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15/03/2020 A ilusão da Lava Jato, por Rubens Glezer

EDIÇÃO 162 | MARÇO_2020

anais da Justiça

A ILUSÃO DA LAVA JATO


Foi um erro concentrar em operações judiciais toda a luta contra a corrupção
RUBENS GLEZER

O desgoverno da caravana da Lava Jato: o populismo penal é duplamente perverso. De um lado, oferece uma falsa solução ao
problema, ao se concentrar na penalização como saída para a corrupção. De outro, enfraquece a dimensão transformadora
da pauta, que poderia levar a mudanças estruturais CRÉDITO: CAIO BORGES_2020

D
uas vezes Rodrigo Janot, ex-procurador-geral da República, ouviu o
recado. E nas duas vezes ele não compreendeu a recomendação de
que seria difícil manter a Operação Lava Jato como pilar central do
combate à corrupção no Brasil.

“Já sabe quando o senhor vai terminar a investigação?”, indagou a então


deputada italiana Marina Sereni, durante um jantar na Embaixada da
Itália, em 2015. A pergunta era uma forma de alertá-lo de que a Lava Jato
– iniciada no ano anterior – deveria planejar bem o seu próprio
encerramento para evitar que isso fosse feito por uma “mão externa”, na
expressão de Sereni. Quem conta o episódio é o próprio Janot, em uma
passagem de seu livro de memórias, Nada Menos Que Tudo, publicado
no ano passado. “Só hoje consigo entender o alcance daquelas palavras.

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15/03/2020 A ilusão da Lava Jato, por Rubens Glezer

Agora que vejo esse movimento vasto, de múltiplas procedências, para


‘estancar a sangria com o Supremo’, com tudo”, escreveu ele.

Outro recado lhe foi dado – e também não foi bem compreendido – em
2016, durante o seminário Corrupção Sistêmica: Os Controles Falharam?.
Realizado na Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, o evento reuniu o
então procurador-geral e a professora Susan Rose-Ackerman, da
Universidade Yale, autora de diversas obras de referência sobre
corrupção, como Corruption and Government (Corrupção e governo,
ainda não traduzida no Brasil).

Em sua fala, Janot celebrou os números de prisões e delações premiadas


da Lava Jato e disse que a operação tinha importado o melhor da
tecnologia norte-americana de combate à corrupção. Mas Rose-Ackerman
argumentou que, nos Estados Unidos, a experiência demonstrava outra
coisa: que os esforços de prevenção à corrupção geram melhores frutos
do que as operações de repressão. Modificar as regras e os procedimentos
de contratações públicas para torná-las mais transparentes e abertas à
competição, por exemplo, é medida mais eficaz para lidar com problemas
de fraude em licitações do que investigar e punir esses casos. Punir é
importante, é claro, mas controlar todos os desvios em cada uma das
contratações públicas é tarefa quase impossível – daí a importância de
um sistema rigoroso de acompanhamento da implementação daquela
medida.

A professora tentava explicar a Janot que o futuro do combate à


corrupção deveria se apoiar em algo mais trabalhoso e menos glamoroso
do que as grandes operações de acusação e condenação de corruptos:
rever a relação entre o setor público e privado, mapeando áreas
vulneráveis a relações corruptas e projetando soluções que desestimulem
a violação das regras.

Janot, cético quanto à disposição dos políticos para mudar por iniciativa
própria leis e normas que poderiam prejudicá-los, estava convencido de
que o melhor seria puni-los, a ponto de forçá-los a aprovar reformas que
tornassem o ambiente menos corrupto. E outra vez Rose-Ackerman
apontou problemas. Essa estratégia, segundo a professora, poderia até
incentivar certos agentes políticos a promover em suas campanhas o

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discurso da honestidade, mas isso de pouco adiantaria, caso o eleito


tivesse que, mais tarde, formar coalizões com partidos ou setores
desonestos. Por consequência, dificilmente as reformas que visassem
diminuir a corrupção do sistema seriam aprovadas. Nesse regime de
coisas, como se deduz, as práticas políticas acabam sendo
inevitavelmente menos honestas do que o discurso eleitoral.

Quase seis anos depois do início da Operação Lava Jato, interessa voltar a
esses recados transmitidos ao antigo procurador-geral da República. Não
é recomendável que o combate à corrupção tenha exclusivamente por
base grandes operações judiciais de investigação e punição, nem que
essas operações assumam a linha de frente da luta contra os corruptores.
Embora a atuação judicial seja parte relevante, é um erro depositar nela a
confiança prioritária na solução do problema. A via judicial é menos
eficaz que as soluções de prevenção, e as grandes operações – com o
impacto midiático que acarretam – podem, ao longo do tempo, acabar
sendo prejudiciais ao próprio combate à corrupção.

A
s recomendações feitas a Janot remetem à Operação Mãos Limpas,
investigação judicial italiana desencadeada em 1992 que
declaradamente serviu de inspiração à Lava Jato. Como esta, a Mãos
Limpas teve início depois de um mero flagrante. Acabou por expor a
corrupção sistêmica no mundo político italiano e condenando cerca de 1,2
mil pessoas.

O meio político se organizou para desmantelá-la a partir de 1994, com


normas que engessaram a capacidade de investigação e punição dos
corruptos. Um promotor da Mãos Limpas, Piercamillo Davigo, afirmou
(no livro Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas) que a retaliação sofrida
foi tão severa que a questão do combate à corrupção perdeu relevância
nos debates públicos e eleitorais. A operação acabou conduzindo à
sintomática eleição de Silvio Berlusconi ao cargo de primeiro-ministro,
apesar do seu notório envolvimento com práticas suspeitas. Em 2009, o
cientista político Alberto Vannucci, um dos mais famosos especialistas na
operação, apontou em um artigo de título extenso – The Controversial
Legacy of “Mani Pulite”: A Critical Analysis of Italian Corruption and

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Anti-Corruption Policies (O legado controverso da “Mani Pulite”: uma


análise crítica da corrupção italiana e das políticas anticorrupção) – que o
legado da Mãos Limpas foi manter e talvez aumentar o grau de
corrupção no país, bem como ampliar o conflito entre os poderes
políticos e o Judiciário.

O fracasso da Mãos Limpas em lidar com a corrupção era conhecido pelo


então juiz Sergio Moro, que, num texto publicado dez anos antes do
início da Lava Jato – Considerações sobre a Operação Mani Pulite
(publicado em 2004 na Revista CEJ, do Centro de Estudos Judiciários do
Conselho da Justiça Federal) –, defendeu que a operação feita na Itália,
apesar dos defeitos, deveria ser mimetizada no Brasil. Para tanto, seria
preciso se valer dos mesmos instrumentos utilizados por promotores e
juízes italianos: tanto a prisão preventiva como método para estimular
delações premiadas quanto o vazamento para a imprensa de dados da
investigação, a fim de angariar apoio popular para a operação. Isso,
porém, podia, “no máximo, interromper o ciclo ascendente da
corrupção”, pois, na visão do Moro de 2004, o combate principal consistia
em atacar as causas estruturais do problema. Segundo ele, sem reformas
profundas que resolvam problemas relativos à ineficiência da atividade
pública, às relações de clientelismo e à complexidade das regras e
processos, não será possível evitar que, após o fim de uma ampla
investida judicial, “o mercado da corrupção se expanda novamente”.

Por esse motivo é difícil entender tamanho entusiasmo em reproduzir a


Mãos Limpas no Brasil, mesmo não havendo por aqui nenhuma iniciativa
de reforma estrutural no horizonte. Na época em que Moro escreveu esse
artigo, o promotor mais famoso da operação italiana, Antonio Di Pietro,
depois de migrar para a política, foi rapidamente derrubado por
investigações e denúncias de corrupção, que, apesar de contestadas, o
levaram da máxima popularidade ao ostracismo político. Também no
México fracassou o combate à corrupção empreendido pelo governo de
Vicente Fox a partir de 2000, com medidas que contavam com forte apoio
popular. Pouco a pouco, esmoreceu o otimismo trazido por sua eleição –
selando o fim da longa hegemonia do PRI (Partido Revolucionário
Institucional), que ficou 71 anos no poder –, e Fox entregou a Presidência
em 2006 em meio a escândalos.

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U
ma das questões discutidas pelos diferentes autores reunidos no
livro Corruption and Democracy in Brazil (Corrupção e democracia
no Brasil, organizado por Timothy J. Power e Matthew Taylor)
relaciona-se com os problemas causados, no longo prazo, por operações
policiais e judiciais feitas em larga escala e com grande visibilidade.

Um dos problemas é que, com o tempo, tende a diminuir o apoio público


a essas operações, bem como o interesse das pessoas pelo tema da
corrupção. Outro é a tendência de politização dos agentes envolvidos e
da própria agenda de combate à corrupção. Um terceiro problema é que
elas criam nos cidadãos a impressão de que, como se diz, “para acabar
com a corrupção, basta ter muita vontade política”. Na prática, a soma
disso tudo inviabiliza a construção de um caminho institucional sólido
para o combate à corrupção, ou seja, a aprovação de reformas estruturais
e o fortalecimento dos sistemas de prevenção, fiscalização e punição.
Tarefas que dependem também do envolvimento da sociedade civil, que
não pode achar que tudo se resolverá da noite para o dia.

Outra consequência do alongamento excessivo de operações de impacto


como a Lava Jato é fomentar a ilusão de que o Judiciário deixou de ser
apenas uma peça relevante e se tornou o protagonista da luta contra a
corrupção. Pior ainda: é produzir a fantasia de que há verdadeiros
salvadores da pátria entre os agentes da Justiça.

Essa idealização de personagens só pode impactar negativamente o


próprio combate que se trava, como mostram as reflexões dos autores de
Corruption and Democracy in Brazil. Em primeiro lugar, porque
enfraquece a dimensão institucional do problema da corrupção, fazendo
com que a esperança e confiança sejam depositadas em certas pessoas.
Em segundo, porque, ao fomentar a ideia de que essas pessoas bastam
para tudo melhorar, nenhuma mudança é promovida no sistema político.
Em terceiro, porque o acúmulo de exposição e poder em determinados
agentes públicos pode levá-los, por vaidade, ganância ou simples
pressão, a se afastar do estrito cumprimento de seus deveres funcionais.

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Não é possível deixar de lado o debate sobre que futuro – em termos de


carreira, poder e recursos financeiros – seria moralmente adequado aos
membros da Lava Jato. Delegados e promotores ligados à operação que
migraram rapidamente para o setor privado ou foram contratados como
palestrantes passaram a ser questionados a respeito de suas ações terem
como propósito agradar os provedores de alguma fonte adicional de
renda. O próprio ex-juiz Sergio Moro passou a ser interrogado se não
teria, na condução da Lava Jato, feito cálculos políticos com vistas a obter
futuros benefícios. Cada um pode dar a resposta que quiser a essas
perguntas, mas a própria dúvida, por si só, demonstra o potencial de
politização que acompanha todo o processo.

A crença de que a salvação do país virá por meio de agentes “técnicos”


concursados drena os esforços políticos de fiscalização e correção da
classe política, a qual se tem a sensação de que é possível “dispensar” em
favor de corajosos tecnocratas. Esse movimento induz ao seguinte
paradoxo: ao confiar nesses tecnocratas para controlar o sistema político,
acaba-se criando incentivos para a politização deles e para o seu ingresso
na política, em detrimento do exercício da função técnica. E, quando a
técnica se torna um trampolim para a política, ela perde a legitimidade e
a razão de ser.

No longo prazo, essa politização tende a ser fatal para a reputação do


Judiciário e do Ministério Público, que dependem primordialmente da
percepção de que seus agentes atuam movidos por razões não políticas (e
muito menos partidárias), uma vez que sua função é cumprir
rigorosamente o direito.

Além disso, a politização da pauta da corrupção estimula o discurso


populista, que promete combatê-la com soluções rápidas e fáceis. Grupos
oportunistas tendem a ganhar espaço e poder ao propagarem que são
capazes de resolver a corrupção. E não há área mais ao alcance de
populistas que o direito penal: criar novos crimes, aumentar penas ou
promover medidas de endurecimento do sistema contra corruptos. O
acesso é fácil porque as medidas não custam caro aos cofres públicos e o
retorno é eficaz, pois os cidadãos, em seu clamor por justiça, se sentem
em parte atendidos por elas.

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O populismo penal é duplamente perverso. De um lado, oferece uma


falsa solução ao problema ao se concentrar na penalização como saída
para a corrupção. De outro, enfraquece a dimensão transformadora da
pauta, que poderia levar a mudanças estruturais. Criminalizar é desistir
da regulação, é abrir mão do trabalho de criar a engenharia institucional
capaz de asfixiar a corrupção. A politização da pauta da corrupção faz
também com que fique atrelada às disputas partidárias de ocasião e
reduz o espaço para os debates técnicos necessários para lidar com um
problema tão complexo.

O pacote anticrime ilustra bem o argumento. O projeto de lei elaborado


sob os cuidados de Sergio Moro, ministro da Justiça e Segurança Pública,
transformou-se, após alterações no Congresso, na lei nº 13964, sancionada
pelo presidente em 24 de dezembro último. É uma lei, diga-se de
passagem, dedicada integralmente ao sistema de punição,
negligenciando a dimensão preventiva. Dentre as suas inovações, a mais
polêmica diz respeito à criação da figura do juiz das garantias – que
deverá cuidar das atividades de investigação e coleta de provas, mas não
julgará. Como não fazia parte do projeto original de Moro, a novidade
passou a ser criticada publicamente por ele, e discussões sobre supostos
ataques à Lava Jato se sobrepuseram a uma análise mais séria a respeito
das implicações técnicas e jurídicas dessa recém-criada figura do direito
no país. Pouco importou, inclusive, que os primeiros debates sobre a
relevância desse juiz das garantias para o sistema penal brasileiro sejam
bem anteriores à própria Lava Jato. Em São Paulo, desde 1985, foram
instituídos juízes dedicados exclusivamente ao controle da investigação,
que não julgam os casos criminais. E, desde 1990, os tribunais superiores
foram autorizados a ter em seus quadros “juízes instrutores” ligados aos
ministros. O próprio Sergio Moro exerceu a função de juiz instrutor no
STF, ligado à ministra Rosa Weber, durante o julgamento do mensalão,
em 2012.

A
politização da Lava Jato foi tão avassaladora que quase todo debate
legislativo e judicial sobre direito penal nos últimos anos passou a
ser discutido como algo “a favor” ou “contra” a operação
deslanchada em Curitiba – e nem mesmo delegados, promotores e

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magistrados que nela atuaram deixaram de participar da discussão


pública.

Essa politização nubla o debate sobre os reais problemas de fundo e mina


a reputação das demais instituições envolvidas, como o Supremo
Tribunal Federal. O STF passou de suposto apoiador da Lava Jato, entre
2015 e 2017, a instituição suspeita de não apoiar a causa anticorrupção,
em 2018, e, finalmente, a tribunal que desfere golpes fatais contra a
operação, em 2019.

Esses golpes foram três. O primeiro foi a decisão de que as investigações


e os processos envolvendo crimes eleitorais não poderiam ser conduzidos
pela Justiça Federal, mas apenas pela Justiça Eleitoral. Com isso, tirou da
Lava Jato todos os principais investigados políticos (já que quase todos
estavam envolvidos com caixa dois, que é um delito eleitoral). O
segundo: a determinação de que réus delatados devem apresentar
alegações finais depois dos réus delatores – o que pode vir a anular
algumas sentenças da Lava Jato. O terceiro: a declaração de
inconstitucionalidade da prisão em segunda instância – uma reversão do
posicionamento tomado pelo STF em 2016, no auge da operação.

Aos olhos dos membros da força-tarefa da Lava Jato, todas essas decisões
representam “retrocessos” ou “ataques” à operação. Eles agem como se
ignorassem que o Supremo apenas aplicou regras e princípios
elementares do direito penal à análise dos casos e que tais decisões
poderiam ser revertidas, caso o Congresso Nacional aprovasse
modificações nas leis de processo penal. Em outras palavras, especular
que o STF esteja atacando a Lava Jato é um modo de desviar a atenção do
fato de que os próprios juízes e promotores da operação ignoraram as
interpretações clássicas do direito durante os processos, pois resolveram
correr riscos, confiando na popularidade de sua causa.

A bem da verdade, é importante reconhecer que o próprio STF pode ser


considerado culpado por fomentar a narrativa que fala de ataques e
golpes à Lava Jato. O STF implodiu a possibilidade de ser qualificado
como instituição que simplesmente segue a lei. O notório individualismo
dos seus membros, que os leva a mudar de posição conforme o ministro
sorteado para decidir, dissemina a impressão de que tais decisões variam

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conforme a opinião política – e não por razões técnicas. Mesmo quando o


tribunal agiu coletivamente chancelando a bandeira “lavajatista” (entre
2015 e 2017), ele o fez por meio de decisões heterodoxas e inusitadas,
dificilmente justificáveis pela interpretação do direito, pois largamente
distanciadas do conteúdo das leis e das convenções jurídicas. São casos
exemplares dessa época a prisão do ex-senador Delcídio do Amaral (que
se deu fora dos casos explicitamente previstos na Constituição) e a
suspensão do mandato do ex-deputado Eduardo Cunha (uma
interferência judicial em mandato eleitoral que ninguém considerava
possível após a Constituição de 1988).

Se a interpretação do direito é submetida à conjuntura, ela pode muito


bem ser percebida como política. Ou seja, abre-se a possibilidade de
perguntar ao STF por que os ministros estariam seguindo a lei agora e
por que optaram por não fazê-lo em outras ocasiões. Essa é uma acusação
justa, mas não é suficiente para entender os problemas na atuação do STF
entre 2015 e 2019. Problemas que se devem não tanto ao ativismo ou à
politização, mas a algo que chamo de “catimba constitucional”. Tenho
usado a expressão para explicar este tipo específico de conduta
defensável dos ministros, que (sem violar a lei) parecem praticá-la contra
os valores que deveriam guiar a ação de um magistrado. É uma falta de
fair play da parte dos ministros, que mina a legitimidade da sua ação.

A
história de ascensão e queda da confiança dos cidadãos no STF é
ilustrativa de como a politização pode alavancar o poder ou destruir
a capacidade de atuação de uma instituição de controle. Quando os
debates técnicos passam a ser totalmente subordinados aos interesses
conjunturais da política, a solução de problemas reais fica prejudicada. É
por isso que a politização de operações como a Lava Jato pode ao longo
do tempo atrapalhar o movimento do combate à corrupção.

Desde a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, em abril de 2018, não houve
mais nenhum dia espetacular na série de ações de mandados de busca e
apreensão, delações premiadas e prisões da Lava Jato. Apesar disso, a
operação continua. E, como não planejou seu próprio encerramento, vai
definhando aos poucos, em meio ao desgaste provocado por sua

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profunda politização. Como sua rotina na vida brasileira é apenas uma


sombra do que já foi, talvez já se possa pensar em qual será seu legado.

Seus protagonistas sempre pareceram cegos à primazia que se deve dar


ao esforço de prevenção à corrupção, bem como aos riscos da politização
longa e midiática. Sobre tudo isso havia evidências de sobra na
experiência internacional e na literatura. Como explicar a insistência de
Sergio Moro e companheiros em escolher o caminho que tomaram, com
tantos riscos e prejuízos?

Há fatores comuns à formação e atuação dos juristas brasileiros que


podem explicar essa cegueira. Em geral, os juristas são formados para
lidar habilmente com processos, mas não para se envolver em demasia
com problemas de desenho institucional e engenharia regulatória. Assim
como para um martelo todo obstáculo é um prego, para o jurista os
problemas da sociedade são resolvidos pelo Judiciário. Nesse sentido, é
natural que qualquer juiz comprometido com a ideia do combate à
corrupção se sinta estimulado a fazê-lo pela via judicial.

Porém, há algo de muito específico nessa cegueira: a intensa exposição


pública e politização da Lava Jato e de seus membros. A partir do
momento em que um imenso número de pessoas diz que você está
fazendo a coisa mais importante para o país, é difícil acreditar no
contrário. É como se a Lava Jato fosse um caminhão que, a partir de certa
velocidade, não tem como mudar de rumo ou parar sem capotar.

Apesar disso, não se pode pôr de lado os méritos da operação, que, de


maneira inédita, tornou possível punir membros da elite política e
financeira por agirem fora da lei. É um avanço significativo, tanto mais
em um país onde a Justiça reserva a punição sobretudo aos mais
desfavorecidos. Outro mérito da operação foi desestabilizar pactos
delinquentes que faziam parte da nossa rotina política.

Acredito que, no panorama geral da história, a Lava Jato precisará ser


compreendida como um tipo de curto-circuito ocorrido nos sistemas
político e judicial do país. E não há nisso nenhuma conotação pejorativa.
É um curto-circuito porque, em razão de seu potencial desestabilizador,
não tem como ser incorporada ao funcionamento ordinário desses

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sistemas. Mas a operação também revelou defeitos estruturais da vida


política brasileira que foram negligenciados – e nos impele a corrigi-los,
sob pena de ocorrer uma pane geral. Ela colocou na mesa temas que
simplesmente não podem mais ser deixados de lado e que dizem respeito
ao financiamento eleitoral, ao sistema de contratações públicas, ao
modelo de prerrogativas, independência e imparcialidade do Ministério
Público e do Judiciário.

A Lava Jato forneceu aos brasileiros uma espécie de ilusão: de que levaria
o país rumo a um futuro sem corrupção, no qual reinaria a completa
honestidade política. A realidade, entretanto, além de mais complexa, é
também decepcionante. Após tantos anos de notícias bombásticas, de
discussões acaloradas, nada parece ter mudado radicalmente no Brasil:
não parecemos estar em novo patamar em relação à corrupção.

Se durante a Presidência de Lula ocorreu o mensalão do PT e uma série


de desvios revelados pela Lava Jato, também foi durante o governo dele
que uma autonomia sem precedentes foi dada a órgãos de investigação,
como o Ministério Público Federal e a Polícia Federal. Essa autonomia
gerou condições para o desenvolvimento da própria Lava Jato. Jair
Bolsonaro, por seu lado, tenta evitar ao máximo o “toma lá, dá cá”
partidário, mas mantém próximo de si familiares e subalternos suspeitos
de envolvimento com a milícia e desvios de verba pública. Talvez seja
esse o motivo por que o Brasil caiu de posição no ranking de percepção
da corrupção, realizado pela Transparência Internacional, em que
atualmente ocupa a 106ª posição entre 180 países avaliados. Tendo em
vista tudo que a Lava Jato prometeu, mesmo a vitória do antipetismo na
eleição presidencial de 2018 parece hoje uma conquista pequena. Imagino
que poucos “lavajatistas” se atrevam a confessar que suspeitam ter
pagado um preço alto demais ao promoverem a vitória de Bolsonaro. E
tudo indica que 2022 não lhes trará qualquer redenção, exceto se Moro
concorrer à Presidência – e for eleito.

A
Lava Jato não produziu a superação dos problemas de corrupção no
país. O seu principal legado é outro: demonstrar de maneira
escancarada a precariedade e fragilidade de nossas instituições. Não

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é uma lição fácil de digerir, e na verdade pode ser devastadora, como


todo momento de autoconhecimento.

A grande porção de otimistas de ontem pode vir a constituir uma


população de céticos no futuro – céticos em relação à Justiça, à
democracia e à nossa comunidade política como um todo. A decepção
coletiva e a sensação de fragilidade do sistema estão longe de serem
inofensivas, pois a crença na qualidade da democracia e a confiança nas
instituições são pré-requisitos para a estabilidade do regime. Uma
democracia que não conta com a confiança ou a estima da maioria da
população está por um fio, vulnerável aos ímpetos de um tirano
qualquer. O tempo dirá se o curto-circuito da Lava Jato foi fatal para o
nosso sistema político ou se ofereceu aos brasileiros a oportunidade para
repará-lo de suas falhas mais graves. A herança da Lava Jato ainda está
por ser construída.

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