Este documento discute a importância da verdade e da concórdia para a liberdade e a convivência pacífica. Afirma que o erro e a falsidade levam à servidão, enquanto o respeito à verdade e às diferenças entre as pessoas permite a concórdia. Critica o integrismo e o nacionalismo por tentarem impor visões particulares como universais, ignorando a diversidade da realidade.
Este documento discute a importância da verdade e da concórdia para a liberdade e a convivência pacífica. Afirma que o erro e a falsidade levam à servidão, enquanto o respeito à verdade e às diferenças entre as pessoas permite a concórdia. Critica o integrismo e o nacionalismo por tentarem impor visões particulares como universais, ignorando a diversidade da realidade.
Este documento discute a importância da verdade e da concórdia para a liberdade e a convivência pacífica. Afirma que o erro e a falsidade levam à servidão, enquanto o respeito à verdade e às diferenças entre as pessoas permite a concórdia. Critica o integrismo e o nacionalismo por tentarem impor visões particulares como universais, ignorando a diversidade da realidade.
mais evidente essa promessa evangélica: a verdade é a própria condição da liberdade, porque o erro - para não dizer a falsidade - conduz inevitavelmente à servidão. Grande parte dos males deste mundo, aqueles que são em princípio evitáveis - porque dependem dos com portamentos humanos e não da estrutura da realidade -, procede das más relações com a verdade, que podem chegar à aversão por ela, a levá-la a ser considerada o inimigo que deve ser evitado ou destruído. A falta de clareza sobre isso faz que não se entenda grande parte do que ocorreu ao longo da história e continua acon tecendo na atualidade. Não só a liberdade é conseqüência da verdade, de sua descoberta e de sua aceitação. A concórdia o é igual mente. Convém não confundi-la com a unanimidade, nem mesmo com o acordo. A diversidade do humano, a índole conflituosa, exclui a homogeneidade, a unani midade, que sempre é imposta, precisamente à custa 2 TRATADO SOBRE A CONVIVÊNCIA
da verdade, de seu desconhecimento ou falsificação.
O desacordo é muitas vezes inevitável. Mas pode ser confundido com a discórdia. Esta é a negação da convivência, a decisão de não viver juntos aqueles que discrepam em certos pontos, em algumas questões em que o acordo não parece pos sível. As diferenças não podem levar ao esquecimento dos elementos comuns, nos quais se funda precisa mente a possibilidade da convivência. E essa palavra me parece valiosa; em muitas línguas não existe, sen do substituída pelo vocábulo "coexistência", que é algo muito diferente . Coexiste tudo o que existe juntamente e ao mes mo tempo. As coisas coexistem, e o homem com elas; conviver é viver juntos e se refere às pessoas como tais. Isto é, com suas diferenças, com suas discrepâncias, com seus conflitos, com suas lutas no âmbito da con vivência, dessa operação que consiste em viver juntos. Isso é precisamente a concórdia, cuja condição é o escrupuloso respeito ao que é verdade, ou seja, à estru tura da realidade, o que exclui a homogeneidade, a una nimidade, que escassas vezes existe; e igualmente o desconhecimento dos fatores comuns, desde a condição humana até a contemporaneidade, isto é, a pertinên cia a um mundo que, se não é uno, está em presença e no quadro de um sistema de relações mútuas; e, sem dúvida, todas as unidades históricas, sociais, culturais, não menos reais que a diversidade e as diferenças. Viver, para o homem, não é um empreendimento demasiado fácil. Ele não tem outra solução senão acer tar; sua vida é permanente insegurança; não dispõe de INTRODUÇÃO 3
um sistema eficaz de instintos que orientem e regu
lem seu comportamento; tem projetos, sendo neces sário decidir se são ou não factíveis, e se são conciliá veis com os dos outros homens. Por essa razão, o erro, tão raro na vida animal, é a ameaça constante da vida humana. Por isso, o homem não pode senão pensar, usar a razão, que nem sempre possui em grau neces sário, mas de que - e isto é o decisivo - precisa, sem a qual não pode viver humanamente. Se se observa o mundo atual, vê-se que está cheio de conflitos, com freqüência atrozes, que se procura evi tar sem pensar primeiro em suas causas, sem tentar ver em que consistem. Recorre-se a diversas terapêuticas sem preocupar-se com o diagnóstico. Foram freqüentes na história a imposição das vi gências majoritárias, a opressão dos discrepantes, o fato de não reconhecê-los e respeitar suas diferenças, a possibilidade de conviver com eles. Alguns resquícios dessa atitude perduram em nosso tempo, mas ela está sendo substituída por outra, que de certo modo a in verte: são os discrepantes que procuram impor-se, e isso de duas formas ou graus. Em alguns casos, mediante a ruptura da convivência, isto é, negando-se a conviver como parcelas de unidades superiores e com diversi dade. Em outro, de forma mais exacerbada, pretendem impor sua variedade particular a essas unidades - tal vez ao mundo inteiro -, correndo o risco de sua destrui ção e ruína, com o máximo desprezo ao que é a reali dade efetiva e, portanto, à verdade. O que costuma ser denominado "integrismo" ou "fundamentalismo" é o exemplo atual dessa atitude. 4 TRATADO SOBRE A CONVIVt.NCIA
É a inversão da forma tradicional de abuso: não o das
maiorias, mas o das minorias. À injustiça e à violência se agrega a inverossimilhança; não apenas a falta de razão, mas a inversão da racionalidade. É a versão mais acentuada de tomar a parte pelo todo. Por isso, é difícil compreender esses fenômenos, que brotam e proliferam em diversas partes do mundo. Isso suscita um problema intelectual de grande mag nitude, ao qual se presta muito pouca atenção. Como é possível? A tendência a impor a uniformidade, a considerar que o valioso é o que é compartilhado por quase todos, a "surpresa" negativa, e que pode ser hostil, com relação ao que rompe a unidade e a coe rência é algo que significa uma violência exercida so bre o real, mas é inteligível, embora reprovável. O discre pante produz um evidente incômodo, obriga a rever a posição pessoal, a realizar ajustes a outras visões do mundo - em suma, complica as coisas. Mas o fato de se chegar a uma situação em que acontece o contrário, em que se pretenda estender uma interpretação mar ginal e fragmentária a um amplo conjunto, em casos extremos a todo o mundo, ultrapassa os limites da com preensão normal. Sempre recordo o admirável título de um capítulo do curioso livro do Pe. Antonio Fuente la Pena, El ente dilucidado, publicado por volta de 1690 e que comprei há muitos anos: " Sobre se os monstros são eles ou so mos nós". A perplexidade do bom frade me invade mui tas vezes, e não a propósito dos duendes, assunto prin cipal do livro, mas de muitos contemporâneos. O grau de fanatismo que esses fenômenos supõem não é mui- INTRODUÇÃO 5
to bem explicado, e tenho a impressão de que mal se
tenta fazê-lo. Sua origem é provavelmente a de espa ços confinados, caracterizados por "ritos de iniciação" que obnubilam a visão do real e a substituem por al guma fantasmagoria. Mas resta entender como se con segue a extraordinária difusão que esses fenômenos têm, transcendendo os estreitos limites de uma seita. Creio que a chave está no incrível poder que nesta época conseguiram os meios de comunicação, que per mitem a proliferação maciça do que se engendrou em obscuros espaços maníacos. Mas mesmo assim falta compreender a estrutura psíquica - talvez fosse melhor dizer antropológica - que permite a entrada e o enrai zamento dessas estranhas formas de instalação vital. Algo mais inteligível é a forma que se pode dizer atenuada dessa "imposição da discrepância", aquela que não consiste especialmente em "proselitismo" e pretensão de universalidade, mas que, ao contrário, se reduz à "dissidência", à ruptura das unidades superio res e mais complexas. É o caso do que se chama "na cionalismo", que apareceu brevemente na Europa no começo do século XIX e reapareceu aqui e ali em nossa época, e em continentes em que não existiu propria mente a estrutura nacional das sociedades. Por diversos motivos - ou pretextos -, que podem ser as diferenças reais, históricas, religiosas, lingüísticas, que são conciliáveis com a convivência e foram normais em quase todo o mundo, ou então fundando-se em algo tão problemático e discutível quanto a diversidade étnica, rompem-se as unidades amplas, embora tenham uma realidade muito superior à de seus componentes, 6 TRATADO SOBRE A CONVIVÊNCIA
e se enfatiza o diferencial, desdenhando o comum, que
pode ser de magnitude e alcance incomparáveis. A forma mais aguda, grave e irracional é o estado de fragmentação étnica da África, o que poderíamos de nominar a substantivação das tribos, que alcança limi tes incalculáveis de ferocidade, destruição e absurdo. Num grau menor, mas que pode chegar a extremos comparáveis, há a ocorrência desse fenômeno em so ciedades européias, de longa história e que foram ca pazes de consideráveis refinamentos, daquilo que em outros tempos se chamava "civilização" . A realidade presente do que foi até há pouco a Iugoslávia - um dos resultados do desmembramento de uma das con quistas mais admiráveis da política e da sociologia, apesar de seus evidentes defeitos, o Império Austro Húngaro - é um aterrador exemplo do ponto até onde pode levar isso que se designa como nacionalismo. Seu ponto de partida é o fascínio por essa forma particular de sociedade e de estrutura estatal que rece be o nome de "nação". Considera-se pressuposto que se trata do "superior" e, em conseqüência, se aspira a isso. Não importa o fato notório de que um grande número das formas mais ilustres de convivência não foram nações. Nem as cidades gregas, de tão maravi lhosa memória, nem a Hélade em seu conjunto, nem Roma - nem a urbs nem o Império -, nem o califado do Oriente, nem o de Córdoba, nem nenhum reino ou principado medieval na Europa, nem o Sacro Império Romano Germânico, foram nações. No sentido moderno da palavra - não no senti do medieval, ligado ao "nascimento", e do qual se con- INTRODUÇÃO 7
serva até a expressão "tonto de nación" [tolo de nas
cença] -, não houve nações até o final do século XV, em primeiro lugar Espanha e Portugal, um pouco de pois França e Inglaterra, mais tarde as outras que che garam a ser nações, e que nunca vieram a ser todas as partes da Europa. O uso dessa palavra se estendeu, com bastante inadequação, à América, e depois a todo "estado", supostamente independente, e assim se fala de Nações Unidas. O nacionalismo é a hipertrofia da condição nacio nal, principalmente por parte das nações mais tardias, recentes e de breve história como tais - por exemplo, a Itália e a Alemanha, que chegaram a sê-lo por volta de 1870 -, e mais ainda por parte das unidades de convi vência que nunca foram nações, mas partes das ver dadeiras (ou de conjuntos mais amplos e de caráter não propriamente nacional, como o mencionado Im pério Austríaco, o Austro-Húngaro, ou a imensa po tência colonial que foi a Rússia, e, durante meio século, a União Soviética) . Quando se fala de "nações" na Idade Média, re nuncia-se a entender o seu significado. Não existiram em nenhum lugar da Europa, e menos ainda fora dela. Na Espanha, não o foram nem mesmo as duas maio res comunidades, os reinos de Castela e Aragão - não digamos suas partes integrantes, unidas neles por duas séries de incorporações. Outro tanto poderia ser apli cado ao resto da Europa, fora da Península Ibérica. Qual foi o estímulo mais freqüente dessa defor mação da realidade que é o nacionalismo? As diferen ças são consideráveis, de acordo com os lugares e as 8 TRATADO SOBRE A CONVIVÊNCIA
épocas. O fator quase constante é o descontentamento.
Mas deve-se perguntar com o quê. A habitual persis tência desse sentimento sugere que não se trata da si tuação mas da condição. A situação refere -se a "como vão as coisas" para alguém, individual ou coletivo; a condição, ao que "é". Pode-se estar descontente com a situação em algum momento da vida ou fase da his tória; mas sempre? Há alguma situação que abarque toda a vida de uma pessoa, ou a história inteira de uma sociedade? Se se trata da condição, do que se é, a coisa é mais grave. Indicará alguma deficiência ou anomalia cons titutiva? Não é provável. Há comunidades que se con sideram "oprimidas" desde sempre. Não é verossímil; uma sociedade, às vezes toda uma nação, pode passar por uma etapa transitória de opressão; grandes parce las da Europa a padeceram, em alguns casos durante decênios; mas sempre? Se assim fosse, dever-se-ia pen sar em alguma inferioridade, o que, dada a condição livre do homem, se mostra inverossímil. É preciso pensar, em contrapartida, num erro, numa interpretação falsa da realidade própria e de suas relações com outras ou com os conjuntos a que se pertence. Quase sempre, essa distorção da realidade, que engendra o descontentamento e o mal-estar, isto é, a falta de verdadeira instalação, e com isso o desas sossego, é algo inventado por alguns, de origem indi vidual, que contagia outros e que finalmente se arraiga, transformando-se na interpretação vigente, dificílima de superar. Essa é a origem da imensa maioria das di�córdias que afetam nosso planeta. Os homens lutaram entre si INTRODUÇÃO 9
desde que o mundo é mundo, quase sempre com gran
de torpeza, amiúde com grande violência e crueldade . Mas não se tratava propriamente de discórdias, mas de ambições, interesses, afã de predomínio. As guer ras entre nações eram conciliáveis com a admiração mútua; as lutas em seu interior eram conflitos entre partes que não se excluíam. Foi preciso chegar a tempos recentes para que apareçam os fenômenos de distorção da realidade que estou mencionando. As rupturas da concórdia - que é do que se trata - têm duas condições: uma delas, a ati tude totalitária, a idéia de que tudo é politicamente re levante; a outra, o incremento do poder dos meios de comunicação, o que torna possível que os vírus "pe guem" e se estendam a grandes parcelas de uma so ciedade, ou ao conjunto dela. Trata-se, pois, do que acontece à verdade; quando esta é desconhecida ou negada, não só se perde a li berdade e se é servo da falsidade, como também é sus citada a destruição da concórdia, da capacidade de con viver conservando todas as diferenças, as discrepâncias ocasionais; em suma, o conjunto das diversas e verda deiras liberdades.