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PONTES ENTRE AGRICULTURA FAMILIAR
E AGRICULTURA BIOLÓGICA

Cristina Amaro da Costa (coordenação),


Cristina Parente, Ana Aguiar, Raquel Guiné,
Daniela Costa, Helena Esteves Correia,
Paula Correia e Cláudia Chaves

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Iberografias

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Colecção Iberografias
Volume 37

Título: Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Editores: Cristina Amaro da Costa (Coord.), Ana Aguiar, Cristina Parente, Daniela Costa, Helena Esteves Correia, Raquel Guiné,
Paula Correia, Cláudia Chaves
Autores: Ana Aguiar, Ana Entrudo, Andreia Martins, Ângelo Rocha, Aníbal Cabral, Carmo Bica, Cecília Delgado, Cláudia Chaves,
Cristina Amaro da Costa, Cristina Parente, Daniela Costa, Duarte Costa Guimarães, Emília Coutinho, Emiliano Tapia, Fábio
Gomes, Fernando Carlos Alves Martins, Fernando Delgado, Fernando Oliveira Batista, Filipa Almeida, Filipa Janson, Francisco
Bendrau Sarmento, Frederico Costa Guimarães, Helena Esteves Correia, Irene Aurora Santos, Isabel Mourão, Joana Neto, Joaquim
Pinho, José Rocha Fernandes, José Sousa Guedes, Liliana Pinto, Luísa Silva, Manuel António Silva, Maria C. Silva, Maria do Céu
Godinho, Maria Helena Marques, Maria Victória Garcia Medina, Paula Nelas, Paula Correia, Paulo Barracosa, Pedro Barbosa, Pedro
Reis, Sara Moreira, Raquel Guiné, Raúl Rodrigues, Rui Dionísio, Rui Jacinto, Telmo Costa, Vitor Barros

Pré-impressão: Âncora Editora

Capa: Cláudia Fonseca | Âncora Editora


Fotografia: Ana Santos (Portugal)

Impressão e acabamento: Grafisol

1.ª edição: março 2020


Depósito legal n.º 467941/20

ISBN: 978 972 780 717 8


ISBN: 978-989-8676-22-1

Edição n.º 41037

Centro de Estudos Ibéricos


Rua Soeiro Viegas n.º 8
6300-758 Guarda
cei@cei.pt
www.cei.pt

Âncora Editora
Avenida Infante Santo, 52 – 3.º Esq.
1350-179 Lisboa
geral@ancora-editora.pt
www.ancora-editora.pt
www.facebook.com/ancoraeditora

O Centro de Estudos Ibéricos respeita os originais dos textos, não se responsabilizando pelos conteúdos, forma e opiniões neles expressas.
A opção ou não pelas regras do novo acordo ortográfico é da responsabilidade dos autores

“Agradece-se ao Projeto PROJ/CI&DETS/CGD/0006: “Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica”, financiado através
da parceria entre o Politécnico de Viseu e Caixa Geral de Depósitos, e ao CI&DETS e CERNAS, financiados pela Fundação para a
Ciência e Tecnologia (FCT)”

Apoios:

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Preâmbulo
O rural e a agricultura: das ausências à geografia da esperança 11
Rui Jacinto
Pontes. E redes. 19
Cristina Amaro da Costa
Capítulo 1. Agricultura familiar e agricultura biológica: conceitos e práticas 23
Editores: Helena Esteves Correia e Daniela Costa

Conceitos
Agricultura familiar e biológica: modelos tecnológicos e dinâmicas 29
Pedro Reis
Agricultura familiar e agricultura biológica: conceitos 33
Isabel Mourão

práticas
PROVE – Promover e vender 43
José Sousa Guedes
O que fazer para aproximar a agricultura familiar da agricultura biológica. 47
Ângelo Rocha
A Segurança alimentar, do ponto de vista da agricultura familiar e biológica, como 49
um caminho de cura do nosso planeta.
Liliana Pinto
Testemunho de um horticultor de agricultura convencional. 53
Manuel António Silva
Agricultura familiar, agricultura biológica e desenvolvimento rural. Perspetiva de 57
uma família de jovens agricultores.
Filipa Janson, Frederico Costa Guimarães, Duarte Costa Guimarães

Um exemplo do programa PROVE na Área Metropolitana do Porto. 59


Pedro Barbosa

Capítulo 2. Agricultura familiar: do direito à alimentação até ao consumo 61


Editores: Paula Correia e Raquel Guiné

Do direito e das políticas


O alimento e a agricultura familiar. 67
Paula Correia e Raquel Guiné
Uma estratégia alimentar sem território. 71
Cecília Delgado
O papel central da mulher para a realização da alimentação enquanto direito. 77
Maria Victória Garcia Medina

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A agroecologia como abordagem crítica para pensar a agricultura familiar, 81
a agricultura biológica e o desenvolvimento rural.
Irene Aurora Santos
Sementes que guardam diversidades. 85
Maria Helena Marques

Ao território e às pessoas
Os pequenos agricultores familiares e o direito à alimentação. 91
Aníbal Cabral
Un proyecto en Salamanca: “5 Colectivos en red – La dignidad de la vida para 95
permanecer en su propia tierra”.
Emiliano Tapia
Estratégia Terras de S. Pedro – Município de S. Pedro do Sul. 99
Joaquim Pinho
«O som é a enxada»: promover a agricultura de proximidade através de uma rádio 101
comunitária.
Sara Moreira e Filipa Almeida
Agricultura familiar: do direito à alimentação até ao consumo. 105
José Rocha Fernandes

Capítulo 3. Agricultura familiar e desenvolvimento rural: sociologia, 107


território e ambiente
Editores: Ana Aguiar e Cristina Amaro da Costa

Sociologia e território
Cultivar laços de confiança e afectividade no seio de uma agricultura familiar que se 113
quer de cariz biológico.
Paulo Barracosa
Olhares fragmentados sobre as paisagens rurais dos fogos de 2017 no interior do país. 117
Fernando Delgado
Agricultura familiar, agricultura biológica e desenvolvimento rural 129
Fernando Oliveira Batista
Rede Rural Nacional – Construir pontes para o Desenvolvimento Rural. 137
Ana Entrudo e Carmo Bica
Pontes entre a agricultura familiar e a agricultura biológica 141
Fernando Carlos Alves Martins

Ambiente
Por uma Cultura Agroalimentar Sustentável. 147
Vitor Barros
Agricultura familiar, agricultura biológica e desenvolvimento rural: aspetos em torno 153
da proteção das plantas.
Maria do Céu Godinho
Património frutícola do Minho – Bases para um desenvolvimento sustentável 157
Raúl Rodrigues

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Agroecologia e a consolidação da agricultura familiar na comunidade dos países de 161
língua portuguesa.
Francisco Bendrau Sarmento

Capítulo 4. Pontes Agricultura familiar e agricultura biológica. 165


Um projeto construido
Editores: Cristina Amaro da Costa, Ana Aguiar e Cristina Parente
Contruir pontes entre agricultura familiar e agricultura biológica. 167
Cristina Amaro da Costa, Raquel Guiné, Daniela Costa, Helena Esteves Correia,
Paula Correia, Cláudia Chaves, Ana Aguiar, Cristina Parente
Adesão e resistência a práticas de agricultura biológica entre agricultores familiares: 171
uma abordagem a partir de grupos focais.
Cristina Parente
Agricultura familiar do norte e centro de Portugal: práticas de agricultura sustentável. 181
Ana Aguiar
Agricultura familiar: perceções e atitudes face ao uso de pesticidas. 185
Telmo Costa, Cristina Amaro da Costa
Caracterização da agricultura familiar na região de Entre Douro e Minho. 195
Luísa Silva, Ana Aguiar
A metodologia Lean como ferramenta de avaliação da eficiência de 199
explorações de agricultura familiar.
Luisa Silva, Ana Aguiar, Cristina Parente, Cristina Amaro da Costa
“A azeitona e a fortuna: às vezes, muita; às vezes, nenhuma”: a saúde da mulher 209
agricultora.
Cláudia Chaves, Cristina Amaro da Costa, Andreia Martins, Maria C. Silva,
Fábio Gomes, Emília Coutinho, Paula Nelas
“A foice em seara alheia”: pontes nas relações entre a saúde e a agricultura. 215
Cláudia Chaves, Cristina Amaro da Costa, Andreia Martins, Maria C. Silva,
Fábio Gomes, Emília Coutinho, Rui Dionísio

Capítulo 5. PONTES ENTRE AGRICULTURA FAMILIAR E AGRICULTURA BIOLÓGICA 223


RECOMENDAÇÕES A PARTIR DE DINÂMICAS DE AUSCULTAÇÃO PARTICIPADAS.
Cristina Parente (Coord.), Joana Neto, Ana Aguiar, Raquel Guiné,
Daniela Costa, Helena Esteves Correia, Paula Correia, Cláudia Chaves,
Telmo Costa, Cristina Amaro da Costa

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PREâMBULO

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O rural e a agricultura:
das ausências à geografia da esperança

Rui Jacinto

CEI, investigação e desenvolvimento.

O livro que se dá à estampa no âmbito da Coleção Iberografias culmina uma investi-


gação a que o CEI acabou por se associar quando elegeu como vencedor o projeto “Pontes
entre agricultura familiar e agricultura biológica”, submetido por Cristina Amaro da Costa,
doutorada em Engenharia Agrícola e Professora no Instituto Politécnico de Viseu, à edição
de 2017 do Prémio CEI – Investigação, Inovação & Território [CEI – IIT]. Como refere o
preâmbulo do regulamento, o Prémio representa um “compromisso do Centro de Estudos
Ibéricos (CEI) com a cooperação, a difusão do conhecimento e os territórios fronteiriços
e de baixa densidade”, espaços onde se têm registado “múltiplas iniciativas que envolvem
instituições e investigadores de diferentes regiões e países que apostam num justo equilíbrio
entre a investigação e a ação”.
// Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Ao “distinguir trabalhos, projetos de investigação e outras iniciativas que revistam uma


dimensão inovadora”, o que se pretende é “divulgar estudos, experiências e boas práticas que
concorram para reforçar a coesão, a cooperação e a competitividade daqueles territórios”.
Os apoios proporcionados por este Prémio enquadram-se em duas modalidades: (i) patroci-
nar trabalhos e projetos de investigação sobre “territórios e sociedades em tempo de mudança”
que apontem para temas como dinâmicas territoriais e iniciativas de desenvolvimento local,
património, recursos do território e riscos naturais, coesão social (educação, saúde, com-
bate à pobreza e inclusão social) e governança, capacitação e modernização institucional;
(ii) apoiar “projetos e iniciativas inovadoras, em territórios de baixa densidade” que apostem na
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dinamização das economias e das sociedades e na coesão dos territórios de baixa densidade e
que privilegiem áreas temáticas como a valorização e o uso eficiente dos recursos endógenos,
as tecnologias ao serviço da qualidade de vida e a inovação territorial.

Dinâmicas territoriais e desenvolvimento rural.

Os espaços rurais, particularmente os adjacentes à fronteira, são caracterizados por


uma forte recessão agrícola e demográfica. O prolongado e inexorável êxodo a que esti-
veram expostos, além de acentuar as suas debilidades, vincou um abandono que gerou
um progressivo envelhecimento, isolamento e uma ausência cada vez mais pesada. A crise
demográfica que os atravessa transformou-se numa variável que importa levar em consi-
deração por se ter transformado numa condicionante capaz de hipotecar o futuro destas
finisterras interiores.
Os espaços rurais, que passaram a ser designados, eufemisticamente, territórios de
baixa densidade, têm na demografia um dos sinais mais visíveis e que melhor expressa as
profundas assimetrias territoriais que, embora antigas e há décadas identificadas, acabaram
por atingir proporções desmesuradas. As áreas de fronteira estão, deste ponto de vista, no
olho do furacão, são o epicentro duma crise que transcende a demografia. Nos longínquos
anos 40, quando este cenário já se vislumbrava, o escritor Virgílio Godinho apelidou estes
espaços interiores de Calcanhar do Mundo; José Cardoso Pires, outro escritor natural
duma região com problemas comuns ao deste interior profundo, São João do Peso, no
concelho de Vila de Rei, publicou um testemunho, onde perspassa a mesma ideia: “Eu
próprio, da minha terra natal tenho uma definição antiga e simplista: deserto de pedras, padres e
pedintes – e uma imagem mais recente: Sicília abandonada, sol a pino, ruas vazias, e a marcar
o tempo o martelar dum sapateiro num portal. Aldeia emigrada portanto” (Jornal do Fundão,
3 de Fevereiro de 1974).
O processo que nos trouxe até aqui é o resultado da confluência de múltiplas dinâmi-
// Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

cas que vêm de longe, potenciadas por tendências mais recentes, igualmente pesadas, onde
relevam alguns momentos marcantes, tais como:
(i) o êxodo rural e a atração urbana, fenómeno persistente que ocorre com ritmos,
destinos e intensidades, variáveis ao longo do último século, responsável pela con-
centração da população no litoral, nas áreas metropolitanas e nas capitais de distrito,
fenómeno que no passado mais recente levou à polarização demográfica nas sedes
de concelho;
(ii) o surto emigratório ocorrido depois da Segunda Guerra Mundial, muito intenso
nos anos 60, que veio reorientar o fluxo transatlântico para os países da Europa,
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evidenciando tanto a nossa dependência no contexto europeu como a inserção na
divisão internacional do trabalho;
(iii) a crise internacional (1973), concomitante da mudança política ocorrida em 1974,
e de subsequente queda do império, que fizeram abrandar a emigração internacional,
sobretudo para os destinos então típicos (França e Alemanha), e o consequente
retorno abrupto de um fluxo de mais de meio milhão de portugueses provenientes
das ex-colónias;
(iv) a adesão à CEE (1986) e a tímida prosperidade, verificada nos anos imediatos
que mudaram, paulatinamente, os fluxos migratórios, ao ponto de alterar o para-
digma, levando ao aparecimento dum novo discurso que anunciava que Portugal
havia deixado de ser um país de emigração para se tornar num país de imigração;
(v) a apregoada globalização, que cavalgou os anos 90 e havia de invadir as primeiras
décadas do século xxi, acabaria por desaguar na crise que se inicia em 2008 e
na emergência dum novo surto emigratório, que atingiu um valor máximo em
2013, quantitativamente semelhante ao que se havia verificado em 1969, embora
qualitativamente distinto, por envolver predominantemente população jovem
relativamente qualificada.
O impacto cumulativo de todos estes processos nas áreas rurais reforçou o abandono e
aprofundou o sentimento real e simbólico de perda. Tais territórios acabaram, deste modo,
ainda mais relegados para as margens dos nós da rede urbana e dos eixos que os ligam,
afastando-os destes pólos e corredores que estruturam o desenvolvimento e organizam o
território. Tais periferias sentem-se, assim, mais longe da vista e votadas a um esquecimento
que lhes subtrai a mais ténue expetativa de sonho e de futuro, debilitando a já depauperada auto-
estima e reduzindo drasticamente o horizonte de esperança. Eduardo Lourenço, profundo
conhecedor desta realidade e exemplo lapidar da incapacidade destes territórios reterem os
seus talentos, já nos havia alertado para estes tempos de profundas mudanças quando escre-
veu, em 2001, que “nestas duas décadas não mudamos apenas de estatuto histórico-politico,
de civilização e de ritos sociais que julgávamos, lamentando-o, característicos de uma sociedade
// Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

quase marginal em relação aos padrões europeus. Mudamos, literalmente falando, e sem quase
nos darmos conta disso, de mundo. Mudamos porque o mundo conheceu uma metamorfose sem
precedentes, não apenas exterior, mas de fundo”.
O saldo natural e o migratório negativos estão alinhados com outras variáveis
socioeconómicas. Consonantes, são a ponta dum iceberg que representa uma situação
difícil de contornar. O retrato frio e duro desenhado pelos indicadores demográficos
e sócioeconómicos projeta uma geografia que deixa pouca liberdade a interpretações
fora das dicotomias que balançam entre o preto e o cinzento carregado, onde o bran-
co dificilmente conquista alguma representação. A adjetivação de Interior e de rural
13

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profundo, que se atribui a esta parcela do país assumiu com o tempo um significado
ambivalente: se, por um lado, caracteriza dinâmicas e especificidades que lhes são ine-
rentes, por outro, confere a tais territórios uma conotação que os estigmatiza e ostraci-
za. O que se passou a designar por Interior é trespassado por tensões entre contrários:
tradição e modernidade, continuidade e mudança, presença e ausência, realidades que
coexistem e se confrontam num mesmo espaço, onde convive um passado a que se
pretende fugir e um futuro que parece cada vez mais distante. Contudo, será estultícia
ficcionar um discurso liminar de opostos que se opõem radicalmente, como por vezes
ouvimos, que procura fomentar um otimismo aparente e infundado, quiçá, gratuito
e contraproducente. Será porventura mais aconselhado e proveitoso recusar aquelas e
outras dicotomias, sempre limitativas e redutoras, que oscilam entre irredutíveis pessimismos
e irreais otimismos1.

Pano de fundo: evolução estrutural do rural e da agricultura.

Os espaços rurais, como sabemos, são plurais e diversos, seja por influência das con-
dições naturais, da matriz edafoclimática ou das mudanças verificadas, onde o desapareci-
mento de funções tradicionais foi acompanhado da difusão nos campos de novos modos
de vida. Tais mudanças alteraram os quadros de referência bem como os sentimentos de
pertença, contributos decisivos para moldar uma nova identidade e alterar o conceito de
rural tanto aos olhos internos como externos, seja de quem nele vive, de lá é oriundo ou
aí chega de novo. O abandono demográfico e de algumas atividades ocorridas nos espaços
rurais, mais evidente em certas regiões do país, é correlativo de mudanças estruturais e pro-
fundas operadas na agricultura, confirmadas por vários estudos e ao longo dos sucessivos
Recenseamentos Agrícolas que foram sendo realizados2.
// Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

1
Em algumas passagens retomou-se o artigo Calcanhar do mundo: da geografia das ausências à geografia da
esperança publicado em 2015, na Revista Praça Velha, Revista Cultural da cidade da Guarda, CM Guarda,
Ano XVII, Nº 35, 1ª série, novembro 2015, pp.: 243-260.
2
Segundo INE a primeira referência a um “levantamento” exaustivo, sistemático e organizado de dados
estatísticos sobre a agricultura portuguesa foi o “Arrolamento Geral de Gados e Animais de Capoeira”, que
remonta ao ano de 1934, arrolamentos que se repetiram em 1940 e em 1972. Ao longo deste período, no
Continente, tiveram lugar outras operações igualmente importantes: Inquérito às Explorações Agrícolas
do Continente (1952-54 e 1968) e os Recenseamento Agrícola do Continente (1979, 1989, 1999, 2009
e 2019). Os últimos quatro Recenseamentos, que correspondem a levantamentos exaustivos e simultâneos
em todas as regiões do país, ocorreram depois de adesão de Portugal à União Europeia; aguardam-se os
resultados do Recenseamento de 2019 para se perceber o sentido e a profundidade das mudanças
estruturais verificadas na última década.
(http://ra09.ine.pt/xportal/xmain?xpid=RA2009&xpgid=ra_historia)
14

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Os resultados dos Recenseamentos Agrícolas são lapidares sobre as profundas transfor-
mações verificadas na agricultura portuguesa, depois da segunda metade do século xx, mas,
fundamentalmente, após a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, em
1986. O INE reconhece que a adesão “levou a que o destino da nossa agricultura passasse
a depender fortemente da Política Agrícola Comum (PAC). A partir de então, acelerou-se
a transformação da estrutura e da orientação da agricultura portuguesa que perdeu defini-
tivamente a sua posição de principal atividade económica do país, que até então detinha”.
É referido no estudo do INE que estamos a seguir que “entre 1965/68 e 1999, a agricul-
tura portuguesa perdeu quase metade da sua mão-de-obra permanente” e o “número de explo-
rações agrícolas e a superfície agrícola utilizada reduziu-se drasticamente”; “entre 1952/54 e
1999 desapareceram mais de 500 mil explorações agrícolas (mais de 50%) no Continente,
quebra essa que se acentuou especialmente a partir de 1979”. A dimensão média das explo-
rações agrícolas, por outro lado, “aumentou quase para o dobro: passou de cerca de 5 ha
para mais de 9 ha”. Assistiu-se, entretanto, “a uma mecanização crescente da agricultura, que
passou a utilizar métodos de produção tecnicamente mais evoluídos, os quais permitiram
obter ganhos de produtividade. Também se intensificou o consumo de certos fatores de
produção como os adubos e os pesticidas, que apesar de permitirem aumentar a produtivi-
dade, agravou os problemas ligados à poluição e à preservação do meio ambiente”. O estudo
referido trabalho salienta outros aspetos fundamentais, designadamente que “o número de
tratores existentes nas explorações portuguesas quase que duplicou entre 1965/68 (pouco
mais de 17 mil) e 1999 (quase 170 mil); “a ocupação cultural da terra também se alterou ao
longo dos tempos: a terra arável, que em 1965/68 representava 77% da Superfície Agrícola
Utilizada (SAU), passou a representar apenas 46% em 1999. Por outro lado, a superfície
ocupada por pastagens permanentes aumentou mais de 5 vezes em igual período de tempo,
de 7% para 36% da SAU”. Neste período, verifica-se “que as áreas de vinha e olival, culturas
permanentes de grande significado e importância para o nosso país, se mantiveram estáveis
ao longo do período de tempo considerado: em média, entre 1965/68 e 1999, o olival ocupou
cerca de 44% da área de culturas permanentes e a vinha 33%”.
// Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

O Recenseamento Agrícola de 2009, o último disponível enquanto não forem conhe-


cidos os resultados do que foi realizado em 2019, fornece informação que destacada as
principais variações ocorridas ao nível da estrutura das explorações agrícolas e dos sistemas
produtivos praticados. Comparando os resultados de 2009 com os de 1999 destacam-se,
sucintamente, alguns aspetos relevantes da evolução ocorrida na agricultura portuguesa:
(i) Explorações: “uma em cada quatro explorações agrícolas cessou atividade, mas a su-
perfície das explorações ainda ocupa metade do território nacional; as explorações
de pequena dimensão continuam a predominar, mas 2/3 da Superfície Agrícola
Utilizada (SAU) já é gerida por explorações de dimensão superior a 50 hectares
15

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de SAU; aumento da SAU por exploração em mais de 2,5 hectares, passando em
média de 9,3 hectares para cerca de 12 hectares, em resultado da absorção das super-
fícies das pequenas explorações pelas de maior dimensão; o número de sociedades
agrícolas (empresas agrícolas) cresceu 23% e já exploram 27% da SAU”.
(ii) População agrícola: “a população agrícola familiar perde 443 mil indivíduos mas
ainda representa 7% da população residente; as mulheres representam 1/3 dos
produtores agrícolas e aumentam a sua importância em 8 pp.; a média de idades
dos produtores agrícolas aumentou 4 anos”.
(iii) As explorações portuguesas no contexto europeu: “as explorações agrícolas nacionais
representam cerca de 3% das explorações e 2% da SAU da UE; a dimensão das
explorações agrícolas em Portugal é, em média, 5 hectares inferior à da UE”.
O que se acaba de expor leva-nos ainda a três conclusões importantes: (i) “a paisagem
agrícola alterou-se para sistemas de produção mais extensivos, com as pastagens perma-
nentes a ocuparem praticamente metade da Superfície Agrícola Utilizada”; (ii) “o produtor
agrícola tipo é homem, tem 63 anos, apenas completou o 1º ciclo do ensino básico, tem
formação agrícola exclusivamente prática e trabalha nas actividades agrícolas da exploração
cerca de 22 horas por semana”; (iii) depois de mais de três décadas de Política Agrícola
Comum (PAC) ainda nos debatemos com alguns problemas básicos, relacionados com a
“problemática do auto-abastecimento, reflexo da dependência das importações, da volatili-
dade dos preços dos produtos agrícolas e da escalada dos preços dos factores de produção”3.
Os resultados que se aguardam correm o risco de cavar mais fundo e fornecer um
retrato que já não se revela positivo.

Um estudo de caso: renascimento rural e desenvolvimento local.

As adversidades que foram sucintamente enunciadas esboçam o pano de fundo onde se


inscrevem as tendências mais pesadas comuns à generalidade dos espaços rurais, dificilmente
// Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

contrariadas por dinâmicas positivas, demasiado leves, que aqui e ali se observam, incapazes
de reverter o ciclo vicioso em que foram mergulhando. O apregoado renascimento do rural,
que possa pontualmente ocorrer em determinados contextos locais, do centro e norte do
Continente, acaba por ser demasiado ligeiro e, portanto, manifestamente insuficiente para
contrariar a perda em que se encontram a generalidade daqueles territórios.
Perante semelhante realidade, adquire maior interesse e significado trabalhos como os
elaborados no âmbito do projeto “Pontes entre agricultura familiar e agricultura biológica”.
Desde logo porque estão focados na agricultura familiar e na preocupação “de garantir a
3
INE, Recenseamento agrícola de 2009: análise dos principais resultados.
16

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produção agrícola, gerida por uma família com base em mão-de-obra familiar não assala-
riada, reunindo componentes de produção agrícola, animal, de transformação e florestal”.
Temos de ter presente que, em Portugal, continuam a ter um papel fundamental nas zonas
rurais, pois “a agricultura familiar representa 96% das cerca de 280 mil explorações existen-
tes no continente”4. Depois, porque prosseguem objetivos que não só são pertinentes como
estão na ordem do dia5 ao pretenderem: “avaliar as potencialidades de inovação ao nível
dos procedimentos técnicos e tecnológicos e identificar semelhanças (proximidade) com o
modelo de itinerário técnico teórico adotado em agricultura biológica, os constrangimen-
tos técnicos, económicos e sociais que potenciem a transição para a agricultura biológica”;
“contribuir para a criação de um modelo produtivo local economicamente mais eficiente
alicerçado, quer na racionalização do trabalho agrícola e na valorização das práticas dos terri-
tórios, quer na produção de alimentos mais saudáveis e de melhor qualidade, na redução de
impactos ambientais negativos, e na melhoria da qualidade de vida dos agricultores” (idem).
A importância destes trabalhos decorre ainda de funcionarem como um observatório
das dinâmicas locais em espaço rural, permitindo identificar tendências emergentes, por
vezes imperceptíveis, que funcionem como boas práticas que abrem janelas de oportuni-
dade potenciadoras do desenvolvimento local. Deixando de parte considerações sobre a
orientação metodológica seguida, baseada num núcleo heterogéneo de informantes, releva
entre os resultados alguns aspetos que merecem destaque: (i) constitui forte preocupação
“a dimensão económica da agricultura familiar e a sua viabilidade enquanto atividade que
assegure um rendimento adequado ao agricultor e à sua família”; (ii) importa “garantir a
sustentabilidade económica das famílias, promovendo um processo de venda eficiente e

4
In Resumo do Projeto “Pontes entre agricultura familiar e agricultura biológica”. (http://www.cei.pt/iit/projetos-
selecionados-2017.html)
5
O estatuto da pequena agricultura familiar é relativamente recente, tendo sido criado pelo Decreto-Lei
nº 64/2018, de 07 de agosto de 2018 (Diário da República nº 151/2018) e regulamentado pela Portaria
n.º 73/2019, de 7 de março. Para este efeito, entende-se por:
a) «Agregado familiar», os cônjuges, os ascendentes e descendentes na linha reta em primeiro e segundo grau, os
parentes por afinidade, os que vivam em união de facto, e os demais a cargo que vivam em situação de econo-
// Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

mia comum com o titular da exploração agrícola e participem na atividade da exploração de forma regular;
b) «Agricultura familiar», o modo de organização de atividades produtivas, de gestão do ambiente e de suporte
da vida social nos territórios rurais, assente numa exploração agrícola familiar;
c) «Exploração agrícola familiar», a exploração agrícola em que a mão-de-obra familiar, medida em Unidade
de Trabalho Ano, representa mais de 50 % da mão-de-obra total da exploração agrícola;
d) «Mão-de-obra da exploração agrícola», o trabalho mobilizado na exploração agrícola, com origem na
família ou no assalariamento (trabalhadores permanentes, eventuais ou não contratados diretamente pelo
produtor);
e) «Mão-de-obra familiar», trabalho realizado pelo titular da exploração agrícola (produtor agrícola) e por
membros do seu agregado familiar;
f ) «Rendimento coletável», rendimento anual bruto, efetuadas as respetivas deduções específicas;
g) «Unidade de Trabalho Ano (UTA)», unidade de medida da mão-de-obra correspondente ao trabalho
realizado num ano por um trabalhador a tempo inteiro
17

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rentável e uma aproximação ao consumidor”; (iii) subsiste a preocupação sobre “à quali-
dade dos produtos e sustentabilidade ambiental da produção, a informação e formação
dos agricultores familiares e o acompanhamento técnico dos processos de produção que
estão na origem da necessidade de aproximar diversos atores do setor agrícola e colocá-los
em cooperação para pugnarem e promoverem a integração e crescimento da agricultura
familiar” (in capítulo conclusivo do estudo).
A publicação revisita temas que constituem uma agenda de debate e reflexão sobre o
tipo de agricultura que subsiste em boa parte do centro e norte do Continente, desde os
conceitos e práticas da agricultura familiar e agricultura biológica aos aspetos mais con-
cretos relacionados com o direito à alimentação e ao consumo, da relação que as pessoas
estabelecem com o território; ao fim e ao cabo o que está em causa é a importância que tem
e o papel que ainda cabe à agricultura familiar e à pequena agricultura no desenvolvimento
e sustentabilidade dos espaços rurais.
Ou, como é referido nas conclusões, a partir da “observação da agricultura e dos ter-
ritórios rurais do Centro e Norte do país”, “facilitar a criação de ecossistemas de inovação
que, integrando os pequenos produtores no processo e assegurando o estabelecimento
de redes entre diferentes agentes de apoio, promovam a incorporação de modos de
produção inovadores e sustentáveis, que originem alimentos mais seguros e saudáveis e
com menos efeitos negativos no ambiente e que contribuam para o desenvolvimento
económico local sustentável”.

Resta agradecer a todos os envolvidos no projeto e nos seminários que com os


respetivos contributos ajudaram a viabilizar o livro Pontes entre Agricultura Familiar e
Agricultura Biológica.
A quem o coordenou e editou um especial Bem Haja!
// Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica
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Pontes. E redes.

Cristina Amaro da Costa


Politécnico de Viseu, CERNAS, CI&DETS

Pontes. Ao longo destes dois anos de projeto, foram pontes que se construíram. E redes.
Desde os agricultores, que aqui nos trouxeram, passando por todos os que ajudaram na
construção, pelos que nos apoiaram e reconheceram (e particular o Centro de Estudos
Ibérico, o Politécnico de Viseu e a Universidade do Porto), até aos que vieram conversar e
ficaram para nos ouvir. A todos, bem hajam!
Estes dois anos de trabalho comum e participado permitiram estabelecer pontes entre
a agricultura familiar e a agricultura biológica, e contribuir para uma maior adoção deste
modo de produção. Partimos de uma reflexão teórica sobre a proximidade entre a realidade
das práticas agrícolas da agricultura familiar e agricultura biológica, para propor práticas e
recomendações ao nível das orientações de políticas públicas, que permitam aos agricultores
familiares alcançar modos de produção mais sustentáveis e saudáveis.
O que alcançamos foi partilhado em três seminários, com uma estrutura comum, mas
// Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

enriquecida por diferentes oradores que em cada uma das ocasiões vieram trazer a sua ‘espe-
cial’ perspetiva – desde os conceitos, às práticas e ao papel económico, social e ambiental da
agricultura familiar, com enfoque nos desafios, nos resultados que possamos atingir, e que
traduzimos agora neste livro.
Começamos por tentar esboçar uma análise da realidade destes dois setores (agricultura
familiar e agricultura biológica) discutindo conceitos, estatísticas e casos de boas práticas.
Neste início, ficaram muitas questões em aberto: como contabilizar o valor da mão de obra
ou do autoconsumo das explorações de agricultura familiar? como ultrapassar a resistência ao
associativismo ou a menor produtividade destas explorações e calcular o valor do trabalho?
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como assegurar que a agricultura biológica garante um conjunto de práticas agroecológicas
e não é uma mera substituição de fatores de síntese por produtos biológicos, mantendo
o modelo químico-mecânico? como assegurar a continuidade da agricultura familiar em
paralelo com a sua existência legal/fiscal/real?
Apesar de ser possível apontar múltiplos casos de sucesso, normalmente associados à
capacitação técnica dos intervenientes, que encontram caminho em produtos de quali-
dade e diferenciados, que encontram apoios locais muito bem estruturados para resolver
problemas de produção ou de comercialização, que se organizam em movimentos regio-
nais, a realidade é que grande parte dos agricultores familiares adotam práticas agrícolas
que os colocam em risco a eles, a nós, e ao ambiente, já que é frequente ouvir que usam
duas tampas de pesticida em vez de uma, ou fazem a calda a olho, que mobilizam o
solo intensamente, para não terem ervas por ali, ou que usam a matéria orgânica sem
ser devidamente compostada, facilitando a ocorrência de problemas de saúde graves.
É também importante equacionar que esta é uma profissão de risco, desde a exposição
às condições climáticas, à exigência física do trabalho, ao risco de exposição a pesticidas
e agentes patogénicos presentes nestes ecossistemas.
Estes agricultores não são todos iguais, mas estão longe de nos disponibilizar produtos
alimentares tradicionais e seguros, iguais aos dos nossos avós. Para alguns, a mudança será
fácil, pois estão disponíveis para aprender; para outros, importa perceber novas dinâmicas
que invertam o seu processo de resistência.
Palavras como complementaridade, diversidade, escalonamento, qualidade, produção
animal, biodiversidade e espécies regionais ou autóctones, devem coexistir nas discussões,
projetos ou políticas que pretendam dinamizar estes agricultores
Mas mais importantes do que estas questões técnicas, são as questões sociais. Não se
mudam sistemas sem mudar pessoas, seja por género, por escolaridade, por opção política.
Se os homens são muitas vezes os decisores nas explorações, fazem-no a partir das perceções,
do conhecimento e das opções das mulheres no seio da família. Se as opções são quase
sempre económicas e associados ao risco que se aceita, outras vezes decorrem de formas de
// Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

estar, de opções pela sustentabilidade, mas cada vez mais pela saúde – preocupação que é,
em cada um de nós, cada vez maior.
E aqui surgem as políticas. As políticas que deviam ser feitas por pessoas e para as
pessoas. As políticas que precisam interiorizar, para além dos modelos técnicos, os mode-
los sociais. As políticas que, quase sempre em prol do desenvolvimento e da economia,
têm consequências, em particular nos grupos sociais mais frágeis, como é o caso de tantos
pequenos agricultores.
Os desafios que aqui se colocam são diversos, e o que hoje é uma realidade, foi em
tempos uma dificuldade. Principalmente, porque aquilo que definimos para a mudança
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carece de ir de encontro aos desejos económicos do agricultor, à necessidade de minimização
do risco, às alterações do trabalho, às suas características sociais, o que nem sempre é fácil
de conciliar com práticas de agroecologia ou com a adesão a inovações.
A verdade é que o rural vai continuar. Está, hoje, num processo de transformação,
pelo que teremos de encarar a inevitabilidade da baixa densidade, aceitar o repovoamen-
to, aceitar a relevância das economias locais e refazer, no tecido rural de baixa densidade,
um tecido económico social sustentável com, por exemplo, atividades associadas a novas
procuras urbanas.
Isto passa sobretudo pelas políticas públicas. E por isso, depois da assinatura da Carta
do fortalecimento da agricultura familiar, do Estatuto da agricultura familiar, da criação do
Conselho de Segurança Alimentar e Nutrição, da decisão de uma Década da Agricultura
Familiar, o tema deste seminário é, consensualmente pertinente, sendo de todo o interesse que
os seus resultados possam refletir-se na atual discussão da PAC, possibilitando o redesenho
com opções de carácter regional, onde o apoio à agricultura familiar é, entre outros, central.
É, neste sentido, que nos propusemos, com todos, a preparar este documento final,
resultante dos três seminários, que possa disponibilizar aos atores políticos, nacionais e
regionais, aos técnicos e investigadores, à sociedade em geral, um conjunto de recomendações
e, esperemos, algumas soluções, que contribuam para melhorar o desempenho e o resultado da
agricultura familiar através, entre outras, da adoção de princípios de agroecologia e de práticas
agrícolas sustentáveis.

// Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica


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CAPÍTULO 1

Agricultura familiar e agricultura


biológica: conceitos e práticas

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Agricultura familiar e agricultura biológica:
conceitos e práticas

Helena Esteves Correia


Daniela Costa
Politécnico de Viseu, CERNAS, CI&DETS

A agricultura familiar baseia-se num modelo agrícola organizado e praticado por pro-
prietários rurais de modo a garantir a produção agrícola, gerido por uma família com base
em mão-de-obra familiar não assalariada, assumindo um papel importante e fundamental
nas zonas rurais.
A agricultura familiar, pelas suas caraterísticas próprias, assume, de forma mais ou
menos declarada, os princípios que norteiam a agricultura biológica: princípio da saúde,
da ecologia, da justiça e da precaução (FAO, 2014; IFOAM, 2016).
Em dezembro de 2011, a Assembleia Geral das Nações Unidas declarou 2014 como
o Ano Internacional da Agricultura Familiar e em 2018 entrou em vigor em Portugal,

coesão territorial
o Estatuto da agricultura familiar.
O desenvolvimento de explorações em agricultura familiar pode passar pela adoção de
modos de produção como a agricultura biológica, assente em princípios como alimentar
Biológica

o solo, otimizar os ciclos de nutrientes através da gestão dos animais e plantas no espaço e
sustentável,

tempo ou manter relações de proximidade com o mercado, de forma a garantir qualidade


e Agricultura

dos produtos e a assegurar a melhoria dos rendimentos das famílias.


Familiar turismo

Importa, por isso, discutir os conceitos associados a estas temáticas, em particular


património,

associados à realidade da agricultura familiar, às questões sociais, económicas e ambientais


associadas, ao direito humano à alimentação e à utilização de práticas agrícolas sustentá-
Agricultura

veis e da agricultura biológica, bem como ouvir e aprender com exemplos de sucesso e de
e territórios:

boas práticas.
Pontes entre
25 // Lugares

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Referências

FAO (2014). 2014 International Year of Family Farming - Feeding the world, caring for the earth.
Food and Agriculture Organization of the United Nations.
IFOAM (2016). Princípios da agricultura biológica. IFOAM, Bonn: 4p. https://www.ifoam.bio/
sites/default/files/poa_portuguese_web.pdf
26 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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CONCEITOS

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Agricultura familiar e biológica:
modelos tecnológicos e dinâmicas

Pedro Reis
Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária

Ao longo das últimas décadas ocorreram alterações substanciais no setor agrícola e


nas sociedades das zonas rurais, tanto nas estruturas agrárias, como ao nível da compe-
titividade das empresas agrícolas. No entanto, a agricultura familiar, resistiu e persiste
com um peso muito relevante: em 2010, 93% das explorações agrícolas (EA) podiam ser
classificadas como EA familiares, o trabalho familiar representa 81% do trabalho agrícola,
em unidades de trabalho ano (UTA), e estas explorações detinham cerca de metade da
área agrícola e florestal, assim como da produção agrícola (em valor da produção pa-
drão) (Cordovil e Rolo, 2014). Vários fatores contribuíram para essa grande capacidade
de resistência e de adaptação, nomeadamente: a) as racionalidades económicas das EA
familiares, onde o fator trabalho nem sempre é valorizado a preços de mercado, tornando
viáveis unidades de produção não competitivas; b) a articulação dos membros do agregado
familiar com os mercados de trabalho (salários da indústria e nos serviços) e com as transfe- 29 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

rências dos regimes de proteção social (as pensões e reformas) ou remessas de emigrantes;
c) os avanços tecnológicos (ao nível dos inputs variáveis, das inovações e equipamentos de
menor escala) e organizativos do funcionamento da exploração, como é o caso do recurso
à externalização de serviços na EA (Baptista, 1993; Baptista e Rolo, 2017).
A agricultura familiar está fortemente associada à pluriatividade e ao plurirrendimento.
Apenas 13,9% da população agrícola familiar ativa (PAFA) trabalha a tempo completo na
EA, e um terço desta PAFA tem uma atividade exterior à exploração agrícola (INE, 2017).
Relativamente aos rendimentos constata-se que em 78,8% das explorações agrícolas fami-
liares, mais de 50% do rendimento do agregado doméstico do produtor provém de fora da

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EA, das quais, em 43,2% dos casos, são maioritariamente pensões ou reformas (Baptista
e Rolo, 2017).
A agricultura familiar é um componente muito importante na segurança alimentar e
nutricional e no debate da soberania alimentar, apesar deste último estar muito mitigado
pela existência de uma política agrícola comum. Anote-se que em cerca de um quinto das
EA familiares, mais de 50% da produção tem como destino o autoconsumo, que compara
com apenas 1% nas outras EA (Reis e Rolo, 2019). Acresce àquela importância, a presença
nas EA das superfícies designadas por “hortas familiares” e os circuitos curtos agroalimen-
tares (CCA). Estes potenciam o consumo de uma maior diversidade de alimentos (frutas
e hortícolas da época) e possibilidade de acesso a esses produtos com menor dispêndio
monetário por parte dos consumidores. Os bens produzidos nas “hortas familiares” e em
outras terras de cultivo da EA, e os CCA são também pontes potenciais entre a agricultura
familiar e a agricultura biológica.
Antes de nos focarmos nas pontes, analisemos os cruzamentos entre “agricultura fami-
liar” e “agricultura biológica”. Num trabalho recente, apurou-se que apenas 0,1% das EA
familiares praticavam agricultura biológica, enquanto esse mesmo indicador era de 6,7%
para as EA não familiares (Reis e Rolo, 2019). Relativamente às áreas, esses valores eram,
respetivamente, 1,6% e 3,6%. Estes dados indiciam uma maior adesão da agricultura
não familiar à agricultura biológica. No entanto, duas ressalvas. Face à maior exigência
de mão-de-obra deste modo de produção, é provável que algumas EA com estrutura e
lógica de funcionamento similar à agricultura familiar, passem a ser classificadas em “não
familiares”, se o trabalho passar a ser predominantemente assalariado. Outro fator, a ter
em consideração, é que apenas cerca de 20% da área em agricultura biológica se destina
à produção de bens para a alimentação humana. A grande fatia corresponde a pastagens
permanentes (70%), forragens e pousios (10%).
Referimos “agricultura biológica”, mas importa salientar que este termo encerra dois
modelos tecnológicos distintos, que iremos explicar recorrendo à produtividade do trabalho.
Antes, refira-se que o aumento deste indicador é o objetivo primordial do desenvolvimento
30 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

agrícola, pois corresponde a um aumento da remuneração do trabalho (mais rendimento para


as famílias) e permite libertar recursos humanos para todas as outras atividades (p.e. serviços
de saúde, educação). A produtividade do trabalho (output/UTA), pode ser decomposta em
dois fatores: capacidade de trabalho (ha/UTA) e produtividade da terra (output/ha). A
capacidade de trabalho pode ser incrementada através da mecanização, e agora também
com a automatização, robotização, e todas as novas tecnologias que vão substituindo o
trabalho humano. Em relação à produtividade da terra, assistiu-se, através do modelo
químico-mecânico, à introdução de produtos de síntese para substituir, ou suplementar,
processos naturais: adubos químicos para fornecer nutrientes às plantas, herbicidas para

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controlo das designadas infestantes, e uma diversidade de inseticidas e fungicidas para
combater pragas e doenças das plantas. Na produção biológica não utilizamos estes produ-
tos de síntese mas podem-se seguir duas vias distintas. Uma é sustentar o sistema de produção
nos processos biológicos do agrossistema, na sua biodiversidade e nos ciclos adaptados às
condições locais. A outra via, é manter o modelo químico-mecânico, mas substituindo os
inputs de síntese por inputs de origem biológica, cumprindo os critérios especificados nos
regulamentos de aplicação da agricultura biológica, para efeitos de certificação dos produtos.
Para o consumidor de bens alimentares, pode ser indiferente o modelo tecnológico, mas é
relevante na vertente social e ambiental.
A agricultura familiar tem um papel muito relevante na conservação e valorização de
variedades tradicionais (p.e. milho, maçãs, feijão e oliveira) e de raças autóctones (p.e.
bovinos) (Reis e Rolo, 2017). Esta ligação potencia as pontes entre a agricultura familiar e
a agricultura biológica, tanto pelo serviço prestado à sociedade na conservação do patri-
mónio genético único, como essa biodiversidade constituiu também um suporte para a
produção biológica.
O maior peso da agricultura biológica na agricultura não familiar está associado a vários
fatores: maior capacidade técnica e aproveitamento de economias de escala, tanto ao nível
de máquinas e equipamentos, como de área de intervenção, importante por exemplo na
luta biológica; maior capacidade de adesão às medidas agroambientais, como por exemplo,
o enrelvamento nas entrelinhas; acréscimo das necessidades de mão-de-obra que têm de
ser satisfeitas pela contratação de assalariados ou prestação de serviços. Acresce ainda, o
mercado de consumo, sobretudo junto dos consumidores com maior poder de compra
e preferência por estes produtos diferenciados. Atualmente, as grandes empresas do setor
agroalimentar apostam nestes produtos em resposta à procura para não perderem mercado.
As dinâmicas do mercado não favorecem a produção biológica nas unidades de agri-
cultura familiar por questões de mercado e de tecnologia. Os pequenos produtores têm
dificuldades de colocar os produtos na grande distribuição, onde começam a abundar os
produtos biológicos. Os produtos de síntese são mais acessíveis aos pequenos produtores
31 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

(disponibilidade e custo) e mais fáceis de aplicar. Pelo lado da tecnologia é mais exigente
em conhecimento, em economias de escala e mão-de-obra. Mas, apesar destas dinâmicas
tendenciais impulsionadas pelo funcionamento dos mercados, existem casos de sucesso,
com bom desempenho, associados a jovens empreendedores, com atividades de pequena
transformação e grande foco no consumidor e no marketing.
As pontes entre a agricultura familiar e a agricultura biológica têm de ser dinamizadas
através de políticas públicas e assentes na mobilização dos agentes interessados. As políti-
cas públicas têm de veicular os benefícios para a sociedade e para as gerações futuras. No
tocante à mobilização social é crucial ter consciência da sua relevância, sobretudo quando

Iberografias_37.indb 31 25-02-2020 11:49:46


se verifica o menor grau de associativismo da agricultura familiar. Esta mobilização tem de
ser ao nível dos vários agentes, desde os produtores porque têm de ganhar competências
técnicas e participar no incremento do capital social, até aos consumidores que devem ser
mais esclarecidos e estarem predispostos a pagar um preço mais justo por estes produtos.

Referências

Baptista FO (1993). Agricultura, Espaço e Sociedade Rural. Coimbra, Fora do Texto.


Baptista FO, Rolo JC (2017). Trabalho agrícola: percursos e modelos. Cultivar, Cadernos de
Análise e Prospetiva 10, 25-37.
Cordovil F, Rolo JC (2014). Agricultura Familiar em Portugal. Esboço da sua importância e diversidade
no limiar da década de 2010. Revista “emRede” 5, 13-21.
INE (2017). Inquérito à Estrutura das Explorações Agrícolas 2016. INE, Lisboa.
Reis P, Rolo JC (2019). A agricultura familiar em Portugal (no prelo).
32 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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Agricultura familiar e agricultura biológica:
conceitos

Isabel Mourão
Centro de Investigação de Montanha, Escola Superior Agrária de Ponte de Lima,
Instituto Politécnico de Viana do Castelo

Muitos dos atuais sistemas de produção de alimentos comprometem a capacidade


da Terra para produzir alimentos no futuro. A crescente escassez de recursos naturais e
perda de biodiversidade, o acréscimo da população (particularmente urbana), as alterações
climáticas e as mudanças no consumo e valores éticos, representam enormes desafios, não
só para a cadeia alimentar, mas também para a estabilidade global e prosperidade, pois
podem agravar a pobreza e destabilizar a economia (Freibauer, 2011). Para tornar o sistema
agroalimentar mais resistente em tempos de crescente instabilidade e incerteza, é inevitável
uma mudança radical no consumo e na produção de alimentos, incluindo na Europa.
O ano de 2018 foi profícuo na produção de importantes documentos relativos a questões
fundamentais, salientando-se os seguintes:
–– Estatuto da Agricultura Familiar, Decreto-Lei 64/2018 de 7 de agosto;
–– Regulamento (UE) 2018/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo à
produção biológica e à rotulagem dos produtos biológicos (EU, 2018);
–– Relatório Especial sobre o Aquecimento Global de 1,5°C, do Painel Internacional
33 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

para as Alterações Climáticas (IPCC, 2018);


–– Relatório sobre Economia Circular e Bioeconomia, da Agência Europeia do Ambiente
(EEA, 2018).
A estes documentos, podem ainda adicionar-se os seguintes:
–– Estratégia Nacional para a Agricultura Biológica, Resolução do Conselho de
Ministros 110/2017 (ENAB, 2017);
–– Programa geral de ação da União Europeia para 2020 em matéria de ambiente
“Viver bem, dentro dos limites do nosso planeta”, Decisão nº 1386/2013/UE do
Parlamento Europeu e do Conselho (UE, 2013);

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–– Guia sobre Desenvolvimento Sustentável - 17 objetivos para transformar o mundo,
enunciados pela Assembleia Geral das Nações Unidas (UNRIC, 2016).
Nestes documentos destacamos os princípios que se relacionam com os conceitos de
agricultura familiar (AF) e de agricultura biológica (AB).

a) No Estatuto da Agricultura Familiar (Decreto-Lei 64/2018)

Definição de “Agricultura familiar”: “o modo de organização de atividades produtivas,


de gestão do ambiente e de suporte da vida social nos territórios rurais, assente numa exploração
agrícola familiar.
Com efeito, as atividades da agricultura, da produção animal, da floresta, da caça, da pesca, bem
como as atividades dos serviços que estão diretamente relacionados com a AF são determinantes
em grande parte do território nacional. Estas atividades assumem, assim, relevância na produção,
no emprego, na biodiversidade e na preservação do ambiente através, nomeadamente, do incentivo
à produção e ao consumo locais, que por sua vez minimizam as perdas e o desperdício alimentares,
garantindo também uma presença em muitas áreas do interior, o que torna imperiosa a promoção
de políticas públicas que reconheçam e potenciem essa contribuição da AF.
O debate e a reflexão efetuados em Portugal permitiram um conhecimento mais aprofundado
sobre a AF, sendo de salientar os indicadores de maior relevo, a saber, cerca de 242,5 mil explo-
rações agrícolas classificam-se como familiares, o que representa 94% do total das explorações,
54% da Superfície Agrícola Utilizada e mais de 80% do trabalho total agrícola.”
Em todos os países desenvolvidos ou em desenvolvimento, a AF é a forma predomi-
nante de agricultura no sector de produção de alimentos e está intimamente vinculada à
segurança alimentar mundial (FAO, 2014).

b) No Regulamento relativo à produção biológica (EU, 2018)


34 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

“A produção biológica é um sistema global de gestão das explorações agrícolas e de


produção de géneros alimentícios que combina as melhores práticas em matéria ambiental
e climática, um elevado nível de biodiversidade, a preservação dos recursos naturais e a
aplicação de normas exigentes em matéria de bem-estar dos animais e de normas exigentes
em matéria de produção em sintonia com a procura, por parte de um número crescente
de consumidores de produtos produzidos através da utilização de substâncias e processos
naturais. A produção biológica desempenha, assim, uma dupla função social: por um
lado, abastece um mercado específico que responde à procura de produtos biológicos por

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parte dos consumidores e, por outro, fornece bens disponíveis para o público em geral que
contribuem para a proteção do ambiente e do bem-estar dos animais, bem como para o
desenvolvimento rural.”
Os custos colaterais da AB, relacionados com a erosão dos solos, a poluição da água
e a morte da vida selvagem, são estimados em cerca de um terço dos custos causados pela
agricultura convencional (Niggli et al., 2008).

c) No Relatório especial sobre o Aquecimento Global de 1,5°C e no


Guia sobre o Desenvolvimento Sustentável

Os impactos do aquecimento global de 1,5°C e de 2,0°C foram divulgados pelo Painel


Internacional para as Alterações Climáticas (IPCC, 2018), num relatório especial sobre as
graves consequências se ações fundamentais e imediatas não forem tomadas pelos governos
e pela comunidade internacional. Estima-se que as atividades humanas tenham causado
até 2017, aproximadamente, 1,0 ± 0,2°C de Aquecimento Global acima dos níveis pré-
-industriais e, atualmente, está a aumentar 0,2 ± 0,1°C por década, devendo chegar a
1,5°C em 2040, se o Aquecimento Global continuar a aumentar à taxa atual.
As opções de mitigação consistentes com as vias da meta 1,5°C estão associadas a
múltiplas sinergias e trade-offs (relações de compromisso), com os 17 Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (UNRIC, 2016). Estes objetivos aplicam-se a toda a huma-
nidade e os países deverão mobilizar esforços para acabar com todas as formas de pobreza,
reduzir as desigualdades e combater as alterações climáticas, garantindo que “ninguém seja
deixado para trás”.
O importante papel da agricultura ao nível global tem tido uma pesada contrapartida
de emissão de gases com efeito de estufa (GEE). Em 2010, ao nível global, foram estima-
dos cerca de 24% para as atividades de agricultura, florestas e outros usos do solo, valor
que representa quase um quarto do total das emissões de todas as atividades económicas
35 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

no Mundo (IPCC, 2014).


O contributo da AB para atenuar as alterações climáticas é muito importante,
estimando-se uma diminuição da emissão de CO2 de 48% a 60% (FAO, 2007; Rodale,
2011), principalmente devido à não utilização de fertilizantes minerais de síntese quími-
ca. Se todos os sistemas agrícolas fossem conduzidos em AB, com exclusão da produção,
transporte e aplicação destes fertilizantes, particularmente de azoto, haveria uma redu-
ção na emissão de GEE em cerca de 10-20% devido a uma redução de emissão de N2O
e mais cerca de 10% por menor utilização de energia com libertação de CO2 (Niggli et
al., 2009).

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d) No Programa geral de ação da União Europeia para 2020 em matéria
de ambiente e no Relatório sobre Economia Circular e Bioeconomia

Os objetivos do Programa geral de ação da União Europeia para 2020 em matéria de


ambiente – “Viver bem, dentro dos limites do planeta” (UE, 2013), foram orientados pela
seguinte visão a longo prazo: “Em 2050, vivemos bem, dentro dos limites ecológicos do pla-
neta. A nossa prosperidade e a sanidade do nosso ambiente resultam de uma economia circular
inovadora em que nada se desperdiça e em que os recursos naturais são geridos de forma susten-
tável e a biodiversidade é protegida, valorizada e recuperada, de modo a reforçar a resiliência
da nossa sociedade. O nosso crescimento hipocarbónico foi há muito dissociado da utilização dos
recursos, marcando o ritmo para uma sociedade global segura e sustentável.”
A transição para uma economia mais circular, em que o valor dos produtos, materiais
e recursos se mantém na economia o máximo de tempo possível e a produção de resíduos
se reduz ao mínimo, é um contributo fundamental para desenvolver uma economia
sustentável, hipocarbónica, eficiente em termos de recursos e competitiva (UE, 2015).
Hoje, é relevante a perspetiva integrada e sistémica para otimizar o uso de produtos
de base biológica e o uso sustentável de recursos naturais renováveis (bioeconomia circular
sustentável), uma vez que a circularidade pode ajudar a reduzir a competição por recursos
terrestres e aquáticos e, assim, contribuir para a mitigação das alterações climáticas e da
perda de biodiversidade (EEA, 2018).

e) A agricultura familiar e a agricultura biológica também se integram


na crescente agricultura urbana

Em meados do séc. xx, 30% da população mundial vivia em áreas urbanas, pas-
sando para mais de metade em 2018 (55%) e estimando-se que aumente para 68%
até 2050 (ONU, 2018). A sustentabilidade das cidades, a capacidade de atraírem ati-
36 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

vidades económicas e oportunidades e de garantirem o bem-estar dos seus cidadãos,


está comprometida, entre outros desafios, pelo acréscimo da população urbana e pelas
alterações climáticas, o que justifica que a “Resiliência da Cidade” integre os Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável (UNRIC, 2016), tornando-se numa questão essencial
a nível global. As cidades devem caminhar para uma maior interação com a natureza,
aproveitando todas as oportunidades para inserir a natureza e favorecer o contato das
pessoas com os elementos naturais, através de uma infra-estrutura ecológica de ligação
da cidade ao território, que ofereça serviços ambientais e sociais (Artmann et al., 2017;
Mourão et al., 2019).

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A agricultura urbana cumpre estes requisitos (Mougeot, 2015), é essencialmente uma
agricultura familiar e deve ser biológica. A prática da AB em hortas urbanas é altamente
recomendável, devido à necessidade de respeitar e preservar os ecossistemas e de ser um
sistema adequado de produção de alimentos, promovendo uma alimentação saudável.
Estes benefícios são amplamente reconhecidos, sendo bons exemplos de hortas biológicas,
a rede de hortas urbanas de Barcelona (Simon-Rojo et al., 2016), as hortas comunitárias
urbanas em Wisconsin, EUA (Ghose e Pettygrove, 2014) e, em Portugal, as hortas urbanas
do Parque da Devesa, em V. N. de Famalicão, as hortas comunitárias e terapêuticas do
Parque José Avides de Moreira, no Porto, e as redes de hortas comunitárias, sociais, peda-
gógicas e associativas, no Porto, promovidas pelo Serviço Intermunicipalizado de Gestão
de Resíduos do Grande Porto (Lipor) ou em Cascais, promovidas pela Empresa Municipal
de Ambiente de Cascais (EMAC). As hortas urbanas devem ser implementadas não ape-
nas para os cidadãos comuns, mas também para fins de horticultura social e terapêutica,
através de programas destinados a idosos, pessoas com deficiência ou dependentes, e em
diversas situações de reabilitação psicossocial ou inclusão social (Mourão e Brito, 2013).
Em síntese, importa considerar o papel da AF na preservação dos alimentos tradicio-
nais, no contributo para uma alimentação mais equilibrada, na proteção da agrobiodiversi-
dade, no uso mais sustentável dos recursos naturais, representando ainda uma oportunidade
para impulsionar as economias locais (FAO, 2014), se conjugada com a produção biológica
(ENAB, 2017), é lícito afirmar a sua importância e o caminho seguro que representa. A
sustentabilidade da AB baseia-se ainda em estratégias como: a diversificação (multiactivi-
dades/usos/ funcionalidades, como serviços e comércio); a diferenciação (certificação, raças
e cultivares autóctones, tradições); a verticalização (transformação e distribuição próprias)
e, a eficiência (gestão profissional, conhecimento, tecnologia), amplamente compatíveis
com a AF. Por fim, a AB oferece uma maior garantia de alimentar o mundo no futuro, por
permitir uma maior preservação a longo prazo dos recursos naturais, contribuindo para um
crescimento económico e desenvolvimento social mais sustentáveis (Sendim, 2011).
37 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Referências

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Ecosystem Services to Specify Leitbilder for Compact and Green Cities—The Example of the
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DL (2018). Decreto-Lei n.º 64/2018 de 7 de agosto – Estatuto da Agricultura Familiar. Diário da República,
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ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité
das Regiões, COM(2015) 614, Bruxelas, 24 p.
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UNRIC (2016). Guia sobre Desenvolvimento Sustentável – 17 objetivos para transformar o nosso
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39 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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PRÁTICAS

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PROVE – Promover e Vender

José Sousa Guedes


Ader-Sousa – Associação de Desenvolvimento Rural das Terras do Sousa

O PROVE é uma metodologia de comercialização direta e de proximidade, que, esta-


belecendo circuitos curtos de comercialização entre agricultores e consumidores, promove
a venda de produtos pelo produtor ao consumidor, num raio de 60 km, e contribui para o
escoamento de produtos locais, fomentando as relações de proximidade entre quem produz
e quem consome, recorrendo às tecnologias de informação e comunicação.
Esta metodologia está direcionada para pequenos produtores, isto é, com pequenas áreas
de produção e que têm dificuldade em colocar os seus produtos ou mesmo que nunca tenham
experimentado a venda das suas produções, ou ainda, que tiveram más experiências com interme-
diários, verificando que o risco ficava com ele e que o maior rendimento ficava com os últimos.
O PROVE foi “desenhado” pela Adrepes – Associação para o Desenvolvimento Rural da
Península de Setúbal, que tem a sua área de intervenção na Península de Setúbal, mais concre-
tamente nos concelhos de Palmela e Sesimbra. Ao abrigo da EQUAL – Iniciativa Comunitária
para o período de programação dos Fundos Estruturais entre 2000 e 2006, esta Associação de- 43 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

senvolveu um manual muito prático, que depois experimentou e aperfeiçoou, com a colaboração
da Ader-Sousa e da Monte, também associações de desenvolvimento local, a primeira do Norte e
a segunda do Sul de Portugal, de forma a testar diferentes realidades. A definição da metodologia,
para além de ter ido “beber” experiências a França e Espanha, foi desenvolvida em parceira com
outras entidades, produtores e consumidores. Entretanto o PROVE tem sido disseminado por
vários territórios de Portugal, com o apoio de outras associações de desenvolvimento local.
O PROVE veio dar solução à afirmação de uma produtora da península de Setúbal
“Produzir todos sabemos; comercializar o que produzimos é mais difícil”. No entanto, essa
afirmação engloba uma problemática mais complexa que se observa nos territórios:

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• Pequenos produtores agrícolas/agricultores familiares com:
űű historial familiar ligado à agricultura / baixa autoestima,
űű produções desajustadas,
űű reduzida iniciativa económica/empreendedorismo,
űű parcos conhecimentos de gestão, marketing e comercialização,
űű inexistência de relação com os consumidores,
űű deficiente leitura do mercado.
• Desvalorização da atividade agrícola por parte das populações locais;
• Consumidores que desconhecem as vantagens de adquirir produtos locais através
de processos de comercialização de proximidade;
• Estruturas de comercialização locais desajustadas à realidade produtiva do território.

A solução encontrada passa pela constituição de núcleos de pequenos agriculto-


res, normalmente compostos por três / quatro elementos (mas pode ser um só) que,
todas as semanas, reúnem as suas produções, previamente acordadas, preparam o cabaz
de hortofrutícolas e entregam diretamente ao consumidor final, sem a interferência
de intermediários.
O agricultor passa a ser um empresário, dono de um negócio que começa na produção
agrícola e termina na venda direta ao consumidor.
O cabaz tem a seguinte constituição: base de sopa, salada, fruta e aromáticas. É cons-
tituído por diversos produtos diferentes, que respeitam os ciclos da natureza, pelo que tem
menor variedade no Inverno, que é “compensada” no Verão.
Há cabazes grandes e pequenos, para responder a diferentes famílias e a sua entrega pode
ser semanal ou quinzenal, também para responder ao consumo dos clientes.

Vantagens para os produtores:


• Valor justo pelo trabalho;
• Pagamento no ato da venda;
44 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

• Produção consoante as necessidades (menor desperdício);


• Escoamento dos produtos assegurado;
• Relação com o consumidor e reconhecimento da atividade;
• Desenvolvimento de novas capacidades;
• Maior diversidade de produtos, o que permite um melhor controlo de pragas
e doenças;
• Possibilidade de escoar outros produtos extra cabaz (ex.: ovos, marmelada, vinho,
flores, compotas, pão, bolachas, etc).

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Vantagens dos consumidores:
• Reeducação dos hábitos alimentares;
• Consumo de novos produtos;
• “Os produtos têm uma voz”;
• Aquisição de produtos com maior frescura e durabilidade;
• Possibilidade de visitar as explorações;
• Possibilidade de adquirir outros produtos extra cabaz;
• Estabelecimento de relação de confiança com o produtor.

A título de exemplo apresenta-se o cálculo do possível rendimento de um núcleo constituído


por 5 produtores:
• Cabazes vendidos por semana – 100
• Preço dos cabazes – 12,50€
• Resultado – 1250€ / semana
• Após retirar cerca de 150€ para despesas correntes, resultam 1.000€ / 5 produto-
res = 220€ * 4 semanas = 880€ / mês para cada produtor.
• Como é óbvio isto é um pequeno exercício, existindo actualmente núcleos que
vendem mais de 250 cabazes / semana.
O primeiro contato entre os consumidores e produtores é, normalmente, feito através
de uma inscrição no site do PROVE (www.prove.com.pt/encomendas), onde escolhe o
distrito onde vive, verifica se algum dos locais de entrega lhe satisfaz, preenche a ficha onde
para além do tipo, n.º e periodicidade de cabaz, escolhe no máximo 5 produtos que nunca
quer receber (porque não gosta, é alérgico, etc). No dia, hora e local de entrega vai recolher
o cabaz e inicia o contato com o produtor.
O sucesso do PROVE pode ser avaliado a partir do número de núcleos de produtores,
explorações agrícolas e consumidores envolvidos, bem como pelo volume de produção
comercializado (Tabela 1).
45 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Tabela 1
Resultados do PROVE a Outubro de 2018
Resultados
Quantidade Núcleos de produtores 117
Explorações agrícolas 132
Locais de entrega 158
Consumidores 4890
Toneladas comercializadas semanalmente 39

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O PROVE tem sido reconhecido por várias entidades, de onde se destacam:
• “Projeto do mês Fevereiro 2011” pela Rede Rural Europeia;
• “Iniciativa de Elevado Potencial de Empreendedorismo Social” pelo Instituto de
Empreendedorismo Social;
• “Iniciativa Exemplo de Boas Práticas” pelo Observatório para a Sustentabilidade
Metropolitana da Área Metropolitana de Lisboa;
• 1.º lugar na categoria “Apoio ao desenvolvimento de mercados ecológicos e à eficiên-
cia dos recursos”, na X Edição dos Prémios Europeus de Promoção Empresarial
(European Enterprise Promotion Awards);
• Projeto selecionado pelo INHERIT como prática europeia de produção sustentável
e consumo saudável e sustentável.

“…o contacto directo com os clientes é bastante compensador…


cria-se uma família…só isso é espectacular!” – produtor PROVE.

Referências

Bandeiras C, Costa C, Calheiros JP, Alvarez L, Sampaio M, Alter M (2009). PROVE – Contributo para
um Processo Territorial de Proximidade. ADREPES, Quinta do Anjo, 166p. http://www.portugalglobal.
pt/PT/RoadShow/Documents/2016/Santarem_PROVE-Contributo-para-um-Processo-Territorial-de-
Proximidade.pdf
46 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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O que fazer para aproximar a agricultura
familiar da agricultura biológica

Ângelo Rocha
Quinta da Comenda/BeiraBio

1 – A agricultura biológica incorpora a seguinte premissa incontornável: a não utilização


de adubos químicos e a não aplicação de pesticidas sintéticos em quaisquer quantidades ou
circunstâncias. Independentemente de outras características e práticas culturais, é aquela
premissa que distingue a Agricultura Biológica (AB).
2 – Na agricultura familiar verifica-se uma utilização generalizada dos adubos quími-
cos e de diversos pesticidas sintéticos (quer sejam fungicidas, inseticidas ou herbicidas).
Tal facto pode ser facilmente comprovado com as enormes quantidades de vendas destes
produtos nas lojas da especialidade das localidades do interior do país e que se dedicam
quase exclusivamente a clientes de agricultura familiar (os produtores profissionais adqui-
rem os seus produtos diretamente a distribuidores especializados que dispõem de condições
mais favoráveis do que as lojas de venda a retalho).
3 – A agricultura familiar é assim definida como uma agricultura convencional com
47 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

menores dimensões, menos intensiva, menos profissional.


4 – Existe uma tendência para considerar a AF próxima da AB, mas tal não se verifica
na grande maioria das situações.
5 – O que fazer para aproximar a agricultura familiar da agricultura biológica:
– implementar uma verdadeira política de promoção da AB
– divulgar e informar sobre a prática da AB (de forma acessível e simples)
– disponibilizar produtos permitidos em AB de forma generalizada

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A Segurança alimentar, do ponto de vista
da agricultura familiar e biológica, como
um caminho de cura do nosso planeta

Liliana Pinto
Agrinemus

Agrinemus nasceu em 2008 na cidade rural de Castelo de Paiva, numa propriedade de


família, como um projeto de agricultura biológica de pequena escala movido pela premência
da cura do nosso planeta utilizando os princípios da agricultura biológica, os saberes locais
e as sabedorias ancestrais (ex. orientação astrológica da lua).
O incremento da biodiversidade da exploração agrícola sempre foi, e ainda é, um dos
principais objetivos do projeto. Entendemos que a conservação e aumento da biodiver-
sidade deve ser feito localmente pelo agricultor com as plantas mais adaptadas ao local
que serão à partida as mais resilientes. Privilegiamos a utilização de sementes regionais/
/locais bem como árvores de fruto, por exemplo. Acompanhamos como sócios e guardiões
de sementes o trabalho da Associação Colher para Semear que se encontra numa fase
de reestruturação.
A produção biológica teve início com a instalação de um pomar de variedades regio-
nais de macieiras e pereiras que neste momento está em fase de diversificação para outras 49 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

fruteiras: no entanto, foi sempre reservado um espaço para horta de subsistência, que
cresceu no últimos 3 anos, e outras culturas anuais. Foi nestes espaços que se começou a
produzir a semente, o tremoço, cultivado nesta região há muitos anos...
Em 2010 iniciou-se a transformação de produtos agrícolas em modo produção bioló-
gico, nomeadamente o tremoço pronto a consumir com ervas aromáticas e posteriormente
picante. A unidade de transformação desta bela leguminosa tradicional portuguesa foi
ampliada em 2018, bem como a sua equipa de trabalho e os seus produtos!
Desde 2014, os princípios da permacultura complementaram as práticas já imple-
mentadas na exploração, permitindo uma visão mais holistica de como curar o nosso

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planeta abrangendo preocupações que vão para além do trabalho da terra, como o cuidar
das pessoas e partilhar de forma justa os recursos, os saberes, as vivências, isto é, como
criar uma sociedade mais solidária e amiga da natureza.
Desde 2012, o projecto Agrinemus participa ativamente como produtor no movimento
de criação de Comunidades de Suporte à Agricultura (mais conhecidas em Portugal por
AMAP’s – Associação Para a Manutenção da Agricultura de Proximidade). A partir deste
ano foi criado o primeiro grupo de consumidores na cidade do Porto.
Com o passar dos anos este movimento teve os seus altos e baixos principalmente em
encontrar consumidores que estejam eticamente ligados a este conceito que assenta em
3 princípios que diferenciam este movimento de qualquer outro tipo de comercialização
de proximidade já existente em Portugal.

Carta de Princípios
(https://amap.movingcause.org/carta-de-principios/ )

1º Princípio: Agroecologia (proteção da biodiversidade, dos solos e das


águas entre outros fatores)
Sem o recurso ao uso de produtos químicos (ex. agricultura biológica, biodinâmi-
ca, natural) os sistemas agroecológicos são capazes de alimentar o mundo em 2050 com
9000 milhões de habitantes, segundo o Relatório Olivier de Schutter, Comissário das Nações
Unidas para a Alimentação.
O Princípio da Agroecologia promove-se assim como o primeiro princípio funda-
mental a respeitar para conseguir o direito a alimentação saudável para todos, a segurança
alimentar e a soberania alimentar e o respeito aos ecossistemas naturais.

2º Princípio: Relação de Escala Humana (economia local, de proximidade,


solidária) ONDE…. riscos, responsabilidades e recompensas inerentes à
50 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

produção agrícola são partilhadas com os co-produtores (consumidores)


A agroecologia integra a mão-de-obra na agricultura, elemento essencial para reativar
uma agricultura à escala humana, quer seja a nível da produção ou da distribuição. A escala
humana é necessária em primeiro lugar para desenvolver sistemas de produção resilientes
e respeitosos dos animais e do ambiente, integrando a biodiversidade e os ecossistemas,
contrariamente à monocultura a grande escala e à pecuária intensiva.
Por todas estas razões, as AMAP/CSA terão de ser obviamente constituídas sem in-
tervenção de agentes intermediários, entre produtor e consumidor, havendo sempre uma
relação de igualdade e partilha, próxima e solidária.

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3º Princípio: Alimentação como Bem-Comum (alteração do modo
como o ser humano vê os alimentos)
A alimentação é um acto cultural, um bem comum, e não uma mercadoria.
A alimentação saudável para todos não é apenas um direito fundamental. É um assunto
que diz respeito a todos e que faz parte da própria vida. É por isso um bem comum que todos
temos que cuidar desde a produção até ao consumo. A alimentação como bem comum im-
plica um princípio de co-responsabilidade entre todos a todos níveis: co-responsabilidade na
partilha dos processos de produção; co-responsabilidade na distribuição, permitindo o acesso
a todos, co-responsabilidade no consumo, evitando todas as formas de desperdícios.

Em conclusão os três princípios são indissociáveis e portadores de uma forma radical-


mente diferente de organização da alimentação. É pela aplicação destes três princípios que
será possível assegurar o direito à alimentação saudável para todos e à soberania alimentar
a nível de cada comunidade local e a nível global.

A 15 de Dezembro de 2018 ocorreu a 1ª Assembleia Geral da REGENERAR - Rede


Portuguesa de Agroecologia Solidária que constitui um facto histórico notável sendo esta
rede representada nacionalmente por uma equipa dinamizadora de 7 pessoas que representam
as 7 AMAP’s/CSA’S existentes em Portugal.
Concluindo, o projeto Agrinemus revê-se neste movimento agroecológico solidário
que consideramos definir o que é agricultura sustentável (Tabela 1):

Tabela 1
Agricultura sustentável e as bases para o movimento agroecológico solidário

Sustentabilidade
Económica Social Ambiental
Redução do desperdício na colheita e Evita a exclusão da pequena agricultura/ Transporte reduzido ao mínimo
material de embalagem agricultura familiar
51 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Promove e valoriza a produção local Justiça nos rendimentos Elimina a monocultura


Custos e tempo de comercialização Desenvolve relações de solidariedade Adopção/ conversão para práticas
reduzidos agrícolas agroecológicas

A obra publicada Directrizes para apoio à promoção da Agricultura Familiar nos países da
CPLP no nosso entender deveria estar referenciada como documento suporte ao Decreto-
-Lei 64/2018, de 8 de agosto - Estatuto da Agricultura Familiar, porque descreve de forma
mais pormenorizada o que está na base de reconhecimento de uma Agricultura Familiar e
os conceitos que estão interligados (ex. direito à alimentação saudável).

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Outra questão que não está mencionada neste Decreto-Lei e que está subjacente à
agricultura familiar é a subsistência alimentar da família que trabalha a terra. Uma explo-
ração agrícola familiar normalmente tem uma horta de subsistência e tem árvores de fruto
diversas de forma a garantir alimento todo o ano.
52 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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Testemunho de um horticultor
de agricultura convencional

Manuel António Silva


Horpozim, associação empresarial hortícola

A Horpozim, associação empresarial hortícola reúne cerca de 800 associados da Póvoa


de Varzim e concelhos limítrofes, Vila do Conde e Esposende que praticam agricultura
convencional. Nesta zona há uma tradição, um conhecimento de produzir hortícolas que
passa de pais para filhos; antes era uma agricultura de subsistência: a Póvoa do início do
século xx era essencialmente lugar de pescadores, mas a vida do mar é difícil, muitos
morriam e não havia sustento para as famílias; surgiram então as “masseiras” – pequenas
parcelas de terreno escavados nas dunas de areia, ladeadas de taludes que as resguardavam
dos ventos do mar permitindo a produção intensiva de hortícolas. Nesse tempo houve um
grande incremento de veraneantes o que foi uma alavanca para a horticultura da Póvoa que
passou a ser conhecida por muitos e, assim, foi uma importante fonte de rendimento das
famílias. Havia, nesse tempo, a prática de recolha de sargaços, que enriqueciam as areias,
com o pilado e com as camas dos animais, transformando-as em solo fértil adequado para 53 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

a produção de hortícolas.
Temos culturas tradicionais e variedades autóctones como a cebola e penca da povoa e
o tomate coração. São variedades registadas no catálogo Nacional de Variedades e reconhe-
cidas pelos consumidores. A introdução de novas variedades e adoção de novas técnicas,
nomeadamente a enxertia, veio permitir maior produtividade
Estamos na maior bacia leiteira do País e a economia circular ao nível do que são os
efluentes pecuários é importante. Alguns colegas tentaram técnicas hidropónicas, mas os
resultados demonstram que se tratarmos o solo como um ecossistema vivo o tradicional
continuará a prevalecer.

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Nas décadas de 70 e 80 do século xx, a indústria química colocou inúmeros produtos
à disposição do agricultor, que foram usados de forma intensiva, e rapidamente lixiviados
através das areias para o lençol de água; num tempo em que não havia saneamento básico, as
águas subterrâneas ficaram poluídas. Hoje há elevada consciência, o horticultor faz parte
da solução e não do problema. Os horticultores têm boas práticas, têm consciência ecoló-
gica, cumprem a legislação, usam as doses corretas, respeitam os intervalos de segurança.
Os agricultores fazem bem, mas não têm tempo para estar a registar tudo “não temos
tempo para esses registos todos, para os papéis e as burocracias”.
Tem havido colaboração com o meio académico. Destaco o trabalho do professor
Jorge Agostinho sobre a água de rega e as recomendações que fizeram com que alterásse-
mos as práticas de fertilização e maneio do solo, o que permitiu que todos melhorássemos
o processo.
A introdução dos abelhões como agentes polinizadores nas culturas de frutos, veio
revolucionar e virar a página na agricultura local, limitando o uso de químicos para não
prejudicar o grande trabalho deste nosso aliado. Obrigou a uma especialização dos agri-
cultores, hoje fazemos luta biológica através de largadas de auxiliares, pulverizamos com
novos produtos como o Bacillus thuringiensis para as lagartas e B. subtilis para fungos; faze-
mos luta física como o uso do plástico em vez de aplicar herbicidas. Há soluções amigas
do ambiente e amigas do produtor, pois ele é quem fica mais exposto aos químicos e por
isso é o principal interessado em aderir a novas soluções. Por seu lado, os consumidores
exigem cada vez mais, nomeadamente através das exigências dos supermercados através
dos sistemas como GlobalG.A.P.
O crescimento da população mundial continua e é preciso alimentar todos. A dimi-
nuição de terras aráveis e a crescente pressão urbana são um grande desafio no sentido de
aumentar produtividades mediante áreas de cultivo mais diminutas.
Há cerca de 10 anos, a HORPOZIM lançou um projeto para criação de uma marca
“D’A Póvoa”, elaborando um plano estratégico para a Horticultura local. Para além do
reconhecimento dos consumidores, há necessidade de assegurar a implementação de pro-
54 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

cedimentos e criação de condições físicas para que o prestígio dos nossos produtos de excelência
correspondam também a uma plena segurança alimentar. Para isso, eram necessários deter-
minados requisitos nomeadamente a capacitação, registos, certificação, etc, que a própria
legislação veio criar condições para tal.
Para uma região em que a agricultura familiar é uma realidade enraizada até na forma da
passagem do acesso à terra, de pais para filhos e confrontados com dicotomia agricultura bio-
lógica versus agricultura convencional, continuamos a acreditar no conhecimento científico,
baseado na experimentação e reconhecimento. Lembro ainda, quando em 2011, houve a
contaminação bacteriológica com Escherichia coli, na Alemanha, isso foi um problema

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muito grande. Hoje há, talvez, mais perigo na contaminação bacteriológica do que química.
Por isso temos que trabalhar bem e é o que fazemos.
A desmistificação de informações erradas, colocadas a circular ao serviço de alguns lobbies
instalados, tem sido um foco para a nossa Associação. Através da presença em Feiras,
fazendo degustação de sopas e saladas, levamos até às donas de casa soluções alimentares
fáceis e práticas de confecionar em detrimento do “fast food” e refeições pré-confecionadas
e aditivadas.
Para além de vendermos alimentos, nós agricultores, produzimos saúde.

55 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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Agricultura familiar, agricultura biológica e
desenvolvimento rural. Perspetiva de uma
família de jovens agricultores

Filipa Janson
Frederico Costa Guimarães
Duarte Costa Guimarães
Dona Ovelha, Lda, Quinta Vila Caiz – Agricultura Biológica

A agricultura familiar é vista e compreendida sob diferentes perspetivas a nível mun-


dial. Somos uma família de jovens agricultores, que abraçaram a agricultura biológica não
só como atividade profissional e principal fonte de rendimento, mas também como uma
forma de estar na vida.
Na nossa opinião, não devem existir definições estáticas que pouco estimulam e até
restringem a agricultura familiar em Portugal. Porque não pode uma família que faz da
agricultura biológica em seis ou sete hectares de terra, ser enquadrada, ao abrigo da lei,
no estatuto de Agricultura Familiar? E porque tem essa família de ser obrigatoriamente
integrada num determinado escalão de rendimentos anuais para que lhe seja concedido
esse mesmo estatuto? (“Tenha um rendimento coletável inferior ou igual ao valor enqua-
drável no 4.º escalão do imposto do rendimento de pessoas singulares”, Dec. Lei 64/2018,
Artigo 5º, alínea 1.b), Diário da República, 1.ª série — N.º 151 — 7 de agosto de 2018)
57 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Numa altura em que cada vez mais se discutem estratégias para o desenvolvimento
rural, é imprescindível que se apoiem mais as famílias que, tal como o presente caso, dei-
xaram a cidade para investirem no campo. Uma aposta mais incerta, e consequentemente
mais arriscada, tanto do ponto de vista pessoal como económico-financeiro num interior
cada vez mais desertificado.
Para tal, é necessário a adoção de medidas verdadeiramente pragmáticas: a divulgação
esclarecida e alargada dos benefícios que advêm da prática desta atividade – saúde, preser-
vação da natureza e incentivo ao consumo local –, aproximando famílias de produtores a
famílias de consumidores.

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Incentivar as famílias a “produzirem biológico”, em meio rural, tem um enorme im-
pacto a nível social, cultural, ambiental e económico e contraria uma tendência que há
muito se instalou no nosso país: a agricultura intensiva e mecanizada de grandes áreas
com monoculturas; o empobrecimento do solo devido às más práticas adotadas ao longo
do tempo; o envelhecimento da população no interior, concretamente a dos agricultores,
assim como a sua falta de conhecimentos técnicos; o desemprego; a perda do nosso patri-
mónio genético, devido ao abandono de atividades como a criação de animais de raças
autóctones portuguesas que se encontram em risco de extinção.
Na atividade que praticam, há que compreender que os agricultores são apenas meros
intervenientes no processo de produção de um alimento biológico.
Enriquecer o solo e contribuir para a biodiversidade do nosso ecossistema é o fio con-
dutor da profissão, cujo dia-a-dia exige incomensurável dedicação, persistência e estudo,
muito trabalho em equipa e um enorme respeito pela mãe-natureza.
Estes são os princípios em que acreditam e que, transmitidos à próxima geração, se
traduzirão, seguramente, em enormes benefícios para todos.
Desta forma, consideramos fundamental que se evolua e se abram horizontes na con-
textualização da Agricultura Familiar, através da agricultura biológica, de modo a promovê-la
como um negócio sustentável, incentivando jovens famílias a adoptar esta forma de vida.
58 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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Um exemplo do Programa PROVE
na área metropolitana do Porto

Pedro Barbosa
Estames e Carpelo, Sociedade Agrícola, Lda & Flores em Casa.

Este texto é um relato do autor relativamente à sua vivência e experiência no âmbi-


to do desenvolvimento do Programa PROVE – Promover e Vender, uma metodologia
que pretende contribuir para o escoamento de produtos locais, através da facilitação de
relações de proximidade entre quem produz e quem consome e do estabelecimento de
circuitos curtos de comercialização entre pequenos produtores agrícolas e consumidores.
O autor é um jovem agricultor instalado há cerca de 25 anos em Paços de Ferreira, com
um projeto de floricultura numa área de 2600 m2 cobertos. Na altura da instalação produzia
várias espécies de flores, como alstroemérias, cravos, gerberas, rosas, bolbosas. A produção
era vendida diretamente a floristas. A área de estufas foi aumentando até aos atuais 8000 m2.
Devido à crise económica, o mercado das flores caiu abruptamente, tanto em
quantidade vendida, como em preços praticados. Foi então que teve conhecimento do
projeto PROVE.
Assim, há cerca de seis anos, começou a reconverter a produção de flores em produção 59 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

hortícola. Após uma fase experimental, aderiu ao projeto PROVE.


Este projeto foi criado inicialmente na zona de Palmela, Setúbal, e depois alargado a
todo o país. O objetivo foi aproximar os pequenos produtores locais aos consumidores finais,
evitando assim a dependência de intermediários. Esta forma de comercialização permite ter
uma previsão das necessidades, produzindo uma grande variedade de produtos em quantida-
des adaptadas ao consumo. Esta variabilidade e alternância de culturas permitem um melhor
controlo de doenças e pragas. Desta forma, consegue-se também obter um preço mais justo,
tanto para produtores como para consumidores. O consumidor tem também a certeza que
está a comprar produtos produzidos na sua região, por agricultores locais.

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O autor é responsável pela implantação do PROVE em várias zonas da área metropo-
litana do Porto, fazendo entregas diárias, diretamente ao domicílio e a algumas empresas
associadas. Para além disso, o autor tem também parcerias com alguns agricultores na sua
vizinhança, comprando-lhes alguns produtos hortícolas, mas essencialmente fruta, pois
neste momento não tem produção suficiente para os seus próprios cabazes.
Desta forma, o PROVE enquanto facilitador da agricultura de proximidade fortalece o
mundo rural à volta das áreas metropolitanas do país.
60 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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CAPÍTULO 2

Agricultura familiar: do direito


à alimentação até ao consumo

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Agricultura familiar: do direito
à alimentação até ao consumo

Paula Correia
Raquel Guiné
Politécnico de Viseu, CERNAS, CI&DETS

A agricultura familiar é um pilar importante no desenvolvimento produtivo e na melhoria


das condições de vidas das pessoas que vivem em meio rural, devendo adotar-se estratégias
específicas de modo a garantir o seu papel e contributo nos sistemas alimentares desde a
produção ao consumo. Devido à sua importância e representatividade na alimentação,
é importante melhorar o acesso das agricultoras e dos agricultores aos diversos recursos
necessários (terra, energia, água, infrestruturas e serviços) para melhorar a produção, a
gestão e a sua organização. Neste sentido, a abordagem à segurança alimentar deve basear-
-se nas seguintes dimensões: (1) disponibilidade (a “oferta” de segurança alimentar – nível
de produção de alimentos), (2) acesso (a um suprimento adequado de alimentos que exige

coesão territorial
maior enfoque político sobre o rendimento e emprego, mercados e preços, incluindo o
contributo destes agricultores através da componente de autoconsumo), (3) estabilidade
(acesso a alimentos em todos os momentos e a preços justos) e (4) utilização (acesso aos
Biológica
sustentável,

nutrientes adequados).
e Agricultura

Neste capítulo, são abordadas estas temáticas: desde o direito e políticas relacionadas
com a produção de alimentos e o seu consumo, bem como os territórios e as pessoas que
Familiar turismo

mais diretamente se relacionam com a agricultura familiar.


e territórios:
Pontes entre
63 // Lugares património,
Agricultura

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Iberografias_37.indb 64 25-02-2020 11:49:48
do direito e das políticas

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Iberografias_37.indb 66 25-02-2020 11:49:48
O alimento e a agricultura familiar

Paula Correia
Raquel Guiné
Politécnico de Viseu, CERNAS, CI&DETS

O alimento constitui uma das necessidades básicas da sobrevivência humana.


Atendendo ao 25º Artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (Diário da
República, 1978), o qual refere que toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente
para lhe assegurar, a ele e à sua família, a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à
alimentação. No entanto, mais de 800 milhões de pessoas no mundo ainda não têm acesso
a alimentos saudáveis e nutritivos (FAO, 2014a).
A agricultura familiar é essencial para o desenvolvimento sustentável e para a erradicação
da fome, bem como para se alcançar a segurança alimentar. De realçar que a agricultura fami-
liar é responsável por cerca de 80% da produção de alimentos e 75% dos recursos agrícolas
do mundo, preservando os recursos naturais e a biodiversidade. Deste modo, verifica-se que
os Agricultores familiares são um pilar fundamental da agricultura e da alimentação, sendo a
forma predominante de produção de alimentos. A agricultura familiar mantém os alimentos
67 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

tradicionais, além de contribuir para uma alimentação equilibrada e para preservar a


agrobiodiversidade e o uso sustentável dos recursos naturais (FAO, 2014b).
O modo de vida das sociedades atuais, principalmente as mais ocidentais e urbanas,
reflete muitas vezes escolhas alimentares não saudáveis, nomeadamente alimentos proces-
sados e fast-food, ricos em gordura, açúcar e sal, tendo como consequências o sobrepeso e
a obesidade, associadas a um vasto conjunto de doenças crónicas.
A agricultura familiar apresenta-se como uma alternativa ao consumo deste tipo de
alimentos, de modo a conseguir-se cada vez mais ementas saudáveis, regionais e adaptadas
à cultura local. Neste sentido, a agricultura familiar poderá contribuir para uma maior

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ligação entre este tipo de consumo e a produção de alimentos mais sustentáveis, apro-
ximando a cidade do campo e vice-versa. Para além disso, tem outras vantagens, pois
verifica-se uma diminuição dos custos de transporte e a qualidade e confiabilidade dos
alimentos melhora, além de se potenciar o incremento de hábitos de consumo saudáveis.
Quanto à noção de alimentação saudável e adequada, salienta-se que para além da valo-
rização da componente nutricional dos alimentos, existem outras dimensões relativas à
produção de alimentos que deverão ser consideradas, como são o caso da produção de
alimentos biológicos, a alimentação enquanto um direito humano universal, bem como
aspetos relacionados com o prazer, cultura, hábitos, regionalidade, género, etnia. Para além
destas, não deverá ser esquecido o acesso, a sustentabilidade e a biodiversidade.
O tipo de alimentação no seio das explorações de agricultura familiar baseia-se, em
grande parte, no autoconsumo, sendo o excedente muitas vezes partilhado com familiares
e vizinhos mais próximos (Figura 1), produzindo-se o que é necessário e possível para sus-
tentar a família. Na maioria dos casos, o agricultor familiar dedica-se à agricultura como
um meio de subsistência, e em geral trabalha na produção de pequena escala. Em algumas
situações, o agricultor poderá comercializar o seu produto, nomeadamente no comércio
local, atendendo à sua escala de produção e sazonalidade. Para ultrapassar estes obstáculos
e outros que possam surgir, as associações de produtores são fundamentais, podendo aju-
dar na concentração de alimentos e na sua comercialização, de modo a ser possível alcançar
mercados mais competitivos à escala regional, nacional e até internacional, contribuindo
para a economia familiar.
68 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Figura 1. Circuito de consumo de alimentos numa exploração de agricultura familiar.

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Para alimentar o mundo e para o fazer de forma sustentável, é necessária uma mu-
dança urgente e radical nos sistemas alimentares. Para serem eficazes, as ações para estas
mudanças devem abordar um conjunto complexo de objetivos interligados, abrangendo as
dimensões económica, social e ambiental. Os agricultores familiares – incluindo pastores,
pescadores, silvicultores, indígenas e outros grupos de produtores de alimentos – estão no
centro desta questão. Eles são os que fornecem a maioria dos alimentos do mundo, são
os principais investidores na agricultura e a espinha dorsal da estrutura económica rural
(FAO e IFAD, 2019).
A segurança alimentar baseia-se essencialmente em três pilares: (i) a disponibilidade de
alimentos em quantidade e qualidade suficientes, (ii) acessibilidade aos recursos alimen-
tares e (iii) seu uso adequado. Para além disto, para assegurar a segurança alimentar dos
alimentos que são ingeridos é fundamental que as atividades que são desenvolvidas, desde
a produção primária do alimento até ao consumo final, sejam planeadas atendendo ao
Código de Boas Práticas agrícolas e de processamento, às boas práticas de higiene e ainda
tendo em consideração o sistema HACCP (Hazard Analysis and Critical Control Point
ou Análise de Perigos e Controlo de Pontos Críticos). Deste modo, a segurança alimentar
deve estar presente em todas as fases da cadeia alimentar.
A agricultura familiar vai muito para além da segurança alimentar, conta com o conhe-
cimento e know-how da produção e gestão de alimentos. Por exemplo, os produtores
utilizam uma grande diversidade de culturas agrícolas e arbóreas, oferecendo um futuro
integrado, equitativo e resiliente, que contribui para mitigar as mudanças climáticas – uma
solução moderna para os problemas causados por uma abordagem industrial ultrapassada
(IIED, 2019).
A agricultura familiar é, assim, uma atividade central, particularmente na produção
sustentável de alimentos, porque integra os setores económico, social, cultural, ambiental
e espiritual. Este potencial para múltiplas soluções permite enfrentar o duplo desafio:
alimentar o mundo e curar o planeta (Inades-Formation, 2014).
Os sistemas alimentares enfrentam desafios cada vez mais prementes, como a fome
69 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

e as doenças relacionadas com a dieta, a necessidade de fornecer alimentos suficientes,


saudáveis e seguros a uma população global crescente, a necessidade de reduzir a perda e o
desperdício de alimentos, o esgotamento dos recursos naturais, o aumento das emissões de
gases de efeito estufa, a degradação ambiental, as mudanças climáticas e ainda os choques
e tensões com elas relacionadas (FAO, 2017).
Por fim, pretende-se que exista um mundo em que floresçam sistemas alimentares
e agrícolas diversificados, saudáveis e sustentáveis, onde comunidades rurais e urbanas
possam desfrutar de uma alta qualidade de vida em dignidade, equidade, livres de fome e
pobreza e onde os alimentos sejam de qualidade.

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Referências

FAO (2014a). Agricultura familiar é vital para segurança alimentar e desenvolvimento sustentável globais.
Food and Agriculture Organization of the United Nations. https://nacoesunidas.org/agricultura-
-familiar-e-vital-para-seguranca-alimentar-e-desenvolvimento-sustentavel-globais-diz-fao/
FAO (2014b). The State of Food and Agriculture. Innovation in family farming. Food and Agriculture
Organization of the United Nations, Roma.
FAO (2017). The future of food and agriculture: Trends and challenges. Food and Agriculture Organization
of the United Nations, Roma.
FAO, IFAD (2019). Family Farming 2019-2028: Global Action Plan. Food and Agriculture Organization
of the United Nations and International Fund for Agricultural Development. Roma.
IIED (2019). Modern food systems to emerge in new decade of family farming. International
Institute for Environment and Development. https://www.iied.org/modern-food-systems-
emerge-new-decade-family-farming
Inades-Formation (2014). Family farming as a sure way to ensure sustainable food production. Workshop
on Family Agriculture, Swiss Centre for Scientic Research. Suiça. www.inadesformation.net/en/
poltical-influence/family-farming-as-a-sure-way-to-ensure-sustainable-food-production/
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Uma estratégia alimentar sem território

Cecília Delgado
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
CICS.NOVA – Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais – FCSH.UNL

Introdução

A Estratégia Integrada para a Promoção da Alimentação Saudável (2017), a Estratégia


Nacional para a Agricultura Biológica e Plano de Ação (2017) e o Estatuto da Pequena
Agricultura Familiar (2018) demonstram que a Alimentação e a Agricultura fazem hoje
parte da Agenda Política Nacional. Falta, argumentamos, uma abordagem multissetorial
que integre a dimensão territorial, fundamental para adequar o aumento da procura de
produtos locais e biológicos à atual oferta nacional.
A Lei-quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as en-
tidades intermunicipais (2018), delegou para estas a responsabilidade relativa aos almoços
servidos nos refeitórios escolares, o que potenciou, ainda que não de forma generalizada, a
procura de produtos locais e tendencialmente biológicos. Para ilustrar o nosso argumento
serão apresentados dois projetos pilotos iniciados no ano letivo 2017/ 2018 em Portugal:
1) a Junta de Freguesia de Olivais em Lisboa que serve 1.565 refeições/ dia; e 2) a Junta
71 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

de Freguesia de Silvares, no Fundão, que serve 112 refeições/dia. O desafio destas escolas
passa pelo aprovisionamento semanal de produtos biológicos.

Onde se produz AB?

Dados disponíveis na Estratégia Nacional para a Agricultura Biológica e Plano de


Ação (2017) demonstram que o peso da Agricultura Biológica – AB (em 2015) em relação
à Superfície Útil Agrícola – SUA (2009) situa-se percentualmente em 6,6% do território

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continental e ilhas (cerca de 240 mil hectares). A Beira Interior destaca-se como o território
com maior área de Superfície Agrícola Utilizada (SAU) em produção AB (13,2%), seguin-
do – se o Alentejo com (7,8%). As restantes regiões registam valores muito inferiores. O
mesmo relatório ilustra que quase 70% da produção total em AB é ocupada por pastagens.
A percentagem de AB ocupada pela produção hortícola é de (0,6%) sendo ligeiramente
superior a AB ocupada pela produção frutífera (1,5%). A escassa presença territorial de
AB em Portugal, e a procura acentuada, especialmente nas áreas urbanas, explica que 49%
dos frutos e hortícolas consumidos e 43% dos cereais e leguminosas sejam importados (de
2014 a 2016). No total onze países forneceram 480.725 kg de produtos biológicos (de
2014 a 2016) para satisfazer as necessidades de consumo no território nacional, onde se
destaca a China (208.066 kg) e o Equador (157.380 kg).1

Refeições escolares com Produtos Biológicos: Projetos-Piloto em Portugal

Fornecer refeições à população escolar implica: 1) o recurso a serviço externo de cate-


ring ou; 2) compra aos produtores locais e confeção das refeições. Alguns governos locais
optaram também por incluir produtos biológicos na sua ementa: a Junta de Freguesia de
Olivais, em Lisboa, e Silvares, no Fundão, são 2 exemplos paradigmáticos.

Junta de Freguesia de Olivais – início ano letivo 2017/2018


A vontade política e técnica da junta de freguesia de Olivais em melhorar a quali-
dade das refeições escolares e o desafio da Agrobio2 para introduzir alimentos biológicos
na ementa escolar explicam o início do processo. A Agrobio foi essencial na negociação
do cabaz de produtos sazonais e preço com os produtores, e na formação das equipas de
cozinha. As sopas e as saladas são confecionadas com produtos biológicos sazonais nas
cozinhas por uma equipa motivada de cozinheiros e monitores que sensibilizam os alunos
para a importância da alimentação saudável. Está em negociação a compra de carne e fru-
72 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

tas biológicas para adicionar à ementa.


A adesão ao novo menu é comprovada pelo aumento de refeições servidas mensal-
mente nas 7 escolas durante o ano letivo de 2017/18: Em setembro de 2017 eram servidas
25.905 refeições, este número aumentou para 32.865 refeições em maio de 20183.
Vários fatores explicam o sucesso alcançado: 1) vontade e sensibilidade política; 2) um mediador
estratégico na relação com os produtores e na formação da equipa de cozinheiros; 3) a garantia
1
Estratégia Nacional para a Agricultura Biológica e Plano de Ação (2017)
2
Associação Nacional de Agricultura Biológica. Link: https://agrobio.pt/
3
Corresponde ao último mês completo do ano letivo 2017/18.

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de fornecimento de produtos biológicos na quantidade necessária através da parceria com a
cooperativa local – Agricoop – Bio, criada especificamente para responder ao projeto.

Silvares, Município do Fundão – início Maio 2018


A participação do Fundão no Programa Europeu AGRI-URBAN (2015 – 2018) impul-
sionou o desenvolvimento de uma estratégia local, num concelho com uma longa tradição
no setor agrícola, notavelmente através da cereja, um produto icónico, mas também do
Clube de Produtores Locais formado em 2012. O Plano de Ação AGRI-URBAN, desen-
volvido pelos atores locais, definiu como ação prioritária a promoção do território local,
através dos seus recursos endógenos e do fortalecimento das relações de proximidade entre
produtores e consumidores. Como parte do plano foi desenvolvida um projeto piloto de
fornecimento de produtos locais na escola de Silvares “Prato Público” que será replicado
em breve nas restantes escolas do concelho. As maiores dificuldades enfrentadas foram
a falta de fornecedores com capacidade de resposta às quantidades necessárias e a falta
de produtos biológicos certificados. A meta estabelecida correspondente a 10% de produtos
biológicos4 e 80% de produtos provenientes da agricultura local é um desafio constante.
A estratégia de medição do desperdício alimentar no refeitório da escola de Silvares,
resultante da transferência de boas práticas AGRI-URBAN, da cidade de Mouans-Sartoux,
demonstrou ser uma ferramenta extremamente útil para a redução dos custos do projeto.
O acerto das quantidades utilizadas na confeção das refeições permitiu reduzir em cerca de
50% as perdas e com isto os custos de aquisição de alimentos associados ao projeto.

Conclusões e desafios para o futuro

A consolidação e expansão do fornecimento de AB aos refeitórios escolares, exige uma


ancoragem territorial capaz de responder ao aumento da procura, e carece de princípios
de intervenção que orientem a sua execução. A partir da análise dos 2 projetos-piloto
73 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

propõe-se:

A – Estratégia Territorial
A expansão da % AB em relação à SUA implica um processo faseado no tempo e no
território. A Tabela 1 ilustra as 4 fases de expansão propostas: 1) aumento da SAU nacio-
nal de modo a responder à procura interna e reduzir a balança de importações; 2) este
aumento deverá ser acompanhado pela expansão percentual de superfície de AB; 3) uma
aposta política clara na expansão da Agricultura Urbana - AU, mais próxima da localização
4
Com certificação, o que implica um desafio adicional.

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geográfica dos centros de consumo – maior oferta de produção local; 4) defendemos que a
expansão da produção local (AU) deverá ser realizada tendencialmente em AB.

Tabela 1
Estratégia Territorial
Faseamento
Território Ação Curto Prazo Médio Prazo Longo Prazo
1 Nacional Aumentar a SAU
2 Aumentar a % SAU em AB
3 Local Aumentar AU
4 Aumentar a % AB em AU

B – Princípios de Intervenção
1) Políticas Públicas – É essencial que as políticas publicas se retro – alimentem atra-
vés de abordagens multissetoriais, facilitadoras de respostas concretas e convergentes dos
atores no território.
2) Mediação – A mais valia resultante da parceria entre a Junta de Freguesia de Olivais
e a Agrobio demonstra a relevância da mediação técnica e institucional. Um modelo que
deve ser testado e eventualmente replicado à escala nacional.
3) Monitorização e Avaliação – A estratégia de monitorização do desperdício alimen-
tar no Fundão provou ser relevante para o desempenho do projeto. Importa replicar o
modelo e trabalhar o processo, numa perspetiva de fecho do ciclo metabólico.

O processo de abastecimento de produtos de AB nos refeitórios escolares acaba de


iniciar-se em Portugal, há certamente um longo caminho a percorrer que poderá ser faci-
litado através de uma Estratégia Territorial e de Princípios de Intervenção que fortaleçam
as pontes necessárias entre as políticas e as práticas.
74 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Agradecimentos

A autora agradece à Micaela Gil (Fundão), Anabela Silva e Rua Silva (Olivais), Paula
Rodrigues (Torres Vedras) e António Lopes (Agrobio / Agricoop – Bio) pela disponibili-
dade e generosidade da partilha. A investigadora é financiada por fundos nacionais através
da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito da Norma Transitória
- [FCSH001730].

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Referências

Estratégia Integrada para a Promoção da Alimentação Saudável (2017). Despacho n.º 11418/2017
de 29 de Dezembro. Diário da República nº 249 – 2ª Série. Gabinetes do Ministro da
Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, da Ministra do Mar, dos Secretários de Estado
dos Assuntos Fiscais, das Autarquias Locais, da Educação, Adjunto e da Saúde e Adjunto e do
Comércio e das Secretárias de Estado da Indústria e do Turismo. Lisboa
Estratégia Nacional para a Agricultura Biológica e Plano de Ação (2017). Resolução do Conselho
de Ministros n.º 110/2017 de 27 de Julho. Diário da República, nº 144 – 1.ª Série. Lisboa
Estatuto da Pequena Agricultura Familiar (2018). Decreto-Lei n.º 64/2018 de 7 Agosto. Diário da
República, nº 151 – 1.ª Série. Presidência do Conselho de Ministros. Lisboa
Lei da Descentralização (2018) – Lei-quadro da transferência de competências para as autarquias
locais e para as entidades intermunicipais. Lei n.º 50/2018 de Agosto. Diário da República,
N.º 157 – 1.ª Série. Assembleia da República. Lisboa

75 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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O papel central da mulher para a realização
da alimentação enquanto direito

Maria Victória Garcia Medina


Rede das Margaridas da CPLP/ACTUAR – Associação
para a Cooperação e o Desenvolvimento

No que concerne ao funcionamento do sistema alimentar na sua integralidade,


desde a produção ao consumo dos alimentos, a mulher exerce transversalmente uma
função expressiva em todas as etapas deste processo (Nuila e Claeys, 2016).
O papel de centralidade da mulher para a alimentação é frequentemente invisibilizado,
não remunerado ou quando ocorre a remuneração, esta é raramente efetuada de maneira justa
e igualitária e, assim, configura-se um impeditivo à sua autonomia económica (Nobre et
al., 2008). Nesse sentido, Rivera e Álvarez (2017) defendem que tal circunstância decorre,
em grande parte, da desvalorização do trabalho das mulheres rurais e urbanas como agentes
para o desenvolvimento socioeconómico efetivo.
Diante disso, em linhas gerais, é possível perceber um descaso profundo por parte da
sociedade como um todo a respeito do protagonismo das mulheres para a promoção do es-
tado de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), e consequentemente, para
77 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

o combate à fome e a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada – DHAA


(ACTUAR, 2017).
Sob uma perspetiva produtiva, as mulheres rurais camponesas (MuR) são responsáveis
pela produção de mais de 50% dos alimentos a nível mundial, assim, é maioritariamente
pelas mãos destas mulheres que cultivaram, lavraram a terra e realizaram a colheita que os
alimentos chegam à mesa da população (Nuila e Claeys, 2016).
Relativamente à Comunidade de Países de Língua Portuguesa – CPLP, (ACTUAR,
2017), sobretudo nos países africanos de língua portuguesa, o percentual de mulheres
que desempenham a função de trabalho economicamente ativa na produção de alimentos

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é bastante significativo e, em determinadas conjunturas, pode chegar a cerca de 90% da
força de trabalho no campo. Assim, em alguns países desta região, na qual a agricultura
familiar representa a oportunidade de trabalho de maior importância nas zonas rurais, são
as MuR que preponderantemente realizam a maior parcela do trabalho agrícola.
Além de atuarem como produtoras de alimentos de qualidade, as MuR detêm
conhecimentos tradicionais relacionados à agricultura intrinsecamente ligados à prática da
agroecologia e, portanto, são ao mesmo tempo promotoras e guardiãs da biodiversidade
(Rivera e Álvarez, 2017).
Os saberes de natureza empírica aportados pelas agricultoras que baseiam sistemas agríco-
las tradicionais sustentáveis possuem uma forte componente de geracionalidade (ACTUAR,
2017). Desse modo, a preservação desses conhecimentos tradicionais se encontra em risco,
à medida que a falta de incentivo à permanência no campo e a desvalorização dessa função
social primordial ameaçam a manutenção das populações rurais no campo.
No que se refere à abordagem a partir do consumo, assim como a mulher rural, a
mulher urbana desempenha igualmente a função social basilar da produção e reprodução
dos meios de vida.
As mulheres são, concomitantemente, as principais consumidoras de mantimentos e
fornecedoras de alimentos no lar (FIAN, 2018). Assim, consoante a lógica da divisão sexual
do trabalho, para além de desempenhar a sua profissão, as mulheres – rurais e urbanas –
têm a tarefa de se encarregarem da alimentação de suas famílias e são responsáveis pela
aquisição e preparação dos alimentos (Nobre et al., 2008).
Simone de Beauvoir (1980, p. 9), na sua obra denominada O Segundo Sexo “Não se
nasce mulher, torna-se mulher”, refere-se ao fenómeno social que, desde o nascimento dos
seres humanos, lhes são impostos papeis de género que nada tem a ver com fatores genéticos
ou naturais.
Nessa perspetiva, as mulheres são consideradas ainda hoje cidadãs de segunda classe e,
por isso, encontram-se suscetíveis a diversas maneiras de discriminação de género e opressão
na economia baseada no mercado capitalista e na sociedade patriarcal (FIAN, 2018).
78 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Assim, valorizar o trabalho agrícola tradicionalmente praticado por mulheres, a deno-


minada agricultura de subsistência, mas que na verdade se configura como uma agricul-
tura para a existência digna, não faz parte do sistema organizacional de opressão que se
mantém em vigor pela perpetuação das desigualdades sociais.
Apesar do protagonismo das mulheres para a realização do DHAA, são justamen-
te as mulheres e meninas que paradoxalmente estão mais suscetíveis à violação desse
mesmo direito, sendo desproporcionalmente afetadas pela má nutrição e insegurança
alimentar, representando cerca de 70% da população que passa fome a nível mundial
(Nuila e Claeys, 2016).

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Segundo o mais recente relatório sobre o Estado da Segurança Alimentar e Nutricional
no Mundo, em 2017, uma em cada três mulheres em idade reprodutiva no mundo sofriam
de anemia, um cenário que tende a agravar-se (FAO, FIDA, UNICEF, PMA e OMS,
2018). Posto isto, é possível depreender que a vulnerabilidade à insegurança alimentar e
nutricional evidencia um claro desequilíbrio no pressuposto da igualdade de género.
Portanto, neste ciclo de desprivilégio fundamentado em fatores socioculturais, po-
líticos e económicos, as mulheres não têm pleno acesso e controlo a recursos naturais e
produtivos, leia-se acesso à terra, à água, às sementes tradicionais, a tecnologias adequadas,
ao crédito, entre outros (FIAN, 2018). As mulheres, nomeadamente as mulheres rurais,
sofrem ainda a exclusão sistémica dos espaços de governança e nos processos de tomada de
decisão (ACTUAR, 2015).
Contudo, o acesso aos recursos e espaços supracitados é primordial para que as mulheres
tenham condições de produzir alimentos de forma digna e possam, igualmente, garantir
a sua própria alimentação e da sua família e promover, desse modo, o cumprimento do
DHAA e o estabelecimento do estado de Soberania e SAN nas suas comunidades.
Essa é, sem dúvida, uma das desigualdades estruturais gritantes das quais padecem as
MuR: ainda que sejam as maiores produtoras de alimentos, detêm menos de 2% da posse
da terra no mundo (Nuila e Claeys, 2016).
No que concerne à CPLP, pese a seu significativo contributo para a produção agrícola,
os agricultores e agricultoras familiares são proprietárias de cerca de apenas 10% da terra na
maioria dos países de língua portuguesa (ACTUAR, 2017). Na dinâmica da distribuição da
posse da terra sob uma perspetiva de género, de forma geral, é possível perceber um certo
grau de equidade superficial. Não obstante, na mesma direção a ACTUAR (2017) afirma
que, as MuR estão mais presentes nas terras de sequeiro – consideradas de menor valor
agrícola – enquanto os homens detêm terras de regadio, ainda que nestas últimas a mão-de-
-obra seja também prevalentemente feminina.
Não é possível alcançar a plena efetivação do DHAA sem garantir a promoção dos di-
reitos das mulheres – rurais e urbanas – e a igualdade de género. Diante disso, Belows et al.
79 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

(2011) salientam a necessidade das mulheres terem acesso igualitário aos recursos naturais e
produtivos como um componente fundamental para a realização do DHAA, igualdade esta
que é restringida em muitos países como consequência da legislação ou construções sociais.
O papel de centralidade das mulheres na alimentação em todas as etapas que per-
meiam, desde o cultivo do alimento até a sua chegada à mesa, é evidente e reconhecido.
Contudo, é necessário não perder de vista que essas mulheres são gravemente afe-
tadas por uma condição estrutural que deve ser imperativamente desconstruída. Por outro
lado, por meio da resiliência, essas mesmas mulheres são agentes de mudanças ativas e
contundentes na luta contra a sua própria opressão para a realização dos seus direitos.

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Deste modo, o poder das mulheres rurais como agentes de desenvolvimento socioeconó-
mico efetivo e sustentável deve ser considerado uma estratégia prioritária de erradicação da
pobreza e promoção do DHAA em prol da instituição do estado de Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional no mundo e na CPLP.
Posto isto, a luta pela promoção dos direitos das mulheres, com particular atenção às
mulheres rurais, para garantir às mulheres rurais o acesso efetivo aos recursos naturais e
produtivos, bem como sua participação nos espaços de governança e processos de tomada
de decisão deve ser abordada como medida estratégica para a realização do DHAA.

Referências

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de Língua Portuguesa. Relatório do debate virtual.
ACTUAR (2015). Direitos das Mulheres Rurais na CPLP. ACTUAR, Coimbra.
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Bellows AC, Scherbaum V, Lemke S, Jenderedjian A, Viana RS (2011). Gender-specific risks and ac-
countability: Women, nutrition and the right to food. Right to Food and Nutrition Watch, 23-29.
FAO, FIDA, UNICEF, PMA, OMS (2018). SOFI. El Estado de la Seguridad Alimentaria y la
Nutrición en el Mundo. Fomentando la resiliencia climática en areas de la seguridad alimentaria y
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avanços e desafios. Brasília, DF: Oxfam.
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International, the FoodFirst Information and Action Network. https//www.fian.be/IMG/pdf/
droits_fe_rurales_es_web.pdf>.
Rivera M, Álvarez I (2017). Del enfoque mercantil a la centralidad de la vida: un cambio urgente para
80 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

las mujeres. Observatorio del Derecho a La Alimentación y a La Nutrición: Vencer la crisis alimen-
taria Mundial. Watch, 10: 40–45.

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A agroecologia como abordagem crítica
para pensar a agricultura familiar,
a agricultura biológica e o
desenvolvimento rural

Irene Aurora Santos


Escola Superior Agrária de Ponte de Lima, Instituto Politécnico de Viana do Castelo

A agroecologia parte de uma análise crítica à globalização agroalimentar, avaliando os


agro-ecossistemas e sistemas alimentares, com um enfoque teórico e metodológico para o
desenho técnico-produtivo e a praxis sócio-política em torno do maneio ecológico parti-
cipativo (Guzmán e Soler, 2010). Nesta análise, e para a construção de propostas alterna-
tivas de sustentabilidade e transformação social, a agroecologia integra uma abordagem
tridimensional dos processos agrários (dimensão técnico-agronómica e ecológica, dimensão
sócio-económica e dimensão sócio-política), com um enfoque pluriepistemológico e trans-
disciplinar, rompendo com a epistemologia hegemónica nas ciências ocidentais (Guzmán
et al., 2010). Esta dissidência está presente, também, na importância que concede ao cam-
pesinato; é na dimensão local que se encontram os conhecimentos das comunidades cam-
ponesas, e/ou locais, portadoras de potencial endógeno, que permitem a biodiversidade
ecológica e sócio-cultural (Toledo, 1992). Partindo de que, qualquer sistema agrário em 81 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

análise é o produto da coevolução entre ser humano e natureza, numa evolução integrada
entre cultura e ambiente (Norgaard, 1999), a agroecologia põe em valor as diferentes for-
mas de maneio que foram surgindo como fruto dessa interação, e que se traduziram em
formas sustentáveis de reprodução social e ecológica dos agro-ecossistemas, reconhecendo
assim que as experiências que as agricultoras/es adquiriram, desenvolveram e acumularam
com o tempo, na sua interação entre os sistemas agrários tradicionais, é um ponto base im-
prescindível para o desenho de formas de maneio mais sustentáveis (Guzmán et al., 2000).
Esta abordagem de análise teórica e metodológica da agroecologia foi a utilizada no
trabalho de investigação realizado em 2016 (Santos, 2017), com o interesse e inquietação

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de conhecer de perto a realidade da agricultura familiar e camponesa em Portugal, e de
ampliar a visão do diagnóstico do meio rural e agrário, e dos processos e respostas alternativas
ao modelo de modernização agrária nos territórios, a partir das vozes, preocupações, ‘sen-
tires’ e ‘fazeres’ que se pretendiam identificar. Tratou-se de um trabalho exploratório que
partiu do estudo de diferentes perfis de ação, entre agentes individuais e coletivos do âmbi-
to agrário e rural, desde a pequena agricultura familiar tradicional até à biológica certifica-
da, e desde as iniciativas de circuitos curtos de comercialização até às redes e organizações
que desenvolvem ações de luta e protesto pela soberania alimentar. Metodologicamente,
envolveu a realização de 25 entrevistas dentro dos 4 grupos de atores, nos quais se ana-
lisaram: a) agricultoras/es – 12 casos de estudo (diferentes perfis e contextos geográfi-
cos), desde as dimensões ecológica e técnico-agronómica, sócio-cultural, sócio-económica
e sócio-política; b) iniciativas de circuitos curtos de comercialização – 3 casos, a partir
das perspetivas das consumidoras e produtoras, incluindo uma análise dos antecedentes e
um mapeamento de iniciativas no país; c) organizações e associações campesinistas e ati-
vistas – diferentes perfis de ação (discurso/praxis) nas resistências agroalimentares, desde
o sindicalismo agrário da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) até às redes de
sementes e movimentos globais, e d) universidades/grupos de investigação – tendências
no ensino e na investigação nos enfoques das ciências agrárias e sociais, juntamente com 3
perspetivas recolhidas no âmbito académico, em diálogo com a agroecologia. Pretendia-se
analisar as práticas e racionalidades presentes nos diferentes casos de estudo, assim como as
tendências, limitações e potencialidades das experiências encontradas, levantando alguma
reflexões críticas.
Tomando como centro de análise os casos de estudo da pequena agricultura familiar
(a modo de exemplo, e de uma forma simplificada, dentro do que é a totalidade de grupos
de atores e análise realizada), distinguiram-se dois perfis de agricultura – uma agricultura
tradicional de “tradição familiar” e uma agricultura biológica de perfil “neorrural” –
procurando entender as diferenças nas suas práticas, racionalidades, dificuldades sentidas
e estratégias desenvolvidas.
82 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Alguns pontos críticos e contradições encontradas prendem-se, por um lado, com


a dimensão ecológica, ressaltando-se nos casos da agricultura tradicional, a presença de
práticas agro-ecológicas (às vezes na forma de resistências ‘silenciosas’), com produções
diversificadas e multifuncionais (sobretudo nos casos de agricultura de montanha e policulti-
vo), simultaneamente com casos de alguma perda/erosão da racionalidade ecológica cam-
ponesa, por exemplo com o uso de fatores de produção de síntese química nas unidades
produtivas. Por outro lado, na dimensão sócio-económica, resultou evidente o predomínio
de rasgos de uma racionalidade económica camponesa nos casos de agricultura tradicio-
nal, em que a produção se destina maioritariamente ao consumo familiar, mantendo-se

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formas económicas de reciprocidade, com uma maior autonomia frente aos mercados.
No entanto, enquanto que nos casos de agricultura biológica (perfil “neorrural”), os/as
agricultores/as utilizam uma maior diversidade de canais de comercialização da produção
(através de mercados, lojas, cabazes ao domicílio e outras iniciativas de circuitos curtos),
em alguns casos de agricultura tradicional, as opções de venda parecem ser mais limita-
das, com uma maior dependência de subsídios e/ou das reformas para a manutenção da
atividade agro-pecuária.
Estes dois pontos críticos, em ambas as dimensões ecológica e sócio-económica,
devem ser lidos numa contextualização do que significou a entrada do capitalismo nos
campos, já que são fruto de uma série de mudanças profundas introduzidas pela mo-
dernização agrária, que vieram modificar toda a agricultura e sociedade rural, desde a
transformação tecnológica e as suas consequências na organização do trabalho, da ocu-
pação e uso do território, até à relação da sociedade rural com a terra (Baptista, 2001).
Num período de 40 anos, a alteração das práticas agro-pecuárias traduziu-se no avanço da
mecanização/‘tratorização’, no uso estendido de fatores de produção de síntese química,
ou na substituição de variedades (o exemplo das vinhas ou dos olivais) e perda de biodiver-
sidade cultivada e saberes associados, num processo longo de “despossessão” (Pérez-Vitoria,
2010). As próprias políticas agrárias da Política Agrícola Comum (PAC) tiveram uma papel
ativo na promoção da alteração de muitas destas práticas, sendo que, atualmente, a maioria
das pequenas e médias explorações agrárias europeias partilham uma série de condicio-
nantes sócio-económicas em toda a cadeia agroalimentar, relacionadas precisamente com
as imposições do modelo de modernização e globalização agroalimentar destas políticas
(López, 2015), que privilegiam agricultores profissionais com explorações especializadas,
capitalizadas e tecnificadas, deixando de fora as restantes, não “competitivas”.
No contexto português, e na defesa da Agricultura Familiar (reconhecimento, valoriza-
ção e manutenção da atividade), a CNA tem tido um papel fundamental, e é neste mo-
vimento, que integra a Coordenadora Europeia da Via Campesina, onde se identificam
algumas sinergias com a agroecologia, ainda que não ausentes de contradições e desafios.
83 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Alguns destes prendem-se com a promoção e reivindicação de outras possibilidades de


mercados – mercados locais, circuitos curtos de comercialização (Soler e Perez, 2013), e com-
pras públicas – que possam facilitar processos de transição social agroecológica, com outros
modelos de certificação e garantia (participativos), e uma organização de base e implicação
mais ativa de consumidores/as que valorizem e incluam nas suas redes alimentares as produções
familiares e camponesas.

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Referências

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agroalimentaria. In: Patrimonio cultural en la nueva ruralidad andaluza. Instituto Andaluz del
Patrimonio Histórico, Consejería de Cultura, Junta de Andalucía, Cuadernos PH, 192-213.
López DG (2015). Reproducir alimentos, reproducir comunidad. Redes alimentarias alternativas como
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Norgaard RB (1999). Agroecología: Bases científicas para una agricultura sustentable. Realidad
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Pérez SV (2010). El retorno de los campesinos. Una oportunidad para nuestra supervivencia.
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a la agricultura ecológica, de los canales cortos de comercialización a la soberanía alimentaria:
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Soler MM, Perez ND (2013). Canales cortos de comercialización alimentaria en la construcci-
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Toledo VM (1992). La racionalidad ecológica de la producción campesina. In: Guzmán E, González
de Molina M (Eds). Ecología, Campesinado e Historia. La Piqueta, Madrid.
84 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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Sementes que guardam diversidades1

Maria Helena Marques


Colaboradora do Centro em Rede de Investigação
em Antropologia – CRIA (polo ISCTE-IUL)

Apesar do recuo da atividade agrícola e das profundas alterações verificadas no último


meio século no mundo rural em Portugal, os pequenos agricultores, especialmente aqueles
que fazem uma Agricultura Familiar de auto-subsistência, mantêm vivo o ideal de autarcia
material2 patente, designadamente, na continuidade das práticas de colheita e guarda de
sementes para posteriores sementeiras. Entre as sementes que se guardam, muitas são de
variedades consideradas ancestrais, através das quais se reproduzem memórias, se transmitem
saberes e se consolidam identidades, familiares e coletivas.
A persistência das práticas de recolha e guarda de sementes de certas variedades de es-
pécies hortícolas, mesmo nos casos em que estas se revelam menos rentáveis do que outras
disponíveis no mercado, demonstra a importância dos afetos e das referências identitárias
na escolha das variedades cultivadas que, tal como as comunidades que ao longo do tempo
as moldaram, estão em constante adaptação e mudança. 85 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

1
Comunicação elaborada a partir da tese de doutoramento em Antropologia intitulada “Para não perder o inço.
Práticas, discursos e conflitos em torno da guarda de sementes.” (Marques, 2014). A pesquisa focou, entre
outros aspetos, as motivações que levam à manutenção ou ao abandono da guarda de sementes para posteriores
sementeiras, bem como as razões subjacentes à preservação ou não de variedades locais de hortícolas. O
trabalho de campo foi desenvolvido, numa primeira fase, nos concelhos de Ponte de Lima, Miranda do Douro,
Cantanhede, Loulé e Silves. Privilegiando-se, posteriormente, a investigação em duas regiões: uma, no nordeste
transmontano, mais concretamente em duas aldeias da Terra de Miranda (Ifanes e Paradela, concelho de
Miranda do Douro); e, outra, no sul, em sítios e aldeias situados entre o Barrocal e a Serra algarvia (Monte
Ruivo e Brazieira, respetivamente nas freguesias de Alte e Salir, concelho de Loulé; Vale Figueira, Cortes, Torre
e Portela da Mó, na freguesia de São Bartolomeu de Messines, concelho de Silves).
2
Ou seja, o de garantir, a partir da exploração agrícola, os géneros necessários à sobrevivência quotidiana do
núcleo doméstico.

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No entanto, num país em que, apenas numa década (1999/2009), uma em cada qua-
tro explorações agrícolas desapareceu (INE, 2011)3 e a população agrícola familiar perdeu
443 mil indivíduos, estes guardiões são cada vez em menor número e mais velhos.
Com base na pesquisa efetuada para a realização da tese de doutoramento em
Antropologia sobre as práticas de guarda de sementes, em 2014, realizada pela autora deste
texto, que se centrou em duas aldeias de Miranda do Douro e, a sul, nas freguesias de Alte
e Salir (no concelho de Loulé), e de S. Bartolomeu de Messines (no concelho de Silves),
conclui-se que a manutenção da prática da guarda de sementes se relaciona com a relativa
raridade das mesmas (nomeadamente pela impossibilidade em obtê-las no mercado ou,
mais raramente, pelo seu elevado preço) e, sobretudo, com o seu carácter distintivo, isto é,
com a especificidade resultante da especial adaptação aos lugares ecológica e socialmente
distintos em que foram sendo seleccionadas e mantidas e, portanto, com a sua forte ligação
à gastronomia local e à história familiar e coletiva (Marques, 2014).
No entanto, numa mesma exploração, podem coexistir duas lógicas aparentemente
antagónicas: a mercantil que aparentemente subjaz, por exemplo, à decisão de adquirir
plântulas em vez de sementes, com vista a acelerar a produção para venda, e uma outra que
nega ou contraria a primeira e se relaciona com o capital simbólico que estas representam.
As sementes de toda a vida, como foram frequentemente designadas pelos interlocu-
tores desta pesquisa, são muitas vezes consideradas menos produtivas e menos apelativas
(aos olhos de eventuais clientes) mas são quase sempre reconhecidas como mais saborosas,
mais resistentes a doenças e pragas e menos exigentes (designadamente, em água e adubos).
Ao contrário do que sucede com os agricultores que destinam toda a sua produção ao mer-
cado que, nalguns casos, abandonaram por completo o uso de sementes, preferindo adquirir
jovens plantas, aqueles que tendencialmente vendem apenas os excedentes das suas colheitas,
continuam a ser os primeiros guardiões da diversidade cultivada. Os agricultores que produ-
zem sobretudo com vista ao mercado, podendo manter pontualmente algumas variedades
ancestrais para autoconsumo e/ou para manjares rituais ou, ainda, para satisfazer pedidos
especiais de clientes, tendem a utilizar maioritariamente variedades comerciais. A explicação
86 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

reside não só na maior rentabilidade destas variedades como nos hábitos dos consumidores.
Entre as variedades indicadas, por exemplo, em duas aldeias vizinhas de Miranda do
Douro (Ifanes e Paradela) e das quais se guardam sementes para posteriores sementeiras,
estão o melão carrasco, a ervilha torta, o feijão (macarronete, capão) para as cascas ou casulas
(vagens de feijão, partidas e secas ao sol), para serem cozinhadas no Inverno com o butelo
(ou, em mirandês, butiêlho4), o grão-de-bico antigo, a couve berdenhal, o feijão cordeiro (de
3
Dados mais recentes (GPP, 2017) indicam que entre 1999 e 2016, a diminuição do número de explorações
agrícolas foi de 37,7% (menos 156 986 explorações que em 1999), sobretudo de pequena dimensão.
4
Enchido de porco, feito com o bucho do animal e recheado com ossos tenros da costela e do espinhaço,
cartilagem e alguma carne.

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trepar), o fidalgo e o frade (aqui chamado chícharo), ou ainda a garroba ou gamêta (como é
designada no Planalto mirandês), entre outras. No Algarve, contam-se a ervilha casusa, a fava
algarvia, o milho antigo (ou “milho das papas”), as abóboras casca de pau e frade, entre outras.
A manutenção das variedades tradicionais está intrinsecamente ligada à sobrevivência
das comunidades que as desenvolveram e dependente das redes de sociabilidade.
De acordo com o trabalho realizado1, o número de variedades locais/regionais mantidas é
maior nas duas aldeias do nordeste transmontano, onde a circulação de sementes e/ou plantas
entre vizinhos e parentes permite salvaguardar antigas variedades. Um intercâmbio que se
enquadra no sistema mais amplo de trocas de bens e serviços entre vizinhos da mesma aldeia.
A sul, entre o Barrocal Algarvio e a Beira-Serra, e com base nos testemunhos recolhidos,
parece evidenciar-se um aumento no número de variedades mantidas pelos agricultores à
medida que nos aproximamos da serra.
Ao partilhar sementes ou plantas, o agricultor não só facilita a sua disseminação e a
continuidade da sua evolução como, em princípio, garante uma eventual reserva de emergência
para o caso de perder as suas sementes.
A dádiva de sementes ou/e plantas pressupõe uma retribuição, diferida no tempo, e,
por essa razão, não se faz aleatoriamente. Quem oferece, espera poder receber mais tarde
sementes daquela ou de outra variedade se delas vier a precisar.
As trocas são tanto mais intensas quanto mais fortes forem as relações de vizinhança e
a sobrevivência de uma variedade antiga, ausente do mercado de sementes, está fortemente
dependente da estrutura social onde se desenvolveu. Se a comunidade que a manteve se
dissipa ou se os laços sociais e as redes de vizinhança se desvanecem, dificilmente se poderá
assegurar a sua continuidade. A reprodução biológica das variedades antigas está, assim,
intimamente ligada à reprodução social.
Como numa corrida de estafetas, as sementes que passam de mão em mão, de pais para
filhos e entre vizinhos, familiares ou amigos, são testemunhos. Elas transportam saberes,
memórias e afetos.
A contínua recombinação que produz as variedades locais é resultado da sua circula-
87 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

ção, utilização e do esforço dos seus utilizadores para, ao longo do tempo, melhorarem
o seu desempenho e rendimento na interacção com as condições naturais específicas de
cada local ou região (como o clima, tipo de solos, recursos hídricos, etc.). Elas são, assim,
produtos sociais e culturais.
A troca de sementes possibilita, portanto, uma contínua recombinação genética da
qual resulta a própria resiliência agronómica das variedades tradicionais, ou landraces, e
esta contínua recriação de diversidade não serve para alimentar apenas comunidades espe-
cíficas mas constitui um repositório de recursos genéticos que pode ser determinante para
o futuro da produção alimentar global (Kloppenburg, 2010).

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O progressivo desaparecimento das variedades locais, em benefício de variedades
exógenas produzidas industrialmente, é simultaneamente reflexo e causa de profundas
mudanças nos modos de vida, nos comeres, nas percepções da relação com a terra. A di-
minuição de agrobiodiversidade traduz-se numa maior dependência e vulnerabilidade dos
agricultores face aos interesses agro-industriais e na perda de soberania alimentar.
A preservação pelos agricultores das variedades tradicionais inscreve-se numa estratégia de
diversificação que, como sublinham Altieri e Merrick (1987), visa garantir não só uma dieta
variada ao longo do ano, como a minimização de riscos e de problemas com pragas ou doenças,
uso eficiente do trabalho, e uma produção com escassos recursos e baixo grau de tecnologia.
Por outro lado, estes sistemas agrícolas, adaptados às condições locais e baseados na
diversificação de espécies e variedades cultivadas, permitem que, mesmo perante condições
climáticas difíceis, seja viável assegurar uma produção contínua. Ou seja, a pluralidade de es-
pécies e variedades cultivadas em simultâneo e/ou distribuídas no tempo, torna possível que,
no caso da perda de colheitas, se possa garantir rendimento pelo menos nalgumas culturas.
O recuo dos sistemas agrícolas tradicionais assentes na policultura e o desapareci-
mento de variedades ancestrais (geralmente, mais resistentes e tolerantes à seca), agrava as
vulnerabilidades e abre caminho à uniformização, não apenas no que produzimos e come-
mos mas, também, como sublinha Vandana Shiva (2003), nas formas de pensar e viver a
relação com a natureza, com os outros e connosco próprios.

Referências

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of Traditional Farming Systems. Economic Botany, 41(1), 86-96. Altieri, M. e Nicholls, C. (2009).
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(1), 34-39.
GPP (2017). Análise sumária da evolução das características estruturais das explorações agrícolas - Inquérito
à Estrutura das Explorações Agrícolas 2016. Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração
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Geral, Lisboa. http://www.gpp.pt/index.php/estatisticas-agricolas/estatisticas-agricolas.


INE (2011). Recenseamento Agrícola 2009 – Análise dos principiais resultados. Instituto Nacional de
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Marques MH (2014). Para não perder o inço: práticas, discursos e conflitos em torno da guarda de
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Shiva V (2003). Monoculturas da Mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. Ed. Gaia,
São Paulo.

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ao território e às pessoas

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Os pequenos agricultores familiares
e o direito à alimentação

Aníbal Cabral
Associação Distrital dos Agricultores de Castelo Branco

Em 1989, Joaquim Casimiro, dirigente histórico da Confederação Nacional de


Agricultores (CNA), promoveu a fundação da Associação Distrital dos Agricultores de
Castelo Branco. Em 1990 num Encontro Distrital, com 180 Agricultores presentes, criou-
-se a Associação de Defesa dos Pequenos e Médios Agricultores e da Agricultura Familiar.
Os agricultores são referidos por muitas pessoas como sendo muito individualistas e
não tendo espírito associativo e cooperativo. A realidade é que, hoje, esta associação de
agricultores conta com cerca de 3.000 associados, a quem apoia no acesso aos subsídios
agrícolas, formação profissional, projetos de investimento agro-florestais, legalização das
instalações pecuárias. A Associação realiza sessões de esclarecimento e debates sobre os
mais diversos temas do interesse da agricultura familiar, tendo um conhecimento profundo
da realidade agrícola e do mundo rural da região.
A Associação Distrital dos Agricultores de Castelo Branco trava uma luta permanente em
91 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

defesa de causas fundamentais para a Lavoura, nomeadamente na defesa do seu movimento


associativo e das estruturas de apoio aos agricultores. A Associação de agricultores assume
muitas tarefas que deveriam ser responsabilidades do estado, sem o apoio da Associação a
situação de muitos agricultores seria hoje bem mais difícil. De referir ainda que, o estado
transfere muitas das suas responsabilidades para o Movimento Associativo sem a respetiva
transferência de meio financeiros.
O encerramento de estruturas como por exemplo a Adega Cooperativa da Covilhã,
Cooperativa dos Fruticultores da Cova da Beira e a Cooperativa de Queijos de Idanha-a-
-Nova, bem como, o encerramento de serviços públicos como os laboratórios de Alcains,

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zonas agrárias e serviços florestais mereceram sempre a oposição firme da Associação, pois
desde logo se anteciparam as enormes dificuldades criadas aos produtores.
Ao longo de todos estes anos a Associação de Agricultores tem sido a voz dos pequenos
e médios agricultores, os quais reclamam, nos mais diversos fóruns, medidas de apoio aos
agricultores para que estes possam vender os seus produtos a preços compensatórios.
Muitos responsáveis dizerem que não faz muito sentido falar de pequenos e médios
agricultores e da agricultura familiar, porque o que é necessário é ter escala para ser compe-
titivo, porque estamos num mundo globalizado, justificando-se assim, que 20% dos grandes
agricultores recebam 80% das ajudas comunitárias sem necessidade de produzir, o que
vem manter uma acentuada discriminação da agricultura familiar e das suas organizações.
A Associação pensa de forma diferente. Faz todo o sentido defender a pequena e média
agricultura e a agricultura familiar porque são a esmagadora maioria das explorações agríco-
las, tendo um importante peso na economia nacional e regional, garantindo uma ocupação
equilibrada do território, capaz de contrariar a desertificação e gerar vida no mundo rural.
Se a agricultura familiar tiver os mesmos apoios financeiros e técnicos que é dado de “mão
beijada” ao agro-negócio, também será bastante competitiva.
No distrito de Castelo Branco, produz-se fruta de excelente qualidade, designada-
mente cereja, pêssego, maçã, pequenos frutos, vinho, azeite, queijo, hortícolas, carne, e
em resultado disto há também muitas pequenas indústrias de transformação de produtos
agrícolas, como fábricas de queijo, enchidos, refrigerantes.
Mas, muitas vezes, os agricultores não conseguem vender os seus produtos a preços
compensatórios e o vinho fica nas pipas, o azeite nas tulhas, a fruta cai junto ao tronco das
árvores. Isto porque o mercado é esmagado pelos produtos importados de todas as partes
do mundo, que estão à venda nas grandes superfícies comerciais. As multinacionais da
grande indústria alimentar e das grandes cadeias de distribuição, ditam crescentemente o
que a população pode comer e quanto tem que pagar enquanto, ao mesmo tempo, recusam
os produtos dos pequenos produtores ou pagam-nos mesmo abaixo do custo de produção.
Deste modo, a população é obrigada a consumir cada vez mais produtos importados, sem
92 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

estar informada sobre as condições e com que químicos são produzidos e conservados, e
também sem qualquer informação quanto às condições de transporte, enquanto os pro-
dutores nacionais não conseguem vender os seus produtos, produtos geralmente de boa
qualidade, que, quando conseguem vender, o fazem quase sempre a preços muito baixos.
Este modelo intensivo, que visa o lucro máximo para as transnacionais da indústria,
da produção e da grande distribuição, é também responsável pela redução da biodiversi-
dade, do esgotamento dos recursos naturais, ao mesmo tempo que gera desperdício ali-
mentar e inviabiliza o escoamento da produção local com o esmagamento dos preços,
como aconteceu ainda recentemente com a batata no produtor a 5 cêntimos, enquanto os

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hipermercados vendem a batata estrangeira a 90 cêntimos. Deste modo, é urgente colocar
um fim ao modelo produtivista que vê a alimentação como um mero negócio com o objetivo
do maior lucro possível à custa dos produtores e dos consumidores.
O acesso à água, recurso essencial à agricultura, tem sido outra das batalhas da Associação
Distrital dos Agricultores de Castelo Branco. O Regadio da Cova da Beira, projeto idealiza-
do em 1947 e ainda não concluído, pois ainda faltam zonas importantes como a “Zona da
Grameneza” e a margem direita do rio Zêzere, avançou muito devido à luta dos agricultores
e da sua Associação. O Regadio da Cova da Beira é um bom exemplo de que, quando há in-
vestimento, a agricultura desenvolve-se e hoje existem, nesta região, jovens e novos projetos a
instalados. Torna-se importante também referir a necessidade de regadio a sul da Gardunha,
porque entre a Serra da Gardunha e Castelo Branco, existem campos com excelente aptidão
agrícola e os agricultores enfrentam secas cada vez mais prolongadas e severas.
Também nesta região (distrito de Castelo Branco), existem grandes manchas florestais,
predominando o pinheiro bravo e o eucalipto, sendo a floresta ameaçada e vítima de incên-
dios florestais todos os anos. O valor dos produtos florestais, madeira de pinho e eucalipto,
são cada vez mais baixos, apesar de existirem em funcionamento, desde há muitos anos,
em Vila Velha de Rodão, fábricas importantes de transformação de madeira da Portucel e
Navigator. A principal razão dos incêndios florestais é o baixo preço da madeira na produção.
Não é admissível nem legítimo exigir aos proprietários florestais que gastem o dinheiro que
não têm para limpar a floresta. Os pequenos produtores florestais são as principais vítimas
do incêndio, não sendo os culpados dos mesmos. A melhor forma de combater os incêndios
é garantir preços justos à produção e medidas concretas de ordenamento florestal.
A ONU, ao consagrar 2014 como Ano Internacional da Agricultura Familiar, veio
dar visibilidade, confirmar e institucionalizar a importância deste tipo de agricultura no
combate à fome e no apoio à segurança alimentar e nutricional. Neste âmbito, importa
fazer uma referência especial à ação desenvolvida pela Comunidade de Países de Língua
Portuguesa (CPLP) na valorização da agricultura familiar, que contou com a representação
da CNA na Plataforma de Camponeses e no mecanismo da Sociedade Civil no Grupo
93 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

de trabalho da Agricultura Familiar do Conselho de Segurança Alimentar e Nutrição


(CONSAN) da CPLP. Este grupo de trabalho elaborou e aprovou as diretrizes da agri-
cultura familiar onde se consagra: o reconhecimento, a identificação e a promoção da
agricultura familiar; o direito no acesso à terra, bem como o acesso a outros recursos
naturais, meios de produção, e o acesso a mercados e garantia de rendimento; a proteção
e promoção da biodiversidade; a promoção da autonomia económica e da igualdade das
mulheres rurais, juventude e novas gerações; o desenvolvimento territorial; a educação, in-
vestigação e extensão; a proteção social e acesso a direitos. Estas diretrizes foram aprovadas
por todos os chefes de Estado dos Países da CPLP e, se respeitadas, permitirão um avanço

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significativo no combate à fome e desnutrição no mundo. De salientar que, este esforço
pode sofre um enorme revés com a atual conjuntura política no Brasil.
De facto, não podemos ignorar o aumento do número de pessoas com fome em 2017:
821 milhões, ou seja, uma em cada nove pessoas, de acordo com o relatório “O Estado
da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo em 2018”. O relatório revela, ainda, o
fraco progresso na redução do atraso no desenvolvimento infantil, registando, em 2017,
151 milhões de crianças com menos de 5 anos abaixo da altura para sua a idade devido à
má-nutrição (em 2012, o número foi de 165 milhões). Este documento descreve como
é «vergonhoso» o facto de uma em cada três mulheres em idade reprodutiva ser afetada
por anemia, o que tem consequências significativas para a saúde e o desenvolvimento das
mulheres e dos seus filhos. Ressalva-se, ainda, que em nenhuma região se identificou um
declínio na anemia entre mulheres em idade reprodutiva. Por outro lado, o lado oposto da
fome, a obesidade, encontra-se em ascensão. Os números da obesidade adulta agravaram-
-se. Praticamente um em cada oito adultos é obeso, o que representa 672 milhões de
pessoas em todo o mundo.
A má nutrição e a obesidade coexistem em muitos países e até podem ser observadas
simultaneamente dentro do mesmo agregado familiar. Fatores como o elevado custo dos
alimentos nutritivos e as adaptações fisiológicas à privação alimentar permitem explicar o
porquê das famílias sujeitas à insegurança alimentar terem um risco acrescido de aumento
de peso e tendência para a obesidade.
94 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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Un proyecto en Salamanca: “5 colectivos
en red - La dignidad de la vida para
permanecer en su propia tierra”

Emiliano Tapia
Aseocoba – Asociación de Desarrollo Cumunitario Buenos Aires

1.º Situándonos en el origen de este proyecto

Comenzamos en los inicios de la década de los años 80. En el momento actual,


los colectivos (asociaciones o empresas), Asdecoba, Adecasal, Algo Nuevo, Escuelas
Campesinas de Salamanca y Todo Servicios Múltiples, han logrado entrelazar iniciativas
con personas que han creído que la recuperación de la vida solamente es posible desde el
ejercicio y el acceso a los derechos fundamentales, (alimentación, vivienda, salud y educa-
ción). Estas iniciativas comienzan desarrollándose en pequeños pueblos rurales junto a
la frontera con Portugal.
Este medio rural, en los años 80, va mejorando sus infraestructuras, pero comienza
a sentir y a experimentar que una dura etapa de envejecimiento y despoblación de sus
gentes en activo se avecina en el futuro. Estas serán las principales consecuencias que
se derivan de las medidas neoliberales que con toda la fuerza del capitalismo se van es-
95 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

tableciendo sobre todo con la manera de entrar y permanecer en las políticas agrícolas
comunes. Ha sido un duro golpe para los pequeños y medianos campesinos y su forma
de ser y de vivir.
Como colectivos hemos aprendido a luchar y a organizarnos defendiendo juntos y
juntas los intereses de los pueblos y sus gentes a través de las distintas iniciativas, para que
la población encuentre la manera digna de permanecer en su propia tierra frente a esta
agresión y expolio.
Es verdad que no hemos logrado frenar las perversas intenciones de la PAC, que hace
que esta tierra de pequeños y medianos campesinos pierda su identidad fundamental, que

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no es otra que la de saber producir alimentos sanos para sus vecinos y vecinas; pero lo
comunitario, la alimentación y los cuidados como pilares de desarrollo, de dignidad y de
futuro, hemos intentado que permanezcan intactos como guías en el horizonte de nuestro
proyecto global.
Convencidos de estos tres pilares, con el pasar de los años, afirmamos que los pueblos
pequeños y el medio rural tendrán futuro a medio o largo plazo, si defienden la tierra, (“¡la
tierra no se vende!”), y cuidan a sus gentes posibilitando los servicios que por derecho y
dignidad les pertenecen, (escuela, sanidad, redes sociales, y otros...)

2.º Abriendo relaciones con otros espacios “sin futuro”

La existencia de barrios “sin salida” en el medio urbano por distintas circunstancias


y empujados al empobrecimiento con la negación del acceso a derechos fundamentales
como es la comida o el techo; el contacto con personas del difícil mundo de las cárceles
y por lo tanto de la precariedad y el empobrecimiento; nos lleva a iniciar el desarrollo de
iniciativas compartidas entre el medio urbano y el medio rural.
Entre las diversas iniciativas que van surgiendo se ponen en marcha algunas de ellas
relacionadas con la alimentación, para dar respuesta al problema de formación, precariedad
y desempleo en distintas personas y colectivos.

3.º Nuevas relaciones entre el Medio urbano y Medio rural como apuesta
de futuro

Poco a poco, entre estas tres realidades, (en barrios, pueblos y empobrecimiento),
están creciendo propuestas comunes que fortalecen la economía solidaria y comunitaria,
las relaciones entre el medio rural y el medio urbano, o los cuidados entre la propia población,
96 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

tanto del medio urbano como rural.

4.º Algunas de estas iniciativas


Defender el derecho de poder acceder a la alimentación como forma
de cuidar el campesinado.
• Producir alimentos en huertas y tierras abandonadas con personas sin techo y en
precariedad. (Creamos una empresa de economía social y comunitaria para la inserción,
“Todo Servicios Múltiples”).

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• Transformar productos hortícolas para favorecer la utilización de excedentes.
(Ponemos en marcha un Centro de Transformación y envasado).
• En proyecto actualmente: La creación de una iniciativa que llamamos “Centro de
alimentación comunitaria”.

Comer sano como patrimonio y defensa del campesinado.


• Ponemos en marcha un Catering en el medio urbano y otro en el medio rural con el
objetivo de servir comidas a domicilio y favorecer en cercanía, sobre todo en perso-
nas mayores, el acceso a una comida sana. (Dos empresas, Algo Nuevo y Adecasal,
desarrollan estas iniciativas con más de 500 comidas diarias actualmente).

Acceder a la alimentación en cercanía.


• Desde hace varios años tenemos en marcha una “Red de apoyo comunitario en la
alimentación”. (Más de veinte productores puestos en relación con más de sesenta
consumidores semanalmente). La iniciativa se llama “Red de saberes y sabores del
Bajo Tormes”.

Espacios y planteamientos que apoyan y sostienen estas iniciativas.


• Espacios “comunitarios”, “en red” o “abiertos”, que periódicamente sirven para la for-
mación y concienciación en esta nueva dinámica de relaciones. Para la coordinación y
la organización imprescindibles entre las diversas iniciativas. Para cuidarnos y cuidar
de las vidas de tantas personas que estamos implicadas en este proyecto compartido.
• “Espacios de Información” como iniciativas para protagonizar la vida desde el acceso a
los derechos fundamentales. “Derechos Sociales frente a Servicios Sociales”.
• Diversas Iniciativas como encuentros, mercados locales o participación en acciones
que hacen frente a problemas concretos como la despoblación, (minas de uranio,
por ej. o la instalación de macrogranjas).
• Implicar en estas iniciativas a Entidades públicas y privadas con sus propios recur-
97 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

sos; o cuidar la mirada feminista en el desarrollo de estas iniciativas; o el cuidado del


trabajo, que no necesariamente el del empleo; caminar en el medio rural y urbano
como parte de una sociedad tan desigual, hacia las Rentas Básicas Universales; de-
fender lo comunitario, lo público y lo común; son algunas de las claves con las que
necesariamente convivimos en el hacer de este proyecto global.

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Estratégia Terras de S. Pedro – Município
de S. Pedro do Sul

Joaquim Pinho
Terras de S. Pedro, Município de S. Pedro do Sul

O Município de São Pedro do Sul tem vindo a desenvolver uma estratégia denomi-
nada Terras de S. Pedro, para apoiar os agricultores do concelho através da promoção de
circuitos curtos de comercialização e através de apoio técnico que proporciona aos produ-
tores. Até à data, foi possível apoiar cerca de 100 agricultores que praticam uma agricultura
tradicional e produzem para o mercado. Estes agricultores situam-se num escalão etário
acima dos 50 anos e têm explorações na ordem do 1,5 ha.
As principais dificuldades detetadas, com maior evidência nos pequenos agricultores,
foram as seguintes: fiscalidade (não registo na Segurança Social e Finanças enquanto agri-
cultores); compra de fatores de produção de síntese (pesticidas e fertilizantes); segurança
e higiene alimentar; estruturas de apoio à exploração; assistência técnica; mão-de-obra e
escoamento do produto.
Por outro lado, em S. Pedro do Sul estão localizadas diversas explorações de agricul-
99 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

tura biológica, que reúnem atores com dinâmicas reconhecidas a nível local e nacional,
nomeadamente as empresas Vasco Rocha Pinto, Casa do Aido, Quinta da Comenda, Mais
Ecológico, entre outras. Para além destas explorações, existem diversos outros produtores
biológicos (21 produtores). Estes agricultores são mais jovens, a maior parte a tempo parcial,
e com exceção das empresas mencionadas, os restantes produtores possuem também áreas
de exploração não superiores a 2 ha.
As iniciativas desenvolvidas no âmbito da estratégia Terras de S. Pedro dividem-se em
dois grupos: os circuitos curtos de comercialização e o apoio técnico. No que diz respeito
aos circuitos curtos de comercialização, as atividades desenvolvidas incluem:

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• Abertura nas Termas de S. Pedro do Sul de uma loja – Loja Terras de S. Pedro – situada
no centro histórico de S. Pedro do Sul, para venda de produtos locais (fruta, hortícolas,
mel, compotas, bolos, vinho, etc);
• Criação de cabaz com produtos locais;
• Promoção de um mercado para venda de produtores locais:
Estes mercados destinam-se exclusivamente aos produtores das 14 freguesias do con-
celho e, neste momento, estão inscritos 12 produtores (10 participam regularmente e
2 sazonalmente). Destes, 9 produzem hortícolas e frutas (7 hortícolas e frutas e 2 fruta
sazonal ), 1 dedica-se a produtos de fumeiro, 2 encontram-se a produzir no setor da
doçaria (pastelaria, compotas, e chás). Estes produtores são maioritariamente mulheres
(73%) e encontram-se no escalão etário entre os 25 e os 64 anos.
• Apoio de um conjunto de eventos que visam a promoção e escoamento dos produtos
da região (Feira da Laranja; Feira da Vitela de Lafões; Feijão.Com (e); Vila Maior
Aldeia Bio, Festa da Castanha e do Mel).

As medidas desenvolvidas para apoio técnico incluem:

• Agricultura Convencional: promover a mudança das suas práticas agrícolas para


modos de produção amigos do ambiente (Agroecologia/Agricultura Biológica).
• Agricultura Biológica: Potenciar os circuitos curtos existentes (Mercado semanal,
eventos temáticos) e criar novos (Termas de S. Pedro do Sul; Site Terras de S. Pedro),
para facilitar o escoamento dos produtos biológicos. Deste modo, organizam-se e
realizam-se de cursos de formação em agricultura biológica, Boas Práticas Agrícolas
e outros temas relevantes para a formação dos produtores.
100 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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«O Som é a Enxada»: promover a
agricultura de proximidade através
de uma rádio comunitária

Sara Moreira
Dimmons, IN3, Universitat Oberta de Catalunya; Instituto de Sociologia/UP
Filipa Almeida
Engenheira do Ambiente, Consultora e formadora independente

Introdução

Face aos desequilíbrios sociais, económicos e ambientais que resultam dos modelos
dominantes de produção, consumo e distribuição agroalimentar num mercado neoliberal
e globalizado, multiplicam-se as iniciativas que procuram caminhos mais justos, saudáveis
e solidários para cuidar dos sistemas que nos alimentam. Difundir as histórias e dilemas de
quem está a construir alternativas – das hortas urbanas às redes de consumo e produção,
das novas técnicas ao resgate dos saberes ancestrais – representa um contributo modesto
para desbravar o caminho que está a ser trilhado.
Neste artigo, fazemos uma análise dos temas e territórios abordados num programa
de rádio comunitária do Porto que, desde finais de 2015, tem vindo a explorar práticas e 101 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica
conceitos ligados à agricultura de proximidade.
A organização do I Encontro Nacional das Associações pela Manutenção da Agricultura
de Proximidade (AMAP)1, em novembro de 2015 no Porto, serviu de mote para a criação
do programa O Som é a Enxada na Rádio Manobras2. Se inicialmente a intenção era só
fazer a cobertura de um evento de um fim de semana, passados três anos a emissão persiste
com os seus “registos e conversas sobre a agricultura de proximidade”. O programa, feito

1
As AMAP assentam na relação direta entre um grupo de consumidores e um ou mais produtores, que parti-
lham os riscos, responsabilidades e recompensas inerentes à atividade agrícola: http://amap.movingcause.org/
2
Rádio comunitária do Porto, fundada em 2011: http://radiomanobras.pt

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de forma voluntária e amadora por uma equipa de 5 pessoas, é transmitido na rádio e
posteriormente disponibilizado em formato podcast no blog do programa3.
A periodicidade da emissão variou entre semanal no primeiro ano (2015-2016), quin-
zenal no segundo (2016-2017), e mensal no terceiro ano (2017-2018), mas com programas
mais longos. Com o início da quarta temporada, em Setembro de 2018, o programa volta
a ser quinzenal. Desde janeiro de 2018 que a emissão passa de diferida a direta, a partir do
estúdio da Rádio.
A análise dos temas, formatos e territórios abordados nos 80 programas que foram emi-
tidos entre novembro de 2015 e janeiro de 2019 é desenvolvida nas três secções seguintes.

Abordagens diversas – um tema comum

Do ponto de vista temático, identificaram-se oito tipos de rúbricas (Tabela 1), sabendo
que cada programa pode conter mais do que uma.

Tabela 1
Número de programas dedicados a cada uma das rúbricas identificadas.
Rúbricas Número de programas
Entrevistas/Conversas 35
Dicas hortícolas 28
Visitas de campo 15
Leituras 15
Cobertura de eventos 12
Divulgação/Campanha 4
Experimental 4
Rádio-eventos 2

O formato mais comum é o das conversas ou entrevistas não estruturadas, de cará-


102 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

ter informal, que levaram, a 35 programas, convidados de distintos contextos, como


agricultores, académicos e ativistas ambientais.
Em mais de um terço dos programas foram apresentadas dicas práticas para os traba-
lhos na horta, com referência a almanaques agrícolas (como O Seringador), provérbios e
outros apontamentos da sabedoria popular.
Cerca de um quinto dos programas foi produzido a partir de visitas de campo a locais
de produção dos agricultores das AMAP, a feiras, hortas comunitárias, baldios, e até a casas
de pessoas e às suas hortas familiares.
3
http://somenxada.tumblr.com/

Iberografias_37.indb 102 25-02-2020 11:49:50


A leitura de textos críticos, poesia, contos e declarações (como a das Mulheres
Camponesas4) ocupou também cerca de um quinto dos programas.
O Som é a Enxada contribuiu também para a cobertura de eventos, encontros e festivais
organizados por entidades de referência na área.
Por último, com menor expressão, integraram também o programa a divulgação de
campanhas, os registos experimentais e, ainda, os rádio-eventos que por duas vezes permi-
tiram tornar o estúdio visível, convidando as pessoas presentes a juntarem-se à conversa.
A parte musical do programa não foi tida em conta nesta análise, apesar de ser uma
constante, somando já um rico repertório de música livre de direitos de autor em torno de
temas da agroecologia, ambiente e permacultura.

Temas e territórios da Agricultura de Proximidade

No que diz respeito aos temas, foram identificadas mais de 40 categorias.

Figura 1. Nuvem de temas abordados no programa de acordo com a sua expressão.


103 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

No cerne da criação do programa, as AMAP e a agricultura de proximidade (a par com


as dicas hortícolas) têm sido os temas mais comuns, fazendo com que O Som é a Enxada
mantenha um registo único da evolução deste movimento em Portugal. Seguem-se as hortas
comunitárias, com reportagens no Porto e em Barcelona, e a sabedoria popular. A questão
das sementes, no que diz respeito à sua troca e liberdade, aos transgénicos e à preservação
de variedades tradicionais, já ocupou quatro programas nos últimos três anos, assim como
a criação de redes de consumo e produção, a agricultura biológica, e os textos críticos – em
4
Lançada na VII Conferência Internacional da Via Campesina no País Basco, em 2017, e traduzida pela
primeira vez para português pela equipa do programa

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alguns casos dirigidos aos próprios modos de produção e certificação biológica. Na lista de
temas segue-se a agroecologia, a permacultura e a agricultura de subsistência, com três progra-
mas cada. Pontualmente foram abordadas também temáticas como a agricultura natural,
a biodinâmica, os baldios, o consumo responsável, as florestas, a importância das águas, a
apicultura, os ecofeminismos, a soberania alimentar, as hortas escolares, as plantas medici-
nais, a economia solidária e o hacking agrícola, com uma entrevista ao Farm Lab das Caldas.

Estas prospeções já trouxeram ao programa de rádio exemplos de iniciativas oriundas


de 33 localidades em 5 países (Figura 2).

Figura 2. Mapa de iniciativas5 que passaram pel’O som é a Enxada.

Apesar desta extensão, não foi possível obter dados sobre as audiências. Sendo que o
objetivo da Rádio Manobras é disponibilizar informação num território alargado, e não a
procura ativa por audiências, resta a certeza de que só quem tem acesso à tecnologia é que
consegue aceder à mensagem.

Perspetivas de futuro
104 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Após três anos e meio no ar, O Som é a Enxada perspetiva a continuidade do seu
trabalho construindo sobre o que aprendeu das colheitas passadas. Tal como o agricultor
que precisa de melhorar o escoamento da sua produção, também O Som é a Enxada quer
apostar em canais de distribuição mais eficientes e em novas parcerias que potenciem o
efeito de disseminação do programa. À imagem da horta com cultivo de múltiplas varie-
dades, o programa almeja alargar o seu campo de acção, contactando com mais iniciativas
e projetos para além da sua rede de proximidade.

5
Disponível em https://tinyurl.com/mapaenxada

Iberografias_37.indb 104 25-02-2020 11:49:50


Agricultura familiar: do direito à alimentação
até ao consumo

José Rocha Fernandes


Direção Regional de Agricultura e Pescas do Norte

Temos assistido nos últimos anos, em Portugal, a uma discriminação positiva da agri-
cultura familiar, como fator de desenvolvimento do mundo rural e da coesão territorial.
O apoio aos circuitos curtos alimentares é um bom exemplo dessa tendência. A crescente
preocupação com a comercialização dos produtos locais, que tem vindo a assumir uma
importância crescente, por contribuir para a dinamização da atividade agrícola, criação de
emprego, aumento do rendimento dos agricultores e fixação da população no meio rural,
é outro bom exemplo.
O projeto “Da Nossa Terra”, iniciado em 2012 numa parceria entre a Câmara Municipal
de Penafiel, a Direção Regional de Agricultura e Pescas do Norte e a Cooperativa Agrícola
de Penafiel, visando a comercialização em circuito curto, dos produtos hortofrutícolas pro-
duzidos localmente, é um caso a ter em conta. Este projeto visa estimular a economia local,
promovendo o consumo dos produtos alimentares produzidos localmente. Os produtos
105 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

hortofrutícolas são fornecidos à restauração coletiva (cantinas escolares e de outros serviços


públicos) e ao comércio local, a preços concorrenciais, porque evitam os intermediários.
A Câmara Municipal de Penafiel transfere as verbas para as Juntas de Freguesia, que fazem
a aquisição dos produtos para as suas escolas, não ultrapassando o volume de negócio que
obriga ao cumprimento das regras da contratação pública. O mesmo não sucede com
outras autarquias vizinhas, que fazem a aquisição centralizada dos produtos para todo o
concelho, dificultando a multiplicação deste modelo.
O projeto piloto “Quinta + Próxima”, a desenvolver na Região Norte, proposto
pelo Ministério da Presidência e da Modernização Administrativa e pelo Ministério

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da Agricultura, com o objetivo de promover o consumo de produtos locais, que se
pretende que seja incluído nas medidas submetidas ao SIMPLEX+, deverá fomentar
as compras públicas de proximidade, através da criação de uma bolsa de contratação
de fornecedores de produtos agroalimentares, com o objetivo de encurtar o tempo
e a distância entre a produção e o consumo, garantindo uma melhor qualidade dos
produtos. Este projeto teve algumas dificuldades na sua implementação, devido à obri-
gatoriedade de cumprimento das regras da contratação pública aquando da aquisição
dos produtos para as cantinas dos serviços públicos. Essas dificuldades poderão ser
ultrapassadas com a publicação recente da Lei n.º 34/2019 de 22 de maio, que define
critérios de seleção e aquisição de produtos alimentares para as cantinas e refeitórios
públicos, ponderando a sua qualidade, origem e impacto ambiental. São valorizados os
produtos que revelem menores custos logísticos e de distribuição, menor impacto no
meio ambiente devido à distância e às embalagens e que tenham origem em produção
sazonal, dando preferência à produção que tenha todas as suas fases no território da
NUT III do local de consumo ou em NUT III adjacente. Segundo esta Lei, a seleção
pondera ainda a aquisição de produtos detentores de certificação em regimes de qua-
lidade certificada: Modo de Produção Biológico (MPB); Denominação de Origem
Protegida (DOP) e Indicação Geográfica Protegida (IGP) e os provenientes de explo-
rações com Estatuto de Agricultura Familiar. A descriminação positiva da agricultura
familiar, que se deverá verificar em situações tão diversas como o acesso a medidas no
âmbito dos Programas Operacionais financiados pelos Fundos Europeus Estruturais e
de Investimento, a um regime simplificado em matéria de licenciamento de unidades
de produção, a linhas de crédito, a regime fiscal e de segurança social adequados, entre
outros, também aqui é salientada.
Os diversos atores nacionais, regionais e locais, que se preocupam com o desenvol-
vimento rural e com a melhoria da qualidade de vida das suas populações e de quem
as visita, têm agora um pacote legislativo que favorece, como nunca, o seu trabalho.
Todos esperamos que os projetos aqui referidos, ou outros, em desenvolvimento e a
106 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

iniciar, possam criar novas dinâmicas locais capazes de dar mais vida aos territórios
rurais. Para que seja atingido esse desígnio, terá que ser fortalecido o sistema de acon-
selhamento técnico, incentivada a cooperação entre agricultores e entre estes e outros
membros da cadeia alimentar, melhorados os mercados municipais dando maior visi-
bilidade aos produtos de venda direta ao consumidor, articulado o turismo rural com
os produtos, gastronomia e saber fazer local, elaborado um “Guia de Boas Práticas”
para a segurança alimentar e rastreabilidade dos produtos e continuados os estudos
sobre estas questões.

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CAPÍTULO 3

Agricultura familiar
e desenvolvimento rural:
sociologia, território e ambiente

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Agricultura familiar e desenvolvimento
rural: sociologia, território e ambiente

Ana Aguiar
GreenUP & DGAOT, Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
Cristina Amaro da Costa
Politécnico de Viseu, CERNAS, CI&DETS

A agricultura familiar entendida como a agricultura da (e para) a família, intrinsecamente


ligada ao espaço que ocupa constitui uma força elementar para a coesão e desenvolvimento
territorial. A vertente económica aliada aos saberes, aos sabores e às memórias, numa ativi-
dade em que a dimensão local é marcada por circuitos curtos não se restringe ao capital, mas
procura incorporar sistemas de agricultura eminentemente sustentáveis. Importa preservar
as bases genéticas do património vegetal em modelos de exploração da terra que valorizem a
cultura e as pessoas, promovam usos inovadores do conhecimento tradicional e garantam a
proteção dos recursos endógenos.
A tomada de consciência do impacto ambiental da agricultura convencional, formata-
da pelo modelo produtivista, mostra-nos quão necessária é a definição e divulgação, junto
dos agricultores familiares de orientações técnicas quanto às práticas agrícolas e da prote-
ção das culturas. Investigadores e técnicos partilham a visão e o sentido desta vinculação 109 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica
agricultura familiar e desenvolvimento rural.

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sociologia e território

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Cultivar laços de confiança e afectividade
no seio de uma agricultura familiar que se
quer de cariz biológico

Paulo Barracosa
Politécnico de Viseu

No âmbito do Seminário “Agricultura, Familiar, Agricultura Biológica Desenvolvimento


Rural” realizado no Cento de Estudos Ibéricos (Guarda), coube-me a moderação de um
painel intitulado “Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural: Economia, Sociologia e
Ambiente” cujo convite assumi como um desafio de aprendizagem. A agricultura familiar,
como sistema de produção, assume-se de vital importância pela estatística que representa no
número de explorações e pelo volume de produtos agrícolas que garantem alimento para uma
parte significativa da população. A agricultura familiar pode responder aos desafios que se
colocam a uma sociedade tendencialmente globalizante mas que se quer sustentável, criando
laços de proximidade e de confiança entre produtores e consumidores. A qualidade dos seus
produtos e a afetividade conferem uma identidade a esta forma inclusiva de agricultura, que
permite satisfazer uma parte significativa das necessidades nutricionais de uma população.
Num tempo em que se vaticina que o futuro assenta em megametrópoles contra todos
113 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

os indicadores de racionabilidade e razoabilidade, temos a clara sensação que pela frente nos
espera uma tarefa hercúlea ao jeito de “um David contra Golias”. Um sistema de produção
desta natureza parecia estar condenado ao fracasso, se não existirem diretivas e incentivos que
promovam esta atividade. Contudo pode ser que o próprio evoluir das sociedades conduza
naturalmente esta prática ao sucesso na devida proporção para cada uma das realidades quer
em termos de dimensão demográfica quer pela localização geográfica. A recente publicação
do estatuto de Agricultura Familiar e a tendência em incentivar a produção e o consumo
apelidado de “quiilómetro zero”, mesmo pelas cadeias retalhistas, são sinais que apontam
numa visão de estratégias de futuro que privilegiem a proximidade física e afetiva limitando o

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uso de recursos dispendidos em transporte. Estamos hoje perante uma realidade invertida na
qual parece dar-se mais importância ao transporte comparativamente com a produção. Por
isso surgem estas convulsões sociais, em que, aqueles que fazem do transporte o seu modo de
vida, pensam poder ditar as regras. São estes exemplos que nos fazem acreditar, ainda mais,
nos serviços e práticas em proximidade como tendência de futuro.
Nesta jornada sobre a agricultura familiar, onde se transmitiram visões e sensibilidades
assentes em projetos reais, não pude ficar indiferente ao exemplo trazido pela Câmara de
Torres Vedras que desenvolve um projeto que traz os Pais às escolas para poderem almoçar
com os filhos nos respetivos aniversários. Desta forma, podem perceber a forma cuidada
como os filhos são tratados em Escolas Públicas, com produtos de qualidade oriundos nal-
guns casos de agricultura familiar, confecionados e servidos por profissionais de excelência.
Esta não é uma utopia, mas é um objetivo que pode ser concretizado, com o apoio de toda
a comunidade escolar em devida articulação com os agentes que compõem a comunidade
dita envolvente. Uma das questões que se coloca é saber até que nível etário conseguimos
levar um projeto desta natureza? Era muito importante, por exemplo, que os Pais dos
adolescentes percebessem como os seus filhos, muitas vezes, não querem ser alimentados
convenientemente, e perceber que os mais humildes são aqueles que melhor reconhecem o
esforço que o Estado coloca numa alimentação nutricionalmente condigna e adequada ao
esforço intelectual e físico que os alunos necessitam. De que forma a agricultura familiar
pode ajudar neste desígnio? Trazendo os produtores à Escola, mas acima de tudo levando
os alunos aos produtores e saber alimentar a tal relação de confiança e afetividade em
proximidade entre uns e outros, em prol de todos.
Das Terras do Sousa soam experiências nas quais os consumidores podem condicionar
a produção, não apenas na variedade de produtos mas também na qualidade dos mesmos.
Esta relação tem que ser levada a cabo com base numa relação exigente ditada pelo co-
nhecimento sedimentado, aliando conhecimento empírico e científico, e não por um
simples fluir de modas, na qual a ancestralidade dos recursos genéticos e dos métodos
empíricos de práticas agrícolas se devem harmonizar com o conhecimento técnico-científico
114 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

e a inovação assentes na racionalidade e sustentabilidade. Por falar em valorização de recur-


sos genéticos, recordo-me do melão de Vila Soeiro que se cultiva(va) na freguesia com o
mesmo nome da região de Fornos de Algodres. Não se pode perder a criação de identidades,
para memória futura, que nos distingam da massificação e ajudem os pequenos produtores
a terem nichos de mercado baseados na ativação de neurónios relacionados com o prazer
dos sabores, das fragâncias, da convivialidade e dos saberes. Esta estimulação neuronal
pode ser “alimentada” e promovida pelos peptídeos e outros elementos sinalizadores que
se formam a partir do metabolismo dos próprios alimentos, no trato digestivo, ou pelos
voláteis detetados diretamente pelos inúmeros sensores olfativos.

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Esta como outras variedades de iguarias agrícolas, nas quais estes territórios ditos
de interior são extraordinariamente ricos, deveriam ser preservados, estudados e alvo
de melhoramento em projetos regionais de impacto como é exemplo o “GUARDA de
Sementes”. Projetos desta natureza deveriam envolver, obrigatoriamente, produtores, au-
tarquias, centros de investigação e o ministério da agricultura. Para além de se constituírem
como um repositório, era determinante que surgissem projetos inovadores associados e
multidisciplinares que pudessem distribuir dividendos para os vários atores envolvidos
onde a cultura se assuma como o denominador comum..
Não são raros os casos nos quais o prazer na realização das práticas agrícolas foi trans-
mitida pelos avôs aos netos e que quando estes, profissional ou ludicamente, desenvolvem
essas atividades vêm à memória as relações de afeto para com os seus ancestrais acarretando
simultaneamente memórias de testemunho e responsabilidade. O que infelizmente muitas
vezes se perdeu foi o património genético das plantas cultivadas pelo saber ancestral dos
avós, mas que se salvem algumas práticas e a memória dos afetos.
O uso da designação familiar acarreta em si uma responsabilidade acrescida pela força
da palavra e todo o simbolismo que representa nos laços de confiança que permite criar.
Mas para esta concretização há que creditar tecnicamente os seus produtores, conferindo
capacidade e responsabilidade ao ato de produzir e desta forma, as relações de confiança e
afetividade que podem fazer a diferença surgirão naturalmente. Têm que ser criados ins-
trumentos de rastreabilidade e monitorização das atividades e práticas agrícolas que se vão
implementando ao longo dos ciclos de produção.
A estratégia de adoção das práticas da agricultura biológica, assente em princípios de equi-
líbrio e sustentabilidade do solo, das culturas, adequadas às épocas do ano e tendo por base
uma comercialização em proximidade com redução da pegada do carbono, parece ser o melhor
caminho para guindar este tipo de agricultura ao sucesso que merece e parece estar destinada.
Todo este investimento tem que se traduzir na qualidade dos seus produtos não por calibres ou
padronizações, mas por sabores únicos que nos façam recuar às memórias de infância. As prá-
ticas agrícolas são uma das áreas onde mais se tem que apostar aliando o conhecimento empí-
115 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

rico no combate às pragas e doenças às estratégias mais inovadoras creditadas cientificamente.


O uso de fungicidas e bactericidas, de base natural, para a utilização em culturas agrícolas deve
assumir-se como uma das grandes mais-valias de futuro. Não numa lógica de “mezinha” mas
em combinar, de uma forma sinérgica, as virtudes das plantas para a preservação do ecossistema
com claro benefício para a saúde dos consumidores e dos nossos vindouros.
Nós como consumidores também temos a responsabilidade de procurarmos incentivar
as relações de confiança com aqueles produtores de agricultura familiar que considera-
mos cumprirem os requisitos de qualidade, sustentabilidade, afetividade e proximidade.
Devemos ser exigentes, mas dando tempo para que as relações de confiança se desenvolvam

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e maturem naturalmente. Se, por um lado, somos animais de hábitos e gostamos de co-
modidade, também nos cansamos cada vez mais depressa das rotinas e isso, por vezes, não
facilita o estabelecimento de relações duradoiras, especialmente de índole afetiva. Aqui
entram os prazeres proporcionados pela diversidade das iguarias que de acordo com a
sazonalidade nos vão chegando pela mão daqueles em quem depositamos a confiança de
alimentarem a nossa família. No meu caso a exigência é redobrada porque as minhas duas
filhas são ambas nutricionistas e os Pais partilham o menu. Temos o privilégio da nossa
agricultora familiar nos ir surpreendendo logo desde princípio com a chegada do cabaz
semanal com uma composição de cores, formas e texturas dignas de um(a) pintor(a) na-
turalista à qual se aliam as inebriantes fragrâncias das ervas aromáticas que compõem o
“bouquet”. Havendo uma base comum estamos sempre ansiosos, semana após semana, em
saber qual a fruta ou o legume que surge de novo porque estamos na sua época de eleição
e não precisamos pedir porque ela já nos conhece os hábitos, mas acima de tudo sabe os
trunfos que tem para nos surpreender todas as semanas ao longo do ano agrícola. Isto
para além da confiança e laços de amizade que já damos por adquiridos mas que foram os
promotores de toda esta partilha e convivência. Faço votos que este artigo possa ser o mote
para que cada um encontre a sua alma gémea no seio da agricultura familiar.
Bem-haja!
116 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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Olhares fragmentados sobre as paisagens
rurais dos fogos de 2017 no interior do país

Fernando Delgado
Direção Regional de Agricultura e Pescas do Centro

Não conheço os labirintos eruditos que permitem decifrar a noção de paisagem – a sua
origem, as múltiplas tendências, as eventuais relações com a pintura, a música, ou qualquer
outra forma de arte. Para mim, paisagem é simplesmente perceção, é olhar, é procurar
entender os elementos – o que toco com as mãos e a linha do horizonte. E, sendo territó-
rio, é inevitavelmente o espaço regulado em que espero encontrar as marcas das sucessivas
transfigurações, sejam elas o resultado da natural evolução das sociedades ou os restos de
fenómenos dramaticamente destrutivos. São fragmentos deste olhar cru sobre as paisagens
rurais dos fogos de 2017 que me proponho partilhar.

117 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

«Eu nasci na arrecadação da paisagem, num lugar bem desmapeado do mundo»


Mia Couto in Contos do Nascer da Terra

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A fotografia ajuda, mas não é tudo. É necessária luz e, apesar da despudorada e chocante
exposição dos restos que sobraram dos fogos, há lugares escuros, ocultos, intangíveis à
própria luz (mesmo o preto e branco aproxima-se mais de uma camuflagem do que de
uma realidade tão extensivamente complexa). São os pormenores que explicitam o todo.
O rosto enrugado e cansado do camponês conduz o olhar para as casas de xisto empilhadas
pela encosta num virtuoso e mágico equilíbrio e para os quintais junto às casas, já sem
hortas vivas, sem o cheiro a alecrim, a hortelã e a terra molhada – “Olhe à sua volta, senhor.
Vê couves, nabos, cebolas e batatas? Vê ameixeiras e cerejeiras? Não vê, senhor, e só por aí sabe
quem vive aqui: eu e mais uns velhos como eu”.

«A paisagem é assim, além de tudo mais, um mediador para a gestão integrada


do espaço rural e das diferentes procuras e expetativas relativas a esse espaço.»
Teresa Pinto Correia in Revista Cultivar.
118 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Como é simples fazer diagnósticos a partir da sabedoria local e como é difícil entrar
neste mundo de realidades cruamente expostas com o olhar treinado pelas sociedades ur-
banas. Não há máscaras nos rostos e olhares destas gentes, mas apenas sulcos escavados na
pele onde se adivinham cicatrizes e escorrências de dias difíceis. Quando as mãos se abrem
sem pudor mostram encontros e desencontros num percurso sinuoso de amanhãs incertos.
Neste caudaloso leito de águas rumorosas, a tentação de encontrar soluções breves para
realidades de um tempo longo é muito forte, mas a única forma de compreender este
percurso é resistir à tentação de uma racionalidade negativa e compreender que existem
espaços com vidas próprias que exigem soluções específicas.

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119 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Recomeça…./ Se puderes/ Sem angústia e sem pressa./ E os passos que deres,/ Nesse caminho duro/
Do futuro/ Dá-os em liberdade./ Enquanto não alcances/ Não descanses./ De nenhum fruto queiras só me-
tade./ E, nunca saciado,/ Vai colhendo/ Ilusões sucessivas no pomar./ Sempre a sonhar,/ E vendo/ Acordado,/
O logro da aventura./ És homem, não te esqueças!/ Só é tua a loucura/ Onde, com lucidez, te reconheças…
Miguel Torga, Sísifo. Diário XIII.

As imagens remetem para uma metamorfose lenta da paisagem em que o despir da


pele crespa e sulcada de rugas se vai fazendo pelos flancos (pelas fronteiras atlântica e raia-
na), ficando restos colados a um corpo que já não lhes pertence: este meio, este esqueleto

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exposto, este interior de nome óbvio, mas impreciso. E também este corpo em que ainda
há pedaços inúteis que o tempo irá cicatrizar – a sociedade urbanizou-se e o território
esvaziou-se (para o litoral e para as franças), alimentando ruínas e abandono, mas também
novos espaços e novos usos. É um tempo de mudança, com o território a desligar-se da
função matricial da agricultura e a consolidar um rural frequentado por novos agentes,
com novas funções.

«Nas aldeias perdidas no fundo das montanhas, onde o tempo parou na pedra seca das casas e nos
hábitos estereotipados por séculos de abandono, a paz bucólica que tanto impressiona os visitantes
citadinos, não assenta apenas na harmonia dos homens com a natureza, mas na harmonia conjugada
dos habitantes. Foi esta harmonia que exigiu, por razões de sobrevivência, a repartição dos ofícios
principais e a consequente eliminação de concorrência. Por isso existiu sempre em Valmatos um único
alfaiate, um único sapateiro, uma única taberna e um único barbeiro.»
120 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

António Arnaut in A Seiva da Raiz.

E lugares. Lugares de ausência, de equívocos e de conflitos - lugares de origem e de


refúgio de serenos silêncios repousados em memórias de outros tempos. Lugares onde se
preservam laços de proximidade, de afetividade e, provavelmente numa oculta demons-
tração de autodefesa, de cumplicidade. Quando tudo falta e tudo se confunde, a primeira
encruzilhada é apenas o sítio de reflexão, de confronto de opções e da decisão de enveredar
por um caminho. Caminho com destino e com destinatários, com presenças, com institui-
ções, com património, com práticas de saber-fazer, com conhecimento e com referências.

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São estes laços relacionais, alicerçados em bases culturais ou na simples proximidade afe-
tiva, que permitem manter viva a estrutura social das centenas de aldeias dispersas pelas
serras. São estruturas economicamente dependentes do poder, quer pela via das rendas
assistenciais que a velhice proporciona, quer pela inexistência de alternativas na débil
estrutura produtiva local. Ignoram o poder, mas veneram-no, numa relação de dependência
dificilmente explicável à luz de qualquer entendimento lógico.

121 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

«Não há paisagens para sempre. A paisagem é o registo de uma sociedade que


muda e, se a mudança é tanta, tão profunda e acelerada, haverá disso sinais,
para além de pouco tempo e muito espaço para compreender ou digerir as mar-
cas e formas como se vão atropelando mutuamente, ora relíquias, ora destroços.»
Álvaro Domingues in Vida no Campo

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Vivemos (provavelmente) num dos últimos países rurais da Europa assistindo à
lenta transformação dos territórios, mas no chamado interior este ajustamento não
parece ter uma origem específica e não se vislumbra um sentido claro. É um lento ca-
minhar sem ponto de partida e sem rumo pré-definido, é casual, é auto(des)regulado e
alimenta-se a si próprio, apesar de se conhecerem elementos fundamentais deste proces-
so, incluindo um conjunto de fenómenos bem caracterizados e historicamente datados.
Certo e palpável é o que os sentidos perscrutam e avaliam. Aos poucos surgiram novas
estradas, novas construções e novos habitantes com outras vivências e novos modos de
vida e, em alguns casos, com falares e dizeres de paragens longínquas. É um rural que
se reconstrói e se autodetermina afastando-se da agricultura, embora não se perceba
(ainda) exatamente qual o sentido dessa transformação, nem se consigam identificar
claramente os respetivos agentes.
122 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

«É o medo que faz com que o homem ame a sua imperfeição.»


A. Alçada Baptista in O Riso de Deus

E também espaços aparentemente vazios, sem pessoas, que de forma rápida foram
invadidos por matagais (de forma dissimulada também denominados incultos) numa de-
monstração da capacidade regenerativa da natureza, mas também de um aparente caos
que só o tempo conseguirá reordenar. Estes espaços cresceram paulatinamente sobre os
povoados, reduzindo o campo agrícola até cercar as habitações de vegetação (espontânea

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ou não, mas sempre desordenada!) e transformando as aldeias num aglomerado de casas
com uma impenetrável cerca vegetal em volta. Quando o círculo se fechou iniciou-se o
processo de destruição pelo fogo numa dramática evocação de um Alma-Grande telúrico
e definitivo. A irresponsabilidade, necessariamente partilhada, é sobretudo política, mas
as tentativas de desvio para julgamentos morais apenas evidenciam o carácter precário de
destinos anunciados e a tendência de criar espaço para absolvições onde não existe qualquer
necessidade de perdão.

«Ninguém desce vivo de uma cruz».


A. Lobo Antunes (entrevista à RTP, 8/11/2017)

E novas florestas, ditas industriais e rentáveis, sem necessidade de presença humana,


123 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

tecnicamente mecanizáveis, geridas através do olhar ausente de pessoas longínquas


esperando um retorno financeiro de curto prazo. Este novo paradigma do ter sem
estar é em si mesmo perverso, mas igualmente previsível no âmbito dos valores das
sociedades modernas. Em última análise é natural que assim seja, que o ajustamento
da ocupação do solo aos condicionalismos ecológicos e ao seu uso determine uma
evolução das suas funções mais relevantes (produção, ambiente, natureza, lazer, …),
mas é estranho que na ausência de uma regulação efetiva, toda e qualquer avalia-
ção da industrialização da floresta se reduza à importância de mais umas décimas
no produto e no comércio externo, descuidando as consequências a montante (no

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território) e a jusante (no ambiente), com a agravante das políticas públicas fomentarem
este paradoxo.

«Lembremos que o ano de 2017 terminou com uma área queimada contínua que se
estende desde o sul do Tejo quase até Viseu, no coração florestal do país, e que afetou
de maneira indiferente pinhais e eucaliptais. Urge reconhecer que essas paisagens são
insustentáveis e indefensáveis, sobretudo face ao processo de alterações climáticas que
aumenta a frequência de situações de elevado risco meteorológico de incêndio e ao
abandono rural, que retira capacidade de controlo sobre o território.»
José M. Cardoso Pereira in Revista Cultivar.

Neste cenário, sobram muitas interrogações que apressadamente se consolidam


na forma de conclusões, umas mais programáticas - tendo como pano de fundo a
124 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

inevitável rarefação populacional, o importante é garantir que as relações sociedade/


economia/ecologia se estabelecem a níveis compatíveis com a densidade social e eco-
nómica locais, com o equilíbrio dos ecossistemas e com a capacidade de intervenção
externa – e outras simplesmente pragmáticas - na impossibilidade de reconstrução/re-
constituição de um passado funcionalmente destruído, há que encontrar novas formas
de intervenção, baseadas sobretudo na rentabilidade do território. Sem conceder a
um meio-termo impreciso e redutor, a escolha, a existir, depende sobretudo da forma
como as duas interrogações/conclusões permitem encontrar um equilíbrio entre o
desejável e o possível.

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125 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

«A paisagem não é uma metáfora para a natureza,


uma maneira de evocá-la; ela é de fato a natureza.»
Anne Cauquelin in A Invenção da Paisagem.

O vasto campo retalhado por agriculturas transformou-se em apenas algumas dé-


cadas num continuum de matos e florestas com pequenas ilhas isoladas de lugares e
gentes prisioneiras de uma onda de marés aparentemente verdes, mas que olhadas mais
de perto revelam a cor difusa de outros interesses. Estranhamente o abandono e o esva-
ziamento populacional não criam espaço para os que ficam, antes o restringem e, aos

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poucos, asfixiam e matam. Ontem havia um hoje, agora imagina-se o amanhã e é nesta
imagem do devir que tudo se complica, que tudo fica mais longe de uma realidade que
ninguém parece querer compreender. Os planos e os programas esboroam-se em pro-
messas difusas oferecidas num linguajar burocrático forjado em pequenos arrufos de
intervenção pontual com alguns cifrões oferecidos como paliativo moral. O território
– espaço de excelência da relação das pessoas com o poder – mantém o seu tropismo,
quase sempre indiferente a orientações externas, porque nem o poder ultrapassa o
mediatismo de inúmeras inutilidades práticas, nem as pessoas geram densidades so-
ciais suficientes para ultrapassar a magreza de alguns votos (verdadeiramente o único
elemento que incomoda o poder). Fica a evidência de que a paisagem mudou ou, pelo
menos, os sinais de uma precária harmonia entre elementos que não se juntam, não
se somam e dificilmente acrescentam algo a um todo que teima em manter-se de pé.
126 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

«Se formos ao campo perguntar onde fica a floresta, eles só conhecem a do


Capuchinho Vermelho, porque o que têm na sua terra são matas e matos.»
António Covas in A Grande Transformação dos Territórios

Tudo indica que o despovoamento destes territórios irá continuar, com causas diversas
– os fenómenos de atração ou repulsão urbano/rural e litoral/interior, ainda que artifi-
cializados a partir de diagnóstico breves, parecem justificar motivações que quase sempre
se alicerçam em escolhas entre modos de vida e suportes económicos associados –, mas

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também como resultado de sucessivas políticas públicas baseadas em modelos de inter-
venção setoriais, em políticas de tipo assistencial ou, muito simplesmente, na ausência
de intervenção. A dinamização destes territórios e a reversão das condições de vida
existentes para algumas populações é, em algumas situações concretas, já impossível,
pelo que o único sentido de atuação é realisticamente gerir o que já não é recuperável,
ou cujo processo é já irreversível, evitando-se a entrada numa fase de paliativos socioe-
conómicos – confissão clara do falhanço de sucessivas políticas – que apenas acentuam
a fragilidade de uma realidade amplificada por mediatismos de circunstância. Nas úl-
timas décadas, todo o instrumental político e financeiro disponibilizado a potenciais
beneficiários na fase pós-fogos padeceu deste mal – nunca se ultrapassou a fase de
emergência do sinistro.

127 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

«Quando vier a Primavera,/ Se eu já estiver morto,/ As flores florirão da mesma maneira/ E as


árvores não serão menos verdes que na Primavera passada./ A realidade não precisa de mim.»
Alberto Caeiro in Quando Vier a Primavera.

Dizem-me que o território é um espaço geográfico socialmente coerente, regulado e


construído e que o processo de evolução das paisagens funcionais tradicionais pode ser
explicado pelas mudanças sociais nos modos de apropriação, uso e transformação desses
territórios. Não tenho a certeza que assim seja ou, melhor, duvido que exista uma relação
tão evidente de causa/efeito e, sobretudo, que seja possível identificar e modelar todos os

Iberografias_37.indb 127 25-02-2020 11:50:01


fatores que determinam essas mudanças. Há algo que nos escapa neste percurso de rota
aparentemente bem definida. Há saltos históricos e os fogos rurais desmesuradamente
destrutivos podem ser um exemplo, não pelo facto de ocorrerem, mas pela fratura que
geram na sociedade, nas pessoas e na paisagem. Nestes casos, as saudades do futuro têm
um sentido muito preciso, mas também muito restrito – como nas fotografias1, traduzem
apenas a inquietude do presente.
128 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

1
Fotografias: Arquivo pessoal do autor.

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Agricultura familiar, agricultura biológica
e desenvolvimento rural

Fernando Oliveira Baptista


Instituto Superior de Agronomia

Na análise das pontes entre a agricultura familiar e a agricultura biológica convém,


introdutoriamente, recordar que não há nenhuma relação biunívoca entre as duas e que
tanto a agricultura familiar pode praticar outros modos de produzir – como pratica, de
resto, na maioria das explorações que a compõem – como o universo da agricultura biológica
não se restringe a unidades familiares: a maior parte da área encontra-se mesmo, como é
conhecido, em explorações capitalistas. Acresce ainda que, a confluência das duas pode ser
limitada, nomeadamente no plano socioeconómico – que é a referência deste texto – por
algumas condições que se vão referir e apreciar nas quatro notas que se seguem.

1. Agricultura familiar e agricultura biológica


129 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Embora com critérios diferentes, tanto nas unidades familiares, como nas explorações
capitalistas, a adoção do modo de produção biológico tem de se compatibilizar com as
condições de que depende a viabilidade económica das unidades agrícolas.
Indicam-se, de seguida, esquematicamente, algumas destas condições para as explorações
familiares. Tradicionalmente, considera-se que para estas unidades o objetivo económico é
maximizar o rendimento familiar, em que está incorporada a remuneração do trabalho da
família. Na produção para o mercado, o valor do rendimento obtido depende, por um lado,
das despesas e, por outro, do montante conseguido na venda e dos subsídios recebidos. A
maximização pretendida depende da estrutura produtiva de que dispõe o agricultor, ou seja,

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das condições disponíveis para a produção (terras, equipamentos, construções, água e ou-
tras) mas também da qualidade e quantidade do trabalho familiar empenhado. Assim, por
exemplo, agricultores mais envelhecidos podem baixar o nível de trabalho e também o do
rendimento. O mesmo pode ocorrer, numa unidade cultivada em tempo parcial ou, noutro
plano, em que se priorizem objetivos patrimoniais, ideológicos ou culturais na organização
do sistema de produção. O agricultor pode mesmo subsidiar a sua própria exploração mas, para
esta ser viável, os proventos obtidos (incluindo este auto-subsidio e prescindindo de remu-
neração para o trabalho familiar) têm, no limite, de igualar as despesas. Resta acrescentar,
que na atividade económica de uma exploração, há também, forçosamente, que ponderar
devidamente o risco (climático, ocorrências no ciclo produtivo, preços e escoamento da pro-
dução), no desenho do sistema de produção e nas escolhas comerciais. O que está antes, neste
parágrafo, é uma insistência talvez excessiva, e mesmo desnecessária, da importância da economia
na produção agrícola. Apenas se justifica como contributo para contrariar o excessivo voluntarismo
que, com frequência, ainda grassa em muitos adeptos do modo de produção biológico.
Além da economia, há três outras dimensões que se vão mencionar. Uma respeita a
eventuais dificuldades decorrentes do desajuste entre a passagem à agricultura biológica
e as expetativas da economia doméstica. Por exemplo, produtos que se destinavam ao
autoconsumo e que deixam de ser cultivados. Outra dimensão relaciona-se com possíveis
dificuldades nos acertos da divisão de trabalho entre os membros da família quando se
altera o sistema de produção. Finalmente, há a questão dos saberes que é o grande objetivo
do projeto em que se insere este Seminário. A agricultura familiar depois de, nos anos
sessenta/oitenta do século passado, ter passado dos saberes tradicionais aos saberes técnicos,
próprios do modo químico-mecânico de produção agrícola, é agora confrontada com a
necessidade de incorporar os saberes (onde se incluem as normas legais) indispensáveis
para a agricultura biológica. Agora, como na transição anterior, para além da maior ou
menor disposição individual de aderir à inovação, no caso, aos novos saberes e à sua aplicação,
é relevante considerar que a passagem da fase da divulgação à da difusão consolidada passa
pela avaliação feita pelos agricultores, no plano da economia das explorações e das famílias.
130 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Só quando esta é positiva – mesmo que seja por ser inevitável – é que se pode esperar a
adopção generalizada de um modelo tecnológico.

2. Sobre a agricultura biológica

O debate sobre a agricultura biológica e as suas vantagens ou inconvenientes relativa-


mente ao modo de produção químico-mecânico, atualmente prevalecente, é vasto e está
longe de uma conclusão, que provavelmente nunca ocorrerá, ou melhor, irá cessando à

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medida que o crescente enverdecimento da agricultura modernizada, no paradigma tecnoló-
gico que se afirmou no século passado, vá convergindo com um modo de produção biológico
crescentemente aperfeiçoado. Os temas deste debate são numerosos e estão longe de estar
encerrados. Recordem-se, entre outros, a certificação (por modo de produzir ou por objeti-
vos como, por exemplo, “alimentos sem resíduos de pesticidas”), as vantagens para a saúde,
os riscos alimentares e a utilização de organismos geneticamente modificados.
Não se pode, de resto, desligar este debate da necessidade imperiosa de acautelar os
aspetos ambientais mas, simultaneamente, de corresponder ao abastecimento alimentar
de um mundo ainda em crescimento populacional, num momento em que a agricultura
biológica ainda tem menor capacidade produtiva e preços mais elevados.
De qualquer modo, o sucesso económico da agricultura biológica é incontornável,
como, de resto, ressalta do crescente envolvimento do grande capitalismo neste sector,
tanto diretamente na produção como na comercialização (por exemplo, marcas brancas das
grandes superfícies). Este panorama pode ainda acentuar-se com a abertura do mercado
da União Europeia (UE) a países com condições sociais (salários, rendimentos familiares
considerados aceitáveis) de produção na agricultura muito inferiores às europeias e assim
com possibilidades de produzirem e exportarem frutos, legumes, carnes e outros bens cer-
tificados pelo modo de produção biológico. Este cenário é o que pode ocorrer quando
se concretizar o acordo de livre troca com os países do MERCOSUR (Brasil, Argentina,
Uruguai e Paraguai; a Venezuela tem a participação suspensa).
Isto traduz-se na crescente normalização económica da agricultura biológica, com dinâ-
micas idênticas às da agricultura químico-mecânica, e com constrangimentos similares para
as unidades produtivas, continuamente obrigadas a ajustarem-se à competitividade do mer-
cado. Ou seja, a agricultura biológica não é um refúgio para a agricultura familiar, nem, por
si só, lhe garante qualquer vantagem no mercado. Esta só poderá consegui-la, no quadro
atual, se enraizar numa dimensão local, reconhecida no mercado (por exemplo, laranja de
Amares), e acautelando os circuitos de venda: afirmando-se como uma marca reconhecível
(por exemplo, cereja do Fundão), recorrendo à venda de proximidade e aos circuitos curtos
131 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

ou, mesmo, informais. Ou seja, inserindo-se numa estratégia de desenvolvimento rural.

3. Desenvolvimento rural, agricultura familiar e agricultura biológica (I)

Os apontamentos que vão seguir-se nesta terceira nota centram-se no rural interior a
norte do Tejo, ou seja, num rural de baixa densidade de que se destacam algumas caracte-
rísticas. É um território que desde há décadas regista um acentuado declínio populacional
e, para o qual, as projeções preveem a mesma tendência, ou seja, uma persistente e futura

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baixa densidade. Paralelamente, a agricultura deixou de hegemonizar a utilização do espaço
rural e a economia dos residentes, sem que tenham emergido outras atividades capazes de
estruturarem a economia destas zonas, isto é, o rural deixou de ser agrícola mas ainda não se
tornou noutra coisa. Estas mudanças na população e na economia, repercutiram-se também
no modelo de povoamento que se tinha constituído com a expansão da atividade agrícola e
com o crescimento da população. Assim, muitos lugares foram abandonados, outros man-
têm-se com duas ou três famílias; nas aldeias também há numerosas casas fechadas, embora
para muitas delas voltem as famílias, das cidades ou dos países de emigração, nas férias e nas
épocas festivas; nas vilas também se registam estas tendências, embora algumas mantenham
os níveis de população residente com perdas menos acentuadas. É um território em que
a marca mais relevante da economia é o peso das pensões e reformas no rendimento dos
moradores, ou seja, prevalece o “modelo residencial” de uma população envelhecida, sobre
a dinâmica de novas atividades ou iniciativas. Esta é a questão do desenvolvimento rural.
Quando a reforma da Política Agrícola Comum (PAC) de 1992 lançou o tema do de-
senvolvimento rural, a ambição era precisamente fortalecer uma economia centrada no rural
como um espaço de consumo: turismo, desporto, iniciativas ambientais, lazer, património,
gastronomia, valorização dos produtos agrícolas e artesanais enraizados nas vilas e aldeias, fo-
mentar outras formas de aproveitamento dos recursos capazes de valorizar o local, como a agri-
cultura biológica, e ainda outros aspetos. O sucesso deste modelo foi grande na Europa Central
e do Norte, onde uma pujante economia do consumo do território passou a conviver com uma
agricultura de produtos de massa crescentemente dedicada à competitividade no mercado e à
recepção de vultosos subsídios de apoio ao rendimento dos agricultores. Na Europa do Sul,
excepto nos subsídios, o panorama foi diferente: o segmento da agricultura competitiva só se
reforçou já neste século e a nova economia do território ainda não se constituiu.
As causas desta situação podem sintetizar-se em três pontos. O primeiro foi, sem dúvida, a
debilidade da procura urbana (nacional ou estrangeira): não havendo procura e não tendo
sido possível suscitá-la não é viável este modelo de economia do território. O segundo decor-
re da debilidade da ação do Estado e sobretudo da perspetiva setorial – e não territorial –
132 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

com que são concebidas e aplicadas as políticas públicas. Com efeito, pretende-se acautelar
o vigor das fileiras económicas mas descura-se o modo de o fazer com impactos positivos
na vitalidade dos territórios. Além do que, o rural interior Norte é inequivocamente mar-
ginalizado na distribuição dos apoios públicos pelo território. Finalmente, as dificuldades
a nível local, que foram de dois tipos. Por um lado, as fragilidades da população mergu-
lhada na economia do “modelo residencial” para promover e concretizar novas iniciativas.
Noutros países e regiões, estas foram efetuadas sobretudo por agentes com outro perfil
ainda que, frequentemente, com raízes e ligações familiares no local. Por exemplo, o neto
que estudou e trabalhou na cidade e que depois retoma, ainda que apenas em tempo

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parcial, o património herdado dos avós. O segundo tipo de dificuldades associa-se às
dinâmicas locais, onde as autarquias têm um lugar decisivo e se confrontam, na aplicação
de fundos, com o melindre de equilibrar o apoio a novas iniciativas com as expectativas da
maioria da população, ainda integrada no “modelo residencial”.
Apesar deste passado, parecem emergir agora condições que, se devidamente concretiza-
das, podem permitir retomar o tema do desenvolvimento rural. Assim, com os grandes in-
cêndios que têm ocorrido na região, a situação deste rural de baixa densidade tem encontrado
algum eco na opinião pública. Até os que governam o Estado se anunciam preocupados, em-
bora, dada a conivência dos sucessivos governos com os interesses instalados, não pareça fácil
reverter a favor do rural interior a norte do Tejo, os apoios das politicas agrícolas, ambientais e
florestais que desde a adesão à UE se têm concentrado noutras regiões, sobretudo no Alentejo.
A par desta situação, há sinais de uma maior procura urbana relativamente aos ter-
ritórios rurais, onde se verifica um interesse acrescido para o lançamento de iniciativas e
pequenos negócios, e ganham relevo temas como uma crescente motivação pela defesa do
ambiente e pela difusão de padrões alimentares mais adequados à qualidade de vida. São
dois tópicos em que, na perceção atual de uma parte da população, a opção pela produção
biológica é uma solução vantajosa, e é neste quadro que se situa a possibilidade da agricul-
tura familiar optar por uma agricultura biológica, empenhada na valorização dos recursos
locais e com inserção no tecido económico local.
Um desenvolvimento rural que fomente e favoreça esta agricultura biológica, bem como
muitos outros projetos similares nas outras áreas antes mencionadas a propósito do rural
como um espaço de consumo, passa, antes do mais, por um sólido e continuado apoio das
políticas públicas. Passa também pela existência de condições de vida nos lugares, aldeias
e vilas do rural, o que implica um acesso fácil das populações a serviços essenciais (saúde,
educação, segurança, correios, bancos, justiça, procedimentos administrativos...) que, como
é bem conhecido, nas últimas duas décadas têm vindo a ser desmantelados de modo desor-
denado em muitos povoados. Será assim viável renovar o tecido social e económico do rural,
em que manterá a baixa densidade, como uma rede de pequenos núcleos habitacionais,
133 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

articulados com o mundo urbano mas não sufocados pelas cidades médias do interior.

4. Desenvolvimento rural, agricultura familiar e agricultura biológica (II)

A designação agricultura familiar remete, em Portugal e em numerosos países, para unida-


des agrícolas em que prevalece o trabalho da família que a detém, a qual está, em geral, inserida
na vida social e económica do território rural em que reside. Esta última característica remete
para a dimensão territorial desta agricultura que é imprescindível para revitalizar o rural.

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No polo oposto, encontram-se grandes explorações capitalistas, com lógicas sectoriais e
quase totalmente desligadas das vilas e aldeias vizinhas dos terrenos que utilizam. A adminis-
tração, a compra de máquinas e de outros meios de produção e mesmo a contratação de pessoal
assalariado – muitas vezes imigrantes sazonais – são feitas longe do contexto local. O pessoal
especializado não reside nas vilas e aldeias das proximidades. As áreas agrícolas, com frequência
arrendadas, são uma condição natural de produção, que é explorada para além de qualquer
memória da relação daquela terra com a paisagem a que pertence. Em Portugal, em particular
no regadio do Alqueva, já se encontram exemplos deste tipo de unidades comandadas pela lógi-
ca do capital financeiro mas cuja maior expressão se encontra, por enquanto, em países como
a Argentina. Um exemplo: uma exploração com uma superfície de 270 mil hectares de terra,
toda arrendada; não possuía qualquer equipamento agrícola, sendo todas as operações contra-
tadas a prestadores de serviços; cultivava, por sementeira direta, soja transgénica, resistente ao
glifofosfato, sendo este herbicida utilizado de modo massivo; agentes de enquadramento téc-
nico e organizativo, exteriores à zona, asseguravam a coordenação e fiscalização dos trabalhos.
Entre estes dois extremos, encontram-se situações intermédias, algumas com uma
forte presença territorial, que não podem ser descuradas numa perspetiva de desenvol-
vimento rural e da agricultura biológica. É, por exemplo, o caso de alguns patrimónios,
muitas vezes de pequena dimensão, retomados por algum dos descendentes que, embora
com outra atividade profissional e recorrendo a trabalho assalariado, procuram efetuar
uma revitalização agrícola, no contexto rural em que se localizam as suas parcelas.
Há muitas outras situações, algumas de maior vulto, mas os casos referidos nos pará-
grafos anteriores já permitem destacar que a fronteira territorial/não territorial, decisiva
para o desenvolvimento rural, pode não coincidir com a delimitação trabalho familiar/
/trabalho assalariado, relevante para perspetivar as questões sociais, incontornáveis para
um desenvolvimento não só territorial mas também inclusivo. A antiga sociedade rural,
muito desigual e clientelar, governada pelos senhores dos grandes patrimónios fundiá-
rios e por outros notáveis, também era territorial mas não é, seguramente, o exemplo
a querer imitar. Há pois, em cada contexto, que procurar um equilíbrio abrangente,
134 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

mas equitativo.

Referências

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Cordovil F (2019). Incêndios rurais, territórios e políticas públicas.
Figueiredo E (coord) (2011). O Rural Plural – olhar o presente, imaginar o futuro. 100Luz editora,
Castro Verde, 494 pp.

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Mourão IM (ed.) (2007). Manual de Horticultura no Modo de Produção Biológico. Escola Superior
Agrária de Ponte de Lima, 198 pp.
Ortiz-Miranda D, Moragues-Faus A, Arnalte-Alegre E (2013). Agriculture in Mediterranean
Europe – Between old and new paradigms. Emerald, 315 p.
Portela J, Caldas JC (orgs.) (2003). Portugal Chão. Celta editora, Oeiras, 539 pp.
Purseigle F, Nguyen G, Blanc P (2017). Le nouveau capitalisme agricole. De la ferme à la firme.
Presses de Sciences, Paris, 305 pp.
Reis P, Rolo JC (2018). Agricultura familiar em Portugal. “Estudo da Agricultura Familiar na
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Rolo JC (2017). Rural: rendimento e economias, espaço e agriculturas - dois ensaios. Instituto Nacional
de Investigação Agrária e veterinária, 59 pp. http://www.iniav.pt/gca/index.php?id=1613
Simões O (ed.)(2018). O rural depois do fogo. SPER, Coimbra, 276 pp.

135 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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Rede Rural Nacional
Construir pontes para o desenvolvimento rural

Ana Entrudo
Carmo Bica
Rede Rural Nacional, Direção Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural

A RRN – Rede Rural Nacional é uma estrutura, integrada na DGADR – Direção


Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural, que assegura a interação entre os
organismos da administração pública, as organizações e outras redes envolvidas no
desenvolvimento rural, a nível nacional e europeu. A RRN assume-se como uma pla-
taforma de divulgação e partilha de informação, de experiência e de conhecimento,
pressupondo uma atuação que desenvolva a partilha e a cooperação em torno das
diversas ações.
A RRN tem como missão: aumentar a participação das partes interessadas na execução
do desenvolvimento rural; melhorar a qualidade da execução dos programas de desenvol-
vimento rural; Informar o público em geral e os potenciais beneficiários sobre a política de
desenvolvimento rural e as possibilidades de financiamento e fomentar a inovação na agri-
137 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

cultura, na produção alimentar, nas florestas e nas zonas rurais.


Para a concretização da sua missão a RRN definiu como objetivos: contribuir
para a boa aplicação, acompanhamento e avaliação das medidas de política de desen-
volvimento rural; promover a participação e o trabalho conjunto entre os agentes do
desenvolvimento rural e transferir boas práticas e novos conhecimentos para qualifi-
car a intervenção dos agentes de desenvolvimento rural (Portaria nº. 157/2016, de
7 de junho).
Em janeiro de 2019 a RRN era constituída por 2140 membros, distribuídos por oito
tipologias (Figura 1).

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Figura 1. Tipologia de membros da Rede Rural Nacional em 2019.

Para o financiamento do trabalho em rede foi criada uma medida no PDR2020


(Assistência Técnica da RRN), constituída pelas seguintes Áreas de Intervenção:

AI.1. – Funcionamento da RRN


AI.2. – Divulgação e Informação tendo em vista a execução do Programa de
Desenvolvimento Rural
AI.3. – Divulgação de informação e facilitação de processos tendo em vista
o acompanhamento e avaliação dos Programas de Desenvolvimento Rural
AI.4. – Observação da Agricultura e dos Territórios Rurais

A RRN desenvolve atividades na área de Informação e Comunicação; caracteri-


zação e divulgação de projetos relevantes (inovadores e com impacto económico, am-
biental ou social), trabalho em Rede por Áreas Temáticas. Participa ainda em diversas
atividades organizadas pela Rede Europeia de Desenvolvimento Rural e por outros
138 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Estados Membros.
Uma das atividades estruturantes para o envolvimento dos diversos membros da
Rede tem sido a organização de Grupos de Trabalho Temáticos (Figura 2). Há duas
temáticas obrigatórias e permanentes (LEADER e Inovação) e outras cinco selecionadas
pelos membros da RRN em 5 workshops regionais, nos quais participaram cerca de
250 entidades.

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Figura 2. Grupos de Trabalho Temáticos (GTT) da Rede Rural Nacional em 2019.

As temáticas abordadas no âmbito do ciclo de Seminários “Agricultura Familiar,


Agricultura Biológica, Desenvolvimento Rural”, foram identificadas pelos membros da
RRN e trabalhadas no âmbito do GTT – Dinamização dos Territórios.
Considerando que em Portugal a agricultura familiar é dominante nos territórios
rurais e uma atividade de suporte da Dieta mediterrânica e de Paisagens Alimentares,
bem como uma oportunidade para a instalação de jovens agricultores e para o combate
ao despovoamento do interior, torna-se cada vez mais relevante a sua adesão a modos de
produção sustentáveis, nomeadamente a agricultura biológica e a agroecologia.
No âmbito do GTT foram definidas as seguintes atividades para apoio ao desenvolvimento
da agricultura familiar:

• Conhecimento da Agricultura Familiar (AF) e reconhecimento das suas funções


económicas, sociais, e ambientais;
• Organização da produção, associativismo, modelos de cooperação e de colaboração;
• Acesso aos mercados pela Agricultura Familiar;
• Concretização do Estatuto da Agricultura Familiar;
139 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

• Transferência de conhecimento;
• Sensibilização para consumo de produtos locais provenientes da AF.

A RRN poderá contribuir para a divulgação dos resultados do Projeto “Pontes entre
Agricultura Familiar e Agricultura Biológica” e para a concretização de algumas das suas
conclusões através da organização de “Roteiros Temáticos” que possibilitam dar a conhecer
e debater localmente Boas Práticas; através da organização de seminários e reuniões para
promoção de debates e transferência de conhecimento e de informação e ainda através do
aprofundamento da temática em Grupos de Trabalho.

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Pontes entre a agricultura familiar
e a agricultura biológica

Fernando Alves Martins


Diretor Regional de Agricultura e Pescas do Centro

Pontes: é disso que se trata. Vivemos num mundo de crescentes contradições. A ali-
mentação  está no centro do debate sobre a  viabilidade da nossa existência humana.
Enquanto assistimos a uma crescente dificuldade em proporcionar a alimentação de base
em vastas regiões do globo, coexistem situações de mercados com persistentes excessos de
oferta, como é o exemplo dos cereais.
O sistema alimentar precisa, assim, de uma necessária mudança. Qual o seu sentido
para a nossa realidade é a grande questão. A abordagem que se propõe é no sentido de uma
abordagem territorial de sistemas alimentares saudáveis baseados na agricultura familiar,
suportados em modos de produção sustentáveis que promovam a biodiversidade, que
garantam a preservação dos conhecimentos tradicionais.
O estabelecimento de pontes entre a agricultura biológica e a agricultura familiar
numa determinada região poderá ser uma das vias para o alcançar através da criação de
141 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

bio-regiões.
“Uma bio-região resulta de uma intervenção territorial ampla onde os agricultores,
consumidores, operadores turísticos e autoridades públicas realizam, de forma participativa,
um acordo para a gestão sustentável dos recursos locais, com base na produção biológica
e no consumo sustentável”

Estabelecer pontes! Restabelecer proximidade, particularmente com este universo


da agricultura familiar que constitui a esmagadora maioria das explorações agrícolas da
região Centro e que constituem a espinha dorsal da ocupação do território e que de certa

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forma se sentem “desamparados” pois toda a envolvência que suportava a organização
socioeconómica em que se apoiava o seu quadro de vida se alterou profundamente.
Para além disso estes agricultores são constituídos por uma população profundamente enve-
lhecida e com baixos níveis de qualificação. O seu conhecimento é de experiência empírica, pelo
que o suporte técnico a este modo de produção é absolutamente essencial, pela sua exigência.
Este ambicioso projeto de tentar recuperar para o mercado e dar sustentabilidade
económica a este universo de explorações através do modo de produção biológica, mais
exigente se torna em termos de estabelecimentos de redes de proximidade técnica, de mercado,
de organização, que permitam dar suporte a esta transformação .
Para a concretização deste projeto que visa em última instância melhorar o rendimen-
to das famílias dos produtores agrícolas através de práticas mais sustentáveis e produzindo
alimentos mais saudáveis, necessário se torna o envolvimento ativo de das estruturas repre-
sentativas da produção, das autarquias, da comunidade académica, dos representantes ins-
titucionais dos serviços públicos. Todas as vontades, as boas vontades serão poucas para
gesta de tamanha ambição.
À Direção Regional de Agricultura cabe dar expressão aos quadros institucionais e de
instrumentos de política pública que a Administração, em boa hora e muito justamente, de-
cidiu operacionalizar para dar resposta a anseios muito antigos deste segmento da agricultura,
discriminando-os positivamente.
Tanto mais importantes são estas iniciativas pois estas estruturas são compostas por
produtores que produzem produtos de elevada qualidade em unidades essencialmente de
matriz familiar, que no essencial são as unidades que compõem a nossa estrutura produ-
tiva e que são responsáveis por manter o espaço rural vivo e atrativo. Em reconhecimento
da importância que a agricultura familiar tem na manutenção das economias dos espaços
rurais, foram disponibilizados dois importantes instrumentos que para além de distinguir
a especificidade dos territórios rurais, se pretende sejam efetivos instrumentos de desenvol-
vimento. Refiro-me ao Estatuto da Agricultura Familiar e ao Estatuto do Jovem Empresário
Rural. O Estatuto da Agricultura Familiar pretende reconhecer e valorizar esta dimensão
142 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

através de um conjunto de medidas de apoio específicas de priorização no acesso aos apoios,


simplificação de processos de transformação e acesso aos mercados locais, de entre outras.
Com o Estatuto do Jovem Empresário Rural pretende-se potenciar o empreendedorismo
no mundo rural, a criação de novas empresas e a fixação de jovens empreendedores nas
zonas rurais, contribuindo para a dinamização económica e criação de emprego. .
A par deste conjunto de medidas de discriminação positiva, a Administração definiu
uma Estratégia Nacional para a Agricultura Biológica e colocou em execução um Plano de
Ação para a produção e promoção de produtos agrícolas e géneros alimentícios biológicos,
que está em plena execução.

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Estão reunidos assim, por parte do Ministério da Agricultura, alguns dos instrumentos
de política essenciais para permitir ligar as “margens”.
Todo o trabalho que está a ser desenvolvido, todos os excelentes contributos que dos
intervenientes deste e dos restantes seminários do projeto, contribuirão por certo para a
consolidação de um pensamento estruturado sobre esta temática e um guião para a ação.

Da parte da Direção Regional de Agricultura em particular, existe a firme vontade de


levar avante este propósito.

As novas tendências de consumo, ainda que incipientes, o consumo ético, a tendência


para a hiperdiferenciação são uma oportunidade que não pode ser perdida, no sentido da
mudança que é necessário operar. Muito provavelmente serão também novos os “agricultores”
a dar expressão a esta oportunidade a que a procura se encarregará de dar corpo.
Saibamos todos dar-lhe expressão e futuro!

143 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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AMBIENTE

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Por uma cultura agroalimentar sustentável

Vitor Barros
Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária

A agricultura convencional precisa de mudar de paradigma, porquanto o modelo


químico-mecânico, intensivo em inputs, que a carateriza, não tem proporcionado nem
sustentabilidade nem saúde.
Não percamos muito tempo com a prova do afirmado. Está à vista de todos. A aplicação
massiva de pesticidas e de fertilizantes de síntese… conduziu a uma perda muito significativa de
biodiversidade, à poluição dos aquíferos e ao aumento dos gases com efeito de estufa de origem
agrícola. Em termos energéticos o setor agrícola manifesta um saldo negativo entre a energia
utilizada e a produzida, tendo a energia desperdiçada como destino a desestabilização climática.
Por outro lado, vem-se assistindo nas últimas décadas à deterioração do capital natural.
Entretanto, a quantidade de pessoas a passar fome, a que se deverá somar a ‘obesidade
como catástrofe ambiental dos tempos modernos’ (Pedro Graça, Público, 21/05/2019),
mostra também que o modelo do ponto de vista alimentar e nutricional falhou. Não se
147 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

produzem propriamente alimentos nutritivos, mas sim commodities.


Os sistemas científicos-tecnológicos ancoram-se em paradigmas do conhecimento
e no caso vertente da defesa de nova orientação podemos contar com um paradigma
emergente – a agroecologia.
A agroecologia é um conceito amplo, que engloba, para além da ecologia, também aspetos
socioeconómicos e sociopolíticos. Coloca o foco na sustentabilidade, preocupando-se com
os ciclos dos materiais a nível das explorações, com a redução dos consumos intermédios
externos e com a manutenção da biodiversidade. Tenta ainda recuperar e integrar no
conhecimento científico moderno os saberes tradicionais dos agricultores.

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A agroecologia propicia argumentos a favor da agricultura familiar e propõe estratégias
concretas nos territórios para favorecer a sua manutenção e desenvolvimento, incluindo
novas abordagens de mercado.
É evidente que não é fácil esta tarefa de substituição de paradigma, desde logo o
enfrentar de vários e poderosos escolhos como as corporações das sementes e dos produtos
fitofarmacêuticos.
Mesmo com a noção das dificuldades de partida, importará traçar um caminho/estratégia,
baseada em aspetos pertinentes para o desenvolvimento rural/agrário, sobretudo de regiões
interiores com estrutura minifundiária, como é o caso da CIM Viseu Dão-Lafões em que
se insere o Politécnico de Viseu.
A equidade territorial, entendida como garantia de igualdade de oportunidades dos
residentes nos territórios rurais face aos residentes nas áreas urbanas, nomeadamente no
acesso às condições de vida e aos bens públicos estruturantes do desenvolvimento e da
afirmação das capacidades das pessoas, deve constituir a finalidade principal das políticas
rurais de desenvolvimento.
Pelo facto das pessoas não poderem ser prejudicadas em virtude do lugar onde resi-
dem/trabalham, a coesão territorial foi introduzida na Carta dos Direitos Fundamentais
(2016, art. 36.º). O conceito de coesão territorial vai além da noção de coesão económica
e social, alargando-o e consolidando-o. O objetivo é promover um desenvolvimento equi-
librado reduzindo as disparidades, evitando os desequilíbrios territoriais e conferindo mais
coerência às políticas com impacto territorial.
Entre nós aconteceram grandes avanços ao nível do Desenvolvimento Humano e Social.
Com efeito Portugal entrou no Séc. XXI mais coeso como comprovam alguns indicadores da
educação, a esperança de vida e o conforto. Já o mesmo não sucede no desempenho económico.
A este nível muito há ainda a fazer, por forma a termos um desenvolvimento mais equilibrado.
Assim, o Desenvolvimento Rural torna-se um imperativo nacional.
A migração para os espaços urbanos, com o consequente envelhecimento demográfico,
a estrutura fundiária de reduzida dimensão e forte fragmentação colocam grandes desafios
148 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

à procura de soluções capazes de ultrapassar tais condicionantes.


Mas, apesar destas dificuldades é evidente que há soluções. Sendo complexo o desen-
volvimento de regiões com os problemas apontados, existe atualmente um quadro de
referência capaz de servir de base ao desenvolvimento deste tipo de territórios, com os
problemas que têm.
Desde logo, o novo protagonismo do espaço rural. Efetivamente, visto até há pouco
como um espaço de mera sobrevivência e fechado em relação ao exterior, vai-se consti-
tuindo como um cenário de desenvolvimento, com um outro papel. O surgimento de
valores, assim como o reconhecimento de que aquele tipo de espaço desempenha funções

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vitais, outras que a alimentar, para toda a sociedade (aprovisionamento em água doce de
qualidade, sumidouro de carbono,…) ajudam a entender o novo papel a desempenhar
pela ruralidade nos tempos atuais.
Sabe-se hoje que o contribuinte-consumidor está disponível a continuar a proceder
a transferências para o setor e a pagar um conjunto de funções prestadas pela agricultura.
Sabe-se ainda atualmente que não bastam uma localização favorável ou uma boa
dotação em recursos naturais para que uma região seja desenvolvida ou se desenvolva.
É necessário algo mais.
As zonas rurais, na sua diversidade, possuem trunfos e pontos fortes que importa saber
preservar e valorizar: identidade territorial; património cultural – gastronomia, artesanato,
tradições; produtos tradicionais regionais de qualidade; e qualidade de vida – tranquilidade
e segurança.
Atualmente nota-se vontade política em levar por diante o desenvolvimento do chama-
do ‘interior’, existindo inclusive um departamento governamental específico para o efeito.
Em síntese: apesar de em emergência, existe um paradigma do conhecimento capaz
de suportar novas estratégias (agroecologia), podemos também afirmar que a ruralidade
apresenta novas oportunidades e que as zonas rurais, diversificadas, contêm no seu seio
grandes potencialidades.
A justificação de uma estratégia, passa como já anteriormente afirmado, pelo princípio
da equidade territorial. E o primeiro grande objetivo a ter em mente consiste no estancar
do despovoamento. De facto, a manifestação mais clara do declínio rural é a perda da po-
pulação, o envelhecimento e a depreciação do seu capital humano. Este é o maior obstáculo
com que se defronta o desenvolvimento.
Como principais pilares para uma estratégia de desenvolvimento colocaríamos os três
seguintes: 1) mobilizar a iniciativa privada dos meios rurais; 2) aumentar a eficiência das
atuais estruturas e medidas dirigidas à promoção do desenvolvimento rural (elevar o nível
do capital humano, sobretudo jovens, superar alguns obstáculos, designadamente baixa
mobilidade da terra,…); 3) diversificação e criação de novas atividades.
149 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Finalizaremos com uma parte mais focalizada na questão agrícola, atividade significativa
na ocupação do espaço.
Quanto ao futuro da atividade agrícola colocam-se no essencial três cenários: um pri-
meiro tem que ver com a produção agrícola competitiva no mercado; um segundo é o da
qualidade, com destaque para a produção de alimentos diferenciados, DOP e também
agricultura biológica e modos de produção e proteção integrada; por último um terceiro
cenário ligado à prestação de serviços à sociedade por parte dos agricultores, na medida
em que estes desempenham mais funções que a mera produção de alimentos, sobretudo
funções ecológicas, as quais deverão ser remuneradas.

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Não enjeitando toda e qualquer possibilidade que surja ao nível do 1.º cenário – estar
no mercado de forma competitiva, julgamos, no entanto, que o futuro agrícola da região
passará mais pelos restantes cenários apontados. Assim sendo, e na perspetiva de favorecer
o desenvolvimento agrícola e florestal defendemos o apoio aos sistemas dominantes na
região. Estas pequenas e médias explorações agrícolas deverão cumprir as normas comu-
nitárias no que respeita ao ambiente, higiene e bem-estar animal, contribuindo para a
redução das externalidades negativas provocadas pelo setor. Simultaneamente espera-se
que possam concorrer para a promoção de ocupações múltiplas e rendimentos alternativos
para as famílias, para a preservação de paisagens caraterísticas, para a conservação e me-
lhoria de espaços cultivados com valor natural e para a proteção da diversidade genética,
quer animal quer vegetal.
Numa região como esta, de forte matriz minifundiária, aspetos como a organização
comercial, o uso de marcas territoriais, a identificação de novas amenidades e forma da
sua valorização são essenciais. Abre-se, deste modo, uma nova janela de oportunidade ao
sistema de investigação e desenvolvimento (ID). Até há pouco quase exclusivamente voca-
cionado para a procura da produtividade, o sistema ID terá que inverter a sua lógica, quer
em termos dos conteúdos técnicos, quer das redes dos atores. Ilustraremos esta afirmação
com o exemplo das sementes.
As sementes e plantas disponíveis no mercado, potenciadas pelos fatores de produção
(fertilizantes, pesticidas, regadio,…) sem os quais não podem passar, foram selecionadas
para responder aos objetivos de produtividade, e, simultaneamente, fornecer à transformação
industrial e à grande distribuição quantitativos importantes e homogéneos de matérias-primas
estáveis de um número limitado de variedades de cada espécie.
Os sistemas dominantes na região, de pequena exploração a tempo parcial, registam
uma utilização parcimoniosa de fatores de origem industrial e trabalham numa diversidade
de solos e de condições ambientais tais que os agricultores dispõem, de modo geral, de um
conjunto de variedades facilmente adaptáveis a essa mesma diversidade. Por outro lado,
os objetivos de produção destes sistemas agrícolas situam-se mais ao nível da qualidade
150 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

intrínseca e não tanto da normalização comercial. Estas variedades rústicas, selecionadas


empiricamente pelos agricultores, se tomadas de forma isolada parecem manifestar pouco
interesse, porém o mesmo já não sucede quando perspetivadas em termos de desenvolvi-
mento sustentável, maior resiliência face aos stresses ambientais, pragas e doenças, assim
como o contributo para a saúde do consumidor.
Ainda no que respeita ao sistema ID não se pode olvidar alguma modernização tec-
nológica, designadamente na redução do esforço físico dos agricultores e seus familiares.
Por fim, a questão da diversificação económica das zonas rurais. Manter um certo nível
de população no espaço rural requer que esta obtenha os rendimentos suficientes para viver.

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Uma vez que dificilmente estes possam provir em grande extensão da agricultura, torna-se
necessário explorar outras possibilidades. A criação de dinâmicas regionais tem estado, em
muitas regiões, ligada à promoção de eventos nos espaços rurais, como forma de atrair turis-
mo. Esta estratégia tem estado a cargo das autarquias locais, de organizações de agricultores,
de associações de desenvolvimento local, de associações empresariais,… Atualmente há
casos exemplares de concelhos situados em regiões desfavorecidas, onde têm lugar eventos
periódicos ao longo do ano, os quais têm tido forte impacto na economia concelhia.
Importa lembrar que a região é possuidora de um cabaz de produtos diferenciados,
donde constam a Maçã Bravo de Esmolfe, a Maçã da Beira Alta, os Vinhos do Dão e de
Lafões, a Vitela de Lafões, o Cabrito da Gralheira.
Em alguns concelhos, designadamente em São Pedro do Sul, a comercialização através
de circuitos curtos já começa a ser uma realidade, inclusive atualmente em aprofundamento
e melhoria das condições em que se efetua. O referido município beneficia mesmo do esta-
tuto de BioRegião, caraterizado pelo acentuado crescimento do número de agricultores
neste modo de produção, com comercialização dos seus produtos na hotelaria inserida nas
Termas municipais e refeições Bio nas Escolas concelhias.
Por fim, importará deitar mão a um conjunto de infraestruturas para melhorar as con-
dições de vida e de trabalho dos agricultores, investindo em benfeitorias como caminhos
rurais (desencravar campos) e pequenas levadas/regadios tradicionais.

151 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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Agricultura familiar, agricultura biológica e
desenvolvimento rural: aspetos em torno
da proteção das plantas

Maria do Céu Godinho


Escola Superior Agrária, Instituto Politécnico de Santarém

A participação no Seminário “Agricultura familiar, agricultura biológica e desenvolvi-


mento rural” no painel sobre economia, sociologia e ambiente teve como objetivo analisar
em que medida os modelos de proteção das plantas em sistemas de agricultura familiar se
aproximam das práticas defendidas em proteção integrada e agricultura biológica. Neste
âmbito, discute-se em que medida garantem segurança alimentar e protegem os recursos
fundamentais para a resiliência dos ecossistemas agrícolas.
Num primeiro ponto importa abordar alguns tópicos sobre os inimigos das culturas
que causam prejuízos: como surgem as pragas e as doenças e porque causam fortes ataques
e consequentes prejuízos? Podemos explicar, de uma forma muito simplista, que estes
agentes biológicos assumem, quando o ecossistema se afasta das suas caraterísticas natu-
rais, um papel regulador. Quando se verifica uma modificação imposta pelo homem que
transforma o ecossistema “natural” num ecossistema agrícola com objetivo de produção
153 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

de bens agrícolas existem alterações que importa salientar. Faz-se uma breve referencia aos
principais aspetos que fragilizam um ecossistema agrícola numa perspetiva de autorregula-
ção. A grande redução de diversidade especifica que se verifica num ecossistema agrícola,
com fortes variações, dependendo do sistema em causa, em particular na componente
botânica é o primeiro aspeto a regular. Efetivamente, o número de espécies de plantas
presentes na parcela agrícola é limitado, muitas vezes o objetivo é a redução a apenas uma
espécie que constitui a cultura agrícola, verificando-se a eliminação de plantas adventícias,
tradicionalmente indesejadas. Outro aspeto é a ausência de continuidade temporal e os ci-
clos culturais curtos que impõem intervenções/práticas agrícolas com intervalos pequenos.

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A adição de fatores de produção ao sistema, sempre no sentido do aumento do desenvol-
vimento da cultura e da produtividade pretendida, provoca respostas que em situações de
desequilíbrio, favorecem sempre os inimigos das culturas em detrimento da produção que
se quer maximizada. Face ao resumidamente exposto, surgem os inimigos das culturas,
com maior ou menor importância económica, função da pressão que o homem colocou
no sistema. Isto é válido para todos os sistemas agrícolas.
Nesta apresentação fica como primeira mensagem a inevitabilidade da existência de ini-
migos das culturas, em qualquer parcela agrícola, muitas vezes com necessidade de intervir.
A questão central é a de que importância económica têm, ou tem, cada um dos inimi-
gos que estão presentes e qual a perceção dos agricultores sobre essa mesma importância.
Que fazer para diminuir as populações e os estragos e que perceção têm os agricultores
sobre o uso dos pesticidas, normalmente utilizados para o efeito.
Neste projeto, de acordo com os resultados já apresentados, e noutros estudos sobre a
matéria, assistimos a uma variabilidade de perceções que implicam diferentes decisões que,
por consequência, levam a um mau uso dos pesticidas, no que se refere à sua escolha e forma
de atuar. Falha-se na opção mais acertada para a finalidade em causa e muitas vezes são usa-
dos produtos indevidamente, para finalidades que legalmente não estão autorizadas. Não se
cumprem concentrações e doses recomendadas. Não se cumprem intervalos de segurança.
A segunda mensagem é o facto de se verificarem incumprimentos para a boa prática
agrícola de elementos essenciais ao cumprimento dos princípios da proteção integrada.
Este panorama é transversal aos vários sistemas agrícolas, com maior importância no
que respeita ao risco para a saúde na comercialização de alimentos, em circuitos curtos,
que ficam à margem do controlo oficial de pesquisa de resíduos. Ora, com maior enfase, a
agricultura familiar ou melhor “as agriculturas familiares”, pelas suas caraterísticas devem
saber cumprir, pelo menos, o mínimo que está na Lei. Se o fizerem, já ficam estabelecidas
grande número de pontes com a agricultura biológica. Cumpridos os princípios da pro-
teção integrada, até satisfazer a totalidade dos requisitos que remetem ao referencial da
agricultura biológica é, em nossa opinião, um pequeno passo muito simples de transpor.
154 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Os princípios inscritos na Lei (Lei 26/2013 de 11 de abril que decorre da transposição


da Diretiva Quadro 2009/128/CE de 21 de outubro) e as recomendações prévias ao uso
de pesticidas são as mesmas que as estabelecidas nos referenciais de produção em que se
baseia a agricultura biológica.
O que é que falta então? Faltam orientações técnicas para quem não sabe. Falta formar
quem desconhece estas regras e falta manter ativos e próximos da produção os mecanismos
de produção de conhecimento.
Nesta apresentação deixamos ainda uma terceira mensagem. Apesar das tecnologias
já disponíveis para minimizar o uso de pesticidas e da obrigação de optar pelos menos

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agressivos para o ambiente e saúde, muitos deles aceites em agricultura biológica, pela sua
natureza, ainda se recorre, sobretudo a planos fixos de pulverização. Muito está por fazer
no fomento do seu uso. A informação técnica de que se necessita e a demonstração da sua
viabilidade, ao nível da agricultura familiar não tem sido feita e disponibilizada de forma
simples e fácil uso.
E quando não se cumprem estes requisitos, que riscos corremos? Termino a apresenta-
ção a falar de saúde. O que se conhece e principalmente o que não se conhece sobre efeitos
crónicos provocados pela continuada ingestão de alimentos com resíduos de pesticidas.
Destaca-se a informação relativa aos efeitos ao nível hormonal como disruptores endócri-
nos que a literatura vai alimentando. Carece de fazer, hoje, a sua maior divulgação para
sensibilização do setor e dos responsáveis pelos agentes reguladores.
A informação recente aponta para a retirada do mercado destes produtos, o que,
garantindo a ausência de resíduos, não resolve o problema dos inimigos das culturas.
Paralelamente, os trabalhos de desenvolvimento de alternativas, no âmbito dos princípios
da proteção integrada, devem ser a chave para a melhoria da proteção das culturas, saúde
dos operadores e consumidores e do ambiente.

155 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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Património frutícola do Minho – Bases para
um desenvolvimento sustentável

Raúl Rodrigues
Centro de Investigação de Montanha, Centro de Investigação e Desenvolvimento
em Sistemas Agroalimentares e Sustentabilidade, Escola Superior Agrária de
Ponte de Lima, Instituto Politécnico de Viana do Castelo.

A evolução da agricultura operada nas últimas décadas, vocacionada para a compe-


titividade e assente em modelos produtivistas, teve efeitos negativos na região. A própria
estrutura fundiária caracterizada pela elevada fragmentação e dispersão da propriedade, a
falta de organização do sector da produção e o envelhecimento da população, entre outros,
contribuíram de certa forma para a perda de competitividade exigida pela economia de
mercado e, consequentemente, para o abandono dos campos, com importantes impactos
sócio-económicos e paisagísticos.
A agricultura tradicional do Minho assentava essencialmente, para além do sector
animal, em variedades regionais de milho, hortícolas e árvores de fruto, perfeitamente
adaptadas à região e que permitiram à época, um desenvolvimento sustentável do sector.
Tais variedades regionais mostravam o seu potencial económico, pois constituíam a base
para a produção vegetal na região ao longo do tempo.
157 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

O Minho possui um importante património vegetal, seleccionado e preservado ao


longo de séculos, num modelo de agricultura familiar, pelo que a sua existência apenas
depende do Homem, uma vez que as plantas não se propagam sozinhas. Se não houver in-
tervenção humana, perdem-se definitivamente, sem que haja possibilidade de recuperação.
São exemplo desta herança, as cerca de 100 variedades de macieiras existentes na co-
lecção da Escola Superior Agrária em Ponte de Lima e as largas dezenas de variedades de
pereiras regionais já referenciadas na região do Minho. São exemplo os laranjais do Ermelo
e de Amares, cuja existência está cada vez mais ameaçada devido ao abandono dos campos
e ao envelhecimento da população.

Iberografias_37.indb 157 25-02-2020 11:50:03


A estratégia do Ministério da Agricultura para o período de 2014-2020 prevê, entre ou-
tras prioridades, o desenvolvimento de linhas de investigação para garantir a auto-suficiência
alimentar em 2020, através da aposta numa economia inteligente, sustentável e inclusiva,
que promova a capacidade produtiva dos sectores, o emprego e a coesão social.
A diversidade hortofrutícola do Minho constitui uma fonte de recursos com imenso
potencial para o desenvolvimento sustentável da região, como alternativa ao modelo de
agricultura produtivista, implementado a partir da II Guerra Mundial (e reforçado com a
adesão de Portugal à União Europeia), altamente penalizador para o ambiente e limitador
do acesso aos mercados por parte dos pequenos agricultores.
Assegurar uma produção agrícola sustentável, constitui uma das principais saídas para
a conservação da biodiversidade regional e para o desenvolvimento económico, pois uma
estratégia de desenvolvimento cujo principal objectivo é apenas o bem-estar económico
das populações rurais, possui um alicerce precário e instável e uma inviabilidade económica,
se estiver baseada na exploração de um número restrito de produtos potenciais.
A seleção de variedades regionais para diversificação dos sistemas de produção deve
assentar em critérios sociais, ecológicos e económicos, sendo actualmente, os critérios
económicos os mais utilizados. No entanto, os parâmetros ecológicos constituem um
elemento importante na selecção de qualquer recurso vegetal para exploração e tal facto
não deve ser negligenciado
Assim, o desenvolvimento da agricultura do Minho, deve assentar visão holística da
região no que respeita ao potencial produtivo.
Para contrariar a falta de economia de escala, a região possui um vasto património
vegetal, que deve ser valorizado e apoiado pelas políticas sectoriais. A aposta na valoriza-
ção dos “exclusivos da região”, bem como nos mercados de proximidade, constitui uma
forma de contrariar o abandono dos campos e ao mesmo tempo uma forma de valorização
da paisagem. Desta forma, há espaço para a criação de produtos diferenciados, inseridos
numa política de desenvolvimento que contemple a venda da cultura, da gastronomia e
da paisagem da região.
158 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Para tal, o trabalho de prospeção, recolha, preservação e caracterização dos recursos


genéticos vegetais, deve ser uma prioridade para a região, complementado com o estudo
da sua adaptação às diferentes condições agro-ecológicas locais. Ainda que seja um trabalho
moroso e que nem sempre produz resultados imediatos, tal não deverá ser abandonado em
detrimento de soluções mais imediatas (ainda que muitas vezes de grande importância, como
seja a importação de variedades melhoradas das principais espécies cultivadas), tal como
aconteceu a partir da década de 1940, com a implementação dos Planos de Fomento
Frutícolas Nacionais, em que se estudou fundamentalmente o comportamento de tais
variedades importadas nas condições edafo-climáticas nacionais.

Iberografias_37.indb 158 25-02-2020 11:50:03


Esta situação, aliada à perda de interesse dos agricultores, conduziu ao progressivo
abandono das variedades tradicionais, cujas implicações serão certamente difíceis de ava-
liar, pois, para além do valor intrínseco da variedade, existe sempre o valor que a mesma
poderia vir a induzir em novas variedades, através do melhoramento genético. São essas
perdas irrecuperáveis, que poderão vir a pôr em perigo a perenidade do Homem na terra,
já que a biodiversidade é a melhor garantia de um futuro equilibrado.
Numa altura em que as preocupações ambientais são crescentes, acompanhadas por
uma procura de produtos diferenciados, capazes de constituírem uma alternativa econo-
micamente viável à “massificação” das produções e de permitirem a exploração de nichos
de mercado de maior valor acrescentado, abrem-se perspetivas para a preservação destes
materiais, contrariando a tendência de destruição/perda.
Valorizar o mundo rural, através da promoção de variedades tradicionais das fruteiras
do Minho, com um evidente e já visível aproveitamento económico a nível local e regional,
que poderá vir a ser claramente incrementado no futuro.
Com as variedades preservadas, pretende-se melhorar o desenvolvimento de alguns
setores da agricultura do Minho, nomeadamente através da diversificação e valorização
dos produtos tradicionais de base local e a Agricultura Biológica (que valoriza claramente
a opção por estas variedades), tentando desta forma corresponder à maior procura por este
tipo de produtos específicos a nível nacional e internacional, aos quais normalmente se
associa uma maior qualidade.
O desenvolvimento de uma região, assente nos seus valores naturais e culturais, manter
preservar os seus usos e costumes e ao mesmo tempo, preservar a biodiversidade, contribuir
para a criação de riqueza, para a manutenção da paisagem e para a fixação das populações no
meio rural. Por outro lado, há que ter em consideração que a manutenção da biodiversidade
constitui um dos maiores desafios para a humanidade, pois esta é essencial para satisfazer as
necessidades presentes e futuras da humanidade. Neste contexto, há que destacar o papel
importante da agricultura familiar nas economias locais e regionais, na produção do emprego,
na biodiversidade e na preservação do ambiente.
159 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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Agroecologia e a consolidação da
agricultura familiar na comunidade
dos países de língua portuguesa

Francisco Bendrau Sarmento


Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura

Raízes históricas

Quando se considera o tema da agricultura familiar, aqui entendida de forma ampla,


isto é, enquanto modelo contextualizado de fusão entre a economia doméstica, a economia
da exploração e os membros do agregado doméstico como finalidade/destino da unidade
de produção de alimentos, toma-se, muitas vezes, como ponto de partida para uma análise
de trajetória, em particular, nos países africanos membros da Comunidade de Países de
Língua Portuguesa (CPLP), o período colonial anterior à independência desses Estados.
Entendo fazer aqui, ainda que muito brevemente, uma análise temporal mais longa.
O triângulo económico geográfico engendrado na confluência dos três impérios portugueses
(Oriente, Luso Brasileiro e Africano)1 evoluiu assente no domínio de alguns produtos agrícolas
dominantes2, que por sua vez, geraram zonas geográficas dominadas. Nesse contexto, é aceite
que o “comércio de homens”, referido por Celso Furtado (1968), se tornou o item de maior peso
nas importações coloniais brasileiras, variava proporcionalmente às quantidades de açúcar expor- 161 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

tadas e baseava-se, em grande escala, na troca de produtos alimentares3 por escravos africanos.
Como refere Miller (1982 e 1983), “a área bantu do Atlântico transforma-se, assim, no
cenário ideal para a produção de escravos, face à insegurança alimentar”. Isto explica parcialmente
a taxa de lucro do tráfico de escravos no Império Luso-Brasileiro.
1
O do Oriente, formado no início do século xvi e que declina no final do mesmo; o do Brasil com início
nessa altura, com apogeu no século xviii e final no primeiro quartel do século seguinte; e o Africano, que se
impulsiona dificilmente no século xix e acaba com a descolonização em 1975.
2
De onde se salienta o açúcar.
3
A troca de produtos agrícolas brasileiros por mão-de-obra africana estabelece-se ao redor de vários produtos,
sendo imprescindível referir a cachaça ou aguardente de cana, fumo, couro, cavalos, mandioca, carne e peixe
salgados e secos, entre outros.

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Para a manutenção de uma situação de fome permanente contribuiu, em primeiro
lugar, a desestruturação sistémica dos sistemas agrícolas tradicionais locais, baseados no
sorgo, feijão inhame, milhos pequenos, amendoim, entre outros. Em segundo lugar, a vul-
nerabilidade acrescida das populações locais às secas, pestes e outros fenómenos naturais
cíclicos na região e o clima de permanente insegurança no meio rural.
A desestruturação ecológica, a destruição dos sistemas produtivos locais e a submissão
social e cultural dos camponeses estiveram assim ligados por mais de 350 anos na maioria
dos países africanos da CPLP.
A independência brasileira, em 1825, não colocou um ponto final neste processo.
Se no Brasil a escravatura foi acabando, nos países africanos esta era indispensável para
manutenção dos sistemas de produção e das estruturas sociais desfavoráveis ao campesina-
to. Note-se que o regime de “contrato” substituiu a escravatura nesses países até ao início
do século xx.
O início da industrialização (incluindo da agricultura e papel a esta reservado nesse pro-
cesso), em meados da década de cinquenta e sessenta do século xx, tinha o sabor do norte
(de um Portugal cada vez mais europeu) e não colmatou, de forma alguma, a pesada herança
do longo período anterior.
Algumas (poucas) tentativas de apoio à produção interna promovidas no âmbito da
política colonial portuguesa, basearam-se no modelo agrícola químico-mecânico e foram
abruptamente interrompidas pelos acontecimentos subsequentes às independências nacionais
na maioria dos países africanos na década de setenta.
Desde então, são conhecidas as dificuldades acrescidas4 dos países africanos indepen-
dentes para a proteção dos recursos endógenos, para a (re) valorização do seu conhecimento
tradicional e para apoio à sua agricultura familiar.
Passos que seriam relevantes para reconectar a agricultura familiar com o meio ambiente
e o seu conhecimento tradicional, temas centrais para a agroecologia. Passos consensualizados
agora na Estratégia de Segurança Alimentar e Nutricional da CPLP.
162 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Agricultura Familiar e Agroecologia na ESAN-CPLP

No continente africano em geral, e também nos Estados-Membros da CPLP, às novas


abordagens do modelo agrícola químico-mecânico juntam-se inovações na área das tele-
comunicações e serviços via internet na afirmação dos caminhos possíveis para uma nova

Face aos problemas político militares verificados em alguns países, modelo produtivo dominante herdado do
4

período colonial e novas condições no sistema alimentar mundial, em particular a partir da década de 80 do
século passado.

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agricultura. Contudo, estas convivem com a falta de água potável, energia, estradas, fatores
de produção e serviços essenciais para os agricultores.
Deste modo, a noção de que as novas tecnologias poderão estabelecer um novo ponto
de partida para todos estes países não corresponde inteiramente à realidade. Essas tecnologias
são, provavelmente, tão importantes para o futuro quanto a promoção de usos inovadores
para o conhecimento tradicional agrícola local. Importante será, nesta perspetiva, sistema-
tizar e disseminar inovações assentes no conhecimento tradicional, até porque as mudanças
climáticas podem vir a reverter os avanços conquistados nas duas últimas décadas em termos
de segurança alimentar e nutricional5.
As evidências sugerem, cada vez mais, que as práticas agroecológicas contribuem
para melhorar o rendimento e a rentabilidade da atividade agrícola, para aumentar o
capital financeiro e social dos agricultores familiares e construir condições de resiliência
aos crescentes efeitos de fenómenos climáticos extremos.
Não havendo política de desenvolvimento sem investimento público e políticas sociais
ativas, ganham hoje particular importância alguns acordos já estabelecidos no âmbito do
Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional da CPLP na área da agricultura familiar e
da agroecologia. Estes acordos estão plasmados na Declaração da I Reunião Extraordinária
do CONSAN realizada em 2015 em Dili6, e na Reunião de Alto Nível sobre Agricultura
Familiar e Desenvolvimento Sustentável realizada em Lisboa em 20187.
O Plano de Ação do CONSAN–CPLP para 2018-2020 conta com atividades espe-
cíficas para implementação esses acordos. Entre elas importa mencionar: i) Promoção de
dietas sustentáveis; ii) promoção de tecnologias agroecológicas adaptadas para produção,
processamento e comercialização; iii) a Iniciativa Sistemas Importantes do Património

5
Nesse sentido, o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa deliberou na sua II Reunião Ordinária realizada em Julho de 2018 em Cabo Verde: “Registar,
com preocupação, a severidade dos impactes da seca e das alterações climáticas nos ecossistemas e nas comunidades
rurais dos Estados-Membros, que afetam de forma particular os grupos mais vulneráveis, reconhecendo a urgência
em aumentar a resiliência dessas comunidades” (Artigo 13).
163 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica
6
“Promover programas de educação e iniciativas para construção de capacidades em soberania alimentar, incluin-
do agroecologia, através do diálogo entre academia, governos e sociedade civil” (artª 12); “Trabalhar no sentido
de que os alimentos fornecidos através de programas de alimentação e saúde escolar sejam crescentemente
provenientes da agricultura familiar agro-ecológica nacional” (artº 13); “Saudar a criação de um Centro de
competências e rede de transferência de tecnologias que apoie a construção de capacidades para a agricultura
familiar sustentável na CPLP, em São Tomé e Príncipe” (artº 10) ;“Promover políticas públicas de fomento
à produção sustentável biológica e agro- ecológica desenhadas, implementadas e monitoradas com a ativa
participação dos agricultores familiares e suas organizações representativas” (artº18).
7
“Os Estados-Membros comprometem-se a proteger, promover, respeitar e garantir a gestão participativa do acesso
e do uso da biodiversidade, dos recursos naturais, da paisagem e dos conhecimentos tradicionais associados, assim
como apoiar a preservação ativa dos sistemas agrícolas tradicionais, através do estímulo de processos de candidatura de
Sistemas Agrícolas Património da CPLP ao Globally Important Agricultural Heritage System (GIAHS) desenvolvido
pela FAO” (artº 10).

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Agrícola Mundial na CPLP (SIPAM-CPLP) e o Centro de Competências em Agricultura
Sustentável da CPLP.
Neste contexto, torna-se importante estabelecer um plano coordenado e alinhado
entre estas iniciativas e definir metas concretas para a sua implementação.
Será assim, talvez mais factível, conseguir equilibrar o balanço histórico descrito e
trabalhar para um renovado futuro dos agricultores familiares na CPLP.

Referências

CONSAN – CPLP (2015). I Reunião Extraordinária do CONSAN – CPLP, Díli, Novembro de


2015. Disponível em https://www.cplp.org/id-4669.aspx
CPLP (2018). Carta de Lisboa pelo Fortalecimento da Agricultura Familiar na CPLP. https://www.
cplp.org/id4447.aspx?Action=1&NewsId=5610&M=NewsV2&PID=1087
D’Annolfo R, Gemmill-Herren B, Graeub B, Garibaldi LA (2017). A review of social and eco-
nomic performance of agroecology. International Journal of Agricultural Sustainability 15(6),
632-644. DOI: 10.1080/14735903.2017.1398123
Furtado C (1968). Formação Econômica do Brasil. Companhia Editora Nacional. São Paulo. 5 pp.
Miller JCA (1982). The significance of Drought and Famine in the Agriculturally Marginal Zones
of West -Central Africa. The Journal of African History 23(1), 17-61
Miller JCA (1983). The Paradoxes of Impoverishment in the Atlantic Zone. In: Birmingham D, Martin
PM. (Ed) (1983). History of Central Africa. Longman. Londres/ Nova York.
164 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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CAPÍTULO 4

pontes agricultura familiar


e agricultura biológica.
um projeto construído

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Construir pontes entre agricultura familiar
e agricultura biológica

Cristina Amaro da Costa


Raquel Guiné
Daniela Costa
Helena Esteves Correia
Paula Correia
Politécnico de Viseu, CERNAS, CI&DETS

Cláudia Chaves
Politécnico de Viseu, CI&DETS
Doutoranda Ciências de Enfermagem, Instituto Ciências Biomédicas Abel
Salazar, SIGMA Phi Xi Chapter

Ana Aguiar
GreenUP & DGAOT, Faculdade de Ciências da Universidade do Porto

Cristina Parente
Instituto de Sociologia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto

A agricultura familiar tem um papel fundamental no mundo rural, do ponto vista econó-
mico, ambiental, social e cultural (FAO, 2014). Estes sistemas de produção baseiam-se em
explorações de pequena dimensão, geridas por uma família que depende essencialmente
de mão-de-obra familiar não assalariada e cujo saber se transmite de geração em geração.
Quase 90% das explorações agrícolas no mundo são de agricultura familiar, apresentam
167 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

pequena dimensão (mais de 475 milhões de explorações têm menos de 2 hectares), pro-
duzem cerca de 70% dos alimentos consumidos no mundo e garantem o sustento de
40% das famílias do mundo (FAO, 2014; Lowder et al., 2014).
Em Portugal, o setor agrícola é alicerçado, em grande parte, em explorações familiares
(96% das 280 mil explorações existentes no Continente). Utilizam predominantemente
mão-de-obra familiar, ocupam 67% da Superfície Agrícola Utilizada do continente, repre-
sentam 38% da população residente em meio rural e 25% do emprego regional (INE, 2011).
Por todo o mundo, estes agricultores constituem uma população envelhecida – 75%
tem mais de 65 anos – e com baixos níveis de formação escolar e profissional – 80% adquiriu

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o conhecimento através da experiência prática e da transmissão de conhecimentos entre
familiares, vizinhos e amigos (FAO, 2014).
O sucesso das explorações de agricultura familiar pode passar pela adoção de modos de
produção como a agricultura biológica, assente em princípios como alimentar o solo, otimizar
os ciclos de nutrientes através da gestão dos animais e plantas no espaço e tempo ou manter
relações de proximidade com o mercado, de forma a garantir qualidade dos produtos e a asse-
gurar a melhoria dos rendimentos das famílias. São disso exemplo inúmeros casos de sucesso
centrados no estabelecimento de pontes entre agricultura familiar e agricultura biológica,
integrando os princípios de agricultura biológica na lógica de produção e contribuindo para
a sua melhoria técnica e económica (Auerbach et al., 2013; von Dach et al., 2013).
A agricultura familiar, pelas suas caraterísticas próprias, assume, de forma mais ou
menos declarada, os princípios que norteiam a agricultura biológica: princípio da saúde,
da ecologia, da justiça e da precaução (FAO, 2014; IFOAM, 2016).
A abordagem a estes modos de produção e aos conceitos associados levantam questões com-
plexas que importa operacionalizar. Por exemplo, quais são as práticas agrícolas adotadas pelos
agricultores familiares que têm impactos negativos no ambiente e na saúde humana? Que carac-
terísticas demográficas e sociais atuam como promotoras ou inibidores da adoção da agricultura
biológica? Que abordagens funcionam com este tipo de comunidades face à adoção de inovação?
Assim, foi propósito do presente propor um modelo de intervenção, a nível técnico e
social, que permita estabelecer pontes entre a agricultura familiar e a agricultura biológica,
com vista à adoção deste modo de produção. Procurou-se assim: (1) elaborar uma reflexão
teórica sobre a proximidade entre a realidade das práticas agrícolas da agricultura familiar
e agricultura biológica; (2) definir um modelo de intervenção, a nível técnico e social,
que contribua para alterar as práticas adotadas por agricultores familiares no sentido da
agricultura biológica e (3) propor recomendações ao nível das orientações de políticas
públicas, que permitam alcançar modos de produção mais sustentáveis e saudáveis.
168 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

O projeto Pontes entre agricultura familiar e agricultura biológica

A identificação das práticas agrícolas dos agricultores (procedimentos técnicos e tecno-


lógicos adotados em cada etapa do itinerário técnico, isto é, as operações culturais e subse-
quentes tarefas agrícolas realizadas) e a caraterização sociodemográfica foi obtida com base
na administração indireta de questionários (Quivy e Campenhaudt, 2008) com perguntas
maioritariamente fechadas, algumas das quais sob a forma de checklist de resposta múltipla
(questionário simplificado, em que se reduz a necessidade de respostas por parte do inquirido)
(Kuiper, 2000). Tratou-se de um questionário simplificado aplicado por inquiridores aos

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agricultores familiares. Este questionário permitiu, ainda, avaliar as semelhanças (proximi-
dade) com o modelo teórico, neste caso, o modelo de itinerário técnico teórico adotado
em agricultura biológica e identificar fatores de facilitação, ou não, e de melhoria das práticas
de agricultura biológica adotadas por agricultores familiares.
A implementação do inquérito por questionário foi precedida pela recolha de infor-
mação qualitativa com base em entrevistas coletivas, sob a forma de grupos focais, com
pessoas que mantem relações próximas com agricultores familiares, tais como dirigen-
tes, cooperantes/associados e técnicos das cooperativas agrícolas, jovens agricultores mais
novos, entre outros, e com a colaboração de uma entidade com experiência confirmada
na dinamização deste tipo de atividades (a3s). Os dois grupos focais dinamizados tiveram
diversos objetivos, nomeadamente: definir as caraterísticas do público-alvo – agricultura
familiar; mapear e tipificar as explorações e chefes de exploração tipo; identificar das estra-
tégias de abordagem ao público-alvo; identificar obstáculos e resistências à mudança para
novos modos de produção e atitudes e comportamentos passíveis de incitar à mudança de
práticas; analisar e validar o questionário e a linguagem utilizada.
A agricultura familiar cumpre uma importante função na segurança alimentar mas
é, geralmente, considerada não competitiva. A metodologia “Lean” (Hartman, 2015;
Mancini et al., 2016), baseada na otimização do fluxo de produção e minimização do
desperdício, através do ajustamento temporal das operações às necessidades de produção e
redução do esforço de trabalho, foi a metodologia utilizada junto de um agricultor selecio-
nado, com o objetivo de conhecer avaliar as práticas, atitudes e comportamentos sinalizados
no grupo focal e sua eficiência, de modo a identificar pontos de melhoria das práticas de
agricultura biológica adotadas por agricultores familiares.
Procurou-se, ainda, conhecer melhor o papel das mulheres na exploração agrícola,
muitas vezes subestimado e desvalorizado, equacionando o seu papel na produção, na
comercialização e nas decisões familiares (na exploração e na alimentação). Do mesmo
modo, relacionar os riscos profissionais decorrentes das práticas agrícolas foi objeto de aná-
lise de forma contribuir para a definição de medidas ao nível da prevenção primária, já que
169 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

a sua divulgação poderá sustentar uma intervenção pedagógica (de prevenção e promoção
da saúde) focalizada nestes agricultores.
O conhecimento obtido serviu de suporte ao desenho de um conjunto de recomendações,
direcionadas aos decisores e agentes locais e regionais, baseados num pilar como a agricultura
biológica, a que se associam a um conjunto de benefícios sociais (promover o conhecimento e a
coesão, num contexto sociocultural específico); culturais (preservar sistemas tradicionais de
produção); económicos (proporcionar valor acrescentado às produções locais e aumentar a
competitividade); ambientais (adotar sistemas de produção menos intensivos e poluidores
e com maior enfâse na conservação de recursos). A partir dos resultados dos grupos focais,

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inquérito e metodologia Lean, utilizaram-se metodologias de investigação-ação participativa
(World Bank, 2011; Mansuri e Rao, 2013; Creswell, 2014), envolvendo os diversos atores na
identificação e avaliação de práticas e recomendações. Este tipo de modelos, pela abordagem
participada e integração dos atores a quem se destinam em todas as fases da investigação,
são inovadores e contribuem para o progresso e conhecimento científico, quer nas áreas da
agronomia, quer na interface com os modelos de intervenção sociológica.
O projeto “Pontes entre agricultura familiar e agricultura biológica” resultou de uma parceria
com diversas entidades (IPV, UP, ADDLAP, ADERSOUSA), que contribuirão para a definição
das metodologias e para a dinamização das atividades na região centro e norte de Portugal. Ao
longo do projeto, e na fase de disseminação, foi possível contar com a participação de um
conjunto vasto de entidades e atores, que em muito contribuíram para o resultado final.

Referências

Auerbach R, Rundgren G, Scialabba N (ed.) (2013). Organic agriculture: African experiences in


resilience and sustainability. FAO, Rome: 200p.
Creswell JW (2014). A concise introduction to mixed methods research. Sage Pub, Thousand Oaks: 152p.
FAO (2014). Family Farmers. Feeding the world, caring for the earth. FAO, Rome: 4p.
Hartman B (2015). The Lean farm: how to minimize waste, increase efficiency, and maximize value
and profits with less work. Chelsea Green Publishing, USA: 256p.
IFOAM (2016). Princípios da agricultura biológica. IFOAM, Bonn: 4p. https://www.ifoam.bio/
sites/default/files/poa_portuguese_web.pdf
INE (2011). Recenseamento geral agrícola. INE, Lisboa. http://ra09.ine.pt/xportal/xmain?xpid=
RA2009&xpgid=ine_ra_publicacoes
Kuiper J (2000). A checklist approach to evaluate the contribution of organic farms to landscape
quality. Agriculture, Ecosystems and Environment 77: 143–156.
Lowder SK, Skoet J, Singh S (2014). What do we really know about the number and distribution
of farms and family farms worldwide? Background paper for The State of Food and Agriculture
2014. ESA Working Paper No. 14-02. Rome, FAO: 1-18.
170 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Mancini S, Fernandes EN, Athie AA (2016). Agroecologia enxuta. 1º Simpósio Luso-Brasileiro sobre
Modelos e Práticas de Sustentabilidade, FCT/UNL, Lisboa, Portugal, 11-12 de julho.
Mansuri G, Rao V (2013). Localizing Development: Does Participation Work? World Bank, Washington,
DC: 308p.
Quivy LV, Campenhaudt R. (2008). Manual de Investigação em Ciências Sociais. Gradiva, Lisboa: 276p.
von Dach SW, Romeo R, Vita A, Wurzinger M, Kohler T (Eds.) (2013). Mountain farming is
family farming: a contribution from mountain areas to the International Year of Family Farming
2014. FAO, Rome: 100p.
World Bank (2011). Gender dimensions of community-driven development operations: a toolkit for
practitioners. World Bank, Washington, DC: 32p.

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Adesão e resistência a práticas de
agricultura biológica entre agricultores
familiares: uma abordagem a partir de
grupos focais1

Cristina Parente
Instituto de Sociologia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Introdução

A discussão sobre os comportamentos e atitudes de adesão e/ou de resistência a práti-


cas de agricultura biológica, a partir da mobilização de um capital de conhecimentos que
cruza as áreas disciplinares da agronomia e da sociologia, é o foco central deste capítulo.
Propomos equacionar, tendo como suporte uma abordagem metodológica intensiva anco-
rada na dinamização de 2 grupos focais, as causas que favorecem ou, por oposição, limitam
a adoção de modos de produção mais sustentáveis. O objetivo último é o de explorar os
fatores propulsores versus fatores impeditivos da adesão, de modo a fundamentar as reco-
mendações acerca de estratégias adequadas a implementar para a disseminação de práticas
de agricultura biológica entre comunidades agrícolas familiares (v. cap. 5).
171 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

1. Resistência à mudança e práticas de agricultura sustentáveis

A adoção de práticas de agricultura sustentáveis radica na possibilidade de produzir ali-


mentos e fibras sem comprometer as gerações futuras através de técnicas e tecnologias que
procuram promover a saúde do solo, minimizar o uso da água e reduzir os níveis de poluição
nas explorações, salvaguardando simultaneamente o bem-estar do agricultor e dos animais e
contribuindo para a sustentabilidade das economias locais (Shreck et al., 2006).
Uma primeira versão desta abordagem foi apresentada pela equipa de investigação no Colóquio Luso-Brasileiro
1

de Horticultura, Lisboa, novembro de 2017.

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A transição para sistemas de agricultura sustentáveis, como a agricultura biológica, é um
processo complexo, que acumula obstáculos técnicos, económicos e sociais para os quais tem
sido dada pouca atenção, em particular aos fatores de resistência à mudança.
De entre as maiores dificuldades técnicas referem-se: manutenção e melhoria da fertili-
dade do solo, seleção e melhoramento de espécies mais resistentes e adequadas ao itinerário
em agricultura biológica, incremento da biodiversidade funcional e proteção das culturas,
conservação e transformação de produtos biológicos (EIP AGRI, 2013; Forster et al.,
2012; Olabisi et al., 2015; Santacoloma, 2007).
Do ponto de vista económico, aponta-se o acréscimo de trabalho (maior necessida-
de em mão de obra) devido a algumas etapas do itinerário técnico, como o combate a
infestantes ou a compostagem, que pode desincentivar a adoção da agricultura biológica
(European Commission, 2013; Guthman, 2004; Inouye & Warner, 2001; Morison et al.,
2005; Olabisi et al., 2015). A perda inicial de produtividade e a diferença de produtividade
relativamente aos sistemas convencionais constituem outro importante fator de desencora-
jamento (EIP AGRI, 2013; Shreck et al., 2006). Simultaneamente, os custos com alguns
fatores de produção, como as sementes certificadas ou a escolha de cultivares ou mudas
resistentes, ou a necessidade de manter a terra em pousio reduzindo o tempo disponível
para o cultivo, limitam, em certas culturas, as margens produtivas ou encarecem os produ-
tos biológicos, dificultando o acesso ao mercado (Shreck et al., 2006). No entanto, alguns
estudos demonstram que, em certas circunstâncias, as práticas adotadas em agricultura
biológica podem reduzir os custos de produção, em particular devido à não utilização de
fatores de produção externos à exploração (Olabisi et al., 2015).
A prática de preços demasiado baixos no produtor, a inexistência de canais de marke-
ting adequados, a complexidade e custos da certificação e a precariedade da comerciali-
zação constituem outro conjunto de fatores que podem inibir a vontade de aderir a estes
sistemas de produção (Assis & Romeiro, 2007; Santacoloma, 2007; Shreck et al., 2006).
Verificam-se, também, dificuldades associadas à falta de informação, escassez de apoio
técnico e de formação sobre técnicas de agricultura biológica, bem como à dificuldade de
172 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

suportar os custos relacionados com a mesma (Assis & Romeiro, 2007; Lampkin, 1990;
Olabisi et al., 2015).
Acrescem razões de cariz social, nomeadamente o facto de os agricultores familiares
constituírem uma população envelhecida – 75% têm mais de 65 anos – e com baixos
níveis de formação escolar e profissional – 80% adquiriram os conhecimentos através da
experiência prática e da transmissão de conhecimentos entre familiares, vizinhos e amigos
(FAO, 2014).
Se é verdade que os fatores de resistência se tendem a impor, nunca vivemos uma
época tão favorável à agricultura biológica, com a promoção de políticas e estratégias

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integradas de apoio, compreendendo as características próprias da agricultura biológica
e do tipo e competitividade dos respetivos mercados; implementação de sistemas de
certificação eficazes e de apoio aos produtores; facilitação do acesso aos mercados de
importação e exportação; estabelecimento de regras de produção e comercialização;
apoio à comercialização e transformação; informação aos consumidores e criação de estraté-
gias de marketing para promoção destes produtos e práticas, em particular relativamente aos
agricultores com explorações agrícolas de menor dimensão (Rundgren, 2008).
Neste debate sobre os fatores propulsores e inibidores das práticas de agricultura
biológica, a agricultura familiar pode ganhar alguma relevância. Cordeiro et al. (1996)
enumera um conjunto de razões pelas quais a agricultura familiar possibilita melhores
condições de sustentabilidade: a articulação económica entre a exploração familiar e pro-
fissionais do sector; a perceção da terra enquanto património cultural; o facto de a terra
ser simultaneamente um espaço de produção e de consumo, prevendo-se o equilíbrio das
colheitas; o enfoque no desenvolvimento local e comunitário como modelo autogestionário
de produção e consumo.
Desta forma, a agricultura familiar, pelas suas caraterísticas próprias, assume alguns
dos princípios que norteiam a agricultura biológica: princípio da saúde, da ecologia, da
justiça e da precaução (FAO, 2014; IFOAM, 2016).
Sabemos ainda que o sucesso de muitas explorações de pequena agricultura e agricultura
familiar tem sido conseguido pela adoção de agricultura biológica, assente em princípios
como alimentar o solo, otimizar os ciclos de nutrientes através da gestão dos animais e
plantas no espaço e tempo ou manter relações de proximidade com o mercado, de forma
a garantir a qualidade dos produtos e a melhoria dos rendimentos das famílias (Auerbach
et al., 2013; Von Dach et al., 2013).

2. Os grupos focais como técnica de recolha de informação


173 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Os grupos focais foram usados, no âmbito da abordagem qualitativa (Morgan, 1997),


como técnica de recolha de informação numa perspetiva exploratória de auscultação de
atores-chave acerca dos fatores propulsores ou impeditivos da adesão ao modo de produção
biológica. Procurou-se compreender a perspetiva dos participantes (individual e em grupo)
acerca dos fenómenos em análise, através da partilha das suas experiências, perspetivas,
opiniões e significados (Hernández, Fernández e Baptista, 2014).
Os grupos focais, concebidos como entrevista coletiva de grupo, estão ancorados numa
estratégia de investigação-ação em que participam atores do terreno que, pela sua experiên-
cia e atividade profissional, são considerados informantes privilegiados na construção e

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validação das recomendações (v. cap. 5), com vista à implementação de modos de produção
agrícola mais sustentáveis e saudáveis por agricultores familiares.
Foram organizados dois grupos focais, um na região Norte e outro na região Centro
do país, cada um com 10 participantes. Os participantes foram selecionados de acordo com
as suas especificidades e potenciais contributos para a problemática em análise, cumprindo-
-se os critérios da familiaridade com o tema (Silva et al., 2014) e da homogeneidade desejável
de caraterísticas, no que se refere ao perfil socioeconómico e escolar. Estes são os requisitos
conhecidos na literatura como fundamentais para fomentar o diálogo e interação, por um
lado, e evitar constrangimentos e conflitos, por outro (Morgan, 1997), criando um ambiente
propício à partilha de ideias e troca de opiniões.
Na tabela 1, encontram-se sistematizadas as caraterísticas sociodemográficas e profis-
sionais dos 20 participantes. A constituição dos grupos foi intencionalmente construída
em termos de género, escolaridade e idade. Com uma média etária de 47 anos, os
informantes exercem atividades profissionais na área da agronomia, manifestaram gene-
ricamente um conhecimento aprofundado e experiência sobre a situação e as práticas de
agricultura familiar e/ou biológica, sendo ainda alguns deles conhecedores do panorama
de incentivos da agricultura biológica em Portugal. Maioritariamente a trabalharem nas
regiões do Porto ou Viseu, apresentam pertenças institucionais propositadamente diversi-
ficadas, com atividades exercidas nos setores privado e público, bem como no ramo asso-
ciativo do Terceiro Setor. A maior parte engenheiros, grosso modo da área de agronomia
e, com menos representatividade, da área de zootecnia. Com menor prevalência, mas
assegurando a diversidade, estiveram também presentes técnicos agrários e presidentes
de juntas de freguesia enquanto representantes do poder político local. Nestes perfis,
encontram-se alguns participantes que são potenciais líderes comunitários e/ou agentes
de mudança e que voltaram a estar presentes no contexto do world café (Machado e
Passos, 2017).
174 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Tabela 1
Caraterização sociodemográfica e profissional dos participantes
n %
Sexo
Masculino 11 55.0
Feminino 9 45.0
Idade
25 a 35 anos 1 5.0
36 a 45 anos 8 40.0
46 a 55 anos 7 35.0
Mais de 55 anos 4 20.0

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Nível de escolaridade
Até ao 3º ciclo do ensino secundário 2 10.0
Bacharelato 1 5.0
Licenciatura 15 75.0
Mestrado 2 10.0
Distrito do local de Trabalho
Braga 3 15,0
Bragança 1 5.0
Porto 7 35.0
Viseu 9 45.0
Pertenças institucionais
Administração pública
Poder local e regional 5 25.0
Ensino e investigação universitária 1 5.0
Associações de desenvolvimento local 6 30.0
Empresas privadas do setor agrícola 8 40.0
Profissão principal
Agricultor 1 5.0
Engenheiro 13 65.0
Gestor 1 5.0
Presidente de junta de freguesia 2 10.0
Técnicos agrários 3 15.0
Total 20 100.0

Os grupos focais foram liderados por duas dinamizadoras (facilitadores/moderado-


res), socióloga e agrónoma, dadas as particularidades de animação e da especificidade
da problemática em discussão, com auxílio de um guião previamente estruturado com
questões abertas que foram progressivamente detalhadas, fazendo-se uso da “técnica do
funil” (Gondim, 2002). Fizeram-se gravações em registo áudio e vídeo, garantindo-se o
consentimento informado dos participantes e assegurando-se o anonimato do discurso, de
acordo com os requisitos éticos e deontológicos da investigação.
175 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

A animação dos grupos focais teve lugar no Politécnico de Viseu e Universidade do


Porto, organizada em 2 partes, divididas por um intervalo em que se serviu um lanche, crian-
do uma ocasião de descontração e interconhecimento entre os participantes e a equipa de
investigadores. Na sua dinamização, recorreu-se à técnica da chuva de ideias (brainstorming),
seguida de uma tomada de posição final que consistiu numa votação. Ou seja, primeiro os
participantes foram incitados a identificarem os fatores-causa propulsores e inibidores da
adoção da agricultura biológica por agricultores familiares, que foram registados em quadro
branco. Finda a discussão, foi pedido que identificassem em dois post its, e anonimamente, o
fator facilitador e o fator inibidor que considerassem mais relevante.

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As informações recolhidas foram alvo de uma análise de conteúdo categorial. As cate-
gorias construídas foram posteriormente alvo de validação, discussão e votação em contexto
do world café, que permitiu a construção co-participada das recomendações (v. cap. 5).

3. Incentivos e obstáculos às práticas de agricultura biológica

Genericamente, e para a maioria dos participantes, a agricultura biológica foi encarada


como uma janela de oportunidade para as suas regiões, ainda que expressassem igualmente
algum ceticismo e dúvida quanto à capacidade de mobilizar esta potencialidade, com exce-
ção de 3 participantes que mantiveram sempre um discurso pessimista. Na totalidade, foram
apontados 7 fatores favoráveis e 6 fatores inibidores à adoção de práticas de agricultura bio-
lógica, que podem ser hierarquizados com base nos resultados da votação dos participantes.
A Figura 1 sistematiza os fatores facilitadores da adesão a práticas de agricultura biológica:
i) o valor económico que pode representar para os agricultores, quer por via dos pro-
cedimentos técnicos adotados, como sejam a rotação de culturas ou a qualidade do
solo, quer pela valorização dos produtos no mercado por um consumidor consciente,
bem como os benefícios para a saúde dos consumidores. Ou seja, crê-se que a agricultura
biológica pode ser rentável;
ii) os benefícios para a saúde e para o ambiente, em que se destaca que “a agricultura biológi-
ca é um caminho nomeadamente, não só ao nível da questão da sustentabilidade do planeta,
mas acima de tudo da saúde e dos problemas de saúde que têm aparecido nas últimas décadas,
nomeadamente relacionados com os problemas oncológicos e etc.” [homem, 45 anos];
iii) condições edafoclimáticas e o capital humano, em que se considera que Portugal
beneficia de um clima, qualidade do solo e água favoráveis, mas também de agricul-
tores familiares que dispõem de experiência e de saberes tradicionais próximos das
propostas técnicas da agricultura biológica;
iv) ligeira e ténue alteração de comportamento dos agricultores familiares na adoção
176 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

de procedimentos técnicos, em particular na aplicação indiscriminada de pestici-


das. Este tipo de representação foi intercalado por outras de cariz inverso, quando
apontavam para uso excessivo e não regrado dos pesticidas e ao referirem que os
agricultores colocam os pesticidas “a olho” ou o “dobro das tampas recomendadas”;
v) a conjuntura política, bem como a agenda aos níveis local e regional foram men-
cionadas como uma oportunidade, quer do ponto de vista económico por via da
proximidade ao mercado de consumo de produtos alimentares, quer cultural por
via da preservação do património local, para além de que, no momento atual, existem
apoios técnicos (ainda que considerados escassos).

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Figura 1. Fatores facilitadores da adesão a práticas de agricultura biológica

De entre os fatores inibidores expostos na Figura 2, foi preponderantemente apontada


a complexidade das regras e as exigências técnicas da agricultura biológica, assim como as
exigências fiscais. A este facto acresceram as dificuldades e os custos do processo de certi-
ficação, remetendo para a necessidade de “Agilizar o processo de certificação, facilitar porque
é um bocado complexo. Havia de haver uma forma de ser rápido porque é difícil. Falta apoio
técnico.” [mulher, 40 anos]
Considerou-se igualmente como um obstáculo as dificuldades de comercialização destes
produtos por várias ordens de razões: i) dificuldade do escoamento dos produtos biológicos
por falta de canais de distribuição adequados, nomeadamente, escasseiam meios de apoio
ao transporte das mercadorias; ii) consumidor pouco consciente e informado - pouco 177 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

preocupado com a qualidade dos produtos alimentares para a sua saúde e bem-estar e com
a sustentabilidade do meio ambiente, havendo uma escassez de informação ao nível do
consumidor; iii) mercado exíguo, estando tendencialmente territorializado nas duas áreas
metropolitanas e na região sul do país.
“Quem consome os produtos biológicos é Lisboa, Porto e Algarve. Era importante conse-
guirmos, em termos de transporte, levá-los ao Litoral. Aos grandes centros” [homem, 41 anos]

Neste sentido, foi também notório que, apesar de referido enquanto fator de adesão
à agricultura biológica, o valor económico destes produtos no mercado, caraterizado por

Iberografias_37.indb 177 25-02-2020 11:50:04


um preço genericamente mais elevado, que decorre quer dos custos produtivos que foram
sendo enunciados (mão-de-obra intensiva, certificação, custo dos fatores de produção,
necessidade de deixar parte da exploração em pousio, etc.), quer dos custos de escoamento
dos produtos e da perecibilidade dos mesmos, opera como obstáculo à sua compra.
O capital humano foi, pelas suas caraterísticas, um fator de inibição: falta de forma-
ção dos produtores e fragilidade dos conhecimentos teóricos e de domínio de práticas de
agricultura biológica. Associaram a este obstáculo a insuficiência de apoio técnico, seja em
termos da sua oferta considerada pelos participantes como diminuta para as necessidades dos
agricultores, seja em termos da qualidade do apoio prestado. No que se refere à formação
nesta área, os enunciados remeteram para a sua má qualidade, para além da oferta ser escassa.
O facto de a agricultura familiar em geral, e da agricultura biológica em particular,
ocupar, na maioria das situações, o lugar de atividade complementar, ou seja, dela não de-
rivar o rendimento principal do agregado familiar, fragiliza a sua consolidação e a transição
para modos de produção mais exigentes. Adicionalmente, o investimento que os agricul-
tores se predispõem a fazer, não é, normalmente, encarado com a seriedade e rigor de uma
atividade gerida profissionalmente e a tempo inteiro.
“Eu conheço muito poucas empresas que são profissionais da agricultura biológica […]
Depois é assim, é sempre um complemento de qualquer coisa. Dos 7 produtores que são de […]
só 1 é que é a atividade dele. Os restantes é uma coisa complementar.” [mulher, 40 anos]
178 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Figura 2. Fatores inibidores da adesão a práticas de agricultura biológica

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Considerações finais

As representações sobre os fatores propulsores ou impeditivos da adesão às práticas de


agricultura biológica manifestaram-se, por vezes, antagónicas no sentido em que, apesar de
se ter considerado que há fortes razões para adoção das mesmas, os obstáculos são manifestos
e parecem impor-se com intensidade. Manifestaram-se igualmente algumas ambivalências:
verificou-se que o mesmo fator é posicionado como facilitador ou inibidor, caso do apoio
técnico que, apesar de ser unanimemente considerado uma vantagem, é perspetivado como
insuficiente, quer do ponto de vista da sua qualidade, quer da oferta existente (Figuras 1 e 2).
As representações mais favoráveis à sua adoção radicam na consciencialização dos seus
benefícios para a saúde e para o ambiente, mas também de alguma proximidade entre as
práticas tradicionais dos agricultores biológicos e os princípios e técnicas da agricultura bio-
lógica, a par de algum apoio técnico. Porém, os graus de escolaridade, genericamente baixos
dos agricultores, e a carência de formação técnica em temáticas essenciais, conduzem-nos a
uma prática agrícola imediatista, orientada para a rentabilidade de curto prazo, o que não
se compadece com as técnicas da agricultura biológica que exigem uma orientação de longo
prazo, que respeite os ciclos da natureza e com espaços de tempo para a reposição das pro-
priedades do solo. Paralelamente, os agricultores tendem a enfrentar dificuldades de ordem
financeira e mesmo fiscal, encontrando nos custos associados aos processos produtivos e de
certificação de produtos biológicos um obstáculo. Acrescem as dificuldades inerentes a um
mercado exíguo e distante, ao preço elevado dos produtos e ausência de canais de escoamen-
to eficazes. Foi atribuída uma nota positiva ao contexto político nacional e local. Destacou-se
o papel do poder local e autárquico, quer na divulgação das vantagens deste modo de pro-
dução e disponibilização do correspondente apoio técnico aos agricultores familiares, quer
no contributo para a definição de estratégias de marketing orientadas para os consumidores
locais responsáveis e para o desenvolvimento económico territorial sustentável.

179 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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Agricultura familiar do norte e centro de
Portugal: práticas de agricultura sustentável

Ana Aguiar
GreenUP & DGAOT, Faculdade de Ciências da Universidade do Porto

Introdução

Das 570 milhões de explorações agrícolas do mundo, mais de 500 milhões são explora-
ções familiares sendo responsáveis pela produção de mais de 70 % dos alimentos (Lowder
et al., 2014).
Estima-se que as explorações familiares possam contribuir em larga escala para a pro-
moção da limitação natural e dos serviços do ecossistema associados à resiliência dos sistemas
agrários. Por pressão externa ou por convicção, cada vez mais empresas agrícolas adotam
referenciais de produção que garantem a sustentabilidade como a agricultura de precisão,
a produção integrada ou a agricultura biológica.
Dos vários mecanismos que a sociedade desenvolveu para que a agricultura adote
práticas sustentáveis, destaca-se a exigência, por parte das cadeias de supermercados do
181 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

cumprimento de referenciais de produção rigorosos como é o caso do Global GAP, até às


exigências, para a transferência de subsídios à agricultura em que a União Europeia obriga
a práticas que contribuem para a sustentabilidade como é a reserva de pelo menos 7% da
área em infraestruturas ecológicas (Europeia, 2012).
Os agricultores familiares são aqueles que pelas suas características e pela reduzida di-
mensão estão menos expostos a estes mecanismos e, frequentemente, as suas práticas não
são conhecidas.
Assim importa conhecer as práticas agrícolas e perceber em que modo de produção se
enquadram os agricultores familiares.

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Modos de produção agrícola

Agricultura é uma atividade humana que tem como principal objetivo produzir alimentos
e fibras pelo uso deliberado e controlado de plantas e animais (Spendding 1988). O desafio,
hoje, é produzir sustentável, considerando-se sustentável o que utiliza os recursos naturais
e humanos de forma a satisfazer as necessidades atuais sem comprometer as gerações futuras,
tal como definido em (Brundtland, 1987).
A sustentabilidade não está limitada a práticas pré-definidas (Menalled et al., 2008)
contudo algumas práticas têm um impacto favorável e outras não, sendo que, nas últimas dé-
cadas têm sido desenvolvidos referenciais que, devidamente aplicados constituem modos
de produção que contribuem para a sustentabilidade da agricultura.

Figura 1. Principais modos de produção agrícola

Considerando a evolução dos modos de produção agrícola, até aos dias de hoje que,
esquematizados na imagem (Figura 1) verifica-se que, no século xxi, uma maior consciên-
182 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

cia ecológica aliado a um compromisso social conduzem a modos de produção sustentáveis


de que se destaca, neste trabalho, a agricultura biológica. A agricultura biológica, também
conhecida como agricultura orgânica, é um modo de produção de alimentos e fibras de
elevada qualidade, utilizando práticas sustentáveis em que não é permitida a aplicação de
pesticidas e fertilizantes sintéticos (Amaro, 2003). Trata-se de um tipo de agricultura que
recorre a métodos preventivos e culturais, tais como rotações e compostagem e dá prioridade
aos cuidados com o solo, ao equilíbrio entre pragas e seus predadores, ao reconhecimento
do valor da diversidade e preservação de cultivares em risco. Assenta em quatro princípios,
saúde, ecologia, justiça e precaução (IFOAM, s.d.).

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O destino dado à produção e as opções pessoais determinam o modo de produção da
exploração incluindo as explorações familiares.

Modos de produção nas explorações de agricultura familiar

No âmbito do projeto “pontes entre a agricultura familiar e a agricultura biológica”


foram implementados inquéritos a 163 agricultores do norte e centro de Portugal em 2017 e
2018, apresentando-se aqui parte dos resultados trabalhados por (Costa, 2018; Silva, 2018).
Dos agricultores inquiridos 91% tinham trator, contudo, a utilização de equipamento
para agricultura de precisão nunca é referida. Quando questionados sobre a agricultura
biológica 90% dizem que sabem o que é, e 25% diz praticar ou já ter praticado; contudo
54% acha que este modo de produção não é viável.
Verifica-se que a maioria dos agricultores utiliza práticas comuns aos modos de produção
biológico e produção integrada sendo de destacar: 98% escolhem variedades regionais,
93% faz adição de matéria orgânica de origem animal, 90% pratica monda manual, 75%
pratica rotação de culturas e 74% pratica monda mecânica, 56% faz adubação verde.
90% diz utilizar pesticidas de síntese, prática não aceite em agricultura biológica. Dos
agricultores que utilizam pesticidas 52% indicam atitudes relacionadas com luta química
cega o que revela que não se enquadram no modo de produção integrada.
Assim os resultados deste projeto indicam que a maior parte das explorações familiares
não se enquadra em modos de produção considerados sustentáveis sendo a utilização de pes-
ticidas, a prática discriminante. As suas práticas enquadram-se na agricultura convencional.
Conclui-se que na generalidade os agricultores familiares têm um conjunto de práticas
comuns ao modo de produção biológico, contudo têm, também, práticas não aceites neste
modo de produção. Esta constatação induz-se a refletir que existirá um caminho de aproxi-
mação à agricultura sustentável, para os agricultores familiares que se torna urgente percorrer.
É preciso preparar programas de divulgação, sensibilização e formação destes agricultores
183 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

para que conheçam a agricultura biológica e passem a praticar uma agricultura sustentável.

Referências

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Silva L (2018). Agricultura familiar na região de Entre Douro e Minho – contribuição para uma me-
lhor caracterização implementação da metodologia LEAN na produção de alface. Tese de Mestrado
em Engenharia Agronómica, Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

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Agricultura familiar: perceções e atitudes
face ao uso de pesticidas

Telmo Costa
Politécnico de Viseu

Cristina Amaro da Costa


Politécnico de Viseu, CERNAS, CI&DETS

Introdução

Devido à sua relevância mundial, a agricultura familiar transcende a mera preocupa-


ção produtiva ou económica para se tornar num estilo de vida para as populações rurais,
preservando e transmitindo os conhecimentos locais, promovendo a proteção dos recursos
naturais e garantindo a segurança alimentar das famílias (Calus, 2010; Garner, 2014).
Ao contrário da agricultura convencional, através do uso de práticas agrícolas como a
diversidade de culturas com preferência por variedades regionais, consociações culturais,
rotação de culturas, adição de matéria orgânica de origem animal, adubação verde, desfolhas
manuais ou utilização de luta física e genética para o combate a pragas e doenças, a agricultura
familiar presta um conjunto de serviços ambientais que resultam na manutenção/promo-
ção da biodiversidade e na preservação da paisagem e ambientes rurais (Calus, 2010; IFAD
2014; Costa et al., 2016; Rambo et al., 2016).
185 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Porém, práticas como a mobilização excessiva do solo, a intolerância às ervas infes-


tantes/espontâneas em conjunto com o uso de herbicidas, a crescente dependência de fer-
tilizantes inorgânicos e o uso generalizado de pesticidas como principal forma de controlo
de pragas e doenças, utilizadas por uma parte importante destes agricultores familiares,
põem em causa as vantagens ambientais anteriormente referidas (Soule, 2001; Whitford
et al., 2006; Issa et al., 2010; Zare et al., 2015; Abreu et al., 2016).
De entre as práticas agrícolas com maior impacto, quer no ambiente, quer na saúde
humana, encontra-se a luta química (utilização de pesticidas). Os pesticidas são subs-
tâncias químicas naturais ou de síntese utilizadas na proteção das plantas para reduzir

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– ou eventualmente eliminar – as populações de inimigos das culturas (Amaro, 2007).
É bem sabido que, para além da sua eficácia em relação aos inimigos das culturas, o uso
de pesticidas pode também provocar efeitos secundários adversos, como intoxicações
humanas e de animais domésticos, a “preocupante mortalidade de abelhas e auxiliares e
de outros componentes da fauna e da flora, para além de um inconveniente impacto no
ambiente. Atualmente, é cada vez maior a preocupação em relação à presença de resíduos
de pesticidas nos alimentos e nas águas superficiais e subterrâneas. Em 2016, 2,4% de
todas as amostras de alimentos analisadas a nível europeu continham resíduos acima do
limite máximo de resíduos, sendo que, Portugal estava abaixo da média europeia com
1,5%. Contudo, em 46,3% dos alimentos ainda se detetou a presença de resíduos de
pesticidas (Carvalho et al., 2012; EFSA,2016).
O uso excessivo de pesticidas traduz-se num elevado número de intoxicações que,
de acordo com a Organização Mundial da Saúde, se estima atingir entre 3 a 5 milhões
de pessoas a nível mundial (Stoppelli e Magalhães, 2005). Em 2016, registaram-se 1574
intoxicações por pesticidas em Portugal, valor que tem vindo a descer desde 2014 (2141
casos registados) (CIAV, 2018).
A incidência das intoxicações por pesticidas em Portugal é relevante. É possível,
ainda, verificar um padrão epidemiológico caracterizado por um predomínio das intoxi-
cações em homens de meia-idade, residentes em meio rural (Rodrigues et al., 2011). Este
padrão está fortemente associado à agricultura familiar, onde a idade, falta de habilitações
literárias e formação profissional, falta de informação, não-aceitação do risco e falta de
perceção relativamente aos efeitos secundários associados ao uso de pesticidas propiciam
o uso inadequado e excessivo de pesticidas (Ntow et al., 2006; Ngowi et al., 2007; Abreu
e Alonzo, 2016)
Perante este cenário, procurou-se avaliar a perceção do risco associado ao uso de pesti-
cidas por parte dos agricultores familiares e a relação dessas perceções com as suas atitudes
(práticas agrícolas) e identificar tipologias de agricultores face à perceção dos riscos do
uso de pesticidas e à proximidade com os princípios e práticas da agricultura biológica.
186 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

É intenção deste estudo auxiliar a definição de estratégias que valorizem as práticas de


agricultores familiares mais atentos e sensíveis aos impactos das suas práticas – isto é, mais
próximos de sistemas de agricultura sustentável, como a agricultura biológica – e que pro-
movam, simultaneamente, a mudança comportamental de agricultores menos sensíveis a
estas questões, tendo em vista a adoção de práticas agrícolas conscientes, mais amigas do
ambiente, e reduzindo, portanto, o recurso aos pesticidas.

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O questionário checklist

No âmbito do Projeto “Pontes entre a agricultura familiar e a agricultura biológica”


foi aplicado um questionário dirigido a agricultores, do norte e centro de Portugal, que
se enquadrassem no conceito de agricultores familiares1, com o objetivo de identificar
as práticas agrícolas adotadas por estes agricultores e a sua proximidade às práticas de
agricultura biológica.
Desse modo, foi preparado um questionário do tipo checklist: questionário simplifi-
cado, que reduz a necessidade de respostas longas pelo inquirido e que consiste numa sim-
ples lista de afirmações (ações) ou características relativamente às quais se indica se estão
presentes (ou são desejáveis) ou não. Para cada item individual, é obtido um valor médio
ou percentagem de adoção (presença) de cada variável de carácter binomial (Kirakowski,
2000; Kuiper, 2000; Wright e Marsden, 2010).
A checklist foi preparada em português e construída com base no itinerário
técnico - “modelos técnicos e tecnológicos teóricos” que identificam o conjunto or-
denado das operações culturais e das tarefas agrícolas associadas (Amaro et al., 2000;
Zoraida, 2005; Strohbehn, 2015) – das principais culturas das regiões abrangidas.
Foi aplicada a 163 agricultores familiares da região norte e centro de Portugal, no
período de agosto de 2017 a novembro de 2018, através de entrevista presencial.
A recolha de dados foi obtida de forma voluntária, após consentimento informado
e apenas a indivíduos maiores de 18 anos, e decorreu em sessões com agricultores,
organizadas para o efeito em associações, cooperativas, nas explorações e em feiras e
mercados locais.
Para o presente trabalho foram utilizados questões relacionadas com: i) características
sociodemográficas, ii) descrição da exploração – dimensão, localização, número de par-
celas, iii) práticas agrícolas relacionadas com a proteção das culturas – medidas indiretas,
meios de luta cultural, mecânica e física, e meios diretos de luta.
Os dados foram analisados através de estatística descritiva, o que permitiu perce-
187 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

cionar possíveis relações entre variáveis que expressam perceções relativamente ao uso
de pesticidas e à agricultura biológica e atitudes, bem como com as variáveis socio de-
mográficas. A partir daqui, e devido ao elevado volume de variáveis e a inexistência de
hipóteses preestabelecidas (Palmer, 1993; Doey e Kurta, 2011), foi realizada uma análise
exploratória de dados, com recurso a uma análise de correspondência
Após a análise de correspondência, que mostrou a existência de diferentes grupos (ti-
pologias) de agricultores familiares, foi feita uma análise de clusters hierarquizada, para
1
explorações agrícolas que utilizam maioritariamente mão-de-obra familiar e cujo rendimento da família
provem essencialmente da exploração agrícola.

Iberografias_37.indb 187 25-02-2020 11:50:05


identificar grupos de agricultores que fossem mais parecidos entre si. De forma a com-
preender melhor os resultados e caracterizar os agricultores de cada tipologia (cluster),
realizou-se uma análise de variância (ANOVA unidirecional), depois de se confirmar a
normalidade dos dados (teste de Shapiro-Wilk) e a homogeneidade de variâncias (teste de
Levene). As diferenças observadas ao nível das atitudes, perceções e características socio-
demográficas entre clusters foram analisadas aplicando o teste de comparações múltiplas
adequado (LSD de Tukey quando as variâncias eram homogéneas, Tamhane quando não
o eram). Todos os tratamentos estatísticos foram realizados ao nível de 95% de confiança.

Os agricultores familiares do centro e norte de Portugal

O presente trabalho envolveu 163 agricultores familiares, com uma idade média
de 56,7 anos (variando entre os 20 e os 90 anos) sendo que 31% dos participantes
eram do sexo feminino e 69% do sexo masculino (Tabela 1). Estes valores estão em
linha relativamente aos dados do INE (2017) no que diz respeito ao sexo (66,2%
do sexo masculino), mas verificou-se uma diferença entre a idade média da amostra
e dos dados do “Inquérito à estrutura das explorações agrícolas” (INE 2017) que é
de 65 anos. O nível de educação é, em geral, baixo – 55% dos inquiridos possui o
1º ciclo ou inferior e apenas 10% frequentou ou completou o ensino superior. Face
aos dados do INE (2017), isto representa um aumento para o dobro de indivíduos
com o ensino superior concluído e uma redução de 16% face aos indivíduos com o
ensino básico ou inferior.

Tabela 1
Características sociodemográficas da amostra (163 inquiridos)

Idade média 56.9 ± 13.7


Masculino 69.3%
188 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Género
Feminino 30.7%
Sem formação 8%
4º Ano (ISCED 1) 47%
Escolaridade 9º Ano (ISCED 2) 25%
12º Ano (ISCED 3) 10%
> 12º ano (> ISCED 3) 10%

Iberografias_37.indb 188 25-02-2020 11:50:05


As explorações inquiridas pertenciam às NUTs III de Porto (7%), Tâmega e Sousa
(45%) e Ave (1%), na região Norte, e Aveiro (18%), Viseu Dão Lafões (23%) e Beira
Interior (6%) na região Centro. A dimensão média das explorações (superfície total) é
6,10 ha (Tabela 2), situando-se cerca de metade entre os 0,003 e 2,0 ha (48%) e apenas
uma pequena percentagem acima dos 10 ha (12,8%). A maioria das explorações está
dividida em inúmeras parcelas (em média, 6,5 parcelas, mas variando em média entre
2 e 31 parcelas). As explorações de Viseu Dão Lafões e Porto apresentaram menor di-
mensão (1,68 ± 1,84 e 2,25 ± 1,62 ha, respetivamente) e as da Beira Interior e Aveiro
maior dimensão (19,50 ± 30,84 e 11,48 ± 19,47, respetivamente). O INE (2017)
refere que a média nacional é de 14,1 ha, mas para a região centro e norte é de 6,7 ha
e 6,8 ha respetivamente.

Tabela 2
Número de inquiridos por local e dimensão média das explorações
de agricultores familiares da região norte e centro de Portugal em 2018

Local Nº de explorações Dimensão média (ha)


(NUTs III) por local m±s
Porto 12 2,25 ± 1,62
Tâmega e Sousa 73 4,88 ± 6,03
Ave 1 5,00 ± 0,00
Aveiro 30 11,48 ± 19,47
Viseu Dão Lafões 38 1,68 ± 1,84
Beira Interior 9 19,50 ± 30,84
Total de explorações 163 6,04 ± 12,49

Perceções e atitudes face ao uso de pesticidas


189 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

No conjunto de agricultores inquiridos constata-se uma relação forte entre perce-


ções e atitudes (chi-quadrado observado de 176,0130, com um valor de p < 0,0001),
sendo que os agricultores com maior preocupação acerca do uso de pesticidas e mais
recetivos em relação à agricultura biológica são também aqueles que têm práticas agrí-
colas associadas a maior sustentabilidade. De facto, verifica-se que o grupo de agri-
cultores familiares que utiliza “consociação de culturas”, “luta biológica”, “permite
a presença de infestantes” e tem “maior diversidade de culturas” também “acredita e
confia na agricultura biológica” e considera que os pesticidas são “muito nocivos e a
evitar” (Figura 1).

Iberografias_37.indb 189 25-02-2020 11:50:05


Figura 1. Correspondência entre as perceções e atitudes dos agricultores familiares,
do norte e centro de Portugal, em 2018

Do outro lado do espectro (quadrantes inferiores) encontram-se os agricultores fa-


miliares que “não acreditam na agricultura biológica”, consideram os pesticidas “seguros,
não fazem mal nenhum”, “indispensáveis mesmo que tóxicos” ou “nocivos, mas podem-se
usar”, praticam “luta química” e têm “menor diversidade de culturas”. Estes agricultores
também são os que fazem “análises de solo/água/foliares” e usam “EPI - total”, sendo que
estas atitudes estão relacionadas com o facto de se tratarem de agricultores mais focados
para o mercado e, por isso, recorrer com maior frequência ao uso de pesticidas, tendo neces-
sidade de usar o EPI2 que é obrigatório (ao contrário do grupo anterior, onde muitos não
usam pesticidas e, por isso, não têm necessidade de utilizar o EPI).
190 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Tipologias de agricultores relativamente às perceções e atitudes face


ao uso de pesticidas

Através de uma análise de clusters, foi possível identificar três tipologias de agricultores
familiares, que se designaram “Convencionais”, “Tradicionais/Naturalistas” e “Modernos”
(36%, 31% e 34% dos inquiridos).
2
Equipamento de Proteção Individual

Iberografias_37.indb 190 25-02-2020 11:50:05


Tabela 3
Comparação das perceções e atitudes entre tipologias
de agricultores familiares, do norte e centro de Portugal, em 2018

Cluster 2
Cluster 1 Cluster 3 F (Nível
Variável “Tradicionais/
“Convencionais” “Modernos” de Sig.)
Naturalistas”
Atitudes e Perceções
Atitudes
Correção de pH 0,448a 0,140 b 0,655 c 0,000
Análises de solo/água /foliares 0,603 0,040 b 0,455 a 0,000
Permite a presença de infestantes 0,310 0,380 0,236 0,284
Desfolha e/ou poda de rebentos 0,690 a 0,420 b 0,655 a 0,009
Luta biológica 0,155 ab 0,100 a 0,309 b 0,017
Luta biotécnica 0,224 a
0,040 b
0,418 c
0,000
Luta química 1,000 a 0,780 b 0,909 ab 0,001
Análises de resíduos de pesticidas 0,018 a 0,000 a 0,236 b 0,000
Faz registos escritos 0,414 a
0,180 b
0,564 a
0,000
Uso de Equipamentos de Proteção Individual
EPI - Nenhum 0,069 a 0,380 b 0,000 a 0,000
EPI - Parcial 0,621 a
0,540 a
0,091 b
0,000
EPI - Total 0,310 a 0,080 b 0,909 c 0,000
Perceções
Para os agricultores familiares, os pesticidas são:
Indispensáveis mesmo que tóxicos 0,466 a 0,120 b 0,000 b 0,000
Seguros não fazem mal nenhum 0,069 0,100 0,091 0,840
Nocivos, mas podem-se usar 0,397 a 0,320 a 0,636 b 0,002
Muito nocivos e a evitar 0,069 a
0,460 b
0,273 b
0,000
Conhecimento, prática e confiança dos agricultores familiares face à agricultura biológica (AB)
Acredita e confia na AB 0,000 a 0,200 b 0,036 a 0,000
Atitude neutra face à AB 0,345 a
0,620 b
0,727 b
0,000
Não acredita na AB 0,655 a 0,180b 0,236 b 0,000
Número de Inquiridos 58 50 55
191 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Percentagem de Inquiridos 36% 31% 34%

Nota: Método K-means cluster, n=163. Pontuações na mesma linha com sobrescritos diferentes são significativamente
a,bc

diferentes para p<.05 (teste de comparações múltiplas à posteriori de Tamhane).

Os “Convencionais” são agricultores predominantemente do sexo masculino, com


ensino primário, da zona centro e com idade superior a 65 anos. Têm uma posição negati-
va em relação à agricultura biológica, são orientados para o mercado, preocupados com a
produtividade e, nesse sentido, fazem uma utilização intensiva de pesticidas de modo a não
correrem riscos. Ignoram ou desconhecem os efeitos negativos da utilização dos mesmos.

Iberografias_37.indb 191 25-02-2020 11:50:05


Os “Tradicionais/Naturalistas” são agricultores familiares com idade entre os 40 – 65 anos,
ensino primário, distribuídos pelo norte e centro de igual forma e maior percentagem de
mulheres agricultoras. Neste grupo, estão os agricultores mais próximos da agricultura
biológica que têm maior perceção dos riscos associados ao uso de pesticidas e que ainda
usam técnicas agrícolas consideradas “tradicionais”, guardando sementes de um ano para
o outro, utilizando variedades regionais, permitindo a presença de infestantes na explora-
ção e com a produção orientada para o autoconsumo. Têm grande abertura à agricultura
biológica, mas estão distantes da adoção de novas técnicas que poderiam incrementar as
suas produtividades como a correção de solos ou a luta biotécnica. Trata-se de um grupo
de agricultores sedento de formação e informação técnica relativamente a práticas agrícolas
sustentáveis e associadas à agricultura biológica.
Por último, os agricultores “Modernos” são indivíduos mais jovens e com maior nível
de escolaridade, sobretudo na zona norte do país. Têm uma atitude neutra em relação à agri-
cultura biológica e reconhecem os riscos associados ao uso de pesticidas, tentando fazer um
uso racional dos mesmos de modo a manter um nível de produtividade que seja competitivo
perante o mercado. Utilizam técnicas mais modernas como a luta biológica, luta biotécnica,
correção de solos com recurso a análises e fazem o registo das atividades da exploração.

Tabela 4
Comparação das características sociodemográficas entre
tipologias de agricultores familiares, do norte e centro de Portugal, em 2018

Cluster 2
Cluster 1 Cluster 3
Características “Tradicionais/ F (Nível de Sig.)
“Convencionais” “Modernos”
Naturalistas”
Sexo
Masculino 86,2a 60,0b 60,0b 0,002
Feminino 13,8 a
40,0 b
40,0 b
0,002
Idade
≤ 40 5,2a 2,0a 25,5b 0,000
192 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

40 – 65 44,8 ab
78,0 a
67,3 b
0,001
> 65 50,0ab 20,0a 7,3b 0,000
Educação
Primária (ISCED 0-1) 65,5a 80,0a 20,0b 0,000
Secundária (ISCED 2-4) 29,3 a
12,0 a
61,8 b
0,000
Superior (ISCED 5-6) 5,2 8,0 18,2 0,062
Região
Norte 8,6a 54,0b 81,8c 0,000
Centro 91,4 a
46,0 b
18,2c 0,000

Nota: Pontuações na mesma linha com sobrescritos diferentes são significativamente diferentes quando p<.05 (teste de
a,bc

comparações múltiplas à posteriori de Tamhane).

Iberografias_37.indb 192 25-02-2020 11:50:05


Algumas considerações finais

Torna-se, assim, evidente que a definição de estratégias que visem promover a


adoção de práticas agrícolas mais sustentáveis junto dos agricultores familiares, deve
considerar as particularidades associadas a cada uma das tipologias identificadas. Para
os agricultores “Convencionais” e “Tradicionais/Naturalistas” será mais indicado, por
exemplo, a criação de explorações piloto que promovam ações de demonstração no
terreno e entre agricultores. Para os agricultores “Modernos”, o recurso a ações de for-
mação através de instituições de ensino superior, associações de agricultores, coopera-
tivas ou organizações de produtores poderá ser uma maneira mais fácil de transmitir
conhecimentos e informação.
Por fim, é evidente que, para se incrementar significativamente a adoção de práticas
agrícolas sustentáveis junto de todos os agricultores, é necessário criar medidas de dis-
criminação positiva dos agricultores familiares e promover a sua adesão a associações,
cooperativas ou outro tipo de estruturas onde o apoio técnico esteja disponível de forma
fácil e atempada.

Referências

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resilience and sustainability. FAO, Rome: 200p.
Creswell JW (2014). A concise introduction to mixed methods research. Sage Pub, Thousand Oaks: 152p.
FAO (2014). Family Farmers. Feeding the world, caring for the earth. FAO, Rome: 4p.
Hartman B (2015). The Lean farm: how to minimize waste, increase efficiency, and maximize value
and profits with less work. Chelsea Green Publishing, USA: 256p.
IFOAM (2016). Princípios da agricultura biológica. IFOAM, Bonn: 4p. https://www.ifoam.bio/
sites/default/files/poa_portuguese_web.pdf 193 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica
INE (2011). Recenseamento geral agrícola. INE, Lisboa. http://ra09.ine.pt/xportal/
xmain?xpid=RA2009&xpgid=ine_ra_publicacoes
Kuiper J (2000). A checklist approach to evaluate the contribution of organic farms to landscape
quality. Agriculture, Ecosystems and Environment 77: 143–156.
Lowder SK, Skoet J, Singh S (2014). What do we really know about the number and distribution
of farms and family farms worldwide? Background paper for The State of Food and Agriculture
2014. ESA Working Paper No. 14-02. Rome, FAO: 1-18.
Mancini S, Fernandes EN, Athie AA (2016). Agroecologia enxuta. 1º Simpósio Luso-Brasileiro sobre
Modelos e Práticas de Sustentabilidade, FCT/UNL, Lisboa, Portugal, 11-12 de julho.
Mansuri G, Rao V (2013). Localizing Development: Does Participation Work? World Bank,
Washington, DC: 308p.

Iberografias_37.indb 193 25-02-2020 11:50:05


Quivy LV, Campenhaudt R (2008). Manual de Investigação em Ciências Sociais. Gradiva,
Lisboa: 276p.
von Dach SW, Romeo R, Vita A, Wurzinger M, Kohler T (Eds.) (2013). Mountain farming is
family farming: a contribution from mountain areas to the International Year of Family Farming
2014. FAO, Rome: 100p.
World Bank (2011). Gender dimensions of community-driven development operations: a toolkit for
practitioners. World Bank, Washington, DC: 32p.
194 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Iberografias_37.indb 194 25-02-2020 11:50:05


Caracterização da agricultura familiar na
região de entre Douro e Minho

Luisa Silva
Faculdade de Ciências da Universidade do Porto

Ana Aguiar
GreenUP & DGAOT, Faculdade de Ciências da Universidade do Porto

O conceito de agricultura familiar não é universal. De facto, as bases para a sua


definição consideram fatores que variam desde a dimensão da área explorada, origem
da principal fonte do rendimento, posse dos meios de produção e/ou proveniência da
mão-de obra utilizada, sendo o único denominador comum a gestão do negócio ser
estritamente familiar.
Neste trabalho, analisaram-se os resultados de 85 inquéritos implementados em 5 conce-
lhos da zona Entre Douro e Minho (EDM) no âmbito do projeto “Pontes entre agricultura
familiar e agricultura biológica”.
O primeiro propósito foi compreender se a agricultura praticada nestas explorações
correspondia ao conceito de agricultura familiar, publicado no Decreto-Lei nº 64/2018.
A expressão agricultura familiar (AF) entrou no léxico comum nas últimas duas ou três
décadas e ganhou notoriedade em 2014 (Ano Mundial da Agricultura Familiar), ainda que
se refira a um tipo de agricultura que sempre existiu.
195 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Em 7 de agosto de 2018, foi publicado, em Portugal, o Decreto-Lei nº 64/2018 –


Estatuto da AF. Segundo o mesmo, em Portugal classificam-se como AF cerca de 242 mil
explorações agrícolas, que representam 94% do total das explorações, 54 % da Superfície
Agrícola Utilizada (SAU) e 80 % do trabalho total agrícola.
O agricultor abrangido por este estatuto terá que ter mais de 18 anos, ter um rendimento
inferior ao quarto escalão do IRS, não ter mão de obra assalariada superior à familiar, ser
detentor de uma exploração agrícola (proprietário, rendeiro ou usuário) e não podendo
receber mais de 5.000€ anuais de ajudas comunitárias, prevendo-se que possa abranger
cerca de 100 mil pessoas e quase 40% dos agricultores portugueses (Costa, 2018).

Iberografias_37.indb 195 25-02-2020 11:50:05


Pela análise dos questionários aplicados, verificou-se o predomínio de agricultores do
sexo masculino (73%) e observou-se que a maioria dos inquiridos (53%) estava na faixa
etária entre os 45 e os 65 anos. Por outro lado, apenas 2% dos 85 agricultores tinham
idade inferior a 35 anos e a faixa etária acima dos 65 anos constituía 34 % da amostra,
valor que é menor que no RGA de 2009. Quanto ao agregado familiar, na maioria dos
casos (52%), era composto até 2 pessoas.
Também se apurou que 80% dos inquiridos eram agricultores a tempo inteiro e 68%
estavam coletados como agricultor. Todos os agricultores inquiridos dedicavam uma parte
importante do seu tempo à exploração, nem que fosse em tarefas de gestão, embora pu-
dessem não ter atividade aberta nas finanças. No entanto, apenas 21% dos produtores
agrícolas declararam trabalhar a tempo inteiro.
A escolaridade predominante era a primária, 56%, sendo que entre os agricultores
com menos de 35 anos não existia analfabetismo. Por outro lado, era muito pouco expres-
sivo o número de indivíduos com formação superior, mas mais de 70% tinham algum tipo
de formação profissional agrícola. No RGA de 2009, mais de 1/3 dos produtores agrícolas
com menos de 35 anos completaram o ensino secundário ou superior. Em contrapartida,
o analfabetismo nos produtores com mais de 65 anos era uma realidade ainda muito pre-
sente. O perfil sociodemográfico dos inquiridos estava, na generalidade, concordante com
os dados do último RGA para a Região de EDM.
Dos 85 agricultores entrevistados, cerca de 74% tinham explorações próprias, em que
a totalidade da área agrícola que exploravam resultou de uma compra, herança ou das duas
situações. Também se constatou que 14% dos inquiridos adquiriram a titularidade da explo-
ração através de arrendamento que podia derivar de um contrato verbal ou escrito (contrato
de comodato, cedência, arrendamento ou outro) e o seu pagamento podia ser realizado em
dinheiro ou espécie, mas esta diferenciação não foi quantificada. Os restantes 12% corres-
pondem a casos em que a totalidade da exploração agrícola não era própria ou arrendada.
Verificou-se que a área média das explorações se situa entre 1 a 5 ha e que se concen-
trava nos concelhos de Penafiel (44% das explorações). Os concelhos onde prevaleciam
196 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

as parcelas com maior dimensão foram Lousada e Penafiel (50% das explorações, cada).
Por sua vez, as explorações de menos dimensão estavam concentradas em Penafiel (58%
das explorações).
Em relação à mão de obra, observou-se que, em 51% das explorações, predominava a
componente familiar, com 1 a 2 pessoas a trabalhar a tempo inteiro, para além do próprio
agricultor e que, em 51% das explorações, a mão de obra familiar a tempo parcial não
estava presente. O recurso a mão de obra contratada a tempo inteiro não existia em 93%
das explorações e em 65% das mesmas não se recorria a mão de obra contratada a tempo
parcial (mão de obra eventual). Verificou-se que a distribuição do número de elementos

Iberografias_37.indb 196 25-02-2020 11:50:05


contratados a tempo parcial variava com a área da exploração agrícola e essa variação só era
significativa entre as áreas inferiores a 1 ha e de 2 a 5 ha.
Procurou-se também apurar se a mão de obra era influenciada pelo tipo de cultura,
verificando-se diferenças significativas quando a exploração produzia culturas hortícolas
e fruteiras/vinha, empregando mão de obra contratada a tempo parcial. Comparando os
dois tipos de mão de obra da amostra com o último RGA, a mão de obra agrícola não
familiar, onde se incluem os trabalhadores permanentes e eventuais contratados, na região
EDM, era mais representativa na amostra (21%) que no RGA (11%).
Analisando o rendimento que resulta diretamente da atividade agrícola exercida,
constatou-se que, dos 85 agricultores que responderam ao inquérito, 55% responderam
que o rendimento proveniente da agricultura representava menos de 25% do rendimento
da família. Por outro lado, também se verificou que 21% dos inquiridos diziam que a
atividade agrícola contribuía para o seu rendimento global em mais de 75%.
Tendo em conta os resultados do RGA de 2009 para a região EDM, estes revelaram que
apenas 5% declararam obter os seus rendimentos exclusivamente da atividade da explora-
ção agrícola. Por oposição, 83% declararam que o rendimento do seu agregado provinha
maioritariamente de origem exterior à exploração (INE, 2011).
Quanto às principais culturas existentes na exploração agrícola, verificou-se que 48%
dos agricultores tinham culturas permanentes (vinha ou fruteiras), 57 % tinham forragens
e cereais (milho e azevém), 77 % hortícolas e 1% tinha floresta.
Constatou-se que existia uma correlação positiva entre a área de exploração e a exis-
tência de trator. Verificou-se que, dos 85 agricultores, 59 % aplicavam os pesticidas e não
efetuavam os registos, 35 % aplicavam os pesticidas e faziam os registos e 6 % não aplicavam
pesticidas e não faziam registos.
O estudo possibilitou verificar que, na região EDM, predominaram as explorações entre
1 e 5 ha, em que a maior parte da mão de obra era familiar (maior que 50 % na mão de
obra total). Constatou-se que a mão de obra contratada a tempo parcial estava diretamente
relacionada com explorações até 1 ha e de 2 a 5 ha, relação essa também sensível ao tipo de
197 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

cultura (presença de hortícolas culturas permanentes). A presença de culturas permanentes


influenciava de forma inversa a proporção da mão de obra familiar na exploração.
Aferiu-se que a maioria dos agricultores tinha trator e que a presença deste estava
diretamente relacionada com a presença de cultura permanente e com a área explorada.
A maioria aplicava pesticidas e não fazia registos.
Apurou-se que a maior parte dos agricultores da zona EDM cumpre o critério de definição
de AF em Portugal, sendo a sua importância elevada no contexto regional.

Iberografias_37.indb 197 25-02-2020 11:50:06


Referências

Decreto-Lei nº 64/2018, de 07 de agosto de 2018, publicado no Diário da República nº 151/2018


– Estatuto da agricultura familiar.
Costa R (2018). Estatuto da Pequena Agricultura Familiar já foi aprovado. Vida Rural. https://
www.vidarural.pt/producao/estatuto-da-pequena-agricultura-familiar-ja-foi-aprovado/
INE (2011). Recenseamento Agrícola 2009 - Análise dos Prinicipais Resultados – Parte II. Instituto Nacional de
Estatistica, Lisboa. http://ra09.ine.pt/xportal/xmain?xpid=RA2009&xpgid=ine_ra_publicacoes
198 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Iberografias_37.indb 198 25-02-2020 11:50:06


A metodologia Lean como ferramenta de
avaliação da eficiência de explorações de
agricultura familiar

Luisa Silva
Faculdade de Ciências da Universidade do Porto

Ana Aguiar
GreenUP & DGAOT, Faculdade de Ciências da Universidade do Porto

Cristina Parente
Instituto de Sociologia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Cristina Amaro da Costa


Politécnico de Viseu, CERNAS, CI&DETS

Introdução

A agricultura familiar cumpre uma importante função na segurança alimentar mas


é, geralmente, considerada não competitiva. A metodologia “Lean” (Hartman, 2015;
Mancini et al., 2016), baseada na otimização do fluxo de produção e minimização do
desperdício, através do ajustamento temporal das operações às necessidades de produção
e redução do esforço de trabalho, foi a metodologia utilizada junto de dois agricultores 199 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

selecionados, com o objetivo de conhecer avaliar as práticas, atitudes e comportamentos


sinalizados no grupo focal e sua eficiência, de modo a identificar pontos de melhoria das
práticas de agricultura biológica adotadas por agricultores familiares.
Esta metodologia começou a despertar o interesse no setor agrícola e, apesar de se
conhecer apenas o relato detalhado de parcas experiências a nível mundial, torna-se impor-
tante conhecer a sua aplicabilidade nas explorações onde predomina a agricultura familiar.
Neste sentido, foram acompanhadas duas explorações em alface, na zona da Póvoa de
Varzim, uma ao ar livre e outra em estufa, de forma a averiguar se, neste tipo de explorações,
é aplicável esta metodologia com eficácia.

Iberografias_37.indb 199 25-02-2020 11:50:06


A metodologia Lean

As primeiras metodologias de organização de processos produtivos foram formalizadas


por Taylor e pelo casal Gilbreth, no século xix, com o objetivo de melhorar a divisão do
trabalho a partir do estudo dos movimentos dos trabalhadores (Ferreira et al., 2018). Já no
início do século xx, Henry Ford introduziu o método de produção em fluxo contínuo, baseado
em linhas de montagem com postos de trabalho dedicados e normalizados, generalizando-
-se a produção em massa, em substituição da produção artesanal de bens.
Nos anos 50 do século passado, Ohno procurou criar vantagens competitivas através
da otimização e melhoria dos processos de trabalho, desenvolvendo com muito sucesso a
metodologia Sistema de Produção Toyota (TPS). Para o efeito, utilizou várias técnicas, entre
elas o método Kanban que permitia um controlo detalhado da produção, com informações
sobre quando, quanto e o que produzir (Ferreira et al., 2018).
Em 1990, Womack, do Massachusetts Institute of Tecnology (MIT), tornou a filo-
sofia Lean mundialmente conhecida, após a publicação do seu livro “A máquina que
mudou o mundo”. Nesse livro, detalha-se um estudo baseado na indústria automo-
bilística japonesa, principalmente na Toyota, em que o foco reside na redução dos
tempos improdutivos e dos desperdícios em geral, classificados em sete tipos: produção
em excesso, inventário, esperas, processamento excessivo, movimentação, transporte e
produção de peças defeituosas (Womack et al., 1990). Este sistema procura alcançar,
em simultâneo, as vantagens do sistema artesanal e as do sistema em massa, evitando
o custo elevado do primeiro e a rigidez do segundo, com utilização de menos esforço
humano, redução do espaço fabril e do investimento em ferramentas, baixando desta
forma os custos associados à produção.
Este sistema evoluiu para uma filosofia de pensamento, o Lean Thinking, que apre-
senta como princípios base: (1) especificar o valor ao nível do cliente; (2) identificar
o fluxo do valor, desde a conceção até à sua entrega, aplicando-se ferramentas para o
mapeamento da cadeia de valor; (3) criar fluxo, através da interligação e sincronização
200 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

das etapas do processo que devem ocorrer à medida que são necessárias; (4) puxar o
fluxo, ou seja, a encomenda do cliente (interno ou externo) é o gatilho para iniciar o
fluxo de valor e da produção - produto certo, no momento certo e na quantidade certa;
(5) perfeição, através da promoção de uma cultura de melhoria contínua, em que cada
pessoa envolvida no fluxo de valor deve identificar e propor melhorias no processo
pelo qual é responsável, de modo a reduzir ou eliminar completamente o desperdício
(Womack e Jones, 2003).
Existem várias ferramentas de implementação do Lean tais como o Mapeamento do
Fluxo de Valor (VSM), que consiste na identificação de todas as atividades que ocorrem

Iberografias_37.indb 200 25-02-2020 11:50:06


desde que o pedido é efetuado pelo cliente até à sua entrega; Kanban, baseada na limita-
ção do material em circulação, identificando-se visualmente as necessidades de reposição
e eliminando a burocracia conseguindo-se um controlo detalhado da produção com in-
formações sobre quando, quanto e o que produzir; Kaizen, que tem como pressuposto
um processo de melhoria contínua, executada por todos, tendo como foco central a eli-
minação dos desperdícios; 5S’s, que respeito a um conjunto de práticas que procuram a
redução do desperdício e a melhoria do desempenho dos processos e das pessoas, através
de uma abordagem simples, no sentido de atingir as condições ótimas do local de traba-
lho (ordenados, organizados e arrumados): sort - classificar, set in order – organizar, shine
- limpar, standardize – normalizar, sustain – disciplinar (Rother e Shook, 1999).
Um sexto S é cada vez mais referido pelas empresas, para se juntar à lista anterior: safety
– segurança, que deverá estar presente em qualquer atividade de uma empresa e que está
associada às práticas referidas anteriormente (Figura 1).

Figura 1. Os 6S’s (The Box Maker, 2016) 201 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

A metodologia Lean tem sido utilizada em vários setores de atividade económica,


onde se procura, através dos seus princípios, reduzir o desperdício, melhorar a eficiência e
aumentar a produtividade, mas tendo como objetivo principal identificar qual o valor para
o cliente. No entanto, no setor agrícola, só existem poucas experiências da sua utilização.
Hartman (2015) aplicou esta metodologia numa exploração em Indiana, Estados Unidos
da América, com cerca de 4 ha, onde produzia hortícolas, com o objetivo de reduzir o tra-
balho realizado pelos trabalhadores cujo esforço nem sempre acrescentava qualquer valor ao
produto final, procurando aumentar a eficiência, maximizar o lucro com menos trabalho e
usufruir de mais tempo livre.

Iberografias_37.indb 201 25-02-2020 11:50:06


Este trabalho permitiu identificar dois tipos principais de desperdícios, de acordo com
a metodologia Lean: (1) tarefas que são necessárias, mas que não acrescentam valor real;
(2) desperdício puro. Os problemas de tipo 1 são de difícil resolução: por exemplo, arran-
car infestantes (mondar) é uma atividade que não acrescenta valor, mas é necessária e não
pode ser entendida como algo que não se concretizou bem anteriormente (ou seja, estas
aparecem, mas não são resultado de uma má execução de uma tarefa).
A metodologia Lean foi também aplicada por Mancini (2016), junto de um pequeno
produtor familiar cuja principal atividade era a produção de alface, principal cliente era
um restaurante local. Foi possível, assim, perceber o valor atribuído pelo cliente e, através
de visita à exploração, elaborar o VSM deste produto, identificando as atividades que
agregavam valor, as que não agregavam valor, mas eram necessárias e as que não agregavam
valor. Após a análise, e partindo do princípio de que o produtor só deve produzir o que é
solicitado pelo seu cliente, foi elaborado novo VSM, onde se eliminaram os desperdícios
puros (atividades que não acrescentavam valor) e se sugeriram algumas alterações e melhorias
ao processo, de forma a torná-lo mais simples e contínuo (Mancini et al., 2016).
Estes trabalhos, permitem prever grande interesse da metodologia Lean na atividade
agrícola, podendo servir para trazer vantagens competitivas às pequenas explorações agrícolas,
sendo que terá sempre que ter em consideração um outro conjunto de funções da ativi-
dade agrícola, associadas ao ambiente, bem estar animal, qualidade de vida do agricultor,
criação de emprego, que por vezes entram em contradição com a mera espectativa de lucro
(Hartman, 2015).

Metodologia – Elaboração do itinerário técnico da alface em estufa

A cultura da alface (Lactuca sativa L.) foi selecionada para este trabalho por apresentar
uma forte representatividade da Póvoa de Varzim, na região entre Douro e Minho, como
cultura em estufa no inverno e ao ar livre na primavera-verão.
202 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Foram selecionados dois agricultores, titulares de explorações agrícolas, na zona de


Estela, Póvoa de Varzim, um com produção em estufa e outro com produção ao ar livre
para uma melhor caraterização destes dois tipos de exploração. Ambos são agricultores
familiares, provindo o rendimento do agregado familiar da atividade agrícola e recorrendo
maioritariamente a mão de obra familiar.
Com base na bibliografia sobre a metodologia Lean, foi preparado um guião de ob-
servação de modo a recolher o maior número de dados para a caraterização de cada uma
das explorações de forma objetiva, do(s) seu(s) cliente(s) e para suportar o mapeamento da
cadeia de valor desta cultura.

Iberografias_37.indb 202 25-02-2020 11:50:06


Relativamente ao(s) cliente(s) procurou-se identificar o mais representativo, tipo de
cliente (cooperativa, associação, empresa particular, mercado abastecedor, mercado local,
etc.), tipo de contrato, produto(s) vendidos(s), frequência, distância, programação das
entregas, negociação do preço, quantidades, prazos, penalizações para incumprimentos
(do lado do cliente), pessoa responsável e o tempo consumido com este processo.
Quanto à caraterização da exploração procurou-se discriminar a lista de parcelas da
exploração, com indicação do número, área, existência de cobertura ou não na parcela,
cultura atual e precedentes (até as três anteriores para perceber a realização ou não de ro-
tações culturais), número de trabalhadores. Para além disso, recolheu-se informação sobre
preparação do terreno (desinfeção do solo, solarização, fertilização, mobilizações, cobertura
com plástico e tempos de cada operação), data de plantação, plantação (com ou sem vi-
veiro próprio, como vêm as plantas, tempo de plantação), estado de desenvolvimento da
alface (número de folhas), rega (origem da rega, tipo de rega, frequência da rega e tempos
de cada operação), proteção da cultura (quem faz a estimativa do risco, como se faz, quem
decide tratar, quantos tratamentos se fazem e o tempo associado a estas operações), colheita
(quantas vezes, quanto tempo), embalamento (quanto tempo, outras operações ligadas ao
embalamento e formato da embalagem), localização das máquinas e ferramentas (distância
a que estavam as máquinas, ferramentas, EPI’S1 e depósitos do lixo do local da plantação).

Metodologia – Observação (LEAN)

O agricultor selecionado para a implementação da metodologia Lean na cultura de


alface em estufa (exploração agrícola com 1,5 ha e mão de obra familiar – o agricultor e
cônjuge) detinha uma estufa de 600 m2, com alface de inverno. Cerca de 80% da alface era
vendida para um só cliente (estação hortícola), localizada a cerca de 1 km da exploração e
que recebia toda a produção à consignação. O agricultor só tinha conhecimento do preço
da alface após uma semana.
203 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

A comunicação entre o agricultor e o cliente iniciava-se antes da plantação, com a


definição da data de plantação/colheita e tipo de alface entre ambos, responsabilizando-se
o cliente pelo escoamento das alfaces.
A preparação do terreno consistiu em escarificação, fresagem e fertilização de fundo
com estrume orgânico e cobertura do solo com plástico preto, tendo sido plantadas 7.000
plantas de alface, em mote, numa subparcela nos 600 m2, em estufa. A plantação ocorreu
a 13.11.2017 e a colheita a 24.01.2018.

1
Equipamentos de Proteção Individual

Iberografias_37.indb 203 25-02-2020 11:50:06


O produtor da cultura ao ar livre detinha uma exploração agrícola com 2,35 ha e
a mão de obra existente provém do agricultor, da mãe (como sua funcionária a tempo
inteiro) e do avô (reformado). A observação da cultura de verão incidiu sobre parte de
uma parcela, com a área total de 5.900 m2, onde foram cultivados 1.500 m2 de alface, ao
ar livre. Toda a alface, que representava 80% do rendimento da exploração, era vendida
para um só cliente, uma empresa de comercialização de produtos hortícolas, de quem o
produtor era acionista, localizada a cerca de 3 km de distância. O agricultor era quem
selecionava as variedades de alface que ia produzir e em que altura, em função das carac-
terísticas do solo e do clima, informando o cliente do início da plantação e da previsão
de colheita.
O solo foi preparado por fresagem, a que se seguiu a adubação de fundo e a cobertura
dos talhões com plástico preto. A plantação foi realizada faseadamente, por talhões, de
cerca de 200 m2 cada, para que a colheita fosse também faseada. No dia 21.06.2018 foi
plantado um talhão, com 1850 plantas de alface, em mote e iniciada a colheita do mesmo
no dia 24.07.2018.

Resultados e discussão

Para a realização do VSM, de cada uma das explorações, assinalaram-se as diversas


operações efetuadas nas diferentes fases e o tempo de execução de cada uma delas, tendo
a mão de obra utilizada sido contabilizada em minutos. Os dados apresentados referem-se
ao primeiro dia de colheita.
Com os dados obtidos construiu-se o fluxograma da colheita da alface em estufa, no
sentido de se identificarem as atividades que agregavam valor, as que não agregavam mas
eram necessárias e as que não agregavam valor (Figura 2).
204 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Figura 2. Fluxograma da colheita de alface em estufa: (a) atividades que não agregam valor mas são necessárias, (b)
atividades que agregam valor. As oportunidades de melhoria estão assinaladas com estrelas.

Iberografias_37.indb 204 25-02-2020 11:50:06


As oportunidades de melhoria identificadas e as possíveis correções na exploração de
alface em estufa apresentam-se no quadro 1.

Quadro 1. Oportunidades de melhoria identificadas


e possíveis correções, na exploração de alface em estufa

Oportunidade de melhoria Motivo Melhoria


excesso de folhas rejeitadas temperatura baixa e elevada optar por outra cultura ou
humidade da estufa, obrigando variedades que se adaptem
a mais tratamentos melhor às condições existentes
perda de tempo por excesso – colocação da alface cortada, sistema de lavagem da alface
de movimento na lavagem em caixas de plástico, inicial- sem escorrimento, à medida
mente dispostas na carrinha e que forem constituídos os lotes
depois lavadas fora da estufa dentro da carrinha (poupança
– caixas mais altas são retiradas de água e de movimentos)
para o chão para serem lavadas e
permitir a lavagem das caixas
posicionadas num nível inferior
tempo de espera na entrega em média, de 45 minutos, escolha de outro cliente, mais
da alface no local do cliente dependendo do número de próximo ou opção de negocia-
produtores que chegassem ao ção de horas diferenciadas de
mesmo tempo entrega

Nesta exploração, diversos princípios da metodologia Lean eram aplicados, como


sejam: (a) normalização das caixas usadas na colheita, (b) aproximação da carrinha à estufa
à colheita, reduzindo os movimentos do pessoal; (c) normalização da tarefa de colheita;
(d) relação com o cliente reduzindo a perda de produto; (e) oferta escalonada, a partir de
uma estratégia de plantação distribuída semanalmente o que também distribui o trabalho 205 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

ao longo do tempo; (f ) lavagem superficial (e não profunda) das alfaces, de acordo com o
pedido pelo cliente.
O Lead Time (tempo que um produto ou serviço consome desde o início até ao fim
do seu processamento ou conclusão) da alface em estufa foi de 70 dias e a mão de obra
necessária à realização de todas as operações culturais da plantação de 600 m2 em estufa,
no inverno, foi de 46 horas e 20 m.
De igual modo, elaborou-se um fluxograma da plantação e colheita de alface ao ar
livre, com o objetivo de identificar as atividades que agregam valor, as que não agregam
mas são necessárias e as que não agregam valor (Figura 3).

Iberografias_37.indb 205 25-02-2020 11:50:06


Figura 3. Fluxograma da plantação e da colheita da produção de alface ao ar livre: (a) atividades que não agregam valor
mas são necessárias; (b) atividades que agregam valor. As oportunidades de melhoria estão assinaladas com estrelas.

As oportunidades de melhoria identificadas e as possíveis correções na exploração de


alface ao ar livre apresentam-se no quadro 2.

Quadro 2. Oportunidades de melhoria identificadas e possíveis correções,


na exploração de alface ao ar livre
Oportunidade de melhoria Motivo Melhoria
excesso de mão de obra à plantação uma pessoa a distribuir as plantas e distribuir previamente todas as
a recolher as caixas e duas a plan- plantas pela estufa e só recolher as
tar, com a pessoa encarregue de caixas no final, podendo ser redu-
distribuir o material a ficar muito zida uma pessoa ou o tempo de
tempo à espera que as outras com- plantação
pletassem a tarefa de plantação
substituir a cobertura das plantas – necessidade de duas pessoas utilizar outra técnica de proteção
com rede à plantação para colocar e prender a rede da cultura com maior facilidade de
206 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

– necessidade de retirar a rede aplicação e abertura


para efetuar tratamentos
excesso de folhas rejeitadas susceptibilidade da variedade optar por outra cultura ou varie-
dades que se adaptem melhor às
condições existentes
excesso de mão de obra na coloca- três pessoas a realizar a tarefa (des- a operação pode ser realizada por
ção na carrinha e lavagem da alface locar, lavar e colocar em local defi- duas pessoas
nitivo as alfaces para o transporte);
com uma das pessoas temporaria-
mente parada durante o processo
de lavagem

Iberografias_37.indb 206 25-02-2020 11:50:06


Também nesta exploração, alguns dos princípios da metodologia Lean eram aplicados,
como sejam: (a) normalização das caixas usadas na colheita, (b) aproximação da carrinha
à estufa à colheita, reduzindo os movimentos do pessoal; (c) normalização da tarefa de
plantação e colheita; (d) relação com o cliente reduzindo a perda de produto; (e) oferta
escalonada, a partir de uma estratégia de plantação distribuída semanalmente o que tam-
bém distribui o trabalho ao longo do tempo; (f ) lavagem superficial (e não profunda) das
alfaces, de acordo com o pedido pelo cliente.
O Lead Time da produção de alface ao ar livre no verão foi de 33 dias e a mão de obra
necessária à realização de todas as operações culturais da plantação e colheita de 200 m2 ao
ar livre, no verão, foi de 18 horas e 57 m.

Considerações finais

Relativamente à metodologia Lean, com este estudo pretendeu-se alcançar um melhor


entendimento sobre o processo produtivo da cultura da alface, o que permitirá a cada
produtor elaborar um novo fluxograma em que as atividades que não agregam valor mas
são necessárias deverão reduzir-se ou passar a agregar valor e a ser necessárias, de modo a
tornar o processo mais fluído (contínuo) e eficiente. Esta metodologia permitiu concluir
que os agricultores familiares utilizam de forma proficiente os meios de que dispõem à
semelhança de outras explorações de maior dimensão e competitividade, havendo alguns,
mas poucos aspetos que podem melhorar na gestão da sua exploração.

Referências

Ferreira LA, Santos AC, Dias JO, Pessanha LP (2018), Engenharia de métodos: uma revisão de litera-
tura sobre o estudo de tempos e movimentos. REFAS, Revista FATEC Zona Sul, Edição especial,
4(3), 31-46.
Hartman B (2015), The Lean farm: how to minimize waste, increase efficiency, and maximize value
207 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

and profits with less work. 1st ed, Green Publishing, Chelsea, pp. 251.
Mancini S, Fernandes E, Athie A (2016). Agroecologia enxuta. 1º Simpósio Luso-Brasileiro sobre Modelos e
Práticas de Sustentabilidade. Faculdade de Ciências e Tecnologia Universidade Nova de Lisboa, pp. 13.
Rother M, Shook J (1999). Learning to see: value stream mapping to add value and eliminate muda.
1st ed, Lean Enterprise Institute, pp. 102.
The Box Maker (2016). Our Lean Vision. http://www.boxmaker.com/lean-blog/our-lean-vision/
Womack JP, Daniel TJ (2003). Lean Thinking. 1st ed, Simon & Schuster, Inc., New York, pp. 379.
Womack JP, Jones DT, Roos D (1990), The machine that changed the world: the story of lean produc-
tion - Toyota’s secret weapon in the global car wars that is revolutionizing world industry. 1st ed, Free
Press, New York, pp. 352.

Iberografias_37.indb 207 25-02-2020 11:50:06


Iberografias_37.indb 208 25-02-2020 11:50:06
“A azeitona e a fortuna: às vezes, muita;
às vezes, nenhuma”: a saúde da mulher
agricultora

Cláudia Chaves
Politécnico de Viseu, CI&DETS
Doutoranda Ciências de Enfermagem, ICBAS, SIGMA Phi Xi Chapter

Cristina Amaro da Costa


Politécnico de Viseu, CERNAS, CI&DETS

Andreia Martins, Maria C. Silva


Politécnico de Viseu, UniCiSE

Fábio Gomes
Estrutura Residencial para Idosos da Casa do Povo de Leomil, Moimenta da Beira

Emília Coutinho
Politécnico de Viseu, UICISA:E, SIGMA Phi Xi Chapter, CI&DETS

Paula Nelas
Politécnico de Viseu, UICISA:E, CI&DETS

As mulheres respondem por quase metade do trabalho agrícola do mundo (SafeWorK,


2000; Mahendran, 2019). O papel das mulheres na produção agrícola tem sido tradicional-
mente subestimado e as desigualdades de género são pronunciadas neste setor (Santos, 2016).
Hoje, mais da metade de todas as mulheres contribui para a produção de alimentos, tanto
209 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

para a produção doméstica como para a venda (SafeWorK, 2000; Trauger, 2004; Doss, 2014;
Mahendran, 2019). Muitas das mulheres trabalhadoras na agricultura estão na agricultura
de subsistência, por conta própria ou como membros da família não remunerados (Trauger,
2004; Ferreira, 2016), estando a baixa escolaridade associada a trabalhos manuais ou à agri-
cultura familiar (Machado, 2019). As mulheres continuam a assumir, além de um trabalho re-
munerado, a principal responsabilidade por tarefas domésticas como a limpeza da habitação,
a aquisição e confeção dos alimentos, o cuidar das crianças, dos doentes e idosos (SafeWorK,
2000; WHO, 2010; Perista et al., 2016). Assumem não só o papel de produtoras como o
de comerciantes dos alimentos nos mercados locais (Trauger, 2004; Ferreira, 2016).

Iberografias_37.indb 209 25-02-2020 11:50:06


A agricultura familiar envolve, muitas vezes, toda a família do trabalhador (incluindo
crianças e idosos). Em algumas situações as mulheres levam com elas os filhos para as
explorações agrícolas, expondo, assim, tanto as crianças como elas próprias aos perigos
associados à saúde ocupacional na agricultura (Minette et al., 2019). O cuidado das mulhe-
res despendido à família, de forma geral, faz com que as suas próprias necessidades sejam
colocadas em segundo plano (Santos, 2018).
As mulheres agricultoras, como muitos outros trabalhadores rurais, têm uma alta in-
cidência de ferimentos e doenças (Mahendran, 2019) e são insuficientemente acompa-
nhadas pelos serviços de saúde. Também, a maioria dos agricultores não tem formação
ou acesso a informação sobre os riscos envolvidos no seu trabalho, desde a prevenção até
como atuar em caso de acidente (WHO, 2010). Na mulher, a exposição às más condições
de trabalho tem repercussões na gravidez podendo agravar patologias já existentes como a
asma ou problemas dermatológicos. O risco de abortos espontâneos e partos prematuros
tem sido diretamente relacionado ao trabalho em microclimas próprios de estufas e exposi-
ção a pesticidas (SafeWorK, 2000). Trabalhos pesados durante o cultivo e a colheita também
são frequentes. Ainda, alguns estudos têm mostrado que as tarefas agrícolas tradicionais
implicam uma carga física significativa, com longas horas em posição ortostática, movimento
de cargas e trabalhar sozinho (SafeWorK, 2000; Almonacid et al., 2018).
No âmbito do projeto “Pontes entre a agricultura familiar e a agricultura biológica”, a
partir de uma amostra de 150 agricultores, da zona norte e centro de Portugal, foi possível
realizar uma análise dos riscos para a saúde, distinguindo questões associadas ao género.
Os agricultores inquiridos apresentam uma idade mínima de 19 anos e máxima de 88 anos
(para a totalidade da amostra), com uma média de idade de 53,3 anos (±13,9 anos). O grupo
de participantes do sexo feminino apresenta uma representatividade de 41,7%, com uma idade
mínima de 19 e uma máxima de 77 anos, enquanto no grupo do sexo masculino, a representa-
tividade é de 51,3% e a idade mínima e máxima oscilam ente os 23 e 88 anos respetivamente.
No que se refere à idade em função do género, os dados obtidos demonstram que
39,3% dos participantes têm idades ≤ 50 anos, dos quais 39,0% são do género masculino e
210 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

39,7% do género feminino, enquanto 32,7% têm idade compreendida entre os 51-60 anos,
sendo esta a faixa etária onde se regista o valor percentual de 29,9% de homens e 35,6%
de mulheres. Constata-se ainda que 28,0% dos participantes possuem idade ≥ 61 anos,
dos quais 31,2% são homens e 24,7% mulheres.
Quanto à existência de uma relação com companheiro, verifica-se um claro predomí-
nio de participantes com companheira/o (84,7%), sendo este o estado civil de 92,2% dos
homens e de 76,7% das mulheres. A diferença encontrada entre o género e o estado civil
dos participantes é bastante significativa (X²=6,931; p=0,008), com diferença nas mulheres
que não têm companheiro e nos homens que têm companheira.

Iberografias_37.indb 210 25-02-2020 11:50:06


Grande parte da amostra vive na região centro do país, fazendo parte deste grupo
89,6% dos agricultores do sexo masculino e 78,1% dos agricultores do sexo feminino.
Verifica-se que 10,4% de agricultores do sexo masculino e 21,9% do sexo feminino vivem
na região norte. Não existem diferenças estatísticas significativas entre os grupos.
Procurou-se saber qual o grau de escolaridade mais elevado que os agricultores com-
pletaram, e apurou-se que um elevado número da amostra (73,3%) completou o 9º ano
de escolaridade, correspondendo a 77,9% dos homens e a 68,5% das mulheres. Verifica-se
relevância estatística (X²=8,927; p=0,012), entre o grupo dos homens que completaram o
ensino superior e as mulheres que completaram o 9º ano de escolaridade.
Relativamente à situação profissional, verificou-se que 62,0% estão no ativo, dos quais
68,8% são homens e 54,8% são mulheres. Dos 38,0% que estão inativos 31,2% são homens
e 45,2% são mulheres.
Quanto à formação profissional em agricultura em função do género, pode referir-se
que a maioria (80,0%), não tem formação profissional agrícola, correspondendo a 74,0%
dos homens e a 86,3% das mulheres.
Quanto ao regime de exclusividade dedicado à agricultura em função do género, apura-
-se que a grande percentagem não é agricultor a tempo integral (74,7%), fazendo parte
deste grupo 67,5% dos homens e 82,2% das mulheres, existindo relevância estatística
(X²=4,257; p=0,039) entre o grupo de mulheres que não são agricultoras a tempo integral
e o grupo de homens que são agricultores a tempo integral. Independentemente do regi-
me de não exclusividade à agricultura quisemos compreender se a agricultura seria uma
atividade principal ou secundária no quotidiano dos participantes, em função do género.
Verificámos que 54,7% dos participantes não tinha como principal profissão a agricultura,
correspondendo a 62,3% dos homens e 46,6% das mulheres. Dos 45,3% que foram sempre
agricultores, 37,7% são homens e 53,4% são mulheres.
Da análise dos resultados relativos à atividade fiscal como agricultor, verifica-se que a
maioria dos participantes (74,7%) não tem atividade fiscal, sendo que 71,4% são homens
e 78,1% mulheres, no entanto, 25,3% dos agricultores têm atividade fiscal, sendo que
211 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

28,6% são homens e 21,9% são mulheres.


Quanto ao cultivo de hortas e estufas, verificou-se que ninguém cultiva apenas estufas
e que a maioria (78,0%) cultiva apenas hortas, sendo a percentagem de agricultores do
sexo masculino (70,1%) inferior às agricultoras (86,3%).
Constata-se que 61,3% dos agricultores têm máquinas agrícolas, dos quais 62,3% são
agricultores do sexo masculino e 60,3% do sexo feminino.
Grande parte dos agricultores (78,0%) usa pesticidas na atividade agrícola, dos quais
84,4% são do sexo masculino e 71,2% do sexo feminino. Procurou-se também saber se os
agricultores usam equipamento de proteção individual verificando-se que menos de dois

Iberografias_37.indb 211 25-02-2020 11:50:07


terços da amostra (63,3%) refere utilizar, fazendo parte deste grupo 71,4% dos agricultores
do sexo masculino e 54,8% do sexo feminino.
Quanto à perceção que os participantes têm em relação à sua saúde, verificaram-se que
40,0% dos agricultores caraterizam a sua saúde como razoável ou má, sendo 28,6% homens
e 52,1% mulheres; e 38,7% dos agricultores relatam que a sua saúde está ótima, correspon-
dendo a 48,1% aos agricultores do sexo masculino e 28,8% do sexo feminino. Existe rele-
vância estatística quando comparamos o género em função da perceção da saúde (X²=9,080;
p=0,011), com diferença no grupo de homens que caraterizam a sua saúde como muito boa,
ótima e boa e no grupo de mulheres que classificam a sua saúde como razoável ou má.
Avaliando a situação vacinal dos agricultores nomeadamente no que se refere à vacina
contra tétano, aferiu-se que a maioria (94,0%) tem essa vacina atualizada, correspondendo
a 90,9% dos agricultores do sexo masculino e 97,3% do sexo feminino. A maioria dos
agricultores (75,3%), não faz a vacina da gripe, revelando uma percentagem de 77,9% de
homens e 72,6% de mulheres.
Dos problemas de saúde existentes no agregado familiar, num horizonte temporal su-
perior a três meses, quanto à existência de alergias, observamos que 20,7% têm alergias, dos
quais 15,6% são do sexo masculino e 26,0% do sexo feminino. No referente às doenças
respiratórias, verificamos que 16,0% têm doenças respiratórias, em que 9,1% são do sexo
masculino e 23,3% do sexo feminino. Fazendo referência à presença da doença da diabetes no
agregado familiar, 13,7% têm familiares com diabetes sendo 18,7% são do sexo masculino e
23,4% do sexo feminino. Em relação à existência de doença oncológica, 6,8% têm familiares
com doença oncológica, fazendo parte deste grupo 7,3% de participantes do sexo masculino
e 7,8% do sexo feminino. Regista-se uma percentagem de 13,7% de participantes que têm
familiares com doença psiquiátrica, correspondendo a 8,7% participantes do sexo masculino
e 3,9% do sexo feminino. Da análise dos resultados relativos a doenças da pele, 10,0% de
participantes têm no agregado familiar pessoas com doenças da pele, dos quais 7,8% são
do sexo masculino e 12,3% do sexo feminino. Quanto às doenças do coração, 12,0% têm
no agregado familiar pessoas com doenças do coração, em que 7,8% são homens e 16,4%
212 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

são mulheres. No que respeita à doença oftalmológica 14,7% referiram que na família estas
doenças estão presentes, fazendo parte deste grupo 11,7% participantes do sexo masculino
e 17,8% do sexo feminino. Verificou-se que 10,0% referiu que as doenças dos ouvidos estão
presentes no agregado familiar, com 5,2% participantes do sexo masculino e 15,1% partici-
pantes do sexo feminino. No que se refere à saúde individual dos agricultores, de acordo com
o apurado em relação às doenças osteoarticulares crónicas, 38,7% referem que as doenças os-
teoarticulares são uma realidade, correspondendo a 29,9% de agricultores do sexo masculino
e 47,9% de agricultores do sexo feminino. Relativamente à presença de enxaquecas, 21,3%
dos agricultores afirmam sofrer deste problema de saúde sendo 18,2% do sexo masculino e

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24,7% do sexo feminino. Quanto à entidade nosológica de hipertensão arterial, 42,7% dos
agricultores revelam sofrer desta patologia, com uma representatividade de 37,7% de par-
ticipantes homens e 47,9% de participantes mulheres. Da análise dos resultados relativos à
obesidade 18,0% revelam possuir este problema de saúde, fazendo parte deste grupo 22,1%
de agricultores do sexo masculino e 13,7% do sexo feminino. No que respeita a problemas de
fertilidade, observou-se que 2,7% dos agricultores apresentam esta situação, com 2,6% de ho-
mens e 2,7% de mulheres. Por último, analisando os dados relativos à presença de problemas
digestivos crónicos, 10,0% dos participantes afirmam possuir este problema de saúde, sendo
1,3% do sexo masculino e 19,2% do sexo feminino.
Em súmula, não importa apenas desafiar as práticas da agricultura familiar para evoluírem
no sentido da agricultura biológica, esta inovação tem que ter impacte na saúde dos indi-
víduos e das comunidades. Realçamos que os participantes com idade superior a 61 anos
consideram o seu estado de saúde como razoável ou mau, sendo que são as mulheres que
declaram pior perceção do estado de saúde, comparativamente aos homens.
Um outro aspeto importante a salientar é o facto de esta temática ainda não ter sido
devidamente explorada, nem em Portugal nem no contexto europeu, o que, em termos
de evidência científica, nos dificulta a comparação com outros estudos. No âmbito das
ciências da saúde este é um tema ainda pouco apoiado ou estudado, tendo-se enquadrado
apenas em algumas áreas do estudo, em estudos exploratórios. Face aos resultados encon-
trados, estes dados carecem de confirmação com a realização de outros estudos no âmbito
da saúde com diferenciador por género, e se possível, com amostras mais alargadas.
Apesar das eventuais limitações consideramos que os resultados obtidos nos permitem,
por um lado, adquirir um conhecimento mais concreto sobre a problemática relacionada
com a saúde das agricultoras tendo em conta as suas práticas de risco, que por sua vez, poderá
constituir um contributo valioso ao nível da prevenção primária, já que a sua divulgação po-
derá sustentar uma intervenção pedagógica (de prevenção da doença e promoção da saúde)
focalizada nas agricultoras. Somente uma ação conjunta de todas as estruturas sociais será
capaz de produzir uma melhor qualidade de vida desta população, incrementando a saúde,
213 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

embora não existam dúvidas que o primeiro passo será a consciencialização individual/
/coletiva quanto à adoção de práticas seguras.
A enfermagem comunitária deve contribuir através da sua experiência profissional e
intervenção com o individuo, família e comunidade para uma interação e integração da
atual geração de agricultores com mais saúde e qualidade de vida. O cumprimento dos
deveres em enfermagem comunitária obriga a um conhecimento real dos determinantes
em saúde em todos os grupos da comunidade com uma visão de cooperação entre todos
os profissionais através de processos de influência social, mobilizadores de sinergias entre
instituições comunitárias, com vista à satisfação das necessidades em saúde de todos.

Iberografias_37.indb 213 25-02-2020 11:50:07


Referências

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Doss C (2014). If Women Hold Up Half the Sky, How Much of the World’s Food Do They Produce?. In:
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Iberografias_37.indb 214 25-02-2020 11:50:07


“A foice em seara alheia”: pontes nas
relações entre a saúde e a agricultura

Cláudia Chaves
Politécnico de Viseu, CI&DETS
Doutoranda Ciências de Enfermagem, Instituto Ciências Biomédicas Abel
Salazar, SIGMA Phi Xi Chapter

Cristina Amaro da Costa


Politécnico de Viseu, CERNAS, CI&DETS

Andreia Martins, Maria C. Silva


Politécnico de Viseu, UniCiSE

Fábio Gomes
Estrutura Residencial para Idosos da Casa do Povo de Leomil, Moimenta da Beira

Emília Coutinho
Politécnico de Viseu, UICISA:E, SIGMA Phi Xi Chapter, CI&DETS

Rui Dionísio
Unidade de Saúde Pública, ACES Dão Lafões
Politécnico de Viseu, SIGMA Phi Xi Chapter

Portugal é dos países com maior diversidade geodemográfica e agrícola. Abordar práti-
cas agrícolas numa perspetiva salutogénica remete-nos para o indivíduo e os seus contextos.
Considerar o agricultor como pertencendo a um dos grupos profissionais que maiores
215 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

adversidades enfrentam no âmbito da sua atividade laboral será excessivo? Talvez não!
Revendo estudos anteriores sobre esta atividade profissional, os mesmos permitem averi-
guar a evolução e o impacte na saúde dos agricultores sendo que sobressaem os acidentes
de trabalho mortais (McNamara et al., 2018), ou incapacitantes, como é o caso, das am-
putações (Reed, 2004), as doenças ocupacionais (Santos & Almeida, 2016; McNamara
et al., 2018), como os problemas respiratórios, cancro da pele pela exposição às radiações
ultravioletas (Hérnandez et al., 2008; Bauer et al., 2011; Cezar-Vaz, 2015; Smit-Kroner e
Brumby, 2015). Nas explorações de pequena e média dimensão, o agricultor tem uma inter-
venção constante e esta permanente laboração, em termos de avaliação dos riscos, conduz a

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uma exposição de risco elevado, com as lesões músculo-esqueléticas em maior prevalência
(Baksh et al., 2015). A minimização do risco e a prevenção da sobrecarga física e mental é
condicionada pelo número de trabalhadores no mesmo local, fator de análise obrigatória
quando é necessário promover a utilização de medidas preventivas e de proteção, como por
exemplo das lesões músculo-esqueléticas, através da rotatividade no posto de trabalho.
De acordo com a caracterização social, realizada através do Recenseamento Agrícola
em Portugal observa-se que a população agrícola familiar formada pelo produtor agrícola e
pelos membros do seu agregado doméstico, quer tenham trabalhado ou não na exploração, é
constituída por aproximadamente 793 mil indivíduos, representando cerca de 7% da popu-
lação residente em Portugal (INE, 2009). De notar, ainda, que a população rural envelheceu
consideravelmente de 1999 para 2009, passando a média de idades dos 46 para os 52 anos.
O número de indivíduos com idade igual ou superior a 65 anos, representava em 2009, um
terço da população em causa, mais 9% que em 1999 (INE, 2009). O nível de instrução da
população agrícola familiar pode considerar-se reduzido com consequências na literacia em
saúde, nomeadamente na adoção de práticas protetoras da saúde individual e da família, uma
vez que 40% dos indivíduos apenas frequentaram o 1º ciclo e 22% não possuem qualquer
nível de instrução. No entanto, apesar destes resultados descritos, registaram-se melhorias
significativas nos dez anos em estudo, com uma taxa de analfabetismo a diminuir 7% e a
frequência do ensino secundário e superior a aumentar 3% (INE, 2009). Nos produtores
com menos de 35 anos, praticamente não existe analfabetismo e mais de um terço comple-
taram o ensino secundário ou superior. Pelo contrário, nos produtores com mais de 65 anos,
o analfabetismo é ainda uma realidade muito presente (INE, 2009).
A exploração agrícola é simultaneamente o local de habitação e de trabalho, encontrando-se
a família do agricultor, jovem ou idosa, exposta a riscos relacionados com a atividade agrí-
cola, nomeadamente a exposição a pesticidas (ACT, 2015; Dhananjayan & Ravichandran,
2018), sendo o risco da presença de menores muitas vezes não quantificado (Hartling et
al., 2004; Jurewicz & Hanke, 2006; Arcury et al., 2007).
O papel do enfermeiro de família deveria ser diferenciado atendendo às características
216 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

únicas presentes neste grupo. Num estudo realizado por Gerrard (1998), os agricultores
inquiridos manifestaram que o sistema de prestação de cuidados de saúde era inadequado
e que as suas necessidades de saúde e segurança ocupacionais não estavam asseguradas.
A agricultura apresenta um risco de acidentes mortais seis vezes superior, quando com-
parada com a generalidade das indústrias, sendo que cerca de 100 crianças morrem anual-
mente nos EUA por acidentes em explorações agrícolas. Destaca-se principalmente o uso
de tratores e, secundariamente, situações relacionadas com animais e quedas (Hartling et
al., 2004; Farquhar et al., 2008). São vários os fatores associados a um risco de maior toxi-
cidade, nomeadamente, ausência de Equipamentos de Proteção Individual (EPI), baixo

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nível de escolaridade, desconhecimento da concentração do produto, armazenamento in-
correto, uso de misturas, entre outros. Face a estes fatores, as principais recomendações para
diminuir o risco de toxicidade prendem-se com a organização de formações e realização de
programas de treino, monitorização do consumo (individual e coletivo), vigilância médica,
EPI adequados e disponíveis e diminuição do uso de misturas (Santos & Almeida, 2016).
A evolução tecnológica ao longo dos anos melhorou bastante as condições de trabalho,
mas também veio despoletar novos riscos (SafeWorK, 2000; Santos & Almeida, 2016).
Maioritariamente os equipamentos de trabalho são perigosos e requerem não apenas a
formação para o seu manuseamento, como a aquisição do próprio EPI e o natural cuidado
com a sua manutenção. Se a prática do empréstimo de máquinas a vizinhos, é economi-
camente louvável, em termos de risco, acresce que o desconhecimento dos equipamentos
e o seu pouco uso aumenta exponencialmente o risco de acidentes (ACT, 2015). No
geral, trabalham maior número de horas, o que leva a uma maior fadiga. Muito frequen-
temente trabalham sozinhos, o que poderá contribuir para aumentar o risco de acidentes
(SafeWorK, 2000; ACT, 2015). Para além do descrito, na atividade agrícola, verifica-se
ainda um incumprimento da idade de aposentação, sendo mais frequente, neste setor,
a prática laboral por pessoas muito idosas o que, por sua vez, aumenta a prevalência de
acidentes nesta faixa etária (ACT, 2015; Santos & Almeida, 2016).
Fazendo uma comparação com as restantes profissões, há que enumerar vários riscos
presentes na atividade profissional dos agricultores, como, a interferência das condições
climatéricas, a qual condiciona as sementeiras e colheitas, aumentando o stress físico com
exposição física a condicionantes ambientais, como a chuva, o frio, o calor ou o vento
(SafeWorK, 2000; ACT, 2015). A promoção de campanhas de vacina contra a gripe, deveria
ter em consideração a vulnerabilidade deste grupo profissional.
O Plano Nacional de Saúde (2015) na sua revisão e extensão a 2020 contempla nos
seus quatro eixos estratégicos, a cidadania, o acesso, a qualidade e as políticas saudáveis.
Acreditamos que este projeto, “Pontes entre a agricultura familiar e a agricultura biológi-
ca”, se insere ao nível das políticas saudáveis mantendo o propósito da maximização dos
217 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

ganhos em saúde que o mesmo Plano descreve, através do alinhamento de objetivos comuns,
integração de esforços de todos os setores da sociedade, assim como das abordagens Whole-
of-society e Whole-of-government. Nesta perspetiva, na elaboração dos Planos Locais de
Saúde dos Agrupamentos de Centros de Saúde, em alinhamento com o Plano Nacional e
Regional de Saúde, deveriam ser delineadas estratégias de proximidade através das Unidades
de Cuidados na Comunidade, com os agricultores da sua área geográfica (concelho) de modo
a que se efetuasse um diagnóstico de saúde deste grupo profissional e assim se pudesse
promover literacia em saúde com vista à capacitação da pessoa/família/comunidade para a
adoção de comportamentos saudáveis e autogestão da situação de saúde.

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A saúde é um dos principais fatores de qualidade de vida dos indivíduos. Obter um estado
completo de bem-estar físico, mental e social vai depender de fatores que não estão somente
ao alcance da medicina, mas sim, da sociedade em geral. Como a condição de saúde é um
conceito multidimensional e dinâmico, caraterizá-la requer informação detalhada de diferen-
tes aspetos da vida, no entanto devem ser analisados em simultâneo, porque individualmente
podem ser insuficientes para descrever o estado de saúde de um indivíduo (Portrait et al.,
2001). Segundo vários autores, (Banks et al., 2006; Dalstra et al., 2006), os fatores socioeco-
nómicos relacionam-se com o estado de saúde e desempenham um papel preponderante no
desenvolvimento do individuo como o nível de educação, a sua ocupação e o próprio rendi-
mento. Perante os dados estatísticos, o envelhecimento e baixo nível de instrução da população
agrícola em Portugal, aliado à pouca ou nenhuma formação específica, torna extremamente
necessária uma intensa sensibilização e formação (DGAV, 2013). Perante o descrito conside-
ramos pertinente analisar os contextos reais onde os agricultores estão inseridos e o possível
impacte que os mesmos têm na sua saúde física e mental, por forma a proporcionar um melhor
conhecimento deste grupo vulnerável e que o mesmo seja traduzido em práticas protetoras
acionadas pelos profissionais de saúde respeitando sempre o indivíduo e o seu estilo de vida.
A relação simbiótica do agricultor e a exploração agro-pecuária remete para os fato-
res de exposição a doenças de transmissão animal (Rajkumar et al., 2016; Mahon et al.,
2017). Por conseguinte, os esforços entre equipas de veterinários e equipas de saúde devem
centrar-se em intervenções simultâneas e eficazes na melhoria do conhecimento dos agri-
cultores sobre planos de prevenção e gestão da doença nos animais e o estabelecimento de
sistemas de segurança de alimentos (Tebug et al., 2014).
Alertar as equipas de enfermagem para o cumprimento de indicadores de 100% de co-
bertura vacinal contra o tétano é relembrar as boas práticas (Silva & Félix-Machado, 2000;
WHO, 2001; Portugal, 2018). Sendo o tétano uma infeção aguda e grave, causada pela toxina
do bacilo tetânico Clostridium tetani, presente no solo, pó e nos restos orgânicos de origem
animal, que entra no organismo pelas feridas ou lesões da pele, a vacinação constitui um ins-
trumento de proteção individual e de prevenção da doença privilegiado. Deverá sensibilizar-se
218 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

a população para esta vacinação alertando que esta é uma vacina que faz parte do programa
nacional de vacinação, que deverá ser administrada, aos 10, 25, 45, 65 anos de idade e, poste-
riormente, de 10 em 10 anos e que só está protegido quem tem a vacina em dia, na medida em
que esta é uma vacina que não dá a chamada imunidade de grupo (WHO, 2001; DGS, 2014).
Apresentar a visão dos agricultores e eventuais relações entre saúde e agricultura, é
um dos objetivos ao participar ativamente no projeto “Pontes entre a agricultura familiar
e biológica – impacte na saúde”, nomeadamente na componente da Agricultura familiar
e desenvolvimento rural: economia, sociologia e ambiente. Contribuir para a sensibili-
zação dos profissionais de saúde, em especial, enfermeiros, para áreas fundamentais de

Iberografias_37.indb 218 25-02-2020 11:50:07


intervenção, como a promoção da saúde, a prevenção da doença, a saúde ocupacional, e
a reabilitação. Assim, é importante conhecer as características sociodemográficas, psicoló-
gicas comportamentais e de saúde, antes de iniciar programas/intervenções de prevenção
e controle de doenças. A eficácia de uma intervenção em saúde com resultados a longo
prazo, só é possível com o uso de programas mais amplos de cuidados integrados, com
abordagens técnicas biomédicas para a prevenção da doença associado a atividades de
desenvolvimento social mais holística, com relevância local e cultural, atendendo assim
às complexas necessidades de saúde pública nas áreas rurais (Dick et al., 2007; Bahşi &
Kendi, 2019; Chan et al., 2019). As circunstâncias únicas dos agricultores afetam todas
as decisões sobre a adoção de uma estratégia de gestão; a sua consciência dos problemas,
e a eficácia percebida e a viabilidade de estratégias recomendadas influem na decisão dos
agricultores em mudar. Os agricultores não são um grupo isolado e são influenciados
pelo seu contexto, o que pode impedir ou facilitar mudanças na exploração agrícola. Para
informar efetivamente os agricultores sobre as medidas recomendadas, devem ser forneci-
das informações consistentes, facilmente acessíveis, relevantes e práticas. É fundamental a
colaboração de stakeholders e uma interdisciplinaridade na abordagem que inclua agentes
sociais (realçando as equipas de intervenção comunitária e de saúde pública), especialistas
em agro-pecuária e especialistas em marketing (Ritter et al., 2017).
Que fique claro que ao “meter a foice em seara alheia”, se pretende contribuir para o bem
comum, e obter ganhos em saúde da população, na medida em que todos somos necessários
para uma adequada prevenção da doença, promoção da saúde e um desenvolvimento rural
potenciados por uma verdadeira parceria colaborativa entre as diversas áreas do saber.

219 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Figura 1. Cartaz de divulgação do Seminário “


Agricultura familiar, agricultura biológica e desenvolvimento rural”.

Iberografias_37.indb 219 25-02-2020 11:50:07


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Iberografias_37.indb 222 25-02-2020 11:50:07


CAPÍTULO 5

PONTES ENTRE AGRICULTURA FAMILIAR


E AGRICULTURA BIOLÓGICA
RECOMENDAÇÕES A PARTIR DE DINÂMICAS
DE AUSCULTAÇÃO PARTICIPADAS

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Pontes entre agricultura familiar e agricultura
biológica – recomendações a partir de
dinâmicas de auscultação participadas

Cristina Parente
Instituto de Sociologia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Joana Neto
Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
Ana Aguiar
GreenUP & DGAOT, Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
Telmo Costa
Politécnico de Viseu
Raquel Guiné
Daniela Costa
Helena Esteves Correia
Paula Correia
Cristina Amaro da Costa
Politécnico de Viseu, CERNAS, CI&DETS
Cláudia Chaves
Politécnico de Viseu, CI&DETS
Doutoranda Ciências de Enfermagem, Instituto Ciências Biomédicas Abel
Salazar, SIGMA Phi Xi Chapter

coesão territorial
Introdução

Cumpre-se neste capítulo uma das propostas apresentadas no âmbito do projeto “Pontes
Biológica
sustentável,

entre agricultura familiar e agricultura biológica”: uma proposta de recomendações dirigida aos
diferentes atores envolvidos, sejam decisores de políticas públicas europeias e nacionais, regio-
e Agricultura

nais e locais, sejam a organizações representativas dos diversos interesses em causa, como coope-
Familiar turismo

rativas, associações de agricultores, entidades do desenvolvimento local, organizações não


património,

governamentais, serviços públicos…. sejam os próprios agricultores familiares e biológicos.


Do ponto de vista metodológico, adotou-se uma estratégia de recolha e tratamento
Agricultura
e territórios:

da informação qualitativa, da qual daremos conta quer a partir do processo de construção


das recomendações, quer através da validação das mesmas em contexto de participação
Pontes entre

alargado aos diversos atores do setor.


225 // Lugares

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Construir e validar recomendações, esclarecer prioridades regionais e clarificar os senti-
dos atribuídos pelos atores de diferentes regiões às necessidades inerentes à transição para
a agricultura biológica de agricultores familiares, bem como operacionalizar recomendações
são os tópicos adiante discutidos.

1. Metodologia de construção das recomendações: das propostas


teóricas à consulta dos atores em contexto de grupo focal

A elaboração das recomendações teve um primeiro ponto de partida teórico, inspi-


rado na literatura, discutido e validado em sede dos dois grupos focais organizados no
momento de arranque do projeto1. As oito recomendações previamente elaboradas pela
equipa de investigação foram validadas pelos 20 participantes. Simultaneamente, foram
acrescentadas à lista inicial mais sete recomendações, resultado da dinâmica dos dois gru-
pos focais. A recomendação “criação de um campo experimental de agricultura biológica
liderado pelas direções regionais com objetivos pedagógicos (demonstração e experimentação)”,
de entre as propostas pelos participantes, foi a que obteve maior número de votos.

“Fazer um campo experimental e se calhar levá-los lá [aos agricultores] a


ver o campo experimental da responsabilidade do Ministério da Agricultura
[…] O caso de Aguiar da Beira, um centro experimental de castanha e
castanheiro está a desenvolver um projeto. Tem a Câmara Municipal como
parceira e é da responsabilidade do município […] Pode resultar” (grupo focal
Viseu, mulher, 48 anos).

“Das Direções Regionais ou então se o Ministério da Agricultura não


quisesse, alguma instituição que ficasse com isso. Mais experimental. A Direção
Regional tinha em Tondela de ovinocultura. Era experimental e as pessoas
226 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

iam. Nós levávamos lá os agricultores a ver o queijo, como é que se fazia o


queijo e eles faziam” (grupo focal Viseu , mulher, 48 anos).

A segunda recomendação acrescentada foi a criação de grupos de trabalho transversais


com vista à promoção em rede e articulação de saberes, práticos e experiências (agricultores,
técnicos, comerciais):

1
Para um maior desenvolvimento da metodologia dos grupos focais, consultar cap. 4.2 – Adesão e resistência
a práticas de agricultura biológica entre agricultores familiares: uma abordagem a partir de grupos focais

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“Criação de grupos de trabalho transversais, não precisam de ser
obrigatoriamente engenheiros agrícolas ou especialistas em herbicidas.
Acho que devia ser transversal. Um trabalho que fosse até dos próprios
produtores. Eu sei que isto se calhar não é muito fácil de operacionalizar,
mas poderem trabalhar em conjunto para cada um deles ter aqui o seu
contributo técnico. Trabalhar quanto mais perto melhor. Se andamos
aqui a fazer palestras na cidade, isso se calhar não resulta nada” (grupo
focal Viseu, homem, 48 anos)

A tabela 1 apresenta as oito recomendações construídas pela equipa de investigação,


a partir de diversas fontes teóricas, acrescidas das sete propostas sugeridas pelos partici-
pantes. As quinze recomendações foram alvo, novamente, de priorização pela votação dos
20 participantes nos grupos focais (Tabela 1).

Tabela 1
Recomendações construídas e respetiva votação

Recomendações Fontes Votação


Ações de promoção e divulgação da agricultura biológica e práticas agrícolas sustentáveis (R.7) Autores 8
Campos experimentais/demonstração a nível regional (Ex: nas direções regionais) (R.6) Grupos focais 6
Criação de um serviço de apoio específico a agricultores e associações com agricultores Autores 5
familiares (R.1)
Criação de regiões de agricultura biológica (bioregiões) (R.8) Autores 5
Divulgação da agricultura biológica, junto do público geral, através das redes sociais Autores 5
(ex. tutoriais, seguidores, grupos on line, infografias) (R.12)
Criação e apoio a agricultores leader e/ou de assistentes agrícolas (R.13) Autores 3
Agilização do processo de certificação (R10) Grupos focais 2
Criação de organizações/grupos de agricultores familiares (R.14) Grupos focais 2
Criação de linha telefónica de apoio a agricultores familiares e biológicos (R.15) Autores 2
227 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica
Criação de grupos de trabalho transversais de partilha e experimentação de saberes práticos, Grupos focais 1
incluindo agricultores, técnicos, investigadores, docentes e formadores, políticos e decisores (R.2)
Fomento de pequenas feiras de agricultura familiar e de mercado de proximidade/vendas na Grupos focais 1
exploração (R-3)
Programas e medidas de apoio específicas para agricultores familiares (R.4) Autores 1
Criação de grupos de proximidade entre produtores e consumidores com garantia de compra Autores 1
e venda (Ex. AMAP ou CSA) (R.5)
Educação ao nível populações mais jovens (R.9) Grupos focais 1
Ações de valorização com vista ao incremento do preço dos produtos ao nível do agricultor Grupos focais 1
familiar (R.11)

Fonte: grupos focais e análise documental

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2. Validação das recomendações: as conversas em “world café”

O World café, como técnica de recolha de informação, permitiu aprofundar o sentido


e validar as recomendações (construídas teoricamente e nos grupos focais), a partir do
envolvimento dos participantes em 3 seminários de divulgação dos resultados do projeto,
que tiveram lugar em Vairão (Porto), Viseu e Guarda, em 2019. A participação nos se-
minários era livre e gratuita. O processo de construção das recomendações resultado dos
grupos focais era apresentado na sessão de abertura dos seminários e os participantes eram
convidadas a votarem as 15 recomendações, bem como a participarem nos trabalhos do
World café que tinham lugar a meio da tarde na fase final do seminário, depois de um dia
passado em contexto de interconhecimento.
O World Café é um tipo de técnica de co-construção participada que assenta numa
estratégia dialógica como base da elaboração coletiva de proposições em torno de temas
significantes para os participantes. Isto é, através da colocação de perguntas, estimula a
participação das pessoas na emissão de opiniões e construção coletiva de entendimento
sobre um objeto que é apresentado como cerne para a discussão (Brown e Isaacs, 2008).
Inicialmente e durante a manhã, decorria a votação individual por cada participante.
Nesta fase do processo, participaram 125 votantes que eram convidados a hierarquizar as
recomendações por ordem de importância, numa escala de 1 (menos importante) a 5 (mais
importante), após o que se definiu uma hierarquia de recomendação, sendo que a recomen-
dação mais relevante era a que somava maior número de pontos e assim sucessivamente. No
início da sessão da tarde, foi dado conhecimento aos participantes da hierarquização feita.
Em resultado desta votação, foram discutidas nas conversas em World café apenas as
10 primeiras (Figura 1) por serem as qualificadas de mais importantes. Aos participantes, em
grupos de 6 a 8, era colocado o desafio da operacionalização das recomendações, ou seja, da sua
implementação prática no território. As propostas foram registadas em cartolinas. Do ponto
de vista da análise das recomendações, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo categorial.
Os grupos de discussão e operacionalização das recomendações foram constituídos de
228 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

forma aleatória, sendo dotados de uma elevada heterogeneidade com participantes de dife-
rentes contextos socioeconómicos e tipos de conhecimentos e entendimento distintos face aos
temas discutidos. A discussão foi rica pela grande diversidade de intervenções, não obstante a
aleatoriedade da constituição dos grupos possa ter causado alguma dificuldade interativa e as
dinâmicas de discussão terem sido bastante variadas entre grupos. Apesar disso, os grupos de
discussão foram bastante concordantes quanto às categorias de medidas de operacionalização
a que deram maior relevância. Saliente-se, desde já, a ausência de variações territoriais das pro-
postas de implementação discutidas, não havendo diferenciações significativas entre a região
norte da Área Metropolitana do Porto (Vairão) e a região centro (Guarda e Viseu).

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3. Resultados e Discussão
3.1 Recomendações
Das votações efetuadas pelos informantes privilegiados durante os eventos foi possível
atribuir uma pontuação às 15 recomendações (R.1 a R.15) (Figura 1).

Figura 1. Pontuação total atribuída a cada recomendação no conjunto dos três seminários,
em resultado da votação de 125 participantes (R.1 a R.15).

A recomendação mais pontuada foi a “Criação de grupos de proximidade entre pro-


dutores e consumidores com garantia de compra e venda” (R.5) com 218 pontos, seguida
da “Criação de grupos de trabalho transversais de partilha e experimentação de saberes
práticos, incluindo agricultores, técnicos, investigadores, docentes e formadores, políticos
e decisores” (R.2, 193 pontos), e em terceiro lugar a “Criação de um serviço de apoio específico
a agricultores e associações com agricultores familiares” (R.1, 184 pontos).
A heterogeneidade dos participantes permitiu obter uma elevada diversidade de consi-
derações, sendo que todas as medidas propostas obtiveram pontuação em sede de votação;
no entanto, e de uma forma clara, foi possível encontrar denominadores comuns que
traduzem os temas a que os informantes atribuem maior relevância
Da discussão acerca do significado das recomendações para os participantes é pos-
229 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

sível concluir que a dimensão económica da agricultura familiar e a sua viabilidade


enquanto atividade que assegure um rendimento adequado ao agricultor e à sua
família é a uma preocupação partilhada por todos os grupos de discussão. Inerente à
garantia da sustentabilidade económica das famílias, está um processo de venda eficiente e
rentável e uma aproximação ao consumidor. Neste contexto, a R.2 reflete a preocupação
dos participantes relativamente à qualidade dos produtos e sustentabilidade ambiental
da produção, a informação e formação dos agricultores familiares e o acompanhamento
técnico dos processos de produção que estão na origem da necessidade de aproximar
diversos atores do setor agrícola e colocá-los em cooperação para pugnarem e promoverem

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a integração e crescimento da agricultura familiar. É assim, expectável a relevância dada
à R.1, num sentido novamente integrativo: a agricultura familiar concebida como um
conjunto de pessoas, explorações e práticas, reconhecidas como uma categoria com cara-
terísticas específicas, e para as quais devem ser criados mecanismos que suportam a sua
evolução e perpetuidade, nomeadamente a partir do Estatuto de Agricultor Familiar2.

3.2 Operacionalização prática das recomendações


Em resultado da discussão dinamizada nos grupos, os participantes sugeriram para
cada recomendação um conjunto de medidas de operacionalização no sentido de uma
aplicação expedita da recomendação, ou seja, apontaram para aquilo que consideravam ser
a melhor forma de implementação prática da recomendação em causa.
No conjunto dos três seminários realizados foram sugeridas um total de 93 práticas
para a implementação das recomendações (v. tabela em anexo), com génese na discussão
das 10 recomendações mais votadas (Figura 1).
Estas práticas foram categorizadas e englobadas em sete medidas operacionais (A a G)
de maior abrangência (Tabela 2) que permitem uma leitura transversal do que foi verbalizado
pelos participantes dos três eventos de divulgação.
As categorias construídas são transversais às recomendações analisadas, ainda que cada
recomendação se associe a um conjunto definido de medidas de operacionalização. Desta
forma, é possível compreender qual o assunto mais relevante em relação ao tema geral e quais
os assuntos mais verbalizados em relação a um determinado tema específico em discussão.
Tabela 2
Medidas de operacionalização das recomendações e respetivas votações
Medida de operacionalização Votação Depoimentos narrativos
A. Formação e apoio técnico – formação e 21 “Criação de um centro de competências para a Agricultura
ação orientada para a resolução de problemas familiar”; “Linha de apoio técnico para a resolução de
problemas eminentes”
B. Medidas políticas de simplificação do 15 “Medidas simplex e redução da burocracia”; “Maior
acesso ao estatuto de agricultor familiar e elegibilidade ao estatuto de Agricultor Familiar, benefícios
230 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

regime fiscal e social adequado às característi- fiscais e sociais adequados”


cas deste grupo
C. Promoção e facilitação do processo de 23 “Disponibilização por parte do poder local, de espaços para
venda com ações de marketing orientadas a dinamização de grupos de proximidade”; “Criação de
para a valorização do consumo local canais de escoamento para restauração coletiva, mercados
locais e comércio local”
D. Plataformas de colaboração entre entida- 17 “Grupos de trabalho que incluam formadores multidisci-
des públicas, associações de produtores e agri- plinares e psicólogos”; “Criação de infraestruturas coletivas
cultores familiares através das autarquias”

Decreto-Lei nº 64/2018, de 07 de agosto de 2018, Diário da República nº 151/2018 – Estatuto agricultura familiar.
2

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E. Incentivo à certificação como mecanismo 4 “Baixar os custos de produção em agricultura biológica e au-
de aproximação dos agricultores familiares à mentar a produtividade”; “Aplicação de taxas sobre os químicos
agricultura biológica, de síntese e financiamento dos produtos para uso biológico”
F. Plataformas digitais de divulgação e trans- 10 “Utilização das redes sociais como ferramenta para educa-
ferência de conhecimento. ção do consumidor”; “Plataforma informática de transfe-
rência de conhecimento à comunidade”
G. Proteção do Património Rural e promoção 3 “Valorização das variedades regionais”; “Formação para
da sustentabilidade das populações rurais as mulheres agricultoras”

Após uma análise das práticas de operacionalização definidas para cada recomendação
ao longo dos três seminários, é possível verificar que a medida “Promoção e facilitação do
processo de venda com ações de marketing orientadas para a valorização consumo local”
(medida C) foi a mais votada pelos participantes. Seguidamente a “Formação e apoio téc-
nico” (medida A) e as “Plataformas de colaboração entre entidades públicas, associações
de produtores e agricultores familiares” (medida D) são a segunda e terceira medidas que
reuniram mais consenso, respetivamente (Figura 2).

Figura 2. Medidas de operacionalização das recomendações – resultado da votação


no conjunto dos três seminários (medidas A a G)

Estes resultados são indicativos das áreas de intervenção que os participantes con-
231 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

sideram mais relevantes em relação à agricultura familiar, nomeadamente a facilitação


do processo de venda, garantindo rendimentos adequados às famílias; o acesso a apoio
técnico e formação de forma a garantir a qualidade da produção e a sustentabilidade
ambiental das produções; e finalmente a aproximação dos agricultores familiares e dos
órgãos gestores de forma a criar uma plataforma de apoio e entendimento facilitadora
de processos de crescimento e integração entre si, nomeadamente em organizações
representativas e que respondam aos seus interesses.
São medidas que remetem para os eixos de intervenção prioritários, de âmbitos social,
económico e político, alvo de maior urgência e preocupação entre os participantes.

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O fluxograma seguinte (Figura 3) sistematiza as 3 recomendações mais votadas e a sua opera-
cionalização quer através de medidas transversais às mesmas, quer através de medidas específicas.

Figura 3. Fluxograma de recomendações e medidas de operacionalização transversais e específicas mais relevantes


para a criação de pontes entre agricultura familiar e agricultura biológica
232 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Numa segunda análise mais detalhada dos grupos de discussão, é também possível com-
preender que as recomendações que motivaram a sugestão de maior quantidade e diversidade
de medidas de operacionalização, e quais as medidas com maior transversalidade. A partir da
observação da Figura 4 é possível afirmar que as discussões das recomendações mais votadas,
a “Criação de um serviço de apoio específico a agricultores e associações com agricultores
familiares” (R.1) e a “Criação de grupos de proximidade entres produtores e consumidores
com garantia de compra e venda” (R.5) geraram um maior número de medidas de operacio-
nalização, e apresentam elevada diversidade nas categorias referidas, novamente com elevada

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incidência das medidas A, C e D. Apesar de não haver nenhuma medida que seja totalmente
transversal a todas as recomendações e de não existir igualmente nenhuma medida que seja
exclusiva de uma recomendação, as medidas A, C e D são as que obtém maior consenso.
Deste modo, apesar de não se ter conseguido definir medidas práticas específicas de
cada recomendação, obteve-se um conjunto de medidas operacionais que pela sua fre-
quência e transversalidade ganham força. Estas medidas relacionam-se intimamente com
a necessidade da definição de uma estratégia política e social de suporte aos agricultores
familiares e confirmam as preocupações de cariz económico, social e político, já identificadas
na análise de frequência das medidas de operacionalização.
Considerando a aproximação da agricultura familiar à agricultura biológica, uma
forma integradora de crescimento e suporte destas categorias, é expectável que as medidas
de operacionalização se relacionem com os problemas de base para a resolução de algumas
das principais problemáticas sociais, técnicas e económicas da agricultura familiar, mas
também com medidas mais progressistas de comunicação e marketing agrícola associados
aos benefícios e vantagens da agricultura biológica.
Pode ainda observar-se que a medida de operacionalização “Medidas políticas de sim-
plificação do acesso ao estatuto e regime fiscal e social adequado” (medida B) apresenta uma
frequência elevada quando associada às recomendações “Fomento de pequenas feiras de agri-
cultura familiar e de mercados de proximidade/vendas na exploração” (R.3) e “Programa de
medidas específicas para apoio a agricultores familiares” (R.4), o que sugere a importância de
uma macro regulação política de nível nacional que suporte de forma consistente as especifici-
dades económicas e sociais dos agricultores familiares. Tanto através da medida B como da me-
dida D, o poder político, nos seus diversos níveis de atuação, é apontado como um importante
interveniente no processo de apoio e transição de agricultores familiares à agricultura biológica.

233 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Figura 4. Frequência das medidas de operacionalização sugeridas por recomendação


(medida A a G e recomendaçoes 1 a 10)

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Considerações finais

O processo de construção das recomendações releva alguns aspetos que interessa destacar
a título conclusivo: a ausência de diferenças regionais no que diz respeito a recomendações
e medidas de operacionalização revelam que a agricultura familiar ainda não tem o estatuto
de maioridade garantido no nosso país, pelo que, antes da criação de medidas territoriais
adequadas às especificidades, é necessário reconhecer a categoria de agricultores fami-
liares como tal nas suas idiossincrasias e a sua importância económica e social no
desenvolvimento territorial. Assim, as medidas de espectro amplo e de reconhecimento
macro revelam-se da maior urgência no discurso dos participantes e com um carater de
anterioridade face às especificidades regionais. A própria atualidade e o surgimento recente
do estatuto de agricultor familiar são uma novidade, ainda não integrada como uma vantagem
comparativa para os participantes que não reveem no estatuto do agricultor familiar me-
didas de discriminação adequadas às especificidades das pessoas, explorações e práticas
da agricultura familiar. As discussões tendem assim a ficar circunscritas ao contexto de
reconhecimento da própria agricultura familiar, não favorecendo a reflexão sobre medidas
concretas de operacionalização.

Referências
Brown J, Isaacs D (2008). The world café: awakening collective intelligence and committed action.
In: Torvey M, Collective intelligence: creating a prosperous world at peace. Earth Intelligence
Network, Virginia.
234 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

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Anexo
Medidas de Operacionalização
Medidas de Operacionalização sugeridas Categoria
Apoio técnico A
Criação de uma rede de formação e informação A
Criação de sistemas de pontos com incentivos para quem utilizar serviços de apoio específicos A
Promoção de visitas a explorações bem-sucedidas A
Linha de apoio técnico para a resolução de problemas eminentes A
Grupos de trabalho que incluam formadores multidisciplinares e psicólogos A
Realização de investigação a nível do ensino superior, no âmbito desta temática A
Tornar o conhecimento técnico compreensível e acessível a todos A
Acompanhamento teórico dos agricultores familiares A
Programas de apoio à formação e acompanhamento A
Criação de grupos de apoio técnico e partilha de saberes A
Envolvimento das autarquias no apoio técnico A
Financiamento adequado e demostração participativa A
Criação de um centro de competências para a Agricultura familiar A
Promover a igualdade entre o saber empírico e o saber académico A
Valorizar as competências dos agricultores, nomeadamente jovens A
Integração dos agricultores nas diversas fases de experimentação A
Oferta de contrapartidas para motivar a adesão A
Promover a investigação, formação e inovação A
Apoio técnico e formação dos agricultores A
Apoio técnico para aplicar práticas agrícolas sustentáveis A
Consultoria Agrícola A
Medidas simplex e redução da burocracia B
Maior elegibilidade ao estatuto de Agricultor Familiar B
Benefícios fiscais e sociais B
Alteração do regime de contratação pública B
Sistemas de garantia participada B
Replicar exemplos de sucesso, aplicar incentivos às boas práticas B
Regime fiscal simplificado B
Simplificação da legislação, redução da burocracia B
Simplex do processo de certificação B
Subsídios que permitem a qualidade do produto final C
Benefícios fiscais que incentivem o consumo C 235 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica
Espaços destinados à comercialização C
Exploração de novos mercados C
Promoção/Divulgação do mercado C
Promover novos produtos e a sua utilização C
Criar mercados C
Abrir/Dinamizar vendas na exploração C
Bases de dados on-line com identificação de produtores locais, produtos e explorações, divulgado pelo poder local C
Estabelecer regras de funcionamento e organização que contribuam para a dos produtores de agricultura familiar C
Simplificação da comercialização direta C
Cantinas e escolas como consumidores de produtos locais C
Integrar consumidores na produção, abrir as explorações a visitantes C
Criação de cozinhas coletivas C
Educação nas escolas C

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Educação nas escolas sobre hábitos alimentares sustentáveis C
Criação de canais de escoamento para restauração coletiva, mercados locais e comércio local C
Meios de divulgação da agricultura biológica para a população em geral C
Criação de hortas biológicas nas escolas C
Consumo de produtos locais nas escolas C
Maior literacia alimentar, educação para a nutrição e saúde nas escolas C
Criação de espaços de lazer relacionados com o tema C
Integrar na educação formal os conceitos de agricultura, saúde e sustentabilidade C
Contratação de especialistas e formadores para dotar de conhecimento os docentes, educadores e funcionários das escolas C
Criar cooperativas de agricultores locais para abastecer as necessidades das escolas C
Canal on-line de venda e escoamento de produtos C
“Receitas” para a saúde com base em produtos certificados C
Reativação dos serviços de extensão rural D
Criação de protocolos com associações de produtores D
Criação de grupos de trabalho D
Protocolos de colaboração entre universidades e associações de produtores D
Reuniões entre associações de produtores e representantes políticos D
Adaptar o funcionamento dos grupos à realidade local D
Criação de um grupo de dinamização local com diversos atores e intenção de partilha de experiências D
Mostrar casos de sucesso decorrentes da partilha de experiências D
Estabelecer redes de networking D
Desenvolver parcerias com autoridades locais D
Serviços de apoio às populações D
Criação de plataformas de diretrizes para a promoção das diferentes formas se associativismo D
Criação de infraestruturas coletivas através das autarquias D
Criação de serviços públicos de extensão rural multidisciplinares D
Disponibilização, por parte do poder local, de espaços para a dinamização de grupos de proximidade D
Programa ocupacionais para apoiar o funcionamento dos grupos de proximidade D
Colaboração entre instituições de ensino, agricultores e municípios D
Criar apoios através dos municípios D
Promoção do associativismo D
Garantia da segurança alimentar e qualidade nutricional E
Apoio ao desenvolvimento de sistemas participativos de certificação E
Definição de critérios de sucesso para avaliação das explorações E
Mais incentivos financeiros para a certificação E
Plataforma informática de transferência de conhecimento F
Ações de divulgação juntos dos agricultores F
Criação de uma plataforma de partilha de meios de produção F
236 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica

Plataforma informática de transferência de conhecimento à comunidade F


Aplicação de taxas sobre os químicos de síntese e financiamento dos produtos para uso biológico F
Baixar os custos de produção em agricultura biológica e aumentar a produtividade F
Utilização das redes sociais como ferramenta para educação do consumidor F
Incutir nos jovens o gosto pela natureza e agricultura F
Criação de uma TV rural F
Criação de uma plataforma/biblioteca/repositório F
Financiamento para promover o crescimento local G
Valorização das variedades regionais G
Formação para as mulheres agricultoras G

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Recomendações e categorias
Categorias
A B C D E F G
Plataformas
Medidas Promoção e de colaboração Aproximação Proteção do
políticas de Facilitação entre dos Plataformas património
Recomendações simplificação do Processo entidades agriculto- digitais de rural e
Formação e
do acesso ao de venda e públicas, res familiares divulgação e promoção da
Apoio
estatuto e marketing, associações à agricultura transferência sustentabili-
técnico
regime fiscal promoção do de produ- biológica, de conheci- dade das
e social consumo tores e incentivo à mento populações
adequado local agricultores certificação rurais
familiares
Criação de um serviço de
apoio específico a
agricultores e associações • • • •
com agricultores familiares
Criação de grupos de
trabalho transversais de
partilha e experimentação
de saberes práticos,
incluindo agricultores, • • •
técnicos, investigadores,
docentes, formadores,
políticos e decisores
Fomento de pequenas feiras
de agricultura familiar e de
mercados de proximidade/ • • •
/vendas na exploração
Programa de medidas
específicas para apoio a • • • •
agricultores familiares
Criação de grupos de
proximidade entres
produtores e consumidores • • • • • •
com garantia de compra e
venda
Campos experimentais/
• • •
237 // Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica
demonstração a nível
regional
Ações de promoção da
agricultura biológica e práti- • • •
cas agrícolas sustentáveis
Criação de regiões de
agricultura biológica • • • • •
(Bio-Regiões)
Educação ao nível das
populações mais jovens • • •
Agilizar o processo de
certificação • • • • •

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