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“Dark Avenger”
Anne Hampson
Digitalização: Afrodite
Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
Capítulo I
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
Julie fechou os olhos e por um momento lhe pareceu que sua força e altivez a
abandonavam. Mas não; conseguia sorrir gentilmente para Lady Swinton-Cromley que a
cumprimentara ao passar.
– O que ela lhe disse? – perguntou Cheryl, curiosa, examinando a face pálida da
amiga. Mencionou Edward?
– Sim, ligeiramente. – Deu de ombros e rapidamente, antes que as outras
pudessem falar, disse – Foi tudo muito ridículo; como eu disse ela não é nada boa.
Lavínia estava distante; numa feliz contemplação de seu futuro e Cheryl pensava
se devia ou não continuar perguntando quando Julie disse num tom conclusivo:
– São sempre bobagens o que se ouve de cartomantes, mas como observou
Lavínia, é divertido.
Tio Edwin estava no escritório, quando Julie chegou em casa, bem a tempo para o
chá. Bateu e entrou, sem mesmo esperar que lhe fosse dada permissão, e seu tio olhou-a
ligeiramente surpreso. Permaneceu parada um momento no vão da porta. Era uma
esbelta e adorável garota de estatura mediana. Descendente de uma longa linha de
aristocratas, herdara traços de incomum beleza e uma natural reserva, que dava a falsa
impressão de frieza e falta de sentimentos. Sua pele, delicadamente colorida, possuía
uma luminosidade quase transparente e pelas suas veias corria o sangue azul de seus
nobres antepassados.
O tio esperou que ela falasse. Seu amor era realmente profundo, não fazendo
diferença entre ela e seu filho. Edwin Veltrovers, quando já casado, tivera um amor
secreto pela mulher que se tornou esposa de seu irmão.
Julie permaneceu silenciosa e, franzindo um pouco a testa, pôs-se a imaginar o
porquê da expressão do tio.
– Você quer alguma coisa, querida?
Vagarosamente, Julie andou pela sala e parou junto à escrivaninha, fitando ó tio
como se fosse um estranho e não o homem que a havia criado com amor de pai. Aos
sessenta anos Edwin Veltrovers era extraordinariamente bem conservado. Uma mão
pousava na mesa ainda segurando uma caneta e a outra descansava no braço da
cadeira.
– Quem é? – perguntou finalmente Julie com uma voz gelada. – Aïdoneus Lucian?
Seu tio estacou sentindo um espasmo na garganta. Uma súbita palidez acentuou
as rugas nos cantos de sua boca.
– Aïdoneus. o quê? Eu o conheço?
Seus lindos olhos brilharam.
– Pelo que sei, deve tê-lo conhecido, pois há dez anos atrás você me prometeu a
ele. – Seguiu-se um silêncio carregado de tensão. Lentamente, mas em tom agressivo,
acrescentou: – Por sete meses no ano, tio Edwin.
A palidez acentuou-se ainda mais no rosto do velho. Claramente ele recebera um
tremendo choque.
– Aïdoneus...
Julie fitou-o bem dentro dos olhos.
– O nome que normalmente usamos é Hades. Mas em grego o nome é Aïdoneus.
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– O homem parecia louco e eu tive que prometer para acalmá-lo. Assim ele saiu
pacificamente pela minha porta.
– Ele não estava louco. Somente fora de si.
– Estava muito aflito, concordo. Era um casal de aldeões gregos. A moça morava
com o rapaz antes de Alastair conhecê-la.
Edwin calou-se e Julie concluiu suavemente:
– Desgraçou-a. E, não satisfeito, atropelou-a com o cavalo, matando-a.
Os dois nunca moraram juntos, garantira a cigana e Julie preferia acreditar na
palavra dela.
– Ela se atirou sob as patas do cavalo dele.
– Não foi o que me contaram, mas se o fez, foi porque estava desesperada. A
reputação de uma moça grega está arruinada se algo assim lhe acontece. – As cores
voltaram a seu rosto, mas seus braços pendiam rígidos junto ao corpo.
– Onde você soube de toda essa história? Eu insisto em saber.
– A atitude do velho por um instante se abrandara, mas estava cadavérico e sua
voz um tanto vacilante. – Você acaba de chegar da festa e lá ninguém poderia ter falado
desse acidente.
– Na verdade, soube no castelo. Uma cigana foi enviada especialmente para me
ver e transmitir a mensagem.
– Para ver você? De lá da Grécia? Tolice. O homem não poderia dar-se ao luxo
nem de enviar um telegrama, quanto mais de mandar alguém aqui.
– Pois sei que ele enviou essa mulher especialmente para me ver. Doneus disse-
lhe que entrasse em contato comigo de qualquer maneira. Ela soube da festa, soube que
toda a aristocracia estaria lá, e fez-se passar por cigana. Se não me tivesse encontrado,
tentaria arranjar outro modo.
– Como o demônio arranjou dinheiro para mandar uma pessoa aqui?
– Ele deve ter economizado durante meses, ou até mesmo anos. Não imagino
quanto possam ganhar esses apanhadores de esponjas. – Fez uma pausa e então disse
lentamente, frisando cada palavra: – Esperemos que ele seja suficientemente pobre para
aceitar um suborno.
– Um suborno? Do que está falando? Não temos que subornar esse odioso
homem. Nunca ouvi tamanha tolice em toda minha vida. Tenho vontade de chamar a
polícia.
– Eu não o aconselho – murmurou.
Novamente o tio voltou à carga: – É melhor me contar tudo.
Julie contou em detalhes como tudo se passara, terminando por resumir o recado
mandado pela cigana: ou ela ia para a Grécia para ser sua esposa, ou ele viria para a
Inglaterra e apareceria na igreja na hora do casamento.
– Ele pretende denunciar Alastair, antes que a cerimônia comece.
– Na... Ele irá à catedral e fará um escândalo?
– Essa a mensagem que me foi transmitida.
Um pesado e profundo silêncio caiu sobre o elegante escritório forrado de carvalho.
Edwin levantou-se e começou a andar, abrindo e fechando as mãos como que querendo
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se libertar de algo que o aprisionasse. Havia sido duramente atingido. Era imperativo que
seu filho fizesse esse vantajoso casamento, pois as finanças dos Veltrovers iam de mal a
pior.
– Eles eram só um casal de aldeões... – sua voz não era mais que um sussurro –
rústicos e miseráveis... Nunca vi a moça, mas Alastair disse que ela era andrajosa.
Vieram ver a avó dela, que era inglesa. Estava muito mal e queria se despedir da neta. O
noivo da moça foi quem a trouxe, não me pergunte como, mas trouxe. Ela era linda, assim
me disse Alastair, e ele... bem, ele...
– Resolveu se divertir um pouco com ela.
Edwin franziu profundamente a testa.
– Não é próprio de você dizer essas coisas. Os dois não estão sendo julgados.
Alastair era muito jovem e a moça provocante, não rejeitando um divertimento como você
cruelmente chamou. – O tio procurava se recompor novamente. – A moça fugiu do noivo
no dia do aniversário dos seus dezenove anos; daí ele exigir que eu o compensasse com
outra moça de dezenove anos. Mas isso tudo está fora de cogitação; simplesmente não
pode estar acontecendo...
– É, mas está! A cigana me contou que a garota esperava se casar com Alastair.
Foi por isso que deixou o noivo voluntariamente. – Fez uma pausa e então continuou: –
Não morreu imediatamente e Doneus estava com ela quando expirou. Sentia-se não
somente desolado, mas também ferido e humilhado por ter ela preferido outro homem a
ele, alguém até inferior.
– Inferior? – Edwin explodiu. – Meu filho inferior a um rude, tosco e bronco aldeão?
Julie ergueu à linda cabeça:
– Posso ter sido criada no luxo, no meio da aristocracia inglesa, posso possuir uma
grande fortuna herdada de meus pais, mas julgo um homem pela sua honra e integridade
e não pelos seus bens. Sei pouco desse grego, mas deve ser superior a Alastair, pois
Alastair é tão baixo quanto o mais baixo!
– Julie... – Edwin mostrava-se muito triste e chocado, torcendo as mãos. – Julie,
minha querida... Não há dúvidas que você se aborreceu muito com toda esta história. Não
importa o que você diga, não levarei em consideração. Esse negócio não é para nos
preocuparmos. Chamarei a polícia. Venha, querida, é quase hora do chá. Venha dar uma
volta comigo no jardim como sempre fizemos. Só nós dois.
Seu desprezo por ele acabara e agora ela se sentia alquebrada também, pois
repentinamente todo o seu mundo de segurança e paz desmoronara. Seu primo, louco e
cativante, sempre fora como um irmão e seu tio como um pai. A despeito de sua própria
herança lhe garantir segurança no futuro, essa casa sempre fora seu refúgio. Um paraíso
para onde sempre poderia correr se algo desse errado. Mas agora se via sozinha, órfã
como realmente era. Sua fé nos que amava estava abalada e julgava-se incapaz de
resolver o caminho a seguir.
Não se mexeu para acompanhar o tio ao jardim e este deixou-a.
Julie permaneceu de pé, junto da escrivaninha, relembrando o que a grega lhe
dissera. A moça tinha dezoito anos e o rapaz dezenove, quando ficaram noivos, um ano
antes da tragédia que a envolveria.
Na Grécia, um noivado é um compromisso muito sério e rompê-lo é impossível.
Mas essa greguinha, tendo sido trazida para a Inglaterra pelo noivo para ver a avó
moribunda, deveria ter ficado deslumbrada com o esplendor e beleza do castelo de
Belcliffe.
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Doneus fora forçado a procurar um emprego para poder pagar a viagem de volta.
Deixara a noiva com a avó e um tio. De algum modo, ela e Alastair se encontraram e a
garota ficou apaixonada por ele.
Edwin lhe dissera que a moça se atirar sob as patas do cavalo de Alastair, mas a
cigana lhe contara uma história diferente. De coração partido pela sua perfídia, ela
procurara Alastair para um último apelo, querendo explicar-lhe que era de todo impossível
seu casamento com Doneus, pois este descobrira a relação dos dois. Furioso, sem
mesmo desmontar, Alastair puxara as rédeas do cavalo, passarinhando, ficara fora de seu
controle por alguns segundos, alguns segundos fatais...
Depois do enterro, Doneus fora ao castelo de Belcliffe e pedira para falar com
Alastair. Mas foi Edwin quem o recebeu, tomando a si a questão e pedindo explicações a
Doneus pelas afirmações anteriores. Todavia, Doneus vira Julie brincando perto do lago e
em sua mente atribulada antevira uma forma de vingança. Exigira ter a sobrinha de Edwin
para si, quando ela tivesse dezenove anos, para compensar sua perda.
Naquela noite, durante o jantar, Alastair quis saber o que havia de errado.
– Vocês dois discutiram – disse, observando um e outro. – Apesar de ser quase
impossível.
Julie ficou calada, mas logo seu tio contou o que houvera. Para seu espanto e
desgosto, ele encarou o fato tão displicentemente, que ela se sentiu mal.
– Que estúpido! Então pretende fazer um escândalo na igreja? Esses gregos são
assim mesmo: cabeças quentes e impulsivos.
– Impulsivos? – Julie segurava o garfo a meio caminho da boca e o encarava. – Ele
esperou dez anos por uma reparação. Eu não chamo isso de impulsão.
Ela o viu corar. Sabia que era porque nunca o havia enfrentado. Sempre o tivera
em alto conceito, admirando suas maneiras, seu jeito de ser e sua integridade. Sua
integridade... Sentiu um rompante de deixar a mesa, mas as boas maneiras a impediram.
– Eu disse a Julie que vou chamar à polícia – informou a Alastair, que concordou
plenamente.
– Não podemos permitir que um homem de tão baixa procedência nos intimide.
Em silêncio, todos pareciam concentrados no jantar. Julie só remexeu o prato e
depois largou os talheres. Edwin lhe dirigiu um olhar compassivo e disse:
– Julie, tudo isso não tem tanta importância. Como eu disse, os dois eram simples
aldeões e tudo o que aconteceu não deve afetar gente como nós. É uma pena que você
tenha tomado conhecimento dessa história infernal, mas deve se esforçar para esquecê-
la.
– Papai está certo – acrescentou Alastair imperturbável, pedindo mais carne – o
homem é um lunático, deveria ser preso.
– Você roubou a mulher de outro homem! – retrucou Julie, incapaz de ouvir em
silêncio. – Roubou a mulher de outro homem e nem por isso está arrependido! Que
espécie de homem é você? – dirigindo-se a Edwin, acrescentou: – Como pude ser tão tola
durante todos estes anos e admirá-lo tanto? Roubar a mulher de outro homem, arruinar-
lhe a reputação e se recusar a casar com ela!
– Casar? – Alastair quase engasgou. – Você está louca? – Seus olhos azuis a
fitaram com total incredulidade. – Eu, um Veltrovers, casar com uma aldeã grega? Você
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– Há algo de muito estranho nisso tudo. Como pôde aquela mulher reconhecer
você? Dezenas de pessoas devem ter entrado naquela tenda.
Julie já havia mencionado a revista e sua certeza de que lá estava sua fotografia.
Aparentemente, isso escapara a seu tio e ela repetiu tudo. Ao se recordar, uma nova e
profunda ruga veio se juntar às demais em seu já sobrecarregado semblante.
– Como foi essa revista parar nas mãos dela?
– Primeiramente nas mãos dele, ao que parece. Na Grécia também se compram
revistas...
– Não essa. Tenho a certeza que não.
– Alguém pode lhe ter dado. Ou algum turista ter esquecido em algum lugar. De
qualquer modo, interessa como ele conseguiu? Viu meu retrato e meu nome, soube que
eu estava com quase dezenove anos e então agiu como planejara.
Intimamente se sentia confusa, procurando melhor explicação para os fatos,
convencida de que se uma houvesse, ela a descobriria. Doneus Lucian alimentara seu
rancor e agora esperava pela vingança. Mandara a mulher, que poderia ou não ser sua
parenta, só para que ela transmitisse seu recado... Quão oportuna tinha sido aquela
reportagem da revista! O que aconteceria se não tivesse sido publicada? Aturdida, Julie
balançou a cabeça, incapaz de achar qualquer resposta a tantos enigmas. Deveria haver
uma explicação, pensou novamente, mas não tinha condições a essa altura de descobrir.
Porém, mistério ou não, a dura realidade teria de ser enfrentada: ou ela aceitava esse
homem, ou ele cumpriria sua ameaça e denunciaria Alastair. Julie cerrou os olhos. Não
era mais em Alastair que estava pensando, mas na adorável criatura com quem este
deveria se casar. Lavínia, que o via acima de tudo com respeito e que ficaria arrasada se
soubesse desse escândalo do passado.
– Tenho que ir até essa ilha. – Julie pensou em voz alta; mas, assim que acabou de
dizer isso, a mão de seu tio se abateu subitamente sobre a mesa, fazendo com que os
copos balançassem.
– Você está agindo de maneira irracional, Julie. Agora faça o favor de esquecer
tudo imediatamente, antes que eu perca a paciência!
A raiva dele não poderia feri-la. Precisava proteger Lavínia a todo custo, da
verdade ela nunca saberia.
– De qualquer modo, preciso, como disse a cigana, ir à Kalymnos.
– Você não vai fazer nada disso, pois eu a proíbo!
– Quer dizer – atalhou Alastair – que você agora encara a possibilidade de se casar
com o aldeão? – Parecia se divertir muito com o rubor de Julie.
– Não seja ridículo! Eu lembrei ao tio Edwin a possibilidade de um suborno e
acredito nisso, se é que ele é apenas um apanhador de esponjas como vocês disseram.
Julie desviou o olhar e viu Edwin menear a cabeça, confirmando: – Claro que é
somente um apanhador de esponjas, pois todos o são naquela ilha.
Julie não achava que fossem, mas não viu motivo para discutir uma coisa tão sem
importância. Seu tio voltou a falar em chamar a polícia e então, olhando-o frontalmente,
perguntou:
– O que vai dizer a eles?
– Não é de sua conta – respondeu carrancudo –, mas sim de Alastair e minha. Na
realidade você não está absolutamente envolvida. Por isso, por favor, mude de assunto.
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– Não estou envolvida! – exclamou. – Estou sim, e o que é pior, não é por minha
culpa!
Edwin fuzilou-a com os olhos, muito pálido.
– Eu disse que o assunto está encerrado! Ou você obedece ou sai da mesa!
Por um momento ainda Julie permaneceu sentada, fixando Alastair que,
calmamente, continuava seu jantar. Depois, silenciosamente, saiu da sala, convencida de
que se seu tio pensasse um pouco mais mudaria de idéia e não chamaria a polícia.
Estava certa. Na manhã seguinte, logo após o café, mandou chamá-la ao
escritório. Entrou sem bater, como de costume.
– Sente-se, Julie. – Seu rosto estava pálido, exatamente como na véspera, quando
ela começou a lhe contar toda a história. – Conte-me tudo novamente, querida. Admito
que agora estou preocupado. Não posso meter a polícia nisto, nem me arriscar a uma
publicidade. Os repórteres adorariam explorar um velho escândalo.
– Eu sei, tio.
Julie sentou-se. Sentimentos contraditórios debatiam-se em seu coração: pena do
tio, pois afinal não fora ele quem pecara contra a moça e seu noivo; ao mesmo tempo
sentia desprezo por ter ele feito a absurda promessa anos atrás, ainda que sem a menor
intenção de cumpri-la.
– Em sua opinião, acha que aquele homem cumprirá sua ameaça? – Sua voz
estava rouca e cansada. Julie achou que ele não dormira direito, assim como ela não
pregara os olhos.
– Tenho certeza que sim.
Julie parou, sentindo um ligeiro arrepio percorrer seu lindo corpo, enquanto
pensava no nome dele: Aïdoneus... nome grego de Plutão ou Hades, deus das regiões
infernais, cuja esposa era a malfadada Perséfone, condenada a passar um terço do ano
nas sombras do centro da terra com seu satânico marido. Conta a mitologia que quando
Hades viu Perséfone sentada na relva com as ninfas, impressionado com sua incrível
beleza apaixonou-se por ela e raptou-a, privando-a da luz do sol e levando-a para a
escuridão de seu reino abismal. Agora, Aïdoneus, cujo verdadeiro nome era Hades,
pretendia tirá-la de sua linda casa e fazê-la morar com ele na rochosa ilha de Kalymnos,
durante sete meses de cada ano. Seu tio garantira que tal não aconteceria. De fato, não
fora o rosto moreno da cigana, que Julie lembrava com um pouquinho de medo, tudo lhe
parecia irreal.
– A mulher foi taxativa – continuou – e estou convencida de que Doneus pretende o
que disse. Além disso, por que gastaria tanto mandando alguém para cá se não estivesse
plenamente decidido?
Edwin assentiu.
– Foi exatamente nisso que fiquei pensando durante a noite. Ele está plenamente
decidido, como você diz. No entanto, alguns aspectos do negócio me parecem um
quebra-cabeça. Por que, por exemplo, não veio pessoalmente?
Isso já ocorrera a Julie, que chegou à conclusão de que talvez fosse por medo de
que Edwin ou Alastair chamassem a polícia. Mencionou a possibilidade ao tio, que
concordou plenamente depois de um momento de reflexão.
– Talvez, pois ele deve ser um covarde.
– Como o senhor chegou a essa conclusão?
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– Vamos admitir que tenha tido a idéia quando, afinal de contas, era um simples
rapazinho. Cresceu e ficou mais maduro. Sim, suponhamos que tenha considerado tudo
um sonho. Então, de alguma maneira, aquela revista lhe caiu nas mãos e nela estavam
sua foto e o noivado de Alastair. Ele é um pobre apanhador de esponjas e ali estava a
oportunidade de me extorquir dinheiro...
Edwin calou-se, pois Julie sacudia negativamente a cabeça.
– Concordei com o senhor a princípio, tio. Mas temos que nos lembrar de uma
coisa: se quisesse dinheiro, teria mandado esse recado. Mas o que mandou dizer foi que
o senhor me prometeu a ele quando tivesse dezenove anos, que eu devo ir à Kalymnos,
senão ele vem aqui e acaba com o casamento na igreja.
Edwin suspirou profundamente.
– Não faz sentido. Não posso acreditar que alguém alimente um desejo de
vingança por tanto tempo.
– Nem eu, e tenho a certeza de que algo nos escapa. O único jeito é eu ir à Grécia
e descobrir.
– Não, Julie, não deixo. Não podemos nos comunicar com a cigana?
– Ela disse que eu não a veria mais a não ser em Kalymnos.
– Estava tão certa de que você iria?
– Sim, estava.
Houve uma pequena pausa, mas como Edwin não falasse, Julie perguntou quanto
ele pretendia oferecer.
– Umas duzentas libras serão suficientes.
Julie pensou um pouco.
– Ele pode pedir mais. É melhor eu levar quinhentas.
– Você não irá! Só se eu ficar louco, deixaria você ir para a Grécia sozinha...
– A mulher disse que devo ir sozinha.
– Temos o endereço dele. Escreverei perguntando quanto ele quer.
– A cigana disse categoricamente que não haveria qualquer comunicação. Devo
chegar à Grécia uma semana antes do casamento, no máximo.
– Uma semana... – Edwin fitou-a. – Isso nos revela uma coisa valiosa –
acrescentou –, o rapaz ainda é pobre.
– Como chegou a essa conclusão? – Julie também não duvidava que o rapaz fosse
pobre. Numa ilhota como Kalymnos, não deveria haver jeito de alguém enriquecer.
– Ele pede uma semana. Se tivesse dinheiro, não pediria mais do que dois dias.
Julie concordou, parecia lógico.
– O senhor acha que quinhentas libras serão suficientes para eu levar? –
perguntou calmamente.
– Acabei de dizer que você não vai!
Encarou-o resolutamente.
– Vou, tio Edwin. Desde o momento em que a cigana me transmitiu o aviso, eu já
sabia que obedeceria. Não, por favor, não argumente. Afinal sou dona de mim. Irei a essa
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não pôde ver, mas a presença deles revelava que a ilha não era tão pobre quanto seu tio
afirmara.
Numa praça de uma vila por onde passaram, viu uma enorme imagem de Cristo na
cruz. Isso a fez pensar lia piedade dos gregos e imaginar qual seria a crença de um
homem com o mesmo nome do rei dos infernos.
Imaculadas casinhas brancas esparramavam-se pelas encostas, todas cercadas de
bem cuidados jardins, onde vez por outra cresciam figueiras e cidreiras. Também se viam
romãzeiras enfileiradas formando cercas vivas, onde rosas silvestres se misturavam,
exalando um delicioso perfume. Uma ilha árida, dissera seu tio. Realmente, acima viam-
se picos rochosos arremetendo sua horrível nudez contra o céu, mas a paisagem abaixo
era vestida de fresca e verde vegetação, com enormes árvores, finos e elegantes
ciprestes, enfeitadas palmeiras, tudo contribuindo para uma incrível variedade de cores.
Laranjas e limões suspensos quais lanternas contrastavam vivamente com o verde-
brilhante das espessas folhas das árvores onde cresciam. Verdadeiramente lindo ver as
casinhas brancas, com seus jardins explodindo em cores, sempre cercadas de grades e
portões de ferro. Sob todos os aspectos a paisagem era de perder o fôlego: a selvagem
montanha vulcânica, imponente e imensa, tendo mais abaixo as encostas cheias de vida
e cores e finalmente o mar Egeu, numa sucessão dos mais incríveis tons de azul, até
perder-se no horizonte, despencando pela borda do mundo.
Quanto mais se distanciavam da baía, mais rareavam os carros e as pessoas, até
que o único sinal de vida era o balido de uma cabra buscando seu rebanho e um burrinho
que vinha pela estrada carregando um homem que sorriu ao cumprimentar o motorista,
enquanto observava a passageira sentada atrás. Nada passava despercebido numa ilha
como aquela. Logo mais Stamati estaria pondo as novidades em dia. Contaria que a
levara à casa do sr. Doneus e então começariam a imaginar por que receberia ele uma
visitante inglesa e alguns até se empenhariam mesmo em descobrir o porquê.
Seguiam agora pela estrada da. costa, rumando para o norte da ilha e a cada
momento Julie mais e mais se encantava com Kalymnos.
– Estamos perto agora? – perguntou a Stamati, mas se arrependendo
imediatamente, pois este se virou para ela como se tivesse os olhos atrás da cabeça.
– Sim, senhorita. A casa do sr. Doneus não é longe.
Sua voz soou diferente e Julie lembrou-se de que também ao saber do endereço
para onde iam ele se mostrara algo estranho. Era como se já soubesse de sua esperada
chegada a Kalymnos.
“Devo estar imaginando coisas”, pensou Julie, reclinando-se no banco do carro e
olhando novamente pela janela. O que viu a fez sorrir. Duas crianças, um menino e uma
menina, estavam quebrando nozes na calçada, e quando o carro passou perto, o garoto,
rindo, lhe ofereceu uma.
– Quer?– perguntou Stamati diminuindo a marcha. – Eu pego para a senhorita! –
Parou o carro e desceu.
– Vão querer algum dinheiro?
Julie pensou que talvez a intenção do garoto fosse receber uma gorjeta e ia
abrindo a bolsa quando Stamati disse rudemente:
– Nada de dinheiro, eles lhe ofereceram por pura gentileza!
Sentiu-se repreendida, desconhecendo que freqüentemente os gregos falam nesse
tom, e o que parece verdadeiro ódio é apenas uma indignação.
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– Muito obrigada – disse Julie às crianças, aceitando as nozes que lhe eram
oferecidas já descascadas e prontas para comer.
– Gostosas? – Stamati virou-se.
– Muito! – respondeu depois de provar uma.
Novamente seguiram o caminho. De repente, diminuiu a marcha, tocou a buzina e
brecou bruscamente junto a um muro ao lado da estrada. Julie. estava distraída, mas
voltou a si, bem a tempo de ver um sorridente rapaz numa lambreta acenar alegremente
ao motorista e levando atrás uma mocinha, sentada de lado, com um bebê nos joelhos.
– Como ela consegue se firmar ali? – comentou Julie, notando que Stamati
continuava a gesticular, embora o rapaz e sua lambreta já tivessem desaparecido numa
curva da estrada.
– Pedro é um verdadeiro louco! Viu como ele fez aquela curva? – Julie sacudiu a
cabeça e explicou que nada vira pois estava olhando a paisagem pela janela.
– Que aconteceu? – perguntou, certa de que Stamati não tinha a menor intenção
de sair dali enquanto não explicasse tudo.
– Ele veio na contramão! E com a mulher e o bebê atrás. Pedro um dia ainda se
arrebenta!
– Não, não diga isso. Se ele é tão descuidado, o senhor deveria ter uma conversa
séria com ele.
– Conversa séria! – Desoladamente Stamati sacudia as mãos. – Pedro não ouve
ninguém! E a mulher dele adora andar assim. Mas algum dia cairão todos e Pedro
aprenderá a lição.
– Não sei como ela se firma sentada daquela maneira! – A simples idéia fez Julie
sentir um arrepio de medo. Mas a moça mostrara-se tão imperturbável quanto o marido,
quando passaram pelo táxi, como se estivesse sentada numa cadeira confortável com o
bebê.
– Ela está acostumada. Nossas mulheres não se sentam em moto como vocês.
– Vamos? – perguntou Julie, sentindo que já era tempo de mudar de assunto.
Enquanto o táxi recomeçou a marcha e vagarosamente entrou numa estrada de
terra, a paisagem tomou-se infinitamente solitária, sendo os únicos sinais de habitação a
aldeia branca plantada na encosta e o magnífico castelo veneziano, vislumbrado por entre
as árvores, quando o táxi fazia algumas curvas. O castelo, tempos atrás, fora uma ruína,
mas agora, reconstituído, erguia-se majestoso e nobre, quase na beira do penhasco.
“De lá a vista deve ser soberba” pensou Julie fascinada. Sempre ouvira dizer que
os castelos venezianos de Kalymnos estavam em ruínas e surpreendeu-a o fato de
alguém ali ter dinheiro suficiente para uma restauração daquelas. Extensos e lindos
jardins cercavam-no por todos os lados, menos na frente, que dava para o mar, onde a
curta distância se via um iate branco ancorado. Julie supôs tratar-se de uma pequena
baía, pela qual uma lancha poderia correr para o mar. Muito perto havia outra ilha, com
suas rochas nuas e áridas, tão próxima à praia que parecia estar o castelo inteiramente
cercado de montanhas, pois a costa de Kalymnos fazia ali uni semicírculo.
Que panorama se devia ter de lá!
– Esta é a casa do sr. Doneus. A voz de Stamati despertou-a dos devaneios e,
olhando pela janela, viu um jardim mal cuidado, um caminho cheio de mato por onde
seguiu o táxi até parar ao lado de uma casa arruinada, que mais parecia uma tapera.
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Quando Stamati abriu a porta para que ela saísse, uma nuvem de poeira atingiu-lhe os
olhos.
– Quanto lhe devo? – perguntou, tirando a carteira da bolsa.
– Quarenta dracmas, madame. – Ele tirou a mala do assento traseiro e colocou-a
no chão junto dela, enquanto olhava a casa. – Não há ninguém em casa!
Para seu maior desapontamento Julie também achava.
– Obrigada. Não se preocupe com o troco.
– Epharistó para polí. Muito obrigado, madame.
– Bom dia e obrigada.
– Gostei de servi-la, madame.
A sombria aparência da tapera em que Doneus morava reavivou as esperanças de
Julie, que, desde sua saída da Inglaterra, temia que Doneus não precisasse de dinheiro.
Evidentemente precisava e, assim concluindo, teve a certeza de que seus negócios com
ele chegariam rapidamente a bom termo.
A inspeção dos arredores foi interrompida por um enorme e amarelado cão
labrador, aparecido de algum lugar atrás da casa e que se aproximava dela latindo alto.
– Jason, ela! – À áspera voz de comando, o cão parou, voltou correndo para o
dono, abanando o rabo e continuando a latir como se estivesse agora conversando com o
homem.
Este veio vindo, parou para afagar a cabeça do cachorro e então olhou para ela.
Ele usava um suéter igual àqueles que Julie vira nos homens do cais. Mas não havia
qualquer outra semelhança e toda a imagem que procurara formar dele se desfez quando
se aproximou.
Deparou com um rosto severo, de linhas clássicas, um queixo voluntarioso e pele
bem morena. Suas feições eram firmes e tensas, a face magra e os malares salientes, de
uma pronunciada angulosidade. Espessas sobrancelhas negras, uma larga e nobre testa;
lábios cheios e olhos ardentes e negros como carvões no borralho. Julie estremeceu,
enquanto admitia que o rosto era atraente, embora de uma maneira indefinida. Destoando
dessa impressionante perfeição, uma funda cicatriz riscava a sua face, indo desde a
orelha direita até um pouco abaixo do queixo. Julie baixou seu. um tanto assustado olhar
e vendo o corpo atlético e másculo teve a impressão de uma tremenda energia. Imaginou-
o mergulhando nas águas profundas do oceano, carregando uma pedra ou então
emergindo rapidamente para retomar o fôlego após a permanência junto às rochas nas
quais aderem as esponjas.
– É o sr. Lucian? – perguntou finalmente ao perceber um lampejo caçoísta nos
penetrantes olhos negros diante do seu demorado exame. Ela recebera seu primeiro
choque; o segundo viria logo a seguir quando ele falou num inglês correto:
– Sou. Você é Julie? – Sua voz era vibrante e forte.
Examinou-a, reparando em suas feições, a aristocrática fronte, alta e inteligente, a
pele clara e fina, os grandes olhos cinzentos, os lábios carnudos tremendo ligeiramente
apesar dos esforços para manter a compostura. Isso não era nada fácil, com aqueles
olhos fitando os seus... como uma serpente hipnotizando sua presa. Sentiu-se
magnetizada e, ainda admitindo-se fascinada por ele, não podia deixar de pensar em seu
nome: Hades... o nome dado pelos antigos gregos ao deus do mundo subterrâneo.
Ele permanecia perfeitamente calmo, enquanto Julie, achava-se num estado de
19
Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
Capítulo III
Sentada, viu-o desaparecer onde ela presumia ser a cozinha. Então fez um
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
detalhado exame de tudo. Que miséria! Mobília pobre num assoalho nu, uma grande
lareira de pedra com panelas de ferro dentro. As paredes brancas e as portas pintadas de
marrom-escuro, com um buraco onde antes deveria haver uma maçaneta. A um canto,
uma miscelânea de coisas, incluindo figuras de pedra, oferendas votivas de algum túmulo
antigo, concluiu ela. Pendurados na parede dois ícones, que, devido a seu estado de puro
nervosismo, fizeram-na ter uma incontrolável vontade de rir. Lindas versões da Virgem
Maria e de São Pedro... aqui na casa de um homem chamado Hades... ou Aïdoneus...
Para sua surpresa, a porcelana era bonita e delicada, e na bandeja onde trouxe o
café, havia uma alva toalha bordada a mão. A limpeza fê-la sentir-se mais confortável, e
como ele trouxesse também leite quente, pôde tomar seu café do jeito que gostava,
enquanto Doneus bebia um espesso líquido preto, conhecido como café turco.
– Agora podemos conversar, Julie. – Sentou-se em frente a ela, a rústica mesa
entre eles. – Você considerou minha proposta?
Olhava para Jason, e Julie teve a impressão de que ele deliberadamente tentava
esconder dela sua expressão.
– Sua proposta, como o senhor chama isso, é ridícula, sr. Lucian.
– Doneus – interrompeu com suavidade, e irritada mente ela sacudiu a cabeça,
franzindo as sobrancelhas.
– Como logo mais estaremos dizendo adeus, não há motivo para intimidades –
respondeu, quando novamente ele a interrompeu:
– Tenho a impressão de que vamos nos casar.
– Realmente pensa assim?
Houve uma ligeira hesitação... estranha, por sinal; mas depois concluiu, olhando-a
atentamente como quem observa cada linha de suas feições.
– Penso, Julie. – Era impressão, ou havia incerteza na sua voz?
– Sr. Lucian, o senhor não pode querer se casar comigo. A idéia é prepotente ao
extremo. Ambos sabemos disso.
– Por que veio aqui, Julie? – perguntou gentilmente.
– Srta. Veltrovers! – retrucou.
– Por que veio? – Seus olhos negros faiscavam duros e raivosos. – Por que veio? –
repetiu.
– Para conversar a respeito. – Ela adotara uma conduta mais branda. – Por favor,
não pense que sou insensível ao que o senhor sofreu durante todos esses anos, sr.
Lucian. Mas eu era apenas uma criança e o senhor muito jovem. Em sua desgraça, exigiu
uma reparação. Mas agora, é mais velho, e... e eu não posso crer... o que quero dizer é
que, tendo encontrado e falado com o senhor, eu... bem, o senhor não me parece o tipo
de homem que... que... – Calou-se, procurando um modo diplomático de dar a sua
opinião, mas Doneus finalizou por ela:
– Minha... aparência, digamos assim, não condiz com o seu conceito de uma
pessoa que tenha guardado rancor por tanto tempo. – Sua voz era suave e possuía um
quê de humor, como se estivesse se divertindo intimamente.
– Exatamente! – Julie fixava seu rosto moreno, reparando um pequeno tique
nervoso junto à cicatriz. Como teria se ferido? Imaginou-o novamente mergulhando nas
águas profundas, arriscando a vida cada vez que o fazia, ou podendo voltar mutilado
como aquele rapaz que vira em Kalymnos. Estremeceu ante a idéia de que um corpo
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
perfeito como o dele estava freqüentemente exposto aos perigos do trabalho. Sairia um
dia Doneus do mar como aquele pobre rapaz? Toda aquela juventude e força inúteis
naquele magnífico corpo? Julie pensou nas esposas, filhos e mães daqueles bravos
homens de Kalymnos... esperando pela volta dos barcos, coração batendo, examinando
ansiosamente seus homens desembarcarem. Cada retomo poderia ser de felicidade para
umas a de desilusão para outras...
– Você me envaidece, Julie, mas está enganada. Eu sou capaz de alimentar
rancor. – Tomou um gole do café e continuou: – Eu ainda exijo uma reparação.
Rosto pétreo, o olhar duro e sem expressão; como de um demônio, pensou
assustada; entretanto, ao conversar, seu ar de dignidade parecia colocá-lo acima da
trama que resultara na presença dela ali. Havia na situação toda alguma coisa mais
que ,ela não entendia.
– Meu tio lhe mandou algum dinheiro – começou, involuntariamente, olhando ao
redor da sala e vislumbrando nos olhos dele o primeiro lampejo de verdadeiro ódio. – Ele
sente muito que tudo isso tenha acontecido. – Sua voz resumia-se num sussurro, pois
uma sensação de desamparo se abateu sobre ela, como uma espessa nuvem que
encobrisse o sol. Sentada ali na frente dele, parecia impossível que tivesse deixado a
Inglaterra na otimista expectativa de encontrar um inofensivo aldeão que aceitaria o
dinheiro sem a menor hesitação. Em vez disso, encontrara tanta dignidade e força, que
estava tendo a maior dificuldade para manter sua pose inata.
– Não há necessidade de tentar proteger seu tio – Doneus dizia, e sua entonação
combinava com a dureza de seu olhar –, mas você... Acho que tem um coração
bondoso...
O breve silêncio que desceu sobre eles foi quebrado quando Jason, se coçando,
bateu numa cadeira.
– Jason, ti simveni. O que há com você hoje? Onde estão suas boas maneiras? –
Este levantou as orelhas, estranhando as palavras ditas em outra língua; levantou-se e
descansou a cabeça nos joelhos do dono. Viveria Doneus sozinho, só com o cão por
companhia? Se assim fosse, quem cuidaria do cachorro durante os sete meses em que
ele se ausentaria?
– Como o senhor chegou à conclusão de que eu tenho um coração bondoso? –
perguntou, enquanto seguia os movimentos da mão acariciando a cabeça do cão.
Doneus olhava Julie com os olhos semicerrados, e surpreendentemente, um
sorriso aflorou-lhe aos lábios.
– Seus olhos são reveladores, Julie – calou-se, observando o leve rubor de suas
faces e o efeito de suas palavras – eles me dizem que você é muito diferente de seu tio e
de seu primo.
– Não quero que me considere superior a eles, sr. Lucian – aparteou, seus olhos
novamente fixando a mão dele, e, por alguma desconhecida razão, lembrou-se da
estranha sensação que sentira quando essa mesma mão prendera tão firmemente a sua.
– Muito louvável, Julie, alegro-me que tenha respondido assim. Seu encanto e
simplicidade me agradam muito. – Riu francamente da expressão dela. – Não me diga
que não está acostumada a elogios! – concluiu ainda, muito divertido com seu embaraço.
Julie baixou a cabeça; a situação estava começando a ficar íntima demais,
concluiu, imaginando se a franqueza era uma característica dos gregos.
Propositadamente, seu tom de voz era mais frio, quando começou a lembrá-lo de que
estava fugindo do assunto, mas não havia ido muito longe, quando ele a interrompeu:
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
– A fotografia da revista não lhe faz justiça. – Seus lábios estavam entreabertos,
mas desta vez ele não ria, quando ela, rapidamente, levantou a cabeça. – A realidade
excede em beleza à foto.
– Sr. Lucian, podemos falar de negócios? – cortou ela aborrecida consigo mesma
por corar ante os elogios daquele homem. Queria fugir, sair daquela sala para o ar fresco
e o sol, pois as rápidas batidas de seu coração a avisavam de que esse envolvimento
emocional intenso estava lhe toldando a razão. – Vai aceitar o dinheiro que nós lhe
oferecemos? – Durante o momento de silêncio constrangedor, ela teve a certeza de que
ela lera sua mente, e um arrepio percorreu sua espinha ao reconhecer o poder e a
inteligência dele.
– Por que supõe que eu queira aceitar esse dinheiro? – perguntou em tom gelado.
– O dinheiro lhe é oferecido como uma reparação.
– Cômodo, não? – foi seu comentário sarcástico, recostando-se na cadeira e ainda
agradando Jason.
Um vermelhidão espalhou-se pelo rosto de Julie e os olhos de Doneus se
arregalaram com admiração...
– Sr. Lucian – continuou –, estou aqui para lhe fazer uma oferta, não que esse
dinheiro compense sua perda, mas sei que poderá usá-lo proveitosamente.
– Quanto vocês me oferecem? – interrompeu curiosamente.
– Quinhentas libras.
– Quinhentas libras! – bradou. – Quinhentas libras! Mas quão generoso é seu tio! –
Uma pausa se seguiu antes que Doneus concluísse: – Tem certeza que seu tio possui
meios para me pagar tal soma?
O tom de voz dele levou-a a perguntar com uma sombra de suspeita:
– Tem alguma razão para supor que meu tio não tenha meios de lhe pagar, sr.
Lucian?
– Diga-me, Julie – disse sorrindo ligeiramente –, sua decisão de vir aqui foi
resultante da sua ansiedade pelo casamento de seu primo, ou está mais interessada em
salvar a fortuna da família?
Julie deixou escapar um profundo suspiro e o sorriso de Doneus desapareceu.
– Como foi que ficou sabendo de nossas finanças? – perguntou, reassumindo o
seu ar de altivez.
– Eu ouço coisas, Julie. Nós aqui não estamos tão separados do mundo como
vocês evidentemente pensam. Sei que é imperativo que Alastair consiga a fortuna dos
Jarrow. – Interrompeu-se, dando a Julie a oportunidade de dizer alguma coisa, mas como
esta permanecesse calada, continuou: – Espero estar certo quando imagino que sua
preocupação é mais pela moça do que por seu primo.
A pergunta estava feita e pedia resposta. Julie inclinou a cabeça num gesto de
quem concorda.
– Sou muito apegada a Lavínia – admitiu –, se ela viesse a saber do passado de
Alastair, ficaria muito infeliz.
– Então a fortuna dela não lhe interessa; não no que lhe diz respeito? – Olhou para
ela e a viu desalentada e aflita, os lábios ligeiramente trêmulos.
– A felicidade de Lavínia é o que me interessa.
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temos bastante.
– Podemos pôr um fim a esta farsa? Onde consigo um táxi?
– Táxi? – repetiu divertido. – Você não disse a Stamati para voltar? – Sua voz não
era mais áspera, parecendo até um pouco aflita. Que enigma era esse homem!
– Não pensei nisso. – Sua mente estivera ocupada com outras coisas, mas agora
ela via que deveria ter dado maior atenção ao problema de voltar a Kalymnos. – Não há
alguém por aqui que tenha um táxi? – Assim que perguntou, percebeu que tola era, pois o
lugar era deserto.
– Temo que não.
– E não há ônibus?
– Táxis fazem as vezes de ônibus; você toma um e divide com as outras pessoas,
mas não conseguirá um por aqui. Tem que andar até a cidade.
– Mas é muito longe!
– Não há outra maneira de você chegar à Kalymnos, pois o dolmus, isto é, o táxi,
só estará aqui às duas e meia.
– Duas e meia? – exclamou. – O navio sai às três horas!
– Se sua intenção era não demorar, por que mandou Stamati embora? – perguntou
ele impaciente.
– Não pensei nisso. – Sacudiu a cabeça desalentada e, repentinamente, seus
olhos se encheram de lágrimas. Colocou a mala no chão e abriu a bolsa, procurando um
lenço. – Vou perder o navio... – Limpou o nariz e, disfarçadamente, enxugou as lágrimas
antes que caíssem. – Não há maneira alguma de chegar a Kalymnos antes das três
horas?
Um longo silêncio seguiu-se ã pergunta. Quando, finalmente, estava certa de que
as lágrimas haviam cessado, notou que Doneus fitava o castelo, cujas paredes, à luz do
sol, brilhavam como ouro.
– Quando é o próximo navio, Julie? – Doneus ainda olhava para o castelo numa
estranha atitude de indecisão.
– Amanhã à mesma hora. Mas eu não posso esperar. – Pensava naturalmente no
quarto, nos mosquitos, na falta de água quente para se lavar. Depois de outro silêncio,
Doneus lhe disse que poderia ficar ali, pois traria sua mãe para ficar com ela. A menção
de uma mãe, tudo o mais momentaneamente saiu de sua mente.
– Era sua mãe aquela senhora quem eu vi na Inglaterra? – Os mesmos olhos,
sobrancelhas espessas, os mesmos lábios cheios. Deveria ter sabido assim que vira
Doneus, mas, não sabia por que, não pensara que ele tivesse mãe viva, apesar de não
haver razões válidas que a levassem a essa conclusão.
– Era. Ela é encantadora, Julie, mas não creio que você tivesse achado naquela
ocasião.
Sua mãe... Uma simples aldeã, com brincos e anéis de ouro e nos braços morenos,
vários braceletes. Roupas pretas e, na cabeça, um lenço também preto.
– Sua mãe não mora com o senhor? Que esquisito morarem separados!
– Ela prefere seu cantinho. Os pais são assim...
Julie franziu as sobrancelhas. O mistério parecia mais denso.
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Capítulo IV
Durante toda a viagem de volta, Julie relembrava seu encontro com Doneus
Lucian. Seu tio não mencionara o extraordinário físico do rapaz, nem seu ar distinto e
aristocrático. Isso foram as primeiras coisas que ela se referiu ao chegar ao castelo de
Belcliffe, no dia seguinte. Edwin ergueu as sobrancelhas e Julie sentiu o vermelho se
espalhando pelo rosto. Tanto quanto Edwin, não entendia por que se referia a isso.
– Ele era alto e forte, mas não sou capaz de lembrar de nenhuma aparência fina ou
ar aristocrático. – Uma gostosa risada ecoou pela sala. – Aristocrático, com efeito! Ele
tinha aparência de um aldeão, roupas baratas e rotas, um ar geral de pobreza, como eu
lhe disse. Bem, mas afinal o que tem sua aparência a ver com tudo o mais? Aceitou o
dinheiro, suponho. – Os dois conversaram durante o chá, que fora trazido assim que Julie
chegara. Na enorme lareira, as chamas ardiam e espalhavam pela sala sua luz e calor,
formando sombras nas paredes revestidas de carvalho. Fora, o dia estava cinzento e
nublado, tão diferente do claro céu azul e do sol de Kalymnos. Antes mesmo de se dar
conta, Julie lembrava também a estampa de um homem de feições atraentes, de olhos
negros e penetrantes, que certamente poderiam ver a alma de qualquer um; um homem
com o nome de Hades... Reviu-o de pé, sozinho no cais, com o vento em seus cabelos,
vendo o navio se afastar da ilha e lhe acenando um adeus.
– Julie, eu lhe fiz uma pergunta. – A voz do tio trouxe-lhe de volta à realidade. – Ele
aceitou o dinheiro?
– Não aceitou. – Recostou-se na cadeira, com o pires e a xícara na mão. Por que
estava tão calma? Estaria caindo na apatia da desesperança dos vencidos? Ou estaria
fazendo o possível para se convencer de que Doneus não cumpriria a ameaça? Havia
nele alguma coisa de tão nobre, tão acima de tal comportamento... Julie lembrava
daquele momento quando quase lhe dissera não acreditar ter ele mandado o recado.
Logo convencera-se de que a idéia era ridícula, pois ali estava ela conversando com ele.
No entanto, em seu inconsciente ainda persistia a convicção de que um profundo mistério
cercava os acontecimentos.
– Ei! – A face de Edwin estava cinzenta. Julie notou o nervosismo da mão quando
ele pegou um pedaço de bolo para, logo em seguida, devolvê-lo ao prato. – Ele recusou
duzentas libras, não acredito!
– Eu ofereci quinhentas, tio – informou Julie –, e ele quase riu na minha cara...
– Riu? De quinhentas libras? – perguntou espantado. –, mas em que circunstâncias
ele vive?
– Extremamente pobres. – Julie se entregou novamente os pensamentos, ainda se
debatendo num mar de conflitantes perguntas e respostas. Que Doneus Lucian gostaria
muito de se casar com ela era evidente, apesar de não atinar por quê. E agora que tinha
falhado em seu intento estaria resignado? A figura dele voltava constantemente à
memória de Julie.
– A casa dele, Julie, como era?
– Era como o senhor disse, uma tapera, abandonada por dentro e por fora. De fato,
parecia não ser habitada há anos, a julgar pelo jardim cheio de mato, apesar das lindas
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
flores que cresciam misturadas. É evidente que há muito tempo atrás deve ter sido bem
cuidada.
– Não compreendo – disse, sacudindo a cabeça –, esses apanhadores de esponjas
devem cuidar bem de seus jardins, pois são forçados a cultivar suas próprias hortas
durante os sete meses em que estão desempregados. Mas estamos somente em outubro
– exclamou, como que achando a explicação – ele esteve fora desde abril; por isso o
lugar está em abandono.
– Então por que não começou a limpar?
– Talvez ele pretenda.
Encerrando o assunto com um levantar de ombros, Julie contou tudo o que se
passara entre Doneus e ela, mencionando também que a mulher que viera à Inglaterra
era sua mãe.
– Ela não mora com ele – terminou, enquanto Edwin a fitava com uma expressão
vazia. – O que significa isso? Se ela é viúva, e eu tenho a impressão de que é, ela e seu
filho não deveriam morar juntos por razões econômicas?
Depois de alguns segundos, Edwin disse impaciente: – Estamos divagando. Se
aquele miserável não quer o dinheiro, que quer então?
– O senhor sabe muito bem o que ele quer: eu!
– Que absurdo! Esse homem deveria ser posto atrás das grades!
– Ele não cometeu nenhum crime, que eu saiba. – Ela, muito calma, estava
defendendo-o! O que estaria acontecendo com ela?
– Chantagem é crime!
– Sim, suponho que o senhor chame isso de chantagem – concordou depois de
uma pausa. Uma idéia brotou-lhe de repente. – Ele está atrás de alguma coisa, mas o
quê? A não ser que esteja completamente fora de si, deve saber que a idéia de um
casamento entre um aldeão grego e uma moça de nosso nível é impossível. No entanto,
recusou receber quinhentas libras...
Edwin exclamou encarando a sobrinha com súbita compreensão:
– Já sei, ele está atrás de um peixe maior!
– Eu não entendo...
– Se ele sabe tanto a nosso respeito, deve ter sido avisado de que você tem direito
à sua própria fortuna e é atrás disso que está! Honestamente acredita que pode forçá-la a
se casar com ele e levar um bom dote! Meu Deus, o homem não é louco! É fácil perceber
por que rejeitou a idéia de receber quinhentas libras.
Julie empalideceu. Seria essa a explicação? Certamente era a única possível; mas
por que seu coração batia tanto? Por que quando tivera a prova clara de sua infâmia,
continuava com a esperança de que ele fosse um homem honrado? A explanação do tio
estava correta: Doneus queria casar-se com uma mulher rica.
– Que faremos? – Edwin parecia deprimido. – Se Alastair não se casar com
Lavínia, estaremos perdidos. Será um desastre!
O coração de Julie saltou dentro do peito.
– É tão má assim a situação?
Seu tio levantou-se da cadeira e começou a andar pela sala, esquecendo-se do
chá.
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
Julie só o viu quando chegou bem perto dele, e levou tamanho choque que
tropeçou no primeiro degrau da escadaria da igreja; e teria caído, não fossem os fortes
braços ao redor de seu corpo a ampará-la. O contato! Por um fugaz momento, tudo fugiu
de sua mente, menos isso...
– Você está linda, Julie. – As palavras, suaves como uma brisa de verão, foram
sussurradas a seu ouvido, antes de ele dar um passo atrás para não atrapalhar o cortejo
nupcial. Atônita e incrédula, com o coração pulsando selvagemente, Julie deu um passo
vacilante e saiu do alinhamento.
– Mas, Julie – cochichou Cheryl, olhando de relance o alto estrangeiro, que vestia
um barato mas bonito temo marrom, a camisa muito alva contrastando vivamente com
sua pele morena. – O que houve?
– Tive uma ligeira tontura. – Era verdade. Nunca, em toda sua vida, Julie recebera
um choque maior. Estivera tão convencida d, que ele não viria... mas viera e isso a
abalara... e causara outra vez a mesma dor que sentira quando seu tio afirmara que ele
estava atrás de sua fortuna, recusando as quinhentas libras porque estava querendo um
peixe maior... Bem, era isso ou então estava possuído de uma louca mania de vingança,
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querendo tê-la como esposa para, fazendo-a sofrer, sentir-se compensado por tudo o que
sofrera nas mãos de seus parentes. Em meio ao seu grande terror e confusão, parecera-
lhe ver um demônio, quando olhara dentro daqueles olhos negros e penetrantes.
– Então veio! – Excitadíssima, via por todos os lados convidados, fotógrafos e
pessoal de imprensa. – Eu não pensei que o senhor viesse!
– Eu lhe disse que viria e você mesma afirmou que sabia que eu cumpriria minha
palavra. – Era imaginação ou havia uma nota de desespero em sua voz? Julie reagiu; não
havia tempo para pensamentos...
– Sabia que sim, mas depois preferi pensar que o senhor era um homem honrado.
– Sou totalmente sem honra, como seus parentes. Depressa! Aceite minha
proposta ou entro lá. Nunca se casarão... e, Julie, sua família estará arruinada!
Inconscientemente estendeu ambas as mãos para ele e viu-o olhá-las de modo
muito estranho. Notou também o pulsar de um nervo junto à cicatriz, o que lhe deu
alguma esperança.
– Vá embora, sr. Lucian, eu lhe peço! Lavínia nunca o magoou...
– Meus interesses não estão nos Jarrows, mas nos Veltrovers.
Seus olhos negros fitaram significativamente a igreja, enquanto atirava para trás
sua arrogante cabeça num ar de vitória, e Julie sentiu novamente tomada de incerteza e
desespero. Seria esse o esforço final dele para submeter os Veltrovers à sua vontade? E
se falhasse, iria a embora, deixando-os em paz? Tudo isso passava como um turbilhão
pela cabeça de Julie, que no entanto não ousava virar-se e entrar na igreja, deixando-o
ali.
– Sr. Lucian, eu lhe peço, eu lhe imploro... – Pensava em Lavínia no altar, olhos
brilhando, coração batendo rápido, sem dúvida, pois a cada momento estava mais
próxima de ser a esposa de seu ídolo.
– Não estou brincando, Julie. – Doneus falava a seu ouvido. – Não só pretendo
denunciar Alastair, como também contar que os Veltrovers estão arruinados e
interessados no dote da moça!
– Alastair a ama.
– Não mencione Alastair ou amor. Quero sua promessa agora e depressa! – Sua
voz era venenosa e seu olhar odioso.
O último vestígio de cor deixou as faces de Julie. Apenas vagamente tomou
conhecimento de um fotógrafo que captava a cena.
“Deus, me ajude! Faça com que este homem vá embora daqui”, rezou ela, mas
preciosos momentos estavam se escoando e tudo que ela recebeu em resposta foi:
– Decida-se, Julie! Agora, ou entro nesta igreja!
– Não! – Um espasmo arrepiante percorreu-a toda. – Eu não p... posso me casar
com vo... cê... – Sua voz era falha e sentia como se todo o mundo tivesse desaparecido e
ela estivesse sozinha com aquele homem... sozinha e inteiramente em seu poder. – Eu
lhe p... peço...
– Somente, por sete meses, Julie. Pense! Durante cinco meses você pode voltar
para sua família. Isso é quase meio ano.
Ela o fixava com seus lindos olhos enevoados, suas pálpebras trabalhando
rapidamente para disfarçar as quentes lágrimas de desespero e medo. Sete meses,
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
dissera ele! – Depressa! – Ouviu-o dizer novamente, sempre olhando a porta da igreja.
Parecia que ele lutava não só com o tempo, mas por sua própria vida. – Depressa! – Sete
meses... Ser sua esposa, sua mulher, como dizem na Grécia. Obedecer suas vontades e
seus desejos durante sete meses cada ano, levada para as profundezas escuras do
submundo. Ele fez um movimento de quem ia se dirigir para a porta da igreja.
– Muito tarde! Vou entrar.
– Não, espere! – Agarrou seu braço, seu cérebro mal conseguindo funcionar e
gritou em desespero total: – Farei um trato com o senhor. – Não daria certo, tinha certeza,
mas no momento sabia que pelo menos tinha conseguido atrasá-lo um pouco. – Eu me
casarei com o senhor e ficarei lá sete meses cada ano... mas será um casamento pro
forma.
– Pro forma? Como pode um casamento ser assim?
– Eu não o conheço. – Agora Julie chorava, inconscientemente torcendo as mãos.
– Como poderia viver com você sendo sua esposa? Não – disse finalizando, o que trouxe
um lampejo de tristeza aos olhos dele. – Ou então entre; nada mais posso fazer para
detê-lo.
Ele não se moveu e, por alguns segundos, examinou o rosto transtornado, lindo e
pálido, os olhos sombreados agora pela total aceitação da derrota.
– Concordo com suas condições, Julie. – Estava calmo e não deixava transparecer
qualquer emoção.
– Você manterá sua palavra? – Nos negros olhos dele, procurava descobrir algum
sinal de falsidade, quando o ouviu dizer indignado:
– Nunca quebrei minha palavra, Julie! – E ela sabia que podia confiar. Quando ele
lhe sorriu, reconheceu que não o odiava, mas estranhamente se sentia ferida de um modo
que não chegava a entender.
– É melhor você entrar, agora – avisou, acrescentando: – Eu lhe telefonarei
amanhã para combinarmos tudo sobre nosso casamento.
Ela não se moveu. O que havia feito? Uma terrível desolação prendia-a com suas
garras e ela sentiu que não se livraria dela... até o fim de sua vida...
– Você não me pediu garantia de que cumprirei minha palavra! – O toque de um
sorriso curvava seus lábios.
– Não é preciso, minha querida. Assim como eu, você nunca quebra sua palavra...
Estavam no pátio. Julie lia um livro, mas de vez em quando levantava os olhos,
vendo o rosto moreno do marido. Cada vez que isso acontecia, sentia uma estranha
inquietação. Mantivera sua palavra, casando-se com ele e vindo para Kalymnos, a
despeito da forte oposição de seu tio, que, pouco ligando para os sentimentos de Lavínia,
afirmava que se o casamento tinha sido realizado nada mais havia a temer. Lavínia logo
esqueceria tudo, acrescentou, mas Julie sacudiu a cabeça.
– Eu fiz uma promessa solene, tio.
– Sob pressão, como eu fiz há dez anos atrás. Por que ainda vive esse homem?
Por que não sofreu um acidente como tantos em sua ilha e morreu de uma vez?
– Não! – A simples palavra foi uma explosão de protesto, e o grito atordoou seu tio.
Julie desviou a cabeça, seus nervos tremendo, só em pensar que Doneus pudesse ser
vítima das traiçoeiras águas do mar, morrendo, ou, o que seria pior, ficando aleijado para
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
o resto de sua vida. Seria ele vítima de um acidente algum dia? Fechou os olhos,
imaginando como podia sentir-se assim; preocupada com a segurança de um homem que
nada significava para ela. Devia ser horrível essa ameaça para as mães, irmãs e
mulheres que amavam seus maridos. Por que tinham os homens que viver tão
perigosamente?
– Você não vai se casar com um aldeão, ainda mais um estrangeiro! – dissera
Edwin, decisivo e prepotente. Mas Julie, que ainda recentemente lhe dissera que Julgava
os homens por sua honra e integridade, se recusou voltar atrás na palavra dada.
– Você estará longe daqui em uma semana – declarara Edwin, enfurecido com a
teimosia de sua sobrinha em cumprir uma promessa feita sob tal pressão.
Os pensamentos de Julie foram interrompidos quando Doneus, abandonando uns
papéis que estivera examinando, perguntou-lhe sorrindo:
– O que é Julie? Você estava tão absorta...Não posso participar de seus segredos?
Só algumas vezes? – Sua voz era gentil, persuasiva, mas nem de longe humilde. Desde o
princípio, ele se considerara igual a ela, que por sua vez só se lembrava de que ele era
um aldeão quando pensava em sua mãe, ou quando olhava para sua casa. Para aquela
casa miserável, ele a trouxera; a ela, Julie Veltrovers, do Castelo de Belcliffe, um mês
atrás.
Seus adoráveis olhos cinzentos encontraram os dele. Doneus lhe dissera uma vez
que os olhos dela eram reveladores. Então por que simplesmente esperava uma resposta
sem dar mostras de ter interpretado seu silêncio?
– Não tenho segredos, Doneus. – Como a dele, sua voz era gentil e delicada, e não
áspera como tantas vezes tinha sido antes.
– Diga-me no que estava pensando.
– Em minha casa, naturalmente.
– Sua casa? – A expressão dele era de censura; mas ela o encarava firmemente
quando respondeu:
– Minha casa é na Inglaterra, você sabe disso.
Desordenadas videiras estendiam-se pelo telhado do terraço e caíam pelos lados,
livres e sem suporte. Pelas frestas do chão, centenas de formigas corriam apressadas. A
pintura dos pilares de madeira estava descascando, e partículas do estuque caíam de vez
em quando.
– Diga-me Julie, você fica sentada aí o dia inteiro, gastando seu tempo, como se só
estivesse esperando eu ir embora para poder voltar à Inglaterra?
– Naturalmente que sim. – Assemelhava-se a Perséfone que também esperara na
prisão escura de seu marido pelo dia de tomar a ver a luz do sol. Cinco meses Julie teria,
a começar da Páscoa, mas no momento não quis estender-se mais sobre o assunto. Não
queria pensar como seria recebida pelo mundo elegante em que vivia, nem nas perguntas
que inevitavelmente lhe fariam as amigas, curiosas que estavam, pois Edwin lhes dissera
que ela havia se casado com um estrangeiro, que estava morando com ele numa
ilhazinha grega. Também não queria pensar no dia em que expirassem os cinco meses e
deveria voltar para a ilha e para o homem que era seu marido.
Viu-o perdido e infeliz em suas considerações quando este lançou-lhe um olhar por
cima dos papéis que estavam sobre a arruinada mesa do terraço.
– Então, se eu fosse embora amanhã, você ficaria feliz?
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
Certamente. Era verdade... mas por que este súbito temor em seu coração?
Doneus ferido... Rapidamente afastou esses pensamentos, enquanto observava suas
mãos morenas e bonitas, apanhando alguns papéis que deixara no chão junto da cadeira
e colocando-os numa pequena pasta. Que seriam aqueles papéis que ele tão
freqüentemente examinava? Notara que alguns eram escritos em grego e outros em
inglês. Onde ele os guardava? Os escondia em algum lugar... não dentro de casa, pois,
um dia, vencida pela curiosidade, ela os procurara por todos os lugares possíveis, sem
achá-los.
– É uma longa espera até a Páscoa, Julie. Por que não faz uma tentativa de se
adaptar? – Sempre lhe falava assim, como se fosse seu único desejo que ela aceitasse
seu destino, resignando-se a morar naquela casinha de três quartos, com rústica mobília,
bomba-d’água no quintal e sua colmeia um pouco distante, sob a sombra de uma
frondosa árvore. Doneus lhe mostrara como amassar pão; acendera o fogo sob o fomo de
barro, usando pedaços de madeira que estavam por ali espalhados e os colocara dentro.
Dali a pouco tempo, lindos e cheirosos, lá estavam eles prontos. Eram redondos e
tostados, e Doneus espalhara sementes de gergelim sobre eles. Julie a tudo observava,
feliz com a diversão inesperada, pois se aborrecia de manhã à noite. Mas assim que
Doneus, sorrindo encorajadoramente, sugerira que ela experimentasse amassar um,
gravemente recusara, lembrando-o de quem era ela.
– Em casa eu nada fazia. Não pretendo ser sua escrava, Doneus. – E ele deixou
passar, afastando-se dela como se temesse dizer alguma coisa de que mais tarde se
arrependesse.
A resposta de Julie deixara claro que ela não tinha a menor intenção de se adaptar
ou de fazer algo. Os olhos dele brilharam num de seus raros instantes de raiva, mas
momentos depois estavam calmos.
Doneus sempre parecia estar em guarda; às vezes cauteloso, outras conciliatório,
mas nunca humilde. Observando-o, Julie ponderava, embora vagamente, o
temperamento forte que ele possuía, imaginando se um dia chegaria a compreendê-lo.
– Você se considera superior a mim – disse gentilmente – e isso é uma barreira
para a sua felicidade. Se você se acostumasse a me ver como um igual, conversaria,
passearia e comeria comigo. – Sua voz era quase um sussurro e, no final, Julie mordeu
os lábios. Por que não o odiava? Qual seria o feitiço com o qual ele a mantinha presa,
apesar de se conservar sempre distante dele? Essa conversa não era comum, pois
quando ele aparecia no terraço ela se levantava e entrava em casa, ia dar um passeio
pelas montanhas. Hoje, entretanto, ficara, não sabendo o porquê.
– Você parece se esquecer de que estou aqui contra a minha vontade...
– Você não precisava ter se casado comigo, Julie.
Os olhos dela estavam distantes e tristes, mas sem vislumbre de acusação. Sabia
o quanto se sentira ferida, quando, do lado de fora da igreja, Doneus aparecera e depois
prometera cumprir sua palavra. Naquele momento sua presença a aturdia, mas ela não
sabia a razão. Agora, porém, tinha a resposta. Doneus a desapontara pelo fato de ter ido
à Inglaterra. Ela tinha em seu subconsciente formado a figura de um homem honrado; um
homem a quem a chantagem parecia abominável, pois estava acima dessas coisas.
Embora tivesse, agido um dia com a mentalidade de vinte anos, ela imaginara-o agora
uma pessoa diferente: um homem com idéias precisas de justiça e dignidade. Mas ele
não era, coisa que ela descobrira à custa de sofrimentos. O impiedoso Doneus a fazia
pagar pelo erro de outra pessoa.
– Talvez não; mas você me deu um ultimato. Eu ainda afirmo que estou aqui contra
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
Capítulo V
Alguns momentos depois, com Jason bebendo agradecido a fresca água de sua
bacia, colocada no chão em frente ao terraço, Doneus lhe disse pesaroso:
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
das mãos.
Pela primeira e única vez, Julie fora arrogante:
– Nunca irei a você espontaneamente. Você é muito presunçoso, se imagina tal
possibilidade. – Toda a inata altivez de Julie, que como uma couraça escondia um terno
coração, viera à tona. A atitude de Doneus modificara-se inteiramente. Seus olhos
tomaram se frios e seu sorriso desaparecera, enquanto dizia:
– Não me considera digno de tocá-la?
Julie olhou-o com profundo desdém, e palavras de indignação lhe vieram aos
lábios, mas ela não chegou a pronunciá-las, pois lembrou-se da emoção que sentira a seu
contato: a primeira vez, quando o conhecera, ele, colocando os dedos sob seu queixo,
obrigara-a a levantar a cabeça; depois na frente da igreja, quando seus braços fortes a
sustentaram para que não caísse...
As reflexões de Julie foram interrompidas pela voz de Doneus terminando o que ela
própria começara a dizer:
– Por seu físico? – Brutal franqueza, dita em tom suave...
– Então por que, Doneus? – Obrigou-se a encará-lo.
– É preciso haver uma razão?– Brincava distraído com o fecho da pasta que estava
sob a mesa, em seus joelhos.
– Havia uma razão muito boa. – Doneus parou, mas Julie continuava esperando. –
Você é a reparação que me foi prometida há dez anos atrás.
– Então foi só por vingança? Você me exigiu e desde então não pensou em mais
nada além disso? – Nebulosas e conflitantes sensações. Esse homem tinha o nome de
Plutão... e sua mente era tão insondável quanto a do deus do negro mundo subterrâneo...
– Nunca deixei de pensar nisso um só segundo de minha vida – tomou ele
gentilmente, depois de uma pequena pausa. – Antes, vivia preocupado unicamente com
minha vida – falava pausadamente, como que escolhendo as palavras cuidadosamente –,
contudo, com o passar do tempo, meu pensamento se voltou para a moça que me havia
sido prometida.
Julie tinha os olhos semicerrados, mais por causa do sol do que por outra coisa.
– Esse pacto é uma coisa que eu não entendo, Doneus, e creio que nunca
entenderei. A única coisa que sei é que nossas relações não têm sentido.
– Você gostaria de alterá-las? – interrompeu rapidamente, divertido com a súbita
palidez de Julie.
Naturalmente ela ignorou a pergunta, murmurando quase que só para si mesma:
– Não têm sentido porque você não está lucrando nada com isso.
Doneus fitava a pequena lagartixa, que graciosamente continuava a apanhar suas
presas.
– Estou tendo satisfação, Julie. Recebi reparação de uma ofensa que me foi feita
quando eu ainda era muito jovem.
– Você é enigmático. Nem sei mesmo por que me dou ao trabalho de tentar
entendê-lo.
O sorriso dele mexia com seus nervos porque era o sorriso de um homem solitário.
No entanto, isso não era verdade. Durante cinco meses do ano ele estava com outros
mergulhadores. Homens que, como ele, desafiavam as profundezas do oceano, cientes
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
do perigo que os cercavam e cientes de que quando ficassem muito velhos para o
trabalho teriam que se retirar e viver de suas memórias.
– De qualquer modo, parece que você faz um esforço para me entender.
– É natural. Eu não tenho mais nada para fazer – bateu as mãos no colo, num
gesto de resignação, o que causou nele um efeito singular. Parecia intimamente triste.
– O que gostaria de fazer, Julie?
Julie deu um pálido sorriso e fez um ligeiro gesto de abandono com a mão.
– Gostaria de saber! – Surpreendeu-se dizendo. Por que não a abandonava essa
nova e constante sensação de desassossego? Pensava no castelo de Belcliffe e nos
cinco meses que passaria lá, mas essa incontrolável sensação nada tinha a ver com a
sua casa na Inglaterra. – Acho que vou dar um passeio – disse olhando para Doneus e
querendo finalizar a conversa. Por que finalizá-la? Sabia que, durante o último quarto de
hora, Doneus se sentira feliz e agradecido pela sua companhia. Isso era evidente na
expressão de seu rosto, que com as palavras dela se transformou em desapontamento e
resignação. Subitamente, seguindo Jason com os olhos, que se deitara à sombra de uma
árvore, disse com singular inflexão na voz:
– Leve Jason com você.
Que estranha coisa a sugerir. Ele sabia que Jason não a acompanharia a não ser
que fosse junto.
– Ele não virá comigo, não se você estiver por perto. – Começou a andar, saindo
do terraço em direção ao jardim.
– Chame-o!
Julie virou-se olhando o marido numa expressão confusa.
– Sabe muito bem que ele não o abandona.
– Chame-o – repetiu Doneus, e, com um levantar de ombros, ela assim o fez.
Jason levantou-se imediatamente, mas ficou parado, indeciso, olhando de um para outro.
– Venha, Jason. ela. – O cão deu dois passos na direção dela, mas depois parou
olhando novamente para o dono. – Viu? – Julie estava extremamente confusa com o
comportamento do marido. – Ele não deixa você.
Doneus levantou-se e num instante estava ao lado dela.
– Parece que terei que ir com você, pois tenho certeza de que Jason gostará do
passeio.
A manobra fora tão clara que o coração de Julie disparou. Como Doneus tivera um
pouco de sua companhia, relutara em deixá-la ir.
Lembrava-se do tremor na voz dele quando ainda há pouco dizia:
“Se você se acostumasse a me ver como um igual, conversaria, passearia e
comeria comigo”. Fizera toda aquela manobra para ficar um pouco mais junto dela. Julie
sentiu um aperto na garganta. Doneus era um homem solitário, desesperadamente
solitário. Pensou em como seria a vida dele agora se tivesse casado com a noiva de
tantos anos atrás. Teria sua mulher e filhos à sua volta... Julie levantou a cabeça, sorrindo
encantadoramente.
– Tem razão, Doneus. Jason adoraria dar um passeio. – A doçura de sua voz fez
com que Doneus procurasse seus olhos, como quem pesquisa e procura... O quê?
Continuava parado, suas emoções visíveis... felicidade, gratidão e prazer. Enquanto os
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momentos passavam, uma secreta e profunda emoção tomava conta dela. Algo que
exigia séria introspecção, mas não ousava examinar seus pensamentos, e, para disfarçá-
los, dirigiu-se a Jason, que permanecia junto deles:
– Agora você vem? Agora que seu dono vem junto?
Doneus sorriu e, encorajado por essa inesperada mudança, estendeu a mão. Pela
primeira vez ele fazia isso. Julie reparou nas veias e nos longos dedos daquela mão
morena. As mãos de um apanhador de esponjas deveriam ser fortes, pois teriam que
agarrar e arrancar as esponjas das rochas.
– Vamos, então? – disse ansioso para acabar com sua hesitação.
Ela ainda fixava sua mão, metade dela ansiando por colocar sua pequena mão na
dele e a outra metade se desprezando por não odiá-lo por isso. Deu um pequeno passo
para o lado, vendo a mão cair desanimada enquanto ele dizia alguma coisa em grego
para Jason.
Julie ouviu, pensando em quantas horas de solidão Doneus teria passado, só tendo
o cão para conversar. Lágrimas lhe vieram aos olhos e ela daria tudo para voltar àquele
momento em que ele lhe estendera a mão.
– Por onde iremos? – Tinham começado a andar, passando pelo jardim e chegando
à estrada de terra.
– Você escolhe, minha querida. – Doneus parou esperando que ela decidisse. Ela
mostrou um ponto ao norte da ilha de onde parecia possível atirar uma pedra na ilha de
Leros. Julie ia freqüentemente até lá, vagueando pela costa rochosa, pisando o chão
ocre, salpicado de pedras. Era uma paisagem solitária e selvagem, onde apenas umas
poucas corajosas plantas cresciam nos raros pedaços de terra.
Deixaram o pequeno e descuidado jardim da casa, onde trepadeiras vermelhas
floriam, e se dirigiram para o mar. Passaram por uma mulher que pastoreava seu rebanho
de cabras e seguiram adiante, sempre ouvindo o som dos sininhos que chegava até eles
através do ar puro e cristalino. Ao fim da estrada de terra, da qual Julie se lembrava tão
bem, quando Stamati a trouxera pela primeira vez a casa de Doneus, viraram à direita,
costeando o mar e seguindo em direção ao castelo. Este era o último sinal de habitação,
antes de entrarem na estranha e deserta paisagem, onde a única evidência de atividade
humana era uma sereia de bronze em tamanho natural, sentada numa rocha e tendo uma
lira nas mãos.
– Tive um choque a primeira vez que a vi – disse Julie meia hora depois de terem
admirado a linda figura da sereia. – Foi tão inesperado... – Julie estava rindo alegremente.
– Num lugar tão desolado, só de montanhas e terra nua, tendo ao longe a ilha de Leros...
– interrompeu-se baixando os olhos ao ver a expressão do marido, dando-se conta de
que era a primeira vez que ela ria despreocupadamente desde que chegara a Kalymnos.
Doneus estava fascinado. Disse qualquer coisa em grego, como que temendo que ela
entendesse e retomasse seu ar de altivez novamente.
– Você é a mais linda moça que eu já vi em toda a minha vida, Julie – disse
suavemente.
Fixando-o, lembrou-se de que uma vez ele já lhe havia dito que ela era linda, mas
na ocasião não dera importância; agora, uma onda de ternura tomou conta dela. Negar o
encanto desse homem era impossível. Como nenhum outro homem, ele a impressionava.
Edward, a quem a mãe de Doneus se referira, parecia insignificante, comparado a esse
grego moreno, de personalidade marcante e ar de fidalguia. Como podia ele ter uma mãe
como aquela? Julie lembrava-se do dia em que, uma semana depois de sua chegada,
Doneus lhe perguntara se não queria ver sua mãe. Ela lhe respondera que não queria ver
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Num rápido exame de seus sentimentos, Julie teve que admitir que
verdadeiramente gostara do passeio, por causa da companhia do marido. Num exame
mais profundo, decidiu que o que sentia por Doneus era uma forte e constante piedade;
pena de sua solidão e de sua pobreza que o obrigava a ter tão perigosa ocupação. Mas
ele nunca deveria suspeitar desses sentimentos. Consciente de seus sentimentos,
resolveu agir de modo diferente. Não mais seria orgulhosa, não se recusaria a comer com
ele, nem discordaria dele. Inferior a ela, ele podia ser; mas era um cavalheiro, tendo
mantido sua palavra, não a molestando. Até então, para seu próprio conforto, lavara sua
roupa de cama, mas não a dele. Recusara-se a cozinhar ou limpar, na realidade, nada
fizera além de ler, passear ou tomar banho de mar. Deixara o tempo passar, só ansiando
pelo glorioso momento de voar para casa, para o ambiente de luxo e riqueza a que estava
acostumada desde que nascera. Agora que estava decidida a tomar a vida dele mais fácil,
esforçou-se para fazer coisas que sempre foram feitas pelos criados. Limpou a pequena
sala, apesar de achar que não melhorara muito, pois o que poderia fazer com um chão
pobre e paredes descascadas? Foi ao quarto de Doneus, trocou a cama e depois lavou
os lençóis sujos.
Varreu o assoalho e tirou o pó dos móveis, enquanto Jason, que por alguma razão
resolvera voltar para casa sozinho, abanava o rabo cada vez que Julie olhava para ele.
– Não me admira que você olhe espantado. É que resolvi ser amável com o seu
dono. – Tendo terminado o quarto de Doneus, saiu, seguida pelo cachorro. – Se ao
menos você pudesse falar, Jason, me contaria coisas sobre seu dono. Talvez você
pudesse me dizer por que se casou comigo; pois não aceito a idéia de que foi por
vingança. – Bateu palmas e Jason latiu para ela. – Que tal sou para ele? Bem, como você
não pode responder, o mistério continua. Venha, ela, Jason, vamos encontrá-lo.
Doneus já vinha chegando em sua bicicleta e ao ver Jason gracejou:
– Parece que tenho que dividi-lo com você... – Saltou da bicicleta e encostou-a na
parede do alpendre.
– Por que ele veio para casa mais cedo? Geralmente só vem com você.
– Deve ter tido saudade de você. – Doneus estivera no castelo o dia todo e parecia
bastante cansado. Um cansaço mais mental do que físico.
Vendo os olhos do marido se arregalarem quando entrou na salinha, achou que
todo seu trabalho não tinha sido em vão. Ela não via diferença, mas, pelo jeito, ele sim.
– O que aconteceu por aqui? – Deu um pequeno assobio e acrescentou: – Não
sinto cheiro de comida aqui há muitos anos.
– Fiz um jantar – disse imediatamente, esperando que ele não assumisse ares de
quem era responsável pela mudança. Mas ele era muito esperto e muito cauteloso; por
isso disse simplesmente:
– Que bom, Julie; e o que você fez!
– Algo muito simples. Vi a carroça do açougueiro quando estava passeando e
comprei um pouco de carne. Não tenho idéia do que seja, pois nunca me preocupei com
cozinha. Provavelmente é um bife.
– Provavelmente é cabra – disse rindo.
– Ah! Não! Vocês comem cabras? – Estava irritando-a e, apesar de se sentir
indignada, só conseguia ficar ali pensando como ele era atraente.
– Bem – disse – está feita, mas não estou certa de ter preparado da maneira
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correta.
Rindo, foi até o alpendre para lavar as mãos antes de se sentar à mesa. Julie
tentara arranjá-la da maneira mais atraente possível, mas os talheres eram velhos e os
pratos rachados com seus desenhos originais apagados. Entretanto, pusera flores na
mesa, magnólias e gerânios do jardim. Serviu a carne na bandeja que conhecera por
ocasião de sua primeira visita. Observava seu rosto enquanto ele experimentava a carne
e as verduras. Sua expressão era uma máscara, mas, ao ver o olhar ansioso dela, sorriu
e balançou a cabeça aprovativamente.
– Muito saboroso – comentou, servindo-se de mais um pouco.
Doneus parecia menos fatigado e ela decidiu não poupar esforços para torná-lo
feliz. Esses esforços significavam dedicar-lhe todo seu tempo; quando ele estava em
casa, evidentemente, e também, depois do jantar, quando saíam juntos para passear sob
um céu cintilante de estrelas e ir até o fim da ilha, ao lugar que eles tanto amavam.
Enquanto andavam, o rápido crepúsculo mergulhava-os no encanto e suavidade de uma
noite grega. A lua aparecia gloriosa, prateando as escarpas adormecidas enquanto o mar
se tomava salpicado do brilho das estrelas. Tudo era calma e tranqüilidade e,
freqüentemente, os dois paravam silenciosos ficando somente a olhar a imensidão.
Gradualmente, enquanto as semanas passavam, Julie se deixava envolver pelo encanto
daquela ilha paradisíaca e sua casa na Inglaterra parecia um mundo distante... pelo
menos, muito longe para alcançar.
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– A moça de quem fui noivo me traria um dote, sim, porque, obedecendo às ordens
de nossos pais, concordamos com um casamento arranjado e o costume deveria ser
seguido. Isto é, meus pais nem por um momento teriam aceito Annoula se os pais dela
não lhe tivessem arranjado um dote. – Falava indiferentemente e ela se lembrava de o tio
lhe ter dito que ele ficara desesperado com a morte da noiva. Agora, porém, sabia que
essa reação era só angústia por ver uma vida tão jovem terminar e não havia amor entre
ele e Annoula. Como poderia um casamento arranjado ser baseado em amor?
– Não posso imaginar alguém como você recebendo ordens. – Corou
intensamente, envergonhada pela sua falta de tato.
– Eu era um garoto naquela ocasião. Também você deve se lembrar de que, em
meu país, a obediência é ensinada às crianças desde o nascimento. Somente quando
adultos é que lhes ocorre a idéia de discordar – sorriu francamente, seus olhos negros
nos dela. – Agora, ninguém ousaria me dar ordens, naturalmente.
Convencida de que suas palavras tinham um significado mais profundo, Julie
meditou por alguns minutos. Falara como se ocupasse uma espécie de posição superior;
no entanto, se ele era somente um apanhador de esponjas, certamente receberia ordens
de seu chefe no navio. Recostou-se na cadeira, sentindo chegar até ela o aroma do
pomar que ficava mais além. Algumas árvores ainda floriam. Bananas, romãs, laranjas e
limões. Terminando o pomar, uma fila de frondosas alfarrobeiras, com seus negros frutos
reluzentes, pela encosta majestosos ciprestes e, de vez em quando, uma palmeira que
balançava suas folhas tocadas pela suave brisa do mar.
– Com referência à casa, Doneus – disse quebrando o profundo silêncio – não
poderia eu gastar só um pouquinho do meu dinheiro? – Sua voz era meiga e gentil, mas
só trouxe um franzir de testa do marido.
– Julie, eu disse que o assunto estava encerrado. Disse que não, e é não!
Julie cerrou os lábios. Ser dominada por um simples aldeão, ela, a altiva e
poderosa Julie Veltrovers... não era possível. No entanto, não tinha alternativa senão
aceitar a autoridade do marido, mesmo que, no momento, nada lhe poderia dar maior
prazer do que contrariá-lo.
Ela observava suas reações com interesse, mas Julie resolveu que de nada
adiantaria voltar ao assunto. Por isso, ergueu para ele os olhos ainda marejados e pensou
que se queria tomar a casa mais confortável, era mais por ele do que por ela própria.
Desejava que, ao chegar em casa, tivesse numa fresca e arejada sala sua boa cadeira na
qual pudesse relaxar, com bonitas coisas ao redor e um tapete sob os pés.
– Espero que você aceite minha vontade sem animosidade. – Sua voz profunda
revelava austeridade e paradoxalmente um pouco de ansiedade. Significaria tanto assim
para ele que não vivessem em harmonia?
– Não sinto animosidade por você, Doneus.
Sentada ali com Doneus tão perto, compreendeu que realmente era mais lógico ter
recebido a negativa do marido do que sua aprovação. Se ele tivesse concordado, e se
submetido a seus desejos, seria uma fraqueza da parte dele e isso lhe traria mais
desapontamento do que satisfação. Nesse momento, não se perguntou por que se sentia
assim, nem examinou o porquê de seus sentimentos com relação ao marido. Se o tivesse
feito, a resposta seria que sentia pena dele e estava satisfeita com à total aceitação de
suas determinações.
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Capítulo VI
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Era o primeiro bebê dela. Um outro seria esperado no ano seguinte e assim por
diante.
– Quer um sorvete? – Astero já trazia o copo. – Tomaremos saudando meu neto...
– Naturalmente que sim, Astero. – Tomaram enquanto Kyria continuava
alimentando o filho. Depois ofereceu-o a Julie.
– Quer segurá-lo um pouco?
Tomando a trouxinha dos braços da orgulhosa mãe, Julie segurou-a, olhando a
criança adormecida, enquanto uma singular sensação brotava em seu íntimo. Sempre
desejara ter filhos e num relance imaginou-os dois meninos e talvez duas meninas,
crescendo na fartura, com uma ama desde o início. Depois a escola, uma boa escola, e
então uma carreira. Julie cerrou os olhos Por um segundo, como que querendo espantar
a dor de sua frustração.
Durante o jantar, contou a Doneus sobre o bebê de Kyria.
– É um lindo garoto – acrescentou, e Doneus rapidamente olhou para ela, seu olhar
no dela por um longo momento. Julie abaixou a cabeça lembrando-se de que seus olhos
eram reveladores. Doneus não fez comentários e mudou de assunto, dizendo-lhe que
tinham sido convidados para jantar fora na noite seguinte.
– Jantar? Mas onde?
– Com alguns amigos meus. Eles moram naquela casa rosa e branca que se pode
ver daqui. – Mostrou uma linda casa construída num terraço cavado na montanha. Era tão
distante que parecia uma casa de boneca. Julie pestanejou. Tinha estado perto da casa,
num do seus passeios, e lhe parecera uma casa rica e confortável.
– São seus amigos? – A surpresa de sua voz trouxe um olhar duro de Doneus para
ela.
– E por que não? Posso saber?
– Desculpe, Doneus. Acho que me surpreendi pelo fato de você nunca os haver
mencionado antes.
Doneus cortou um pedaço de pão e colocou-o no prato.
– Sua surpresa vem do fato de você não acreditar que eu possa ter amigos de tal
posição.
Completamente desconcertada pela sua rápida percepção, disse disfarçando:
– São gregos?
– Michalis é, mas sua esposa é inglesa.
– Inglesa? Que bom! Pensar que ela mora aqui perto e que eu nunca a encontrei.
Como se chama? – A excitação trouxera cores lindas ao rosto de Julie e qualquer
ressentimento dele se desfez quando sorriu para a esposa.
– Tracy. Ela e Michalis se encontraram numa festa no castelo. Tracy estava aqui de
férias. Você não a encontrou antes, porque ela e Michalis estavam viajando pelo
continente nestas últimas semanas.
– Ela estava de férias e foi convidada para a festa?
– O dono conhece os pais dela. – Doneus olhou para Jason, que estava deitado
sob a mesa. – Encontrei Michalis hoje e ele nos convidou para amanhã à noite.
O coração de Julie batia apressadamente. Um aldeão ter amizade com gente como
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aquela? Gostaria de fazer uma dúzia de perguntas, mas sabia que as respostas seriam
evasivas. Quis saber se seus amigos estavam a par das singulares circunstâncias de seu
casamento. A hesitação dele ao falar mostrava claramente que escolhia as palavras.
– Sabem parte da história.
– Parte dela?
– Obviamente não a contei toda. – Doneus começou a comer, enquanto Julie
ponderava. Essa atitude dele contribuía para o mistério que os cercava, e, mesmo
sabendo que ele não estava disposto a responder mais nada, não resistiu e perguntou:
– O quanto você lhes contou, Doneus?
Do outro lado da mesa, ele lhe lançou um olhar impaciente.
– Não lhe interessa, Julie. – E recomeçou a comer.
– Por que você tem que ser tão irritantemente incomunicável?
– Curiosidade feminina, hein?
– Naturalmente sou curiosa, principalmente quando minha vida está envolvida.
Os olhos dele brilharam e ela reconheceu neles um pouco de compreensão.
– Não consigo entender... – Seus lábios se apertaram novamente. – Esse
mistério....
– Mistério?
– Fico completamente transtornada quando não consigo resolver um mistério.
Quanto mais o conheço, mais fico convencida de que você é incapaz de guardar um
rancor por tantos anos.
– Posso tomar isso como um elogio? – perguntou rindo.
– Seria totalmente contra seu caráter guardar esse rancor. Alguma coisa me diz
que é até impossível.
– Estou ficando lisonjeado – disse divertido. – Você é encantadora quando fica
zangada. Seus olhos se tornam ainda mais expressivos.
Exasperada, Julie tomou o garfo e a faca nas mãos, enquanto um pesado silêncio
caía entre eles. Quando falou, sua voz era meiga e gentilmente persuasiva.
– Por que você me conserva nessa ignorância?
– Um dia, minha querida, você saberá de tudo – disse pausadamente – mas até
lá...
Julie interrompeu-o, cortando suas palavras.
– Então admite que há um mistério?
– Admito que você não sabe de muita coisa, Julie. – Sua face se iluminou. – Como
eu disse, um dia você saberá de tudo e esse “um dia” pode ser muito breve.
– Por que não agora?
– Porque ainda não é hora. E agora, se não se importa, mudemos de assunto. – A
inflexibilidade de sua voz e dureza de suas feições convenceram-na de que era inútil
persistir. Adotou então um ar de fria altivez e o resto da refeição decorreu em silêncio.
Mais tarde, porém, quando como de costume estavam tomando o café no terraço,
perguntou-lhe que roupa deveria usar para ir ao jantar do dia seguinte. Assim que
formulou a pergunta, lembrou-se de que Doneus nada tinha de realmente decente para
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
usar. Somente o terno barato que usara no dia em que fora à catedral e era tudo.
– Nada de especial, Julie. Ponha aquele seu vestido de algodão; aquele florido,
que é lindo.
Sorriu satisfeita ao ver que ele reparava no que ela usava. Pensou nisso
novamente quando estavam observando o luar, o céu salpicado de estrelas e o indistinto
perfil da ilha de Leros. Haviam caminhado até o fim da ilha como de costume. Uma suave
brisa brincava com seus cabelos e a maresia chegava às suas narinas. Fora um passeio
silencioso, ambos entregues a seus próprios pensamentos. Agora que estavam ali, Julie
sentiu nascer dentro de si um onda de ternura que a envolvia e tomava conta de todo seu
ser. O iate branco podia ser visto a uma grande distância, flutuando no negro mar. Isso lhe
deu uma desculpa para quebrar o silêncio que se tornava insuportável.
– Os americanos vão longe no iate deles?
– Até as ilhas vizinhas. – Doneus virou a: cabeça, seguindo a direção do olhar dela.
– Você foi alguma vez com eles? – Não imaginava que sim, mas tinha que
continuar falando.
– Sim, estive em muitas ilhas no iate deles – respondeu, surpreendendo-a.
– Devem gostar muito de você. – Não houve resposta e ela continuou procurando o
que dizer. – Você os ajuda a navegar?
– Eu navego, sim. – Aproximou-se para fitá-la. – Por que esse súbito interesse?
– E... é somente para conversar sobre alguma coisa. – Sua voz era incerta e ele
veio para bem junto dela. Antes que ela adivinhasse suas intenções, ele tomou seu rosto
entre as mãos e olhou-a bem dentro dos olhos curiosamente.
– Contra o que você está lutando, Julie? – perguntou inesperadamente. – Diga-me!
Permaneceu imóvel, profundamente ciente do seu contato, como estivera em
ocasiões anteriores.
– Eu... não sei o que quer dizer...
– Acho que sabe. Examine seus sentimentos, Julie, e me diga contra o que está
lutando.
Estremecia a seu toque, vibrando com ele... entretanto temendo o que esse lhe
provocava.
– Sua pergunta é tão estranha! – O resto perdeu-se em seu beijo; ela resistiu por
um momento, mas rendeu-se ao poder que ele exercia sobre ela, poder esse que, desde
o começo, tentara negar.
Seus lábios eram quentes e apaixonados, gentis mas potentes e sutilmente
persuasivos. Tornou-se parte dele, incapaz de sair daquele envolvimento ou esboçar uma
fraca resistência ao que rapidamente tomava conta dela... seu másculo corpo tão próximo
ao dela não deixava dúvidas quanto a seu ardor.
– Doneus! Por favor... – Mas o protesto morreu quando seus lábios encontraram os
dela e novamente se uniram num beijo. O sangue agitava-se em suas veias em ondas de
paixão e ansiedade... em completo desespero começou a soluçar. Mas seus braços eram
como fitas de aço que a retinham junto dele.
– Minha querida kore, minha Julie... – Por fim soltou-a e suas palavras vieram
suaves e acariciantes: – Não lute mais, Julie. Eu vi em seus olhos há semanas... – Seus
lábios se abriram num largo sorriso e ela estremeceu ante o magnetismo e encanto dele.
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
– Lembra-se do que lhe disse sobre vir a mim de livre e espontânea vontade? – Parou,
dando-lhe a oportunidade de replicar, mas ela não podia falar. Isso era loucura, fruto da
magia da noite. – Você quer me amar? Casemo-nos esta noite?
Somente então recobrou seu controle. Não poderia ser! Amar um aldeão?
Impossível!
– Não! Como ousa sugerir isso? Você me deu a sua palavra de que o nosso
casamento seria impessoal e não pode voltar atrás.
Tentou afastar-se mas as mãos dele retiveram as suas. Não parecia ter desistido e
Julie ainda tinha medo...
– Não quebrarei minha palavra – afirmou calma e gentilmente. – Somente lhe pedi
que viesse a mim por sua vontade...
– Não! Eu disse que não! Por favor, Doneus, não me provoque novamente.
Levando as mãos dela aos lábios, beijou uma depois outra.
– Venha vamos para casa. Jason, ela...
O cão levantou-se, latindo para ele e correu na frente. Doneus conservava na sua a
mão dela, que queria desesperadamente puxá-la, mas que algo mais forte do que a força
dele impedia. Sem falar, começaram a andar. Doneus de cabeça erguida, que magnífica
figura! E ela tentando se recompor e dissipar a excitação de um momento de quase
rendição. Mas falhou e quando se aproximou de casa seu temor cresceu. Que fraqueza!
Era deplorável! Estava determinada a ser forte.
Doneus acendeu a luz assim que entraram e ele pôde ver a encantadora sombra
da figura de Julie.
– Boa noite – disse com voz que demonstrava nervosismo. – Estou... estou
cansada – Viu um estranho sorriso nos lábios do marido e repentinamente se viu em seus
braços. Ele não a beijou, mas ficou olhando seu rosto e sacudindo a cabeça num sinal de
impaciência.
– Você confia que eu mantenha minha promessa? – perguntou com uma ponta de
ironia.
– Sim, Doneus, confio.
– Nesse caso deve ser de você mesma que tem medo. – Julie tremeu em seus
braços.
– Não tenho medo de mim. Por que pensa assim?
Deu uma risadinha e acrescentou:
– Boa noite, minha querida e... durma bem...
– Boa noite, Doneus – respondeu,. separando-se dele. Permaneceu um longo
tempo encostada à porta fechada. Poderiam as coisas voltar a ser como antes depois
desta noite? Durma bem... Uma hora depois, essas palavras voltaram a sua mente em
tumulto. Por fim levantou-se e acendeu uma vela. Decidiu fazer uma xícara de chá, mas,
ao sair do quarto, a porta dele se abriu. Ainda estava vestido e seus negros cabelos
penteados. Nem se deitara ainda!
– O que é, Julie?
– Eu... eu... quero tomar uma xícara de chá.
Seus olhos caíram na delicada camisola. Por que não tinha vestido algo por cima?,
pensou furiosa. Uma clara risada ecoou, enquanto ele tomava o castiçal de suas mãos
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trêmulas e a olhava profundamente. Ela sabia que seus olhos tudo revelavam, mas não
se importou com isso. Outra risada quebrou o silêncio, divertida mas triunfante. Doneus
apagou a vela e, segurando a sua mão, gentilmente levou-a de volta a seu quarto.
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– Não, Julie, nunca você me considerou assim. Para você, com suas idéias de
superioridade, não passo de um aldeão. Negue se for capaz. – Julie molhou os lábios,
culpada e arrependida. Desejava que ele nunca tivesse pensado assim. – Não tem nada a
dizer? – perguntou ele. Uma ligeira curva de sua boca denotava um profundo
desapontamento. – Voltamos ao ponto em que estávamos – disse acremente, mas
acrescentou num tom mais suave: – Não exatamente, é claro, pois agora estamos
realmente casados.
– Não! Foi um erro... a... a noite passada e sua persistência... – As cores lhe
fugindo do rosto e baixando os olhos num gesto de censura.
– Admito que fui persistente, mas você me queria tanto quanto eu a você e sua
desonestidade me surpreende, pois sempre a julguei acima disso. E quanto a isso de ter
sido um erro, espero que se lembre do que eu disse.
Seus olhos estavam perdidos ao longe e toda a sua arrogância desaparecida
quando voltou a falar.
– Você não me forçará a isso; não nestas circunstâncias.
– As circunstâncias não são anormais. Sou seu marido. Eu a tentei e você
correspondeu à tentação... mas somente porque não queria resistir a ela...
– Eu queria!
– E por que não resistiu? – Julie não respondeu e ele continuou: – O que lhe dá a
certeza de que eu não a terei novamente? Você foi avisada, Julie, e me conhece o
bastante para saber que eu sei o que digo.
– Não quero que nosso casamento seja normal, Doneus.
Ficou silencioso enquanto se servia de manteiga e depois de geléia.
– Nosso casamento é normal e vai permanecer assim.
– Eu posso abandonar você!
Ele a encarou com a faca na mão.
– Você pode, mas não o fará. Por favor, não me interrompa. Confio em você, Julie.
Sei que posso confiar. Como eu, você nunca quebra a sua palavra. Eu lhe disse isto
antes. Lembra-se? E agora, mudemos de assunto.
– Não, enquanto não tivermos resolvido nosso futuro relacionamento.
Doneus serviu-se de mais uma xícara de café.
– O que a faz pensar que possa resistir quando novamente eu a tentar?
– Terei o cuidado de não ficar em tão vulnerável situação novamente.
– Bem, minha querida, vamos esperar e ver... – E Doneus deu uma gostosa
gargalhada.
– Chegarei um pouco tarde esta noite – disse Doneus vestindo seu casaco e
preparando-se para ir trabalhar. – Não me espere antes das sete horas.
– A que horas devemos chegar lá? – perguntou imaginando o que Doneus poderia
ficar fazendo todo esse tempo. Presumia que o trabalho dele no castelo fosse no jardim e
já seria escuro às sete horas.
– O jantar é às oito e meia, mas devemos chegar às oito.
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Depois de dez minutos, Doneus entrou por uma alameda ladeada de altos
ciprestes e parou defronte à casa.
Uma criada abriu a porta e pegou o agasalho de Julie antes de conduzi-los à sala,
onde Tracy e Michalis os aguardavam.
Capítulo VII
A sala era linda. Grande e arejada, com largos e brancos arcos ladeando a lareira
de pedra, tudo dando a impressão de luxo, riqueza e muito bom gosto. As cortinas e
tapetes eram de um suave cinza prateado e os estofados forrados de rosa-coral. Contra
uma parede, um barzinho e na outra uma escrivaninha antiga. Um vitral colorido refletia a
luz da lareira que enchia a sala com o aroma dos nós de pinho queimando.
O casal levantou-se e as apresentações foram feitas por Doneus, enquanto Julie,
desconfiada, prestava atenção aos sorrisos de Tracy e Michalis. Lembrava-se de quando
pelas primeiras vezes encontrava os moradores da vila e que estes sorriam meio
divertidos como se soubessem da sua situação peculiar. Enquanto ouvia Michalis
congratular Doneus pela beleza de sua esposa, soube instintivamente que, se
descobrisse a causa dos sorrisos, todo o mistério que cercava seu casamento seria
esclarecido.
Olhou para Doneus estudando sua reação. Nunca vira expressão mais orgulhosa
no rosto de um homem. Não era o orgulho de ter se casado com um membro da
aristocracia inglesa, nem o orgulho da vitória o que refletia a máscula face de Doneus,
mas sim o sincero prazer de ver seus amigos gostarem de sua mulher e a elogiarem.
– Ficamos surpresos ao saber que Doneus estava casado – Tracy dizia, enquanto
Michalis preparava as bebidas. – Quando saímos de férias era um solteirão inveterado e
na nossa volta o encontramos casado.
Julie sorriu e um encantador rubor coloriu suas faces.
Viu Michalis, quando este lhe estendia um copo, e teve a impressão de que os
olhos dele brilhavam divertidos e que ele reprimia o riso.
– Foi um tanto repentino – admitiu Doneus, deixando-se cair numa poltrona e
procurando o olhar curioso de Julie –, mas eu a conheci há muitos anos.
Julie observou Tracy. Devia ter uns vinte e cinco anos de idade, olhos castanhos,
límpidos e francos. Estava muito bem vestida e usava um enorme solitário por cima da
aliança, no terceiro dedo da mão direita, segundo o costume grego. Nem ela nem o
marido demonstraram surpresa com a situação, e, com toda a sinceridade, Julie não
podia negar o ar distinto e confiante de ambos. Que ela não era uma moça de classe
média, devia ser evidente; no entanto, eles nada acharam de extraordinário no fato de
Doneus ter se casado com ela. Obviamente, ele deveria tê-los preparado antes do
encontro. Quanto e o que lhes teria contado?
O jantar foi servido pela mesma criada que os recebera, Eleni, que ara casada com
o jardineiro deles. O casal morava com a mãe de Eleni, numa linda casinha escondida da
casa grande por um bosque de espirradeiras que exibiam suas flores rosas e brancas..
– Ela já tem um filho e está esperando outro. A diferença entre eles não chegará a
um ano! Esse é o problema aqui; as moças são muito férteis.
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Julie olhou para Doneus; estava impassível, mas ela percebeu que ele lera seu
pensamento, naquela fração de segundo. Ter um filho...
Talvez agora ela estivesse esperando um bebê. Desviou o olhar para disfarçar seus
pensamentos. Certamente uma única vez, uma breve hora de fraqueza, não lhe podia
trazer essa conseqüência. Nunca mais, prometera a si mesma, correria tais riscos.
Com a emoção de Eleni e seu filho, naturalmente o assunto recaiu sobre o futuro
da ilha. Os rapazes estavam deixando a ilha às centenas, procurando um meio de vida
mais fácil e menos arriscado. Muitos iam para a Austrália, que parecia ser a terra da
promissão para u mocidade.
– Se esse êxodo continua, em breve Kalymnos estará desabitada. – A voz de
Michalis traduzia sua tristeza. – O comércio de esponjas já está condenado com o
aparecimento dos sintéticos, que, no parecer dos usuários, são mais baratos e melhores.
Julie reparou que Doneus estava perdido em pensamentos.
– Você tem razão, Michalis. Os jovens fogem dos riscos e não podemos culpá-los. I
thálassa é um senhor cruel e o único culpado da deserção dos jovens – interrompeu-se
ao ver a expressão confusa da esposa – I thálassa é o mar, minha querida.... o
crudelíssimo mar...
Empalideceu sensivelmente, sentindo o coração trespassado por uma dor aguda.
Levantou a cabeça, ciente de que todos haviam percebido seu sofrimento.
Tracy, parecendo querer ajudá-la, disse numa voz que não demonstrava muita
convicção:
– Centenas vão embora e desses muito poucos são aleijados.
– Todos os anos, quinze ou vinte voltam aleijados – disse Doneus e desta vez Julie
não olhou para ele, apesar de saber que ele a fitava, querendo ler seu pensamento. Não
olhou, pois se lembrava de que ele podia ler em seus olhos o que ela escondia no seu
coração.
Conseguiu dizer finalmente: – Quantos desses acidentados há em Kalymnos?
– Impossível saber. Digamos uns mil.
– Mil? – A palavra escapou, nascida de um medo terrível. Encarou Doneus, sem
temer o que ele podia ver: – Mil?
Doneus concordou e só então Julie reparou naquela estranha conversa, pois os
perigos que seu marido enfrentava no mar deveriam ser o último assunto a ser ventilado.
Depois do jantar voltaram para a sala, onde Eleni serviu café e licores. Doneus
sentou-se junto a Michalis e ela e Tracy no sofá.
– No que trabalha Michalis?
– Ele tem dois hotéis na ilha de Mykonos e outro em Atenas.
– Como ele os dirige?
– Visitamo-los freqüentemente; mas, nesta época do ano, não há muito o que fazer
e gostamos de estar aqui.
Julie perguntou hesitantemente:
– Tracy, como você se sentiria se ele fosse um apanhador de esponjas?
Um profundo silêncio se seguiu. Tracy procurou o maço de cigarros e ofereceu-o a
Julie. Procurava ganhar tempo.
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Por que se dirigiu para os portões do castelo não sabia. Sentia-se impelida por uma
força estranha que, como em outras ocasiões, a obrigava a fazer algo contra seus
instintos. Notou que as flores não eram tão numerosas e que algumas árvores já estavam
com uma coloração amarelo-bronze, deixando suas folhas caírem como pássaros
deslizantes.
Jason veio até a grade, latindo como se adivinhasse a presença dela... e num
momento Doneus apareceu. Ficou de um lado da alta grade de ferro e ela do outro.
– O que quer? Já lhe disse para ir embora!
– Doneus... Tracy e Michalis... o que pensarão?
– Explicarei. Vá embora, já disse!
Julie olhou para o alto das grades. Barras entre eles. Inquebráveis e irremovíveis
barras...
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– Não podemos conversar? – O que estava dizendo? Por que viera até ali?
– Nada temos para conversar. Você é sobrinha de Edwin Veltrovers. Volte para ele.
Espero que você já esteja fora de minha casa quando eu voltar logo mais à noite!
– Não posso! Não tão depressa.
– Arranje suas coisas que eu a levo até a cidade. Lá, fique num hotel até o próximo
navio. – Virou-se, chamando Jason com uma simples palavra, ela, e não mais em inglês,
como costumava, parecendo a Julie que isso selava definitivamente o fim de tudo entre
ela e Doneus.
De volta a casa, sentou-se desorientada numa cadeira. O que faria? Algumas
semanas atrás, se sentiria feliz com a perspectiva de liberdade, mas agora. o agora sabia
que não queria ir embora. A pretexto de arranjar uma desculpa, convenceu-se de que era
por causa do seu senso de dever. Havia prometido e cumpriria sua promessa. Ficaria até
abril, quando Doneus fosse para o mar.
Foi o que lhe disse quando voltou à noite. Estranhamente, ele nada disse; nem
uma palavra. Recusou o jantar e saiu outra vez, em sua bicicleta, rumo ao castelo, com
Jason correndo a seu lado, como de costume. E lá ficou a noite toda. Por volta de meia-
noite, Julie levantou-se, sentindo frio e solidão, incapaz de acreditar que estivesse
sentindo tanto a falta dele. Nas últimas semanas haviam jantado e depois passeado
juntos numa espécie de íntimo companheirismo. E agora, sozinha e assustada, sabia que
ele estava dormindo no castelo. Estaria em algum horrível galpão? Certamente, não. Ele
devia estar lá dentro, pensou desesperada. Voltou para a cama e chorou até que as
primeiras luzes da madrugada a fizeram adormecer, mas foi logo acordada pelos latidos
de Jason do lado de fora da porta.
Olhou para o relógio. Dez e meia. Apressadamente, pulou da cama e correu a abrir
a porta, vestindo apenas sua camisola. Jason entrou, sacudindo vigorosamente o rabo.
Pelo menos ele estava contente de vê-la ainda. ali
– Jason, meu cãozinho! – Abaixou-se abraçando a cabeça dele de encontro ao
peito, com seus nervos tensos. Levantando a vista, deu com Doneus parado na porta.
– Onde esteve? – Sua voz era suave e compadecida. Ao ver as linhas do rosto dele
se endurecerem percebeu que cometera outro erro.
– Estive bem confortável, obrigado. Pode guardar sua piedade. – Bruscamente
passou por ela, indo até o alpendre. Ela o seguiu, mas ele já havia desaparecido pela
porta de trás. Voltou então para seu quarto para se vestir.
– Se ao menos eu pudesse entender alguma coisa... – disse logo depois a Doneus,
enquanto ele consertava o pedal de sua bicicleta. – Não quer me dizer por que se casou
comigo?
– Você vai voltar para a Inglaterra, ou não? – Seu tom gelado provocou-lhe
arrepios. Pareciam lhe dizer que, sé resolvesse ficar, viveria sozinha dali por diante.
– Prometi e vou cumprir minha promessa.
Desapaixonadamente ele cortou-lhe a frase:
– Eu a libero de qualquer promessa que me tenha feito.
– Quer que nosso casamento termine aqui?
Com isso ele pareceu titubear e ela reparou que ele estava com olheiras, o que
demonstrava não ter dormido à noite, como ela.
Por que se mostrava tão magoado? Seria seu orgulho tão grande que ele sofresse
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assim?
– Pensei que tivesse concordado que esta seria a única solução.
– Então por que se casou comigo?
– Havia uma boa razão. – Sua voz era ligeiramente mais suave, tendo perdido o
tom áspero. – Mas isso não tem mais importância. Você vai embora? – perguntou
novamente e Julie sacudiu a cabeça negativamente.
– Vou manter minha promessa.
Doneus virou-se como para deixá-la, mas aproximou-se dela.
– Por quê? – perguntou, sujeitando-a a um olhar inquiridor, antes que ela desviasse
a cabeça para fugir a essa pesquisa.
– Por uma questão de honra.
– Honra! – disse amargamente. – Honra e piedade! Vá embora, que é melhor!
Alguma coisa dentro dela lutava para tornar-se um pensamento consciente. Algo
que ela não conseguia captar ou entender. Repentinamente, pensou na mãe dele... sabia
onde ela morava; Doneus lhe dissera uma vez. Era em Pothaia.
– Vou ficar – disse com firmeza. – Creio que um marido grego nunca obriga sua
esposa a ir embora.
– Obriga? – mostrava-se aturdido. – Nunca a mandei embora, Julie.
– Então, não há nada mais a dizer, Doneus – concluiu calmamente, voltando para
dentro de casa. Ele foi se afastando na sua bicicleta, enquanto ela se preparava para sair.
Pouco depois, tomava o táxi que servia de ônibus e que a deixaria na vila trinta minutos
depois.
Era uma casa velha, como a de Doneus, mas não tão isolada. A mulher
reconheceu Julie instantaneamente e empalideceu.
– Meu Doneus; meu filho. Não veio com você. Ele está bem?
As palavras eram ditas num péssimo inglês, bem como Julie se lembrava de ter
ouvido noutra ocasião.
– Por favor, não se assuste, sra. Lucian. Doneus está bem. – Escolhia cada
palavra, falando devagar. – Quero conversar com a senhora. Posso entrar?
A mãe de Doneus inclinou a cabeça enquanto abria a porta para que ela entrasse.
– O que quer conversar comigo? – Ainda parecia assustada. – Tome uma cadeira.
– Obrigada. – Julie sentou-se e foi direto ao assunto, esperando poder fazer com
que a mulher entendesse o que ela queria saber. – Sra. Lucian, creio que a senhora sabe
por que Doneus quis se casar comigo. Quer me dizer por quê?
Surpreendida, sua face contraiu-se, como se fosse se concentrar um grande
esforço.
– Não compreendo, não falo inglês. – Fixava as mãos, deliberadamente, evitando o
olhar de Julie.
– Não há alguém que possa servir de intérprete? Quero dizer, algum vizinho que
fale inglês?
– Não! – levantou rapidamente a cabeça. – Ninguém aqui fala inglês. Não!
Julie olhava para ela com um ar desconfiado.
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resposta.
– Não temos ninguém que fale inglês e meu filho fica zangado... muito zangado, se
gente sabe... sabe... segredos.
– Compreendo... – murmurou Julie, e realmente compreendia.
Preparara uma refeição gostosa para as seis horas, mas Doneus não apareceu.
Colocou tudo no forno de barro lá fora, mas a lenha queimou à toa. Depois, o fogo se
apagou de uma vez e o fomo esfriou, bem como o jantar. Pensou em comer alguma coisa,
mas sentia-se tão mal com o que soubera naquela tarde que não poderia engolir nada.
Estava chorando quando finalmente ele chegou, às dez e meia. Estava sentada no
escuro, não vendo razão para acender uma luz e gastar óleo. Doneus a chamou com um
pouco de ansiedade na voz.
– Estou aqui. – Jason pulou-lhe nos joelhos e ela afagou-lhe a cabeça, sentindo um
estranho conforto no calor de sua amizade.
– O que está fazendo no escuro? – Doneus acendeu uma vela e com ela o
candeeiro, colocando-o sobre a mesa. – Você está doente? – Sem sombra de dúvida
havia ansiedade em sua voz e por alguma estúpida razão isso provocou-lhe mais
lágrimas.
– Não, Doneus, não estou doente, mas... mas eu pensei que você não... não
fosse... voltar para casa.
Com a surpresa estampada no rosto, perguntou: – Você se importaria se eu não
voltasse?
Julie ergueu o rosto banhado em lágrimas, reprimindo um soluço que lhe subia à
garganta. Ele parecia muito cansado e deprimido.
Sua malha preta escurecia ainda mais o tom de sua pele e acentuava as linhas de
seu másculo rosto. A cicatriz estava muito branca e Julie nunca a tinha visto tão
pronunciada.
– Me importaria sim, Doneus, e muito.
Houve um grande silêncio, intenso e profundo, antes que Doneus procurasse a
mão dela e gentilmente a puxasse para perto dele.
– Julie, o que há com você? Por que é assim numa hora e tão arrogante noutra?
– Não sou. Eu não quero ser arrogante. – Seus olhos se umedeceram novamente.
Murmurou tremendo: – Abrace-me, Doneus...
Carinhosamente ele a abraçou e ela descansou a cabeça no seu peito. Nenhum
som se ouviu até que Jason, não gostando de ser esquecido, deu um pequeno latido,
encostando-se às pernas de seu amo. Julie e Doneus se separaram. Algumas lágrimas
haviam manchado a malha dele e automaticamente ela passou a mão para limpá-las.
– Eu fiz um jantarzinho, mas está frio – disse num tom abafado. – Acho que posso
esquentá-lo no fogão a óleo.
Os braços dele voltaram a rodeá-la e ela olhou para o rosto dele, vendo somente
dissimulação. Ele lhe sorriu e beijou seus lábios trêmulos.
– Onde está a comida? – A prosaica pergunta quebrou a tensão e Julie deu um
suspiro de alívio.
– No forno, lá fora. Vou buscá-la.
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Capítulo VIII
Terminaram o jantar antes que Julie tivesse coragem de contar a Doneus sobre a
visita que fizera a sua mãe. Sabia que teria que lhe contar antes que ele fosse vê-la, mas
o medo de que ele ficasse zangado não a deixava decidir-se. No momento ele estava de
bom humor e não parecia ressentido com ela.
– Você foi ver minha mãe? – repetiu admirado. – Pensei que ela não fosse digna de
você.
Julie engoliu em seco, sacudindo vigorosa mente a cabeça.
– Eu ainda estava zangada quando você me convidou para ir a sua casa; mas,
agora que a encontrei, gostei muito dela.
Doneus nem tomou conhecimento de suas palavras.
– Por que você repentinamente decidiu ir visitá-la?
Julie encontrou seu olhar inquiridor que tão bem conhecia.
– Queria saber por que você se casou comigo...
Um fraco sorriso apareceu em seus lábios; um sorriso com um toque de amargura.
– E ela lhe disse?
– Você sabe que não. Mas porque não fala inglês direito.
– Ela raramente fala. – Quedou-se silencioso, mergulhado em profundos
pensamentos. – Raramente fala inglês e, no entanto, ela... é uma mulher corajosa... –
murmurou quase inaudivelmente.
“Por que a hesitação?”, pensou Julie “... e, no entanto, ela... o quê?”
Doneus estava perdido em seus pensamentos, quando finalmente Julie disse: –
Certamente ela foi muito corajosa indo à Inglaterra sozinha. – E depois de uma pequena
hesitação. – Suponho que você a tenha mandado.
Doneus foi incapaz de responder-lhe imediatamente e, quando o fez, foi numa voz
totalmente inexpressiva.
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– Ela não se importou de ir à Inglaterra. Você lhe perguntou diretamente por que eu
me casei com você?
– Naturalmente. Nada havia a ganhar com rodeios.
Doneus sorria novamente, mas desta vez a amargura foi substituída por diversão. –
E o que ela disse?
– Que você se casou comigo por vingança.
– Ela usou essa palavra? – levantou as sobrancelhas duvidando e ela então
explicou que praticamente pusera a palavra em seus lábios.
– Ela me contou que você a visita diariamente.
Julie alcançou o bule e encheu duas xícaras de café. Estavam ainda sentados à
mesa e a suave luz amarelada do lampião brincava com suas feições, acentuando sua
beleza e pondo em seus olhos um brilho que parecia refletir todo seu interior: o encanto
de sua natureza terna e meiga. Como em outras ocasiões anteriores, Doneus parecia
fascinado com o que via; de tal modo que Julie achou que ele havia esquecido de tudo e
estava sonhando acordado.
– Como é que você vai até lá? – Aventurou, esperando acordá-lo. Os olhos dele se
voltaram para a xícara de café que ela lhe dera.
Tomou um grande gole antes de depositá-la no pires.
– Uso o carro – respondeu depois de ponderar muito.
– Você tem dinheiro para tanta gasolina?
– Eu me arranjo para reabastecer o carro; é preciso que eu veja minha mãe
diariamente; ela não tem ninguém senão a mim. Naturalmente tenho parentes e bons
vizinhos, mas sou seu único filho vivo e meu pai também morreu.
– Ela me disse, e eu vi as fotografias de seus irmãos. Me senti muito triste quando
estava lá conversando com sua mãe.
– Suponho que sentiu piedade por ela também. – Duras e cruéis palavras. –
Mamãe não precisa de piedade e, se descobrir que é isso o que sente por ela, jamais a
convidará para sua casa novamente.
– Posso sentir compaixão por ela, Doneus?
– E qual é a diferença? – perguntou friamente.
– Eu também a admiro profundamente. É uma mulher forte e corajosa.
A expressão dele suavizou-se e notando isso, Julie pediu-lhe que contasse mais
sobre sua mãe. Ficou sabendo que ela se casara com quinze anos e que, menos de um
ano depois, já tinha um bebê.
– Com dezoito anos ela já tinha três meninos, o que era uma bênção num país
onde as meninas têm que ter um dote, o que seria extremamente difícil para eles. Meu pai
morreu muito cedo, deixando-a com três filhos para criar. Também ficou inválido por
muitos anos. Ela lavava e passava as roupas de duas famílias, uma inglesa e outra
americana; plantava sua própria horta e fazia todas as nossas roupas.
Estava tão perdido no passado que Julie ouviu-o, sem interrompê-lo, observando
em seu rosto moreno a estranha e selvagem beleza das linhas; linhas essas de um deus
grego, nobre e corajoso. Sua voz, profunda e rica, se suavizava quando falava de sua
mãe e seus olhos eram ternos. Nesse clima de intenso envolvimento sentimental, o
magnetismo dele era tão intenso que Julie sentiu o pulso acelerar e seu coração bater
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mais forte. Seu marido a prendia num mágico encantamento. Imaginava como, tendo uma
vez experimentado seu amor, pudera decidir-se a não mais repeti-lo.
– Como aconteceu de seu pai ser tão mais velho do que sua mãe? – perguntou
quando ele finalmente se calou. Julie falou quase sem fôlego pois ainda se sentia
profundamente afetada pela força da personalidade do marido.
– Meu pai tinha seis irmãs e, como não poderia se casar sem ter achado marido
para todas, tinha trinta anos quando ficou livre.
– Não entendo, Doneus. Por que não podia se casar antes das irmãs?
– Por causa do costume grego de terem os irmãos que providenciar o dote das
irmãs. Um rapaz com muitas irmãs tem pouca probabilidade de se casar cedo.
– Mas que extraordinário! – exclamou.– Sempre pensei que na Grécia os homens
fossem poderosos, superiores em tudo.
Doneus estava realmente se divertindo, apesar de Julie sentir a presença da
profunda mágoa que ela lhe infringira por suas palavras, das quais ela amargamente se
arrependia.
– Por estranho que pareça, o homem é sempre quem manda na casa, apesar de
paradoxalmente a dona da casa ser sempre a mulher.
– Mas, se é assim, como é que o homem se torna o chefe, como se o fosse?
– Costume, minha querida. No Oriente as mulheres são sempre consideradas
inferiores.
– E você, considera a mulher inferior? – perguntou, lembrando-se de como ele lhe
dissera enfaticamente que a via como sua esposa e não como sua mulher.
– Decididamente, não! Poderia considerar minha mãe inferior? Não, Julie. Não sou
da escola que considera a mulher como uma possessão sobre a qual se deva externar
sua autoridade. Admito que gostaria que minha mulher me respeitasse – disse olhando-a
nos olhos. – Gostaria que ela acatasse meus desejos e que cedesse a eles, mesmo
quando houvesse diferença de opinião. Tenho a certeza de que assim seria o certo.
Julie permaneceu calada por um longo tempo, observando as sombras formadas
pelo fogo do lampião de cima da mesa.
Este marido dela... era um homem de bons princípios, inteligente, de percepção
aguçada, e era obviamente idealista, para quem contava mais o valor moral das coisas
que o material. Como podia um aldeão possuir todas essas finas qualidades? Como podia
falar tão bem o inglês e ser tão culto? Tivera vontade de lhe perguntar sobre sua
educação, mas a diplomacia e boas maneiras a impediram.
De mais a mais, Julie tinha a certeza de que desconfiaria da resposta dele. Ele lhe
falava sempre educadamente, mas também sabia ser cruel e sarcástico de vez em
quando, como o fora recentemente.
– Fale-me mais sobre os costumes – pediu impulsivamente. – São tão estranhos,
pelo menos para mim!
Sorrindo, ele começou a lhe explicar as leis relativas à propriedade. A moça que
trouxesse uma casa no dote seria para sempre dona legal da mesma.
– As propriedades aqui são herdadas sempre pela linha feminina. Assim, passa da
mãe para a filha mais velha. A ironia disso é que o homem trabalha para obter essa
propriedade; mesmo os que deixam a ilha continuam mandando dinheiro para conseguir o
dote de suas filhas ou irmãs. Chama-se prika em grego.
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
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Repentinamente percebeu que ele não lhe dera uma resposta satisfatória quanto a
seu trabalho no castelo, mas deixou passar. No momento, não estava particularmente
interessada nisso e havia um convidativo sorriso em seus lábios, quando entrou na sala
vinda da cozinha. Doneus percebeu o sorriso que demonstrava que ela estava alegre e
desejosa dele, bem como ansiosa para ver como reagiria. Como deixara Jason sair há
uns minutos e agora este estava novamente em casa, trancou a porta e disse, ignorando
a expressão de Julie:
– Boa-noite, Julie. – E virando-se para Jason: – Nada de latidos esta noite. É só um
burrinho que relincha no alto da montanha, o que você está ouvindo. Kali nikta.
Julie fixava atônita a porta pela qual seu marido desaparecera. Depois do carinho
com que ele enxugara suas lágrimas, depois da agradável refeição durante a qual tanto
conversaram... Sem uma palavra ele se fora... Alguns minutos antes poderia jurar que a
discussão tinha sido esquecida, mas agora sua atitude mostrava o contrário.
Vagarosamente entrou em seu quarto, despiu-se e deitou-se. Mas o sono não veio e ficou
se virando na cama. Era óbvio que Doneus ainda estava magoado. Se assim era, deveria
lhe pedir desculpas. Isso mesmo, pediria desculpas.
A porta do quarto dele estava encostada e, assim que ela a empurrou, cedeu.
– Está acordado, Doneus?
– Estou. Alguma coisa errada?
– Posso entrar?
– Naturalmente. – Acendeu uma vela na mesa de cabeceira enquanto perguntava.
– O que é?
Aproximou-se da cama, o rosto pálido e os olhos úmidos.
– Doneus eu quero lhe dizer que estou arrependida do que lhe disse... sobre sentir
piedade, quero dizer... Eu o magoei e me sinto terrivelmente mal...
– O que é que você quer me dizer na realidade, Julie? – perguntou depois de uma
pausa e ela chorava convulsivamente, demorando para poder responder, procurando
articular as palavras.
– Você disse que nosso... nosso casamento deveria... deveria ser normal...
Lembra-se?
– Não há nada que eu possa esquecer. – retrucou com certa ironia. – Bem, Julie,
foi o que eu disse, mas na ocasião não tinha a menor idéia de que era só piedade o que
você sentia por mim. Não quero que você me procure por esse motivo.
A cicatriz pulsava novamente e seu negro cabelo estava despenteado. Julie sentiu
um irresistível desejo de correr seus dedos por eles a despeito da fria recepção que
tivera. O que seria essa emoção que tomara conta de todo o seu ser? Desejo, piedade,
ou ambos? Poderia ser o despertar do amor? Amor? Olhou para o marido. Não poderia
nunca amá-lo... não deveria nunca amá-lo! Seu trabalho era tão perigoso! Amá-lo
significava viver para sempre angustiada. Não podia aceitar a idéia de viver eternamente
esperando a volta do marido, são e salvo ou ferido. Ou então receber um pacote com
seus pertences das mãos de um chefe dele que lhe diria ter sido ele enterrado numa praia
distante... não, não deveria amar esse homem...
– Estou muito cansado – e parecia não só cansado como também perdido e
desalentado como se a vida nada mais reservasse para ele.
Julie procurava desesperadamente palavras com as quais pudesse ajudá-lo a
vencer essa depressão e restabelecer seu primitivo orgulho. Mas Doneus continuava a
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falar, dizendo que ela também deveria estar cansada e terminou pedindo delicada mas
firmemente:
– Boa-noite. Se você acordar cedo amanhã, por favor me chame, pois tenho outro
dia atarefado no castelo.
Não se moveu do lugar para sair e continuou a olhá-lo sob a luz da vela.
– Você... Você não quer que eu fique? – parecia impossível que ela, Julie
Veltrovers, estivesse ali se oferecendo a um aldeão grego. Mas era a pura realidade...
Continuava a ver o rosto sério do marido, sabendo que tudo o que mais poderia desejar
naquele momento seria correr para o santuário de seus braços e o calor de seu corpo.
Finalmente ele falou e sua voz chegou até ela como uma onda de água gelada,
afogando a esperança, enquanto o desejo resistia, imune a qualquer força destrutiva. –
Não, Julie, não quero que você fique. – Viu-a engolir em seco, enquanto ele próprio se
controlava com dificuldade. – Como eu disse ontem, não quero sua piedade.
– Não vim por causa dela – começou, quando ele a interrompeu duramente.
– Veio então por seus próprios desejos? Esses desejos pelos quais já caiu num
momento de fraqueza? Poderia aceitá-la por isso, Julie, mas não enquanto a piedade
morar em seu coração. Boa-noite e não se esqueça de me chamar amanhã.
Desde aquela noite suas relações foram de fria cordialidade. Eram como duas
pessoas que, sem serem totalmente compatíveis, se obrigavam a dividir uma casa,
forçadas pelas circunstâncias. Doneus ia regularmente ao castelo, onde passava o dia
todo, voltando para casa à noite. Jantava a comida que Julie lhe preparava e que
pacientemente mantinha aquecida até a hora em que ele chegasse. Uma vez por
semana, iam à vila jantar com Tracy e Michalis. Nenhuma amizade mais íntima se
desenvolveu entre as duas, pois nunca Tracy a convidou para visitá-la durante o dia. Julie
só podia achar que Doneus tivesse pedido que Tracy nunca o fizesse.
Diariamente Julie se levantava com a luz de um pálido sol se filtrando através das
venezianas quebradas, ia até a bomba tirar a água fria com que se lavava. Fazia torradas
do sadio pão de nozes caseiro e se sentava para comê-lo diante de seu silencioso
marido. O resto do dia estava sozinha, exceto quando Jason se lembrava dela e voltava
para casa, ficando com ela até Doneus voltar. Passava o tempo lendo ou passeando, pois
o mar estava frio e freqüentemente um vento cortante soprava do oeste.
Um dia sentiu um inexplicável desejo de ver o porto novamente e tomou o táxi,
sentando-se ao lado de outras pessoas, homens que a olhavam com indisfarçável
curiosidade e mulheres com cestas e sacolas que punham no chão do carro, espremendo
os pés de Julie, até que descessem em algum lugar do caminho.
No cais, vagueou olhando o mar. Sempre gostava de olhá-lo, mas agora o via
como a um inimigo cruel e destruidor. Pela sua mente desfilavam um após. o outro os
acontecimentos dos últimos tempos.
Os inacreditáveis minutos passados na tenda e a conseqüente cena com o tio, seu
primeiro encontro com Doneus e a impressão de que dele ficara, mesmo depois de ter
deixado a ilha. Relembrou o choque que a presença de Doneus lhe causara ao aparecer
na porta da igreja, pois se convencera de que ele não pretendia cumprir sua promessa de
denunciar Alastair. Vivamente via seu casamento e Doneus trazendo-a para sua pobre
casinha. Tantas cenas e todas dominadas pela figura central daquele de quem não
escapava... um homem chamado Aïdoneus.
Distraída, andava pelo cais, onde brilhantes e coloridos barquinhos balouçavam
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com as ondas enquanto o vento que vinha do mar batia contra seus cascos. Voltou
andando pela rua arborizada onde, sentados às mesas, homens bebiam retsina ou
jogavam cartas. Ao fundo, enormes montanhas cinzentas se elevavam, formando um
semicírculo e parecendo querer abraçar o mar. I thalassa.
Julie parou junto a uma mesa vazia e confusa sentou-se quando um sorridente
grego apareceu. Certamente sabia quem ela era, pois seus olhos se voltaram para uma
mesa próxima, onde três homens, mergulhadores com seus negros e pontudos gorros,
conversavam com os cigarros pendentes dos lábios. Apanhando seu olhar, um deles viu
Julie e, virando-se para os outros, falou qualquer coisa em grego. Todos a observavam
rindo e ela sentiu-se embaraçada. Seria possível que cada pessoa daquela ilha soubesse
quem era ela? Com quem era casada? Já estava na ilha há tempo suficiente para saber
que notícias ou mexericos corriam depressa. Assim, uma inglesa casada com um
apanhador de esponjas de Kalymnos deveria ser um assunto interessante para aqueles
que viviam em marasmo total.
– Café, por favor, com bastante leite.
– Sim, senhora. – O homem saiu, voltando logo depois com sua xícara numa
bandeja. Neste momento, um dos homens se aproximou dela, ocupando uma cadeira
vazia, demonstrando ter tantas perguntas a lhe fazer como ela jamais poderia supor.
– Gosta de Kalymnos? – perguntou, enquanto o café era posto à sua frente. Ela fez
que sim com a cabeça, imaginando quanto saberia esse homem de sua vida.
– Gosto muito.
– Veio para ficar?
– Diga-me – perguntou friamente. – Sabe quem sou eu? – Tratava-o com altivez,
mas ele era cara-dura, como todos os gregos quando movidos pela curiosidade, o que era
comum.
– A senhora é mulher de Doneus – sorriu, tirando o cigarro da boca.
– Sou sua esposa. – Julie tomou sua xícara e bebeu, desejando que não estivesse
muito quente, pois não queria continuar por muito tempo a conversa Com aquele
indivíduo.
– Que tal sua casa? Não é uma bela parte de Kalymnos?
Julie assentiu automaticamente, sua atenção presa a um pobre inválido que se
arrastava pela rua, com uma cesta na mão. Teria mais ou menos trinta anos. Seu coração
batia descontroladamente quando perguntou. – Aquele homem era um apanhador de
esponjas?
– Foi um dos melhores de Kalymnos, mas o mar o pegou.
– O que está vendendo?
– Ovos – e acrescentou com desprezo: – Mas quem quer comprar ovos por aqui?
Todos têm suas próprias galinhas...
– Chame-o, por favor. Preciso de alguns ovos.
– A senhora? – perguntou estarrecido. – O sr. Doneus... por que, se ele tem tantos
ovos?
Julie seguia o inválido. Realmente Doneus trazia sempre ovos do castelo, bem
como os outros produtos, mas ela tinha que comprar alguns daquele homem.
– Chame-o – ordenou novamente –, eu os quero!
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
Capítulo IX
Durante todo o trajeto de volta, Julie ponderou sobre sua decisão de mandar vir
seu dinheiro para a ilha. Isso não representava dificuldade alguma, mas estava indecisa
sobre como aplicá-lo quando este chegasse. Por fim, resolveu expor a questão a Doneus
quando estavam sentados para jantar.
– Espero que você não diga que não posso fazê-lo, Doneus – e acrescentou
suavemente: – porque eu quero muito.
Ele a olhava com uma expressão singular e ela viu, pelo pulsar do nervo junto à
cicatriz, que ele estava comovido com suas palavras. No entanto, não mencionou o
dinheiro e disfarçou, perguntando se faria alguma diferença se dissesse que ela não podia
ajudar os ilhéus.
– Você me obedeceria?
Julie fixou nele seus lindos olhos cinzentos, francos e suplicantes. Estranho que ela
pudesse ser tão humilde com esse homem, apesar de seu inato orgulho e riqueza. A
esplêndida situação em que estava acostumada a viver parecia totalmente deslocada
quando comparada com a do seu marido. Entretanto, Julie tinha que admitir que ele
sempre parecia superior.
– Eu acho que sim – respondeu em tom suave, mas acrescido de uma ponta de
esperança de que ele não se opusesse ao que tinha em mente.
– Temo que eu tenha que me opor – disse Doneus depois de um momento de
indecisão. – Sabe, Julie, eu ficaria humilhado.
– Não, Doneus, não ficaria. Não sou cega a ponto de não perceber que a maioria
do pessoal desta ilha sabe mais sobre os motivos de nosso casamento do que eu e
suponho que saibam que eu tenho dinheiro. Algum dia talvez você possa me contar tudo
como prometeu, lembra-se?
Depois de uma pausa de expectativa ele somente disse: – Você mesma tomou
impossível eu lhe contar tudo.
– Porque senti piedade por você? – Suas palavras saíam com dificuldade, mas
esperava obter alguma informação. Vã esperança, pois Doneus simplesmente assentiu,
enquanto um vermelho intenso se espalhava pelo seu rosto moreno. – Gostaria de
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Anne Hampson - Incerto Amanhã (Sabrina 44)
entender, Doneus – murmurou gentilmente, com persuasão nos olhos e na voz, mas sem
efeito.
– Você nunca entenderá – assegurou-lhe severamente.
Julie calou-se e voltou a pensar nos inválidos de Kalymnos.
– Como eu disse, o povo provavelmente é sabedor de que eu tenho dinheiro. Assim
você não ficaria humilhado se eu gastasse meu próprio capital, da maneira que quero.
Doneus sorriu com amargura.
– Eu certamente seria humilhado. De qualquer modo, deve lhe interessar saber que
aquele homem que você viu vende ovos simplesmente para ter algo que fazer. Eles
detestam pensar que precisam de ajuda e vendem coisas ou fazem pequenos trabalhos
só para se manterem ocupados.
Encarou-o em franco atordoamento.
– Não fariam isso a menos que tivessem necessidade. Precisam de dinheiro!
– Não, minha querida, não precisam. Recebem ajuda financeira.
– De quem? Sei que quase toda a população trabalha como apanhadores de
esponjas.
– Praticamente toda a população – corrigiu. – Temos aqui muitos mercadores de
esponjas que são ricos. Também os homens que deixaram a ilha para procurar trabalho
noutro lugar mandam dinheiro para suas famílias. O homem que você viu, assim como
todos como ele, recebe ajuda de um fundo constituído para esse fim por esses ricos
mercadores.
– Estendo – disse Julie depois de uma pausa. – Bem, não posso contribuir para
esse fundo? Tenho uma grande fortuna; de que me serve o dinheiro se não posso aliviar
algum sofrimento?
– Desculpe, Julie, mas tenho que dizer não – sentenciou inflexível.
– Então, de que me serve o dinheiro – perguntou frustrada –, se quero gastar um
pouco e não posso?
– Seu dinheiro lhe será útil quando for para casa. – Olhava-a inquiridoramente,
querendo saber o efeito de suas palavras, mas Julie baixou os olhos ocultando sua
expressão. – Lembre-se de que estará na Inglaterra durante cinco meses por ano e que
precisará de dinheiro.
– Não de todo ele – argumentou fracamente. Doneus fez que não ouvira e mudou
de assunto, fazendo com que Julie soubesse que não se discutiria mais a questão. Se ao
menos ele não fosse tão orgulhoso! Sua altivez fora a culpada por tudo o que se passara
entre eles. Culpada da sua recusa em tê-la como esposa. Isso era tudo o que mais
queria, sentindo esse desejo crescer dentro dela cada dia que passava, mais e mais forte.
Uma semana mais tarde, descia pela ruazinha da vila, quando Astero convidou-a
para um refresco. Kyria, sua filha, ainda estava empolgada pela alegria de seu sucesso,
orgulhosa de si mesma e um pouco condescendente com Maroula, a vizinha do lado, que
tivera uma filha. Era a terceira menina e o povo já dizia que ela era incapaz de ter um
menino. Depois de ficar meia hora com Astero e Kyria, Julie foi até a casa de Maroula
para ver o bebê. Ao entrar, percebeu que ela estivera chorando. Ao ver-lhe estampada no
rosto a culpa e o desapontamento, Julie perguntou zangada:
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que, querendo dirimir uma dúvida, perguntara a Doneus se ele era realmente um
apanhador de esponjas. Ele lhe afirmara que sim. E o que mais poderia ser?, raciocinava,
quando viu o mais idoso dos padres abrir um velho e gasto livro. O trabalho no castelo
deveria ser para encher o tempo durante os meses em que não estivesse no mar. Fora
mais afortunado do que seus colegas mergulhadores; era uma sorte que Doneus tivesse
um trabalho para se ocupar, enquanto os outros permaneciam ociosos; também o fato de
morar junto do castelo fora uma vantagem para ele. Era racional supor que o proprietário,
precisando de quem o ajudasse, automaticamente contratasse Doneus para o trabalho.
Julie deu um longo suspiro.
O mistério se tornava mais e mais profundo, pois se Doneus era um deles, por que
os outros apanhadores de esponjas, suas mulheres e parentes e até mesmo os padres, o
tratavam com tanta deferência? Fosse ele um dos fabulosos armadores gregos ou um
grande proprietário de terras, essa deferência não seria menor.
Uma coisa estava agora clara, pensou Julie com certa satisfação. Por qualquer
razão a posição de Doneus era superior aos demais habitantes da ilha e certamente,
antes de sua chegada ele devia tê-los prevenido de algo, pois os olhares divertidos a ela
dirigidos, mais pelos homens que pelas mulheres, lhe davam essa certeza.
– Sra. Doneus, a senhora está confortável? – Asti, a sogra de Kyria, aproximara-se
dela, atravessando toda a multidão para lhe perguntar.
– Sim, obrigada, Asti.
– Todos estão tão felizes, hoje! O primeiro filho de Kyria é um menino! Mas nós
acendemos velas durante a gravidez dela. Acendemos na igreja e em casa diante de
nossos ídolos – juntou as mãos em direção ao teto – e benditos os santos que nos
mandaram um menino!
Benditos os santos! Francamente! Era outra demonstração da cultura primitiva
daquela ilhazinha. Parecia impossível que tais costumes e usos pudessem ainda
sobreviver.
Uma repentina calma se fez sentir na sala e todo o barulho cessou, mesmo o das
crianças, depois de um minuto ou dois. Kyria carregava seu bebê nos braços, feliz como
todos podiam ver. Julie pensou em Maroula, cujo bebê seria batizado na semana
seguinte, quando a pia batismal seria levada para sua casa como o fora agora para a
casa de Kyria e Adonys. Julie soubera que Maroula queria que Doneus fosse padrinho da
pequena Helena, mas que Davos se negara a convidá-lo, alegando que só seria justo se
o bebê fosse um menino. Contudo foram convidados para o batizado e Julie comprara
idênticos xales para os dois bebês e Doneus idênticas correntes de ouro com cruzinhas.
Julie observava o ritual, sentada bem na frente. Duas mulheres vestidas de preto,
carregando jarros de cerâmica, encheram a pia de água quente. Outra mulher adicionou
água fria. Julie não pôde deixar de sorrir quando um dos padres mergulhou o cotovelo na
água da pia, falou em grego com uma das mulheres que esvaziou o jarro, experimentou
novamente, mais água e assim por diante até que o jovem padre achasse que a
temperatura estava boa. Começou a cantar palavras que atravessaram os séculos
inalteradas. Todos permaneciam em silêncio e Julie reparou nas expressões de respeito.
Todos os batizados eram realizados com essa solenidade, porque a Igreja Ortodoxa
Grega remontava a eras distantes. Somado ao significado religioso, o batismo dava à
criança as condições legais de um ser humano. Sem ele, não seria registrada, não
podendo mais tarde votar ou mesmo arranjar um emprego.
Doneus tomara o bebê de sua mãe e o olhava enternecido, com um sorriso nos
lábios. Logo depois, procurou o olhar de Julie. Esta viu o sorriso se apagar e sua
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meses até que uma mulher se sente novamente à mesa com homens para uma refeição.
Olhando-o de soslaio, Julie disse sem muita expressão:
– Você é olhado com respeito por esta comunidade, Doneus.
Ele simplesmente sorriu e virou-se para Davos:
– Por favor, encha meu copo, Davos. Retsina.
Maroula ofereceu peixe a Julie, que aceitou. – Há muito tempo que não como tanto!
Maroula preparou um banquete digno de um rei!
Maroula olhava sem entender, até que Doneus traduziu o que Julie dissera e então
esboçou um gesto de protesto, mostrando que as travessas de peixe, polvo e carnes
ainda estavam cheias. Doces diversos, alguns com caldas apetitosas, foram servidos, e
mais tarde, enquanto dançavam ao som do bouzouki, mulheres apareciam com bandejas,
cheias de copos com ouzo ou fatias de bolo do batizado.
Doneus insistiu para que Julie se levantasse e tentasse alguns passos da dança
grega; como ela era boa aluna, depois de uns momentos de embaraço, realmente se
divertiu. Quando finalmente se retiraram, entrando no carro que Doneus emprestara do
castelo, todos saíram para vê-los partir.
– Até quando vai a festa? Ninguém parece querer ir embora tão cedo!
– Vai até a madrugada! – Doneus virou-se para ela e, vendo-a recostar-se no
assento do banco, perguntou: – Cansada?
– Sim, mas muito feliz. Realmente me diverti muito.
– Divertiu-se? – E mergulhou num silêncio que continuou durante todo o trajeto.
Mas foi um silêncio agradável, e quando chegaram em casa e saíram do carro, parados
no pátio, parecia que ambos relutavam em deixar aquela quietude e entrar na casinha,
com sua mobília pobre e suas paredes caiadas.
A noite estava embalsamada por toda sorte de exóticos perfumes e fragrâncias que
só ali podiam ser sentidos. Milhares de estrelas brilhavam num céu de profundo azul e
uma enorme Lua iluminava os picos rochosos e as encostas verdejantes, espalhando sua
languidez pelo calmo mar, cuja superfície brilhava como um espelho. Na ilha em frente,
via-se a luz da janela de alguma casinha aninhada na praia, enquanto a torre da igreja se
erguia, bem delineada e branca, contra as rochas nuas do maciço vulcânico atrás dela.
Nenhuma brisa ou vento sacudia as folhas das árvores. As palmeiras e ciprestes do
castelo apareciam escuros, de encontro às suas paredes enluaradas. O gracioso iate
branco dormia, parecendo um brinquedo, visto daquela distância. Era uma noite de
magia, uma noite para amantes, e instintivamente Julie deu um passo, aproximando-se do
marido. Estaria ele também sob a influência do encantamento daquela noite? Olhou-o ao
luar. Ali nas sombras, seu rosto combinava com seu nome. Parecia duro e sem piedade,
até mesmo. cruel. Mas seu magnetismo persistia, e Julie se sentia atraída por ele. Uma
tarde tão agradável e uma noite tão linda... O amor de seu marido seria uma perfeita
conclusão... Se ele a abraçasse e beijasse... e...
Ele se mexeu e Julie aninhou-se em seus braços, correspondendo ao seu beijo,
amando-o, tentando-o, suplicando...
Fitou-a, enquanto a segurava afastada dele. Seus dedos que desceram por seus
braços, segurando-lhe as mãos. Um súbito desânimo tomou conta dela; em casa, na
Inglaterra, sempre fora admira e elogiada. Não teria atrativos para o homem que agora
era seu marido? Tivera uma vez, naquela inesquecível noite. Apertou-lhe a mão
levantando o rosto, convidando para um beijo. Sorrindo fracamente com uma ponta de
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amargura nos olhos, ele lhe tomou a cabeça entre as mãos e pousou seus lábios nos
dela. Mas nesse beijo havia somente carinho, nada mais.
Afastando-se dela, disse em tom indiferente:
– Vamos, Julie, é muito tarde. O pobre Jason deve estar imaginando por que ficou
abandonado tanto tempo.
Capítulo X
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quanto seu orgulho seria atingido. Odiaria ser ajudado ou depender dela.
Por fim, voltou de seus devaneios e iniciou o retomo, descendo a colina para tomar
o táxi comum.
Era cedo ainda e, deprimida e cansada, não entrou em casa, mas continuou a
passear pela estrada poeirenta, olhando os arredores vestidos com a magnificência das
cores da primavera. Seus passos a levaram até a entrada do castelo, por um caminho
ladeado de árvores que se mostravam lindamente floridas de cor-de-rosa. Amava a ilha o
seu povo. Aprendera até a amar a casinha onde poderia ter sido feliz, se Doneus a
amasse também e tivesse permitido que ela fizesse as reformas que tinha em mente.
Os portões do castelo se erguiam diante dela. Doneus passara três dias no porto,
mas hoje trabalhava ali. Receosa de que ele pudesse vê-la, voltou-se, mas Jason
apareceu latindo e sacudindo o rabo, feliz por encontrá-la. Tinha que fazê-lo calar-se e
voltar. Muito em breve ele também estaria triste, pois iria para a casa da mãe de Doneus,
que o trataria muito bem, mas ele sentiria a falta de seu dono.
Eram tão íntimos que às vezes Julie o invejava. “Acho que poderia viver só com os
animais...” A frase do poema de Walt Whitman veio-lhe à mente, enquanto acalmava o
cão. Doneus tinha amigos na ilha, mas Julie tinha a impressão de que o cão significava
mais para ele... e certamente significava mais do que ela...
– Quieto, Jason! Seu dono não deve saber que estou aqui! – Parou, corando
intensamente, ao ver Doneus encostado na grade.
– Que houve, Julie. Algo de errado?
– Não, simplesmente vim até aqui.
Ele a olhava com uma estranha expressão, através das barras da grade.
– O castelo a interessa?
Assentiu, furiosa consigo mesma por ter ido até ali.
– Claro que me interessa. É tão bonito, tão imponente neste penhasco, longe de
tudo... – disse finalmente.
– Bonito? Mais bonito do que a minha casa, é o que você quer dizer? – Sua voz
trazia amargura.
Os lábios dela tremeram.
– Por que você sempre me entende mal, Doneus?
Com essa reprimenda, ele desviou o olhar e, depois de uma ligeira hesitação,
perguntou:
– Gostaria de visitar o castelo, Julie?
Encarou-o, surpresa, e sentiu-se repentinamente feliz.
– Os proprietários não se incomodam? – Enquanto isso, Doneus abria o portão,
ignorando sua pergunta e convidando-a a entrar. Ela seguiu bem próxima dele, pela
alameda de árvores centenárias e vendo o mar turquesa se estendendo até o horizonte.
– Os jardins são lindos! – Julie se sentia perdida no meio de tanta beleza. – Você
deve gostar de trabalhar aqui. – Admirava todo o colorido panorama. – Quantos
jardineiros há aqui?
– Três, além de mim. Os outros três são permanentes.
– Três? – A despeito do tamanho dos gramados, que não eram totalmente visíveis
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de onde estava, não achava que fossem necessários quatro jardineiros. – O dono deve
ser muito rico!
– É o número de seus jardineiros o que demonstra a riqueza de um homem? –
perguntou friamente, e Julie calou-se. Outra vez dissera o que não devia e por isso
permaneceu silenciosa, se recusando a responder a sua pergunta. Um dos jardineiros
apareceu, enquanto eles avançavam em direção ao castelo. Era muito defeituoso, e o
outro que trabalhava mais além também. Compreendeu imediatamente. O proprietário
empregava-os para ajudá-los, e essa era a razão pela qual três eram necessários. Devia
ser um homem muito bom, e ela desejava encontrá-lo, algum dia, bem como a sua
esposa. Sabia que era casado, mas que não tinha filhos, e isso era tudo o que conseguira
obter de seu marido quando lhe perguntara a respeito, pois ele sempre se mostrava
reticente quando o castelo de Santa Helena era mencionado.
Com a reforma, o castelo fora aumentado e era constituído do três corpos que
formavam um pátio interno. Doneus conduziu-o pelo lado e eles entraram pela porta do
sul, acima da qual se viam belas esculturas de pedra e, dos lados, estátuas de ninfas em
mármore.
Do átrio, com arcos ricamente entalhados, subia uma suntuosa escada que dava
numa galeria de pinturas. Julie parou, estarrecida com tanta beleza, e pensou que seu tio,
dono do castelo de Belcliffe, nunca sonhara com tamanho esplendor.
– Que quadros! – murmurou. – Devem ser da escola veneziana.
– O proprietário acha que Ticiano e Bellini ficam bem aqui. – Doneus mostrou uns
cristais de Veneza que estavam nas mesinhas ao longo da galeria. – Esses também ficam
bem aqui.
Entraram na sala de visitas, uma maravilhosa sala com enormes janelas em arcos,
estuque decorado e estátuas clássicas. A mobília era antiga, e as paredes, forradas de
tapeçarias e coloridos quadros chineses. A extraordinária lareira de mármore era ladeada
por esguias colunas de pedra cujo rendilhado de galhos entrelaçados, apesar da
delicadeza do trabalho, formava uma estrutura sólida.
Julie, parada no vão da porta, exclamou:
– Nunca vi nada tão maravilhoso!
Doneus olhou para ela com o seu rosto inexpressivo. Não participava do
entusiasmo dela, o que parecia estranho, pois a convidara para visitar o lugar onde
trabalhava.
– Gostaria de tomar alguma coisa?
– Seria certo aceitar? – perguntou, admirada.
– Naturalmente. – Olhou para o relógio. – Na realidade, é quase hora do lanche.
Sempre tomo o meu aqui, e não há mal nenhum em você tomá-la também. Direi a
Polymnea que o prepare enquanto vemos o resto do castelo.
– Tem certeza de que não faz mal eu ficar? – Julie ainda estava em dúvida,
pensando que tal comportamento, aproveitando-se da ausência dos donos, não era
próprio de seu marido.
– Está tudo certo, Julie. Nós tomaremos o lanche na salinha de almoço, pois nos
sentiríamos perdidos, na sala grande. O dono só a usa para festas.
– Fale-me mais sobre ele, Doneus. Tem muitos amigos na ilha?
– Os ricos mercadores de esponjas, os armadores e gente como Tracy e Michalis.
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pediu a Doneus que a levasse para ver a cerimônia. Foram num dos carros do castelo.
Doneus, preocupado e silencioso como estivera durante as últimas semanas. Um barco
fora escolhido e nele preparado um altar, com lindas toalhas bordadas, flores e os
castiçais apanhados da igreja. Expostas no barco estavam coisas com as quais os
mergulhadores tinham contato, como pedaços de esponjas, pequenos caramujos e
tentáculos de polvos. Muitos padres acompanhavam o bispo, numa procissão, com suas
roupas brilhando ao esplendoroso sol de primavera. Subiram todos a bordo e a cerimônia
começou. Um mergulhador trouxe o hissope e o bispo aspergiu água benta por todo o
barco.
– Que os homens voltem a salvo... – Julie disse baixinho, enquanto as lágrimas
corriam de seus olhos. Ouvindo-a, Doneus virou-se, mas ela estava de cabeça baixa e
chorando. Piedade!
O bispo benzia tudo: os mergulhadores, a comida, o combustível, o cordame, as
engrenagens, a estufa, os aparelhos de mergulho e até mesmo a âncora... Finalmente, a
água benta que sobrou foi despejada dentro do capacete de um escafandro, apresentado
por um mergulhador. Houve uma série de felizes exclamações e todos se dirigiram ao
bispo para beijar-lhe as mãos. Era um espetáculo comovente, pois até os inválidos dele
participavam.
A quinta-feira era dedicada à preparação da festa, e Kyria e Maroula apareceram
em casa de Julie com ovos vermelhos e também tsoureki, o pão especial da Páscoa.
– Obrigada a ambas. Agradeço muito. – Convidou-as para entrar e percebeu que
trocaram um olhar embaraçado. – É muita delicadeza de vocês, e agradeçam a suas
mães, pois sei que aqui tem dedo delas também...
Ambas sorriram, felizes e um tanto encabuladas.
– A senhora vai à igreja amanhã? O sr. Doneus vai levá-la? – perguntaram
curiosas.
– Sim... – respondeu imediatamente. – Espero ir. – Será que Doneus a levaria? Ela
já lhe pedira uma vez, mas ele recusara, dizendo que, além de não entender a língua, se
sentiria perdida, pois aos homens e mulheres não era permitido ficarem juntos.
Julie pediu-lhe para ir quando ele chegou em casa, e ele lhe prometeu levá-la no
sábado à noite.
A sexta-feira, dia de jejum e abstinência, era o da procissão do enterro. As ruas
apinhadas de gente, mulheres chorando e homens muito sérios, todos visivelmente numa
espécie de êxtase religioso.
No sábado, às onze horas da noite, os sinos chamavam os fiéis para a vitoriosa
cerimônia final. Toda a congregação trazia velas apagadas e a única iluminação da. igreja
eram as velas do altar. A meia-noite estas também foram apagadas e, na escuridão, Julie
sentia a agitação do povo se mexendo ao seu redor.
Meia-noite! Um padre apareceu com uma vela acesa, e sua voz se elevou num
grito de triunfo:
– Christos Anesti!
A essas palavras, os que estavam mais próximos dele acenderam suas velas e se
viraram para ajudar os outros a fazer o mesmo. Uma mulher vestida de preto virou-se
para Julie, sorrindo com genuína. alegria: – Christos Anesti!
Julie respondeu como seu marido lhe havia ensinado:
– Alithos Anesti! – Sentia-se muito próxima às lágrimas e realmente seus olhos
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Uma hora e meia depois, cada peça do quebra-cabeça estava em seu lugar. Julie,
pálida, mas explodindo de felicidade, estava sentada numa poltrona, sorrindo para sua
sogra. Fora uma conversa difícil, mas Julie a ajudara com algumas palavras em grego
que aprendera ultimamente, e agora sentia-se cheia de gratidão por aquela frágil e idosa
mulher que a olhava um tanto apreensiva.
– Você não... não está... orghí?
– Zangada? – Julie riu alegremente. – Como poderia estar zangada com o que a
senhora me contou? Esqueceu-se de que eu amo Doneus?
Um doce e sereno sorriso entreabriu os descorados lábios de Savasti.
– Não esqueci. Vou acender velas para todos os santos, por ter acontecido isso de
tão bom para meu filho. Eu chorei muito, quando Doneus me disse que você ia embora;
então fui à igreja e os santos me disseram que falasse com você, e que tudo daria certo.
– Somente gostaria que a senhora me tivesse contado há mais tempo, pois Doneus
e eu não teríamos sofrido tanto! – As palavras da sra. Lucian, dizendo que seria melhor
que ela chorasse por Doneus, naquela ocasião, lhe voltaram à lembrança e só então
compreendeu-as. Suas lágrimas lhe revelariam que ela amava seu filho.
– Meu filho! Eu via sua expressão todo o tempo e meu coração sofria por ele. –
Parou, olhando o relógio. – O táxi passará num minuto. Vá, e meu filho perderá aquela
tristeza no olhar!
Julie não conseguia falar. Que tola tinha sido! E Doneus não menos. Somente
aquela velhinha tivera juízo. Julie lembrava-se vivamente de suas convicções a respeito
do caráter do marido e também de suas desconfianças, quando este lhe respondia com
evasivas, a qualquer pergunta que lhe fizesse. Ambos tinham sido inteiramente
estúpidos...
– A senhora foi tão corajosa, resolvendo ir à Inglaterra sozinha! Ser-lhe-emos
gratos até o fim de nossas vidas!
Savasti se levantara e dirigia-se para a porta.
– Doneus ficou zangado, quando soube. Estava em Atenas a negócios, como já lhe
disse; decidi ir porque, todas as vezes que ele olhava sua fotografia, eu sabia que ele a
amava. Agora ficará feliz, porque a moça do retrato o ama também! – Articulava as
palavras com dificuldade, e Julie às vezes só apanhava o sentido do que estava dizendo.
– Obrigada por tudo o que a senhora fez! Obrigada, querida... querida Savasti..
Mitera... – acrescentou suavemente, e a enrugada face se iluminou.
– Que bom... Poli kala... Você me chamou de mãe. Eu tenho agora uma korí e um
filho... – Abriu a porta e viram o táxi vindo pela rua e parando para receber passageiros.
– A senhora não quer vir morar conosco? – convidou-a Julie. – Pense nisso.
– Estou feliz no meu canto, que Doneus tomou tão con... con...
– Confortável? Sim, realmente o é, mas a queremos junto de nós.
– Vou pensar nisso, como me pediu. Tentarei me acostumar com aquele megálos
palácio que meu filho comprou.
– É grande, eu admito, mas é um lar, Savasti.
– Então vou pensar e pedir aos santos que me guiem.
Julie sorriu intimamente. Qualquer que fosse a decisão dos santos, levaria sua
sogra para morar com eles.
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– Adio, minha mitera. Viremos vê-la esta noite. – Julie beijou a enrugada face e
saiu.
Pediu ao motorista que a levasse a Santa Helena, notando a surpresa do mesmo.
Estaria Doneus no castelo? Não havia dito para onde ia e às vezes ia até o porto... Se
tivesse que esperá-lo até a noite, teria uma crise de nervos, pois cada vez que o táxi
parava, suspirava impaciente. Finalmente viu-se diante dos portões, com Jason latindo
diante dela. Correram juntos pelo jardim e lá estava Doneus. Este carregava um barril
cheio de folhas mortas e gravetos, mas parou estarrecido com o que via.
– Julie! – chamou ansioso.
Ela percorreu os últimos metros que a separavam dele, impaciente até mesmo com
Jason, que a impedia de chegar mais depressa.
– Já sei de tudo! – ela falou, ofegante. – Sua mãe mandou-me chamar. Estava
desesperada porque tinha certeza de que você iria para o mar assim que eu partisse. A
princípio queria saber se eu desistiria de ir para a Inglaterra, mas, depois que eu disse
que o amava, ela me contou tudo! Doneus, por que você não me disse há muito tempo? E
não tente culpar-me de tudo, pois você foi tão tolo quanto eu! Adoro sua mãe; você me
havia dito e é verdade! Ela é corajosa e formidável, e eu quero que ela venha morar
conosco!
– Julie querida – interrompeu aturdido –, não seria melhor nos sentarmos enquanto
você me conta tudo e recupera seu fôlego?
– Não quero me sentar, quero que você me abrace! – Com voz sumida, aproximou-
se dele, levantando o rosto e entreabrindo ternamente os lábios, pedindo um beijo: –
Abrace-me; Doneus, eu estou calma. Foi um grande choque descobrir que você me
amava o tempo todo e que por isso se casou comigo.
Doneus, visivelmente emocionado, olhou para suas mãos sujas da jardinagem.
– Vou lavar minhas...
– Você é cruel! Não quer me abraçar?
Não terminara de dizer essas palavras, quando ele a tomou selvagemente nos
braços e a beijou com todo o ardor contido durante tanto tempo... Estava quase sem ar,
rindo e chorando ao mesmo tempo, quando finalmente ele a soltou.
– Não quero abraçá-la? Não sei como me controlei, durante todos esses meses! Se
eu quero abraçá-la... que pergunta...
Atraiu-a novamente para si, dando vazão à corrente de paixão há tanto tempo
reprimida, até que a largou ofegante, suas mãos descendo até sua cintura e aí ficando.
– Aparentemente você sabe de tudo, mas conversemos a respeito. O que,
exatamente, minha mãe lhe contou?
Ela não conseguiu falar, por uns momentos, e ficou ali, olhando para ele, como que
querendo lembrá-lo de que seus olhos eram reveladores; e ele sorriu ternamente,
esperando que ela falasse. As mangas de sua camisa branca estavam enroladas até os
cotovelos, e, quando ele levantou a mão para acariciar-lhe o cabelo, encostou seu rosto
naquele braço moreno.
– Contou-me que não foi você quem a mandou. Ela foi por iniciativa própria,
enquanto você estava em Atenas. Contou-me também do jeito como você olhava para
minha fotografia, que, eu suponho, algum amigo seu deixou no castelo!
– Sim, Julie; e foi daí em diante que eu soube de todas as notícias referentes aos
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Veltrovers.
– E tio Edwin imaginando que tudo era segredo!
– Mas não era, pois esses meus amigos sabiam que tanto seu tio quanto seu primo
estavam jogando desesperadamente para ver se reparavam o dano causado à fortuna
dos Veltrovers.
– O que você achou da minha fotografia? – Ela não resistiu ao desejo de perguntar,
e, meio divertido, mas com voz séria, ele respondeu:
– Vi beleza, bondade e um terno coração. Nunca me impressionei tanto pelo rosto
de uma mulher; aquela era a mulher com quem eu adoraria me casar. – Julie corou
adoravelmente e ele a beijou, com ternura e quase reverência.
– Sua mãe me contou tudo,como eu já disse. Uma vizinha veio me chamar dizendo
que ela estava muito triste.
– Triste? Por que estaria ela triste?
– Porque estava convencida de que, se eu partisse, você iria imediatamente para o
mar, com a intenção de... não ser cuidadoso.
– Minha mãe me conhece bem e sabe que foi por ela que deixei de mergulhar.
– Ela acreditava que você não queria mais viver. Pude ver imediatamente que ela
se torturara com essa idéia e, em desespero, mandou-me chamar, pedindo-me que não
deixasse a ilha. Disse que só assim você não zarparia.
– E você na hora compreendeu que eu não era obrigado a ir?
– Eu tentei, uma vez, saber qualquer coisa por ela; mas, na ocasião, ela estava
assustada, com medo de que você soubesse, e de nada adiantou. Desta vez fiz uma
troca com ela: eu ficava na ilha se ela me contasse o que sabia; ainda assim, ela relutou e
só concordou quando eu disse que o amava. Foi difícil para ela, como você pode
imaginar, mas eu dei um jeito de entendê-la. Mas gostaria de saber a história por você,
Doneus. Conte-me nos mínimos detalhes.
Seus braços estavam ao redor dela e, por um momento, ele se sentiu incapaz de
falar. Parecia irreal ela estar ali, junto dele, e o atordoamento da realidade ainda era muito
forte.
– Vamos nos sentar – disse, levando-a para a sombra, para perto de um lago
ornamental, cheio de lilases aquáticos e outras plantas decorativas. Jason seguiu-os e
deitou-se, assumindo uma atitude displicente.
– A história começa quando meu segundo irmão morreu. Minha mãe ficou tão
doente que eu temi perdê-la também. Ela se convencera de que um dia eu também ficaria
no mar. Quando esse tio morreu e minha mãe se recusou a tocar no dinheiro, resolvi
gastá-lo na minha educação. O que não mencionei foi que me restou o suficiente para
comprar, de um mercador de esponjas que se retirava, o seu negócio. Desde então tive
sorte. Procurei outra aplicação de capital, pois, como você sabe, as esponjas estão
fadadas a desaparecer do mercado. Milagrosamente, um grego que possuía três navios
me convidou para seu sócio. Isso foi há sete anos. Fizemos bom dinheiro, – concluiu,
levantando a mão e acariciando o rosto de Julie.
– Quando comprou o castelo?
– Nunca havia pensado nisso. Estava contente com a casa que eu construíra. A de
Michalis. – Julie lembrou-se de como ele se sentira à vontade, na ocasião. – Entretanto,
Santa Helena estava à venda, e eu soube que um hoteleiro milionário queria comprar o
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castelo para turismo. Não perdi tempo e fechei o negócio. Também, desde pequeno que
eu sonhava reformá-lo, porque sempre gostei dele. – Sorriu e beijou-a de leve. – Você
também aprenderá a gostar dele.
– Já gosto dele e do dono dele...
– Abençoada mãe! – exclamou Doneus, e logo depois terminou a história que já
ouvira, embora desconjuntamente, da mãe dele. Esses meus amigos ingleses deixaram a
revista e eu vi sua foto nela. Minha mãe não estava bem e eu lhe pedi que viesse para cá
a fim de que eu pudesse cuidar dela. Costumava me ver olhando a revista, e como é
muito viva, perguntou-me seu nome. Eu lhe disse, sem imaginar que ela se lembraria do
que acontecera e que eu lhe contara quando voltei da Inglaterra. Soube também das
minhas loucas palavras ditas a seu tio, quando eu era um simples rapazinho que acabara
de perder a namorada. Detesto pensar em meu comportamento de então, mas eu estava
desorientado, pois teria que dar a notícia aos pais dela, que a haviam confiado a meus
cuidados.
– Era compreensível, Doneus – aparteou ela, sem contudo dizer que, se não fosse
esse comportamento, ela não estaria agora sentada ali.
– Tive que ir a Atenas a negócio e, assim que parti, ela foi para a Inglaterra
encontrá-la, dizendo que eu a mandara. Você sabe tudo isso. Fiquei furioso com ela,
achando que tinha ido longe demais, e também por achar aquilo uma perda de tempo.
Mas ela estava firmemente convencida de que você viria até aqui.
– Talvez tenha sido porque eu fiquei aturdida com o que ela me revelou na ocasião.
– Doneus não fez comentário e ela concluiu; rindo: – Quando a vi, hoje, ela me confessou
que seu único objetivo, era me trazer a Kalymnos. Uma vez aqui, eu me apaixonaria
imediatamente por você, pois ela o acha tão perfeito e tão lindo que seria impossível tudo
não terminar com um final feliz... – Os olhos de Julie brilhavam, divertidos, mas Doneus
estava muito sério.
– Que descrição! Que estranhos adjetivos as mulheres usam! Onde será que
minha mãe aprendeu isso?
– Atualmente ela o descreve como um omorphos, que eu presumo seja algo como
físico perfeito....
Ele riu feliz.
– Isso soa como se você tivesse tido quase um combate com minha mãe...
– Eu me saí muito bem. Lembre-se de que eu sei algumas palavras em grego!
Doneus ignorou isso e continuou sua narrativa:
– Nunca pensei que você viesse, e fiquei espantado quando recebi seu bilhete.
Minha mãe, ao contrário, não se admirou. Disse-me que lhe havia dado meu endereço,
que você era um boa moça e que viria na certa. – Julie estava, inconscientemente,
apoiando o queixo no peito de Doneus, e ele, abaixando-se, beijou-lhe os lábios
suavemente. – Na verdade, eu fiz investigações e me convenci de que você era uma
pessoa encantadora. Então pensei em vê-la uma vez que fosse, para guardar na
lembrança, como um tesouro, a sua imagem, para sempre. – Calou-se, com a
preocupação estampada em seu rosto moreno. – Querida, o que eu disse que a faz
chorar?
Ela ergueu seus olhos para ele, que limpou uma lágrima da sua face, esquecido de
suas mãos sujas.
– Você me fez chorar porque... você é tão formidável... e eu estou tão feliz... Não
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Juntos, caminharam através dos gramados, dirigindo-se para a porta do sul, ambos
pensativos. Julie pensava em tudo o que havia sido dito entre eles e em como o destino
dera voltas para que ela e seu marido se encontrassem. Parou, olhando-o admirada.
– O destino... é tão estranho, Doneus... – ele assentiu gravemente.
– Muito estranho, minha querida, e dele ninguém foge, por mais que lute. –
Passou-lhe novamente o braço pela cintura e recomeçara a caminhar, atravessando os
gramados ladeados de lindas flores vermelhas e de arbustos. Ao longe, no oeste, uma
pequena ilha flutuava como uma jóia, no liso e brilhante mar, e a leste se elevavam as
montanhas de Kalymnos, douradas e nuas contra o céu azul de safira.
– O destino nos reuniu – murmurou Julie – e eu não quero fugir dele nunca...
Doneus parou e, tomando-lhe o rosto entre as mãos, disse fervorosamente:
– Nunca a deixarei fugir. – Mais uma vez ela reconheceu seu poder, sua força e
seu ardor, quando seus lábios procuraram os dela. – Você é minha... minha vida... meu
coração... minha mulher... Julie...
Ela sorriu feliz, chegando mais para perto dele, enquanto caminhavam em direção
ao castelo. Por que não podia chamá-la de sua mulher? Afinal, ele era o seu homem!
Fim
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