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Psicanálise e Literatura
Seis Contos da Era de Freud
1ª Edição
POD
Petrópolis
KBR
2012
Edição de texto Noga Sklar
Revisão da edição original Rachel Kopit Cunha
Capa KBR sobre tela de Ismael Neri
Imagens do miolo Arquivo Google
ISBN: 978-85-8180-027-1
150 - Psicologia
Autores
Emails: lmarzagao@glasstower.com.br
fabiobelo76@gmail.com
icaro.bhz@terra.com.br
Epígrafe
Doc Comparato
Prefácio de Me alugo para sonhar, de Gabriel Garcia Marquez
Sumário
Copyright 2
Autores 3
Epígrafe 5
Apresentação 8
Prefácio 15
Introdução 17
Ficções I 22
O relógio de ouro 23
(malandrim) 31
(a palidez de Clarinha) 43
O relógio de ouro: antes e depois 53
Ficções I I 59
A caolha 61
(Antonico) 69
(olhos negros como veludo) 77
Na falta de poder ser o menino dos olhos 81
Ficções III 85
O homem que precisava ter ciúmes 87
(breve colóquio sobre as afecções da alma) 99
(masoquista) 105
(pirata mongol) 115
A fidelidade feminina é imperdoável 119
Ficções IV 125
A mulher que passou 131
(mea culpa) 145
(fragmentos de um diário) 157
Desejos tortuosos 165
Ficções V 169
O barril de amontillado 171
(atestamento) 179
Sem justiça nem razão 185
Ficções VI 188
Duas mães 189
Dois filhos 213
Nenhum pai 227
Apêndice 233
Associação livre 235
Complexo de Édipo 239
Denegação 245
Desejo 249
Diagnóstico 251
Identificação 253
Interpretação 257
Interpretação: arte e técnica 258
Interpretação selvagem 259
A interpretação e a ciência 259
Metapsicologia 261
Projeção 265
Psicanálise 269
Pulsão 273
Pulsão de morte 274
Recalque 277
Repetição 281
Sexualidade 283
Sintoma 287
Parapraxias 289
Transferência 291
Referências bibliográficas 294
Apresentação
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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo
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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo
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esgotar todo o sentido das obras literárias por eles escolhidas, já que
justamente tocam o indizível. É também por isso que os autores des-
te livro não puderam deixar de atribuir um saber a Machado, a Poe,
a Unamuno, a Lopes de Almeida, a Del Picchia e a Guido de Verona.
Sem essa atribuição de saber, não poderiam explicar a presteza com que
colocaram para trabalhar o referencial teórico psicanalítico interpelado,
assim, por estes contos extraordinários.
Se Lúcio, Paulo e Fábio tiveram a coragem de se colocar mais
em posição de analisandos do que de analistas, é porque, como indicou
François Ansermet, quando nos colocamos como leitores somos lidos,
de certo modo, pelo texto — o escrito nos interpreta, na medida em que
nos faz falar. Eis aí por que a leitura do texto impõe ao psicanalista o
inverso da posição que ele deve manter na análise.
A leitura paradoxalmente agradável e inquietante de Seis Contos
da Era de Freud nos ensina, finalmente, uma importante lição: uma lei-
tura do texto literário que se guie pelo método interpretativo da Psica-
nálise tornará evidente que, sem que seja necessário proceder a nenhu-
ma modificação nesse “método de pesquisa do inconsciente” — uma
das três maneiras oferecidas por Freud para definir a Psicanálise —,
deverá caminhar no sentido da desconstrução daquilo que se supõe sa-
ber. O aspecto crítico de uma tal leitura deve limitar-se a descrever uma
postura reflexiva, pronta a se refazer continuamente diante da delimita-
ção impossível entre a interpretação e a construção que unem a prática
psicanalítica e o fazer literário por meio de um único elo fundamental,
que é ficcional e também poético. Tal como acolhemos o discurso que
se apresenta na situação clínica, o que não se pode perder de vista é a
singularidade com que certos elementos aparecem ou desaparecem na
enunciação do texto literário e, do mesmo modo, na enunciação do tex-
to que o próprio psicanalista termina por produzir.
Vista assim, a interpretação psicanalítica guarda um inesperado
parentesco com aquilo que propicia a criação literária, na medida em
que ambas se originam de uma lacuna, no sentido que põe em marcha
o desejo de dar forma, por meio de uma marca pessoal ou estilo, àquilo
que corre o risco de se ver dissipado pela inarticulação e pela indizibili-
dade que parece existir no interior da linguagem. Embora o modo como
cada um inscreve esses elementos possa variar a cada leitura, sendo esta
a condição primordial deste livro, algo existe no texto que, constituindo
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Prefácio
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Fábio Lucas
Professor e crítico literário
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Introdução
Sabemos que Freud sempre deu atenção especial aos poetas, so-
bre os quais chegou a dizer que chegam voando aonde os cientistas che-
gam claudicando. O motivo dessa crença talvez se encontre na própria
natureza da inspiração: inspirar-se acaba sendo nada mais nada menos
que sofrer o sopro da alteridade para, em seguida, bafejá-lo numa cria-
ção. Existe, portanto, na criação artística, um vínculo privilegiado com
o “outro”, ou seja, com aquilo contra o qual trabalham todos os recursos
racionais e que, na verdade, só é apreensível à margem do que se produz
intencionalmente.
Uma obra de arte situa-se sempre além de um determinado ego,
e é nesse sentido que a pensamos fruto de inspiração. Convém nos aten-
tarmos para não confundir alteridade com nenhuma entidade mística
ou mítica, o que acabaria por nos fazer repetir chavões como “inspira-
ção divina” ou “musa inspiradora”. Embora não possamos abrir mão da
ideia de causação na medida em que pensamos a inspiração como força
causadora da criação artística, insistimos na natureza radicalmente hu-
mana e eminentemente sexual dessa força, mesmo tendo que admitir
que, assim pensada, a inspiração funciona segundo o princípio metafí-
sico da causa.
Nesta obra, o recurso que utilizamos permitirá ao leitor esco-
lher diferentes sequências de leitura. Se seu interesse for conhecer os
seis autores escolhidos e seus contos, poderá assim fazê-lo; caso quei-
ra, ainda que movido apenas pela curiosidade, conhecer os devaneios
dos autores deste livro sobre os personagens, basta ler as “ficções” que
se seguem aos originais; e, finalmente, a última seção de cada “ficção”
se dedica à elucubração de natureza teórica ou conceitual, lastreada na
teoria psicanalítica. Se, além desses, o interesse reside em ter acesso a
alguns conceitos ou fenômenos fundantes da teoria criada por Freud,
oferecemos um apêndice no qual elencamos verbetes e esclarecimentos
gerais a respeito dela.
Convém esclarecer, ainda, que o subtítulo do livro é uma re-
ferência e uma homenagem a Scott Fitzgerald, que publicou um livro
clássico, Seis contos da era do Jazz, onde ressalta a importância de uma
época para uma obra de arte e como esta obra pode ser a fiel e desinte-
ressada mensageira de um dado momento cultural.
Os seis contos que deram pretexto ao livro foram escolhidos,
em primeiro lugar, pelo alto nível de qualidade literária que apresentam;
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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud
Os autores
Belo Horizonte, novembro de 2001
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Ficções III
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Edvard Munch (1863/1944)
“Ciúme 2”, 1907
Óleo sobre tela
Munch Museet, Oslo, Noruega
O homem que precisava ter ciúmes
Menotti del Picchia
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Eu acho que não concluo este conto porque o leitor não tem
paciência para ir até o fim. Entretanto, se me quiser bem, faça ainda um
esforço.
Tertuliano enjoou de Sinhá. É que se produzira um fenômeno
imprevisto: em lugar de Tertuliano ralar-se de ciúmes dela, ela é quem
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deu para ficar ciumenta. Daí parecer ao exótico marido uma mulher de-
sinteressante e banal. “Ninguém gosta dela. É uma espiga que eu levei”...
E arranjou uma húngara de olhos de esmalte e cabelos de milho.
Comprou-lhe automóvel. Decotou-a mais para atrair os amigos. Embe-
bedou-a num “cabaret”. Viveu assim seis meses até que, por uma carta
anônima, soube que Sinhá o traía com o dr. Gil Marçal.
Assim é que, no “placard” do espírito de Tertuliano, no percur-
so que fez para ir surpreender o adultério de Sinhá, da sua casa à “gar-
çonnière” de Gil, se afixaram os seguintes estados da alma:
1° - Angústia e desespero por se sentir traído.
2° - Desejo sádico de que a traição fosse real.
3° - Instinto de posse exacerbado pelo furto.
4° - Buracos de silêncio mental com encenação puramente au-
tomática de sorrisos, esfregamento de mãos, toda a ação nervosa reflexa
de quem vai gozar uma alegria mórbida.
5° - Certeza de que não haveria drama.
6° - Vaga e paradoxal simpatia pelo rival.
Durante o trajeto, estas foram as coisas pitorescas que sublinhou
na paisagem: um soldado num cavalo marrom arrancando com as fer-
raduras da montaria faíscas dos paralelepípedos; um judeu de olhos cor
de nostalgia voltados para sua Jerusalém invisível e vendendo gravatas e
suspensórios, uma mulher esbelta e bem modelada parecida com Sinhá.
Ao chegar junto à “garçonnière”, apalpou o cabo do revólver. Só
para verificar se o trouxera.
É claro que não surpreendeu o flagrante adultério. Isso é quase
impossível a um marido inteligente. Este, por pudor, evita a crueza de
uma cena obscena.
Ele pensa: serei grotesco ou assassino? O dilema gela o sangue
nas pernas e estatela o mais corajoso. Em todo o criminoso passional
há um louco ou um facínora. Tertuliano, porém, era normal: apenas
esquisito. Quis saber. “Esteve aqui, sim senhor... Uma mulher alta, loi-
ra, bonita, com um vestido escuro, um chapéu marrom e uma bolsa de
couro preto...”
A criada contou tudo por Cr$100,00. Ele saiu dali com sinos
na alma! Seu amor por Sinhá cresceu atlânticamente. A traição era uma
espora sexual no seu instinto. Amou-a com a mesma paixão da noite em
que deu o cheque-mate no farmacêutico. Parecia-lhe agora Sinhá outra
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O Amor...
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“Como o sol está mais dourado! Não... Não tenho fome... Será
que ele passará hoje por aqui? A costureira é uma imbecil! Olhe só como
está este vestido! E as meias? Não estão em harmonia... Na Sinfonia Ina-
cabada de Schubert há um pedaço que faz a alma da gente ir até a gar-
ganta e brotar dos olhos uma porção de lágrimas... Drin... Drin... Drin...
O telefone... Irra! O coração dá cada salto...”
— Que cacetes as sirigaitas das Oliveiras! Não! Não vou ao tea-
tro.Essa revista é fúnebre como um enterro! Meu Deus, como ele está
tardando a telefonar hoje.
— Terá acontecido alguma coisa? Estará doente? Como estou
nervosa! Que dia mais triste!
— Ah! Sou eu, meu amor! Que saudades! Que saudades... Espe-
re-me às três e meia!...
— Lindo o sol, as árvores, as pedras da rua! Como a vida é bela!
Como é bom viver!
Tertuliano farejou no nervosismo de Sinhá o segundo ato pas-
sional. Tornou a abandonar a húngara e agarrou-se de novo à mulher.
Mas agora Sinhá não o tolerava; ardia sempre numa ânsia, ouvido atento
ao telefone, olhos alertas à janela.
Gastão Fortes (desportista, rico, com baratinha niquelada), era
impetuoso e egoísta. Apossou-se de Sinhá, com a violência de um pirata
mongol e proibiu-a de dividir-se com o marido. Apontou contra o cora-
ção da amada o duplo gume do dilema:
— Ou eu ou ele!
— Mas, Gastão, eu sou tua, juro...
Gastão, ciumento como um turco, na “garçonnière” violeta es-
carrava injúrias “contra aquela besta metálica, que nunca jogara tênis,
nem guiara um carro de corrida, todo absorvido pelo café”, que lhe rou-
bava sua Sinhá adorada.
Os amantes são assim: egoístas, intransigentes e mandões. Fi-
cam com a mulher do próximo e ainda mordem os pulsos de raiva por-
que os pobres maridos fazem a suprema burrice de dar à adúltera cama
e comida.
Sinhá, na grande crise, jurava-lhe uma fidelidade de melodra-
ma:
— Eu o detesto! É um monstro!
Mas Gastão sofria. Sanguíneo, porejando instinto, cheirava o
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o delta macio que acolchoava, com retrós dourado, a junção das coxas
perfeitas?”
E a outra: “Sabe quem está desfrutando esse tesouro? Imagina o
gosto do primeiro beijo furtado logo após o terror da fuga...”
Ele chicoteou-se com o látego de fogo de cenas lúbricas. Fez
com pincéis de memórias um indecoroso painel na tela aflita da sua
imaginação doente. Desenhou o corpo de Sinhá em todas as atitudes.
Amava-a — agora que não a possuía mais — com verdadeiro desespero.
Pôs-se a procurar os fugitivos. Uma semana de buscas, de pes-
quisas com corrupção de criados, com o concurso de secretas no São
Paulo babilônico do Brás e da Lapa, do Ipiranga e do Pinheiros. Parecia
que se haviam evaporado Gastão e Sinhá. Um dia, porém, teve notícias
exatas. Haviam sido identificados na...
— Rua dos Cafres número 26, casa amarela, perto da esquina,
venezianas verdes, portãozinho de ferro.
Tertuliano engraxou o revólver. E foi lá.
— ...absolutamente! Foi-se embora anteontem. Nossa vida era
um inferno. Não quero saber mais dela.
Tertuliano sentiu que o esburacavam por dentro. Vinha recla-
mar de Gastão sua esposa e este, já enfarado, a botara no olho da rua!
Sinhá, bruscamente, como um balão que desincha, ficou reduzida a um
trapo no seu espírito. Sentiu-se roubado. Já não amava mais. Esse pobre
frangalho de mulher desprezada e enxotada parecia-lhe uma coisa ridí-
cula e humilhante.
— Mas o senhor teve a audácia de raptá-la! É um miserável!
— Não seja tolo, homem... Por quem o senhor está me toman-
do?
Todo o mundo já conhece a sua história e a de sua mulher...
Nem o senhor, nem ela, nem eu somos ingênuos...
Tertuliano sentiu-se desarmado. Era como se uma tesoura lhe
cortasse um por um os tendões e os nervos. Tudo se arrasava: seu amor
e sua vingança...
Brusca, uma revolta flamejou nele. “Era demais! Gastão lhe rou-
bara Sinhá e agora, farto da coitada, atirava-a por aí e ele que a aguen-
tasse...” Sacou do revólver e, com chispas nos olhos, encostou o níquel
gelado na garganta do outro.
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— Canalha, agora, o senhor fica com ela, quer queira, quer não!
Gastão, aterrorizado, mediu a iminência do perigo.
— Que é isso?
— Não tem isso, nem meio isso... Fica com a mulher!
— Mas...
— Fica, ora se fica... Por que então veio arrancá-la da minha
casa?
Quando teve absoluta certeza de que o outro ficava com Sinhá,
saiu. Na rua parou bruscamente e pôs-se a respirar em grandes haustos.
Puxa!
Sentiu-se absurdamente feliz. E retomando seu caminho para
descarregar os nervos —Ele fica com ela, pílulas! Estou cansado de ban-
car o marido. É necessário, de quando em quando, trocar os papéis.
Depois, quando eu quiser...”
E pensou que viria buscar Sinhá na casa do outro, num táxi
fechado, como quem esconde ao mundo o escândalo de um adultério.
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tender que sejam alicerçadas pela Ciência, mas, antes, pelo bom senso.
Pretendia, com minha elocução, ressaltar que a alma humana possui
estratos em que alguns sentimentos são mais primitivos e outros assu-
mem aparência mais sofisticada, apenas isso. Aqueles mais primitivos
possuem características mais próximas dos animais, concordas?
A.: Em primeiro lugar, em se tratando das Ciências Humanas,
creio que as opiniões nunca podem ser desprezadas; se elas — as opi-
niões — não possuem a Ciência ou a Estatística por trás de si, trazem
uma pessoa à sua frente, fato de importância nada desprezível. Podemos
então compreender um pouco da alma e dos conflitos de uma pessoa,
ainda que estejamos limitados e não possamos sonhar com generaliza-
ções. Quanto ao que chamas instintos, devo, com tua permissão, propor
algumas correções. Se insistimos nessa palavra, corremos o risco de,
mais uma vez, estarmos aproximando da Biologia as afecções da alma.
Nós, humanos, quando exibimos nosso instinto, o fazemos valendo-nos
da sedução, da retórica e, às vezes, das armas. Todavia, como disse, es-
tamos na verdade diante de um animal que transforma seus atributos e
necessidades biológicas em formas de aproximação do seu semelhante,
para estar com ele ou destruí-lo. Enfim, prefiro que consideremos o ser
humano como um ser que busca o outro, ainda que, às vezes, o faça de
maneira animal. Consigo expressar-me com clareza?
N.A.: Quando tecia considerações sobre Tertuliano, ou melhor,
a partir do meu amigo e suas aflições, falava do ser humano. Cheguei a
provocar, desafiando, ao falar sobre aquilo que poderia ser normal ou
mórbido, casto ou menos puro, e, ainda, sobre os hipócritas e os menos
francos. O que tua ciência tem a dizer a esse respeito?
A.: Ora, ironias à parte, sem dúvida a minha ciência tem muita
coisa a dizer e pouca a sentenciar. Muitas pessoas tendem a atribuir à
Ciência e seus achados o papel de árbitro naquelas questões de natureza
eminentemente éticas, o que considero um grave equívoco. As questões
éticas não são decididas no tribunal das verdades empíricas. As deci-
sões humanas — ainda que, por vezes, difíceis — não podem pretender
a neutralidade ilusória oferecida pela Ciência; sempre humanas,
portanto, falíveis. Agora, no entanto, dou-me conta de que tua inda-
gação não foi respondida. Tenho receio das classificações que, natu-
ralmente, são inventadas pelos homens e por isso mesmo perecíveis.
As categorias “normal” e “mórbido” são um exemplo de classificação
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isso... quando fui pedir a mão de Sinhá ao Major Estulário, ele estava
fardado... não sei se de propósito, para impor respeito... acho que sim...
cheguei e fui logo dizendo das minhas intenções com Sinhá... ela não
estava na sala assistindo à conversa... achei melhor, assim não poderia
opinar e muito menos mencionar o farmacêutico... ele entrou com a
farda, e eu, com a promessa de vida confortável para a filha e, quem
sabe, para ele... foi muito mais fácil do que imaginava... o máximo que
ela poderia fazer seria reclamar... depois, se cansaria e desistiria... como
o cavalo que passa a temer a espora que, a qualquer momento, pode ser
usada... minha conversa com Sinhá foi macia e cuidadosa... coloquei-
-me na condição de frágil e apaixonado, sabendo, entretanto, que na
verdade estava pronto para trucar... falei dos lençóis, e ela concordou
em se deitar neles comigo... ótimo, não acha? E, depois disso, você já
sabe... minha vida sexual com Sinhá era selvagem... como na fazenda...
mas, quando ela se transformou num molambo, meu desejo acabou,
desinchou... quis partir para outra batalha... também já falei da húngara
e do tanto que gastei para...
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ria algum desafio? Eu, nesse caso, deveria aceitar? O tempo que gastei
para chegar até o endereço foi interminável... assisti à passagem de cada
segundo, cada qual recheado de milhares de imagens e fantasias... en-
trar e surpreender o casal dava-me um secreto sentimento de vitória...
quando chegasse, ostentaria um ar de superioridade, como se soubesse
desde sempre... minha chegada apenas coroaria a exatidão da minha
intuição e do meu conhecimento sobre a alma humana... vez por outra,
apalpava a coronha do revólver, acariciava-a... as pontas dos meus dedos
caminhavam da coronha até o fim do cano lentamente, indo e voltando,
sentindo cada ranhura ou ressalto do aço duro... respirava ofegante e era
poderoso... como seria Gil Marçal, o que ele teria que eu não? Gostaria
de conhecê-lo, conversar com ele... falaríamos de Sinhá, ele me contaria
as tardes de amor com ela... em detalhes... assim, eu poderia saber mais
e mais sobre ela e... sobre ele... poderia saber o que deseja Sinhá, através
dele e da sua experiência...
[]
Deixe-me falar, deixe-me falar... nada poderia impedir a visão
daquela cena... mas, quando cheguei na casa, o desaponto... não mais
estavam por ali, tinham estado até há pouco... alívio... senti, de repente,
um profundo desprezo por Gil Marçal... mais do que isso, indiferen-
ça... o foco central da minha atenção mudou para Sinhá e, confesso,
compreendia suas atitudes... novamente minha paixão, que parecia não
mais existir, se reapresentava, como que saída de uma espécie de hiber-
nação... antes, devo dizer, fantasiei a possibilidade de Gil Marçal tomar
minha arma e me agredir na presença de Sinhá... balancei a cabeça com
vigor e expulsei essa hipótese intrusa... o tempo passou, e meu amor por
Sinhá oscilava segundo minha imaginação... se pensava que ela estava
se encontrando com Gil Marçal, ficava tomado de deliciosa excitação...
se imaginava que tinha sido abandonada, meus sentimentos refluíam
até o ponto da agressividade... meu coração ficou apertado quando, che-
gando certo dia em casa, encontrei-a chorando pelos cantos e tentando
disfarçar... não tive dúvida de que tinham rompido, e, se Gil Marçal a
abandonara, então Sinhá era um engodo, uma espiga sem merecimento
ou consideração alguma...
[]
Sim, sim, mas qual o problema? Não quero amar uma pessoa
que não é reconhecida... se, ao contrário, a mulher que amo é disputa-
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da, então sou, indiretamente, visto como um homem capaz, ora, ora...
surpreendi-me censurando Sinhá abertamente por sua conduta leviana,
mas, secretamente, criticava sua incompetência em sustentar a paixão
de Gil Marçal, que acabou se engraçando com uma outra... nessa toada,
vivemos uma espécie de trégua, sem disputas ou batalhas, durante um
ano... meus encontros com a húngara foram ritmados pelo tédio... os
ciúmes de Sinhá, para meu espanto e curiosidade, sumiram sem deixar
rastro... suas opiniões sobre o clima e as estações, o teatro, os livros da
moda eram sempre desenxabidas... e foi, exatamente, através da mudan-
ça nesse torpor que pude perceber que, finalmente, eu tinha um novo
desafio... chegando em casa, observei-a olhando o jardim, respirando e
sorvendo fundo o ar da primavera... com meias-palavras e discretamen-
te, passou a enaltecer a vida... não tive mais dúvida e assestei minhas
armas...
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ou esperar que, uma vez estando juntos, eu pudesse mais uma vez fazer
valer meu poder de fogo ou persuasão... a ideia de perder o que quer que
seja me é intolerável...
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(pirata mongol)
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Acho que sim, o amor deve ser demonstrado por atitudes pe-
rigosas, inusitadas, transgressoras, e esse bilhete poderia desencadear
acontecimentos que me diriam de que lado ela estava... ou se eu estava
sendo capaz de atraí-la para o meu lado, usando meus recursos... enviou
o sucinto bilhete e nos fomos...
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mimos... na verdade, acho que seu destino será o Major Estulário... coi-
tada...
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A fidelidade feminina é imperdoável
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como próprio. Não se trata de nosso lado animal, ou de algo que pudés-
semos comparar com os instintos selvagens, mesmo porque estaríamos
cometendo uma injustiça com as feras selvagens. Elas, diferentemente
dos humanos, não ficam sexualmente excitadas quando matam suas
presas, nem matam apenas para gozar com o desespero e o sofrimento
de suas vítimas. Estas são características exclusivamente humanas. Só
nós conseguimos ser perversos.
O inaceitável que projetamos nos outros, ou que nos engaja
em diversas outras formas de autodesconhecimento, relaciona-se com
a influência das outras pessoas na constituição de nossa subjetividade
e, acima de tudo, na constituição de sua dimensão sexual. Somos, des-
de nossos primeiros momentos de vida, inoculados com elementos da
sexualidade inconsciente dos adultos que cuidam de nós e nos educam.
Alguns desses elementos são integrados como partes de nosso eu, da-
quilo que reconhecemos como nossos desejos, nossas características
pessoais ou nossa personalidade. Outros permanecem como um corpo
estranho incrustado em nosso psiquismo, como um enclave de alteri-
dade interna. São esses cistos de alteridade que produzem os desejos
e os pensamentos intoleráveis; são eles que tratamos de expulsar e que
acabam por alimentar os recalcamentos e, portanto, as projeções, as ne-
gações e outras formas de desconhecimento.
Tertuliano vivia às voltas com suas projeções, como se só lhe
fosse possível reconhecer-se alienando seus desejos nos outros. Seu ma-
soquismo era a expressão do imperativo que lhe condicionava a existên-
cia, a saber, que uma mulher não só realizasse seu desejo transgressor
de ser subjugado e possuído por homens que lhe pareciam mais fortes e
poderosos, como também lhe oferecesse a possibilidade de ter um rival
com quem pudesse medir forças e a quem, eventualmente, pudesse pro-
porcionar aquilo que ele mesmo tanto buscava — o gozo de ser vencido.
Estava condenado a competir, pois só assim poderia perder e gozar com
sua derrota, ou ganhar e gozar especularmente com a derrota do outro.
Das duas formas, ganhava, pois com qualquer uma perdia. Interessava a
ele uma mulher que fosse objeto de disputa, posto que, somente assim,
teria garantida sua dupla satisfação: ser vencido pelo rival e, espelhado
na mulher em que seu desejo fora projetado: ser possuído sexualmente
pelo vencedor.
Quando Freud começou a interessar-se pelo narcisismo, a ho-
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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud
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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo
espelho, não havia mais que um passo, ou seja, uma cavalgada. Depois
de montar, chicotear, fustigar e exaurir sua montaria, Tertuliano fitou
o cavalo nos olhos e se deleitou com os sinais da submissão. Exausto,
suado, humilde e vencido, o cavalo era apenas o reflexo de seu desejo. O
mesmo reflexo, aliás, no qual certamente haveria de ter se reconhecido
se tivesse podido cruzar o olhar com o da égua que cruzava com o ca-
valo. Desses cruzamentos de olhar, vivia Tertuliano sua vida de ciúmes
cultivados, de submissões projetadas e de gozos refletidos. É preciso ser
uma espécie de égua, ou ter gosto pelo látego e pela espora, para poder
fitar um garanhão nos olhos. Nosso homem ciumento não se contentava
com pouco: queria ser um enorme pênis penetrante, e, ao mesmo tem-
po, uma fenda arrombada e fremente.
Nosso psicanalista tem razão quando reconhece a força da se-
guinte frase, proferida pelo narrador da história: “somente os trauma-
tismos morais nos põem a alma nos olhos”. De fato, a boa moral e os
bons costumes nos mantêm a uma confortável distância de tudo aquilo
que nossa alma possui de mais surpreendente e inquietante. O trauma
moral ao qual Tertuliano nos expõe encontra-se no caráter necessário e
autoinduzido de seu ciúme: nada mais aceitável do que um homem ciu-
mento, desde que ele nos faça crer que o sentimento de posse da mulher
amada o leva à vigilância de sua fidelidade.
Tudo se complica e se torna perturbador, no entanto, quando
o ciúme revela sua face propriamente sexual, quando ele joga por terra,
no caso dos homens, a máscara do macho zeloso de sua fêmea e expõe
as pulsões masoquistas, passivas e femininas que o animam, ou seja, que
lhe dão alma. E nada melhor do que as peripécias de Tertuliano para de-
monstrar que masoquismo, feminilidade e desejo de ser subjugado não
têm nada a ver com a passividade, no sentido corrente que atribuímos
a essa palavra. É preciso muito esforço, determinação e coragem para
lograr a satisfação do que, em Psicanálise, chamamos de passividade
pulsional, que pode ser descrita como a busca de ser ultrapassado pelo
desejo, de tornar-se objeto de um gozo que zomba da boa norma, da
dignidade e da razão.
Ao apontar a arma para Gastão Fortes — o amante que, exigin-
do de Sinhá exclusividade e devoção, acreditava-se normal —, Tertu-
liano não somente se excedia no esforço de gozar passivamente, como
também, certamente, colocava a alma nos olhos de seu rival, obrigando-
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-o a ver em seu rosto algo muito maior e mais intenso do que a previsível
e enfadonha fúria de um marido traído. Que fosse coagido a aceitar
de volta Sinhá já era sem dúvida algo surpreendente, mas ser obrigado
a encarar a desconcertante lascívia que sua forçada aquiescência fizera
brotar no sorriso do marido, isso sim, era demais, isso sim, com toda a
certeza, terá confrontado a autoconfiança de Gastão Fortes com uma
verdade tão gritante quanto insuportável.
Ou será que esse sedutor inveterado, esse atleta varonil tão se-
guro no manejo da raquete de tênis e do volante das baratinhas pratea-
das não teria tido cancha para captar essa outra verdade lapidar? Os
homens são quase sempre capazes de perdoar a infidelidade da mulher
amada, mas são absolutamente intolerantes com aquelas que não lhes
proporcionam um pequeno sinal, alguma margem de dúvida ou, pelo
menos, uma suspeita delirante que assegure a possibilidade do adulté-
rio. A fidelidade feminina é imperdoável.
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