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DOUTRINA

ESI'RUTURA DA CONSTlTUlÇÃO DE 1988

Miguel Reale"

1. Conceito de Constituição. 2. Características da Constituição. 3. Categoria


histórica. 4. Princípios gerais comuns. 5. Amplitude da Constituição. 6. Cons-
tituição sintética e analítica. 7. Totalitarismo normativo. 8. Avaliação crítica
da Constituição de 1988.

1. Observa Costantino Mortati que, ao tratar-se do significado do termo "constitui?o"


no plano da ciência política, convém lembrar que a palavra latina constitutio liga-se ao
verbo constituere, indicando o elemento ou o conjunto de elementos característicos que
individualiza um ente, tornando-o permanentemente distinto dos demais. Acresce que en-
tre esses caracteres distintos existe certa ordem hierárquica, de tal modo que alguns deles
possuem uma posição eminente, como pressuposto dos demais.
Embora sem perda desse sentido originário, o certo é que, no decurso do tempo, na
palavra "constituição" passa a prevalecer a idéia de organização ou estrutura unitária-es-
sencial da sociedade civil e do Estado, a partir de determinados princípios ou parâmetros
postos na base do sistema de normas diretoras de determinada convivência. Essa compre-
ensão leva em conta o complexó variável de conjunturas hist6ricas que governa cada siste-
ma político, afastando a idéia sedutora, mas ilus6ria, de uma constituição ideal, ou de um
prot6tipo constitucional em função do qual cada ordenamento particular devesse contras-
tear a sua legitimidade.
Se no conceito de constituição estão sempre imanentes as idéias de unidade e totalida-
de, deve-se, porém, ter presente que a "unidade total", que lhe é própria, refere-se a seus
caracteres essenciais, não correspondendo, por conseguinte, ao conglomerado ou comple-
xo de preceitos normativos com vigência em dado país. A este complexo damos antes a
denominação de "ordenamento", conforme palavra de origem italiana que já se incorpo-
rou ao vocabulário jurídico e político de nosso tempo. Sob esse prisma, a Constituição
representa o elemento ou momento essencial do ordenamento em vigor em cada nação.
Embora pareça paradoxal, diria que a Constituição, corno estrutura normativa essencial
condicionadora de todos os demais esquemas ou proposições normativas, é, ao mesmo

"Professor emérito da UniVersidade de São Paulo.

R. Dir. adm., Rio de JBDeÍlO, 175:1-46 janJmar.1989


:e
tempo, base e cúpula do ordenamento jurídico-político do País. base na medida em que
ela delimita e determina os pressupostos lógicos e éticos do sistema jurídico global, asse-
gurando a congruência interna de seus dispositivos (sem a qual não se poderia falar em sis-
tema) e flxando as diretrizes morais e políticas a serem seguidas de maneira prioritária:
sob esse prisma, a Constituição é o fundamento tanto do ser (da realidade ôntica) como
do dever ser, ou da imperatividade ética da ordem jurídico-política promulgada.
Mas, se a Constituição está na basé, ela é, por sua vez, cúpula, do sistema, tanto no sen-
tido de sua idealidade ou da natureza vetorial do ideal político almejado pelo povo - va-
lendo, assim, como exigência ideal que, na terminologia de Vico, "corre com o tempo",
adaptando-se plasticamente às suas mutações - quanto também como "horizonte normati-
vo" delimitador da legitimidade, quer no concernente à vigência e eficácia das normas não-
constitucionais, quer relativamente à interpretação e à aplicação de seus próprios impera-
tivos e das demais estruturas legais.
A vista dos apontados característicos de globalidade e essencialidade, a Constituiçã'o
participa, no seu mais alto grau, dos característicos próprios das leis em geral, as quais, ao
mesmo tempo que circunscrevem ou delimitam a açio dos indivíduos e dos grupos - para
sua recíproca. coexistência -, necessariamente garantem a liberdade dessa. mesma ação.
Toda garantia jurídica, em última análise, só é possível quando se realiza em sintonia com
um mínimo de delimitação da conduta de cada um e de todos. Assim, no dizer sábio de
Spencer, coincidente com o ensinamento primordial de Kant, o dir~ito de um cessa quan-
do o direito de outro começa, e, é claro, pode haver conflito entre ambos. Nã'o havendo
contrariedade de direitos, eles coexistem na unidade coerente do ordenamento.
Como se vê, embora sendo a lei suprema, a Constituição nã'o deixa de possuir os mes-
mos requisitos de toda lei, a qual, como expressão de liberdades coexistentes e garantidas,
concomitantemente proíbe e autoriza, circunscreve a açã'o ê a protege nos limites neces-
sários à garantia recíproca e justa das liberdades.
2. Em virtude do já exposto, a ConstituiçãO pode ser considerada, sem preocupaçã'o de
uma definição formal, a lei fundamental mediante a qual sã'o estruturados a sociedade ci-
vil e o Estado, pela flxaçio dos direitos essenciais ou prioritários dos indivíduos, bem co-
mo das funções e limites do poder político, para a realizaçã'o da justiça social e da paz.
ESse enunciado desdobra-se evidentemente em uma série de parâmetros ou de diretri-
zes, caracterizadoras de uma uma Constituiçã'o:

1. como lei fundamental, dótada de posição eminente na conflguraçlo do ordenamen-


to jurídico-político, de tal modo que ela se confunde com a suà identidade individualiza-
da primordial;
2. como norma geral que não disciplina, singularmente, cada um dos direitos e deveres
possíveis dos indivíduos e da comunidade, mas tã'o-somente aqueles direitos e deveres
considerados, na circunstância espáciotemporal de sua determinaçã'o, como sendo os me-
recedores da qualiflcaçio de pressupostos básicos essenciais;
3. como lei que flxa os alicerces estruturais do Estado, em consonância com as exi-
gências atuais e futuras da sociedade civil, discriminando as esferas de açãO de seus pró-
prios poderes fundamentais, segundo um imperativo de harmônica coexistência e funcio-
nalidade;
4. como o estatuto deontológico legitimador de todo o sistema, com base no propósi-
to prevalecente de realizar-se uma ordem justa e pacífica.

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Para analisar cada uma dessas diretrizes fundantes, é necessário tomar bem claro que
uma Constituição é sempre uma categoria histórica, variando no espaço e no tempo, como
bem o percebeu Aristóteles ao coligir as constituições de seu tempo, embora só nos tenha
restado o exemplo magnífico da Constituição de Atenas. Foi o estagirita quem, pela
primeira vez, viu a constituição como uma totalidade identificadora de uma ordem
política circunscrita, ao fazer uma distinção básica entre politeia e polis, entendendo
aquela como a visão ou compreensão unitária da segunda, em razão de seus elemen-
tos peculiares e identificadores.
Sendo uma categoria histórica, cabe reconhecer que nenhuma Constituição é separável
do complexo de circUnstâncias e conjunturas sociais, ecOnômicas, demográficas, milita-
res, em uma palavra, "culturais", que condicionou a sua feitura, a começar pela atitude
dos legisladores constituintes perante a realidade, cuja organização e atividades tinham em
vista determinar em seus elementos básicos.
3. Surge, a esta altura. um problema dos mais difíceis e relevantes, que consiste em
saber-se se, não podendo uma Constituição deixar de corresponder ao complexo das
circunstâncias vigentes no espaço-tempo de sua elabor~o, seria possível falar-se em
princípios gerais comuns a toda espécie de estrutura constitucional. Parece-me que a
resposta só pode ser afirmativa.
Em verdade, seria incompreensível, em primeiro lugar, uma Constituição como simples
conglomerado desconexo de normas, às quiüs arbitrariamente se atribuiu o caráter de lei
por excelência. Rui Barbosa, a propósito da natureza do sistema constitucional; insistia,
com razão, na necessidade de ser ela /ucidus ordo, isto é, um conjunto de preceitos entre
si conseqüentes, não obstante a possível diversidade de suas fontes inspiradoras ou deter-
minantes. Isto, posto, todo trabalho constituinte culmina num momento de logicidade
interna, que explica a formaçl'o eminente de uma ComissIo de Sistematizaçlo, estabelecida
pelo Regulamento Interno da Assembléia Nacional Constituinte, ad instar do que já
ocorrera no seio da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, a que tive a honra de
pertencer.
Essa exigência de logicidade interna já implica outro pressuposto genérico, que é o da
discriminação lógica dos temas disciplinados, o que explica a manifesta semelhança que se
nota entre os textos constitucionais contemporâneos, QS quais não podem deixar de
atender ao "horizonte ideal" envolvente da tarefa do legislador no mundo contempo-
râneo.
a, assim, por exemplo, que, ao contrário das Cartas Constitucionais anteriores à n
Grande Guerra - que começavam pela estruturação e discriminaçlIo dos Poderes de
Estado, marcando, de certo modo, a preeminência do problema da soberania sobre o da
socia1idade - é a esta que se confere agora a dignidade de peça vestibular, começando«
pelo enunciado discriminado dos direitos e garantias individuais. Houve, pois, uma
alteração de 1800 no âmbito temático, sendo colocada antes a problemática social para,
ao depois, cuidar-se da estrutura do Estado, cujas atribuições e poderes são fixados em
função e em razão da sociedade civil. Assim sendo, todas as constituições contemporâneas
trazem, sem discIepincia, esse marco de socia1idade, o que, a meu ver, corresponde aos
imperativos da Democracia Social, o nome novo da Democracia liberal. Há, por canse-
. pinte, determinados valores ou parâmetros axiológicos que condicionam a obra consti-
. tuinte, segundo o "espírito do tempo", dando« a esta expressão o sentido lato e com-
preensivo das inclinações ou tendências que, no seu todo, emprestam uma tonalidade

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cultural diversa em cada época histórica, comportando um diverso "progresso da cons-
ciência", confonne terminologia feliz de Brunshvicg.
Resta, outrossim, ponderar que uma experiência genérica de eticidade atua como outro
valor universal condicionador das atividades de qualquer Assembléia Constituinte, pois
seria absurdo um texto constitucional que não levasse em conta, por exemplo, a Declara-
ção Universal dos Direitos do Homem, a qual, abstração feita de contrastes ideológicos,
corresponde a um quadro primordial de estruturaas morais e políticas, ao qual não pode
se subtrair nenhum legislador constituinte, por mais radical que seja o seu pensamento.
Como tenho salientado em várias oportunidades, assim como na biosfera, no dizer
dé Modod, surgem invariantes biológicas que se tomam pennanentes,.,como se fossem ina-
tas, também na história do homem se constituem, com análogas qualidades, o que deno-
mino "invariantes axiológicas", isto é, determinados valores que todos, indistintamente,
reconhecem como sendo aquisições perenes do processo histórico, como seriam, antes de
todos, os chamados "direitos humanos".
Dessarte, podemos afirmar que, não obstante a natureza conjuntural e diversificada dos
processos de constitucionalização, em decorrência de peculiaridades próprias a cada povo,
existe, todavia, um quadro de valores lógicos e éticos que representa o conteúdo inevitável
das cartas constitucionais, tal como o mais perfunctório estudo de Direito Constitucional
Comparado o comprova.
4. No que se refere à seguilda diretriz por mim discriminada anterionnente, sobre a
amplitude que devem ter os textos constitucionais, há uma série de questões da mais alta
relevância.
Nada mais errôneo e perigoso do que pretender-se uma ConstituiÇio que tudo pretenda
prever e a tudo procure dar remédio, como se ela fosse um gigantesco recipiente capaz de
abrigar todas as aspirações populares, por mais fantasiosas que sejam.
a
impossível, em princípio, dizer que tal 'Ou qual.mat~rianão seja constitucional, pois
não faltariam exemplos numerosos de preceitos guindados à dignidade constitucional
quando deveriam ser objeto de leis ordinárias, ou quando muito complementares. Isto,
não obstante, além dos princípios universais, a que já me referi, há uma série de disposi-
ções cuja configuração constitucional resulta da natureza das coisas, o que explica a sua
coincidente presença em todas as Cartas Magnas de nossa época. Nio há necessidade, com
efeito, de tecer comentários técnicos para perceber-se que o conteúdo de uma Constitui-
ção não pode deixar de abranger normas sobre direitos e garantias individuais, a fonna do
Estado e do Governo, o regime de Poderes e sua correlação ou interdependência, bem co-
mo, desde o primeiro pós-guerra mundial, com o surto do fato e das idéias socialistas, dis-
posições disciplinadoras da interferência do Estado na ordem econômica e social, na defe-
sa da qualidade de vida e de saúde, ou na defesa e promoçio dos valores culturais, desde a
educação até a proteção da paisagem.
aessa ampliação histórica do conteúdo constitucional que explica a extensio das Car-
tas contemporâneas, em confronto com as do século XVIII, e, no caso brasileiro, com a
de 1891, parnasianamente estruturada, no fundo e na fonna, segundo o espírito da belle
époque. Daí a contraposição que, às vezes, se pretende fazer entre Constituições enxutas,
sintéticas ou analíticas, invocando-se, em regra, o exemplo da Constituiçlo norte-america-
na, cujo segundo centenário estamos justamente comemorando. Há sobre essa matéria
muitos equívocos, pois a Cartayankee apresenta várias seções, algumas bem extenSas, em-

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bora não desdobradas em artigos, e tem tido, a completá-la, nada menos de 26 emendas,
sem se falar em imperativos constitucionais que resultam da praxe política e sobretudo da
criação jurisprudencial graças à consciência jurídico-política de sua Suprema Corte, ao
contrário de nosso Supremo Tribunal que, não raro, tem sido omisso no plano da expe-
riência constitucional~ como se deu concordando com o poder que teve o Procurador-Geral
da República de dar seguimento ou não às representações por inconstitucionalidade em
tese, o que felizmente a Constituição de 1988 veio sanar.
De qualquer forma, uma Constituição deve ser, em regra, sintética, pois também em
matéria de direito público vale a advertência conhecida de Buffon de q~ o estilo é o Sa-
crifício do supérfluo. Em princípio, devem prevalecer os textos sintéticos, e não os analíti-
cos, como os das Constituições da India·, com 315 artigos, de Portugal, com 310 e do Bra-
sil, com 245 mais 70 de Disposições Constitucionais Transitórias.
Quando uma Constituição exagera em seu conteúdo expõe-se a ter uma existência pre-
cária, pois os fatos emergentes, ao longo do processo histórico, implicam a necessidade de
sucessivas alterações. ~ inegável que os textos sintéticos têm mais condições de durabili-
dade.
5. Todavia, o problema do conteúdo, além das dificuldadés que acabo de. realçar, al-"
berga uma das mais graves ameaças ao destino da democracia, podendo levar ao que já de-
nominei alhures "totalitarismo normativo".
O totalitarismo é uma hidra de muitas cabeças, e cada uma delas, quando nasce, faz
nascer as demais. É grande erro temer, sob o impacto do totalitarismo nazista ou soviéti-
co, apenas o bloqueio global de todas as formas de vida, subtraída a liberdade criadora a
cada uma das expressões da existência humana.
Embora possa parecer paradoxal, há um totalitarismo global e outro parcial, este como
elemento ou momento preparatório daquele. Será, assim, totalitária qualquer soluçlo p0-
lítica ou jurídica que consagrar, por exemplo, uma única forma de arte ou de culto reli-
gioso; com a exclusão terminante de todas as outras.
É sobretudo no início da vigência de uma nova Constituição que devemos ter presente
esse ensinamento que nos chega, como uma advertência, de todas as épocas históricas. Em
virtude da competência conferida a uma Assembléia Constituinte, cujos poderes muitos
consideram erroneamente ilimitados, é que devemos nos prevenir contra o arbítrio, reco-
nhecendo, como já salientei, a existência de valores lógicos e éticos que balizam as deci-
lÕeS do legislador originário, subordinando-o aos imperativos da liberdade e ~ democra-
cia, em razão dos quais o povo lhe outorgou a faculdade de instaurar o estatuto político
destinado a reger e garantir sua existência tanto como indivíduo quanto como partícipe
e prótagonista atual e futuro do convívio social.
Em última análise, como é próprio de todo fenômeno essencialmente vinculado ao Di-
reito - pois uma Constituição é fundamentalmente um texto jurídico de conteúdo moral,
econômico, político, etc. - não há que falar em poder arbitrário, que é a negaçlo mesma
do Direito e da Justiça.
É o motivo pelo qual uma Assembléia Constituinte, queiram-no ou nio os iluminados
reformadores ab imis fundamentis, encontra em si própria, nas raízes de sua origem e de
seu destino, as razões de seus limites naturais, o que tem como conseqüência a condena-
ção de toda e qualquer opção normativa que implique uma "situação de bloqueio", com
olvido de que uma autêntica Carta Magna deve ser o início de uma caminhada de homens
livres, e não um comando a homens impedidos, desde o começo, de fazer opções futuras.

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Ora, viver é fazer opções li todo instante, de conformidade com a emergência dê novas
circunstâncias e conjunturas, o que pressupõe a preservação suprema da liberdade. Nenhu-
ma ofensa é maior a esta do que a pretensão que possa ter um pequeno grupo de homens
de decidir de tudo e sobre tudo', substituindo-se ao povo que deles espera a elaboração de
regras que assegurem a todos a liberdade como participação à causa comum do bem-estar
e do prOgresso.
Vê-se, por tais motivos, que uma Assembléia Constituinte se situa necessariamente no
âmbito de um amplo processo democrático e que a Constituição, por ser a lei suprema,
não pode reduzir-se à indicação obrigat6ria de um único caminho.
Uma Constituição não é, nem pode ser, a pré-moldagem da sociedade civil, mas sim o
enunciado de modelos jurídicos abertos capazes de propiciar-lhe meios e modos para su-
perar inevitáveis conflitos econômicos, políticos ou culturais atravts do livre jogo dos in-
teresses e das idéias, conforme as futuras opções soberanas do eleitorado. Não é, pois, um
rol de soluções compulsórias, mas a garantia de soluções a serem livremente alcançadas na
concretitude da experiência social, através do debate crítico dos programas políticos e das
aspirações de todas as categorias coletivas. Desse modo, quarido o legislador se substitui
ao povo, impondo-lhe normas rígidas e bloqueando o processo de livre construção de seu
próprio caminho, caímos no "holismo", uma das mais nocivas formas de autoritarismo, e
porta aberta ao totalitarismo.
Daí o dever que tinha a Assembléia Nacional Constituinte de evitar a tentação casuísti-
ca de tudo regular e tudo resolver, estancando o futuro processo legislativo. A pretexto de
defender-se a igualdade, ou o bem-estar social, podemos estar apenas privando a coletivi-
dade nacional de seu autônomo poder de escolha em face dos casos concretos, ou da alter-
nância dos partidos políticos no poder, como é próprio de uma sociedade democrática e,
por conseguinte, aberta e pluralista.
Dir-se-á-que não se pode elaborar uma Constituição sem serem feitas certas opções e fixa-
das determinadas diretrizes; e está certo .. Todavia, as normas constitucionais somente são
duradouras quando se ~tam a estabelecer os parâmetros das ações íícitas, ética e eco-
nomicamente aconselháveis, segundo modelos jurídicos abertos, repito, sem a pretensão
de antecipar-se aos entendimentos e negociações que deverão ser concluídos pelos indiví-
duos ou grupos interessados. Em tal caso, quando as questões ainda se acham no calor dos
debates, comportando soluções antagônicas, nada legitima o recurso a mandamentos cons-
titucionais rígidos e irrefragáveis.
Mesmo o legislador constituinte não pode conferir-se direito de tutor, decidindo a prio-
ri sobre o conteúdo ou o resultado das ações vindouras, mIL'! estabelecer e garantir, de pre-
ferência, os parâmetros ético-jurídicos dentro dos quais se há de democraticamente chegar
a um consenso. ~ assim que uma Constituição garante a liberdade de acesso aos tribunais
(direito de ação); o habeas-corpus e o mandado de segurança; mas não prefigura o que,
concretamente, deva ser decidido pelos juízes, como se fosse possível enquadrar na lei as
infinitas possibilidades das opções humanas.
A consciência constitucional é também (talvez se pudesse dizer que é "acima de tudo")
consciência da matéria que deve figurar no Estatuto Político fundamental de um país. Em
princípio, devem prevalecer na Carta Magna normas de amplo espectro que preservem as

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alternativas da liberdade, ou seja, o processo das livres escolhas do eleitorado, segundo fu-
turos programas de governo.
6. Evitado o "holismo nonnativo", ou o "totalitarismo normativo", cabem algumas
breves considerações sobre o problema da estrutura das Constituições contemporâneas.
Se nos ativennos à experiência brasileira, verificamos que até agora tem prevalecido a
idéia de uma prévia estrutura do Estado, passando-se, a seguir, a tratar dos elementos
constitutivos da sociedade civil, a começar pela discriminação dos direitos e garantias indi-
viduais.
Pois bem, os textos constitucionais do segundo pós-guerra distinguem-se, como já assi-
nalei, por uma inversão de 1800 no tocante à ordem segundo a qual se disciplina a maté-
ria, principiando-se pelos enunciados concernentes à sociedade civil. O fato de conferir-se
a esta uma posição preambular denota que, na linha do pensamento democrático do Oci-
dente, as exigências da comunidade, expressas em um sistema de direitos e deveres que
vão bem além da primitiva defesa da mera cidadania, o Estado não é estruturado em si e
por si mesmo, ma em função e em razão dos indivíduos e de seus grupos naturais.
~inegávei que a cidadania, a qualidade que tem cada indivíduo de participar da orga-
nização do Estado, quer como eleitor, quer como eleito, o jus cMtatis. e o jusactivae eM-
tatis. consoante clássica distinção de Jellinek, representam um bem inestimável, mas, hoje
em dia, esse aspecto cívico do ser humano não nos faz esqueCer a imperiosa defesa dos di-
reitos vinculados à sua "condição existencial e participativa", abrindo um leque de salva-
guardas individuais não previstas na concepçlo do Estado de Direito de feitio clássiCo. (j.
neoliberalismo que, a meu ver, integra a Democracia liberal na Democracia Social, pOe,
em suma, a tônica na socialidade como fulcro da estrutura constitucional, de tal modo
que o Estado, seus poderes e serviços, adquirem cada vez mais um sentido de "instrumen- .
talidade em função da comunidade". ~ mais uma razão para condenarmos o "totalitaris-
mo nonnativo", que estanca o processo democrático e reduz a aventura da liberdade a
quadros pré-fonnados e defonnadores, incompatíveis com o poder criador e inovador do
homem.
7. Tendo a Assembléia Nacional Constituinte optado pela "constitucionalização" de
centenas de soluções nonnativas, essa opção vai fazer ressurgir uma difícil questão sobre
a existência ou não, num texto constitucional, de nonnas primárias e nonnas secundá-
rias, segundo uma hierarquia tão ardorosamente defendida, entre nós, pelo saudoso amigO
Nelson Sampaio.
A primeira vista, pode parecer estranho que se faça uma distinção entre os preceitos
constitucionais que integram o Estatuto Político, atribuindo primazia ou prioridade a al-
guns dentre eles, por constituírem princípios fundamentais, dos quais os outros seriam co-
rolários, ma o emprego excessivo das categorias constitucionais talvez nos obrigue a fazer
uma distinção entre disposições constitucionais subordinantes e subordinadas, caracteri-
zando-se as primeiras por sua correspondência ao que denomino ''invariantes axiológicas",
ou valores primordiais da convivência humana.
~ sobretudo no plano hennenêutico que essa distinção se impOe, não podendo ser in-
terpretado um artigo constitucional em conflito, por exemplo, com aquele que salvaguar-
da o ato jurídico perfeito, o direito adquirido ou a coisa julgada, e, de maneira genérica,
com ofensa aos direitos fundamentais do homem.
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Para dar um exemplo mais particularizado, o art. I?, de manifesto caráter preambular,
fixa os "princípios fundamentais" de nosso Estado democrático de direito, como a dig-
iúdade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Estamos,
pois, perante normas prioritárias, em função das quais devem ser interpretadas as demais,
para que não haja conflito de princípios.
O "totalitarismo normativo", que compromete a Carta de 1988, não pode deixar de
levar-nos a eleger determinados parâmetros mais altos para o claro entendimento de tudo
aquilo que nossos constituintes colocaram na Constituição atendendo, às vezes, a interes-
ses miúdos e secundários.

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