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2001
Edson Fernandes
A VOZ E O CORPO: LINGUAGEM, ESTÉTICA E COMPLEXIDADE PARA UMA
REFLEXÃO NO TEATRO DE ANTONIN ARTAUD
EccoS revista científica, dezembro, año/vol. 3, número 002
Centro Universitario Nove de Julho
São Paulo, Brasil
pp. 63-81
http://redalyc.uaemex.mx
A voz e o corpo: linguagem, estética e complexidade para uma reflexão...
EccoS Rev. Cient., UNINOVE, São Paulo: (n. 2, v. 3): 63-81
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No texto pronunciado, não só pelo fato de sê-lo, atuam pulsões das quais provém
para o ouvinte uma mensagem específica, informando e formalizando à sua ma-
E
C
neira aquela do texto. No momento em que ela o enuncia, transforma em “ícone”
C o signo simbólico libertado pela linguagem: tende a despojar esse signo do que ele
O comporta de arbitrário; motivando-o da presença desse corpo do qual ela emana;
S ou então, por um efeito contrário mas análogo, com duplicidade desvia do corpo
real a atenção; dissimula sua própria organicidade sob a ficção da máscara, sob a
R
E
mímica do ator a quem por uma hora empresta a vida. (ZUMTHOR, 2001: 20-21)
V.
Assim, verificaremos, no quadro abaixo, a complexidade relacional (PIGNATARI,
C
I
1971: passim):
E
N
T. Como intérprete e interpretante o corpo procura atribuir um significado ao
n. 2
significante, isto é, dota de essência significativa a palavra pronunciada, remetendo ao
Significado Mental Conteúdo Contexto
v. 3
Significante Físico Forma Texto
dez.
Referente / Mundo / Cultura / Coisa
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que sonho ser: “Ao mesmo tempo trata-se de algo completamente diferente: não
mais imitação, mas captura de código, mais-valia de código, aumento de valência,
verdadeiro devir...” (DELEUZE & GUATTARI, 1995: 19), esse devir para algo que
transmuta em si, verdadeiro conhecimento que se faz processo de criação, espécie
de invenção, territórios sendo desterritorializados. Trata-se do devir do código, o
devir do sonhador, os devires da voz e do corpo, o devir da performance corporal
e da vibração da palavra emitida pela oralidade.
Na questão do devir, surgem cartografias a serem mapeadas. Na visão de
Deleuze & Guattari (id., ibid.), “Um mapa é uma questão de performance”, pois
as múltiplas entradas e saídas, os deslocamentos, as conexões heterogêneas, os terri-
tórios, as desterritorializações e as rupturas criam cartografias performáticas da voz
e do corpo. O devir apresenta uma cartografia territorializada, desterritorializada
e reterritorializada ao percorrer, de forma não-linear, entradas e saídas, encontros
e fugas, planos subterrâneos/platôs/espaço aéreo, fragmentos que se multiplicam
para outras conexões e unidades que se fragmentam na multiplicidade de outros
devires.
E A percepção do corpo e da voz cria um devir da linguagem, elabora um
C sistema de signos e perscruta uma organização nos códigos de uma linguagem, os
C quais trazem uma consciência da sua existência e da percepção diante do mundo,
O
S ao se lançarem sobre a corporeidade e a vocalidade no devir performático pela
correspondência da percepção. Segundo Maurice Merleau-Ponty (1989: 47-48):
R
E
V. A síntese perceptiva deve pois ser completada por aquele que pode delimitar nos
objetos certos aspectos perceptivos, únicos atualmente dados, e, ao mesmo tempo,
C superá-los. Esse sujeito que assume um ponto de vista é meu corpo como campo
I
E
perceptivo e prático, enquanto meus gestos têm um certo alcance e circunscrevem,
N como meu domínio, o conjunto de objetos que me são familiares. A percepção é
T. aqui compreendida como referência a um todo que por princípio só é apreensível
através de certas partes ou certos aspectos seus. A coisa percebida não é uma uni-
n. 2 dade ideal possuída pela inteligência (como por exemplo uma noção geométrica);
v. 3 ela é uma totalidade aberta ao horizonte de um número indefinido de perspectivas
que se recortam segundo um certo estilo, estilo esse que define o objeto do qual
dez. se trata.
2001 Sob esta ótica, o texto poético ultrapassa a mera “decodificação de signos
analisáveis” (ZUMTHOR, 2000: 91), e compreende as ações particulares da percepção
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pela sensibilidade do indivíduo. Portanto, não há uma equação geral que decom-
põe a realidade em partes; o que vemos é uma espécie de expansão do universo
perceptual, o qual interpreta individualmente o mundo e co-relaciona o objeto
com o campo perceptivo, desenvolvendo em si um projeto da voz e do corpo na
percepção performática da cultura. O corpo e a voz configuram-se como territórios
perceptuais e criam um projeto arquitetônico para uma cartografia da percepção.
Assim, somam esforços para um verdadeiro projeto metafísico.
Podemos ainda exemplificar essa questão metafísica, cartográfica e percep-
tual, ao observarmos uma breve passagem, recortada, propositadamente, da obra
Um sopro de vida de Clarice Lispector (1978: 103): “Olhar a coisa na coisa: o
seu significado íntimo como forma, sombra, aura, função”. A escritora, ao dizer
“olhar a coisa na coisa”, abre uma metalinguagem que faz a ‘coisa’ penetrar em
si mesma, em seu interior sombrio e conhecer sua forma, sua aura, sua função.
Observamos a assonância fonológica na repetição das vogais, estabelecendo um
ritmo na leitura e tocando no mistério do significado ontológico, existencialmente
indefinido, e adquirindo uma ação sobre a ‘coisa’ lançada como um verdadeiro
projeto para dentro de si mesma. E assim, sussurra aos misteriosos enigmas da
E
alma e da matéria, do pensamento e da forma na estrutura que percebe o milagre C
da ‘coisa’, como o corpo que pulsa e a voz entoada que penetra com intensidade C
na ‘coisa’ do mundo e na ‘coisa’ das suas intimidades, como um impulso do devir O
S
para uma cartografia interior.
A percepção não está completa em si mesma, tampouco significa ausência; R
antes, percepção, “é essencialmente presença” (ZUMTHOR, 2000: 94). O corpo E
move-se ao compreender a presença de si e percebe o mundo pelos sentidos; esse V.
conhecimento representa uma troca entre o corpo e a ‘coisa’ no mundo, nos pla- C
nos psíquico, material e cultural. Essa ‘coisa’ é um devir da coisa como criação e I
estetização indefinida. Assim, o corpo sente a presença da voz e escuta a sonoridade E
N
que vibra no movimento corporal, como presença interpretada pela ação. Então, a T.
existência de algo é percebida na presença, mas existe também a ausência em uma
anamnésia, ao resgatar a memória em imagens, palavras, signos e simbolizações. n. 2
Nesse jogo dialético, estar e não estar coloca a relação temporal e espacial não- v. 3
linear dentro de um conflito necessário. Desse modo, a perfomance projeta-se
interna e externamente como expressão física e simbólica, criando uma condição dez.
existencial em que gesto e palavra associam-se no jogo conflitual. Observamos em 2001
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Um laço funcional liga de fato à voz o gesto: como a voz, ele projeta o corpo no
espaço da performance e visa conquistá-lo, saturá-lo de seu movimento. A palavra
pronunciada não existe (como o faz a palavra escrita) num contexto puramente
verbal: ela participa necessariamente de um processo mais amplo, operando sobre
um situação existencial que altera de algum modo e cuja totalidade engaja os corpos
dos participantes.
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Não consideramos que a vida tal como é e tal como a fizeram para nós seja razão dez.
para exaltações. Parece que através da peste, e coletivamente, um gigantesco abs- 2001
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cesso, tanto moral, quanto social, é vazado; e assim como a peste, o teatro existe
para vazar abscessos coletivamente. (ARTAUD, 1993: 25)
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Então, nos nossos amores em palavra, nos devaneios em que preparamos as palavras
que diremos à ausente, as palavras, as belas palavras, assumem vida plena e um
E
C
dia será necessário que um psicólogo venha estudar a vida em palavra, a vida que
C adquire um sentido quando se fala.
O
S Sob essa ótica, a linguagem estetizada pelo corpo em estado de performan-
R ce da voz, ao cantar ou pronunciar a palavra, cria a prática da ritualização e da
E simbolização dos códigos existentes na corporeidade e na oralidade como o locus
V. do devaneio, sobretudo na relação entre o tempo integrado e a duração social.
C
Da mesma forma que o imaginário, sendo a epifania de um mistério, produz um
I substrato mental nos sonhos, adquirindo sentido nos rituais e nas representações
E que o corpo e a voz podem atribuir à cultura.
N
T.
Nesse ínterim, Artaud repensa todo o sistema de códigos e símbolos e a
própria linguagem teatral, quando considera o grau de objetivação cênica do te-
n. 2 atro balinês puro e seu jogo intenso de gestos, musicalidade, gritos, movimentos
v. 3 corporais, máscaras, oralidade e ritualizações. Trata-se, enfim, da criação/recria-
ção de uma nova linguagem para a Europa (em particular para a França), de um
dez. teatro que emerge do devaneio, do inconsciente revelado contra um racionalismo
2001 artístico-científico europeizado. Assim, os códigos são verbalizados pela palavra,
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quando ela não é apenas palavra, é magia, ritual e símbolo da cultura em que a
espacialidade e a temporalidade são da ordem do inconsciente e em que a lingua-
gem submersa revela a essencialidade estética da multiplicidade de signos. Dessa
maneira, as celebrações comunicam à linguagem, em devaneios do corpo e da voz,
a forma pela qual a linguagem de rituais míticos configura um símbolo, cria um
texto que é escrito na própria cena improvisada, como o body-art e o grito primal
animalizado pelos instintos primitivos.
As emoções são levadas às últimas conseqüências e encenadas no teatro.
Os cataclismos emocionais tornam-se verdadeiras turbulências incontroláveis,
projetadas para fora pelo mais primitivo dos instintos da animalidade humana,
não como um resgate, mas como uma linguagem existente, esquecida, rechaçada,
sufocada, que se apresenta viva em devaneio e em transe. Essas emoções são tra-
zidas pela comunicação que suscita uma metafísica, uma espécie de propriedade
mágica e poética do Ser, remetendo-nos a uma relação com a alquimia artística do
teatro. A criação de uma linguagem alquímica, cifrada, codificada em hieróglifos
teatrais, em que o duplo responde à imaginação e à realidade, explica o teatro como
manifestação ritual e mágica, com forças da religião e da cultura, com crenças de
E
gestos e de sons que traduzem as expressões mágicas espirituais. C
Assim, a linguagem é organizada e realizada em uma performance espeta- C
cular, a partir de uma topografia que permite às forças performáticas da voz e do O
S
corpo o espaço aberto no processamento da obra, no locus emocional e comunica-
cional da estética e da linguagem, ou ainda em um locus qualitativo que constituirá R
a obra viva no estado onírico da oralidade e da corporeidade, performatizando 3
Ao analisar problemas estrutu- E
a produção cultural nos territórios criativos e nos códigos secretos da linguagem rais presentes, Barthes aponta, V.
em A aventura semiológica, de
simbólica e representacional mítica. 1998, três aspectos, os quais C
Referindo-se a essa linguagem teatral, os códigos utilizados em uma narrativa considera cruciais para as ques- I
tões das narrativas: o problema
(em nosso caso, mítica) são os de ações, segundo as observações de Roland Barthes.3 do código, o código das ações e
E
N
Os agentes atuantes na cena são forças empreendedoras de ações representacionais, o código metalinguístico. Para o T.
performatizadas nas narrativas, verdadeiros personagens dos conflitos cênicos estudo presente, compreendemos
que nosso interesse está dirigido
socioculturais, constituídos em uma estrutura lógico-temporal, guiados pelo fio para o código das ações, pois n. 2
condutor da narrativa numa organização complexa. consideramos fundamental o v. 3
Sob esse enfoque, pode-se dizer que as construções míticas e simbólicas, empreendimento realizado pelos
agentes presentes na narrativa,
mitopoiésis e mitogenesis, são criações dos mundos mitológicos, das obras sagradas em ações norteadas pela lingua- dez.
religiosas, das produções estéticas, da formação cultural complexificada, dos entre- gem teatral artaudina. 2001
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in which the body and the voice encode their own experiences.
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T.
n. 2
v. 3
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