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Lúcio Roberto Marzagão

Paulo de Carvalho Ribeiro


Fábio R. R. Belo

Psicanálise e Literatura
Seis Contos da Era de Freud

1ª Edição
POD

Petrópolis
KBR
2012
Edição de texto Noga Sklar
Revisão da edição original Rachel Kopit Cunha
Capa KBR sobre tela de Ismael Neri
Imagens do miolo Arquivo Google

Copyright © 2012 Lúcio Roberto Marzagão; Paulo de Carvalho Ribeiro;


Fábio R. R. Belo
Todos os direitos reservados aos autores.

ISBN: 978-85-8180-027-1

KBR Editora Digital Ltda.


www.kbrdigital.com.br
atendimento@kbrdigital.com.br
55|24|2222.3491

150 - Psicologia
Autores

Lúcio Roberto Marzagão é Mestre em Filo-


sofia pela UFMG, professor adjunto na mes-
ma universidade por 30 anos. Atualmente
ministra aulas no Curso de Especialização em
Teoria Psicanalítica da UFMG, Pós-Gradua-
ção Lato Sensu. Seus outros livros publicados
incluem Psicanálise e Pragmática, em 1966, e Psicanálise e Literatura, em se-
gunda edição também pela KBR. Paulo de Carvalho Ribeiro formou-se em
medicina na UFMG, realizou doutorado em Psicanálise e Psicopatologia na
Universidade Paris 7 e pós-doutorado na PUC-SP. É psicanalista, professor do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG e autor dos livros O pro-
blema da Identificação em Freud (Escuta, 2000) e Imitação, seu lugar na psicaná-
lise (Casa do Psicólogo, 2011), além de vários artigos em revistas especializadas
nacionais e estrangeiras. Fábio R. R. Belo formou-se em psicologia na UFMG,
realizou doutorado em Estudos Literários na UFMG. É psicanalista, professor
adjunto do Departamento de Psicologia da UFMG e autor dos livros Psicanálise,
Religião e Teoria da Sedução Generalizada (Selo, 2004) e Sobre o amor e outros
ensaios de psicanálise e pragmatismo (Ophicina de Arte & Prosa, 2011), além de
vários artigos em revistas especializadas nacionais.

Emails: lmarzagao@glasstower.com.br
fabiobelo76@gmail.com
icaro.bhz@terra.com.br
Epígrafe

Em latim, as palavras ‘inventar’ e ‘descobrir’ são sinônimas.


Aliás, segundo Aristóteles, a multiplicação destes dois verbos teria
como resultado o ato de ‘recordar’.
Se não existem invenções ou descobertas, só recordações, o criar
torna-se, com efeito, um admirável exercício da memória. Um incansável
esforço de lembrar.
Esta hipótese seria apenas curiosa, se não fosse também verda-
deira. Pois um dos efeitos mais perturbadores do ato de criar é aquele que
nos dá a sensação de que não estamos descobrindo nada de novo, somente
resgatando algo esquecido.
O talento da criação estaria, portanto, na maneira que utilizamos
para revelar aos outros este algo, esta estória, uma vida, saga ou percep-
ção, que sempre existiu mas que de alguma forma oculta foi esquecida
pela humanidade. Ficou adormecida, sem emocionar ninguém.

Doc Comparato
Prefácio de Me alugo para sonhar, de Gabriel Garcia Marquez
Sumário

Copyright 2
Autores 3
Epígrafe 5
Apresentação 8
Prefácio 15
Introdução 17
Ficções I 22
O relógio de ouro 23
(malandrim) 31
(a palidez de Clarinha) 43
O relógio de ouro: antes e depois 53
Ficções I I 59
A caolha 61
(Antonico) 69
(olhos negros como veludo) 77
Na falta de poder ser o menino dos olhos 81
Ficções III 85
O homem que precisava ter ciúmes 87
(breve colóquio sobre as afecções da alma) 99
(masoquista) 105
(pirata mongol) 115
A fidelidade feminina é imperdoável 119
Ficções IV 125
A mulher que passou 131
(mea culpa) 145
(fragmentos de um diário) 157
Desejos tortuosos 165
Ficções V 169
O barril de amontillado 171
(atestamento) 179
Sem justiça nem razão 185
Ficções VI 188
Duas mães 189
Dois filhos 213
Nenhum pai 227
Apêndice 233
Associação livre 235
Complexo de Édipo 239
Denegação 245
Desejo 249
Diagnóstico 251
Identificação 253
Interpretação 257
Interpretação: arte e técnica 258
Interpretação selvagem 259
A interpretação e a ciência 259
Metapsicologia 261
Projeção 265
Psicanálise 269
Pulsão 273
Pulsão de morte 274
Recalque 277
Repetição 281
Sexualidade 283
Sintoma 287
Parapraxias 289
Transferência 291
Referências bibliográficas 294
Apresentação

C omo explicar a fascinação que o texto literário sempre exer-


ceu sobre a Psicanálise? Embora as primeiras incursões de
Freud na Literatura já demonstrassem a incidência do inconsciente nas
situações que não indicavam sinal algum de patologia, logo se tornou
claro que esse interesse ia muito além da mera constatação das princi-
pais teorias psicanalíticas. É bem possível que, desde Freud, a aproxi-
mação entre Literatura e Psicanálise continue a nos seduzir justamente
pelo parentesco existente entre a criação do texto literário e o discurso
produzido na situação clínica.
Em um precioso ensaio, escrito em 1987, Shoshana Felman re-
dimensionou essa semelhança, afirmando que a teoria psicanalítica e o
texto literário mutuamente informam e deslocam um ao outro, sendo
que a própria condição do interpretador e do analista está não fora, mas
dentro do texto. Em sua opinião, não existiria uma oposição radical ou
um limite bem definido entre Literatura e Psicanálise, podendo esta úl-
tima ser intraliterária assim como a primeira é intrapsicanalítica. O que
poderia parecer apenas um jogo de palavras de Felman expõe, na verda-
de, que o limite metodológico não é mais o da aplicação da Psicanálise
à Literatura, mas sim o da sua interimplicação mútua. O argumento da
ensaísta coincide com o de Roland Barthes, para quem, como sabemos,
Literatura e Psicanálise não apenas são inseparáveis uma da outra, como
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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

também o específico modo em que uma se “mistura” à outra constitui


uma condição essencial para que se dê o conhecimento.
Contudo, todo aquele que se aventura nesse caminho é obrigado
a reconhecer a especificidade dos dois campos. Talvez por essa razão os
impasses encontrados pelo psicanalista em seu trabalho, fora do campo
clínico, apontam para aspectos que, de modo insuspeitado, relacionam-
-se, em primeiro lugar, à dificuldade de se estabelecer a distinção entre
o processo criativo e as outras formações originadas no inconsciente; e,
em segundo lugar, mas não menos importante, se relacionam à neces-
sidade de se efetuar com cautela a transposição, para a Literatura, dos
operadores que funcionam na situação clínica. Além disso, o psicana-
lista interessado em examinar psicanaliticamente o texto literário ain-
da tem que enfrentar certo desagrado da parte de seus colegas, mesmo
depois de um século de evidências acumuladas para demonstrar que,
felizmente, o alcance da Psicanálise nunca esteve limitado ao terreno
circunscrito pelo campo da transferência dentro do setting analítico.
Como se tudo isso não bastasse, as duas principais vertentes
que fundamentam a abordagem psicanalítica do texto literário têm sido
marcadas por toda uma sorte de problemas. Uma dessas linhas, mais
preocupada em captar no enunciado as motivações inconscientes do es-
critor (ou dos personagens), negligencia o complexo da construção tex-
tual e, assim, utiliza o texto como se fosse uma espécie de teste projetivo
da mente supostamente doentia do autor. A outra, ao examinar a cons-
trução textual a partir da primazia do significante na enunciação, deixa
de lado os elementos privilegiados pela primeira, mas a consequência é
uma abstração teórica cuja característica mais evidente é a desvitaliza-
ção do literário, reduzido a um mero jogo de significantes sem nenhum
sopro de vida, isto é, sem história e sem afeto. Tentando evitar esses pro-
blemas, o psicanalista geralmente fica indeciso entre esses dois modelos,
já que são incompatíveis.
É preciso reconhecer que se a aproximação, ainda que proble-
mática, entre a Psicanálise e a Literatura tem produzido debates insti-
gantes e ricos, isto se deve ao fato de que, ao voltar-se para o exame da
obra literária, o mérito da Psicanálise tem sido deixar claro que aquilo
que a move não é outra coisa senão a possibilidade fecunda de aproxi-
mar-se do literário, justamente, por onde ele se mostra analisável, sem
perder sua especificidade. A questão é, contudo, delimitar o método

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

oferecido pela Psicanálise à abordagem do texto literário, não deixando


de refletir sobre quais pressupostos psicanalíticos podem melhor pos-
sibilitar e legitimar essa empreitada. Essa reflexão é que nos dará uma
bagagem instrumental com a qual se pode recuperar, objetivamente, o
manejo de seu objeto de estudo no registro simbólico ao qual a teoria
pertence, sem, contudo, descaracterizar esse objeto.
Estas considerações, que apontam para a necessidade de dis-
cussão sobre o método psicanalítico de pesquisa do inconsciente — ou
seja, o método interpretativo aplicado ao texto literário —, constituem
um dos aspectos distintivos do livro Psicanálise e Literatura: Seis Contos
da Era de Freud, de Lúcio Roberto Marzagão, Paulo de Carvalho Ribeiro
e Fábio R. Belo, psicanalistas e professores da Universidade Federal de
Minas Gerais. Mas o eixo mais notável que sustenta este livro segue uma
importante consideração de Freud sobre a psicanálise da obra literá-
ria, consideração esta que, se não tivesse sido negligenciada por muitos,
teria certamente evitado a restrição desse campo de trabalho às duas
vertentes mencionadas acima; pois tudo neste livro é fiel à inovação
freudiana de que, embora não se possa deixar de considerar o literário
como expressão de uma interioridade (até mesmo quando a intenção
do escritor é retratar o mundo externo, este sendo, então, visto a partir
de seus mecanismos de projeção), o psicanalista deverá sempre incluir,
em sua análise, os aspectos ligados aos “efeitos” da obra sobre si mesmo
como leitor. Só assim será possível recuperar, via interpretação, o senti-
do da produção literária.
A importância desta consideração é que ela ressalta a neces-
sidade de se levar em conta nossa própria “resposta emocional” como
leitores, que é, como sabemos, um dos aspectos de nossa transferência
para com o texto. O que é mais difícil de se ver é que, ao enfatizar as
motivações do escritor do mesmo modo que o campo emocional des-
pertado no leitor, Freud, na verdade, estava evidenciando uma outra
ordem de problemas: o uso controlado do campo emocional do analista,
que na situação de análise é regido pela regra da abstinência, deveria
sofrer algum grau de modificação no que se refere à análise do texto
literário. Se, no contexto da escuta na clínica, é a regra da abstinência
que previne o risco de que o viés pessoal do analista obscureça a clareza
com que pretendemos tornar evidente uma determinada configuração
psíquica na situação transferencial, na análise do texto literário não há

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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

como deixar de lado o impacto emocional que ele provoca. Contudo, é


justamente o reconhecimento desse impacto que reduz a tendência para
tratar as interpretações como se fossem verdades definitivas,
Nesse sentido, os autores de Seis Contos da Era de Freud de-
monstram que nenhuma abordagem psicanalítica do literário pode
deixar de incluir essa ordem de afetação. Levando-a em consideração,
os autores apenas respeitaram a capacidade que a obra literária tem de
afetar aquele que a lê, e assim puderam, como psicanalistas, se manter
fiéis aos princípios da Psicanálise sem perder de vista a especificidade
do objeto que estavam abordando: isso é o que abriu a possibilidade de
uma leitura psicanalítica, sem fazer dela um instrumento diagnóstico e
sem se limitar à análise da estrutura interna formal do texto. A ousadia
dos autores deste livro consiste em mostrar que a interpretação é o que
permite, afinal, encontrar o elemento que, afetando-os como leitores,
evidencia um sentido ligado à função interna dos processos psíquicos,
dos quais resulta a produção textual e que dão a ela, na enunciação, sua
estabilidade e sua especificidade.
Além dos temas do desejo, da morte, do feminino, da exclusão e
da função paterna, dentre outros que estão nuançados na complexidade
das tramas de Seis Contos da Era de Freud, as interpretações oferecidas
pelas seis mãos de Lúcio, Paulo e Fábio os reenviam para aquilo que,
dentro de si mesmos como leitores, aponta para algo de sua própria his-
tória que a construção da enunciação veio suscitar. Provavelmente, esse
mesmo elemento é o que tornaria possível encontrar as marcas secun-
dariamente transformadas da interioridade de Machado, Del Picchia,
Júlia Lopes de Almeida, Unamuno, Allan Poe e Guido de Verona. Por-
tanto, se existe uma teoria estética da recepção propriamente psicanalí-
tica, esta se constrói sobre a possibilidade de que os aspectos funcionais
da escrita literária sejam vislumbrados por seus efeitos.
A originalidade deste livro, no entanto, vai além. Reescrevendo
cada um dos seis contos que compõem seus pilares, os autores aposta-
ram na fecundidade da direção proposta por Freud, e, com isso, a cada
recriação, a cada posição ou voz que destacavam, tiveram que decidir
sobre o que de fato estava sendo interpretado. O risco calculado era o
de que, ao rejeitarem do seu método a ênfase na patologia do autor, pu-
dessem cometer o mesmo engano ao privilegiar, com as ficções que pro-
duziram a partir dos seis contos, uma espécie de “patologia do efeito de

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

leitura”. O desafio que os autores enfrentaram levou-os a encontrar um


ponto de equilíbrio no avesso de uma situação, antes submetida à tirania
da posição que restringia a explicação da obra do lado de quem a pro-
duziu. Com isso, evitaram resvalar, no entanto, para uma explicação que
enfatizasse apenas a leitura como reveladora da verdade última do texto.
O problema era conjugar um método que, levando em consideração o
fato de que não existe uma única interpretação que contemple todos
os aspectos ligados à produção textual, se aprofundasse na qualidade
singular de um texto, buscando nele elementos que permitam retraçar
o caminho do desejo que o construiu, sem contudo transformá-lo em
um sintoma de seu autor e sem transformar seu autor em um paciente.
Desse modo, este livro nos ensina que o limite e a possibilidade
de uma abordagem psicanalítica do texto literário não se devem às fa-
lhas inerentes ao método interpretativo, mas sim à sobredeterminação
dos processos a que estão submetidos o psiquismo do autor — do qual
resulta a criação literária e nosso próprio psiquismo, como leitores. Não
obstante, se o trabalho do qual resultou este livro consistiu num con-
tínuo ir e vir da teoria para o texto e deste para o referencial teórico,
é porque as ficções/ interpretações dos três autores foram, ao mesmo
tempo, suportadas por ambas as dimensões. Essa movimentação contí-
nua permitiu que os autores levassem em conta o que Freud chamou de
“núcleo de verdade”, elemento que pode estar escandalosamente à vista
ou, ao contrário, inteiramente disfarçado na concretude das linhas que
tecem os contos aqui trabalhados. Como sabemos, esse núcleo de verda-
de é um operador sempre móvel e não antecipável, e resulta do encontro
inesperado produzido pela polifonia das interpretações que a Literatura
provoca. Levando a interpretação psicanalítica para o campo do texto li-
terário, os autores conservaram dela sua função primordial — a de “tirar
o texto de sua trilha”, como disse André Green em uma descrição que
já se tornou clássica —, pois a eficácia da interpretação está justamente
em mostrar que, no desvendamento das relações do texto com o incons-
ciente, faz surgir uma outra realidade que não é literária.
É por isso que, em qualquer um dos vários níveis de leitura, a
problemática deste livro ilustra o fato de que, além do texto literário, existe
uma outra cena em funcionamento nunca inteiramente apreensível,
quer seja pela interpretação psicanalítica, quer seja pela criação literária.
Desse modo, é possível pensar que como leitores, críticos ou analistas,

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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

estamos condenados diante da Literatura a permanecer em uma


espiral sempre pronta a recomeçar, remetidos pelo texto a algo que é só
parcialmente linguístico, apresentando-se conforme o desejo particular
de cada um. E isso não é tudo: é preciso considerar que essa movimen-
tação é posta em marcha pela razão óbvia de que aquilo que constitui o
texto em sua materialidade permite, segundo Barthes, que ali se inscre-
vam subjetividades que farão dele sempre algo «mais» e algo «menos».
Na concepção barthesiana, o texto é o registro, por meio da ordem sim-
bólica, dessa dialética de deslocamentos, facilitações, descarga e inves-
timento de impulsos — o mais característico sendo o impulso de morte
— que constituem o significante, mas que também o excedem. Ao in-
cluir-se na ordem linear da linguagem, e utilizando as leis fundamentais
do inconsciente — deslocamento, condensação, repetição, inversão —,
o texto produz, segundo Barthes, uma outra ordem de significação. É
por isso que para ele o texto literário, não podendo deixar de se enraizar
em algo além da linguagem, desenvolve-se não como uma linha, mas
como uma semente que retém a «ameaça de um segredo».
O reconhecimento dessa noção norteadora de uma leitura psi-
canalítica da obra literária revela o impasse vivido pelo psicanalista,
tanto na situação de seu trabalho clínico como em sua análise de textos
literários. A mera possibilidade de interpretação já indica que há algo
sempre aludido, nunca completamente dito ou imobilizado na escrita —
como, de resto, em qualquer discurso. Compreende-se por que, em Seis
Contos da Era de Freud, os autores recorreram constantemente à media-
ção teórica da Psicanálise: entretecendo às suas próprias linhas as linhas
escritas por Poe, Del Picchia, Unamuno, Machado de Assis, Júlia Lopes
de Almeida e Guido de Verona, precisavam de um contraponto teórico
para ultrapassar a fascinação imaginária provocada pela transferência.
Assim, determinadas noções psicanalíticas foram sendo con-
vocadas em cada um dos pequenos ensaios que finaliza cada uma das
seções. Não retomarei esses operadores teóricos aqui. Apenas sublinho
que, da associação livre (que inicia o glossário) à transferência (que o
encerra), todos são balizas imprescindíveis para o exercício da psicaná-
lise, dentro ou fora da clínica. Sem eles, teria sido impossível promover
o reconhecimento indispensável da maneira pela qual Lúcio, Paulo e
Fábio se implicaram nos contos que leram, e também teria sido impos-
sível destacar que nenhuma interpretação por eles oferecida pretendia

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

esgotar todo o sentido das obras literárias por eles escolhidas, já que
justamente tocam o indizível. É também por isso que os autores des-
te livro não puderam deixar de atribuir um saber a Machado, a Poe,
a Unamuno, a Lopes de Almeida, a Del Picchia e a Guido de Verona.
Sem essa atribuição de saber, não poderiam explicar a presteza com que
colocaram para trabalhar o referencial teórico psicanalítico interpelado,
assim, por estes contos extraordinários.
Se Lúcio, Paulo e Fábio tiveram a coragem de se colocar mais
em posição de analisandos do que de analistas, é porque, como indicou
François Ansermet, quando nos colocamos como leitores somos lidos,
de certo modo, pelo texto — o escrito nos interpreta, na medida em que
nos faz falar. Eis aí por que a leitura do texto impõe ao psicanalista o
inverso da posição que ele deve manter na análise.
A leitura paradoxalmente agradável e inquietante de Seis Contos
da Era de Freud nos ensina, finalmente, uma importante lição: uma lei-
tura do texto literário que se guie pelo método interpretativo da Psica-
nálise tornará evidente que, sem que seja necessário proceder a nenhu-
ma modificação nesse “método de pesquisa do inconsciente” — uma
das três maneiras oferecidas por Freud para definir a Psicanálise —,
deverá caminhar no sentido da desconstrução daquilo que se supõe sa-
ber. O aspecto crítico de uma tal leitura deve limitar-se a descrever uma
postura reflexiva, pronta a se refazer continuamente diante da delimita-
ção impossível entre a interpretação e a construção que unem a prática
psicanalítica e o fazer literário por meio de um único elo fundamental,
que é ficcional e também poético. Tal como acolhemos o discurso que
se apresenta na situação clínica, o que não se pode perder de vista é a
singularidade com que certos elementos aparecem ou desaparecem na
enunciação do texto literário e, do mesmo modo, na enunciação do tex-
to que o próprio psicanalista termina por produzir.
Vista assim, a interpretação psicanalítica guarda um inesperado
parentesco com aquilo que propicia a criação literária, na medida em
que ambas se originam de uma lacuna, no sentido que põe em marcha
o desejo de dar forma, por meio de uma marca pessoal ou estilo, àquilo
que corre o risco de se ver dissipado pela inarticulação e pela indizibili-
dade que parece existir no interior da linguagem. Embora o modo como
cada um inscreve esses elementos possa variar a cada leitura, sendo esta
a condição primordial deste livro, algo existe no texto que, constituindo

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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

sua estabilidade, suportará o trabalho interpretativo sobre uma dupla


face de resistência, opacidade e legibilidade.
Com Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud, Lúcio
Marzagão, Paulo de Carvalho Ribeiro e Fábio R. Belo deixam claro que
Freud certamente tinha razão quando afirmou, no estudo sobre a Gra-
diva, que “nada descobrimos em uma obra que ali não exista”. Diante
disso, Jorge Luis Borges, em sua fina ironia, talvez dissesse: “Sim, por
isso mesmo todo livro é um livro de areia...”

Ana Cecília Carvalho


Belo Horizonte, outubro de 2001

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Prefácio

L úcio Roberto Marzagão, Paulo de Carvalho Ribeiro e Fábio


R. R. Belo entregaram-se a uma afortunada aventura que se
coloca entre a Psicanálise, a Literatura e, de certa forma, as Artes Plásti-
cas: daí o cunho didático e instrutivo de Psicanálise e Literatura, projeta-
do num contexto prazeroso de leitura e criação, pois mescla, na busca da
verdade, o questionamento das situações dramáticas aos procedimentos
da terapia analítica. Acrescente-se a isso as ilustrações, que lembram a
procura, no século XIX, da “arte completa”, ou da nova margem do rio
literário.
Os autores selecionaram seis contos de ficcionistas consagra-
dos, simetricamente distribuídos entre brasileiros e estrangeiros: Ma-
chado de Assis, Júlia Lopes de Almeida, Menotti del Picchia, Guido de
Verona, Edgar Allan Poe e Miguel de Unamuno. A seguir, exerceram
sobre os textos uma leitura sequencial, a um tempo elucidativa e ilu-
minadora. Melhor dizendo: prolongaram alguns enredos realizando as
próprias “ficções”, a fim de desentranhar dos conteúdos o lado secreto,
obscuro ou interdito das relações. Enfim, deram uma segunda voz aos
personagens com o propósito de desvendar a camada profunda dos de-
sejos e intenções.
De tudo isso nasceu o projeto desta obra, cujo subtítulo, Seis
Contos da Era de Freud, faz uma alusão a Tales of the Jazz Age de Scott
Fitzgerald (1922), o que bem diz da motivação literária dos seis autores.
Freud, aliás, procurou investigar, nas “associações livres” e nos deslizes

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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

dos relatos, orais ou escritos, o nexo do plano da consciência com as


profundas camadas do inconsciente.
Psicanálise e Literatura guarda um aspecto inovador e criativo,
pois tudo concorre para dar sentido aos contos selecionados, às “fic-
ções”, aos conceitos e ao aparato icônico, visual. Após a análise interpre-
tativa dos textos vem como apêndice, em verbetes dispostos em ordem
alfabética, um elucidário dos termos utilizados em linguagem segura e
esclarecedora. Assim, o proveito é duplo: a obra agrada e instrui.

Fábio Lucas
Professor e crítico literário

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Introdução

D isse certa vez Ezra Pound que Literatura era a linguagem


carregada de significados. Podemos, quem sabe, dizer algo
similar sobre a Psicanálise, já que sua matéria-prima, especialmente na
clínica, são os diálogos, as alusões, os efeitos de linguagem. Essa mo-
vimentação linguística acaba por criar alternativas de sentido para os
jogos amorosos praticados pelos humanos, que encontram sustentação
nas interlocuções que giram e mudam no espaço e no tempo, como um
caleidoscópio.
Este livro trata de Psicanálise e Literatura fazendo uso de con-
tos e elaborações clínicas, sob a forma de ficções. À primeira vista, es-
tas ficções poderiam ser tomadas tão somente como mais um recurso
pedagógico — dentre os muitos existentes — na tentativa de ilustrar
como trabalham os psicanalistas. Nada mais equivocado. A ambição,
que pode revelar-se inalcançável, é propor uma mirada diversa para o
cotidiano dos personagens, e, ao mesmo tempo, arrancar a Psicanálise
de seu costumeiro viés anamnésico: propomos, com ousadia, uma ma-
neira diversa de pensar o estatuto epistemológico da teoria freudiana; se
é verdade que propostas sobre a cientificidade da Psicanálise proliferam
nos dias atuais, é preciso admitir que estas ficções terão o poder de irri-
tar os puristas teóricos das mais variadas latitudes.
Um outro ponto que esta obra deixa em aberto para debate é a
franca aproximação entre a regra fundamental criada por Freud — que
a chamou “associação livre” — e as formas de narrativa que encontra-
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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

mos na Literatura, desde seus primórdios. Afirmamos a possibilidade


de uma homologia — que, ressaltamos, não se refere a identidade, mas
a similaridade — entre as narrativas variadas comumente encontradas
na Literatura e as formas discursivas apresentadas pelos pacientes em
um consultório. A ideia de criar, ou recriar, a partir de contos consa-
grados pela literatura universal deve-se, entre outros fatores, ao fato de
os psicanalistas, por motivos óbvios, estarem confinados aos limites ou
fronteiras existentes entre a ética, a teoria, sua práxis e transmissão.
Não estamos sozinhos nesta empreitada. A narrativa confes-
sional, pelo menos desde Alfred de Musset, tem espaço definido na
Literatura. Mais recentemente, encontramos André Gide e, na poesia,
Sylvia Plath. Vale naturalmente referirmo-nos, ainda, à obra de Michel
Butort (A modificação), James Joyce (Ulisses), Philip Roth (Complexo de
Portnoy) e, para coroar, Guimarães Rosa, com Grande sertão: veredas.
Aproximando-nos da Psicanálise, podemos lembrar A consciência de
Zeno, de Ítalo Svevo, que escreve literariamente sobre sua análise com o
analista italiano e discípulo de Freud, Edoardo Weiss.
Falemos, agora, da Psicanálise: os impasses e vicissitudes vivi-
dos pela teoria de Freud nas últimas décadas, relacionados à transposi-
ção dos dados obtidos na clínica para o formato de uma comunicação
científica, não são nada desprezíveis. Assim, com o intuito de referendar
nossas preocupações, podemos mencionar o artigo recente de Deloren-
zo et alii, “Narrar a clínica”, no qual essa transposição é discutida. Vale
a pena transcrever a opinião de um dos autores, Oscar Cesarotto, para
situar o debate:

Quando o analista fala da sua prática, ele pode, muitas vezes,


ser objetivo e dessubjetivado. Contudo, ao contar um caso, tomando
todos os cuidados, talvez precise metamorfosear o relato, priorizan-
do o sujeito do inconsciente para além da identificação do cliente em
pauta. Como fazer isso sem falsear os dados? Neste ponto, querendo
ou não, entra-se no campo das ficções. Transcrever e comunicar uma
análise acaba sendo uma criação literal cujo relator-escriba, tentando
metaforizar o que foi ouvido e perdido, monta um roteiro particula-
ríssimo, fictício, porém verídico, embora legível porque organizado
segundo os usos da língua.1

1 DELORENZO et alii. “Narrar a clínica”, p. 110.


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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

Sabemos que Freud sempre deu atenção especial aos poetas, so-
bre os quais chegou a dizer que chegam voando aonde os cientistas che-
gam claudicando. O motivo dessa crença talvez se encontre na própria
natureza da inspiração: inspirar-se acaba sendo nada mais nada menos
que sofrer o sopro da alteridade para, em seguida, bafejá-lo numa cria-
ção. Existe, portanto, na criação artística, um vínculo privilegiado com
o “outro”, ou seja, com aquilo contra o qual trabalham todos os recursos
racionais e que, na verdade, só é apreensível à margem do que se produz
intencionalmente.
Uma obra de arte situa-se sempre além de um determinado ego,
e é nesse sentido que a pensamos fruto de inspiração. Convém nos aten-
tarmos para não confundir alteridade com nenhuma entidade mística
ou mítica, o que acabaria por nos fazer repetir chavões como “inspira-
ção divina” ou “musa inspiradora”. Embora não possamos abrir mão da
ideia de causação na medida em que pensamos a inspiração como força
causadora da criação artística, insistimos na natureza radicalmente hu-
mana e eminentemente sexual dessa força, mesmo tendo que admitir
que, assim pensada, a inspiração funciona segundo o princípio metafí-
sico da causa.
Nesta obra, o recurso que utilizamos permitirá ao leitor esco-
lher diferentes sequências de leitura. Se seu interesse for conhecer os
seis autores escolhidos e seus contos, poderá assim fazê-lo; caso quei-
ra, ainda que movido apenas pela curiosidade, conhecer os devaneios
dos autores deste livro sobre os personagens, basta ler as “ficções” que
se seguem aos originais; e, finalmente, a última seção de cada “ficção”
se dedica à elucubração de natureza teórica ou conceitual, lastreada na
teoria psicanalítica. Se, além desses, o interesse reside em ter acesso a
alguns conceitos ou fenômenos fundantes da teoria criada por Freud,
oferecemos um apêndice no qual elencamos verbetes e esclarecimentos
gerais a respeito dela.
Convém esclarecer, ainda, que o subtítulo do livro é uma re-
ferência e uma homenagem a Scott Fitzgerald, que publicou um livro
clássico, Seis contos da era do Jazz, onde ressalta a importância de uma
época para uma obra de arte e como esta obra pode ser a fiel e desinte-
ressada mensageira de um dado momento cultural.
Os seis contos que deram pretexto ao livro foram escolhidos,
em primeiro lugar, pelo alto nível de qualidade literária que apresentam;

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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

em segundo, demos atenção à presença clara de “triangulações” entre os


personagens, pois sabemos que, quando nos dirigimos a alguém, jamais
podemos abrir mão de uma testemunha fantasmática que, de alguma
forma, se faz presente naquela interlocução; em terceiro, trata-se de nar-
rativas que, de um modo ou de outro, privilegiam as tramas e tessituras
presentes em qualquer drama humano. Além disso, tivemos o cuidado
de escolher contos cujos direitos autorais já estivessem sob domínio pú-
blico, à exceção de “O homem que precisava ter ciúmes”, caso em que a
Casa de Menotti del Picchia, que cuida de seu espólio intelectual, gentil-
mente, nos cedeu os direitos de republicação.
Devemos dizer ainda que demos preferência a contos mais cur-
tos, que contribuíssem para tornar a leitura deste livro uma atividade
lúdica. Finalmente, afirmamos que levamos a sério a ideia de que, se as
crianças brincam com os brinquedos, os adultos brincam com as pala-
vras. Mais que isso, acreditamos que se submeter a uma análise significa
reaprender que com as palavras podemos fazer praticamente tudo, in-
clusive tentar mudar o mundo para melhor.
Estamos cientes de que este livro comete de uma só vez duas
transgressões: uma, diante da Literatura, quando viola e sequestra do
universo literário personagens que ali jaziam em paz, nas estantes e em
estado de biblioteca; e outra quando propõe análise a esses personagens,
sem que haja sequer indício de demanda por parte deles. Entretanto,
como autores nos sentimos aliviados quando nos lembramos de que a
Literatura sempre respirou a liberdade de espírito e dela viveu; quanto à
Psicanálise, não foi o próprio Freud que disse ao seu amigo Pfister que
nela, tal como nas artes plásticas, vez por outra é preciso não ter escrú-
pulos e, eventualmente, romper com certas regras e até mesmo queimar
os móveis para proteger o modelo do frio?
As “sessões” ou ficções que dizem respeito aos personagens, na-
turalmente, não têm qualquer pretensão de reproduzir encontros analí-
ticos reais; apenas assumem a função de simulacro. Quando propomos
ao leitor um “paciente ideal”, tentamos transmitir um dado contexto,
valendo-nos de uma dose de liberdade e atrevimento. Evitamos, ain-
da, um grande número de citações bibliográficas, por considerarmos
que tal prática tornaria o texto excessivamente acadêmico, o que pode-
ria conduzir ao risco da perda de nosso objetivo lúdico. O leitor mais
informado sobre a práxis psicanalítica observará que os colchetes, que

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

pretendem aludir a uma interpretação efetuada pelo suposto analista,


diminuem gradativamente até desaparecerem no final do livro, o que
se deve a pelo menos duas razões: nosso interesse, no momento, é des-
tacar as similaridades entre associação livre e narrativa e, além disso,
não pretendemos levantar questões que são mais pertinentes num livro
que trate da teoria da interpretação, o que seria uma outra história, um
outro livro.
É conhecida dos psicanalistas a proposição de que suas ações
clínicas são regidas por uma teoria denominada por Freud “Metapsi-
cologia”. Eles também sabem que a distância existente entre o fato clí-
nico, o acontecimento e o diálogo mantido entre analista e paciente é a
matéria-prima que sustenta essa articulação teórica pré-existente. Este
livro procura mostrar aos leitores que não são versados na teoria de
que forma o analista exerce sua escuta, caminhando desde a troca dia-
lógica até formulações mais complexas e teoricamente relevantes. Uma
leitura mais cuidadosa permitirá observar que, após o diálogo ou nar-
rativa, haverá pelo menos algumas balizas intermediárias a nortearem
a plena compreensão da clínica. Assim, o diálogo travado entre analista
e paciente favorece a atenção aos fenômenos ligados à repetição, aos
atos falhos etc., para, em seguida, avançar num nível de abstração mais
elevado e tentar estabelecer conexões de sentido na narrativa, além de
pressupor regularidades discursivas nas diferenças. Somente após esse
ponto o analista pode voltar sua escuta para hipóteses clínicas, que in-
dicam fenômenos como conflito, recalque, luto e perda. Finalmente,
munido dessas hipóteses, poderá refletir sobre as questões teóricas mais
fundantes de que trata a Metapsicologia — neurose, psicose e perversão.
A construção de um livro, sem dúvida, exige a participação ativa
de muitas pessoas, e este não se constitui numa exceção. Agradecemos,
de saída, aos alunos do Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica
da UFMG, especialmente àqueles que cursaram a disciplina Psicanálise
e Literatura no primeiro semestre de 2001. Agradecemos também ao
Professor Fábio Lucas suas opiniões, seus comentários e seu incentivo à
consumação desta obra.

Os autores
Belo Horizonte, novembro de 2001

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Ficções III

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Edvard Munch (1863/1944)
“Ciúme 2”, 1907
Óleo sobre tela
Munch Museet, Oslo, Noruega
O homem que precisava ter ciúmes
Menotti del Picchia

MENOTTI DEL PICCHIA (1892-1988) nasceu na cidade de


São Paulo e transferiu-se, ainda menino, para Itapira, SP. É conside-
rado um dos líderes da célebre Semana de Arte Moderna, realizada
no Teatro Municipal de São Paulo em 1922, ano em que também pu-
blicou o romance O homem e sua morte. Foi membro da Academia
Brasileira de Letras e, na sua posse, foi saudado pelo poeta Cassiano
Ricardo. Menotti Del Picchia publicou quase uma dezena de roman-
ces, várias coletâneas de contos e novelas, doze livros de poemas —
dentre eles Jucá Mulato (1917) — e duas peças teatrais. Algumas de
suas obras foram traduzidas para o espanhol, italiano alemão, francês,
árabe e polonês. O conto “O homem que precisava ter ciúmes” foi
extraído da coleção Primores do Conto Universal, org. Jacob Penteado,
Edigraf (São Paulo, 1964).

E u não me espanto com coisa alguma. Se me contarem que


as pernas de aço do Viaduto do Chá se articularam de mús-
culos e a ponte saiu andando pelo vale do Anhangabaú, afora, tal qual
uma centopeia, acredito.
Acredito em tudo. Não tenho pixaim na cabeça de dólico-lou-
co mas por metempsicose há dentro de mim a alma de um feiticeiro
quimbundo. Se me afirmarem que o raio não é uma faísca elétrica mas
um espirro de Jeová, acredito. Quem pode provar o contrário? O sábio

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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

Turpim? Babau! A ciência humana é puro esforço mecânico com faro-


fas imbecis de metafísica. Que o diga “herr” Einstein... É por isso que
acredito na alma incrível de Tertuliano Trancoso.

***

— O senhor põe açúcar no café?


— Ponho...
— E sal na comida?
— Ponho...
— Siga meu pensamento: o café, a carne, por exemplo, são ele-
mentos primitivos e simples. O sal e o açúcar ajuntam-se-lhes para lhes
dar uma qualidade diversa de sabor. Por que aos sentimentos iniciais,
puramente instintivos, como o amor, a inveja, o ódio, não se lhes pode
juntar um ingrediente cerebral destinado a enriquecer-lhes a forma e a
tornar mais sutil seu gosto psíquico?

***

Meu amigo Tertuliano era um sibarita passional. Paladar mór-


bido... mas que será mórbido ou normal? Devemos admitir que meia
dúzia de burgueses de almas em uniforme e de visão banal e igual sejam
os árbitros da normalidade? Qual será a melhor definição de “senso-
-comum” considerado “bom senso”? Problemas de quebrar a cabeça
matemática de Arquimedes...
Exemplo: o defunto está ali, cor-de-cera, pés juntos para dar o
salto na eternidade. Parece que fechou os olhos com medo do que há no
lado de lá... uma senhora gorda teatraliza um choro. É de “bom sendo”,
para uma senhora gorda, chorar perto de todos os cadáveres. Um ban-
queiro acha que deve ser fleugmático: fala da quebra do padrão em voz
baixa a um parente do morto que lhe deve uma hipoteca e entende que
é de “bom senso” ouvir sem piar. Um político passa em revista mental
os candidatos à vaga aberta pelo morto no Almoxarifado da Polícia...
há uma pobre filha do defunto — moça datilógrafa e sem esperança de
casamento — que sofre com os olhos enxutos. Com quem está o “bom
senso”?

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

***

Tertuliano Trancoso casou-se com a Sinhá por uma crise de


ciúme. Foi no Pinhal, num baile. Ele era comissário de café e Sinhá, nes-
sa noite, namorou um farmacêutico. A valsa saiu metálica do pistão do
Niquinho. Parecia mais sonora porque o Niquinho polia o pistão todos
os dias com saponáceo e a música escapulia clara do latão liso com uma
cadência de fazer fremir o coração. Tertuliano tirou Sinhá que olhava o
farmacêutico. Apertou-lhe os pulsos:
— Eu gosto de você feito um louco e você olha para aquele en-
rola-pílulas...
— E que o senhor tem que ver com isso?
Tertuliano, como um psiquiatra logo vê, sofria de masoquismo
espiritual. Gozava com chibatadas de frases. Seu amor era um frenesi.
— Amanhã peço você em casamento.
O major Estulário, pai de Sinhá, que estava quebrado e com a
fazenda crivada de penhores, fechou o casamento da filha como um ne-
gócio.
— Fechado. Tertuliano...
Sinhá estrilou. O enxoval custou o dobro para amortecer-lhe
a manha. O farmacêutico fez a viagem romântica. A cidade falou, fa-
lou, falou, e o casamento se fez. Sinhá acabou gostando de Tertuliano.
Mulher é assim: não ama, acostuma. E Tertuliano detestou-a porque a
sentiu caninamente fiel.
Eu não sei escrever contos. Escrevo este porque me pediram.
É uma tentativa destrambelhada feita de fragmentos de observações.
Quero fazer uma garrafa e começo ajuntando cacos... Não sei o que sai-
rá daqui.
Se eu narrasse o casamento de Tertuliano, o pranto de Sinhá,
a renda de sobrepeliz do padre, a noite de núpcias na cama de mogno
comprada em São Paulo...
Eu gosto de ler contos com parte de inocentes e que, no fundo,
têm mais perfídia do que um epigrama de Marcial. A humanidade deixa
que se lhe explore o instinto. Gosta porque põe a culpa no autor e tira
para si o proveito de gozar a malícia, fingindo-se explorada ignobilmen-
te pelo escritor.
— Que escritor obsceno... — E corre os olhos na lista das obras

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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

do mesmo. Humanidade! Eu te conheço, megera, sem-vergonha! Não


há homens mais castos e menos puros: há mais hipócritas ou mais fran-
cos.
Mas não conto a história nupcial de Tertuliano. Sinhá era per-
turbadoramente bela. Tinha um corpo branco. Penugem loira na nuca,
nas axilas e no ventre, onde as pernas fazem o delta da fonte da vida,
matriz maravilhosa que torna cada criatura dotada do poder divino de
criar.

***

Se Freud fosse meu datilógrafo, ao passar a limpo este conto


para entregá-lo ao prelo, faria esta observação:
— Você ia quase dando uns detalhes físicos e íntimos de Sinhá
porque eles se tornarão a obsessão sexual de Tertuliano. Ardil de escri-
tor. Mas — e aqui é que Freud seria sublime! — o obsessionado é você.
Nenhum artista cria uma personagem sem construí-la com elementos
próprios. Tudo é reflexo em arte: instinto disfarçado...
— Muito bem. Adiante...
— Tertuliano existe. Não é uma criação imaginária, porque
tudo que passa pela imaginação, viveu seu instante real. Não creio que
você seja um sádico ou que tenha, na realidade, a estrutura psíquica do
Tertuliano. Mas...
— Conclua...
— ...Mas ele é a resultante de instintos potenciais que procu-
ram sua vida no fundo do seu subconsciente. Você seria um Tertuliano
se nãopredominasse na sua vontade a força de disciplinar-se dentro da
normalidade nobre e exemplar que você representa na ordem harmôni-
ca da vida...

***

Eu acho que não concluo este conto porque o leitor não tem
paciência para ir até o fim. Entretanto, se me quiser bem, faça ainda um
esforço.
Tertuliano enjoou de Sinhá. É que se produzira um fenômeno
imprevisto: em lugar de Tertuliano ralar-se de ciúmes dela, ela é quem

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

deu para ficar ciumenta. Daí parecer ao exótico marido uma mulher de-
sinteressante e banal. “Ninguém gosta dela. É uma espiga que eu levei”...
E arranjou uma húngara de olhos de esmalte e cabelos de milho.
Comprou-lhe automóvel. Decotou-a mais para atrair os amigos. Embe-
bedou-a num “cabaret”. Viveu assim seis meses até que, por uma carta
anônima, soube que Sinhá o traía com o dr. Gil Marçal.
Assim é que, no “placard” do espírito de Tertuliano, no percur-
so que fez para ir surpreender o adultério de Sinhá, da sua casa à “gar-
çonnière” de Gil, se afixaram os seguintes estados da alma:
1° - Angústia e desespero por se sentir traído.
2° - Desejo sádico de que a traição fosse real.
3° - Instinto de posse exacerbado pelo furto.
4° - Buracos de silêncio mental com encenação puramente au-
tomática de sorrisos, esfregamento de mãos, toda a ação nervosa reflexa
de quem vai gozar uma alegria mórbida.
5° - Certeza de que não haveria drama.
6° - Vaga e paradoxal simpatia pelo rival.
Durante o trajeto, estas foram as coisas pitorescas que sublinhou
na paisagem: um soldado num cavalo marrom arrancando com as fer-
raduras da montaria faíscas dos paralelepípedos; um judeu de olhos cor
de nostalgia voltados para sua Jerusalém invisível e vendendo gravatas e
suspensórios, uma mulher esbelta e bem modelada parecida com Sinhá.
Ao chegar junto à “garçonnière”, apalpou o cabo do revólver. Só
para verificar se o trouxera.
É claro que não surpreendeu o flagrante adultério. Isso é quase
impossível a um marido inteligente. Este, por pudor, evita a crueza de
uma cena obscena.
Ele pensa: serei grotesco ou assassino? O dilema gela o sangue
nas pernas e estatela o mais corajoso. Em todo o criminoso passional
há um louco ou um facínora. Tertuliano, porém, era normal: apenas
esquisito. Quis saber. “Esteve aqui, sim senhor... Uma mulher alta, loi-
ra, bonita, com um vestido escuro, um chapéu marrom e uma bolsa de
couro preto...”
A criada contou tudo por Cr$100,00. Ele saiu dali com sinos
na alma! Seu amor por Sinhá cresceu atlânticamente. A traição era uma
espora sexual no seu instinto. Amou-a com a mesma paixão da noite em
que deu o cheque-mate no farmacêutico. Parecia-lhe agora Sinhá outra

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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

mulher, uma criatura que ele iria conquistar, disputar à posse de um


terceiro. Não era mais a songamonga passiva e doméstica, com beijoca
na porta da rua e perfume da sua loção preferida nas mangas do roupão
de seda. Uma vontade estranha atravancava o espaço que ia da porta do
seu quarto ao seu leito. Ele não compreendia o amor sem uma resistên-
cia. Por outro lado pensava em Gil Marçal como num ente prodigioso,
irradiante de prestígio varonil, feliz na sua sexualidade. E ansiava por
conhecê-lo melhor, estudar-lhe a psicologia, gozar nele o reflexo passio-
nal de Sinhá. O bonde que quis tomar era diferente; não tinha nada de
comum com o veículo banal de todos os dias. Os próprios homens que
cirandavam na rua assumiam sentidos enigmáticos, penetrados pela
compreensão irônica ou colérica do seu drama íntimo, colaborando
nele com suas atitudes.
— Vejam só — reflexionou Tertuliano — como um simples ato,
mesmo imoral, transmuda até a paisagem. E depois negam a existência
dos taumaturgos... Cada um de nós é, de certa maneira, um mágico ou
um santo.
— E, desistindo do bonde, entrou num táxi.

***

Tarde faceira, com “rouge” de sol da face sem rugas. Ar fresco e


de cristal mostrando as casas e as árvores decorativas dos jardins e dos
quintais, como quem expõe coisas bonitas numa enorme vitrina. Ele
tinha a impressão, olhando tudo do táxi, que ia descobrindo a rua. So-
mente os traumatismos morais nos põem a alma nos olhos. Foi num dia
de desespero que descobriu a existência inútil das formigas. Como? Pois
eu sofria, largado num banco do parque, queixo na mão, olhos na terra.
E veio uma formiga, subiu-me pelo sapato acima, sondou com sua ante-
nas minha meia, tornou a descer e foi-se embora. E eu fiquei pensando
que aquela pequenina coisa errante talvez também tivesse uma alma e
uma tragédia. Ao chegar junto de sua casa, o que Tertuliano descobriu
foi que sua criada também tinha uma alma: estava no portão, grudada
no beiço do caixeiro do armazém vizinho. A tragédia viria nove meses
depois...
Reflexões que Tertuliano nunca escreveu no seu “block-notes”.

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

“A esposa que trai o marido torna-se amante do marido e espo-


sa do amante.”
Outra:
“A adúltera passa a tratar com redobrada ternura o marido que
trai, sem contudo deixar de afirmar ao amante que está desgraçadamen-
te ligada a um ‘monstro’.”
“Todo marido traído passa a ser um ‘monstro’, mesmo que te-
nha a alma arcangélica de São Francisco de Assis...”
Tertuliano, na sua sádica volúpia de amar loucamente a esposa
somente porque o traía, não anotou no seu canhenho as verdades origi-
nais que foi descobrindo. Se tal obra realizasse, este conto deixaria de ser
um conto para tornar-se um compêndio de filosofia.
Mangueiras de água extinguindo o clarão de uma labareda... O
rompimento foi brusco: os amigos de Gil souberam que ele se apaixo-
nara fulminantemente pela Dorly, uma “soubrette” satânica da Compa-
nhia Ré-kó-kó.
Tertuliano encontrou Sinhá enxugando a última lágrima.
Olheiras roxas. Lábios inchados. Foi-lhe inútil disfarçar.
— Aquele valdevinos abusou da minha indulgência. Um cão!
Um safardana! E deixou você por aí sem mais esta nem aquela...
— Mas Tertuliano...
Ela, na sua dor de abandonada, espantava-se com a inesperada
cena. Tinha certeza, mais que certeza, provas de que Tertuliano... Nem é
bom falar. E agora para que aquilo? Pôs-se a chorar de mansinho.
— Também ele fez muito bem! Para que você presta? Uma son-
gamonga desenxabida... Você não interessa ninguém!
No pobre cérebro da esposa a psicologia complexa do marido
rolava como um enigma. Pensou que ele seria agora ainda mais cari-
nhoso. Deliberou reparar seu erro dando-lhe toda sua ternura. Mas — e
essa? — notou que, com a perda do amante, perdera o carinho do mari-
do. Soube que Tertuliano reatara sua aventura com a húngara de olhos
de esmalte. Conservou-se, entretanto, passiva e fiel. Um ano depois ba-
teu nas portas do seu coração o Amor.

***

O Amor...

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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

“Como o sol está mais dourado! Não... Não tenho fome... Será
que ele passará hoje por aqui? A costureira é uma imbecil! Olhe só como
está este vestido! E as meias? Não estão em harmonia... Na Sinfonia Ina-
cabada de Schubert há um pedaço que faz a alma da gente ir até a gar-
ganta e brotar dos olhos uma porção de lágrimas... Drin... Drin... Drin...
O telefone... Irra! O coração dá cada salto...”
— Que cacetes as sirigaitas das Oliveiras! Não! Não vou ao tea-
tro.Essa revista é fúnebre como um enterro! Meu Deus, como ele está
tardando a telefonar hoje.
— Terá acontecido alguma coisa? Estará doente? Como estou
nervosa! Que dia mais triste!
— Ah! Sou eu, meu amor! Que saudades! Que saudades... Espe-
re-me às três e meia!...
— Lindo o sol, as árvores, as pedras da rua! Como a vida é bela!
Como é bom viver!
Tertuliano farejou no nervosismo de Sinhá o segundo ato pas-
sional. Tornou a abandonar a húngara e agarrou-se de novo à mulher.
Mas agora Sinhá não o tolerava; ardia sempre numa ânsia, ouvido atento
ao telefone, olhos alertas à janela.
Gastão Fortes (desportista, rico, com baratinha niquelada), era
impetuoso e egoísta. Apossou-se de Sinhá, com a violência de um pirata
mongol e proibiu-a de dividir-se com o marido. Apontou contra o cora-
ção da amada o duplo gume do dilema:
— Ou eu ou ele!
— Mas, Gastão, eu sou tua, juro...
Gastão, ciumento como um turco, na “garçonnière” violeta es-
carrava injúrias “contra aquela besta metálica, que nunca jogara tênis,
nem guiara um carro de corrida, todo absorvido pelo café”, que lhe rou-
bava sua Sinhá adorada.
Os amantes são assim: egoístas, intransigentes e mandões. Fi-
cam com a mulher do próximo e ainda mordem os pulsos de raiva por-
que os pobres maridos fazem a suprema burrice de dar à adúltera cama
e comida.
Sinhá, na grande crise, jurava-lhe uma fidelidade de melodra-
ma:
— Eu o detesto! É um monstro!
Mas Gastão sofria. Sanguíneo, porejando instinto, cheirava o

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

colo e os braços de Sinhá farejando um perfume suspeito. Cenas hor-


ríveis! Quase saía pancada. Ele dava passadas de fera no tapete cor de
abóbora, rugindo como um javardo. Cada mês que passava subia no
diagrama passional a curva do amor incandescente.
— Não! Isto não pode continuar assim! Ou eu ou ele!
De outro lado, Tertuliano fervia de amor como uma chaleira.
Sentia em Sinhá uma oposição que nunca lhe fora oposta. Lera dois
bilhetes de Gastão que ela deixara na gaveta da toilette, largada aberta
na precipitação de uma saída “... és a mais bela e a mais querida das
mulheres...”
Tertuliano viu Sinhá crescer na sua admiração e no seu desejo.
Era, para o outro, a mais bela das mulheres! Sentia-a valorizada, colo-
cada muito alto, quase intangível ao seu desespero de amoroso bizar-
ro. Mas Gastão, impetuoso e irascível, não atendendo às razões que ela
punha na polpa dos seus lábios quando a enlaçava com seus braços e
suplicava com os olhos cheios de pranto, apitou como contra-regra para
precipitar o desfecho do drama:
— Ou você fica comigo ou fica com ele...
— Mas Gastão...
— Mato-me! Dou um tiro na cabeça!
— Mas Gastão...

***

Tertuliano em lugar de Sinhá, encontrou na manhã seguinte


este bilhete:
O destino me chama a outra parte. Perdoa-me. Adeus para
sempre.
Sinhá.

***

Foi uma volúpia longa a que o largou supino na cama, garganta


em soluços, mãos crispadas nos cabelos. Percebeu que nunca a amara
como nesse instante. As memórias, pérfidas, vieram uma a uma:
“Lembra da moita fulva que tinha sob a axila? Parecia fumo tur-
co desfiado, com o mesmo aroma entorpecente...” Veio outra e disse: “E

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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

o delta macio que acolchoava, com retrós dourado, a junção das coxas
perfeitas?”
E a outra: “Sabe quem está desfrutando esse tesouro? Imagina o
gosto do primeiro beijo furtado logo após o terror da fuga...”
Ele chicoteou-se com o látego de fogo de cenas lúbricas. Fez
com pincéis de memórias um indecoroso painel na tela aflita da sua
imaginação doente. Desenhou o corpo de Sinhá em todas as atitudes.
Amava-a — agora que não a possuía mais — com verdadeiro desespero.
Pôs-se a procurar os fugitivos. Uma semana de buscas, de pes-
quisas com corrupção de criados, com o concurso de secretas no São
Paulo babilônico do Brás e da Lapa, do Ipiranga e do Pinheiros. Parecia
que se haviam evaporado Gastão e Sinhá. Um dia, porém, teve notícias
exatas. Haviam sido identificados na...
— Rua dos Cafres número 26, casa amarela, perto da esquina,
venezianas verdes, portãozinho de ferro.
Tertuliano engraxou o revólver. E foi lá.
— ...absolutamente! Foi-se embora anteontem. Nossa vida era
um inferno. Não quero saber mais dela.
Tertuliano sentiu que o esburacavam por dentro. Vinha recla-
mar de Gastão sua esposa e este, já enfarado, a botara no olho da rua!
Sinhá, bruscamente, como um balão que desincha, ficou reduzida a um
trapo no seu espírito. Sentiu-se roubado. Já não amava mais. Esse pobre
frangalho de mulher desprezada e enxotada parecia-lhe uma coisa ridí-
cula e humilhante.
— Mas o senhor teve a audácia de raptá-la! É um miserável!
— Não seja tolo, homem... Por quem o senhor está me toman-
do?
Todo o mundo já conhece a sua história e a de sua mulher...
Nem o senhor, nem ela, nem eu somos ingênuos...
Tertuliano sentiu-se desarmado. Era como se uma tesoura lhe
cortasse um por um os tendões e os nervos. Tudo se arrasava: seu amor
e sua vingança...
Brusca, uma revolta flamejou nele. “Era demais! Gastão lhe rou-
bara Sinhá e agora, farto da coitada, atirava-a por aí e ele que a aguen-
tasse...” Sacou do revólver e, com chispas nos olhos, encostou o níquel
gelado na garganta do outro.

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

— Canalha, agora, o senhor fica com ela, quer queira, quer não!
Gastão, aterrorizado, mediu a iminência do perigo.
— Que é isso?
— Não tem isso, nem meio isso... Fica com a mulher!
— Mas...
— Fica, ora se fica... Por que então veio arrancá-la da minha
casa?
Quando teve absoluta certeza de que o outro ficava com Sinhá,
saiu. Na rua parou bruscamente e pôs-se a respirar em grandes haustos.
Puxa!
Sentiu-se absurdamente feliz. E retomando seu caminho para
descarregar os nervos —Ele fica com ela, pílulas! Estou cansado de ban-
car o marido. É necessário, de quando em quando, trocar os papéis.
Depois, quando eu quiser...”
E pensou que viria buscar Sinhá na casa do outro, num táxi
fechado, como quem esconde ao mundo o escândalo de um adultério.

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(breve colóquio sobre as afecções da alma)

NARRADOR ATENTO: Aprecio a oportunidade de conversar


contigo sobre o episódio que envolveu meu amigo Tertuliano e sua es-
posa, fato que narrei algures e do qual pude não apenas conhecer cer-
tos detalhes, como também tecer algumas considerações, as quais, devo
antecipar, fiz com humildade, sabendo das limitações de meu conheci-
mento sobre a alma humana. Na verdade, não posso evitar algum cons-
trangimento quando, à tua frente, sou avaliado em minhas reflexões.
Antes de mais nada, devo dizer, sem qualquer intuito de confronto, que
sou um cético. Quando, na minha narrativa, da qual tomaste conheci-
mento, menciono minha crença de que, se me dissessem que o viaduto
do chá ganhou pernas de centopeia, eu acreditaria, pode parecer para
os ingênuos que sou um crente; longe disso. De maneira, diria, elegante,
estou apenas afirmando que essa possibilidade faz parte dos meus cálcu-
los existenciais. Subitamente, me ocorre que esteja falando sobre temas
que não domino, e me incomodam teus olhos fixos e atentos; talvez es-
tejas entediado com o que estou dizendo.
ANALISTA: Ora, caro, de forma alguma. Meu ofício exige estar
sempre atento àquilo que ouço, independentemente da sensatez do que
é dito, pois, às vezes, a lógica é má conselheira. Alegro-me, porém, com
a oportunidade de trocarmos ideias; não tenho dúvidas de que encon-
traremos muitos pontos de convergência sobre o que pensamos da alma
humana. Quanto ao ceticismo e às pernas do viaduto, tua posição diante

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da vida parece-me invejável; na verdade, penso que nossa crença na im-


previsibilidade dos fatos apenas nos torna mais atentos. Além disso, teu
ceticismo parece-me ousado quando chamas as necessárias elucubra-
ções de “farofa metafísica”. “Esforço mecânico”, em suma, significa uma
redução à Física ou à Biologia das eternas indagações humanas sobre o
sentido da vida?
N.A.: Não pretendo transformar nosso diálogo, em que um lei-
go procura aprender com um especialista, num debate infindável sobre
temas para os quais não vislumbro solução. Talvez, no entanto, estejas
correto. Prefiro pensar que, após a morte, depois da cremação, na urna
que contém os restos mortais, possamos encontrar apenas cinza, talvez
resquícios de ciúme e inveja.
A.: Ora, ora... Essa maneira de professar teu materialismo não
deixa de ser muito curiosa, quiçá um pouco ingênua, pois nunca pude
imaginar que transformar em pó a inveja e o ciúme pudesse ser uma ati-
tude materialista. Desculpo-me, mas considero este um recurso simpló-
rio. Seria mais proveitoso para a Ciência se abandonasses as tentativas
de anexar Biologia ou Física a todo conhecimento que se pretendesse
científico. Materialismo não significa, nestas alturas do século, a redu-
ção de tudo o que nos cerca à simples matéria, mas sim a procura pelo
avanço do nosso conhecimento, tomando como variáveis relevantes fa-
tos que rodeiam outros fatos, que rodeiam novos fatos, não perdendo de
vista o fato de que, no caso da alma humana, raramente os fatos podem
ser reduzidos à dimensão do pó ou dos humores. Os que acabam por in-
teressar ao estudioso da alma são aqueles fatos que transformam os ho-
mens em seres que interagem com outros homens, discordam entre si e
até mesmo fazem a guerra. Muitas guerras são entabuladas, admito, por
escassez de alimentos, mas sabemos de conflitos que se eternizam por
motivos bem distantes da Biologia, como por exemplo, já que falávamos
da alma, a inveja e o ciúme. Vide as pequenas guerras que são travadas
nas comunidades familiares todos os dias, lembrando tua narrativa — o
choro teatral da senhora gorda, a concupiscência do banqueiro e o cál-
culo burocrático do político não podem ser encontrados senão através
de um outro olhar, jamais pelas lentes de qualquer microscópio. Espero
ter conseguido elucidar algumas de nossas diferenças...
N.A.: Concordo, em princípio, professor. Minhas opiniões na-
turalmente estão restritas ao terreno da mera opinião, e não posso pre-

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

tender que sejam alicerçadas pela Ciência, mas, antes, pelo bom senso.
Pretendia, com minha elocução, ressaltar que a alma humana possui
estratos em que alguns sentimentos são mais primitivos e outros assu-
mem aparência mais sofisticada, apenas isso. Aqueles mais primitivos
possuem características mais próximas dos animais, concordas?
A.: Em primeiro lugar, em se tratando das Ciências Humanas,
creio que as opiniões nunca podem ser desprezadas; se elas — as opi-
niões — não possuem a Ciência ou a Estatística por trás de si, trazem
uma pessoa à sua frente, fato de importância nada desprezível. Podemos
então compreender um pouco da alma e dos conflitos de uma pessoa,
ainda que estejamos limitados e não possamos sonhar com generaliza-
ções. Quanto ao que chamas instintos, devo, com tua permissão, propor
algumas correções. Se insistimos nessa palavra, corremos o risco de,
mais uma vez, estarmos aproximando da Biologia as afecções da alma.
Nós, humanos, quando exibimos nosso instinto, o fazemos valendo-nos
da sedução, da retórica e, às vezes, das armas. Todavia, como disse, es-
tamos na verdade diante de um animal que transforma seus atributos e
necessidades biológicas em formas de aproximação do seu semelhante,
para estar com ele ou destruí-lo. Enfim, prefiro que consideremos o ser
humano como um ser que busca o outro, ainda que, às vezes, o faça de
maneira animal. Consigo expressar-me com clareza?
N.A.: Quando tecia considerações sobre Tertuliano, ou melhor,
a partir do meu amigo e suas aflições, falava do ser humano. Cheguei a
provocar, desafiando, ao falar sobre aquilo que poderia ser normal ou
mórbido, casto ou menos puro, e, ainda, sobre os hipócritas e os menos
francos. O que tua ciência tem a dizer a esse respeito?
A.: Ora, ironias à parte, sem dúvida a minha ciência tem muita
coisa a dizer e pouca a sentenciar. Muitas pessoas tendem a atribuir à
Ciência e seus achados o papel de árbitro naquelas questões de natureza
eminentemente éticas, o que considero um grave equívoco. As questões
éticas não são decididas no tribunal das verdades empíricas. As deci-
sões humanas — ainda que, por vezes, difíceis — não podem pretender
a neutralidade ilusória oferecida pela Ciência; sempre humanas,
portanto, falíveis. Agora, no entanto, dou-me conta de que tua inda-
gação não foi respondida. Tenho receio das classificações que, natu-
ralmente, são inventadas pelos homens e por isso mesmo perecíveis.
As categorias “normal” e “mórbido” são um exemplo de classificação

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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

que mortifica ou atazana as pessoas. Nunca devemos nos esquecer de


que a normalidade e a patologia são máquinas de rotular e agredir o
outro. Quando uma dada comunidade forja sua classificação, o faz com
o intuito de homogeneizar as diferenças entre as pessoas, prática que ga-
rante — pelo menos imaginariamente — a estabilidade da comunidade
e de seus costumes. Repito um clichê: o normal hoje e acolá não o será
amanhã e aqui.
N.A.: Concordo, concordo. Mas gostaria de tratar contigo um
outro ponto, sobre o qual fiz referência na minha narrativa a respeito de
como teu mestre Sigmund Freud encararia o drama de Tertuliano. Sei
que minha narrativa está inteiramente contaminada por minhas pró-
prias convicções; mesmo assim, pergunto: existe uma maneira de evitar
que isso aconteça?
A.: Imagino que a constatação da impossibilidade da isenção,
da objetividade ou da neutralidade pode acarretar alguma angústia nas
pessoas, mas creio que, após alguma reflexão, tudo poderia transfor-
mar-se em alívio. Parafraseando um filósofo conhecido, diria que somos
condenados a inventar sentidos para a vida; a angústia surge quando
nos apegamos demasiadamente a um sentido e passamos a ter dificulda-
de em trocá-lo por outros. Parece-me auspicioso que alcancemos esta
liberdade, esta estranha forma de liberdade.
N.A.: Muito bem, professor, muito bem. Gostaria que me falas-
se sobre a descrição que ousei fazer dos estados de alma de Tertuliano,
quando se compromete a surpreender Sinhá. Fiz uma análise, quebrei
em partes suas emoções brutas. Consideras válido esse recurso?
A.: O uso do verbo “comprometer” chama-me a atenção. Na
verdade, ele se compromete consigo próprio, e aí reside o principal mo-
tivo de seu sofrimento — ele acredita que deve agir segundo aquilo que
as pessoas esperam dele. Nesse momento, encontramos claros sinais de
uma espécie de encenação. Quanto à tua análise, nada a objetar. O pla-
card de Tertuliano caminha desde seu desejo de diferenciar-se clara-
mente de seu rival até uma inconfessável identificação com ele — somos
assim, desejemos ou não. Quanto à tua frase “somente os traumatismos
morais nos põem a alma nos olhos”, devo dizer que é lapidar. Estou me
lembrando agora de Sinhá, quando, de um minuto para outro, vai do té-
dio diante da vida à percepção do sol, das árvores... tudo desencadeado
por um telefonema!

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

N.A.: Devo dizer que a construção da minha narrativa sobre


meu amigo Tertuliano tinha, também, a função de entender sua perso-
nalidade. Qual seria, na tua opinião, o traço mais marcante, digamos,
uma característica que, em suma, pudesse defini-lo?
A.: Como vimos, aquilo que eu falava sobre classificações se
aplica, também, à tua tentativa de emprestar a Tertuliano um traço de
personalidade unificante. Infelizmente, isso não acontece no dia-a-dia
das pessoas e das coisas amorosas. As pessoas são mutáveis, e escapam
dos rótulos com uma sabedoria admirável. Vejamos, pois, o episódio de
Sinhá, ao receber o telefonema. A avaliação que fazemos da vida muda
a cada instante, dependendo dos “telefonemas” que recebemos ou dei-
xamos de receber. Nossas convicções são solúveis no tempo e espaço:
algumas resistem mais, outras, menos.
N.A.: As considerações que fiz na minha narrativa sobre o dra-
ma de Tertuliano, Sinhá e Gastão são pertinentes? Ensinam às pessoas e
leitores alguma coisa sobre a alma humana?
A.: Temo que não. O que chamas “considerações sobre a
alma humana” são, na verdade, resumos ou sinopses mais ou menos
pretensiosos. Melhor dizendo, podem funcionar como mapas de uma
cidade desconhecida para um dado turista. Parece-me inquestionável
que, ao nos encontrarmos numa cidade desconhecida, façamos uso de
um mapa que nos oriente, cujo valor e utilidade, porém, são muito res-
tritos. Quando visitamos um monumento, sentamo-nos diante dele, re-
fletimos sobre seu papel histórico, o tocamos; e o mapa usado instantes
atrás torna-se inteiramente inútil. Aquilo que vivemos ou revivemos na
contemplação e admiração do monumento torna-se prevalente àquela
simples indicação ou referência do mapa. Em outras palavras, as pes-
soas, se é que podem ser conhecidas, o são, não a partir de descrições
teóricas agudas, mas do confronto com o cotidiano, daquilo que dizem e
fazem. Finalmente, ninguém pretenderia, em sã consciência, supor que
conhece alguém a partir de uma foto. Ora, uma foto é apenas uma foto,
registro de um instante fugidio da existência de alguém que mudou, e
mudou, e mudou...
N.A.: Então, caro professor, imagino que somente poderemos
compreender um pouco da complexa existência de Tertuliano e seus
amores através de uma análise?

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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

A.: Sim. Jamais, no entanto, poderemos supor que a análise pos-


sui o poder de um panopticum. Seria muita arrogância.

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(masoquista)

Sempre observei, ou melhor, espreitei a filha do Major Estulá-


rio... quando ela passava pela rua, eu não conseguia deixar de olhar de
esguelha... deliciava-me ao saber que ela sabia que eu a olhava... sentia,
também, incômodo, quando, nessa espreita, notava que ela visitava a
farmácia do “enrola-pílulas” mais amiúde do que eu julgava necessário...
cá com meus botões, comparava o preço das poções do farmacêutico ao
das sacas de café... assim, de supetão, não saberia dizer o que me atraía
em Sinhá... mas pensando um pouco, diria que seu ar de superiorida-
de... Quando passava pela rua, eu interpretava seu cumprimento como
etiqueta de passante, nem mais nem menos... será que ela me notava?
Ou não? Quando supunha que fazia teatro não me vendo, estranhamen-
te sentia um prazer maior... contradição? Semana passada fui a um baile,
e lá estavam o farmacêutico e a minha Sinhá... chamei-a para dançar, e
ela, percebi, aceitou de má-vontade... enquanto dançava, olhava sobre
meus ombros para o meu rival... um misto de ira e prazer assomou mi-
nha alma, e a ira só perdeu a aposta para o prazer quando ela, com a
maior cachimônia, me disse que olharia para quem quisesse e não daria
satisfação a ninguém... nesse momento, descobri meu amor; e decidi
que Sinhá seria minha esposa...
[]
Como já disse, meus afetos e cuidados eram antigos... fora o
prazer que experimentei com sua... firmeza... esse fato, embalado pelo

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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

som de uma valsa, tão somente veio a fortalecer minha convicção de


ter encontrado a pessoa certa para meus sonhos e pesadelos... quando
soube de sua resistência ao meu pedido ao Major, e das confrontações
que tiveram lugar com o pai, minha paixão, catalisada pelo fantasma da
inacessibilidade, somente fez aumentar... me haviam dito que mulher
não ama, se acostuma... nunca pude acreditar nesse adágio, pois o costu-
me me inquieta... assim, durante um certo tempo, enquanto pressionava
pelo casamento, dobrei o dote... depois, ocorreu-me que ela, quando
me olhava, já não enxergava nenhum farmacêutico às minhas costas...
sabe como? Suspeitei de que gostava de mim... nessa hora, senti-me um
guerreiro sem perspectiva de batalha... sem horizonte, sonhos ou desa-
fios... O início de nossa vida conjugal foi tormentoso... a beleza de Sinhá
continuava a me perturbar, especialmente quando no leito conjugal, ao
mesmo tempo em que me enlanguescia com sua penugem... a imagem
do farmacêutico insistia em se fazer presente...
[]
Não, nunca mais tive notícia... sumiu quando dei aquela cartada
de mestre, apostando no peso e no significado dos lençóis para as don-
zelas... ora, o artesão de poções não conseguiu nenhuma mágica para
tirar Sinhá do aconchego das sacas de café... repito, sumiu das minhas
vistas e esquinas, mas não das proximidades da alcova, quando eu me
deliciava com as curvas e segredos do corpo de Sinhá... na verdade, seu
fantasma atiçava meu desejo e, então, travava mais uma batalha que eu
vencia... mas, com o tempo, minha paixão arrefeceu, na proporção em
que o farmacêutico sumia do meu quarto... me dei conta da necessidade
de um novo desafio... deixei de olhar para os lados quando passeávamos
pelas calçadas no fim de tarde, não me preocupava se Sinhá olhava, ou
era vista e cortejada... e, aí, meus sentimentos despencaram desfiladeiro
abaixo... surpreendentemente, ela deu para sentir ciúmes e investigar
toda e qualquer saída ou regresso meus em hora esdrúxula... meu fastio
fez-se asco...
[]
Eis então que, por coincidência, fortuna ou cálculo, encontrei
uma bela húngara, que conseguiu me acender a mesma paixão e angús-
tia antigas... cumulei a novidade de nove-horas, presentes, agrados e de-
clarações... as declarações de amor eterno, sempre soube que pretendem
gerar a crença de que aquilo que sinto hoje sobreviverá ao futuro... esta

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

é a grande trapaça dos corações apaixonados... na verdade, o que se pre-


tende é simplesmente garantir os afetos e seus efeitos... hoje, consegui
que fosse vista e desejada por todos... a minha paixão fez-se torrencial...
até que...
[]

***

Não posso me queixar, sempre fui muito feliz, desde sempre...


considero-me normal, apesar de algumas pessoas dizerem que sou
esquisito... nunca indaguei por que... caso indagasse, e elas se dignassem
a responder, saberia de antemão que não estavam sendo sinceras... sem-
pre sei... como se fosse uma intuição...
[]
Não, como disse, sempre fui muito atento aos jeitos e trejeitos
das pessoas... uma certa habilidade para descobrir seus pontos frágeis...
e daí conquistá-las... foi assim com Sinhá...
[]
Sim, acho que sou muito competitivo e tenho me convencido de
que o calor da disputa mascara nossas feridas... como disse, não tolero
a falta de batalhas ou projetos... veja, quando ainda estudava, o fazia
antecipando a leitura das notas em público... minhas mãos ficavam frias,
e meu coração, quente... fingia naturalidade, mas exultava quando era
o primeiro colocado... minha altura nunca me favoreceu nos esportes
mais brutos e, por isso, dediquei-me aos esportes “mentais”, se é que
existem... claro que não, mas meus inimigos...
[]
Está certo, meus adversários muitas vezes não se dão conta de
que estou disputando, e aí mora a vantagem... briguei muito na infân-
cia e adolescência com meu irmão, sim, nunca falei dele... em tempo...
é mais velho do que eu e, durante muitos anos, passamos as férias na
fazenda, onde as brigas aconteciam todos os dias... de vez em quando,
jogávamos bola com os filhos do caseiro, e eu sempre ganhava o jogo...
meu irmão, certa vez, me disse que eles, os filhos do caseiro, me dei-
xavam ganhar... fiquei inicialmente irritado, mas depois passei a sentir
mais prazer com a cara de humilhação que eles faziam com meu jeito de
anunciar a vitória, prematura e por minha iniciativa... era ótimo quando

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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

eu chegava e os convocava para brincar, dava o tom da brincadeira e, ao


meu bel prazer, encerrava a brincadeira sem avisar nem dar satisfação...
aliás, recentemente, você encerrou a sessão quando eu ainda estava no
meio da frase, e não pude deixar de notar que, naquele momento, você
mandava...
[]
Voltemos à fazenda... eu e meu irmão estávamos sempre juntos,
aprendi a cavalgar com ele... no começo, tinha medo de tomar um coice,
me aproximava dos cavalos com cuidado e desconfiança... depois, fui
me acostumando... o tamanho dos cavalos me impressionava e fiquei
ainda mais impressionado quando vi um cavalo e uma égua... fazendo...
meu olhar, quase como se movido por uma força desconhecida, se diri-
gia para o membro do cavalo... eu não queria olhar, mas olhava... achei
muito grande e não tive nenhuma pena da égua... pelo contrário, queria
que o cavalo a machucasse... mais tarde, durante o banho — que tomava
junto com meu irmão —, comparei o tamanho do meu pênis com o do
cavalo e o do meu irmão... fiquei imaginando que um cavalo domina a
égua e faz dela o que quiser... mas o pênis do meu irmão era maior do
que o meu, um pouco... mesmo assim, sempre me lembro disso... quan-
do vou a banheiros públicos, de novo sinto que meus olhos procuram os
lados... debato-me... tenho medo de que percebam... tempos atrás, usei
uma régua para medir... pouco adiantou, pois nunca perguntei a meu
irmão se ele já tinha medido e muito menos aos amigos... na dúvida, ex-
trapolei e decidi ganhar sempre as disputas... no dia seguinte à cena do
cavalo e da égua, insisti em cavalgar o mesmo cavalo e corri muito com
ele, usei o chicote quando desnecessário... queria que ele soubesse que,
em cima dele, estava alguém com mais poder... quando desci, me postei
na frente dele e olhei seus olhos, tristes e dominados... suava muito, e
não consegui refrear um sorriso de superioridade... é claro que ele não
entendeu... não tem importância, eu entendi...
[]
Sei lá por que estou falando dessas coisas... e acho que seu silên-
cio é uma maneira de domínio, entendeu? Você não me engana, aliás,
ninguém me engana... estou aqui para falar de minhas coisas, entender
minha vida, como me preveniram...
[]
Prevenir, falar dessas coisas é muito perigoso, também já ouvi

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

isso... quando fui pedir a mão de Sinhá ao Major Estulário, ele estava
fardado... não sei se de propósito, para impor respeito... acho que sim...
cheguei e fui logo dizendo das minhas intenções com Sinhá... ela não
estava na sala assistindo à conversa... achei melhor, assim não poderia
opinar e muito menos mencionar o farmacêutico... ele entrou com a
farda, e eu, com a promessa de vida confortável para a filha e, quem
sabe, para ele... foi muito mais fácil do que imaginava... o máximo que
ela poderia fazer seria reclamar... depois, se cansaria e desistiria... como
o cavalo que passa a temer a espora que, a qualquer momento, pode ser
usada... minha conversa com Sinhá foi macia e cuidadosa... coloquei-
-me na condição de frágil e apaixonado, sabendo, entretanto, que na
verdade estava pronto para trucar... falei dos lençóis, e ela concordou
em se deitar neles comigo... ótimo, não acha? E, depois disso, você já
sabe... minha vida sexual com Sinhá era selvagem... como na fazenda...
mas, quando ela se transformou num molambo, meu desejo acabou,
desinchou... quis partir para outra batalha... também já falei da húngara
e do tanto que gastei para...

***

Quando recebi a carta, algo me dizia que não se tratava de uma


correspondência ordinária... enquanto rasgava o envelope, percebia mi-
nhas mãos trêmulas... a carta que revelava um romance de Sinhá com o
Dr. Gil Marçal... ainda antes de ler, pensei sobre a pessoa que se deu ao
trabalho de escrevê-la... claro que ela prestava atenção na minha vida
com Sinhá... não conseguia afastar minhas fantasias em torno das ce-
nas amorosas entre Marçal e Sinhá... como seriam... se pareceriam com
aquelas que vivíamos?... suas reações... pensava se ela gostaria mais, ou
menos, de mim... um desejo imenso de surpreendê-los me acometeu...
sentindo-me tonto, não conseguia saber se o flagrante ensejaria a vin-
gança...
[]
É possível, é possível... tenho que pensar mais... minha mente
estava inundada de fantasias e possibilidades que se apresentavam sem
cessar... onde seria, como estaria decorada a garçonnière dos adúlteros?
Quando eu entrasse, estariam nus? Se cobririam? Como me encarariam?
Diriam alguma coisa? Gil Marçal teria medo e se acovardaria, ou lança-

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ria algum desafio? Eu, nesse caso, deveria aceitar? O tempo que gastei
para chegar até o endereço foi interminável... assisti à passagem de cada
segundo, cada qual recheado de milhares de imagens e fantasias... en-
trar e surpreender o casal dava-me um secreto sentimento de vitória...
quando chegasse, ostentaria um ar de superioridade, como se soubesse
desde sempre... minha chegada apenas coroaria a exatidão da minha
intuição e do meu conhecimento sobre a alma humana... vez por outra,
apalpava a coronha do revólver, acariciava-a... as pontas dos meus dedos
caminhavam da coronha até o fim do cano lentamente, indo e voltando,
sentindo cada ranhura ou ressalto do aço duro... respirava ofegante e era
poderoso... como seria Gil Marçal, o que ele teria que eu não? Gostaria
de conhecê-lo, conversar com ele... falaríamos de Sinhá, ele me contaria
as tardes de amor com ela... em detalhes... assim, eu poderia saber mais
e mais sobre ela e... sobre ele... poderia saber o que deseja Sinhá, através
dele e da sua experiência...
[]
Deixe-me falar, deixe-me falar... nada poderia impedir a visão
daquela cena... mas, quando cheguei na casa, o desaponto... não mais
estavam por ali, tinham estado até há pouco... alívio... senti, de repente,
um profundo desprezo por Gil Marçal... mais do que isso, indiferen-
ça... o foco central da minha atenção mudou para Sinhá e, confesso,
compreendia suas atitudes... novamente minha paixão, que parecia não
mais existir, se reapresentava, como que saída de uma espécie de hiber-
nação... antes, devo dizer, fantasiei a possibilidade de Gil Marçal tomar
minha arma e me agredir na presença de Sinhá... balancei a cabeça com
vigor e expulsei essa hipótese intrusa... o tempo passou, e meu amor por
Sinhá oscilava segundo minha imaginação... se pensava que ela estava
se encontrando com Gil Marçal, ficava tomado de deliciosa excitação...
se imaginava que tinha sido abandonada, meus sentimentos refluíam
até o ponto da agressividade... meu coração ficou apertado quando, che-
gando certo dia em casa, encontrei-a chorando pelos cantos e tentando
disfarçar... não tive dúvida de que tinham rompido, e, se Gil Marçal a
abandonara, então Sinhá era um engodo, uma espiga sem merecimento
ou consideração alguma...
[]
Sim, sim, mas qual o problema? Não quero amar uma pessoa
que não é reconhecida... se, ao contrário, a mulher que amo é disputa-

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

da, então sou, indiretamente, visto como um homem capaz, ora, ora...
surpreendi-me censurando Sinhá abertamente por sua conduta leviana,
mas, secretamente, criticava sua incompetência em sustentar a paixão
de Gil Marçal, que acabou se engraçando com uma outra... nessa toada,
vivemos uma espécie de trégua, sem disputas ou batalhas, durante um
ano... meus encontros com a húngara foram ritmados pelo tédio... os
ciúmes de Sinhá, para meu espanto e curiosidade, sumiram sem deixar
rastro... suas opiniões sobre o clima e as estações, o teatro, os livros da
moda eram sempre desenxabidas... e foi, exatamente, através da mudan-
ça nesse torpor que pude perceber que, finalmente, eu tinha um novo
desafio... chegando em casa, observei-a olhando o jardim, respirando e
sorvendo fundo o ar da primavera... com meias-palavras e discretamen-
te, passou a enaltecer a vida... não tive mais dúvida e assestei minhas
armas...

***

Não havia como não perceber que os modos e humores de


Sinhá mudavam, dia--dia, hora a hora... a história se repetia com alguns
ingredientes novos, como sua indiferença e impaciência comigo... reto-
mei as declarações efusivas de amor... apesar de desnecessária qualquer
evidência adicional, acabei por encontrar no toillete bilhetes que apon-
tavam Gastão como o novo amor de Sinhá... os bilhetes haviam sido
deixados ou esquecidos, não sei... ela queria, quem sabe para diminuir
sua culpa, informar-me de seu pleno e efervescente envolvimento com
Gastão... quase inútil dizer que imediatamente passei a imaginar a figura
do meu rival e os critérios usados por Sinhá para sua escolha... coloquei
meus recursos investigativos em ação e descobri que o eleito levava van-
tagem sobre mim... praticava esportes, desfilava com carro da moda e
era atraente e invejado por todos, especialmente pelas mulheres... era
rico... mais rico do que eu... e gastava seu dinheiro... um perdulário... e, o
pior, ganhara dinheiro com o suor de seu rosto... além disso, passei a no-
tar que Sinhá estava cada vez mais distante e, seu ouvido, pouco e mou-
co frente à minha crescente sedução... logo, comecei a querer conhecer
Gastão... afinal, conhecer o adversário só aumentaria minha chance de
localizar seu calcanhar de Aquiles... à frieza de Sinhá somavam-se os
mesmos sentimentos vividos à época de Gil Marçal... de algum modo,

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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

porém, sabia que, com o farmacêutico, minhas armas eram, de saída,


mais poderosas... agora, não tinha essa certeza.
[]
Se está insinuando que estou mais preocupado com eles que
com meu amor por Sinhá, nada a ver... já disse que eles é que fazem
meu amor por Sinhá florescer... consegui o endereço, a casa onde se
encontravam... nada como ter boas relações com profissionais sempre
ávidos por esse tipo de trabalho... eles também têm um certo prazer
nisso... encontrar amantes, mulheres principalmente... preparei-me
como sempre... mesmos rituais e afetos... angústia, curiosidade, espírito
lesado, tranquilidade numa eventual conversação e, se me permite, uma
quase atração pelo Gastão... afinal, estava mais preparado para essa con-
versa do que para qualquer confronto... não esqueci o revólver... repeti
os mesmos gestos e bolinei-o com contido prazer... se bem me lembro,
Gastão estava recostado numa poltrona, com uma postura de quem me
esperava... parecia preparado para o combate... a primeira expressão
que vi no seu rosto era de expectativa... comecei censurando duramen-
te sua atitude frente à Sinhá... estava defendendo-a... pude ver que sua
expressão caminhou em direção à surpresa... não negou o affair... pelo
contrário, disse-me, com alívio, carregando nas palavras, que estava li-
vre dela... não tive coragem de perguntar o que o infernizava tanto... de
qualquer forma, senti-me inteiramente fragmentado e desarmado... um
homem com aqueles atributos não queria mais saber de Sinhá? Era de-
mais... na conversa, que se tornou amena, quase de gentlemen, não con-
segui extrair nenhum dado, fato ou comentário que promovesse Sinhá
diante dos meus olhos... o tiro fatal: “não quero saber mais dela”... mais,
insinuou que, segundo a voz do povo, eu agia mais ou menos como um
cáften, vendendo a beleza da minha mulher... empurrando-a para ou-
tros... segundo o diz-que-diz, ninguém sabia era o que eu recebia com
sua venda... um absurdo... percebi, também, que Gastão bisbilhotava
nossa vida... acho que queria saber as razões de Sinhá, apesar de estar
vivendo uma grande paixão, não se despregar de mim... gostei dessa...
me vi sem saída, desapontado, acuado e sem saber como ir até à chape-
leira e me despedir... assim, num gesto inusitado, saquei da arma e, num
último esforço para me sobrepor a Gastão, obriguei-o a continuar seu
affair com Sinhá... até agora não sei bem as razões mais profundas dessa
atitude, se queria sair da arena com certa dignidade, pedir uma trégua

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

ou esperar que, uma vez estando juntos, eu pudesse mais uma vez fazer
valer meu poder de fogo ou persuasão... a ideia de perder o que quer que
seja me é intolerável...

| 55 |
(pirata mongol)

A primeira vez que ouvi falar de Sinhá foi no Automóvel Clu-


be, numa roda de amigos e inimigos cordiais... como você sabe, todos
os homens falam uns dos outros, desde que o objeto dos comentários
maledicentes esteja ausente... falo, não por virtude, mas para me queixar
de que sei que sou alvo dessas histórias e nunca poderei rechaçá-las, o
que não me preocupa... tenho, isto sim, curiosidade em ouvi-las e saber
como as pessoas me vêem...
[]
Sua belle indiferènce bastou para que me sentisse profundamen-
te atraído por ela, seu andar, seus hábitos e trejeitos... o fato de ser casa-
da não me incomodou... na verdade, meus planos com ela eram provi-
sórios... não queria o desassossego de uma família, principalmente num
momento em que o Major Estulário vivia uma situação de insolvência, e
o genro, como soube, estava do seu lado... mas Sinhá cativou-me, como
se costuma dizer, à primeira vista... no Clube, tomei conhecimento das
idas e vindas do relacionamento dela com o marido, que era visto como
uma espécie de fomentador da beleza de Sinhá... as pessoas apenas não
entendiam as motivações do comissário de café... se sua mulher tinha
pleno conhecimento dessa mènage... não importa... fui em frente e co-
mecei por um telefonema equivocado...
[]
Ao término desse telefonema, elogiei sua voz, sua imponência

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Lúcio Roberto Marzagão . Paulo de Carvalho Ribeiro . Fábio R. R. Belo

e atenciosa disponibilidade... supus que a disponibilidade não era mo-


tivada apenas pela tradicional educação da pauliceia, mas também por
um certo desejo de se divertir... daí para outros telefonemas e a sedução
completa, foi um passo... meus encontros com Sinhá traziam, no início,
uma marca que duplicava meu empenho: seu nervosismo... queria saber
se era por nosso encontro ou se por um temor em ser descoberta... ela
jamais se dispunha a tratar desse assunto, o que me irritava cada vez
mais... calava-me, porém... observava os altos e baixos de sua ansieda-
de durante os encontros, para assim poder aferir, com mais precisão, a
extensão e a profundidade de seu afeto... quando imaginava que estava
lembrando do tal Tertuliano, pensando nele ou o temendo, sentia-me
trocado por alguém que nada tinha a oferecer... meu envolvimento com
ela, penso, foi uma espécie de exercício...
[]
Sim, exercício amoroso, eu diria...
[]
O que eu estava exercitando? Ora, a conquista... sua hesitação
em se entregar completamente ao exercício amoroso irritava-me mais e
mais, afinal, através da sua reação ao meu maneirismo sedutor, eu sabe-
ria melhor quem sou... não é claro? Meus propósitos inconfessáveis, no
entanto, eram cada vez mais fraudados por sua persistente atitude em
proteger o tal Tertuliano e com ele se acumpliciar... nunca, em nenhuma
ocasião, ela se permitia revelar qualquer fato sobre ele que me indicasse
sua preferência por mim... na verdade, trazia em suas palavras sempre
um quê de ternura pelo marido... ternura, gratidão e não-sei-mais-o-
-quê... não estou sendo honesto... quando exigia, mais e mais, que fosse
fiel e exclusiva, ela ficava impaciente, nervosa e até agressiva... nessas
ocasiões, acho que com o intuito de nos pacificar, dizia que o marido era
um monstro... eu não acreditava... minha atenção estava voltada para
saber se minha sedução estava alcançando seu objetivo, nada mais...
quando eu encenava um ataque de ciúmes do marido e de seu casamen-
to, ela respondia com outro teatro, que jamais me convenceu... até que,
certo dia, decidi tomar uma atitude radical e perigosa... ditei-lhe um
bilhete em que ela, Sinhá, dizia, com todas as letras, que me preferia...
na verdade, obriguei-a... ela, chorando, aquiesceu, sei lá se por medo ou
por amor...
[]

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

Acho que sim, o amor deve ser demonstrado por atitudes pe-
rigosas, inusitadas, transgressoras, e esse bilhete poderia desencadear
acontecimentos que me diriam de que lado ela estava... ou se eu estava
sendo capaz de atraí-la para o meu lado, usando meus recursos... enviou
o sucinto bilhete e nos fomos...

***

E agora? Aquilo que considerava um affair estava se transfor-


mando num casamento... terrível... passei da condição de amante à de
marido, e me dei conta de minhas dúvidas sobre o que poderia chamar
meu arsenal de manobras sedutoras... soube que o marido sofria, o que
me consolava... mas, o cotidiano com aquela mulher, que parecia nun-
ca ter crescido, mimada pelo pai, depois pelo tal Tertuliano, me dava
a sensação de que tinha sido logrado pelos dois... sim, pelo dois... nas
noites de completo tédio conjugal, observava que Sinhá olhava para o
teto, suspirava e saía para a janela, à guisa de olhar o tempo... isso não
me deixava dúvida: está nostálgica do marido... intolerável... não conse-
gui imprimir na casa amarela com venezianas verdes o clima de paixão e
nem mesmo arrefecer a aura de casamento... ela insistia em não garantir
que eu era o único que teria conseguido conquistá-la completamente...
o marido fazia presença todos os dias, através de frases, alusões ou des-
confianças... de minha parte, não perdia a oportunidade de dizer, en
passant, que o tal Tertuliano era um sonso, que nem sequer aprendera a
jogar tênis ou desfrutar dos prazeres da velocidade...
[]
Não sei... ela permanecia impassível... então, não tolerei... man-
dei-a de volta... quando o marido chegou para um confronto, parecia
transtornado e tentava exibir certa tranquilidade... quando fui cobrado
por tê-la abandonado, fiquei pasmo... é verdade, todos estamos sempre
pregando peças uns nos outros... percebi, acredite, que ele queria me
obrigar a continuar o affair com Sinhá... sua exigência, me parece, era
ditada por algo que vinha não sei de onde... certamente não dos aconte-
cimentos palpáveis e de conhecimento público e notório... pensava que
estava ali para me matar e, no entanto, quando concordei, sob coação,
em recebê-la de volta, pude entrever um sorriso vitorioso em seus lá-
bios... não sei se Sinhá voltaria ou por quanto tempo eu iria tolerar seus

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mimos... na verdade, acho que seu destino será o Major Estulário... coi-
tada...

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A fidelidade feminina é imperdoável

Desde que Freud começou a estudar o narcisismo, no final da


primeira década do século passado, o espelho e os fenômenos especu-
lares passaram a interessar à Psicanálise. Ver a própria imagem refletida
tornou-se, aos olhos dos psicanalistas, uma experiência relacionada com
a constituição do psiquismo, com a sustentação da identidade corporal e
com a agressividade, entre outras coisas. Porém, para a Psicanálise, esses
fenômenos não se restringem, de forma alguma, àqueles em que uma
superfície refletora reproduz a imagem de alguém ou de alguma coisa.
Fenômenos especulares são todos aqueles em que alguém interage com
algo seu, na maioria das vezes sem se dar conta, como se fosse de um ou-
tro e vice-versa. Nesse sentido, a projeção, como o próprio nome sugere,
é um fenômeno especular: algo que não posso reconhecer como meu
é visto, sentido e criticado, como se pertencesse a uma outra pessoa,
com quem acredito não possuir nenhum vínculo identificatório, mas à
qual encontro-me profundamente preso por laços de negação. Por isso,
justamente, esses fenômenos são tão carregados de agressividade: como
depositário de meus desejos mais intensos, esse outro não só me ameaça
por me manter alienado de uma parte significativa do que me constitui
como sujeito, como também me instiga a destruí-lo, numa tentativa de
eliminar o que nele depositei de intolerável.
É fundamental, no entanto, que não nos enganemos sobre a na-
tureza do que é intolerável e muitas vezes impossível de ser reconhecido

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como próprio. Não se trata de nosso lado animal, ou de algo que pudés-
semos comparar com os instintos selvagens, mesmo porque estaríamos
cometendo uma injustiça com as feras selvagens. Elas, diferentemente
dos humanos, não ficam sexualmente excitadas quando matam suas
presas, nem matam apenas para gozar com o desespero e o sofrimento
de suas vítimas. Estas são características exclusivamente humanas. Só
nós conseguimos ser perversos.
O inaceitável que projetamos nos outros, ou que nos engaja
em diversas outras formas de autodesconhecimento, relaciona-se com
a influência das outras pessoas na constituição de nossa subjetividade
e, acima de tudo, na constituição de sua dimensão sexual. Somos, des-
de nossos primeiros momentos de vida, inoculados com elementos da
sexualidade inconsciente dos adultos que cuidam de nós e nos educam.
Alguns desses elementos são integrados como partes de nosso eu, da-
quilo que reconhecemos como nossos desejos, nossas características
pessoais ou nossa personalidade. Outros permanecem como um corpo
estranho incrustado em nosso psiquismo, como um enclave de alteri-
dade interna. São esses cistos de alteridade que produzem os desejos
e os pensamentos intoleráveis; são eles que tratamos de expulsar e que
acabam por alimentar os recalcamentos e, portanto, as projeções, as ne-
gações e outras formas de desconhecimento.
Tertuliano vivia às voltas com suas projeções, como se só lhe
fosse possível reconhecer-se alienando seus desejos nos outros. Seu ma-
soquismo era a expressão do imperativo que lhe condicionava a existên-
cia, a saber, que uma mulher não só realizasse seu desejo transgressor
de ser subjugado e possuído por homens que lhe pareciam mais fortes e
poderosos, como também lhe oferecesse a possibilidade de ter um rival
com quem pudesse medir forças e a quem, eventualmente, pudesse pro-
porcionar aquilo que ele mesmo tanto buscava — o gozo de ser vencido.
Estava condenado a competir, pois só assim poderia perder e gozar com
sua derrota, ou ganhar e gozar especularmente com a derrota do outro.
Das duas formas, ganhava, pois com qualquer uma perdia. Interessava a
ele uma mulher que fosse objeto de disputa, posto que, somente assim,
teria garantida sua dupla satisfação: ser vencido pelo rival e, espelhado
na mulher em que seu desejo fora projetado: ser possuído sexualmente
pelo vencedor.
Quando Freud começou a interessar-se pelo narcisismo, a ho-

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

mossexualidade masculina era o tema em debate entre os discípulos que


com ele se reuniam nas noites de quarta-feira, em Viena. O desejo sexual
de um homem por outro relacionava-se, na opinião de Freud, a um cer-
to fascínio pela própria imagem e à busca de concretização desse amor
de si mesmo por meio da escolha de um semelhante, que também se
encontrasse encantado pelo próprio reflexo. Freud salientava que, nesse
jogo de fascinação mútua, o pênis era tomado como objeto privilegia-
do, absorvendo, portanto, o interesse e a curiosidade dos parceiros. No
entendimento dos primeiros psicanalistas, mais do que simplesmente
um órgão representante da masculinidade, o pênis adquiria o status de
representante do próprio sujeito, de tal forma que a potência fálica fazia
as vezes de uma imagem especular, na qual cada parceiro reconhecia o
reflexo de sua beleza e de seu poder.
Tertuliano, à sua maneira, também era fascinado pelo órgão
genital masculino, e as mulheres só o interessavam na medida em que
eram capazes de excitar esse verdadeiro ícone, que ele adorava, e dele
desfrutarem. Nesse sentido, Sinhá pode ser considerada como um espe-
lho de dupla face: por um lado, ao entregar-se ardentemente aos aman-
tes, refletia a feminilidade que Tertuliano não podia suportar em si mes-
mo, projetando-a em sua mulher, para, assim, desfrutá-la como reflexo;
por outro, ao despertar o desejo de outros homens, Sinhá mostrava a
Tertuliano a imagem de um semelhante na qual seu desejo masculino
encontrava-se alienado, suscitando então a rivalidade, a competição e
principalmente a gana de impingir ao duplo especular o gozo da derro-
ta, da submissão e da humilhação. É fácil perceber que, nessa trama de
reflexos e projeções, o jogo especular nunca tem fim. Dois homens que
se comparam pelo tamanho do pênis são como espelhos paralelos se re-
produzindo ao infinito — inútil querer saber a quem pertence o maior.
Quando o pênis deixa de ser um órgão para transformar-se num reflexo
fascinante, não há mais lugar para diferenças, pois tudo se equaliza. É
por isso que os psicanalistas — e os gregos antes deles — veem o espelho
como um artefato mortífero. Narciso que o diga.
Tertuliano, o homem que precisava ter ciúmes, era também, e
na mesma medida, o homem que precisava de espelhos. É exatamente
isso que ele revela ao recordar suas férias na fazenda, quando ainda era
criança. Ao observar o cavalo cobrindo a égua, não pôde evitar o olhar
fixo sobre o pênis cavalar que o fascinava. Daí a fazer do cavalo um

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espelho, não havia mais que um passo, ou seja, uma cavalgada. Depois
de montar, chicotear, fustigar e exaurir sua montaria, Tertuliano fitou
o cavalo nos olhos e se deleitou com os sinais da submissão. Exausto,
suado, humilde e vencido, o cavalo era apenas o reflexo de seu desejo. O
mesmo reflexo, aliás, no qual certamente haveria de ter se reconhecido
se tivesse podido cruzar o olhar com o da égua que cruzava com o ca-
valo. Desses cruzamentos de olhar, vivia Tertuliano sua vida de ciúmes
cultivados, de submissões projetadas e de gozos refletidos. É preciso ser
uma espécie de égua, ou ter gosto pelo látego e pela espora, para poder
fitar um garanhão nos olhos. Nosso homem ciumento não se contentava
com pouco: queria ser um enorme pênis penetrante, e, ao mesmo tem-
po, uma fenda arrombada e fremente.
Nosso psicanalista tem razão quando reconhece a força da se-
guinte frase, proferida pelo narrador da história: “somente os trauma-
tismos morais nos põem a alma nos olhos”. De fato, a boa moral e os
bons costumes nos mantêm a uma confortável distância de tudo aquilo
que nossa alma possui de mais surpreendente e inquietante. O trauma
moral ao qual Tertuliano nos expõe encontra-se no caráter necessário e
autoinduzido de seu ciúme: nada mais aceitável do que um homem ciu-
mento, desde que ele nos faça crer que o sentimento de posse da mulher
amada o leva à vigilância de sua fidelidade.
Tudo se complica e se torna perturbador, no entanto, quando
o ciúme revela sua face propriamente sexual, quando ele joga por terra,
no caso dos homens, a máscara do macho zeloso de sua fêmea e expõe
as pulsões masoquistas, passivas e femininas que o animam, ou seja, que
lhe dão alma. E nada melhor do que as peripécias de Tertuliano para de-
monstrar que masoquismo, feminilidade e desejo de ser subjugado não
têm nada a ver com a passividade, no sentido corrente que atribuímos
a essa palavra. É preciso muito esforço, determinação e coragem para
lograr a satisfação do que, em Psicanálise, chamamos de passividade
pulsional, que pode ser descrita como a busca de ser ultrapassado pelo
desejo, de tornar-se objeto de um gozo que zomba da boa norma, da
dignidade e da razão.
Ao apontar a arma para Gastão Fortes — o amante que, exigin-
do de Sinhá exclusividade e devoção, acreditava-se normal —, Tertu-
liano não somente se excedia no esforço de gozar passivamente, como
também, certamente, colocava a alma nos olhos de seu rival, obrigando-

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Psicanálise e Literatura: Seis Contos da Era de Freud

-o a ver em seu rosto algo muito maior e mais intenso do que a previsível
e enfadonha fúria de um marido traído. Que fosse coagido a aceitar
de volta Sinhá já era sem dúvida algo surpreendente, mas ser obrigado
a encarar a desconcertante lascívia que sua forçada aquiescência fizera
brotar no sorriso do marido, isso sim, era demais, isso sim, com toda a
certeza, terá confrontado a autoconfiança de Gastão Fortes com uma
verdade tão gritante quanto insuportável.
Ou será que esse sedutor inveterado, esse atleta varonil tão se-
guro no manejo da raquete de tênis e do volante das baratinhas pratea-
das não teria tido cancha para captar essa outra verdade lapidar? Os
homens são quase sempre capazes de perdoar a infidelidade da mulher
amada, mas são absolutamente intolerantes com aquelas que não lhes
proporcionam um pequeno sinal, alguma margem de dúvida ou, pelo
menos, uma suspeita delirante que assegure a possibilidade do adulté-
rio. A fidelidade feminina é imperdoável.

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