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Resumo: O presente texto propõe uma “viagem” por meio da leitura de alguns poemas da autora Amália Verlangieri
que foram publicados em alguns periódicos mato-grossenses em meados do século XX: Ganga (1951/1952) e
Sarã (1951-1952), periódicos que surgiram em Cuiabá na esteira do movimento modernista desencadeado no
Estado, em 1939, por meio da Revista Pindorama.
Palavras
alavras--chave: Literatura Brasileira, Mato Grosso, Imprensa, Amália Verlangieri.
Keywords: This essay purposes a “trip” through the reading of some poems of the author Amália Verlangieri, which
were published in some mato-grossense periodical in the middle of the 20 century: Ganga (19511952) and Sarã
(1951-1952). These periodic arose in Cuiabá on the Modernist movement wake that began in the state through the
Pindorama Magazine in 1939.
Sabemos que é com a realização da “Semana produção poética de Amália Verlangieri, que
de Arte Moderna”, em 1922, organizada pelo publicou em alguns periódicos que apareceram
irreverente grupo paulista, que se define a em Cuiabá – Mato Grosso, na esteira das idéias
modernização das artes no Brasil. Os adeptos implantadas pela “Semana da Arte Moderna”.
desse movimento experimentaram, então, uma fértil Faz-se pertinente localizar, também, mesmo que
inquietação intelectual com preocupações de rapidamente, a produção de cunho feminino desse
caráter nacionalista e investiram contra um período no meio cultural mato-grossense.
contexto cultural do país considerado arcaico. Através do estudo realizado por Yasmin Nadaf
Movimento este que abriu “fazendas” no sertão (1993), pudemos obter informações a respeito dos
brasileiro. primeiros decênios do século XX, quando a mulher
Em diferentes datas e locais, o movimento pela teve ativa participação na vida intelectual no estado
modernização artística e cultural surge em todo de Mato Grosso, sendo colaboradora de jornais
Brasil. Em Mato Grosso (LIMA, 2000), província e revistas, de maneira que em 1916 cria-se um
isolada dos principais centros do país, na época grêmio literária por nome de “Júlia Lopes”,
– a luta por uma renovação artística chega, por composto somente por mulheres e que perdurou
meio da revista Pindorama, somente em 1939, até 1950. Desse grêmio surgiu A Violeta - órgão
portanto, dezessete anos após o lançamento de de divulgação literário. Em 309 exemplares,
Klaxon, em São Paulo, momento em que já não localizados por Yasmin Nadaf, a pesquisadora
havia grupos preocupados em lançar movimentos, constata que grande parte da produção da revista
como houve no decorrer da década de 20. A diz respeito, direta e especificamente, à mulher –
ficção, nesse momento, encontrava-se em extremo “a mulher-esposa, a mulher-mãe, a mulher-
amadurecimento e fecundidade no país. Período namorada, a mulher-filha, a mulher-moça, a
este em que o Brasil atravessava a fase de pré- mulher-educadora, a mulher-estudante, a mulher-
consciência de seu subdesenvolvimento – segundo funcionária pública e a mulher-profissional liberal”
reflexão de Antonio Candido (1989). (NADAF, 1996, p. 470). Com exceção deste e de
Diante dessa breve localização espacial e alguns outros estudos, há um vazio na história
artística em relação à modernização das letras no literária quanto a uma pesquisa direcionada à
país, faz-se objetivo deste artigo discorrer sobre a literatura de autoria feminina em Mato Grosso.
1
Marinei Almeida – professora da UNEMAT - Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus de Pontes e
Lacerda – Mestre e doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa – FFLCH/USP.
era uma atividade rara no início do século e, Viver como peixe, nadar,
mesmo assim, um privilégio de poucos, Descobrir o mistério das profundezas obscuras
notadamente de homens. Isso explica, pelo tão feias!
menos em parte, o anonimato em que perma- Quem sabe? Talvez lindas...
necem vários escritores e escritoras até hoje. (Mas... não me apraz esta idéia?)
(2001, p. 80). Pois o meu leito não seria sempre a lama?
Por isso entre o céu e o mar,
Talvez estes sejam alguns dos motivos de Sem arredar o pé da terra,
encontrarmos, muitos anos depois, na casa de Construo sonhos, divago...
Dona Carmela Verlangieri Ferreira Mendes, irmã Subo ao céu e desço ao mar.
(Ganga, n. V, ano I, p. 5)
de Amália, um simpático diário recheado de
poemas escrito a mão, num total de cinqüenta e
O poema apresenta um “eu” que, ao mesmo
dois, em versos livres, e um soneto, todos datados
tempo que está na terra, pelo imaginário, desloca-
do período de 1951 a 1955 com temas bem
se: “subo ao céu e desço ao mar”. A construção
variados, lançando mão de metáforas
poética bem ritmada, com farta pontuação, recheada
relacionadas à modernidade, principalmente os
de elementos que oscilam entre atos de elevação e
que refletem a dor humana em meio ao caos do
queda, tonalidades escuras e claras, remete a essa
século XX.
dupla situação do sujeito lírico: estar e não estar,
No entanto, ressaltamos que nos deteremos
aproximação e afastamento do real imediato.
em apresentar apenas alguns poemas de Amália
Além dos símbolos, “sol”, “asa”, há no poema
publicados nos três periódicos: O Arauto de
a presença de outros elementos, ora explícitos,
Juvenília (1949), Ganga (1951/1952) e Sarã
ora apenas sugeridos, como o do “fogo”, em “se
(1951/1952).
me queimassem as asas”, construções que referem
Amália Sizínia Verlangieri nasceu em Cuiabá
à queda, portanto, a um vôo frustrado. Alguns
no dia 22 de julho de 1930 e faleceu em Brasília
outros elementos que também compõem o
em 29 de agosto de 1976. De acordo com sua
universo desse poema, como o “mar”, o “céu”, a
irmã, Amália tinha dois sonhos: o de ser médica
“terra”, os quais podem ser relacionados como
e o de concluir seus estudos de piano no
imagens ligadas ao mito de Ícaro, o que nos parece
Conservatório do Rio de Janeiro, no entanto,
sintetizar a problemática principal do poema: a
Amália não conseguiu realizá-los. Porém, seus
viagem, mesmo que imaginária, a um outro
dotes poéticos se fizeram notar aos nove anos,
mundo possível. Esse desejo de estar em outro
quando fez uma pequena poesia saudando sua
mundo é realizado, não precisamente, pela evasão
avó pelo aniversário.
do real, mas a partir do real traçando o desenho
Com relação à sua produção poética, os temas
de outra realidade, uma vez que a imaginação é
e formas adotados por Amália Verlangieri são
importante na constituição utópica, no sentido de
variados e com ricas construções metafóricas que
que está alicerçada na realidade concreta da vida,
fogem do academicismo adotado pelos
como lembra-nos Benjamin Abdala Junior (2003).
colaboradores de alguns periódicos, sobretudo de
Alguns dos elementos ligados a “viagem”
Ganga.
também comparecem em outros poemas, muitas
Em “Se me fosse dado”, poema composto de
vezes associados aos transportes (comboio,
dezenove versos em uma única estrofe, aparecem
automóvel, navio) e outras vezes relacionados ao
vários elementos carregados de ambigüidade,
mar (água), à estrada (terra) ou ao vôo (ar).
onde se lê:
Em “Alma das Cousas”, destacamos o
Se me fosse dado voar, sozinha, elemento “água”, responsável pela divagação do
Sem avião nem zepelim, sujeito lírico que, ao mirar a água e contemplar
Como o pássaro, ou rubro papagaio seu efeito, a compara às lágrimas de alguém,
Armado em meio do jardim, trazendo este “eu” de volta à realidade concreta.
Que sobe, se contorce, Sugere, então, o ato de ir e vir dos estados de
Transforma-se em ponto negro alma, portanto refere-se à viagem interior:
E enfia-se pelas nuvens...
Talvez... se me queimassem as asas A água que cai agora
À luz do sol, das estrelas... Tão mansa, tão quieta,
Se me fosse dado baixar Parece a lágrima escorrendo
No rosto dum menino pobre. Neste poema, em que aparecem vários versos
imperativos, há um apelo misturado a certa
E em tudo há certa mágoa, desalento irritação. Um ser desiludido clama por algo novo
Tão grande e profundo, e por uma nova vida que tenha o poder de afastar
Que alma das cousas se emudece
todo sofrimento “feito desta mentira enganadora/
E se curva, humilde, como ante um altar.
do raio do luar!...”. O poema apresenta uma
E eu que andava a falar... atmosfera melancólica, uma nota de tristeza e
Parei para escutar desencanto perante a vida humana. Há nesse
A alma das cousas falar... percurso de introspecção uma busca angustiada.
(Ganga, n. V, ano I, p. 5) Em “Luar” há também a presença de alguns
elementos que refletem o descontentamento com
Em tom melancólico de reflexão, a divagação o mundo, num tom bastante sombrio:
se dá por meio de uma nota profunda de tristeza
e desencanto diante da vida terrena. Este tom Pálida renda, mansamente posta
sombrio é reforçado pela repetição do advérbio As asas brancas de um perdido sonho
de intensidade “tão”, na primeira e segunda Luz fina, transparente, quase morta,
estrofes. O movimento na primeira estrofe é Que se desfaz em prata, lentamente.
Errantes formas desenhadas
provocado pela “água que cai” e remete à queda
Contra o painel errante.
das lágrimas e na estrofe seguinte o ato de curvar- Espectros do ser, sombras calcadas
se resulta no silêncio e contemplação do ser. Sobre o fundo distante.
Um outro poema que destacamos é “Que Sons penetrantes, demorados,
levem Tudo”, o qual mostra um conflito do ser De suaves vozes entoados.
diante do mundo e o anseio por algo novo: Frio de luz que não aquece.
Alva esteira anunciando a prece
Levem daqui essa música e todo esse barulho De um esquecido adeus.
humano Espumas de luz, entrecortadas asas.
Que lembra vida, sangue e suor. Leves eflúvios perpassantes
Tragam-me algo novo, diferente e misterioso De anseios mortos, já distantes.
para mim. Fino lençol, lágrimas derramadas
Não me tentem com quadros e pinturas, No rosto frio da saudade.
Nem me iludam estas palavras arrebatadas pelo Mágoa calada, adormecida,
vento. No doce esquecimento anda perdida.
Quero algo que me faça viver em outra terra. Pétalas brancas, reunidas
Num mundo diferente, delicioso, Na branca maciez das rosas brancas.
Onde se viva de sonhar e amar, Trêmulas notas, faces fugidias.
Num “dolce far niente” sem cessar. Filtro perene de belezas
Mas tudo, como disse, diferente disto aqui. Refletidas na doçura
Levem estas grades para longe, levem... Desta melancolia
E todas estas necessidades humanas, tão tris- (Ganga, n. VII, op. cit., p.9)
tes e mesquinhas
Porque o mundo que me trarão será imenso, Ao expressar o efeito do raio de luz refletido
sem limites... pela lua, cria-se um clima de tristeza e
E todos caberão dentro dele. introspecção. A ação da lua remete a um outro
Levem este marulhar incessante elemento carregado de subjetividade – a noite –
Das águas do mar,
neste caso, metáfora da intimidade, companheira
Que cada batida esmaga
Uma saudade escondida. eterna do encontro do ser com o próprio “eu”;
Levem tudo o que possa magoar elemento, aliás, muito utilizado pelos românticos
E molhar os meus olhos pela sensibilidade. e, mais tarde, pelos simbolistas e modernistas,
Que fique apenas comigo o meu mundo, objetivando demonstrar o desdobramento, não
Pobre mundo! meu e de ninguém! apenas da personalidade mas, do mundo.
Feito desta mentira enganadora Há, portanto, na produção poética de Amália
Do raio do luar!... Verlangieri um tipo de modernismo que dialoga
(Ganga, n. IV, ano I, p. 16) com outras tradições, não a de contestar tais
tradições, mas de assimilar a sua modernidade.
Assim já havia feito o poeta Cruz e Souza que, grossense que há muito dorme em solitários
noutra perspectiva, ao lançar mão de versos livres arquivos e mostram, sobretudo, o que a torna
e brancos, antecipava procedimentos que seriam autônoma ao dialogar com nomes reconhecidos
explorados pelos modernistas e acabava, com isso, na história da Literatura Brasileira, uma vez que
abolindo a rigidez das estéticas vigentes, as produções de Amália são ricas de modernas
mantendo, ao mesmo tempo, a atmosfera construções imagéticas.
simbolista como eixo de força de sua poesia. Através dessas imagens como as do vôo, da
As construções poéticas de Amália, em sua noite, da chuva, da viagem - e o que tais imagens
maioria, apresentam versos breves e ritmados. E o sugerem sobre a solidão e o desencanto do homem
tema principal é o da melancolia perante as diante do moderno e do efêmero, além dos vários
angústias da vida. Estas características são bastante recursos estilísticos dessa produção, é que situamos
próximas do que observamos nos poemas de Cecília a obra desta autora no tardio movimento em prol
Meireles, considerada por Davi Arrigucci Júnior “a da modernização artística e cultural no cenário
expressão mais alta da poesia moderna, renovada da literatura produzida em Mato Grosso.
na riqueza e originalidade das imagens, mas sem
romper com os elos da tradição” (s.d., p. 241). A Aceito para publicação em 23/04/2007.
produção literária de Cecília Meireles passou por
vários momentos, mas, de modo geral, sua poesia REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
se firmou pela inovação, pela simplicidade de seu
canto e trovas, mostrando uma vasta compreensão ABDALA JR., Benjamin. De vôos e ilhas: literatura
do mundo e da vida, em versos recheados também e comunitarismos. São Paulo: Ateliê editorial, 2003.
de desesperança, desalento, angústia, mágoa,
saudade e solidão. A autora fazia de sua poesia ARRIGUCCI JUNIOR, Davi. Poesia e estilo de
“um grito transfigurado”, segundo Alfredo Bosi Cecília Meireles. São Paulo: [s.n.,s.d.].
(1999, p. 461).
A atmosfera melancólica e solitária, através BIBLIOGRAFIA MATOGROSSENSE. Org.
da introspecção do sujeito lírico que comparece Fundação Cultural de Mato Grosso – Governo
em Cecília Meireles, é o que vislumbramos também Garcia Neto. Cuiabá-MT, 1976.
em “Alma das Cousas” de Amália Verlangieri,
poema comentado anteriormente. BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São
O tema do sonho e da introspecção do sujeito Paulo: Cultrix, 1977.
lírico, cultivado por Cecília Meireles, aparece no
poema “Chuva”, que faz parte do diário de Amália, CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento.
publicado também em Sarã sob título “Sonho”, In: ______. A educação pela noite e outros ensaios.
em julho de 1951. 2. ed. São Paulo: Ática, 1989.
A chuva feroz e barulhenta
FILHO, José Vicente Monteiro. Literatura
Passou
E em lugar, um sol frio e aguado matogrossense para vestibulares. Ganga – jornal
Chegou. de cultura, Cuiabá, 1990, ano I, v.1-7.