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Participação popular e educação nos primórdios da saúde pública

brasileira.

EYMARD MOURÃO VASCONCELOS1

Muitos profissionais e militantes no campo da saúde freqüente-


mente se irritam e se desanimam ao se depararem com os limites da
participação popular nas políticas de saúde. Gostariam que suas iniciati-
vas fossem suficientes para desencadear as transformações que preten-
dem. No entanto, a relação entre os serviços de saúde e a população é
condicionada por dimensões estruturais complexas que precisam de uma
análise histórica para serem melhor entendidas. As ações de saúde se
inserem em processo muito mais amplo de mudança social que depende
fortemente de dinâmicas culturais, políticas e econômicas que acontecem
fora dos serviços de saúde. É um processo de mudança dependente de
longos prazos. A compreensão do significado de nossas ações particula-
res dentro dessa dinâmica social mais ampla nos permite criar uma refe-
rência para as suas possibilidades e estratégias.

Este texto, ao procurar contextualizar as transformações da participação


dos atores populares no cenário político do final do século XIX e início do
século XX, quando se organizaram as primeiras iniciativas ampliadas do
Estado brasileiro no campo da saúde, busca mostrar os grandes avanços
já ocorridos em relação a presença do interlocutor popular nas políticas
de saúde. Procura mostrar também a forma como as mudanças políticas
gerais influenciaram a dinâmica da participação popular nos serviços de
saúde e como o campo da saúde representou espaço importante de for-
talecimento e elaboração da participação popular no cenário político na-
cional. Baseia-se em estudos históricos realizados por outros autores,
mas procurando interpretá-los a partir do modo de olhar da Educação
Popular.

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A. BRASIL IMPÉRIO: A AUSÊNCIA DO ATOR POPULAR NA
CENA POLÍTICA

Desde o período colonial, os escravos eram a grande maioria da popula-


ção trabalhadora no Brasil. Eles não tinham qualquer reconhecimento
social e político e, portanto, não tinham qualquer tipo de direito. Sua
desqualificação era de tal ordem que o trabalho era visto como algo sim-
ples e bruto, capaz de ser executado por "peças" e animais. O trabalho
não era um meio para obter uma vida melhor. Trabalhava-se, não para
obter melhores meios de vida, mas para não morrer ou ser morto. O tra-
balho não era visualizado como um dever, nem como um direito, e esta-
va completamente desvinculado do ideal de cidadania (Gomes, 1991).

No mundo rural daquela época, entretanto, além do escravo e do latifun-


diário, existiam também os chamados "homens livres". Na verdade não
eram livres e, sim, extremamente dependentes dos donos da terra (S-
chwarz,1973), característica determinada pela forma como nossa coloni-
zação se processou. O mecanismo adotado pela Coroa portuguesa para
explorar as riquezas de sua Colônia fora o fiscalismo: política que consis-
tia no encorajamento de atividades econômicas de maneira que o Esta-
do português pudesse coletar os impostos correspondentes. Como Por-
tugal não contava nem com recursos humanos nem com meios financei-
ros para ocupar efetivamente a posição de controle de uma terra tão
vasta, adotou uma política de coexistência pacífica com o poder local,
que se materializava pela omissão do poder público. Em troca da omis-
são, o poder central podia contar, em geral, com o apoio do poder local.
Assim, a gestão do processo político local era uma atribuição, de fato,
dos grupos sociais que dominavam o panorama econômico. Tal esque-
ma, de um lado, levou à hipertrofia das funções dos senhores de terra e,
por outro, viabilizou a legitimação do Estado. A família do senhor de ter-
ras torna-se o núcleo central da sociedade rural da colônia. Seu chefe, o
patriarca, exerce uma tirania ao nível local similar a do Estado sobre a
Nação. Essa tirania, como no caso do Estado, é atenuada pelo paterna-

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Médico com especialização em Medicina Interna e Saúde Pública, Mestre em Educação, Doutor em
Medicina Tropical, professor do Departamento de Promoção da Saúde da Universidade Federal da
Paraíba.

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lismo. Nesse contexto político, os chamados "homens livres", não sendo
proletários nem proprietários, só podiam ter acesso à vida social e a seus
bens através do favor, direto ou indireto, de um grande. Suas sobrevi-
vências dependiam pois da criação de um pacto de fidelidade de prote-
ção-servidão que impedia que assumissem qualquer posição como ator
político autônomo. Essa situação perdurou por todo o Império, quando
assumiu até mesmo um caráter mais oficial, com a instituição, a partir
de 1831, da Guarda Nacional em que os grandes poderosos de cada mu-
nicípio eram nomeados "coronéis", assumindo explicitamente o poder
militar a nível local. Este tipo de acordo entre o poder central e os gran-
des proprietários rurais foi de tal forma eficaz que permitiu a manuten-
ção da unidade nacional, o que não foi possível na América espanhola
(Burztyn, 1984).

O Brasil, sendo uma monarquia parlamentarista, tinha eleições. Mas vo-


tavam apenas os cidadãos-proprietários, ou seja, homens com posição
social e econômica proeminente. A elite política brasileira compartilhava
do pensamento liberal dominante no mundo ocidental de que era inviável
a convivência da livre iniciativa econômica e, portanto, da prosperidade
com o direito universal ao voto. Os escritores liberais clássicos acredita-
vam que a liberdade e a independência eram as realizações mais valio-
sas da sociedade, que mereciam ser protegidas, em qualquer circunstân-
cia, contra as ameaças igualitárias da sociedade de massa e da política
democrática de massa, ameaças essas que levariam necessariamente à
tirania e à "legislação de classe" pela maioria destituída de propriedades
e de educação (Offe, 1984). Portanto, nem a nível eleitoral, as classes
populares tinham qualquer instrumento de representação política.

A hegemonia dos grandes proprietários rurais só começa a ser arranhada


com o progressivo processo de urbanização a que se assiste no período.
A Independência política não significara nenhuma grande modificação da
forma de organização da economia. Exigiu, no entanto, um amadureci-
mento da elite econômica brasileira no sentido de passar a assumir um
papel dirigente na política. As atividades de gerenciamento político da
nação, de financiamento da produção e de comercialização se desloca-

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ram de Portugal para os grandes centros urbanos nacionais. Pequenas
indústrias começam a florescer. Essa dinamização e expansão da vida
urbana se deu basicamente no Rio de Janeiro, São Paulo e, em menor
escala, em Recife e Salvador (Fernandes, 1975). Nesses centros se de-
senvolve uma vida intelectual que vai aos poucos se diferenciando do
pensamento dos grandes senhores de terra. O crescimento do movimen-
to abolicionista a partir da segunda metade do século XIX é o maior e-
xemplo. No entanto, apesar deste movimento enfrentar uma questão
essencial para os trabalhadores brasileiros, a sua base de sustentação
não eram os atores populares (Bosi, 1992).

No período Imperial, tivemos apenas o nascimento das primeiras organi-


zações operárias. No começo do século XIX, já existiam algumas associ-
ações de artesãos, mas organizadas sob a forma de irmandades religio-
sas. As primeiras organizações operárias, sem um caráter essencial-
mente religioso, foram associações voltadas para a ajuda mútua em si-
tuações de doença, acidentes no trabalho, invalidez, etc.. Em 1836, nas-
ce em Pernambuco a Imperial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Libe-
rais, fundada inicialmente por dez carpinteiros. Devido à legislação vi-
gente que já dificultava a associação de trabalhadores, ela só pôde se
tornar pública em 1841 e só teve os seus estatutos aprovados em 1882.
Apesar das dificuldades, ela se expandiu e, em 1880, já inaugurava o
Liceu de Artes e Ofícios em Recife. Outras associações se seguem: Asso-
ciação Tipográfica Fluminense (1853), Sociedade Beneficente dos Caixei-
ros (1853), Associação dos Empregados da Tipografia Nacional (1873),
Sociedade União Operária ( dos trabalhadores de carga e descarga do
café no porto de Santos em 1877), etc.. Surgem também pequenos jor-
nais operários que, apesar de terem uma circulação restrita, anunciavam
o despertar de uma consciência popular: "Anarquista Fluminense" (1835,
Rio), o "Socialista" (1845, Niterói), "O Proletário" (1847, Recife), "O
Operário" (1864, São Paulo), etc.. Neste contexto, aparecem as primei-
ras greves: dos gráficos de três jornais cariocas (1858), dos trabalhado-
res da Estrada de Ferro Dom Pedro II (1863), dos caixeiros e comerciá-
rios do Rio de Janeiro pelo fim do trabalho à noite e aos domingos
(1866), etc. Essa movimentação operária era, no entanto, ainda muito

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embrionária e de pequeno significado no jogo político nacional (Ação Ca-
tólica Operária, 1985).

É interessante notar que a questão da saúde estava fortemente presente


na motivação das primeiras organizações populares: as associações de
auxilio mútuo. Elas representaram a primeira forma de participação das
classes populares no enfrentamento das questões de saúde. Mas não era
uma participação nos serviços de saúde, pois suas atuações eram mais
voltadas para o apoio individual ao companheiro em situação emergenci-
al. Os poucos serviços de saúde que atendiam à classe popular eram as
Santas Casas de Misericórdia, organizadas a partir da Igreja Católica
com o apoio da elite econômica. Nelas, a assistência médica aos traba-
lhadores era vista como caridade e não como direito. Aos trabalhadores
só cabia a gratidão e não a participação.

A quase totalidade da prática médica oficial se organizava voltada para


as famílias da elite econômica e política a partir de uma atuação médica
liberal. Um grande número de publicações médicas se preocupava em
discutir a organização e a higiene das famílias dos senhores de terra e
dos "cidadãos de bem" dos centros urbanos, vistas como desleixadas.
Inicia-se uma cruzada para europeizar os costumes e urbanizar os hábi-
tos da elite brasileira, objetivando a transformar a antiga família colonial,
composta de agregados, escravos domésticos e serviçais, em uma insti-
tuição conjugal e nuclear marcada pelo sentimento de privacidade, onde
os pais e os filhos valorizassem o convívio íntimo e exclusivo entre eles e
onde o amor fosse a motivação para uma série de iniciativas voltadas
para o desenvolvimento físico e emocional dos filhos (Machado, 1978).
Tudo isto se passava num contexto de construção de um Estado nacio-
nal, após a Independência, a partir do alargamento dos papeis da elite
econômica.

Assim, as classes populares não participavam nem mesmo como objeto


significativo da ação médica durante o período imperial. A maior preocu-
pação com o escravo, por exemplo, era em relação ao seu papel negati-
vo para a saúde das famílias brancas de elite, na medida em que trans-
mitia doenças e levava à devassidão . As populações periféricas das

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grandes cidades despertavam preocupações médicas apenas enquanto a
imundície de suas ruas e seus quintais era considerada como foco de
propagação das doenças pestilenciais causadoras de epidemias. Portan-
to, participação das classes populares no direcionamento das práticas de
saúde era algo não pensado. Pobre só tinha voz na medicina que lhe res-
tava: a medicina dos chás, das simpatias e das rezas, que era executada
por barbeiros, sangradores, empíricos, curandeiros, parteiras e "cirurgi-
ões” (Singer, 1978).

Neste contexto,as condições de saúde dos trabalhadores, principalmente


dos escravos, eram precaríssimas. Segundo Celso Furtado (Costa, 1986),
o primeiro censo demográfico, feito em 1872, demonstrou existirem no
Brasil 1,5 milhões de escravos. Tendo em vista que o número de escra-
vos no começo do século era maior que 1 milhão e que, nos primeiros 50
anos do século XIX, foram importados mais do que 500 mil escravos,
deduz-se que a taxa de mortalidade era superior à taxa de natalidade.

B. ABOLIÇÃO E PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA: A CONS-


TRUÇÃO DA IDENTIDADE DO ATOR POPULAR

A Proclamação da República (1889), juntamente com a Abolição da es-


cravidão (1888), marcam um dos momentos de maior transformação
social já vivido pelo país. A chamada Primeira República, que se segue, é
o período de delineamento da identidade social e política do trabalhador
brasileiro. Evidentemente, havia anteriormente trabalhadores mas não
uma classe trabalhadora. Até então, os escravos era que haviam traba-
lhado no Brasil e a sociedade imperial escravista desmerecera inteira-
mente o ato de trabalhar. Se durante o período imperial o processo de
construção do Estado estava em curso e teve amplo sucesso, com a ma-
nutenção da unidade territorial e a expansão do aparelho do Estado, o
processo de construção da Nação estava comprometido pela própria e-
xistência da escravidão. Só com a Abolição e a República se inaugura a
situação formal de que todos os homens são iguais perante a lei e se
pode passar da construção do Estado para a construção da Nação, en-

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frentando a questão-chave da extensão dos direitos de cidadania, quer
fossem civis, políticos ou mesmo sociais.

A construção da identidade social da classe trabalhadora era inicialmente


uma ficção e uma utopia, porque situava-se como uma esperança e um
desejo para os próprios trabalhadores. Este fato é bem ilustrado por um
artigo publicado no jornal socialista Echo Popular, em 10 de abril de
1890, portanto, alguns meses após a proclamação. Ele diz o seguinte:

Quem é o operário?

É um homem honesto, laborioso e que precisa

sofrer o rigor da sorte para sustentáculo

de todas as classes sociais.

O que é o operário?

É um cidadão que representa o papel mais

importante perante a sociologia humana.

O que deve ser o operário?

Um homem respeitado, acatado, porque só ele

sofre para que os felizes gozem; deve ou não

ser tão bom cidadão como outro qualquer?

Tem ou não perante a lei natural ou

escrita - o direito e dever - de pugnar pelos

direitos e defesa das classes a que pertence?

É intuitivo que sim!

O texto começa traçando uma auto-imagem centrada no valor positivo


do ato de trabalhar com as próprias mãos, de onde decorre a dignidade
da figura do trabalhador e o seu papel central no mundo econômico e
social. O valor do trabalhador é ainda, nessa época, baseado em valores

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morais. O interessante do texto é quando coloca o respeito e o acata-
mento como bom cidadão em algo que ainda deve ser conquistado. O
que o articulista do Echo Popular está reivindicando é a transformação da
classe trabalhadora em ator coletivo legítimo do cenário político nacional,
exatamente no momento em que a escravidão acaba de ser abolida e a
República proclamada. É um texto que mostra uma situação completa-
mente diferente daquela retratada 64 anos depois, neste trecho do dis-
curso pronunciado pelo presidente da República, Getúlio Vargas, na co-
memoração do Dia do Trabalho, 1o de maio de 1954:

....E pelo voto podeis não só defender interesses como influir nos
próprios destinos da Nação. Como cidadãos, a vossa vontade im-
perará nas urnas. Como classe podeis imprimir ao vosso sufrágio a
forca decisória do número. Hoje estais com o governo. Amanhã
sereis o governo.

Nesse segundo texto, evidencia-se uma situação em que os trabalhado-


res já foram incorporados ao corpo político da Nação. São cidadãos que
legitimamente defendem seus interesses - logo suas reivindicações de
classe - com o peso de sua força numérica. Neste caso, não são os tra-
balhadores que falam, mas o Presidente, e ele lhes acena não mais com
o direito de ter participação e representação política, mas com o próprio
direito de governar, de assumir a direção política da Nação.

O que ocorreu nesse período para alcançar esta transformação? Como se


deu este processo?

A resposta a estas perguntas é importante para se entender a complexi-


dade da constituição e fortalecimento do ator popular na cena política
nacional e especificamente dentro das políticas de saúde.

Produzir a identidade política e social para o trabalhador era um esforço


muito grande. Em primeiro, lugar porque se tratava de afirmar a digni-
dade do próprio ato de trabalhar e da figura do trabalhador em distinção
à figura do escravo. Além disto, os trabalhadores brasileiros, no fim do
século passado, não são um todo homogêneo. Eles se diferenciam em
cor, sexo, nacionalidade (a imigração cresce muito no final do século XIX

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e permanece alta até os anos 20) e numa grande variedade de profis-
sões: funcionários, agricultores, operários, artistas, artesãos, assalaria-
dos, etc.. Esta grande diversidade demonstra a necessidade e a dificul-
dade de se construir um campo comum, uma área de igualdade capaz de
produzir auto-reconhecimento e reconhecimento pelos outros. É preciso
descobrir valores e inventar símbolos capazes de produzir uma nova tra-
dição. E a criação de um discurso com o qual os trabalhadores se identi-
fiquem necessita ainda ganhar concretude através de instrumentos or-
ganizacionais, cujas diversas alternativas exigiram tempo e muitas
tentativas frustrantes para amadurecerem. Muitos são os que competem
para falar em nome dos trabalhadores(Gomes, 1991).

1. Subordinação dentro de um sistema coronelista de


assistência à saúde do camponês

Com a proclamação da República, o direito ao voto tinha teoricamente se


generalizado a toda a Nação, mas apenas os indivíduos masculinos e al-
fabetizados podiam votar. Num país onde os trabalhadores eram, na sua
grande maioria, analfabetos, esta restrição significou um enorme empe-
cilho à participação na vida política. Segundo estudo de Hugo Heclo (Mal-
loy, 1979), não mais do que 2,9% da população participou das primeiras
eleições presidenciais após a proclamação da República. Além do mais,
perto de 70% da população era rural. No mundo rural, as classes popu-
lares eram submetidas a um modelo de controle político: o coronelismo.
É fundamental compreendê-lo, pois este modelo criou raízes profundas
na tradição de relação entre a elite econômica e os trabalhadores brasi-
leiros.

Os postos de "coronel" da Guarda Nacional, concedidos aos poderosos


locais a partir de 1831, tiveram um importante papel na legitimação do
Estado imperial e no apoio ao exército durante as guerras estrangeiras.
Com a proclamação da República, esse papel se transformou parcialmen-
te, assumindo uma função mais eleitoral para o governo central. O termo
"coronel" passou aos poucos a designar os mandões da política local (em

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geral, os latifundiários) independentemente da concessão oficial do títu-
lo, significando muito mais uma forma bastante específica de prática po-
lítica. Uma prática política que, com novas roupagens, continua impor-
tante em amplas áreas rurais brasileiras, principalmente no Nordeste e
em outras regiões mais atrasadas economicamente.

O poder do "coronel" se sustentava, não apenas na coerção que exercia


através de seus empregados armados, mas principalmente na depen-
dência econômica dos moradores locais e num pacto paternalista que
com eles estabelecia. Como a grande maioria da população rural não ti-
nha terra nem acesso aos recursos do aparelho estatal (inclusive à Justi-
ça), dependia inteiramente do "coronel". Mesmo que tivesse consciência
dos seus direitos e quisesse exercê-lo de um modo autônomo, não pode-
ria fazê-lo. Qualquer insubordinação era punida com a expulsão das ter-
ras, com violências físicas ou com a ameaça de não mais receber ne-
nhuma ajuda nos futuros momentos de necessidade. Neste sentido, o
"coronel" não era apenas ameaça, mas também o pai protetor. É ele que
assiste o trabalhador rural nas dificuldades da vida, aluga-lhe um trecho
de terra para plantar, fornece-lhe remédios, protege-o das arbitrarieda-
des do governo e de outros poderosos locais, é seu intermediário junto
às autoridades e ajuíza as rixas e desavenças. Além disto, para silenciar
os adversários e para contentar os amigos, o "coronel" sente a necessi-
dade de se apresentar como campeão de melhoramentos locais. O pres-
tígio político de que desfruta o habilita como advogado de interesses da
região.

Em troca desta "assistência e proteção", o morador responde com sua


fidelidade, submissão e serviços. Estabelece-se um pacto que não é uma
simples troca, mas algo marcado por um conteúdo moral, afetivo e cul-
tural. É uma construção realizada durante séculos e, portanto, profun-
damente enraizada na cultura da população pobre e das elites rurais.
Afinal, era deste pacto que dependera a precária sobrevivência do cha-
mado "homem livre" antes da abolição da escravidão e de que passou,
então, a depender todo trabalhador rural. É justamente por causa da
eficácia deste pacto de submissão e proteção em impedir a constituição

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das classes populares rurais como ator político autônomo, que a popula-
ção rural foi a última a ser servida por uma política de saúde diferencia-
da, com a criação do Funrural, ocorrida apenas em 1969.

Neste pacto, um dos serviços que o morador presta ao "coronel" é o voto


no seu candidato. Assim, com esses "votos de cabresto", formam-se os
"currais eleitorais". Estes votos seguros são a moeda com que o "coro-
nel" negocia alianças com o poder público e os seus agrupamentos políti-
cos. Apoia-os eleitoralmente em troca de benefícios governamentais.
Somente com estes apoios do poder público pode o "coronel" continuar
controlando, com vantagem, o seu "curral eleitoral", pois se trata de um
sistema de dominação com um custo de manutenção significativo. Nesse
sentido, o coronelismo é também uma forma de repasse para a popula-
ção dos recursos do Estado. No entanto, uma forma de repasse que
mantém a submissão das classes populares. E é justamente por causa
desta dependência do "coronel" em relação aos recursos estatais que o
mesmo sempre tendia a assumir uma posição de apoio incondicional aos
candidatos do partido no poder (Leal, 1978).

Nessa perspectiva, pode-se dizer que o primeiro sistema de assistência à


saúde da população rural se deu dentro deste pacto de submissão-
proteção entre o camponês, o "coronel", o governo estadual e governo
federal, marcado pela cultura da troca de favores. Nele, o camponês par-
ticipava individualmente a partir de um jogo de negociação mediado por
uma linguagem simbólica e afetiva, através da qual a submissão era
também uma estratégia de se conseguir mais benefícios. O camponês
reivindicava e influenciava a utilização dos recursos estatais de saúde
através de uma estratégia e um discurso de franca subordinação ao “co-
ronel” que servia de intermediário entre o governo e a população.

Assim, o poder político efetivo estava nas mãos de uma elite fundamen-
talmente rural que formava coalizões regionais a fim de controlar os go-
vernos estaduais, e coalizões nacionais, para controlar o executivo fede-
ral, no que se chamou a "política dos governadores". Os presidentes e-
ram sempre líderes políticos em Estados importantes, especialmente Mi-
nas Gerais e São Paulo, e formavam coalizões a partir de máquinas polí-

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ticas estaduais. Embora não houvesse partidos nacionais, o regime ca-
racterizou-se por uma grande estabilidade em termos de sucessão presi-
dencial. Em poucas ocasiões os candidatos à presidência, escolhidos pela
coalizão dominante, viram-se seriamente ameaçados por coalizões rivais
(Malloy, 1979).

C. AS CAMPANHAS URBANAS DE SAÚDE PÚBLICA: A REA-


ÇÃO COMO FORMA DE PARTICIPAÇÃO DO ATOR POPULAR

Como a maioria das nações da América Latina, o Brasil experimentou um


surto de crescimento econômico relativamente estável a partir das déca-
das finais do século XIX. O processo de crescimento foi estimulado por
uma rápida expansão da produção de café para exportação. À semelhan-
ça da maior parte das regiões latino-americanas, a estrutura econômica
do Brasil, de fins da década de 1870 até fins da de 1920, foi organizada
em torno de um modelo de exportação de produtos primários que ligou o
Brasil à ordem econômica capitalista internacional como fornecedor de
produtos primários para as nações industrializadas avançadas e como
consumidor de mercadorias manufaturadas.

Junto ao crescimento baseado em exportação, o Brasil apresentou tam-


bém um processo de crescimento industrial interno relativamente gran-
de, participando de uma rede de expansão das relações econômicas ca-
pitalistas. O crescimento industrial interno sustentou-se no desenvolvi-
mento de atividades de infra-estrutura (transporte, eletricidade, etc.)
destinadas a servir ao setor cafeeiro e no crescimento da indústria ma-
nufatureira local, principalmente de pequenas empresas que fabricavam
produtos relativamente simples e baratos para o consumidor. O cresci-
mento interno foi estimulado pelos lucros de investimentos alcançados
pelo setor cafeeiro e pelos investimentos do capital estrangeiro.

Durante esse período, o Brasil experimentou um processo geral de mo-


dernização: urbanização, expansão das comunicações, migração interna,
etc.. Mas o mais importante foi o fenômeno de urbanização. No todo na-
cional, o processo de urbanização foi lento e a população permaneceu

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predominantemente rural. No entanto, a urbanização cresceu muitíssimo
no Sul e no Sudeste do país, principalmente no Rio e em São Paulo, cu-
jas capitais, entre 1872 e 1920, tiveram um crescimento de 274.972 pa-
ra 1.157.873 e de 31.395 para 579.033 habitantes respectivamente. O
Brasil passou por um deslocamento geográfico geral no centro de sua
vida social, econômica e política para a parte sudeste do país. Como ou-
tros países de desenvolvimento capitalista retardado, o Brasil passou a
contar com uma região mais desenvolvida e moderna cercada de regiões
periféricas mais atrasadas e tradicionais (Malloy, 1979).

A vida nas grandes cidades, notadamente Rio, São Paulo e Santos, alte-
rara-se intensamente. A Abolição lançara o restante da mão-de-obra es-
crava no mercado de trabalho livre, engrossando o contingente de sub-
empregados e desempregados. Era enorme o fluxo de imigrantes do ex-
terior e das regiões rurais. Calcula-se que, em 1890, apenas 45% da po-
pulação do Rio era nascida na cidade. Havia uma grande falta de mora-
dias, principalmente para os pobres, que eram obrigados a viver em cor-
tiços com condições precaríssimas. A criminalidade era assustadora. Era
grande o número de menores abandonados. Os velhos problemas de a-
bastecimento de água, de saneamento e de higiene viram-se agravados
de maneira dramática no início da República com o mais violento surto
de epidemias da história da cidade. O ano de 1891 foi particularmente
trágico, pois nele coincidiram epidemias de varíola e febre amarela, que
vieram juntar-se às tradicionais matadoras: a malária e a tuberculose.
Nesse ano, a taxa de mortalidade atingiu seu mais alto nível, matando
52 pessoas em cada mil habitantes (cerca de 6 vezes a atual taxa). O
governo inglês concedia a seus diplomatas um adicional de insalubridade
pelo risco que corriam representando Sua Majestade no Brasil. Havia a-
inda um clima de agitação política, intelectual e trabalhista que se cho-
cava com um poder central estruturado sobre oligarquias rurais (Carva-
lho, 1987).

Essa situação caótica começou a ameaçar seriamente os interesses da


economia agro-exportadora baseada no café e a estabilidade do regime
republicado recém instalado. O movimento imigratório, fundamental para

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o fornecimento de mão de obra treinada para o trabalho assalariado a
ser utilizada nas lavouras de café, entrou em declínio. O fluxo migratório,
que girava em torno de 120 mil estrangeiros por ano, no início da década
de 1890, caiu para 34 mil em 1903. Tripulações de navios transportado-
res de café começavam a se revoltar, impedindo o desembarque no Rio
de Janeiro e Santos. Corria a estória de que no porto de Santos haviam
falecido 35 capitães de navios durante um ano. A grande suscetibilidade
dos estrangeiros à febre amarela deu ao Rio uma reputação internacional
de ser uma das áreas mais insalubres dos trópicos.

Desde o início da República, várias medidas de combate começaram a


ser ensaiadas e testadas. Foi se criando, aos poucos, um aparato legal,
institucional e tecnológico necessário. Mas o contexto político em que
estas ações começaram a ser implementadas marcou fortemente a sua
forma de ser. A razão fundamental das campanhas que se iniciavam não
era o alívio das doenças da população, mas os interesses da burguesia
agro-exportadora: a manutenção do fluxo comercial e a continuidade da
vinda de mão-de-obra estrangeira. A intervenção sobre a população po-
bre acontecia porque era a forma de combater a transmissão. E esta po-
pulação sobre a qual o aparato da saúde pública intervinha era vista com
desprezo pelo aparato estatal. Segundo Oswaldo Cruz, em relatório es-
crito em 1907, a higiene social objetivava

"impedir as obras resultantes da indisciplina de certos moradores,


teimosos em manterem o desasseio em suas casas, rebeldes por
índole e educação aos conselhos da higiene".

Procurava-se responder ao problema de organização e controle sobre


uma população abertamente hostil às medidas de racionalidade e civili-
dade sanitária e cujo modos e usos higiênicos afrontavam ao projeto de-
fendido pelos novos donos do poder. A higiene desenvolveu o argumento
de que era necessário controlar e domesticar o mundo irracional de pai-
xões populares, de estrangeiros que agitavam e assediavam as cidades
(Costa, sem data). As práticas de saúde que se seguiram foram então
extremamente autoritárias. Nesse sentido, houve importante influência
da doutrina denominada de “polícia médica”, desenvolvida principalmen-

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te na Alemanha de Bismarck, na segunda metade do século XIX, a qual
partia do pressuposto de que ao Estado cabia assegurar bem-estar e se-
gurança para o povo, mesmo que contrariando os interesses individuais,
justificando-se assim o controle coercitivo sobre os problemas sanitários
como mecanismo de assegurar a defesa pelo Estado dos interesses ge-
rais da nação. As descobertas da bacteriologia, a partir de Pasteur, no
final do século XIX, tinham difundido a confiança na existência do conhe-
cimento necessário para controlar as doenças infecciosas, dando legiti-
midade científica às campanhas que se organizaram.

Várias ações sanitárias foram então desenvolvidas em diferentes centros


urbanos do sudeste, com razoável sucesso médico. Mas o caso mais e-
xemplar, dentro do objetivo deste estudo, foram as campanhas coman-
dadas por Oswaldo Cruz, na capital da República, a partir de 1903. Sua
ação fora precedida de uma reforma urbana, quando foram criadas leis e
normas proibindo a circulação de animais na cidade, regulando a cons-
trução e consertos de prédios, proibindo que mendigos andassem pela
cidade e criando um serviço de limpeza pública em que turmas de guar-
das sanitários percorriam as ruas da cidade, visitando obrigatoriamente
todas as casas e removendo tudo no seu interior que fosse julgado pre-
judicial à saúde pública. Casas com condições precárias de higiene e cor-
tiços eram desapropriados, tendo os moradores três dias de prazo para
se mudarem. A população protestava de várias formas.

O primeiro objetivo de Oswaldo Cruz foi o combate da febre amarela,


principalmente através do combate aos mosquitos transmissores. Foram
criadas milícias para-militares que entravam em todas as casas da região
pobre da cidade, identificando problemas higiênicos (principalmente de-
pósitos de água que pudessem servir para a multiplicação dos insetos)
que deviam ser obrigatoriamente corrigidos. Os doentes tinham que ser
isolados em quartos com condições apropriadas de isolamento. Foram
demolidas várias habitações coletivas e casas das quais se alugavam
cômodos, situadas na região central da cidade. O problema habitacional
se intensificou. A resistência popular aumentava, cada vez com maior
apoio das classes médias. Posteriormente foi a vez do combate à peste

15
bulbônica, que recebeu menor oposição porque se adotou também a
medida de se comprarem ratos da população. Surgiram várias criações
de roedores com o objetivo de venda à Saúde Pública.

A educação em saúde tinha um papel marginal. Eram distribuídos folhe-


tos avulsos, denominados “Conselhos ao Povo”, sobre os meios de evitar
as doenças. Na verdade, a educação em saúde era breve porque, para
as autoridades, o povo era incapaz de maiores entendimentos. Era um
discurso em que se investia pouca energia e que muitas vezes servia
para dizer que se tinha tentado a via do convencimento antes de “ser
obrigado” a tomar medidas coercitivas mais duras. Eram ações precárias
de educação em saúde que ajudavam, na medida em que não geravam
efeitos positivos, a mostrar a irracionalidade do povo e reforçar os pre-
conceitos da elite.

A grande revolta, no entanto, surgiu em 1904, quando se organizava a


infra estrutura administrativa e policial para fazer cumprir a lei da vaci-
nação anti-variólica, obrigatória em 1904. Pela primeira vez se progra-
mava passar de uma ação sobre o ambiente para uma ação sobre o cor-
po. A vacina tinha muitos efeitos colaterais e havia dúvidas quanto ao
seu significado. Até mesmo Rui Barbosa se indignou contra a obrigatori-
edade da vacinação. É interessante salientar que a vacinação já vinha
sendo realizada há anos, com um número crescente de aplicações. Após
o início da discussão das medidas judiciárias para cobrar sua obrigatorie-
dade, o número mensal de vacinações no Rio cai de 6.387 (julho de
1904) para 410 (outubro de 1904).

O Correio da Manhã, de 6 de outubro de 1904, noticiava os debates en-


tre as autoridades com a manchete: Preparativos para a guerra? Em 5
de novembro se funda a "Liga contra a vacinação obrigatória", com
grande participação popular e que funcionava junto ao Centro das Clas-
ses Operárias, surgido em 1902, e integrado sobretudo por marítimos.
Em 11 de novembro foi convocado um comício no Largo São Francisco,
que foi cercado pela cavalaria, infantaria e forças policiais. A cavalaria
carregou o sabre contra os transeuntes. Houve muitos feridos e presos.
A partir daí se desencadearam vários comícios que chegaram a contar

16
com 3.000 participantes. No dia 13 houve um grande choque com a polí-
cia, com troca de tiros e vários mortos. Vários militares começam a par-
ticipar das manifestações. A revolta se generalizou na cidade. Bondes
foram virados para servirem de trincheiras. Comerciantes forneciam gra-
tuitamente latas de querosene aos revoltosos para atearem fogo nos
bondes. Distribuíam também rolhas que, jogadas no chão, faziam os ca-
valos da força pública escorregarem. O governo perdeu o controle da
cidade até o dia 15, quando foi decretado estado de sítio. Morreram 23
pessoas, a maioria operários, e foram presas outras 946, das quais 461
foram deportadas (colocadas em navio e enviadas para local não especi-
ficado) sem julgamento sob a alegação de que teriam outros anteceden-
tes criminais (Carvalho, 1987). A revolta foi sufocada, mas a lei da vaci-
nação obrigatória deixou de ser posta em vigor na forma proposta. Em
1908, a cidade sofreu uma das suas maiores epidemia de varíola, com
9.000 mortos (Costa, 1985).

A importância deste episódio foi mostrar que as classes populares e mé-


dias urbanas, se ainda eram incapazes de participar da orientação das
políticas públicas de saúde que começavam a se estruturar, já tinham,
no entanto, evoluído em sua organização e cultura a ponto de poderem
resistir ao autoritarismo das oligarquias rurais. Era uma primeira forma
de participação: a reação. A partir desta reação, a política de saúde foi,
em parte, remodelada. Mas o alto número de mortes por varíola em
1908 indicava incapacidade da população urbana de conquistar serviços
de saúde dignos.

D. A CAMPANHA PELO SANEAMENTO DOS SERTÕES: O


FORTALECIMENTO E A DIFERENCIAÇÃO DAS CLASSES MÉDIAS
URBANAS EM RELAÇÃO ÀS OLIGARQUIAS RURAIS

A contestação do poder das oligarquias rurais, na Primeira República,


não se iniciou pela burguesia industrial emergente, mas principalmente
pelas classes médias dos grandes centros urbanos e por militares. Em
segundo lugar, pela classe trabalhadora em processo de estruturação.

17
Durante a Primeira República, as classes médias urbanas se expandiram
rapidamente tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, em grande
parte pela enorme expansão do setor terciário da economia (serviços) e
pela ampliação da máquina estatal. Em termos de profissões, eram
constituídas principalmente por profissionais liberais (especialmente ad-
vogados), empregados administrativos de companhias privadas, peque-
nos comerciantes mas, sobretudo, de funcionários públicos. Nesse meio,
surgiram diversos grupos de intelectuais e ativistas que articulavam mui-
tas críticas ideológicas ao sistema dominante na economia e na política.
Estes grupos abrangiam desde os mais conservadores, elitistas e positi-
vistas, até uma grande variedade de grupos socialistas. Apesar das dife-
renças de programa, todos defendiam uma centralização maior do poder
e um papel mais ativo do Estado federal na regulamentação do sistema
econômico. Ativistas destes grupos estabeleceram ligações políticas com
oficiais militares rebeldes e com líderes da classe trabalhadora emergen-
te. Desse modo, formaram um eixo de alianças amplamente reformistas
e/ou revolucionárias quanto ao potencial ideológico e de liderança. O
protesto da classe média também tomou a forma de ação de massa dire-
ta, especialmente no Rio. O protesto expressava-se através de demons-
trações de massa, cerco de edifícios públicos e greves contra o preço do
aluguel.

Se na política eleitoral predominava uma grande estabilidade devido à


sustentação da base rural da política dos governadores e dos "coronéis",
nas poucas grandes cidades, principalmente Rio e São Paulo, havia um
crescente clima de instabilidade e desafio. As pressões políticas (revoltas
militares, demonstrações públicas, etc.) alcançaram tão violentas pro-
porções, que o governo de Arthur Bernardes (1922-1926) só conseguiu
governar com um estado de sítio que perdurou durante quase toda a sua
gestão (Malloy, 1979).

Até o início do século XX, predominara, no meio político e literário, uma


visão nacionalista que sonhava com um Brasil moderno a partir de um
modelo europeu de sociedade. Para ela, só a imigração estrangeira - es-
tritamente branca e européia - poderia nos limpar da nódoa do passado

18
escravocrata e dos efeitos perniciosos que a contaminação com a raça
negra africana nos deixara. Era preciso branquear o Brasil. Essa forma
de pensar refletia a dominação cultural da burguesia agro-exportadora
sempre voltada para a Europa, bem como o nosso passado colonial. Mas,
no meio da efervescência intelectual dos grupos de classe média, foi se
delineando um novo tipo de nacionalismo em que a questão da saúde
tornou-se central.

A publicação por Euclides da Cunha de "Os Sertões", em 1902, teve um


grande impacto junto aos círculos intelectuais europeizados das cidades
brasileiras. Para Euclides da Cunha:

à medida que as elites brasileiras procuravam tomar uma civiliza-


ção de empréstimo, fugiam às exigências da nossa própria nacio-
nalidade e mais fundo se tornava o contraste entre o nosso modo
de viver e o daqueles patrícios, mais estrangeiros nesta terra do
que os imigrantes da Europa

Para a construção da nação, impunha-se a busca, no sertão, das raízes


da nacionalidade. O passado não nos condena mas, antes, nos redime. A
partir de então, vários escritores, entre eles, Monteiro Lobato (excetuan-
do-se os seus primeiros escritos), Licínio Cardoso e Alberto Torres pas-
sam a se dedicar ao campo, denunciando a falta de atenção do governo
preocupado apenas com o colono estrangeiro, chamando atenção para o
valor econômico da produção do sertanejo e combatendo o latifúndio.

Nesse ambiente, teve grande repercussão a publicação em 1916 dos ca-


dernos da viagem de estudos dos médicos do Instituto Oswaldo Cruz,
Artur Neiva e Belizário Pena,através de vários estados do Nordeste e
Goiás. A elite urbana passou a ter uma visão contundente das condições
médicas, sanitárias e sociais no interior da nação. Esses médicos, bus-
cando também apontar as causas do que viram, criticaram a visão, di-
fundida pelas oligarquias, de que a pobreza e a doença se explicariam
pelo clima adverso do Nordeste; denunciaram o atrelamento da popula-
ção rural ao poder do latifundiário e a quase inexistência da pequena
propriedade e apontaram a existência de trabalho forçado em várias re-

19
giões. A partir de 1918, Monteiro Lobato assumiu a bandeira de luta:
"Sanear é a grande questão nacional". O problema do brasileiro não es-
tava na raça, mas nas doenças endêmicas. Durante os últimos 15 anos
da Primeira República, a idéia de uma reforma sanitária, pouco a pouco,
transformou-se em aspiração nacional. O tema tornou-se assunto de
manchetes na imprensa.

A campanha pelo saneamento dos sertões foi muito mais um movimento


da sociedade civil do que uma decisão política eficaz do governo. Foi o
início do movimento sanitário brasileiro que teve tanta importância na
criação do atual Sistema Único de Saúde: pela primeira vez, profissionais
de saúde participam, de forma central, da busca de uma alternativa polí-
tica e institucional para a nação, aliados a outros setores da sociedade
civil. Foi fundada a Sociedade Brasileira de Higiene que, durante a déca-
da de 1920, realizou cinco congressos de âmbito nacional.

O movimento repercutia no Congresso e no governo central, apesar da


má vontade de políticos ligados ao poder rural, temerosos de uma mobi-
lização popular e de uma possível intervenção técnica nas áreas de man-
do dos "coronéis". Assim, de forma tímida, são tomadas algumas iniciati-
vas pelo governo federal. Em 1918 é criado o Serviço de Profilaxia Rural,
cuja direção é entregue a Belizário Pena. Asseguram-se recursos finan-
ceiros de impostos federais sobre bebidas alcoólicas e álcool, produtos
farmacêuticos e loterias para o projeto. Pela primeira vez o estado brasi-
leiro, até então voltado exclusivamente para as questões de saúde dos
grandes centros urbanos, começa a se preocupar com a população rural.
Por pressão da Liga Pró-Saneamento, em 1920, é criado o Departamento
Nacional de Saúde, que teria uma perspectiva de "salvação nacional" nos
dizeres do movimento. Muitos jovens sanitaristas e tropicalistas são en-
tão incorporados à maquina estatal. Altera-se a legislação, dando mais
poder para o governo federal intervir nos estados.

Outros fatos políticos concorrem para fortalecer o movimento. O primeiro


deles, a vinda para o Brasil da entidade norte-americana, a Fundação
Rockfeller, refletindo já o interesse e a presença dos Estados Unidos em
nossa economia, bem como o surgimento de uma estratégia internacio-

20
nal de controle das doenças transmissíveis globalmente. Aqui, a sua pre-
sença não causa uma maior oposição nacionalista, como ocorrera em
outros países, devido à existência prévia de um movimento sanitário na-
cional e um corpo científico já bem amadurecido e até mesmo reconheci-
do internacionalmente. Assim, a Fundação Rockfeller se incorpora à prá-
tica sanitária brasileira como uma sócia menor e portanto sem assumir a
direção do processo (Santos, 1985). Portanto, desde o início do século,
manifesta-se essa característica da saúde pública brasileira que a dife-
rencia de grande parte dos outros países subdesenvolvidos: uma relativa
autonomia diante das pressões internacionais.

Houve um rápido desenvolvimento institucional. Em 1922, já estavam


operando em onze estados cerca de cem postos rurais sanitários perma-
nentes. Campanhas contra várias doenças endêmicas foram realizadas
em diversas regiões. Houve um relativo sucesso no combate de muitas
dessas doenças. A Fundação Rockfeller se dedicou a campanhas contra a
febre amarela e a ancilostomíase, principalmente na região norte do pa-
ís, mas sua maior contribuição foi a difusão da experiência norte-
americana com Centros de Saúde urbanos, que teriam a função de pro-
mover e coordenar os serviços médicos e sanitários relativos a uma rea-
lidade local específica, através de atendimento médico, visitas domicilia-
res, inspeção escolar, laboratório, dispensário, censo de morbidade e
investigações. Havia atividades de higiene pré-natal, infantil, pré-
escolar, controle de tuberculose, verminose, etc.. É surpreendente que
este modelo de assistência, com entrosamento de ações curativas e pre-
ventivas, já estivesse em implantação no começo do século. Logo de-
pois, com o advento da Previdência Social, este modelo de assistência foi
deixado em segundo plano pelo modelo baseado nos hospitais e grandes
ambulatórios voltados apenas para ações curativas. Apenas na década
de 1970 se assiste ao seu ressurgimento com o nome de Serviços de
Atenção Primária à Saúde, base da estrutura de atendimento do atual
Sistema Único de Saúde.

O segundo fato político importante neste processo foi o tenentismo e a


marcha da Coluna Prestes pelo interior do país. O Movimento dos Tenen-

21
tes foi a expressão mais evidente da insatisfação militar. Começou com
uma revolta de quartel de jovens oficiais, no Rio, em 1922. Este movi-
mento de jovens oficiais rebeldes passou a difundir a concepção de "re-
novação nacional" baseada na centralização do poder político, na racio-
nalidade administrativa, nas políticas econômicas nacionalistas e numa
abordagem aperfeiçoada das exigências das classes média e trabalhado-
ra. Criava-se, no plano político nacional, forte sustentação para as pro-
postas do movimento sanitário emergente.

Este movimento pelo saneamento nacional era, porém, ainda um movi-


mento limitado da elite intelectual brasileira e de setores das classes
médias que, aos poucos, começava a se incorporar na máquina adminis-
trativa do Estado. Mas pela primeira vez se valorizou o trabalho educati-
vo junto à população. O escritor e médico mineiro, Pedro Nava, narra em
seu livro, "Baú de Ossos", a atuação de mobilização desenvolvida por
Belizário Pena:

- falando a crianças, a adultos, a velhos; discursando nos grupos


escolares, nos ginásios, nas faculdades, nas ruas, nos cinemas
(como assisti em Belo Horizonte, aí pelos vinte, no cine Odeon,
onde ele urrava: -"Dizem que sou caixeiro-viajante! Sou! Sou o
caixeiro-viajante da higiene! Caixeiro-viajante da saúde! Sou e
sou!"); orando a analfabetos e a homens cultos; ao povo e aos po-
líticos; a governados e governantes; nas fazendas, nas cidades;
no Norte e no Sul - ensinando o seu Evangelho...(citado em San-
tos, 1985).

No III Congresso de Higiene em 1923, Fontenelle expunha:

"a higiene começou por ser imposta pela coerção, por meio de leis
e regulamentos, com a sanção de multas, fechamentos de casas,
suspensão de licenças para negócios até prisões. Depois, passou a
interessar diretamente pelos indivíduos, procurando ensinar-lhes e
explicar-lhes as vantagens das medidas exigidas. E, agora, verifi-
cado que é tão importante evitar certos atos e obter a prática de
outros, veio a necessidade de garantir, inconscientemente, aos in-

22
divíduos a prática de atos vantajosos à saúde, obtendo-se o que
se poderia chamar de comportamento higiênico. É um trabalho de
educação para benefício individual e coletivo, que encontra seu
momento mais propício nas primeiras idades....(citado em Costa,
1986)

Pela ausência do ator popular como elemento ativo nestas campanhas,


as suas práticas educativas e técnicas eram extremamente normativas.
Os técnicos tinham o saber científico que devia ser incorporado e imple-
mentado pela população ignorante. Em momento nenhum se via a preo-
cupação de discutir as razões materiais, culturais e políticas de seus cos-
tumes para então negociar uma estratégia de ação eficaz. O homem do
povo era um quadro em branco sobre o qual se devia escrever o verda-
deiro conhecimento. Não se valorizava o saber prévio desse homem. Na
verdade, se já não se via mais o povo como o culpado pela situação de
subdesenvolvimento, pois era, antes de tudo, vítima da situação de mi-
séria e doença, continuava sendo visto como incapaz de iniciativas criati-
vas e críticas. A ênfase do processo educativo passa a ser então o de-
senvolvimento de técnicas que melhor inculcassem as normas de higiene
nas classes populares. A história do Jeca Tatu vem dessa época. As prá-
ticas sanitárias não eram coercitivas, mas eram autoritárias no que tan-
ge às relações educativas. Mantém-se o modelo de educação em saúde
que denomino de “toca boiada”. Se antes se procurava tocar a boiada
(povo) com o ferrão (a polícia médica), agora era com o berrante (as
palavras). A população pobre continuava a ser vista como boiada a ser
tocada pela elite intelectual, que saberia os bons caminhos por onde le-
vá-la para atingir a saúde e a cidadania. Foi o que aconteceu com o Jeca
Tatu da história contada por Monteiro Lobato que, após ter tratado sua
verminose com os medicamentos prescritos e ter aprendido os bons há-
bitos de higiene ensinados, tornou-se um cidadão altivo e trabalhador. A
ação dos técnicos redimiria os pobres preguiçosos e doentes, transfor-
mando-os em cidadãos capazes de participar da vida política e do desen-
volvimento nacional.

23
O movimento higienista não contou ainda com uma iniciativa popular
significativa, mas, pela primeira vez, setores da sociedade civil, não su-
bordinados às oligarquias rurais, tomaram a frente no delineamento de
uma política de saúde que enfatizava as classes populares. Representou
também uma resistência do corpo técnico do setor saúde brasileiro a
formas imperialistas de intervenção internacional na política de saúde.

No atual momento político, em que a luta pela descentralização adminis-


trativa do Estado tornou-se uma bandeira nacional que muitas vezes se
confunde com a bandeira da democracia, esse processo político, vivido
no início do século, alerta-nos de que já foi uma bandeira democrática a
luta pela centralização administrativa e pelo fortalecimento do governo
federal contra os poderes dos donos locais, os "coronéis". A descentrali-
zação administrativa significava autoritarismo por omissão (Bursztyn,
1984) que foi extremamente perverso para as populações rurais. O for-
talecimento do poder federal a que se assiste, a partir dos anos 20, ou
seja, a constituição do autoritarismo ativo federal, significou dialetica-
mente um passo democrático naquele momento. A questão que se colo-
ca hoje, quando em muitas regiões mais atrasadas do Brasil ainda so-
frem a violência do autoritarismo dos novos donos locais (não dos “coro-
néis”, mas de seus filhos, os doutores que ocupam cargos-chave na bu-
rocracia dos Estado),é se a bandeira da descentralização administrativa
pode ser associada, em todos os lugares, de forma linear e absoluta com
a democratização.

E. SOCIEDADES DE AJUDA MÚTUA: A DISTÂNCIA DA


CLASSE OPERÁRIA DA MEDICINA ESTATAL

O número de indústrias aumentara bastante a partir do capital acumula-


do na produção e exportação do café. A paralisação do comércio interna-
cional durante a I Guerra Mundial facilitou o processo de substituição de
importações pela indústria nacional. Empresas estrangeiras começaram a
abrir filiais aqui. O número de operários se expande. Mesmo assim, a
classe trabalhadora continuava sendo uma pequena porcentagem da po-

24
pulação total. Em 1920, de uma população total de mais de 30 milhões
de habitantes, apenas 275.512 trabalhavam para 13.336 estabelecimen-
tos industriais. No setor de serviços, trabalhavam, naquela época, cerca
de 1,5 milhões, sendo difícil, no entanto, calcular que porcentagem deste
número podia ser considerada classe trabalhadora.

As classes operárias viviam em condições gerais de vida muito precárias.


A jornada de trabalho muito longa, a baixa remuneração e a insegurança
eram fatores comuns ao operário médio. Mas não se desenvolveram
organizações trabalhistas fortes e autônomas capazes de participar do
processo político e moldá-lo. Na verdade, sua força cresceu de importân-
cia principalmente entre os anos 10 e 20, tornando-se um problema e
uma ameaça potencial ao regime, no que passou a ser chamado pela
elite de "a questão social". Mas nunca conseguiu participar diretamente
na discussão e elaboração de soluções para o problema social. Devido ao
seu pequeno número, também não se constituíram num bloco votante
capaz de influenciar as eleições. Havia ainda uma grande fragmentação
entre os seus movimentos. O alto percentual de trabalhadores estrangei-
ros se, por um lado, significava a vinda de uma experiência organizativa
e ideológica, significava também uma heterogeneidade e uma segmenta-
ção da base operária. Multiplicavam-se as facções ideológicas: socialis-
tas, anarquistas, comunistas e sindicalistas cooperativistas, o que enri-
quecia o debate, mas dificultava uma ação comum.

Nesse contexto, a principal estratégia de luta dos trabalhadores eram as


greves, que conseguiam ter um grande impacto quando paralisavam o
setor de exportação ou causavam um grande caos nos centros urbanos,
como era o caso das greves nas ferrovias, portos, frota mercante, trans-
porte público, eletricidade e bancos. Não tendo a indústria um papel cen-
tral na economia, seus trabalhadores tinham menor força política. Mes-
mo assim, em 1917 e 1919, organizaram-se greves gerais que atingiram
vários centros urbanos simultaneamente. Os grupos políticos de classe
média em constante ebulição, muitas vezes se juntavam aos movimen-
tos dos trabalhadores, principalmente no Rio (Malloy, 1979) A agitação
política era tamanha que, a partir de 1920, o governo federal desenca-

25
deia intenso esquema de repressão militar. O exército era muitas vezes
chamado para reprimir greves. Só em um ano, cem líderes sindicais es-
trangeiros foram deportados (Ação Católica Operária, 1985b)

Durante a Primeira República, cresceram enormemente as sociedades de


ajuda mútua, muitas vezes englobando, inclusive, setores de classe mé-
dia. Tais associações eram voluntárias e, em troca de contribuições, ofe-
reciam aos membros auxílio-funeral, aposentadoria, benefícios médicos e
outros. Eram uma forma de seguro de grupo voluntário, baseado na
poupança de seus associados. O mutualismo era um tipo de defesa gru-
pal para a situação de insegurança a que os trabalhadores estavam
submetidos. Mas foi muito atacado pelas lideranças operárias mais radi-
cais que o viam como uma forma de desviar a luta do que seria prioritá-
rio: o enfrentamento do patrão. Essa postura estava de acordo com a
visão dominante no movimento comunista internacional que repudiava
as organizações sindicais assistencialistas, bem como a ação social pa-
trocinada pelo Estado. Elas levariam os trabalhadores a se contentarem
com as migalhas do bolo, aceitando a condição de dependência. Para
eles, os centros de poder na sociedade são os locais de produção. Sobre
eles os operários deveriam concentrar suas lutas, buscando apropriar-se
da totalidade existente das forças produtivas. A partir daí, a classe ope-
rária estenderia o seu poder para o conjunto da sociedade, o que estaria
próximo (Gorz, 1982).

A maneira de organizar tecnicamente a prestação da assistência à saúde,


financiada pelas sociedades mutualistas, não era uma questão enfrenta-
da pelos associados. Na medida em que eram apenas uma forma de fi-
nanciamento coletivo sob a forma de seguro social, a modalidade de as-
sistência à saúde financiada era a que predominava no mercado, ou se-
ja, a medicina liberal baseada em profissionais pagos individualmente e
em produtos farmacêuticos comprados em estabelecimentos comerciais.
A abordagem coletiva e preventiva dos problemas médicos não lhes dizia
respeito. Pelo contrário, devido à maneira autoritária e discriminatória
como essas práticas vinham sendo implementadas pelo Estado nas gran-
des cidades (as campanhas de saúde pública), os trabalhadores tendiam

26
a vê-las com reserva. Este fato foi fundamental para explicar o modelo
de assistência à saúde que posteriormente foi expandido pela Previdên-
cia Social.

Ao lado das associações de auxílio mútuo, algumas grandes companhias


privadas começaram a criar caixas beneficentes para os seus emprega-
dos. Estes fundos ofereciam proveitos semelhantes aos do "mutualismo"
voluntário, mas a participação financeira dos empregados era obrigatória
e os fundos provinham de dedução nos salários e multas aos trabalhado-
res por infração às regras da companhia. Estas caixas tinham uma oposi-
ção muito maior do movimento sindical ligado aos grupos ideologicamen-
te mais radicais. Já no setor público, este tipo de seguro aos trabalhado-
res era mais antigo: os Montepios. Algumas categorias de servidores pú-
blicos já os tinham desde o período colonial. Diferentemente das caixas
beneficentes das empresas privadas, não eram mantidos com descontos
salariais, mas com verbas estatais específicas (Malloy, 1979).

A questão do seguro social e da assistência à saúde aos trabalhadores


era, portanto, um campo de múltiplas experimentações sociais: associa-
ções de ajuda mútua, caixas beneficentes, montepios, além do projeto
de saúde pública sustentado pela intelectualidade do setor saúde. Distin-
tas forças políticas lutavam por distintos modelos. Cada modelo implica-
va diferentes níveis de participação dos trabalhadores no seu gerencia-
mento e contribuía em diferentes níveis para a organização, solidarieda-
de ou dependência dos seus usuários. Apresentavam diferentes níveis de
eficácia na resolução dos problemas de saúde. Até então, o modelo das
sociedades de ajuda mútua sob o controle direto dos trabalhadores era o
de maior difusão entre o proletariado urbano. Só posteriormente, com a
intervenção direta e intensa do Estado, seria alcançada uma definição
para a questão.

É importante salientar que, até o início da década de 1920, uma partici-


pação ativa das classes populares (na verdade, naquela época, apenas
dos trabalhadores dos setores mais importantes da economia) na busca
de soluções para os seus problemas de saúde só ocorreu em suas pró-
prias associações de classe, longe do Estado.

27
F. UM BALANÇO: PARTICIPAÇÃO E EDUCAÇÃO POPULAR EM
SAÚDE NA PRIMEIRA REPÚBLICA

Ao final da Primeira República já existia na classe trabalhadora toda uma


ética de valorização do trabalho e do trabalhador e toda uma experiência
de organização em partidos e associações de classe (estas mais difundi-
das). A questão da assistência à saúde do trabalhador foi um campo pri-
vilegiado de desenvolvimento desse processo. Contudo, as lideranças
políticas da República recusaram sistematicamente as propostas dos tra-
balhadores no gerenciamento das questões sociais. Mesmo as conquistas
materiais por eles alcançadas foram pequenas.

Por outro lado, pode-se dizer que o ganho principal de toda esta dinâmi-
ca foi de outra natureza e traduziu-se na construção de uma identidade
social do trabalhador, como também de outros grupos de classe média
de uma forma diferenciada das oligarquias rurais. O fundamental é com-
preender que, no processo de luta por interesses dos vários grupos po-
pulares, há um tipo de reivindicação que não pode ser vista apenas sob o
ponto de vista utilitário. Trata-se da reivindicação pelo reconhecimento
de si mesmo pelo outro, o que significa também auto-reconhecimento.
Auto-reconhecimento da própria dignidade como trabalhador, o que não
é simples em uma sociedade com quatro séculos de escravidão.

Em relação a este ponto, pode-se dizer que, apesar da multiplicidade de


facções competindo entre si pelo direito de serem aceitas como repre-
sentantes dos operários, houve um ganho importante: ao final da Primei-
ra República já existia a figura do trabalhador brasileiro, embora não
existisse ainda um cidadão brasileiro (Gomes, 1991).

A relação entre o movimento sanitário brasileiro e as classes populares


nos momentos analisados aconteceu dentro das condições políticas do-
minantes. O ator popular, recém saído da escravidão e ainda submetido,
em sua maioria, ao coronelismo, estava em processo de constituição e,
na sua fragilidade, não se apresentava como um interlocutor capaz de
forçar uma maior participação nos projetos sanitários. Foi capaz apenas

28
de reagir contra. Por seu lado, as ações estatais de saúde pública, cons-
tituídas a partir de um quadro técnico ainda muito subordinado às oli-
garquias rurais, foram também incapazes inicialmente de implementar
um modelo de atuação menos coercitivo. Apenas no momento em que o
processo de urbanização se alarga e vai se diferenciando e se organizan-
do uma classe média com interesses políticos e uma cultura próprios, a
saúde pública brasileira passa a propor formas de atuação menos
discriminatórias e menos autoritárias junto à população. Assim, os
projetos sanitários não se incorporaram como uma bandeira de luta do
movimento popular emergente. Pelo contrário, as entidades dos
trabalhadores os viam com muita reserva. O projeto de saúde que a
classe trabalhadora emergente vai desenvolvendo autonomamente, de
forma marginal à ação estatal, é o modelo das sociedades de ajuda
mútua, uma forma de seguro coletivo de saúde onde se avança apenas
na questão do financiamento da assistência, sem questionar o modelo
liberal de prática médica já então dominante na sociedade.

Por que o projeto sanitário, que se expandira com a criação de Centros


de Saúde urbanos e os Postos Rurais Permanentes de Saúde, entrou em
decadência após o Estado Novo surgido com a Revolução de 1930? Foi
um caminho bastante diferente do Reino Unido, onde houve uma evolu-
ção para o Sistema Nacional de Saúde que incorporou a sua lógica cole-
tivista de atuação

Sem dúvida, esta é uma questão complexa que não pretendo esgotar.
Desejo apenas explicitar uma dimensão do problema. Na medida em que
o projeto de saúde hegemônico após 1930, a Previdência Social, consti-
tuiu-se a partir do pacto corporativista amarrado por Getúlio Vargas en-
tre o operariado e a burguesia urbana, foi muito importante, nesse mo-
mento, a cultura de saúde do movimento trabalhista da época. E esta
cultura, pelo passado autoritário das campanhas de saneamento urbano,
estava distante do modelo de atuação da saúde coletiva. O modelo que
esta cultura apontava era o do seguro-saúde por categorias profissionais
onde a assistência a saúde era comprada num mercado que valorizava
essencialmente a prática curativa individual. Em suma, o modo como se

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deu a relação entre as Campanhas de Saneamento e classes populares,
no início do século, pode ter sido um elemento importante para explicar
o declínio das práticas mais coletivistas de atuação em saúde após a
Primeira República.

Foram precisos 50 anos de convivência com as contradições do modelo


curativo individual exclusivo, trazido pela Previdência Social, para que os
movimentos sociais e o movimento dos profissionais de saúde amadure-
cessem um projeto conjunto: um sistema de saúde unificado, hierarqui-
zado, com valorização de ações preventivas e coletivas não restritas às
dimensões biológicas das doenças. O SUS é uma resposta parcial a esta
demanda.

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