intervenção
mentos precursores do Concílio Vaticano II. do Estado na “questão social” e obras religiosas,
sejam elas criadoras de consciência, sejam de
fundos econômicos para socorrer os mais ne-
2.1. A reação da Igreja diante de uma
cessitados. Na França, destacam-se Lamme-
sociedade nova
nais, La Tour du Pin e Albert de Mun; na Ale-
Um forte agravante da situação era o manha, von Ketteler e Kolping; na Inglaterra, o
nº- 300

avanço de um sistema capitalista selvagem, cardeal Manning; na Itália, Toniolo e Taparelli.


que deu origem a uma classe proletária, acir-

ano 55

rando o conflito entre patrões e operários. Os


2.2. O catolicismo social
posicionamentos e respostas à grave situação
são de índole diversa. Durante o século XIX,

O movimento, antes de 1848, terá como


Vida Pastoral

movimentos sociais tentaram neutralizar os fontes especialmente o tradicionalismo e o

17
antiliberalismo. A industrialização nascente ela, declarando-se preocupada com o perigo
na Inglaterra no final do século XVIII e im- socialista, começa a desenvolver toda uma sé-
plantada na França no início do século XIX e, rie de ações de caráter econômico e social,
logo a seguir, na Alemanha, suscitou da parte visando responder aos anseios das classes po-
da Igreja a tomada de novas posições diante pulares. Entre os grandes animadores da cor-
do fenômeno da pobreza crescente da nova rente reformadora, destacam-se o marquês
classe operária. Na França, durante o período Sassoli e Giuseppe Toniolo.
de restauração, com a desorganização e o
confisco dos bens do clero, surge uma ação
2.3. Padre Alberione e o catolicismo
social católica que ultrapassa a caridade indi-
social
vidual, largamente praticada até então, para
constituir-se numa espécie de caridade organi- É nesse contexto que padre Alberione,
zada. Surge uma série de orga- associando-se às múltiplas ini-
nizações leigas, tais como a
“Na ‘boa imprensa’, ciativas do catolicismo social,
Congregação Mariana, a Socie- pe. Alberione vê um irá criar uma série de iniciati-
dade das Boas Obras, a Socie- vas em torno ao que ele chama-
privilegiado meio de va de “boa imprensa” ou “apos-
dade de Bons Estudos, a Socie-
dade São Francisco Sevis e a chegar a todo o povo tolado da edição”. Mais que
Sociedade São José, todas de de Deus, rompendo defender a Igreja, o objetivo da
cunho promocional e educacio- “boa imprensa” era informar e
nal. Na Alemanha, destaca-se o gueto da paróquia instruir, especialmente os jo-
padre Kolping, com a União tradicional.” vens, de modo que pudessem
dos Jovens Trabalhadores, cal- encontrar um lugar na socieda-
cada na formação religiosa e profissional. de urbana e industrializada. Ao seu redor es-
Depois de 1848, até a Rerum Novarum tavam as obras dos Irmãos das Escolas Cris-
(1891), o que caracteriza o catolicismo social tãs, dos Josefinos de Murialdo e dos Salesia-
é uma ação eclesial de grandes proporções, nos de Dom Bosco, que procuravam preparar
marcada, por um lado, pela tentativa de “res- os jovens para o emprego, sobretudo criando
tauração católica” e, por outro, de assimila- sólidos vínculos associativos, através de uma
ção dos valores da modernidade. Após a Re- boa formação religiosa. Por sua parte, padre
rum Novarum, o movimento como um todo Alberione dará grande importância à contri-
vai evoluir para uma postura de diálogo com buição da imprensa católica, particularmente
o mundo moderno, assumindo o sindicalis- aos jornais diocesanos e aos boletins paro-
mo e a democracia, desembocando na Ação quiais. Além da catequese e das notícias em
Católica e na democracia cristã, que iria pro- torno à vida da comunidade católica local,
vocar a “crise modernista” na Igreja. recomenda a veiculação de informações a
Na Itália, o pensamento social será forte- respeito das oportunidades de instrução téc-
mente influenciado pela Civiltà cattolica, edi- nica e profissional. A “boa imprensa” será
tada por três jesuítas: Taparelli, Liberatore e uma das obras que ele irá recomendar ao cle-
nº- 300

Curci. A ação acontece em torno da Opera ro jovem em sua obra Anotações de teologia
dei Congressi, fundada em 1875, que mono- pastoral, remetendo-se, inclusive, ao papa Pio

ano 55

poliza toda a ação católica em vista da defesa X, que via nela uma grande necessidade na
do soberano pontífice. A partir de 1877, com Igreja.

o congresso de Bérgamo, os efeitos da propa- Na “boa imprensa”, padre Alberione vê


Vida Pastoral

ganda socialista começam a se fazer sentir e um privilegiado meio de chegar a todo o

18
povo de Deus e para além dos meios eclesiais,
rompendo o gueto da paróquia tradicional,
restrita a um pequeno grupo de católicos. Conferências gerais do
Juntamente com o cônego Francisco Chiesa, episcopado latino-americano
do Rio de Janeiro a Aparecida
ao difundir nas paróquias da diocese de Alba
João Batista Libanio
a União Popular, insta o clero ao compromis-
so, a romper com o “puro espiritualismo”, ir
para a praça pública e para o social e, assim,
contribuir para a cristificação da realidade
em sua globalidade, tanto o mundo rural
como o mundo urbano industrializado.

3. A pastoral na perspectiva
do Vaticano II
As intuições e iniciativas de padre Albe-
rione encontrariam solo fértil na renovação
168 págs.
do Vaticano II (1962-1965) e nos desdobra-
mentos de suas intuições, feitos pela tradição
eclesial latino-americana, a partir da Confe- Compilação e elucidação das
rência de Medellín (1968). Mas, antes, na es- conferências gerais do episcopado
latino-americano enquanto analisa
teira do catolicismo social, surgiram os movi-
a relação da Igreja Católica com
mentos precursores da renovação conciliar: a a nação brasileira. “Aparecida
Ação Católica, os Padres Operários e os mo- não brilha como estrela solitária.
vimentos teológico, catequético, litúrgico, Insere-se na constelação de outras
ecumênico e bíblico. Todos foram condena- conferências. Ao aproximar-nos
dos pela Igreja, em 1950, mas depois reabili- delas, entendemos melhor a
originalidade da Conferência de
tados e acolhidos em suas intuições básicas
Aparecida. Aparecida lança aos
pelo Concílio Vaticano II. católicos um desafio sem igual em
Com o Concílio, dar-se-á a passagem, torno da vida: imbuir-se da vida em
pelo menos em tese: da cristandade à moder- Cristo pela conversão, nascida de
um encontro pessoal com o Senhor,
Imagens meramente ilustrativas.

nidade; da pastoral de conservação e de neo-


cristandade à pastoral orgânica e de conjun- anunciá-la, em espírito missionário”.
to; do binômio clero-leigos ao binômio co-
munidade-ministérios; da Igreja-massa à
Igreja-comunidade; do eclesiocentrismo ao
diálogo ecumênico e inter-religioso; da sacra-
Vendas: (11) 3789-4000
mentalização a uma evangelização integral; 0800-164011
da diocese parcela da Igreja universal à Igreja SAC: (11) 5087-3625
nº- 300

como Igreja de Igrejas locais; da salvação da


V i s i te n os s a l oj a V i rtu a L
alma à libertação integral; de uma Igreja gue- paulus.com.br

ano 55

to a uma Igreja missionária etc.


São mudanças de envergadura, com pro-
fundas consequências para todos os campos

Vida Pastoral

da vida eclesial, particularmente para a pas-

19
toral. A Igreja na América Latina iria mais sial, inserida no mundo. Para isso, coloca-se
longe. Através de uma “recepção criativa” do como ponto de partida o conhecimento da
Vaticano II, aterrissou a renovação conciliar realidade das pessoas em seu contexto, con-
no contexto de um continente marcado pela dição para uma pastoral de encarnação. A
exclusão e pela injustiça institucionalizada. ação pastoral é levada a cabo no âmbito in-
terno da Igreja, mas, sobretudo, fora dela,
pela inserção dos cristãos, no seio da socie-
3.1. A pastoral orgânica e de conjunto
dade, em perspectiva de diálogo e serviço.
Já na primeira hora da recepção das pro- Rompendo-se com todo dualismo, desen-
postas pastorais do Concílio Vaticano II, volve-se uma evangelização integral, que
plasmou-se um modelo de pastoral, denomi- abarca todas as dimensões da pessoa e toda
nado “pastoral orgânica e de conjunto”. Pas- a humanidade.
toral “orgânica”, porque cada ini-
“Supera-se,
ciativa pastoral constitui-se num
por um lado, o 3.2. A pastoral de
órgão, inserido num único corpo,
comunhão e participação
que é a comunidade eclesial; de paroquialismo
“conjunto”, porque as iniciativas A Igreja na América Latina
pastorais de determinada comu- e, por outro, o irá além de uma pastoral orgâni-
nidade eclesial se inserem no universalismo de ca e de conjunto. Com Medel-
conjunto das iniciativas da Igreja lín, a Igreja na América Latina
local ou da diocese. Com isso,
movimentos sem passa a ter uma palavra e um
supera-se, por um lado, o paro- compromisso com a rosto próprio. A palavra é fruto
quialismo e, por outro, o univer- da leitura da mensagem evangé-
Igreja local.”
salismo de movimentos sem lica, à luz da opção preferencial
compromisso com a Igreja local. Esse passo pelos pobres, que se traduziu na teologia da
só foi possível graças ao resgate da Igreja lo- libertação, instância retroalimentadora das
cal como o lugar da presença da Igreja toda, práticas das comunidades eclesiais, inseri-
ainda que não seja toda a Igreja. A Igreja local das no mundo, em perspectiva profética.
é “porção”, e não parte da Igreja universal, Seu rosto próprio lhe é dado pelas comuni-
dado que esta é Igreja de Igrejas locais. Por dades eclesiais de base, alicerçadas na leitu-
sua vez, autoconsciência da Igreja como povo ra popular da Bíblia, na celebração vivencia-
de Deus faz a passagem do binômio clero- da dos mistérios da fé e nas práticas liberta-
-leigos para o binômio comunidade-ministé- doras, em defesa e promoção da vida.
rios, fazendo da comunidade eclesial como Com relação às práticas propriamente di-
um todo o sujeito da pastoral. Consequente- tas, a pastoral de conjunto se abre a parcerias
mente, nascem as assembleias de pastoral com outras Igrejas, religiões e instituições,
como organismos de planejamento e tomada comprometidas com uma sociedade inclusi-
de decisão e os conselhos e equipes de coor- va de todos, símbolo da realização do Reino
denação, como mecanismos de gestão da de Deus desde a imanência da história. O
nº- 300

vida eclesial, na corresponsabilidade de to- compromisso e a ação em concerto com a


dos os batizados. Igreja local abrem-se à definição de diretrizes

ano 55

No terreno das práticas propriamente comuns, em âmbito nacional e continental. A


ditas, há a passagem do administrativo para Igreja, povo de Deus, é visibilizada em comu-

o pastoral, procurando responder, antes de nidades de tamanho humano, nas denomina-


Vida Pastoral

tudo, às necessidades da comunidade ecle- das comunidades eclesiais de base, presentes

20
especialmente no meio popular. Uma Igreja sagrada tradição. Constitui-se, hoje, na mais
toda ela ministerial é concretizada na multi- acabada expressão de um modelo de evange-
plicação de ministérios para os leigos, incluí- lização ultrapassado, mas que se apresenta
das as mulheres, tanto para dentro como como “nova evangelização”, a única capaz de
para fora da Igreja. A tomada de consciência manter vivos os ideais evangélicos em um
da situação de injustiça institucionalizada mundo secularizado.
reinante no continente leva à multiplicação Um segundo desafio, não menos comple-
de serviços de pastoral social, com o intuito xo, é a emergência de uma religiosidade eclé-
de fazer dos pobres sujeitos de uma socieda- tica e difusa, providencialista e milagreira,
de justa e solidária. uma mescla das práticas devocionais pré-tri-
dentinas, com uma espiritualidade emocio-
nalista, mercadológica e mediática. Em tem-
4. Aparecida e a pastoral de
pos pós-modernos, também a religião passa a
conversão missionária
ser consumista, centrada no indivíduo e na
Nas últimas décadas, a modernidade en- degustação do sagrado, entre a magia e o eso-
trou em crise, com a irrupção de novos valo- terismo.
res e desconcertantes desafios como o plura- Essa prática religiosa, que poderíamos
lismo cultural e religioso, a emergência de chamar de pastoral secularista, muito presen-
uma nova racionalidade, a irrupção de novos te também no catolicismo, propõe-se respon-
rostos da pobreza e da exclusão, a alteridade der às necessidades imediatas dos indivídu-
como gratuidade, a subjetividade e a autono- os, em sua grande maioria órfãos de socieda-
mia dos sujeitos etc. As mudanças geram de e de Igreja. Trata-se de pessoas desencan-
medo em muitos segmentos da Igreja, parti- tadas com as promessas da modernidade, em
cularmente na Cúria Romana. E não só hou- crise de identidade, pessoas machucadas,
ve estancamento no processo de renovação desesperançadas, frustradas, depressivas, so-
do Vaticano II, como também retrocesso em fredoras, em busca de autoajuda e habitadas
muitos campos. O longo inverno eclesial se por um sentimento de impotência diante dos
estendeu até a renúncia do papa Bento XVI. inúmeros obstáculos a vencer, tanto no cam-
A Conferência de Aparecida já havia consta- po material como no plano físico e afetivo.
tado que “está faltando coragem, persistência Busca-se a felicidade hoje, aqui e agora, atra-
e docilidade à graça para levar adiante a reno- vés da solução imediata dos problemas con-
vação do Vaticano II” (DAp 100h). cretos. Há um encolhimento da utopia no
momentâneo, pondo em destaque o valor e a
urgência do presente, do momentâneo, do
4.1. O desafio atual de uma pastoral
agora, urgindo um encolhimento da utopia
secularista
no hoje da história. É outra noção de tempo,
Neste novo contexto de crise da moder- não como chronos, mas como kairós, no qual
nidade, um primeiro desafio para a Igreja na os fins que se perseguem, se são verdadeiros,
atualidade é a volta da mentalidade de neo- precisam ir sendo experimentados no cami-
nº- 300

cristandade e o ressurgimento de novos fun- nho, em experiências de plenitude em meio à


damentalismos e tradicionalismos. A pastoral precariedade do presente, em momentos de

ano 55

de neocristandade voltou com força, com eternidade no tempo. Dado que o passado
ares de “revanche de Deus”, com muito di- perdeu relevância e o futuro é incerto, o cor-

nheiro e poder, triunfalismo e visibilidade, po é a referência da realidade presente, dei-


Vida Pastoral

guardiã da ortodoxia, da moral católica, da xando-se levar pelas sensações e professando

21
uma espécie de “religião do corpo”. Entretan- Conferência de Santo Domingo, que leve a
to, na medida em que Deus quer a salvação a mudanças, na perspectiva da renovação con-
partir do corpo, essa religiosidade colada à ciliar, em quatro âmbitos: na consciência da
materialidade da vida pode ser porta de saída comunidade eclesial, na práxis ou nas ações
para a religião, mas pode significar também pastorais, nas relações de igualdade e autori-
uma porta de entrada. dade e nas estruturas da Igreja.
Confunde-se salvação com prosperidade Para uma conversão na consciência da
material, saúde física e realização afetiva. É a comunidade eclesial, Aparecida afirma que
religião à la carte: Deus como objeto de dese- ela necessita “desinstalar-se de seu comodis-
jos pessoais, solo fértil para os mercadores da mo, estancamento e tibieza, à margem do so-
boa-fé, no seio do atual próspero e rentável frimento dos pobres do continente”. Por isso,
mercado do religioso. Há um deslocamento “esperamos um novo Pentecostes que nos li-
da militância para a mística na berte do cansaço, da desilusão
esfera da subjetividade indivi- “A Conferência de e da acomodação em que nos
dual, do profético para o tera- Aparecida constatou encontramos” (DAp 362). A
pêutico e do ético para o esté- firme decisão missionária de
tico. Isso contribui para o sur-
que ‘está faltando promoção da cultura da vida
gimento de “comunidades in- coragem, persistência “deve impregnar todas as es-
visíveis”, compostas por “cris-
e docilidade à graça truturas eclesiais e a todos os
tãos sem Igreja”, sem vínculos planos de pastoral, em todos os
institucionais, que se consti- para levar adiante níveis eclesiais, assim como
tuem em portadores de uma a renovação do toda a instituição eclesial,
vigorosa crítica ao controle do abandonando as estruturas ul-
sagrado por parte da institui- Vaticano II.’” trapassadas” (DAp 365). A
ção religiosa. Nesse contexto, Igreja está no mundo e existe
a mídia em geral contribui para a banalização para a salvação do mundo, por isso, precisa
da religião, reduzindo a religião não só à es- testemunhar “os valores do Reino no âmbito
fera privada, como também a um espetáculo da vida social, econômica, política e cultural”
para entreter o público. Trata-se de uma “es- (DAp 212), para transformar a “cidade atual”
tetização presentista”, propiciadora de sensa- na “Cidade Santa” (DAp 516). Num mundo
ções “intranscendentes”, espelho das imagens pluralista, é preciso saber acolher e colaborar
da imanência. Uma mescla de profissão de fé com a obra que o Espírito realiza, também
a afirmação narcisista, típicas de um sujeito fora da Igreja e, portanto, “necessidades ur-
ameaçado. gentes nos levam a colaborar com outros or-
ganismos ou instituições” (DAp 384). Para
trabalhar com os diferentes, é preciso “desco-
4.2. A pastoral de conversão
lonizar as mentes”, fazer cessar a lógica colo-
missionária
nialista de rechaço e de assimilação do outro,
Consciente destes desafios, a Conferência uma lógica que não vem de fora, mas que
nº- 300

de Aparecida fez um forte apelo à Igreja na está dentro de nós (cf. DAp 96). Por isso,
América Latina a retomar a renovação do Va- “anúncio e diálogo são elementos constituti-

ano 55

ticano II e a não perder de vista a tradição li- vos da evangelização” (DAp 237).
bertadora latino-americana, tecida em torno Em segundo lugar, conversão pastoral é

a Medellín. Para isso, resgata a exigência de essencialmente mudança no âmbito das prá-
Vida Pastoral

uma “conversão pastoral”, proposta pela ticas, da ação eclesial. Para Aparecida, esta

22
começa pelo testemunho, fruto de uma expe-
riência pessoal com Jesus Cristo (DAp 243). A sociedade tecida
Daí a necessidade de uma ação evangelizado- pela comunicação
ra que chegue às pessoas, para além de co- Técnicas da informação e da
comunicação: entre inovação e
munidades massivas, constituídas de cristãos enraizamento social
não evangelizados, de débil identidade cristã Bernard Miège
e pouca pertença eclesial (DAp 226a). Evan-
gelizar não consiste simplesmente em incor-
porar pessoas a uma instituição, mas, antes
de tudo, encarnar o Evangelho na vida de
pessoas contextualizadas. Para Aparecida,
“Deus, em Cristo, não redime só a pessoa in-
dividual”, mas em suas “relações sociais”
(DAp 359), por isso, evangelizar é também
“engendrar padrões culturais alternativos
para a sociedade atual” (DAp 480). Conse-
quentemente, a Igreja está “convocada a ser
advogada da justiça e defensora dos pobres”, 240 págs.
diante das intoleráveis desigualdades sociais e
econômicas, que clamam ao céu (DAp 395). A
Edição brasileira da obra de Bernard
opção pelos pobres, “para que seja preferen- Miège, professor de Ciências da
cial, precisa transpassar todas as nossas estru- Informação e da Comunicação na
turas e prioridades pastorais” (DAp 396). As- Universidade Stendhal-Grenoble 3.
sim, cabe “promover renovados esforços para “As Tic (técnicas da informação e da
fortalecer uma pastoral social estruturada, or- comunicação) já não são novas. A
microinformática, a telefonia móvel,
gânica e integral, que, com a assistência e a
a internet, os sites na web e os
promoção humana, se faça presente nas novas conteúdos a eles associados estão
realidades de exclusão e marginalização, lá agora presentes em todos os campos
onde a vida está mais ameaçada” (DAp 401). sociais e em todas as atividades.
Para isso, é preciso “favorecer a formação de Seu desenvolvimento parece atender
um laicato capaz de atuar como verdadeiro su- a um crescimento tecnológico
irresistível. As Tic – enquanto
jeito eclesial e competente interlocutor entre a
Imagens meramente ilustrativas.

inovações sociotécnicas – resultam,


Igreja e a sociedade” (DAp 497). desta maneira de dependências
Em terceiro lugar, conversão pastoral im- e determinações cruzadas entre a
plica mudanças nas relações de igualdade e ordem da técnica e do social.”
autoridade. Nesse particular, para Aparecida, o
clericalismo, o autoritarismo, a minoridade do
Vendas: (11) 3789-4000
laicato, a discriminação das mulheres e a falta
0800-164011
de corresponsabilidade entre todos os batiza- SAC: (11) 5087-3625
nº- 300

dos na Igreja são os grandes obstáculos para


V i s i te n os s a l oj a V i rtu a L
levar adiante a renovação proposta pelo Vatica-

paulus.com.br
ano 55

no II. Daí a necessidade, na obra da evangeliza-


ção, da participação “dos leigos no discerni-
mento, tomada de decisões, do planejamento e

Vida Pastoral

da execução” (DAp 371). Urgem processos de

23
tomada de decisões relativas à pastoral, que pobres, são as pequenas comunidades eclesiais
contemplem a participação de todos, na cor- ou de base; para Medellín, “célula inicial de es-
responsabilidade de todos os batizados na obra truturação eclesial e foco de evangelização”
da evangelização. Nesse sentido, destaca Apa- (DAp 178). Por isso, para Aparecida, levando
recida a necessidade de promover “o protago- em consideração suas dimensões, é aconselhá-
nismo dos leigos, em especial das mulheres”, vel sua “setorização em unidades territoriais
estas com ministérios e “efetiva presença nas menores, com equipes de animação e coorde-
esferas de planejamento e nos processos de to- nação que permitam uma maior proximidade
mada de decisão” (DAp 458). às pessoas e grupos que vivem na região”; e,
Em quarto lugar, a conversão pastoral pre- dentro destes setores, criar “grupos de famílias,
cisa descer ao nível das estruturas. Estas são que ponham em comum sua fé e as respostas a
um elemento fundamental da visibilidade da seus próprios problemas” (DAp 372).
Igreja, pois afetam seu caráter de sacramento.
As estruturas são também mensagem. Para Considerações finais
Aparecida, as estruturas sociais injustas da so- Padre Alberione foi um homem de seu
ciedade desafiam as estruturas pastorais, pois tempo e, ao mesmo tempo, à frente de seu
elas não conseguem responder às necessidades tempo. São essas “minorias abraâmicas”, no di-
dos necessitados. Por isso, se a opção pelos po- zer de Dom Hélder Câmara, que vão abrindo
bres é preferencial, ela precisa “atravessar todas novos caminhos, na tessitura do risco, a única
as nossas estruturas e prioridades pastorais” garantia de futuro. O Vaticano II foi um “ad-
(DAp 396). A Igreja, como “casa dos pobres” vento” para o terceiro milênio e a tradição re-
(DAp 8), “Igreja samaritana” (DAp 26), deve cente da Igreja na América Latina aponta para
criar estruturas abertas para acolher a todos uma Igreja samaritana e profética, o perfil das
(DAp 412), em perspectiva da vida em abun- comunidades eclesiais, que assumem a missão
dância (DAp 121). Expressão de uma Igreja, de ir antecipando o Reino da vida, que não co-
que quer assumir com mais força a opção pelos nhece ocaso, na precariedade da história.

Referências

ALBERIONE, Tiago. Anotações da teologia pastoral. São Paulo: Paulus, 2012.


________. O apostolado da edição. São Paulo: Paulus, 2012.
________. A mulher associada ao zelo sacerdotal. São Paulo: Paulus, 2011.
________. Abundantes divitiae gratiae suae. São Paulo: Paulus, 2000.
BRIGHENTI, A. “Énfasis pastorales de la Iglesia en América Latina y El Caribe en los últimos 50 años”.
Medellín 123 (2005) 375-398.
________. “A pastoral na vida da Igreja. Repensando a missão evangelizadora em tempos de mudan-
nº- 300

ça”. In: CNBB. Comissão Episcopal para a Animação Bíblico-catequética. Brasília: Ed. CNBB, 2012, p.
117-138.

ano 55

FOLLIET, J. “Catholicisme Social”. Catholicisme, t. III, 1949, col. 703-722.


REMY, Jean. “Le défi de la modernité: la stratégie de la hiérarchie catholique aux XIXe et XXe siècles et

l’idée de chrétienté”. Social Compas, XXXIV/2-3, 1987, p. 151-173.


Vida Pastoral

ROLFO, Luís. Padre Alberione. São Paulo: Paulus, 1975.

24
O Comum Digital: as
dimensões conectivas
e o surgimento de um
novo comunitarismo
Massimo Di Felice*

Este artigo tem por objetivo oferecer uma leitura do significado das dimensões
conectivas e ecológica do “comunitarismo” contemporâneo a partir da
identificação dos elementos caraterizantes das arquiteturas informativas
reticulares. Elementos estes que apontam para a emergência de uma nova
dimensão do social na qual os elementos tecnológicos, humanos e ambientais
adquirem suas dimensões e formas, somente enquanto conectados, segundo suas
atividades agregativas. Apresentando os conceitos de “comunitarismo”, “bens
comuns”, “identificações”, “ator-rede”, “tecno-ator”, “dispositivos de
conectividades”, “atopia” e “ato conectivo”, o artigo propõe algumas chaves de
leitura das ecologias associativas contemporâneas e do “comum digital”,
nº- 300

decorrentes da difusão do social network e das redes sociais digitais.



ano 55

* Sociólogo pela Universidade La Sapienza de Roma, doutor em Ciência da Comunicação pela ECA-USP, onde leciona no
programa de pós-graduação e coordena o Centro de Pesquisa Internacional Atopos. Fez pós-doutorado em Sociologia

pela Universidade Sorbonne, Paris V. É professor convidado na Universidade Lusófona de Portugal, na Universidade IULM
Vida Pastoral

de Milão e na Universidade de Córdoba (Argentina). E-mail: mdfelice@uol.com.br.

25
Introdução vel, também, descrever o conjunto de intera-

N
ções que se desenvolvem no conto, como a
uma nota à edição de Pleiade, o es-
expressão de um emaranhado reticular que,
critor romântico francês Berbey
em lugar de um cenário dividido entre perso-
d’Aurevilly narrava a seguinte lenda:
nagens, atores protagonistas e atores coadju-
O imperador Carlos Magno, já em vantes, contextos e situações, nos apresenta a
avançada idade, apaixo- complexidade de uma arquitetura reticular e
nou-se por uma donzela interdependente, na qual cada
alemã. Os barões da corte “Um comum ator (o anel mágico, a donzela
andavam muito preocu- dinâmico e em alemã, o arcebispo Turpino,
pados vendo que o sobe- Carlos Magno, o lago e suas
rano, entregue a uma pai- contínuo devir, margens) é levado a agir por
xão amorosa que o fazia algo diferente da outros. O próprio anel mágico
esquecer-se de sua digni- adquiriu tal propriedade após
estrutura de um um feitiço que alguém, prova-
dade real, negligenciava
os deveres do Império. organismo fechado velmente uma bruxa, aplicou
Quando a jovem morreu nele, assim como o próprio
e delimitado.”
subitamente, os dignitá- Carlos Magno passou a alterar
rios respiraram aliviados, mas por pouco seus atos depois do desenvolvimento de seus
tempo, pois o amor de Carlos Magno não sentimentos, despertados e continuamente
morreu com ela. O imperador mandou modificados pelo feitiço.
embalsamar o cadáver e transportá-lo As redes de ação e de atores cruzam-se na
para sua câmara, recusando separar-se narrativa, desenvolvendo tal nível de comple-
dele. O arcebispo Turpino, apavorado xidade de relações que se resulta, consequen-
com essa paixão macabra, suspeitou que temente, improvável pensar um único ator
havia ali um sortilégio e quis examinar o como o promotor principal das ações sucessi-
cadáver. Oculto sob a língua da morta vas, nem uma origem específica da ação. Essa
encontrou um anel com uma pedra pre- possível interpretação das qualidades reticula-
ciosa. A partir do momento em que o res das interações que se desenvolvem nesse
anel passou às mãos de Turpino, Carlos breve conto contribui de forma fértil para pen-
Magno apressou-se em mandar sepultar sar as qualidades da complexidade das ações
o cadáver e transferiu seu amor para a que desenvolvemos cotidianamente nas redes
pessoa do arcebispo. Turpino, para fugir digitais, conectados a dispositivos, circuitos
elétricos, bancos de dados e às demais pessoas
daquela embaraçosa situação, atirou o
por suas vezes também conectadas aos dispo-
anel no lago de Costança. Carlos Magno
apaixonou-se então pelo lago e nunca
mais quis se afastar de suas margens 1 Em recente pesquisa, o Datafolha entrevistou peregrinos
católicos presentes no RJ para a JMJ. Dos entrevistados,
(CALVINO, 1996, p. 78). 65% defendem o uso de preservativos nas relações se-
nº- 300

xuais e 53% defendem a pílula anticoncepcional. Já no


Comentando o conto de Berbey que diz respeito à “pílula do dia seguinte”, o respaldo é
d’Aurevilly, Ítalo Calvino afirma que o verda- menor, de 32%. É bom observar que essa pesquisa foi fei-

ta com jovens frequentadores da Igreja e admiradores do


ano 55

deiro protagonista do conto é o próprio anel papa. Entre os jovens não participantes, a opinião da Igre-
mágico, uma vez que seria a partir dele que ja simplesmente nem é levada em conta. Cf. <http://m.
g1.globo.com/mundo/noticia/2013/07/pesquisa-mostra-
se desenvolvem os diversos acontecimentos.

Vida Pastoral

que-peregrinos-se-mostram-mais-liberais-que-a-igreja-
Contrariamente a essa interpretação, é possí- catolica.html>. Acesso em: 29 jul. 2013.

26
sitivos, circuitos elétricos, bancos de dados e partes e identidades distintas. Este se torna a
às demais pessoas. forma de suas conexões e o resultado esten-
Nesse complexo e interdependente âmbi- dido de sua distribuição de informações e
to ecossistêmico-informativo digital cotidia- interações que não se articulam segundo a
no, em lugar de tentar desvendar atores pro- sequência informativa analógica: emissor-
tagonistas e construir hierarquias para inter- -mensagem-meio-receptor. A rede planetária
pretar a origem da ação, provavelmente pode da internet passa a possibilitar a circulação
nos ser útil mudar de atitude e direcionar a instantânea de informações através de formas
nossa atenção sobre o significado do social de comunicação reticulares a-direcionais,
em rede e sobre a qualidade dos laços comu- não representáveis por fluxos informativos
nitários que marcam o convívio e a interação geométricos em direção ao externo.
no âmbito reticular. Que comunidade e que A tecnologia – enquanto interface, intera-
social são aqueles que nascem da conexão tividade e agenciamento – deixa de ser “exten-
entre membros de diversas naturezas? são dos sentidos”, para se tornar interna, uma
sociabilidade habitável. O resultado do surgi-
mento deste novo social interativo e ilimitado
1. O “comum digital”, algumas
questiona as ciências sociais, não somente em
reflexões sobre um novo tipo de
âmbito de técnica de pesquisa que busque al-
comunitarismo
cançar, ao lado do social tradicional, as suas
As nossas sociedades estão marcadas por novas expressões virtuais, mas, sobretudo, em
um importante processo de transformação, âmbito de categorias, paradigmas e conceitos.
uma mudança que diz a respeito não apenas É necessário definir e, portanto, delimitar um
às suas relações internas, mas também ao seu social em rede? Que tipo de comunidade e
sentido profundo, ou seja, ao sentido que de- que tipo de comum é o que habitamos em
fine a mesma natureza e a qualidade do esta- contextos conectados e reticulares?
tuto do social. O advento das redes digitais O advento de um comunitarismo em
passou a manifestar a necessidade de uma rede baseado em forma de comunicações re-
reflexão maior que pudesse considerar o ad- ticulares e interativas e, portanto, pós-analó-
vento de um social tecnológico e interativo, gica, nos obriga a pensar um social pós-es-
baseado não mais em formas de comunica- truturalista, onde os distintos setores, os di-
ção analógicas, mas derivado das mediações versos grupos, as instituições, as empresas,
entre sujeitos, grupos, empresas e institui- passam a se sobrepor e a reinventar-se através
ções e meios de comunicações, reunido em da contínua interação e conexão. Um comum
redes de coletivos humanos, dispositivos e dinâmico e em contínuo devir, algo diferente
banco de dados (Big Data). Nesta nova con- da estrutura de um organismo fechado e de-
formação, possibilitada pelo aparecimento de limitado feito de um conjunto de órgãos se-
novas formas comunicativas com a introdu- parados e interagentes, um comum aberto e
ção de tecnologias de transmissão por cabo a híbrido, perante o qual é necessário repensar
fibras óticas, e por wi-fi, satélites, ondas de a própria ideia de laços sociais.
nº- 300

rádio RFID (Radio frequency identification) No interior dos estudos sobre social ne-
etc., que permitem o acesso em tempo real a twork e laços sociais, podemos identificar di-

ano 55

uma quantidade infinita de informações e a versas abordagens principais que apresenta-


conexão de um amplo ecossistema de atores, remos sinteticamente em seguida. A primeira

o social perde a possibilidade de ser narrado é a que pensa o comunitarismo através das
Vida Pastoral

como um sistema, definido e composto por suas dimensões operacionais, introduzindo

27
uma concepção pragmática e simplificada tanto, os laços fracos são essenciais na estru-
que reduz a comunidade e o comum nos turação das redes sociais, pois são eles que
contextos digitais a sua própria aritmética, conectam os blocos de grupos compostos
isto é, à simples contagem descritiva de links por laços fortes.
e laços que se produzem numa rede. Faz par-
Assim, ao analisar um grafo, é possí-
te desse primeiro grupo tanto a abordagem
vel detectar se este é composto por laços
matemática de Albert L. Barabási (2002),
assimétricos, onde existem diferentes ní-
que, desde uma perspectiva quantitativa e
veis de forças de laços entre os atores, e
matemática, direciona os seus
simétricos, onde se detecta
estudos na descrição das rela- “Os laços fracos se uma participação mais homo-
ções desenvolvidas numa rede
por meio da contagem dos caracterizam por gênea dos atores na rede. Na
grande maioria das redes, se
links desenvolvidos entre seus relações mais diluídas,
detecta a caracterização de la-
membros. Sempre neste pri-
meiro grupo, podemos con- sendo mais abrangentes
ços multiplexos, onde se en-
templar também a perspectiva e menos profundas, o contram diversos tipos de rela-
ções sociais, tanto de laços for-
dos estudos desenvolvidos
que leva a trocas sociais tes como de laços fracos (DI
por Mark Granovetter, que
parte de uma ideia de intera- mais difusas e menos FELICE et al., 2012, p. 61).
ção social definida como a íntimas.” Nesta mesma direção, os
construção de relacionamen- estudos sociológicos de redes
tos e laços entre membros de sociais desenvolvem a ideia de descrições re-
uma rede. Numa perspectiva sociológica, o lacionais de reputação e poder nas próprias
autor se propõe definir as diversas formas de redes, como aquelas ligadas ao conceito de
relações reticulares a partir de uma análise capital social.
comparativa das intensidades de suas intera-
ções. Granovetter, em sua obra The Strength of O conceito de capital social está ligado
Weak Ties (“A força dos laços fracos”, em tra- aos valores inerentes a uma rede social
dução livre) de 1973, salienta que os laços que determina os comportamentos aceitá-
sociais têm uma intensidade de força que de- veis e congratulados nessa mesma rede.
pende da “combinação (provavelmente line- Tais valores perpassam as virtudes cívicas,
ar) da quantidade de tempo, intensidade morais e relacionais. [...]. No caso especí-
emocional, intimidade (confiança mútua) e fico das redes sociais na internet, os valo-
serviços recíprocos que caracterizam um res do capital social estão diretamente re-
laço” (GRANOVETTER, 1973, p. 1361). lacionados às questões relacionais (cons-
Para Granovetter (1973), os laços fortes trução de relacionamentos), normativas
se caracterizam pela intensidade de intimida- (desenvolvimento de códigos de condu-
de, aproximação e intenção em desenvolver tas), cognitivas (disseminação de informa-
uma conexão entre pelo menos dois atores ção e elaboração de conhecimento), con-
nº- 300

sociais, onde se estabelece um relacionamen- fiança no ambiente social (meritocracia),


to com maior potencial para a realização de institucionais (autoridade e auto-organi-

zação) (DI FELICE et al., 2012, p. 67).


ano 55

trocas sociais. Os laços fracos se caracterizam


por relações mais diluídas, sendo mais abran- Uma segunda perspectiva no âmbito dos

gentes e menos profundas, o que leva a trocas estudos sobre o comum e a comunidade em
Vida Pastoral

sociais mais difusas e menos íntimas. No en- redes é aquela que pensa a extensão tecnológi-

28
ca do comunitarismo como uma destruição
dos laços comunitários originários e os con- Dicionário de comunicação
textos reticulares como a crise ou o próprio Edição ampliada e revisada
desaparecimento de um estágio originário, Ciro Marcondes Filho
mais real e autêntico. Alinhados a essa pers-
pectiva, encontram-se diversos autores, com
destaque para o estudo recente e amplamente
divulgado de Sherry Turkle, de significativo
título, Alone Together (2011), no qual se des-
creve a dimensão digital dos relacionamentos
como uma perda da complexidade das intera-
ções humanas: “Human relationships are rich
and they’re messy and they’re demanding.
And we clean them up with technology. Tex-
ting, email, posting, all of these things let us
present the self as we want to be. We get to

256 págs.
edit, and that means we get to delete, and that
means we get to retouch, the face, the voice,
the flesh, the body ­– not too little, not too Mais de oitenta colaboradores de
primeira linha reunidos neste Dicio-
much, just right”1 (TURKLE, 2011, p. 23). nário da Comunicação apostam
Uma terceira interpretação do comunitarismo na organização, na estruturação,
digital refere-se a um tipo de comunitarismo na definição de um código próprio
conectado que torna possíveis laços e intera- que consolide seus conceitos, que
ções a partir da troca semântica de significados corrija o que é indevido, que se
e conteúdos. Essa concepção próxima da ideia institua como padrão terminológico
nacional. Esta obra dá conta de
de inteligência coletiva desenvolvida pelo filó- todo o espectro da comunicação,
sofo Pierre Lévy exprime a ideia de um comu- que vai da forma interpessoal,
nitarismo conceitual que agrega indivíduos grupal, passando pela presencial
em redes a partir de compartilhamentos de no ensino, até a chamada “comu-
conteúdos e interesses encontrados e compar- nicação social”, que abrange as
tilhados digitalmente: formas erradicadas.
Organização de Ciro Marcondes
Imagens meramente ilustrativas.

A cibercultura é a expressão da aspira- Filho.


ção de construção de um laço social, que
não seria fundado nem sobre links territo-
riais, nem sobre relações institucionais,
nem sobre relações de poder, mas sobre a
reunião em torno de centros de interesses Vendas: (11) 3789-4000
comuns, sobre o jogo, sobre o comparti- 0800-164011
SAC: (11) 5087-3625
nº- 300

V i s i te n os s a l oj a V i rtu a L
1 Tradução livre: “As relações humanas são ricas,

paulus.com.br
ano 55

desorganizadas e exigentes. Nós as organizamos com a


tecnologia. Escrever, passar e-mail, postar, todas essas
coisas nos permitem apresentar-nos como queremos ser.

Nós editamos, e isso significa que podemos apagar, e isso


Vida Pastoral

significa que podemos retocar, o rosto, a voz, a carne, o


corpo – não pouco, não muito, apenas o bastante”.

29
lhamento do saber, sobre a aprendizagem sal de Portland (EUA), Peter e Trudy, que,
cooperativa, sobre processos abertos de co- após um trágico acidente, difunde sua história
laboração. O apetite para as comunidades nas redes sociais digitais. A esposa de Peter ha-
virtuais encontra um ideal de relação hu- via entrado em um profundo estado de coma
mana desterritorializada, transversal, livre. e a difusão das imagens dela no hospital, uma
As comunidades virtuais são os motores, os vez divulgadas na rede, obteve o conforto e a
atores, a vida diversa e surpreendente do solidariedade de pessoas de diversas cidades
universal por contato (LÉVY, dos Estados Unidos. Houve quem
1999, p. 130). “o comunitarismo escrevesse uma mensagem de
conforto, quem fizesse orações,
Uma quarta linha de estudos é digital como a quem oferecesse apoio. Em pouco
aquela que pensa o comunitaris-
mo digital como a extensão ou a extensão ou a tempo, Peter recebeu ajuda de to-
dos os tipos, desde conselhos de
amplificação do comunitarismo e amplificação do profissionais sobre como enfren-
dos laços presenciais que encon-
trariam, no social network e nas
comunitarismo tar corretamente a burocracia dos
trâmites do seguro até conselhos
redes digitais, sua maior realização e dos laços médicos de especialistas. Para os
e sua maior eficiência, fazendo das
presenciais.” dois autores, esse caso, como
redes um novo sistema operativo
muitos outros, é exemplo do ad-
social. É esta a contribuição ofere-
vento de um novo tipo de comu-
cida por Barry Wellman e Lee Rainie, que em
nitarismo, cujas caraterísticas seriam
seu livro Networked: The New Social Operating
consequên­cia do surgimento de um “novo sis-
System abordam a questão diretamente:
tema operativo social”: o modo como Peter e
A evidência mostra que nenhuma Trudy usaram as redes sociais não é somente
destas tecnologias é um sistema fechado, uma história tocante. É também a história de
capaz de isolar as pessoas. As tecnologias um novo sistema operativo social que defini-
de hoje são mais integradas na vida social mos “networked individualism” (individualismo
de quanto não o eram as tecnologias pre- em rede), contrapondo a ele o sistema operati-
cedentes. As pessoas não estão ligadas vo precedente, formado em volta de amplas
aos gadgets, estão ligadas umas com as burocracias hierárquicas e de pequenos gru-
outras. [...] No momento no qual incor- pos fortemente interconexos, como os núcleos
poraram as tecnologias, as pessoas mu- familiares, as comunidades e os grupos de tra-
daram a forma de comunicar entre elas. balhos. Para definir o networked individualismo,
Tornaram-se cada vez mais networked usamos a expressão de “sistema operativo”,
[conectadas] enquanto indivíduos, mais pois este descreve a maneira como as pessoas
que como integrantes de grupos (WELL- se conectam entre si, a maneira como se co-
MAN e RAINIE, 2002, p. 46). municam e trocam informações. Utilizamos
essa definição também porque sublinha o fato
O livro propõe uma leitura do comunita-
de que as sociedades – como os sistemas infor-
nº- 300

rismo contemporâneo segundo a sua dimen-


máticos – possuem estruturas baseadas sobre
são conectiva que supera as dimensões pre-
networks, que oferecem oportunidades e vín-

senciais e que expande o comum e a reciproci-


ano 55

culos, normas e procedimentos (WELLMAN e


dade para um nível estendido à dimensão das
RAINIE, 2002, p. 55).
redes informativas. No primeiro capítulo, os

Uma quinta linha de análise sobre o co-


Vida Pastoral

autores narram a história dramática de um ca-


munitarismo em rede é aquela que o define

30
como uma nova dimensão agregativa que ex-
pressa outro tipo social, um social não mais Patrística
limitado apenas ao humano, um “supersocial”, Tratado sobre os princípios
composto por membros de diversas naturezas. Orígenes
Podemos incluir a ideia de comunitarismo di-
nâmico e em rede à ideia de microassociações
proposta por Bruno Latour, cujo ponto de par-
tida é a questão sobre a composição do social:
“Quando falamos do social, quantos somos?
Quem somos?” (LATOUR, 2013, p. 27). Para
Latour, a sociedade não pode ser definida se-
não de forma metafísica, isto é, através de con-
ceitos e categorias abstratas, como proposto
pela sociologia, mas apenas observada em sua
dimensão microagregativa no momento de
seu acontecer. Inspirado na microssociologia

336 págs.
de Gabriel Tarde, o sociólogo francês, pensa,
de um lado, na composição deste novo tipo de
agregados comunitários e, de outro, na manei- Entre os escritores eclesiásticos da
Igreja antiga, a figura de Orígenes
ra de estudá-los. Em relação ao primeiro as- destaca-se pela personalidade
pecto, Latour procura descrever os agregados ímpar, pela vastíssima produção
em redes a partir de sua dimensão emergente, literária, pela profundidade
que o vê composto pela interação entre diver- teológica, espiritual e exegética de
sos “actantes” (seja humano ou não, qualquer seus escritos. Em vista de introduzir
elemento que deixa rastro). Como já observa- o leitor na compreensão de uma
das principais obras de Orígenes,
do anteriormente, as caraterísticas de tais inte- traduzida pela primeira vez em
rações não são o resultado de uma estratégia português, esta obra percorre o
do sujeito, num contexto reticular, ao contrá- seguinte itinerário: uma breve síntese
rio, o “ator é aquilo que muitos outros levam a biográfica, um resumo dos principais
agir... O ator na expressão hifenizada ator-rede testemunhos da tradição textual, um
não é a fonte de um ato, e sim o alvo móvel de comentário sobre o título original Peri
Archõn, e, por fim, outro referente
um amplo conjunto de entidades que exami-
Imagens meramente ilustrativas.

a esta edição brasileira. O livro


nam em sua direção” (LATOUR, 2013, p. 51). pertence à coleção “Patrística”, a
Tal concepção pensa o ator numa perspectiva mais completa quando se trata de
complexa, como o membro de uma complexi- apresentar os textos dos Pais e Mães
dade que o supera e da qual depende: da Igreja.

Empregar a palavra ator significa que Vendas: (11) 3789-4000


jamais fica claro quem ou o quê está atu- 0800-164011
SAC: (11) 5087-3625
nº- 300

ando quando as pessoas atuam, pois o


ator, no palco, nunca está sozinho ao atu- V i s i te n os s a l oj a V i rtu a L

ar [...] por definição a ação é deslocada. A paulus.com.br


ano 55

ação é tomada de empréstimo, distribuí-


da, sugerida, influenciada, traída, domi-

Vida Pastoral

nada, traduzida. Se se diz que um ator é

31
um ator-rede, é em primeiro lugar para identidades e das experiências do lugar (J.
esclarecer que ele representa a principal Meyrowitz), sejam estas coletivas ou indivi-
fonte de incerteza quanto à origem da duais, mas também por uma significativa e
ação (LATOUR, 2013, p. 55). importante alteração da experiência senso-
rial: “A experiência tátil passa atualmente
O que marca a teoria do ator-rede é a
[...] através do desenvolvimento tecnológico
abertura para uma dimensão complexa, que
[...] por meio do qual se desenvolve uma in-
coloca cada membro da rede dependente das
terdependência societária inegável” (MA-
atividades dos demais membros, sejam estes
FFESOLI, 1990, p. 85). Smartphones, video
humanos ou não. O comunitarismo em rede
games, circuitos digitais de compartilhamen-
seria caracterizado pela incerteza, seja de
to de músicas (MP3) e vídeos, as festas raves
seus membros, seja de suas interações. Do
e as paixões pelos esportes radicais necessi-
comunitarismo em rede não poderíamos “di-
tam de explicações centradas em seus dina-
zer”, mas apenas “acompanhar e cartografar”
mismos comunicativos e tecnológicos. Não
seus imprevisíveis dinamismos. Essa dimen-
somente porque tais experiências têm suas
são de incerteza do social marca a emergência
próprias origens, em muitos casos, no pró-
de um novo tipo de complexidade que nos
prio social network, mas, so-
obriga a uma ruptura epistê-
mica que muda a nossa forma “O que marca a bretudo, encontram suas sig-
nificações e seus principais es-
de abordar as dimensões do teoria do ator-rede é paços de compartilhamento da
social. Nessa nova perspecti-
va, em lugar de definir deverí-
a abertura para uma própria experiência nas redes
amos preferir não somente dimensão complexa, digitais. O advento de formas de
sociabilidade construídas em si-
observar, mas jamais chegar a
que coloca cada nergia com as tecnologias digi-
padrões que definem estrutu-
ras e tipologias, pois, numa membro da rede tais e os dispositivos de conexão
marca o comunitarismo con-
dimensão reticular, não há es- dependente das
tabilidade duradoura nem es- temporâneo, caraterizado por
truturas rígidas. A incerteza atividades dos demais M. Maffesoli pela difusão de for-
mas de apropriação lúdicas e
marcaria, então, a forma e a membros.” criativas das novas tecnologias:
dimensão agregativa, ofere-
cendo a nós a dimensão de um conjunto de Todos os microrrituais [...] parecem
incertezas, de dúvidas e de indecisões que possuir esta função de desviar a técnica de
marcam a atmosfera do nosso convívio em suas funções meramente instrumentais,
todos os seus âmbitos. para agrupar os indivíduos em volta de
Nesta dimensão de incerteza e de algo uma atividade comum e de uma paixão
não racionalmente definido, encontramos a compartilhada. Podemos, portanto, dizer
perspectiva do comunitarismo oferecida que o destino da técnica moderna reside na
pelo sociólogo francês Michel Maffesoli e sua apropriação dionisíaca e, portanto,
nº- 300

que constitui, nesta proposta de síntese, a numa ressacralização e num reencantamen-


sexta interpretação sobre o comunitarismo. to do mundo (MAFFESOLI, 1990, p. 88).

Nesta, as interações midiáticas contribuem


ano 55

de forma significativa ao desenvolvimento As formas de agregações das tribos metro-


do comunitarismo, não somente para a for- politanas, explicadas por Maffesoli como a

emergência de uma socialidade de um sentir


Vida Pastoral

mação dos processos de construção das


em comum (“sentir com”) que reúne em um

32
“presentismo experiencial” as práticas das co- Breviloquium intitulada De creatura mundi,
munidades contemporâneas, encontram nas Boaventura explica o conceito que descreve a
extensões digitais uma ulterior expansão: “As essência das criaturas que, antes de serem em
tecnologias do ciberespaço potencializam a si mesmas, são em Deus. Assim, toda a cria-
pulsão gregária, agindo como vetores da co- ção se apresenta como o caráter de um imen-
municação e da condivisão dos sentimentos e so vestígio da divindade: “Podemos concluir
laços comunitários” (LEMOS, 2002, p. 17). que todas as criaturas deste mundo sensível
Com a difusão da computação móvel e das conduzem a Deus [...]. Elas, de fato, são som-
formas de conectividades generalizadas (wi-fi, bras, ecos, representações daquele primeiro
RFID, wi max etc.), o dinamismo dos comuni- princípio que é suma potência” (BOAVEN-
tarismos estendeu-se às dimensões ulteriores, TURA, 1991, p. 34). Em consequência dessa
superando as distinções e produzindo hibri- primeira caraterística, podemos enxergar um
dações e atribuindo novas formas e significa- primeiro desafio da “pastoral digital em
dos ao próprio conceito de comum. Por isso rede”, relativo à necessidade de não se referir
achamos necessária uma última explicação somente aos humanos, nem de ter seu senti-
que leve em consideração a qualitativa altera- do principal no alcance de objetivos huma-
ção das dinâmicas ecológicas e conectivas das nos. Não se trata apenas de pensar as ações
interações próprias do comum digital. ecológicas humanas, mas de repensar a pró-
pria composição da comunidade para além
da dimensão antropocêntrica e social. Esse
2. Caraterísticas do comunitarismo em primeiro desafio decorrente dessa primeira
rede e os desafios da pastoral digital caraterística nos leva para um segundo as-
As características deste novo cenário co- pecto, que chama a atenção para a dimensão
munitário apresentam-se como uma altera- ecológica da arquitetura do novo comunita-
ção profunda que podemos, embora de for- rismo. Este apresenta-se, de fato, mais como
ma superficial e imprecisa, sintetizar em al- uma “rede de redes” composta por entidades
guns pontos para tornar a nossa exposição orgânicas e inorgânicas, conectadas entre si e
mais clara. Uma primeira característica reme- capazes, portanto, de transformações recí-
te à própria ideia de comunidade, que desde procas adquiridas de suas próprias intera-
uma perspectiva reticular, estende-se muito ções. Esta característica de uma complexida-
além de sua dimensão humana, para incluir de mutante e emergente deve pôr para as
todos os membros da biosfera. Trata-se de atividades pastorais um ulterior desafio, rela-
uma alteração qualitativa, que encontra im- tivo à inclusão no âmbito comunitário dos
portantes antecipadores na própria tradição elementos tecnológicos e comunicativos. É
eclesiástica, na própria ideia de pensar a di- necessário aqui fazer um esforço teórico que
mensão da criação como uma qualidade co- pressupõe a relativização da concepção ins-
mum a todos os seres vivos e a toda a realida- trumental da tecnologia, desenvolvida por
de. Um exemplo entre todos a respeito, no boa parte da filosofia ocidental, e recuperar a
interior da tradição franciscana, encontramos complexidade e todo o mistério da dimensão
nº- 300

na filosofia de São Boaventura, na qual a na- “poiética” atribuída por Heidegger à técnica.
tureza assume a dimensão não apenas de Não somente o elemento comunicativo

ano 55

uma realidade criada, mas da emanação do e, hoje em boa parte, tecnológico e digital
divino enquanto expressão do Deus criador. facilita a comunicação entre os membros da

“Deus est intimus est cuilibet rei creatae” (DI comunidade, mas, enquanto condicionante
Vida Pastoral

FELICE, 2009, p. 24). Na segunda parte do de formas de interações, deve considerar-se

33
parte integrante da ecologia comunitária, superando os limites físicos do “hic et
enquanto “actante” e parte ativa. Superan- nunc”, expande-se para além do espaço,
do, portanto, a concepção de meio, a pasto- prolongando a temporalidade das relações e
ral em contextos digitais deve pensar que do diálogo numa dimensão temporal conti-
não existe comunidade e comum sem a téc- nuada. A comunidade é hoje “sempre on-li-
nica e que, no âmbito das arquiteturas co- ne” e habita uma geografia informativa, ató-
munitárias contemporâneas, os laços e to- pica, dinâmica e difícil de definir, capaz de
dos os tipos de dimensões relacionais esten- reconstruir espaço, temporalidade e, por-
dem-se para além do presencial, amplifican- tanto, comunidade, com formato e dinâmi-
do nossa dimensão comum e nos tornando cas espontâneas e sempre novas. Cabe à
muito mais relacionais. pastoral tornar-se presença e comunidade
O aspecto ecológico e interativo do co- em tempo e espaços novos e em contextos
munitarismo em rede comporta um ulterior não apenas comunicativos, isto é, carateri-
desafio: além daquele relativo à extensão da zados apenas pela troca de informações,
ideia de comunidade aos não humanos e ao mas, sobretudo, em dinamismos habitati-
protagonismo do tecnológico em seu âmbi- vos, nos quais é necessário tomar a particu-
to, leva-nos à ideia da localidade “atópica” lar forma da arquitetura interativa em rede
do comunitarismo contemporâneo, que, para poder” ser comum.

Referências

BARABÁSI, A. L. Linked: The New Science of Networks. Perseus Books Group, 2002.
BOAVENTURA, S. Breviloquium. Vicenza: Edizioni L.I.E.F., 1991.
DI FELICE, M; TORRES, J. C.; YANAZE, L. K. H. Redes digitais e sustentabilidade – as interações com o
meio ambiente na era da informação. São Paulo: Annablume, 2012.
GRANOVETTER, Mark S. The strength of weak ties. American Journal of Sociology, v. 78, n. 6, 1973.
LATOUR, B. Reagregando o Social. Bauru: Edusc, 2012.
LEMOS, A. Cibercultura. Porto Alegre: Sulinas, 2002.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1993.
nº- 300

MAFFESOLI, M. Au creux des aparences. Pour une éthique de l’esthetique. Paris: Plon, 1990.
MEYROWITZ, J. No sense of place. The Impact of Electronic Me-dia on Social Behaviour.

ano 55

Oxford University Press, 1994.


RAINIE, Lee; WELLMAN, Barry. Networked – il nuovo sistema operative sociale. Milano: Guerini Scien-

tifica, 2012.
Vida Pastoral

TURKLE, S. Alone together. Basic Books, 2011.

34
Comunidade de
comunidades: evangelização
e cultura do encontro
Impulsos para uma agenda pastoral
Paulo Suess*

A cultura do encontro é, segundo o papa Francisco, avessa ao “assédio


espiritual”. A paciência de escutar e servir é mais importante do que a fala
normativa e imperativa daquele que quer que o outro assuma suas convicções.
Qual é a finalidade e quem é o destinatário desse encontro? O papa responde: a
carência daquele que tem a maior necessidade “multiplica a capacidade de
amar”. Além da gratuidade do amor, a cultura do encontro aponta também para
a racionalidade da verdade. Nosso “ir ao encontro” é a atitude de deixar Deus,
através de nós, “atrair” os fugitivos de sua bondade e verdade. No encontro, em
29 de agosto de 2013, com jovens da diocese italiana de Piacenza-Bobbio, o papa
Francisco deu também à verdade essa dimensão do encontro: “A gente não tem a
verdade, não a carregamos conosco, mas a gente vai ao seu encontro. É o
encontro com a verdade, que é Deus, mas precisamos procurá-la”, às vezes
nº- 300

jogada na lama (EG 49).



ano 55

*Estudou nas Universidades de Munique, Lovaina e Münster, onde se doutorou em Teologia Fundamental. Por dez anos,
trabalhou na Amazônia e, a partir de 1979, exerceu o cargo de secretário-geral do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
Em 1987, fundou o Departamento de Pós-Graduação em Missiologia, em São Paulo. Entre 2000 e 2004, foi presidente da

Associação Internacional de Missiologia (IAMS). Atualmente é assessor teológico do CIMI e professor do Instituto São Paulo
Vida Pastoral

de Estudos Superiores (ITESP), no ciclo de pós-graduação em Missiologia. E-mail: suesspaulo@gmail.com.

35
O 1.1. Da oralidade à escrita
berço das obras de Tiago Alberione,
cujo centenário celebramos neste
Em algum momento na Antiguidade,
simpósio, era a Escola Tipográfica
entre 800 e 200 a.C., e em lugares geografi-
Pequeno Operário, que, como “escola”,
camente muito distantes, se produziu uma
apontava para um programa educativo e,
ruptura nessas regiões. É o tempo dos pen-
como “tipografia”, para uma ampla divulga-
sadores ambulantes na China, dos ascetas
ção, e com seus destinatários, que seriam
“pequenos operários”, advertia para uma na Índia e dos filósofos na Grécia. Na Pales-
nova “sensibilidade social”. Dessa obra nas- tina, surgiram os profetas Isaías, Jeremias e
ceu a Pia Sociedade de São Paulo, com suas o Dêutero-Isaías. Karl Jaspers cunhou para
ramificações, e toda a Família Paulina, que essa época a expressão “tempo axial”. Esse
antecipou um princípio de hoje: a diversifi- “tempo axial” forjou “religiões segundas”
cação dos empreendimentos que até hoje coexistem com as
aos quais deu o significado “A missão “religiões primeiras”. As “reli-
de comunicação sem frontei- dirigida ad gentes giões segundas” são religiões
ras, de ruptura paroquial e da escrita e do livro sagrado,
missão até os confins do
transformou-se em religiões monoteístas que re-
mundo. Quando os primei- missão real e virtual motam a atos ou eventos de
ros emissários da Família fundação e revelação. São reli-
sem fronteiras.” giões universais e mundiais,
Paulina chegaram ao Brasil
de Getúlio Vargas, em 1931, com fortes convicções de sua
a missão dessa família religiosa iniciava sua ortodoxia e verdade. O judeu-cristianismo é
presença internacional. uma dessas “religiões segundas”.
Proponho rever a longa caminhada da A conquista da escrita, incluindo China,
comunicação da humanidade. Essa evolução México, Europa e o mundo árabe, já é urba-
foi acelerada por grandes invenções tecnoló- na. Nesse mundo, as novas religiões se eman-
gicas até chegar ao mundo digitalizado e seus ciparam não só da natureza e da cosmovisão
desafios. Por fim, procuro ver até que ponto correspondente, mas também da tribo, do
essas invenções favorecem ou estorvam a co- povo, do próprio Estado e da cultura local.
municação e a construção de uma cultura do Essa “emancipação” permite que a religião
encontro. ultrapasse as fronteiras de um país e se torne
missionária até os confins do mundo. O pon-
to central desse surgimento das “religiões se-
1. Genealogia da comunicação
gundas” é o discernimento entre o Deus ver-
Grosso modo, podem-se elencar quatro dadeiro e os deuses falsos, entre a “verdadeira
passos relevantes para a transmissão e divul- religião” e a “falsa religião”, entre ortodoxia e
gação do pensamento humano: o surgimento heresia. As verdades dos outros são mentiras.
da língua, da escrita, do livro e do mundo As “religiões segundas” encontram nas “reli-
digitalizado. Com cada passo dessa evolução, giões primeiras” idolatria e magia. Na coloni-
nº- 300

cresceu o número de usuários e possíveis zação das Américas, repetiu-se essa desclassi-
destinatários. Hoje diríamos: cresceu a po- ficação das “religiões primeiras”, cujo plura-

ano 55

tencialidade do mercado editorial e da ação lismo representou um grande obstáculo para


pastoral. Nessa caminhada, a missão dirigida a missão. A oralidade diversificada represen-

ad gentes transformou-se em missão real e tava um obstáculo insuperável para a trans-


Vida Pastoral

virtual sem fronteiras. missão do Evangelho.

36
O jesuíta José de Acosta, provincial no vi-
ce-reinado do Peru, lamenta em seu Tratado
Não deixeis que vos roubem
De procuranda indorum salute (1576) com cer-
a esperança
ta resignação: “Dizem que, em outros tempos,
Papa Francisco
com 72 línguas, entrou a confusão no gênero
humano; mas esses bárbaros têm mais de 700
línguas [...]1. E Antônio Vieira, em seu Sermão
da Epifania, lamenta, um século mais tarde:
“Na antiga Babel houve 72 línguas; na Babel
do rio das Amazonas já se conhecem mais de
150, tão diversas entre si como a nossa e a gre-
ga; e assim, quando lá chegamos, todos nós
somos mudos, e todos eles, surdos”.2
A solução que os primeiros missionários en-
contraram foi o bilinguismo: trabalharam, se-
gundo as regiões, com uma língua geral, segun-

64 págs.
do as regiões guarani, kechua, nauhatl e com a
língua do colonizador. Ainda hoje temos cate-
Compilação de traduções de
cismos daquela época em línguas indígenas.
audiências e discursos do
Mas a escrita e a tradução de conteúdos Papa Francisco.
essenciais não rompeu com a colonização. A “O livro do Gênesis narra que
voz autorizada de Lévi-Strauss, em seu diário Deus criou o homem e a mulher,
de campo entre os bororo do Mato Grosso, confiando-lhes a tarefa de
nos faz pensar sobre a ambivalência da escrita: preencher a terra e submetê-la, que
não significa explorá-la, mas cultivá-
O único fenômeno que a tem fielmente la e custodiá-la, cuidar dela com
acompanhado [a escrita] é a formação das ci- o próprio trabalho. O trabalho faz
parte do plano de amor de Deus,
dades e dos impérios, isto é, a integração num
nós somos chamados a cultivar e
sistema político de um número considerável custodiar todos os bens da criação,
de indivíduos e a sua hierarquização em castas e desse modo participamos na
e em classes. Essa é, em todo caso, a evolução obra da criação! O trabalho, para
típica à qual se assiste desde o Egito até a Chi- usar uma imagem, nos “unge” de
Imagens meramente ilustrativas.

na, quando a escrita surge: ela parece favore- dignidade; torna-nos semelhantes
a Deus, que trabalhou e trabalha,
cer a exploração dos homens, antes da sua
age sempre.”
iluminação. [...] Se a minha hipótese for exata,
é necessário admitir que a função primária da
publicação escrita foi a de facilitar a servidão.3
Vendas: (11) 3789-4000
0800-164011
SAC: (11) 5087-3625
nº- 300

1 José de Acosta, “De procuranda indorum salu te”, em


Obras del padre José de Acosta, Madri, Ed. Atlas (B.A.E. V i s i te n os s a l oj a V i rtu a L

73), 1954, pág. 399 (liv. 1, cap. 2). paulus.com.br


ano 55

2 Antônio VIEIRA, “Sermão da Epifania” (1662), Porto, Ed.


Lello & Irmão, 1959, vol. 1, tomo 2, I/4, pág. 24.

Vida Pastoral

3 Claude LÉVI-STRAUSS, Tristes trópicos, Lisboa, Ed. 70,


1993, p. 283s.

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A escrita rompeu com a inocência e inge- oralidade à digitalização amplia as possibilida-
nuidade da oralidade local, mas está na ori- des dos passos anteriores, sem suspendê-los.
gem de uma memória de longo alcance. A As redes digitalizadas não suspendem a comu-
ambivalência faz parte intrínseca de todas as nicação oral; a distância física mantida e, ao
invenções culturais. Sempre têm qualidades mesmo tempo, superada pelo e-mail não dis-
de um phármakon, que significa, na língua de pensa a proximidade do corpo a corpo do en-
Sócrates, “remédio” e “veneno”, porque po- contro. Oralidade, escrita, mundo analógico e
dem ser referenciais para invocar a paz e para digitalizado convivem numa tensão produti-
praticar a violência. va. A pastoral precisa se reinventar em sua
oralidade, escrita e no mundo digital.
O mundo digital produziu o fenômeno do
1.2. Do livro sagrado ao mercado
crescimento numérico dos usuários, clientes
editorial digitalizado
ou destinatários, subordinados
A escrita permitiu confec- “A distância física ao crescimento dos lucros co-
cionar livros sagrados que mantida e, ao merciais. A prosperidade co-
sustentaram guerras sangren- mercial ­– o sonho de alguns se-
tas em nome de verdades ab- mesmo tempo, tores eclesiais – deveria oferecer
solutas guardadas neles. As superada pelo possibilidades de domesticação
religiões que assumiram o po-
e-mail não dispensa a serviço de uma pastoral sem
der do Estado eram incapazes fronteiras. Mas sabemos tam-
de garantir a paz entre os po- a proximidade do bém que tudo que alimenta
vos. A modernidade, com corpo a corpo do perspectivas de lucro e não gra-
seus eixos de esclarecimento, tuidade nunca serviu de supor-
individualização e seculariza- encontro.” te para o anúncio da Boa-Nova.
ção, produziu um segundo “tempo axial”,
através da separação entre Igreja, credo e Es-
2.1. Fronteiras no mundo
tado. Agora, os mitos e as verdades das res-
sem fronteiras
pectivas religiões e suas práticas rituais e/ou
sacramentais não pertencem mais a uma esfe- As novas oportunidades do mundo digi-
ra do cultural e politicamente correto. As re- talizado nos permitem realmente chegar aos
ligiões podem ter a sua vida própria numa confins do mundo e do tempo. Quem puxa a
escala entre exotismo e contestação, entre evolução tecnológica rasante é a dinâmica do
alienação e engajamento, desde que aceitem capitalismo e sua perspectiva de lucro. Hoje,
coexistir com outros credos. As religiões saí- dois terços do comércio da Europa passam
ram da clandestinidade mantida pelos credos pelo e-commerce, que exige confiança dos
hegemônicos. clientes e velocidade dos seus funcionários e
racionalidade comercial dos produtores. Ra-
cionalidade comercial significa atitudes con-
2. Desafios, promessas e
correnciais impiedosas. Como “pastoral e co-
nº- 300

ambivalências do mundo digital


municação” se encaixam nesse mundo digita-
O aprendizado da convivência pacífica lizado, cuja velocidade anula as possibilida-

ano 55

num mundo pluricultural e a passagem do des do encontro ou reduz o encontro a passa-


mundo analógico ao cosmo digitalizado abri- gens de relâmpagos e transforma os evangeli-
ram espaços necessários para a comunicação

zadores em motoristas de Fórmula 1? A


Vida Pastoral

sem fronteiras. Cada passo dessa evolução da Evangelii gaudium nos responde:

38
Um dos pecados que, às vezes, se
nota na atividade sociopolítica é privile-
giar os espaços de poder em vez dos tem- Reconstruindo a esperança
pos dos processos. Dar prioridade ao es-
Agenor Brieghenti
paço leva-nos a proceder como loucos
para resolver tudo no momento presente
[...]. Dar prioridade ao tempo é ocupar-se
mais com iniciar processos do que pos-
suir espaços (EG 223).
Quem considera uma de suas prioridades
pastorais “a propagação da Palavra de Deus”,
como as fundações de Tiago Alberione, obri-
gatoriamente está de olho nesse e-commerce
que oferece seus trilhos para a divulgação
não comercial não só da Bíblia, mas também

151 págs.
de tudo que está sendo escrito para dar senti-
do à caminhada humana e divulgar testemu-
nhos de vidas doadas para o bem do outro. Agenor Brieghenti é doutor pela
Divulgação não comercial não quer dizer di- Universidade Católica de Lovaina.
vulgação gratuita. O que na internet é ofere- Sua especialidade pastoral trans-
cido como “gratuito”, como “brinde” ou parece na obra “Reconstruindo a
como boa notícia do “você ganhou”, tudo é Esperança”, suas reflexões amparam
mentiroso e pago pela propaganda ou pela paróquias cercadas de desafios
trazidos pela pós-modernidade. “O
espionagem. planejamento é precioso instrumento
A pergunta, aparentemente inocente, que para o exercício da criatividade, na
precede cada postagem no Facebook: “No liberdade no discernimento comuni-
que você está pensando?”, parece mais apro- tário. No momento presente, urge
priada para o confessionário ou para uma sonhar, projetar um futuro desejável,
sessão psicoterapêutica do que para uma de- crescentemente melhor, apoiados
na experiência do passado; abrem
claração pública na rede. Com nossa resposta novos caminhos os que teimam em
à pergunta “no que você está pensando”, a reinventar o passado. É necessário
Imagens meramente ilustrativas.

rede aproveita para nos enviar uma seleção nunca perder de vista a experiência,
de “amigos” e oferta de “mercadorias” com seja ela marcada por conquistas,
afinidade às nossas respostas. Precisamos ter seja por fracassos, sob pena de não
medo diante do Facebook, Google, Wikipe- dispor da base necessária para,
sobre ela, edificar o novo.”
dia, Android, Dropbox, OneDrive? O Google
é não somente a máquina de busca mais usa- Vendas: (11) 3789-4000
da e com informações tendenciosas, mas 0800-164011
nº- 300

também o Youtube é do Google; com o Goo- SAC: (11) 5087-3625


gle Chrome, é o proprietário do maior brow-
V i s i te n os s a l oj a V i rtu a L

ser; com o Gmail, dispõe do mais usado ser- paulus.com.br


ano 55

viço de e-mail; com Google Drive, tem um


respeitável administrador de 15 GB de arqui-

Vida Pastoral

vos gratuitos nas “nuvens” para cada usuário

39
do Gmail, e com o Android, o maior sistema essas perspectivas? As novas tecnologias re-
operacional do ramo. solvem apenas uma parte do problema que
Em 2013, o Google lucrou 13 bilhões de os “condomínios fechados”, um conglomera-
dólares. Na realidade brasileira, passou quase do de muros reais, mas também de muros
despercebida a compra da Titan Aerospace, fa- ideológicos, de desinteresse, cansaço e pro-
bricante de veículos aéreos não tripulados, co- testo, criaram.
nhecidos como drones. Nessa compra, o Google Durante o sistema colonial, a experiência
venceu o Facebook de Mark Zuckerberg, que pastoral nos ensinou que os meios e sistemas
estava negociando a compra da Titan por US$ não são veículos inocentes que permitem uma
60 milhões. O Google e o Facebook anuncia- divisão de trabalho entre os que estão de olho
ram que seus respectivos projetos irão levar a no ouro e os que querem salvar almas. Pode-
internet a lugares mais remotos mos navegar com as naus do co-
e, assim, criar novos clientes. As “A pastoral do lonizador sem colonizar? Colo-
dificuldades técnicas de utilizar encontro prioriza nizar significa não somente de-
um drone movido a energia so- sapropriar o colonizado de seu
lar para transmitir a internet em
o relacionamento “ouro”. Significa também impor
locais sem rede física ou sem igualitário entre a própria ideologia do coloniza-
torres de telecomunicações são destinatário e emissor dor ao colonizado. Se o meio faz
enormes, como são grandes as parte da mensagem, como Mar-
promessas de milhões de novos de mensagens, shall McLuhan nos ensinou,
usuários e milhares de milhões porque ambos são qual é a mensagem do mundo
de receita. Os drones espaciais digitalizado e seu efeito colateral,
equipados com dispositivos de agentes de pastoral que ressoa além do sem-número
captação de imagens em tempo e sujeitos da de novos destinatários que todos
real vão transformar o Maps do gostariam de alcançar?
Google em informante impla-
evangelização.” Outro atrativo do mundo
cável e destruidor das fronteiras entre a esfera digitalizado e das novas tecnologias de co-
pública e a privada. municação é o crescimento do desejo insaci-
ável de lucro que, de certo modo, escraviza,
novamente, os seus destinatários. Podemos
2.2. Neocolonialismo
mergulhar no mundo digital, sem molhar-
do mundo digital
-nos nas águas do lucro, do mercado, da alie-
Num momento de um acentuado “êxodo nação e dos deslizes da propaganda? Pode-
eclesial”, a promessa do mundo digital de mos ser pré-modernos, modernos e pós-mo-
criar possibilidades de não somente impedir dernos ao mesmo tempo, já que essas três
a “fuga”, mas também de “segurar a clientela” dimensões se sobrepõem no entrelaçamento
e de aumentar o número dos católicos, é ten- da oralidade, da escrita e da digitalização?
tadora. Ampliar as possibilidades do raio
pastoral, até hoje não suficientemente con-
nº- 300

3. Construção da cultura do encontro


templado, e o descontentamento com o esta-
em comunidades e redes
tuto do “pequeno rebanho” parece vital. Para

ano 55

a formação dos nossos quadros pastorais, faz- “Nova colonização”, “distância física” e
-se necessária uma nova matéria curricular: “relacionamentos” desiguais entre destinatá-

“Perspectivas e práticas do mundo digitaliza- rios e emissores de mensagens caracterizam


Vida Pastoral

do em catequese e pastoral”. Mas quais são as desvantagens do mundo digital. Sem des-

40
prezar as novas possibilidades do mundo di-
gital, a pastoral deve priorizar os trilhos da
presença mística e da profecia que atraves- Juventude e vocações hoje
Caminhos e perspectivas para
sam a “cultura do encontro”. uma pastoral vocacional

Sebastião Corrêa Neto


3.1. Dimensão mística
A pastoral do encontro prioriza o relacio-
namento igualitário entre destinatário e emis-
sor de mensagens, porque ambos são agentes
de pastoral e sujeitos da evangelização. O so-
nho do número grande ou até da totalidade
dos destinatários, alimentado pelo mundo
digital, é pago com a moeda da amizade que
exige proximidade: “Só a proximidade que
nos faz amigos nos permite apreciar profun-
damente os valores dos pobres de hoje, seus
72 págs.
legítimos desejos e seu modo próprio de vi-
ver a fé. A opção pelos pobres deve conduzir-
A nova realidade pós-moderna
-nos à amizade com os pobres. Dia a dia os dificulta o encontro vocacional.
pobres se fazem sujeitos da evangelização e Este livro oferece duas linhas de
da promoção humana integral (DAp 398)”. trabalho: o acompanhamento da
Os pobres representam o ponto de parti- evangelização da juventude com
da, não a totalidade dos sujeitos da pastoral, seus desafios atuais e o contexto de
que são os batizados: “Cada um dos batiza- formação presbiteral.“Apaixonados
por uma Igreja que se deixa
dos, independentemente da própria função evangelizar, que escuta e oferece
na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é como serviço humilde aquilo que
um sujeito ativo de evangelização [...]. A carrega em vasos de barro; uma
nova evangelização deve implicar um novo Igreja que saiba contemplar o divino
protagonismo de cada um dos batizados” no jovem e o cative pelo amor.”
(EG 120): “A melhor motivação para se deci- Padre Sebastião Corrêa Neto é
graduado em Filosofia e Teologia
dir a comunicar o Evangelho é contemplá-lo
Imagens meramente ilustrativas.

pela PUC-Minas e pós-graduado


com amor [...]. Por isso, é urgente recuperar em Formação Presbiteral pelo
um espírito contemplativo” (EG 264). ISTA. Especializou na formação e
Além das questões meramente econômi- evangelização da juventude.
cas que tratam da geração de lucros, se im-
põem questões político-culturais ao debate,
Vendas: (11) 3789-4000
como, por exemplo, a questão entre chaves de
0800-164011
comunicação universal, que o mundo digital SAC: (11) 5087-3625
nº- 300

oferece, e a questão de comunicação contextu-


V i s i te n os s a l oj a V i rtu a L
al e cultural que emerge da oralidade.

paulus.com.br
ano 55

A roda da “conversão pastoral” deve girar


em torno dos dois eixos da multiplicação dos
destinatários, e da contextualização cultural

Vida Pastoral

(encarnação) da mensagem. Trata-se da inte-

41
gração de uma tarefa bipolar na agenda pas- nitária de Deus – eis o caminho que prepara
toral: da integração de uma contextualização a recapitulação do cosmo em Cristo, que é a
universal e de uma universalidade contextu- nossa paz. “Desenvolver uma cultura do en-
alizada. O preço que a pastoral pagaria pela contro numa harmonia pluriforme” (EG 220)
mera universalização digitalizada seria o es- é um caminho lento e árduo. Nessa perspec-
friamento das relações humanas, e, pela mera tiva, por ser desinteressada em poder e lucro,
contextualização, o encolhimento numérico a comunicação universal que acolhe as dife-
e o encurtamento do horizonte para níveis renças num diálogo produtivo é possível,
paroquiais fechados. Não temos a possibili- além e aquém do mundo digitalizado comer-
dade de escolher entre um ou outro em torno cializado. Os místicos diriam: desenterrar
dos quais se criariam grupos de partidários Deus, que, como Verbo, nos faz participar de
militantes e seus grupos opostos. Os místi- sua ressurreição na vida cotidiana.
cos, como Nicolau de Cusa, nos falam da
coincidência dos opostos, assumida na Evan-
3.2. Dimensão profética
gelii gaudium do papa Francisco. É possível:
Por acompanhar, assumir e
[...] desenvolver uma “A mística do encontro,
contestar as grandes tendências
comunhão nas diferenças,
que pode ser facilitada só
de viver juntos, da época, a evangelização radica-
por pessoas magnânimas misturar-nos, ” não da na cultura do encontro faz par-
te de uma pastoral profética. As
que têm a coragem de ultra-
é uma mística pré- “grandes tendências” não levam
passar a superfície conflitual
e consideram os outros na moderna e tribal de em conta os destinatários como
sujeitos ou protagonistas. Os bati-
sua dignidade mais profun- um comunitarismo zados que defendem os pobres e
da. Por isso, é necessário
postular um princípio que é historicamente os outros como uma causa do
Reino sempre se encontram no
indispensável para construir caducado.” centro de conflitos sociais e cultu-
a amizade social: a unidade
rais. A união com Jesus Cristo “através dos po-
é superior ao conflito. A solidariedade, en-
bres é uma dimensão constitutiva de nossa fé
tendida no seu sentido mais profundo e de-
[...]. A mesma união [...] nos faz amigos dos po-
safiador, torna-se, assim, um estilo de cons-
bres e solidários com seu destino” (DAp 257).
trução da história, um âmbito vital onde os
A comunicação com esses nossos amigos
conflitos, as tensões e os opostos podem al-
é uma meta permanente. Ela não flui por
cançar uma unidade multifacetada que gera
causa de barreiras estruturais e pessoais. A
nova vida. Não é apostar no sincretismo ou
real comunicação aponta sempre para ruptu-
na absorção de um no outro, mas na resolu-
ras sistêmicas e conversão pessoal. Numa so-
ção num plano superior que conserva em si
ciedade de classe, a comunicação é sistemica-
as preciosas potencialidades das polaridades
mente travada por grandes desigualdades
em contraste (EG 228).
sociais. Mas, mesmo imaginando estruturas
nº- 300

A “unidade multifacetada que gera nova que superaram as desigualdades, a comuni-


vida” e “conserva em si as preciosas potencia- cação está cheia de ruídos por causa de rela-

ano 55

lidades das polaridades em contraste” é, des- ções inautênticas de indivíduos alienados.


de tempos primordiais, o sonho dos místicos. Ruptura e conversão têm dimensões religio-
sas, sociais, políticas, éticas, econômicas e

Romper os contextos sem destruí-los, e cami-


Vida Pastoral

nhar em direção do mistério da unidade tri- escatológicas.

42
A dimensão profética opõe-se à comuni- “A mística de viver juntos, misturar-nos,
cação universal digitalizada como comunica- encontrar-nos” não é uma mística pré-mo-
ção descontextualizada. Ao mesmo tempo, derna e tribal de um comunitarismo histori-
luta pela presença microestrutural e manu- camente caducado, mas uma construção so-
tenção do calor humano nas situações exis- cial que permite a convivência pacífica da
tenciais da vida humana mutilada. humanidade em sua diversidade. A “maré
A pastoral profética é, segundo o Docu- um pouco caótica” foi castigada por ventos
mento de Aparecida, uma função de sua ecle- que se opõem a essa mística. O termo “comu-
sialidade: a Igreja “é chamada a ser sacramen- nidade” aponta para realidades sociais con-
to de amor, solidariedade e justiça” (DAp textuais nem sempre intercomunicáveis.
396), e está “convocada a ser ‘advogada da “Comunidade” pode apontar para uma co-
justiça e defensora dos pobres’” (DAp 395, cf. munidade na qual prevalecem códigos fecha-
DAp 508). “Em sua missão de advogada da dos ou abertos, para uma comunidade agrá-
justiça e dos pobres, a Igreja se faz solidária” ria e oral, uma comunidade científica, indíge-
(DAp 533, cf. DAp 508), e assume “a atitude na e indigenista, pré-moderna, industrial e
de compaixão e cuidado do Pai, que se mani- pós-industrial. A invenção da escrita, do livro
festa na ação libertadora de Jesus” (DAp 532). e do computador pode perpassar todas elas.
O anúncio da Boa-Nova aos pobres e sua de- A invenção da tipografia nos trouxe não
fesa caracterizam a dimensão pneumatológica da só a Bíblia de Lutero, mas também a agenda,
pastoral. O Espírito Santo, que invocamos como com seu impacto sobre nosso tempo disponí-
Paráclito, é advogado e defensor do “pequeno vel e os donos dos meios de produção de li-
operário”, dos pobres e dos outros. Se a pastoral é vros e jornais. A digitalização consome mais
o carisma do conjunto das fundações de Alberio- tempo que libera para a evangelização no in-
ne, da Família Paulina,4 e da Igreja como tal, que terior de uma expressão da cultura do encon-
propõem “conversão pastoral” (DAp 366) para tro. Redimensionar os imperativos universais
louvar a Deus na humanidade ferida, então preci- da digitalização, que nos abrem horizontes
samos refletir estratégias de um novo paradigma fascinantes, significa não permitir que se tor-
da Igreja universal em contextos cuja meta e obs- nem donos do nosso tempo e não permitir a
táculo a Exortação Evangelii gaudium enfatiza: cristalização de processos (cf. EG 223).
Quem são as pessoas e os meios que con-
Neste tempo em que as redes e demais
tribuem para a construção de comunidades
instrumentos da comunicação humana al-
através de processos escondidos e abrem mão
cançaram progressos inauditos, sentimos o
de resultados visíveis e imediatos? A Evangelii
desafio de descobrir e transmitir a “mística”
gaudium nos dá uma resposta com um crité-
de viver juntos, misturar-nos, encontrar-
rio enunciado por Romano Guardini: “O úni-
-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar
co padrão para avaliar justamente uma época
nesta maré um pouco caótica que pode
é perguntar-se até que ponto, nela, se desen-
transformar-se numa verdadeira experiência
volve e alcança uma autêntica razão de ser a
de fraternidade, numa caravana solidária,
plenitude da existência humana, de acordo
nº- 300

numa peregrinação sagrada. Assim, as maio-


com o caráter peculiar e as possibilidades da
res possibilidades de comunicação traduzir-
dita época” (EG 224).

-se-ão em novas oportunidades de encontro


ano 55

Se a palavra “encontro” é a palavra-chave


e solidariedade entre todos (EG 87).
que se tornou conceito pastoral como “cultu-
ra do encontro”, então queremos saber “como

Vida Pastoral

4 Silvio SASSI, “O carisma paulino é pastoral”, Carta do


Superior-Geral, Paulus, port., 2013 [uso interno]. projetar, numa cultura que privilegie o diálo-

43
go como forma de encontro, a busca de con- lizado, redes de fé, sem fronteiras, e comuni-
senso e de acordos, mas sem a separar da dades que contextualizam amor e esperança,
preocupação por uma sociedade justa, capaz participação e presença, fraternidade e soli-
de memória e sem exclusões. [...] Trata-se de dariedade, tornaram-se desafios gigantes.
um acordo para viver juntos, de um pacto so- Proximidade e presença, universalidade e ur-
cial e cultural (EG 239). No início dessa cul- gência pastoral se articulam em sete registros
tura do encontro está o encontro dos encon- que fazem parte da “cultura do encontro”:
tros com Deus-Pai e com Jesus Cristo, que ele
nos enviou: “A comunidade missionária ex- mobilidade (mística do caminho e rup-
perimenta que o Senhor tomou a iniciativa, tura sistêmica);
precedeu-a no amor (cf. 1 Jo 4,10)” (EG 24). pluralidade (diálogos com o diferente);
A busca e descoberta do amor de Deus no relevância (para os pobres e os outros);
lugar do encontro faz o “assédio espiritual” leveza (física e estrutural, simplicidade
desnecessário: “As maiores possibilidades de de doutrinas e da vida);
comunicação traduzir-se-ão em novas oportu- visibilidade (sinal que renuncia à totalida-
nidades de encontro e solidariedade entre to- de sem abrir mão de sua missionariedade);
dos. [...] Fechar-se em si mesmo é provar o conectividade (proximidade universal e
veneno amargo da imanência, e a humanidade capacidade de articulação) e
perderá com cada opção egoísta que fizermos” transparência (visão além e aquém das
(EG 87). A paciência de escutar, de ir ao en- coisas tangíveis).
contro e servir é muito mais importante do
que a fala normativa e imperativa daquele que Com suas tensões geradoras, nos convidam
quer que o outro assuma suas convicções.
a abraçar o risco do encontro com o rosto
Na linguagem da geração Facebook, as
do outro, com a sua presença física que inter-
famílias fundadas por Tiago Alberione hoje
pela, com o seu sofrimento e suas reivindica-
são communities em redes, desafiadas pela ur-
ções [...]. A verdadeira fé no Filho de Deus
gência da caridade de Cristo, a velocidade de
feito carne é inseparável do dom de si mes-
aparatos e pela lentidão do encontro face a
mo, da pertença à comunidade, do serviço,
face: “Assim como alguns quiseram um Cris-
da reconciliação com a carne dos outros. Na
to puramente espiritual, sem carne nem cruz,
sua encarnação, o Filho de Deus convidou-
também se pretendem relações interpessoais
-nos à revolução da ternura (EG 88).
mediadas apenas por sofisticados aparatos,
por écrans e sistemas que se podem acender e Benedictus qui audit et audet! – Abençoado
apagar à vontade (EG 88). No mundo globa- aquele que escuta e arrisca!

ABC da Bíblia
Trata-se de um livrete-programa para cinco encontros, destinado às comunidades
de base, círculos bíblicos e outros grupos dedicados ao estudo da Bíblia. É útil
nº- 300

também para uma leitura pessoal. De apresentação bastante simples, não oferece
dificuldade para o leitor de nenhuma categoria social. (40 páginas)
Imagens meramente ilustrativas.

ano 55

Vendas: (11) 3789-4000


0800-164011 | SAC: (11) 5087-3625

Vi si t e no ssa lo j a Vi rt ua L | paulus.com.br
Vida Pastoral

44
Comunicação: eixo da ação
pastoral da Igreja
Joana T. Puntel, fsp*

A comunicação como elemento articulador das mudanças na


sociedade. O beato Tiago Alberione, fundador da Família Paulina, no
início do século XX, intui o significado e a importância da comunicação
como “eixo” sobre o qual se movem as pastorais. Alberione introduz
então na Igreja um carisma pastoral: evangelizar com a comunicação.
O elo comunicação e pastoral faz parte da nova evangelização, nas
mais variadas exigências do mundo contemporâneo, especialmente a
crise da transmissão da fé. O “eixo” é dinâmico, evolui com os tempos;
as pastorais, para realizar o diálogo entre fé e cultura, devem entrar
no dinamismo atual da comunicação.
nº- 300

ano 55

* Irmã paulina, doutora em Ciências da Comunicação pela Simon Fraser University (Vancouver, Canadá) e Universidade
de São Paulo, com pós-doutorado pela London School of Economics and Political Science (Londres, Inglaterra). Docente

na FAPCOM e no SEPAC. Pesquisadora, conferencista na área de pastoral da comunicação; tem várias publicações na
Vida Pastoral

área da Comunicação, Igreja e Cultura. E-mail: joana.puntel@gmail.com.

45
Introdução de para poder dialogar com as pessoas de

N
hoje: diálogo entre fé e cultura – três palavras
a comunicação vista como elemento ar-
indispensáveis para a fundamentação das mais
ticulador das mudanças na sociedade,
variadas tipologias de pastorais.
encontra-se o bem-aventurado Tiago
Esse eixo traz algumas exigências do que
Alberione, fundador da Família Paulina, no iní-
significa ser/estar na sociedade
cio do século XX. Alberione in-
“Não se trata hoje e, por conseguinte, desen-
tui, na sua época, o significado e
a importância da comunicação somente de observar volver uma ação pastoral eficien-
te, competente, que realmente
como “eixo” sobre o qual se mo- as inúmeras novas realize e consolide o diálogo entre
vem as pastorais, e introduz na
tecnologias que a fé e a cultura. Quais seriam essas
Igreja um carisma pastoral: evan- exigências? Entre tantas, aponta-
gelizar com a comunicação. O surgem e que hoje -se o que parece essencial: alargar
elo comunicação e pastoral faz
chamamos de cultura os horizontes e sensibilidade aos
parte da nova evangelização. O sinais dos tempos – uma grande e
“eixo” é dinâmico, e as pastorais, digital, mas de profunda visão da sociedade,
para realizar o diálogo entre fé e alargar o horizonte onde vive o ser humano, objeto
cultura, devem entrar no dina- da nossa pastoral. Considerando
mismo atual da comunicação. e alcançar o ser
essa importância, a Igreja, nos
humano.” seus documentos, insiste progres-
1. Comunicação como elemento sivamente na necessidade do compreender, do
articulador das mudanças na educar-se para a comunicação e, naturalmente,
sociedade para as suas interações, pois estamos diante de
um “novo sujeito” a ser evangelizado na socieda-
Ao considerar a comunicação como eixo de contemporânea. Portanto, o diálogo entre fé e
da ação pastoral da Igreja, faz-se necessário cultura se faz indispensável no olhar sobre a ci-
explicitar o que se entende dizer com a pala- dade.
vra eixo: uma peça simples, em contínuo mo-
vimento, que é o suporte para o movimento Alargar os horizontes: visão
de outras peças, enfim, que é imprescindível e sensibilidade
para que outros componentes de um todo se A pergunta, do ponto de vista da evange-
movam. Pode parecer simplista e até estra- lização, é: o que está acontecendo com o ser
nha, ou até mesmo audaciosa, a pretensão de humano em meio às mudanças, inclusive es-
afirmar que a comunicação é o eixo da ação truturais, que a sociedade vive hoje? Pois não
pastoral. Não se trata de assegurar que a co- se trata somente de observar as inúmeras no-
municação é o centro; este é Jesus Cristo, mas vas tecnologias que surgem e que hoje chama-
a comunicação é o que move a ação pastoral mos de cultura digital, mas de alargar o hori-
em direção a esse Jesus Cristo. zonte e alcançar o ser humano – o que acon-
Fundamentando o que se acaba de dizer, tece com ele? Nasce um novo antropológico.
nº- 300

o Documento de Aparecida (n. 484), que nos E isso interessa à pastoral.


interpela para o discipulado e a missionarie- Parte apreciável das mudanças na forma

ano 55

dade, afirma: “a comunicação é o elemento de viver (MORAES, 2006) vincula-se à prima-


articulador das mudanças na sociedade”. A zia da comunicação na ambiência tecnocultu-
ação pastoral da Igreja deve estar em sintonia ral e digital. Redes infoeletrônicas, satélites e

Vida Pastoral

com as mudanças que se realizam na socieda- fibras ópticas atravessam a Terra, interligando

46
povos, países, culturas e economias. uma alteração nos comportamentos e atitudes
Não há dúvida de que a sociedade con- na esfera dos costumes normalmente pauta-
temporânea está imersa em um espaço midia- dos pela mídia. Surge, então, no entender de
tizado (SODRÉ, 2006, p. 16) regido pelas no- Sodré, um novo éthos: um novo habitat, uma
vas tecnologias e moldado pelo virtual. O que atmosfera afetiva (emoções, sentimentos, ati-
ocorre (e é o “novo”!) é que a comunicação tudes) em que se movimenta determinada for-
centralizada, unidirecional (unilinear) e verti- mação social. “O éthos caracteriza-se pela ma-
cal é transformada especialmente pela ambi- nifesta articulação dos meios de comunicação
ência proporcionada pelas redes digitais. Nes- e informação com a vida social.” Ou seja, os
se contexto, a mídia deixa de ser um campo mecanismos de conteúdos culturais e de for-
fechado em si, de utilidades apenas instru- mação das crenças são atravessados pelas tec-
mentais, e passa à condição de produtora dos nologias de interação ou contato.
sentidos sociais.
Esse novo modo de ser no mundo está re-
2. Tiago Alberione: exemplo de visão
lacionado com o fato de que, hoje, as novas
e sensibilidade – sintonia com os
gerações já são nativas digitais. Muito mais do
tempos
que antes, somos seres em comunicação glo-
bal. Esse é um modo de ser em rede comuni- Ao longo da história, encontramos pesso-
cacional. Há um processo, pode-se dizer, de as que souberam “alargar o olhar, ter visão e
superação da existência individual para o es- sensibilidade aos sinais dos tempos” para fa-
tabelecimento de um corpo coletivo. Por isso, zer o bem. E são inúmeros os pontos lumino-
afirma o pesquisador Pedro Gilberto Gomes sos que “semearam” a história. Foi cultivando
(2009, p. 5), “a tecnologia digital está colo- a visão sobre o mundo, a sociedade do novo
cando a humanidade num patamar distinto. século que nascia (1800 para o 1900), que
Esse patamar, muito embora tenha raízes no um pequeno-grande homem, Tiago Alberio-
progresso anterior, representa a constituição ne, dócil ao Espírito, despontou como ponto
de uma nova ambiência social”. luminoso na Igreja, profundamente sintoniza-
Tal fato é um salto qualitativo porque re- do com a realidade sociocultural e eclesial. Ele
presenta um estágio superior do qual não há despertou, inquietou-se e perguntou ao Se-
volta. Exemplifica o pesquisador que, assim nhor: “O que fazer pelos homens do novo sé-
como a invenção do alfabeto foi um salto qua- culo?”. Sua inquietação naquele contexto nas-
litativo com respeito à oralidade, e a eletrici- cia de um chamado para proclamar a Palavra
dade com respeito ao vapor, a tecnologia digi- de Deus com os modernos meios de comuni-
tal está colocando as pessoas em uma nova cação, então florescentes. No início, certa-
ambiência social. mente com a imprensa, depois com o rádio, a
Afirma o comunicólogo Muniz Sodré TV, chegou até a tentar o cinema, enfim, os
(2009, p. 8) que estamos vivendo um quarto audiovisuais, e, vislumbrando o futuro, disse:
bios que implica uma nova tecnologia percep- “Tudo que a ciência poderia oferecer para fa-
tiva e mental, portanto, um novo tipo de rela- zer o bem”. Era preciso alargar o horizonte,
nº- 300

cionamento do indivíduo com as referências estar em sintonia com os tempos, para procla-
concretas e com a verdade, ou seja, uma outra mar a Palavra de Deus. Tudo foi amadurecido

ano 55

condição antropológica. Em outras palavras, na oração, e Tiago Alberione fundou então a


está se gerando uma nova ecologia simbólica, Família Paulina, iniciando com os padres e ir-
isto é, há uma alteração nos modos de percep- mãos paulinos; depois, com a valorização da

Vida Pastoral

ção e práticas correntes na mídia tradicional; mulher, vieram as irmãs paulinas: todos com

47
um carisma para a evangelização com a co- duzir não aquelas que viveram dez séculos
municação. 1
atrás, e sim aquelas que vivem hoje (Anota-
Alberione iniciou, assim, na Igreja, um ções de Teologia Pastoral, 92-93).
estilo original de evangelização – santidade e
Havia muita preocupação de organizar as ati-
apostolado com a imprensa e os sucessivos
vidades apostólicas: a vontade de alcançar a to-
meios de comunicação, “a pregação escrita
dos, não somente os indivíduos, mas também a
junto à pregação oral”.2 A Igreja e a sociedade
massa do povo e as classes cultas, a criatividade
ganharam a Família Paulina para evangelizar
para ir ao encontro de necessidades reais das pes-
com a comunicação. Ele intuiu o significado e
soas e a sensibilidade para conhecer o contexto
a importância da comunicação como “eixo”
social contemporâneo são as motivações profun-
sobre o qual se movem as pastorais. Introdu-
das que levaram Alberione a amadurecer a ideia
ziu, então, na Igreja um carisma pastoral:
da evangelização com a comunicação para anun-
evangelizar com a comunicação.
ciar o Reino de Deus, e que ele confiou aos mem-
As mudanças do contexto social influen-
bros da Família Paulina. Vale ressaltar ainda a
ciam sobre a pastoral. E Alberione chega a dizer
abertura de mente e o senso de missionariedade
em certa ocasião: “convém alargar
de Alberione ao formar a Família
[os horizontes], segundo as neces- “Alberione intuiu Paulina: ele quis a presença da
sidades de hoje [...] Convém tomar
o significado e a mulher associada ao zelo sacerdo-
o mundo e os homens como eles
importância da tal, daí a fundação de várias con-
são hoje, para fazer o bem, hoje”.
gregações femininas.3 Não se can-
“Toda a Família Paulina orienta-se comunicação como
sava de enfatizar, para os seus se-
para a pastoral [...] Hoje, fala-se
muito a respeito do espírito pasto- ‘eixo’ sobre o guidores, que o equilíbrio do ca-
risma paulino se compõe de uma
ral; no entanto, já faz algum tempo qual se movem as
contemplação com finalidade
que esse espírito pastoral desper-
tou” (1965). Dar orientação mo-
pastorais.” apostólica e de uma ação pastoral
com motivos contemplativos.
derna às obras é o que deduzimos
O carisma paulino tem uma identidade pas-
de seu espírito profético e criativo. Assim, diz:
toral e encontra na evangelização com a comuni-
a religião, a doutrina, a moral, a ascética cação a sua permanente juventude (SASSI,
são imutáveis; no entanto, têm sofrido e so- 2013), lembrando-se que, desde o início, o
frem ainda certo progresso acidental, porque bem-aventurado Tiago Alberione descreveu o
vão sendo compreendidas pelos homens e carisma paulino como uma unidade indissolú-
se adaptam às necessidades dos tempos e vel de diversos elementos: “O mundo tem ne-
das classes sociais. Nós devemos conduzir as cessidade de uma nova, longa e profunda evan-
almas ao paraíso; no entanto, devemos con- gelização” (La primavera paolina, p. 680).

1 A Família Paulina, fundada pelo bem-aventurado Tiago


Alberione, iniciada em 1914, é composta pela Pia 3. A comunicação como eixo da ação
Sociedade de São Paulo (Padres e Irmãos Paulinos); pela Pia
pastoral da Igreja
nº- 300

Sociedade Filhas de São Paulo (Irmãs Paulinas); pelas Irmãs


Pias Discípulas do Divino Mestre; pelas Irmãs de Jesus Bom
Pastor (Pastorinhas); pelas Irmãs de Nossa Senhora Rainha
O elo comunicação e pastoral faz parte da

dos Apóstolos (Apostolinas); e pelos Institutos Seculares: nova evangelização, nas mais variadas exigên-
ano 55

Maria Santíssima da Anunciação (Anunciatinas), de São


Gabriel Arcanjo (Gabrielinos), Santa Família, Jesus
Sacerdote e União dos Cooperadores Paulinos.

3 A essência do pensamento de Alberione sobre a mulher


Vida Pastoral

2 Apostolato stampa, p. 24. está no livro A mulher associada ao zelo sacerdotal.

48
cias do mundo contemporâneo, especialmente
a crise da transmissão da fé. O “eixo” é dinâmi- A ditadura continuada
Fatos, factoides e partidarismo
co, evolui com os tempos; as pastorais, para da imprensa na eleição
realizar o diálogo entre fé e cultura, devem en- de Dilma Rousseff
trar no dinamismo atual da comunicação.
Jakson de Alencar
No contexto da cultura em que vivemos,
faz-se necessário assumir a própria comunica-
ção como eixo transversal de toda a ação pasto-
ral. Isso requer o esforço para compreender a
comunicação como uma experiência de vida. E
aqui podemos sempre “linkar” com o pensa-
mento do Magistério da Igreja, nas mensagens
dos papas por ocasião do Dia Mundial das Co-
municações, onde nos falam sobre a “Verdade,
anúncio e autenticidade de vida na era digital”
(2011), “Redes sociais: portais de verdade e de
fé; novos espaços de evangelização” (2013) e
272 págs.
“Comunicação a serviço de uma autêntica cultu-
ra do encontro” (2014), chamando-nos a aten- Demonstra que os “jornalões”
ção para o fato de descobrirmos como sermos brasileiros, além de partidarizados,
cristãos no contexto das redes sociais. não têm compromisso nem mesmo
As mensagens, então, tratam de uma pers- com seus manuais de redação. A
pectiva que assume a comunicação para além obra relembra que o golpe militar e
a ditadura tiveram o apoio da mídia
dos aparatos, e oferecem a reflexão sobre a e identifica laços de continuidade
necessidade de substituir o costumeiro des- do autoritarismo com a  atuação da
lumbramento perante as novas tecnologias mídia no presente. Isso apareceu de
pela reafirmação do ser humano como um ser maneira clara quando uma ex-militan-
de comunicação na comunidade e pela comu- te da resistência à ditadura concorreu
nidade, integrando ecossistemas comunicati- à presidência do país. Com esse
viés, o livro analisa, além do caso da
vos abertos e criativos, sejam estes os espaços ficha falsa da candidata difundida
da família, da escola ou da paróquia, do am- na mídia, outros diversos episódios
Imagens meramente ilustrativas.

biente de trabalho, ou da própria mídia (Ben- e orquestrações midiáticas durante a


to XVI, 2010). campanha, os quais misturaram com
Em sua mensagem para o Dia Mundial das frequencia fatos com opiniões e boa-
Comunicações (2010), Bento XVI adverte aos tos, torcida, manifestação de desejos
travestidos de informação.
cristãos que, para dar respostas adequadas a
questões no âmbito das grandes mudanças cul- Vendas: (11) 3789-4000
turais, particularmente sentidas no mundo ju- 0800-164011
venil, as vias de comunicação, abertas pelas SAC: (11) 5087-3625
nº- 300

conquistas tecnológicas, tornaram-se um ins- V i s i te n os s a l oj a V i rtu a L


trumento útil. De fato, pondo à nossa disposi- paulus.com.br

ano 55

ção meios que permitem uma capacidade de


expressão praticamente ilimitada, o mundo
digital abre perspectivas e concretizações notá-

Vida Pastoral

veis ao incitamento paulino: “Ai de mim se não

49
anunciar o Evangelho!” (1Cor 9,16). damente, no mundo mutável das comunicações
Não há dúvida de que, como já dissemos, es- sociais” (Dia Mundial das Comunicações, 2001).
tamos imersos em uma cultura, um ambiente que Para anunciar o Reino proposto por Jesus, “não
se chama cultura digital, pois são milhões de pes- basta utilizar a mídia para difundir a mensagem
soas que circulam no grande espaço que a internet cristã e o Magistério da Igreja, mas é preciso inte-
oferece, à procura de informações, conteúdos, grar a própria mensagem nessa nova cultura cria-
contatos, entretenimento, serviços, produtos. As- da a partir da comunicação moderna” (Redempto-
sim, como afirma o recente Diretório de Comuni- ris missio, n. 37). Trata-se de inculturar o Evange-
cação da Igreja no Brasil (2014), lho na comunicação atual.
“deve-se entender a sociedade atual “Substituir o
a partir dos processos de comunica- costumeiro Comunicação como
ção centrados na pessoa e nas rela- “habitação” de um mundo
ções entre ela, a sociedade e o mun- deslumbramento Um dos pontos fundamentais,
do. A própria sociedade, seus indi- perante as novas como parte da compreensão da
víduos e instituições passam a to- “comunicação como eixo da ação
mar as mídias, suas práticas e lógi- tecnologias pela pastoral da Igreja”, está na mudan-
cas como referência no estabeleci- reafirmação do ser ça de mentalidade em compreen-
mento de seus processos internos” der a comunicação não reduzida a
(16). E João Paulo II (2005) afirma-
humano como um instrumentos, mas, segundo o pes-
va: “A nossa época é um tempo de ser de comunicação quisador Luca Pandolfi:
comunicação global, onde muitos na comunidade e pensar a comunicação como
momentos da existência humana se
desenrolam através de processos pela comunidade.” um lugar do qual nós fazemos
parte e devemos habitá-lo segun-
midiáticos”. Isso proporciona o sur-
do o estilo evangélico que, pouco
gimento de novos ambientes de interação social,
por vez, procura os caminhos corretos para
que possibilitam a homens e mulheres desenvol-
encarnar-se. Esta mudança de mentalidade
verem novos modos de ser pessoa, de estar na so-
é fundamental: faz pensar a evangelização
ciedade, de ser comunidade e de viver a fé.
como promoção de vida, isto é, como boa
Todas as transformações, as mudanças em
notícia que faz emergir a vida. O conceito
que estamos imersos, apresentam desafios e
de encarnação é o modo com o qual se
oportunidades para a Igreja (e, portanto, as pas-
evangeliza; uma evangelização sem encar-
torais), neste início de século XXI, que conver-
nação não tem sentido.4
gem para a necessidade de uma revisão pastoral
e cultural. Já nos dizia o Documento Aetatis No- Dessa “habitação” do mundo, podemos obser-
vae (4): “A revolução das comunicações afeta var que estão nascendo novas maneiras de pensar,
[...] a percepção que se pode ter da Igreja e con- de ensinar e de aprender. Portanto, não se trata
tribui para a modelação das próprias estruturas simplesmente de adquirir um novo computador. A
e funcionamento. Tudo isso tem consequências mudança consiste em uma passagem de uma
pastorais importantes”. “ideia” que possuíamos até o momento a respeito
nº- 300

Essa “revolução” impulsiona a Igreja a uma


espécie de revisão pastoral e cultural, a fim de ser

4 Luca Pandolfi, “Nuovi Media e nuove mentalità di


ano 55

capaz de enfrentar de maneira apropriada a pas- comunicazione”, conferência proferida em Roma, outubro
sagem de época que estamos vivendo, afirma de 2012. Tradução da autora. Luca Pandolfi, da diocese de
João Paulo II. O descortinar desse novo tempo Roma, professor de Antropologia Cultural e Sociologia da

Vida Pastoral

religião na Pontifícia Universidade Urbaniana, onde dirige o


leva a Igreja a “se impregnar, sempre mais profun- Centro de Comunicação Social.

50
do texto, da leitura. Dá-se uma mudança de méto- Para Antonio Spadaro, as recentes tecnolo-
do, isto é, escrever não é mais oferecer simples- gias digitais não são mais somente tools (ferra-
mente uma mensagem pronta que comunica a in- mentas), isto é, instrumentos completamente
tenção do autor, mas oferecer material para o tra- externos ao nosso corpo e à nossa mente. “Os
balho do leitor, que, agora, se transforma em “au- modernos meios de comunicação há tempo fa-
tor”. Muda-se a forma de produzir. Muda, então, a zem parte dos instrumentos comuns através dos
função do chamado receptor. É o usuário que se quais as comunidades eclesiásticas se expressam,
serve, como deseja, dos produtos de consulta; entrando em contato com o seu próprio territó-
pode escolher segundo os seus gostos e desejos. rio e estabelecendo, muitas vezes, formas de diá-
Assim, especialmente a hipermídia favorece o de- logo mais abrangentes”. Foi o próprio Bento
senvolvimento da interatividade de forma extraor- XVI, em sua mensagem para o Dia Mundial das
dinária. Trata-se não apenas de uma ”novidade” a Comunicações de 2010, a declará-lo.
mais no mercado, e sim de novas linguagens que já Já é consenso entre os pesquisadores que a
se encontram, progressivamente, na área da educa- internet está mudando, sim, nosso modo de pen-
ção. Podemos perceber isso através dos cursos a sar e de viver a fé na contemporaneidade. “Se a
distância que estão proliferando de forma crescen- internet está mudando nosso modo de pensar,
te em todo o país. Chegamos a uma etapa na qual ela não estará modificando a nossa forma de pen-
cada pessoa se transforma em um “nó” comunica- sar a fé? Está alterando nosso modo de pensar e
tivo coligado a todos os outros. Nessa perspectiva, viver a experiência da Igreja? Está transformando
não se poderá mais viver senão “em rede”. a nossa maneira de ler a Bíblia?”.
Na fase industrial, e como característica da Segundo Spadaro, as redes sociais não ex-
modernidade, temos a cultura de massa, como pressam um conjunto de indivíduos, mas um
uma “profusão ilimitada dos signos”. Ligada ao conjunto de relações entre os indivíduos. “O
processo de desenvolvimento industrial e urba- conceito-chave não é mais a ‘presença’ na rede,
no, a comunicação de massa inicia a produção mas a ‘conexão’: estando presente, mas não co-
de um produto industrializado e hegemônico. nectado, se está ‘só’. Se eu interajo, eu existo. O
Consequentemente, temos uma cultura hegemô- indivíduo entra na rede para experimentar ou
nica. Nesse contexto, a comunicação de massa se ampliar de algum modo a proximidade/vizi-
transforma em produção e transmissão de formas nhança. Deve-se, portanto, entender como o
simbólicas. É uma grande mudança, profunda, conceito de ‘próximo’ evolui a partir da rede.”
na sociedade, porque a comunicação de massa, Importante perceber que a lógica da internet
como forma simbólica, começa a mediar a “cul- implica que o conhecimento passa pela relação.
tura moderna”. É a fase industrial. “A web 2.0 é uma rede de relações, o conteúdo
Já na pós-modernidade, a comunicação não é comunicado através da transmissão, mas
chegou a constituir-se como uma nova ambi- por compartilhamento. Se um conteúdo é trans-
ência, um conjunto de valores, uma forma mitido, ele não é conhecido, mas se é comparti-
nova de viver, de nos movimentar, de nos so- lhado, sim. Exemplo: no meu blogue, se eu publi-
cializar. E isso é, do ponto de vista antropoló- car e deixar apenas ali, poucos irão ler. Já tentei
gico (nossas crenças, nossos estilos de vida, fazer isso. Mas se eu postar no Twitter, imediata-
nº- 300

nossos costumes etc.), uma cultura midiática, mente mais de 2000 pessoas irão ler no mesmo
ou seja, a comunicação que realmente se cons- dia” (SPADARO, 2012).

ano 55

titui em um elemento articulador que gera,


administra, sustenta, desenvolve e ancora to- Conclusão
dos os aspectos de vida/sociedade que vive- Gostaria de concluir, retomando a expressão

Vida Pastoral

mos na sociedade contemporânea. com que iniciei esta exposição: a comunicação

51
como elemento articulador das mudanças na so- cultural no qual somos chamados a anun-
ciedade. Há um ponto luminoso que nos incenti- ciar a Boa-Nova de Jesus Cristo; mas tam-
va e que apresentou à Igreja um modo original de bém à novidade dos métodos [...] Estamos
evangelizar: o bem-aventurado Tiago Alberione, vivendo momentos de profundas mudan-
fundador da Família Paulina no início do século ças na comunicação. Elas são visíveis no
XX, que intuiu o significado e a importância da que diz respeito à técnica. Mas na cultura
comunicação como “eixo” sobre o são mais significativos ainda.
qual se movem as pastorais e as “Essa ‘revolução’
Não podemos simplesmente
dinamiza. Alberione introduz na impulsiona a Igreja a
fazer aquilo que sempre fazíamos
Igreja um carisma pastoral: evan-
gelizar com a comunicação. E a
uma espécie de revisão e como fazíamos com as tecnolo-
gias. Hoje, mais do que nunca te-
comunicação se torna o “eixo” di- pastoral e cultural, a
mos necessidade de audácia e sa-
nâmico da ação pastoral da Igreja. fim de ser capaz de bedoria para evangelizar. Então,
E concluo com as palavras
primeiramente, fazer atenção que
do presidente do Pontifício enfrentar de maneira
a Boa-Nova deve ser proclamada
Conselho para as Comunica- apropriada a passagem
também digitalmente. E o outro
ções (Vaticano), D. Carlo Maria
de época que estamos desafio é mudar o nosso estilo de
Celli, na sua intervenção no úl-
comunicação. Devemos ocupar-
timo Sínodo sobre a Nova Evan- vivendo.”
-nos, sobretudo, da questão da
gelização, 2012:
linguagem. No fórum digital, há o espontâneo, o
A nova evangelização nos pede de es- interativo e o participativo. Estamos aprendendo a
tarmos atentos à “novidade” do contexto superar o modelo do púlpito.
Referências

ALBERIONE, Tiago. UCBS, A. 8, 20 de agosto de 1925, p. 3-4, em La primavera paolina, p. 680.


_______. Anotações de Teologia Pastoral, p. 92-93.
BENTO XVI. “Mensagem para o 44º Dia Mundial das Comunicações”, 2010.
CNBB. Diretório de Comunicação da Igreja no Brasil. Documentos da CNBB, 2014.
GOMES, Pedro Gilberto. Entrevista à IHU On-line (Revista do Instituto Humanitas Unisinos), abril de 2009,
edição 289.
JOÃO PAULO II. “Mensagem para o 35º Dia Mundial das Comunicações Sociais”, 2001.
________. Redemptoris missio, n. 37.
________. O rápido desenvolvimento, n. 3.
MORAES, Dênis de (org.). Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006.
PANDOLFI, Luca. “Nuovi Media e nuove mentalità di comunicazione”. Conferência proferida em Roma,
outubro de 2012. Tradução da autora. Lucas Pandolfi, da diocese de Roma, professor de Antropologia Cultural e
nº- 300

Sociologia da religião na Pontifícia Universidade Urbaniana, onde dirige o Centro de Comunicação Social.
SASSI, Silvio. “O Carisma Paulino é pastoral”. Roma, 20/08/2013.

ano 55

SODRÉ, Muniz. “A interação humana atravessada pela midiatização”. Entrevista à IHU On-line (Revista do
Instituto Humanitas Unisinos), abril de 2009, edição 289.

Vida Pastoral

________. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes, 2002.
Também em MORAES, Dênis de (org.). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006.

52
Conversão pastoral: desafios
de renovação da Igreja
João Décio Passos*

A Igreja se faz na ação concreta no mundo como sinal e instrumento


do Reino de Deus. Para essa missão é que ela existe com suas
tradições, celebrações e estruturas. Por essa razão, a Igreja se renova à
medida que se encarna nas diversas realidades, buscando ser fermento
e luz, servindo como Jesus Cristo serviu e dialogando com as diferenças
que caracterizam os diferentes grupos humanos. A pastoral entendida
como missão que nasce do próprio Evangelho, fonte e base do que a
Igreja é e deve ser, constitui a busca de renovação permanente para as
estruturas e para as linguagens que fazem parte da Igreja em cada
nº- 300

tempo e lugar.

ano 55

*Doutor em Ciências Sociais e livre docente em teologia. Professor do Departamento de Ciência da


Religião da PUC-SP e do Instituto São Paulo de Estudos Superiores. É autor de diversas publicações,

Vida Pastoral

sendo seu último livro Concílio Vaticano II – Reflexões sobre um carisma em curso , publicado pela
Paulus. Email: jdpassos@pucsp.br.

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T
oda renovação autêntica exige con- bém suas vozes místicos e teólogos, e foram
versão de pessoas e estruturas, tendo convocados muitos Concílios, de modo ex-
em vista que individualidade e cole- plícito o último grande Concílio. A história
tividade constituem dois aspectos de uma mostra que a renovação faz parte da dinâmi-
realidade única que é a vida humana. Con- ca da Igreja, muito embora se possa consta-
verter significa optar por uma nova direção tar uma força de conservação afirmada e re-
e, a partir desta, refazer os objetivos e as es- produzida pela instituição que vai se tor-
tratégias de ação e, em muitos casos, o pró- nando mais estruturada e rígida, em nome
prio modo de ser. O convertido vive uma da verdade e da unidade da fé.
dinâmica permanente de conformar-se a A pastoral é a razão de ser da Igreja, e
uma direção escolhida e de reafirmar cons- não o contrário. É por causa da missão pas-
tantemente essa escolha como orientação toral que a Igreja existe: é enviada a anun-
fundamental de vida. O cristianismo se ciar a vida de Jesus Cristo a todos os povos,
constituiu numa autocom- para que todos a tenham ple-
preensão e, antes, numa prá- “Não faltaram, ao namente (cf. Jo 10,10). Por
tica de renascimento da pes- essa razão, a Igreja se organi-
longo da história,
soa na comunidade. O cristão za em suas estruturas e fun-
é aquele que renasce em Je- movimentos ções, afina sua linguagem e
sus Cristo, tornando-se um permanentes de sua solidariedade, avalia e
homem novo (cf. Rm 6,3- revê suas formas de agir e de
11), explica o apóstolo Paulo. renovação eclesial, pensar. Isso significa dizer
A Igreja foi a construção his- de retorno àquela que a Igreja não está no cen-
tórica dessa realidade nova – tro do anúncio da vida de Je-
Boa notícia, Evangélion, em fonte original.” sus Cristo, mas a serviço dele.
grego –, vivenciada como Para tanto, deve vigiar-se para
fundamento primeiro; foi a comunidade de não cair na tentação do eclesiocentrismo,
renovados e em permanente renovação na forma de infantilismo eclesial que só pode
atualidade do dom oferecido por Jesus Cris- ser superado quando se abre para o outro
to. Os formatos institucionais agregados e, no diálogo, constrói com ele novas con-
progressivamente a essa realidade misterio- dições de vida pautadas no amor. O papa
sa primeira vieram de dentro dela própria e Francisco tem falado na necessidade de os
também de fora, do entorno social, cultural pastores terem “cheiro de ovelhas”. O ser-
e político. De dentro, à medida que o tempo viço e o diálogo são as atitudes fundamen-
passa e se torna necessário organizar de ma- tais da conversão pastoral em nossos dias
neira mais definida a comunidade; quando a de modernidade avançada, marcada pelo
comunidade empresta os modos de organi- individualismo e pela busca do maior bem-
zação da sociedade greco-romana e, poste- -estar com o menor esforço. A atitude pas-
riormente, do próprio Império Romano. toral é, nesse contexto, resistência, teste-
E não faltaram, ao longo da história, munho e ação que, em ponto pequeno,
nº- 300

movimentos permanentes de renovação provoca transformações, ainda que, muitas


eclesial, de retorno àquela fonte original que vezes, quase imperceptíveis e incontabili-

ano 55

caía na rotina e se tornava menos visível e záveis (cf. EG, 279-280). À medida que a
operante. Com esse ideal e dinâmica, foram Igreja, todo o povo de Deus, se converte
pastoralmente, ela modifica o mundo e

fundadas as comunidades de vida monásti-


Vida Pastoral

ca e as ordens religiosas, fizeram ouvir tam- modifica, antes de tudo, a si mesma.

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1. A renovação da Igreja cada fiel que se agrega a uma comunidade e,
nessa relação intersubjetiva, se faz comu-
A Igreja fiel à sua origem está sempre em
nhão. A comunidade eclesial constitui essa
renovação – ecclesia semper reformanda, re-
comunhão e mistério como povo concreto,
petiam e repetem os reformadores. Essa afir-
como povo de Deus, nos ensina o Vaticano
mação é mais que um princípio ou uma fra-
II (cf. Lumen Gentium, cap. I e II).
se de efeito que possa ser bem acolhida em
Mas o povo de Deus é santo e pecador; é
alguns contextos eclesiais, como em boa
luta entre o homem velho e o homem novo
medida no contexto atual. Para muitos de- (cf. Cl 3,5-11) e pode perder o dom original
fensores da preservação da instituição, ela e se desviar do caminho; é quando uma co-
significa não mais que um princípio de re- munidade eclesial deixa de ser eclesial e se
novação espiritual dos fiéis, e não uma pos- torna uma associação qualquer, ainda que
tura de renovação institucional, coisa que em nome de princípios e práticas religiosas.
poderia beirar o propósito do protestantis- É nesse sentido que, desde as suas origens, a
mo no século XVI. Para outros, o correto comunidade cristã entendeu que era possí-
seria apenas uma re-forma da Igreja (mu- vel fazer o caminho de volta, reconciliar-se
dança de forma que preserva a essência), e com o dom original, refazer-se como indiví-
não uma renovação que implicaria mudan- duo e como comunidade a partir do dom
ças radicais e estruturais. Em qualquer um original oferecido por Jesus Cristo.
dos casos, a pergunta pelo que preservar e No caso de uma perda da essência, ou do
pelo que mudar permanece na teoria e na carisma fundante, a renovação eclesial signi-
prática em todo intento reformador que fica a Igreja voltar às origens, ao carisma em
emerge na Igreja. A pergunta por aquilo que status nascendi, para que seja fiel à própria ra-
é essencial não fica, de qualquer modo, dis- zão de ser. A história mostra que é possível
pensada e, quase sempre, suscita acalorados perder o essencial em troca do acidental, ain-
debates. Tratar-se-ia de manter as estruturas da que, do ponto de vista dogmático, se deva
institucionais intactas e mudar as estratégias afirmar que a fonte divina da Igreja é, por si
evangelizadoras? Ou, de modo oposto, de mesma, imperdível, uma possibilidade per-
uma renovação a partir da própria estrutu- manente de “refontalização”. O retorno per-
ra? Ou, ainda, de modo mais radical, de manente às fontes significa sempre uma reto-
uma reforma da própria essência, uma vez mada da essência ou do fundamento, ativida-
que esta pode estar desgastada ou ter sido de ao mesmo tempo hermenêutica e política,
perdida no decorrer do tempo? Há quem ou seja, que interpreta de novo sobre o signi-
afirme, nas pegadas da filosofia grega, que ficado das fontes e, desde então, busca os
uma essência não se perde, precisamente modos operacionais de aplicá-la em cada
por constituir a natureza estável de determi- época e lugar. Também, de sua parte, a socio-
nada coisa. Contudo, a essência da Igreja logia explica os processos de renovação como
não pode ser concebida à maneira grega, inerentes aos movimentos históricos, parti-
como ideia platônica ou como forma aristo- cularmente aos movimentos religiosos. Estes
nº- 300

télica, donde derivariam, de fato, as quali- nascem a partir de uma oferta de carisma por
dades da estabilidade e da imutabilidade. parte de um fundador que se apresenta habi-

ano 55

Ela é um carisma presente na história e, nes- litado para tal: como portador de um dom
sa concretude, torna-se mistério vivo e real; extraordinário que permite romper com a ro-
trata-se de um dom vivenciado nas condi- tina da história em implantar o novo (cf. WE-

Vida Pastoral

ções reais da história como escolha livre de BER, 1997, p. 193-197). Porém, a rotina que

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segue à irrupção do carisma proporciona tan- inaugurou a era da renovação da Igreja, ao
to o movimento de institucionalização, or- colocá-la em diálogo permanente com o
dem que pretende guardar e transmitir com mundo presente. O papa João XXIII ideali-
segurança e legitimidade o carisma, quanto o zou e encaminhou o Concílio como propósi-
movimento de retorno ao carisma, sobretudo to de aggiornamento da Igreja ao mundo mo-
no momento em que a instituição entra em derno. Era preciso, acreditava, revelar ao
crise seja pela luta interna de seus sujeitos, mundo contemporâneo a verdadeira subs-
seja pelo desgaste de suas estruturas e regras tância da fé, sabendo, pois, que uma coisa era
(cf. WEBER, 1997, p. 196-197). a substância da fé e outra o seu modo de for-
mulação (cf. “Discurso inaugural”). Os tem-
A Igreja em processo de renovação pos pós-conciliares conheceram uma afirma-
A renovação da Igreja é um movimento ção crescente da visibilidade institucional da
nem sempre operante e visível, tendo em Igreja e da unidade da formulação doutrinal
vista, no caso da Igreja católi- e a centralidade das decisões
ca, as estruturas fortemente
“A crise da eclesiais, retomando padrões
consolidadas, o ponto de vis- instituição deve ser próximos de Trento e do Vati-
ta organizacional e o ponto de
vista como graça, cano I (cf. LIBANIO, 1984; FA-
vista da fundamentação teoló- GGIOLI, 2013). Pode-se falar
gica. Uma teologia da Igreja como possibilidade hoje, com maior clareza, de
que identifica a sua fonte com de renovação na uma renovação interrompida
a sua organização, o carisma que, a partir do governo cen-
com a instituição, o dom da força do Espírito que tral da Igreja, transformou as
comunhão com as estruturas sopra onde quer e decisões conciliares em um
administrativas, pode levar à detalhe, talvez pouco impor-
ilusão de uma Igreja fixa e pe-
que renova o que tante, dentro da longa tradição
rene, sem lugar para o misté- está envelhecido.” católica. A partir do carisma
rio sempre presente e provo- conciliar, as forças de renova-
cador do novo. Nessa perspectiva, a crise da ção e de conservação se misturaram nas po-
instituição deve ser vista como graça, como sições e nas práticas eclesiais pelo mundo
possibilidade de renovação na força do Espí- afora (cf. PASSOS, 2014, p. 31-84). Mas a
rito que sopra onde quer e que renova o que retomada das fontes conciliares, de seu ca-
está envelhecido. De fato, a pergunta pela risma fundamental emergiu novamente em
essência da Igreja sugere uma saída que bus- “flor de inesperada primavera” (JOÃO
ca de dentro dela mesma aquilo que a cons- XXIII), quando já se contava com uma her-
titui como fundamento de onde se retiram os menêutica definitiva sobre o Vaticano II, nos
elementos para a sua renovação. Toda tradi- termos acima descritos. De dentro da tradi-
ção constitui, nesse sentido, o vínculo que ção estável emergiu uma crise e, por conse-
liga a ordem presente ao carisma fundante, guinte, aos borbotões, um clamor por refor-
do contrário trai-se o próprio passado em mas urgentes na Igreja. O papa Francisco é
nº- 300

nome do presente. eleito como programática de reforma da


Na longa tradição cristã, vivemos, de Igreja (cf. PASSOS-SOARES, 2013).

ano 55

fato, em nossos dias uma temporalidade de Para os que se calaram na perplexidade


renovação, ainda que sob tensão e luta pelo da renúncia de Bento XVI e na aparição do
sentido do significado e dos rumos dessa re-

novo papa, nitidamente renovador nas ati-


Vida Pastoral

novação (cf. FAGGIOLI, 2013). O Vaticano II tudes e palavras, o papa Francisco fala hoje,

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em sua Exortação (2013), de uma “renova- sos humanos e de operar mudanças históri-
ção inadiável” da Igreja a partir do “coração cas. Não se trata de anarquismo político ou
do Evangelho” (EG 27; 34). A essência da carismático, mas da busca da organização
Igreja vem, pois, da concordância com o mais coerente com as origens ou com o caris-
Evangelho; nasce da identificação com a ma em status nascendi, do qual veio determi-
vida que jorra do próprio Cristo vivo na his- nada organização institucional. Assim ocorre
tória, presente em cada irmão e, de modo o nascimento dos movimentos renovadores
particular, nos mais pobres. A alegria do no decorrer da história humana: quando a
Evangelho se constitui precisamente nessa rotina institucional já não responde por si
oferta que se torna, por si mesma, capaz de mesma por sua existência e permite a emer-
renovar tudo na Igreja. A pergunta pelo sig- gência de figuras que propõem uma nova
nificado e pelos rumos da Igreja sob o pon- condição de vida como dom extraordinário
tificado franciscano permanece ainda sem que rompe com o peso do cotidiano.
respostas claras e definidas e, hoje, sem dú- O cristianismo vivencia essa tensão
vidas, sob o signo de uma luta hermenêutica como dinâmica permanente e constitutiva
que recoloca em trincheiras disfarçadas re- que o faz sempre voltado para fora de si
novadores e conservadores. mesmo, para sua fonte; sempre provisório
na história que passa na busca do mistério
que o constitui. A Igreja é, ao mesmo tem-
1.2. A renovação da instituição a
po, o cristianismo em busca de si mesmo; a
partir do carisma
comunidade que se direciona para o seu
A história das religiões mostra que a ro- fundamento primeiro e a instituição que se
tina do carisma pede a instituição. À medida estrutura para vivenciar de modo responsá-
que passa o tempo, o carisma pode “rotini- vel o dom de que é portadora. O carisma
zar-se”, explica Max Weber (1997, p. 199- cristão é um dado sempre atual e provocan-
200), de forma que a organização das regras te, que chama de novo para si como verdade
e funções aparece como estratégia de preser- e bondade salvífica. A tensão entre preser-
vação daquela graça original. Porém, a crise var e renovar é, portanto, inerente ao cristia-
e a rotina podem abater-se igualmente sobre nismo, donde se explicam tanto as rupturas
a instituição. O desgaste da instituição pode, que geram novas igrejas, os movimentos re-
então, sufocar o carisma em nome de si novadores internos e a luta entre os avança-
mesma, de sua própria constituição estrutu- dos e os conservadores no seio de mesma
ral e funcional. Em termos teológicos, trata- comunidade de fé.
-se do eclesiocentrismo ou da Igreja autor-
referenciada, de que fala o papa Francisco.
1.3. O renovar-se a partir
A sequência carisma-rotina-instituição com-
do Evangelho
põe a lógica da formação das instituições de
um modo geral, no processo de racionaliza- O carisma tem nome e conteúdo dentro
ção que rege a história, segundo Weber (cf. da comunidade cristã. O Evangelho vivo é a
nº- 300

1996, p. 11). Contudo, a sequência institui- origem permanente da Igreja (cf. EG 34),
ção-crise-carisma significa o caminho de ou seja, seu começo e sua continuidade: a

ano 55

volta às origens. Esse processo faz parte da fonte de onde jorra a força e a regra para
mesma racionalização, jamais unilinear, toda a organização da Igreja. Essa é a razão
mas, ao contrário, tenso e marcado por bus- de a Igreja estar em renovação permanente.

Vida Pastoral

cas de sentido capaz de revigorar os percur- Em termos sociológicos, trata-se de um ca-

57
risma que constitui a base da instituição. A mana e terrena, a Igreja necessita perpetua-
instituição – as estruturas, as regras, as fun- mente dessa reforma’” (EG 25).
ções e os papéis – é toda construída para
preservar e transmitir o carisma no decorrer
2. A conversão pastoral
do tempo e em cada espaço. Sem o carisma,
a instituição perderia sua razão de ser. O A ideia de conversão pastoral soa parado-
cristianismo constitui um tipo de movi- xal, sabendo que ela faz parte da vida da Igre-
mento que, por se tratar de uma atualidade ja. Ora, só se fala em conversão sobre algo
permanente de salvação por meio da pre- que precisa de mudança de rumo. O conceito
sença pneumática de Jesus Cristo na histó- apresentado pelo papa Francisco se insere
ria, não permite congelamentos institucio- em seu propósito de reforma da Igreja. A
nais nem em nome do passado, nem em Igreja em saída tem de se converter em seu
nome da organização burocrática presente. modo de agir e, por conseguinte, em seu
A legitimidade da Igreja vem modo de ser. A conversão pas-
de seu carisma: o Cristo vivo, “O carisma cristão toral é, nesse sentido, mudança
que inclui em si mesmo, de é um dado sempre estrutural e metodologia da
modos diferenciados, todos Igreja. Mas, nesse processo de
os seus discípulos, todos os atual e provocante, renovação que permanece em
homens e todo o universo. que chama de curso na Igreja, qual o lugar da
A Igreja se renova a par- pastoral? É preciso lembrar
tir dessa fonte não somente
novo para si como que, na luta pelo sentido au-
no sentido litúrgico, mas verdade e bondade têntico das renovações conci-
também no sentido socioco- salvífica.” liares, a criatividade pastoral
munitário e no sentido insti- das primeiras décadas conhe-
tucional. Somente assim pode ser entendi- ceu a rotina nas décadas seguintes, bem
da como o Corpo de Cristo na história, como um crescente controle por parte dos
como Corpo vivo de ungidos pelo Espírito organismos da Cúria Romana. A Igreja viveu
na comunidade de distintos na unidade uma “conversão institucional”: uma volta à
(1Cor 12-15). identidade universal no âmbito das práticas e
A Igreja que, em nome da preservação das ideias, em nome da ortodoxia e da tradi-
de algum modelo institucional do passado, ção, por meio da afirmação sempre maior da
não se renova torna-se conservadora, fixada centralidade eclesial da hierarquia. Um mo-
em uma época, e fundamentalista, ao justifi- delo de Igreja marcada essencialmente pela
car essa época como seu fundamento sagra- comunhão dos iguais em franca distância das
do. Em nome do dom da salvação vivencia- diferenças inerentes ao mundo moderno se
do na fé, no amor e na esperança, na comu- fez presente por meio de sujeitos e mecanis-
nidade, tudo deve ser renovado e, em boa mos eclesiais. E a pastoral tomou rumos de-
medida, reinventado. “O Concílio Vaticano correntes desse modelo, adquirindo caracte-
II apresentou a conversão eclesial como a rísticas ora de reprodução da endogenia cató-
nº- 300

abertura a uma reforma permanente de si lica, ora de reprodução dos modos individu-
mesma por fidelidade a Jesus Cristo: ‘Toda alistas da cultura de consumo e, ainda, de

ano 55

renovação da Igreja consiste essencialmente persuasão de massas.


numa maior fidelidade à própria vocação. A conversão pastoral significa o modo
[...] A Igreja peregrina é chamada por Cristo

de praticar o Evangelho no tempo e no es-


Vida Pastoral

a essa reforma perene. Como instituição hu- paço; constitui a ação que faz a própria Igre-

58
ja como mediadora do carisma da salvação;
o caminho de volta ao poço da água viva (cf.
Jo 4,11-15) e a busca da identificação com o Eu! Falando em público?
Sim. Agora é a sua vez.
Mestre Pastor. A Igreja em saída (cf. EG 20)
não se acomoda em suas estruturas institu- Jakson de Alencar

cionais; se faz peregrina no seguimento de


Jesus e vai ao encontro dos que mais neces-
sitam de sua solidariedade. Nesse sentido, a
prática mais planejada ou estratégica identi-
fica-se substancialmente com a espirituali-
dade do seguimento do Pastor. Viver em
Cristo é agir nele. E a Igreja pode repetir
com o apóstolo Paulo: “Eu vivo, mas já não
sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em
mim” (Gl 2,20). A conversão pastoral se tor-
na, nesse sentido, o caminho de renovação

272 págs.
da Igreja. Pela via de identificação com o
Pastor, a Igreja se desfaz de suas carapaças
estruturais, de seus apetrechos estéticos e de A oratória é desmitificada nesta
seus poderes políticos. A via prática parece obra voltada para aqueles que
ser, antes de tudo, o caminho adotado por se sentem inseguros ao falar em
público. O entendimento e a
Francisco em seu ministério e para o qual
prática são facilitados através de
convida toda a Igreja. É do testemunho e da depoimentos, com orientações e
vivência concreta que podem vir as mudan- técnicas. Silvio Luzardo de Almeida
ças. Vale lembrar que as filosofias de raiz Mello é graduado em Direito e
realista sempre postularam a precedência da pós-graduado em psicopedagogia
prática em relação às ideias. As ciências hu- e adotou a práxis de Lev Vygotsky
para desenvolver seu método de
manas afirmam que, antes de se mudar uma
atuação e ensino de fala pública.
estrutura jurídica, teórica ou política, mu- “Abra este livro com a sua Chave
dam-se as práticas históricas. A Igreja em Mestra. Ela é única, especial e
saída se lança numa postura missionária poderosa. Conheça os caminhos
da superação pessoal através
Imagens meramente ilustrativas.

que, pela força da coerência com o anúncio


concreto do Evangelho (vivenciado, teste- da expressão verbal e gestual.
Descubra episódios emocionantes
munhado e pregado), conduz a Igreja às re-
que mudaram a vida das pessoas.”
formas inadiáveis. Na força do anúncio é
que as estruturas caducas podem e devem
ser superadas. Jamais pela discussão teórica
Vendas: (11) 3789-4000
de modelos ou de ideias, mesmo que de 0800-164011
ideias teológicas. SAC: (11) 5087-3625
nº- 300

E o convite à renovação é feito a todo o


V i s i te n os s a l oj a V i rtu a L
povo de Deus, como deixa claro o papa. A paulus.com.br

ano 55

Igreja deve renovar-se por inteiro, da hierar-


quia às bases, das estruturas às posturas
pessoais, da estrutura burocrática às lingua-

Vida Pastoral

gens. O povo de Deus nasce do próprio

59
Evangelho vivenciado na comunidade dos O preço da conversão pastoral da Igreja
seguidores de Jesus, não nasce como des- é a opção pela construção de si mesma no
cendente de uma hierarquia que se exercita serviço mútuo, no diálogo que busca a ver-
a partir de um epicentro sagrado, de onde dade nas diversas alteridades e no aprofun-
provém a possibilidade da graça; não se damento do seguimento de Jesus Cristo em
identifica com a organização histórica da co- cada tempo e lugar, sem as seguranças da
munidade eclesial, expressa em modelos instituição ou dos aparelhos burocráticos
institucionais, e não nasce, por fim, do aglo- eficazes. É viver sem ouro nem prata, viver
merado de fiéis, indivíduos agregados em sempre a caminho do Reino e na busca da
torno de um ideal. O povo de Deus é cons- identificação mais perfeita com o Mestre.
tituído a partir da acolhida de Jesus Cristo Tudo isso significa lançar-se na busca per-
vivo presente no amor que gera a comunhão manente da verdade e da vida que se mostra
dos seguidores de Jesus. sempre incompleta e provisória, jamais se-
gura e definitiva. A fé cristã é
A Igreja em busca “A via prática parece um exercício de liberdade que
permanente de sua ser, antes de tudo, se abre para um mistério que
fonte não se deixa aprisionar em ne-
Contudo, a conversão o caminho adotado nhum conceito definido ou
pastoral permanente tem por Francisco em seu em uma estrutura fixa e acaba-
suas exigências e seu preço. da. É “caminho, verdade e
O mundo atual faz convergir ministério e para o vida” (Jo 14,6), e não essência
no mesmo projeto consumis- qual convida toda definida e instituição pronta.
ta as posturas individualistas É vivência do amor que busca
a Igreja.”
que afirmam a busca inces- concretizar-se em modos co-
sante de bem-estar, incluindo como arrema- muns de vida, porém sem “cidade perma-
te mais profundo o bem-estar espiritual, nente” (cf. Hb 13,14). É dentro do provisó-
com as posturas tradicionalistas que afir- rio que o cristianismo constitui um caminho
mam segurança em sistemas comunitários de vida que se constrói no seguimento. Ser
tradicionais e seguros de sua identidade. discípulo é seguir o caminho do Mestre a
Ocorre, nesse caso, um encontro aparente- cada dia (cf. Mt 10,24-25; Lc 9,23-24).
mente curioso entre o mais moderno indivi- A conversão pastoral é, nesse sentido, rup-
dualismo com o mais pré-moderno institu- tura e resistência ao que propõe como segu-
cionalismo, sabendo, contudo, que se trata, rança e felicidade a sociedade atual e que o
na verdade, de um arcabouço seguro de or- papa Francisco denominou como mundanis-
dem que abriga em seu seio as posturas de mo (cf. EG 93-97). Converter-se pastoralmen-
bem-estar individual que dispensam a dolo- te é simultânea e inseparavelmente abrir-se
rosa busca espiritual marcada pela autono- para a realidade imanente, concreta e imediata
mia radical, pela construção pessoal de um e para a realidade transcendente, espiritual e
percurso espiritual e pela referência ao ou- mediada pela fé; é de dentro da concretude da
nº- 300

tro como parâmetro de vida moral comuni- vida humana que emerge a vida do espírito,
tária. Sem esses valores e vivência, não há que se faz a experiência do Cristo vivo em

ano 55

ecclesia de Jesus, mesmo que haja uma insti- cada ser humano, de modo particular nos
tuição assentada sobre tradições consolida- mais pobres, presença do humano mais singu-

das e estruturada em um corpo burocrático lar, desvestido de todo e qualquer acréscimo


Vida Pastoral

orgânico e funcional. que o qualifique materialmente.

60
2.2. O discernimento dos sinais dos tir do qual se pode pensar nas ações pasto-
tempos rais concretas, desde a mais íntima até a
mais exterior ou avançada.
A história é o lugar da vivência da fé e
O mundo não somente está prenhe dos
nela a Igreja se lança no discernimento dos
sinais de Deus, fala de seus desígnios, como
sinais dos tempos, como ensina o Vaticano
também se torna o parâmetro necessário para
II na Gaudium et Spes: “para desempenhar
a Igreja compreender a sua missão e cada
tal missão, a Igreja, a todo momento, tem o
tempo e lugar, o que significa superar todas
dever de perscrutar os sinais dos tempos e as formas de fixação no passado, na tradição
interpretá-los à luz do Evangelho, de tal ou mesmo em uma hermenêutica literal e
modo que possa responder, de maneira fundamentalista que considera como fonte
adaptada a cada geração, às interrogações de sentido somente um texto que vem do
eternas sobre o significado da vida presente passado e que se identifica em sua forma lite-
e futura e de suas relações mútuas” (n. 4). A ral com a Palavra de Deus. O mundo consti-
história se torna lugar onde Deus fala e, por- tui, assim, uma referência de sentido para a
tanto, lugar em que a Igreja busca a verda- Igreja; a igreja toma consciência de si mesma
de. A leitura de fé da história tem uma raiz e de sua missão na conformidade com a Pala-
teológica, o Espírito de Deus ali está presen- vra de Deus e, por conseguinte, no exercício
te. “Movido pela fé, conduzido pelo Espírito do diálogo com as linguagens que vêm do
do Senhor que enche o orbe da terra, o povo mundo, até mesmo com aquelas linguagens
de Deus esforça-se por discernir nos aconte- distantes da linguagem usual da Igreja, como
cimentos, nas exigências e nas aspirações de as ciências modernas.
nossos tempos, em que participa com ou-
tros homens, quais sejam os sinais verdadei-
ros da presença ou dos desígnios de Deus” 2.3. O significado espiritual-social
(n. 11). O povo de Deus, ou seja, toda a A superação das dicotomias é inerente à
Igreja, se esforça por discernir os desígnios conversão pastoral. Trata-se de uma atitude
de Deus na história. Nesse exercício se in- fundamental do cristianismo, decorrente do
cluem o discernimento das linguagens mo- mistério-dom da encarnação que liga defini-
dernas das ciências e do progresso por meio tivamente o divino ao humano. O cristianis-
da Palavra divina, para que possa, por meio mo rompe com a distinção/oposição entre
delas, exprimir melhor a mensagem de Deus sagrado e profano constitutiva das religiões
ao mundo de hoje (cf. n. 44). de um modo geral (cf. ELIADE, 1999).
A conversão pastoral é consciência do Amor a Deus e amor ao próximo não consti-
lugar da Igreja na história e de sua missão tuem atitudes opostas nem distintas, ensina
de dialogar com cada época e lugar e, por São João (1Jo 4,7-21). As dicotomias entre
meio desse diálogo, auscultar a palavra viva Deus e os homens constituem mentiras para
de Deus. Ao sair de si mesma e voltar-se o cristianismo. No entanto, paradoxalmen-
para fora: para o outro, para a cultura, para te, o cristianismo herdou dicotomias pro-
nº- 300

os pobres, para o mundo etc., a Igreja se faz fundas que ainda hoje estão presentes nas
seguidora de Jesus Cristo, que vive no pre- ideias e nas práticas: oração versus ação, es-

ano 55

sente pela força do Espírito. Essa postura piritual versus material, corpo versus alma,
rompe com todo tipo de fechamento e es- espiritualidade versus social, Igreja versus
tagnação da Igreja em si mesma; constitui o mundo etc. Essas oposições criam falsas es-

Vida Pastoral

primeiro passo da conversão pastoral, a par- piritualidades e falsas posturas pastorais,

61
espiritualidades intimistas e sobrenaturais, 3. A prática do serviço
pastorais eclesiocêntricas e desencarnadas.
A pastoral entendida e assumida como
O princípio da encarnação é a fonte da tran-
missão encarnada da Igreja faz a mudança por
sitividade, da relação e da comunhão entre
dentro da vivência da fé: como identificação
esses aparentes opostos. A pastoral é a ação
com Cristo no outro que se apresenta e que se
concreta do diálogo e do serviço da Igreja
achega sem hora marcada, sem credenciais
no mundo onde encontra com Cristo no ou-
morais e confessionais, e sem oferecer nada
tro, como exorta Francisco: “entra na vida
diária dos outros, encurta as distâncias, em troca. Esse outro é, antes de tudo, o ser
abaixa-se – se for necessário – até a humi- humano desnudado de seus direitos, os po-
lhação e assume a vida humana, tocando a bres e os excluídos, mas é também a alteridade
carne sofredora de Cristo no povo” (EG 24). cultural que carrega dentro de suas ambigui-
As dimensões espiritual e social, muitas dades as sementes do Verbo. A prática autênti-
vezes entendidas e vivencia- ca começa, portanto, no cora-
das equivocadamente como
“A Igreja que se ção, se faz na cordialidade entre
polos opostos, constituem, recolhe em sua os semelhantes e na misericór-
do ponto de vista da fé cristã, dia para com todos. Esse é o co-
estrutura existe para ração do Evangelho, o coração
uma única e inseparável reali-
dade, onde se dá o encontro si mesma e trai sua da comunidade eclesial e deve-
concreto entre Deus e o ser rá ser o coração da sociedade.
essência, ainda que No encontro que supera as indi-
humano. O compromisso so-
cial é decorrente da profissão em ações julgadas ferenças, na solidariedade que
vence os isolamentos e na fra-
de fé no Pai (que ama cada espiritualmente
ser humano), no Filho (que ternidade que liga as distâncias,
assumiu nossa carne) e no
puras e perfeitas.” a pastoral se realiza, rompendo
Espírito Santo (que une a to- com todos os dualismos. A con-
dos). A redenção tem um sentido social. No versão pastoral exige, portanto, as experiên-
irmão, “está o prolongamento da Encarna- cias de curtição e bem-estar espiritual, a mecâ-
ção para cada um de nós” (EG 179). nica da ação planejada, que executa os objeti-
Na teologia da encarnação se encontram vos de uma instituição e a transformação es-
indissociavelmente espiritualidade e materia- tratégica de condições sociais carentes e desu-
lidade, se encontram a teologia do mundo e manas. Qualquer isolamento em uma dessas
da Igreja, como consequência madura das direções nega o Pastor que nos chama a pasto-
orientações conciliares contidas na Lumem rear consigo, mesmo que afirme rituais piedo-
gentium e na Gaudium et spes. Nessa mesma sos e serviços dedicados à estrutura da Igreja.
teologia, os pobres se tornam presença con- A prática pastoral realiza a missão da
creta do Cristo sofredor; neles a concretude Igreja, fazendo-a sair de si mesma para ser-
do amor adquire sua máxima expressão. vir até as periferias humanas (cf. EG 20). O
A Igreja que se recolhe em sua estrutura serviço ao ser humano constitui a Igreja, e é
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existe para si mesma e trai sua essência, ain- a única razão de ser de toda e qualquer ação
da que em ações julgadas espiritualmente que realize. A estrutura eclesial existe para

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puras e perfeitas. O recolhimento na indivi- servir, e não para se autopreservar, ensina o


dualidade pode ser igualmente a morte da papa Francisco. “A reforma das estruturas,
Igreja, ainda que em nome de vivências mís- que a conversão pastoral exige, só se pode

Vida Pastoral

ticas de intimidade com Deus. entender neste sentido: fazer com que todas

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elas se tornem mais missionárias, que a pas- res dessa estirpe. O exemplo mais típico é,
toral ordinária, em todas as suas instâncias, por certo, a Reforma Protestante. Em certa
seja mais comunicativa e aberta, que colo- medida se incluem entre esses os místicos
que os agentes pastorais em atitude cons- que, não obstante a simplicidade e pratici-
tante de ‘saída’ e, assim, favoreça a resposta dade, provocaram mudanças, ainda que tó-
positiva de todos aqueles a quem Jesus ofe- picas, a partir de concepções de vida defen-
rece a sua amizade” (EG 27). didas como mais autênticas ao dom inicial.
Mas há também força renovadora eclodida
*** de dentro das hierarquias, por função de-
fensoras da estabilidade da instituição, tais
Do ponto de vista da transformação ou como algumas realizadas por sínodos e con-
da renovação, a Igreja constitui um curioso cílios. Caso dos Concílios de Trento e Vati-
paradoxo, uma vez que carrega como sua cano II, da Conferência de Medellín etc.
origem o germe da própria mudança de Nessa direção se incluem, evidentemente,
tudo o que constrói como organização insti- os papas reformadores, tais como Gregório
tucional. Sua história mostra, por essa ra- VII, João XXIII e, no momento, o papa Fran-
zão, a força da conservação que busca afir- cisco. Quando isso ocorre, os resultados es-
mar a ligação direta entre as construções truturais das reformas se tornam viáveis,
institucionais do presente e as origens do pela força da legitimidade da autoridade
passado, sob a regra do “sempre foi assim”; que as conduz.
legitimam-se, assim, as concepções, as re- Na verdade, toda renovação só se con-
gras e as funções como fundadas diretamen- clui quando atinge a Igreja como um todo.
te no carisma (na decisão de Jesus, na von- Em termos sociológicos, quando ocorre so-
tade de Deus). O resultado final é uma teo- cialização religiosa: a interiorização dos va-
logia da instituição, uma eclesiologia que lores por parte do conjunto dos fiéis e do
inclui no mesmo sistema teológico todas as clero e, por conseguinte, a vivência dos
construções institucionais numa espécie de mesmos valores pelo conjunto deles. Em
sacralização generalizada de certos costu- outros termos, é quando a norma ou o valor
mes (o latim, a música, os estilos arquitetô- se tornam cultura. Do contrário, a renova-
nicos, os vestuários litúrgicos etc.). Por ou- ção pode permanecer na esfera da legalida-
tro lado, a mesma história revela a força da de, localizada em lugares e sujeitos isolados,
renovação, primeiro por aqueles que estão ou atingir apenas a superfície. As reformas
menos comprometidos com os costumes e da Igreja católica são, por essa razão, sem-
os papéis institucionais, o povo. O povo as- pre lentas e heterogêneas: atingem de modo
simila, em suas práticas de fé, o que é práti- diferenciado as localidades e os sujeitos. Há
co, sem preocupações com coerência de sempre os que permanecem sob a regra dos
ideias ou fidelidade à disciplina moral e li- velhos costumes, dentro ou fora da oficiali-
túrgica oficial. Assim se explicam os sincre- dade eclesial. A história mostra essas diver-
tismos, troca espontânea do mais complexo gências não somente nas reformas que rom-
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e abstrato pelo mais simples e prático. E a peram diretamente com a tradição católica,
Igreja transformou muitos hábitos a partir mas também dentro da própria Igreja.

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desse processo no decorrer de sua história. As reformas pretendidas pelo papa


A força de renovação pode vir também da Francisco não fugirão dessa lógica, não obs-
parte dos que se propõem a pensar a fé por tante carreguem a força do Magistério e da

Vida Pastoral

meio da teologia. Não faltaram reformado- autoridade papal. De modo semelhante ao

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que ocorreu com o papa João XXIII, ele se A saída para o pastoreio coloca a Igreja
mostra acolhido, sobretudo para além das em trânsito permanente para além de si
instâncias hierárquicas; suas mesma: para o mesmo encon-
ideias e práticas são acolhi- tro inseparável com Cristo e
das de modo simpático pelo “Esse meio com o povo. Nessa dinâmica,
povo de um modo geral, ca- institucionalmente a comunidade eclesial se reno-
tólicos, não católicos e até va, para ser servidora fiel do
mesmo por não crentes. En-
estabelecido e Mestre, abandonando suas se-
tre o papa e o povo, posicio- politicamente forte guranças institucionais, suas
na-se o clero, de um modo vaidades estéticas e suas ambi-
tem optado pelo
geral, mas de modo decisivo ções de poder. A renovação da
o episcopado. Esse meio ins- silêncio e pela Igreja pretendida e orientada
titucionalmente estabelecido passividade, que pelo Vaticano II estará sempre
e politicamente forte tem op- em curso quando a misericór-
tado pelo silêncio e pela pas- pode ser visto como dia, o serviço e o diálogo fo-
sividade, que pode ser visto indiferença ativa, rem as atitudes constantes que
como indiferença ativa, que rejam todos os ministérios que
aposta na inércia e na rotina
que aposta na compõem a Igreja, os ordena-
das ideias, como oposição inércia e na rotina.” dos e os não ordenados. Essa
discreta que boicota com a chamada do papa Francisco a
chamada contraideologia, afirmando proje- todo o povo de Deus só se concretizará se
tos opostos ou como adaptação fisiológica houver conversão pastoral por parte de toda
em nome de benefícios a receber ou a uma a Igreja: que sai permanentemente “da pró-
fidelidade cega e sem convicção. pria comodidade” (EG 20) para servir.

Referências

Compêndio do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1986.


ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
FAGGIOLI, Massimo. Vaticano II: a luta pelo sentido. São Paulo: Paulinas, 2013.
LIBANIO, João B. A volta à grande disciplina. São Paulo: Loyola, 1984.
PASSOS, J. Décio; SOARES, Afonso M. Francisco: renasce a esperança. São Paulo: Paulinas,
2013.
PASSOS, J. Décio. Concílio Vaticano II: reflexões sobre um carisma em curso. São Paulo: Paulus,
nº- 300

2014.
VELASCO, Rufino. A Igreja de Jesus: processo histórico da consciência eclesial.

Petrópolis: Vozes, 1996.


ano 55

WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982.


______ . Economia e sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1997.

Vida Pastoral

______ . A ética protestante e o espírito do capitalismo. Lisboa: Presença, 1996.

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sobre o Cristo em
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