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Desidério Murcho
Talvez o argumento matemático seja mais persuasivo para quem não dá grande
importância à liberdade. O argumento matemático é muito simples. Imagine-se que
temos uma linha de montagem de automóveis, da qual saem vinte automóveis por dia.
Ao verificar que muitos dos automóveis saem sem qualquer qualidade, alguém decide
colocar um controle de qualidade no fim da linha de montagem. Será que tal coisa pode
funcionar?
É improvável que, dos vinte manuais de uma dada disciplina, só os cinco ou seis que
realmente têm qualidade sejam certificados. Mas se só cinco ou seis têm realmente
qualidade, isto significa que serão certificados manuais com erros científicos e
didácticos gritantes. E pior do que ter maus manuais no mercado é ter maus manuais
certificados.
Dada a situação grave do ensino, em grande parte motivada por Programas maus, a
certificação de manuais corre o risco de se tornar mais um instrumento de poder de um
Ministério da Educação que há anos está apostado em destruir os conteúdos cognitivos
centrais dos Programas. A Matemática não é para ensinar matemática, a História não é
para ensinar história, a Filosofia não é para ensinar filosofia e nem a nova disciplina
fantasiosamente chamada Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) serve para
ensinar tecnologias de informação e comunicação, mas antes para formar para a
"cidadania".4 Desde há vários anos que os técnicos do Ministério da Educação se têm
dedicado a esvaziar os conteúdos cognitivos centrais do ensino, substituindo-os por
fantasias, brincadeiras, formação para a cidadania — tudo e mais alguma coisa, menos
os conteúdos centrais das disciplinas centrais. Assim, é muito provável que um bom
manual possa ser afastado por não cumprir o Programa — apesar de não o cumprir
precisamente porque os autores não querem incluir no manual tolices sem sentido,
concentrando-se antes nos conteúdos científicos que os técnicos do Ministério da
Educação excluíram dos Programas.
Ora, esta situação não acontece apenas na disciplina de Português. Em quase todas as
disciplinas acontece o mesmo: quem quiser fazer um manual de qualidade tem de
subverter os Programas, porque os Programas subvertem, por sua vez, as disciplinas em
causa. Se sem certificação havia poucos manuais com qualidade, redigidos por pessoas
que amam as disciplinas e o conhecimento, e que querem transmitir conteúdos sólidos e
centrais às crianças e adolescentes, com certificação a existência de tais manuais será
reduzida a quase zero. O que teremos serão fantasias sem conteúdos, com muitos
bonecos, que seguem religiosamente os maus Programas das disciplinas, cheios portanto
de idiotices sem qualquer dignidade escolar,6 porque o Ministério da Educação não quer
que os professores ensinem conteúdos centrais: quer que eduquem para a cidadania, que
ocupem os tempos livres dos meninos, que os levem a passear — tudo, menos ensinar
seriamente matemática, história ou português.
Acresce que num país particularmente dado à corrupção, conceber uma certificação de
manuais que seja isenta, cientificamente informada e didacticamente sensata é pedir a
Lua. Isso nunca acontecerá. Haverá muito dinheiro a circular, compadrios, decisões
baseadas em boatos e ódios pessoais, incompetência e irresponsabilidade. Não adianta
defender a certificação argumentando que se defende um modelo isento, imparcial,
cientificamente rigoroso, didacticamente cuidado. Com o mesmo tipo de argumento
poderíamos dizer que não vale a pena ter Polícia: num mundo maravilhoso em que não
há pessoas dispostas a roubar e a matar, não precisamos de Polícia. Só que o mundo não
é assim. Quando concebemos uma medida administrativa, é irrelevante argumentar que
a medida seria perfeita se o mundo fosse perfeito, pois tal medida não será aplicada
nesse mundo platónico, mas sim no mundo real — térreo, imperfeito, feio e sujo.
Desidério Murcho
Notas
1. Cf. "Liberdade, Excelência e Manuais Escolares" , "Mais ou Menos "Margem de
Manobra"?" e "A Qualidade dos Manuais Escolares".
2. Esta foi a contraproposta do próprio Conselho Nacional de Educação, que se
opôs ao modelo de certificação entretanto aprovado, sugerindo uma alternativa
democrática, que não envolvesse censura prévia de manuais. Cf. "Conselho
Nacional de Educação Critica Proposta de Avaliação Prévia dos Manuais
Escolares", in Público (7 de Janeiro de 2006).
3. Veja-se uma análise dos vários manuais de filosofia disponíveis no mercado
para o 10.º e 11.º anos na publicação Filosofia e Educação: "Manuais Escolares:
10.º ano" e "Manuais Escolares: 11.º ano". Ao contrário do que os autores
afirmam, o facto de serem eles mesmos co-autores de um dos manuais não os
coloca em má posição para avaliar manuais; pelo contrário, coloca-os em melhor
posição, pois sabem bem quão difícil é fazer um bom manual, conhecem os
Programas e as bibliografias. Este é o tipo de avaliação voluntária do trabalho
dos colegas que faz falta na cultura portuguesa, e que infelizmente é vista com
maus olhos.
4. Veja-se o "Programa de Matemática Aplicada às Ciências Sociais", onde se pode
ler preto no branco o seguinte: