Вы находитесь на странице: 1из 33

1

1. OS DESAFIOS E AS PERSPECTIVAS NA CONSTRUÇÃO DO MARCO


CONCEITUAL DA VULNERABILIDADE

“A filosofia é um terreno de resistência que se pergunta


não para que serve uma determinada teoria, mas qual a
sua verdade.”

(Leandro Konder)

a injustiça social ainda precisa ser denunciada e


combatida. O mundo não ficará melhor por conta
própria.” 1

1.1 Considerações iniciais


Toda concepção de uma Tese envolve numerosos de desafios. A nosso ver, um dos
mais difíceis a ser enfrentado neste estudo consiste em se trabalhar com conceitos que buscam
expressar fenômenos multidimensionais como é esse o caso da vulnerabilidade social, do qual
pretendemos nos ocupar neste capítulo inicial do nosso trabalho. Vulnerabilidade social é
ainda um conceito em construção na grande área das ciências sociais, e essa característica
instigante sobressai no âmbito da própria sociologia, que se esforça por imprimir razoável
rigor às categorias explicativas e nas definições que elabora. Nestes tempos de globalização
excludente e de fragilização das instituições (notadamente, as políticas e as jurídicas),
precisamos mais do que nunca do conhecimento que as ciências sociais nos fornecem. Em
suma, compreender-nos no contexto da contemporaneidade significa ter certo domínio sobre
as condições existenciais e as relações atuais que a vulnerabilidade social afeta, sem o que não
há esperança alguma na efetiva igualdade de direitos para dar forma ao futuro.
O tema da vulnerabilidade social caracteriza-se por um complexo campo conceitual,
constituído por diferentes concepções, critérios e também dimensões que podem se voltar para
o enfoque econômico, ambiental, de saúde, de direitos, entre tantos outros. Apesar de essa
temática venha sendo trabalhada ao longo de anos, principalmente no século passado, cabe
salientar que ela consiste em um conceito ainda em construção, tendo em vista sua magnitude
e complexidade, inclusive pela comunidade internacional no âmbito dos direitos humanos,
como desenvolveremos posteriormente. A discussão sobre o tema da vulnerabilidade social
não é nova, uma vez que essa terminologia vem sendo usualmente aplicada por renomados

1
HOBSBAWM, Eric. Entrevista a Geneton Moraes Neto, gravada em Londres, em 1995. Dossiê geral: o blog
das confissões. Disponível em:<http://g1.globo.com/platb/geneton/2012/10/01/eric-hobsbawm-pecado-capital-
do-capitalismo-e-injustica-social-pecado-capital-do-socialismo-foi-a-falta-de-liberdade-mas-ainda-ha-um-vasto-
espaco-para-o-sonho/>. Acesso em: 15 nov. 2012.  
2

cientistas sociais de diferentes áreas de disciplinas há bastante tempo, como podemos


destacar: Moser2; Kaztman3; Vignoli4; Busso5; Villa6; Abramovay7, entre outros.
Nesse debate, é importante registrar que a Declaração da Assembleia Geral das Nações
Unidas de 1992 sobre direitos de minorias já enunciava uma definição, referindo-se a
“persons belonging to national or ethinic, religious and linguistic minorities” (pessoas
pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, religiosas ou linguísticas), entretanto, sem
esclarecer quem seriam essas pessoas pertencentes a uma nacionalidade ou minoria étnica e
linguística. Dessa forma, pouco se explicou na Declaração da ONU de 1992.
Assim, pretendemos enfrentar este primeiro desafio ao buscarmos a compreensão do
marco conceitual da vulnerabilidade social.

1.2 OS ESFORÇOS PRINCIPAIS RUMO A UMA CATEGORIZAÇÃO RIGOROSA


DO FENÔMENO DE VULNERABILIDADE
A vulnerabilidade social apresenta-se como uma qualidade heterogênea, requerendo
um empenho básico de compreendê-la pelo entrecruzamento de seus fatores multicausais.
Estes abrangem desde uma má distribuição de renda, a inefetividade de acesso aos direitos –
em particular, os sociais – que as políticas públicas não conseguem alcançar ou ultrapassar de
modo mesmo que parcial, até a degradação ambiental. A omissão do Estado tem um peso
considerável nesse quadro de fatores.
O trabalho de Moser8, que ganhou destaque no conjunto de estudos visando a
contribuição de uma definição analítica teórico-conceitual, procura enfrentar o tema através
da relação entre disponibilidade dos recursos materiais e simbólicos dos atores sociais e o
acesso a estrutura de oportunidades do meio em que vivem. A defasagem observável torna-se
um entrave à ascensão social desses mesmos atores.

2
MOSER, C. The asset vulnerability framework: reassessing urban poverty reduction strategies.
Washington D.C: World Bank, 1998.
3
KATZMAN, R. Vulnerabilidade, activos y exclusión social en Argentina y Uruguay. Santiago de Chile:
OIT – Ford, 1999.
4
VIGNOLI, J. R. Vulnerabilidade demográfica en América Latina: ¿Qué hay de nuevo? Seminário
Vulnerabilidade, CEPAL, Santiago de Chile, 2001.
5
BUSSO, G. La vulnerabilidade social y las políticas sociales a inicios del siglo XXV: una aproximación para
los países latinoamericanos. Santiago: CEPAL, 2001.
6

7
ABRAMOVAY, M.; CASTRO, M. G.; PINHEIRO, L. C.; LIMA, F.S. e MARTINELLI, C. C. Juventude,
Violência e Vulnerabilidade Social na América Latina: Desafios para Políticas Públicas. Brasília,
UNESCO, 2002.
8
MOSER, C. The asset vulnerability framework: reassessing urban poverty reduction strategies.
Washington D.C: World Bank, 1998.
3

Segundo Miriam Abramovay, o conceito de vulnerabilidade social vem sendo


discutido em diversas áreas de atuação, mas a que se adota como parâmetro do marco
conceitual, conforme ela se refere, é a do seminário sobre Vulnerabilidade promovido em
2001 pelo CEPAL. Nesse sentido, segundo sustentam, com base em autores, tais como:
Vignoli, 2001;9 Arriagada, 2001, Filgueira, 2001, entre outros: o conceito de vulnerabilidade
elaborado foi a partir de diversas unidades de análise – indivíduos, domicílios e comunidades
–, além de recomendar que se identifiquem cenários e contextos de debilidades, ou
fragilidades, sugerindo [...] “olhares para múltiplos planos, e, em particular, para estruturas
sociais vulnerabilizantes ou condicionamentos de vulnerabilidades”, que, em verdade, devem
se distinguir do conceito de exclusão. Por outro lado, esses mesmos autores abordam a
relevância de uma análise dialogal e dialética para ser considerada no conceito de
vulnerabilidade social, referindo-se tanto ao plano negativo, a obstáculos para as
comunidades, famílias e indivíduos — riscos —, quanto ao positivo, considerando
possibilidades, ou a importância de se identificar “recursos mobilizáveis nas estratégias das
comunidades, famílias e indivíduos” no sentido de tentar desconstruir sentidos únicos e
identificar potencialidades de acionar atores e atrizes para resistir e enfrentar situações
socialmente negativas”. 10
As conceituações precedentemente destacadas, que necessitam de aprimoramentos ou
ampliação, têm correspondência com a definição proposta pela Organização das Nações
Unidas para Educação, a Ciência e Cultura (UNESCO). De acordo com essa entidade,
vulnerabilidade social é um resultado negativo da relação entre disponibilidade dos recursos
materiais ou simbólicos dos atores – sejam esses indivíduos ou grupos -, e o acesso à estrutura
de oportunidades sociais, econômicas e culturais que provêm do Estado, do mercado e da
sociedade. Tal definição também ressalta que a vulnerabilidade social, embora abranja
situações de pobreza, não se limita a ela, incluindo até a degradação ambiental.
As imprecisões ou dificuldades que é possível reconhecer no tratamento dispensado ao
conceito de vulnerabilidade social não constituíram impedimento para a elaboração de

9
No seminário sobre Vulnerabilidade promovido em 2001 pelo CEPAL, Vignoli sustenta o ponto de vista
segundo o qual está constitui a falta de acesso às estruturas de oportunidade oferecida pelo mercado, Estado ou
sociedade, sublinhando a carência de atributos necessários ao aproveitamento efetivo da estrutura de
oportunidades existentes.
10
Cf, ABRAMOVAY, Miriam. Segundo a autora: “Haveria, portanto, uma “vulnerabilidade positiva”, quando se
aprende pelo vivido a tecer formas de resistências, formas de lidar com os riscos e obstáculos de forma criativa.
Seria, portanto, o conceito constituinte desse plano de vulnerabilidade (a vulnerabilidade positiva) subsidiário
dos debates de Bourdieu (2001, original publicado em 1989) sobre capital cultural, social e simbólico, ou seja, o
que se adquire por “relações de comunicação”, tomando-se consciência de violências simbólicas, do que aparece
como arbitrário. É quando as vulnerabilidades vividas trazem a semente positiva de “um poder simbólico de
subversão” (Bourdieu, 2001: 15).
4

instrumentos que objetivam mensurar a vulnerabilidade. Essa é a posição de Schumann 11 para


quem é preciso, senão incontornável, pensarmos indicadores gerais que levem em
consideração as variações quantitativas e qualitativas da vulnerabilidade capazes de medir a
intensidade e o aspecto mais destacado de determinados grupos vulneráveis em exame a
exemplo do trabalho precário e informal, hoje crescente em nosso país.
É importante assinalar que Schumann12 reconhece cerca de duas dezenas de índices
vulnerabilidade, diferenciados por esse pesquisador sob as seguintes perspectivas: condição
de saúde, condições climáticas, da própria família enquanto coletivo valorização como fonte
de estabilidade e segurança), do curso da vida, de um território e espaços geográficos
específicos e socioambiental.
Cançado, Souza e Cardoso13 constataram que instituições como a Fundação Sistema
Estadual de Análise de Dados e Estatísticas (SEADE), responsável pela elaboração do Índice
Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS), privilegiou a noção de vulnerabilidade social pela
relação ativos / vulnerabilidade / estrutura de oportunidades; argumenta-se, com todo o vigor,
que essa conexão tem sido acolhido para a construção de indicadores sociais mais amplos, que
não se limitam a uma dada linha de pobreza mais específica . Com vistas ao desenvolvimento
do referido IPVS, a vulnerabilidade foi pensada como uma noção multidimensional, na
medida em que afeta indivíduos, grupos e comunidades em planos distintos de seu bem-estar,
de diferentes formas e intensidade14.
Mas é necessário aqui mencionar o questionamento proposto por Katzman15. Este
comprova que avaliações fundadas unicamente na relação entre ativos a exemplo da
qualificação profissional e vulnerabilidade são incompletas, uma vez que as referidas
estruturas de oportunidades não se apresentam como uma constante. Katzman defende como
alternativa incorporar a noção de mobilidade de estrutura com o objetivo de repensar a
dificuldade vivenciada por certos grupos sociais para vencer situações de vulnerabilidade,
conquanto disponham de vários ativos. É necessário, portanto, tornar em consideração
11
SCHUMAN N, L. R. M. A multidimensionalidade da construção teórica da vulnerabilidade: análise
histórico – conceitual e uma proposta de índice sintético. 2014. 165 f. Dissertação (Mestrado em
Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional) – Centro de Estudos Avançados e Multisciplinares,
Universidade de Brasília, Brasília, 2014.
12
Ibidem.
13
CANÇADO, Taynara Candido Lopes; SOUZA, Rayssa Silva de; CARDOSO, Cauan Braga da Silva.
Trabalhando o conceito de vulnerabilidade social. Trabalho apresentado no XIX Encontro Nacional de
Estudos Populacionais [População, Governança e Bem-Estar], ABEP, realizado em São Paulo/SP, de 24 a 28
de novembro de 2014.
14
SEADE, Sistema Estadual de Análise de Dados. Índice de Vulnerabilidade Juvenil – IV 2000(Distrito do
Município de São Paulo). Disponível em:<http:www.seade.gov.br/produtos/ivj/>. Acesso em: 14 set. 2019.
15
KATZMAN, R. Vulnerabilidade, activos y exclusión social en Argentina y Uruguay. Santiago de Chile:
OIT – Ford, 1999.
5

aspectos qualitativos da oferta de oportunidade (não nos restringindo aos quantitativos), bem
como uma perspectiva histórica, dinâmica e estrutural na investigação sobre a vulnerabilidade
que se intenta realizar.

1.3 MINORIAS E GRUPOS VULNERÁVEIS


Assinala-se que há uma tendência a minimizar o debate sobre a categorização rigorosa
da vulnerabilidade social enquanto fenômeno em proveito da identificação dos grupos
vulneráveis e de minorias. Entretanto, destaca-se a importância da análise desses dois
conceitos: minorias e grupos vulneráveis na medida em que nos diversos estudos dessas
terminologias têm sido empregados, muitas vezes, como sinônimos, não havendo muita
precisão na conceituação dos dois institutos.16 Confome elucida Gabi Wucher há uma
dificuldade em se estabelecer um conceito universal de minoria, porquanto:

Os problemas de definição devem ser visto na considerável diversidade de


‘minorias’ e seus respectivos contextos, no mundo inteiro: como não existem dois
contextos idênticos, envolvendo minorias em diferentes Estados, cada minoria,
assim como a situação em que se encontra, têm suas próprias características,
diferenciando-se, em maior ou menor grau, de contextos minoritários de outros
Estados. E, no âmbito dos debates travados acerca dessa questão, as opiniões
divergentes a respeito do que é uma minoria, muita vezes refletem tanto as
respectivas problemáticas dos diferentes contextos minoritários em muitas partes do
mundo quanto os diferentes pontos de vista de Estados e governos17.

Dessa forma, apesar de haver distinção entre minorias e grupos vulneráveis, estes
vocábulos são comumente utilizados como sinônimos, entretanto não o são, trata-se de
institutos diversos. Os especialista do estudo, a exemplo, Élida Séguin, preferem não se ater à
diferenciação existente, na justificativa de que ambos sofrem discriminação e são vítimas da
intolerância, merecendo o amparo estatal e, portanto, não havendo necessidade de
compreendê-los separadamente18. Entretanto, tal distinção é importante para a devida
compreensão do tema, porquanto este se revela entrelaçado em uma delicada situação de
desigualdades, devendo, portanto, ser tratado com uma extrema cautela a fim de podermos
entender as extensões de cada um dos institutos e, por conseguinte, trilharmos um caminho
que enfrente a totalidade do marco conceitual da vulnerabilidade.

1.3.1 Minorias

(ANJOS FILHO, 2010, p. 342).


16

17
WUCHER, Gabi. Minorias proteção internacional em prol da democracia, 1ª ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2000. p. 44.
18
(Séguin, p. 12, 2002
6

A expressão minoria no sentido de reconhecimento de direitos vem sendo muito


debatido na atualidade devido a sua imprecisão conceitual. A origem da compreensão sobre o
tema pode-se ser atribuída ao âmbito internacional, após a segunda guerra mundial, com a
Declaração Universal dos Direitos Humanos das Organizações das Nações Unidas – ONU –
em 194819 a qual não constou nenhuma menção expressa sobre esse tipo de direitos. Existem
quatro delimitações temporais a serem destacadas, em que se procurou identificar minorias
por critérios diversos: o primeiro, em 1949, adotou-se como parâmetro a forma de surgimento
das minorias; em 1952, ao se estabelecerem os fatores que as caracterizassem; em 1977, a
partir dos estudos de Francesco Capotorti, para a Subcomissão para a Prevenção e Proteção
das Minorias, das Nações Unidas, que ressalta o elemento subjetivo e afasta o caráter
numérico; e, finalmente, 1993, quando foi aprovada a Declaração sobre os Direitos das
Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas ou Linguísticas. 20
Como se pôde observar, a assimilação do conceito de minorias não alcançou uma
definição universal, inclusive a ONU não instituiu um conceito fechado. Francesco Capotorti,
em 1977, membro especial da sub-comissão da ONU, apresentou uma definição que ficou
sendo a base para a formulação conceitual, ao especificar que minoria é um grupo
numericamente inferior ao resto da população de um Estado, em posição não dominante cujos
membros – sendo nacionais desse Estado – possuem características étnicas, religiosas ou
linguísticas diferentes da do resto da população e demonstre, pelo menos de maneira
implícita, um sentido de solidariedade, dirigido à preservação de sua cultura, de suas
tradições, religião ou língua.21

19
Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948: dispõe que “toda pessoa tem capacidade para gozar
os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor,
sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
qualquer outra condição”, assim estabelecendo a igualdade formal e os direitos fundamentais para todas as
pessoas.
20
Embora sejam feitos esses registros, devemos esclarecer que a Convenção para a Prevenção e a Repressão do
Crime de Genocídio, de 1948 e a Convenção da UNESCO para Eliminação da Discriminação na Educação, de
1960 também chegaram a cuidar do tema. Apesar de não citarem diretamente a proteção das minorias ou
direitos a grupos minoritários, entende-se que, historicamente, foram eles os mais afetados por ações de
extermínio e genocídio. Assim, as referidas Convenções representaram um grande avanço na proteção dessas
populações. A partir daí, o grande salto foi dado em 1966 com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos, em que se estabeleceu a proteção das minorias étnicas, lingüísticas e religiosas. A Assembleia Geral
das Nações Unidas já em 1992, inspirada nas disposições do Artigo 27 do Pacto Internacional dos Direitos
Civis adotou a Declaração sobre os Direitos de Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas,
Religiosas e Linguísticas. reafirmando que um dos seus propósitos básicos é o desenvolvimento e o estímulo ao
respeito aos direitos humanos e das liberdades fundamentais de todos. Entretanto, também pouco se explicou
nessa Declaração de 1992.
21
CAPOTORTI, F. Study on the rights of persons belonging to ethnic, religious, and linguistic minorities. New
York; United Nations, 1979, E/CN4/SUB2/384/REV 1, UN Sales No E91XIV2 at 96. (CAPOTORTI, 1977, p.26
7

Destaca Capotorti a existência de dois tipos de critérios para definir as minorias. Em


primeiro, os critérios objetivos, que compreendem: a existência, no interior da população de
um Estado, de um grupo de pessoas com características étnicas, religiosas ou linguísticas
diferentes ou distintas do resto da população; a diferença numérica do grupo minoritário em
relação ao resto da população; a posição não dominante desse grupo minoritário. E o critério
subjetivo, que abrange: o desejo das minorias de preservarem os elementos particulares que os
caracterizam, ou seja, a vontade comum de todo o grupo de conservar sua distinta identidade
cultural. 22
Contudo, devemos chamar a atenção para o fato de que certas minorias são maiorias
numéricas, como acontecia na África do Sul no tempo do apartheid, em relação à população
negra. Nesse sentido, o critério objetivo numérico pode ser insuficiente para determinar o
conceito de minoria, sendo a exclusão social e a falta de participação nas decisões políticas
dos grupos minoritários, o melhor critério objetivo de sua definição.23 Estes elementos foram
adotados por Francesco Capotorti, em sua obra Study on the Rights of Persons Belonging to
Ethnic, Religious and Linguistic Minoritie 24.
No Brasil e em outros países criou-se uma hierarquia simbólica, cuja imagem
predominante aceita é o homem branco ocidental, cristão heterossexual como sua referência.
A mulher, o negro, o “oriental” (ou todo aquele que não descenda de europeus), que professe
outra ou nenhuma crença e o homossexual seriam, assim, considerados “minorias”. Eles
acabam sendo alijados da participação na sociedade por pertencerem a uma determinada
classe, religião ou raça e, em alguns casos, todos estes fatores podem ser considerados. A
discrinimação por gênero e por orientação sexual perpassa todos os grupos minoritários. Por
estas razões, adotamos a seguinte definição: minoria se revela, pois, como uma expressão
resultante de uma dominação contra a qual a classe dominante se insurge. Em suma, as
minorias podem ser entendidas como um “grupo de pessoas que, em virtude das suas
características físicas ou culturais, são separadas de outras na sociedade em que vivem, por
um tratamento diferencial e desigual e se consideram objeto de discriminação coletiva” 25

1.3.2 Grupos vulneráveis

22
Ibidem. Nesse sentido, AKERMAN define minoria “como um grupo institucionalizado e não dominante que
compartilha uma distinta identidade cultural que deseja preservar”. (1996, p. 96).
23
WUCHER, Gabi. Minorias. Proteção Internacional em prol da democracia. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2000, p. 46.
24
CAPOTORTI, F. Study on the rights of persons belonging to ethnic, religious, and linguistic minorities. New
York; United Nations, 1979, E/CN4/SUB2/384/REV 1, UN Sales No E91XIV2 at 96.
25
WIRTH, 1945, p. 347).
8

Os grupos vulneráveis constituem um continente humano expressivo (em termos


numéricos bem entendidos), que podemos concetiuar como sendo um conjunto de pessoas
ligadas por ocorrências fáticas de caráter provisório, que se mantêm no interesse em
permanecer unidas em grupo, apesar de não possuir uma identidade, cuja característica
principal é a de ter seus direitos violados e, de certa forma, até de serem invisíveis aos olhos
da sociedade e do poder público. Entretanto, a particularidade que ressurge fundamental é que
“temos um indivíduo singularmente considerado que sequer tem a consciência de que é
discriminado e de que tem direitos violados, a exemplo dos idosos, mulheres, crianças, dos
afrodescendentes, entre outros.”26
Por outro lado, apesar da relevância da distinção entre minoria e grupos vulneráveis,
há autores que entendem, a exemplo de Ana Carolina Dias e Brani e Nilton Marcelo de
Camargo “que grupos vulneráveis compõem um gênero, do qual as minorias e os grupos
27
vulneráveis específicos ou singulares são espécies.” Também, Elida Séguin, procura
salientar os atributos fundamentais dos grupos vulneráveis – são destituídos de poder e
costumam (à semelhança das minorias) sofrer discriminação e serem vítimas da intolerância,
enfrentando uma privação de direitos; conforme ela nos esclarece:

Existe certa confusão entre minorias e grupos vulneráveis. As primeiras seriam


caracterizadas por ocupar uma posição de não-dominância no país onde vivem. Os
grupos vulneráveis podem se constituir num grande contingente numericamente
falando como as mulheres, criança e idosos. Para alguns são grupos vulneráveis,
posto destituídos de poder, mas guardam a cidadania e demais elementos que
poderiam transformá-los em minoria.

[...] Outro aspecto interessante de grupos vulneráveis é com certa frequência eles
não têm sequer noção [de] que estão sendo vítimas de discriminação ou [de] que
seus direitos estão sendo desrespeitados: eles não sabem sequer que têm direitos. 28
(SÉGUIN, 2002, p. 12).

Após essa breve contextualização, podemos em apertada síntese definir que os grupos
vulneráveis, diante das suas particularidades, estão submetidos a uma situação de
subalternização e exclusão social, o que implica em maior suscetibilidade para negação e
violações dos seus direitos. Dessa forma, os grupos vulneráveis se mostram como sendo um
conjunto de seres-humanos, que são possuidores de determinados direitos civis e políticos,
porém, a sociedade de uma forma ampla, especialmente, a classe dominante limitam o
26
(Daniela Lima Barreto, 2016, p. 94).
27
(Dirceu Pereira Siqueira, Nilson Tadeu Reis Campos Silva (orgs.).
Minorias e grupos vulneráveis: reflexões para uma tutela inclusiva. São Paulo: Boreal, 2013. Minorias e grupos
vulneráveis, multiculturalismo e justiça social: compromissos da contituição federal de 1988Ana Carolina Dias
Brandi e Nilton Marcelo de Camargo. P.49,
28
9

exercício de desses direitos inerentes a essas pessoas vulneráveis. De toda essa reflexão se
infere que a vulnerabilidade social expressa uma situação na qual é possível reconhecer um
déficit de cidadania.

1.3.3 A importância da diferenciação entre minorias e grupos vulneráveis


Embora grupos minoritários e vulneráveis apresentem semelhanças (como a incidência
de vulnerabilidade e o fato de não serem grupos dominantes), possuem elementos distintivos
que não podem ser desconsiderados diante da análise do texto constitucional dos direitos
sociais fundamentais.
A discussão torna-se necessária na distinção entre minoria e grupos vulneráveis, e vem
tendo um espaço crescente na sociedade, principalmente, no que diz respeito a aspectos
jurídicos dos termos. Nessa esteira, Robério Anjos Filho aponta para existência desta
distinção, podendo se falar em grupos de vulneráveis lato sensu e grupos de vulneráveis
stricto sensu. O primeiro constitui gênero ao qual pertencem, de acordo com o contexto do
Estado, “pessoas portadoras de necessidades especiais físicas ou mentais, idosos, mulheres,
favelados, crianças, minorias étnicas, religiosas e linguísticas, índios, descendentes de
quilombos, ribeirinhos, trabalhadores rurais, sem-terra, dentre outros”. As minorias se
enquadram na ideia de grupos vulneráveis em sentido amplo, mas não no conceito em sentido
estrito. 29
Neste diapasão, existem três elementos diferenciadores básicos entre minorias e grupos
vulneráveis, que seriam: o critério numérico, o diferenciador e, por último, o da solidariedade.
As minorias são constituídas dos seguintes elementos: de não dominância; da cidadania;
numérico; da solidariedade entre seus membros para que sejam preservados as suas culturas,
tradições, religião ou idiomas. Em se tratando dos elementos que constituem os grupos
vulneráveis, percebe-se que são, basicamente, os mesmos identificadores das minorias, com
exceção do vínculo subjetivo de solidariedade entre os membros que visam proteção do objeto
de discriminação. Portanto, um dos aspectos que diferenciam grupos vulneráveis e de
minorias é o fato destes últimos possuírem autodeterminação e solidariedade, características
essas não encontradas nos grupos vulneráveis.
A dimensão numérica não é por si só uma característica a ser considerada como
minoria. Muitas vezes as minorias possuem um contigencial numéricamente superior da
maioria, por isso, deve ser analisado como referencial a sua qualidade e não a quantidade.
29
Esta definição apresentada pelo autor se fundamenta na E/CN.4/Sub.2/1993/34, do Conselho Econômico e
Social das Nações Unidas, em que no parágrafo 31 prevê a existência de “minorias” e “situação minoritária”
(ANJOS FILHO, 2010, p. 356).
10

Para que a minoria seja protegida institucionalmente, ela prescinde de ser não dominante no
Estado em que vive. O elemento de solidariedade presente nas minorias visa a preservar suas
características imanentes e buscar a manutenção das suas peculiaridades que os diferem dos
demais grupos de minorias. Pessoas pertencentes aos grupos minoritários necessitam de um
tratamento diferenciado para poderem se enquadrar às exigências dessa sociedade capitalista.
Deve-se ser avaliado também o princípio da igualdade, da isonomia, conforme a concepção
aristotélica de que: “a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os
desiguais”.
Nesse esforço de elucidar o fenômeno da vulnerabilidade, é importante ter em vista a
distinção necessária que se fez entre minorias e grupos vulneráveis. A propósito, no que se
refere à proteção das minorias e dos grupos vulneráveis, no âmbito da Constituição Federal de
1988, o artigo 3º apresenta como fundamentos de nossa República Federativa, 30 a erradicação
das desigualdades sociais como base do Estado democrático de direito, o que implica
reconhecer, o tratamento materialmente igual a todas as pessoas no que concerne à dignidade
humana, assegurando, assim, à manutenção das características das minorias, por intermédio
do desenvolvimento da tolerância e da solidariedade. Além disso, a Constituição é permeada
de outros institutos que reforçam os objetivos gerais da República; em destaque seriam os
próprios direitos fundamentais propriamente ditos (artigos 5º e 6º). É necessário, portanto, que
o Estado promova uma efetiva proteção das minorias e dos gurpos vulneráveis, levando em
conta suas singularidades, com observância às especiais fragilidades deles de forma a
assegurar-lhes o direito à vida digna.
Por outro lado, devemos destacar o compromisso que o Brasil assumiu no plano
internacional por meio da ampla ratificação de Convenções e Tratados de Direitos Humanos,
implementando-se dessa forma o disposto no artigo 4º, II da Constituição Federal de 1988, e
no âmbito interno pela promulgação de leis específicas de proteção e pelo desenvolvimento de
políticas públicas, importando ressaltar que a dignidade humana é o principal fundamento do
Estado Brasileiro, conforme prevê o artigo 1º da CF/1988, o que implica na responsabilidade
primária do Estado na proteção e efetivação desses direitos. Daí a relevância de ações que
viabilizem o exercício de direitos a serem protegidos, revelando-se a importância da
implementação de políticas públicas como corolário e estratégia de efetivação da proteção dos
direitos humanos.31

30

31
O compromisso com a efetividade dos direitos humanos exige, cada vez mais, um sistema de garantias mais
potente e que lide com a complexidade e diversidade de tais direitos, em um cenário que assegure a
indivisibilidade, a interdependência, o inter-relacionamento e a universalidade dos direitos humanos, como
11

Assim, o papel do Estado é fundamental nesta abordagem, devendo ser implementadas


políticas públicas, através das ações afirmativas, diminuindo os limites e a discriminação, a
fim de que essa igualdade aristotélica possa ser colocada em prática através da “discriminação
positiva”, ao prever um tratamento distinto para certas pessoas ou categorias de pessoas,
buscando garantir uma igualdade material em relação a todos os membros da sociedade32.
Em suma, os efeitos de tais diferenciações se concretizam quando refletimos em relação
às políticas públicas. Os grupos minoritários não são organizados, o que pode ocasionar um
tratamento diferente em relação aos grupos vulneráveis. A luta pelos seus direitos se torna
individual e, por isso, mais espinhosa. É essencial que haja políticas públicas para manter viva
a identidade das minorias. Em contrapartida, os grupos vulneráveis são organizados, tais
como as pessoas deficientes e os negros-quilombolas. Contudo, também se nota uma
dificuldade muito grande em se implementar as políticas públicas aos grupos vulneráveis, pois
não se revela entre eles um empenho de se manter suas identidades.

1.4 APROXIMAÇÕES ENTRE DESIGUALDADE SOCIAL E VULNERABILIDADE


A vulnerabilidade social tem sido abordada de modo a assimilá-la e não raro equipara-
la – sem a necessária precisão – a exclusão social, redundância 33 e precariedade. São
configurações de cunho sócio-históricas e semelhantes que expressam uma problemática
comum mais abrangente que é a desigualdade social, enfrentada pela teoria crítica da moderna
sociedade capitalista construída por Marx; problemática que não deve ser avaliada, em busca
de sua ultrapassagem, sob um prisma exclusivamente econômico.
Exclusão e vulnerabilidade (assim como marginalidade) advieram como conceitos
complexos distintos capazes de traduzirem uma realidade social abrangente.
A categoria exclusão social se revelou prevalente na Europa no decorrer das décadas
de oitenta e noventa, que seguiu à instabilidade econômica gerada pela onda neoliberal, essa
reação histórica que o capitalismo promoveu nos anos setenta, abalando as bases do frágil
Estado de bem-estar social.
Nessa conjuntura bastante próxima de nós em termos históricos o que mais se temia
era a exclusão; os cidadãos europeus se sentiam menos instigados a combater as pressões
sociais que a impedir o alijamento das solidariedades; procuravam, de um modo

consagrado no artigo 5o da Declaração e Programa de Ação de Viena.

32
Essas normas são de caráter temporário, vigorando enquanto se verificar a situação desfavorável, devendo
deixar de vigorar logo que ultrapassada a desigualdade.
33
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. 3º ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
12

individualista, menos a dissidência heroica que a filiação repasse geradora. Tratava-se de um


individualismo negativo, afetado pelo modo e pela desconfiança em relação ao outro. A nova
temática militante mostra os traços dessa reviravolta: excluídos sem documentos, sem teto,
sem trabalho.
Nesse processo cheio de significado simbólico é possível desvelarmos uma mudança
extraordinária: as lutas sociais não visam mais reivindicar uma ‘libertação’ e sim denuncia a
face perversa de uma exclusão, a injustiça de um exílio. Não é mais um desejo de
emancipação que aí se expressa; é um desejo de sociedade, de integração social.
Sociólogos influentes como Donzelot34 que tentaram, tomando por horizonte os fins da
década de oitenta e o começo dos anos noventa, decifrar a natureza dessas lutas, foram os
primeiros a constatar tal quinada simbólica. É impressionante ver que as desordens registradas
nos subúrbios franceses e animadas sobretudo pelos desempregados são quase todas revoltas
contra um poder opressor, mais que prenúncios de uma revolução que ameace o sistema
econômico. O confronto não é o recurso último no quadro de uma relação de força, mas sim a
tentativa de penetrar nesse quadro, de ser levado em conta, de encontrar interlocutores, de
estabelecer um vínculo social pelo conflito, na falta de qualquer outro meio.
Foi numa conjuntura profundamente marcada pela precarização do mercado e das
relações de trabalho que, em fins da década de noventa, alcançou maior visibilidade histórica
o conceito de vulnerabilidade social. A sua emergência foi ao encontro da necessidade de
focalizar, em toda a sua extensão e riqueza, são apenas questões que concederam ao
desemprego, mas também as novas formas de vulnerabilização social.
Diante da desestruturação do mercado de trabalho afetando trabalhadores que antes
seriam identificados como incluídos, emerge, no âmbito das análises de alcance teórico
conceitual e das pesquisadas de campo, a urgência de superação das polarizações entre ricos
versus pobres, incluídos versus excluídos. Entende-se que a categoria vulnerabilidade social
pode contribuir para a produção de investigações inovadoras uma vez que abrangem situações
enfrentadas por ricos face ao desemprego (não raro apresentando caráter estrutural), à
precariedade do trabalho, às condições adversas de pobreza e à carência de proteção social
que o direito deveria assegurar. No modo de ver de Cançado, Souza e Cardoso 35, a adoção
desse conceito também confere caráter dinâmico aos estudos sobre desigualdade social:

34
DONZELOT, Jacques. Face à l’exclusion: le modele français. 3ª ed. Paris: Esprit, 2006.
35
CANÇADO, Taynara Candido Lopes; SOUZA, Rayssa Silva de; CARDOSO, Cauan Braga da Silva.
Trabalhando o conceito de vulnerabilidade social. Trabalho apresentado no XIX Encontro Nacional de
Estudos Populacionais [População, Governança e Bem-Estar], ABEP, realizado em São Paulo/SP, de 24 a 28
de novembro de 2014.
13

possibilita reconhecer zonas de vulnerabilidade, que vão desde os setores mais marginalizados
e excluídos até setores médios que buscam manter seu padrão de inserção e bem-estar, como
forma de proteção às ameaças de precarização do mercado de trabalho.
Sob uma ótica sociológica fundamentada em Beck 36 surge a concepção de
vulnerabilidade social como exposição (de indivíduos ou objetivos) a determinados riscos. No
quadro de uma modernidade avançada, advêm novos riscos de natureza imprevisível, que
podem ser qualificados como ecológicos, nucleares, químicos ou genéticos. Essa perspectiva
sociológica também contempla a noção de que existe uma desigualdade na distribuição dos
riscos, que pode ser constatada nos espaços (como é o caso de determinadas áreas urbanas
profundamente poluídas, onde a degradação ambiental se mostra irreversível, ou possíveis de
constituírem fontes de doenças infecto – contagiosas da maior gravidade, ou afetadas pela
violência, notadamente a policial.
Assim sendo, revela-se digna de nota a proposta de Soczek37 que reside em articular a
ideia de vulnerabilidade, capaz de facilitar a nossa compreensão da condição de existência em
uma sociedade de risco (individual e coletivo), e a ideia de novos direitos como construção
social que tem por finalidade amenizar a condição de vulnerabilidade e vulneração social da
totalidade da sociedade, tomando em consideração o que há de específico na vulnerabilidade
destacada de cada grupo social.

1.4.1 As origens da desigualdade social: a conexão entre racismo e violência epistêmica


As origens das desigualdades estão intimamente ligadas ao conceito de raça na
América, que foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas
para assegurar suas conquistas. Posteriormente, com a expansão do colonialismo europeu ao
resto do mundo, adveio a elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à
elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessas relações coloniais de
dominação entre europeus e os não-europeus. Historicamente, isso significou uma nova
maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade
entre dominantes e dominados. Desde então demonstrou ser o mais eficaz e durável
instrumento de dominação social universal, pois dele passou a depender outro igualmente
universal, no entanto mais antigo, o de gênero: os povos conquistados e dominados foram

36
BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: GIDDENS,
Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna.
São Paulo: Ed. Unesp,1997. p. 11-72.
37
SOCZEK, Daniel. Vulnerabilidade social e novos direitos: reflexões e perspectivas. Espaço Jurídico,
Joaçaba, v.9, n.1, jan./jun. 2008. p. 19-30.
14

postos numa situação natural de inferioridade, e consequentemente também seus traços


adquiridos, bem como suas descobertas mentais e culturais. Desse modo, a raça converteu-se
no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares
e papéis na estrutura de poder da nova sociedade e no modo básico de classificação social
universal da população mundial.
Além do processo histórico que consolidou na ideia de raça a diferença entre
conquistadores e conquistados, podemos apontar uma nova estrutura de controle de
exploração do trabalho dos recursos e da produção-apropriação-distribuição de produtos no
processo de constituição histórica da América, que foi articulada em torno da relação capital e
do mercado mundial. Incluíram-se a escravidão, a servidão, a pequena produção mercantil, a
reciprocidade e o salário. Conforme afirma Anibal Quijano, o novo padrão envolvia a
articulação entre raça e capitalismo na criação e expansão crescente da rota comercial
atlântica. 38
Nesse contexto, podemos ressaltar a homogenização, através das concepções
racialistas de populações negras inteiras, o que possibilitou uma visão que se assenta sobre um
processo de desumanização.39 Este processo em uma perspectiva teórica pode ser denominado
de colonialidade do ser 40 ao qual está ligado tanto à experiência vivida da colonização e seus
impactos na linguagem, como também na necessidade de apontar os efeitos dessa
colonialidade em diferentes domínios, inclusive na mente dos colonizados. 41
Antes de aprofundarmos esse aspecto faz-se necessário proceder á distinção dos dois
conceitos relacionados, porém distintos, de colonialismo e colonialidade. Aníbal Quijano nos
esclarece que o colonialismo denota a relação de um povo que está sob o poder político e
econômico de outra nação. Tal termo tem seu entendimento limitado ao período específico da
colonização histórica, desaparecendo com a independência, ou com a descolonização. Por
outro lado, a colonialidade se refere ao vínculo entre o passado e o presente, no qual emerge
um padrão de poder resultante da experiência moderna colonial, que se sustenta no
38
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Colonialidade do Saber:
eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Edgardo Lander (org). Ciudad Autónoma
Buenos Aires: ColecíonSurSur, CLACSO, 2005. p. 117.
39
“...Afinal, se aquela criança negra “é feia”, todos os negros também o são.” (OLIVEIRA, Luiz Fernando e
LINS, Mônica Ferreira. “Que criança feia! Por que a mãe dela está feliz? Ela nunca vai ficar branca”: reflexões
teóricas sobre crianças e relações raciais. Educer et Educere Revista de Educação. Vol. 10 Número 20 jul/dez.
2015, p. 675). (p. 671-685)
40
MIGNOLO, Walter. Os esplendores e as misérias das ciências: colonialidade, geopolítica do conhecimento e
pluri-versidade epistêmica. In: Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as
ciências. Org. Boaventura de Sousa. Porto: Afrontamento, 2003, p. 688.
41
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Colonialidade do Saber:
eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Edgardo Lander (org). Ciudad Autónoma de
Buenos Aires, Argentina: ColecíonSurSur, CLACS. 2005, p. 117-118.
15

conhecimento, na autoridade, no trabalho e nas relações sociais intersubjetivas. Logo, este


conceito não se limita ao período de colonização, mas implica a continuidade das formas
perversas coloniais de dominação após o fim da colonização. Nesse sentido, segundo Quijano,
o colonialismo se refere a um padrão de dominação e exploração em que:

O controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma


população determinada possui uma diferente identidade e as suas sedes centrais
estão, além disso, em outra jurisdição territorial. Porém nem sempre, nem
necessariamente, implica relações racistas de poder. O colonialismo é, obviamente,
mais antigo, no entanto a colonialidade provou ser, nos últimos 500 anos, mais
profunda e duradoura que o colonialismo. Porém, sem dúvida, foi forjada dentro
deste, e mais ainda, sem ele não teria podido ser imposta à inter-subjetividade de
modo tão enraizado e prolongado. 42

Ainda, diferenciando colonialismo e colonialidade, Nelson Maldonado-Torres


desenvolve o seguinte argumento:

Colonialismo denota uma relação política e econômica, na qual a soberania de um


povo reside no poder de outro povo ou nação e que constitui tal nação num império.
Diferente desta ideia, a colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu
como resultado do colonialismo moderno, porém, ao invés de estar limitado a uma
relação formal de poder entre os povos ou nações, refere-se à forma como o
trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam
entre si através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça. Assim, ainda que
o colonialismo tenha precedido à colonialidade, esta sobrevive após o fim do
colonialismo. A colonialidade se mantém viva nos manuais de aprendizagem, nos
critérios para os trabalhos acadêmicos, na cultura, no senso comum, na autoimagem
dos povos, nas aspirações dos sujeitos, e em tantos outros aspectos de nossa
experiência moderna. Enfim, respiramos a colonialidade na modernidade
cotidianamente. 43

Assim, segundo Luiz Fernandes de Oliveira e Mônica Regina Ferreira Lins “o


colonialismo é uma imposição política, militar, jurídica e administrativa”, cabendo esclarecer
que o colonialismo “na forma da colonialidade, chega às raízes mais profundas e sobrevive
ainda hoje, apesar da descolonização nos séculos XIX e XX”. Por fim, concluem: “O que
estes autores nos mostram é que apesar do fim dos colonialismos modernos, a colonialidade
sobrevive. Apesar de o colonialismo tradicional ter chegado ao seu fim, as estruturas
subjetivas, os imaginários e a colonização epistemológica ainda estão presentes.”44
Colonialidade não é o "passado" da modernidade, mas sua "face epistemológica". É a isso que
42
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: El giro decolonial. Reflexiones para
una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL,
Ramón (Orgs.). Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar / Universidad Central-IESCO / Siglo del
Hombre Editores, 2007, p. 93 (p. 93-126).
43
MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto.
In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago e GROSFOGUEL, Ramón. (Orgs.). El giro decolonial. Reflexiones para una
diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto
Pensar/Universidad Central-IESCO/Siglo del Hombre Editores, 2007, p. 131.
44
OLIVEIRA; LINS, op. cit., p. 676.
16

se refere a categoria da "colonialidade do poder", expressão sugerida pelo sociólogo peruano


Aníbal Quijano.45
O principal debate a ser desenvolvido sobre o tema diz respeito à negação de um
status humano para os indígenas e africanos, e também como é refletida a colonialidade do ser
na história da modernidade pós-colonial que, segundo Walsh, insere nesse contexto vários
elementos relacionados com a liberdade do ser e da história do indivíduo subalternizado por
uma violência epistêmica.46 Nesse sentido, Frantz Fanon questiona: “Como é uma negação
sistemática do outro, uma decisão furiosa de privar o outro de qualquer atributo de
humanidade, o colonialismo leva o povo dominado a perguntar-se constantemente: “Quem
sou eu na realidade?” 47. Finalmente, ele conclui:

O mundo colonial é um mundo maniqueu. Não basta ao colono limitar fisicamente,


quer dizer, com a ajuda da sua polícia e dos seus soldados, o espaço do colonizado.
Como para ilustrar o carácter totalitário da exploração colonial, o colono faz do
colonizado uma espécie de quintaessência do mal. A sociedade colonizada não se
define apenas como uma sociedade sem valores. Não basta ao colono afirmar que os
valores o abandonaram, ou melhor, não habitaram nunca o mundo colonizado. O
indígena declarou-se impermeável à ética, ausência de valores, mas também negação
de valores. É, atrevemo-nos a dizê-lo, o inimigo dos valores. Neste sentido, é um
mal absoluto.
Elemento corrosivo, destruidor de tudo o que o rodeia, elemento deformador, capaz
de desfigurar tudo o que se refere à estética ou à moral, depositário de forças
maléficas, instrumento inconsciente e irrecuperável de forças cegas. 48

Dessa forma, como inferem Luiz Fernando de Oliveira e Mônica Regina Ferreira
Lins49, “a violência epistêmica se constrói em torno do conceito de raça, no qual novas
categorias foram criadas como branco, negro, índio, mestiço etc. e relaciona sujeitos numa
classificação social de forma vertical.” Ainda, concluem com base em outros autores, tais
como Maldonado-Torres e Dussel, respetivamente que “essa ideia de seres não europeus
como inferiores produziu formas de desumanização. Além disso, “a negação que o europeu
faz do outro colonizado, a forma como desconhece a alteridade e o modo como relega o
diferente, o converte em um não ser. Esta, portanto, foi a experiência vivida na
colonialidade.”50
45
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, cultura e conhecimento na América Latina, In: Pensar (in) as
intercepções. Teoria e prática da crítica pós-colonial. Org. S. Castro Gomez, O. Guardiola-Rivera, C. Millan
Benavides. Santafé de Bogotá: CEJA: 1999, p. 99-109.
46
WALSH, Catherine. Introdución - (Re) pensamiento crítico y (de) colonialidad. In: WALSH, Catherine.
(Org.). Pensamiento crítico y matriz (de)colonial. Refexiones latinoamericanas. Quito: Ediciones Abya-yala,
2005. p. 24.
47
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Lisboa: Ulisseia limitada 1961. Tradução de Serafim Ferreira, p.
263.
48
Ibidem, p. 36-37.
49
OLIVEIRA; LINS, op. cit., p. 676
50
Ibidem, p. 677.
17

Finalmente, Luiz Fernando de Oliveira e Mônica Regina Ferreira Lins apoiados nos
estudos de Fanon e Maldonado-Torres, chamam a atenção para o fenômeno da invisibilidade
das experiências vividas pela colonialidade do ser, a ser persistentes do racismo como
enfatizada logo no título provocativo do trabalho: “Que criança feia” Por que a mãe dela está
feliz? Ela nunca vai ficar branca: Reflexões teóricas sobre crianças e relações raciais”. Cabe
transcrever aqui uma definição de racismo, acolhida e comentada por esses pesquisadores
brasileiros, bastante elucidativa que revela a profunda conexão entre racismo e violência
epistêmica:

O racismo é a discriminação social que tem por base um conjunto de julgamentos


pré-concebidos que avaliam as pessoas de acordo com suas características físicas,
em especial a cor da pele. Baseada na preconceituosa ideia de superioridade de
certas etnias, tal forma de segregação está impregnada na sociedade brasileira e
acontece nas mais diversas situações. (Disponível em: http://www.guidedireitos.org
Acesso em: 04 jun. 2020).51

1.4.2 Enfrentando as condições geradoras da desigualdade material: a relação entre


política e vulnerabilidade
A discussão precedente em torno da desigualdade social, que envolve principalmente
os direitos fundamentais, deve ser ampliada. Existe uma verdadeira impossibilidade de
concretização desses direitos, quando ocorre o cerceamento da igualdade por parte da
vulnerabilidade que afeta diferentes grupos de pessoas. Nesse contexto, faz-se necessário que
a igualdade seja obtida por força de reivindicações e conquistas, “[...] especialmente porque a
desigualdade tem potencial de prejudicar toda a sociedade.”52.
A igualdade considerada nos dois planos fundamentais - o formal e o material -,
afigura-se como um dos eixos centrais da ordem constitucional brasileira. 53 A Carta de 1988
não se restringiu apenas à igualdade formal, pois teria buscado também emprestar a máxima
concreção a esse postulado, de maneira a assegurar também a igualdade material de acordo
com as diferenças que circundam os grupos sociais.
A superação do preconceito e a construção de uma sociedade mais justa, fraterna e
solidária, bem assentada na dignidade da pessoa humana, são diretrizes destacadas em nossa
Constituição. Assim sendo, veio a ser acolhida no país a política concernente à ação
51
Ibidem, p. 672.
52
ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade material e discriminação positiva: o princípio da isonomia.
Novos Estudos jurídicos, Itajaí: Univali, v. 13, n. 2, jul./dez. 2008. p. 78-79.
53
BARRETO, Ana Cristina Teixeira. Consultor Jurídico. Igualdade entre sexos: Carta de 1988 é um marco
contra discriminação. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2010-nov-05/constituicao-1988-marco-
discriminacao-familia-contemporanea.>Acesso em:25 jan. 2020.
18

afirmativa, visando à perspectiva de promover, apesar do atraso histórico, a inclusão dos


negros em situação a possibilitar a igualdade de oportunidades. Esse é o caso das cotas raciais.
54

A política de ação afirmativa capaz de suplantar a desigualdade material que vinha


afetando aos cidadãos negros harmoniza-se com princípios e valores consagrados em nossa
Carta Magna, especialmente com a garantia constitucional da isonomia material (artigo
5º, caput) 55 e com os fundamentos do Estado Democrático de Direito, sobretudo com relação
à construção de uma sociedade solidária, fraterna e pluralista, afastando as desigualdades
sociais, e assegurando a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor,
idade e outras formas de discriminação (artigos 1º, V, e 3º da Constituição Federal).
Na realidade, importa sublinhar a existência de três dimensões da concepção
contemporânea de igualdade que se revela no contexto da formal, material, além da igualdade
como reconhecimento, conceito esse defendido por filósofos políticos e jurídicos, atentos às
debilidades da visão liberal da concepção de igualdade, a exemplo de Nancy Fraser. O seu
posicionamento crítico encontra paralelo com a argumentação construída por Boaventura de
Sousa Santos56, igualmente atento à necessidade de se pensar de maneira interconexa
identidade e diferença. Este reside na problematização da justiça social como um conjunto de
mecanismos que assegura distribuiçao e reconhecimento, tendo-se em mente que as fontes de
desigualdade podem ser resultado de um acesso desigual dos bens e serviços quanto ao
reconhecimento das identidades de grupo que as pessoas apresentam57.
Sob o prisma de Nancy Fraser, deve-se melhor pensar o que impede a boa organização
da sociedade, ou seja, um modelo de sociedade inclusiva:

As pessoas podem ser impedidas da plena participação por estruturas econômicas


que lhes negam os recursos necessários para interagirem com os demais na condição
de pares, neste caso, elas sofrem injustiça distributiva ou má distribuição; por outro
54
Tornando eficaz tal postulado, o Supremo Tribunal Federal deu provimento, por unanimidade, à ação proposta
pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a qual visava à declaração de constitucionalidade da
Lei 12.990/2014, que reserva a pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos[1]. No referido
julgamento, o tribunal firmou a seguinte tese: “É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos
concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública
direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação,
desde que respeitada à dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa.
55
O alcance da igualdade material demanda do Estado tanto políticas de cunho universalista, como ações
afirmativas, que atingem determinados grupos e lhes atribuem certas vantagens, por um tempo limitado, visando
a permitir a superação de desigualdades históricas. A adoção de tais políticas integraria o próprio cerne da
democracia que, devido à evolução histórica e conceitual, alberga a isonomia como possibilidade de crescimento
do indivíduo.
56
SANTOS, Boaventura de Sousa, Colecção Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos,
Porto: Afrontamento, 2003.
57
FRASER, Nancy. Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado. Lua Nova, São Paulo, v. 77, p. 11-
39, 2/2009.
19

lado, as pessoas também podem ser coibidas de interagirem em termos de paridade


por hierarquias institucionalizadas de valoração cultural que lhes negam o status
necessário; neste caso elas sofrem de desigualdade de status ou falso
reconhecimento. [...] Se a representação é a questão definidora do político, então a
característica política da injustiça é a falsa representação. 58

Ao tecer considerações críticas a obra Gender Trouble : Feminism and the Subversion
of Identity sobre a redução do escopo da politica da categoria positiva e negativa de
inclusão/exclusão, uma opondo-se a outra, como fora tratado por Judith Butler 59 - um dos mais
relevantes estudos sobre a vulnerabilidade na teoria contemporânea 60 -, Fraser desenvolve em
suas reflexões sobre a teoria da justiça 61, “a paridade de participação”, porquanto, segundo
afirma, tal critério normativo acolhe uma concepção política, e abrange um conjunto maior de
injustiças sociais. Nesse sentido, ela contextualiza

Paridade de participação é um ponto de partida que permite condenar


a exclusão, certamente, mas também condena a inclusão de algo
menos do que em iguais termos. Então, penso que é uma categoria
normativa mais forte do que o simples contraste exclusão/inclusão,
que eu penso que é a principal categoria com que ela trabalha.” 62

A análise da articulação entre vulnerabilidade, autonomia e a ação política no estudo


de Butler apresentado no seu critério normativo da inclusão (expansão/desestabilização da
esfera pública)63 e de Fraser (paridade de participação) 64, nos provoca, ao mesmo tempo, a
refletir sobre a condição de dificuldade, como também da necessidade de análise dessa
questão em uma perspectiva da teoria política. 65 Pôr a vulnerabilidade como objeto da política
é um grande desafio que se apresenta para atingir a capacidade de autonomia e ação, além das
implicações na delimitação da própria esfera pública. Entretanto, é imprescindível que haja
essa intersecção, porquanto ela constitui um elemento essencial para se buscar o exame das

58
Ibidem. p.21.
59
BUTLER, J. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of identity. New York: Routledge, 1999.
60
A escolha de abordar o estudo de Butler deve-se ao fato de ela ser uma das mais destacadas autoras
internacionais que se dedica à discussão contemporânea sobre vulnerabilidade, além de suas relevantes
contribuições para teoria política feminista.
61
FRASER, N. Scales of Justice. New York: Columbia University, 2009, p. 16-17.
62
CYFER, Ingrid; NEVES, Rafael. Entrevista com Nancy Fraser; tradução de Maria Aparecida Abreu. In:
ABREU, Maria Aparecida. Redistribuição, Reconhecimento e Representação, Brasília: IPEA, p. 201 – 213,
2011, p. 204.
63
BUTLER, J. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of identity. New York: Routledge, 1999.
64
FRASER, N. Scales of Justice. New York: Columbia University, 2009, p. 16-17. Ambas as autoras têm a
mesma inquietação com a morte política e as injustiças sociais que dela decorrem.
65
As concepções contemporâneas vêm apontando para a necessidade de se reconhecer a vulnerabilidade como
uma questão política que apresenta profundos desafios a fim de gerar a autonomia e ação política.
20

injustiças sociais a serem enfrentadas; assim como, os obstáculos externos e internos à sua
emancipação a fim de se estabelecer os remédios políticos para combatê-las.
A aplicação do princípio da igualdade que pretendemos adotar neste estudo deve
considerar a posição relativa dos grupos sociais entre si para incluir grupos excluídos ou
marginalizados. Igualdade essa, há muito, que não se esgota na premissa de que a lei trate a
todos como iguais, mas exige que essa isonomia seja refletida, material e concretamente, nas
relações sociais, nas oportunidades, na fruição de direitos e na dignidade de cada ser humano,
como parte constituinte dessa sociedade. Nesse sentido, Rothenburg 66 afirma:

O combate à discriminação, como dimensão “negativa” (de viés repressor) da


igualdade, pode assumir formulações mais específicas, com vistas à proteção de
determinadas pessoas ou grupos em situação de vulnerabilidade. Assim, para além
da igualdade formal, normas jurídicas de proibição podem traduzir o anseio por
igualdade material.

Os indivíduos são essencialmente diferentes, devendo ser protegidos na medida de


suas diferenças. O conceito de igualdade que nos inspira Boaventura Souza Santos
harmoniza-se perfeitamente no sentido da importância de se entender a igualdade por
intermédio do olhar da diferença. Segundo ele, “[...] temos o direito a ser iguais quando a
nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade
67
nos descaracteriza”.
Por outro lado, vale ressaltar que os novos avanços no âmbito do direito e das
capacidades de ações políticas, como as políticas públicas específicas (afirmativas), muito
embora insuficientes, representam uma resposta à questão do racismo estrutural na sociedade
brasileira que precisa ser enfrentado, bem como uma tomada de posição quanto ao dever de
reparação histórica a pessoas que carregam como legado o peso e o custo social do estigma
moral, social e econômico da escravidão no Brasil. Cabe assinalar que os libertos foram
entregues à própria sorte, sem terem condições a se integrarem à sociedade.
A evidente desigualdade, ainda hoje, existente entre brancos e negros impacta no
acesso à educação, no mercado de trabalho, na fruição de direitos, implicando na percepção
de salários inferiores pela população negra, e no ínfimo acesso a cargos de direção e poder na
sociedade. Os anos de escravidão negra no Brasil deixaram uma forte herança, ainda mais
difícil de ser enfrentada diante do mito da democracia racial, da ideia de que o brasileiro, por

66
ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade material e discriminação positiva: o princípio da isonomia.
Novos Estudos jurídicos, Itajaí: Univali, v. 13, n. 2, jul./dez. 2008. p. 82.
67
SANTOS, Boaventura de Sousa, Colecção Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos,
Porto: Afrontamento, 2003. p.106.
21

ser um povo miscigenado e diversos não é racista. Ao contrário, o racismo, de tão arraigado,
tornou-se natural, encoberto nas relações hierarquizadas entre brancos e negros. 68
A negação do racismo impede, sistematicamente, a instituição de políticas afirmativas
que reparem as desigualdades. Não se trata de uma reparação histórica, na acepção de algo
que ocorreu no passado e ficou para trás. Trata-se de uma reparação da desigualdade surgida
com o regime escravocrata, mas que (re)produz, cotidianamente, práticas racistas e
discriminatórias em todos os âmbitos da sociedade brasileira, de forma estrutural, institucional
e político.

1.5 SOB A INSPIRAÇÃO DOS VENTOS DA JUSTIÇA SOCIAL


Inicialmente, convém uma breve exposição sobre os termos que são muito utilizados
no contexto da justiça social, tais como igualdade, isonomia e equidade. É relevante
abordarmos essa distinção entre os referidos termos, como são empregados no sistema

jurídico, tendo em vista a amplitude e a relevância das discussões  em torno deles apontadas.
Os vocábulos equidade, isonomia e igualdade que são usados como sinônimos, na língua
portuguesa, mas podem ser diferenciados dependendo das situações em que se venha a utilizar
uma ou outra expressão.
A palavra igualdade tem sua origem na palavra em latim aequalitas e se refere à
condição, ao estado e à qualidade de coisas iguais, idênticas, uniformes, equivalentes.
Igualdade se refere a circunstâncias idênticas e equivalentes aplicadas para todas as pessoas
em todos os casos. Significa ainda o princípio de que todas as pessoas são iguais perante a lei,
possuindo os mesmos direitos e deveres 69.
Isonomia pressupõe diferentes situações contextuais, entretanto, que se indica pela
aplicação igualitária das normas, desde que preenchidas as condições necessárias. O
significado de isonomia, como a morfologia do nome (“iso”, igual, e “nomia”, lei) adquire
contornes mais concretos na perspectiva jurídica. Isonomia significa a igual aplicação da lei

68
As estatísticas são gritantes e comprovam o racismo estrutural no país. Embora mais de metade da população
brasileira seja negra, dos 10% mais pobres da população, 72% são negros. O racismo de origem, a cor da pele
influencia a vida de afrodescendentes em todos os seus aspectos; seja nas condições de moradia e saúde,
educação nas relações com o Estado, especialmente no âmbito do poder judiciário. Nas favelas, 66% dos
domicílios são chefiados por mulheres negras. Também no sistema carcerário, 61% dos presos são negros; além
dos jovens que são vítimas de homicídios, 80% são negros. E as estatísticas continuam com taxas de
analfabetismo; negros percebem, em média, 55% da renda dos brancos em geral.
69
A igualdade material é atribuída todos os seres humanos que se encontrem nas mesmas condições. A
igualdade formal, por sua vez, trata da igualdade dos indivíduos frente a lei, nos moldes do art. 5º da
Constituição Federal.
22

àqueles que a ele se submetem. Se a igualdade pressupõe um tratamento amplo igualitário, a


isonomia aplica-se especificamente às normas. Dessa forma, isonomia e igualdade não
possuem o mesmo significado juridicamente, embora os dois termos se relacionem. A
principal diferença entre o princípio da isonomia e da igualdade, é que o primeiro é voltado à
aplicação das normas, sendo o que é válido juridicamente para um, deve ser válido também
para todos aqueles que preencham as mesmas condições de aplicação de determinada norma.
Contudo, se o Direito preceitua como um de seus objetivos a proteção da igualdade, precisa,
então, regular também as relações desiguais de poder. Como garantir que a lei será aplicada
igual ou isonomicamente, quando as partes são desiguais e estão situadas em diferentes
relações de poder que, muitas vezes, impede o exercício efetivo da isonomia? Daí a relevância
do papel da equidade no âmbito jurídico.
Equidade se refere à capacidade de se julgar com retidão, imparcialidade e justiça. A
palavra equidade tem sua origem na palavra em latim aequitas. Ela prima por analisar justa e
imparcialmente cada caso concretamente, para que não haja desigualdades e injustiças.  É a
justiça aplicada ao caso concreto e particular, buscando sua realização na seara do Direito.
Em nosso ordenamento jurídico, cabe ao juiz, em determinadas situações, julgar com base
na equidade, quando ausentes normas positivadas e expressas, a fim de evitar lacunas
jurídicas. Equidade e igualdade são substantivos que compõem, necessariamente, projetos de
sociedade de matizes humanistas; ao mesmo tempo, os fatores geradores de seus contrários (a
iniquidade e a desigualdade materiais) são tratados, nesses projetos, com os devidos
procedimentos e políticas de correção (distribuição), contenção e supressão para que a justiça
social possa ser promovida.

1.5.1 A efetividade da justiça equitativa: um caminho para sua fundamentação teórico-


política
Um dos principais teóricos contemporâneos que procurararam aprimorar o conceito de
justiça é John Rawls, considerado por muitos como o mais influente representante da filosofia
política no Séc. XX. Em 1971 publicou a obra Uma teoria da justiça, em que propõe uma
concepção não utilitarista da justiça, fundada numa nova versão da tese do contrato social e
voltada para a integração de um amplo sistema de liberdades individuais com garantias de
igualdade de oportunidades e de maior benefício aos menos favorecidos. Para ele, a justiça é a
escolha justa dos princípios que governam a distribuição de bens primários; a seu ver, uma
sociedade justa é aquela capaz de criar mecanismos, compensatórios e/ou regulatórios, que
23

minimizem as desigualdades econômicas com base em uma noção de equidade 70.


A justiça assim entendida como equidade é composta por duas partes: “(1) uma
interpretação de uma situação inicial e do problema da escolha colocada naquele momento, e
(2) um conjunto de princípios que, segundo se procura demonstrar, seriam aceitos
consensualmente”71. Nesse sentido, o pensamento rawlsiano assume como tarefa principal
delimitar a deliberação e a cooperação social, de tal modo que o diálogo entre representantes
de diferentes grupos ou doutrinas abrangentes razoáveis levem a decisões que atendam às
partes envolvidas, daí resultando um acordo que seja equitativo. 72
Impossível desconsiderar a relevância da contribuição teórica de Rawls, que construiu
uma sólida crítica às posições utilitaristas que dominavam a filosofia política norteamericana.
Contudo, de acordo alguns de seus críticos recentes, a exemplo de Catarina Alves de Santos, a
teoria rawlsiana da justiça não nos oferece uma diretriz, ou resposta direta às reivindicações
propostas pelas minorias e/ou grupos vulneráveis; aquele filósofo político construiu uma teoria
ideal, de feição kantiana,73 traçando as linhas gerais para uma democracia liberal baseada em
uma justiça equitativa.
Fazer essa referência à Teoria de Justiça de John Rawls neste estudo não significa que
estejamos endossando sua concepção, fundamentada originalmente no modelo de contrato
social de pensadores da modernidade (Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques
Rousseau), fruto da idealização da sociedade, porquanto esse conjunto teórico não se aplica à
concretude das relações sociais.
É importante levantarmos uma relevante reflexão: como garantir uma efetidade da
justiça equitativa com relação a considerável parcela da sociedade, ou seja, a pessoas que
estão em situação de vulnerabilidade, desprovidas de legitimidade e até mesmo de
determinados direitos? Nega-se a esses indivíduos o acesso a diversos direitos fundamentais,
como educação, trabalho e moradia, entre outros . Isso tudo se dá por meio de uma
distribuição desigual que tem a ver com a precariedade da vida que lhes é imposta. Por outro
70
RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins
Fontes, 2003. p.249.
71
Ibidem. p. 22-23.
72
A ideia de justiça equitativa e uma boa explicação dos princípios defendidos por Rawls se encontram na
seguinte passagem: “É uma concepção de justiça baseada na racionalidade e cujos princípios – liberdade igual e
igualdade de oportunidades (juntamente com o princípio da diferença) – para a estrutura básica de uma
sociedade bem-ordenada são endossados em um consenso sobreposto. Estes princípios são escolhidos por
pessoas livres e racionais na posição original, em uma situação equitativa, como base para todos os acordos
posteriores, definindo direitos e deveres básicos e regulando as vantagens econômicas e sociais.” (SANTOS, C.
A., 2011, 159).
73
Kant colocou-se à busca de uma fundamentação da idéia de uma lei moral, à qual devemos obedecer
independentemente dos fins a que nos propomos, voltando-se para os conceitos deontológicos de “dever” e de
“lei”.
24

lado, são notórios os reflexos diretos que também a precariedade dos direitos fundamentais
suscita em outras áreas, principalmente, no que diz respeito à seletividade do sistema de
justiça criminal, quando se propõe a estudar o grupo vulnerável das mulheres condenadas por
tráfico de entorpecentes.
Não é demasiado lembrar que, do ponto de vista das relações sociais, a equidade e a
igualdade substantivas, princípios fundamentais da justiça social, são alcançadas por meio da
luta de classes ou da luta entre atores sociais em seus correspondentes campos sociais. É
exatamente neste caminho que pretendemos desenvolver os fundamentos de uma teoria crítica
em nosso estudo mais adiante, porquanto adotamos a mesma percepção de Mészáros 74: “a
condição prévia essencial da verdadeira igualdade é enfrentar com uma crítica radical a
questão do modo inevitável de funcionamento do sistema estabelecido e sua correspondente
estrutura de comando, que a priori exclui quaisquer expectativas de uma verdadeira
igualdade”.

1.5.2 A contribuição crítica da teoria de Jürgen Habermas para o reconhecimento da


iguadade política dos cidadãos
Jürgen Habermas, filósofo e sociólogo alemão nascido em Düsseldorf, na Alemanha,
no ano de 1929, considerado um dos maiores expoentes vivos da segunda geração da Escola
de Frankfurt, que sobressai não só no contexto das modernas discussões jurídicas, mas
também no âmbito do pensamento compromissado com as teorias jurídicas da
neomodernidade. O sistema filosófico adotado por esse pensador pode dar imprescindíveis
contribuições para a resolução das questões político-sociais na contemporaneidade.
Habermas, herdeiro do campo teórico marxista e discípulo de Theodor Adorno,
vislumbra a sociedade em duas faces que nem sempre estão sintonizadas: o munda da vida e o
mundo dos sistemas. O mundo da vida, conforme nos esclarece em Teoria da Ação
Comunicativa, é o locus onde se desenvolve nossa prática comunicativa a partir do
desenvolvimento de nossas tradições, costumes e valores. Por sua vez, o mundo dos sistemas
é por onde se percorrem as demandas da vida ou por onde é possível identificar as práticas e
condutas pressupostas. Nas sociedades modernas de estrutura capitalista veio a se aprofundar
um processo denominado por Habermas “colonização do mundo da vida”, que, a rigor,
começou a ser denunciado pelo próprio Marx, empenhado em desmacarar as formas de
disparidade econônica-social.

74
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. tradução Paulo Cezar Castanheira
e Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2002.p.289. 
25

No estudo a “Inclusão do Outro”, observamos a classificação de um conteúdo racional


da “moral”, que pressupõe um nível de respeito por parte de todos e de responsabilidade
solidária geral entre todos os seres humanos (HABERMAS, 2004). Segundo o filósofo, existe
uma “desconfiança moderna diante de um universalismo que, sem nenhuma cerimônia, a
todos assimila e iguala e que não entende o sentido dessa moral”. Essa “desconfiança
moderna” também seria responsável por nutrir formas de esgarçamento da “estrutura
relacional da alteridade e da diferença”. 75
Habermas formulou alguns princípios básicos quando da elaboração dos seus estudos
sobre a Teoria da Ação Comunicativa, “de modo que eles constituíssem uma perspectiva para
condições de vida que rompessem a ambígua noção entre “comunidade” e “sociedade” [...]” e
que comprovassem “um universalismo dotado de uma marcada sensibilidade para as
diferenças” 76. Nesse sentido, o pensador se propôs a discutir as interações entre as correntes
concebidas pelo pensamento filosófico para compreensão do cognitivismo da moral e
demonstração de que é possível a inclusão numa forma de universalismo sensível às
diferenças e para todos, sustentando que essa “comunidade moral se constitui inicialmente
pela ideia negativa da abolição da discriminação e do sofrimento, assim como da inclusão dos
marginalizados – e de cada marginalizado em particular -, considerando uma relação de
77
deferência mútua [...]”. Trata-se, pois, de um universalismo capaz de fundamentar uma
comunidade construtiva, não apenas “um coletivo que obriga seus membros uniformizados à
afirmação da índole própria de cada um”. Em síntese: de um universalismo que signifique
“abertura diante de todos e para todos”.
Dessa forma, com o apoio na teoria discursiva do Estado e do direito, cuja construção
foi verticalizada na obra Direito e Democracia, Habermas desenvolve a temática da inclusão
do outro, e considera os distintos âmbitos e problemas do mundo atual, ampliando em sua
formulação teórica os princípios democráticos da política deliberativa: a progressiva
integração dos mercados internacionais, a globalização dos meios de comunicação, a
crescente diversidade cultural das sociedades contemporâneas e seus conflitos com a
globalização, o esvaziamento da democracia, a tomada de consciência do caráter global dos
direitos humanos, entre outros. Estes foram também examinados sob um prisma filosófico
mais diferenciado por Robert Alexy. 78

75
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2004.p.7.
76
Ibidem.
77
Ibidem.
78
26

Todas essas perspectivas abordadas por Habermas na sua análise (por exemplo: o
direito de manter a própria vida cultural e a obrigação de aceitar o marco político de
convivência definido pelos princípios constitucionais e os direitos humanos), constituem uma
tentativa de impedir que a identidade coletiva, como no caso das minorias, se torne um
mecanismo de exclusão do diferente. Tal exclusão se dá por meio de uma vontade consciente
de homogeneidade social e provoca a marginalização interna de grupos sociais inteiros. A
proposta de Habermas contra a exclusão sistemática consiste na defesa de que a política
própria da democracia deve ser conduzida na direção da “inclusão do outro”. Uma inclusão
que promova a independência da procedência cultural de cada qual é as vias de acesso à
79
comunidade política que devem permanecer sempre abertas. A condição necessária para
sua promoção é que, no maior grau possível, as instituições públicas se dispam de conotações
morais densas e passem a adotar integralmente os procedimentos do direito moderno. Para
Habermas, somente esse tipo de reforma no Poder Judiciário torna factível o estabelecimento
de relações de respeito mútuo entre sujeitos distintos e até estranhos entre si.
Diante de qualquer tentação de exclusão, a teoria habermasiana sustenta a ideia de um
“patriotismo constitucional” pelo qual os cidadãos se identifiquem com os princípios da
própria Constituição – identificação essa que sugere para os indivíduos uma compreensão da
Constituição como uma conquista vincada dentro da história de seus pais e a concepção da
liberdade da nação de maneira universalista. 80
A visão de Habermas sobre o processo de inclusão do outro é, portanto, uma visão
cosmopolita e aberta da comunidade política como uma nação de cidadãos. Este
posicionamento pressupõe que já passou o tempo do Estado Nacional e chegada à hora de
uma integração política supranacional (como a empreendida na Europa), que refuta toda
forma de nacionalismo “fechado”, que, na atualidade, assume a feição de retorno ao culto de
totalitarismos, que se acreditava já superado, a saber, o nazismo e fascismo. Emerge, por
assim dizer, um “novo republicanismo” com vocação mundial suscetível de conjurar a dupla
escolha do novo desprendimento nacionalista e da dissolução do corpo político no mercado
mundial.
Em verdade, Habermas elabora uma construção teórica de inclusão que não pode ser
aplicada em países periféricos, como no Brasil, cuja realidade vivenciada exibe uma extrema
desigualdade social, que vem sendo ampliada e naturalizada por um capitalismo tipicamente
moderno e ocidental, constitutivo de relações políticas e culturais excludentes mantidas no

79

80
27

sistema contemporâneo. Nesse contexto, podemos ressaltar que existem outras formas de
exclusão como a econômica que polarizam a lei na direção do favorecimento daqueles que
detêm o poder.
Por outro lado, cabe destacar, quanto à temática da justiça social, o argumento de
Habermas81 exposto quando ele salienta que a existência das minorias inatas, a exemplo dos
bastos na Espanha, é invisibilizada pelo ideal liberal da autodeterminação (da defesa da
identidade):

O problema [das minorias inatas] também surge em sociedades democráticas,


quando uma cultura majoritária, no exercício do poder político, impinge às minorias
a sua forma de vida, negando assim aos cidadãos de origem cultural diversa uma
efetiva igualdade de direitos.

Portanto, torna-se fundamental garantir a legitimidade das minorias, assegurando-se,


por meio do reconhecimento da diversidade, a igualdade política dos cidadãos. Em suma,
verifica-se a imprescindibilidade deste reconhecimento e o respeito ao diferente para a
garantia da dignidade humana. Esse é o caso de se incentivar, no âmbito da justiça criminal
um trabalho institucional junto aos magistrados para eles devam promover a
efetivação/universalização e de reconhecimento dos direitos a determinados indivíduos em
situação de fragilidade.

1.5.3 Adotando o pensamento marxista para a construção de uma teoria crítica da


igualdade

A concepção marxista trouxe muitos reflexos na área do Direito, sobretudo, no


desenvolvimento de como a teoria da práxis pode influenciar nesse ramo e em outras
transformações, tendo como alvo principal a discussão sobre o princípio da igualdade que
Marx defendeu intensamente nas suas críticas sobre o sistema capitalista imposto na
sociedade; além de conceber em sua concepção fundamentos incontestáveis de como as
estruturas sociais e o capitalismo trouxeram consequências negativas, aprofundando as
desigulades sociais dos grupos minoritários e vulneráveis.
Ao analisarmos o pensamento de Karl Marx, quando aborda um conjunto amplo de
questões, concluiremos que ele reflete de forma dialética 82 com fundamento ontologicamente
materialista, buscando a materialidade do ser. Esta foi a grande revolução no estudo proposto
81
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
82
O conceito de dialética para Marx, segundo José Barata Moura: “É uma consideração epistemológica que
corresponde a um sistema complexo e dinâmico de categorias filosóficas, que visa refletir, analisar e tornar
inteligível os processos reais de caráter natural social ou natural/social.” (MOURA, José Barata. Dialética
Marxista. Lisboa: Editorial Avante, 2010. p. 8).
28

por Marx: a dialética como um método de comportamento, elaborando uma crítica à


metafísica ao considerar a realidade como ela é e de que forma ela se apresenta
objetivamente. O conteúdo fundamental abordado na dialética marxista é a historicidade que
está inscrita no real. Não há uma ruptura com o pensamento de outros filósofos, tais como
Hegel, Fuerbach e outros. A concepção marxista não deixa de apresentar características
idealistas, pois os humanos não são meros expectadores, eles são ingredientes da própria
materialidade do real. A dialética não é um paradigma da consciência ou do pensar
subjetivo.83
A grande contribuição do trabalho de Marx é demonstrar como a dialética está inserida
na sua própria realidade. Ainda, essa perspectiva procura compreender como o papel das
ideias se efetiva e quais as funções que elas desempenham, os interesses que elas refletem,
promovem ou apoiam e como essas relações podem ser anuladas ou superadas de maneira
dialética, crítica e revolucionária. A questão principal não é desenvolver as ideias de forma
mecânica ou como um reflexo, mas sim demonstrar como elas são pensadas do ponto de vista
político. Que papel elas representam no processo de transformação da realidade?
Especialmente, no caso das lutas pelas minorias e grupos vulneráveis?
Um dos maiores objetivos de Karl Marx é colocar a filosofia a serviço das
necessidades da sociedade; dentro dessa teoria se engloba muitos preceitos, dentre eles,
verifica-se a práxis como meio de transformações. E um sentindo totalmente transformador, a
práxis possui uma relação direta com a filosofia crítica do materialismo-histórico; é a teoria
que afirma como as estruturas econômicas determinam as ideias. Logo, são as condições
84
materiais que determinam as condições dos indivíduos e não a consciência delas. . O
marxismo pensava e pensa a sociedade de classes e apóia-se na crítica às contradições do
modo de produção capitalista.
Segundo Karl Marx, não há possibilidade alguma de haver um capitalismo justo, pois
este sistema é estruturalmente injusto e se caracteriza pela exploração do homem pelo
homem, ocorrendo, assim, uma perversa desigualdade que, para ele, a única forma de mudar
isso é superar esse sistema. Na concepção marxista toda realidade histórica acaba por gerar
dentro dela mesma as contradições, que conduzirão à sua própria superação. O feudalismo
gerou a burguesia, grande responsável pelo seu desmoronamento; o capitalismo formará o seu

83

84
“O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em
geral. Não é a consciência dos homens que determina seu ser, é o seu ser social, inversamente, determina sua
consciência.” Marx, K. Líneas fundamentales de la crítica de la economía política. Barcelona:
Crítica,1997.p.23.
29

próprio destruidor, que será o proletariado por conta da luta de classes, que segundo Marx, é o
que transformará a história da humanidade.
Muitos fatores concebem o capitalismo como um sistema negativo, juntamente com a
desigualdade e a diferença, a exploração do homem pelo homem, o que levou Marx a também
a desenvolver categorias relevantes para melhor compreensão desses fenômenos, tais como a
chamada “fetichização” de mercadoria, alienação, mais valia, a super-valorização da
propriedade, dentre outros. O principal fundador disso tudo é a força econômica desse sistema
que destrói todo o restante das atividades sociais. Por estas razões, quando Marx direciona os
seus estudos para a história com fundamentos na economia, sua visão é abordar as razões
originais da exploração, de modo que se possam apontar as raízes das desigualdades de sua
época. (BITTAR, Eduardo; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 2.
ed. São Paulo: Altas, 2002). A teoria marxista se consolida na discussão da sociedade de
classes e na crítica às contradições do modo de produção capitalista.
Marx argumenta que o capitalismo destrói a essência do trabalho, fazendo com que
este não seja uma atividade humana construtiva e plena, como deveria ser. Nesse sistema as
relações de produção trazem consigo dois pontos opostos: os detentores dos meios de
produção; e aqueles que vendem sua força de trabalho, são explorados ao extremo, tais como
os operários que trabalhavam por muitas horas e na maioria das vezes em situações precárias.
Dessa forma, uma pequena parcela da população, a burguesia, é dona dos meios de produção,
enquanto o proletariado, a fim de garantir a sua sobrevivência, é obrigado a vender a sua força
de trabalho em troca de um salário. Logo, a força de trabalho do proletariado é vendida e
comprada como qualquer mercadoria. O proletariado não vende sua força de trabalho apenas
porque assim o quer, como uma escolha feita, de forma livre e espontânea. Ele o faz por
necessidade, pois além de não possuir os meios de produção, não domina completamente o
processo de produção, visto que a burguesia toma esse conhecimento para si com o objetivo
de manutenção desse estado. O proletariado não está produzindo em seu próprio benefício e,
alienado de sua capacidade plena de sua produção, encontra-se também alienado de si
(MASCARO 2012, p.280).
O lugar de fala da teoria marxista é o trabalho humano digno voltado à igualdade e aos
direitos humanos fundamentais. Uma das grandes preocupações conferidas ao debate do
pensamento marxista foi o princípio da igualdade entre todos os indivíduos. Com a
implantação do capitalismo, esse princípio se tornou ainda mais difícil em se concretizar. Por
isso, Marx afirma que para ser materializada a igualdade seria necessário que houvesse uma
ditadura organizada provisoriamente pela classe do proletariado, para aí, posteriormente, o
30

sistema socialista ser utilizado na construção de uma sociedade com ideias e fins iguais. Para
Marx, o princípio da igualdade deve ocorrer através de uma construção jurídico-formal com
força normativa, genérica e abstrata, buscando estabelecer que todos sejam iguais perante
todos, sem qualquer distinção ou privilégio para alguns.
A concepção marxista dialoga com o Direito. 85 Nesse sentido, os fatores sociais e
econômicos influenciam inteiramente no âmbito do Direito para construção de uma teoria
jurídica da igualdade. Conforme, ainda, assevera: o Estado e o Direito são determinantes para
que perdure a divisão de classe na sociedade, e são definidos como superestruturas. A
infraestrutura compreende a área da religião, moral, educação, cultura, responsáveis pela
proteção e existência saudável do sistema econômico. Entretanto, essas superestruturas na
realidade não cumprem seu objetivo e são usadas como uma forma de dominação, alienando o
ser-humano, afastando a capacidade crítica; servindo apenas para acolher os interesses
daqueles que detêm o poder, os donos dos meios de produção e as necessidades da classe
dominante86.
A classe dominante, por meio do Estado, é quem legitima a relação de exploração e
dominação da classe proletariada, a partir da perspectiva da dominação/liberdade e igualdade,
Podemos afirmar que essa exploração é viabilizada pela aceitação de dominação do
proletariado e da sua condição de ser explorado. Essa ideologia é garantida pela restrição dos
direitos sociais como forma de forçar o indivíduo a aceitar as condições de trabalho que lhe
são oferecidas.
No que diz respeito à propriedade, que ajuda mais ainda a criar a desigualdade dentro
da sociedade, ela é uma grande forma de selecionar as pessoas. Pois não são todos os

85
Marx investiga profundamente a influência do Direito nesse sistema, em que apenas quem possui os meios de
produção são privilegiados, discutindo até o que é o próprio conceito de Direito: “O primeiro grande debate
reside em torno da própria noção do que é o direito para Marx e o marxismo, e sua intimidade ou distância com o
fenômeno estatal e, ao mesmo tempo, a intimidade ou distância de ambos com o próprio sistema capitalista.
Nesse sentido, levanta-se a grande corrente do debate soviético, que pioneiramente, a partir da Revolução Russa,
teve que tratar do fenômeno do direito estatal numa sociedade que buscava romper com o capitalismo.”
(MASCARO, Filosofia do Direito, p. 448).
86
O Estado seria também uma instituição a serviço da classe dominante, pois além de se estruturar por modelo
jurídico é fonte criadora do Direito. A extinção das classes provocará, igualmente, a extinção do Estado.”
(NADER, Filosofia do Direito, 7. ed., p. 229). Marx acreditava que com a implantação da ditadura do
proletariado essas superestruturas poderiam ser excluídas, até mesmo o Direito, já que aqui ele não funcionada
de forma coerente, visando a atender a todos, ele não é um instrumento para se realizar a justiça. Marx investiga
profundamente a influência do Direito nesse sistema, em que apenas quem possui os meios de produção são
privilegiados, discutindo até o que é o próprio conceito de Direito: “O primeiro grande debate reside em torno da
própria noção do que é o direito para Marx e o marxismo, e sua intimidade ou distância com o fenômeno estatal
e, ao mesmo tempo, a intimidade ou distância de ambos com o próprio sistema capitalista. Nesse sentido,
levanta-se a grande corrente do debate soviético, que pioneiramente, a partir da Revolução Russa, teve que tratar
do fenômeno do direito estatal numa sociedade que buscava romper com o capitalismo. (MASCARO, Filosofia
do Direito, p. 448).
31

indivíduos nesse sistema que podem usufruir desse bem, outra questão a ser discutida também
é o trabalho que se torna apenas mais uma mercadoria nesse meio; as massas populares
apenas vendem sua força de trabalho e, diante disso, geralmente aliena sua liberdade, seu
tempo de vida e, principalmente, sua dignidade, que atualmente é um dos fundamentais
princípios que deve ser defendido pelo Direito.
O antagonismo entre a propriedade privada e o princípio da igualdade se encontra na
lógica da dominação estatal do sistema capitalista. O Estado é composto por uma classe
burguesa e dominante que, para alcançar os seus interesses, utiliza o direito como instrumento
de manutenção do status quo na medida em que deixa de garantir os direitos sociais básicos
de todo cidadão e passa a defender os interesses particulares da classe dominante.
Por outro lado, Marx aponta a definição da Justiça como um conceito de conteúdo
fechado. Justo é aquilo que concorda com modo de produção e injusto é o que lhe contraria,
sendo o capitalismo um sistema em que a escravatura tão injusta quanto uma fraude na
qualidade da mercadoria. (MARX apud MASCARO, 2012, p.300). Como afirma Marx (2010,
p. 49) “O homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do homem, é a
existência humana, enquanto nas outras formas de estado o homem é a existência legal. Tal é
a diferença fundamental da democracia”.
Em suma, tem-se então, duas principais categorias fundamentais trabalhadas pela
teoria marxista: a luta de classes antagônicas e o materialismo dialético. Ressalte-se que este
seria, para Marx, o motor que move a sociedade tanto em seu constante processo de formação
como também de transformação e não um contrato social que separa o homem em seu estado
de natureza do estado civil. Segundo Marx, o Direito não é, portanto, fruto de um contrato
social como defendia John Locke ou a  positivação dos direitos naturais, como apregoava a
filosofia moderna. Ele é fruto de um processo histórico gerado pelas relações sociais
provenientes das relações econômicas.

1.6 Ocupando espaços invisíveis: o grupo vulnerável das mulheres condenadas por
tráfico de drogas
Como verificamos a expressão cunhada por vulnerabilidade alcançou o debate
internacional não só em relação aos direitos humanos, bem como no que diz respeito ao
processo de efetivação/universalização e de reconhecimento dos direitos a determinados
indivíduos em situação de fragilidade, especialmente no que tange à dignidade humana. De
todo o estudo feito até aqui, podemos destacar que a condição de vulnerabilidade está atrelada
à identificação de práticas discriminadoras, desiguladades e exclusão social em relação a
32

minorias ou grupos vulneráveis87. (Falar com o Luiz Otavio se é o caso de trazer 1 parágrafo,
p. 10.
As mulheres de um modo amplo sofrem discriminação, especiamente às que pertençam
a grupos minoritarios ou vulneráveis, podendo em muitas situações ser consideradas
particularmente marginalizadas. Em outros casos, além de terem acesso restrito ou negado aos
direitos e serviços, enfrentam outras limitações. A elas, muitas vezes, são negado ou limitado
o direito de cidadania independentemente da sua inclusão social, raça ou crença, entre outros.
Ainda mesmo aquelas não enquadradas a grupos estigmatizados, podem ser diferenciadas
negativamente, com represálias motivadas por questões culturais. A simples hipótese de lhes
ser facultada o direito de optar ou não pelo uso do sobrenome do marido é uma demonstração
de que, no mínimo, ainda remanesce uma discriminação sociocultural.
Em sua relevante obra Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, Judith
Butler apresenta uma discussão sobre o sujeito do feminismo que viria a pautar a agenda da
teoria feminista a partir de então. O encontro entre política e vulnerabilidade é reconhecido
pela maior parte das concepções políticas contemporânea como um encontro não apenas pos-
sível, mas também necessário, especialmente pela teoria feminista. Nesse livro, o principal
ponto de Butler é o de formular uma crítica ao que chama de categoria da mulher universal,
uma identidade política que unificaria todas as mulheres em um agente coletivo. Ainda que
reconheça que essa categoria tenha cumprido um papel político importante na organização do
movimento feminista ao longo da história, Butler observa que a ficção da mulher universal
produz e silencia exclusões no interior do próprio movimento feminista, tais como

desigualdades sociais, geopolíticas, raciais, diversidade sexual, etc4.


Nessa demanda, podemos perfeitamente examinar o enquadramento das mulheres
condenadas por tráfico em situação de cárcere no grupo vulnerável, devendo ser observadas a
questão no âmbito de redução da desigualdade e dos direitos fundamentais deste grupo, 88. É
nessa direção que se emoldura o estudo do objeto deste trabalho: as mulheres condenadas por
tráfico de entorpecentes, em situação de encarceramento pelo sistema judicial brasileiro, tendo
em vista o cenário de invisibilidade, violência epistêmica e descaso em que estão inseridas as

87
(CAYRES; CIDADE, 2015, p. 174).
88
Ao exercer concretamente a punibilidade, o Estado tem cerceado não somente a liberdade do cidadão/cidadã
das mulheres condenadas por tráfico de entorécentes, mas também outros direitos fundamentais não abrangidos
pela decisão condenatéora, tais como a: honra; privacidade; intimidade; liberdade sexual; saúde; educação;
assistência jurídica; alimentação; higiene pessoal. Estes são elementos que parecem invisíveis ao Estado, pois o
que se vivencia é um sistema longe de servir de instrumento que vise a ressocialização dos presos (ÁVILA;
SANTOS, 2017, p. 269). O total desrespeito dos direitos fundamentais é revelado de forma inequívoca no retrato
brasileiro do cárcere, e esta realidade é consideravelmente intensificada nas prisões de mulheres
33

mulheres que acabam sendo encarceradas. A situação nacional de nosso sistema penal
brasileiro revela muito bem as fragilidades das políticas criminais e sociais no que concerne à
redução das desigualdades e ao fortalecimento da cidadania dessas mulheres.89
A problematização abordada no presente estudo visa a dar visibilidade a grande parcela
da sociedade muito estigmatizada, esquecida e em situação de extrema vulnerabilidade que
são as mulheres condenadas e pelo sistema de justiça brasileira. Nesse sentido, para melhor
compreensão do tema, seria preciso ir além das muralhas penitenciárias para se compreender
além do aprisionamento feminino, tendo em vista que a grande parte dessas mulheres
encontra-se submetida a um cenário de invisibilidade e descaso.
Assim, afigura-se muito importante a discussão sobre a indispensabilidade de análise
epistemológica feminista para uma verdadeira compreensão do cenário de vulnerabilidade
feminino vivenciado na atualidade. Embora não tenha sido abordado num primeiro momento
neste estudo, é certo que o fenômeno da vulnerabildade também adentrou aos muros da
criminologia por meio da sua vertente crítica, comprometida com a situação de
vulnerabilidade das mulheres, quando se busca compreender os processos sociais e históricos
que, em verdade, contribuem para a criminalização de determinada parcela das mulheres e os
critérios imprescindíveis da seletividade e do controle sociais, os quais caracterizam o sistema
de justiça criminal; sob tal matéria de extrema relvância nos ocuparemos mais adiante.

89

Вам также может понравиться