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Primeira Aula
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vida intelectual é a condição prévia da herança cultural. É ela, portanto, e não propriamente o
sedimento da herança cultural, a força regulativa da vida civil e política.
6. Um rudimento de vida intelectual é indispensável ao estabelecimento da vida civil e
política, mas, uma vez estabelecida a sociedade civil e política, a vida intelectual retroage sobre os
resultados alcançados, para julgá-los em face do valor mesmo da inteligência humana.
Por esse papel que ela desempenha antes e depois da constituição da sociedade, ela é
autônoma em relação a esta. A vida intelectual tem na vida civil e política (a) um objeto de sua
criação; (b) condições de seu exercício como atividade do homem civil e político; (c) matéria de
sua ponderação.
Não é incomum que a criação se volte contra o criador, pretendendo a sociedade civil e
política ditar ou limitar as condições de exercício da vida intelectual. Porém esta, como poder
regulativo autônomo, é por natureza de âmbito universal e não pode ser regulada por nenhuma
comunidade em particular. Quando a vida intelectual perde sua autonomia e passa a ser
determinada ou regulada pela vida civil e política, perde sua universalidade, sua veracidade e sua
eficácia, não podendo mais atuar como poder corretivo e regulador. Em resultado, a comunidade,
perdendo a visão de seus fins (determinados pela inteligência humana), começa a se ater às metas
consuetudinárias, entra na repetição e perde a capacidade adaptativa às novas circunstâncias,
naturais ou históricas. A vida intelectual é a única garantia da universalidade das metas e valores
comunitários e, portanto, a única garantia da sua subsistência em face do universo histórico e
natural.
A comunidade que perde a vida intelectual como poder regulador, decaindo para uma
forma estritamente política de auto-regulação, volta suas costas para o universo e se toma como
padrão universal, isto é, desliga-se do cosmos e da humanidade. Logo decai para formas
puramente civis de regulação, instalando-se o conflito generalizado entre os grupos e, em última
instância, procura apoiar-se na regulação natural, que lhe está vedada pela própria natureza das
coisas.
O homem não tem, portanto, outra alternativa: ou a vida intelectual autônoma, ou a
queda progressiva para uma animalidade que, não podendo ser atingida de fato, permanece como
limite teórico da sua decadência.
7. A tipologia hindu das quatro castas propõe que existam homens, geneticamente
selecionados, destinados a viver para cada uma dessas quatro expressões da vida humana, isto é,
homens que regulam seus atos pessoais, espontaneamente, pelas metas da vida natural, da vida
civil, da vida política e da vida intelectual. São, respectivamente, os shudra, os váishia, os kshatríia
e os brâhmana.
Quando as castas se misturam, forma-se um tipo composto, o shandala ou pária,
caracterizado pela presença, em sua alma, de forças e tendências incompatíveis entre si.
Segundo esta teoria, seríamos hoje todos uma raça de párias, coexistindo em nós, em
diferentes dosagens, essas quatro tendências. Pode haver, entretanto, homens nos quais uma
dessas tendências seja suficientemente forte para subjugar as outras, devendo então essa
tendência ser reforçada pela educação.
Não precisamos admitir o fundamento genético dessa teoria para aceitar a sua veracidade
psicológica. Como expliquei a psicologia das castas num outro trabalho, não vou demorar-me
nisto agora.
8. As quatro expressões da vida (e as quatro tendências das castas que lhes correspondem)
não devem ser imaginadas como faixas separadas, mas como círculos concêntricos, de modo que
a vida civil abrange a vida natural, a vida política abrange as duas anteriores, etc.
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VIDA INTELECTUAL
VIDA POLÍTICA
VIDA CIVIL
ViIDA NATURAL
L
9. Deste modo, é evidente que a participação do homem nessas quatro formas de vida
requer aptidões e conhecimentos cada vez mais complexos e abrangentes. A inaptidão para a vida
natural exclui logicamente o homem da vida civil (por exemplo, o louco ou o doente incapaz de
alimentar-se, tomar banho, etc). A inaptidão para a vida civil exclui o homem da vida política: o
homem incapaz de zelar por seus próprios bens e interesses não será admitido como
representante de grupos maiores. Assim também, a inaptidão para a vida política exclui o homem
da vida intelectual: o homem incapaz de abarcar intelectualmente a comunidade em que vive,
com toda a complexidade de suas relações internas, muito menos será capaz de julgar essa
comunidade como um todo, em face do ambiente natural ou da humanidade.
O homem tem de ser habilitado, pois, primeiro para a vida natural, depois para a vida
civil, depois para a vida política e depois para a vida intelectual (a qual, no entanto, já estava em
germe na raiz do seu aprendizado, que sem ela não poderia vir a começar).
A educação é, portanto, uma instância da vida que atravessa todos os quatro níveis. É o
eixo que liga o homem como ser natural ao homem como cidadão, como membro da
comunidade política e como intelectual.
A educação abrange desde o ensino das habilidades necessárias à vida natural (andar,
comer, lavar-se) até as sínteses superiores da razão, passando pelos deveres da vida civil e política.
10. A passagem de cada fase da educação à fase seguinte se dá pelo domínio de certas
aptidões específicas a cada uma delas. Na próxima aula, veremos quais.
27 de maio de 1991
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Segunda Aula
CONDIÇÕES DE PARTICIPAÇÃO
NESSAS QUATRO ESFERAS
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7
Esta distinção é psicológica e não coincide exatamente com a diferença entre direito civis e políticos.
8
Susanne K. Langer, An introduction to Symbolic Logic.
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capacidade, só um pai por completo tapado exigirá obediência verdadeira; ela não pode ainda
obedecer, também não pode desobedecer, e simplesmente não sabe do que se trata.
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Terceira aula
1. O Discurso Poético surge com os primeiros oráculos, na noite dos tempos. É por
excelência o discurso de uma casta sacerdotal. Nele estão vazados os Vedas, os poemas de
Homero, o Tao-Te-King e demais livros sacros da China, e boa parte do Antigo Testamento.
Caracteriza-se por insistir ″relativamente muito pouco numa separação clara entre o sujeito e o
objeto: o acento é antes colocado no sentimento de que o sujeito e objeto estão ligados por uma
potência ou energia comum... comum à pessoa humana e ao ambiente natural... As palavras estão
carregadas de poder ou de forças dinâmicas″; pronunciá-las ″pode ter repercussões sobre a
ordem da natureza1″.
2. O Discurso Poético vai perdendo sua autoridade com a dissolução da religião grega
tradicional a partir do séc. VII AC, com o advento do individualismo religioso e do culto de
Dionísios, quando a poesia se torna instrumento de expressão de emoções individuais, perdendo
vigência pública2. O Discurso Retórico começa a tornar-se dominante com o estabelecimento da
polis e sobretudo após a reforma de Sólon (séc. VI AC). Dissemina-se por toda a parte com os
Sofistas, professores de oratória da classe dominante. Permanece dominante na Grécia, depois
em Roma, até que o fim da República Romana (séc. I AC) suprime aos poucos sua utilidade
pública. De força dominante, vai-se tornando objeto de pesquisa e de estudo escolar; a era da
Retórica como ciência (já não como vigência pública) está definitivamente estabelecida com
Quintiliano (séc. I DC )3.
31 de maio de 1991
4
v. Royce, Idealismo Moderno, cap. III
5
cf. Gusdorf, De l’histoire des sciences à l’histoire de la pensée, pp. 198-9
6
cf. Curtius
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MOTIVOS DA CREDIBILIDADE
DISCIPLINAS DERIVADAS
26 de junho de 1991
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Quinta Aula
Vimos, nas aulas anteriores, que os quatro discursos se diferenciam sobretudo pelos
modos de credibilidade de cada um. Agora vamos estudar mais especificamente: 1o, quais os
motivos psicológicos que determinam a credibilidade em cada um dos quatro casos; 2o, quais as
funções ou faculdades cognitivas que são postas em movimento para acionar esses motivos e
determinar a credibilidade.
I. Motivos de credibilidade
1. Discurso Poético. -- Tem credibilidade pela sua magia: faz o ouvinte “participar” de um
mundo de percepções, evocações, sentimentos ( “intuições” no amplo sentido croceano ), de
modo que, não existindo hiato ou separação entre o poeta e o seu público, entre falante e
ouvinte, a comunhão ( espiritual e contemplativa ) de vivências “é como se a própria vida
falasse”.
Por isto o grande poeta inglês Samuel Taylor Coleridge ( 1772-1834 ) dizia que uma das
condições básicas para a apreciação da poesia é uma suspension of disbelief: a suspensão da
descrença. O ouvinte ou leitor da obra poética coloca provisoriamente ″entre parêntese″ o juízo
crítico, de modo a poder participar mais diretamente da vivência contemplativa que lhe é
proposta.
A credibilidade, no discurso poético, assume portanto concretamente a forma de uma
participação consentida numa vivência contemplativa proposta pelo poeta.
O efeito “mágico” dessa participação requer também, como condição preliminar, a
comunidade de língua e de linguagem entre poeta e ouvinte; eles devem não apenas falar
correntemente a mesma língua, mas ter um domínio equivalente do vocabulário, da sintaxe, etc: o
que o poeta diz deve ser apreendido instantaneamente e sem demasiadas mediações intelectuais,
ou então o efeito poético não se produz. Mas há, é claro, uma diferença: o domínio que o poeta
possua dos recursos linguísticos deve ser ativo -- no sentido de ele poder usá-los criativamente --,
e o do ouvinte basta que seja passivo: que possa captar o sentido desse uso, ainda que sem saber
produzir ele mesmo um efeito semelhante.
Por isso é que obras poéticas escritas numa época remota, com palavras estranhas ao
nosso vocabulário ou construções frasais para nós inusitadas, não despertam mais efeito poético,
a não ser que a barreira de dificuldades seja retirada artificialmente, pela intervenção de um
filólogo ou explicador ou pelo nosso esforço pessoal de pesquisa, de análise e de interpretação. A
apreciação estética de obras antigas ou estranhas é uma experiência indireta, que se faz através da
mediação intelectual e crítica. E como no homem vulgar a atividade intelectual crítica e a vivência
direta estão separadas por um abismo que só uma longa educação pode transpor, essa experiência
é, na prática, inacessível à maioria das pessoas. A possibilidade de ″recuperar″ o sentido originário
e vivo da experiência poética depende então da cultura e da capacidade do leitor: quanto mais
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afeito ele esteja aos procedimentos interpretativos técnicos, menos penosa lhe será a mediação
intelectual e mais fácil seu acesso à vivência poética. Para o leitor principiante, o esforço mesmo
de interpretação se torna um obstáculo, e muitos universos poéticos lhe estão fechados. O estudo
habitual da filologia, o exercício constante da interpretação, abrem horizontes de cuja existência o
leitor vulgar nem sequer suspeita.
Há, é claro, exceções, obras que, embora escritas numa outra época, permanecem
acessíveis de modo mais ou menos direto e não oferecem aparentemente maiores dificuldades de
interpretação. Em muitos casos esta facilidade aparente é enganosa; baseia-se em afinidades
fortuitas. O leitor acaba apreciando a obra por motivos que nada têm a ver com ela. O homem
habituado às idéias psicanalíticas aprecia o Édipo Rei sem dar-se conta de que o Édipo de
Sófocles não tinha complexo de Édipo: só o de Freud. Ou o jovem sequioso de “experiência
mística” fora dos quadros do “dogma” que ele julga estreitos, se baba de admiração por S. João
da Cruz, sem notar que fora do dogma católico não há a mínima possibilidade de compreender
realmente S. João da Cruz. É como um índio que, desembarcando no Rio ou em São Paulo e
deparando uma estátua de Peri e Ceci, desenvolvesse grande admiração pela cidade por julgar que
ali os índios são objetos de culto público. Ou como o Barão de Itararé, que ingressou no
Integralismo por haver entendido que o lema do movimento fosse: “Adeus, Pátria e Família”.
É só a verdadeira cultura literária que pode erradicar esses desvarios subjetivistas, os quais
me parece que hoje em dia constituem o padrão mesmo do gosto literário entre os jovens da
universidade. Sua formação literária, feita na base do culto ocasional de autores escolhidos a esmo
-- segundo a preferência dos professores ou segundo as oscilações da moda -- não lhes permite
uma visão de conjunto do mundo das letras, nem no sentido histórico, nem no sentido de uma
hierarquia de valores, nem mesmo no de um sistema de gêneros e formas; de modo que sua
apreciações literárias repetem a história dos cegos e do elefante. É um poste, disse o primeiro,
apalpando uma perna do animal. É uma serpente, garantiu o segundo, agarrando a tromba. É
uma folha de bananeira, assegurou o terceiro, alisando a fina borda da orelha. Como resultado de
experiências deste teor, o jovem, ao fim de alguns anos de “estudo”, conclui que o gosto
arbitrário é, nessas matérias, o supremo padrão de juízo. Conclusão lisonjeira, porque, nestes dias
de narcisismo e de culto da juventude, todo sujeito com menos de trinta anos está ansioso por
tornar-se pessoalmente a medida de todas as coisas. Uma multidão de tiranetes analfabetos.
Uma verdadeira cultura literária pode corrigir essas distorções, introduzindo na vivência
da obra poética o senso das proporções, da adequação significativa, da hierarquia de valores
literários, etc.
Em todo caso, a primeira impressão de afinidade e concordância íntima não deve ser
tomada nunca como critério de valor. Há obras talvez mais “estranhas”, que, não nos atingindo
diretamente com facilidade, podem ter muito mais a nos dizer, quando nos tornamos capazes de
compreendê-las. Abrir-se a novas possibilidades de compreensão é a essência mesma da
educação.
Mas a filologia não visa somente a lançar pontes, e sim também a explodir as falsas
pontes, restabelecendo a estranheza quando ela é preferível a uma intimidade fácil e ilusória:
reconhecer que não se compreende é às vezes o requisito preliminar da compreensão. Por isto
não há nada mais indigesto ao educador do que um jovem apegado às suas próprias opiniões,
como um velho ranheta, desconfiado, hostil, fechado num muro de defesas.
Um outro reparo que se deve fazer, para evitar confusões, é que a “comunhão de
vivências”, a que me referi acima, é espiritual e contemplativa, não diretamente sensorial e
emotiva. Como observa Carlos Bousoño, quando o poeta descreve a sua dor de dentes isto não
faz doerem os dentes do leitor: prova de que se trata de contemplação de vivências, e não de
vivenciação propriamente dita. Advertência que se torna desnecessária a quem compreenda,
desde logo, que todos os quatro discursos se dirigem ao espírito, ao homem enquanto sujeito
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cognoscente e não diretamente enquanto existente. Mas necessária quando se considera que a
incompreensão deste caráter indireto e representativo de todo discurso é regra geral entre os
jovens leitores, que por isto pedem à obra literária emoções diretas e fáceis, sem mediação
estética, confundindo a vida com a arte, sem dar-se conta que, por esse caminho, só acabarão por
cultuar uma arte repetitiva e narcótica, “reacionária” no sentido de barrar ao homem o acesso a
toda experiência que não esteja no seu circuito preferencial e rotineiro.
O que foi dito da comunidade de linguagem, por outro lado, também não significa que a
obra poética, para nos comover, deva ser escrita no estilo da nossa fala corrente, para não suscitar
estranheza. Ao contrário. Se a fala corrente, por si, tivesse o dom de nos comover, viveríamos
imersos num mar de emoções e não cairíamos jamais na banalidade e no tédio. O discurso
poético justamente rompe esse estado de banalidade e de tédio, e o consegue por sua
“estranheza”.
Mas há dois tipos de estranhamento: mágico e intelectual. O estranhamento intelectual
cria entre nós e a obra poética uma distância crítica, que enfraquece ou anula a experiência
poética; o estranhamento mágico, em contrapartida, confere à linguagem poética uma auréola de
prestígio e de autoridade oraculares, com a qual ela pode subir à esfera do que a estética
romântica denominava “o sublime”, para além do simplesmente “belo”. A diferença é que uma
dessas formas de estranhamento vem acompanhada de um sentimento de rejeição, de
inconformidade, ao passo que a outra produz o fascínio e a participação. Mais tarde veremos em
detalhe como se produzem esses efeitos. ( O estranhamento dito brechtiano, que é de tipo
intelectual, é coisa totalmente diversa. Que o aluno não caia em confusões: o teatro de Brecht
leva o espectador a estranhar criticamente a ação dos personagens, e não a obra enquanto tal.
Neste sentido, conserva sua influência “mágica”, aliás poderosa, por trás de uma cortina de
distanciamento crítico ). Por enquanto, o que nos interessa é assinalar que a credibilidade do
discurso poético, em todos os casos, vem da “magia” possibilitada pela participação consentida
numa vivência contemplativa, e que esse consentimento toma concretamente a forma de uma
suspension of disbelief, de uma concordância ( provisória e descomprometida ) de “entrar no
jogo”.
Finalmente: a comunidade de vivências, se deve ser entendida em sentido espiritual e
contemplativo, e não físico, não tem de ser vista como algo que se limite à esfera “subjetiva” da
experiência. Nada exclui a hipótese de que, por meio espiritual, a obra poética chegue a operar
efeitos “físicos” no leitor, e que esses efeitos sejam objetivos e repetíveis, uma vez atendidas as
condições culturais e psicológicas requeridas. Parece, realmente, que nas fases iniciais da cultura
humana, a linguagem poética é reconhecida como detentora por excelência dessa faculdade, e
mesmo do poder de desencadear, pela magia da palavra, efeitos físicos na natureza em torno. As
origens comuns da poesia e da magia ( entendida esta como ciência e técnica da operação com
forças sutis da natureza ) constituem um assunto espinhoso e complexo, e devemos abordá-lo
com mais cuidado em etapas mais avançadas do nosso curso. Por enquanto, devemos apenas
assinalar que a experiência poética não é de maneira alguma dependente da pura arbitrariedade
subjetiva; que, atendidas as condições iniciais, isto é, o consentimento à participação e a
comunidade de recursos linguísticos, o efeito poético se segue por linhas perfeitamente
identificáveis; e que tudo isto deve ser objeto de ciência e não de arbítrio.
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Sua influência sobre o ouvinte é portanto bem diferente daquela do discurso poético.
Este operava uma transformação na alma do ouvinte, mas, como esta transformação ocorria em
camadas muito profundas, não podia resultar num efeito exterior imediato e prático, traduzir-se
logo numa decisão ou ação precisa e determinada. O discurso poético, na verdade, antes
predispõe de longe a certas atitudes, do que as ordena ou solicita.
A influência do discurso retórico é menos profunda, porém mais evidente e imediata,
mais traduzível em ações exteriores. Enquanto o discurso poético procura absorver a alma inteira
do ouvinte, deixando nela uma marca profunda que se integre na personalidade “como se a
própria vida falasse”, mas abdicando, por isto mesmo, de obter disso quaisquer efeitos práticos
imediatos, o discurso retórico contenta-se em influenciar o ouvinte durante um determinado
período de tempo e para os fins de uma determinada decisão ou ação em particular. O advogado
que discursa no foro não pretende transformar de maneira profunda e duradoura a alma dos
jurados, mas apenas persuadí-los a absolver ou a condenar o réu naquela precisa circunstância. Se
depois eles se arrependerem do voto, pouco importa: a influência da retórica termina no ponto
exato em que a ação desejada se desencadeou conforme o esperado.
O discurso retórico não dá ao ouvinte nenhuma ordem determinada. Mesmo quando
expressa mandamentos, como no caso dos épicos religiosos, o faz numa linguagem simbólica que
dá margem a toda uma variedade de interpretações posteriores, e é só através destas ( expressas,
por sua vez, em linguagem dialética ou retórica ) que os mandamentos, muito gerais, se
convertem em normas determinadas. Alguns textos sacros, no entanto, contêm exortações e
comandos explícitos, de mistura com expressões simbólicas. Por isto alguns tratadistas, como
Frye, preferem classificar esses textos num gênero intermediário, o kerigma, misto de poético e
retórico. Pode-se admitir esta denominação, com a ressalva de que, em todo discurso, os
elementos poéticos e retóricos nunca estarão fundidos num amálgama inseparável, mas
permanecem sempre passíveis de distinção.
O discurso retórico, por sua vez, emite sempre uma ordem ou pedido que, mesmo
implícito, será sempre concreto e determinado; motivo pelo qual tem de ser de inteligibilidade
literal e imediata ( isto é, imediatamente referida às circunstâncias práticas que lhe interessam ).
Um discurso poético pode ter tantas “interpretações” quantas se queiram, sem que isso
prejudique em nada o seu efeito, que às vezes é tanto mais profundo quanto mais variadas as
interpretações. Um discurso retórico, ao contrário, tem de ser unívoco: se puder ser interpretado
em vários sentidos não terá eficácia nenhuma. Palavras obscuras podem fascinar ou comover;
mas não podem transmitir uma ordem precisa e determinada. ( O que não quer dizer que um
discurso retórico em particular não possa também conter virtudes poéticas e, neste sentido,
reverberar numa multiplicidade de sentidos simbólicos, contanto que o literal esteja garantido ).
A credibilidade do discurso retórico consiste em sua faculdade de fazer o ouvinte querer
alguma coisa ( ou rejeitar alguma coisa ). Este efeito se obtém por uma identificação, ao menos
aparente e momentânea, da vontade do ouvinte com a vontade do orador. Este faz o ouvinte
sentir que a proposta contida no discurso coincida, em última instância, com a vontade íntima do
próprio ouvinte. Já não se trata, portanto, somente de uma participação consentida numa certa
vivência contemplativa, mas na admissão consentida de uma identidade de vontades, portanto de
decisões.
O discurso retórico apela, no fundo, ao sentimento de liberdade do ouvinte, ao seu
impulso de decidir, de agir por si mesmo, de afirmar a sua vontade. Por isso a Retórica antiga
considerava importante que o orador captasse primeiro as inclinações do auditório, para poder
fazer a ponte entre essas inclinações e o objetivo desejado.
Há, é claro, pontes falsas: o orador faz o auditório imaginar que quer uma coisa, quando
de fato quer outra, que o orador trata de fazê-lo esquecer por uns momentos. Mas a eficácia de
tais truques é bastante limitada, e seu uso constante reduz a nada a credibilidade do orador. A
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Note-se que, na escala dos discursos, vai diminuindo do poético ao analítico a quota de
confiança inicial que se exige do ouvinte. O discurso poético requeria a suspension of disbelief,
que é quase uma entrega; o discurso retórico exige pelo menos confiança e simpatia pela pessoa
do orador ( ou então ele terá de conquistá-las ). O discurso dialético exige muito menos: o
ouvinte tem apenas de confiar no seu próprio raciocínio e nas premissas geralmente admitidas; o
rumo do discurso será controlado pelo próprio ouvinte, sempre pronto a rejeitar as conclusões
que lhe pareçam escapar da sequência lógica.
A credibilidade do discurso dialético depende, portanto, exclusivamente de dois fatores:
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admitidamente relativas fazendo abstração desta relatividade e admitindo, por uma convenção
científica, tratá-las provisoriamente como absolutas, deixando fora da discussão o que as
desminta. Dito de outro modo, o discurso analítico só pode funcionar quando trata de verdades
muito gerais para um público geral ou de verdades específicas para um público muito
especializado.
Por exemplo, um público de físicos pode admitir mais ou menos convencionalmente
certos princípios da Física, sabendo que poderão ser derrubados amanhã ou depois, mas
concordando, não obstante, em continuar a tomá-los como absolutamente válidos enquanto não
forem derrubados, ao mesmo tempo em que faz, por outro lado, todo o esforço para derrubá-los.
Esta atitude mental, que casa o absoluto rigor lógico das consequências com o senso da
permanente revogabilidade das premissas, e que é um traço proeminente do espírito científico,
pode ser extremamente desconfortável para o ouvinte, mesmo culto, que não possua um
treinamento especializado. A credibilidade do discurso analítico depende, em última análise, da
capacidade científica do auditório. Vale, aqui, a advertência de Santo Alberto Magno, de que a
muitos, “afeitos à vulgaridade e à ignorância, lhes parece triste e árida a certeza filosófica, seja
porque, não tendo estudado, não são capazes de entender tal linguagem, ignorando a eficácia do
aparato silogístico, seja pela limitação ou falta de razão ou engenho. Com efeito, uma verdade que
se obtenha com certeza por via silogística é de tal condição que não pode alcançá-la aquele que
não estude, e está totalmente incapacitado para ela aquele que seja de vista curta” ( Opera omnia,
XVI/1, p. 103 ).
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Série I
A VOCAÇÃO DA INTELIGÊNCIA
§ 121
Cada um dos aqui presentes não teria vindo se não tivesse ao menos um sentimento
difuso de que algo na sua vida intelectual não anda bem, de que ela é deficiente, de que ela não
rende o que dela espera, e se não tivesse a esperança de melhorar.
Dificilmente, no entanto, algum de vocês conseguiria apontar com precisão a natureza, o
lugar e as causas da sua insatisfação.
Nossa primeira tarefa é, portanto, dizer o que é a vida intelectual, qual é a sua meta e a sua
perfeição, e de que é que um homem necessita para realizá-la.
Desde Aristóteles, afirma-se que “todos os homens têm, por natureza, o desejo de
conhecer” 1. Se perguntamos em seguida por que é que todos os homens têm esse desejo, a
sentença de Aristóteles parece que nos barra o caminho, ao devolver-nos ao já enunciado: Por
natureza. O que uma coisa é por natureza parece não necessitar de mais explicação senão essa
natureza mesma. O homem deseja conhecer porque é homem; é homem porque deseja conhecer.
Nossa pergunta, ao invés de encontrar uma resposta, entra em curto-circuito.
Embora prontos a dar razão a Aristóteles, sentimos que sua sentença não nos satisfaz.
Uma natureza ou essência não se contenta com ser afirmada. Tem de ser explicada e, mais ainda,
tem de ser demonstrada.
Por que é que os homens desejam conhecer? Por que não se contentam em viver no sono
e na ignorância como as pedras e os bichos? Não tem estes, acaso, uma natureza, que consiste em
serem eles apenas o que são, sem desejar tornar-se nada mais, sem desejar possuir mais do que já
possuem, sem desejar senão repetir, sempiternamente, a rotina e o ciclo da espécie a que
pertencem? 2
A natureza da pedra consiste em perseverar no seu estado de pedra. A natureza da árvore
consiste em deixar-se seguir inalteravelmente as instruções do código inscrito em sua semente. A
natureza do animal consiste em repetir fielmente os gestos prescritos na essência da sua
animalidade.
Por que é que a natureza humana não se manifesta, também ela, por uma repetição e por
uma perseverança, mas sim, antes, por um desejo? Não é o desejo, acaso, o sinônimo mesmo da
insatisfação, da incompletude, da transitoriedade? E não é isto, acaso, o contrário mesmo de uma
1
É a frase que abre a Metafísica.
2
Em nosso século, a escola existencialista problematizou a sentença de Aristóteles, dizendo que o desejo de
conhecer não é algo que se explica por si, mas um fato estranhíssimo que requer explicação. Alguns autores
buscaram explicar esse desejo em função de necessidades vitais, quer internas, quer externas. V., por exemplo,
José Ortega y Gasset, Que és Filosofía?, o. c., Vol. VII, Lição III, Apêndice. Reconhecemos a validade da
questão levantada por Ortega, mas, como se verá, nossa resposta vai na direção inversa à dela. Nada, nas
necessidades vitais, poderia explicar o surgimento da razão e do desejo de conhecer, mesmo porque as
necessidades que oprimem o homem são as que são, e não outras, precisamente por ele ser aquilo que é: um ente
já dotado de razão e de desejo de conhecimento. Ortega apela à necessidade de escolha, que obriga a pensar; mas
nenhuma possibilidade de escolha se colocaria a um ser que já não tivesse a racionalidade para percebê-la.
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“natureza”, a qual é por definição aquilo que há de estável e permanente num ser, aquilo que nele
permanece imóvel e fixo no fundo de todas as suas mudanças acidentais?
Em contrapartida dessas perguntas, há um fato que podemos constatar por experiência:
quando o homem perde o desejo de conhecer, quando ele simplesmente se deixa estar ao sabor
das influências externas e dos impulsos cegos do seu organismo, ele não ganha nem a estabilidade
da pedra nem a constância instintiva do animal, mas, ao contrário, se torna ainda mais instável,
mais volúvel, mais insatisfeito, influenciável e errático. Ao invés de ganhar, ele perde. Quando já
não indaga pelo conhecimento, o homem perde, precisamente, a sua hominidade, aquilo que o
define e que o constitui como homem. Portanto, a resposta às nossas questões é que a
insatisfação e o desejo, paradoxalmente, são a forma especificamente humana de perseverança e
estabilidade. O animal persevera no ser enquanto repete o circuito de gestos que o instinto
prescreve aos seres da sua espécie. A pedra persevera no ser enquanto nada vem destruir as suas
propriedades de pedra. Ao homem, está vedada esta forma de perseverança passiva. O homem
persevera no ser enquanto deseja conhecer e enquanto se esforça para atender a esse desejo. A
natureza humana, ao contrário da natureza do animal e da pedra, é uma natureza dinâmica e
tensional. Não é um estar passivamente numa condição, mas um querer, um mover-se de um
estado a outro, um tender, com todas as forças, na direção de uma meta. Se a essência é aquilo
que persevera, no homem a perseverança não é um fruto que pelo próprio peso cai da árvore da
fatalidade e da rotina, mas um esforço, uma tensão que, justamente, se opõe à fatalidade e à
rotina, e que toda a fatalidade e a rotina do seu contorno natural e social o convidam
incessantemente a abandonar, sem lograr jamais fazê-lo ceder totalmente.
Ser homem é, portanto, tender a uma perfeição e lutar contra a imperfeição. E esta
perfeição, como diz Aristóteles, é a perfeição do conhecer. Ora, o homem não tenderia, por
natureza, à perfeição do conhecimento, se já não dispusesse, também por natureza, de um
conhecimento imperfeito, mas perfectível 3.
Em quê consiste esse conhecimento imperfeito que o homem já possui, e cujo
aperfeiçoamento é a essência mesma desse ser que a possui?
A mais velha e constante definição do homem é aquela que diz ser ele um animal racional.
Quer dizer: um ser vivo, dotado de linguagem, capaz de manter uma coerência entre as suas
várias afirmações. Se há algo que o homem incessantemente faz, é falar – para os outros homens
ou para si mesmo – e nunca se contentar com o que falou, mas buscar sempre justificar-se,
coerenciar umas frases com as outras, como se em busca de uma certeza inabalável. O discurso
coerente é a capacidade que o homem já possui, e que ele põe em movimento para alcançar a
certeza inabalável, o discurso perfeitamente coerente, o discurso total. A razão, a capacidade para o
discurso coerente, é o conhecimento imperfeito que o homem possui, e que sua natureza mesma
lhe impõe aperfeiçoar constantemente. O homem busca o conhecimento porque, dispondo, por
um lado, da capacidade para o discurso coerente, estável, e sendo, por outro lado, um animal, um
ser vivo, colocado na inconstância e na transitoriedade do mundo vivente, ele está numa posição
dupla e desconfortável, que não lhe permite descansar, e que lhe impõe a necessidade de esforços
incessantemente renovados, para escapar à contradição. Ele necessita alcançar um discurso
coerente, que abarque em sua fixidez e amplitude a totalidade do vivente; necessita harmonizar a
razão e a vida, sem que nem esta escape ao domínio daquela, nem aquela esprema esta última na
camisa-de-força de uma coerência parcial e artificiosa. O homem necessita aperfeiçoar a sua
razão, para que ela dê conta da riqueza e variedade da vida, e para isto necessita viver segundo a
razão e raciocinar em harmonia com a vida. Necessita submeter aos fins ditados pela razão a
multiplicidade dos impulsos vitais que o acossam desde fora e desde dentro, mas não pode
sufocá-los nem negá-los, porque então lhe faltaria a força mesma de viver segundo a razão.
Ora, a razão não poderia dar conta da totalidade da vida se ela mesma não fosse, na base,
dotada de amplitude e de universalidade. A razão não é apenas a coerência entre uma frase e
outra, mas a coerência total do pensado em face do vivido, a coerência total da representação
3
Comparar com a definição de filosofia, que oferecemos no § 58 do curso Introdução à Vida Intelectual.
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com o ser 4. Ademais, tudo o que é coerente é coerente com alguma coisa. Duas frases que são
coerentes entre si o são porque são coerentes com um princípio que as abarca e ultrapassa, que é
o princípio da identidade. A coerência do discurso não é outra coisa senão o reflexo, no
microcosmo mental humano, da unidade da existência mesma, da unidade do ser. E esta unidade
abarca e transcende a vida mesma em sua totalidade. Portanto, a razão tende, por natureza, não
apenas a coerir umas com as outras as partes do seu discurso, mas a coerir com a unidade da
existência a variedade múltipla da experiência individual vivida.
Assim, e tendo em vista que um ser vivo persevera na existência enquanto conserva sua
unidade, e que a divisão é para ele a morte, a razão é para o homem uma condição indispensável
da vida mesma. Se o homem não raciocinasse, se ele se deixasse arrastar pelas tendências que o
puxam em todas as direções, ele perderia sua unidade subjetiva, ele deixaria não apenas de ser
homem, mas, a longo prazo, deixaria de ser vivo. A neuropsiquiatria moderna assinala a
degenerescência física que acompanha sempre os processos de perda ou dissolução da identidade
psíquica 5. A razão é a condição sine qua non da perseverança do homem no ser. “Viver segundo a
razão” não é outra coisa senão elevar a vida ao máximo da sua possibilidade, é depurá-la da ganga
da acidentalidade para concentrar todas as suas energias na finalidade central, que é a única na
qual ela pode alcançar um auge de intensidade e significação. Para o homem, “viver segundo a
razão” significa, simplesmente e plenamente, viver.
Ora, o conhecimento é, por definição, a coerência entre os fatos múltiplos e um princípio
que os unifica. Raciocinar é conhecer, porque é coerir não apenas frases com frases, mas fatos
com princípios. A simples coesão das partes do raciocínio umas com as outras não constitui
propriamente racionalidade. Constitui um esquema, um esqueleto, um símbolo de racionalidade,
que nada significa sem a coerência do raciocínio total com a totalidade da experiência 6. Esta é a
diferença entre a lógica dos computadores e a lógica verdadeira, a lógica humana. Não existe
raciocínio sem a intenção de coerir a multiplicidade da experiência com a unidade de um
princípio, e não existe esta intenção fora do ser que se assombra com essa variedade e que
necessita dessa unidade, fora do ser que é, por definição, a ponte entre a multiplicidade dos entes
e situações e a unidade da existência enquanto tal. Isto é, não existe raciocínio fora do homem. O
homem é o animal que pensa, é o único animal que pensa, e é o único pensante dotado de vida
animal. Os outros animais não pensam, a rigor, porque, neles, a coerência entre a experiência
individual múltipla e a unidade da existência não se faz ao nível da sua representação individual e
subjetiva, mas ao nível do ajuste entre a espécie a que pertencem e o contorno natural onde
vivem; é uma coerência impessoal, passiva, coletiva e inconsciente, enquanto a do homem é
pessoal, desejada, voluntária, ativa, subjetiva e consciente 7.
Ser homem é, portanto, conhecer, ou, ao menos, tender intensamente a conhecer. Mais
ainda: conhecer é apropriar-se da experiência múltipla, mediante signos que a representam e que
podem por sua vez ser coeridos na unidade de uma representação total, a qual, por seu turno,
reflui sobre a vida, dando-lhe coerência ao nível dos fins e dos atos. O conhecimento começa
com o assentimento dado a princípios que expressam a unidade do real, e termina com o
reconhecimento de fins que expressam esses princípios ao nível das ações humanas individuais.
Não há, portanto, conhecimento, sem a ponte entre os princípios e os fins, e a existência humana
4
Para a definição de razão, v. § 78.
5
Sobre a consciência como força de coesão, e sobre a dissolução da consciência, v., de um lado, Maurice
Pradines, Traité de Psychologie Générale, Paris, P. U. F., 1948, Introd., Chap. I, e, de outro lado, René Guénon,
Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, Paris, Gallimard, 1945, Chap. XXXVI ss.
6
V. §§ 88 e 89 supra.
7
V. André Marc, s. j., Psicología Reflexiva, trad. Espanhola, Madrid, Gredos, 1965, Liv. I, Cap. I, § 1, esp. pp.
74-75, e comparar com: René Guénon, Le Symbolisme de la Croix, Paris, Vega, 1984, Chap. II.
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consiste, única e exclusivamente, na construção dessa ponte. Por isto o homem foi desde sempre
coroado com a função de pontifex, de construtor de pontes 8.
Cabe ao homem, aliás, não apenas fazer a ponte entre os princípios e os fins, entre o
universal e os particulares, mas a ponte entre os vários entes terrestres, que sem ele
permaneceriam mudos e incomunicáveis uns com os outros, presos em universos estanques e
mutuamente desproporcionais, soltos no espaço como blocos erráticos 9. Não é outra a fonte da
autoridade do homem sobre os animais, as plantas e as pedras: ele é um compêndio, um
microcosmo onde todos os seres se reúnem e onde eles encontram ordenadamente o seu lugar.
Se não fosse isto, nada autorizaria o homem a atar um burro a uma carroça ou o boi ao arado 10.
Ora, se esse é o destino e a finalidade do homem, isto não quer dizer que todo homem
realize individualmente e plenamente essa finalidade. Talvez isto acontecesse nalgum passado
muito remoto, miticamente representado pelo Paraíso Terrestre, onde um único homem – e cada
homem, portanto – era total e plenamente homem. Se este mito deve ser interpretado em sentido
cronológico, ou como símbolo de uma possibilidade permanente encravada na constituição
ontológica do homem, é algo que não interessa discutir aqui. Suponham, se quiserem, que houve
um Adão, algum dia, ou então que existe um Adão agora, nalgum lugar da Terra ou dentro de
cada um de nós, clamando por um retorno à sua plena dignidade de pontifex, de onde foi
destronado pela Queda, segundo a narrativa bíblica, ou de onde está sendo destronado agora
mesmo, pela desatenção coletiva à finalidade da existência humana, às tarefas ingentes e
inadiáveis impostas ao homem pelo fato de possuir uma racionalidade.
Qualquer que seja o caso, o fato é que, se o homem é racional, os homens nem sempre o são
11
. Para a maioria, a dignidade e as responsabilidades da condição humana não são senão, no
máximo, um ideal abstrato, vago e distante, do qual cada um só participa simbolicamente, por
delegação, por procuração, pelo fato mesmo de estar numa sociedade que tem valores e regras,
que atestam, de algum modo, uma remota origem num esforço de conhecimento, do qual são os
ecos já quase inaudíveis I12. A racionalidade da maioria consiste apenas em que vivem numa
atmosfera social criada por esses ecos.
Dentre as várias ocupações que o repertório das sociedades humanas oferece ao
indivíduo, algumas são mais próximas da pura animalidade: aquelas que inserem o organismo
individual na corrente das ações destinadas a assegurar sua sobrevivência e satisfação material,
independentemente de qualquer representação consciente da unidade do real. Mesmo nestas,
porém, o homem não deixa de ser homem, graças àquela participação delegada que acabamos de
assinalar. Há outras, entretanto, que parecem arrebatar o homem para fora e para cima da
multiplicidade da experiência terrestre, e fixá-lo na contemplação extática da unidade
transcendente do ser. Nestas últimas, o homem penetra no estado angélico, mas nem por isto
deixa de ser também homem, porque o contemplativo ainda vive na Terra e porque, para dedicar-
se à contemplação, ele se apóia no imenso edifício de instituições sociais, de leis, de cultura, de
ciência e riqueza, que só se mantém pelo esforço conjugado de todos os homens. Se o homem
carnal participa da racionalidade por delegação, é também por delegação que o contemplativo,
8
Sobre a significação cosmológica e matafísica do conceito de homo pontifex, v. Seyyed Hossein Nasr,
Knowledge and the Sacred, New York, Crossroad, 1981, Chap. 5; sobre a operacionalidade psicológica e mesmo
psiquiátrica desse conceito. v. L. Szondi, Introdução à Psicologia do Destino, trad. J. A. C. Müller, São Paulo,
Manole, 1978.
9
V. § 73, supra.
10
Nada mais esclarecedor, quanto a este ponto, do que a leituro da “Disputa dos animais contra os homens”,
escrita no séc. X da nossa era pelos “Irmãos da Pureza”, fraternidade mística e filosófica da cidade de Basra. A
fábulo é reproduzida, analisada e comparada com suas versões ocidentais em: Miguel Asín Palacios, Huellas del
Islam, Madrid, Espasa-Calpe, 1941, pp. 123-147.
11
V. a discussão deste ponto em Eric Weil, Logique de la Philosophie, Paris, Vrin, 1967, Introd.
12
Sobre a “participação delegada” do indivíduo na racionalidade, v. §§ 79, 80 e 81 supra.
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por sua vez, participa da animalidade; seu resíduo animal está na civilização, que é para ele como
a terra é para a flor.
A vida intelectual ocupa um lugar intermediário entre dois extremos, e ela é, por isto, a
mais propriamente humana de todas as ocupações. Ela não é a dispersão passiva no múltiplo,
como o é a vida prazenteira e utilitária; é o esforço de abarcar o múltiplo no quadro dos
princípios e submetê-lo ao reino dos fins. Também não é a beatitude da união: é o esforço de
unificação. Como dizia Lutero, “esta vida não é a devoção, mas a conquista da devoção”. Por isto
colocava Platão o homem num lugar intermédio entre o animal e o anjo.
A vida intelectual é, pois, em primeiro e essencialíssimo lugar, a plena assumpção da
condição humana e da tarefa que lhe incumbe: a superação da experiência imediata, a construção
da representação universal coerente, e a coerenciação da representação com os atos 13. Ela
desenrola-se, portanto, no território que medeia entre os princípios e os fins; ela começa na
metafísica e termina na moral; começa nos princípios universais e termina no discernimento dos
fins que devem direcionar os atos individuais em vista desses princípios.
Nesse sentido muito geral e essencial, a vida intelectual incumbe a todos os seres
humanos, e não somente àqueles que estão direta e profissionalmente envolvidos em tarefas de
ciência e de cultura. Há, evidentemente, muitos níveis de participação nela, desde a participação
delegada e passiva até o envolvimento total da alma no anseio pela consecução das metas da vida
racional.
Mas, qualquer que seja o nosso nível de participação, uma coisa é certa em todos os casos:
a plena realização da vida intelectual requer o concurso de meios que propiciem ao homem o
máximo de coerência, de integração entre suas experiências, seus conhecimentos e seus atos. O
conjunto desses meios, transmitidos pela educação, denomina-se cultura.
A transmissão da cultura visa não somente a dotar o homem de instrumentos mentais e
simbólicos que o ajudem a conceber uma representação sintética da natureza e da sua experiência
pessoal nela inserida, mas também a dar ao indivíduo uma compensação intelectual que o ajude a
fazer face à complexidade crescente da própria civilização.
Para a massa dos homens, a cultura deve transmitir ao menos um senso de participação
nos fins da razão, um senso da unidade do real e da direção prioritária dos atos humanos. Essa
transmissão deveria assim assegurar a cada homem uma consciência de participação ao menos
delegada.
No entanto, para o homem pessoalmente envolvido em tarefas intelectuais, esse mero
senso de participação indireta e difusa não basta. O intelectual de vocação tem de receber,
ademais, os meios concretos e eficazes para uma participação direta, ativa, consciente, voluntária
e criadora na elaboração da representação coerente, na qual ele terá de assumir uma
responsabilidade pessoal. Por isto, seria necessário que a educação lhe transmitisse, no mínimo,
os seguintes recursos:
1. Um corpo de princípios universais, auto-evidentes, que se sobrepusessem a todas
disputas de escolas e correntes, a todas as divisões do conhecimento em domínios
especializados, a todas as diferenças historicamente condicionadas.
13
Ao definirmos assim a vida intelectual, estendemos a toda ela uma definição que geralmente se aplica em
particular à filosofia; e se o fizemos é porque a filosofia exprime com mais plenitude do que as outras disciplinas
a essência da vida intelectual, como o prova o fato de que as várias ciências nasceram da filosofia. No tocante à
definição de filosofia, seria também interessante v. Etienne Souriau, l’Avenir de la Philosophie, Paris, Gallimard,
1982, Liv. I, Chap. II. Quanto às relações da filosofia com a mística, seguimos Platão; v. A. Solignac, “Une
nouvelle dimension du platonisme: la doctrine ‘non écrite’ de Platon”, Arch. Phil., t. XXVIII, c. II (avr-juin
1965). É importante dizermos essas coisas em face da tendência atual a menosprezar os estudos filosóficos em
nome de um pretenso “saber místico” que lhe seria superior. Platão e Sohravárdi sabiam que ninguém pode ser
místico sem ser filósofo, e em último caso haverá sempre esta sentença (hadith) do Profeta do Islam, para tirar
qualquer dúvida: “A filosofia é a camela desgarrada da religião. Agarrai-a, portanto, onde a encontrardes.”
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Se voltamos agora, à questão que levantamos no início, isto é, por que as pessoas podem
estar insatisfeitas com a sua vida intelectual, o meio mais óbvio de responder é lançar uma nova
pergunta: Algum de vocês recebeu algum dia os meios e instrumentos culturais, psicológicos,
sociais e morais necessários à vida intelectual? Alguém foi ensinado ou ajudado a conceber uma
representação universal coerente e a viver segundo as finalidades essenciais do homem? Todos
sabem a resposta.
Tendo recebido a formação que receberam, por melhor que seja ela sob outros aspectos,
sua vida intelectual não poderia mesmo nem sequer sonhar em atender aos fins a que se destina.
Do primário à universidade, tudo parece calculado para destruir a capacidade de representação
totalizante e coerente, para cortar os liames entre vida cultural e moral, para deprimir a
consciência sob o impacto de massas de informações desconexas – ou artificialmente coeridas em
blocos parciais que por sua vez são incoerentes e intraduzíveis com outros blocos –; tudo parece
calculado para confundir o juízo, para colocá-lo à mercê de pressupostos ideológicos, para privar
o homem de qualquer possibilidade de avaliação de seus atos e experiências à luz de uma
concepção integral da realidade. Tudo parece calculado para fazer do universo da cultura um
caleidoscópio de estilhaços, muito mais difuso, inconstante e inabarcável do que os próprios
fenômenos da natureza sensível que nos rodeia.
O homem primitivo, perdido entre as vozes e a escuridão da selva, podia ainda orientar-se
pela ciclicidade dos ritmos naturais e pela firme evidência de perigos corporais patentes. O
citadino letrado, hoje, não apenas está separado dessas evidências naturais como também já não
tem acesso ao espírito das grandes sínteses simbólicas e doutrinais do passado, que só lhe chegam
pelo viés de slogans pejorativos e simplificações artificiais; a natureza e a verdadeira cultura
sufocadas sob o vozerio ideológico e a confusão das comunicações de massa, o homem se vê à
mercê de toda sorte de interesses e forças abjetas e invisíveis, que manipulam sua psique e sua
vida sem dar-se a conhecer, covardemente protegidas sob o véu das telas eletrônicas, da
impessoalidade burocrática e dos prestígios sociais aparentes. Essas forças e interesses dirigem os
povos através de uma complexa rede de canais de influência, nos quais avultam os meios de
comunicação de massa, o mercado editorial e grande parte das instituições universitárias. Por
esses canais, sua ação é tão bem camuflada, que chega a produzir correntes de opinião que
parecem opostas e contraditórias, desnorteando a opinião pública, quando no fundo concorrem
para um mesmo fim: confundir para dominar.
O homem inculto e desinformado da Antiguidade e da Idade Média sabia perfeitamente
bem quem o governava; sabia quem o oprimia, a que poderes recorrer em busca de auxílio ou de
que poderes fugir e ocultar-se. Após alguns séculos de “ilustração”, “democracia” e “liberdade de
informação”, o resultado é este: o homem de hoje sabe vagamente que os prestígios sociais são
fachadas de interesse, e que os governantes são fantoches; mas não têm a mais mínima idéia de
quem é que move os barbantes por trás da cena. Quando se revolta, seu protesto – não raro
14
Um programa deste tipo não é apenas um ideal; ele já foi realizado, em vários momentos da história, que se
notabilizaram pelo brilho das sínteses intelectuais que produziram. V., por exemplo, a divisão das ciências e o
programa de estudos na já referida Fraternidade de Basra (séc. X), tal como referida por Seyyed Hossein Nasr
em Na Introduction to Islamic Cosmological Doctrines, London, Thames and Hudson, 1978, pp. 40-43; e
também os programas das grandes universidades medievais, como, por exemplo, os expostos por James A.
Weisheipl, o. p., “The developments of the Arts curriculum at Oxford in the early fourteenth century”, Med.
Stud. (Toronto, Canadá), Vol. XXVIII (1966).
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15
V., quanto a este ponto, Marina Scriabine, “Contre-initiation et contre-tradition”, em René Alleau (ed.), René
Guénon et l’Actualité de la Pensée Traditionelle. Actes du Colloque International de Cerisy-La-Salle, Juillet
1973, Milano, Archè, 1980, p. 232, v. tb. o § 119 supra.
16
O mundo moderno proclama, entre suas conquistas, a “liberdade de opinião”. Mas o direito de opinar é
amplamente neutralizado pelos meios sorrateiros de ação psicológica, que inviabilizam todo debate racional. Em
face do assalto maciço dos meios de comunicação de massa e dos meios de persuasão inconsciente e coercitiva
(lavagem cerebral, propaganda subliminar, etc.), os especialistas da arte de argumentar declaram unanimemente
seu temor de que a argumentação já não seja um meio eficiente de persuadir. Cf. Olivier Reboul, La Rhétorique,
Paris, P. U. F., 1984, Cap. IV, § 5, e A Doutrinação, trad. bras., São Paulo, Nacional, 1980, sobretudo Cap. VI, e
ainda Georges Hahn, “La persuasion des individus. Logique et argumentation”, em: Groupe Lyonnais d’Études
Médicales, Philosophiques et Biologiques, l’Action de l’Homme sur le Psychismo Humain, Paris, Spes, 1960.
17
V. Christopher Lasch, O Mínimo Eu, trad. bras., São Paulo, Brasiliense, 1985.
18
“Nas condições presentes, o ‘grande segredo’ da ação psicológica parece resumir-se em... 1º, Neutralizar as
frações muito minoritárias da sociedade, onde se encontrem homens providos de espírito crítico e que tenham o
hábito de pensar por si mesmos. Para isto, não é necessário ‘liquidá-los’ fisicamente, nem mesmo intimidá-los
pelo terror... 2º, Ganhar o maior número possível de ‘pessoas notáveis’, mediante contatos em separado, graças a
relações pessoais ou pequenos grupos. A intimidação discreta, o interesse, o conformismo, o esnobismo, as
modas, farão o resto... 3º, Atingir diretamente as massas pelos meios modernos de difusão” (M. J. Folliet,
“Publicité, propagande, action psychologique”, em: Groupe Lyonnais, op. cit., Cap. VI). Num artigo publicado
há quatro décadas, Otto Maria Carpeaux já advertia contra a violência integral que as “novas classes médias” de
dirigentes desencadeariam contra a inteligência: “Ridicularizam ou anatematizam todos os esforços
independentes, desinteressados, do espírito...” (A Cinza do Purgatório, Rio, Casa do Estudante do Brasil, 1942,
p. 270).
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19
Sobre a relação entre virtude e vida intelectual, v. A. D. Sertillanges, La Vida Intelectual, trad. argentina,
Buenos Aires, Librería Santa Catalina, 1942, Caps. I e II.
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Série I
A VOCAÇÃO DA INTELIGÊNCIA
§ 122
§ 1. Introdutório
A realidade da vida intelectual, no entanto, não pode ser plenamente apreendida só pela
definição de sua essência. A vida intelectual não é um universal abstrato, mas uma ocupação
efetiva de homens reais e concretos, e tem de desenrolar-se num tempo e num lugar
determinados, sob as condições particulares da forma de existir nesse lugar e nesse tempo.
Ademais, ela requer um esforço, como acontece com toda realização de um ideal: não há ideal
que se ajuste perfeitamente à alma de tal ou qual homem em particular, como uma roupa feita
sob medida, e cuja efetivação não tenha de se processar através de um caminho de paradoxos e
contradições, de manchas e contramanchas, decepções, dores e agonias 1.
Portanto, é necessário descer desde a universalidade abstrata da definição até as condições
concretas e vividas onde a essência universal há de tomar corpo nos atos e obras de indivíduos
particulares. Saimos, portanto, do campo de investigação fenomenológica de uma essência, para
entrar no campo da moral.
Aqueles que compreendem a veracidade da descrição que fizemos no Capítulo anterior
deverão, agora, encarar as consequências reais e práticas que se seguem inexoravelmente da
essência da vida intelectual.
No capítulo anterior dissemos que a vida intelectual é, essencialmente, a superação da
experiência imediata, a construção da representação universal coerente, e a coerenciação da
representação com os atos. Consequência imediata da posse da razão e da linguagem, que
constituem no homem o especificamente humano, ela é, portanto uma tarefa que incumbe,
abstrata e genericamente, a todos os homens. Mas, concreta e particularmente, incumbe àqueles
que sejam mais dotados, por nascimento ou educação, para o empenho de racionalidade.
1
A incerteza da realização do ideal e a irregularidade dos caminhos que ela percorre serão abordadas, de um
ponto de vista psicológico, no Cap. III deste livro. Metafisicamente, elas decorrem da constituição mesma do
real: a passagem da essência à existência é uma encarnação da forma regular numa matéria irregular, é uma
materialização do perfeito no imperfeito. Nenhuma forma está perfeitamente ajustada e à vontade nos materiais
com cujo apoio ela se existencia. Não sendo nem um puro nada nem a matéria prima isenta de atributos (e livre,
portanto, para receber qualquer forma que se lhe deseje impor), mas sim uma matéria secunda já qualificada e
delimitada, esses materiais têm portanto a sua forma própria, que imporá resistência e limitação à forma
essencial que deseje moldá-los. Assim, por exemplo, um cubo é sempre um cubo, pela sua forma, e terá as
propriedades geométricas dessa forma; porém, se implantarmos essa forma sobre um material determinado,
fazendo um cubo de ferro, de madeira ou de vidro, o objeto resultante já não terá somente as características e
propriedades da forma cúbica que o molda, mas também a do material, ferro, madeira ou vidro, em que essa
forma se talha. V. René Guénon, La Rigue de la Quantité et les Signes des Tempos, Paris, Gallimard, 1945,
Chap. I e II, e Mário Ferreira dos Santos, A Sabedoria da Unidade, São Paulo, Matese, 1968, Cap. VII.
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Dito isto, cabe-nos agora perguntar: uma vez assumida, em princípio, essa tarefa, quais
são os deveres que concretamente ela impõe ao intelectual? Noutros termos: como o intelectual
tem de traduzir em atos morais, na prática, o seu compromisso com a representação coerente?
Que é que precisamente cabe ao intelectual fazer, e que o diferencia dos demais seres humanos,
cujo compromisso com a razão não é tão direto quanto o dele?
Ao discutirmos deveres morais, devemos ater-nos estritamente aos critérios tradicionais
legados pelas religiões e pela sabedoria universal, evitando todo improviso subjetivo, porque
decretar deveres incumbe somente a Deus, e interpretá-los não incumbe a nenhum homem em
particular, porém, ao consenso universal dos sábios 2. O esforço individual de interpretação deve
vir somente depois, quando, fixados aos critérios gerais, se trate de aplicá-los e viabilizá-los para a
situação particular, concreta e vivida onde há de se dar, na prática, o cumprimento desses
deveres. Portanto, nas linhas que se seguem, procuramos apoiar-nos o mais possível no consenso
universal da filosofia moral – de Aristóteles até hoje –, contornando os detalhes incertos e as
questões disputadas.
Para todo homem, existem dois tipos de deveres: o dever religioso e o dever de estado. O dever
religioso emana da pura e simples natureza humana, e é portanto universal e igual para todos.
Ninguém, sob pretexto nenhum, pode furtar-se a ele, porque seria uma revolta contra a natureza
das coisas, uma revolta contra o real, um real que fez de nós criaturas finitas, tributárias, portanto,
de uma fonte infinita; que fez de nós seres causados, e não causas de nós próprios; e tributários,
portanto, de uma causa.
Pode-se dividir o dever religioso em dois tipos, conforme seja de religião natural ou de
religião revelada. O termo “religião revelada” designa cada religião em particular, trazida aos
homens numa certa data por um profeta ou mensageiro em particular, com a explicitação de um
determinado corpo de ritos e deveres. A obediência à religião revelada incumbe, obviamente,
somente àqueles a quem ela tenha sido revelada; povos que desconheceram o Cristianismo ou o
Islam não estão obrigados a cumprir os deveres cristãos ou islâmicos.
Mas a religião natural incumbe, sem exceção, a todos seres humanos. Todo ser dotado de
racionalidade, toda alma pensante e falante, tem, por força de sua própria capacidade para o ato
da significação, da conceituação e do juízo, o dever estrito de inteligir-se a si mesma como
subjetividade autoconsciente, cuja existência dá testemunho de uma realidade espiritual que
transcende a toda fenomenalidade sensível; têm, portanto, a obrigação de saber que o mundo
sensível não é tudo; que, para além da experiência imediata e habitual, existe o mundo da
2
A existência de um consenso universal da filosofia moral é contestada pelas correntes relativistas. Apoiando-se,
sobretudo, nas constatações dos antropólogos (p. ex., Ruth Benedict, Padrões de Cultura, trad. Alberto
Candeias, Lisboa, Livros do Brasil, s/d) que demonstram uma diversidade ao menos aparente nas instituições e
códigos morais dos vários povos, elas crêem poder afirmar que não existe moral universal, mas sim apenas
morais locais, divergentes e mesmo inconciliáveis. Por este raciocínio, chegou-se mesmo a negar a existência de
uma “natureza humana” universal e fixa, e postular uma plasticidade total do ser humano, indefinidamente
amoldável às condições sociais e ecológicas. Creio já haver resenhado suficientemente os argumentos contra
essa falácia, em meu artigo “Moralidade sem Deus?”, publicado no Jornal da Tarde de São Paulo em 27 fev.
1982 e reproduzido em Fronteiras da Tradição (São Paulo, Nova Stella, 1987). Mas cabe acrescentar que, se até
os anos 50 as pesquisas antropológicas tendiam de fato a confirmar a hipótese relativista – não só no domínio
moral, mas até mesmo no da percepção e do pensamento lógico –, a continuação posterior dessas pesquisas veio
a reforçar a hipótese contrária. No tempo de Benedict e Malinovski a antropologia podia somente trazer à luz
esta ou aquela sociedade primitiva, isoladamente; e os casos particulares, pelo fato mesmo de serem particulares,
mostrava antes diferenças do que semelhanças. Mais tarde, a antropologia ultrapassou essa fase de
comparativismo microscópico e pôde se levantar ao nível das grandes comparações entre centenas de culturas ao
mesmo tempo; e aí começaram a aparecer as semelhanças e as regularidades. No últimos Encontros de
Royaumont presidido por Edgar Morin e Massimo Piatelli-Palmerini, a tendência geral era para sublinhar as
“constantes do espírito humano”, isto é, para restaurar a noção da unidade da natureza humana por cima de
todas as variações e diferenças locais enfatizadas pelos antropólogos da geração anterior. Ademais, desde a
formulação, por F. Schuon, R. Guénon e outros, da perspectiva da “unidade transcendente das religiões”, não há
mais desculpa para não enxergar a unidade por três das diversidades locais e históricas.
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significação, o mundo da razão-de-ser. Toda alma, portanto, tem o dever de se voltar para o mundo
da razão-de-ser; e, ao voltar-se para ele, descobrir assim, o senso do sagrado, do imenso, do
excelso e maravilhoso.
Note-se bem que nos referimos a um sentimento de espanto e reverência perante o
mundo do Sentido da significação, o mundo da razão-de-ser, o qual é um mundo que o homem
não vê com os sentidos corporais, e que ele só descobre mediante a auto-revelação da sua própria
subjetividade pensante. Não se trata, absolutamente, da sensação de espanto e de terror perante a
imensidão do universo, perante os fenômenos da natureza, por grandiosos que sejam, nem muito
menos perante os mistérios da psique, da noite, das emoções, da imaginação e do sonho, que vêm
apenas do fluxo automático da subjetividade intra-orgânica e semi-animal. Não se trata,
absolutamente, do terror perante o incompreensível, que é uma forma de terror ainda animal.
Muitas vezes, é claro, é o terror animal, o terror perante o poder da natureza visível ou perante o
poder das forças sutis da natureza que se agitam na noite, o que desperta o homem do seu sono
letárgico, e o põe a pensar. Os gregos chamavam, a este terror, thambos. A experiência mostra que
os animais compartilham do thambos; e a expressão corrente “terror pânico” provém do nome do
deus Pan, que é o chefe dos “elementais” ou jins, forças sutis da natureza, que influenciam as
plantas, os bichos e o nosso corpo; os jins também experimentam o thambos; aliás, parece que,
quanto mais descemos na escala biológica, ao menos dentro do reino dos mamíferos,
encontramos nos bichos uma expressão mais clara de espanto e terror. Nos animais nobres,
como o leão e o elefante, há geralmente um ar de certa tranquilidade; mas um terror permanente
agita o corpo do rato.
Quando nos referimos, portanto, ao senso do sagrado, não estamos falando de nada
disto, e sim do que poderíamos denominar “o senso do Sentido”. Não se trata do terror perante
o inexplicável, mas sim de um indescritível senso de gratidão total perante a antevisão de um
Sentido final que tudo explica, que tudo redime, que tudo justifica e tudo abarca. Não é nem um
senso de terror perante a escuridão, nem o deslumbramento paralisante perante uma luz que
cega. É o senso de devoção maravilhada perante a explicação perfeitamente satisfatória, perante a
Razão que transcende todas as razões, e cuja luz suave, comproporcionada à forma e à
esquemática humana, nos integra harmoniosamente na Inteligência divina, sem nos negar nem
nos destruir.
A este senso, o homem não chega mediante a observação da natureza, nem mediante
qualquer experiência corporalmente acessível, por mais grandiosa ou significativa que seja; só
chega mediante a autoconsciência da alma pensante, que descobre que dentro de si, nesta sua
frágil e insignificante operação de significar e de pensar, existe algo que transcende todo o
universo; que nela existe um saber e um poder que, não podendo ser causado pelo homem
mesmo, tem de vir de uma Inteligência que se dá a nós e que, dentro de nós, é a nossa melhor
parte, e é mais do que nós mesmos 3.
Todo ser humano, sem distinção, na medida em que seja capaz de articular frases, tem o
dever de ter esta autoconsciência e de ao menos vislumbrar, dentro, mas por cima dele, o Sentido
Supremo 4. Este dever é coextensivo com a capacidade mesma de pensar, e por isto mesmo
nenhum ser humano capaz de razão e de linguagem pode furtar-se a ele.
É, portanto, através do que há de mais caracteristicamente humano no homem, que o
homem concebe a existência de Deus. A palavra Deus, Theos, significa “aquele que vê” ou, mais
precisamente, aquele que tem visão intelectual, compreensão, inteligência, saber, porque o verbo
de onde sai a palavra Theos quer dizer tudo isto, e não “visão” no sentido sensível ou psíquico. É,
através da sua consciência subjetiva que o homem vislumbra a Oniconsciência, a Onissapiência.
Esta é, por sua vez, o Logos, a Inteligência divina. O Logos é representado como Homem Universal,
3
A expressão é de Paul Claudel.
4
Cf., a este respeito, F. Schuon, “Consequences découlant du mystère de la subjectivite”, em Du Divin à
l’Humain, Paris, Le Courrier du Livre, 1981.
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Jesus, Buda, Mohammed, e é universal o consenso de que somente pelo Logos se chega a Deus.
Jesus é explícito: “Ninguém vai ao Pai senão por mim”. Também Mohammed: “Ninguém
encontra Deus se primeiro não encontrou seu Profeta” 5.
Portanto, a consciência da consciência, que é a única forma de conceber a
Oniconsciência, é, sempre foi, e sempre será o único caminho para Deus. Não há outro. A rejeição
deste caminho, que é a rejeição da consciência inteligente como dever precípuo do homem, atira
o indivíduo num confronto espiritualmente mortal com a Força separada do Sentido.
Porque o absurdo, o estranho, o destrutivo, consiste justamente numa factualidade
exterior que não tem medida comum conosco. O mais terrível que pode acontecer a um homem
é ser forçado desde fora a engolir uma verdade cujo pressentimento e cujo similar ele não
encontra dentro da sua própria alma: é ser forçado a admitir uma Verdade que por dentro ele não
reconhece. Ora, graças ao milagre da consciência, o homem possui dentro de si o similar e o
pressentimento da Inteligência divina; e por isto o encontro com o Logos, com o Mensageiro,
Cristo, Buda ou o Profeta, tem sempre o sabor de um feliz reencontro, da redescoberta de um
bem familiar esquecido e longamente desejado. Mas, inversamente, não há, em nós, um similar da
Onipotência divina. Em nossa alma e nosso ser, o sinal da nossa Onipotência divina não é outro
senão a nossa impotência, a nossa nulidade. Por isto é que Deus nos ordena a conhecê-lo desde
dentro da nossa consciência, onde se dá o encontro com o Profeta interior, com o Cristo interior,
e não no confronto cego e suicida com a Força que sustena o Real externo, pois neste caso a
Presença divina ou se furtará, na melhor das hipóteses, ao olhar humano, por Misericórdia, ou,
inversamente, será vivenciada como fatalidade tirânica, compressiva, absurda e arrasadora. Buscar
Deus na natureza, nos sentidos, na “energia”, na experiência sensível ou psíquica, na
grandiosidade ou beleza externa, é cair no culto ininteligente de uma Presença avassaladora, a
qual já declarou, em todas as religiões reveladas, que não consente de maneira alguma que o
homem entre por este caminho, e sim somente pela porta do Logos. Por isto diz o Cristo: “Eu sou
a porta” e “Eu sou o caminho” 6.
A rejeição do caminho do Logos é a via diabólica, que, recusando-se ao esforço de
interioridade inteligente, desafia a Onipotência, pedindo que esta se manifeste de maneira
sensorialmente ou psiquicamente “convincente”. É a via de uma alma que deseja Deus, mas não
aceita o caminho suave que o próprio Deus lhe ofereceu; que não deseja a liberdade da
autoconsciência, mas a imposição de uma força exterior que a obrigue a crer e a obedecer. Ora,
esta força não poderia então manifestar-se senão sob a forma de Cólera, e a Cólera manifesta-se,
precisamente, rejeitando o homem para longe, cegando a consciência, e fazendo o homem
afundar cada vez mais na ignorância, no pecado e no crime. Este é o caminho da alteridade, no
qual Deus surge como o totalmente Outro (ganz Ändere, a que se refere Rodolfo Otto). Quando
vemos que, no nosso tempo, os estudiosos “científicos” da religião chegaram a definir Deus
como sendo essencialmente o ganz Ändere, aquilo que não tem nenhuma medida comum com o
homem, vemos que estamos numa época onde se chegou a ver a ausência de Deus como a única
5
Sobre o conceito de Homem Universal, v. René Guénon, Le Symbolisme de la Croix, Paris, Véga, 1931 (réed.
1984), Chap. II; Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, New York, Crossroad, 1981, Chap. V; ambos
baseados amplamente em ’Abd ak-Karim al-Jîlî, De l’Homme Universal. Extraits du livre “Al-Insân al-Kâmil”,
traduits de l’arabe et commentés per Titus Burckhardt, Paris, Dervy-Livre, 1975.
6
Dante, procurando sair da “selva selvaggia”, tenta três caminhos sucessivos, onde é barrado por uma pantera,
um leão e uma loba, após o que encontra Virgílio, que lhe recomenda outro caminho que, sem passar pela selva,
o levará ao “diletoso monte” que é “princípio e ocasião de toda alegria” (Inferno, I, vv. 76-91). As três feras
representam a impossibilidade de o homem sair da selva de sua confusão sem o auxílio do Cristo, o qual é
representado pelo “monte”, de vez que Monte é, precisamente, um dos Nomes de Cristo. Cf. Fray Luis de León,
De los Nombres de Cristo.
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presença divina. “De todos os homens, aqueles que estão mais longe de Deus são aqueles que
mais desmedidamente afirmam a sua Incomparabilidade” disse o shêikh Ahmed El-’Alawy 7.
Insistimos nesse ponto, aparentemente afastando-nos do nosso assunto, justamente para
mostrar que não há outro caminho senão o da inteligência autoconsciente. Fora da
autoconsciência, – isto é, na natureza e nos fatos, – o homem enxerga apenas a sombra de Deus,
dizia S. Boaventura; mas, dentro da alma, na autoconsciência, se encontra a Sua imagem, que é o
Logos. E, no coração do Logos, a Suprema Realidade 8. Não havendo, portanto, outro caminho, a
noção da presença do Sentido na autoconsciência é assim um dever universal, um dever de
religião natural, e não apenas um preceito específico desta ou daquela religião revelada em
particular.
Então, retomando a linha mestra do nosso argumento, o primeiro dever de todo e
qualquer homem é cumprir a religião natural; e, nesta, o primeiro dever é descobrir e amar o
Sentido na autoconsciência. Evidentemente este não é o único dever da religião natural. O
segundo dever é constatar que o mesmo Sentido existe na autoconsciência alheia e que, portanto,
a vida humana é sagrada e o nosso próximo deve ser amado. Nisto consiste, na verdade, toda Lei
e os profetas: “Ama a Deus sobre todas as coisas e ama a teu próximo como a ti mesmo”.
Todo homem tem o dever de saber disto no ato mesmo em que aprende a falar e
consegue raciocinar, e antes mesmo de escutar qualquer pregação religiosa que seja. Tem,
também, o dever de tirar disto as conclusões mais óbvias quanto a seu comportamento na
sociedade humana. O núcleo comum de todos os códigos morais da humanidade em todas as
épocas e lugares, por trás de uma infindável variedade de acentuações, detalhes e formas, não é
outra coisa senão a manifestação desse núcleo da religião natural 9.
Mas, além da religião natural, todo homem em todo lugar da terra foi alcançado, em
alguma época, pela mensagem de alguma religião revelada, que traduz e adapta, que revigora e
refundamenta os deveres universais numa forma renovada desejada por Deus para aquele povo
naquela circunstância em particular.
Os deveres da religião revelada dividem-se, por sua vez, como dizíamos, em deveres
religiosos e deveres de estado. Os deveres religiosos são aqueles que são prescritos a todos os
membros de uma comunidade, sem distinção. Consistem, sumariamente, na obediência uniforme
7
Cf. Martin Lings, A Sufi Saint of the Twentieth Century. Shaikh Ahmad al-‘Alawi. His Spiritual Heritage and
Legacy, 2nd. ed., London, Allen & Unwin, 1971, p. 211. – Ainda a propósito deste tópico, pode-se observar que o
rebelde não sujeita Deus enquanto tal, o conceito de um Ser ou Supra-Ser, mas sim a manifestação concreta e
humana de Deus na pessoa do Mensageiro e Intercessor. Um erro paralelo e complementar a este é o de tomar o
diabo como “inimigo de Deus” – levando mesmo esta comparação ao ponto de um perigoso dualismo –, quando
na verdade Deus, sendo Absoluto, não tem inimigo, não tem contrário. O diabo é definido claramente, na
teologia cristã e islâmica, como inimigo do homem, o que quer dizer, por um lado, inimigo da espécie humana,
e, por outro, obviamente, inimigo do Homem Universal, em quem essa espécia se realiza e personifica
concretamente. O diabo é uma criatura e portanto um “servidor”, tanto quanto o homem. A tradição islâmica
específica é um jinn, uma força sutil, não propriamente espiritual, mas psíquica, de vez que perdeu se grau e
poder espiritual ao rebelar-se. Assim, ele pode influenciar no homem a alma e o corpo, mas não o núcleo
essencial do Intelecto, que é a presença, em nós, do Homem Universal; em sermos cristãos, o coração de Jesus
no coração do nosso coração.
8
Cf. São Boaventura, Itinerário da Mente para Deus, em Obras Escolhidas, org. Luis A. De Boni, Porto Alegre,
Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1983, Cap. II e III.
9
Voltamos aqui ao tema da unidade da moral por trás da diversidade aparente das morais regionais. Uma
interessante comparação, baseada na profusão de textos de todas as religiões conhecidas, encontra-se em Whital
N. Perry, A Treasury of Traditional Wisdom, Bedfont (Middlesex), Perennial Books, 1971. O exame do material
coligido por Perry numa pesquisa que se estendeu por quatro décadas mostrará que, se as religiões divergem
quanto aos atos particulares e concretos, como aliás não poderia deixar de ser dada a diversidade das condições
locais, culturais, sociais e históricas, estão de acordo, fundamentalmente, em tudo quanto se refere aos aspectos
mais essenciais da moral, como a virtude e o vício, o pecado e o sacrifício, o Juízo Final e a salvação ou
danação, os deveres e a vocação, a busca da perfeição, etc.
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a um corpo mínimo de ritos e leis. No Cristianismo, este corpo abrange os dez mandamentos
ditados a Moisés, mais os cinco mandamentos da Igreja: assistir à missa nos domingos e dias
santos; jejuar nos dias prescritos; abster-se, nesses dias, de trabalhos servis e forenses; pagar o
dízimo conforme o costume local; confessar-se e comungar ao menos uma vez por ano. Este
mínimo é o que o homem tem de fazer para ser católico. No Islam os deveres são cinco: declarar
em voz alta a sua fé, de que só há um Deus e Mohammed é seu mensageiro; fazer jejum no mês
do Ramadã; rezar cinco vezes por dia; parar a esmola obrigatória uma vez por ano; tendo meios,
fazer a peregrinação à Meca. Com isto, e nada mais que isto, um homem é mussulmano.
Além dos deveres explícitos e universais, cada religião admite também práticas supra-
rogatórias, isto é, oferecidas voluntariamente a Deus. Destas práticas, algumas são formais, como
jejuns, retiros, litanias, etc. Outras são informais, como as boas intenções, os gestos caritativos e
de boa-vontade, etc. Mas, não fazendo parte dos deveres explícitos, não temos por que discuti-las
aqui. Fazem parte daquilo que os católicos chamam “devoção”, em contradistinção à
“obrigação”. Em todas as religiões, o supra-rogatório está condicionado ao obrigatório.
O obrigatório é obrigatório para todos. Na verdade são ritos e leis que não fazem outra
coisa senão relembrar, revigorar, segundo uma nova modalidade simbólica sacramentada por
Deus, o dever inicial que era o da religião natural.
Vem, em seguida, o dever de estado. Este conceito também é universal. Significa que os
deveres dos homens variam conforme o lugar que ocupam na sociedade. Um é o dever da
criança, outro o dos jovens solteiros, outro o da mãe, outro o do pai. Um é o dever do
governante, outro o do governado; um é o dever do agricultor, outro o do militar, outro o do
homem de letras, outro o do trabalhador braçal; um é o dever do rico, outro o do pobre; um, o
do homem vigoroso, outro, o do débil; um, o do poderoso, outro, o do inerme; um, o do velho,
outro, o do moço; um, o do varão, outro, o da mulher. E assim por diante. O dever de estado
varia conforme a idade, o sexo, a profissão, a riqueza, a saúde. Varia também conforme a
situação. Um é o dever na paz; outro, na guerra; um, na abundância coletiva, outro, na penúria;
um, na estabilidade, outro, na confusão; um, na claridade de uma cultura florescente, outro, na
decadência e na barbárie. Em suma, o dever de estado não é senão a especificação, a
discriminação, a infindável subdivisão do amor a Deus e ao próximo na variedade indefinida das
formas e modos da existência social e individual, coletiva e familiar, grupal e profissional, e assim
por diante.
Em todas as religiões que conhecemos, existe uma codificação parcial dos deveres de
estado, feita pela própria tradição ou autoridade religiosa. Todas as religiões definem a função e o
dever do pai de família, do governante, do médico, da criança, da mãe, do pobre e de todos os
tipos humanos possíveis.
Sobrepondo-se ao dever religioso em geral, o dever de estado não somente especifica e
particulariza, mas também lhe dá meios e instrumentos de inserir-se na vida real do corpo social,
de ganhar realidade e concreção na existência diária, de viabilizar-se nas condições deste mundo.
Sem o dever de estado, o cumprimento da religião se deteria a um nível de uma genérica
declaração de intenções, sem plena eficácia, sem vigência na trama efetiva da convivência entre
seres humanos reais.
O homem que se furte ao cumprimento do seu dever de estado mostra a sua
insinceridade; mostra que aceita a religião enquanto dever genérico, mas não enquanto tarefa
explícita que deva modelar a sua vida e os seus atos individuais e concretos. O pai que se recusa a
sustentar seus filhos; o militar que foge ao combate; o jovem que recusa amparar o velho; o rico
que recusa o socorro ao pobre e o homem-de-letras que foge aos deveres da vida intelectual
comprovam, neste ato, ou melhor, nesta omissão, – que é uma forma de ato, particularmente
eloquente –, que só aceitam a religião no papel e para os outros, mas que não aceitam nenhuma
interferência dela no seu comportamento individual.
Uma vez esclarecido esse ponto, podemos perguntar: a vida intelectual é um dever
religioso ou dever de estado?
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Para responder, temos de retornar à distinção feita no capítulo anterior, entre a vida
intelectual latu sensu e a vida intelectual strictu sensu. Enquanto mera posse de racionalidade,
enquanto mero dom de auconsciência pensante, a vida intelectual é, como dissemos, o primeiro
dever do homem, pois a diferença específica entre o homem e o animal é pensar. Neste sentido, é
um dever religioso e não um dever de estado. Mas todo homem, neste sentido, é um intelectual,
saiba ou não, queira ou não, pelo simples fato de ser homem, porque participa, querendo ou não,
sabendo ou não, do mundo da linguagem, do pensamento, da inteligência e da cultura,
participação sem a qual não poderia nem mesmo existir ou comunicar-se com seus semelhantes.
Porém, existe uma vida intelectual strictu sensu. Ela consiste na vida do homem que é capaz
de exercer, e que de fato exerce, voluntariamente, as ações próprias não apenas da inteligência
enquanto tal, mas da inteligência culta. Isto é, não somente pensa, mas procura aprimorar
voluntariamente o seu pensar, utilizando-se dos instrumentos que a cultura põe à sua disposição;
não apenas se comunica, mas procura comunicar-se segundo as maneiras melhores e consagradas
na cultura em que viva; não somente intelige e interpreta o que se passa ao seu redor, mas
socorre-se dos meios de interpretação legados pela sua cultura; não apenas sabe, mas procura
informar-se nas fontes legadas pelo passado para saber mais; isto é, em suma, não é apenas uma
inteligência individual colocada sozinha e desesperada em face da natureza, sem nenhum outro
recurso senão os rudimentos de fala e pensamento necessários à subsistência material, mas é uma
inteligência que se socorre, que se arma, na medida do possível, com todo o arsenal da cultura.
Neste sentido, o número de intelectuais é evidentemente mínimo em todas as culturas. A
diferença entre o intelectual e os outros homens reside, sumariamente, em que os meios de
cultura a que este recorre se esgotam, se limitam ao nível daquilo que lhes é necessário, de um
lado para cumprir o dever religioso e, de outro, para assegurar a sua subsistência material; ao
passo que os meios de que se socorre o intelectual vão muito além disso. Basta, portanto, que um
homem busque e se socorra de meios de cultura que ultrapassem o necessário a sua subsistência e
ao cumprimento do dever religioso mínimo, para que ele seja, então, um intelectual strictu sensu, e
que tenha de assumir, portanto, os deveres específicos da vida intelectual, enquanto deveres de
estado, que atestarão plenamente a sinceridade da sua fé declarada.
Ora, o dever de estado é definido segundo as condições reais de existência do indivíduo.
Destas condições, algumas são externas e casuais, como por exemplo, riqueza ou pobreza, grupo
social de origem, saúde ou doença, talento inato ou debilidade, etc. Outras são internas e
constitutivas, como por exemplo, o caráter e a vocação. Evidentemente a vida intelectual é um
dever de estado de tipo vocacional, que não se define por condições externas nem somáticas. Um
homem não toma a vida intelectual por ser gordo ou preto, varão ou fêmea, rico ou japonês, e
sim porque tem, em grau maior ou menor, uma vocação, porque sente dentro de si uma apelo,
uma urgência, um desejo, uma sede, e esta sede é que o faz, justamente, buscar algo mais do que
o necessário para a subsistência material e para o cumprimento do dever religioso mínimo.
Que é, então, a vocação, e como reconhecê-la?
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Todo mundo sabe que a palavra vocação significa “apelo” ou “chamado”. Mas é
justamente aí que começa o problema, porque, na vida diária, recebemos do mundo exterior, do
nosso organismo, da nossa memória, dos nossos reflexos, do ambiente psíquico em que vivemos,
etc., uma multidão de chamados. Sobretudo na sociedade moderna, onde os homens vivem sob o
impacto multilateral da propaganda e das comunicações de massa, e saltitam entre vários
ambientes e ocupações sem qualquer conexão orgânica entre si, a natureza desses chamados é
francamente aleatória; e, vencidas as barreiras da autoconsciência, o homem pode acabar
assimilando e vivenciando como autenticamente seu, ao menos por momentos, algum impulso
totalmente casual que lhe venha de anúncios lidos por acaso, de trechos de filmes, de conversas
entreouvidas na rua, e de mil e uma fontes que nada têm a ver com a sua pessoa, com os seus
valores e com os seus objetivos. A rapidez com que mudam os gostos e as modas, e com que os
novos ídolos despertam paixões e apagam instantaneamente os ídolos anteriores é a
demonstração mais eloquente do estado de fragmentação atomística, onde a personalidade se
esfarela numa poeira de “instantes”, cada qual parecendo absorver a personalidade total.
É lógico que, nessa situação, se o homem pode, num momento, assumir como
verdadeiramente seu algo que não lhe diz respeito, ele também pode, no instante seguinte, sentir-
se vazio e incapaz de perceber o que quer. A atomização da atenção em resposta à estimulação
randômica do meio ambiente tem como contrapartida a incapacidade de conscientizar uma
preferência, a incapacidade de escolher e querer. Se, por um lado, observamos jovens dedicando-
se entusiasticamente, passionalmente, a atividades que no fundo lhes são indiferentes, que estão
na moda por um dia, e deixarão de estar no dia seguinte, por outro lado, e por isto mesmo,
observamos homens maduros, de quarenta ou cinquenta anos, com uma indecisão de
adolescentes, perguntando-se que caminho seguir, consultando astrólogos e videntes em busca de
uma vocação e esperando algum sinal dos céus, capaz de tirá-los dessa indigesta mistura de
passividade e agitação, de angústia e de tédio em que se transformou o vazio da sua existência.
É normal, também, que nessa situação, todos os sinais e chamamentos se neutralizem uns
aos outros; que a quantidade de estimulação produza um reflexo de apatetada paralisia; e que, em
decorrência, o homem espere, para sair disto, um sinal que se destaque pela sua força de impacto,
e que o sacuda e desperte. E é evidente, então, que ele se abrirá a uma sugestionabilidade cada
vez maior, passando a medir o valor do sinal pela sua força de impacto emocional; e este critério
quantitativo o tornará cada vez mais presa da estimulação sensorial do ambiente, quer seja casual,
quer manipulada por agentes interessados em canalizar as energias e ações desse indivíduo para
algum empreendimento comercial, político ou pseudomístico, indiferente a qualquer cogitação de
sua vocação verdadeira.
Incapacitado de julgar, o homem espera um susto ou milagre. É claro que o milagre não
acontecerá, pela simples razão de que pedir um milagre para substituir o esforço de inteligência,
após ter abdicado da inteligência que é o primeiro e maior dos milagres, é um ato de desafio, é
uma blasfêmia, é algo que repele, na base, a inspiração do Espírito Santo, já que este age, em
primeiríssimo lugar, através de nossa própria inteligência, dom do Espírito que não admite recusa
10
.
A vocação não é algo que deva ser, habitualmente, revelado por um milagre; o milagre só
acontece no caso das vocações excelsas e, mesmo nessas, não é regra, mas exceção. O milagre da
inteligência é suficiente para discernir a quase totalidade das vocações possíveis. E de fato, a
10
V. Fronteiras da Tradição, op. cit., Cap. IV. – Mesmo para a decisão de itens muito mais importantes que o da
vocação pessoal, a confiança em milagres, visões e experiências interiores como critérios decisivos só pode levar
a erro, e é condenada por todas as tradições. Cf. F. Schuon, “Criteriologíe élémentaire des apparítions célestes”,
em l’Ésotérisme comune Princípe et comme Voie, Paris, Dervy-Livres, 1978, e tb. Mgr. Albert Farges, Les
Phénomènes Mystíques distingués de leurs Contefaçons Humaine et Diaboliques, Paris, Maison de la Bonne
Presse, 1920.
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inteligência o faz, e o faz sem dificuldade. “Às faculdades que o Criador nos distribui em graus
diferentes, Ele acrescenta um instinto preciso que nos indica seu emprego. O sentido do gosto, se
não está alterado por alguma doença ou por maus hábitos, distingue os alimentos sãos dos que
não o estão. O mesmo acontece com o olfato. Deus não poderia ter menos cuidado pela alma do
que pelo corpo.” Estas palavras do filósofo espanhol Jaime Balmes11 mostram que o
reconhecimento da vocação é apenas a consciência de uma disposição natural, não um susto
perante uma intervenção sobrenatural. De fato, é tão natural ao homem saber em linhas gerais o
que deseja fazer, quanto é natural a um bicho saber o que deseja comer.
Mas é aí que se dá a encrenca, porque para saber o que quer comer, o animal precisa ter
visto ou cheirado várias comidas. Não apenas uma, arbitrariamente imposta por um tratador que
desconheça seus gosto e seus costumes; nem uma multidão infindável capaz de desorientá-lo. O
homem, como o bicho, tem de escolher dentro de um repertório suficientemente amplo para
abarcar as possibilidades fundamentais da existência humana, e suficientemente restrito para
poder ser abarcado por um olhar de mediano alcance. A oferta maciça de milhões de
possibilidades de vida, fabricadas, multiplicadas e glamurizadas pelo cinema e pela tevê, fará com
que um menino pobre pense em tornar-se um extraterrestre antes de poder sequer ser sapateiro
ou soldado; fará com que profissões raríssimas e de exceção, como a de espião ou astronauta, se
tornem arquétipos que modelam as aspirações de milhões de meninos que por sua constituição e
meio social não têm nada em comum com essas profissões; fará com que ocupações
insignificantes e inúteis como a de passista de escola-de-samba ou de jogador de futebol,
adquiram um valor e um peso incompatíveis com a sua realidade e ofensivos à dignidade da
pessoa humana. E tudo isto servirá ainda mais para desorientar, para atomizar a atenção, para
fazer com que milhões de pessoas se atirem na maré vertiginosa da existência guiando-se por
miragens e loucuras, entregando-se com furiosa devoção à busca de objetivos sem sentido,
torrando vidas e vidas na fogueira universal de todas as quimeras que fascinam os imbecis e os
miseráveis.
Ninguém, mas absolutamente ninguém, na sociedade atual, escapa dessa estimulação
desnorteante. Ela leva, em última análise, à ruptura total entre sentido subjetivo e sentido
objetivo: aquilo em que o indivíduo declara ou crê encontrar a realização da sua vida, e onde
mostra, ao menos momentaneamente, uma plenitude de satisfação, é algo que, visto de fora, visto
por outro, ou visto por ele mesmo numa fase posterior de sua vida, surge como algo de tedioso e
oco, que não faz sentido nenhum, nem serve para absolutamente nada, nem traz felicidade
alguma.
É patente que, sob essas condições, o “instinto” de que fala Balmes esteja totalmente
atrofiado. Aliás, mesmo instintos mais simples e elementares o estão. É normal, por exemplo que
um homem saiba, mais ou menos, a cada instante, se está doente ou são. Mas a percepção do
tônus vital parece que se ofuscou. O homem encara o seu corpo já não como o lugar em que lhe
é natural estar, como forma e expressão da sua própria alma, mas como objeto estranho, sobre
cujo estado seu sentimento já não lhe dá informação alguma, e do qual nada de certo se pode
saber sem perguntar a um especialista ou às máquinas de check-up.
A um homem tão atordoado que já não sabe se está forte ou fraco, como perguntar o que
sente ou o que sabe sobre a sua vocação, que é algo muito mais sutil?
O meio para sair dessa indiferenciação compressiva e estupidificante é, nada mais, nada
menos, que inverter totalmente a colocação da questão, ou seja, deixar de buscar o sinal da
vocação numa estimulação forte qualquer recebida de fora ou do jogo indefinido das
casualidades, e buscá-la, ao contrário, numa decisão livre, tomada pela inteligência, sustentada com
base em sinais óbvios e patentes – talvez sem nenhuma eloquência emotiva e sem nenhum sinal
de qualquer eleição sobrenatural – e em seguida aceita pela vontade livre (isto é, baseada em
valores e princípios universais e não numa intensidade emotiva qualquer), e reforçada, enfim, não
11
Jaime Balmes, O Critério, trad. João Vieira, São Paulo, Logos, 1957, p. 27.
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pela auto-sugestão nem por qualquer tipo de estimulação emocional barata, e sim pela dedicação
constante, humile e silenciosa.
Non in convulsione Dominus. O Senhor não está na turbulência. A intensidade do sentir, onde
tantos hoje procuram um sinal para guiá-los, é precisamente o lugar de onde Deus se ausenta,
porque detesta toda forma de agitação e algazarra.
É no silêncio e na modéstia de um simples reconhecimento dos fatos que se encontra,
gratuito, o sinal da vocação. Ele ali espera, paciente e mudo, enquanto o homem o procura por
toda a parte esperando reconhecê-lo sob a forma de um apelo encantador ou surpreendente.
A ciência tradicional do “discernimento dos espíritos” que ensina a distinguir entre as
inspirações diabólicas e angélicas, divinas e humanas, espirituais e animais, internas e externas dos
nossos pensamentos, impulsos e imaginações, e que é um capítulo belíssimo de uma psicologia
hoje esquecida, pode vir aqui em nosso socorro 12.
1º. Quando formamos um desejo ou projeto, devemos examinar o princípio, o meio e o
fim: de onde veio o desejo, por que meios há de realizar-se, e qual a sua meta e propósito. O
desejo bom tem de ser bom nesses três aspectos, não só em um ou em dois.
2º. Os impulsos que vêm de fonte má tendem a ocultar sua origem: brotam não se sabe
de onde, e repentinamente avassalam a alma, simulando uma convicção total e plena ou ao
menos suficiente; ao passo que as inspirações que vêm realmente de cima têm geralmente um
começo mais modesto; não prometem prazeres ou emoções espetaculares; entram pela
inteligência, não pelo “subconsciente”; entram não com o brilho de um sol repentino e
deslumbrante, mas com a luz suave de um amanhecer que se faz aos poucos, e cujo brilho vai
crescendo à medida que o acompanhamos, e se confirma com o passar do tempo.
3º. O impulso demoníaco, uma vez atendido, volta à estaca zero e requer novo
atendimento, ou mesmo nos deixa mais insatisfeitos do que antes; ao passo que o impulso de
cima, fraco no início, dá recompensas cada vez maiores à medida que o atendemos por esforço
voluntário. O impulso divino é paciente e argumenta; vence nossas resistências com razões de
esperança e de prudência; ao passo que o impulso demoníaco ou passa por cima de todas as
nossas razões ou produz uma massa confusa e inextricável de argumentos desordenados.
Numa vocação legítima, portanto, o gosto pode não ser forte, no início. Mas, à medida
que avançamos, com cautela e modéstia, aumenta o gosto, ao mesmo tempo que a consciência
clara de um sentido objetivo e a recompensa interior palpável e segura. Mais ainda, a vocação
autêntica, sendo, como é, uma expressão do espírito, traz sempre em seu bojo a afirmação de
valores objetivos e universais. Portanto, o atendimento da vocação autêntica, mediante o trabalho
humilde e paciente, trará, com o tempo, uma confiança cada vez mais firme nos valores e
princípios que sustentam a existência humana. Ao passo que, inversamente, a vocação falsa nos
fará desprezar ou esquecer esses princípios e valores.
Que cada um, agora, se pergunte:
1º. Tem ou não tem a vocação da vida intelectual em sentido estrito, tal como a definimos
no parágrafo anterior? Forma ou não forma a ocupação intelectual esse amálgama inextricável de
gosto subjetivo, de afirmação e confiança progressiva nos valores objetivos e de certeza
progressiva de uma aquisição interior crescentemente palpável e sólida?
2º. Inversamente: acreditaria encontrar mais gosto e prazer, mais confiança nos princípios
e valores universais, mais consciência de aquisição interior, caso se limitasse a estudar o
estritamente necessário para as práticas mínimas da religião e para a sua própria subsistência
material?
12
V. Johannes Bökmann, La Psicología Moral. Sus Faceas y Metodos desde los Orígenes hasta nuestros Días,
trad. Ismael Antich, Barcelona, Herder, 1967, e Ad. Tanquerey, Compêndio de Teologia Ascética e Mística, trad.
João Ferreira Fontes, 4ª. ed., Porto, Apostulado da Imprensa, 1948.
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§3
Mas aqueles que responderam “sim” à segunda pergunta não têm por que continuar
prestando atenção no que vamos dizer a seguir. Ao declararem que a vida intelectual não lhes é
um dever de estado, reconheceram implicitamente que não têm nenhum direito a ela, ou, pelo
menos, que não têm o direito de pretender desfrutar das suas vantagens, quando não aceitam as
obrigações que lhe são inerentes.
De fato, as éticas tradicionais, além da divisão entre deveres religiosos e deveres de
estado, fazem também uma divisão entre as duas maneiras pelas quais uma atividade pode ser útil
ao homem, e esta divisão é o critério pelo qual o homem pode ou não pretender e reivindicar
perante Deus o direito de dedicar-se a ela: ou uma atividade é útil para a salvação da alma e a vida
no outro mundo, ou é útil para o sustento do corpo e a vida neste mundo. Tertium non datur. Se
uma atividade não serve nem para o outro mundo, nem para este mundo, então não serve para
absolutamente nada. Isto não quer dizer, por certo, que neste caso ela tenha de ser, sempre e
necessariamente, má e condenável. Pode ser simplesmente indiferente, irrelevante. E uma coisa
irrelevante nunca pode ser reivindicada como um direito. Por exemplo, tem o homem o direito de
jogar cartas ou mascar chicletes? Evidentemente não, porque o direito de um só existe quando
impõe a um outro um dever correspondente 13. O filho tem direito de ser sustentado pelo pai
porque o pai tem o dever de sustentar o filho. A nação tem o direito de que o dinheiro dos
impostos seja empregado em seus benefício porque o governante tem o dever de empregar em
benefício da nação o dinheiro dos impostos. Se o pai não tivesse dever nenhum de sustentar o
filho e o governante não tivesse dever nenhum de administrar bem o dinheiro público, que
sentido teria proclamar o direito do filho a um sustento que ninguém tem o dever de lhe dar ou o
direito da nação a uma boa administração que ninguém tem o dever de realizar? As noções de
direito e dever só são distintas logicamente, só são distintas no pensamento, mas, na realidade,
são uma só e mesma coisa, vista de dois lados. Isto resulta em que, se proclamamos o direito de
um homem jogar cartas ou mascar chicletes, impomos necessariamente a algum outro a
obrigação de jogar cartas com ele ou de fabricar chicletes, o que é manifestamente absurdo. O
inútil e o irrelevante, não tendo significação moral nem jurídica, nunca podem pretender ser
direitos, porque reconhecer a um o direito ao inútil é impor ao outro o dever de fazer o inútil,
isto é, impor-lhe uma tarefa absurda. E não pode haver maior tirania do que impor a um homem
uma tarefa absurda. Hoje em dia, acredita-se, com a maior facilidade, e sem o mais mínimo
exame, que coisas como dançar, fazer surf, bronzear-se na praia, ver televisão, são direitos, sem
notar que a proclamação do irrelevante como um direito perverte na base a noção de direito,
embaralha as consciências e prepara o homem para aceitar insensivelmente, passivamente,
sonambulicamente, toda sorte de tiranias, com a condição de que o tirano lhe dê uma quota de
futilidades para ele consumir e tomar como direitos. É o fenômeno do “Estado espetáculo”, que
não passa de uma versão atualizada e tecnológica do panem et circenses.
É nisto que chegamos quando reconhecemos que um homem tem direito a desfrutar dos
benefícios da vida intelectual sem assumi-la como um dever de estado, e tão somente por
diversão ou, como se diz hoje, “por lazer”. O direito à cultura é inegável; mas o fato de que uns
homens o tenham impõe necessariamente a outros homens o dever de fornecê-la. E o dever de
fornecer diversões pertence apenas aos palhaços. A palavra “histrião”, que hoje significa em geral
todo sujeito dado a autodemonstrações espetaculosas, tem uma origem significativa: “Histriões –
informa-nos Santo Isidoro de Sevilha – eram aqueles que, vestidos com roupas femininas,
imitavam, no teatro, os gestos das mulheres impudicas.” Reconhecer que um homem possa ter
direito à cultura simplesmente “por lazer” equivale, necessariamente, a fazer dos professores,
histriões, das universidades, circos, e da transmissão de cultura, um show de travestis. Na verdade,
13
A correlação direito-dever é explicada com muita clareza em Simone Weil, L’Enracinement. Prélude à une
Declaration des Devoirs envers l’Être Humain, Paris, Gallimard.
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§4
Mas é preciso não confundir, de maneira alguma dever de estado e tarefa profissional. A
profissão é um modo e um aspecto do dever de estado, mas este vai muito além do âmbito
definido pelas obrigações profissionais. A profissão é uma responsabilidade que o homem
assume perante a sociedade e pelo cumprimento da qual esta lhe paga com o seu sustento
material. O que define a profissão é, precisamente, o compromisso de recompensa material
explícito que a sociedade assume para com um homem; e, mais claro ainda, toda obrigação
profissional cessa por completo no instante onde o homem não recebe o seu pagamento, ou no
instante em que este pagamento é insuficiente ou injusto. Portanto, a obrigação profissional é
essencialmente livre e condicionada a um pagamento justo. Nenhum homem tem o dever de
continuar trabalhando quando não lhe pagam o proporcional a seu trabalho. Mesmo o escravo é,
neste sentido, um tanto profissional, porque escravo tem direito a alimento, moradia e proteção.
Suponhamos que um patrão, honesto e generoso, se visse de repente sem dinheiro para pagar
seus empregados. Teriam estes o dever profissional de continuar trabalhando de graça? Mais
ainda: teriam os escravos de um proprietário de terras o “dever profissional” de continuar
trabalhando para ele quando ele, caído em desgraça, estivesse privado dos meios de dar-lhes
abrigo e sustento material? Não, em ambos os casos. Trabalhar de graça, trabalhar sem
recompensa material, não é e não pode ser nunca um dever profissional.
Vejamos, agora: teria um filho o dever de amar, respeitar e amparar o pai, quando este,
por doença ou velhice, ou qualquer outro motivo, não tivesse mais os meios de sustentá-lo? Teria
um governante o dever de sacrificar-se por seu povo quando este, empobrecido pela guerra ou
pela catástrofe, não tivesse os meios de pagar-lhe o devido imposto? Teria a esposa o dever de
amar e seguir o marido quando este, doente ou caído em desgraça, não tivesse os meios de
sustentá-la? Teria o intelectual, o homem-de letras, o dever de buscar e proclamar a verdade,
ainda que ninguém estivesse disposto a pagá-lo por isto, e ainda que todos tivessem antes a
disposição de humilhá-lo, de persegui-lo e de reduzi-lo à miséria por sua insistência em dizer a
verdade? Absolutamente sim, em todos os quatro casos. O dever de filho, o dever de governante,
o dever de esposa, o dever de homem-de-letras não são deveres profissionais: são deveres de
estado, indiferentes à condição profissional.
É evidente que, em certas circunstâncias, o dever de estado e a ocupação profissional
coincidem, ou melhor, se superpõem, se encavalam, sem no entanto jamais chegar a fundir-se por
completo. Por exemplo, um governante pode e deve receber do povo os meios de subsistência
para que possa governar. O homem-de-letras pode, e em certos casos deve, receber o sustento do
Estado ou da sociedade. Mas a diferença é que tanto o governante quanto o homem-de-letras
devem, igualmente, renunciar a esse pagamento e prestar gratuitamente seus serviços se
dispuserem de outros meios de sustento. A história nos dá exemplos contundentes. O homem
mais poderoso dos últimos quinhentos anos, Napoleão Bonaparte, o qual, com suas guerras de
conquista, chegou mesmo a ser durante algum tempo a única fonte de riquezas com que a França
podia contar, sempre viveu de maneira mais frugal e, exceto no dia da coroação, nunca o viram
vestido senão com suas velhas e surradas roupas de oficial de artilharia, ao passo que seus irmãos,
pessoas inúteis e medíocres a quem ele fizera reis e príncipes em seu projeto de fundar uma
dinastia, viveram no luxo e na riqueza, sem prestar qualquer serviço relevante aos povos que
governavam. Outro caso famoso é o de Spinoza, que, convidado a lecionar nas mais importantes
cátedras universitárias da Europa, sempre recusou, preferindo comunicar-se com o público tão-
somente através de livros, que não lhe rendiam nada, e continuar a obter o sustento de sua
modesta loja de ótica. Entre nós, D. Pedro I notabilizou-se pelo extremo rigor com que cortava
as despesas de sua casa, para não onerar os cofres públicos. E assim por diante. É claro que
exemplos da atitude contrária também não faltam: há aqueles que fazem da vida pública ou da
vida intelectual não apenas uma profissão, mas uma indústria e um comércio, dirigindo
unilateralmente pelo critério do lucro. Cada qual sabe em quais exemplos é que deve mirar-se.
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1. A filosofia é aquilo que seus fundadores almejaram, não aquilo que os os sucessores
fizeram dela. Só em Sócrates, Platão e Aristóteles você poderá obter uma imagem do que é
filosofia.
Explicação. Não é isso o que lhe dirão os professores, mas eles mentem ou não sabem o
que falam. Eles aplicam à filosofia a máxima hegeliana de que “a essência está naquilo em que a
coisa se torna”, isto é, de que somente o desenvolvimento completo da coisa no tempo revela o
que ela é; Hegel diz que não podemos conhecer uma árvore olhando só a semente, o que é
perfeitamente certo; mas, aplicando este princípio à filosofia, Hegel, e junto com ele quase todos
os professores universitários principalmente os brasileiros, crêem que a filosofia progride em
relação à sua autoconsciência e à sua plena realização; logo, que somente pelo conhecimento da
sua forma atual e mais recente podemos ter uma idéia certa do que ela é. Daí que o nosso ensino
universitário de filosofia dê mais ênfase ao pensamento recente do que ao medieval e antigo. Mas
o princípio de Hegel só pode ser aplicado a seres cujo desenvolvimento esteja predeterminado na
semente como a forma da árvore está predeterminada na semente. Uma semente de maçã pode
germinar ou não, a macieira pode crescer até seu último desenvolvimento ou ser cortada a meio
caminho, derrubada por um raio, comida por uma praga, ou seja, pode variar na extensão e
quantidade da sua auto-realização, mas não pode em hipótese alguma mudar de qualidade
essencial e tornar-se, por exemplo, semente de jaboticabeira, de limoeiro, de amendoeira. Quer
dizer: a natureza do seu curso está predeterminada, só o que não está predeterminado é se esse
curso chegará ou não ao seu pleno desenvolvimento. O mesmo não se dá com os projetos
humanos. Uma vez que você decidiu juntar dinheiro para construir uma casa, nada o obriga a
seguir em frente até a consecução final do projeto; a qualquer momento você pode mudar de
idéia, investir o dinheiro num negócio ou gastá-lo numa viagem; e mesmo uma vez começada a
construção, você pode vender a casa inacabada e comprar, por exemplo, um carro, ou decidir
torrar o dinheiro em corridas de cavalos. Um conhecido meu, tendo fundado uma companhia de
construções, acabou por fazê-la render muito mais no ramo das demolições. Isso quer dizer que o
desenvolvimento de um projeto humano não tem de seguir o curso determinado no início. Ele
pode mudar de direção, mudar de natureza, alterar-se, transformar-se até mesmo numa negação
ou numa realização totalmente alheia ao projeto inicial. Mais ainda: a realização de um
desenvolvimento natural, de uma planta, por exemplo, segue o curso de causas naturais regulares
( salvo intervenção humana ); sua consecução não tem margem de erro maior do que o
probabilismo geral da natureza e pode, portanto, uma vez conhecidas as condições, ser prevista
com razoável exatidão. O mesmo não se dá com os projetos humanos, onde se introduzem as
dúvidas, os erros, os acasos, o esquecimento, a volubilidade, a traição, os motivos inconscientes,
as mudanças de interesses, etc. etc. etc. Logo, o estado presente da filosofia não reflete
necessariamente um desenvolvimento que contenha em si as fases anteriores. Isto só seria
possível na hipótese absurda de que cada filósofo atual tivesse absorvido e transcendido todas as
etapas da filosofia anterior. O fato é que em qualquer etapa da História o estado da filosofia
reflete não uma absorção ou uma superação, mas frequentemente um esquecimento, uma perda,
que depois obriga a trabalhosas retomadas; o número de escolas filosóficas com o prefixo neo é
uma prova disso: neo-escolástica, neopositivismo, neokantismo, etc. Cada um desses nomes
pressupõe que algo foi perdido e tem de ser reencontrado. Ademais, a filosofia frequentemente
muda de assunto: acontecem coisas novas e elas passam a constituir novos temas da filosofia,
vindo de fora da filosofia. Por exemplo, o Cristianismo. Depois de Cristo os filósofos tiveram de
começar a raciocinar sobre temas cristãos, que estavam totalmente ausentes da idéia originária de
filosofia. Isto quer dizer que o desenvolvimento da filosofia não é um processo unitário e
orgânico como o de uma árvore, mas um processo irregular, inorgânico, com enxertos estranhos e
1
Anotação do dia 22 de dezembro de 1995 em Seminarium - Páginas de um Diário Filosófico, inédito.
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rupturas imprevistas, e é por isto mesmo que surgem novas filosofias diferentes das anteriores —
tão diferentes, às vezes, que não há como compará-las nem mesmo por oposição. Logo, o estado
presente da filosofia não tem nexo de continuidade orgânica com a idéia originária da filosofia, à
qual, no entanto, permanece ligado por algum tipo de referência ideal ou normativa. Portanto, é
só o conhecimento do projeto originário, considerado independentemente de seus
desenvolvimentos posteriores, que pode nos dar uma idéia do que é filosofia, de vez que muitos
desses desenvolvimentos podem ser fortuitos e nada ter a ver com o projeto originário. O
professor de filosofia que recheia as cabeças dos alunos com os debates da filosofia recente antes
de lhes dar uma dose maciça de Platão e Aristóteles está lhes impedindo o acesso ao
conhecimento da filosofia. Infelizmente, essa é a regra geral nas nossas escolas universitárias.
2. Você ouvirá dizer que existem “questões filosóficas eternas” a que os filósofos
oferecem respostas e mais respostas sem chegar a nenhum acordo apreciável. Não acredite.
3. Você também ouvirá dizer que existem pelo menos “questões filosóficas”, um
conjunto de tópicos de interesse especificamente filosófico. Não acredite.
Explicação. A filosofia se interessa pelo conjunto do conhecimento humano e não por isto
ou aquilo em especial. A filosofia é um determinado tratamento que se dá às questões, e não um
conjunto determinado de questões.
4. Você ouvirá ainda que a filosofia busca criar uma concepção geral do universo, da vida,
etc. Não acredite.
Explicação. A filosofia jamais inventou uma única concepção desse tipo. O que ela fez foi
discutir, aprofundar e aperfeiçoar as concepções existentes, provenientes da religião, do senso
comum, da tradição, das ideologias vigentes, etc. Inventar cosmovisões não é tarefa de filósofo.
5. Talvez você ouça dizer que a filosofia está em crise. Não acredite.
Explicação. Não existe na filosofia um estado normal do qual ela pudesse sair para entrar em
crise. A filosofia esteve sempre em crise, ou antes ela é a crise mesma. Só aparece filosofia quando
as crenças comuns foram abaladas, quando a cosmovisão entra em descrédito ou já não é mais
compreendida. A filosofia entra em cena para mudar a cosmovisão ou restaurá-la, conforme o
caso. O que acontece hoje é que alguns acadêmicos, a maioria deles, na verdade, particularmente
no Brasil, confundem filosofia e cosmovisão, e vendo que suas cosmovisões pessoais ou grupais
( marxismo, evolucionismo, cientificismo, etc. ) entraram em crise, acreditam projetivamente estar
vendo crise na filosofia. Um verdadeiro filósofo diria: “A cosmovisão da classe intelectual entrou
em crise; logo, é hora para começar uma boa filosofia.” Ora, aqueles que falam de crise da
filosofia são justamente os mais incapazes de transcender criticamente suas cosmovisões abaladas
e criar uma verdadeira filosofia. Estando, por isto, hors de la philosophie, eles não têm autoridade
para avaliar o estado dela.
6. Não julgue as filosofias antigas pelo que lhe dizem os seus professores. Julgue os seus
professores pelo nível da filosofia antiga.
Explicação. 1º - Se a realização ficou melhor que o projeto, é algo que só podemos avaliar
pelo projeto, e é sinal de que o projeto era melhor do que parecia no começo: longe de condená-
lo, ela o exalta. Se ficou pior, então o projeto é a lei que a condena. Nos dois casos, é o antigo que
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julga o novo, e não ao contrário. 2º - Morto não fala, é verdade: porém é mais fácil eles nos
influenciarem do que nós a eles. O que Platão ou Aristóteles pensaram é algo que pesa sobre nós.
O que pensamos deles é algo que, para eles, não fede nem cheira. Logo, mais importa saber o que
eles pensariam de nós do que o que nós pensamos deles.
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A verdadeira humildade não possui e não tolera o senso de ridículo; os santos aceitam o
ridículo sem amá-lo nem temê-lo, com a mesma naturalidade indiferente com que a matéria
inflamável aceita o fogo e a matéria pesante cai. O mártir não ama as chamas, nem a espada do
carrasco: ama a Deus, e aceita as consequências que a contigência terrestre lhe impõe. O senso de
ridículo seria um estorvo, apenas. Ele contraria o princípio do vacare Deo.
A humildade também não poderia jamais tomar o homem como objeto de orgulho ou de
escárnio; quando muito, de gracejo afetuoso e inocente; e nos mais das vezes nem disto, porém
de compaixão e lágrimas. Indiferente ao ridículo que os outros vêem nele, o homem humilde é
cego para o ridículo que se mostra nele2.
Quando a humildade é por sua vez objeto de riso (″Não és tu, acaso, o Rei dos Judeus?″),
ela sabe que aquilo que move os homens a rir não é humano: é animalesco - o espírito da horda
em camaradagem festiva e sangrenta - ou diabólico: o riso da vitória desigual das potências
cósmicas sobre a impotência humana. É preciso todo o artificialismo pedante de uma época sem
coração para tornar objeto de riso o fato de que alguns cristãos da Idade Média vissem algo de
diabólico no gênero cômico3. Pois rir de um homem não é, acaso, recusar-se a compreendê-lo
1 Ensaio em forma de apostila para o curso Introdução à Vida Intelectual, em 11 de agosto de 1987.
2 Certas frases de cortante ironia proferidas por um S. Domingos ou um S. Bernardo parecem desmentir isso, para
não falar de satíricos católicos fervorosos como Chesterton e Belloc. É preciso estar apenas ciente de que a sátira
feita por um religioso nunca visa nem à humanidade nem ao indivíduo humano, porém a idéias, instituições e
poderes, ante os quais a compaixão é descabida.
3 O romance de Humberto Eco, O Nome da Rosa, gira em torno de uma suposta Segunda Parte da Poética de
Aristóteles, que trataria do gênero cômico, e a que alguns monges teriam dado sumiço por julgá-la diabólica. O sr.
Eco não vem ao caso, porque é apenas alguém empenhado em fazer do mais requintado arsenal da pesquisa
científica um instrumento a serviço do mundanismo afetado e diletante. Mas quem conheça algo da função da
paródia nas iniciações não pode deixar de admirar a clarividência desses monges, se é que existiram. A comicidade de
um Gurdjieff ou de um Idries Shah é por vezes irresistível: suas vítmias baixam ao inferno entre gargalhadas. Não é
impossível que algum monge esclarecido já previsse isso no século X ou XII, porque uma antiga tradição hebraica já
falava do potencial ″satânico″ contido nas obras de Aristóteles: sua dialética, afirmava essa tradição, continha um
″sentido secreto″ que só seria desvendado e utilizado no fim dos tempos, pelo Anticristo; e o papel que hoje a
″lógica matemática″ desempenha na destruição da racionalidade humana leva a crer que essa profecia já se realizou;
não se vê por quê uma outra parte da obra de Aristóteles não poderia conter também algo de potencialmente nocivo
por sua possibilidade de uso perverso, sem prejuízo de seu valor intrínseco. Sobre a função diabólica do cômico, v.
René Guénon, Le Règne de la Quantité et les Signes de Temps, Chap. XXXIX, ″La Grande Parodie ou l`espiritualité à
rebours″ e Frithjof Schoun, ″Le demiurge dans la mythologie nord-americaine″, em Logique et Transcendance. A
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″desde dentro″, como o requer a compaixão, e insistir em enxergá-lo apenas pelo lado da
eventual incongruência exterior?4 Quem poderia ter ensinado os homens a escarnecer de seus
semelhantes, e a temer o escárnio deles, senão o Diabo? E sob quê pretexto sublime, senão o de
reprimir o orgulho? E com quê consequência, senão a de produzir um orgulho mais interiorizado,
cerebral, premeditado e astuto?
O fato de que a nossa época tenha feito do senso do ridículo um sinal de inteligência
alerta já diz tudo sobre o espírito que a move: é preciso esquecer o essencial, para poder viver
atento a todas as mais mínimas casualidades que possam dar margem ao ridículo, seja para
explorá-lo nos outros ou para impedir que o explorem em nós. Que jamais a concentração no
essencial nos entregue distraídos nas garras de algum gozador. Movido pelo senso do ridículo, o
espírito moderno concede às coincidências e casualidades do momento o monopólio da atenção.
O essencial torna-se distante e inverossímil5. Temendo que o vacare Deo o leve a cair, distraído,
num poço, como Tales, o intelectual moderno põe todas as suas forças à disposição de um
empenho tenaz de escapar ao escárnio da velhinha que ria de Tales. O intelectual moderno já não
é um oráculo do eterno: é uma antena do século, atenta às mais mínimas variações da energia
ambiente, das correntes psíquicas, da moda e do diz-que-diz-que. Ele não pensa: responde
somente a estímulos6.
tradição sobre a dialética é mencionada por Guénon em Formes Traditionelles et Cycles Cosmiques, pp. 111-112. Sobre a
lógica matemática e a nova linguística, v. Marina Scriabine, “Contre-initiation et contre-tradition”, em René Guénon et
l`Actualité e la Pensée Traditionelle. Actes du Colloque International de Cerisy-la-Salle, 13-20 juillet 1973. Há coisas de
que o sr. Eco e seus admiradores nem de longe poderiam suspeitar. Os ″intelectuais″ profanos não deveriam mexer
em certos assuntos.
4 “Signalons ... l`insensibilité qui accompagne d`ordinaire le rire... L`indifférence est son milieu naturel... Je ne veux pas dire que nous ne
puissons rire d`une personne qui vous inspire de la pitié, ou même de l`affection: seulement alors, pour quelques instants, il faudra oublier
cette affection, faire taire cette pitié... Le comique exige donc, pour produire tout son effect, quelque chose comme une anesthésie
momentanée du couer”. Henry Bergson, Le Rire, Chap. I, §1. Cf. tb. Arthur Koestler, The Act of Creation, Part. I, Chap.
I/II.
5 Frithjof Schuon observa em algum lugar que o ambiente físico das cidades modernas parace ter sido concebido
com a finalidade de tornar Deus inverossímil. Diríamos o mesmo do seu ambiente linguístico e cultural.
6 É um inversão do ″ensimesmamiento″ que Ortega y Gasset colocava na raiz da vida intelectual. O intelectual
moderno, tal como os macacos de Ortega, vive ″en perpetua alteración″. V. ″Ensimesmamiento y alteración″, em
Obras completas, Vol. 7.
7 Esta sensibilidade que a música popular explora até o ponto da imbecilização, é documentada pelos próprios
gramáticos, com seus eternos debates de ortografia; não é preciso dizer que os ″concretistas″ a elevam a preceitos e
norma estética.
8O romance brasileiro tem centenas de personagens desse tipo: o Amanuense Belmiro, o joão Valério de Graciliano
Ramos, o Gonzaga de Sá de Lima Barreto, etc
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Mas, como o sentimentalismo originário que a ironia encobria não é nunca mais expresso,
a ironia acaba por substituí-lo: toda e qualquer ironia torna-se sinal de afeto. É assim que, jogando
habilmente com as intenções subentendidas que os fracos desejam ver neles, os mais cínicos e
brutais terminam por ser vistos como ″grandes figuras humanas″ - expressão da moda, com que a
alma prostituída dos nossos jovens letrados condecora todos aqueles que sabem judiar deles com
uma certa classe.
9Tanto que Nélson Rodrigues acabou por ser visto como autor sério - o que revela menos sobre Nelson Rodrigues
do que sobre a mentalidade do público letrado que o acolhe.
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1
Aula do Seminário de Filosofia, outubro de 1996.
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Prática e não teórica. Acidental, portanto e não essencial. O homem necessita da fé por causa do acidente
inicial da queda, não por uma deficiência intrínseca da sua inteligência. Ora, quando a preeminência da fé
sobre a inteligência se torna um dogma, adquirindo portanto a força de uma afirmação teórica, ela afirma
implicitamente a deficiência essencial e não somente acidental da inteligência humana e assim separa
infinitamente o homem de Deus. Faz a obra do diabo.
É claro que também faz a obra do diabo quem, pretendendo enaltecer a inteligência, omita
subrepticiamente o requisito prático da fé. Não vejo como sustentar a separação rígida entre “razão natural” e
“sabedoria infusa”. Essa separação só se justifica com relação ao exercício da razão natural, não com relação ao
conhecimento dos seus princípios: se posso captar intuitivamente os princípios da razão, apenas exercitar às
cegas e mecanicamente o encadeamento silogístico, é porque a chamada razão natural já é, em sua essência,
sabedoria infusa e, portanto, sobrenatural. A prova do que digo é que, rejeitada a fé, a percepção mesma desses
princípios se debilita e acaba por se dissolver numa sopa de ambigüidades, produzindo essas imaginações
monstruosas que hoje recebem no mundo acadêmico o nome de filosofia.
O pensador crente, ao rejeitar a essência sobrenatural da razão natural, gera os Deleuzes, os Derridas,
os Foucaults.
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Sumário
1. Definição............................................................................................................................1
2. Não existe inteligência artificial ........................................................................................3
3. Evidência e certeza.............................................................................................................6
4. Inteligência e vontade.........................................................................................................7
5. Pequenas e grandes verdades.............................................................................................8
6. Demissão dos intelectuais..................................................................................................9
7. “Opinião própria” e “julgamento autônomo”...................................................................11
9. A autoconsciência, terra natal da verdade........................................................................13
10. Os graus de certeza.........................................................................................................13
11. A topografia da ignorância.............................................................................................15
1. DEFINIÇÃO
Inteligência, no sentido em que aqui emprego a palavra, no sentido que tem etimologicamente
e no sentido em que se usava no tempo em que as palavras tinham sentido, não quer dizer a
habilidade de resolver problemas, a habilidade matemática, a imaginação visual, a aptidão
musical ou qualquer outro tipo de habilidade em especial. Quer dizer, da maneira mais geral e
abrangente, a capacidade de apreender a verdade. A inteligência não consiste nem mesmo
em pensar. Quando pensamos, mas o nosso pensamento não capta propriamente o que é
verdade naquilo que pensa, então o que está em ação nesse pensar não é propriamente a
inteligência, no rigor do termo, mas apenas o desejo frustrado de inteligir ou mesmo o puro
automatismo de um pensar ininteligente. O pensar e o inteligir são atividades completamente
distintas. A prova disto é que muitas vezes você pensa, pensa, e não intelige nada, e outras
vezes intelige sem ter pensado, numa súbita fulguração intuitiva.
A inteligência é um órgão — digamos assim: um órgão — que só serve para isto: captar a
verdade. Às vezes ela entra em operação através do pensamento, às vezes através da
imaginação ou do sentimento, e às vezes entra diretamente, num ato intelectivo — ou
intuitivo — instantâneo, no qual você capta alguma coisa sem uma preparação e sem uma
forma representativa em especial que sirva de canal à intelecção. Outras vezes há uma longa
preparação através do pensamento, da imaginação e da memória, e no fim você não capta
coisíssima nenhuma: cumpridos os atos representativos, a intelecção a que se dirigiam falha
por completo; dados os meios, a finalidade não se realiza. A inteligência está na realização da
finalidade, e não na natureza dos meios empregados. E se a finalidade dos meios de
conhecimento é conhecer, e se o conhecimento só é conhecimento em sentido pleno se
conhece a verdade, então a definição de inteligência é: a potência de conhecer a verdade por
qualquer meio que seja.
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O conceito da verdade, e as discussões todas que suscita, podem ficar para outra ocasião. Por
enquanto, e tomando provisoriamente a palavra “verdade” em seu sentido vulgar de
coincidência entre fato e idéia, bastam estas distinções elementares para nos levarem a
perceber o quanto é errônea a direção tomada pela atual teoria das “inteligências múltiplas”,
que dissolve a noção mesma de inteligência numa coleção de habilidades — que vão desde o
raciocínio matemático até a destreza física e o traquejo social —, sem notar que todas estas
capacidades e outras quantas similares são meios e que a inteligência não é um meio, mas o
ato mesmo, o resultado a que tendem esses meios e para o qual nenhum deles é por si — nem
a soma deles todos é por si — condição suficiente. A teoria das inteligências múltiplas surgiu
como uma reação contra a teoria do QI, que por sua vez identificava a inteligência,
exclusivamente, com a habilidade verbal, matemática e imaginativo-espacial. Mas é um caso
típico de substituição de uma falsidade por outra. Sejam poucas ou muitas as habilidades com
que se identifica a inteligência, o erro é o mesmo: confundir a inteligência com os
instrumentos de que se serve.
Essa confusão acontece porque a maior parte das pessoas se conhece muito mal, mesmo nas
coisas práticas e nos aspectos mais óbvios da vida. Quanto maior não seria sua dificuldade de
captar a diferença sutil entre os atos representativos e a inteligência! Vendo sempre a
inteligência atuar através do pensamento, da memória, da imaginação, do sentimento,
confundem portanto o canal com aquilo que por ele passa, o veículo com o passageiro, e
tomam por “inteligência” os meros atos mentais.
Esse equívoco acabou por ser oficializado e legitimado pela educação. De modo geral, todas
as formas de ensino visam a incrementar as habilidades em que a inteligência se apóia, como
a memória, a imaginação, o raciocínio etc., e não dão a menor importância a inteligência
enquanto tal. O fato é que a entrada em cena dessas outras faculdades não acarreta
necessariamente a da inteligência. Podemos desenvolver bastante o raciocínio verbal, ou a
imaginação visual, ou a memória, ou a aptidão artística, sem que haja efetivamente uma
inteligência dirigindo os seus passos — a prova é que várias dessas aptidões são mais
desenvolvidas em certos retardados mentais do que no comum das pessoas. Aliás, se é através
do raciocínio que às vezes inteligimos, também é através dele que nos enganamos. Do mesmo
modo, às vezes a imaginação nos leva à compreensão real de alguma coisa, mas às vezes nos
leva para longe da verdade. O desenvolvimento destas faculdades, imaginação, memória,
raciocínio etc., não implica portanto necessariamente o da inteligência; também é verdade o
vice-versa: que a inteligência é independente desses outros processos, que lhe servem de
canais, instrumentos e ocasiões e nada mais. Mas o vice-versa não deve ser tomado em
sentido rigoroso, pois uma inteligência resolutamente decidida a descobrir a verdade sobre
alguma coisa acaba em geral encontrando os canais mentais pelos quais chegar ao seu
objetivo, ou seja, ela desenvolve as “faculdades” de que necessita. Sem excluir portanto que
haja casos de inteligências mesmo superiores mas carentes de meios ou canais específicos de
atuação, digo que são exceções e raridades que antes confirmam a regra: o desenvolvimento
dos meios não implica o da inteligência, o da inteligência leva quase que necessariamente à
conquista dos meios.
Se definimos a inteligência como a capacidade humana de captar o que é verdade, também
entendemos que o essencial do ser humano, aquilo que o diferencia dos animais, não é o
pensamento, não é a razão, nem uma imaginação ou memória excepcionalmente
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desenvolvidas, embora tudo isto haja efetivamente no ser humano. Pois pensar, um macaco
também pensa: ele completa um silogismo e até encadeia silogismos num raciocínio
relativamente perfeito. Imaginação, até um gato possui: os gatos sonham. Por este caminho
não encontraremos a diferença específica humana, aquilo que nos torna homens em vez de
bichos. E, se é importante arraigar o homem no reino animal, para não fazer dele um ser
angélico sem pés no solo, também é importante saber distingui-lo de uma tartaruga ou de um
molusco por alguma diferença que não seja meramente quantitativa e acidental.
O que nos torna humanos é o fato de que tudo aquilo que imaginamos, raciocinamos,
recordamos, somos capazes de vê-lo como um conjunto e, com relação a este conjunto,
podemos dizer um sim ou um não, podemos dizer: “É verdadeiro”, ou: “É falso”. Somos
capazes de julgar a veracidade ou falsidade de tudo aquilo que a nossa própria mente vai
conhecendo ou produzindo, e isto não há animal que possa fazer.
Mas, dirá o velho Pilatos em nós, quid est Veritas? Cada um de nós é um juiz romano,
corrompido até a medula, a fazer de conta que não sabe aquilo que sabe perfeitamente bem. A
verdade da qual alegas nada saber, infausto Pôncio, a verdade é o quid — esse mesmo quid
que, se desconhecesses, não poderias usar como medida de aferição para o termo “verdade”.
Se pergunto quê é alguma coisa, se ignoro mesmo o que é alguma coisa, é porque a coisa que
se me oferece nesse instante não cumpre, não atende perfeitamente a condição exigida na
palavra quê — aquela consistência, aquela coesão do estar, do agir e do padecer, aquela
patência e sobretudo aquela fatalidade, aquele não-ser-de-outro-modo, aquela impositiva
ausência de perguntas — e da capacidade de fazer perguntas — que me sobrevém quando sei
o quê. Ecce veritas. É o que basta por enquanto, sem prejuízo de posteriores discussões e
aprofundamentos.
Hoje em dia, quando se fala de “inteligência artificial”, mais certo seria dizer pensamento
artificial, ou talvez imaginação artificial, porque uma determinada sequência de pensamentos,
um conjunto de operações da mente, pode ser imitado de várias maneiras. Um conjunto é
imitado, por exemplo, na escrita. A escrita é uma imitação gráfica de sons, que por sua vez
imitam idéias, que por sua vez imitam formas, funções e relações de coisas. A escrita foi a
primeira forma de pensamento artificial. Toda e qualquer forma de registro que o homem use
já é um tipo de pensamento artificial, uma vez que implica um código de conversões e
permutações, e neste sentido um programa de computador não é muito diferente, por
exemplo, de uma regra de jogo: como no jogo de xadrez, onde se concebe uma sequência de
operações com muitas alternativas, cristalizadas num determinado esquema que pode ser
imitado, repetido ou variado segundo um algoritmo básico. Existem muitas formas de
pensamento artificial, ou de imaginação artificial. Porém a inteligência, propriamente dita,
não tem como ser artificial. O pensamento artificial é essencialmente uma imitação de atos de
pensamento segundo a fórmula das suas sequências e combinações. Do mesmo modo
podemos imitar a imaginação e a memória, se em vez de utilizar uma correspondência
biunívoca entre signo e significado recorrermos a uma rede de correspondências analógicas.
Dá na mesma: em ambos os casos, trata-se de imitar um algoritmo, a fórmula de uma
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sequência ou rede de combinações, que por sua vez imitam as operações reais da mente.
Acontece que a inteligência não é uma “operação da mente”; ela é o nome que damos a uma
determinada qualidade do resultado dessas operações, pouco importando qual a faculdade
que as realizou ou qual o código empregado. É legítimo dizer que um indivíduo inteligiu
alguma coisa somente quando ele captou a verdade dessa coisa, seja pelo raciocínio, seja pela
imaginação ou seja lá pelo caminho que for. Até mesmo o sentimento intelige, quando ama o
que é verdadeiramente amável e odeia o que é verdadeiramente odioso: há uma inteligência
do sentimento, como há uma burrice do sentimento. A inteligência não reside na mente, mas
num certo tipo de relação entre o ato mental e o seu objeto, relação que denominamos
“veracidade” do conteúdo desse ato mental ( notem bem: veracidade do conteúdo, e não do
ato mesmo ).
Aqui alguém poderia objetar que, quando um ato de pensamento artificial chega a um
resultado verdadeiro, por exemplo quando um computador nos assegura que 2 + 2 = 4, este é
um ato de inteligência, uma vez que nos dá uma verdade. A diferença, aqui, é a seguinte: o
computador não intelige que 2 + 2 = 4, mas apenas realiza as operações que dão por resultado
4, segundo um programa ou algoritmo pré-estabelecido. Se ele for programado segundo a
regra de que 2 + 2 = 5, ele não somente dará sempre este resultado, mas ainda o generalizará
para todos os casos similares, segundo a regra 2a + 2a = 5a. A inteligência não consiste
somente em atinar com um resultado verdadeiro, mas em admitir esse resultado como
verdadeiro. Que significa “admitir”? Significa, primeiro, estar livre para preferir um resultado
falso ( um computador pode ser programado para preferir os resultados falsos num certo
número de ocasiões, mas sempre segundo um padrão pré-estabelecido ). Significa, em
segundo lugar, crer nesse resultado, isto é, assumir uma responsabilidade pessoal pela
afirmação dele e pelas consequências que dele derivem. A inteligência, neste sentido, só é
admissível em seres livres e responsáveis, e o primeiro ser livre e responsável que
conhecemos na escala dos viventes é o homem: nenhum ser abaixo dele possui inteligência, e
se há seres superiores ao homem é um problema que não nos interessa no momento e cuja
solução não interferiria no que estamos examinando aqui. A inteligência é a relação que se
estabelece entre o homem e a verdade, uma relação que só o homem tem com a verdade, e
que só tem no momento em que intelige e admite a verdade, já que ele pode tornar-se
ininteligente no instante seguinte, quando a esquece ou renega.
Neste sentido, o resultado da conta de 2 + 2 que aparece na tela do computador é uma
verdade, mas uma verdade que está no objeto e não ainda na inteligência; essa verdade está na
tela como a verdadeira estrutura mineralógica de uma pedra está na pedra ou como a
verdadeira fisiologia do animal está no animal: são verdades latentes, que jazem na
obscuridade do mundo objetivo aguardando o instante em que se atualizarão na inteligência
humana. Do mesmo modo, podemos pensar uma idéia verdadeira sem nos darmos conta de
que é verdadeira; neste caso, a verdade está no pensamento como a verdade da pedra está na
pedra: o ato de inteligência só se cumpre no instante em que percebemos e admitimos essa
verdade como verdade. A inteligência é, neste sentido, mais “interior” a nós do que o
pensamento. O pensamento, para nós, pode ser objeto. A inteligência, não. O ato de reflexão
pelo qual retornamos a um pensamento para examiná-lo ou julgá-lo é um outro pensamento,
de conteúdo diferente do primeiro. Mas a recordação de um ato de inteligência é o
mesmíssimo ato de inteligência, reforçado e revivificado, numa nova afirmação de si mesmo.
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Não posso recordar o conteúdo de um ato de intelecção sem inteligir novamente os mesmos
conteúdos, quase sempre com redobrada força de evidência.
Se definirmos o pensamento artificial como a imitação, por sinais eletrônicos, de certos atos
de pensamento, entenderemos que o pensamento artificial é pensamento, que a imitação de
pensamento é pensamento, pois pensar, afinal, é apenas usar sinais ou signos para representar
certos dados internos ou externos. Mas a imitação de inteligência não é inteligência, de vez
que só há inteligência no ato real pelo qual um ente humano real apreende realmente uma
verdade no instante em que a apreende; na imitação teríamos somente um sujeito hipotético
apreendendo hipoteticamente uma hipotética verdade, cuja veracidade ele não pode afirmar
senão hipoteticamente. Tudo isto seria apenas pensamento, não inteligência.
A inteligência somente se exerce perante uma situação real, concreta: o inteligir é concentrar
o foco da atenção numa evidência presente. Não se confunde com o meramente pensar uma
verdade, pois consiste em captar a verdade desse pensamento; nem se confunde com o
perceber uma cor, uma forma, pois consiste em apreender a veracidade dessa cor ou dessa
forma; nem com o recordar ou imaginar uma figura, pois consiste em assumir a veracidade
dessa recordação ou imaginação. Por isto não é possível imitar um ato de inteligência, pois
sua imitação não poderia ser outra coisa senão a cópia do pensamento, ou da recordação, ou
da imagem que lhe serviu de canal; mas, se esta cópia fosse acompanhada da captação de sua
veracidade, não seria uma cópia, e sim o ato mesmo, revivido em modo pleno; e, se
desacompanhado dessa captação, seria cópia do pensamento ou da imaginação apenas, e não
do ato de inteligência. E esse pensamento ou essa imaginação, se verdadeiros em seu
conteúdo, teriam apenas a verdade de um objeto, a verdade latente de uma pedra ou de um
cálculo exibido na tela do computador, aguardando ser iluminada pelo ato de inteligência que
a transformaria em verdade atual, efetiva, conhecida.
Um computador só pode julgar veracidade ou falsidade dentro de certos parâmetros que já
estejam no programa dele, ou seja, falsidade ou veracidade relativas a um código dado de
antemão, código esse que pode ser inteiramente convencional. Isto é, ele não julga a
veracidade, mas apenas a logicidade das conclusões, sem poder por si mesmo estabelecer
premissas ou princípios. Ora, a logicidade, a rigor, nada tem a ver com a veracidade, pois é
apenas uma relação entre proposições, e não a relação entre uma proposição e a experiência
real. Quando digo experiência real, não me refiro apenas à experiência cotidiana dos cinco
sentidos, mas ao campo total da experiência humana, onde a experiência científica feita
através de aparelhos e submetida a medições rigorosas se encaixa apenas como uma
modalidade entre uma infinidade de outras. A inteligência, quando julga veracidade ou
falsidade, pode fazê-lo em termos absolutos e incondicionais, independentemente dos
parâmetros usados e da referência a um ou outro campo determinado da experiência; e é
justamente este conhecimento incondicional da verdade incondicional que pode fundar em
seguida os parâmetros da condicionalidade ou relatividade, assim como legitimar
filosoficamente as divisões de campos de experiência, como por exemplo na delimitação das
esferas das várias ciências.
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3. EVIDÊNCIA E CERTEZA
O termo “intuição” designa em filosofia um conhecimento direto, uma intelecção
maximamente evidente ( o que não significa que deva ser confundida com o sentimento
subjetivo de certeza ). Exemplo de um ato de inteligência intuitiva: o fato de você estar aqui
neste momento é uma certeza absoluta e incondicional, o que não quer dizer que você não
possa duvidar dela, que você não possa até mesmo, por um jogo engenhoso de imaginação, ter
o sentimento da certeza de estar em outro lugar; significa apenas que você só duvidará dela e
só acreditará estar em outro lugar se você sentir o seu campo de experiência como dividido
em blocos estanques, se você perder o senso da unidade do campo da experiência, o que só
acontece na fantasia, no estado hipnótico ou na esquizofrenia. Quando sua inteligência admite
que você está aqui, você está admitindo como verdadeira uma determinada interpretação que
você faz do conjunto das informações que você tem neste momento, mas não só a respeito
deste momento e sim a respeito do encaixe entre ele e os momentos que o antecederam e os
que se seguirão. Você sabe que está aqui não só por causa das informações sensíveis que
recebe a respeito do ambiente, informações auditivas, tácteis, etc., mas também porque você
sabe que estas informações são coerentes com um passado ( você se lembra de ter vindo até
aqui ), são coerentes com um projeto de futuro, ou seja, com uma idéia que você tem a
respeito do propósito com que veio aqui; e tudo isto forma um sistema tão coeso, tão
inseparável, que a respeito deste conjunto você pronuncia o julgamento de que isto é verdade:
Você sabe que você está aqui. No entanto, não seria impensável que, estando aqui, você
imaginasse estar em outro lugar, e que até mesmo se persuadisse e, um tanto auto-
hipnoticamente, “sentisse” que está num outro lugar. Tudo isto pode ser produzido; porém, se
o senso da unidade do campo da sua experiência ainda funciona, algo lhe dirá: isto é falso.
Por que? Porque as informações que dizem que você está aqui vêm todas juntas; ao passo que
as que você está produzindo para dizer que está em outro lugar vêm por partes. Examine. O
quê imaginou você a respeito do outro lugar onde supõe estar? o som? o visual? Um ou outro?
Certamente não foram os dois exatamente no mesmo tempo e em proporção coerente. O
motivo, o antecedente temporal da sua presença ali, eram-lhe tão claros quanto as sensações
visuais ou auditivas? Não: mas as informações que você recebe aqui sobre sua presença vêm
todas coladas umas às outras. Você não pega primeiro o visual, depois o auditivo, depois o
táctil, ou seja, você não compõe este ambiente, ele lhe vem todo junto; e, embora você, por
abstração, possa momentaneamente prestar atenção mais a um aspecto que a outro, você sabe
e se recorda de que os aspectos preteridos estão aí presentes e podem ser atualizados na
percepção a qualquer momento, sem um trabalho interior de construção voluntária ( que você
lhe seria obrigatório de modo a completar a imagem do outro lugar suposto, onde
supostamente estaria ou se sentisse estar enquanto está de fato aqui ).
Esta certeza que você tem de estar aqui é o que se chama evidência. Uma evidência é um
conhecimento inegável, e até de certo modo indestrutível, porque, se você dissesse que não
está aqui, a quem você o diria? A quem está lá, ou a quem está aqui? O ato mesmo de você
dizer que não está aqui subentende que está.
Existe, em certos pensamentos que temos, esse caráter de veracidade, mas não sabemos
definir bem em quê ele consiste; sabemos apenas que conferimos esta veracidade a alguns
pensamentos e que a negamos a outros. Por exemplo, aqui negamos veracidade ao
pensamento de que não estamos aqui. É a esta faculdade — a que diz “sim” ou “não” aos
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4. INTELIGÊNCIA E VONTADE
A inteligência, em suma, é o senso da verdade, e uma inteligência apta, hábil ou forte é uma
inteligência que está acostumada a discernir a verdade e a falsidade em todas as circunstâncias
da vida, a aceitar a verdade e permanecer nela.
Com isto quero dizer que a inteligência não se esgota no mero aspecto cognitivo: se a
potência de conhecer a verdade constitui a semente da inteligência, esta semente só floresce
por iniciativa da vontade, e também pela vontade ela enfraquece e morre. Vontade significa o
exercício da liberdade. Quando você capta que algo é verdadeiro, significa que você aceitou
que aquilo é verdadeiro, e quando você capta que é falso, significa que você o rejeitou. Ora,
quem aceita ou rejeita não é uma faculdade em particular, mas é você inteiro, num ato de
vontade livre. Isto significa que a inteligência é indissoluvelmente a síntese de uma aptidão
cognitiva e de uma vontade de conhecer. Se houvesse um ensinamento voltado ao
desenvolvimento da inteligência, ele teria de, antes de mais nada, acostumar o aluno a desejar
a verdade em todas as circunstâncias e não fugir dela. Portanto o exercício da inteligência
possui necessariamente um lado ético, moral. Platão dizia: “Verdade conhecida é verdade
obedecida.”
Se a inteligência fosse uma faculdade puramente cognitiva, nada impediria que ela fosse
exercida igualmente bem pelos bons e pelos maus, pelos sinceros e pelos fingidos, pelos
honestos e pelos safados. Na realidade as coisas não se passam assim, e a desonestidade
interior produz necessariamente o enfraquecimento da inteligência, que acaba sendo
substituída por uma espécie de astúcia, de maldade engenhosa. A astúcia não consiste em
captar a verdade, mas em captar — sem dúvida com veracidade — qual a mentira mais
eficiente em cada ocasião. O astucioso é eficaz, mas está condenado a falhar ante situações
das quais não possa se safar mediante algum subterfúgio, que exijam um confronto com a
verdade. A conexão entre a inteligência e a bondade é reconhecida por todos os grandes
filósofos do passado, do mesmo modo que a correspondente ligação, do lado do objeto, entre
a verdade e o bem. Um mundo que nega essa conexão, que faz da inteligência uma faculdade
“neutra”, capaz de funcionar tão bem nos bons quanto nos maus como a respiração ou a
digestão, é um mundo francamente mau, que se orgulha da sua maldade como de uma
conquista da ciência, pela qual ele se eleva acima das civilizações do passado. Mauriac
notava, “nos seres decaídos, essa destreza para embelezar sua decadência. É a derradeira
enfermidade a que o homem pode chegar: quando sua sujeira o deslumbra como um
diamante”.
A conexão a que me refiro surge com peculiar clareza quando examinamos os seguintes fatos.
Com frequência nossas ações não são acompanhadas de palavras que as expliquem, nem
mesmo interiormente; ou seja, somos capazes de agir de determinadas maneiras, explicando
esses atos de maneiras exatamente inversas, precisamente porque as motivações verdadeiras,
permanecendo inexpressas e mudas, se furtam ao julgamento consciente. Isso faz com que,
pelo menos subconscientemente, alimentemos um discurso duplo. A partir do momento em
que você admite que uma coisa é verdadeira, mas procede, mesmo em segredo, mesmo
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interiormente, como se ela não o fosse, está mantendo um discurso duplo: num plano afirma
uma coisa, e noutro afirma outra coisa. A verdade tem poucas oportunidades de surgir para
nós com toda a clareza, e a mente humana funciona de uma forma que, quando você nega uma
determinada informação, o subconsciente suprime todas as informações análogas, de modo
que, quando você diz para si mesmo uma determinada mentira que lhe é conveniente, por
motivos práticos ou psicológicos, ou para se preservar de sentimentos desagradáveis, no
mesmo instante em que você suprime esta informação você suprime uma série de outras que
lhe seriam úteis e que você não tencionava suprimir. Por isto a mentira interior é sempre
danosa à inteligência: é um escotoma que se alastra até escurecer todo o campo da visão e
substituí-lo por um sistema completo de erros e mentiras.Quando nos habituamos a suprimir a
verdade com relação às nossas memórias, à nossa imaginação, aos nossos sentimentos e atos,
esta supressão nunca fica só naquele setor onde mexemos, mas se alastra para outros
territórios em volta e, tornando-nos incapazes de inteligir uma determinada coisa, nos
tornamos incapazes para inteligir muitas outras também. A defesa contra verdades incômodas
se transforma também numa defesa contra a verdade em geral, contra todas as verdades. Mais
tarde, quando desejarmos estudar um determinado assunto que nos interessa, ou entender o
que está se passando na nossa vida, e não conseguirmos, dificilmente perceberemos que
fomos nós mesmos que causamos esta lesão da inteligência. Noto em muitos intelectuais de
hoje uma repugnância, uma defesa instintiva contra a verdade, a tal ponto que, mesmo quando
desejam aceitá-la, tem de metê-la num invólucro de mentiras. O pior, nisso, é que com
frequência essa lesão é compensada por um desenvolvimento hipertrófico das faculdades
auxiliares, numa inútil excrescência ornamental, tal como os seios que crescem em algumas
mulheres após a menopausa. Muitas dessas inteligências lesadas alcançam sucesso nas
profissões intelectuais.
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das suas memórias, ou seja, contar sua história direito (analogamente ao que se faz em
psicanálise). Tudo o que é verdadeiro tem um caráter de coesão, pois uma informação
verdadeira não pode ser artificialmente isolada de uma outra informação que também seja
verdadeira e que tenha com ela uma relação de causa e efeito, de contiguidade, de semelhança
e diferença, de complementaridade, etc.; então isto quer dizer que se você admite um A e um
B, você vai ter de admitir um C, D, E, F, etc. A verdade tem sempre um caráter sistêmico,
orgânico, razão pela qual sua captação pela inteligência pessoal requer uma abertura da
personalidade, uma predisposição a aceitar todas as verdades que como tal se revelem, sem
nenhuma seleção prévia de verdades convenientes.
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É claro que os povos sempre têm a liberdade de escolher entre a verdade e a mentira, e mesmo
sabendo da verdade eles podem novamente se enganar a si mesmos; porém a possibilidade de
que se enganem é muito maior quando ninguém lhes diz a verdade jamais. O que acontece
quando pessoas que exercem profissões intelectuais ou culturais somente as exercem no
sentido de fazer delas um instrumento de apoio para sua própria mentira interior, ou seja,
exercem esses trabalhos no sentido puramente oratório ou retórico de induzir o povo a erros e
ilusões? Afirmo, peremptoriamente, que este é o caso da intelectualidade brasileira, que na
sua quase totalidade se utiliza de profissões culturais para fazer com que povo e a opinião
brasileira a sirvam, confirmando suas crenças, das quais ela não tem certeza pessoal alguma, e
para as quais justamente por isso procura angariar um apoio coletivo. Existem setores onde é
possível uma insegurança muito vasta e a livre troca de opiniões de valor simliar, mas em
outros setores não. Porém o fato é que quando a intelectualidade como um todo se coloca
perante o público numa atitude de persuasão lisonjeira, então a vida intelectual está sendo
prostituída, e quando ela é prostituída, pergunto: como podemos desejar mais ética, mais
honestidade, na política ou nos negócios, se amplas faixas de população atuante não têm a
menor noção do que é verdadeiro ou falso? Como é que a intelectualidade pode ao mesmo
tempo pregar um relativismo dissolvente, onde os critérios do verdadeiro e do falso se diluem
a ponto de se tornarem indistinguíveis, e ao mesmo tempo exigir que os políticos sejam
honestos e digam a verdade ao povo? As pessoas, nessa situação, não poderiam ser honestas
nem mesmo que quisessem, porque não sabem o que é certo, não têm consciência moral, são
grosseiras e insensíveis do ponto de vista moral. Então não resta dúvida de que a corrupção da
sociedade começa com a corrupção da camada intelectual, não com a corrupção dos negócios
ou da política: ao contrário, existem países onde os homens ricos e poderosos são muito
corruptos e ainda assim o país funciona direito; existem países onde os políticos são corruptos
e no entanto o país não se engana grosseiramente na solução de seus próprios problemas. Mas
num país onde a camada intelectual, que é a camada encarregada profissionalmente de
examinar a verdade e de dizê-la, começa a se enganar a si mesma, então não vai adiantar
absolutamente nada que todos os políticos sejam honestos.
Se do ponto de vista de utilidade para o indivíduo o objetivo deste curso é o desenvolvimento
da sua inteligência, do ponto de vista social, cultural, o objetivo do curso é fornecer gente para
uma futura elite intelectual verdadeira.O que é uma elite intelectual? É gente tão treinada para
perceber a verdade quanto um boxeador está treinado para lutar e um soldado para fazer a
guerra. Neste sentido, todas as nações que obtiveram um lugar de grandeza na história tiveram
uma elite assim, formada muito antes de que o país alcançasse qualquer projeção econômica,
política, militar, etc. Pois não é possível resolver os problemas primeiro e se tornar inteligente
depois.Em todo debate sobre problemas nacionais que atualmente está em curso só há uma
coisa que todos estão esquecendo: Quem vai resolver estes problemas? Quem vai examiná-
los? Quem tem a capacidade de examiná-los com efetiva inteligência?Se estas pessoas não
existem, então o problema inicial é formá-las. O objetivo prioritário deste curso é exatamente
isto, se não formar, pelo menos contribuir para formar, amanhã ou depois, ao longo de talvez
vinte ou trinta anos, uma verdadeira elite intelectual.
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8. O ESTADO DE DÚVIDA
O desenvolvimento da inteligência exige ainda uma outra coisa, que é a tolerância para com o
estado de dúvida, que é um estado psicológico que se define por duas afirmações
contraditórias e simultâneas de credibilidade aparentemente igual. Ou seja, ao examinar uma
questão, dizer um sim e um não com igual convicção, isto é, acreditar tanto numa hipótese
como na hipótese contrária, ter iguais razões a favor e contra. Na quase totalidade dos
assuntos com os quais lidamos, não há tempo e não há condição prática de sair do estado de
dúvida. O indivíduo que ou não tem vocação para a vida da inteligência ou se desviou dela
por um motivo qualquer, sente como muito urgente sair do estado de dúvida; ele precisa ter
uma opinião de qualquer jeito, precisa se pronunciar, precisa chegar a um sim ou um não, e
esta necessidade é vivida como mais urgente do que a de conhecer a verdade. Neste caso a
inteligência não se desenvolve, pois ela é substituída pela simples busca de segurança, já que
a dúvida é um estado de insegurança. Se queremos desenvolver a inteligência, temos de fazer
uma escolha: a de preferir antes permanecer em dúvida do que ter uma pseudocerteza. É
óbvio que a certeza é preferível à dúvida, mas ela só é preferível realmente quando é uma
certeza autêntica, e não uma simples preferência individual. Então uma outra exigência para o
desenvolvimento da vida intelectual é uma espécie de voto de pobreza em matéria de
opiniões, um voto de ter opinião sobre muito pouca coisa e se reservar para opinar sobre
coisas em que você teve efetivamente tempo de pensar, e no resto você consentir em
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permanecer em dúvida, até mesmo, se for preciso pelo resto de sua vida. Uma certeza firme é
preferível a um milhão de dúvidas mas, lamentavelmente, se quisermos desenvolver a
inteligência teremos de tolerar o estado de dúvida, o estado de incerteza, por mais tempo do
que as pessoas geralmente toleram. Além de fazer este voto de pobreza em matéria de
opinião, é necessário ainda um outro tipo de voto de pobreza que é a renúncia à busca de
apoio, ou seja, você não acreditar que o número das pessoas que o apoiam representa um
argumento efetivo em favor da veracidade do que você está dizendo. Em todas as questões
mais difíceis a maioria geralmente está errada, ou seja, em geral o consenso mais imediato é
feito em torno de algum erro. Por que? Já dizia Sto. Tomás de Aquino: A verdade é filha do
tempo. A verdade geralmente demora para aparecer. Se for preciso, se for absolutamente
preciso buscar apoio numa opinião majoritária, então é preferível escorar-se nas opiniões que
a humanidade conservou intactas ao longo dos tempos, que resistiram incólumes às mudanças
e aos desgastes do tempo, do que naquelas que simplesmente formam a voz majoritária do
nosso tempo, e que correm o grave risco de tornar-se minoritárias amanhã ou depois. Dito de
outro modo: se algum valor tem a opinião da maioria, não é a da maioria momentânea, da
maioria mercadológica, fugaz e inconstante, mas sim a da maioria humana, da maioria da
espécie humana em todas as épocas e lugares: quod semper, quod ubique, quod ab omnibus
credita est, “aquilo em que todos, em toda parte, sempre acreditaram”.
Ainda com relação à formação de uma elite intelectual, não é preciso dizer que não é
absolutamente necessário que os membros de uma elite deste tipo tenham opinões
concordantes, aliás se tiverem opiniões discordantes talvez até seja melhor em determinadas
circunstâncias. Mas existem alguns pontos com os quais é preciso estar de acordo, no que se
refere, em primeiro lugar, ao valor da inteligência, ao valor da verdade, e à possibilidade do
ser humano descobrir a verdade. A fé no poder de alcançar a verdade é a condição inicial de
qualquer investigação filosófica, dizia Hegel. Se não acreditarmos na possibilidade de
alcançar a verdade não faremos esforços para buscá-la. É preciso se persuadir de que é
possível descobrir a verdade, mas nem sempre a verdade final, nem sempre a verdade
absoluta, e sobretudo nem sempre a verdade sobre todas as coisas. Em muitas coisas é
possível alcançar uma verdade final absoluta, em muito mais coisas do que se costuma
imaginar, porém em muito menos do que nós desejaríamos. Na maior parte dos casos teremos
de nos contentar com uma certeza probabilística, e às vezes apenas com uma verossimilhança,
e às vezes com muito menos do que isto, e talvez nos contentarmos com uma dúvida que nos
acompanhará ao túmulo.Porém, na mesma medida em que o indivíduo confia na inteligência
humana em geral, ele deve desconfiar da sua própria opinião, o que é um pouco o contrário da
atitude que se dissemina hoje em dia, onde as pessoas dizem não acreditar em verdades
absolutas mas acreditam com fé absoluta naquelas verdades relativas que lhes agradam: há aí
uma mistura repugnante de relativismo intelectual com um dogmatismo emocional fanático.
Ainda que reconheçamos a dificuldade de alcançar a verdade com relação à quase totalidade
dos assuntos, temos de admitir que, pelo menos com relação a algumas coisas modestas,
podemos verificar a possibilidade humana de alcançar a verdade, desde o momento em que
cultivamos a noção da evidência e, sobretudo, cultivamos a norma de jamais negar que
sabemos aquilo que efetivamente sabemos.
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1. certeza;
2. probabilidade;
3 verossimilhança;
4. conjeturação do possível.
Certeza é por exemplo esta que diz “Eu estou aqui agora” ou “Eu sou eu mesmo e não outro”.
Que é uma opinião provável? É uma opinião onde você pode só ter uma certeza evidente
( apodítica ) com relação a um grau de probabilidade determinado ou determinável.
Em outros casos você não pode nem ter isso, você só pode ter uma probabilidade
indeterminada, isto é, verossímil, não uma probabilidade rigorosa.
E, finalmente, em alguns casos só podemos ter conjeturas, como por exemplo perguntar se há
vida inteligente em outros planetas. Alguns dirão que sim, outros que não, e aqueles que
dizem sim têm tanta razão quanto aqueles que dizem não. Aí conhecemos somente uma
possibilidade genérica, impossível de graduar probabilisticamente.
Eis aqui uma boa maneira de você fazer uma faxina no seu universo intelectual, para
recomeçar em boa ordem. Trata-se de fazer a si mesmo as seguintes perguntas: Do conjunto
de coisas que você já estudou, quais são aquelas que você conhece com certeza absoluta?
Quais as que conhece como probabilidade razoável? Quais as que conhece como conjetura
verossímil? Quais as que conhece como mera possibilidade? Em suma: quanto vale cada um
dos conhecimentos que você tem?
Eis uma verdade amarga: se, a respeito de um assunto, você crê possuir certo conhecimento
mas não sabe se esse conhecimento é certo, verossímil, provável ou conjectural, você não
sabe absolutamente nada sobre o assunto. A avaliação dos conhecimentos faz parte do
próprio conhecimento. Se não existe uma avaliação clara dos conhecimentos já adquiridos,
você não sabe a distinção entre o que sabe e o que não sabe, e isto é o mesmo que não saber
nada. Seria o caso de perguntar: O que adianta uma educação que lhe ensina um monte de
coisas, mas que não o ensina a avaliar e julgar o que aprende? Não existe nenhuma diferença
entre você saber alguma coisa e você conseguir separar nela o verdadeiro do falso, pois saber
é saber distinguir o verdadeiro do falso, é isto e nada mais além disto. Se você aplicasse esta
grade de distinções a tudo o que já leu ou estudou, se classificasse por ela todas as suas
opiniões, imagine a montanha de conhecimentos verídicos que você teria no fim.
Formar convicção é formar graus de convicção. Exemplo: Você sabe que Deus existe com a
mesma certeza com que você sabe que você existe?Se Deus existe, Ele é bom: isto é óbvio.
Seria bom que Deus existisse: isto também é óbvio. Agora, entre pensar seria bom que Deus
existisse e pensar que Deus existe efetivamente há uma distância muito grande. Então, por
exemplo, se tenho uma discussão com uma pessoa e penso que eu estou certo e ela errada, o
que estou querendo dizer? Estou querendo dizer: Seria bom que eu estivesse certo e ela
estivesse errada, ou melhor, seria bom para mim. Agora, entre pensar que seria bom que eu
estivesse certo e estar absolutamente certo de fato, a distância também é enorme. Então,
lamentavelmente, não podemos estar tão certos em tantas coisas como geralmente fingimos
que estamos. Só que se você extirpar de seu universo de crenças um monte de falsas certezas,
vai ver que no fim sobram algumas certezas inabaláveis, e estas valem muito. Mas se você
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desejar preservar todas as suas convicções igualmente, no mesmo plano, sem escalaridade
crítica, no fim vão estar todas misturadas, você não vai ter certeza legítima de nenhuma, e vai
acabar duvidando até de que dois mais dois são quatro, de que você está aqui neste momento
e até de que você existe. A falsa certeza é a mãe da dúvida patológica.
Muitas vezes o que acontece é que o indivíduo acaba tendo certeza absoluta de coisas
inteiramente conjeturais, e tendo dúvidas sobre coisa óbvias e inegáveis, porque não sabe
equacionar as suas certezas e suas dúvidas conforme a segurança maior ou menor do
conhecimento em si. É claro que existem coisas sobre as quais gostaríamos de ter certeza.
Você não gostaria de ter certeza, por exemplo, da imortalidade da alma? Muitas vezes
precisamos de um conhecimento, e este conhecimento se furta, se nega. Mas outras vezes há
conhecimentos de que você crê não precisar e eles vêm acompanhados de certeza absoluta:
então por que você não os aceita? Um conhecimento aparentemente inútil, mas certo, é menos
prejudicial do que um conhecimento aparentemente útil, mas falso. Se aprendermos a avaliar
os graus de certeza não conforme simplesmente o nosso desejo, mas conforme à coisa mesma,
conforme o assunto mesmo admita maior ou menor certeza, teremos feito da nossa mente um
instrumento dócil aos graus de certeza oferecidos pela própria realidade. Isso inclusive
pouparia um trabalho enorme. Pouparia o trabalho de você ter de argumentar em favor de
coisas que são óbvias e que não precisam de argumento nenhum para sustentá-las, bem como
pouparia o trabalho de argumentar em favor do indefensável, do arbitrário, do nonsense.
Este senso de docilidade à verdade apreendida pela própria consciência é transmitido aos
alunos deste curso como uma prática, não apenas como uma lição de casa para se fazer de
hoje para amanhã, mas como uma prática para o resto da vida. Dado qualquer conhecimento,
o aluno é convidado incessantemente a fazer as quatro perguntas decisivas: Isto é verídico? É
provável? É verossímil? É possível?O critério dos graus de certeza é usado o tempo todo neste
curso; é a primeira lição e também a última. E a primeira coisa que deve ser revista com este
critério é qualquer assunto que você já tenha estudado formalmente. Somente com esta
revisão você já vai ver que a massa de conhecimentos, de informações adquiridas, começa a
adquirir forma orgânica, inteligível, e você pela primeira vez tem uma idéia clara da cultura
que possui e da que lhe falta: quando o universo dos seus conhecimentos adquire uma forma,
você adquire consciência reflexiva do que sabe e do que não sabe.
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Esses quatro itens, por sua vez, dependem de um criterioso conhecimento do terreno
onde vai se desenrolar a execução do plano. Começaremos, portanto, pela discussão do terreno, e
procederemos mediante comparação com outros terrenos onde outras pessoas conceberam e
levaram a cabo planos semelhantes.
Vamos citar alguns exemplos. No seu livro Como se Faz uma Tese, Umberto Eco enuncia
uma série de regras para a organização dos estudos tendo em vista que o aluno tenha por objetivo
tornar-se um intelectual de profissão no quadro dos estudos humanísticos da universidade
européia e mais particularmente italiana. O terreno escolhido delimita claramente o objetivo, os
meios, o cronograma e as formas de controle. É claro que uma parte das técnicas sugeridas pelo
autor se aplica com utilidade em outros contextos, podendo servir a um estudante universitário
brasileiro ou mesmo a um pesquisador independente fora do quadro universitário; também é
claro que grande parte das sugestões indicadas se transforma, neste último caso, em sobrecarga
inútil, e que o pesquisador independente encontraria outros problemas, para os quais o livro
dirigido ao universitário italiano não oferece solução.
Um outro livro muito conhecido é A Arte de Ler, de Mortimer J. Adler. Ele se dirige
essencialmente ao homem comum, ao comerciante, ao trabalhador, ao pai de família, dotado de
boa formação ginasial, de um conhecimento suficiente da língua inglesa, mas profissionalmente
alheio à ocupação intelectual. Suas técnicas destinam-se a fornecer a este homem os meios de
posicionar-se no quadro das idéias e valores cujo intercâmbio e conflito constituem a trama
básica da cultura Ocidental, e fazê-lo num prazo razoavelmente curto, quatro ou cinco anos. O
ideal é fazer do cidadão comum um observador consciente desse teatro das idéias, não
propriamente um participante ativo.
Ambos esses livros pressupõem um quadro social estável e perfeitamente definido, no
qual a função intelectual ocupa um lugar bastante claro. Se as universidades italianas estivessem
em fase de experiência e mudassem de programa e de exigências curriculares todo ano, ou se a
sociedade americana estivesse num estado de crise permanente que dissolvesse o quadro de
estabilidade que garante os lazeres e o equilíbrio psicológico da classe média, nem Umberto Eco
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poderia descrever com tanta facilidade os caminhos que levam ao sucesso acadêmico, nem Adler
conseguiria com tanta desenvoltura comunicar ao cidadão americano uma imagem de conjunto
da cultura do Ocidente.
Os quadros sociais críticos e turvos embaralham os dados necessários à compreensão do
terreno, à delimitação da nossa posição nele e à concepção do plano. No quadro brasileiro, a
descrição dos meios e etapas para uma formação intelectual não podem de maneira alguma
resumir-se nem nas receitas de sucesso acadêmico de Umberto Eco, nem no otimismo
humanístico da idéia de ″cultura geral( pressuposta por Adler. O problema, para nós, é
enormemente mais complexo. Temos de levar em conta alguns fatos que intimidariam o mais
arrogante dos acadêmicos europeus e fariam desanimar o mais confiante dos americanos.
Dentre esses fatos, o mais desanimador é a enorme complexidade da gramática
portuguêsa e o estado presente da nossa língua, que, em parte pelas deficiências do ensino, em
parte pelo impacto massacrante da linguagem padronizada das comunicações de massa, em parte
pela penetração dissolvente de um número excessivo de gírias de curta duração ( provenientes
sobretudo da disseminação de estados psicóticos induzidos pela experiência das drogas ), em
parte, afinal, pela cumplicidade demagógica dos próprios escritores, ansiosos de ″popularizar( à
força sua linguagem, chegou ao ponto de perder toda eficiência enquanto veículo de
comunicação de idéias e de tornar-se apenas um cacarejo vagamente impressionista.
Como já apontamos numa aula anterior, a maior parte das leituras cultas da nossa
juventude é constituída de traduções, e a tradução, no Brasil, é o quartel-general da inépcia. A
regra áurea do menor esforço produz adaptações forçadas da nossa língua às sintaxes
estrangeiras, implantando nos nossos hábitos subconscientes toda uma esquematologia artificial e
despropositada, que vai aos poucos entravando a nossa agilidade mental. Isso é ainda mais grave
porque a maior parte das traduções é feita do inglês, e a língua inglesa tem, por um lado, uma
estrutura sintática muito simples e, por outro, um vocabulário imenso e uma potencialidade
infindável para a criação de compostos, de expressões idiomáticas e de adaptações de palavras
estrangeiras ( sendo ela mesma o resultado da fusão de duas línguas completamente diferentes
entre si e não, como a nossa, uma herança mais ou menos direta do latim ). A nossa lígua, ao
contrário, tende, como o latim, a uma sintaxe mais puramente geométrica e a uma severidade
maior perante a assimilação de termos estrangeiros. Se o inglês tende às expressões abreviadas e
sintéticas, sendo, por isto, a língua por excelência da poesia lírica, somente de longe rivalizada
pelo alemão, a nossa, ao contrário, é uma língua de distinções sutilissímas, onde o deslocamento
de uma vírgula produz as maiores dubiedades, e que, por isto, requer construções mais detalhadas
e propicia um extremo rigor de argumentação dialética; é, como o latim, uma língua de juristas e
teólogos, e daí que as nossas expressões líricas tendam frequentemente a refrear-se pela ironia,
quando não podem disciplinar-se pelas rígidas leis da métrica clássica. Não é à toa que os nossos
poetas mais eminentes — Drummond, Bandeira, Murillo Mendes, Mário Quintana — são todos
sentimentais irônicos, e que os poetas puramente sentimentais e intimistas são geralmente de
segunda ordem, ao contrário do que se dá na literatura inglesa e alemã.
Esses fatos são por demais evidentes, e a ampla inconsciência deles nos nossos meios
letrados tem produzido os mais desastrosos efeitos, agravados pela nossa condição de cultura
imitativa.
Em qualquer tradução, é fácil ver que, onde o inglês escreve duas linhas, o brasileiro ou
português tem de escrever três ou quatro, para prevenir as dubiedades. A tentativa de copiar o
sintetismo inglês produz apenas uma aparência enganosa de simplicidade, que faz o leitor, a longo
prazo, acostumar-se a uma taxa anormal de dubiedades entrevistas e não esclarecidas. Isto acaba
por formar no subconsciente do leitor brasileiro uma massa de obscuridades, cuja presença
estorvante, no fim, lhe parece tão natural quanto a dificuldade de respirar se torna um hábito
natural para o asmático de nascença. Ele se acostumou a entender pouco, e não lhe ocorre que
poderia entender melhor. Um exemplo colhido a esmo:
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″Pedro, bispo de Alexandria, propusera punições suaves para crentes que haviam
realizado sacrifícios em altares pagãos, fixadas de acordo com o fato de terem sido eles
ameaçados com a morte, a tortura ou apenas com a prisão. Quando Pedro levou adiante seu
programa de ação, o bispo de Licópolis, Melito, e seus seguidores recusaram-se a
colaborar.( ( Steven Runciman, A Teocracia Bizantina, trad. brasileira, Rio, Zahar, 1978, p. 17 )
Neste curto parágrafo de uma tradução, o leitor pode deslizar por cima da aparente
facilidade anglo-saxônica de elocução, sem dar-se conta de que ele não nos informa:
a) Se Melito não concordou com as punições ou com a suavidade delas, o que é
exatamente o contrário;
b) Se Pedro optou pela suavidade das punições tendo em vista que os traidores só haviam
traído sob ameaça, de morte ou se, ao contrário, julgou dever punir tendo em vista que as
ameaças, graves nuns casos, eram, em outros, demasiado leves para poderem servir de escusa
para a traição, já que alguns traidores tinham sido ameaçados ″apenas com a prisão″.
Em suma, ele não nos informa absolutamente nada, e o leitor segue em frente sem dar-se
conta da dose anormal de dubiedade que acaba de engolir, e que terminará por tornar-se um
vício. Se o leitor mais tarde vira escritor, ele vai escrever exatamente assim.
Vejamos agora como o parágrafo ficaria enormemente mais claro se, ao invés de
seguirmos servilmente a fluência inglesa, a escandíssemos com a rigorosa pontuação portuguêsa,
e com as devidas interpolações exigidas pelo detalhismo congênito da nossa língua:
″Pedro, bispo de Alexandria, propusera punições — suaves — para crentes que haviam
realizado sacrifícios em altares pagãos, fixadas de acordo com o fato de eles terem sido
ameaçados — com morte, tortura ou prisão simples.″
Ou então, melhor ainda:
″Pedro, bispo de Alexandria, propusera punições para crentes que haviam realizado
sacrifícios em altares pagãos, fixando-as suaves pelo fato de terem eles agido sob ameaça — de
morte, tortura ou prisão simples.″
Na mesma medida em que o português, como o latim, é uma língua de precisão, uma
língua de disputas dialéticas e jurídicas, nesta mesma medida é uma língua onde o descuido na
construção da frase produz inevitavelmente a dubiedade, da qual se escapa em inglês pelo fato de
que a simplicidade de sintaxe, e o grande número de palavras curtas, atraem a atenção do leitor
mais para a forma da frase como um todo do que para as distintas relações entre termos isolados
de uma mesma frase, exatamente ao contrário do que acontece no português. Daí o famoso
argumento do gramático Napoleão Mendes de Almeida, de que não se pode escrever bem em
português sem haver estudado latim, que habitua a mente aos complexos problemas das nuances
sugeridas pelos jogos de construção das frases.
Num momento em que o inglês se torna a língua predominante de cultura, substituindo
primeiro o latim e depois o francês, as desvantagens para a língua portuguêsa são evidentes. As
dificuldades de comunicação se avolumam, e a massa de intelectuais de pequeno e médio porte
passa a acreditar que se trata de uma deficiência congênita da própria língua portuguêsa, e não da
dificuldade que eles mesmos têm de se adaptar ao gênio próprio dessa língua após terem
aprendido a pensar em inglês, ao invés de latim ou grego. Assim, alguns deles, dentre os mais
populares, chegam ao auge de pedantismo de não conseguirem se comunicar sem trazer entre
parênteses os equivalentes ingleses dos pronomes retos e oblíquos que empregam. A moda foi
lançada por Paulo Francis ( homem cujo talento só teria a ganhar com a exclusão de todo
pedantismo anglo-saxônico ).
O problema da língua é só o primeiro. Defrontamo-nos, em seguida, com o fato de que a
nossa formação ginasial nem de longe se compara àquela fornecida pelas escolas americanas ou
européias. Um menino francês não chega de modo algum à universidade sem ter-se demonstrado
capaz de explicar-se com lógica e elegância segundo as regras estritas da composition française, isto é,
sem ter adquirido o domínio de uma arte de estruturação das idéias e palavras que, no Brasil,
bastaria para habilitá-lo a ser um jornalista de primeiro plano, bem acima dos recém-formados
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pelas faculdades de jornalismo. Nem chegará um menino italiano a escapar das garras do ensino
secundário antes de haver enfrentado a métrica de Dante e Manzoni, Leopardi e Pascoli, ao passo
que o nosso gosto literário é formado sob o parâmetro fixado por Joaquim Manuel de Macedo e
Bernardo Guimarães, isto quando não resvala ao nível de Caetano Veloso, Pelé, Alziro Zarur, e
quando a sem-vergonhice estabelecida não faz dos nossos jovens ginasianos o pretexto e veículo
inocente para o escoamento forçado da produção abundante e abusiva do ″jovem escritor
nacional″; neste caso, considerações de oportunismo profissional, de mistura com a patriotada de
sempre, acabam primando sobre o dever de transmitir, aos jovens, valores universais que são o
sustentáculo de toda cultura. Problemas desta ordem foram abundantemente descritos pelo
heróico batalhador da cultura, Osman Lins. E os livros que ele escreveu sobre isto têm
diretamente um valor prático para nós, pois cada um dos alunos aqui presentes padece
interiormente das deficiências criadas pelo estado de coisas que ele descreve.
Um terceiro ponto com que nos defrontamos é o próprio caráter imitativo e farsesco da
vida cultural num país satélite, onde a vida cultural depende, seja de uma fortuna hereditária que
permita as viagens de estudo, a aquisição de livros estrangeiros e o contato com atmosferas
culturais mais respiráveis, seja da inserção do candidato nas filas do puxa-saquismo oficial, na
disputa das magras verbas de pesquisa, em toda uma árdua concorrência por migalhas,
desgastando nessa miséria todo o idealismo da sua juventude. Resta a opção de, afastando-se do
meio acadêmico, buscar abrigo no mundo dos espetáculos e das comunicações de massa, cuja
recompensa financeira custa a imersão na atmosfera de leviandade, diz-que-diz e vida boêmia,
que arrasa toda vocação intelectual já na primavera de uma carreira de estudos.
Finalmente, a constatação das dificuldades materiais gera no aspirante a esperança
insensata de conseguir primeiro melhores condições sociais e econômicas, para depois, e somente
então, iniciar seriamente uma vida de estudos. Ninguém, jamais, em toda a história cultural
brasileira, alcançou a vitória por este caminho e, ao contrário, o número daqueles que a
alcançaram pelo esforço de estudar desde a juventude, suportando com paciência e resignação a
miséria material e social, inclui os maiores nomes das nossas letras e ciências, sendo antes os ricos
de nascença uma exceção notável. Das camadas ricas nunca saiu nem Capistrano de Abreu nem
Machado de Assis, nem Cruz e Souza nem Da Costa e Silva.
Finalmente, o empenho de industrialização a serviço do estrangeiro faz descer sobre a
alma da nossa população um conjunto de falsas e aberrantes normas éticas, que, sob pretexto de
adaptação social e de realismo, induz todos a pensarem que o ideal de um ″bom
emprego( coincida com a segurança e a paz necessárias ao lazer intelectual; e os brasileiros
ingênuos se esforçam para enquadrar-se nesse ideal, sufocando-se de sentimentos de culpa
quando não conseguem atingi-lo, sem dar-se conta de que os agentes desse ideal — os porta-
vozes do capitalismo — nem de longe se encarregam de gerar o número de empregos necessário
à consecução do ideal proposto, e de que a prometida estabilidade é propositadamente acenada
como bandeira no intuito de manter escrava uma população perpetuamente em busca daquilo
que é reservado a poucos.
Ao encetarmos o planejamento de uma vida intelectual no Brasil, devemos levar em conta
todos esses fatores, pois eles constituem a topografia do terreno onde se desenrolarão as nossas
batalhas.
No Brasil, mais do que em qualquer outro lugar, a vida a serviço do espírito requer a
abdicação inicial de toda e qualquer esperança de encontrar qualquer apoio que seja na rede de
instituições e costumes da sociedade vigente. No Brasil, mais do que em qualquer outro lugar,
uma vida a serviço do espírito requer que não se busque apoio em nenhuma outra parte a não ser
no Espírito mesmo. A vida intelectual no Brasil, há de ter o caráter de um radicalismo
extramundano e mesmo abertamente antimundano: mais do que em qualquer outro lugar, a vida
intelectual aqui é um esforço de austeridade monástica. É preciso buscar apoio na confiança
inabalável nos princípios e valores que em toda parte e sempre fundaram a validade e
universalidade da inteligência humana, e trabalhar numa via de mão única que desce
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perpetuamente do Céu à Terra, sem nada pedir à Terra e sem nada extrair dela senão o mínimo
absolutamente indispensável à sobrevivência material e ao prosseguimento do trabalho.
Desprezar ativamente o aplauso dos imbecis e o apoio dos falsos. Nada esperar senão o prêmio
final e supremo dos esforços humanos, que é o de ter vivido na verdade e pela verdade. E não há
outro paraíso senão este.
Nosso objetivo não é portanto nem favorecer o sucesso profissional e acadêmico, nem
apenas elevar culturalmente o cidadão comum. É ajudar a forjar um tipo de intelectual capaz de
resistir às imensas pressões despersonalizantes e hipnóticas de uma sociedade onde se juntam as
barbáries e abusos de um capitalismo nascente aos horrores apocalípticos da agonia de uma
civilização. De fato, observamos no Brasil, por um lado, a fúria de um progresso econômico que
deseja implantar-se à força num ambiente ainda mal egresso do provincianismo colonial, e, de
outro, a atmosfera de cinismo, devassidão e espera ansiosa da catástrofe, característica das épocas
de extrema decadência. O utopismo futurista é, aqui, veiculado principalmente pelas organizações
ocultistas e pseudomísticas, cuja floração de fantasias aberrantes é, em todo mundo, a marca mais
acentuada da decadência. Isto torna a nossa situação muito mais desumana que a de qualquer
intelectual europeu ou americano. Sofremos o impacto desagregante da sociedade de massas, sem
que ela nos dê o acesso compensatório a todos os meios de cultura letrada. Experimentamos o
sabor da degenerescência, sem dispor da liberdade que a própria confusão moral da modernidade
paradoxalmente assegura a europeus e americanos. Sofremos o assalto despersonalizante da
invasão de nossas vidas privadas, sem dispor da mobilidade assegurada pela sociedade afluente.
Não dispomos da presença viva de uma cultura milenar estabilizada como a da Europa, ao
mesmo tempo que nos faltam a liberdade, o poder e os meios de criar livremente como o fizeram
os americanos. Temos a opressão sem a ordem social, o autoritarismo sem a segurança, o caos
sem a liberdade, a indefinição sem mobilidade. Todos os paradoxos do fim e do começo
ajuntam-se tragicamente neste lugar. Isto impossibilita radicalmente todo planejamento do futuro
individual, ao mesmo tempo que a pressão de uma drástica luta pela sobrevivência impossibilita
mesmo até o repouso na mediocridade do dia-a-dia.
Nesse panorama, o planejamento de uma vida de estudos não se pode apoiar nem num
formalismo universitário estabelecido, nem num amadorismo que faça da cultura um hobby
venerável da classe média alta. Não dispomos dessas duas formas de conforto.
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A substância da vida humana, já se disse, é o tempo. A qualidade e o valor das vidas dos
indivíduos diferem conforme o emprego que façam do seu tempo. Há vidas que passam
rapidamente, como num sonho, e nas quais as possibilidades e oportunidades vão se
desmanchando umas após as outras, como flocos de nuvens. A vida que se esvai traiçoeiramente,
deixando atrás de si um saldo de vazio e melancolia, foi o tema predileto de um dos nossos
grandes poetas: Manoel Bandeira. Este homem, que levou, aliás, uma vida grande e significativa,
queixava-se:
"Levei a vida à toa, à toa",
e, num momento de lirismo cruel, vendo passar o enterro de um desconhecido, cantava com
amargura
"a vida inteira que poderia ter sido / e que não foi".
Há, é claro, vidas perdidas sem culpa; há puras vítimas da adversidade, que perecem
lutando, com o melhor de suas forças, contra obstáculos invencíveis: a má sorte, os imprevistos
da História, a resistência surda e inconsciente de um meio social mesquinho, a falta de
oportunidades, a morte prematura. Mas se estas vidas não alcançam a vitória, ninguém poderá
dizer que foram destituídas de sentido: sua derrota encerra precisamente a afirmação de um
sentido a realizar, que é legado às gerações seguintes como um dever à espera de cumprimento.
Um país que condena ao fracasso muitos homens bons -- pedaços de gênios, como disse alguém
-- vai acumulando, ao longo do tempo, uma dívida moral cujo peso deprime e seca todo
idealismo moral nas novas gerações, levando-as a um desencantado cinismo. Mas há
também a dispersão proposital e culposa. Ela assume uma grande variedade de formas, desde a
dilapidação ostensiva de um talento evidente (uma espécie de "protesto" suicida e vaidoso), até as
sutis manobras com que, de modo semiconsciente, os tolos e medíocres se esquivam de toda
oportunidade de melhorar. Em todas essas diferentes variedades de fuga ao dever, porém, o que
está em jogo é sempre um mesmo erro: o desvio de forças preciosas (e tanto mais preciosas
quanto menor a sua quantidade) para fins ocasionais e dispersivos, sem ligação com a afirmação
de um sentido da vida. Trata-se de um roubo: energias que de direito deveriam ser consagradas à
realização do sentido são desviadas, prostituídas e postas a serviço de desejos, de temores, de
esperanças momentâneas e passageiras, desligadas da espinha dorsal da vida. Quando digo
"sentido da vida" não pensem que me refiro a nenhum segredo, a nenhuma obscuridade
metafísica, a nenhum objeto de especulação pseudomística. O sentido da vida é algo de
perfeitamente evidente a quem quer que não esteja totalmente destituído de consciência moral
natural, a quem quer que não esteja totalmente embotado pelos questionamentos artificiosos de
uma pseudocultura pedante e narcótica. O sentido da vida revela-se de imediato no sentimento
de um dever pessoal intransferível e consolida-se em atos sistemáticos e constantes de dedicação,
veneração ativa e serviço. A certeza firme e tranquila de um sentido da vida -- a única forma de
felicidade que é garantida aos homens sobre a Terra -- é a resposta a esses atos, e não a uma
indagação teórica (exceto quando a indagação teórica, na forma de vida filosófica, seja ela mesma
uma modalidade de dedicação, veneração ativa e serviço; condição que evidentemente não se
cumpre no pseudofilósofo pedante, cujo questionamento cético do sentido da vida não costuma
ser outra coisa senão uma tentativa de legitimar sofisticamente seus próprios desejos arbitrários,
sua própria dilapidação de energia vital, bem com um meio de arrebanhar companheiros que
amenizem sua perversa solidão (e lhe dêem, pelo número, a segurança que intimamente lhe falta).
No caso dos indivíduos vocacionalmente dotados para a vida intelectual ( e daqueles que,
mesmo sem vocação especial, hajam tomado consciência da dimensão intelectual de toda vida
humana ), a questão do sentido da vida e da dilapidação da sua substância assume um contorno
peculiar. A substância da vida intelectual é a atenção. Os indivíduos diferem
intelectualmente uns dos outros conforme os objetos a que prestam atenção e conforme a
quantidade e qualidade relativas dessa atenção. O homem intelectualmente mais perfeito é aquele
que presta por mais tempo e com maior intensidade a melhor qualidade de atenção àquilo que
seja supremamente importante para a realização do sentido da vida. A perfeição na vida
intelectual nada tem a ver, portanto, com dons inatos, com o Q.I., com as habilidades específicas
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como lógica, arte, expressão oral, problem solving e outras tantas capacidades, meramente
instrumentais, que hoje em dia, erigidas em fetiches, são cultuadas como se fossem a inteligência
mesma. A perfeição na vida intelectual é sobretudo uma questão moral e de ordem íntima, no
sentido de que uma firme decisão interior de servir unicamente ao mais importante, e de
sacrificar a ele todo o resto, ou seja, de estabelecer uma rígida hierarquia da atenção, pode suprir
mesmo a carência de habilidades específicas, e de que mesmo a abundância destas últimas,
amparada por uma bela educação e pelo apoio solícito do meio social e familiar, só poderá, na
ausência desse requisito moral, resultar na produção de uma dessas caricaturas de intelectual que
hoje lotam com sua indigesta presença o cenário todo da vida cultural brasileira: são uns tipos
cujas habilidades, artísticas, científicas ou retóricas, se exibem como finalidades em si, para
fascínio de uma multidão de basbaques, e independentemente dos valores a que sirvam: a mera
satisfação do ego, o sucesso profissional, a lisonja aos poderes ou à vaidade das massas, são,
todos, tomados como finalidades legítimas e suficientes: só o que importa é a "criatividade" e o
"nível técnico de realização". É culto do instrumento. Um grave sintoma desse desfiguramento da
inteligência é, hoje em dia, o uso corrente da expressão "de primeiro mundo", para qualificar tudo
o que pareça bom e correto; no fundo, há nisto uma identificação sorrateira e perversa da
qualidade -- isto é, em última análise, da importância e do sentido -- com a quantidade do
investimento financeiro. Quando eu era jovem, um filme se considerava bom quando com
recursos financeiros exíguos, conseguia dizer algo de importante para a vida humana; hoje em dia,
celebra-se como bom, isto é, "de primeiro mundo", qualquer coisa ôca e repetitiva que se consiga
reproduzir com "excelente nível técnico de realização", isto é, com o investimento de uma
quantidade de dólares equivalente à do similar estrangeiro. Um país cujos intelectuais chegam a
esse nível de servilismo abjeto, sinceramente: merece o destino que tem. Mas, voltando ao
ponto central, se a vida intelectual é sobretudo uma questão interior de decisão ética, isto é, se ela
depende sobretudo da dedicação da atenção ao que seja supremamente importante, então há dois
problemas que de imediato se oferecem ao nosso exame. Primeiro, se a vida de pura investigação
teórica -- a vida filosófica, independentemente de todas as consequências práticas, morais,
pedagógicas e políticas que a filosofia possa ter -- obedece realmente a esse requisito, ou se não se
perde na pura contemplação daquilo que deveria, em vez disso, ser servido ativamente. A
segunda questão é a das relações entre atenção e tempo: o que importa é a intensidade da atenção
em certos momentos (ficando os demais à disposição de outras finalidades), ou é necessário um
serviço constante que não deixe tempo para mais nada? A primeira questão resolve-se do
seguinte modo: a vida filosófica, se é pura investigação e contemplação do sentido, é, por isto
mesmo, a tentativa de esclarecê-lo e de possuí-lo intelectualmente de modo pleno (superando a
mera e vaga intuição que arriscaria perder-se tão logo se passasse ao serviço prático). A vida
filosófica é, por isto, garantia e defesa do sentido contra a invasão do absurdo e do não-
significativo. O filósofo é aquele que, ao investigar os fins e purificá-los pela crítica racional, os
livra de toda contaminação do secundário e os defende contra toda falsa hierarquia surgida das
exigências práticas do momento, histórico ou psicológico. Contra a idolatria do instrumento, o
filósofo restabelece, num esforço secular, o império dos fins. Neste sentido, a filosofia é total
dedicação aos fins, e é, portanto, a forma suprema de vida intelectual.
A segunda questão, que é de grande alcance prático para o estudante, pois a resposta dela
fornecerá o critério para a distribuição do seu tempo e das suas energias na vida cotidiana, ela se
resolve pelos seguintes passos, que serão melhor esclarecidos na exposição oral:
1o. Se um homem é capaz de intensa concentração intelectual, e de outro lado verifica
que sua inteligência responde melhor a um esforço descontínuo e variado do que a uma aplicação
constante e rotineira, então é evidente que o trabalho intelectual formal (ler, escrever, investigar,
ouvir, meditar) pode ser realizado nos intervalos de uma vida dedicada, também, a uma
pluralidade de fins secundários, como o cuidado da família, as atividades comerciais, os esportes,
etc.
2o. -Se, inversamente, verifica que só rende alguma coisa após longo esforço contínuo
(por exemplo, só compreende um texto após muitas repetições), então está moralmente obrigado
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a desempenhar esse esforço. Esses dois tipos de inteligência são determinados pela
caracterologia individual, e é inútil lutar contra a natureza. Cada qual deve contentar-se com o seu
tipo e tentar obter dele o melhor que possa, cultivando um estilo próprio.
3o. Porém essa diferença refere-se apenas à atividade intelectual formal. A atividade
informal, que é o que verdadeiramente interessa, consiste em prosseguir na busca do essencial
através de toda a variedade das situações e atividades humanas. deste modo, não importa o que
um homem esteja fazendo aparentemente e na superfície: o que importa é distinguir se ele está
hipnoticamente a serviço de fins secundários, esquecido do essencial, ou se, justamente ao
contrário, está buscando nessa ocupação aparentemente secundária alguma manifestação do
essencial. O verdadeiro intelectual está dedicado à sua tarefa vinte e quatro horas por dia. Está em
plena busca do sentido, em plena contemplação e serviço do sentido, quando janta com os
amigos ou brinca com os filhos, quando passeia pelas ruas ou joga bola, quando faz amor e
quando dorme. O grande filósofo italiano Benedetto Croce, por exemplo, tinha fama de
conhecer cada uma das pedras das ruas de sua querida Nápoles e de saber de cor a genealogia de
cada uma das famílias de seus habitantes, ricos ou pobres: mas, nele, a aparente dispersão do
passeador ou a curiosidade frívola do colecionador de fofocas familiares se integrava
harmoniosamente no profundo meditador das forças históricas, cuja luta ele enxergava não só
nos magnos eventos públicos, mas no cenário da vida cotidiana e no interior dos lares. O nosso
Mário Ferreira dos Santos era entusiástico apreciador de futebol; terminada a partida, que
parecera absorvê-lo hipnoticamente, ele girava o botão da TV e derramava sobre a mulher e os
filhos as lições de História, de psicologia, de sociologia e de ética que o jogo lhe havia ensinado.
O velho Leibniz passava horas jogando cricket com as damas da côrte -- que poderia haver de
mais frívolo? --, mas especulando, por dentro, sobre a descrição geométrica dos movimentos das
bolas ou sobre o fundamento último de uma convivência harmoniosa entre os homens. Faça
o que fizer, o intelectual de raça estará sempre a serviço dos fins supremos, tais como os haja
captado ou tais como esteja se esforçando para captá-los, e em nenhum momento o
encontraremos submetido, absorvido hipnoticamente ou a serviço de propósitos desligados
desses fins ou opostos a eles. A concentração total e constante da atenção nas tarefas da
inteligência é a marca do intelectual, seja ela ou não acompanhada de uma regularidade exterior
dos atos, o que, como foi dito acima, é mera questão de temperamento.
O homem disperso, o frouxo, o tolo, o medíocre, ao contrário, se entrega facilmente a
espetáculos ou atividades nas quais não enxerga nenhuma conexão com as finalidades superiores,
e se entrega a elas precisamente porque não enxerga essa conexão e porque lhe parece necessário
desligar-se dos fins superiores para poder "descansar", "relaxar" ou entregar-se a prazeres de
ocasião ou a preocupações de ocasião que, à luz desses fins, deveriam logicamente ser julgados
estúpidos ou prejudiciais. O critério final que deve decidir se cabe ou não o estudante entregar-se
a uma atividade qualquer é o da sua conexão interior com os fins da vida intelectual, o do seu
valor, mesmo instrumental, para a realização desses fins.
Tome-se como exemplo a vida amorosa. Ela pode ser não somente boa mas essencial
para a inteligência. Quem pode negar que a experiência da paixão, do afeto familiar, da dolorida
viuvez e das alegrias de um segundo casamento por amor deram a Aristóteles um senso das
realidades terrenas e do seu valor, que falta totalmente ao castíssimo Platão? Quem pode negar
que a paixão amorosa, com suas ascensões e quedas, está na raiz da criatividade furiosa de um
Balzac, de um Henry Miller, de um Hemingway, para só citar três dos maiores? Como não
enxergar a presença do eros nas fontes da inspiração de um dos maiores filósofos do nosso
século, Max Scheler, o "filósofo do coração"?
No entanto, trata-se, em todos esses casos, de paixão séria, vivida com plena consciência
de sua significação, de seus perigos, de seus abismos, de seu potencial a um tempo vivificador e
alienante. Trata-se de experiência profunda e não de sentimentalismo bobo, nem de namorico,
nem de prurido romântico, nem de ilusão casamenteira. Sobretudo, o homem capaz de viver a
experiência profunda do amor é também, e sempre, o homem capaz de conduzir-se com
dignidade na solidão, feliz de poder alternar a fusão do encontro com o retorno à profundidade
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ETAPAS DO APRENDIZADO
1. Copista
1.1 Exigências
1.1.1 Compreensão dos originais
1.1.1.1 Língua e vocabulário
1.1.1.2 Alfabetos e famílias de letras
1.1.1.3 Sinais gráficos
2. Compilador
3. Expositor
4. Autor
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EXPLICAÇÃO DE TEXTO
1. Documentação
2. Impressões subjetivas
2.1 Geral
2.2 Especial
2.2.1 Evocações
2.2.2 Extensões
3. Linguagem
4. Divisão
5. Comentário linear
6. Estudo estilístico
6.1 Vocabulário
6.2 Figuras
6.3 Extensão das frases
6.4 Seu encadeamento
9. Plano de exposição
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ETAPAS DA INFORMAÇÃO
1. Formulação inicial,
definições nominais
2. Levantamento de fontes
3. Coleta inicial
4. Exame geral
5. Conceitos
6. Segunda coleta
7. Interpretação e divisão
8. Seleção hierárquica
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FICHA CATALOGRÁFICA ( 1 )
- Ortega y Gasset;
- Edgar de Bruyne;
- Miguel de Unamuno;
- John Stuart Mills.
Nomes holandeses: o de Bruyne é artigo, e não preposição. Equivale ao the inglês, ou ao le francês
( ex.: Le Gros ).
É indispensável ter um livro de como usar bibliografia. Indico Elementos de Bibliografia, de Antonio
Houaiss, ou Du Bon Usage des Bibliographies, de Jeannette Reboul para recorrer quando tiverem
dúvidas, ou qualquer outro, já que as normas são internacionais.
Publicações oficiais: procurar o nome da instituição ou país. Ex.: Relatório de Fulano na Secretaria
de Cultura de S. Paulo -- procurar primeiro em ″S. Paulo″. Código Penal Brasileiro ou
Constituição Brasileira: ver ″Brasil( e, depois, ″Congresso Nacional″; em seguida, ″código″,
″Constituição″, etc.
Obra coletiva: organizador ( abreviação org. ) ou editor ( ed. ). A expressão latina et alii ( abreviação
et al. ) indica vários colaboradores. Não precisa colocar o nome dos colaboradores porque a
palavra ″organizador( já supõe que alguém compilou. Numa antologia, é necessário por o nome
do organizador. Tudo isso faz parte do aspecto material.
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Como ler o livro? O item 4 ( resumo analítico ), para quem lê, é o primeiro. Suponha que já leu o
livro; aí vai se colocar as seguintes questões:
DEFINIÇÃO GERAL ( 2 )
Primeiro, a definição geral do livro. Abrir chave que se refere à importância do livro para o leitor,
porém transmitida, não em termos de avaliação segundo seu julgamento crítico, mas segundo a
importância objetiva, que se fundamenta em razões ( de 2.1.1 a 2.1.6 ).
Pode ser livro clássico ( 2.1.1 ). Ex.: o clássico de Gibbon, History of the Decline and Fall of the Roman
Empire, vai ser editado em português pela primeira vez. Se o livro for raro ou inacessível também
é motivo de importância objetiva. Se não for o caso, esse item cai fora.
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Ex.: O Marxismo Ocidental, de José Guilherme Merquior. Quase não há obra de conjunto sobre os
autores marxistas ocidentais. O assunto no global é velho, mas o enfoque é novo -- aí é misto. Le
Vocabulaire de Kant: o assunto é velho, porém a idéia de fazer um dicionário kantiano é nova. O
que tem de interessante é que, apesar de ser um dicionário, pode ser lido como se não o fosse; é
misto de dicionário e de introdução a Kant. É portanto original: é novo por ser um dicionário
para ser lido e não para ser meramente consultado.
Extensão ( 2.5.1 )
A extensão física como limite. A extensão limitará o tratamento do tema.
Gênero ( 2.5.2 )
No caso do livro de Merquior, é ensaístico. O ensaio oferece uma teoria sugestiva em nível de
prova dialética, sem a intenção de prová-la extensivamente; é uma tentativa que precede uma
explicação. Quem escreve um ensaio considera que um estudo mais profundo vai comprovar sua
tese, da qual dá apenas uma explicação suficiente. Abre um estudo a ser feito pelo autor ou por
outros, do tipo: ″essa tese é suficientemente importante para justificar um estudo mais profundo
do tema″.
Outros ( 2.5.3 )
Outros limites auto-impostos ( ″tratei do assunto só por este ângulo( ). Esses limites podem estar
explícitos. Ver prefácio. Os dois primeiros limites não estão declarados ( extensão e gênero ). É
voce quem irá declará-los. Os outros estarão declarados pelo autor.
Isso é para voces verem como foi superficial a leitura que fizeram até hoje e como se passa de
uma leitura curiosa para uma leitura científica. Por exemplo, se voce vai escrever O Pensamento de
Ortega y Gasset, é necessário que voce tenha feito todo esse trabalho de resenha com cada livro
dele, para chegar às constantes. Esse é o princípio do estudo científico.
A definição geral ( 2 ) é um problema interno do livro, apesar de tocar em algumas coisas externas.
CONTEXTO ( 3 )
Trata-se do contexto intelectual onde entra o livro. Vai ser de dois tipos: diacrônico ( o que
aconteceu antes do livro ser escrito ) e sincrônico ( o quadro contemporâneo ao livro ), 3.1.
O autor ( 3.1.1 )
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Avaliar a autoridade do autor, sua formação. Ex.: onde estudou? Fez estudos acadêmicos sobre
esse assunto? Com quem aprendeu? Estudou em universidade ou é autodidata? Teve bons
amigos que o ensinaram? Fez pós-graduação? Doutoramento? Uma contribuição importante
oferecida por alguém sobre o autor pode mudar o quadro das coisas. O local onde estudou indica
a atmosfera das idéias captadas pelo autor. A formação serve para legitimar o interesse ou formar
o nível de exigência do leitor. Se o autor estudou em grandes centros, Oxford, Sorbonne, etc, não
pode alegar falta de informações. Se veio da Universidade de Zâmbia, não se pode julgá-lo por
isso. Ex.: durante a guerra, escrevia-se citando de memória, o que não tira o valor da obra. O
autor pode, por modéstia, sonegar informações ( caso de Eduardo Portella ) ou, até, falsificar
dados; todos os dois são raros.
Reexplicando o dado escola: não é dado externo, é dado da estruturação interna do livro, isto é,
metodologia; não é uma questão tão somente ideológica mas metodológica. Trata-se da posição
intelectual: o autor examina esse assunto desde que ponto-de-vista metodológico?
RESUMO ANALÍTICO ( 4 )
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( 4.1 ) Enumeração dos grandes blocos em que o autor divide a argumentação. Isso pode
coincidir com os títulos dos capítulos ou não. Há quem não saiba capitular ( ex.: obras de
Aristóteles ).
Ex.: livro de Merquior:
- 1a etapa: conceito de mundo ocidental e pano de fundo; raízes do mundo ocidental no
pensamento de Hegel, Marx e os idealistas alemães;
- 2a etapa: os fundadores do marxismo ocidental;
- 3a etapa: o desenvolvimento do mundo ocidental no pós-guerra;
- 4a etapa: conclusão geral; tese de conjunto.
Devemos buscar a estrutura real do livro, que às vezes não corresponde à nominal.
Síntese final ( 5 )
Deve ter uma página, = definição geral + contexto + resumo analítico. É a síntese de tudo o que
voce falou, não do livro. É a conclusão final do livro à luz de seu contexto e da definição dada
anteriormente ( objeto material, formal-motivo, formal-terminativo ). Uma vez lido o livro,
verifique se o autor falou do assunto, se o fez do ponto-de-vista que havia declarado e se atingiu
o seu objetivo. A resenha informativa pára nesse ponto. Uma boa resenha substitui o livro.
Ao fazer o resumo analítico, distinguir o que é citação literal e o que é paráfrase ( frase de sua autoria
que resume o pensamento de outro ).
Aspas: as aspas só entram depois do ponto, quando há citação de frase inteira. Se for pedaço de
frase, as aspas vêm antes do ponto.
Em inglês, as aspas vêm depois do ponto -- .″
Em português, as aspas vêm antes do ponto -- ″.
O grifo ou itálico equivale ao sublinhado uma vez. O negrito equivale ao sublinhado duas vezes. O
negrito e itálico equivalem ao sublinhado três vezes.
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Citação de trecho inteira do texto: fazer coluna menor e mudar o espaço ( de espaço 2 para 1 ).
Não usar aspas.
Quando fechar cada citação, citar a página ( cuja abreviação é p. e não pag. ).
Plural majestático: ( ex.: ″na nossa opinião...( ). Justifica-se se voce fala em nome do cargo ou
enquanto autoridade pessoal ou coletiva. É deselegante quando o indivíduo se intitula no plural:
eu sou eu.
Impessoal: evitem essa construção, que contraria o espírito da língua portuguesa ( existe em
francês e inglês - on, one ; saiu do latim homo, era usada no português arcaico e depois se perdeu ).
O pronome se nada tem a ver com essa idéia, traduzida pela expressão a gente. O nós impessoal
tem que ser o nós sem pronome. Ex.: ″vivemos tomando decisões apressadas″. Quando utilizar o
impessoal, moderação no uso do se. Não começar frases com a expressão torna-se necessário; só se
usa essa expressão como consequência de outra coisa anterior; usar é necessário. Leiam os que
sabem escrever português: Graciliano Ramos e Machado de Assis.
Quando escrever algo, leia em voz alta e verifique, com sua imaginação, como soaria aos ouvidos
do outro. Deve haver uma tradução do pensado ao escrito. A tradução direta é muito difícil; é
preciso muito prática. Pensar primeiro e depois traduzir para o português. Preste atenção quando
ler em diferentes línguas. É a maior estupidez quando se diz, ″escreva como pensa″. Pense
primeiro e depois traduza o que voce pensou para o português. Que português? O de Graciliano
e Machado e também o de José Geraldo Vieira, que é o contrário de Graciliano, mas é o segundo
melhor escritor brasileiro do século -- é muito chato, só os professores o lêem. Isso vai inaugurar
uma nova etapa no curso -- são recursos para voce adquirir certeza pessoal. Quem não a obtiver,
será um eterno escravo da opinião alheia. Somente aquele que investiga, coloca dúvidas e as
resolve, se liberta. Para obter autonomia, não basta a reivindicação -- tem de haver força. Isso
deve ser conquistado, já que ninguém lhe dará de presente -- dará, no máximo, o que eu estou lhe
dando.
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MÉTODO DE INVESTIGAÇÃO
1.1 Motivo: deve haver razões pessoais, sociais e culturais para que a coisa seja investigada.
1.3 Definições e distinções: deve-se delimitar o campo. Qual o grau de certeza que se
pretende alcançar e a amplitude do tema.
2.1 Quais as fontes já conhecidas? Lista de tudo quanto já leu a respeito do assunto.
2.2 Lista de todas as fontes bibliográficas existentes.
2.2.1 Bibliografias Gerais.
2.2.2 Bibliografias especializadas ( tendo em conta que nem sempre o tema está sob um
nome adequado ou comum ).
2.2.3 Bibliografias ocultas (colocadas no fim de obras sobre o assunto).
2.2.4 Revistas especializadas.
2.2.5 Jornais e outras publicações.
2.3 Entrevistas, consultas e outros materiais necessários.
2.4 Coleta de dados propriamente dita.
2.5 Organização ( para leitura ) do material. Separa-se o que é preciso ler por extenso.
2.5.1 Organização hierárquica.
2.5.1.1 As obras teóricas e clássicas sobre o assunto ( não dão informações, mas conceitos
e métodos e critérios que vão orientar no mapeamento total do terreno ).
2.5.1.2 Os estudos sobre temas específicos ligados à investigação ( não sendo necessário
tratar-se de obras de primeira qualidade ).
2.5.1.3 Fontes informativas ( não precisam ser de grande qualidade ).
2.5.2 Organização em série das leituras. ( Até aqui, nada se leu propriamente ).
4.1 Hipóteses.
4.3 Exame das possibilidades de formulação de cada uma das hipóteses; de demonstração
de cada uma das hipóteses. Resposta às questões: o quê é necessário? O quê falta? Em resumo,
delimitação das possibilidades de demonstração.
5.1 Recolocação do problema ( não só agora como pergunta mas também como
resposta ).
5.4 Conclusões.
6.1 Condições de veracidade: em que medida aquela tese pode ser demonstrada por
aqueles meios?
6.1.1 Adequação do método.
6.1.2 Suficiência das fontes.
6.2 Critérios de verificação ( para tirar dúvidas definitivamente quanto a se a tese está
certa ou errada ).
7.1 Lógica.
7.2 Novas fontes ( complementação das fontes ).
7.3 Experimental.
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REDAÇÃO
1) A incultura generalizada: Em casa os jovens não têm um ambiente propício para o estudo
do idioma, e nas ruas não encontram outra coisa senão o apoio de seus iguais para ficarem
exatamente como estão.
Há outras causas, mas essas são suficientes para que, na hora de avaliar as culpas, o
professor, vendo de um lado seu esforço pessoal e a eficácia de suas técnicas e, de outro, os
fatores sociais maiores, sinta a consciência aliviada ante o peso esmagador do prato alheio.
O gramático Celso Pedro Luft, do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, após afirmar que para aprender a escrever é preciso “ler, ler, ler”, reconhece que
o professor, para mandar ler, tem antes de fazer sua parte — “e como é que vai fazer isto se ele
mesmo, sobrecarregado de aulas, não tem tempo para ler?” A solução óbvia que ocorre a Luft é:
“Eles deveriam ser bem pagos.” E assim esta questão, como aliás todas as outras no Brasil atual,
acaba sendo remetida à esfera das tablitas.
Por outro lado, mesmo que lessem e lessem, isto não asseguraria aos alunos melhor
compreensão nem melhor redação. “É preciso ler bem”, complementa Ida Lourdes Marquardt,
coordenadora das redações do vestibular da PUC do Rio Grande do Sul desde 1978. E isto
implica que não serve ler qualquer coisa. Num livro hoje famoso, o crítico inglês Richard Hoggart
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investigou os hábitos de leitura das classes média e baixa de Londres, e chegou a uma conclusão
surpreendente: apesar da reforma do ensino, que dera oportunidade aos mais pobres, nem por
isto eles tinham tido acesso à cultura superior: por baixo do mundo da cultura superior havia
florescido uma indústria de livros de um novo tipo, especificamente destinados aos novos
alfabetizados; de modo que toda a sua recém-adquirida capacidade de leitura era gasta com puro
entretenimento, sem proveito cultural maior. E não era só pelo conteúdo que esses livros eram
um desperdício. Comentando as conclusões de Hoggart ( publicadas em The uses of literacy, 1957,
título que corresponde a “Para que serve aprender a ler” ), diz o crítico brasileiro Otto Maria
Carpeaux:
Uma pesquisa inspirada na de Hoggart foi depois empreendida no Brasil pela professora
da USP, Ecléa Bosi, com resultados similares ( v. seu livro Leituras Operárias, Petrópolis, Vozes ).
É claro que, nesse especial sentido, “ler, ler, ler” pode ser o avesso de aguçar a
compreensão. Pois, define Francisco Platão Savioli, com seus 25 anos de experiência no ensino
do Português em cursos pré-vestibular, “o objetivo do 2o grau é formar o leitor proficiente —
aquele que, lendo um texto não muito especializado, pode absorver o máximo de significados e
captar também com que intenção foram construídos esses significados”. E Madre Olívia ( Cília C.
Pereira Leite, do Insitututo de Pesquisas Linguísticas Sedes Sapientiae, de São Paulo ), diz que se
aprende Português no secundário com o seguinte propósito: “Pensar para ser gente; pensar para
falar; pensar para escrever; pensar para ouvir e entender”.
Parece estranho ter de lembrar isto, quando todo mundo sabe que o homo sapiens só
inventou a escrita depois de muitos milênios de língua falada. Mas Franscisco Platão Savioli
insiste — e tem obtido bons resultados com esta orientação — em que a escrita é um mundo
diferente do mundo da fala. “Redigir tornou-se uma atividade exótica, porque vivemos numa
civilização do ouvido.” Esta diferença, diz Savioli, longe de ser vencida, deve ser aprofundada:
trata-se de acostumar o aluno a perceber, em contraste com a sucessividade da fala, a simultaneidade
do escrito. Num escrito completo, todas as palavras estarão ao mesmo tempo, de modo que, ao
escrever as antecedentes, é preciso ter já em vista as consequentes e, depois de escritas estas,
conferí-las com as antecedentes. Na linguagem oral, esta coesão é geralmente negligenciada, e, ao
transpor para a atividade de redação os hábitos da fala, o aluno se trumbica e não se comunica.
“Muitas vezes”, diz Savioli, “os alunos não têm noção de que o texto é um tecido, uma trama, um
conjunto solidário de idéias. Com freqüência eles se contradizem numa mesma passagem.” No
oral, estas contradições passam despercebidas ou são compensadas pela ênfase nos gestos, na
expressão facial, etc. Parece que o difícil, aí, é fazer o aluno renunciar consciente e deliberadamente
ao apoio do contexto físico e psicológico e a levar em conta somente as palavras.
Savioli não diz explicitamente isto, mas parece também que um bom treino, para operar a
passagem do oral ao escrito, não pode dispensar a retenção das idéias na memória, antes de escrevê-
las. Um exercício útil, neste sentido, seria pedir ao aluno que falasse, que expusesse oralmente o
conteúdo que pretende escrever ( a narrativa de um fato, por exemplo ) e que depois o repetisse
em voz alta um certo número de vezes. Depois de algumas repetições, a narrativa está mais nítida
e adquire uma forma fixa à medida que o aluno retém a visão do seu conjunto. E só então ele
tentará escrevê-la.
A linguagem escrita, diz Savioli, congela, cristaliza a fala no papel. A conclusão lógica é
que cristalizá-la antes na mente é um bom meio de passar do oral ao escrito, sem traumas.
O outro Platão, que não lecionava no pré-vestibular mas na Academia de Atenas, já
enfatizava a importância da memória para a futura organização das idéias; e fazia seus alunos,
diariamente, narrarem para si mesmos, antes de dormir, tudo o que haviam feito durante o dia.
Aos poucos, isto dá o sentido da forma cristalizada dos fatos percebidos, que facilita o narrar e o
pensar. Um de seus discípulos, Aristóteles, sistematizou depois a explicação da memória como
etapa intermediária indispensável no caminho que leva das percepções sensíveis ao pensamento.
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linguísticamente às situações mais diversas. Por isto mesmo é necessário partir de situações
esquemáticas e convencionais, para não exigir que o aluno realize e prodígio de “ter estilo” antes
mesmo de saber escrever. Para o aluno, obter um meio de expressão literária é colocar-se num
novo papel social, e isto oferece tantas dificuldades quantas tem um novato para adaptar-se a um
ambiente desconhecido. Exigir que, nessa situação, ele seja plenamente natural e espontâneo
desde o começo, é fazer como o “Estado democrático” inventado por Jean-Jacques Rousseau:
um Estado que obrigava seus súditos, pela força, a ser livres.
“O professor deve ensinar para o aluno que tem, não para o que gostaria de ter”, adverte
João Wanderley Geraldi, do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas:
“Só é possível definir a ação pedagógica a partir da história dos componentes do grupo”.
A teoria da emancipação confirma isso: é mais fácil para o aluno colocar-se
psicologicamente em situações conhecidas, ou próximas das conhecidas, e o professor não pode
ajudá-lo a isto se não sabe quais as situações que ele conhece.
Mas isto não quer dizer que o professor tenha de se ater às situações vividas pelo aluno
no seu ambiente de origem.
Uma situação imaginária, mas bem próxima das vividas por qualquer aluno, é a situação
de professor. Cláudio Moreno, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e Paulo Guedes,
professor do Colégio Anchieta, em Porto Alegre, obtiveram bons resultados designando alguns
alunos para dividir com eles o trabalho de correção de redações de outros alunos ( da 3a série do
2o grau ). A experiência foi premiada no Concurso Nacional de Ensino de Redação, em Brasília.
Não se trata de limitar-se às situações verossímeis, aquelas em que o aluno possa estar
efetivamente amanhã ou depois. Uma destas situações, que raramente é aproveitada no ensino de
Português, é a de ter de redigir trabalhos para professores de outras matérias — História ou
Biologia, por exemplo.
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“Entender as palavras no seu uso não é a mesma coisa que definir seus significados,
explicá-los nos seus detalhes, ou ter facilidade para parafrasear”, argumenta Luiz Carlos Cagliari,
da Unicamp: “Qualquer falante nativo usa de todo o seu conhecimento linguístico para entender
o que é dito e usa uma parte insignificante dele para falar”.
Por isto mesmo, Cagliari acha um erro fazer o aluno “reescrever com suas próprias
palavras” uma poesia, um conto, uma obra literária qualquer. Pois, não conseguindo colocar-se
verossimilmente na personalidade literária do autor ( e não possuindo a sua própria
desenvolvida ), ele vai com isso transformar a obra numa caricatura não-artística. “É semelhante a
querer derreter uma estátua de bronze e depois tentar reproduzir segundo o gênio de cada um,
achando que assim se entende melhor o que o escultor quis dizer.”
A conclusão é que a produção de textos nunca acompanha pari passu a evolução da
compreensão. O aluno que já consegue, por exemplo, compreender um conto de Machado de
Assis, não está, só por isto, habilitado a imitá-lo. As grandes obras literárias, por isto, se servem
de modelo, é para serem compreendidas e admiradas, não imitadas diretamente nem
parafraseadas. Como poderia o aluno colocar-se psicologicamente na posição do artista criador,
se não tem ainda a elasticidade interior sequer para imaginar-se na situação de um funcionário
que redige um memorando?
Tudo isto sugere que, embora seja sempre útil, como sugere Luft, fazer um aquecimento
prévio com análises de textos antes de entrar nos exercícios de redação, convém que o professor
exija do aluno um pouco menos, como redator, do que lhe exige como leitor.
Não é de hoje que se sabe que as categorias da Gramática não têm correspondência plena
com as da Lógica. Os retóricos medievais comparavam essas duas ciências, respectivamente, à
construção e à arquitetura. Construção é colocar materiais — tijolos, madeira — de modo que
fiquem de pé; arquitetura é dispor, não materiais, mas as meras proporções matemáticas dos
cômodos, numa ordem funcional e bela. As duas ciências têm pontos de contato, mas diferem
em muitos outros. A lógica é a ciência da coerência entre as idéias, e a Gramática é o arranjo
sistemático de materiais ( sons e grafismos ) que permite expressar idéias, sejam elas lógicas ou
indiferentes à lógica.
Mas, na verdade, o ensinar a pensar, a colocar as idéias em ordem, tem incumbido apenas
e exclusivamente aos professores de Português, como se Gramática e Lógica fossem a mesma
coisa. “Quando o aluno está escrevendo sobre qualquer outra disciplina, simplesmente não leva
em conta que está redigindo um texto, e passa a não se preocupar com lógica, coerência ou
gramática, coisas que só lhe são cobradas na prova de redação”, protesta Beatriz de Castro
Barreto.
O que o professor de português pode fazer, no caso, é, de um lado, exigir dos outros
professores que cobrem coerência ( e correção gramática ) dos alunos nos trabalhos de suas
disciplinas; de outro lado, pode usar estes trabalhos como ocasião de exercícios nas aulas de
Português. A lógica é tão necessária ( ou mais ) em Biologia ou História quanto em Português. E
as matérias científicas, pela importância que nelas têm a questão do método da investigação, são
muito mais propícias para o ensino de Lógica do que as aulas de Português. “Acho que o escrever
bem deve ser de fato uma ação conjunta, interdisciplinar”, conclui Beatriz.
Tão importante é este ponto, que Luiz Carlos Cagliari, discutindo a interpretação de
textos como meio de desenvolver a compreensão do aluno, não se conforma com que essa
técnica seja usada somente com textos literários, ao passo que os textos usados em Matemática,
Biologia, História, nunca são analisados como textos, isto é: passam como puros traslados do real, e
não como elaborações da inteligência humana, dotadas de forma e intenção. “Para mim”, diz
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Cagliari, “faria sentido justamente o contrário do que faz a escola: a interpretação de textos ficaria
melhor quando aplicada a um texto científico e não a um texto artístico”. Entre outras razões,
porque o texto científico tem um sentido perfeitamente explicitável e o texto artístico às vezes
tem intenções subjetivas que o aluno pode captar “por dentro”, sem ser capaz de expressá-las.
O hábito de incumbir o professor de Português de “ensinar a pensar” acaba por ter
consequências às vezes desastrosas. Muitas regras de Gramática o que fazem é confundir o
incipiente raciocínio lógico do aluno, sobrecarregando-o de noções que, gramaticalmente válidas
— isto é, legitimadas pelo uso social e culto —, no entanto não têm fundamento lógico, ou não
correspondem aos conceitos homônimos que existem em Lógica. Por exemplo, o substantivo
“Brasil”, em Gramática, é concreto, ao passo que em Lógica pode ser concreto ou abstrato segundo
a acepção em que é tomado; quando designa a autoridade formalmente exercida por um Estado
sobre um determinado território ( variável conforme as guerras e os tratados ), esse substantivo
indica uma unidade de ordem, diferente da unidade substancial dos seres físicos; e, neste sentido, é
abstrato. Quem pensa gramaticalmente acaba dando concretude de pedras e bananas a noções
abstratas, o que o torna vítima fácil dos discursos ideológicos e publicitários e o predispõe, como
dizia o historiador inglês Gordon Childe, “a matar e morrer antes por símbolos e palavras do que
pela mais suculenta das bananas”.
A diferença mais importante entre a Lógica e a Gramática é que a primeira procura
descrever esquematicamente as relações efetivamente possíveis entre coisas, ao passo que a
Gramática é um conjunto de usos humanos que podem não ter nada a ver com essas relações. As
regras lógicas têm valor universal normativo, ao passo que as de Gramática variam no tempo e no
espaço sem maior prejuízo. A mudança das regras gramaticais, com frequência, decorre de
motivações afetivas perfeitamente ilógicas.
Por essa razão, Madre Olívia, do Instituto Sedes Sapientiae, propõe que no ensino seja
omitida, por exemplo, a distinção entre concreto e abstrato. E propõe que se introduza uma
outra distinção — esta sim, lógica — entre seres animados e inanimados, destacando que só os
primeiros podem ser “sujeitos” em sentido lógico, isto é, praticar ações reais, ao passo que os
inanimados só são “sujeitos” figurativamente, isto é, gramaticalmente. Quando se diz que “as
cotações da bolsa subiram”, o sujeito gramatical — as ações — não pratica ação nenhuma: na
verdade a sofrem. O uso gramatical, neste caso, dá substancialidade e capacidade de agir a uma
mera abstração, contrariando a lógica. Um exemplo talvez ainda mais flagrante: quando dizemos,
“João surrou Pedro”, o sujeito gramatical ( João ) é ao mesmo tempo sujeito lógico ( praticou a
ação real ). Se dizemos, porém, “Pedro foi surrado por João”, o sujeito lógico continua o mesmo
( é João ), mas o sujeito gramatical agora é Pedro.
Se o professor não distinguir cuidadosamente, para os alunos, o que tem validade lógica e
o que tem validade gramatical exclusivamente, estará alimentando hábitos mentais que, a longo
prazo, podem resultar numa quase impossibilidade de pensar logicamente. Aqui, de novo, o
remédio tem de ser encontrado na colaboração com os demais professores, pedindo a estes que
dêem noções de Lógica fora do contexto gramatical.
Este é um ponto que, ao menos em teoria, não levanta mais muitas discussões. A maioria
dos teóricos concorda que é preciso primeiro vencer a barreira psicológica ( o que impõe ao
professor aceitar muitos “erros” de gramática ), para só depois, aos poucos, ir propondo com
cuidado alguma sistematização gramatical. É como dizer que um garoto primeiro tem de brincar
de bola, sentir-se jogador, para só depois aprender as regras do futebol profissional. Dito assim
parece óbvio, mas, na verdade, durante muitas gerações o ensino da gramática, dado
prematuramente, serviu para inibir a capacidade expressiva dos alunos.
É preciso distinguir entre a Gramática como sistema de usos cultos e a Gramática como
ciência. É perfeitamente possível assimilar a primeira — isto é, aprender a escrever com certa
correção — sem saber nada da segunda. E é justamente para isso que serve a leitura dos clássicos
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do idioma: lendo ou ouvindo recitar os textos dos grandes escritores do passado, o aluno assimila
mais ou menos inconscientemente uma infinidade de palavras, de torneios frasais, de conotações,
tornando-se progressivamente apto a utilizar todo esse material em contextos semelhantes, sem
ter a menor idéia de como analisá-lo gramaticalmente.
Nesse sentido é que os clássicos são modelos. Servem sobretudo para desenvolver no
aluno o sentido da forma, tão enfatizado por Savioli. Porque, por definição, a obra clássica é
aquela que alcançou um nível de realização formal superior à das outras; é aquela em que a forma
se apresenta mais plena, mais firme, mais explícita.
Talvez seja por essa razão que muitos dos bambas do jornalismo são intransigentes ao
recomendar modelos para os principiantes: “Eça, Graciliano e Machado neles”, enfatiza José
Carlos Bardawil, editor político da revista Isto É, com mais de duas décadas de experiência no
jornalismo. E José Paulo Kupfer, editor de Economia do jornal O Estado de São Paulo, declara que
jamais empregaria em sua seção um candidato que não houvesse lido pelo menos dez romances
clássicos brasileiros e portugueses.
Na verdade, o jornalista não imita Machado, Eça e Graciliano; o jornalista tem suas regras
próprias, que não coincidem com as adotadas por nenhum desses clássicos. A utilidade dessa
leitura é que, justamente, ela desenvolve o sentido da forma, que é um preliminar indispensável ao
aprendizado do jornalismo.
No jornalismo, a empostação a adotar é sempre clara e constante. O jornalista sempre fala
desde um ponto-de-vista determinado ( determinado pela publicação em que escreve e pelo
público-padrão desta), e a prática consolida essa empostação. Se o principiante não tiver um alto
sentido da forma literária mais elevada e universal, tenderá a absolutizar os padrões da linguagem
jornalística aprendida, transformando-a num sistema de cacoetes ( legitimados, às vezes, pelas
normas internas da redação ). O papel social, que ajuda a encontrar a empostação correta,
transforma-se neste caso, por excesso, em vício profissional. Para os bons jornalistas, Machado,
Graciliano e Eça funcionam como um antídoto, e não como molde a ser imitado em detalhe.
Mas é evidente que a assimilação dos modelos clássicos, nesse sentido, vem pela
contemplação admirativa, pela leitura emocionada, e não pelo conhecimento explícito das regras
gramaticais subjacentes a cada frase deles.
Aliás, o redator que assina esta matéria tornou-se jornalista profissional aos dezoito anos,
munido tão somente de um arsenal de recursos aprendidos em Machado, Eça e Graciliano ( bem
como nos escritores espanhóis que tanto admirava, especialmente Antonio Machado e Perez
Galdós ), e sempre escreveu com correção suficiente sem nada saber de Gramática. E continuou
incapaz de distinguir uma oração adverbial de uma pronominal até a idade de trinta e dois anos,
quando pela primeira vez estudou de cabo a rabo uma Gramática portuguesa, chegando à
conclusão de que este estudo, tão útil do ponto-de-vista científico, não acrescentava grande coisa
ao que aprendera pela leitura “ingênua” dos clássicos.
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1. COMO TORNAR O SEU TRABALHO ÚTIL (Cap. II, ″Le Vrai Travail Utilitaire″)
1.1 Em tudo o que voces fazem ( lições, deveres, exercícios ), e em toda ordem de
ciências ( línguas, matemáticas, história, filosofia ), BUSQUEM, se não exclusivamente, ao menos
PREDOMINANTEMENTE FORMAR A INTELIGÊNCIA: ″Quaere intellectum.″
2. COMO FAZER COM QUE SEU TRABALHO TENHA QUALIDADE, NÃO SOMENTE
QUANTIDADE ( Cap. III, /Le Travail Qualitatif )
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2.2 É preciso TERMINAR cada trabalho. Terminar não é só ir até o fim, é alcançar uma
perfeição, mesmo e sobretudo nas tarefas pequenas e modestas. Dar a cada trabalho TODAS AS
QUALIDADES que ele possa comportar. É preciso desenvolver um hábito de ″dar
acabamento″, de ″polir″, de, terminado o estudo de um item, buscar comparações, discernir
semelhanças e diferenças, leis gerais, quadros e esquemas, etc.
2.3 É preciso REPENSAR OS PENSAMENTOS ALHEIOS. Não basta que voce tenha
lido ou ouvido pensamentos verdadeiros. É preciso que voce re-conheça, isto é, conheça de novo
e de novo, encontre de novo e de novo essa mesma verdade, até que ela seja integralmente sua. É
preciso que a frase verdadeira transmitida desde fora se transforme, para voce, numa
EVIDÊNCIA INTERIOR INCOMUNICÁVEL. Aí ela é sua. Assim é que se passa do
conhecimento impessoal e inerte ao conhecimento pessoal e vivo.
Por exemplo, ao resumir um texto, não se contente em encurtá-lo, mas faça diversos
trabalhos diferentes sobre ele: primeiro, um resumo literal, com as palavras do autor; depois, um
resumo do resumo; depois, um índice de tópicos ou um esquema numérico; depois, uma
reexposição a seu próprio modo, com suas próprias palavras e considerações; depois,
comparações com outros livros, etc. Assim voce irá discernindo, na massa de fatos e idéias, as leis
gerais, a fisionomia exata de cada coisa, e poderá então proceder a comparações com a sua
experiência pessoal.
″O verdadeiro trabalho que incumbe a voces, alunos, não é aquele que o professor faz,
mas aquele que voces fazem. ( p. 62 )
″A inteligência segue as leis da vida: ela não se enriquece senão ao transformar por seu
próprio vigor a matéria, e ao assimilá-la. Há um paralelismo, mais real do que parece, entre a
digestão e a instrução.( ( id. )
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alimenta senão de sua própria substância. Vai morrer de inanição. O espírito pessoal, ao
contrário, é ávido do bem comum e o assimila por sua energia própria. O trabalho pessoal está
portanto a serviço da verdade ensinada e da tradição. ( p. 65 )
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10
I. LITERATURA DE FICÇÃO
1. MACHADO DE ASSIS
2. RAUL POMPÉIA
O Ateneu
3. COELHO NETO
Turbilhão
4. LIMA BARRETO
5. GRACILIANO RAMOS
S. Bernardo
Angústia
Vidas Secas
6. JORGE AMADO
Terras do Sem-Fim
Os Velhos Marinheiros
Fogo Morto
Cangaceiros
Terreno Baldio
O Albatroz
9. MARQUES REBELO
Oscarina
Três Caminhos
O Espelho Partido, 3 vols.
O Amanuense Belmiro
Sagarana
Grande Sertão: Veredas
Corpo de Baile
A Maça no Escuro
Quarup
Avalovara
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Gonçalves Dias
Castro Alves
Alphonsus de Guimaraens
Cruz e Souza
Manuel Bandeira
Carlos Drummond de Andrade
João Cabral de Melo Neto
Cecília Meirelles
Jorge de Lima
Murilo Mendes
Alphonsus de Guimarães Filho
Alberto da Cunha Mello
Bruno Tolentino
NB - O melhor de uma obra poética está com frequência em pequenas peças isoladas, motivo
pelo qual não interessa dar o nome dos livros em que constam, em geral meras coletâneas. Cada
um dos poetas acima citados é autor de pelo menos uma pequena obra-prima indiscutível.
1. MÁRIO DE ANDRADE
2. MANUEL BANDEIRA
Itinerário de Pasárgada
3. SÉRGIO MILLIET
Diário Crítico
4. ÁLVARO LINS
Jornal de Crítica
A Técnica do Romance em Marcel Proust
6. AUGUSTO MEYER
A Forma Secreta
Preto e Branco
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7. WILSON MARTINS
8. ANTÔNIO CÂNDIDO
IV. FILOSOFIA
1. MAURÍLIO T. PENIDO
Da Analogia
2. MIGUEL REALE
Filosofia do Direito
Verdade e Conjetura
Pluralismo e Liberdade, etc.
Filosofia da Crise
Filosofia Concreta, 3 vols.
Pitágoras e o Tema do Número
A Sabedoria dos Princípios
A Sabedoria da Unidade
A Sabedoria do Ser e do Nada
Escritos de Filosofia
1. JOAQUIM NABUCO
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Um Estadista do Império
2. OLIVEIRA LIMA
D. João VI no Brasil
3. CAPISTRANO DE ABREU
4. EUCLIDES DA CUNHA
Os Sertões
5. ALCÂNTARA MACHADO
6. PAULO PRADO
Retrato do Brasil
7. LUÍS MARTINS
O Patriarca e o Bacharel
8. OLIVEIRA VIANNA
9. GILBERTO FREYRE
Raízes do Brasil
Visão do Paraíso
A Cultura Brasileira
Civilização e Cultura
Bandeirantes e Pioneiros
Os Donos do Poder
Conhecimento e Política
VI. MISCELÂNEA
1. FRANCISCO DO MONTE-ALVERNE
Sermões
3. RUY BARBOSA
Discursos Seletos
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4. RUBEM BRAGA
Crônicas
5. JORGE ANDRADE
Teatro
6. ARIANO SUASSUNA
Teatro
7. PEDRO NAVA
Baú de Ossos
8. GUSTAVO CORÇÃO
A Descoberta do Outro
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11
I. FILOSOFIA
(a) em latim
(b) em português
II. HISTÓRIA
IV. FICÇÃO
18. Camilo Castelo Branco, A Queda dum anjo; Novelas do Minho; Eusébio Macário; A
Brasileira de Prazins
19. Eça de Queiroz, Os Maias; A Ilustre Casa de Ramires
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V. TEATRO
VI. HUMANIDADES
VII. MISCELÂNEA
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12
1. Homero Ilíada
2. Odisséia
3. Ésquilo Prometeu Acorrentado
4. Sófocles Édipo Rei
5. Heródoto História
6. Tucídides História da Guerra do Peloponeso
7. Platão O Banquete
8. Mênon
9. A República
10. Aristóteles Organon
11. Metafísica
12. Física
13. Da Alma
14. Ética
15. Política
16. Hipócrates Escritos Médicos
17. Galeno Das Faculdades Naturais
18. Euclides Elementos
19. Epicteto Discursos
20. Virgílio Eneida
21. Sto. Agostinho Confissões
22. A Cidade de Deus
23. Sto. Tomás de Aquino Suma contra os Gentios
24. Suma Teológica
25. S. Boaventura Itinerário da Mente a Deus
26. Dante Alighieri A Divina Comédia
27. Anônimo Santo Graal
28. Giacomo di Varezzo A Legenda Dourada
29. Maquiavel O Príncipe
30. Hobbes Leviatã
31. Shakespeare Otelo
32. Rei Lear
33. Macbeth
34. Hamlet
35. Nicolau de Cusa Da Douta Ignorância
36.Martinho Lutero Discursos
37. Galileu Duas Novas Ciências
38. Cervantes Dom Quixote
39. Camões Os Lusíadas
40. Bacon Novum Organum
41. Descartes Meditações de Filosofia Primeira
42. Discurso do Método
43. Spinoza Ética
44. Racine Fedra
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