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Juliana Moreira Lopes

Letalidade seletiva e exceção: a


política de segurança pública do Rio de
Janeiro
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112601/CB

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito


parcial para obtenção do grau de Mestre
pelo Programa de Pós-Graduação em Direito
da PUC-Rio

Orientadora: Profª Bethânia de Albuquerque Assy

Co orientadora: Profª Victoria-Amália de Barros C. G. Sulocki

Rio de Janeiro
Abril de 2013
Juliana Moreira Lopes

Letalidade seletiva e exceção: a política de


segurança pública do Rio de Janeiro

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Direito como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Direito. Aprovada
pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112601/CB

Prof. Bethânia de Albuquerque Assy


Orientadora
Departamento de Direito – PUC-Rio

Profª. Victoria Amália de Barros C. G. de Sulocki


Co-orientadora
Departamento de Direito - PUC-Rio

Prof. João Ricardo Wanderley Dornelles


Departamento de Direito – PUC-Rio

Profª Vera Malaguti de Souza Weglinski Batista


UCAM

Profª. Mônica Herz


Vice-Decana de Pós-Graduação do
Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio

Rio de Janeiro, 09 de abril de 2013


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do
orientador e da universidade.

Juliana Moreira Lopes

Graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais no ano de


2010 pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112601/CB

Ficha Catalográfica

Lopes, Juliana Moreira

Letalidade Seletiva e Exceção: a política de


segurança pública do Rio de Janeiro; Juliana Moreira
Lopes; Orientadora: Bethânia Albuquerque Assy. –
2013.
133f. ; 30cm

Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito,
2013.

Inclui Referências Bibliograficas

1.Direito – Teses. 2. Segurança Pública. 3. Giorgio


Agamben. 4. Homo sacer. 5. Estado de exceção. 6.
Violência. 7. Seletividade. 8. Letalidade policial. I. Assy,
Bethânia de Albuquerque. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III.
Título.

CDD:340
Agradecimentos

À professora Bethânia Assy, pela orientação e gentileza em acolher discussões


teóricas, seus questionamentos e observações foram fundamentais no
desenvolvimento deste trabalho.

À professora Victoria Sulocki, pela generosidade que desde os tempos da


graduação me estimulou a questionar e por meio de nossas conversas sempre me
incentivou a ter um pensamento crítico. Seu apoio foi muito importante neste
trabalho e na minha experiência acadêmica.

Ao professor João Ricardo Dornelles, pela experiência do estágio docente, por sua
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simplicidade em sala de aula e fora dela, sempre aberto para discussões e


indagações.

Aos meus colegas de turma e do departamento de pós-graduação Ana Carolina,


Andrea, Cristiane, Cecilia, Fábio, Fernanda Djahjah, Fernanda Pradal, Guilherme,
Julia, Marcelo, Naira, Paulo, Viviane, Pedro, pela feliz convivência nesses dois
anos. Um agradecimento especial ao Rafael Vieira, pela ajuda no
desenvolvimento desta pesquisa.

A Fernanda, Maria Cristina e Sergio, pelo apoio diário e principalmente pela


paciência.

Ao Anderson e a Carmem, pela ajuda e presteza nos problemas cotidianos do


departamento.

A PUC-Rio e ao CNPq, pelas bolsas.


Resumo

Lopes, Juliana Moreira. Assy, Bethânia de Albuquerque. Letalidade


Seletiva e Exceção: a política de segurança pública do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, 2013. 133p. Dissertação de Mestrado – Departamento de
Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Num contexto político de incertezas e o despontar de um novo paradigma


nas relações humanas, principalmente no campo da segurança, onde se fortalece a
“cultura da emergência” com forte apelo promocional e simbólico, o presente
trabalho pretende analisar a hipótese da seletividade incidente sobre os altos
índices de letalidade nas ações policiais executadas no Rio de Janeiro. A presente
pesquisa utiliza chaves conceituais da obra de Giorgio Agamben para investigar
as políticas de segurança pública implementadas no estado. Primeiramente será
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apresentada uma remontagem histórica e política do regime militar até a política


contemporânea, para evidenciar o legado de violência como base ideológica
fundadora da instituição policial e, suas permanências no presente. A partir disso,
serão analisados os conceitos de Estado de Exceção, campo e Homo Sacer como
fonte de interpretação e compreensão de uma política baseada no modelo “lei e
ordem” e do eficientismo penal, direcionados ao extermínio de todo um segmento
social considerado matável. Ou seja, descartável no regime democrático,
mostrando-se na realidade como uma nova roupagem para o mesmo modelo
autoritário repressivo de controle social. Através de um padrão difuso do
indivíduo suspeito, as autoridades policiais executam práticas de extermínio.

Palavras Chave

Segurança Pública; Giorgio Agamben; Homo Sacer; Estado de Exceção;


Violência; Seletividade; Letalidade Policial.
Abstract

Lopes, Juliana Moreira. Assy, Bethânia de Albuquerque (Advisor).


Selective lethality and exception: a public safety policy of Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, 2013. 133p. MSc. Dissertation – Departamento de
Direito. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

On a political context of uncertainty and arousing of new paradigm about


human relations, specially on the security field, where “emergency culture” gets a
strong promotional and symbolical appeal, the present work intends to
demonstrate the probabilities of incident selectivity on high levels of police
actions´ lethality carried out in Rio de Janeiro. This present research has
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taken in consideration Giorgio Agamben´s key concepts of investigation of public


safety policy implemented on a state. First it will be shown a political and
historical reconstruction of the military regime until the contemporary politics, in
order to demonstrate the violence´s legacy as an ideological base for the police
institution and its continuity until the present days. From this point, it will be
analyzed the state of exception concepts, camp and homo sacer as an
interpretation and comprehension research of a policy based on a “law and order”
model and on criminal efficiency, directly connected to an extermination method
of a whole social segment, considered easy to be assassinated. In other words,
this situation is found available in a democratic regime, by showing a new cover
for the old repressive and authoritarian model of social control. Through a diffuse
behavior of a suspect person the police authorities apply practices of
extermination.

Keywords

Public Safety; Giorgio Agamben; Homo Sacer; State of Exception;


Violence; Selectivity; Police Lethality
Sumário

Introdução 8

1. A Segurança Pública no Rio de Janeiro 16

1.1. Permanências da Doutrina de Segurança Nacional 18


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1.2. As políticas estaduais de segurança pós ditadura 29

1.3. O atual programa de segurança pública (2007 – 2012) 41

2. A Biopolítica contemporânea como forma de gestão dos corpos 47

2.1. O estado de exceção permanente 53

2.2. O homo sacer e o direito de morte 69

3. A letalidade seletiva da polícia como paradigma de extermínio 85

3.1. A favela e o paradigma do campo 88

3.2. A letalidade da ação policial 101

4. Considerações Finais 121

5. Referências Bibliográficas 125


Introdução

Somos muitos Severinos


iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte Severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia.
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(João Cabral de Melo Neto – Morte e Vida Severina)

São muito severinos no Brasil, mas todos têm o mesmo retrato. Eles são
jovens, negros ou pardos, pobres, moradores de comunidades ou da favela, com
baixa escolaridade. A vida severina não está simbolizada somente no nordestino,
ela está espalhada pelo país, mais numerosa e, paradoxalmente, invisível aos olhos
da sociedade. De acordo com os censos nacionais, em 2010 o Brasil apresentou a
taxa de 49.932 homicídios1. Para cada indivíduo branco morto, foram dois
indivíduos negros vítimas de homicídios. Entre essas vítimas, a maior letalidade
se situa entre a faixa etária dos 15 aos 24 anos. Os números revelam uma marca
letal que vai além da questão racial, ela é determinada principalmente pelo aspecto
social.

A força letal da policia brasileira tem um foco maior nos jovens negros.
Não somente pela questão racial, mas principalmente por serem pobres. É a eterna
associação entre pobreza e crime. Esse tipo de visão remonta ao nosso passado
escravocrata. Para os oprimidos, o estado de exceção vigorou como regra na
administração colonial, expressão da violência soberana. O controle social é

1
Mapa da Violência 2012: os novos padrões da violência homicida no Brasil. CEBELA,
Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos. Disponível em:
http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012.php. (Acesso em: 01/02/2013)
9

empreendido de forma repressora, onde a letalidade policial atua como modo de


dominação. O ranço da violência chega até os dias atuais cometidos pelos
excessos do aparato repressivo do Estado, seja na atuação belicista de setores
policiais, seja na violência cotidiana praticada pelas instituições públicas que
privam um segmento social de direitos constitucionalmente assegurados.

A história do Brasil é formada por uma violência institucional que


acompanha toda a formação política do país. Numa sociedade desde sempre
excludente, as estratégias de controle social mudaram de estética, mas a sua
funcionalidade continua a mesma. O aparato repressivo do Estado sempre deu o
tom da brutalidade necessária.

O estado de exceção2 criado como um instrumento a ser utilizado nos


momentos de crise, torna-se cada vez mais frequente na prática política,
evidenciando o falso discurso dos valores neoliberais vendidos pela modernidade
contemporânea, em contradição com as práticas autoritárias incidentes
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seletivamente sobre um segmento da sociedade. O tempo histórico atual vive sob


a sombra do paradigma da segurança, no qual a guerra é o único elemento
constante em diversas partes do mundo. Ainda assim, a ordem mundial se agravou
com o pós 11 de setembro. Se antes a tortura e a violação aberta dos direitos
fundamentais eram impensáveis nos países que se autoproclamam civilizados, isso
passou a ser aceito como um custo necessário, a restrição da liberdade individual e
coletiva em prol da garantia da segurança. Já nos países periféricos, a prática da
tortura e o desaparecimento de pessoas nunca deixou de ser exercida sobre
aqueles setores considerados descartáveis na estrutura liberal capitalista.

A obra de Giorgio Agamben recebe novos campos de discussão no cenário


descrito, quando ocorre o fim das ideologias, quando democracia e totalitarismo

2
O presente trabalho irá tratar do termo estado de exceção na obra de Giorgio Agamben. O
autor parece não adotar um conceito definitivo. Ao contrário, diante da complexa realidade atual,
essa definição parece se transformar constantemente. Por isso, esse sintagma servirá como um
termo técnico para um conjunto de fenômenos jurídicos. Agamben afirma que “o estado de
exceção não é tanto uma suspensão espaço-temporal quanto uma figura topológica complexa, em
que não só a exceção e a regra, mas até mesmo o estado de natureza e o direito, o fora e o dentro
transitam um pelo outro. (...) O que ocorre e ainda está ocorrendo sob os nossos olhos é que o
espaço “juridicamente vazio” do estado de exceção (em que a lei vigora na figura – ou seja,
etimologicamente, na ficção – da sua dissolução, e no qual podia portanto acontecer tudo aquilo
que o soberano julgava de fato necessário) irrompeu de seus confins espaço-temporais e,
esparramando-se para fora deles, tende agora por toda parte a coincidir com o ordenamento
normal, no qual tudo se torna assim novamente”. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder
soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 44.
10

não podem mais ser definidos em conceitos maniqueístas. Pelo contrário, esses
dois regimes entram em processo de convergência, o que dificulta traçar algum
tipo de previsão dos novos tempos. Essa época é marcada pela expansão sem
limites do poder punitivo e do Estado de Polícia nos países ditos democráticos,
das declarações cada vez mais frequentes de emergência para gestão das formas
de vida.

Esse processo não poderia deixar de ter reflexos no Brasil, onde a


repressão as formas de contestação sempre apareceram como um elemento
constituinte de nossa história. O paradigma atual converte um mecanismo criado
para situações excepcionais numa técnica regular de governo, fazendo da exceção
uma situação cada vez mais frequente. O estado de exceção é criado no intuito de
justificar a suspensão temporária do ordenamento jurídico, para ser invocado nas
situações em que o poder vigente julgasse necessária para garantia da ordem
constitucional. Independente da justificativa de ordem simbólica que o invoque, o
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tempo atual apresenta a necessidade de analisar a sua consolidação como estrutura


jurídico política estabelecida na sociedade.

Agamben retoma o conceito de biopolítica e radicaliza ao extremo esse


pensamento para explicar a realidade contemporânea. Por meio do estado de
exceção permanente, o paradigma da vida nua3 se torna central na política
moderna. Nesse sentido, Agamben retoma a experiência dos campos de
concentração nazistas e o enuncia como paradigma da atualidade. Diante de um
período complexo e dramático, surgem algumas figuras difíceis de serem
explicadas nos antigos formatos de governo totalitário e democrático. Entre esses
casos estão os prisioneiros de Guantánamo, de Abu Ghraib, de contingentes
populacionais habitantes de campos de refugiados, imigrantes classificados como
perigosos e, diversas outras formas de criminalização da resistência. Todas essas
situações têm em comum a anulação do estatuto jurídico desses indivíduos,
tornando-os seres inclassificáveis4.

3
O paradigma da vida nua é central na obra de Giorgio Agamben. Segundo o autor,
“protagonista deste livro é a vida nua, isto é, a vida matável e insacrificável do homo sacer, cuja
função essencial na política moderna pretendemos reivindicar”. AGAMBEN, Giorgio. Homo
Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 16.
4
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 14.
11

O paradigma securitário busca constantemente legitimar as políticas de


exceção. Para essa finalidade, subjetividades precisam ser construídas em torno de
um inimigo e, assim a figura estigmatizada dos segmentos historicamente
perseguidos se fortalece no imaginário social, aumentando o preconceito e a
violência destinada a esses extratos sociais.

A anomia de estatuto jurídico pode ser utilizada para compreensão da


realidade brasileira no que tange a segmentos populacionais moradores de
comunidades. Espaços delimitados geograficamente são controlados sob técnicas
específicas de exceção, direcionadas especialmente para seus moradores. A
suspensão da ordem jurídica é a regra nas favelas, o que naturaliza suas práticas e
a violência institucional. O crescente processo de militarização da segurança
pública, no ensejo de combater o tráfico de drogas, hegemoniza a atuação
repressiva das autoridades policiais. Como consequência, o medo opera por meio
da subordinação do indivíduo às estratégias de controle social. Com o incremento
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da sensação de insegurança, as fórmulas imediatistas de resolução dos conflitos


são legitimadas com mais facilidade. Estrategicamente manipulado pela mídia, o
medo conduz a opinião pública a clamar por um Estado penal. O aparato bélico
passa a ser justificado então como um custo necessário para garantir a segurança,
e as mortes decorrentes da política pública de enfrentamento são calculadas como
danos colaterais, pois como afirmou José Mariano Beltrame, secretário de
segurança pública do Rio de Janeiro, “mesmo morrendo crianças, não há outra
alternativa. Esse é o caminho”5, após operação da polícia em favelas da Zona
Oeste em 2007, que provocou a morte de 12 pessoas, inclusive uma criança de
quatros anos.

“Mais do que extermínio de “criminosos”, trata-se de matança aleatória, contra


negros, mestiços e pobres, com marcas indeléveis de ação policial. O componente
aleatório, característica de atos terroristas, é contudo relativo: aleatórias as
vítimas individuais, mas de forma alguma aleatória a escolha do nicho social,
racial e espacial que ocupavam na sociedade brasileira”6.

A violência seletiva está voltada para a parcela mais vulnerável da


sociedade, o segmento excluído do processo de desenvolvimento econômico do

5
Fonte: O GLOBO (17/10/2007)
6
HOLLANDA, Cristina Buarque de. Polícia e Direitos Humanos: política de segurança
pública no Primeiro Governo Brizola. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2005. p. 16.
12

país. Operando por meio da eficácia penal, a polícia aplica arbitrariamente a sua
força contra a população. O uso da categoria “figura suspeita”, empregado de
acordo com o juízo subjetivo do policial assegura a execução indiscriminada de
práticas repressoras. Consolidou-se seletivamente uma identificação da
criminalidade com a criminalidade das baixas camadas sociais, a qual, associada
com a ideologia da periculosidade e dos grupos perigosos, estabeleceu uma
relação direta com a violência.

A atual dinâmica dicotômica entre Estado Democrático de Direito e o


Estado Penal funciona com a quebra de referenciais normativos, demonstrando
uma não correspondência entre o discurso do Estado de Direito e a prática,
ocorrendo na realidade um rompimento dos seus mecanismos de legitimação.
Agamben vai além e sugere uma subestrutura fundante do próprio sistema
jurídico. O não lugar provocado pelo estado de exceção, quando ele suspende a
norma, faz com que a complexa relação entre exceção e violência fique destinada
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a reaparecer constantemente nas contradições do sistema democrático. Trazer luz


a essas questões pode ajudar a compreender alguns paradoxos do tempo atual
como a expansão sem precedentes da violência estatal, sob a justificativa de
salvaguardar a eficácia de suas próprias declarações de direitos. O caso brasileiro
se coloca bastante elucidativo deste paradoxo, pois vivemos atualmente sob a
vigência de uma constituição avançada no aspecto formal, no entanto, a violência
institucional é comparável aos anos de chumbo do regime militar, o que será
mostrado ao longo deste trabalho.

A partir das questões colocadas, esta dissertação tem o objetivo de analisar


o modelo de segurança pública atual, com base no paradigma do estado de
exceção. E compreender a sujeição da vida nua ao poder soberano nos dias atuais,
na forma da biopolítica operada pela polícia. Partindo desta ideia, o presente
trabalho tem como foco de pesquisa o Brasil, em especial a cidade do Rio de
Janeiro, a partir do período de redemocratização até os dias atuais. No entanto,
uma contextualização mundial se mostra necessária para compreensão total das
transformações políticas pelas quais passou a cultura governamental carioca ao
longo das últimas décadas, com fortes influências externas e nacionais, até chegar
ao modelo de segurança pública atual. A cidade vive um processo de militarização
urbana com novos dispositivos de controle e mecanismos de convivência, o que
13

demonstra a necessidade de um estudo aprofundado no novo arranjo biopolítico


da cidade.

Uma preocupação norteadora da linha seguida pelo presente estudo é


tentar compreender o papel da violência na polícia e na política. Por meio do
poder concentrado do Estado, a violência subterrânea se torna legal. O eixo da
pesquisa seguirá os paradigmas estudados por Agamben para fazer um panorama
das sucessivas políticas de segurança pública empregadas no Rio de Janeiro desde
a época militar. A linha metodológica seguida por essa investigação será por
amostragem, baseada em dados estatísticos extraídos de fontes oficiais, casos
emblemáticos e análises de discursos.

A pesquisa se divide em três capítulos principais. O primeiro rastreia as


pistas deixadas num passado militar, para mostrar como a polícia se constitui na
violência. Em um primeiro momento adota a violência explícita sob a ideologia da
Doutrina de Segurança Nacional, característica de um governo autoritário,
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passando pelo processo de abertura política, numa época em que a sociedade civil,
ainda traumatizada buscava se resguardar desse passado brutal. Em seguida vêm
os primeiros governos estaduais democráticos, marcados pelo embate ideológico
no campo da segurança entre uma perspectiva penal repressiva, em oposição a
uma visão humanista, que entendia o crime como desvio próprio de uma
sociedade naturalmente excludente. Até chegar ao atual governo estadual, que
começou com uma política de confronto direto e permanente contra a
criminalidade, até mudar para um discurso de aparente pacificação da cidade.

De início um panorama histórico se faz necessário para tentar identificar


uma certa herança da época autoritária dentro da instituição policial de hoje. Seu
legado de violência deixou permanências dentro das polícias como instituição
repressora de combate ao inimigo. Esse pensamento irá acompanhar todo o
processo de reabertura política, no qual ocorrerá uma disputa ideológica sobre o
papel da instituição, prevalecendo uma postura combativa, no qual a violência é a
ferramenta de trabalho, empregada com uma ótica seletiva e geográfica. Suas
práticas bárbaras são direcionadas para o indivíduo suspeito, construído no
imaginário social e policial do jovem pobre, negro ou pardo, morador de
comunidades pobres.
14

O segundo capítulo se propõe a abordar paradigmas estudados por Giorgio


Agamben para buscar chaves interpretativas da realidade contemporânea no
âmbito das políticas de segurança. Os conceitos de estado de exceção, campo,
homo sacer e vida nua, colocam luz sobre aspectos velados. Agamben conduz a
ideia de biopolítica até o seu extremo para atingir a ideia de vida nua, objeto
político de nosso tempo. Por meio do estado de exceção permanente, o autor traz
um novo enfoque sobre a vida politicamente qualificada. A vida nua não se
mostra como uma produção natural, pelo contrário, ela consiste na produção de
relações históricas de poder, se tornando um fator estratégico, chegando a sua
radicalização máxima nos campos de concentração nazistas. O filósofo traz a
experiência do campo para a realidade contemporânea como chave de
compreensão de algumas experiências atuais. A busca pela compreensão de
Auschwitz pretende manter viva na memória coletiva política o que foi realmente
o campo, mais precisamente, sua forma e sua função. E propõe que a experiência
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do campo não está num passado encerrado, mas significa a emergência de uma
(re)produção contemporânea política, com outra forma, camuflada pela tradição
hegemônica.

Por meio do paradigma do homo sacer, Agamben retoma uma imagem do


direito romano como uma cifra para entender os paradoxos atuais. A partir dessa
categoria, o presente trabalho busca traçar um paralelo com as práticas
empregadas pela instituição policial nas favelas cariocas e comunidades urbanas.
Isto porque, esses espaços vivenciam a exceção absoluta. Seus moradores têm
suas vidas reduzidas a mera vida nua, seus direitos fundamentais são alijados, eles
são constrangidos e humilhados cotidianamente. Sob o manto de uma democracia,
uma verdadeira economia política de controle social é empregada em
determinados espaços territoriais do Rio de Janeiro.

O terceiro capítulo retomará os paradigmas trabalhados por Agamben


aplicados a dinâmica política carioca no campo da segurança pública. O papel da
mídia será citado nesse cenário como fator estratégico de imposição da violência
simbólica no imaginário social. Seu papel se mostrará de forma decisiva para
manipulação do imaginário social e construção do estereótipo do inimigo a ser
eliminado. Aliado a esse vetor se encontra a instituição policial e sua força letal
direcionada para a figura suspeita, moldada de acordo com estereótipos
15

socialmente criados. Por meio da apresentação de dados e análise de discursos, o


presente trabalho buscará elucidar o perfil das vítimas da força letal policial e
demonstrar um padrão específico do indivíduo suspeito de criminoso. A violência
institucional é direcionada sob o olhar seletivo, a polícia mata os jovens em
escalas de extermínio sob o discurso militar da guerra. Como essas práticas
ocorrem somente nas chamadas zonas de risco da cidade, suas vítimas são
calculadas como meros danos colaterais necessários numa guerra declarada em
defesa da sociedade.
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1
A Segurança Pública no Rio de Janeiro

O estado de exceção é permanente na formação política brasileira e pode


ser percebido por meio de práticas institucionais que reproduzem a violência e a
desigualdade ao longo da história. Assim, quando se pretende empreender uma
análise da situação contemporânea, é preciso remontar ao passado e averiguar
quais resquícios são notados ainda hoje e quais as suas influências. Como afirma
Gizlene Neder, a história é marcada por rupturas e permanências1, e muitas vezes
essas permanências se colocam de forma perene nas práticas cotidianas sem que
um olhar mais atento perceba. As rupturas com a estrutura política formal e todo
seu aparato repressor foram sentidas claramente. Entretanto, é a violência
subterrânea que interessa ao presente trabalho. Hoje se vivencia o período de
banalização da violência institucional nas políticas de segurança pública do Rio de
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Janeiro. Os vestígios deixados pelo estamento militar dos anos de chumbo são
nitidamente sentidos nas práticas policiais contemporâneas.

O processo de redemocratização se deu como consequência do colapso do


regime militar, de maneira que a transição pôde ser negociada. Dessa forma, o
entulho autoritário presente nos dias atuais permite a convivência simultânea entre
um Estado de Direito formal e um Estado de Exceção material vigente em espaços
determinados. Segundo o jurista Raúl Zaffaroni,

“o Estado de direito é concebido como o que submete todos os habitantes à lei e


opõe-se ao Estado de polícia, onde todos os habitantes estão subordinados ao
poder daqueles que mandam. (...) Considerando a dinâmica da passagem do
estado de polícia ao estado de direito, é possível sustentar uma posição dialética:
não há estados de direito reais perfeitos, mas apenas estados de direito que
contêm os estados de polícia neles enclausurados.”2

Esta definição do Estado de polícia se insere no funcionamento do Estado


de Direito, o qual funciona como uma força de contenção dos impulsos do Estado
de polícia. Quando esse controle não é exercido observa-se a gestão policialesca
da vida. O paradigma bélico penetra no cotidiano da sociedade civil produzindo

1
NEDER, Gizlene. Cidade, Identidade e exclusão social. Revista Tempo. Vol. 2, nº 3,
1997.
2
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Direito Penal Brasileiro I. Rio de Janeiro. Editora Revan,
2003. p. 41.
17

inseguranças e uma demanda maior por controle, vigilância e recrudescimento, a


ponto de justificar a restrição das liberdades para manutenção da ordem.

A definição de Zaffaroni é também uma reflexão sobre a legitimidade do


poder punitivo e do direito penal. O poder punitivo não resolve os conflitos, ele
somente os coloca em suspensão, uma vez que a vítima não é inserida nesse
sistema de construção da “paz social”. Ele apenas mantém o conflito em suspenso
até que o tempo e a dinâmica social dissolva-o3. A maioria dos operadores do
sistema penal projeta o poder punitivo como o combate a criminalidade e aos
criminosos. Entretanto, esse tipo de mentalidade faz o risco de morte do policial
latino americano ser muito maior que o do policial europeu, o que ao final é
apresentado como exemplo de eficácia preventiva4. Ou seja, esse modelo está
longe de ser um implementador da “paz social”, ao contrário, ele fornece somente
soluções paliativas para o mero funcionamento de uma minoria da sociedade
capitalista neoliberal. Sob uma análise crítica, o olhar punitivo é funcional na
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atual ordem vigente, na medida em que seu foco criminalizante sobre o sujeito
pobre, sua moradia e suas estratégias de sobrevivência encobre a compreensão da
conflitividade social5.

O poder punitivo6 esteve durante muito tempo sob monopólio das agências
militares. No período pós-regime militar, ocorreu a sua transferência para as
agências policiais, associado ao paradigma bélico. Essa ideologia significou um
aprofundamento do poder punitivo por meio da valorização desmedida da
segurança, provocando então um enfraquecimento dos vínculos sociais e um

3
Reduzir o sofrimento é a única finalidade legítima da sanção criminal, dentro de um
caráter político. E o controle do exercício do poder punitivo é um instrumento central nos limites
da sanção criminal. CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008. p. 138.
4
O policial europeu é treinado sob a técnica de prevenção do crime e com o objetivo de
causar a menor lesividade a sociedade. Diferente das polícias latino americanas, as quais são
treinadas sob a ideologia de guerra e do confronto direto, onde o fim é a eliminação do criminoso.
No entanto, a prática do confronto direto e permanente provoca um elevado índice de morte não só
de civis mas também entre os próprios policiais. Essa situação deflagra o custo humano da
mentalidade da guerra. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Direito Penal Brasileiro I. Op. Cit. p. 58.
5
BATISTA, Vera Malaguti. Adesão subjetiva à barbárie. In: BATISTA, Vera (Org.). Loic
Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro, Revan: 2012. p. 310.
6
Para Zaffaroni poder punitivo consiste em uma forma de coação estatal caracterizada por
sanções diferentes daquelas empregadas pelos demais ramos do saber jurídico: as penas.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Direito Penal Brasileiro I. Op. Cit. p. 39.
18

incremento da autoridade e a legitimação da violação de direitos. O estado de


polícia se tornou a “ditadura da segurança urbana”7.

As categorias de “humanidade” e “não humanidade”8 podem ser


transportadas para a questão da violência, muito presente de forma difusa na ação
policial direcionada para escolhas tácitas sobre a eliminação de indivíduos. Toda a
atuação policial é pautada por essa ótica seletiva, como Silvia Ramos e Leonarda
Musumeci chamaram de “geografia da dura”9. A abordagem policial é diferente
quando se trata de um indivíduo da classe média, morador da Zona Sul do Rio de
Janeiro e outro sujeito jovem, pobre, morador da periferia. No primeiro caso a
abordagem tem o objetivo de encontrar drogas e extorquir dinheiro do usuário. Já
no segundo, o abordado é suspeito de ser traficante, por isso é vítima de violência
física e humilhações. As ações violentas das polícias são pautadas por uma
hierarquia de níveis de humanidade. De acordo com o nível atribuído a um
sujeito, sua vida possui um valor baixo, portanto a sua eliminação é considerada
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somente um custo colateral para manutenção da ordem, esse indivíduo é


considerado como matável.

1.1
Da Doutrina de Segurança Nacional para o modelo de segurança
pública contemporâneo
“Era só mais uma dura
resquício de ditadura
mostrando a mentalidade
de quem se sente autoridade
neste tribunal de rua”
(Marcelo Yuka)

7
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Direito Penal Brasileiro I. Op. cit. p. 59
8
Nesse sentido Cristina Buarque de Hollanda afirma que “o olhar atento para essa
experiência me parece útil para pensar a questão da violência policial a partir de duas categorias
estruturantes da lógica nazista: a definição de diferentes níveis de humanidade e a angústia da
imprevisbilidade causal. Estes itens são levados a seu extremo em Auschwitz, mas podem ser
identificados, em variações difusas, com potencial destruidor mitigado. Este é o caso do cotidiano
das interações policiais com a população. Ainda eu desprovidos do caráter absolutizante que
adquirem na experiência nazista, a hierarquia de níveis de humanidade e o tema da
imprevisibilidade são também centrais na descrição da ação policial”. HOLLANDA, Cristina
Buarque de. Polícia e Direitos Humanos: política de segurança pública no Primeiro Governo
Brizola. Op. Cit. p. 29.
9
RAMOS Silvia; MUSUMECI Leonarda. Elemento suspeito: abordagem policial e
discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 35.
19

O final do século 20 foi marcado por profundas mudanças políticas no


mundo. Mas a principal delas foi o fim da polarização mundial entre capitalismo e
socialismo. A polaridade econômica entre as duas nações incutiu uma
consciência dual em diversas esferas, com influências inclusive no campo penal.
Como se sabe, o “inimigo interno” era um conceito chave na Doutrina de
Segurança Nacional, importada dos Estados Unidos e desenvolvida no Brasil na
Escola Superior de Guerra10 (ESG) como um efeito do nosso alinhamento com o
país anglo saxão11. A ESG foi uma das instituições que mais formaram militares,
pertencentes ao Exército, Marinha e Aeronáutica para os principais postos de
comando do regime.

A polaridade foi transferida para a consciência do bem e do mal, cidadão e


inimigo. Não foi por coincidência, o período da Guerra Fria foi caracterizado
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também pela ascensão e apogeu das ditaduras na América Latina. No plano


interno dos governos totalitários, a ideologia do combate ao inimigo serviu muito
bem ao modelo militar de guerra12, no caso ao dissidente marxista. No plano
externo, a guerra contra o comunista. Os militares utilizaram a forma invertida de
representação política: “é porque se governa que se é representante”13. Ao tomar o
Estado, os militares se tornaram representantes da sociedade, impondo uma
identificação do Governo com a vontade geral. Nesse período, o estado de
exceção era declarado de forma permanente, por meio da doutrina de segurança

10
Por meio do National War College dos Estados Unidos, em convênio com a Escola
Superior de Guerra no Brasil, foi disseminado o discurso jurídico da ordem, constituindo
antagonismos e pressões sobre quaisquer atitudes em discordância da lógica autoritária, na qual
quem não era amigo era inimigo. SULOCKI, Victoria-Amália. A constituição de 1988 e segurança
pública. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 104.
11
“Quando sob a ditadura militar, a doutrina da segurança nacional ganhou positividade
jurídica, numa conjuntura em que a mera manifestação do pensamento poderia constituir-se num
ato de “guerra psicológica adversa”, o conceito de inimigo interno foi internalizado pelos
operadores da repressão aos crimes políticos, para a qual a tortura de suspeitos era um instrumento
investigatório rotineiro. (...) O conceito de inimigo interno sobreviveria a ditadura, sendo
recuperado em documentos militares, já em pleno processo de redemocratização, deslocado da
criminalidade política para a criminalidade comum, para a compreensão da violência urbana.”
BATISTA, Nilo. A violência do estado e os Aparelhos policiais. In: Discursos Sediciosos, nº4. Rio
de Janeiro: Freitas Bastos, ICC, 1997. p. 151.
12
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Remilitarização da segurança pública: a
operação Rio. Revisa Discursos Sediciosos: crime direito e sociedade. Nº 1, 1996. p. 163.
13
TELES, Edson. Entre Justiça e Violência: estado de exceção nas democracias do Brasil e
da África do Sul. In TELLES, Edson e SAFATLE, Wladimir. (Orgs.) O que resta da Ditadura: a
exceção brasileira. São Paulo, Boitempo, 2010. p. 302.
20

nacional e técnicas de governo. As medidas de exceção estão dentro da estrutura


legal, uma vez que são medidas soberanas quando governos estão em situações
emergenciais e os governos são forçados a tomar medidas extremas. Nesse
sentido, percebe-se que mais importante que a situação de necessidade
justificadora é a figura política que a declara, o agente que decide sobre a exceção,
pois não existe uma definição objetiva da situação de necessidade, mas na
verdade, existe uma avaliação subjetiva sobre ela14. Na ditadura totalitária, eram
os militares quem decidiam quando se declarava estado de exceção. Desta forma,
observou-se o uso permanente desta medida por mais de vinte anos.

A consolidação do Estado Autoritário a partir de 1964 provocou a


implantação de um modelo econômico concentrador de renda, estreitamente
vinculado ao capitalismo internacional. Para a implementação desse modelo, foi
necessário o aparelhamento da estrutura jurídico política no Brasil, para conter
qualquer tipo de oposição e questionamento. A restrição às liberdades era o custo
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necessário para garantir o processo de acumulação capitalista. A concentração de


poder como meio de garantir os interesses capitalistas internacionais teve como
consequência um crescimento exponencial da concentração de renda e uma
repressão sem precedentes a qualquer tipo de questionamento do regime.

Durante o regime militar ocorreu a entrada expressiva do discurso dos


direitos humanos no Brasil, buscando conter as práticas de tortura e extermínio
dos militantes de esquerda. O discurso humanitário integrava um embate direto
com o modelo da ditadura, caracterizando um sentido político a tais direitos. As
reivindicações da sociedade civil, entretanto, não eram tão universalizantes quanto
o discurso no plano internacional. Internamente, as pessoas para quem se
reclamavam direitos eram os militantes políticos de classe média15.

As democracias na América Latina emergem como herdeiras da ditadura,


sob a promessa de desfazer as injustiças e construir uma política defensora dos
direitos humanos. O regime ditatorial chegou ao fim no dia 15 de janeiro de 1985,
com a eleição de Tancredo Neves para Presidente da República. No período de
redemocratização esse caráter de classe foi alargado, abrangendo além de direitos

14
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. Cit. p. 26.
15
HOLLANDA, Cristina Buarque de. Polícia e Direitos Humanos: política de segurança
pública no Primeiro Governo Brizola. Op. Cit. p. 30.
21

políticos, direitos sociais também. Uma nova carta constitucional foi instituída em
decorrência de uma Assembléia Constituinte. Após muitos anos de governo
autoritário, a sociedade civil ansiava por uma nova carta libertária, garantista
contra a violenta repressão do regime militar, experiência muito viva ainda na
memória. Durante mais de duas décadas a repressão política coube às Forças
Armadas. A continuidade das práticas de repressão durante o período democrático
pós 1985, foi possibilitada pela permanência de todo o aparato repressivo
construído na época da ditadura. Apesar do processo de redemocratização,
resquícios autoritários são observados ainda hoje. Nesse período ocorreu um
esforço muito grande na remoção do “entulho autoritário” o qual se refere às
instituições montadas pelos militares como serviços de inteligência, no caso o
DOPS e o DOI-CODI. Foi durante o governo militar que se aprofundou a
militarização das polícias e o uso das polícias políticas. No entanto, esse esforço
não conseguiu romper totalmente a antiga estrutura, pois alguns legados são
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sentidos até hoje, como a Febem, o controle militar da segurança pública e a Lei
de Segurança Nacional16.

O golpe militar “revolucionário” de 1964 manteve a constituição de 1946


até 1967, ano em que foram baixados quatro atos institucionais que realmente
regulavam nosso sistema jurídico nos três anos seguintes. O Ato Institucional
número 1 suspendeu as garantias constitucionais, permitindo a cassação de
mandatos legislativos nas três esferas federativas. O Ato Institucional número 2
extinguiu os partidos políticos e permitia ao executivo legislar por meio de
decretos-leis. O Ato Institucional número 3 estendeu a eleição indireta para os
governadores e vices. E o Ato Institucional número 4 convocou o Congresso
Nacional para votar o novo texto constitucional. Como consequência, em 1967 foi
promulgada a nova Carta17. A institucionalização da tortura foi característica da
violência impressa nos atos institucionais e indicou a proximidade entre exceção e
ordem. A partir de então a violência do estado de exceção é legitimada e
organizada, mantida como uma força necessária. Em dezembro de 1968 veio o
Ato Institucional número 5 conferindo um poder total ao Presidente da República,

16
TELES, Edson. Entre Justiça e Violência: estado de exceção nas democracias do Brasil e
da África do Sul. In TELLES, Edson e SAFATLE, Wladimir. (Orgs.) O que resta da Ditadura: a
exceção brasileira. São Paulo, Boitempo, 2010. p. 300.
17
SULOCKI, Victoria-Amália. A constituição de 1988 e segurança pública. Op. Cit. p. 99.
22

prevendo a possibilidade de suspensão dos direitos políticos de qualquer cidadão e


ficando este sujeito a todo tipo de sanção. Esse ato instituiu a base para se exercer
todo tipo de arbitrariedade. A partir deste ato, o Estado de polícia adquire respaldo
jurídico para o uso sem limite da força repressora18. E como braço executor, as
polícias estaduais, instruídas pela Doutrina da Segurança Nacional19.

Em 1969 as polícias militares, que até então restringiam-se as funções


dentro dos quartéis, passam a exercer o policiamento ostensivo nas ruas e a
garantir a manutenção da ordem pública20, sob a doutrina baseada em três pilares:
instrução militar, regulamento militar e justiça militar.

A Doutrina de Segurança Nacional tem como princípios a ideia do bem e


do mal, a prevenção geral, a legitimidade, a culpabilidade, interesse social e
igualdade. Mas a expressão máxima definidora dessa ideologia se encontra no
termo “ordem”. Não se admite qualquer tipo de oposição ao regime, quem não é
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amigo é inimigo, não existia possibilidade para um terceiro tipo. Instala-se assim
um clima de guerra interna21. Esse é o ambiente no qual se desenvolveram as
formas mais violentas de perseguições e as polícias estaduais foram as executoras
da garantia de manutenção dessa nova ordem. Já as polícias militares receberam
um ensino unificado em todo Brasil com a ideia de um “inimigo interno” e
prioridade sobre o uso da força para solucionar casos policiais. Para essas polícias,
a segurança pública era um aspecto de segurança interna.

18
Registros apontam para a cifra de 50 mil pessoas atingidas pela brutalidade do regime
ditatorial: 360 pessoas mortas, 144 desaparecidos, 20 mil pessoas submetidas à tortura, 7.367
acusados, 10.034 pessoas foram alvo de inquéritos em 707 processos por crimes contra a
segurança nacional e milhares de pessoas exiladas do território nacional. ARNS, D. Paulo
Evaristo. (Prefácio). Relatório Brasil nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985.
19
O corpo incluído na lei só reforça a ideia paradoxal da sua exclusão legal. Ele era o corpo
violentado pela tortura militar e hoje se mantém presente nas salas de tortura das delegacias e nas
vítimas de balas perdidas. “O corpo passa a ser fundamental para a ação do regime. Se a sala de
tortura tem como resto de sua produção um corpo violado e se o assassinato político produz o
corpo sem vida, o desaparecimento de opositores fabrica a ausência do corpo. No caso do
desaparecido político, sabe-se da existência de um corpo (desparecido) e de uma localidade
(desconhecida). O significativo aumento de desaparecidos políticos a partir do AI-5 estabeleceu
esta peça jurídica como a implantação do Estado de Exceção permanente.” TELES, Edson. Entre
Justiça e Violência: estado de exceção nas democracias do Brasil e da África do Sul. Op. Cit. p.
305.
20
ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição
brasileira de 1988. In TELLES, Edson e SAFATLE, Wladimir. (Orgs.) O que resta da Ditadura: a
exceção brasileira. São Paulo, Boitempo, 2010. p. 56.
21
PILATTI, Adriano. Apud SULOCKI, Victoria-Amália. A constituição de 1988 e
segurança pública. Op. Cit. p. 104.
23

A ideia do bem e do mal é facilmente desenvolvida no imaginário social


quando ambientado no contexto político antagônico entre capitalistas e
comunistas. Essa polaridade apresenta o crime e o criminoso como entes
disfuncionais ao sistema social, o criminoso representa o mal, enquanto a
sociedade ordeira é o bem. Essa filosofia se encaixa perfeitamente no modelo
militar de guerra22. O princípio da prevenção geral considera a pena um fator de
inibição do crime, na esteira de pensamento de quanto maior a pena mais irá
atemorizar os criminosos. Dessa forma, são formuladas propostas legislativas
cada vez mais rígidas. Assim como subsidia a mentalidade da polícia de dever ser
temida, ao invés de ser respeitada. Já o princípio da legitimidade assegura ao
Estado o poder de repressão à criminalidade, uma vez que este é caracterizado
como expressão da sociedade, portanto legitimado para deter esse monopólio, por
meio das instâncias formais e oficiais do controle social.

O princípio da igualdade preceitua a grande falácia moderna da doutrina


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penal23, ao afirmar que a pena é aplicada de maneira igual para todos. Essa ideia é
facilmente desconstruída ao observar a cor negra dos cárceres brasileiros. A
realidade demonstra a desigualdade na reprovação social e sua consequente
punição, a repressão não atinge os crimes funcionais, ela é claramente dirigida
para os crimes de rua.

E por fim, os dois últimos princípios, da culpabilidade e do interesse


social. Ambos baseiam-se em uma concepção de sociedade consensual, sem
dissensos ou pluralismos. A culpabilidade, segundo Baratta entende o delito como
uma atitude interior em face da inconformidade diante da estrutura social. Já o
interesse social prega a ideia de os crimes tipificados em lei representarem uma
ofensa a direitos fundamentais. A partir disso, nota-se a importância dessas duas
ideias inseridas na Doutrina de Segurança Nacional: os valores defendidos pelo
estado tornam-se valores universais, os quais a sociedade deve aceitar ou tornar-se
dissidente24.

22
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Remilitarização da segurança pública: a
operação Rio. Op. Cit. p. 162.
23
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução a
sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan. p. 73.
24
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Remilitarização da segurança pública: a
operação Rio. Op. Cit. p. 166.
24

Foi a Lei de Segurança Nacional que conferiu forma jurídica a doutrina e


garantiu a legalidade necessária para as práticas repressivas organizadas pelo
regime. Mesmo sob a vigência permanente da exceção oficializada, a repressão
com extrema violência não se limitou aos mecanismos formais. A ideia de
permanência da ideologia e das práticas da Segurança Nacional é apontada por
João Ricardo Dornelles, ao afirmar que “a década de 1970 foi marcada pelo
surgimento dos grupos de extermínio, através das forças paramilitares, formadas
por membros das forças armadas e civis que serviam de base operativa aos órgãos
de inteligência e repressão política. Uma prática que persiste até hoje, através da
chamada “polícia mineira” e milícias, contra os novos inimigos – classes
perigosas empobrecidas”25.

Esses foram os pilares seguidos pelas Forças Armadas durante a ditadura


militar para a implementação da política pública de segurança nesse período. O
regime militar deixou como legado uma instituição policial militarizada, seus
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métodos, doutrina, conceitos e procedimentos foram formulados e implementados


sob a lógica da guerra e do inimigo a ser eliminado. Até hoje combate-se o ranço
autoritário dentro da instituição, a qual ainda acredita nas práticas de tortura e
extermínio. Da mesma forma, no campo jurídico organizacional, as polícias
militares ainda se encontram sob o controle do exército26. As Polícias Militares
copiam o modelo de batalhões de infantaria do exército, seus serviços de
inteligência continuam a fazer parte do sistema de informações do exército. Ou
seja, as Polícias Militares passam primeiro as informações ao comandante do
exército, podendo ser inclusive sobre os governadores de estado, o que fere
frontalmente o pacto federativo27.

Logo após a abertura política, os anseios sociais se direcionavam para


controlar o poder punitivo do Estado, assegurar que práticas bárbaras não seriam
mais repetidas, como a tortura e o desaparecimento de pessoas. No entanto,
contraditoriamente, após mais de duas décadas de democracia, a sociedade não só

25
DORNELLES, João Ricardo W. Direitos humanos, violência e barbárie no Brasil: uma
ponte entre o passado e o presente. In: ASSY, Bethania; MELLO, Carolina C.; DORNELLES,
João Ricardo; GOMEZ, José Maria. Direitos Humanos: Justiça, verdade e memória. Rio de
Janeiro, Lumen Juris: 2012. p. 440.
26
SULOCKI, Victoria-Amália. A constituição de 1988 e segurança pública. Op. Cit. p. 108
27
ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição
brasileira de 1988. Op. Cit. p. 54.
25

apóia políticas de confronto de alta letalidade, assim como também demanda uma
maior violência por parte das forças policiais no enfrentamento da criminalidade e
aceita o alto número de mortos e desaparecidos nas periferias urbanas como um
custo colateral necessário. É o processo de banalização da violência institucional,
o qual, após a transição política, manteve o aparato repressivo dentro da
instituição policial. A constituição de 88 não rompeu totalmente a estrutura
militar, uma vez que manteve a polícia vinculada ao exército28. Dessa forma, a
segurança pública passou para as atribuições das polícias, estas agora como forças
auxiliares do exército.

Uma nova “Doutrina de Segurança Nacional” emerge no contexto político


social atual. O inimigo interno a combater agora é outro. Não é mais o militante
de esquerda, opositor do regime, mas uma enorme massa, excluída socialmente,
sem teto, sem emprego, sem terra. Esse é o extrato social, escolhido pela ótica
seletista de uma minoria social para incorporar a nova figura do inimigo a ser
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eliminado. Para isso, não é mais possível sufocar a oposição e abafar as


manifestações, então a solução é construir novas subjetividades que legitimem, ou
pelo menos justifiquem sua eliminação. Criar no imaginário social a figura do
sujeito perigoso causador da desordem social29.

A cultura policial entende que “barraco” não é domicílio e criminoso não é


cidadão portador de direitos. A política do enfrentamento tem uma lógica
implícita: “o criminoso tem que morrer”. E assim, a morte do suspeito não é um
resultado lógico do combate, mas na verdade um efeito da cultura policial30.

Jorge Zaverucha, ao trabalhar o tema da presença militar no regime


democrático analisa o período de transição e expõe as tratativas políticas a época
entre militares e membros da Assembleia Constituinte, para manter a polícia
militar subordinada ao exército, garantir a manutenção de prerrogativas no texto
constitucional instituídas na época autoritária. O processo de transição se deu sob

28
ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição
brasileira de 1988. Op. Cit. p. 56.
29
COIMBRA, Cecilia. Operação Rio: o mito das classes perigosas... Rio de Janeiro:
Editora Intertexto, 2001. p. 245.
30
CERQUEIRA, Carlos M. N. Política de Segurança pública para um estado de direito
democrático chamado Brasil. In: Discursos Sediciosos, nº 2. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, ICC,
1996. p. 193.
26

a iniciativa dos pactos “por cima”, de conciliação das elites, sem a participação
ativa e independente dos movimentos populares. Ao final, prevaleceu a autonomia
das Forças Armadas, caracterizando a polícia brasileira com uma “estética
militar”31. A ideia inicial da Assembleia era manter o exército como força de
reserva da Polícia Militar, e em tempo de guerra o inverso. Entretanto, essa
organização não prevaleceu. Os militares, ao saírem do governo, tiveram poder
para negociar suas condições e conseguiram manter-se como força responsável
pela segurança pública.

Zaverucha ainda defende a tese de vivermos no Brasil uma democracia


formal, sem conteúdo liberal. Para defesa dessa teoria, alguns artigos da
Constituição da República são apresentados, como por exemplo, o artigo 142, ao
determinar que as Forças Armadas “destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos
poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Esse dispositivo legal, por exemplo, aponta dois pontos importantes. O primeiro
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se refere a expressão “garantia” atribuída ao Exército, o que demonstra uma


contradição, pois um sistema democrático se caracteriza pela força a serviço do
poder, no entanto o que percebemos nessa parte é justamente o contrário, o
exército se coloca como força garantidora das condições de normalidade para o
pleno funcionamento dos demais poderes32. O segundo ponto, retomando uma
ideia desenvolvida anteriormente neste item, sobre a utilização do termo “ordem”.
Nota-se a constante relação entre segurança pública e a ideia de controle. A
política pública na área de segurança envolve uma abordagem mais ampla,
relacionada com questões estratégicas e sociais, ou seja, muitas não relacionadas
diretamente com segurança. Mas isso não foi contemplado no texto oficial.
“Ordem não é um conceito neutro e sua definição operacional, em todos os níveis
do processo de tomada de decisão política, [...]. Portanto, a noção de (des)ordem
envolve julgamentos ideológicos e está sujeita a estereótipos e preconceitos sobre
a conduta (in)desejada de determinados indivíduos”33. A noção de ordem neste
dispositivo legal e as situações de violação não são definidas expressamente,

31
ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição
brasileira de 1988. Op. Cit. p. 46.
32
ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição
brasileira de 1988. Op. Cit. p.48.
33
ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição
brasileira de 1988. Op. Cit. pag. 49.
27

dessa forma, cabe as Forças Armadas definirem quando esta ordem for violada e
por quem. Aqui se verifica nitidamente o poder de decisão nas mãos do exército,
qual a situação que ameaça a ordem, qual a situação de necessidade ensejadora da
declaração de medidas de exceção34.

O fato da segurança interna ter permanecido sob o comando do Exército


favoreceu incluir a segurança pública juntamente a suas atribuições e dependentes
das Forças Armadas35. Isso explica o fato das Polícias Militares serem hoje forças
auxiliares e reservas do exército. Essa é uma das problematizações do
desenvolvimento da polícia brasileira. É imprescindível assim, definir o que seja
ordem pública e determinar quais as situações conflitivas podem ensejar o apoio
das Forças Armadas36.

A formação normativa do Estado brasileiro contemporâneo sedimenta-se


na incorporação formal de direitos. Paradoxalmente, sua tradução na prática
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cotidiana da intervenção policial caracteriza-se pela constante violação dos


direitos constitucionalmente estabelecidos. Essas práticas são difusas, dotadas de
uma racionalidade fragmentada, estabelecendo uma hierarquia entre os indivíduos
direcionada a sua eliminação. A atuação da autoridade policial é intrinsecamente
marcada pela imprevisibilidade, sua atuação não ocorre de forma padronizável,
suas escolhas tácitas são definidas por uma ideologia policial, formada por éticas
distintas37.

O monopólio da força é concentrado nas mãos do Estado. No entanto,


muito diferente de nossa atual realidade, a legitimidade da polícia reside em ser
uma força pública a serviço da lei, uma instituição instrumental caracterizada pela
limitação de seus recursos, o controle do uso de sua força. Entretanto, a

34
Atualmente está um pouco diferente, pois foi criado o Ministério da Defesa comandado
por um civil, como tentativa de retirar parte do poder das Forças Armadas.
35
De acordo com Zaverucha, a Constituição de 1988 incorporou um verniz democrático na
questão da segurança pública, polícias e Forças Armadas. O autor afirma que “em termos
procedurais, o processo de redação da Constituição foi democrático. Contudo, a essência do
resultado não foi liberal. Não há, com isto, a intenção de invalidar a definição da democracia
liberal em termos de procedimentos, mas chamar atenção para as limitações de uma concepção
subminimalista”. ZAVERUCHA, Jorge. FHC, forças Armadas e Polícia. Rio de Janeiro: Editora
Record, 2005.
36
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth, Política de Segurança pública para um estado de
direito democrático chamado Brasil. Revista Discursos Sediciosos, nº 2, 1996. p. 205.
37
HOLLANDA, Cristina Buarque de. Polícia e Direitos Humanos: política de segurança
pública no Primeiro Governo Brizola. Op. Cit. p. 30.
28

imprevisibilidade das situações que demandam sua intervenção, contrariamente,


impossibilita uma execução mecânica da lei. Apresenta-se assim, como um
serviço impermeável, devido a sua intrínseca autonomia38. O caráter emergencial
dos acontecimentos impossibilita o esgotamento na produção de leis, concedendo
uma enorme margem de interpretação das ordens para os agentes policiais na hora
dos eventos. Assim como, a imprevisibilidade das situações a serem enfrentadas
implica a delegação de poder aos seus agentes, o que assegura uma autonomia
prática difícil de ser controlada pelo superior hierárquico. Ou seja, entre a ordem e
a execução há uma grande margem de discricionariedade nas operações policiais,
facilitando situações de desvio de finalidade39. “Essa cultura do policial que está
na linha de frente do trabalho de polícia, manteria relativa autonomia em relação
às normas institucionais e seria alimentada por mecanismos próprios da atividade
policial, essencialmente discricionária em sua prática cotidiana, havendo um
“significativo espaço de manobra decisória dos agentes de ponta”40.
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Nessa margem de indeterminação, entre ordem e execução, entra a


definição de diferentes níveis de humanidade. Somada a prática categorizadora da
polícia historicamente construída: do dissidente político, transportada para o
estereótipo do criminoso atual, o “jovem negro, funkeiro, morador da favela,
próximo do tráfico de drogas vestido com tênis, boné, cordões, portador de algum
sinal de orgulho ou de poder e nenhum sinal de resignação ao desolador cenário
de miséria e fome que o circunda”41. É a situação curiosa contemporânea, pois ao
mesmo tempo em que vivemos o período mais longo de uma democracia é
também a época em que vivemos o incremento da violência institucional. Como
afirma Dornelles,

“o tratamento do passado do regime militar brasileiro exige o não esquecimento


das torturas, dos desaparecimentos forçados, das mortes, das perseguições, da
censura. Mas também possibilita entender os processos de democratização que,
no caso brasileiro, se desenvolveu já no contexto da globalização neoliberal e
como a política de esquecimento e conciliação não rompeu com o passado de

38
HOLLANDA, Cristina Buarque de. Polícia e Direitos Humanos: política de segurança
pública no Primeiro Governo Brizola.Op. Cit. p. 32/33.
39
HOLLANDA, Cristina Buarque de. Polícia e Direitos Humanos: política de segurança
pública no Primeiro Governo Brizola. Op. Cit. p. 35.
40
RAMOS Silvia; MUSUMECI Leonarda. Elemento suspeito: abordagem policial e
discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Op. Cit. p. 31.
41
ZACCONE, Orlando. Sistema penal e seletividade punitiva no tráfico de drogas ilícitas.
In: Revista Discursos Sediciosos: crime direito e sociedade, nº14. Rio de Janeiro: Revan, 2004. p.
186.
29

violações, fazendo com que o fenômeno da violência permaneça e até tenha se


ampliado nas sociedades democráticas, como forma de tensão e conflito
permanente”42.

Na ordem neoliberal, o papel do Estado é redefinido passando a atuar


como meio de contenção social e ampliação das formas de violência contra os
setores mais vulneráveis. Lola Aniyar de Castro definiu os governos da América
Latina que se seguiram aos regimes totalitários como “democracias esfarrapadas”.
Elas se apoiam em leis cada vez mais repressivas – o sistema penal subterrâneo,
no qual “essas pretensas democracias, de alguma forma, como as velhas ditaduras
militares, também se sentam sobre a ponta das baionetas”43. Esse sistema é
caracterizado pelas execuções, seguidas da impunidade, a pena de morte não
autorizada constitucionalmente, a violação dos direitos humanos por omissão e a
indiferença pela população.

“Resta algo da ditadura em nossa democracia que surge na forma do


Estado de Exceção e expõe uma indistinção entre o democrático e o autoritário no
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Estado de direito”44. A violência deste período sofreu importantes rupturas, isso é


indiscutível. No entanto, ainda existem permanências. A violência não está mais
legalizada nos atos institucionais, mas ela ainda pode ser percebida objetivamente
na descartabilidade da vida humana, nos altos índices de homicídios no Rio de
Janeiro, no emprego da tortura nas delegacias, nas vítimas de balas perdidas e
autos de resistência.

1.2
As políticas estaduais de segurança pós ditadura

Falar sobre políticas de segurança pública no Brasil demanda uma relação


direta com as mudanças advindas do modelo capitalista neoliberal. Afinal, esse
sistema impôs uma cultura individualista, a deificação do mercado e a
desigualdade na fruição de direitos, às custas da naturalização da violência dentro

42
DORNELLES, João Ricardo W. Direitos humanos, violência e barbárie no Brasil: uma
ponte entre o passado e o presente. Op. Cit. p. 439.
43
CASTRO, Lola Aniyar de. Direitos Humanos: delinquentes e vítimas, todos vítimas.
Revista Discursos Sediciosos. Ano 11, nº 15/16, 2007. p. 196.
44
TELES, Edson. Entre Justiça e Violência: estado de exceção nas democracias do Brasil e
da África do Sul. Op. Cit. p. 316.
30

das instituições do Estado. O discurso estatal de criminalização da marginalidade


é essencial para entender como se organizam as políticas de controle no período
de transição, no qual ocorre uma alteração radical de tratamento das “populações
problemáticas” – o surplus da força de trabalho45: o que antes era público passa a
ser tratado no campo penal.

O processo de redemocratização e as primeiras eleições estaduais para


governadores devem ser analisados a luz do contexto nacional de abertura política
de um longo regime ditatorial como demonstrado no item anterior. No entanto,
para se compreender a dinâmica pendular dos governos estaduais que se seguiram
a esse período, é necessário analisar conjuntamente com o contexto político
mundial e suas mudanças econômicas. Essas transformações tiveram reflexos
importantes em nossas políticas de segurança pública, sobretudo a partir dos anos
70. Nessa época houve uma redefinição dos mecanismos de controle e dominação
das sociedades capitalistas, o mundo estava vendo ascender um novo modelo de
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política nos EUA que seria exportado para diversos países ocidentais, inclusive o
Brasil, a política de “lei e ordem”.

A criminologia crítica estuda a relação entre economia e controle social46,


busca demonstrar uma relação orgânica entre economia e estado. Ela analisa a
relação entre encarceramento e desemprego, o que desemboca inevitavelmente na
relação entre as dinâmicas do mercado e as estratégias repressivas, revelando um
regime do excesso se formando a partir dos anos 70. Hoje essa antiga reserva de
mão de obra tornou-se uma pobreza sem destino47. Quais são as novas estratégias
para impor uma obediência a multidões crescentes de pessoas que não têm e não
terão emprego? A resposta é a construção de medos e de um gigantesco sistema
penal48. A ordem econômica neoliberal internaliza o fracasso da pobreza
individual como responsabilidade pessoal, dessa forma essa enorme massa de
desempregados visualiza sua situação como um fracasso individual e não como

45
GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro:
Revan, 2006. p. 96.
46
GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro:
Editora Revan, 2006. Op. Cit. p. 32.
47
BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000. p. 43.
48
WACQUANT, Loic. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio
de Janeiro, Revan, 2ª edição, 2003. p. 9.
31

um elemento inserido em uma engrenagem de exploração, e assim, aceita sua


condição precária sem maiores resistências.

A mudança do papel do estado na configuração econômica é


minuciosamente estudada por Loic Wacquant, ao tratar sobre as reformas políticas
implementadas nos EUA no final do século XX. O autor demonstra o modelo
imposto pela ordem neoliberal, não mais baseado na proteção social, mas sim com
taxa de lucro máximo, necessidade de competitividade, aumento da produtividade,
simultânea a precarização das relações de trabalho. A lógica do mercado
prevalece e desconsideram-se as variáveis sociais e humanas. Ocorre uma nítida
diminuição dos investimentos na política do Bem Estar Social, simultaneamente
ao incremento do Estado Penal e o encarceramento em larga escala49, os serviços
sociais vão se transformando em instrumentos de vigilância das classes suspeitas.
Antes, as mudanças eram negociadas sobre ganhos, agora passam a ser ajustadas
sob a ameaça de perdas maiores. As transformações ocorridas nas políticas penais
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marcam, de forma inquietante, a transição de uma democracia social,


potencialmente universal, para uma democracia punitiva, explicitamente seletiva.
Essa tendência repressiva é resultado da consolidação do modelo capitalista
neoliberal50.

No momento em que o estado diminui o seu caráter prestacional de


direitos sociais, se faz necessário intensificar as intervenções do seu braço
repressor sobre os grupos sociais classificados como perigosos para manutenção
da ordem. Com a implementação de políticas de ajuste estrutural, ocorre o
aumento da exclusão social, há o nascimento de uma massa de mão de obra

49
Dario Melossi afirma ocorrer atualmente a perda de sentido das instituições de controle
disciplinar na sociedade pós-fordista criado na modernidade. “numa situação de expulsão
permanente e estrutural da força de trabalho do processo produtivo – e, ao mesmo tempo, de
profunda transformação do modo pelo qual a força de trabalho vem sendo constituída na fase atual
–, a “subalternidade” das principais instituições de controle social em relação à fábrica está de
algum modo perdida e se teria tornado obsoleta. O ensinamento disciplinar não tem mais sentido
na sociedade pós-industrial/ pós-fordista porque não há mais ensinamento a propor; por isso, as
instituições que foram criadas na modernidade com esse objetivo perdem progressivamente a
razão de ser. resta apenas aquilo que Cohen chama de warehousing, o “armazenamento” de
sujeitos que não são mais úteis e que, portanto, podem ser administrados apenas através da
neutralilizazzione, “neutralização” como se diz em italiano. In. GIORGI, Alessandro de. A Miséria
Governada através do Sistema Penal. Op. Cit. p. 15/16.
50
NASCIMENTO, Maria Livia. e RODRIGUES, Rafael Coelho. A convergência
social/penal na produção e gestão da insegurança social. In: BATISTA, Vera (Org.) Loic
Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro, Revan: 2012. p. 198.
32

“sobrante”51 da sociedade de consumo e “inimpregável”, portanto tornam-se


indesejáveis e descartáveis. Essa é a gestão penal da miséria: o Estado se mostra
incapaz de superar a crise social e muda então de estratégia, passa a conter
determinados grupos sociais por meio da criminalização das consequências da
pobreza. A estratégia de desqualificação humana rotula os desviantes como
incapazes de recuperação e considera menos humanos os criminosos. Essa
tendência atual de nova forma de controle social é o alerta de Giorgio Agamben
sobre o estado de exceção permanente nas democracias ocidentais.

De acordo com Zaffaroni, o processo seletivo de criminalização ocorre em


duas etapas, a criminalização primária e a secundária52. A criminalização primária
é exercida pelo poder legislativo, ao sancionar uma lei penal incriminadora de
certas pessoas. Ela institui um programa de criminalização a ser executado pelos
agentes da criminalização secundária, policiais, promotores, juízes, e assim por
diante. A criminalização secundária é o exercício punitivo concreto sobre
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determinadas pessoas na forma da investigação policial até a imposição e


execução de uma pena, necessariamente estabelecida por esse processo seletivo. A
opinião pública reclama por resultados imediatos e a essa demanda os políticos
respondem sancionando leis simbólicas que suprimem direitos fundamentais.
Coloca-se em prática uma resposta estatal de satisfação rápida dos anseios sociais
por meio do aumento das penas. Com isso, o controle dos excluídos satisfaz a
classe média e o direito penal torna-se mais simbólico do que realmente efetivo.

A demanda por novas leis repressivas é crescente na sociedade


contemporânea. A rentabilidade política da mensagem repressiva fortalece o
discurso legitimador de políticas genocidas. Dessa forma, vende-se a ilusão de
que irá se obter maior segurança com a aprovação de leis criminalizantes dos
setores marginalizados, aumentando diretamente o arbítrio policial e
indiretamente a violência institucional53.

A seleção punitiva decorre da impossibilidade dos agentes da


criminalização secundária concretizarem todas as leis penais do país, ou seja,

51
WACQUANT, Loic. Rumo a militarização da marginalização urbana. Revista Discursos
Sediciosos. Ano 1, nº 15 e 16, 2007. p. 439.
52
ZAFFARONI, Raúl. Direito Penal Brasileiro I. Op. Cit. p. 43.
53
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução: Sergio Lamarão. Rio
de Janeiro: Editora Revan, 2007. p. 73 e 75.
33

prender, processar e julgar todos os crimes descritos nas leis. O que implica
necessariamente em um processo de seleção de quais condutas e agentes irão fazer
cumprir a lei. Nesse processo incide um sistema de controle social54 penal com
caráter classista, pois tanto a tipificação de crimes como a política repressora são
direcionadas para crimes e agentes pertencentes das classes mais baixas, vistas
como clientela do sistema penal, enquanto os crimes executados pelas elites não
se deparam com a mesma intolerância e empenho no seu controle. Pois ainda que
se considere que o controle social não se restringe aos pobres, ele é o único foco
de suas políticas de atuação, dessa forma, o modelo de controle da ordem
neoliberal induz uma naturalização da desigualdade.

O modelo capitalista de combate a criminalidade por meio do direito penal


máximo é construído nos Estados Unidos e exportado para diversos países latino-
americanos, inclusive para o Brasil. Por isso é importante destacar algumas
características, pois quando aplicadas a realidade brasileira, elas assumem feições
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dramáticas.

O processo de criminalização da miséria nos EUA é marcado pelo


incremento exponencial da população carcerária entre as décadas de 70 e 90,
marcadamente composta em sua maioria por negros das classes mais baixas. Esse
período é caracterizado por algumas políticas públicas, como o discurso das
“janelas quebradas” (broken windows) formulado nos anos 80, para manutenção
da ordem por meio do combate aos pequenos desvios55. Outro caso, esse mais
emblemático é a ascensão da doutrina de “Lei e Ordem” implementada em Nova
York, durante a gestão do prefeito Rudolph Giuliani em 1994. Esse modelo é
marcado pelo eficientismo penal máximo, pela ideologia neoliberal empregada no
campo penal de controle social56. Esse modelo tem como características o
reequipamento bélico da polícia por meio de uma política armamentista; seus

54
Para Stanley Cohen, controle social pode ser definido como “um conjunto de meios pelos
quais uma sociedade responde aos indivíduos ou grupos sociais que, de alguma maneira, colocam
em risco a ordem estabelecida. A partir da utilização desses meios, os indivíduos ou grupos são
classificados como rebeldes, desviados, transgressores, perigosos, delinquentes, suspeitos,
inadaptados, problemáticos, ameaçadores, indesejáveis, etc., buscando-se induzir à conformidade
com a ordem social estabelecida.” COHEN, Stanley. Apud D DORNELLES, João Ricardo W.
Conflito e segurança: entre pombos e falcões. Op. Cit. p. 20.
55
WACQUANT, Loic. Rumo a militarização da marginalização urbana. Revista Discursos
Sediciosos. Ano 11, nº 15 e 16, 2007. p. 204.
56
DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e segurança: entre pombos e falcões. Op. Cit. p.
53.
34

programas de atuação são organizados sob a mentalidade de guerra contra o


“inimigo”; a aplicação na prática dessa política tem gerado um crescimento no
número de mortes dos supostos criminosos em situações de enfrentamento com a
polícia; e aumento exponencial da população carcerária nos países aderentes dessa
política57. A título de exemplo, entre os anos de 1995 a 2006, a população
carcerária brasileira cresceu 170%58, chegando a marca de quase quinhentos mil
presos. O Brasil, copiando a política “libertária” norte-americana, encontra-se
hoje na quarta colocação59 no ranking de países com maior índice de população
encarcerada, atrás somente dos Estados Unidos, China e Rússia

Por meio de uma maciça propaganda do modelo “lei e ordem” como um


novo paradigma de controle da desordem urbana, o Brasil importa então um
modelo bélico associado a Doutrina de Segurança Nacional ainda durante o
regime militar, construindo desde essa época a figura do inimigo a ser combatido
e eliminado. É importante destacar nesse ponto do estudo que o modelo anglo
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saxão transicional do estado providência para o estado policial, foi importado pelo
Brasil sem qualquer tipo de crítica. Uma vez que, no Brasil nunca houve um real
Estado de Bem Estar. O que existiram foram alguns serviços sociais básicos,
prestados de forma precária. Então, esse recrudescimento do aparato repressor
significou somente um aumento da violência e perversidade das formas de
controle sobre a população60. A guerra contra as drogas é lema justificante da
máquina de extermínio do estado e o processo de criminalização por drogas passa
de 8% em 1968 e 16% em 198861 para quase 70% no ano de 2000. O

57
A taxa de encarceramento no Brasil também aumentou rapidamente como pode ser
observado pelos índices oficiais dos últimos anos. Esses indícios demonstram que a antiga lógica
ressocializante dos presídios está sendo substituída pela ideologia da neutralização da juventude
pobre, esconder a miséria mias gritante, como pode ser visto na definição de Vera Malaguti: “A
prisão é uma instituição fora-da-lei: devendo dar remédio à insegurança e à precariedade, ela não
faz senão concentrá-las e intensificá-las, mas na medida em que as torna invisíveis, nada mais lhe
é exigido.” BATISTA, Vera Malaguti. In WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. Op. Cit. p. 15.
58
FREIXO, Marcelo. Artigo do deputado estadual Marcelo Freixo. Disponível em:
www.marcelofreixo.com.br.
59
FREIXO, Marcelo. Artigo do deputado estadual Marcelo Freixo. Op. Cit.
60
“(...) o projeto penal do neoliberalismo é muito mais sedutor e muito mais nefasto quando
se infiltra nos países atravessados por profundas desigualdades de condições sociais e de
oportunidades de vida, privados das tradições democráticas e desprovidos das instituições públicas
capazes de amortecer os choques provocados pelas concomitantes transformações do trabalho, dos
laços sociais e dos sujeitos no limiar do novo século.” WACQUANT, Loic. Rumo a Militarização
da Marginalização Urbana. Op. Cit. p. 204.
61
BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis Ganhos Fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1998. p.93.
35

desengajamento social do estado atinge prioritariamente os negros, esta política só


conseguiu entupir as celas das penitenciárias e escurecer seus ocupantes62.

O caso brasileiro possui uma peculiaridade, na medida em que o atual


governo federal mantém o programa político implementado pelo agora ex-
presidente Lula. Ou seja, continua com as práticas do estado de polícia, mas
associado a programas assistencialistas como o “bolsa família”, por exemplo.
Wacquant faz essa constatação ao definir que as reformas políticas ocorridas
condicionavam o acesso a assistência social, à adoção de certas condutas.

No período de redemocratização, momento em que se buscava garantir os


direitos fundamentais na Carta Constitucional de forma a se assegurar que as
práticas repressivas e autoritárias não voltariam a acontecer, começou a ocorrer
um embate entre duas visões políticas antagônicas de segurança pública, o que
provocou inclusive uma cisão conceitual entre políticas repressivas de “lei e
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ordem” e políticas de direitos humanos. Essa polaridade implicou efeitos


concretos nas políticas eleitorais, com influência determinante da mídia, e
provocou um “movimento pendular” nos governos estaduais seguintes do Rio de
Janeiro, conforme denominou Luiz Eduardo Soares63. Então, se a transição da
ditadura para o regime democrático legou persistências dentro da instituição
policial, ainda comandada pelas Forças Armadas e instruída pela doutrina de
segurança nacional, o contexto político internacional acirrou as demandas pelo
incremento da repressão.

Os anos 80 foram uma época de transição política na qual uma parte da


opinião pública lutava contra a ditadura, pela construção de uma ordem
democrática e rejeitava a militarização exacerbada das ações policiais,
identificada como “entulho autoritário”. A ideologia dos direitos humanos ganha
força e passa a demandar uma mudança nas formas de controle da violência e das
ilegalidades.

62
WACQUANT, Loic. Punir os pobres. Op. Cit. p. 29.
63
Essa expressão foi utilizada por Soares a época de seu livro e difundida nos meios
acadêmicos. No entanto, hoje se constata que não houve uma pendularidade entre as políticas de
segurança pública. Na verdade, o que ocorreu foi um breve momento, durante a gestão de Leonel
Brizola, de implantação de práticas policiais mais humanas, com uma grande diminuição do uso da
força nas favelas cariocas. SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de General: quinhentos dias no
front da segurança pública do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2000. p.
110.
36

O modelo político garantista no Rio de Janeiro se inicia em 1982 na


eleição de Leonel Brizola para Governador (1983 – 1986). Eleito com um
discurso progressista e apoiado pelas classes populares, Brizola priorizou um
programa direcionado a educação em período integral, política social influenciada
pelos direitos humanos, especialmente na área de segurança pública, em que se
pretendia implementar mudanças profundas na sua forma de execução, baseado no
respeito aos moradores das comunidades e suas casas como domicílios. Essas
mudanças de tratamento encontraram apoio das classes populares, em oposição a
resistência de segmentos das polícias, críticas da classe média e políticos mais
conservadores. Essa insatisfação da classe média foi reforçada pela sensação de
insegurança transmitida pela mídia, a qual passou a transmitir um cenário de
generalização da criminalidade e utiliza a imagem do Brizola associada a
desordem, como fomentador do caos64. Esse sentimento de medo é explorado pela
mídia e manipulado pela oposição para políticas de recrudescimento da ação
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policial. Ao final do mandato Brizola volta a associar no imaginário social a


figura do morador da favela como bandido perigoso que deve ser eliminado65.

A esse forte desgaste no seu 1º mandato político contrapunha-se a


candidatura de Moreira Franco para governador nas eleições de 1986, o qual
sucede Brizola no governo estadual (1987 – 1990). Sua campanha buscava
associar a imagem desse candidato como uma alternativa que traria a ordem de
volta ao cenário urbano do Rio de Janeiro. Por meio do slogan “acabar com a
violência criminal no Rio de Janeiro em seis meses”, Moreira Franco retrocede
nos avanços implementados por Brizola no campo das políticas sociais de respeito
aos Direitos Humanos e restabelece um programa de governo conservador e
antidemocrático, no qual traz novamente a prática policial do “pé na porta”, do
confronto direto com os moradores das áreas carentes. Começa nesse governo
uma “escalada da violência” causada pela interligação entre as polícias (civil e
militar) com os grupos de extermínio e o crime organizado. Já em 1990, os índices
de criminalidade ultrapassavam os registrados no governo Brizola. Nesse ano

64
DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e segurança: entre pombos e falcões. Op. Cit. p.
142.
65
Essa demonização do morador da favela como bandido ocorre ainda hoje com forte ajuda
da mídia.
37

ocorreu a Chacina de Acari, na qual homens ditos policiais levaram onze pessoas
a força e seus corpos nunca mais foram encontrados.

Apesar das críticas e respaldado em uma ampla maioria de votos, Leonel


Brizola retorna ao governo estadual do Rio de Janeiro para o segundo mandato
(1991 – 1994), mantendo seu programa político. Dessa forma, volta a ser adotado
no estado um modelo privilegiador de medidas preventivas e ampliador de
espaços democráticos de discussão das questões envolvendo a cidadania66. Um
detalhe importante desse período é a conjuntura política nacional, a qual sentia os
efeitos da vitória de Fernando Collor para Presidência da República em 1989.
Como representante dos partidos conservadores começava a adotar a receita
neoliberal de abertura do mercado e acumulação capitalista globalizada.

O segundo governo Brizola é marcado pelos massacres da Candelária em


1993 e Vigário Geral em 1994, praticados por policiais. Para Luiz Eduardo
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Soares, essas duas tragédias modificaram a referência simbólica do Rio de


Janeiro, desconstruíram a imagem da cidade alegre e do carioca como cidadão
receptivo, a separação entre civilização e barbárie foi rompida com essas duas
tragédias, claramente marcadas pelo caráter racista e classista. A sociedade civil
passa a temer uma situação de banalização da violência e cultura do extermínio67.
Esses episódios despertaram a população contra o governo e reforçaram o desejo
autoritário de condução das políticas públicas.

“O medo torna-se parte do problema, quando deixa de ser a reação natural


e saudável de vítimas potenciais, para converter-se na chave de leitura dos
fenômenos sociais e na matriz das soluções propostas”68 Com uma estrutura
simbólica de homogeneização dos acontecimentos, o Rio de Janeiro começou a
viver uma cultura do medo. Uma série de situações, filtradas por uma ótica
reducionista, começa a ser associada a um único fator, a violência. Como as
imagens de miséria nas ruas, vendedores ambulantes e pequenas desordens

66
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Política de Segurança pública para um estado de
direito democrático chamado Brasil. Op. Cit. p. 206.
67
DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e segurança: entre pombos e falcões. p. 154.
68
SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de General: quinhentos dias no front da segurança
pública do Rio de Janeiro. Op. Cit. p. 248.
38

urbanas, por exemplo69. Nesse cenário surgem as primeiras demandas de lei e


ordem. Orquestradas por essa ótica reducionista, as políticas exigidas no contexto
carioca da década de 90 são também direcionadas desigualmente para
determinados espaços e setores sociais específicos. Não foi por acaso, as Forças
Armadas ocuparam ostensivamente as periferias da cidade durante a Operação
Rio, um convênio entre o Governo Federal e o Governo Estadual. Cecília
Coimbra pesquisou sobre a Operação Rio e constatou a influência decisiva da
mídia para a efetivação da ocupação do exército, como fonte de manipulação do
medo na população70. Nessa fase, Coimbra constata três mitos construídos pela
mídia: o mito de estar em curso uma guerra civil nas metrópoles brasileiras; da
incorruptibilidade das Forças Armadas; da naturalização da tortura e do
desaparecimento71.

Durante a ocupação são realizadas centenas de prisões arbitrárias,


inúmeras denúncias de tortura e violações de direitos humanos. A “metáfora da
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guerra” e a militarização passam a prevalecer, retomando o discurso de “lei e


ordem” no final do segundo governo Brizola. Com esse enorme desgaste político
e após os episódios trágicos ocorridos, nas eleições de 1994 volta ao governo um
candidato conservador, Marcelo Alencar (1995 – 1998), o qual prorroga o
convênio com o Governo Federal e confirma uma política de repressão72. Essa
política é marcada de forma emblemática pela “gratificação faroeste” – a polícia
concedia uma gratificação monetária ao policial quanto maior fosse o número de
execuções de suspeitos por ele perpetrado, desencadeando uma política de
extermínio. A criminalidade não diminuiu nessa segunda fase da Operação, ao
contrário, neste período ocorre a chacina em Nova Brasília na qual treze pessoas
são mortas. Foi um governo conservador, com uma política reacionária. Sob o
comando do General Nilton Cerqueira como Secretário de Segurança Pública, a

69
Essa cultura do medo é fomentada até hoje pelos veículos de mídia, a serviço dos setores
conservadores, e foi um fator determinante para a adoção do modelo de “pacificação” das favelas
adotado pelo atual governo estadual.
70
“Tramas vão sendo tecidas (...) no sentido de ética e politicamente desqualificar e
desautorizar o Executivo estadual, sugerindo abertamente a necessidade de uma intervenção
federal. Afinal, estamos em pleno período eleitoral. Pela pesquisa realizada nos jornais, constata-se
que, aliada a corrupção, temos a massiva produção do medo através do descontrole que o governo
estadual demonstra sobre seus agentes e, por conseguinte, sobre os segmentos “perigosos”
COIMBRA, Cecilia. Operação Rio... Op. Cit. p.146.
71
COIMBRA, Cecilia. Operação Rio... Op. Cit. p. 183.
72
ZAVERUCHA, Jorge. FHC, forças Armadas e Polícia. Op. Cit. p. 56.
39

ideia do inimigo interno do regime militar é retomada e transferida para o campo


do controle social penal, e o conceito de segurança interna se confunde com
segurança pública73.

Para o mandato 1999 – 2002, novamente as eleições são realizadas sob a


luz da contradição entre o modelo do eficientismo penal máximo, concretizado no
discurso “lei e ordem” e do garantismo constitucional. Anthony Garotinho,
candidato pela coligação PDT e PT, vence as eleições ao apresentar um programa
de governo garantista dos direitos humanos, sob as promessas de reformas
profundas para combater a violência policial e a corrupção dentro da própria
instituição. Entretanto, a plataforma política de Garotinho se firmava como uma
terceira alternativa, ao se distanciar do programa defendido por Brizola.

Pouco após um ano de mandato, o então governador Garotinho exonera


Luiz Eduardo Soares do cargo de Coordenador Setorial de Segurança, Justiça
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Defesa Civil e Cidadania por ter denunciado uma “banda podre” na polícia
carioca, ele havia denunciado um setor da polícia como corrompido e com íntimas
relações com o narcotráfico. Essa exoneração significou na verdade um
rompimento definitivo desse governo com o modelo proposto por Soares. Um
modelo de controle do crime associado com políticas sociais em áreas carentes,
além de exigir uma profunda reestruturação interna na instituição policial74.

O modelo de controle social como uma questão penal se estende até o


mandato seguinte quando Rosinha Garotinho sucede o marido, ex-
governador (2003-2006). A mentalidade do combate e não da prevenção da
violência permanece, as incursões nas comunidades pobres continuaram, a
política do confronto direto permanente continuava a provocar elevadas taxas de
homicídios e violações de direitos. Desde 1989, o crime letal tem sido a principal
causa de mortalidade no Brasil, o índice de homicídio duplicou nos anos 80 até

73
DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e segurança: entre pombos e falcões. Op. Cit. p.
175.
74
DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e segurança: entre pombos e falcões. Op. Cit. p.
194.
40

chegar a 20 para cada 100 mil habitantes no início dos anos 90, sendo esta elevada
a 60 mortes para cada 100 mil habitantes no Rio de Janeiro75.

A polícia não é nem um remédio, nem um elemento exterior dessa


engrenagem de violência, mas sim uma parte intrínseca. A policia é ao mesmo
tempo temida e desprezada pelos moradores de áreas marginalizadas, a delegacia
é vista como um lugar perigoso, onde seus direitos e sua integridade física serão
provavelmente mais violados do que defendidos.

“O movimento pendular criou para as instituições policiais, sobretudo para a


Polícia Militar, uma situação insustentável: em primeiro lugar, lança sobre ela,
nos governos posteriores, a cobrança pela obediência às determinações dos
governos anteriores, tornando-a sempre culpada, pelos erros e pelos acertos; em
segundo lugar, a oscilação impede que ela se organize em torno de princípios
claros, permanentes, públicos e debatidos com a sociedade civil. Em decorrência
dessa impossibilidade, a corporação acaba condenada a voltar-se para dentro de si
mesma na busca de algum eixo firme e constante, em torno do qual possa
estruturar sua identidade, sua linguagem, seus valores. Isso está acontecendo e
tem levado a PM a reforçar o corporativismo, a fechar-se mais ao mundo externo,
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razão mesma de sua existência”76.

Essa breve remontagem política a partir do período de redemocratização se


apresenta como um elemento fundamental para compreender a atual formação da
polícia do Rio de Janeiro. O movimento pendular nas políticas de segurança
pública, além de demonstrar uma disputa ideológica sobre o modelo a ser seguido
no combate a criminalidade, expõe claramente a dificuldade de setores da
esquerda, representados nos dois mandatos do governo Brizola, de implementar e
manter políticas sociais voltadas para as classes mais baixas. A polaridade reflete
as disputas de poder entre esse último segmento e os políticos reacionários
apoiados por setores conservadores da sociedade civil e a grande mídia. Apesar da
alternância de ideologias no governo estadual, o modelo do eficientismo penal
prevalece. Isso é devido em grande parte a uma resistência dentro das polícias
civil e militar em aceitar e incorporar uma nova mentalidade. Não mais da
“metáfora da guerra”, de combate a um inimigo interno e controle do crime por

75
Essa incidência aproxima o Rio de Janeiro das metrópoles mais violentas das Américas
nos últimos anos. Acrescentaria a seguinte conclusão de Loic Wacquant “O atual funcionamento
da polícia é tão ineficiente, deficiente e caótico, do ponto de vista estritamente jurídico, que
precisariam ser reorganizados de cima a baixo para poderem fazer emergir as mínimas normas
estipuladas pelas convenções internacionais, ao menos para assegurar os níveis básicos de
uniformidade e justiça através das linhas de cor e de classe.” WACQUANT, Loic. Rumo a
militarização da marginalização urbana. Op. Cit. p. 205 e 208.
76
SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de General: quinhentos dias no front da segurança
pública do Rio de Janeiro. Op. Cit. p. 115.
41

meio da repressão total, com altos índices de homicídios. Mas da incorporação do


modelo preventivo do crime associado ao investimento em políticas sociais nas
periferias, no investimento em uma nova doutrina da polícia como um serviço
público prestado aos cidadãos, considerados esses sem qualquer diferenciação. A
prática categorizadora da polícia gera uma distorção de procedimentos77. As
técnicas de atuação policial, ao invés de investigar os fatos e indicar suspeitos,
primeiro identificam suspeitos, de acordo seus diferentes níveis de humanidade
para depois extraírem os fatos. . E esse tipo de atuação está situada na esfera do
extraoficial, vinculadas aos arbítrios individuais78, quando muitas vezes essa
identificação inicial do estereótipo do criminoso provoca execuções sumárias pelo
policial.

1.3
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O Atual Programa de Segurança Pública (2007 – 2012)

Sergio Cabral Filho foi eleito governador em 2006 e reeleito para o cargo
em 2010. Seu programa político nos primeiros anos de governo, apesar das
promessas feitas a época da campanha de promover reformas na área de segurança
pública, foi a política do confronto direto e permanente nas periferias do Rio de
Janeiro, por meio de mega operações policiais, com a utilização do tanque
blindado chamado de “caveirão”, do helicóptero denominado “caveirão do ar”,
emprego de um contingente enorme de agentes policiais. Essas incursões foram
executadas as custas de um aumento acentuado na taxa de homicídios praticados
pelas autoridades policiais79.

77
Um episódio representativo dessa diferenciação de tratamento e valoração da vida foi a
seguinte declaração de José Mariano Beltrame, Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro:
“É difícil a polícia ali entrar. Porque um tiro em Copacabana é uma coisa, um tiro na Coréia, no
Alemão, é outra.” Fonte: O GLOBO. (Acesso em 02 de maio de 2010).
78
“As práticas policiais estão pautadas em conteúdos ideológicos difusos que concebem a
estrutura social de maneira hierárquica. Além disso, as ações arbitrárias aplicadas à função
judiciária da polícia estão, em larga escala, apoiadas e legitimadas pela sociedade, que inclusive,
cria expectativas nesse sentido.” HOLLANDA, Cristina Buarque de. Polícia e Direitos Humanos:
política de segurança pública no Primeiro Governo Brizola. Op. Cit. p. 42.
79
O número de mortos em autos de resistência atingiu o impressionante índice de 1.330
casos somente no ano de 2007, primeiro ano do mandato Sergio Cabral. Fonte: ISP - Instituto de
Segurança Pública. Disponível em: www.isp.rj.gov.br.
42

Alguns casos são emblemáticos do modelo inicial de confronto


permanente, pela magnitude das operações, pelo número de mortes e violações
dos direitos dos moradores das áreas invadidas. Essa situação gerou uma forte
indignação por parte das organizações de direitos humanos e pela utilização em
larga escala de aparatos de repressão, com a clara intenção de transmitir um
ambiente de guerra aos traficantes. Um breve histórico acerca de alguns desses
eventos de triste memória se coloca necessário, em vista da gradativa
naturalização da barbárie que a sociedade parece sofrer diante da truculência
policial. Entre esses casos está a mega operação realizada em 2007 no
Complexo do Alemão, alguns dias antes dos Jogos Pan-Americanos, provocando
a morte de 19 pessoas em apenas um dia e deixando um total de 44 pessoas
feridas.

Outro caso importante a ser mencionado foi a operação realizada na favela


da Coréia. Esta, ocorrida com a transmissão pela Rede Globo, mostrou em rede
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nacional a perseguição policial de um helicóptero seguida da morte de duas


pessoas que tentavam fugir após terem abandonado suas armas, e ainda assim
foram executados sumariamente. Nesse caso o abandono das armas expõe a
situação de vulnerabilidade do suspeito em face do policial, ao passo que, ainda
assim o agente policial atira no indivíduo suspeito, sem uma necessidade
justificadora para essa conduta. É o safári aéreo, transmitido e repercutido
mundialmente.

Em 2009 foi realizada operação policial no Morro dos Macacos80, Zona


Norte do Rio de Janeiro. Após invasão de facção criminosa rival seguida de
intenso conflito durante toda a madrugada, a polícia invadiu a comunidade dos
Macacos pela manhã para tentar resolver o conflito. O desfecho de mais um
episódio nessa política de confronto foi a morte de 12 pessoas, dentre elas dez
eram moradores da favela, ditos como suspeitos e dois eram policiais.

Nesses casos, a mídia exerce seu papel de “(des)informação” na encenação


ideológica, ao publicarem esse tipo de notícia afirmando que alguns dos mortos
eram bandidos. Entretanto, essa definição é feita por policiais, e ao contrário, ao
se pesquisar a identidade dos mortos, muitas vezes se constata que essas pessoas

80
Fonte: O GLOBO. Disponível em: www.oglobo.com.br.
43

mortas taxadas de bandidos não tinham qualquer antecedente criminal. A mídia ao


cobrir esses fatos utiliza sempre suas manchetes aludindo a um espetáculo de
tragédias, difundindo o sentimento de que vivemos em uma situação de guerra
permanente, e assim, confirmando a ideia de um inimigo a combater.

Em dezembro de 2010, a polícia do Rio ocupou o Complexo do Alemão


sob a justificativa de dar continuidade a política de pacificação das áreas ocupadas
por facções do tráfico de drogas e retomar o controle desses territórios ao domínio
do Estado. A ocupação ocorreu com o apoio da Marinha, do Exército e a
cobertura ao vivo da Rede Globo. Tramas foram tecidas no sentido de justificar a
presença das Forças Armadas. A transmissão simultânea mostrava tanques do
exército entrando pelas ruas das favelas, seguidos de agentes militares carregando
fuzis e vestidos com coletes a prova de balas81. Todas as reportagens transmitiam
um clima de guerra82 declarada contra os inimigos, no caso, os traficantes de
drogas. O que se observa de episódios emblemáticos como esse, com o detalhe do
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apoio das Forças Armadas, é a instituição da gestão policialesca na rotina dos


moradores das favelas83. A ocupação-espetáculo foi vendida como um produto no
mercado da violência e a presença das Forças Armadas, com seus tanques de
guerra, foi o marco simbólico da imagem que se criou84.

81
O papel determinante da mídia sobre a opinião pública é assunto que já vem sendo
analisado há bastante tempo e questiona-se até que ponto ela influencia a sociedade no sentido de
transmitir essa sensação de insegurança e incentivar as intervenções policiais e do exército nas
favelas em questões de segurança urbana. Sobre esse tema, Cecília Coimbra analisou outro
episódio de intervenção do exército no Rio – a Operação Rio. Muito influenciada pela mídia a
opinião pública apoiou maciçamente a presença das Forças Armadas. Sobre esse tem, Coimbra
examina “Neste acontecimento analisador – “Operação Rio” – procuramos colocar em evidência
duas questões: o papel espetacular e teatral dos meios de comunicação de massa que meses antes
da deflagração das “ações militares”, valendo-se de seus noticiários, editoriais e artigos, produziam
massivas subjetividades para pensar e interpretar a situação do Rio como a mais caótica das
cidades brasileiras com relação à explosão da violência. (...) A segunda questão refere-se à estreita
vinculação que se fez entre pobreza e criminalidade durante todo o período da intervenção”.
COIMBRA, Cecilia. Operação Rio: o mito das classes perigosas... Op.Cit. p. 180.
82
No dia 26 de novembro de 2010 o jornal O Globo anunciava, além de um caderno
especial, o dia D do combate ao tráfico em letras garrafais na primeira página: “população aplaude
polícia e acompanha operação pela TV em clima de Tropa de Elite 3”. BATISTA, Vera Malaguti.
O alemão é muito mais complexo. p. 8. Disponível em:
http://www.labes.fe.ufrj.br/arquivos/Alemao_complexo_VeraMBatista.pdf.
83
BATISTA, Vera Malaguti. O Alemão é muito mais complexo. Op. Cit. p. 6.
84
BATISTA, Vera Malaguti. Entrevista retirada do site Fazendo Média: “Do ponto de vista
da guerra, então, é um sucesso? Não é um sucesso, é um sucesso de vendas, tanto para a mídia
quanto para os armamentos que estão sendo anunciados . Eu não vi ainda o sucesso do outro ponto
de vista. Porque a finalidade explícita era o sucesso da operação, mas a implícita é vender a guerra,
a ode à polícia. (...) Polícia civil é polícia investigativa, mas o cara está lá vestido de rambo, com
44

No entanto, nunca foi divulgado oficialmente o número de mortos durante


essa operação, da mesma forma que a grande imprensa não questionou os
métodos empregados. A época, a Folha de São Paulo fez uma matéria com
entrevistas a moradores do Alemão em que relatavam sobre corpos existentes na
mata e a polícia impedindo o acesso ao local, assim como reclamações de
moradores denunciando os abusos cometidos por policiais85. Esse fato demonstra
como o atual modelo de invasão policial para a posterior “pacificação” das
favelas, sob o discurso de retomada do território, se tornou um “macabro consenso
através de um intenso bombardeio midiático”86. Nas palavras de Vera Malaguti, a
guerra vai se naturalizando ao ponto das mortes serem chamadas de dano
colateral.

Dentro de um processo de despolitização, as classes sociais foram


reduzidas em diferentes formas de personificação do capital. Em razão disso, o
estado penal subsiste dentro do estado democrático de direito, atravessando
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diferentes partidos políticos sucessores no governo, com diferentes propostas, mas


todos com a convergência na política punitiva de massa, como o uso de tanques
de guerra e fuzileiros navais na invasão do Complexo do Alemão87.

A pacificação do Alemão carregou o caráter simbólico de um projeto de


cidade e a mídia, na sua eficiente função de produção de subjetividades constrói
no imaginário social a policização da vida. A televisão, como principal
instrumento desse mercado, funciona no sentido do amestramento em grande
escala das mentes, na despolitização dos conflitos e no empobrecimento crítico
das controvérsias88.

O discurso do medo é a melhor forma de legitimação da emergência,


âmbito no qual o risco que ameaça toma forma na figura do inimigo. Os meios de
comunicação atuam estimulando o medo difuso e produz assim uma sensação de
insegurança que não possui correspondência objetiva com a realidade. Alessandro

colete, todo orgulhoso. E do lado de lá está Canudos. É aquilo que conhecemos há 500 anos, desde
a colonização.”
85
Fonte: Folha de São Paulo. 30 de novembro de 2010, p.c3.
86
BATISTA, Vera Malaguti. O Alemão é muito mais complexo. Op. Cit. p. 6.
87
MENEGAT, Marildo. O sol por testemunha. In: BATISTA, Vera (Org.). Loic Wacquant
e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro, Revan: 2012. p. 212.
88
BATISTA, Nilo. A violência do estado e os Aparelhos policiais. Revista Discursos
Sediciosos, nº 4, 1997. p. 153.
45

de Giorgi destaca como “as novas estratégias penais se caracterizam cada vez
mais como dispositivos de gestão do risco e de repressão preventiva das
populações consideradas portadoras deste risco. Não se trata de aprisionar
criminosos perigosos individuais, isto é, de neutralizar fatores de risco individual,
mas sim de gerir, ao nível das populações inteiras, uma carga de risco que não se
pode (e, de resto, não se está interessado em) reduzir”.89

Nessa perspectiva, vemos então um estado penal punitivo que se dissemina


pela sociedade e se internaliza individualmente. O estado não precisa mais impor
leis punitivas, pois a sociedade já demanda por elas. Essa busca ensandecida por
segurança se faz pela demanda crescente por punições. Constitui-se na segurança
como paradigma da governamentalidade90.

Esses episódios citados, de triste memória, são importantes serem


destacados pois na época foram determinantes para a mudança de programa do
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governo estadual na área de segurança pública. As imagens de perseguição, o


número de mortos e violações de direitos dos moradores das favelas geraram uma
grande repercussão e forte indignação por parte das organizações de direitos
humanos. Diante disso, o governo muda de estratégia, ao perceber a enorme
polêmica gerada por esse tipo de operação. A partir de então passa para uma
estratégia de “pacificação”. A política de pacificação foi implantada após anos de
uma política de enfrentamento e altos índices de morte no estado, sempre
carregados da ótica racista e seletiva. Entretanto, devido a circunstâncias políticas
essa estratégia não era mais conveniente91.

Antes da instalação das UPPs, durante mais de dez anos ocorreu o


assassinato em massa de suspeitos pela polícia. Foram cerca de dez mil suspeitos

89
GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. Op. Cit. p. 97.
90
NASCIMENTO, Maria Livia. e RODRIGUES, Rafael Coelho. A convergência
social/penal na produção e gestão da insegurança social. In: BATISTA, Vera (Org.). Loic
Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Op. Cit. p. 199.
91
Nesse sentido, Cristina Rauter afirma “Um racismo desempenha nesse segundo polo do
controle “da vida” um papel fundamental. Um racismo associado à preservação da “civilização
ocidental”, ou dos valores democráticos, (...) Ou que aparece associado à promoção da paz na
cidade, ainda que essa paz seja a paz dos cemitérios. Para se chegar a implantar as Unidades de
Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro, saudadas por grande parte da população como solução para
a criminalidade na cidade, foi necessária uma década de política genocida, de extermínio dos
suspeitos de crime. Sabemos que esses suspeitos são justamente os pretos e pobres, moradores das
comunidades populares.” O estado penal, as disciplinas e o biopoder. In: BATISTA, Vera (Org.).
Loic Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro, Revan: 2012. p. 73.
46

de roubo e tráfico92. Se a pena de morte não existe oficialmente no Brasil, sabe-se


que ela é aplicada extraoficialmente há muito tempo. É importante destacar nesse
ponto não somente a política de extermínio, mas também o olhar seletista sobre as
vítimas. Segundo dados da Secretaria de Polícia Civil do Rio de Janeiro, o
homicídio foi o crime que mais cresceu no estado de 1984 a 199493. Essa
visibilidade da violência no país está inserida na dinâmica do biopoder. A difusão
do medo, a visibilidade midiática da violência e a incitação à busca por segurança
são elementos da gestão das massas humanas. Hoje o que se observa é o controle
a céu aberto das populações94.
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92
MISSE, Michel. Os Rearranjos de poder no Rio de Janeiro. Le Monde Diplomatique
Brasil. Ano 4. Nº 48, p. 6.
93
COIMBRA, Cecília. Operação Rio: o mito das classes perigosas... Op. Cit. p. 163.
94
RAUTER, Cristina. O estado penal, as disciplinas e o biopoder. In: BATISTA, Vera
(Org.). Loic Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro, Revan: 2012.
p. 73.
2

A Biopolítica contemporânea como forma de gestão dos


corpos

Suspeitamos que o Holocausto pode ter meramente revelado um reverso da


mesma sociedade moderna cujo verso, mais familiar, tanto admiramos. E que as
duas faces estão presas confortavelmente e de forma perfeita ao mesmo corpo. O
que a gente talvez mais tema é que as duas faces não possam mais existir uma
sem a outra, como verso e reverso de uma moeda.”
(Zygmunt Bauman)

Nos anos oitenta, o Brasil atravessa uma profunda mudança política, ao


sair de um regime ditatorial que durara mais de vinte anos. Da mesma forma
acontece com outros países da América Latina no chamado período de
redemocratização. O cenário político mundial neste período foi extremamente
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favorável para esse processo. De acordo com Paulo Arantes “golpes de estado
hoje em dia são politicamente incorretos”1. Os regimes militares nos países
periféricos se tornaram obsoletos. Quando o muro ruiu e o regime comunista
entrou em colapso, não havia mais necessidade da manutenção de um regime
autoritário nos governos do Cone Sul para controlar as insurgências. Só que os
esperados dividendos da almejada paz não vieram. Pelo contrário, foram
reinvestidos em um novo período de guerra.

No contexto político mundial, observa-se o enfraquecimento do Estado –


Nação e uma diminuição do seu poder de negociação, simultaneamente a
ascendência de um novo valor - a segurança. O nosso tempo pode ser
caracterizado pela mudança da política internacional, da posição de defesa para a
de segurança. Não é mais suficiente reagir às ameaças, talvez isso já seja tarde
demais. A ordem política agora é adotar uma postura ativa2. A segurança começa
a aparecer nos discursos oficiais não como um dos direitos fundamentais, mas
como o valor supremo, o qual deve ser buscado a qualquer custo, inclusive do
sacrifício de outros direitos. As modernas nações democráticas receberam poderes
para declarar guerras defensivas, aquelas declaradas para evitar um suposto
1
ARANTES, Paulo. Extinção. Op. Cit. p.153.
2
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império.
Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 40.
48

ataque. A segurança exige um constante condicionamento do ambiente político


por meio de práticas militares e policiais. Ela adquire um caráter biopolítico, a
partir do momento que transforma a vida social.

A suspensão da ordem democrática durante os períodos de guerra sempre


foi vista como uma condição temporária, devido a situação excepcional.
Entretanto, esse estado de guerra, segundo Antonio Negri transformou-se em
nossa “condição global permanente”3, o que permite concluir que essa suspensão
do ordenamento não mais se configura na situação excepcional, mas tornou-se a
regra, conduzindo inclusive essas democracias a se tornarem totalitárias.

Diante dessa conjuntura, Giorgio Agamben apresenta sua tese sobre o


estado de exceção permanente, em resposta a uma mistificação da nova ordem
mundial, na tetralogia sobre o Homo Sacer. Seus textos se iniciam no início dos
anos 60, mas perante os acontecimentos no início do século XXI e diante de uma
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convergência entre democracia e sistema totalitário, a problematização da relação


soberana recebeu uma nova perspectiva de discussão. Na tetralogia, o autor utiliza
os paradigmas4 do homo sacer5 e do campo de concentração para desenvolver a
articulação da estrutura entre soberania e vida nua.

O discurso da excepcionalidade então é chamado a baila com maior


frequência, como recurso necessário e como justificativa para a restrição de
liberdades. O mundo pós 11 de setembro assistiu a volta de práticas violentas, as
quais foram chanceladas como custo necessário. O cenário biopolítico do nosso
tempo ganha um novo elemento com a promulgação do “Ato Patriótico” em 2001,
promulgado pelo senado norte-americano, em que o significado biopolítico da

3
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império.
Op. Cit. p. 43.
4
Agamben escreve sobre as diversas formas de interpretação do conceito de paradigma,
para esclarecer o caráter de sua investigação não era meramente historiográfico. O autor
estabelece sua definição de paradigma como um objeto singular, válido para todos da mesma
classe, define a ideia do conjunto do qual faz parte e constitui. O homo sacer, o muçulmano, estado
de exceção e o campo de concentração são casos de paradigmas “no son hipótesis a través de lãs
cuales se intenta explicar La modernidad, reconduciéndola a algo así como a uma causa o um
origen histórico. Por El contrario, como su misma multiplicidad podría dejar entrever, se trata em
todos lós casos de paradigmas que tenían por objetivo hacer inteligible uma serie de fenômenos
cuyo parentesco se le había escapado o podia escapar a La mirada Del historiador.” AGAMBEN,
Giorgio. Qué es um paradigma? p. 42.
5
Figura do direito romano arcaico que representava um indivíduo fora do direito, contra o
qual a morte não representava um homicídio. Sua figura representa o contraposto do poder
soberano no campo jurídico. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p.16.
49

exceção aparece em toda sua potência, como estrutura em que o direito inclui em
si o vivente por meio de sua suspensão. Essa ordem do presidente dos Estados
Unidos autoriza a detenção do indivíduo suspeito por tempo indefinido, são os
detainees – um tipo inclassificável, objeto de dominação de fato. Essa detenção
não tem natureza específica, pois não encontra respaldo no campo legal e, fora de
qualquer tipo de controle6.

O estudo da soberania se mostra um elemento fundamental para


compreensão da democracia contemporânea, apesar da aparente contradição
promovida pela ideia de um sistema consensual. No Brasil, a necessidade dessa
análise se coloca de forma mais urgente, devido ao aumento exponencial da
violência institucional. Agamben faz essa análise: “De modo diverso, mas
análogo, o projeto democrático-capitalista de eliminar as classes pobres, hoje em
dia, através do desenvolvimento, não somente reproduz em seu próprio interior o
povo dos excluídos, mas transforma em vida nua todas as populações do Terceiro
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Mundo”7.

Na realidade, a politização da vida nua tornou-se uma marca da


modernidade, caminhando para transformações políticas e filosóficas radicais.
Para o autor, os dilemas do nosso tempo só serão compreendidos sob o ponto de
vista da biopolítica em que foram criados. A partir dos estudos realizados por
Michel Foucault sobre o conceito de biopolítica8 e Hannah Arendt ao tratar dos
estados totalitários do novecentos, Agamben adentra o campo do direito para
evidenciar possíveis relações entre direito e violência9. O objetivo do autor não foi
desenvolver uma tese pessimista e sensacionalista sobre as tendências políticas
contemporâneas, mas na verdade, induzir a uma reflexão sobre os caminhos
seguidos pelos governos atuais no sentido de entender as novas realidades do
poder, na qual o regime de exceção é cada vez mais generalizado. Os conflitos
atuais exigem da política novos direitos e mais restrições das liberdades,
estreitando o vínculo entre a vida natural e o poder soberano.

6
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. Cit. p. 14.
7
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 175.
8
Para efeito deste trabalho não serão apresentadas aqui as diferenças teóricas do conceito
de biopolítica na obra de Foucault e na obra de Agamben.
9
COSTA, Flavia. Entrevista com Giorgio Agamben. Op. Cit.
50

Hannah Arendt estudou os governos totalitários em sua obra “Origens do


Totalitarismo: anti semitismo, imperialismo, totalitarismo”, na qual apontava estes
como a emergência de um novo paradigma de governo, “longe de ser ilegal,
recorre à fonte de autoridade da qual as leis positivas recebem a sua legitimidade
final; que longe de ser arbitrário, é mais obediente a essas forças sobre humanas
que qualquer governo jamais o foi”10. Ou seja, Arendt conclui que a legitimidade
do governo totalitário decorria justamente das leis positivadas. Esse
funcionamento é importante para entender os governos atuais regidos pela lógica
da segurança. Isto por que, o estado de exceção é uma sombra que paira sobre as
democracias contemporâneas. E a sua sistemática interna não foi desmontada,
como aparenta ter sido. Essa permanência será utilizada por Agamben em sua
obra Homo Sacer para analisar o estado de exceção nos tempos atuais.

Foucault apresenta a formulação definitiva do conceito de biopolítica no


primeiro volume da História da sexualidade, intitulado como A Vontade de
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saber11. Por muito tempo a grande particularidade do poder soberano foi o direito
de vida e de morte. O filósofo francês estuda a transição do Estado-territorial para
o Estado de população, o que significa uma atenção direcionada aos fatores da
vida biológica da população. O poder começa a penetrar no corpo do sujeito e em
suas formas de vida, o Estado assume um duplo vínculo político entre as técnicas
de individualização subjetivas e a totalização objetiva: ele adota um cuidado com
a vida natural dos indivíduos, ao mesmo tempo em que desenvolve as tecnologias
de subjetivação, que consistem em vincular o indivíduo à própria identidade e

10
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: anti-semitismo, imperalismo,
totalitarismo. Companhia das Letras, 1998. p. 513.
11
“Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII, em duas
formas principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois polos de
desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um dos polos, o
primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento,
na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade
e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso
assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-políticas do
corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século
XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como
suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde,
a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais
processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma
bio-política da população.” FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber.
Graal, 1977. Tradução: Maria Theresa da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon de Albuquerque. p.
132.
51

consciência por meio de um controle externo12. Neste ponto, Foucault não


assumiu uma teoria unitária do poder e é justamente nessa interseção que se
encontra o trabalho de Agamben13. Ao mostrar essas duas análises – o modelo
jurídico-institucional e as fórmulas biopolíticas - de forma intrinsecamente
relacionadas, na medida em que a vida nua constitui o núcleo originário do poder
soberano14.

A biopolítica é um novo modelo de governamentalidade15 e se apresenta


como uma tecnologia de poder direcionada para a população16. Segundo Foucault
trata-se de “uma tecnologia de poder que não exclui a técnica disciplinar, mas que
a embute, que a integra, que a modifica parcialmente e que, sobretudo, vai utilizá-
la implantando-se de certo modo nela, e incrustando-se efetivamente graças a essa
técnica disciplinar prévia”17. Ela depende de duas vertentes distintas e igualmente
importantes: técnicas de gestão dos corpos individuais, assim como as técnicas de
governo das populações. O fio condutor de sua pesquisa consiste em reconstruir o
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vínculo entre o modelo jurídico institucional da soberania e o modelo


normalizador das ciências humanas, analisar a relação entre a vida e o poder,
libertando-a da violência intrínseca ao direito e consequentemente ao estado de
exceção que o compõe como princípio interno.

12
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit.p. 13.
13
Neste ponto ocorre uma distinção entre as concepções de biopoder em Foucault e
Agamben. A teoria de Foucault é construída sob uma separação bem definida entre os termos
como disciplina e controle, ou entre disciplina e segurança, de forma a evitar uma teoria unitária
do poder. Já Agamben trata do tema da soberania como um ponto de interseção nas
transformações do poder, sem se preocupar com o poder de forma unitária, ou não. VIEIRA,
Rafael Barros. Exceção, violência e direito: notas sobre a crítica ao direito a partir de Giorgio
Agamben. Dissertação de Mestrado. Orientadora: Bethania Assy. PUC, 2012. Nota 274. p. 115.
14
BATISTA, Vera Malaguti. Vida Nua e Soberania. Resenha Bibliográfica. Revista
Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. Ano 7, nº 12, 2º semestre de 2002. p. 386.
15
“A nova governamentalidade da política de Estado se apoia em dois grandes conjuntos de
saberes e de tecnologias políticas, uma tecnologia político-militar e uma ‘polícia.’ No cruzamento
dessas duas tecnologias, encontram-se o comércio e a circulação interestatal da moeda: ‘é a partir
do enriquecimento pelo comércio que se espera a possibilidade de aumentar a população, a mão de
obra, a produção e a exportação, e a possibilidade de se dotar de exércitos fortes e numerosos’”.
REVEL, JUDITH. Dicionário Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. p. 75.
16
Como uma razão de estado, ela foi formada por dois campos: “ uma tecnologia
diplomático-militar que consiste em assegurar e desenvolver as forças do Estado por um sistema
de alianças e pela organização de um aparelho armado. (...) A outra é constituída pela “polícia”, no
sentido que então se dava a esse termo: o conjunto dos meios necessários para fazer crescer, do
interior as forças do Estado.” Segurança, Território, População – Curso dado no Collège de
France (1977-1978). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes 2008. p. 83.
17
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 289.
52

A biopolítica não é uma criação da modernidade, ela tem sido uma


constante na política ocidental. O objetivo de Agamben com esse estudo é
desvendar o sentido da política ocidental para abrir um novo horizonte de
possibilidades. A perspectiva adotada é da imanência da política, na medida em
que volta-se para si própria. Com a ascensão dos estados totalitários ficou mais
clara a problematização do estado de exceção. Qual seja, o problema da vida
totalmente exposta a violência e ao poder soberano. No estado biopolítico, a
soberania não atua mais sobre o poder de vida e de morte na tradicional
formulação fazer morrer e deixar viver, mas constitui o seu inverso – fazer viver e
deixar morrer. Com o binômio regra e exceção, a vida natural torna-se um fator
nos cálculos do poder estatal18. O novo modelo político é formado por
dispositivos direcionados a vontade do sujeito em afinidade com as tecnologias
sociais.

Os processos de subjetivação são direcionados para a formação do sujeito


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submetido a um controle externo. Sua consciência é manipulada no sentido de


obediência a novas formas de controle. A sujeição é internalizada a ponto de
formar corpos úteis e dóceis para o sistema, dotados de uma aparente autonomia.
O poder passa a ser exercido sobre a vida. Nessa forma de gestão, a exceção
aparece como vínculo originário, o que significa a violência como uma
potencialidade permanente sobre o corpo individual e social da população.

Para Agamben é impossível pensar a política sem realizar pesquisas


arqueológicas, por entender que muitos conceitos jurídicos agem dentro dos
mecanismos atuais de poder. Ao trabalhar o estado de exceção, ele busca entender
o modo como a máquina político jurídica funciona, o que o levou a concluir o
estado de exceção como “um motor imóvel da máquina jurídica ocidental.”19 Em
entrevista, Agamben define seu método como arqueológico e paradigmático,
aproximando-se de Foucault, mas não necessariamente coincidente. Ele defende
esse processo como a única via possível de compreensão do presente,
transformando dicotomias em bipolaridades, por meio de paradigmas20. Como por

18
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 10.
19
SAFATLE, Vladimir. A política da profanação. Folha de São Paulo. 18 de setembro de
2005.
20
COSTA, Flavia. Entrevista com Giorgio Agamben. Op. Cit. p. 2-3.
53

exemplo, o homo sacer, uma figura limítrofe utilizada por Agamben como um
paradigma da biopolítica contemporânea.

Este capítulo propõe uma análise dos paradigmas desenvolvidos por


Agamben para compreensão do atual modelo de governo. O estado de exceção
tem suas origens nos regimes totalitários do novecentos e permanências nas
democracias ocidentais, por meio da relação de violência que interrompe e depõe
o direito. O conceito de campo como um espaço onde a exceção é a regra. E o
homo sacer, figura do direito romano arcaico que pode ser comparado ao
muçulmano, figura dos campos de concentração que já não era mais considerado
como pessoa, podendo ser encontrado em diversas figuras do cenário político
mundial, pois observamos a desumanização de determinados sujeitos como
ferramentas dos jogos de poder.
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2.1

O estado de exceção permanente

“Se fosse possível e desejável resumir em uma única fórmula o atual estado do
mundo, eu não pensaria duas vezes: estado de sítio”.21
(Paulo Arantes)

Mas afinal, o que é o estado de exceção? Como incorporar em um mesmo


sistema a previsibilidade legal e a excepcionalidade não contida no sistema? No
seu sentido técnico-jurídico, ao se decretar o estado de exceção, a ordem jurídica
normal fica suspensa, as categorias do lícito e do ilícito tornam-se indiscerníveis,
o que era delituoso sob a ordem jurídica normal passa a ser justificado e permitido
e, vice-versa. “A lei vige em seu estar suspensa”22, os limites entre dentro e fora
não fazem mais sentido, eles se anulam. É imprescindível saber onde começa e

21
Paulo Arantes não distingue estado de sítio de estado de exceção, ou de plenos poderes,
ou estado de emergência. Todos são denominações para “o regime jurídico excepcional a que uma
comunidade política é temporariamente submetida, por motivo de ameaça à ordem pública, e
durante o qual se conferem poderes extraordinários às autoridades governamentais, ao mesmo
tempo em que se restringem ou suspendem as liberdades públicas e certas garantias
constitucionais.” ARANTES, Paulo. Extinção. Op. Cit. p.153-154.
22
AGAMBEN, Giorgio. Onde começa o novo êxodo. Revista Lugar Comum – Estudos de
mídia, cultura e democracia. nº 7, janeiro-abril 1999. p. 175.
54

onde acaba a emergência. No entanto, contraditoriamente, a ordem hoje é a


exceção se tornar a regra e esse estado se transformar em permanente.

A questão basilar nesse ponto da investigação se encontra na existência de


mecanismos de suspensão legal dentro do próprio ordenamento jurídico. Como
compreender um sistema jurídico construído sob os fundamentos da
harmonização social por meio da representação da vontade geral? O entendimento
corrente se funda sobre o direito como forma de legitimar a legalidade e o
exercício do poder. Nesse raciocínio, o que não estaria previsto no sistema legal,
estaria automaticamente fora do ordenamento, já que o direito é entendido como
completo. Agamben se debruça sobre essa questão e estuda a estrutura do estado
de exceção por entender esse instituto como uma chave de compreensão de alguns
aspectos do direito.

A complexidade da caracterização do estado de exceção corresponde


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também a sua incerteza terminológica. Agamben parte da ideia de que as escolhas


terminológicas não podem ser neutras, então a expressão estado de exceção tem
uma vinculação originária, relacionada com o estado de guerra23. Mas essa ideia é
equivocada, na medida em que ele não é um direito especial (de guerra), mas na
verdade um conceito-limite determinador da suspensão da ordem jurídica.

O estado de exceção remonta ao instituto do estado de sítio, no decreto de


8 de julho de 1791 da Assembleia Constituinte Francesa24. Esse instrumento legal
se originou como dispositivo associado a situação de guerra, que logo foi
desvinculado e passou a ser usado pelas polícias em situações extraordinárias. Ele
estende os poderes da autoridade militar ao âmbito civil e confere o poder de
suspensão da constituição em “situações excepcionais” e “de necessidade”. Em
1811, o decreto napoleônico estende a incidência da decretação para além desses
casos, em qualquer situação de ameaça. Na nova constituição de 1848
estabeleceu-se que uma nova lei definiria as situações, formas e efeitos do estado
de sítio. No ano seguinte, essa lei é alterada, determinando que o estado de sítio
poderia ser declarado pelo parlamento no caso de perigo iminente para a

23
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção.Op. Cit. p. 15.
24
O estado de sítio remonta a tradição do Império Romano, entretanto, para efeito deste
trabalho, o histórico iniciará a partir do século 18. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op.
Cit. p. 16.
55

segurança, externa ou interna. Já em 1877, a lei é novamente alterada para


estabelecer que o estado de sítio poderia ser decretado por uma simples lei em
casos de perigo iminente devido a uma guerra externa ou a uma insurreição
armada. Posteriormente, desemboca a Primeira Guerra Mundial, o que provoca na
maior parte dos países em guerra um estado de exceção permanente. Essa situação
se prorroga até 12 de outubro de 1919, período no qual a atividade do Parlamento
se restringiu a votar leis cujo conteúdo era mera delegação da atividade legislativa
ao executivo, “foi nesse período que a legislação excepcional por meio de decreto
governamental (que nos é hoje perfeitamente familiar) tornou-se uma prática
corrente nas democracias europeias”. Foi nessa época em que o executivo
transformava-se em órgão legislativo, pois a ampliação dos poderes do executivo
prosseguiu após o fim da guerra e, assim, a emergência militar deu espaço para a
emergência econômica. Essa mesma delegação de poderes ocorreu novamente
durante a Segunda Guerra Mundial, quando o presidente da frança pediu plenos
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poderes ao Parlamento para fazer face a ameaça da Alemanha. A partir de então,


torna-se uma tendência nas democracias ocidentais a declaração do estado de
exceção permanente, agora sob o paradigma da segurança como técnica de normal
de governo. O histórico do estado de exceção foi reconstruído aqui de forma
muito breve para evidenciar como as transferências de poder dentro das relações
de soberania não ocorrem por meio de rupturas. Ao contrário, ele aponta a lógica
da exceção sob uma dupla face, como uma zona de abertura e captura, ambas
inseridas no sistema legal25.

A clássica definição de Carl Schmitt “é soberano aquele que decide o


estado de exceção”26 foi o ponto de partida do estudo de Agamben. A exceção
tornada regra no estado de exceção é o fio condutor, quando o imperativo da
necessidade e da utilidade incorpora-se a política, podendo-se afastar as leis e o
direito para manutenção do Estado. Esse paradigma é entendido no campo da
teoria do estado. Nessa linha, a contribuição de Schmitt consiste em considerar a
exceção o próprio núcleo da norma, ela suspende a ordem jurídica, e assim, o
soberano é quem decide a necessidade circunstancial justificadora da suspensão.

25
Uma evidência dessa tese é a tendência da política na era Bush em se auto denominar
Commander in chief of the army, Bush procurou com isso produzir um ambiente de guerra, onde a
emergência se torne permanente e não exista mais distinção entre paz e guerra. AGAMBEN,
Giorgio. Estado de exceção. Op. Cit. p. 38.
26
SCHMITT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 7.
56

O soberano detém a decisão. Com a justificativa de manutenção da ordem pública,


o soberano exerce o poder decisório sobre a exceção, suspende a eficácia das
normas apesar delas ainda serem formalmente válidas.

Apresenta-se o paradoxo da soberania27: o soberano suspende o


ordenamento que o define como soberano, ele se coloca fora de um ordenamento
que garante a própria legitimidade da sua autoridade, a sua condição de existência.
Então, o soberano está ao mesmo tempo dentro e fora da soberania, pois ele
permanece fora do ordenamento ao suspendê-lo, ao mesmo tempo em que é dele a
decisão da suspensão28. Esse paradoxo é extremamente importante pois esclarece
como a soberania constitui o conceito-limite do ordenamento jurídico.

“A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da


norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é
excluído não está, por causa disto, absolutamente fora de relação com a norma; ao
contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma da suspensão. A
norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de
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exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta
da sua suspensão”29.

No momento em que a regra é suspensa, ela abre espaço para a exceção. A


exceção como definidora da estrutura da soberania é compreendida como aquilo
que está fora suspendendo a validade do ordenamento. A lei mantém uma relação
com essa exterioridade. Agamben denomina de “relação de exceção”30 essa
conexão entre a inclusão de alguma coisa por meio da sua exclusão. Essa
afirmação poderia levar a conclusão da exceção ser entendida como uma lacuna
no direito. No entanto, ela é mais do que isso, pois para essa situação bastaria a
inclusão da exceção dentro do campo de previsibilidade da norma. Por isso, a
exceção não pode ser caracterizada como uma mera lacuna no direito, não se
refere a uma carência no texto legal que deve ser preenchida pelo intérprete
jurídico. Refere-se antes a suspensão do direito como condição de sua
existência31. E ainda assim, haveria que se indagar quais situações provocam a

27
A exceção comprova que a soberania não se esgota na ordem jurídica. Da mesma forma
que não a transcende pois ela é intrinsecamente relacionada com o direito.
28
A expressão “ao mesmo tempo” é fundamental para a compreensão do paradoxo pois “o
soberano, tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei”.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 23.
29
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 23.
30
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 25.
31
Ao se entender a exceção como uma lacuna, tem que ser compreendida fora do seu
sentido próprio. Se ela fosse um espaço no ordenamento, ela seria interna ao direito, o que não é
57

exceção? E mais importante ainda, quem determina essas situações? Ou seja,


quem decide sobre a exceção?

A explicação dogmática se restringe a defini-la como uma forma de


proteção do sistema legal, mediante uma suspensão temporária da ordem legal
vigente. Mas a exceção não é a negação da ordem legal posta, e sim a situação de
anomia gerada a partir da suspensão, para justamente conservar seus fundamentos.
Nesse sentido, a exceção se coloca como uma chave de compreensão fundamental
do próprio direito, sobre o funcionamento da lei com a soberania: a situação
paradoxal da exceção apresenta a inclusão do que foi expulso32, o que significa
um espaço de abertura e captura de relações não contidas dentro do ordenamento.
Isso permite ao soberano decidir sobre situações jurídicas que não estão contidas
na lei. O sistema passa a incluir uma exterioridade e o que está fora suspende a
norma. “O estado de exceção separa, pois, a norma de sua aplicação para tornar
possível a aplicação. Introduz no direito uma zona de anomia para tornar possível
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a normatização do real”33. Essa inclusão exclusiva é o campo exato das tensões


entre um mínimo de vigência formal e o máximo de aplicação real, provocando
uma zona cinzenta de indistinção, o que comprova a insuficiência da divisão
topográfica das normas para explicar o funcionamento da soberania e suas
relações adjacentes.

Na relação dicotômica entre norma e exceção a suspensão está incluída.


Essa zona de inclusão exclusiva permite repensar a relação entre a lei e a decisão
soberana, a “centralidade do estado de exceção enquanto paradigma de
funcionamento das estruturas jurídicas que procuram normatizar o campo da
política e da ação social. Que o espectro da “suspensão legal” da lei, que este
reconhecimento da lei que pode conviver com sua própria suspensão seja o
“motor imóvel das democracias contemporâneas”34. Essa nova forma de pensar a

suficiente para explicar o instituto. Nas palavras do autor “A lacuna não é interna à lei, mas diz
respeito à sua relação com a realidade, à possibilidade mesma de sua aplicação. É como se o
direito contivesse uma fratura essencial entre o estabelecimento da norma e sua aplicação e que,
em caso extremo, só pudesse ser preenchida pelo estado de exceção, ou seja, criando-se uma área
onde essa aplicação é suspensa, mas onde a lei, enquanto tal, permanece em vigor.” AGAMBEN,
Giorgio. Estado de exceção.Op. Cit. p. 48.
32
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 28.
33
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. Cit. p. 58.
34
SAFATLE, Vladimir. A política da profanação. Folha de São Paulo. 18 de setembro de
2005.
58

decisão soberana e a lei será importante para entender a elevada letalidade da


política de segurança pública do Rio de Janeiro, na qual o Estado concede um
poder de decisão a autoridade policial sobre o momento de morte35. O estado de
exceção fornece algumas pistas para identificar dentro de um Estado de Direito o
funcionamento de uma tanatopolítica, em um momento que prevalece a lógica da
segurança e da guerra infinita. Isto por que ao analisar a máquina governamental,
através da perspectiva da política e do direito, pode-se observar como as
hierarquias se invertem e o poder executivo, personificado na instituição policial,
se apresenta no cerne do problema atual. Nesse espaço vazio de direito, a
classificação jurídica tradicional do gênero de ações entre legislação, execução e
transgressão perde o seu sentido, de forma que o agente policial quando comete
um homicídio durante a exceção não cumpre nem transgride a lei, ele está
“inexecutando a lei”36.

A segurança é colocada hoje como paradigma de governo. Mas


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contrariamente a concepção corrente, intensamente produzida pelas mídias, os


estados contemporâneos não são garantidores da ordem. São na verdade,
máquinas de produção e gestão da desordem. Eles não estão preocupados em
impor a ordem, pois são justamente essas intervenções estatais que lhes dão
legitimidade e reafirmam o seu poder37. O modelo de estado totalitário moderno é
caracterizado por meio de uma guerra civil legal, a qual permite a eliminação
física de categorias inteiras de cidadãos considerados descartáveis nos cálculos de
poder. Para essa prática, a criação voluntária de um estado de emergência
permanente é primordial nas gestões democráticas38, deixa de ser uma medida
provisória para se tornar uma técnica de governo.

35
AGAMBEN, Giorgio. Sovereign Police. In: Means without end – Notes on politics.
Minneapolis: University of Minessota Press, 2000. p. 105.
36
AGAMBEN, Giorgio. A zona morta da lei. Folha de São Paulo. 16 de março de 2003.
37
Agamben cita uma frase de um policial italiano durante uma manifestação em Gênova
característica desse tipo de pensamento: “O Estado não quer que imponhamos a ordem, mas que
administremos a desordem.” Como política governamental, os Estados Unidos articulam suas
intervenções mundiais sob essa perspectiva: “Parece-me evidente que este é o princípio que guia,
particularmente, a política exterior norte-americana, mas não apenas ela. Trata-se de criar zonas de
desordem permanente (“zones of termoil”, como dizem os estrategistas) que permitem
intervenções constantes orientadas na direção que se julgar útil. Ou seja, os Estados Unidos são
hoje uma gigantesca máquina de produção e gestão da desordem.” AGAMBEN, Giorgio.
Entrevista a Folha de São Paulo. 18 de setembro de 2005.
38
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. Cit. p. 13.
59

Para Agamben, a exceção evidencia a essência da autoridade estatal, na


medida em que ela define a estrutura do poder soberano. No estado de exceção
está em questão a validade da norma e consequentemente da autoridade estatal. A
relação de exceção é demonstrada como aquilo que está fora, incluído por meio da
suspensão da validade do próprio sistema jurídico. A regra ao ser suspensa, dá
lugar a exceção e é por meio desse mecanismo que ela confirma a validade de sua
condição. A exceção não pode ser definida nem como fato nem como direito, mas
uma tentativa de compreensão pode colocá-la como um paradoxal limiar de
indiferença39, no qual o que está em jogo não é estabelecer delimitações entre o
que está ou não incluído, mas de definir uma zona limiar ilocalizável de
indiferença, a qual confirma a validade do ordenamento. A tese da exceção como
estrutura política tende a tornar-se a regra nos dias atuais. Quando essa zona
ilocalizável no âmbito legal tomou forma, ela foi concretizada no campo de
concentração - o espaço do estado de exceção absoluto40.
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“É preciso refletir sobre o estatuto paradoxal do campo enquanto espaço de


exceção: ele é um pedaço de território que é colocado fora do ordenamento
jurídico normal, mas não é por causa disso, simplesmente um espaço externo.
Aquilo que nele é excluído é, segundo o significado etimológico do termo
exceção, capturado fora, incluído através da sua própria exclusão. Mas aquilo
que, deste modo, é antes de tudo capturado no ordenamento é o próprio estado de
exceção. Na medida em que o estado de exceção é, de fato, “desejado”, ele
inaugura um novo paradigma jurídico-político, no qual a norma torna-se
indiscernível da exceção. O campo é, digamos, a estrutura em que o estado de
exceção, em cuja possível decisão se baseia o poder soberano, é realizado
normalmente”41.
A tese filosófica do campo de concentração como paradigma político foi
deslocado do referencial da pólis para esse espaço onde aparece uma nova relação
biopolítica entre os cidadãos e o Estado. Ao tratar do paradigma do campo de
concentração, Agamben busca reforçar como os procedimentos biopolíticos
utilizados no regime nazista podem ser relacionados com o modelo de
governamentalidade em curso, no qual o mecanismo de destruição em massa do
inimigo corresponde ao paradigma do Estado-nação moderno. Nos campos
nazistas, o soberano não se restringe mais a decidir sobre a exceção diante de uma
situação de perigo para a segurança pública, como determinava a constituição de

39
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 25.
40
DE LA DURANTAYE, Leland. Giorgio Agamben: A critical introduction. California:
Stanford University Press, 2009. p. 212.
41
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 166.
Grifos do autor.
60

Weimar. Ele agora produz a situação de fato, como resultado da decisão sobre a
exceção. Por isso, o campo se torna um espaço virtual híbrido entre a noção de
direito e de fato, onde não é possível identificá-los separadamente. Agamben faz
uma provocação sobre esse assunto, para retirar o véu sobre a pergunta superficial
de como foi possível cometer crimes tão cruéis contra seres humanos e, direciona
a pergunta sobre o real questionamento diante da situação: quais foram os
dispositivos jurídicos e políticos da época que permitiram cometer um genocídio
em tamanha proporção sem que fosse considerado crime? A condição extrema de
vida nua que seus habitantes foram expostos não pode ser considerado um fato
extrapolítico e extrajurídico, catalogado no campo dos atos atrozes. “O campo
como localização deslocante é a matriz oculta da política em que ainda vivemos,
que devemos aprender a reconhecer através de todas as suas metamorfoses, nas
zones d’attente de nossos aeroportos bem como em certas periferias de nossas
cidades”42. Esse é o questionamento mais útil diante da tragédia e elucida o real
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problema inserido no ordenamento jurídico alemão que apresenta permanências


no presente.

O estado de exceção transformado em regra significa a indistinção entre o


corpo biológico do corpo político43. Por isso, o campo de concentração se tornou
um paradigma da política moderna, ele é o primeiro espaço onde o público e o
privado são indistinguíveis. O que foi realmente a experiência dos campos para os
seus sobreviventes? Um acontecimento histórico ou uma experiência privada?
Naquele espaço, o vivente foi excluído da comunidade política e reduzido a mera
vida nua. Negri e Hardt também analisam a política contemporânea sob o
paradigma do campo de concentração, onde o Estado soberano e o campo atuam
sob uma relação de complementaridade44. Com a diferença de que nos dias atuais,
o campo não é mais um espaço fixo e isolado, mas adquire uma forma permeável,
flutuante no espaço e no tempo. Esses espaços, onde funciona um híbrido entre
direito e fato, produziram permanências, aproximando os lagers nazistas dos
atuais campos de refugiados de guerra, da Faixa de Gaza e dos centros de

42
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 171.
Grifos do autor.
43
AGAMBEN, Giorgio. Onde começa o novo êxodo. Revista Lugar Comum – Estudos de
mídia, cultura e democracia. nº 7, janeiro-abril 1999. p. 75.
44
NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Campo. Revista Lugar Comum – Estudos de
mídia, cultura e democracia. nº 7, janeiro-abril 1999. p. 70.
61

detenção de imigrantes na Europa. Nesse mesmo sentido se forma um paralelo


com as favelas do Rio de Janeiro45. Estigmatizadas como territórios do crime e da
violência, as favelas são as áreas que sofrem maior incidência das políticas com
derramamento de sangue. Sob a metáfora da guerra, o estado de exceção é
acionado, impondo uma dupla política, territórios vigentes sob o Estado de Direito
e territórios regidos pela lógica da exceção – as favelas.

No entendimento de Agamben, o estado de exceção torna-se uma nova e


estável disposição espacial no campo, em que habita a vida nua em proporção
crescente. O sistema político não funciona mais sob a lógica de ordenar formas de
vida sob determinadas normas jurídicas em um determinado espaço. O paradigma
agora funciona como um ordenamento sem localização (o estado de exceção),
correspondente a uma localização sem ordenamento (o campo como exceção
permanente) – uma localização deslocante que excede o sistema político.
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A questão da validade da norma não depende da sua correspondência com


uma situação concreta, justamente por se tratar de uma formulação abstrata,
evidenciando a proximidade do direito com aspectos de potência da linguagem. A
norma mantém assim uma relação virtual, podendo inclusive, por exemplo,
sancionar uma conduta transgressora. Na exceção soberana, a ordem
normativa pode adquirir o mínimo de validade e o máximo de eficácia na decisão,
adquirindo força de lei. Ou seja, pura potência totalmente dissociada do ato. A
expressão força de lei significa capacidade de obrigar e, no campo do direito ela
adquire a conotação de separação entre a aplicabilidade da norma e sua essência
formal46, por meio da qual medidas legais que não são formalmente leis adquirem
sua força.

45
Agamben defende a ideia da presença virtual do campo nos dias atuais “toda vez que é
criada uma tal estrutura, independentemente da natureza dos crimes que aí são cometidos e
qualquer que seja a sua denominação ou topografia específica”. AGAMBEN, Giorgio. Homo
Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 169.
46
Essa discussão se coloca de forma muito presente no nosso tempo devido a tendência das
democracias ocidentais em estender os poderes do executivo no âmbito legislativo, por meio da
expedição de decretos com força de lei como consecutivo da crescente delegação por meio de lei
de plenos poderes: “Entendemos por leis de plenos poderes aquelas por meio das quais se atribui
ao executivo um poder de regulamentação excepcionalmente amplo, em particular o poder de
modificar e de anular, por decretos, as leis em vigor”. TINGSTEN, Herbert. Apud AGAMBEN,
Giorgio. Estado de exceção.Op. Cit. p. 18-19.
62

No estado de exceção, a particularidade dessa expressão é a dissociação de


força de lei da lei47. “O conceito de exceção define um regime da lei no qual a
norma vale, mas não se aplica (porque não tem força), e atos que não possuem o
valor de lei adquirem sua força. Isso significa que, no caso-limite, a força de lei
flutua como um elemento indeterminado que pode ser reivindicado ora pela
autoridade do Estado, ora pela autoridade de uma organização revolucionária”48.
Essa situação é possível pois esse sintagma define um duplo estado da lei no qual
potência e ato estão radicalmente separados, uma ficção jurídica na qual o direito
atribui a própria desintegração de suas normas49. Então, o estado de exceção é um
espaço em que a força de lei realiza uma norma, no sentido de aplicá-la
desaplicando, cuja aplicação foi suspensa.

A concepção do direito como um campo do saber realizado pela prática da


subsunção – efetivação, como uma abstração ideal representante do real, não dá
conta da tendência atual de inserir no texto legal normas abertas, para regular
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nossa complexa realidade. No entanto, essa visão do direito não engloba a


indexação da lei exercida pela decisão soberana. A decisão é o momento de
transição do campo ideal, visualizado no texto legal, para a realidade concreta.
Isto por que, a decisão personaliza o direito, no sentido de alguém que aplique o
texto abstrato e, para isso o sujeito decide qual norma se aplica ao caso concreto.
Por isso a grande importância do fundamento místico da autoridade da lei, pois
quem decide a adequação ou não de uma relação no direito não é a norma no
campo ideal, mas a autoridade que a aplica50.

Criticar a vinculação entre razão e norma, razão e normatização da vida


abriu espaços para Agamben questionar os modos de racionalização. A exceção
soberana é o dispositivo mediante o qual o direito se refere a vida de forma a
incluí-la, no mesmo gesto em que suspende o exercício do direito, por isso a teoria

47
Essa expressão foi apresentada por Jacques Derrida em 1990 na conferência intitulada
“Força de Lei – O Fundamento Místico da Autoridade” para demonstrar como as leis tem seu
fundamento de validade apoiado sobre a autoridade daquele que a decreta, como os decretos
formulados pelo executivo com “força de lei” principalmente no estado de exceção. Agamben
ainda cita o caso limite no julgamento de Eichmann em que ele alegava em sua defesa “as palavras
do Führer têm força de lei.” AGAMBEN, Giorgio. A zona morta da lei. Folha de São Paulo. 16 de
março de 2003.
48
AGAMBEN, Giorgio. A zona morta da lei. Folha de São Paulo. 16 de março de 2003.
49
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção.Op. Cit. p.61.
50
VIEIRA, Rafael Barros. Exceção, violência e direito: notas sobre a crítica ao direito a
partir de Giorgio Agamben. Op. Cit. p. 142.
63

do estado de exceção é a premissa para relacionar o vivente e o direito. Se as


medidas excepcionais são o resultado de períodos de crise política, é preciso
estudá-las no campo político, apesar de serem medidas jurídicas, o que evidencia
mais um paradoxo: a exceção se apresenta como a forma legal daquilo que não
pode ser compreendido na forma legal51. De outra forma, sendo a exceção o
dispositivo pelo qual o direito se refere a vida, ela é também condição preliminar
do sistema que vincula e abandona o vivente ao direito. Uma ambiguidade
constitutiva da ordem jurídica – vida e norma, fato e direito – está sempre
presente, fora e dentro de si mesma, como uma dupla natureza do direito. Partindo
dessa situação, a exceção funda o nexo entre violência e direito e, quando ela se
torna concreta, ela mesma rompe esse nexo52.

A humanidade do homem é decidida na politização da vida nua. Isso


significa que o homem se caracteriza como vivo a partir do momento em que se
opõe e consegue se separar de sua vida nua, mantendo com ela uma relação de
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exclusão inclusiva. Isso é o elemento caracterizador do homem como um ser


político e demonstra a dicotomia fundamental: vida nua e política, zoé e bíos.
“Quando as fronteiras começam a desvanecer, a vida nua se libera e se transforma
em sujeito e objeto da ordem política, o lugar para a organização do poder do
Estado e para sua emancipação”53.

Ao incluir o vivente no campo do direito, como elemento chave da


realidade contemporânea, Agamben demonstra toda a potência da ação soberana e
da violência, que já pode ser sentida nos procedimentos biométricos utilizados nos
dias atuais, estabelecendo um vínculo entre o sujeito e o poder. Esse procedimento
evidencia uma qualificação do sujeito como objeto, e consequentemente uma
relação de pertencimento a ordem soberana. De forma que é possível um registro
da vida biológica dos corpos54, deixando um espaço cada vez menor para a vida

51
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. Cit. p. 12.
52
COSTA, Flavia. Entrevista com Giorgio Agamben. Op. Cit.
53
BATISTA, Vera Malaguti. Vida Nua e Soberania. Op. Cit. p. 386.
54
“A tatuagem biopolítica que os EUA nos impõem neste momento para podermos penetrar
em seu território pode muito bem ser o sinal precursor daquilo que, futuramente, nos será exigido
aceitar como a inscrição normal da identidade do bom cidadão nos mecanismos e engrenagens do
estado.” Agamben cancelou seus cursos em Nova York quando soube da nova política de
segurança dos Estados Unidos nos seus aeroportos impondo a todos o registro de suas impressões
digitais. Matéria foi publicada no jornal francês “Le Monde” para justificar o cancelamento e
publicizar seu repúdio a essas técnicas biopolíticas de controle. AGAMBEN, Giorgio. Não a
tatuagem biopolítica. Folha de São Paulo. 18 de janeiro de 2004.
64

política - o cidadão em sentido estrito, restringindo seu espaço, até o ponto em que
a humanidade torna-se perigosa aos olhos do estado.

Sob outra perspectiva, o estado de exceção pode ser entendido como um


processo de generalização de dispositivos de exceção. Um conjunto de políticas
públicas de exceção é implementado para a violação sistemática de direitos dos
cidadãos por meio de dispositivos biopolíticos. Para Agamben o dispositivo
significa “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar,
orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as
condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”55. Isto por que, quando o
biopoder regula a vida social por dentro, ocorre um processo de subjetivação
direcionado para a obediência e sujeição, no qual as tecnologias de produção do
eu forjam a identidade de sujeitos em um processo de assujeitamento.

O sujeito é resultado do contato entre o ser vivente e os dispositivos. Ou


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seja, dispositivo é uma máquina de subjetivações (no sentido dos sujeitos serem
sempre sujeitados a um poder) e, enquanto tal, uma máquina de governo.
Entretanto, nos dispositivos contemporâneos, o processo é no sentido de
dessubjetivação. Então, não é mais possível a produção de um sujeito real, mas
sim um sujeito espectral, pois os processos de subjetivação e dessubjetivação são
ambos indiferentes, e não dão lugar a produção de um novo sujeito. Os
dispositivos são empregados como ferramentas de sujeição dos indivíduos às
estratégias de poder. Essas premissas são importantes para relacionar com o
estado de exceção, vida nua e a elevada letalidade da força policial. O nexo entre
violência e direito é feito pela exceção. Por isso, quando é acionada a
matabilidade de categorias de indivíduos para garantir a segurança do conjunto da
população, essa prática é considerada um dispositivo inserido na biopolítica. A
dessubjetivação ocorre a partir do momento em que naturaliza a morte de sujeitos
inimigos da sociedade, o dispositivo opera a inclusão exclusiva do sujeito matável
e insacrificável.

No sentido jurídico estrito, o dispositivo significa “a parte de um juízo que


contém a decisão separadamente da motivação. Isto é, a parte da sentença (ou de

55
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos,
2009. p. 40.
65

uma lei) que decide e dispõe”56. Esse entendimento é útil para se pensar a política
de segurança pública do Rio de Janeiro, onde o policial detém o poder de decisão
do soberano e o homicídio praticado por ele representa uma sentença – de morte.
A vida nua se apresenta na sua forma mais pura quando o agente inscreve a vida
humana por meio da sua inclusão-exclusiva e decide sobre o momento de morte
do individuo, como estratégia de controle social nas periferias urbanas. A captura
da vida nua é um mecanismo de dessubjetivação e de constituição de
subjetividades-alvo do extermínio.

A análise da exceção e da decisão soberana foi tratada nesse capítulo do


trabalho por constituírem uma chave de leitura das relações entre poder, força e
violência – elementos internos da decisão. As conexões entre esses elementos
demonstram como opera o estado de exceção no Brasil, partindo da ideia que toda
violência social tende a se legitimar e, essa legitimação precisa do direito para tal
finalidade. Nos tempos atuais em que estruturas estatais encontram-se em crise e a
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exceção virou a regra, a problematização dos limites do estado recebem uma nova
perspectiva. O estado de exceção se faz permanente por meio de práticas
institucionais reprodutoras de violências.

O tecnicismo da violência se faz presente na ordem jurídica e social


quando admite a desumanização do outro e violações sistemáticas de direitos
humanos. A prática da tortura, muito utilizada na ditadura militar e repudiada no
período de redemocratização do país, hoje volta a ser aceita pelos setores
conservadores e reacionários da sociedade como meio necessário para se garantir
a segurança57. As evidências do estado de exceção permanente no Brasil
demonstram claramente não somente práticas de suspensão da ordem jurídica
vigente, mas também a aplicação de medidas excepcionais com uma ótica

56
No seu sentido tecnológico significa “o modo em que estão dispostas as partes de uma
máquina ou de um mecanismo e, por extensão, o próprio mecanismo”. No seu sentido militar
significa “o conjunto de meios dispostos em conformidade com um plano”. AGAMBEN, Giorgio.
O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Op. Cit. p. 34.
57
“Às classes confortáveis do núcleo orgânico correspondiam, como um complemento
exato, as classes torturáveis nas zonas periféricas do sistema. Em tempo: na literatura
especializada, e chocada, com esse paradoxo brasileiro que vem a ser a explosão exponencial da
violência à medida que se consolida a “democratização” da sociedade, observa-se que as classes
torturáveis são compostas especificamente de presos comuns, pobres e negros, torturáveis
obviamente nas delegacias de polícia e prisões, rotina invisível que o escândalo da ditadura militar
recalcou ainda mais, por ser inadmissível torturar brancos de classe média.” ARANTES, Paulo.
Extinção. Op. Cit. p. 163.
66

nitidamente seletiva58. Paulo Arantes afirma que a exceção não foi extinta no
sistema democrático, “empurraram-na para a periferia, terra de ninguém mesmo,
na qual vegetou rotineiramente, durante todo o período, preciosa contribuição para
o conforto moral da metrópole”59. O sistema punitivo mata mais no dito Estado
Democrático de Direito do que na época da ditadura: desde 2003, mas de 11 mil
pessoas foram mortas e, apenas no ano de 2007, foram registradas 4.423 pessoas
como desaparecidas60. As violências massivas passam a ser uma referência atual,
e a excepcionalidade deflagra o momento da barbárie.

O monopólio estatal da violência legítima funciona como um pressuposto


para a decretação do estado de exceção e foi essa tese explicitada por Agamben ao
interrogar o valor ontológico da violência em sua relação com o direito. O estado,
como centro de regulação dos conflitos, reclama para si o monopólio do exercício
da violência como única esfera legítima para impor autoridade, retirando seu
fundamento legal do direito61. O Estado é manifestado como o poder de suspender
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as garantias legais, sendo um ponto equidistante entre o direito público e o fato


político.

A dimensão política da exceção é localizada no exercício do poder por


meio da violência. A característica da temporariedade precisa ser revista, haja
vista que na periferia a exceção sempre foi permanente, como defende Arantes. A
exceção se torna a regra de forma naturalizar-se. A suspensão da ordem jurídica é
um recurso estratégico para concretizar diferentes formas de dominação.

Ao analisar a relação entre violência e direito é importante destacar a


forma multilateral da violência. Não existe somente a violência aberta, atuam
também fatores ideológico-culturais e coercitivos, conjuntamente. O biopoder
insere a violência nas relações de forças, reinscrevendo-a nas instituições sociais,
na desigualdade econômica e até mesmo nas relações pessoais. Em outras
palavras, a violência se encontra em todas as relações de poder, ela se insere em
58
Contrariamente, para os oprimidos as medidas de exceção são a regra. DORNELLES,
João Ricardo. Direitos humanos, violência e bárbarie no Brasil: uma ponte entre o passado e o
presente. In: ASSY, Bethânia; MELLO, Carolina C.; DORNELLES, João Ricardo; GOMEZ, José
Maria. Direitos Humanos: Justiça, verdade e memória. Rio de Janeiro, Lumen Juris: p. 437.
59
ARANTES, Paulo. Extinção. Op. Cit. p. 156.
60
DORNELLES, João Ricardo. Direitos humanos, violência e barbárie no Brasil: uma
ponte entre o passado e o presente. Op. Cit. p. 436.
61
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império.
Op. Cit. p. 49.
67

um regime de biopoder, de forma a produzir todos os aspectos da vida social. Isso


significa que a vida cotidiana e seu funcionamento são permeados pela violência
ou simplesmente sua ameaça62. No contexto brasileiro, Roberto Schwarz afirma:

“Numa observação, que reflete o adensamento da malha mundial e contradiz as


nossas ilusões de normalidade, o Autor aponta a marca da exceção permanente no
dia-a-dia brasileiro. Com o perdão dos compatriotas que nos supõem no Primeiro
Mundo, como não ver que o mutirão da casa própria não vai com a ordem da
cidade moderna (embora na prática local vá muito bem), que o trabalho informal
não vai com o regime da mercadoria, que o patrimonialismo não vai com a
concorrência entre os capitais, e assim por diante? Há um inegável passo à frente
no reconhecimento e na sistematização do contraste entre o nosso cotidiano e a
norma supranacional, pela qual também nos pautamos.”63

A violência é sentida no ordenamento jurídico de diversas formas,


reafirmando o estado de exceção vigente na ordem legal e, este trabalho se
direciona para a violência dentro da instituição policial que decide a exceção,
provocando milhares de mortes e desaparecimentos dentro do sistema
democrático – ordem jurídica que permite medidas de exceção seletivas. A
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violência praticada pelas figuras individuais dos policiais deve sua legitimidade
não a alguma característica particular, mas a função que desempenha,
fundamentada esta última na crença da validez da norma.

O monopólio do exercício de coerção do estado é originário de um suposto


consenso, no qual a lei funciona como a concretização linguística legítima do
poder político. Na transição para o estado moderno, as diversas formas de
dominação disciplinar foram dissolvidas de forma a se internalizar no sujeito um
dever de obediência, por meio da lei. Ocorre um deslocamento da legitimidade
estatal para a legalidade, o que transforma a lei no elemento de coesão e
dominação do indivíduo em relação ao Estado. Um novo sistema jurídico emerge,
carregado da legitimação necessária para impor a obediência com a utilização de
mecanismos coercitivos como a polícia, por exemplo. Esses novos aparatos
estatais não são criados para conter as relações de força e suspender os efeitos da
violência. Mas para regular e controlar relações específicas, desenvolvidas no
campo social e econômico. Ora, a violência institucional não é aplicada de forma
aleatória, ela é desenvolvida de forma seletiva, seja na forma repressiva, seja na

62
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império.
Op. Cit. p. 34.
63
SCHWARZ, Roberto. Apud ARANTES, Paulo. Extinção. Op. Cit. p. 19-20.
68

desqualificação simbólica de extratos sociais, na figura das classes perigosas ou


outra adjetivação conveniente aos interesses dominantes. A violência estrutural é
um componente fundante da sociedade brasileira, na qual o conflito
institucionalizado se mostra a única forma conhecida de funcionamento do
Estado, por meio das estratégias de contenção e pacificação64. A construção do
inimigo e a ameaça de desordem são formas de legitimar a violência soberana.
“Talvez não deva surpreender o fato de que, quando a guerra constitui a base da
política, o inimigo se torna a função constitutiva da legitimidade. Assim é que o
inimigo deixa de ser concreto e localizável, tornando-se algo fugidio e
inapreensível.”65

O estado de exceção aparece nesse cenário político, na medida em que a


sua legalização é o ponto de indeterminação. A sua declaração está
intrinsecamente relacionada com a manutenção da ordem pública e a segurança,
evidenciando a relação muito próxima entre violência e direito. Essa relação
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contém uma tensão latente, atingindo seu ápice nos momentos de crise política ou
social, e assim, a exceção permanente entra no cenário como medida necessária,
sem excluir necessariamente a violência dos mecanismos de sujeição. Pelo
contrário, o fator violento se faz presente nesses momentos de decisão do
soberano sobre a exceção, influenciando de forma determinante nos dispositivos
de contenção e sujeição.

Não é raro pensar a violência no campo do direito apenas na sua função


ordenadora das relações sociais. Mas é preciso enxergar além, de que forma o
próprio direito se utiliza da violência como um instrumento reiterado de
utilização. No Brasil, onde a necessidade de declarar a exceção é de fato
permanente, a violência se coloca na forma mais intensa, buscando ser associada
ao padrão de normalidade. A violência é constitutiva na normatividade, ao mesmo
tempo em que seu exercício é constituído, sua origem está na forma de
configuração das relações econômicas e sociais, e suas desigualdades. Diante da
violência como elemento fabricante de instituições, o governo do Rio de Janeiro

64
Nesse mesmo sentido se refere a ideia apresentada anteriormente, na qual o Estado não
está interessado em instalar a ordem, mas em controlar a desordem. Muitas vezes, esta fora criada
por ele próprio.
65
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império.
Op. Cit. p. 57.
69

se torna o símbolo de uma política de Estado onde a segurança se torna técnica


permanente de governo sob a justificativa da autoconservação da ordem jurídica.

É importante ter consciência do papel da violência no direito, não somente


na sua forma aberta, mas como um perverso mecanismo de formação social. A
exceção não é simplesmente uma necessidade justificante do estado de
emergência, mas um elemento estruturante do próprio direito. Ela é uma estrutura
camuflada no ordenamento jurídico, no qual a violência cumpre um papel de
sustentação, de forma que, a zona de anomia correspondente a exceção funda a
relação entre violência e direito66. Por meio desse raciocínio, é possível identificar
como a captura do humano constitui um exemplo de incidência real da violência
no direito.

2.2
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O homo sacer e o direito de morte

“Os pobres agora emprestam seus corpos ao espetáculo do horror, barbarizando


e sendo barbarizados.”
(Vera Malaguti)

Um dos conceitos limítrofes trabalhados por Agamben foi o homo sacer,


figura do direito romano arcaico, retomado pelo filósofo italiano como aquele que
é incluído na vida política pela sua matabilidade, aquele que é também o portador
do bando soberano. Esse paradigma é usado para repensar o atual estado do
homem político e o nexo entre violência e direito.

“Homo sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito
sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na
primeira lei tribunícia se adverte que “se alguém matar aquele que por plebiscito
é sacro, não será considerado homicida”. Disso advém que um homem malvado
ou impuro costuma ser chamado sacro”67.

A invocação do homo sacer envolve uma figura enigmática, um indivíduo


matável e insacrificável, um sujeito impensável do sistema jurídico

66
COSTA, Flavia. Entrevista com Giorgio Agamben. Op. Cit. p. 133.
67
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 74.
Tradução na página 186.
70

contemporâneo. Se uma pessoa praticasse um delito sancionado com a pena sacer


esse, ela não tinha a menor esperança de conseguir qualquer tipo de redenção pelo
seu ato, era excluído da comunidade política, podendo ser morto por quem assim
desejasse, sem que esse último praticasse qualquer tipo de crime. Era uma pena
especial, a mais grave, constituindo o nível mais elevado de perseguição e
humilhação pública, pois o praticante do delito se tornava uma pessoa maldita,
para os homens e para os deuses. Por isso, nem o direito humano o condenava,
nem o direito religioso o considerava digno de sacrifício. Quando os fatos fossem
de conhecimento público e incontroversos, o reconhecimento do criminoso como
um homo sacer por uma autoridade pública era simplesmente declaratório.
Quando declarada sua condição de homo sacer, estava automaticamente decidida
sua condução a morte. A partir disso, a primeira contradição aparece, uma
vez que, se o homo sacer é um indivíduo que qualquer um pode matar sem ser
condenado, ou sequer ser julgado, então, pela mesma lógica, ele não deveria ser
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levado a morte pelos ritos convencionais, pois não se constituía em sacrifício.


Então, seu assassinato restava impune. É um conceito-limite entre o direito dos
homens e o direito divino.

Um sistema como tal evidencia as ambiguidades da sacralidade da vida, o


que talvez demonstre as permanências dessa mentalidade na estrutura política
contemporânea. Nesse sentido, “a moderna concepção do princípio sagrado da
vida não seria o mero reconhecimento que toda vida deve ser preservada: ela
permite paradoxalmente a nova inscrição da vida como meio pelo qual se conduz
a política, sem deixar de retroalimentar a ambivalência do sacro”68. A
ambivalência do sacro sempre pôde ser notada ao longo da história. Para
Agamben, a palavra sacer é um exemplo, seu significado pode ser um estado de
afastamento de qualquer relação humana, assim como também pode significar
sacrare, ou declarar sacer, aquele que comete um delito69.

A estrutura da sacratio - substantivo para sacer - apresenta uma dupla


exceção, na medida em que o homo sacer está fora do âmbito religioso, da mesma
forma que a pessoa que matá-lo não sofrerá nenhum tipo de condenação, não terá

68
NASCIMENTO, Daniel Arruda. Do fim da experiência ao fim do jurídico: percurso de
Giorgio Agamben. Tese de doutorado em filosofia. Orientador: Oswaldo Giacoia Júnior.
UNICAMP, 2010. p. 131.
69
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 75.
71

cometido um homicídio, ou seja, ele escapa da sacralidade sem passar pela


jurisdição humana. Essa relação de exclusão e captura corresponde a um espaço
no qual a lei aplica-se desaplicando-se. A particularidade da morte do homo sacer
se encontra no fato de sua vida ser absolutamente matável, excluída de qualquer
tipo de julgamento no direito humano. Ele é objeto de uma violência duplamente
excluída, da esfera do direito e da esfera do sacrifício70. A dimensão da vida nua,
que constitui o referente da violência soberana, aponta na direção da sacralidade
da vida emancipada da ideologia sacrificial prescrita pelo rito.

A questão está nesta vida sacra do indivíduo exposto a morte. Essa vida
nua corresponde ao elemento político originário. A esfera-limite do agir humano
encontra-se na relação de exceção, ou seja, quando a decisão soberana suspende a
lei, ela implica na vida nua. Como o espaço político da soberania se constitui no
homo sacer, nele é configurada uma dupla exceção, uma zona de indiferença entre
sacrifício e homicídio. “Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer
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homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e inscrificável, é a


vida que foi capturada nesta esfera”71. O soberano e o homo sacer se aproximam,
na medida em que são figuras simétricas em sentidos contrapostos. Quem mata o
homo sacer simplesmente age na excepcionalidade, não comete nem um
homicídio nem um sacrifício. Soberano é aquele em razão do qual todos os
homens são sacrificáveis e, homo sacer é aquele em relação ao qual todos os
homens agem como soberanos. A relação entre essas duas figuras demonstra a
formulação política original, o vínculo soberano na violência soberana, que se
funda sobre a inclusão exclusiva da vida nua, é um poder sem limites.

A política clássica diferenciava a zoé do bíos, a vida natural da vida


política, o homem como vivente e o homem como sujeito político72. Inicialmente

70
De acordo com Agamben, o homo sacer corresponde ao bando soberano “Aquilo que
define a condição do homo sacer, então, não é tanto a pretensa ambivalência originária da
sacralidade que lhe é inerente, quanto, sobretudo, o caráter particular da dupla exclusão em que se
encontra preso e da violência à qual se encontra exposto. Esta violência – a morte insancionável
que qualquer um pode cometer em relação a ele – não é classificável nem como sacrifício e nem
como homicídio, nem como execução de uma condenação e nem como sacrilégio.” AGAMBEN,
Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 84.
71
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p.85.
72
“As Agamben observes, for the Greeks the term zoè designated life in the sense of the
simple fact of living common to all living beings (animals, men, or gods), and for this reason it
tellingly admitted of no plural form. Zoè was then life in its most general sense, a sense every bit
as general as being. The second term, bios, referred to the forms our lives take – to the form or
72

o conceito de vida nua foi descrito por Agamben como um substitutivo para a
palavra grega zoé, como a simples vida natural. Entretanto, nos dias atuais, não
existe mais essa distinção. Em sua obra, a vida nua é vista no estado de exceção
permanente e tornada a forma de vida dominante e normal. Mas para fazer uma
análise completa deste conceito, tem que relacioná-lo com a biopolítica, no
sentido da vida ter ingressado nos cálculos de poder por meio de múltiplos modos
de controle. Ela se tornou o fato politicamente decisivo. Este é o ponto de
interseção entre as democracias contemporâneas e os Estados totalitários73.

O processo atual do estado de exceção permanente generaliza a indistinção


entre o espaço da vida nua e o espaço da vida comum. O ponto em questão aqui
seria a conversão da biopolítica em tanatopolítica74, caracterizada principalmente
pela condição cada vez mais permanente de ser exposto à morte. O homem na
atualidade é exposto a violência constantemente, de forma sem precedentes. E o
pior, sem saber sê-lo. A biopolítica evoluiu a tal ponto de se difundir
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potencialmente como direito de vida, para o direito de morte sobre o tecido social.
O poder soberano decide em que ponto uma vida cessa de ser politicamente
relevante, ele decide sobre o valor e o desvalor da vida enquanto tal. A linha
delimitadora do ponto de decisão sobre a vida torna-se confusa e essa decisão
torna-se a decisão sobre a morte. A linha se torna cada vez mais difusa pela vida
social criando novas credenciais aptas a exercer o poder de decisão sobre a morte,
onde quer que exista um homem sujeito ao poder de polícia. Da mesma forma
também aparecem novas fotografias de homo sacer, vítimas potenciais da morte
incondicionada75.

“Toda sociedade fixa este limite, toda sociedade – mesmo a mais moderna –
decide quais sejam os seus ‘homens sacros’. É possível, aliás, que este limite, do
qual depende a politização e a exceptio da vida natural na ordem jurídica estatal
não tenha feito mais do que alargar-se na história do Ocidente e passe hoje – no

way of living proper to an individual or a group. In addition to the undifferentiated fact of a thing
being alive – zoè – there are specific ways of living – bios. This distinction corresponded to a
fundamental division in the Greek’s political landscape. For them, simple, natural life (zoè) was
not the affair of the city (polis), but instead of the home (oikos), while bios was the life that
concerned the polis.” DE LA DURANTAYE, Leland. Giorgio Agamben: A critical introduction.
Op. Cit. p. 205.
73
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 17.
74
O termo tanatopolítica, criado por Agamben, tem como prefixo a derivação de Tânatos, o
personagem da mitologia grega que personifica a morte. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O
poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 142.
75
NASCIMENTO, Daniel Arruda. Do fim da experiência ao fim do jurídico: percurso de
Giorgio Agamben. Op. Cit. p. 145.
73

novo horizonte biopolítico dos estados de soberania nacional – necessariamente


ao interior de toda vida humana e de todo cidadão. A vida nua não está mais
confinada a um lugar particular ou em uma categoria definida, mas habita o corpo
biológico de cada ser vivente.”76

Se é verdade que a ordem contemporânea é aquela de uma vida


insacrificável, executada em proporções inauditas, em zonas cada vez mais
obscuras, sem existir mais uma figura predeterminável do homem sacro, talvez
seja porque, na verdade hoje uma grande parte do segmento social seja
virtualmente homines sacri. Por isso, os conceitos de vida nua e homo sacer
representam chaves interpretativas para compreensão dos paradoxos
contemporâneos. Nessa linha, se encontra o modelo de segurança pública de “lei e
ordem”, com elevado índice de letalidade nas operações policiais realizadas,
decidindo quais vidas merecem viver e quais não.

Quando Agamben opõe a figura do homo sacer à soberania, ele coloca a


dimensão da vida nua como fundacional da violência soberana. Na modernidade,
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a sacralidade da vida está totalmente separada da esfera do sacrifício. Juntamente


com o processo pelo qual a exceção vira a regra, a vida nua que originalmente se
situava às margens da vida política, aos poucos começa a coincidir com a vida
política, de maneira que, exclusão e inclusão, bíos e zoé tornam-se indistinguíveis,
de forma que a vida nua se torna sujeito e objeto do poder e, o estado de exceção
se torna a forma subterrânea de todo o sistema político. Ou seja, se no sistema
disciplinador o indivíduo era tratado como um objeto, com o nascimento da
democracia moderna, o homem se coloca como sujeito do processo político. Esses
dois processos convergem na direção da vida nua. A partir disso, desencadeia-se o
reconhecimento dos direitos formais, ao mesmo tempo em que surge o paradoxo
do homo sacer, a vida que não pode ser sacrificada pois não possui valor, mas
pode ser eliminada. Esta é a chamada “cidadania negativa” utilizada por Nilo
Batista para se referir aos indivíduos destituídos de direitos, as vidas matáveis
pela atual política de contenção do estado. “O desafio é compreender por que a
democracia, ao triunfar, se mostra incapaz de preservar zoé, para cuja felicidade se
dirigiam todos os seus esforços. A decadência da democracia moderna e sua
convergência gradual ao totalitarismo deve-se a esta aporia”77. O sistema político

76
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 135.
77
BATISTA, Vera Malaguti. Vida Nua e Soberania. Op. Cit. p. 387.
74

atual mantém o mesmo modelo de marginalização e opressão dos setores


vulneráveis.

Sob outra perspectiva, a figura do homo sacer é aproximada do homem-


lobo78, correspondente a ideia de exclusão do malfeitor para fora da comunidade.
O banido poderia ser morto sem cometer homicídio. É um conceito-limite, meio-
homem, meio-lobo, figura do inconsciente coletivo, habitante da floresta, banido
da comunidade. Utilizando-se da figura do lobo, junto com o homo sacer,
Agamben faz uma releitura sobre o estado de natureza no contrato social de
Hobbes. Como o estado de natureza não existe na época real, ele é na verdade um
princípio interno da cidade. Quando Hobbes funda a soberania por meio da
remissão ao mito do homem como lobo do homem, ele se refere à indistinção
entre o humano e o ferino, ou seja, o banido, o homo sacer. “O estado de natureza
hobbesiano não é uma condição pré-jurídica totalmente indiferente ao direito da
cidade, mas a exceção e o limiar que o constitui e o habita; ele não é tanto uma
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guerra de todos contra todos, quanto mais exatamente, uma condição que cada um
é para o outro vida nua e homo sacer”. A lupificação do homem e a humanização
do lobo é possível no estado de exceção. Ele deixa de ser a guerra de todos contra
todos e passa a ser a situação dentro da qual todos são, uns para os outros, vida
nua e homo sacer. Ou seja, a situação de exceção como forma constituidora do
estado de natureza. Segundo Agamben em Hobbes, o fundamento do poder não
está na cessão espontânea de poder ao soberano, mas na verdade, na conservação
pelo soberano de seu direito natural de poder fazer qualquer coisa sobre qualquer
um, é o direito de punir. A violência então não é baseada no pacto, mas na
inclusão exclusiva da vida nua no Estado79.

A cidade moderna é fundada sob a ação contínua do estado de exceção


sobre o estado social, onde a vida do cidadão seria a vida nua do homo sacer, em
uma zona de indistinção entre homem e fera, natureza e cultura. Nesse sistema, o
ban80 seria a ligação entre vida nua e soberano, é a relação entre os dois polos da
exceção soberana, ao contrário da clássica interpretação do contrato social como
ato político caracterizador da passagem do estado de natureza para o Estado. A

78
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 104.
79
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 106.
80
O ban seria o poder de remição de algo a si mesmo, exclusão e inclusão, de estar livre e
capturado.
75

mesma relação se encontra hoje nos espaços púbicos contemporâneos. O nómos


soberano determina as relações políticas e as espacializações. É a vida exercendo
seu papel como fator nos cálculos de poder - a biopolítica, segundo Agamben81.

Essa estrutura de bando está inserida nas relações políticas e nos espaços
públicos atuais. “Mais íntimo que toda interioridade e mais externo que toda
estraneidade é, na cidade, o banimento da vida sacra”82. O bando é o nómos
soberano que determina toda territorialização. E se todos são homines sacri, isso
só é possível devido a presença da relação de bando desde a origem do poder
soberano.

O campo de concentração se coloca como um paradigma pela lógica da


matabilidade do humano em proporção inaudita. Nesse espaço se encontra um
caso flagrante de homo sacer, pois não existia ali a ideia de sacrifício, era apenas a
matabilidade do corpo pela simples condição de ser judeu. “A verdade difícil de
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ser aceita pelas próprias vítimas, mas que mesmo assim devemos ter a coragem de
não cobrir com véus sacrificiais, é que os hebreus não foram exterminados no
curso de um longo e gigantesco holocausto, mas literalmente, como Hitler havia
anunciado, ‘como piolhos’, ou seja, como vida nua”83. Essas pessoas eram
consideradas como “vidas indignas de serem vividas”84, vidas humanas que
perderam totalmente a qualidade de bem jurídico e não eram mais politicamente
relevantes, a tal ponto que a sua continuidade perdeu qualquer valor, portanto
podem ser impunemente eliminadas. Para essas pessoas, a vida se encontra no

81
BATISTA, Vera Malaguti. Vida Nua e Soberania. Op. Cit. p. 389.
82
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 110.
83
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 113.
84
Essa expressão foi criada por Karl Binding e Alfred Hoche em 1920, quando buscavam
explicar a impunibilidade do suicídio frente a possibilidade de eutanásia. Eles afirmavam ser a
eutanásia uma expressão da soberania do homem sobre a própria existência. Diante dessa
soberania do homem sobre si próprio, deriva a necessidade de autorizar a eliminação da vida
indigna de ser vivida. Essa foi a primeira vez que se utilizou a expressão no cenário jurídico
europeu, e Agamben considera que mesmo se referindo a eutanásia, ela não pode ser
menosprezada pois designa pela primeira vez a vida que não merece ser vivida e a impunidade do
aniquilamento dessa vida. A partir disso, pode ser traçado um paralelo entre a soberania do vivente
sobre si mesmo com a decisão soberana no estado de exceção. Aqui surge o exercício do poder
soberano sobre a vida nua, ainda que sob o aparente discursode um problema humanitário. Na
eutanásia pode ocorrer a separação entre a zoé e a bíos para se isolar a vida nua – matável. Mas na
biopolítica moderna isso corresponde a decisão soberana sobre a vida matável, o que assinala a
transição da biopolítica para a tanatopolítica. “A ‘vida indigna de ser vivida’ não é, com toda
evidência, um conceito ético, que concerne às expectativas e legítimos desejos do indivíduo: é
sobretudo, um conceito político, no qual está em questão a extrema metamorfose da vida matável e
insacrificável do homo sacer, sobre a qual se baseia o poder soberano”. AGAMBEN, Giorgio.
Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 137.
76

limiar de indiferença, elas correspondem a vida nua do homo sacer. Não seria
errado afirmar que, a medida em que os habitantes foram alijados de qualquer
estatuto jurídico e reduzidos a vida nua, o campo resta como uma localização
deslocante do mais absoluto espaço biopolítico, no qual o poder se exerce em toda
sua potência, sem qualquer mediação, lugar que confunde o homo sacer ao
próprio cidadão.

“A civilização moderna não foi a condição suficiente do Holocausto; foi, no


entanto, com toda a certeza, sua condição necessária. Sem ela, o Holocausto seria
impensável. Foi o mundo racional da civilização moderna que tornou viável o
Holocausto. O assassinato em massa dos judeus da Europa pelos nazistas não foi
apenas realização tecnológica de uma sociedade industrial, mas também sucesso
de organização de uma sociedade burocrática. Imaginem simplesmente o que foi
necessário para fazer do Holocausto um genocídio único entre os inúmeros
morticínios que marcaram o avanço histórico da espécie humana”85.
A “fabricação de cadáveres” que cercou as discussões sobre Auschwitz é
entendida como resultado de um processo em cadeia de eliminação populacional.
A expressão não denomina a morte mas a produção de cadáveres. Eram
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indivíduos sem morte, cuja execução foi executada em série “o mundo moderno
conseguiu envilecer aquilo que talvez seja mais difícil envilecer no mundo, pois é
algo que traz em si, como na sua textura, um tipo especial de dignidade”86. O
ponto central é a quantidade de mortos, o que só demonstra o aviltamento do
processo, a perda de dignidade da morte. É essa mesma quantidade que encontra-
se hoje no número de mortos divulgados pela grande mídia como resultado das
políticas de segurança pública, que promovem operações policiais nas favelas,
onde assistimos cotidianamente a normalização da barbárie. A morte se tornou
“trivial, burocrática e cotidiana” como notícia na grande mídia e como rotina para
agentes policiais.

Agamben afirma que o paradigma do campo está virtualmente presente


hoje em qualquer estrutura na qual vida nua e norma entram no limiar de
indistinção, não importando a denominação dada ou a topografia específica87. A

85
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 32.
Grifos do autor.
86
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. Homo Sacer III. Op. Cit. p. 79.
87
Para comprovar a característica de localidade deslocante do campo, Agamben cita
exemplos recentes onde a lei está suspensa, como o “os Estádio de Bari, onde em 1991 a polícia
italiana aglomerou provisoriamente os imigrantes clandestinos albaneses antes de reexpedi-los ao
seu país,quanto o velódromo de inverno no qual as autoridades de Vichy recolheram os hebreus
77

experiência de Auschwitz não foi um fato isolado na história política ocidental, o


que não significa que exista hoje um local denominado campo de concentração,
fato que seria muito difícil para um sistema que pretenda impor uma dominação
cotidiana. Mas quando Agamben retoma a experiência do campo, sua intenção é
manter viva na memória coletiva o que foi aquela experiência, seus efeitos e sua
função. O campo é qualquer local aparentemente anódino onde o ordenamento
normal é suspenso. Nesse sentido, encontra-se a situação da população moradora
das favelas cariocas. Os moradores das periferias urbanas são historicamente
criminalizados e abandonados pelas políticas do Estado. Nessa forma de
organização, a exceção se coloca como estrutura por meio da qual o direito se
refere a vida com a sua suspensão, na qual a relação de bando corresponde a
articulação da vida com o ordenamento por meio dessa figura limítrofe – o banido
ou o bandido. “A relação de exceção é uma relação de bando. Aquele que foi
banido não é, na verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas
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é abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida
e direito, externo e interno, se confundem”88.

Os moradores das favelas são vistos em sua generalidade como bandidos,


em razão de uma minoria da população integrante de grupos armados. Essa
estigmatização ocorre duplamente, seja pela atuação policial, que viola direitos
cotidianamente nesses territórios, seja pelas classes sociais mais ricas, que
destinam a eles uma desconfiança generalizada, obrigando “os moradores das
favelas a um esforço prévio de demonstrar ser pessoa de bem”89. O estigma sobre
as favelas tende a naturalizar esses espaços como campos de concentração. Seus
moradores são formalmente portadores de direitos e deveres jurídicos, mas em
contraponto, o Estado se mostra ausente como garantidor de políticas públicas.
Essa situação paradoxal permite traçar um paralelo com o continuum gueto-prisão
da sociedade norte-americana, estudado por Wacquant, como reflexo do

antes de entregá-los aos alemães”. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a
vida nua I. Op. Cit. p. 170.
88
A expressão banido ou bandido, utilizada nos dias de hoje, tem sua origem no bando.
Corresponde a figura colocada fora da jurisdição e ao mesmo tempo abandonado por ela.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 35.
89
MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. Criminalidade Violenta: por uma nova
perspectiva de análise. In Dossiê Cidadania e Violência. Revista de Sociologia e Política nº 13:
115-124 Nov.1999. p. 14.
78

fortalecimento do braço penal do estado, concluindo pela mesma relação de


complementaridade entre favela-prisão na realidade brasileira.

A polícia, ao contrário do pensamento hegemônico, não é um poder para


fins meramente administrativos de executar medidas, mas talvez seja o lugar
virtual no qual violência e direito estão mais próximos como forças constitutivas,
a ponto de incorporar a soberania e o poder de decisão. Isto porque, se o soberano
é aquele ponto de indistinção entre violência e direito, decretando a exceção e
suspendendo a validade do direito, a polícia está sempre atuando no mesmo
estado de excepcionalidade. Segundo Agamben “não se compreende a biopolítica
nacional socialista (e, com ela, boa parte da política moderna, mesmo fora do
terceiro Reich), se não se entende que ela implica o desaparecimento da distinção
entre os dois termos: a polícia torna-se então política, e a tutela da vida coincide
com a luta contra o inimigo”90. A racionalidade de “ordem pública” e
“segurança”, na qual é baseada a decisão do policial caso a caso, define uma área
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de indistinção entre violência e direito, a qual é simétrica a soberania91.

Para além da questão da soberania, a investidura do poder de decisão na


figura da autoridade policial provoca a necessidade de criminalização do inimigo.
O processo ocorre primeiro excluindo o inimigo da comunidade civil e rotulando-
o de criminoso, em um segundo momento, torna-se possível e lícito eliminar o
inimigo por uma operação policial. Esse tipo de operação normalmente, não é
obrigada a respeitar nenhuma regra jurídica e não faz nenhuma distinção entre a
sociedade civil e os ditos criminosos92, podendo qualquer um ser vítima dessa
“guerra”. Os procedimentos de investigação são estendidos a todos – cidadãos e
suspeitos. É o que Agamben chama de retorno a forma mais arcaica das regras de
beligerância. E assim, a soberania se desloca gradualmente para a sua face mais
sombria - o direito de polícia. A segurança se converte em técnica regular de
governo para autoconservação do sistema legal, que deve ser assegurado a
qualquer custo, nem que seja preciso sacrificar direitos dos cidadãos e sua
liberdade.

90
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 143.
91
AGAMBEN, Giorgio. Sovereign Police. In: Means without end – Notes on politics.
Minneapolis: University of Minessota Press, 2000. p. 103.
92
CORTELESSA, Andrea. Um filósofo e a política de segurança – Entrevista com Giorgio
Agamben. Revista Sopro – Panfleto político-cultural, nº 45, p.7, fevereiro de 2011. Tradução Elysa
Tomazi.
79

O direito é considerado uma violência autorizada, ainda que essa força


esteja contida em seu interior. A polícia é fundada no momento em que o Estado
não consegue mais garantir seus fins por meio do direito, então precisa de um
órgão executor de suas medidas e mantenedor da ordem pública. Assim, o Estado
cria uma instituição na zona cinzenta entre direito e fato, ela é a força instituinte e
mantenedora do direito. Ao se inserir a biopolítica nesse contexto, ela se
transforma em tanatopolítica e, com o racismo, o biopoder estabelece a
categorização de certos grupos populacionais e assim estabelece hierarquias,
reintroduzindo no sistema do “fazer viver” o princípio da guerra. “As cesuras
biopolíticas são, pois, essencialmente móveis e isolam, de cada vez, no continuum
da vida, uma zona ulterior, que corresponde a um processo de degradação cada
93
vez mais acentuado” . A crítica que se faz é a seletividade da atuação policial,
como acontece nos dias atuais nas intervenções em áreas estigmatizadas das
periferias urbanas. É preciso violar os direitos de alguns para garantir a segurança
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de outros.

É importante destacar neste ponto que, quando Agamben resgata a figura


do homo sacer e a utiliza como um paradigma, sua intenção é utilizá-la como
chave de leitura para entender a biopolítica contemporânea. A vida nua não é uma
simples vida natural retirada da natureza, mas uma figura subjugada às relações de
poder prolongadas ao longo da história e localiza essa mesma figura na cena
contemporânea. Na condição de uma construção histórica, trata-se de uma
(re)produção nos dias atuais, a qual deve ser pensada e desarticulada. Os
paradigmas do campo e do homo sacer não são um passado distante, mas a
possibilidade de emergência como estratégia de contenção social.

O Estado é uma emanação direta das relações sociais, ao mesmo tempo em


que se coloca como fiador dessas mesmas relações. A função de dominação dos
conflitos é subterrânea ao discurso da neutralidade da ação estatal e da igualdade
formal. Então, para manter a aparência democrática de submissão às regras
constitucionais e controlador da desordem, ocorre a pendularidade entre o Estado

93
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. Homo Sacer III. Op. Cit. p. 90. O
racismo é usado como ideologia para hierarquizar categorias de pessoas e justificar grupos
classificados como inferiores. No regime nazista dos campos de concentração vigorava critérios
biológicos que pregavam a supremacia da raça ariana. Hoje esse racismo é apontado sobre negros
e classes sociais mais pobres, onde ocorre a mesma categorização para naturalizar a morte e,
consequentemente a “fabricação de cadáveres”.
80

de Direito e o Estado de Polícia. Se o direito é o campo das lutas ideológico-


políticas, é na esfera do direito penal e processual penal que localizamos de forma
bem clara a ambivalência. Pois é no campo penal que se encontra mais nítida as
estratégias de contenção dos movimentos sociais, no qual se percebe o tratamento
diferenciado para as ditas classes perigosas “o tratamento diferenciado de seres
humanos privados do caráter de pessoas (inimigos da sociedade) é próprio do
Estado absoluto”94. O discurso oficial declara como justificativa para o aumento
da criminalidade a falta de eficiência do poder punitivo e suas instituições
repressoras, fomentando um anseio pelo incremento do poder punitivo, por meio
de políticas de segurança genocidas, recrudescimento das leis penais e
processuais, aumento exponencial da população carcerária.

“O terror é a realização da lei do movimento. O seu principal objetivo é tornar


possível à força da natureza ou da história propagar-se livremente por toda a
humanidade sem o estorvo de qualquer ação humana espontânea. Como tal, o
terror procura “estabilizar” os homens a fim de liberar as forças da natureza ou da
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história. Esse movimento seleciona os inimigos da humanidade contra os quais se


desencadeia o terror, e não pode permitir que qualquer ação livre, de oposição ou
de simpatia, interfira com a eliminação do “inimigo objetivo” da História ou da
Natureza, da classe ou da raça.”95

O poder punitivo sempre rotulou os indivíduos de determinado grupo,


variando ao longo da história, dispensando-lhes um tratamento diferenciado por
não considerarem-nos pessoas, sendo considerados apenas como sujeitos
perigosos. Esses grupos já foram diversos, como os negros, os judeus, hoje eles
são identificados na figura dos imigrantes, da população pobre moradora das
periferias urbanas. Sobre tais sujeitos incide o poder punitivo em toda sua
potência. Sob a ótica seletista e estigmatizante, determinados grupos são taxados
de inimigos e assim justifica-se a negação de garantias fundamentais da pessoa
humana em face da intervenção penal do Estado, sob o argumento de serem “não
pessoas”.

O inimigo está sujeito a medidas de segurança, sem poder contestar


direitos constitucionais, pois ele foi despersonificado, é o homo sacer moderno.
Ele é um sujeito perigoso que deve ser neutralizado. A ele é destinado o
tratamento do Estado de polícia, pois cabe justamente ao poder de polícia a
manutenção da ordem. No processo de expansão do poder punitivo, o Estado
94
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p.13.
95
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Op. Cit. p. 518.
81

policial estenderá a lógica da excepcionalidade, já que a lógica da exceção não


conhece limites, escolhendo seus inimigos entre os “indesejáveis” da vez. A
eliminação do inimigo é carregada do sentido de neutralizar um perigo futuro,
representado por uma “não pessoa”. Legitimado pelo direito, a polícia tem
autorização de “atirar para matar”. Exatamente esse processo de desqualificação
da pessoa é empregado nas práticas diárias das polícias do Rio de Janeiro no
extermínio maciço dos jovens pobres moradores de favelas. Esses seres humanos,
vítimas da letalidade policial, não são mais considerados pessoas, sua morte não é
vista como um sacrifício, por isso não existe punição para os executores, são
indivíduos somente matáveis. E assim, mantém-se a mesma política de contenção
social em nome de interesses privados96.

A questão do inimigo como não pessoa e o processo de desqualificação do


outro é percebida claramente nas falas de autoridades públicas ligadas a
segurança, utilizando termos como vermes, animais, insetos para se referir aos
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sujeitos que precisam ser eliminados. Após operação da polícia militar na vila
Cruzeiro, no Rio de Janeiro, quando 14 pessoas foram mortas, um comandante da
polícia afirmou: “A PM é o melhor inseticida contra a dengue. Conhece aquele
produto, SBP? Tem o SBPM. Não fica mosquito nenhum de pé. A PM é o melhor
inseticida social”97. A partir do momento que esses indivíduos são desqualificados
eles se tornam matáveis, sem constituir em crime a sua morte, então se manifesta
o direito de deixar morrer a vida indigna de ser vivida. O estado de exceção
realiza a operação jurídica de eliminar justamente o estatuto jurídico do sujeito,
provocando a suspensão dessa vida, já que o indivíduo não é mais composto por
seu elemento biológico e político, é apenas vida nua. Esse espaço anômico é
extremamente favorável para a desconsideração da pessoa, resultando no homo
sacer, então o sujeito não precisa mais praticar um crime, ele próprio é alvo do
poder punitivo, o seu perfil já é considerado crime98. O controle social ainda opera

96
BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de
Janeiro. Op. Cit. p.31. Nesse sentido afirma Vera Malaguti ao estudar os jovens pobres do Rio de
Janeiro “O ponto em torno do qual gira o problema da continuidade da repressão aos jovens pobres
no Rio reside, então, na estratégia imutável da defesa material e simbólica da desigualdade por
parte dos grupos no poder, que encontram o consenso interessado das classes médias. Criminalizar
os pobres é um instrumento indispensável porque garante materialmente a sua posição subalterna
no mercado de trabalho e a sua crescente exclusão, disciplinando-os, pondo-os em guetos e,
quando necessário, destruindo-os”.
97
Fonte: O Globo (Acesso em 16/04/2008).
98
WACQUANT, Loic. Rumo a militarização da marginalização urbana. Op. Cit. p. 49.
82

sob os moldes colonialistas de contenção, caracterizado por altos índices de


violência à margem da legalidade, no qual poder punitivo público e vingança
privada se confundem99.

As altas taxas de letalidade da polícia são justificadas pela situação de


“necessidade”, com base nos valores da segurança e da liberdade. No entanto, a
questão que se coloca é o juízo subjetivo da situação fática que esses valores
demandam. Ou seja, a questão da necessidade é decidida por uma avaliação
político moral. Da mesma forma, a escolha da figura do inimigo é seletiva, então
ela também se situa no campo da política. Relacionado diretamente a essa política
está o tema da gestão da desordem. O objetivo de manter a ordem se tornou
sinônimo de segurança pública, pois é o poder de polícia que intervém na
sociedade para limitar as liberdades individuais de forma a se adequarem a ideia
de ordem pública. Mas o que se percebe é que as políticas implantadas muitas
vezes são produtoras da desordem, e por meio de suas intervenções legitimar a sua
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atuação e gerir a desordem produzidas por elas mesmas. Como afirma Agamben,
como não suspeitar que um sistema que funciona na base da urgência não tenha
interesse em mantê-lo?

Na esteira desse pensamento, o direito tem um papel fundamental, pois a


construção da ordem é feita estritamente no campo jurídico, no qual se encontra as
ideias abstratas de “interesse geral” e “dano social”, muito empregada no discurso
oficial da segurança. Esses conceitos muitas vezes são preenchidos de acordo
com interesses privados e os conflitos sociais tratados com uma política de
maquiagem, no qual as autoridades estão preocupadas somente em gerir a
desordem. Aos que se voltam contra esse funcionamento, o Estado direciona seu
braço repressivo com o objetivo da neutralização desses sujeitos por meio de um
sistema punitivo cada vez mais violento100.

“O controle social baseia-se no combate ao inimigo, só que como este é invisível,


a repressão se volta contra o extrato social vulnerável, exatamente onde se
99
A situação conflitiva é muito bem refletida por Eduardo Galeano: “Num mundo que
prefere a segurança á justiça. Há cada vez mais gente que aplaude o sacrifício da justiça no altar da
segurança. Nas ruas das cidades são celebradas as cerimônias. Cada vez que um delinquente cai
varado de balas, a sociedade sente um alívio na doença que a atormenta”. GALEANO, Eduardo.
De pernas pro ar - a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre, L&PM, 1999. p. 81.
100
SULOCKI, Victoria-Amalia. Museu de novidades: discursos da ideologia da defesa
social nas decisões judiciais neste início de século XXI. Tese de Doutorado. Orientador: João
Ricardo W. Dornelles. PUC, 2010. p. 108.
83

materializa a “metáfora da guerra”, adotando como meios de legitimação


procedimentos de exclusão, extermínio e desconstrução do sujeito diferente como
cidadão titular de direitos - os mesmos garantidos as elites. É a volta do
tratamento da questão social como uma “questão de polícia”. No processo de
esvaziamento do discurso pró-direitos humanos, estes passam a ser vistos como
incompatíveis com uma conjuntura de guerra (a qual a sociedade brasileira
acredita viver), juntamente com o processo de desumanização do transgressor
através da sua estigmatização, justificando dessa forma a supressão de suas
101
garantias”.

O etiquetamento de jovens sob o estigma de suspeitos alimenta o discurso


oficial de necessidade do aumento da vigilância sobre as camadas mais pobres.
Esses indivíduos suspeitos passam então a serem denominados como “elementos”
por autoridades policiais, completando assim o quadro de sua desumanização.
Como instituição complementar do sistema de contenção estão as prisões, que
atualmente encontram-se superlotadas e com níveis altíssimos de violência. A
ideologia do eficientismo penal é caracterizada pela lógica ressocializante de seu
sistema prisional. Entretanto, ao importarmos essa ideologia ela adquire
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características genocidas de contenção.

E por fim a este tópico do trabalho, assumir a possibilidade de mortalidade


do corpo dos sujeitos sem que se cometa homicídio, por meio da figura do homo
sacer, permite fazer a correspondência entre o estatuto jurídico do homo sacer
(sagrado porém matável) com a ideia contemporânea de cidadania. Tal correlação
é apreciável por meio da equivalência indiciária que fica patente na prática
policial das instituições soberanas. A política de segurança pública de confronto
com os traficantes de drogas no Rio de Janeiro demonstra a dialética entre o
Estado Democrático de Direito e Estado totalitário, pois esta política autoritária
repressiva promove a inclusão excludente de um grupo de pessoas quando estes
são cerceados de assumir suas prerrogativas políticas enquanto cidadãos,
implementando ao invés uma tanatopolítica.

Os aspectos contemporâneos mencionados são uma fonte de comparação


com a teoria de Agamben para demonstrar como o homo sacer do direito romano
está presente no tempo atual na figura do inimigo visado pelas políticas de
segurança pública. O homo sacer contemporâneo possui diferentes fotografias, ele

101
LOPES, Juliana Moreira. O direito penal do inimigo como justificativa para o aumento
nos índices de autos de resistência no Rio de Janeiro. Monografia de conclusão da graduação em
Direito. Orientadora: Victoria-Amália de Barros C. G. Sulocki. PUC, 2009. p. 43.
84

pode ser o imigrante, o negro, o traficante de drogas, ou qualquer outro


estereótipo que interessar ao poder constituído controlar. O inimigo se encaixa nos
rótulos do sujeito perigoso morador da favela. As estratégias de contenção social
sempre estiveram presentes ao longo da história, variando de acordo com o
interesse dominante. A seletividade da atuação policial se manifesta em áreas
vulneráveis por meio do discurso de que sob determinadas classes sociais a
legalidade das intervenções não precisa estar presente da mesma forma. Associado
com a figura do sujeito perigoso está o paradigma do campo relacionado com as
favelas. Esses espaços são zonas de exceção absoluta, onde predomina a vida nua
diante do poder soberano. Estudando a obra de Agamben, Leland de La Durantaye
afirma “(...) nós devemos focar que para Agamben a situação histórica presente
mostra sinais dessa figura excepcional retornando em uma escala global. Em
resumo, o homo sacer de Agamben é uma figura do passado remoto que trás ao
foco um elemento perturbador no presente político – e aponta para um possível
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futuro”102.

102
Tradução livre. “(…) what we should focus on is that for Agamben the present historical
situation indeed shows signs of this exceptional figure returning on a global scale. In short.
Agamben’s homo sacer is a figure from the remote past who brings into a focus a disturbing
element in our political present – and points toward a possible future”. DE LA DURANTAYE,
Leland. Giorgio Agamben: A critical introduction. Op. Cit. p. 211.
3

A letalidade seletiva da política pública de segurança como


paradigma de extermínio no Rio de Janeiro

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.


Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não têm cultura, e sim folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas
páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.
(Eduardo Galeano – Os ninguéns)
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O debate atual sobre direitos fundamentais se vê confrontado com uma


nova realidade, relacionada com o conceito de sociedade de risco1, a qual começa
a pautar as políticas públicas e legislativas. Assiste-se hoje ao confronto dos ideais
de liberdade e segurança, no qual talvez se possa falar na substituição do primeiro
pelo segundo. O ideal da liberdade é limitado pelo aumento ineficaz e
desarrazoado do poder punitivo do Estado, contribuindo inclusive para a própria
desestruturação do Estado Democrático de Direito.

O fortalecimento do aparato repressivo do Estado surge como uma espécie


de resposta ao problema da criminalidade e a busca por segurança. Ainda que
legítima, a demanda social por proteção não pode justificar a submissão dos
cidadãos ao poder cada vez maior do Estado, uma vez que a transição do desejo
de segurança em desejo de punição é fortemente manipulado pela mídia e o
aparato governamental, atuando unicamente no campo simbólico, sem
correspondência objetiva com a realidade, ou seja, a diminuição efetiva da
criminalidade.

1
Essa expressão foi trabalhada por Beck sobre a constatação do risco como um fator
onipresente na sociedade, até se tornar uma normalidade. O risco se tornou não um momento de
estranhamento, mas um elemento central da vida, parte da rotina na “sociedade industrial de
risco”. Ver: BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma nova Modernidade. Ed. 34, 2002.
86

O caso do Rio de Janeiro é emblemático do cenário descrito no campo da


segurança pública, e será objeto de análise neste capítulo. A substituição da
liberdade por segurança representa a transformação de um Estado reativo para um
Estado com postura pró-ativa, no qual o objetivo é desviado da defesa da
sociedade contra ameaças, para o controle cada vez maior, com a finalidade de
prevenção dos riscos potenciais, indefinidos e desconhecidos, intervindo na
liberdade coletiva e individual de todos que possam representar risco. O
paradigma da segurança agora permite que a violência estatal seja exercida de
forma aleatória, pois todos passam a condição de suspeitos.

“No que tange ao sistema punitivo, o ideal de liberdade está ligado a um conceito
de Estado de direito e a um sistema estrito e rígido de garantias do indivíduo
frente às pretensões punitivas do Estado, enunciado a partir das construções
filosóficas do liberalismo político, do iluminismo e do racionalismo e que tem
como corolários a legalidade, proporcionalidade, culpabilidade e ofensividade
real da conduta. De outro lado, o ideal de segurança aponta para um sistema
punitivo hipertrofiado, simbólico e informalizado (flexibilização das garantias),
com objetivo de aumentar o poder do Estado contra eventuais “inimigos”,
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conquanto esse poder aumentado se faça sentir sobre todos os cidadãos, já que a
intervenção punitiva deixa de ser a ultima ratio para se tornar regra. O
pensamento da segurança carrega dentro dele um risco essencial. Um Estado que
tenha a segurança como sua única tarefa e fonte de legitimidade é um organismo
frágil; pode sempre ser provocado pelo terrorismo para tornar-se, ele próprio,
terrorista”2.

A partir disso, um direito de emergência surge como resposta para a


“crise” da violência urbana carioca. A sensação de uma criminalidade fora de
controle é transmitida para a sociedade, a qual responde com uma demanda
crescente por medidas emergenciais, legitimando dessa forma medidas
excepcionais imediatistas e com forte cunho repressor. Essa forma de política
carrega um forte apelo simbólico e por isso consegue envolver a opinião pública.
Essa é uma tendência mundial, mas no caso das políticas implementadas no Rio
de Janeiro, ela adquire detalhes dramáticos. Pois uma sociedade historicamente
excludente como a brasileira, após sair de um regime autoritário e violento que
durara décadas, deveria estar construindo sua base democrática, com princípios e
valores libertários. Ao contrário, ela ainda é profundamente marcada pela
ideologia opressora, comandada pela minoria detentora do poder. A norma não é
mais criada para proteger bens jurídicos, ela passa a ser criada para proteger a

2
AMARAL, Thiago Bottino do. A segurança como princípio fundamental e seu reflexo no
sistema punitivo. Revista Discursos Sediciosos: Crime, direito e sociedade. Ano 11, nº 15/16, 1º e
2º semestres de 2007. p. 301.
87

própria norma. A lei antecipa a tipificação dos crimes para o momento


preparatório, quando ainda não há uma lesão a um bem jurídico. Passamos então
do direito a segurança para a segurança dos direitos, no qual se desenvolve uma
política extremamente repressora e, sob uma perspectiva excludente, mantém a
segurança de poucos3.

No caso brasileiro, o movimento “lei e ordem” e o Estado de polícia são


duas faces da mesma moeda. Não se pode mais negar o caráter político do sistema
penal em todas as suas ramificações. O olhar seletivo está sempre presente, seja na
escolha das condutas a serem tipificadas pela norma penal, seja pela dosimetria
das penas, sempre mais rigorosas com os chamados crimes de rua. Ou por meio
do seu braço policial, que é quem realiza o primeiro filtro sobre a clientela da
máquina punitiva, sendo justamente a polícia que irá determinar quais sujeitos se
enquadram no tipo suspeito, qual postura desperta ameaça a ordem pública,
devendo o sujeito ser reprimido, coagido e encarcerado nas masmorras brasileiras.
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E, se isso não for possível, deve ser eliminado. Dessa forma, o estado de exceção
vai tomando conta, sempre alimentado pelas propagandas midiáticas. “Vende-se a
ilusão de que se obterá mais segurança urbana contra o delito comum sancionando
leis que reprimam acima de qualquer medida os raros vulneráveis e
marginalizados tomados individualmente e aumentando a arbitrariedade
policial”4. Assim, o Estado de Polícia vai progredindo cotidianamente, invadindo
os espaços conquistados após muitos anos de luta pelo Estado Democrático de
Direito.

A violência urbana articula um complexo de práticas que compõem uma


grande parcela do conflito social no Rio. Com o advento dos governos militares e
a Doutrina de Segurança Nacional, conforme tratado no primeiro capítulo do
presente trabalho, algumas mudanças foram sentidas na forma de tratamento da
sociedade pelo Estado e pelas polícias. A questão do controle social passa a ser
politizada e novos pontos considerados estratégicos começam a ser planejados.
Como o caso da militarização da polícia, deslocando o foco de repressão do crime
comum para as questões de segurança do Estado. Então assim se desenvolve a

3
SULOCKI, Victoria-Amália. Museu de novidades: discursos da ideologia da defesa
social nas decisões judiciais neste início de século XXI. Op. Cit. p. 12.
4
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 75.
88

base do problema da segurança pública atual, na qual começa a se questionar as


formas legítimas e ilegítimas de manutenção da ordem social, qual seja, a
transferência do controle social cotidiano para as questões de segurança do Estado
e a militarização das polícias associada com a autonomia dos aparelhos policiais.

Os discursos das autoridades oficiais sobre a guerra ao tráfico de drogas é


uma forma de simplificação da questão de manutenção da ordem pública, usando
essa guerra como um pano de fundo para a justificação das intervenções rotineiras
na vida social, atribuindo a culpa a um segmento específico – os moradores das
favelas – o qual, a partir de sua criminalização, torna-se o perfil ideal do outro: o
suspeito que precisa ser eliminado5.

A análise dos excessos da atuação policial, em que se busca entender o uso


da força moderada, ignora que essa instituição é resultado de uma perspectiva
coletivamente construída sobre o limite para manutenção da ordem pública. Para
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Machado da Silva, a violência policial se mostra na história brasileira como uma


condição de possibilidade do conflito institucionalizado no Estado. Explica-se. A
violência tem sido a condição intrinsecamente presente no processo de integração
política e sociocultural, responsável pela segregação por meio da força e da
desqualificação simbólica de determinado grupo. Aberta ou camuflada, a
violência sempre atuou como mediadora das relações sociais. A violência
camuflada operava por meio do “tecido social”, ou seja, uma pregação ideológica
com a função básica de recalcar a violência inerente a exploração econômico-
social. No que tange a violência aberta, o seu braço executor é incorporado na
autoridade policial.

3.1
A favela e o paradigma do campo

5
Assim afirma Machado da Silva: “(...) convergem para os aparelhos policiais demandas
de recomposição de uma ordem social tida como ameaçada. Cresce o clamor por uma ação “dura”
– isto é. Ilegal -, de modo que a única possibilidade de evitar a contaminação moral de todo o
sistema, preservando os aspectos institucionalizados do conflito social, é deixar a “dureza” da
repressão ao arbítrio da polícia. Esse é o segredo, praticado mas não tematizado, da paradoxal
convivência entre dois processos que, na aparência, deveriam ser incompatíveis: a democratização
e a expansão da violência criminal e policial.” MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. “Violência
Urbana”, Segurança Pública e Favelas – O caso do Rio de Janeiro. Cadernos CRH, Salvador,
v.23 n.59, Maio/Agosto de 2010. p. 292.
89

A política de segurança pública no Rio de Janeiro sempre foi muito


particular em relação aos outros estados do Brasil, em grande parte devido a
circunstância de sua geografia. A ocupação urbana de maneira segregacionista é
comum em diversas cidades do Brasil. Entretanto, uma característica peculiar no
caso do Rio de Janeiro é que esses espaços situam-se muito próximos uns dos
outros, o que só acentua o aspecto segregacionista da política de construção do
espaço urbano. O caso do Rio de Janeiro mostra explicitamente uma política de
cunho higienizador.
Sem entrar na questão histórica, que foge ao escopo deste trabalho, é
importante mencionar que, a partir dos anos 60, o Estado começa a intervir no
processo de ocupação, removendo as favelas da zona sul e deslocando a
população para a zona norte. Nessa época começa a se delinear o mapeamento da
cidade atual - a vida a beira-mar é privilégio dos ricos, enquanto as classes mais
baixas vão se distanciando cada vez mais do centro. Durante muitos anos e
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sucessivos mandatos políticos, segmentos das classes subalternas ficaram


expostos a exclusão social e política, o que permitiu a formação de fronteiras de
uma “cidade partida”6.
De acordo com Andrelino Campos, “como a favela, ainda hoje, está
umbilicalmente ligada à questão do “risco”, as classes dominantes criam, em cada
momento, um discurso que vinha dando sustentação às suas práticas sócio-
espaciais, baseando-se quase sempre nos ideários discriminatórios e
segregacionistas”7. A questão da higiene sempre foi fundamental para justificar a
produção do espaço no Rio de Janeiro, primeiro para afastar da área central os
cortiços que abrigavam escravos, posteriormente usou o discurso do “risco
ambiental” para remover centenas de favelas, e atualmente busca soluções contra
o “risco” para segurança pública, especialmente na questão do tráfico de drogas.
Essas justificativas sempre precederam as intervenções do Estado no espaço
favelado, seja de forma “cirúrgica”, seja removendo as favelas, como uma espécie
de “doença urbana”, ou promovendo programas de pacificação com custos sociais

6
Interessante observar a descrição que o autor faz sobre a separação velada que existe na
cidade do Rio de Janeiro, na qual está inserida duas realidades completamente diferentes, podendo
mesmo ser considerada uma cidade dividida. VENTURA, Zuenir. Cidade Partida. Rio de Janeiro:
Companhia das Letras, 2000.
7
CAMPOS, Andrelino. Do Quilombo à Favela: a produção do “Espaço Criminalizado”
no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil: 2011. p. 69.
90

muito altos. É o “medo branco de almas negras” conforme denomina Sidney


Chalhoub8, o temor de uma rebelião popular.
Durante esse processo aprofunda-se a “cidadania diferenciada”. Ou seja, as
favelas são abandonadas pelas políticas públicas na área de saúde, saneamento
básico e educação, por exemplo. Em contrapartida, esses espaços passam a ser
ocupados por relações clientelistas, por meio da fragmentação urbana e o
fortalecimento de líderes locais, seitas religiosas, contravenção ou mesmo pelo
crime organizado. Assim, se observa o fortalecimento da distinção entre direitos
humanos e cidadania, na qual o primeiro passa a ser visto ironicamente pela
sociedade como privilégio dos delinqüentes, enquanto cidadania seria restrita aos
sujeitos cumpridores da lei, para os contribuintes9.
“Esse tipo de pensamento higienista, que é recorrente na nossa sociedade, foi
expresso por Marcus Jardim, Comandante do 1° Comando de Policiamento de
Área (CPA) do Rio de Janeiro, ao afirmar que: “A PM é o melhor inseticida
social”, no dia 15/04/08 em referência a ação da polícia militar na favela de Vila
Cruzeiro, onde foram mortas nove pessoas e feridas seis, tendo como justificativa
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o combate ao tráfico de drogas. Agindo dessa maneira, os representantes da


política de segurança do estado do Rio de Janeiro visam naturalizar suas práticas,
comparando seres humanos a insetos que podem ser mortos sem que ocorra
qualquer investigação sobre os fatos”10.

Ao se analisar a formação histórica do Rio de Janeiro torna-se evidente a


constância de políticas públicas desenvolvidas e pensadas de cima para baixo,
equacionadas pelas elites e voltadas para os seus interesses. Não foram
direcionadas para o desenvolvimento social, mas sim para o controle das massas;
não planejadas para a segurança de todos, mas sim para instalação da ordem.
O padrão bélico da segurança pública carioca estabelece um cenário
político que conjuga o conceito de estado de exceção analisado por Agamben,
com uma característica particular, qual seja, a política de segurança fundada no
extermínio sem qualquer tipo de decisão soberana anterior concedendo plenos
poderes, inclusive para violação de direitos fundamentais. No contexto carioca, é
a constituição material biopolítica que confere poderes para o exercício da

8
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo, Companhia das Letras, 1990. p.
64.
9
DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e segurança: entre pombos e falcões. Op. Cit.
p.161.
10
RIBEIRO, Camila; DIAS, Rafael; CARVALHO, Sandra. Discursos e práticas na
construção de uma política de segurança: O caso do governo Sérgio Cabral Filho (2007-2008).
In: Segurança, Tráfico e Milícias no Rio de Janeiro. (Org.) Justiça Global. Rio de Janeiro: 2008. p.
7.
91

violência institucional. Ou seja, é um estado de exceção sem a autorização da


constituição formal, não positivado. É um estado de exceção difuso, de fato e não
de direito. Dessa forma, a política de segurança vigente sob a exceção permanente
recai sobre a superioridade do nomos em relação a lei, do direito material sobre o
direito formal. A exceção, segundo Agamben é mais uma técnica de governo do
que uma medida excepcional propriamente dita, sendo conjuntamente, um
paradigma constitutivo da ordem jurídica.
O estado de exceção acionado pela metáfora de guerra as drogas divide a
cidade em áreas sob a jurisdição do Estado de Direito, e áreas urbanas do estado
de exceção – as favelas. A partir da polarização estigmatizante, os territórios das
favelas e seus moradores são historicamente criminalizados e abandonados pelo
Estado, o que remete ao conceito agambeniano de bando, como o excluído,
banido, “o bando é propriamente a força, simultaneamente atrativa e repulsiva,
que liga os dois polos da exceção soberana; a vida nua e o poder, o homo sacer e
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o soberano”11.

A violência na instituição policial está presente de diversas formas. Nos


casos de mortes de civis em confronto com a polícia ou grupos de extermínio, os
agentes muitas vezes camuflam a natureza real dos homicídios, fato muito comum
principalmente em casos de autos de resistência; da mesma forma que os
investigadores não tomam as medidas necessárias para averiguar a verdade dos
fatos, os agentes distorcem ou não preservam as provas que seriam essenciais para
determinar a legitimidade da ação policial12. Essa situação impede a
responsabilização dos agentes e contribui para a manutenção das altas taxas de
letalidade policial, já que esses atos cometidos pelos agentes internos da polícia
ficam impunes. A questão do corporativismo na instituição policial é um legado
do regime militar que não conseguiu ser rompido, podendo ser percebido na falta
de independência na condução das investigações de um membro da corporação,
onde a imparcialidade e independência das investigações são totalmente
prejudicadas.

11
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 35.
12
Ver RAMOS Silvia; MUSUMECI Leonarda. Elemento suspeito: abordagem policial e
discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Op. Cit.
92

O aumento da corrupção policial e o crescimento da criminalidade13 são


faces distintas da mesma moeda, que representa a ascensão de uma cultura menos
propensa a aceitar imposições de autoridades, se isto contrariar seus interesses.
Alguns estudiosos tentam explicar o “fracasso” no controle da criminalidade a
partir da corrupção policial e da impunidade. No entanto, essa linha não abrange o
ponto do descontrole do Estado, tanto da corrupção como da criminalidade, no
qual ambos têm a mesma raiz – a crise da autoridade. Esse fato, paradoxalmente,
provoca um aumento do encarceramento das classes ditas perigosas e um
incremento das práticas genocidas14.

As elevadas estatísticas de mortes15 do Rio de Janeiro transmitem a


situação de crise permanente que vive a segurança pública. Luiz Antonio
Machado da Silva analisa o conceito de criminalidade violenta e afirma que “a
criminalidade organizada é uma realidade social com lógica própria, até agora não
estudada, e que funciona com certa independência em relação a outros problemas
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e fenômenos sociais, como a crise do Estado”16. A realidade é que vivemos sob a


metáfora da guerra já enraizada na mentalidade policial e o discurso de
emergência é empregado frequentemente para justificar ações extremas de
violência institucional. Reduzir o crime violento se tornou o objetivo maior e
legitimador de toda e qualquer prática. Paradoxalmente, ao invés de reduzir a
violência, as polícias acabam por incrementá-la com o uso ilegal da força letal. O
estado de exceção trabalhado por Agamben se mostra presente, ao serem
suspensos os direitos dos cidadãos para buscar o fetiche do controle da violência e
da criminalidade urbana.

O poder punitivo hoje só consegue atuar violando sistematicamente


direitos garantidos formalmente na carta constitucional, sob o discurso da
necessidade justificante da exceção. Aproximadamente ¾ dos presos estão
submetidos a medidas de contenção, eles estão sendo processados, mas ainda não
foram condenados, no entanto já se encontram presos como medida de controle.
13
YOUNG, Jock. A sociedade excludente. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 30.
14
ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada. Op. Cit. p. 111.
15
Nos últimos dez anos uma média aproximada de 1000 pessoas foram mortas no estado do
Rio de Janeiro sob o discutível instituto dos autos de resistência. Fonte: ISP – Instituto de
Segurança Pública.
16
MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. Criminalidade Violenta: por uma nova
perspectiva de análise. In Dossiê Cidadania e Violência. Revista de Sociologia e Política nº 13:
115-124 Nov. 1999.
93

“Do ponto de vista formal, isso constitui uma inversão do sistema penal, porém,
segundo a realidade percebida e descrita pela criminologia, trata-se de um poder
punitivo que há muitas décadas preferiu operar mediante a prisão preventiva ou
por medida de contenção provisória transformada definitivamente em prática”17.
A presunção de periculosidade funciona como uma certeza absoluta no caso dos
indesejáveis. O sistema carcerário está falido, na medida em que não
“ressocializa” e não "reeduca"18 - seus objetivos institucionais e justificantes do
sistema. O que temos hoje são grandes depósitos humanos, onde se despejam
pessoas que cometeram pequenos delitos para conviverem lado a lado com
assassinos violentos e traficantes inescrupulosos. As condições degradantes a que
estão submetidos os presos transformam-nos em verdadeiras “feras feridas”.

Como afirma Marildo Menegat, o século XXI pode ser nomeado como a
“atualidade da barbárie”19. A democracia realmente deixa de ser efetiva, tornando-
se uma falsa aparência de governo, com a finalidade de legitimar as barbáries
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cometidas nos regimes atuais. O paradigma da segurança funciona como um


instrumento discursivo para a generalização da exceção como técnica normal de
governo, a qual torna-se difusa e permanente. Nas palavras de Agamben,
“conforme uma tendência em ato em todas as democracias ocidentais, a
declaração do estado de exceção é progressivamente substituída por uma
generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal
de governo”20.

Um tratamento seletista direcionado ao inimigo afetará as garantias legais


de todos os cidadãos, no entanto sua suposta eficácia no combate a criminalidade
é ilusória. Mas quando se coloca que os direitos de todos os cidadãos serão
afetados, imediatamente é invocado o eficientismo penal, característico do Estado
autoritário e sua razão de estado, colocando a falsa opção entre eficácia e
garantias. Dessa forma, aumenta a discricionariedade investigadora das agencias
policiais, o que significa a tradução para o aumento das práticas de tortura e

17
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 70.
18
Sobre esse tema ver WACQUANT, Loic. Prisões da miséria. Tradução: André Telles.
São Paulo: Jorge Zahar, 2001; Punir os Pobres – A Nova Gestão Penal da Miséria nos Estados
Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
19
MENEGAT, Marildo. A atualidade da barbárie. Discursos sediciosos. Ano 2004. p. 145.
20
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. Cit. p. 27.
94

homicídios21. Isto por que, essa tática de contenção está destinada ao fracasso,
pois não reconhece que a exceção sempre invoca uma necessidade que não
conhece lei nem limites.

Vive-se hoje um novo tipo de autoritarismo. É uma espécie inserida nas


democracias ocidentais, o que Zaffaroni chama de autoritarismo cool: “é cool
porque não é assumido como uma convicção profunda, mas sim como uma moda,
à qual é preciso aderir para não ser estigmatizado como antiquado ou fora de lugar
e para não perder espaço publicitário”22. É um autoritarismo que se propaga com o
auxílio publicitário de apelo puramente emocional.

Segundo Massimo Pavarini, para entender o objeto da criminologia é


preciso entender a demanda por ordem. Essa ideia norteia qualquer entendimento
que se busca sobre uma política de segurança em determinado local e numa
determinada época. Nos dias atuais, o que se percebe como objetivo para
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manutenção da ordem é a questão do território. Para Milton Santos, o território


seria “um conjunto de lugares e o espaço nacional como um conjunto de
localizações; temos que estar sempre mudando, não obstante o lugar fique o
mesmo, em vista do constante rearranjo de valores atribuídos a cada lugar e às
atividades presentes”23. E para falar de lugar é preciso tratar do conceito de
localização, entendido como um movimento do mundo apreendido em um ponto
geográfico. E por isso mesmo, está sempre mudando de significação devido o
movimento social.

É de se comentar o projeto do governo estadual das UPPs – Unidades de


Polícia Pacificadora – que sob o falso discurso de representar um projeto de
redução da violência, na realidade consiste na ocupação territorial sob os moldes
militares demarcando espacialmente as zonas de interesse do estado. As UPPs se
estendem hoje por 17 favelas da cidade, o que envolve cerca de 280 mil pessoas24.
A crítica que se faz é que a UPP não consiste em um projeto de segurança pública,
mas sim um projeto de cidade. Para perceber isso basta olhar para o mapa das

21
HUMAN RIGHTS WATCH. Força Letal – Violência Policial e Segurança Pública no
Rio de Janeiro e em São Paulo, 2009.
22
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 69.
23
SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo: Nobel, 1996, p.121.
24
Fonte: ISP – Instituto de Segurança Pública. Disponível em: www.isp.rj.gov.br.
95

UPPs instaladas e analisar suas localizações. A lógica é clara, corresponde a


região hoteleira da Zona Sul da cidade, o entorno do Maracanã, o “Porto
Maravilha” e a Cidade de Deus.

Vale destacar que polícia pacificadora é diferente de polícia comunitária.


Isto porque, a UPP não contempla a participação popular nem na formulação nem
no controle das políticas de segurança. O comando da UPP cumpre a função de
síndico ou gerente da favela. A política dessas unidades reforça as relações sociais
de segregação e estigma, de desigualdade e repressão, sacramentando a favela
como um “território a ser neutralizado pela polícia”. O discurso de implantação
das UPPs, com o maciço apoio das grandes mídias produziu um macabro
consenso político sobre a ocupação militar das favelas pela sofisticação do
discurso da guerra às drogas, uma vez que a UPP não resolve o problema do
crime, mas sim, dos conflitos armados em trechos estratégicos da metrópole, que
é a única preocupação dos interesses hegemônicos. Para tanto, basta a produção
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de “cinturões de segurança” para viabilizar a gestão dos riscos produzidos pela


pobreza vizinha.

Ao mesmo tempo, a UPP funciona como bandeira eleitoral de “pacificação


da cidade”. Só que esta ocupação não tem sido tão pacífica assim, haja vista
alguns casos em destaque na grande mídia como a ocupação do Chapéu
Mangueira, Babilônia, Pavão Pavãozinho e Cantagalo onde foi necessário o
confronto com uso de violência e armas de fogo entre policiais e moradores para a
implementação da “pacificação”. Estratégia essa, pra dizer o mínimo,
contraditória. A população apavorada, induzida pelos jornalões televisivos,
embarca na onda punitiva e apóia todo e qualquer tipo de atrocidade que se
cometa em nome da volta a "normalidade". Desde que essas atrocidades não
sejam cometidas contra os "seus" e nem aconteçam em seu território.

“É claro que tudo isso nos evoca a idéia de ocupação de um território em que o
capitalismo estabeleceu um espaço criminalizado, dominado pela lógica
brutalizante das commodities ilícitas, mas muito rentáveis. Regular coexistências
nos territórios da desigualdades não é também uma tarefa fácil, num mundo que
já nem deseja transformar-se, já deixou para trás uma utopia de escola aonde os
jovens possam desfrutar de suas potências, ou de uma sociabilidade prazerosa
entre diferentes na construção de redes coletivas de apoio e cuidado. É porque
antes da ocupação territorial já se tinham ocupado as almas”25.

25
BATISTA, Vera Malaguti. O Alemão é muito mais complexo. Op. Cit.
96

A estratégia das UPPs investiu mais uma vez na pacificação por meio da
paz armada. Ou seja, mais uma vez a estratégia do controle da criminalidade por
meio da repressão. A pacificação diminuiu o contingente de armas pesadas nas
mãos do tráfico, mas aumentou na mão da polícia. E a classe média que ingressou
na luta armada contra a administração militar no passado, hoje apoia os projetos
belicosos. Segundo Patrícia Birmam “o que o governador destaca é
essencialmente uma proposta de tratamento epidemiológico da população
favelada, que é coerente com o atributo através do qual ele a identifica: ‘uma
fábrica de marginais’”26.

Outra estratégia em curso de segregação territorial é a construção de muros


na cidade sob a justificativa de se estabelecer “ecolimites”27. Em 2009 o
governador Sergio Cabral anunciou o projeto, consistindo no levantamento de
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14,6km de barreiras de concreto no entorno de 13 favelas que “estariam


avançando sobre áreas da Mata Atlântica” gerando um “problema ecológico”.
Das 13 favelas que compõem a lista do governo, 11 ficam em áreas nobres da
Zona Sul da cidade: Pavão-Pavãozinho, Ladeira dos Tabajaras, Chapéu
Mangueira, Rocinha, Babilônia, Cantagalo, Morro dos Cabritos, Vidigal, Parque
da Cidade, Benjamim Constant e Santa Marta. Assim como, em outubro de 2009,
foi noticiado oficialmente que barreiras acústicas e de proteção começariam a ser
construídas nas linhas Amarela e Vermelha28. Os módulos do muro, que impedem
a visualização das favelas do entorno, são estampados com pinturas de ícones
turísticos da cidade, como o Pão de Açúcar e o Corcovado, para o desfrute
daqueles que transitam de carro em alta velocidade. O “problema do barulho” foi
o que legitimou o anúncio oficial dos muros nas vias expressas que conectam o
aeroporto internacional aos corredores turísticos do mercado carioca, com o único
e real intuito de tornar a vista mais “limpinha” para os que saem do aeroporto em
direção à Barra e Zona Sul.
26
BIRMAM, Patrícia. Favela é comunidade? In: Machado da Silva, Luís Antônio (org.)
Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FAPERJ/ Nova
Fronteira, 2008. p. 99-114.
27
RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA A ANISTIA INTERNACIONAL. Os
Muros nas Favelas e o Processo de Criminalização. Rio de Janeiro, 2009, p. 06. Maio de 2009.
Disponível em: http://global.org.br/programas/os-muros-nas-favelas-e-os-processos-de-
criminalizacao. (Acesso em: 03/02/2013)
28
Fonte: O GLOBO, (11/10/2009). Disponível em: www.oglobo.com.br
97

O dispositivo mais simbólico do atual modelo de segurança fluminense


pode ser encontrado nas garagens das polícias do Rio de Janeiro. A militarização é
também sentida pelo enorme gasto financeiro com a compra de todo um aparato
repressivo no modelo de guerra, para as operações policiais cotidianas, como a
compra de vários tanques blindados, chamados de “caveirão” e de helicóptero
blindado, apelidado de “caveirão do ar”29. Esse aparato militar promove
verdadeiras práticas de extermínio nas favelas cariocas, pois favorecem o total
anonimato dos policiais. Fato este que tornou extremamente difícil responsabilizar
os agentes em caso de violência e morte. “A luta contra a violência e os abusos de
uma polícia historicamente conhecida por sua arbitrariedade contra as camadas
economicamente e socialmente desfavorecidas, fica ainda mais difícil quando as
vítimas e as testemunhas não conseguem reconhecer os policiais que cometem
violações de direitos humanos”30. Apesar da posição oficial ser no sentido de
emprego do “Caveirão” apenas em momentos “especiais” e “de exceção”, na
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prática, o que ocorre é um uso cada vez mais incisivo, regular e cotidiano31, sendo
justificado pelo discurso do estado de exceção permanente proporcionado pela
política de guerra contra o tráfico.

Outro fator determinante na política carioca é a atuação de grupos


paramilitares – as milícias – nas periferias urbanas e na baixada Fluminense. O
fenômeno das milícias é uma questão delicada pois quando elas surgiram, existia
uma benevolência sobre o assunto por parte do poder público. Elas não eram
incentivadas, mas eram conhecidas pelas autoridades públicas e aceitas como uma
alternativa de controle ao tráfico de drogas em determinadas comunidades32. As
milícias constituem grupos armados, seus membros são agentes públicos, das
forças policiais, agentes penitenciários e bombeiros, que afirmam seu poder
alegando ser representantes da lei. Eles introjetam a figura do xerife nas

29
Ver ANISTIA INTERNACIONAL. Entre o Ônibus em Chamas e o Caveirão: em busca
da segurança cidadã. Relatório Rio 2007.
30
RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA O RELATOR ESPECIAL DAS
NAÇÕES UNIDAS PARA EXECUÇÕES SUMÁRIAS, ARBITRÁRIAS E EXTRAJUDICIAIS.
Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: http://www.iddh.org.br. (Acesso em 06/11/2012)
31
Ver ANISTIA INTERNACIONAL. Entre o Ônibus em Chamas e o Caveirão: em busca
da segurança cidadã. Relatório Rio 2007.
32
O ex-prefeito César Maia declarou que essas organizações eram “autodefesas
comunitárias”. Assim como o atual prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes declarou ao RJTV em
2006 “Jacarepaguá é um bairro em que a tal da polícia mineira, formada por policiais, trouxe
tranquilidade para a população. O morro do São José Operário era um dos morros mais violentos
desse estado, e agora é um dos lugares mais tranquilos”.
98

comunidades, mesmo controlando e extorquindo os moradores das áreas


dominadas, nos diversos serviços prestados na comunidade como luz, gás,
transporte público alternativo, eles se apresentam como integrantes do Estado33.
As milícias também se diferenciam dos grupos de extermínio, muito comuns na
Baixada Fluminense, na medida em que esse último grupo mantém relação com a
política na questão da venda de segurança local. De acordo com o sociólogo
Ignacio Cano, as características das milícias são:

“o controle de um território e da população que nela habita por parte de um grupo


armado irregular; o caráter em alguma medida coativo desse controle dos
moradores do território; o ânimo de lucro individual como motivação principal
dos integrantes desses grupos; um discurso de legitimação referido à proteção dos
habitantes e à instauração de uma ordem que, como toda ordem, garante certos
direitos e exclui outros, mas permite gerar regras e expectativas de normatização
da conduta; a participação ativa e reconhecida de agentes do estado como
integrantes dos grupos”34.

Em dezembro de 2008, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)


concluiu o relatório em que apurou que centenas de membros de milícias no Rio
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de Janeiro controlam um número significativo de comunidades, chegando à cifra


de 171 bairros no estado do Rio de Janeiro35.

Ausente o Estado das suas funções de controle territorial e garantia dos


direitos individuais, as favelas ficam mais vulneráveis aos grupos armados com
maior poder de fogo, no caso a milícia, que se apresenta como força menos
tirânica e menos perversa que o tráfico. O discurso de legitimação da milícia
não pode se apresentar simplesmente como um grupo de crime organizado, que
lucra à custa da comunidade, ela precisa se apresentar como uma alternativa a
algo pior, por exemplo, a tirania e o crime36. Ou seja, a milícia se legitima pelo
seu oposto, pelo seu inimigo encarnado no tráfico, objeto de uma estigmatização
total até representar quase a figura do mal absoluto. Mesmo que eles possam ser

33
Os grupos de extermínio nascem como estratégia de alguns segmentos da sociedade para
abolir grupos sociais ou políticos indesejados. Faz parte de uma cultura arraigada à sociedade
brasileira, que tem se utilizado de grupos de extermínio para promover a chamada limpeza social.
Eles atuam normalmente em zonas pobres e periféricas.
34
CANO, Ignacio. Seis por meia dúzia? In: Segurança, Tráfico e Milícias no Rio de
Janeiro.(Org.) Justiça Global. Rio de Janeiro: 2008. p. 59.
35
ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Relatório Final
da Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada a investigar a Ação de Milícias no Âmbito do
Estado do Rio de Janeiro. Aprovado em 16 de dezembro de 2008. p. 220-228.
36
ALVES, José Claudio Souza. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na
Baixada Fluminense. Duque de Caxias-RJ: APPH, CLIO, 2003.
99

definidos como integrantes de uma rede de crime organizado, eles “são o estado”
nas favelas e, portanto, os teóricos inimigos naturais da criminalidade.

“As leis estabelecidas em lugares onde o Estado – que deveria determinar as


regras cotidianas das pessoas que ali vivem – se mostra ausente não são as que
estão na Constituição ou que são votadas na Assembléia Legislativa. O “tribunal”
que julga os conflitos ocorridos nesses espaços urbanos nada tem a ver com o
Judiciário. Na mesma lógica, a presença de grupos armados ilegais faz com que o
uso da força deixe de ser exclusividade do poder público. Isso vale tanto para as
áreas dominadas pelas milícias quanto para aquelas em que facções criminosas
controlam o varejo das drogas ilícitas. O mais grave é que esse complexo
domínio de território envolve a vida de aproximadamente um terço da população
da cidade do Rio de Janeiro, que fica muitas vezes sem ter a quem recorrer”37.

Não se pode contar com a proteção do Estado se os próprios funcionários


encarregados de fazer cumprir a lei são os que a desrespeitam. Na verdade, o
abandono por parte do estado começou muito antes, mas o fato de que os agentes
públicos sejam agora os titulares do poder em certas localidades inviabiliza ainda
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mais qualquer recurso formal.

O ponto chave da atuação das milícias é reconhecer que esses grupos não
são um tipo de estado paralelo, mas sim a atuação do próprio Estado por meios
anômalos. Segundo Marcelo Freixo, trata-se de um “Estado Leiloado”38, que
atende a interesses particulares. A sua dinâmica de funcionamento evidencia uma
confusão entre o público e o privado no aparato coercitivo. Ela é um indício
concreto não só do estado de exceção permanente dentro do estado democrático
de direito como também a sua expansão39. Os grupos milicianos são responsáveis
por várias execuções extrajudiciais, assim como outros crimes, como a tortura,
corrupção e extorsão.

A questão das milícias é importante para discutir a relação entre Estado,


governabilidade, território e soberania, a fim de redefinir a concepção política de
segurança pública. A polícia não disputa com as milícias os territórios controlados

37
FREIXO, Marcelo. Combater as milícias, uma questão de soberania. Fonte:
www.diplomatique.uol.com.br. Versão eletrônica do jornal Le Monde Diplomatique.
38
FREIXO, Marcelo. Combater as milícias, uma questão de soberania. Op. Cit.
39
Em agosto de 2011, a juíza Patrícia Acioli foi atingida por vinte e um tiros em frente a sua
casa no município de Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro. A magistrada vinha
recebendo ameaças de morte devido a sua postura inflexível diante das milícias e da criminalidade
policial. Dez policiais e o comandante do batalhão de São Gonçalo foram presos e acusados de
envolvimento no assassinato. Ver ANISTIA INTERNACIONAL. Informe 2012: segurança
pública. Fonte: www.amnesty.org.
100

por ela. Esse ponto é revelador da metáfora da guerra contra o inimigo. Com
efeito, a guerra deve ser travada contra um inimigo claramente definido,
encarnado na figura do narcotraficante. Segundo um alto oficial da Polícia Militar
do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) numa reunião privada em 2007, “não
adianta enviar os policiais para as áreas de milícia porque a milícia não vai
confrontar, vai se retirar e esperar a gente sair”40. Esse cenário leva a concluir que,
aparentemente, quando não há confronto, a polícia não encontra um papel para
fazer dentro desta política de segurança pública dramaticamente militarizada.
Uma vez sumido ou, melhor dito, descaracterizado o inimigo, a guerra não parece
ter mais objeto.

É claro que esta situação não se aplica nas áreas em que o tráfico é forte e
ameaça retomar os territórios perdidos, mas em muitos outros locais a chegada da
milícia implica uma certa pacificação decorrente do fim das incursões policiais. É
uma dinâmica tautológica. Os policiais ocupam as favelas e garantem o fim das
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suas próprias incursões. Considerando que as incursões são provavelmente o


momento que gera mais insegurança nos moradores dessas áreas, não há dúvida
de existir um aspecto positivo da ocupação das milícias, mesmo que seja com uma
lógica invertida. A realidade de sua atuação traduz a ambigüidade do seu papel, a
promiscuidade extrema entre o público e o privado. O miliciano é uma autoridade
pública, mas atua à revelia da lei. Ele representa o Estado naquela localidade, mas
ao mesmo tempo o trai, pois tira proveito da sua condição pública para extrair
lucros privados.

É de se ressaltar nesse ponto do trabalho que a classificação como estado


de exceção é meramente descritiva, haja vista que a exceção não é determinada
sob critérios objetivos pelo direito. Normalmente ela é encontrada quando a
aspiração do Estado é norteada por estratégias violentas de controle, com o
objetivo de manter a estrutura social de desigualdade. Para manutenção dos
interesses hegemônicos, o poder soberano não encontra limites, nem que seja
necessário reduzir a vida de seus cidadãos a mera vida nua. Por isso, ao longo da

40
No entanto, contraditoriamente, “a informação de que existe tráfico de drogas em
algumas áreas de milícias é tão relevante, pois tira a última máscara que separa a milícia do seu
inimigo formal, o último álibi na sua pretensão de legitimidade. Qual será a diferença entre o
tráfico e uma milícia que trafica?” CANO, Ignacio. Execuções sumárias no Brasil: o uso da força
pelos agentes do Estado. Revista Justiça Global, setembro de 2003. p. 69-70.
101

história brasileira, com suas rupturas e permanências, a exceção constitui uma


presença contínua, se mostrando inclusive como um aspecto constitutivo.

3.2

A letalidade da ação policial

“Em todos os casos ecoa a tragédia fundadora de Canudos. Em todos os casos a


vida nua da população pobre brasileira é exposta com crueza pornográfica. O
que mais nos estarrece é o eterno retorno da barbárie. O trauma provocado pelo
genocídio não gera anticorpos, não permite ao corpo social criar defesas que
impediriam uma nova tragédia.”
(Guilherme Preger)

Canudos ainda está presente. Só muda o crime, mas a estética é a mesma.


A trajetória das ideologias de controle social no Brasil evidencia nitidamente as
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estratégias de dominação das classes hegemônicas, em que o estado policial e o


direito penal são utilizados como instrumentos de gestão da pobreza e manutenção
das relações de poder dominantes, forjadas por meio da naturalização da
desigualdade. A formação política brasileira aponta desde a sua formação
colonial, fenômenos políticos de humilhação social e estigmatização de
determinados segmentos, espelhados na produção da figura do inimigo e na
criação de medos coletivos. A violência endêmica se firmou no imaginário social
das classes dominantes como única forma possível, capaz de viabilizar o modelo
segregacionista. Pois como afirma Darcy Ribeiro, “todo ciclo econômico é um
moinho de gastar gente”41. Os instrumentos de submissão forçada empregados
para a população indígena, posteriormente para os negros africanos submetidos a
escravidão, incorporaram-se aos métodos de controle social formal. De acordo
com Nilo Batista, o extermínio é o grande signo de abertura do processo histórico
brasileiro, estando a violência impregnada desde o projeto colonizador, seja por
meio do assasínio direto ou não42.

41
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995. p. 106-141.
42
Sobre a formação do sistema jurídico brasileiro e sua intrínseca relação com a violência
desde o início do projeto colonizador, ver BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal
Brasileiro I. Rio de Janeiro: ICC, 2000.
102

Pesquisa feita pela UNESCO demonstrou que entre 1979 e 2003 mais de
550 mil pessoas morreram no Brasil vítimas de disparos de algum tipo de arma de
fogo. Desse total 44,1% foram jovens na faixa entre 15 a 24 anos. Nesse período
destacado, os homicídios com armas de fogo cresceram 542,7%43. Adorno já
tratava dessa barbárie institucional quando afirmou que “a civilização devora seus
filhos”44. A ideologia e as estratégias de controle penal na realidade
contemporânea assumem características dramáticas, reproduzindo o eterno retorno
dos dispositivos racistas, excludentes e letais. O fato da experiência democrática
brasileira ser recente não permitiu a formação de instituições com força política
para conter a ânsia repressora da explosão de conflitos diante da complexidade
das relações sociais. Dessa forma, essas instituições não conseguiram até hoje
romper com um longo passado de invisibilidade pública e humilhação social,
decorrentes da desigualdade naturalizada.

“As amplas demandas de justiça material, historicamente reprimidas e


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escamoteadas pelos sucessivos regimes ditatoriais, exacerbaram os conflitos e


choques em virtude do aumento da complexidade da luta de classes na sociedade
brasileira atual. Inegavelmente, o processo de reabertura política conduziu a uma
explosão de litigiosidade decorrente do fenômeno da radicalização ideológica,
que, permitindo os espaços para a (re)legitimação da ordem política, acabou por
desaguar no déficit de legitimidade das instituições, em face da incapacidade dos
governos gerirem democraticamente a estabilização econômica e a necessária e
sempre adiada reforma social”45.

Nesse contexto, segmentos sociais menos abastados vivem num estado de


guerra perpétua, ficando à mercê da violência institucional e simbólica, mantendo-
os vinculados ao sistema jurídico por meio das sanções normalizadoras e alijando-
os das garantias constitucionais. Assim, um verdadeiro estado de natureza
hobbesiano se instala, suprimindo gradativamente as conquistas de um direito
penal liberal.

Por isso diz-se que o homo sacer está presente no atual contexto político,
pois vive-se um estado de exceção permanente. E a decisão da excepcionalidade
parece não inquietar as classes dominantes, pois ela é acionada exatamente para

43
Ver: UNESCO. A crise oculta: conflitos armados e educação. Relatório Conciso, 2011.
Disponível em: www.unesco.org.
44
ZAMORA, José Antonio. Th. W. Adorno: pensar contra a barbárie. São Leopoldo: Nova
Harmonia, 2008. p. 61.
45
CARVALHO, Thiago Fabres de. O “direito penal do inimigo” e o “direito penal do
homo sacer da Baixada”: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro. Disponível em:
http://www.ihj.org.br/pdfs/Artigo_Thiago_Fabres.pdf. (Acesso em 13/01/2013).
103

manter o seu status quo. A preocupação com a violência institucional das agencias
punitivas apenas afetou a classe média quando esta se viu perseguida pela ditadura
militar, sendo vitima de tortura, perseguição, mortes e desaparecimento. Após a
abertura política, muitos dos antigos militantes políticos de esquerda viraram
reprodutores do discurso “lei e ordem”, já que agora as autoridades punitivas
voltam-se para os mesmos perseguidos de sempre na história, os segmentos
marginalizados – antes escravos, hoje a juventude negra e pobre das periferias
urbanas, “porque para pobre pode”46. A vida do homo sacer aparece como o
objeto principal da violência soberana. A violência cotidiana das incursões
policiais nas favelas e o genocídio aberto promovido pela racionalidade do
sistema penal dão o tom das estratégias de segurança, caracterizadas por uma
enorme carga de racismo e estigmatização, impregnados no imaginário social e na
truculência das ações policiais de extermínio.

Quando o terrorismo de Estado torna-se a política oficial, o espectro do


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homo sacer emerge de forma pungente, de tão visível que se torna a relação com a
população pobre. A vida nua aparece na sua forma mais descontrolada, uma vida
abandonada à própria sorte, na sua condição de insacrificável e escancaradamente
matável.

A cultura do extermínio vem se afirmando como o contraponto dos


direitos humanos e a tendência contemporânea47. Os movimentos de luta pela
dignidade, sintetizados na construção gradual dos direitos fundamentais,
expressam uma relação íntima entre direito e violência, diante da imposição dos
poderes violadores dessa mesma dignidade. E se a vida humana sempre consistiu
na base do poder, cabe se questionar o limite de intervenção do poder sobre a
administração dos corpos dos homens. Sobre esses questionamentos e diante da
política contemporânea de poder ilimitado sobre os corpos de forma legítima,
Agamben propõe que “a implicação da vida nua na esfera política constitui o
núcleo originário – ainda que encoberto – do poder soberano”48, no sentido de
constatar que colocando a vida biológica como fator principal nos cálculos de

46
YUKA, Marcelo. Não acredito em paz armada. Entrevista a Caros Amigos, janeiro de
2013.
47
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
p. 230.
48
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 14.
104

poder, o Estado somente retira o véu que encobre o vínculo secreto entre o poder e
a vida nua.

O homo sacer vive continuamente o signo da ambivalência entre vida nua


e existência política, exclusão e inclusão. O vínculo oculto que une o homo sacer
ao poder soberano - a dimensão política - significa justamente ingressar na vida
politicamente qualificada por meio do direito de vida e morte sobre ele próprio.
Sendo o soberano aquele que decide a exceção, ele pode ao suspender a lei, inserir
a vida nua como o referente da decisão soberana. Isto por que, “a sacralidade da
vida, que se desejaria hoje fazer valer como um direito humano em todos os
sentidos fundamental, exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição
da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de
abandono”49. Assim, o soberano decide sobre a inclusão e exclusão de um
indivíduo na comunidade.
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Acredito que em termos contemporâneos, o homo sacer é o indivíduo que


não é definido pelas leis positivas nem detentor dos direitos fundamentais. Ele não
encontra amparo nem no direito posto nem no direito pressuposto, evidenciando
sua situação de dupla exclusão, seu total abandono, exatamente proporcional a
capacidade do soberano de violar sistematicamente a vida (nua) dos indivíduos.
Ele pode a qualquer momento instalar a exceção, matar sem cometer homicídio.
O homo sacer é o arquétipo do homem contemporâneo: cada vez mais
privado da lei positiva quanto da eficácia das garantias fundamentais, o indivíduo
se vê na condição de ser matável e insacrificável. No cenário atual de emergência,
a vida digna colide com as medidas de exceção e urgência, tornando-se vidas
descartáveis.

A igualdade e a dignidade humana são as fontes simbólicas com força


balizadora da dimensão insacrificável do homo sacer, que ao mesmo tempo
encontra-se assujeitado ao poder soberano de suspender a lei e violar justamente
esses valores. Exatamente por isso, são esses valores que demarcam o ponto
limítrofe de suspensão da lei, vale dizer, de radicalização do estado de exceção,
fornecendo ao mesmo tempo uma aparência de sacralidade da vida.

49
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 85.
105

“No mundo contemporâneo, porém, a biopolítica se caracteriza essencialmente


como cultura do genocídio e do extermínio. Enquanto objeto do poder soberano,
os valores da igualdade e da dignidade humana parecem refugar diante do altar da
cultura do individualismo possessivo, em virtude do acionamento global de
estratégias perversas de poder, impulsionadas pela lógica da expansão dos
mercados e por padrões de superioridade racistas, étnicos, culturais e ideológicos.
Para os ditames do capitalismo globalizado, é como se a reprodução de um modo
de vida, tal qual imposto pela cultura hegemônica do individualismo, da
competição e da guerra, exigisse, como contrapartida necessária, o extermínio
daquelas outras vidas que pervertem, sincretizam e hibridizam esse modelo puro
e axiologicamente incólume de existência”50.

De acordo com Agamben, as políticas do biopoder pretendem reger a


natureza humana de acordo com suas prescrições, sua definição de realidade
social e vida digna, desenvolvendo para isso um discurso de legitimação dos
mecanismos de vitimação de contingentes populacionais. O paradigma do campo
surge como a face embrutecida da realidade contemporânea de extermínio em
massa e estagnação das saídas democráticas. O mercado excludente de reprodução
do capital expõe os indivíduos a competição desenfreada e à crise das relações
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humanas, empurrando enormes fileiras populacionais para o subemprego, numa


sociedade que já os considera supérfluos. Novos tipos de delinquência surgem da
nova configuração político-econômica, o que aumenta uma forte sensação de
insegurança. Como contraponto para contenção do tecido social, a repressão se
apresenta como saída imediata. E como já exposto, são exatamente os fracassos da
democracia que justificam o uso da força como única alternativa viável para
gestão dos conflitos. As demandas por regulação e segurança dos setores
excluídos do consumo e do acesso aos bens, conduzem a reafirmação do estado de
exceção como paradigma político. Assim, a teia jurídica, buscando a manutenção
da ordem, e buscando convencê-la como permanente e necessária, sedimenta-se
na lógica da excepcionalidade e terror da ação policial.

A biopolítica se transmuta em tanatopolítica no momento em que a relação


da lei com a vida deixa de ser a regulação e se transforma num controle maior, na
captura dos corpos sob a ordem do estado de exceção, dotado da capacidade de
decidir o instante e qual a vida que deixa de ser politicamente relevante. Para a
legitimação dessa execução, se faz necessário processos de vitimação, que

50
CARVALHO, Thiago Fabres de. O “direito penal do inimigo” e o “direito penal do
homo sacer da Baixada”: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro. Disponível em:
http://www.ihj.org.br/pdfs/Artigo_Thiago_Fabres.pdf. (Acesso em 13/01/2013)
106

consistem na suspensão de direitos sob uma hierarquia biopolítica discriminatória.


A ótica reaparece nesse momento, hierarquizando quais os sujeitos são morais e
portadores de direitos, e quais os outros têm a sua qualidade moral degradada e
portanto podem ter seus direitos suspensos, pois são considerados perigosos. Isto
posto, torna-se legítimo, política e juridicamente, o extermínio de enormes
contingentes populacionais.

Num mundo de incertezas e conceitos éticos imprecisos, é fácil a


instalação da barbárie civilizada51, pois conduz ao individualismo e a
invisibilidade coletiva. O sujeito se coisifica e se dilui numa ideia perene de
invisibilidade. No momento em que se legitima o caráter residual de segmentos
sociais inteiros, torna-se possível executar o extermínio em massa, devido a perda
de seu valor de uso.

A barbárie civilizada atua na pacificação das consciências e possui um


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argumento ao mesmo tempo simples e cruel: quem não é sujeito moral não é
humano; eliminar quem não é humano e, portanto não possui direitos está
moralmente justificado se com isso se recompõe a ordem social. Paga-se o preço
da restituição da ordem social com inúmeras vidas humanas e o esfacelamento do
Estado de Direito. As vidas descartáveis alimentam a falsa imagem construída de
uma comunidade materialmente democrática, na qual o homo sacer paga o preço
da violência institucionalizada. Por meio da dinâmica da exceção e da ação
policial inescrupulosa, o poder soberano elimina as vidas supérfluas. Trata-se na
realidade de um aparato concreto e ideológico com objetivo preciso de legitimar a
segregação e a eliminação dos dejetos humanos.

A seletividade punitiva, que se manifesta por meio dos processos de


criminalização primária e secundária evidencia a operacionalidade real do sistema
penal. “A doutrina atual costuma passar por cima do dado da seletividade, que é
muito significativo, pois se trata da característica estrutural mais vulnerável à
51
Para Thiago Fabres de Carvalho, a barbárie civilizada seria a barbárie tipicamente
moderna, e estaria associada ao caráter formal e abstrato da racionalidade jurídica moderna, na
medida em que considera a vida humana somente uma variável política. A vitimação ocorre sob
diversos procedimentos, como a ruptura do nexo entre ação violenta e seus efeitos com a quebra da
distância física entre os sujeitos envolvidos; a exigência de higienização social; a ausência de
responsabilização moral; e a invisibilidade das vítimas. CARVALHO, Thiago Fabres de. O
“direito penal do inimigo” e o “direito penal do homo sacer da Baixada”: exclusão e vitimação
no campo penal brasileiro. Disponível em: http://www.ihj.org.br/pdfs/Artigo_Thiago_Fabres.pdf.
(Acesso em 13/01/2013).
107

crítica política e social do poder punitivo”52. Como já visto anteriormente no


primeiro capítulo, de acordo com Baratta, o discurso do direito penal é construído
em cima do princípio da igualdade. No entanto esse fundamento é uma
problemática concreta, haja vista a constatação de que a igualdade na aplicação da
lei penal só ocorre no âmbito formal, sendo a regra no direito penal,
contrariamente, a desigualdade substancial. No entanto, o poder punitivo não se
realiza somente no sistema legal, para se punir alguém é suficiente somente a
utilização de força. Por isso, fica claro que é possível a imposição de penas fora
do sistema legal, como no caso da pena ilícita, na qual muitos casos podem
assumir a feição de verdadeiros genocídios.

À margem da legalidade, o sistema penal legitima um poder que restringe


direitos e garantias individuais sob o manto do exercício do poder de polícia. O
sistema penal chancela o controle social sobre as populações pobres. Na
contemporaneidade, ser pobre é sinônimo de ser perigoso e criminoso em
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potencial. Dessa forma, o sistema punitivo se concretiza por meio do poder de


polícia nas periferias urbanas53.

A exclusão de uma grande parte da população do mercado de consumo,


fez surgir o que Zygmunt Bauman chamou de “consumidores falhos”54 - que são
os excluídos como trabalhadores e estimulados como consumidores - formando a
nova clientela do sistema penal. “Dispositivos criados para a gestão daqueles que
sobram, consomem pouco e sujam muito. Numa realidade que prima pela
assepsia, controlar os inimigos internos da ditadura do mercado neoliberal de
controle globalizado se faz por biopolíticas”55. Sistema esse que “pretende
remediar com um mais Estado policial e penitenciário o menos Estado econômico
e social que é a própria causa da escalada generalizada de insegurança objetiva e
subjetiva em todos os países”56. A insegurança objetiva é sentida pelo aumento da
criminalidade que não consegue ser controlada pelo aparato policial. No que tange

52
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 88.
53
ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 129.
54
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998. p.49.
55
NASCIMENTO, Maria Livia. e RODRIGUES, Rafael Coelho. A convergência
social/penal na produção e gestão da insegurança social. In: BATISTA, Vera (Org.) Loic
Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro, Revan: 2012. p. 201-202.
56
WACQUANT, Loïc. Prisões da miséria. Op. Cit. p.7.
108

a insegurança subjetiva, criam-se espaços que devem ser evitados, por meio da
delimitação de zonas proibidas e permitidas.

“Cada vez mais ser pobre é encarado como um crime; empobrecer, como o
produto de predisposições ou intenções criminosas – abuso de álcool, jogos de
azar, drogas, vadiagem e vagabundagem”57. O clamor pelo incremento do poder
punitivo como solução para reorganizar o caos é cada vez maior58, assim, surge o
traficante do imaginário social. Um sujeito sem nenhum limite moral, cujo único
objetivo é o lucro infinito as custas da desgraça alheia, que age de forma violenta
e bárbara. Ele é a encarnação perfeita do sujeito perigoso e sua eliminação se
justifica não só como um direito, mas muitas vezes como uma necessidade diante
da sua natureza de “fera”.

“Na prática, a guerra contra as drogas abriu caminho para a guerra contra as
pessoas tidas como menos úteis e potencialmente mais perigosas da população,
aquelas que Spitzer chama de lixo social, mas que na verdade são vistas como
mais perigosas que o lixo. Elas mostram que nem tudo está como devia no tecido
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social, e ao mesmo tempo são uma fonte potencial de perturbação. Na


terminologia de Spitzer, elas se tornam ao mesmo tempo lixo e dinamite”59.

Associando a imagem do traficante a um ser violento e cruel, o discurso


moral passa a exercer um papel relevante no sistema punitivo. Enquanto a imensa
maioria de traficantes desarmados e não violentos são mortos ou encarcerados, os
veículos de comunicação justificam ações violentas extremamente repressivas por
meio do chamado combate a violência. Cria-se na verdade uma presunção de
violência, sem amparo legal, para as figuras que se encaixam no estereótipo60 do
suspeito.

57
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas.Op. Cit. p.59.
58
Essa tese é confirmada em pesquisa realizada por Orlando Zaccone sobre o tráfico de
drogas no Rio de Janeiro e seus agentes, a realidade penitenciária confirma que “a miséria talvez
seja a única característica que identifica os 1.467 presos na cidade do Rio de Janeiro, pelo tráfico
de drogas ilícitas, em 2003. A cifra inclui 120 mulheres e 1.347 homens presos em flagrante no
tráfico de drogas pelas delegacias da capital. Dos 313 adolescentes e crianças infratores e 1.154
adultos, somente duas possuíam curso superior completo e 210 tinham emprego.” ZACCONE,
Orlando. Acionistas do nada. Op. Cit. p. 124-25.
59
CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p.117.
60
Zaccone, ao estudar o estereótipo do traficante de drogas nas favelas do Rio de Janeiro,
afirma que o termo estigma é uma relação entre atributo e estereótipo, de forma a necessitar de
uma linguagem de relações, “embora o termo estigma seja usado em relação a um atributo
profundamente depreciativo, ele é na realidade um tipo especial de relação entre atributo e
estereótipo. Assim, para definir um estigma, é preciso uma linguagem de relações e não de
atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem; portanto,
ele não é em si mesmo nem honroso nem desonroso. O estigmatizado, segundo Gofman, é um
indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social quotidiana, mas possui um
109

Como afirma Zaffaroni, “a reação que suscita a presença descarnada do


inimigo da sociedade no direito penal é de caráter político, porque a questão que
se coloca é – e sempre foi – dessa natureza”61. Isso fica claro ao se constatar que
as guerras são declaradas de forma unilateral, assim como, o poder hegemônico
sempre fabricou inimigos e emergências para justificar suas intervenções, e com o
consequente estado de exceção. A excepcionalidade justifica a coisificação dos
indivíduos perigosos, na medida em que a anulação da sua condição de pessoa é
decorrente da razão que essa privação ocorre. Isto é, quando um sujeito é privado
de seus direitos simplesmente por ser considerado perigoso. E no entanto, o grau
de periculosidade do suposto inimigo depende do juízo subjetivo do
individualizador, exercido por quem detém o poder. Consequentemente, a
priorização da segurança como certeza sobre a conduta futura de alguém e sua
absolutização provoca a despersonalização de toda a sociedade.

Sobre a forma como a mídia exerce o seu poder de influência, é


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interessante destacar aquilo que Silvia Moretzsohn denominou como “recriação


do caos”:

“Jornais, já se disse, são uma forma de mapear o mundo. Um mapeamento muito


particular, porém: trabalho ativo de produção de sentido, resultante da interação
dos elementos verbais e não-verbais no espaço da página e nas edições de rádio e
TV. Como diz Todd Gilin, “os enquadramentos dos media, que em grande parte
são tácitos e não admitidos, organizam o mundo tanto para os jornalistas que o
descrevem como, num grau muito importante, para nós que confiamos nas suas
descrições. Os enquadramentos de media são padrões persistentes de cognição, de
interpretação e de apresentação, de seleção, de ênfase e de exclusão, através dos
quais os manipuladores de símbolos organizam habitualmente o discurso, seja ele
visual ou verbal”62.

O papel da mídia foi apontado no primeiro capítulo, mas vale retomar esse
ponto, por ser um fator essencial na naturalização gradativa da violência. A mídia
é especialmente determinante na formação do senso comum penal, quando ela
promove a despolitização dos conflitos sociais e a politização da questão criminal.
A manifestação da violência simbólica construída pelas grandes mídias é
identificada no processo de etiquetamento e criação do estereótipo, na medida em

traço que pode impor-se à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de
atenção a outros atributos seus”. ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada. Op. Cit. p. 57.
61
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 16.
62
MORETZSOHN, Sylvia. A ética jornalística no mundo ao avesso. Revista Discursos
Sediciosos – crime, direito e sociedade, no. 9 e 10. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de
Criminologia, 2000. p. 318.
110

que os detentores da comunicação definem determinados grupos sociais como


melhores ou piores, confiáveis ou não, “quem tem a palavra constrói identidades
pessoais ou sociais”63. Cria-se uma (anti) estética na qual o delinquente é
construído como a antítese dos padrões adequados para a sociedade. A mídia
como construtora da violência simbólica atua como ferramenta de controle social,
sendo um substituto da violência física. Esse lugar comum alcança os operadores
jurídicos que se preocupam somente em transmitir um discurso superficial que no
mínimo aponta uma condescendência, quando não a adesão explícita ao modelo
repressor.

O papel da mídia fica muito nítido na política carioca de pacificação das


favelas e comunidades, ela faz parte da estratégia de instalação das UPPs. É a
mídia quem confere o tratamento estético vendido para a opinião pública, é ela
quem dá o suporte no imaginário social para implantação das UPPs. E esse
tratamento estético foi se modificando nos últimos tempos. Isso pode ser
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observado ao comparar a “pacificação” do Complexo do Alemão em 2010 e na


Barreira do Vasco em março de 2013. Na época da ocupação do Complexo do
Alemão tanques do Exército foram acionados e mostrados na grande mídia,
mostrando o prenúncio de uma guerra que estava por vir, evento o que a Rede
Globo denominou como “Tropa de Elite 3”. Essa operação de “pacificação”
deixou um número de mortos até hoje não contabilizados oficialmente. Já na
ocupação da Barreira do vasco e o entorno do Caju em março deste ano a imagem
da ocupação vendida pela mídia foi outra. Agora não são mais tanques de guerra,
mas um menino morador da comunidade subindo no cavalo do policial após a
ocupação64. A estética vendida na grande mídia se modificou. Após passados
alguns anos desde a primeira ocupação no morro Santa Marta, a tônica das
campanhas midiáticas é a sensação de paz. A cidade do Rio de Janeiro não é mais
uma “cidade partida”, como afirmou Zuenir Ventura, ela agora é uma “cidade
cerzida”, o carioca é feliz, a sociedade não é mais passiva e o Rio de Janeiro não é
mais uma cidade de exclusão. Essa imagem vendida faz parte da estratégia

63
SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Neoliberalismo, mídia e o movimento de lei e
ordem: rumo ao Estado de polícia. Revista Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. Ano
11, números 15/16. 1º e 2º semestres de 2007.
64
Fonte:O GLOBO. Disponível em: www.g1.globo.com (Acesso em 03/03/2013)
111

política. Vender o sucesso das UPPs é importante para camuflar a manutenção do


estado de exceção permanente nessas localidades.

As ações do poder em tempos de guerra e numa conjuntura política


apresentam diferenças profundas, principalmente no que tange ao inimigo. De
acordo com Zaffaroni, o inimigo de guerra é aquele que pertence ao outro lado,
enquanto “o sistema penal seleciona uns poucos inimigos políticos e os exibe
como inimigos de guerra da maioria”65. No entanto, a vinculação da guerra ao
sistema repressivo penal torna-se muito mais complexa do que a simples
categorização do sujeito como inimigo da pátria, pois o processo seletivo de
apenas alguns criminosos a serem punidos se projeta num processo de produção
de delinquência, no qual os atores serão rotulados e condicionados para serem
considerados inimigos de guerra.

A imposição de uma política intolerante de combate ao crime, que se


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manifesta na guerra as drogas, de acordo com Salo de Carvalho, é estabelecida por


meio da conjunção das ideologias da Defesa Social e da Segurança Nacional, que
prepararam o terreno para a política de Tolerância Zero. “Apesar de ter como
objetivo específico a eliminação do “inimigo interno” – o alter “subversivo” que
questiona o establishment - , a ideologia da Segurança Nacional, agregada à
ideologia da Defesa Social, estabelece pauta de ação específica em relação ao
combate a criminalidade”66.

“Produz-se, então, um direito penal e processual penal de emergência, simbólico,


com efeito sedativo, cuja eficácia é a tranquilização da opinião pública, diante da
insegurança urbana. Em suma, faz-se uso do direito penal e processual penal de
uma forma promocional, difusora de ideologia, pois, abrandando a ansiedade em
torno da (in)segurança, induz a população a acreditar que inexistem riscos em
torno das medidas adotadas. Trata-se de um deliberado fortalecimento do Estado
de polícia em prejuízo das conquistas democráticas do Estado de direito”67.

Nas palavras de Vera Malaguti, se assiste a um filicídio68, pois estamos


exterminando os nossos jovens. O número de homicídios cometidos pela polícia

65
ZAFFARONI, Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 225.
66
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e
dogmático. Op. Cit. p. 143.
67
SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Neoliberalismo, mídia e o movimento de lei e
ordem: rumo ao Estado de polícia. Revista Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. Ano
11, números 15/16. 1º e 2º semestres de 2007.
68
BATISTA, Vera Malaguti. Filicídio: a questão criminal no Brasil contemporâneo. In:
Silene de Moraes Freire. (Org.). Direitos Humanos: violência e pobreza na América Latina
contemporânea.
112

leva a conclusão de que está ocorrendo o extermínio de uma parcela da população,


e grande parte dessas mortes é em decorrência da ação policial, nas mais diversas
formas. A polícia brasileira é uma das que mais mata e que mais morre, o que
fornece pistas concretas para sua medíocre eficiência e despreparo. Em 2010, a
polícia do Rio de Janeiro matou 43,73 pessoas para cada policial morto em
serviço. Ao passo que, a polícia dos Estados Unidos matou 9,05 pessoas para cada
policial morto69. Esse alto índice é considerável, sob a suspeita de que em muitos
casos a polícia falsamente relata mortes como tendo sido produto de confrontos
que não teriam ocorrido naturalmente.

A força letal da polícia só é legitimamente justificável quando for uma


situação para defender a vida ou a integridade física do policial ou algum cidadão,
sob a condição dessa força empregada ser proporcional para evitar o risco criado.
Ou seja, somente é autorizado o poder de letalidade quando absolutamente
necessário. No entanto, o modelo adotado por aqui de “lei e ordem” justifica o
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emprego de toda força necessária para a neutralização do perigo. Em


contrapartida, esse modelo coloca em risco a vida e a incolumidade física dos
próprios policiais, uma vez que ao adotar a metáfora da guerra, esses agentes são
submetidos a situações de risco extremo de forma frequente, o que aumenta as
chances do resultado morte.

Execuções sumárias ou extrajudiciais são expressões utilizadas pelos


padrões internacionais de direitos humanos para referir-se a um homicídio
praticado por forças de segurança do estado, não somente policiais civis e
militares, mas também agentes penitenciários e guardas municipais, em situação
na qual a vítima tenha tido seu direito de defesa restringido em um processo legal
regular, ou então, em caso de estar respondendo a um processo, a vítima seja
eliminada antes do seu julgamento. Nesse sentido, a colocação de Ignacio Cano
mostra-se pertinente, ao afirmar que “o uso da força policial pode ser entendido
como um continuum, com dois polos opostos. No primeiro extremo, o agente faria
uso da sua arma de forma legítima e proporcionada. (...) No outro extremo,
estariam os casos de pessoas detidas que são friamente assassinadas por policiais,

69
Fonte: ISP – Instituto de Segurança Pública da secretaria de Segurança do Estado do Rio
de Janeiro. Disponível em: www.isp.rj.gov.br. (Acesso em 10/02/2013).
113

ou seja, as execuções sumárias”70. O poder de utilizar a violência para


manutenção da ordem é constantemente usado de forma abusiva pelas autoridades
policiais, gerando os excessos resultantes em violências físicas ou mesmo a morte.
Esse limiar entre a força moderada necessária e o abuso de violência é um dos
grandes desafios para o controle da violência urbana.

No modelo de segurança do Rio de Janeiro, os agentes são treinados na


Academia de Polícia com a mentalidade da guerra, ainda resquício da Doutrina de
Segurança Nacional. Sua preparação ideológica e técnica é voltada no sentido de
combater uma guerra, na qual o inimigo é perene, enquadrado na figura do
suspeito – definição extremamente importante para a atividade policial e
paradoxalmente indefinida em critérios exatos71. Nesse continuum, o policial
tende ao uso excessivo da força, como aponta Ignacio Cano. Isso pode ser
observado por meio de alguns indicadores, como “a proporção de homicídios
dolosos cometidos pela polícia atingir uma percentagem próxima a 10% de todos
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os homicídios; a razão entre mortos e feridos nas vítimas das ações policiais
mostra que há vários mortos para cada ferido provocado pela polícia”72. Esta
razão é o chamado índice de letalidade. E as proporções demonstram que em
muitos casos a real intenção do policial é de matar e não prender.

Diversos fatores revelam que o uso da força pela polícia é excessivo,


inclusive quando comparado a violência geral do estado. Nesse sentido:

“- a proporção entre policiais mortos em confronto e civis mortos pelos policiais


excedia a razão de 1 a 10, o que indica, de acordo com o Prof. Chevigny, um uso

70
CANO, Ignacio. Execuções sumárias no Brasil: o uso da força pelos agentes do Estado.
Op. Cit. p. 15.
71
Um elemento muito utilizado nas comunicações internas das polícias é o termo “elemento
suspeito de cor padrão”, sugerindo uma forte presença da seletividade racial na atuação cotidiana
da polícia. Nota-se aqui nitidamente a metáfora do espelho, quando o policial reconhece que o
elemento suspeito tende a coincidir com estereótipos negativos relacionados a idade, classe social,
raça e local de moradia. Entretanto, essa mesma ferramenta de grande importância para a atividade
policial não é definível de forma exata. Nesse sentido, conclui Silvia Ramos após trabalho sobre o
elemento suspeito “Outro aspecto que chama a atenção na pesquisa junto à PM é a pobreza do
discurso sobre a suspeita. Não só não conseguimos localizar um único documento que definisse
parâmetros para a constituição da “fundada suspeita”, como encontramos nas falas de oficiais,
antigos ou jovens, de alta ou baixa patente, uma articulação tão precária a respeito desse tema
quanto a observada na “cultura policial de rua” expressa pelas praças de polícia. É surpreendente,
para não dizer espantoso, que a instituição não elabore de modo explícito o que seus próprios
agentes definem como uma das principais ferramentas do trabalho policial (a suspeita).” RAMOS
Silvia; MUSUMECI Leonarda. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade
do Rio de Janeiro. Op. Cit. p. 54.
72
CANO, Ignacio. Letalidade da ação policial no Rio de Janeiro. Op. Cit.
114

abusivo da força;. No Rio de Janeiro, essa razão excede às vezes o patamar de 30


ou 40 a 1. No ano de 2007, dados oficiais até junho apontam a 694 civis mortos
contra 16 policiais mortos em confronto.
- a proporção de homicídios dolosos devidos à intervenção policial situa-se entre
10 e 20% do total, muito superior ao que acontece em várias cidades do exterior.
- a razão entre opositores mortos e opositores feridos nas ações policiais é o
indicador mais claro. Essa razão, denominada índice de letalidade, evidencia que,
em muitos casos, há uma intenção de matar e não de prender o oponente, visto
que os combates armados genuínos costumam produzir maior número de feridos
do que de mortos. De fato, em outros estados (MG, RS) o número de civis feridos
em confronto é superior ao de mortos. No Rio de Janeiro, pesquisas mostraram
um número de mortos mais de 3 vezes superior ao número de feridos”73.

Como diversas organizações internas e internacionais de direitos humanos


apontam, as evidências da política de segurança do Rio de Janeiro demonstram
uma enorme diferença entre os índices de mortes em confronto com a polícia em
comparação com o número total de assassinatos “comuns”, prisões, mortes de
policiais e número de pessoas feridas pela polícia. De acordo com a Anistia
Internacional, as práticas policiais em 2012 continuaram a se caracterizar por
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discriminação, corrupção, pelo caráter militar das operações policiais e as


prometidas reformas na segurança pública não ocorreram devido a cortes no
orçamento e falta de vontade política74.

A letalidade policial é um problema particularmente grave nos espaços


urbanos do país. Os estados com maiores níveis de violência letal tendem a ser os
estados com maior letalidade policial. No entanto, essa relação não é absoluta,
pois não é possível justificar os altos níveis de mortes em ações policiais apenas
devido a um contexto violento. O índice de letalidade é mensurado pela razão
entre o número de mortos e o número de feridos nas operações policiais,
constituindo um dos indicadores clássicos de uso excessivo da força, pois o
esperado é um número maior de feridos do que de mortos. Quando o número de
mortos é maior, isto evidencia uma maior intenção de matar ao invés de
simplesmente prender o opositor. No continuum do uso da força policial podem
existir diferentes casos, como o cidadão vítima do auto de resistência ou as
vítimas de balas perdidas. Os dois casos estão nos dois polos opostos do uso da

73
RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA O RELATOR ESPECIAL DAS
NAÇÕES UNIDAS PARA EXECUÇÕES SUMÁRIAS, ARBITRÁRIAS E EXTRAJUDICIAIS.
Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: http://www.iddh.org.br (Acesso em 06/11/2012)
74
Ver ANISTIA INTERNACIONAL. Informe 2012: segurança pública. Fonte:
www.amnesty.org
115

força letal pelo policial, mas ambos entram na cifra. As vítimas de bala perdida
podem acontecer quando ocorrem incursões policiais nas favelas, os tiroteios
provocados por armas automáticas contra supostos criminosos, atingem vítimas
que poderiam ter sido poupadas com uma abordagem mais cuidadosa. Essa
predisposição ao uso excessivo da arma de fogo provoca outras vítimas que são
feridas ou mortas simplesmente por estarem no meio do fogo cruzado75.

A mobilização de um grande aparato estratégico e de policiais, com o


resultado elevado saldo de mortos, sempre apresentados como “traficantes”, tem
sido o padrão “pacificador” da política de segurança pública nas favelas do Rio de
Janeiro. E ainda assim, a polícia insiste em utilizar como critério de eficiência o
alto índice de letalidade policial. O fetiche das autoridades públicas e da grande
mídia com o combate ao crime organizado, conforme afirma Zaccone, de
organizado não tem nada, tem sido nos últimos tempos o salvo conduto
legitimador para todas as espécies de violações de direitos e a prática do
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extermínio em massa. Em nome dessa justificativa, as favelas cariocas são


invadidas cotidianamente pelos policias, intimidando moradores e constrangendo
trabalhadores, para que eles jamais ousem se organizar para defender seus
direitos. Essa forma de atuação é operada para desarticular as frágeis organizações
espontâneas desenvolvidas nas favelas e periferias urbanas. O terrorismo de
Estado não atua de forma casual, mas na verdade, evidencia o desprezo das forças
hegemônicas pela população miserável, já que os policiais não atiram
aleatoriamente. Pelo contrário, as operações policiais ocorrem em lugares certos e
contra pessoas certas, evocando o ciclo do eterno retorno da barbárie. Chacinas
como as da Candelária e Vigário Geral, perpetradas por policiais na década de 90
são absolutamente impensáveis de ocorrer em Copacabana. Vigora o pensamento
de que nas favelas e periferias cariocas não há inocentes, uma vez que todos já são
culpados pelo simples fato de nascer e ousar sobreviver.

Em todas as incursões policiais, as autoridades responsáveis, como o atual


governador Sérgio Cabral e o secretário de Segurança Pública José Mariano
Beltrame, deixam evidente a política do estado: mortes são entendidas como

75
CANO, Ignacio. Execuções sumárias no Brasil: o uso da força pelos agentes do Estado.
Op. Cit. p. 16.
116

meios necessários para o enfrentamento da criminalidade; o que significa dizer


que, a letalidade da ação policial é encarada como parâmetro de sucesso76.

Num período de 30 anos que atualmente disponibiliza o Sistema de


Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde, o Brasil passou de 13.910
homicídios em 1980 para 49.932 em 2010, o que significa um aumento de 259%.
Entretanto, segundo os censos nacionais, a população do país também cresceu,
embora de forma bem menos intensa. Passou de 119,0 para 190,7 milhões de
habitantes, crescimento de 60,3%. Por isso, considerando o crescimento da
população, passamos de 11,7 homicídios em 100 mil habitantes em 1980 para
26,2 em 2010. Isso é equivalente a um aumento real de 124% no período ou 2,7%
ao ano77.

No total, de 1980 a 2010, ou seja, num período de 30 anos o país já


ultrapassou a casa de um milhão de vítimas de homicídio. Esses números são de
tal magnitude que fica difícil construir uma imagem mental para entender a sua
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significação. Pode ser dada uma ideia do que esses números representam, se
compararmos os mesmos com o número de vítimas em diversos conflitos armados
ao longo do mundo. Vemos que a média anual de mortes por homicídio no país
supera, e em casos de forma avassaladora, o número de vítimas em muitos e
conhecidos enfrentamentos armados no mundo.

No que tange a as estatísticas de homicídios e a questão racial no Brasil, o


índice de mortes entre a população branca é de 18.852 mortes em 2002; 15.753
mortes em 2006; 13.668 mortes em 2010. Entre a população negra, foram 26.952
mortes em 2002; 9.925 mortes em 2006; 33.264 mortes em 2010. Mesmo com
grandes diferenças entre as Unidades Federadas, a tendência geral desde 2002 é:
queda no número absoluto de homicídios na população branca e de aumento nos
números da população negra: em 2002, para cada branco temos 1.497 negros; em
2006, para cada branco temos 1.896 negros; em 2010, para cada branco temos
2.4337 negros.

76
RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA A ANISTIA INTERNACIONAL. Os
Muros nas Favelas e o Processo de Criminalização. Rio de Janeiro, 2009, p. 06. Maio de 2009.
Disponível em: http://global.org.br/programas/os-muros-nas-favelas-e-os-processos-de-
criminalizacao. (Acesso em: 03/02/2013)
77
Ver. Mapa da Violência 2012: os novos padrões da violência homicida no Brasil.
CEBELA: Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos. Disponível em:
http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012.php. (Acesso em: 01/02/2013).
117

De acordo com o relatório do Mapa da Violência 2012, “não é tarefa


simples periodizar o histórico dos homicídios no Rio de Janeiro. Em primeiro
lugar, pelas fortes oscilações facilmente perceptíveis nos dados a seguir, com
repentinas e marcadas quedas e/ou aumentos em curtos lapsos de tempo. Em
segundo lugar, pela peculiaridade do estado: sua região metropolitana (RM)
abrange 74% dos homicídios e 73% da população estadual, motivo pelo qual seu
interior tem limitado peso nas estatísticas”78. Mesmo assim, as pesquisas feitas no
Rio de Janeiro apontam que entre a população branca a taxa de homicídios foi de
2.863 mortes em 2002; 2.363 mortes em 2006; 1.344 mortes em 2010. Já entre a
população negra a taxa de homicídios é maior, sendo de 4.907 mortes em 2002;
4.417 mortes em 2006; 2.638 mortes em 2010. Embora os índices gerais tenham
diminuído, a relação Branco x Negro se mantém sempre a mesma: para cada
branco vítima de homicídio, temos cerca de dois negros vítimas de homicídio.

Os números revelam uma marca letal que vai além da questão racial, ela é
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determinada principalmente pelo aspecto social. A força letal da policia brasileira


tem um foco maior nos jovens negros. Não somente por serem negros, mas
principalmente por serem pobres. É a eterna associação entre pobreza e crime.
Essa visão remonta ao tempo da escravidão. Para os oprimidos, o estado de
exceção vigora como regra na administração colonial, expressão da violência
soberana. Seu exercício encontra no genocídio o alicerce para dominação. Para
esse segmento social a barbárie se tornou cotidiana. Os moradores das favelas são
vistos como sujeitos perigosos, generaliza-se a condição de potenciais criminosos
a todos os trabalhadores e estudantes que ali vivem.

A letalidade policial segue também uma lógica geográfica que confirma a


seletividade de sua atuação baseada na questão social. Já que sua força letal é
empregada com maior incidência em áreas pobres das comunidades ou favelas.
Mais de 70% de todos os autos de resistência envolvendo a polícia do Rio, no ano
de 2008 ocorreram em 10 das 40 Áreas Integradas de Segurança Pública (AISPs).
São elas 3ª, 7ª, 9ª, 12ª, 14ª, 15ª, 16ª, 20ª, 22ª e 40ª. Dados estatísticos dessas zonas
demonstram que em cada um dos supostos autos de resistência nesses bairros, são
mortas entre 10 e 103 pessoas para cada policial morto. Essas áreas juntas

78
Mapa da Violência 2012: os novos padrões da violência homicida no Brasil. Centro
Brasileiro de Estudos Latino-Americanos - CEBELA. Disponível em:
http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012.php. (Acesso em: 01/02/2013).
118

representavam cerca de 53% dos assassinatos cometidos no estado em 2008.


Também se concentra nessas áreas uma grande proporção das mortes por policiais
no estado. Juntas apresentam 825 mortes em 2008, o que significa 73% das
mortes oficialmente reconhecidas e cometidas por policiais em todo o estado79.

Em relatório elaborado por diversas organizações de defesa dos direitos


humanos, atuantes no Rio de Janeiro, a conclusão foi a seguinte:

“A partir de uma cartografia da violência institucional do Estado brasileiro,


vemos que o valor da vida e da dignidade de uma determinada parcela dos
cidadãos (que podem ser recortados por sua etnia, faixa etária, classe social e
geografia urbana ou rural) está se tornando "descartável" pelas estratégias gerais
das políticas governamentais do país. Hoje o Brasil lidera o ranking mundial nos
índices de homicídio de jovens devido a armas de fogo e o Rio de Janeiro abriga
a polícia que mais mata no mundo, há inúmeras denúncias de práticas regulares
de tortura tanto no sistema prisional quanto no sistema sócio-educativo, e cada
vez mais o regime político brasileiro desenvolve e aprimora um projeto
militarizado de segurança pública”80.
As mortes em intervenções policiais são consideradas pelo Estado apenas
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como uma externalidade do trabalho policial e não como uma dimensão central.
Uma prova disso é que, até 1999, os registros oficiais não realizavam uma
contagem de quantas pessoas eram mortas por policiais ou em decorrência de
intervenção policial. “A elevada letalidade policial no Rio de Janeiro não apenas
em termos de qualquer comparação internacional, mas também em relação a
outros estados do Brasil. Dados da Secretaria Nacional de Segurança Pública
mostravam que, no ano 2000, o Rio de Janeiro apresentava a maior taxa de mortes
de civis em intervenções de policiais militares para cada mil policiais, entre todos
os estados considerados”81.

Como afirma Zaccone, “em se tratando de segurança pública, não são os


índices que determinam a política, mas a política que determina os índices. Assim,
os registros estatísticos revelam com maior precisão a atividade da polícia
judiciária do que a atividade criminal”82. Isso é muito relevante para interpretar os
dados colhidos e o que eles realmente significam. Ou seja, eles não espelham uma

79
Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro. Indicadores de Criminalidade.
Diário Oficial. Janeiro a dezembro de 2008.
80
RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA O RELATOR ESPECIAL DAS
NAÇÕES UNIDAS PARA EXECUÇÕES SUMÁRIAS, ARBITRÁRIAS E EXTRAJUDICIAIS.
Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: http://www.iddh.org.br (Acesso em 06/11/2012)
81
RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA O RELATOR ESPECIAL DAS
NAÇÕES UNIDAS PARA EXECUÇÕES SUMÁRIAS, ARBITRÁRIAS E EXTRAJUDICIAIS.
Op. Cit.
82
ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada. Op. Cit. p. 17.
119

sociedade na qual existem mais criminosos negros. Eles demonstram a


seletividade punitiva da atividade judiciária no seu lado mais cruel: a eliminação
da vida.

Primeiramente é importante destacar a categoria da “cifra oculta da


criminalidade”, apontada pela criminóloga Lola Aniyar de Castro, na qual ela
distingue a criminalidade legal, da aparente e real. A criminalidade legal seria
aquela divulgada nas estatísticas oficiais, enquanto a criminalidade aparente é
aquela conhecida pelos órgãos de controle penal, como a polícia e o ministério
público, por exemplo, mesmo que ela não seja demonstrada nas estatísticas. E a
criminalidade real, que é o número de delitos realmente cometidos. “Entre a
criminalidade real e a criminalidade aparente, há uma enorme quantidade de casos
que jamais serão conhecidos pela polícia. Esta diferença é o que se denomina cifra
obscura, cifra negra ou delinquência oculta. A diferença entre a criminalidade real
e a aparente seria, pois, dada pela cifra negra”83. Ou seja, Lola percebeu que as
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próprias estatísticas evidenciam a seletividade operada pelas instituições de


controle social84.

Ao observar os dados demonstrados acima, não se pode concluir que a


maioria dos indivíduos envolvidos em confrontos armados com a polícia seja
negra e, por isso são alvo mais fácil de homicídios. Não necessariamente. Os
negros e pobres são a clientela majoritária das operações letais da polícia
justamente por serem o alvo certo de operações de grande perigo, em que a
preocupação com o risco de vida é menor, por se tratarem de vidas matáveis, sem
que seja cometido um homicídio condenável. As estatísticas não funcionam como
um espelho da atividade criminal, uma vez que um aumento no índice de crimes
cometidos pode representar simplesmente um incremento na atividade
persecutória da polícia, e não que a prática de crimes tenha aumentado.

A violência está tão enraizada no cotidiano do carioca, que o imaginário


social acredita viver numa situação de guerra permanente. No entanto, a

83
CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
84
Augusto Thompson apontou quatro fatores explicativos para esse fenômeno. Apesar de
não ser objeto do presente estudo, vale destacar algumas possíveis razões para a cifra obscura
como um dado elucidativo. São eles: a visibilidade da infração; a adequação do autor ao
estereótipo do criminoso construído pela ideologia hegemônica; a incapacidade do agente em
beneficiar-se da corrupção; e a vulnerabilidade à violência. Para mais informações, ver
THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 1998.
120

identidade do inimigo obedece a critérios geográficos e raciais, que impõe às


camadas mais vulneráveis da população a triste generalização entre pobreza, raça
e crime. Diante do contexto apresentado nota-se o avanço de políticas de
segurança autoritárias como estratégias de controle da vida das classes mais
miseráveis, numa sociedade extremamente desigual como a brasileira. Na cidade
do Rio de Janeiro, as políticas repressivas com a grife tolerância zero chegam a
níveis dramáticos de mortes de civis e uso extremo da força policial.
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4

Considerações Finais

Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
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E não há melhor resposta


que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.
(João Cabral de Melo Neto – Morte e Vida Severina)

O paradigma punitivo que prioriza a segurança da ordem em detrimento da


segurança dos direitos polarizou a sociedade entre potenciais delinquentes e
potenciais vítimas, reproduzindo e fortalecendo a desigualdade social. Trata-se do
plano simbólico da reprodução punitiva, na qual se insere práticas e discursos
reacionários, autoritários e genocidas. O Estado tem demonstrado dividir sua
atuação em dois tipos, nas políticas penais criminalizadoras e políticas sociais
assistenciais, como mecanismos de controle da criminalidade. No segundo tipo, a
assistência decorre não em função do dever de segurança dos cidadãos alijados
122

dos seus direitos, mas sob a ótica de proteção da sociedade contra criminosos
potenciais.

O Estado policial penal, hoje fortalecido nos discursos das autoridades


públicas, serve para controlar as classes marginalizadas, capturar cidadãos
desempregados, submetê-los a um sistema social excludente e impor a aceitação
do lado repressor do poder público. Dessa forma, o sistema se destina as classes
vulneráveis, que não tendo acesso aos serviços públicos básicos para manutenção
de sua dignidade, devem aceitar com resignação sua posição de excluídos, sem
contestar e sem reivindicar.

“Consolidou-se seletivamente uma identificação da criminalidade com a


criminalidade dos baixos estratos sociais, a qual, amalgamada com a ideologia da
periculosidade e dos sujeitos e/ou grupos perigosos, acabou por estabelecer uma
identificação com “a” violência, fazendo este conceito se subsumir integralmente
naquele. Daí resulta que a consolidação dos estereótipos de criminalidade e de
criminosos (perigosos) e do medo e do sentimento de insegurança contra estes,
numa sociedade cada vez mais comandada pelo poder do espetáculo midiático,
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foi um passo”1.

Com o passar do tempo e de sucessivas matérias midiáticas


sensacionalistas, a sociedade vai naturalizando a morte, o cidadão vai perdendo a
capacidade de se chocar e se revoltar contra a violência cotidiana, seja a simbólica
ou aquela que retira vidas diariamente numa suposta guerra sem fim. O cidadão
entorpecido perde a capacidade crítica e aceita o discurso reacionário que lhe é
vendido diariamente pelas fontes oficiais e a mass media. Isto por que, no modelo
oficial de segurança pública existe uma contradição entre o processo exclusivo de
construção da criminalidade e o processo inclusivo de construção social da
cidadania. O modelo oficial é constitutivo da anticidadania, pois é construído em
cima da ideia do bem e do mal, do “cidadão de bem” e do bandido, do amigo e do
inimigo. Ou seja, esse modelo reproduz uma marginalização no campo penal
produzida originariamente no campo social e econômico. É a criminalização da
pobreza, da exclusão social e desemprego. O modelo da ordem aponta um nítido
recorte de classe e raça, no qual a política penal foi gradativamente colonizando a
prevenção e a política social.

1
ANDRADE, Vera Regina P. de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além
da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2013. p. 363.
123

A criminalização das drogas tem sido o principal núcleo responsável pelo


enorme encarceramento de pessoas e das mortes na era da globalização. Uma
guerra de irreversível fracasso político e na qual pagamos um alto preço em vidas
humanas. As duas formas se resumem a técnicas de neutralização de segmentos
sociais. A guerra às drogas, que emoldura o modelo eficientista penal, é a
justificativa perfeita para substituição funcional da guerra fria, na exata medida
em que o traficante funciona como substituto funcional do comunista, o que
permite o êxito da satanização do traficante como principal inimigo da sociedade.

Ao tratar do estado de exceção na contemporaneidade, o presente trabalho


buscou lançar luzes sobre as diversas estratégias de controle social, com fins de
manter a estrutura social que sempre acompanhou a formação do país. Para
manter o modelo de contenção, o poder soberano não encontra limites, reduzindo
a vida de muitos cidadãos a mera vida nua. Os dispositivos biopolíticos
assumiram contornos diversos ao longo da história. Este trabalho se propôs a
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investigar, a partir do período militar, suas permanências no tempo atual, as


estratégias e discursos repressivos assumiram contornos diferenciados ao longo do
tempo, tendo em comum a presença permanente da exceção como fator
constitutivo. Na redução da vida a condição de homo sacer e, a naturalização de
sua morte está o soberano, que pensa seu poder como ilimitado contra os homens
desprovidos de humanidade.

Sobre esse ponto, Agamben observa que a política se reduz a biopolítica, a


qual radicalizada na tanatopolítica vem sendo executada em escalas de extermínio.
Esse sinal de barbárie dos novos tempos tem no estado de exceção seu paradigma
político e a extrema violência como instrumento de execução. As políticas de
segurança repressivas permitem o controle das massas de excluídos, é a
“fascistização do cotidiano”2, como afirma Cecília Coimbra.

Por meio da política de “lei e ordem” implementada no Rio de Janeiro


houve a gradativa naturalização da morte durante operações policiais,
predominantemente entre jovens, negros e moradores de comunidades pobres. A
política do enfretamento direto e constante se tornou a justificativa ideal para o
alto índice de letalidade policial, como demonstrado ao longo do trabalho, visto

2
COIMBRA, Cecilia. Operação Rio: o mito das classes perigosas...Op. Cit.
124

que essas operações ocorrem quase sempre nos espaços geográficos onde seus
moradores são desprovidos de direitos fundamentais. Essa situação é possível
devido a nossa constituição biopolítica material que não assegura a execução dos
direitos positivados formalmente.

Há de fato um sistema penal subterrâneo no qual as polícias matam e


torturam num exercício extralegal de seu poder de força e letalidade. Mas há ao
mesmo tempo polícias que salvam e que assistem nas delegacias e nas ruas e estas
também têm que ser valorizadas, pois é exatamente por esta via que se podem
construir os modelos das chamadas polícias comunitárias e restauradoras, aquelas
condizentes com um real Estado Democrático de Direito.
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