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Ana Lúcia Machado da Silva é especialista e mestre em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo. Foi professora do Ensino Básico em rede pública e privada da disciplina Língua Portuguesa durante quase
vinte anos. Ministra aulas de Análise do Discurso, Semântica e Pragmática, Literatura em língua portuguesa, entre
outras, no curso de graduação em Letras pela Universidade Paulista. Ministra também aulas em módulos para cursos
de lato sensu pela UNIP.
CDU 82-1(81)
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permissão escrita da Universidade Paulista.
Prof. Dr. João Carlos Di Genio
Reitor
Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)
Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos
Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto
Revisão:
Andréia Andrade
Michel Apt
Virgínia Bilatto
Lucas Ricardi
Sumário
Literatura Brasileira: Poesia
APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................8
Unidade I
1 DISCURSOS FUNDADORES NA POESIA BRASILEIRA: O ÍNDIO ANTES DO INDIANISMO..... 11
1.1 Imagem do índio .................................................................................................................................. 13
1.2 Representação do índio na poesia dos séculos XVI e XVII.................................................... 22
1.3 O índio na poesia do século XVIII................................................................................................... 32
2 EPOPEIA NO BRASIL COLONIAL: UMA ILUSTRAÇÃO.......................................................................... 42
2.1 Construção épica de O Uraguai....................................................................................................... 44
2.2 Desdobramento do herói e do antagonista em O Uraguai.................................................. 49
2.3 A valorização do espaço americano n’O Uraguai..................................................................... 58
3 LITERATURA E IDENTIDADE NACIONAL: A POESIA ROMÂNTICA................................................... 61
3.1 Devoção à natureza.............................................................................................................................. 63
3.2 Idealização do ameríndio: o indianismo...................................................................................... 71
3.3 Amor à pátria.......................................................................................................................................... 79
4 HISTORIOGRAFIA E ESCOLARIZAÇÃO DA POESIA BRASILEIRA...................................................... 83
4.1 Historiografia da literatura brasileira............................................................................................ 83
4.2 Panorama dos estilos literários brasileiros na poesia: fase colonial ................................ 94
4.3 Panorama dos estilos literários brasileiros na poesia: fase da
identidade nacional...................................................................................................................................102
4.4 Panorama dos estilos literários brasileiros na poesia: fase de transgressão
e inovação......................................................................................................................................................109
Unidade II
5 LITERATURA DESSACRALIZADORA..........................................................................................................117
5.1 Consonâncias e dissonâncias: o ritmo do Modernismo......................................................117
5.2 Cobra Norato.........................................................................................................................................124
6 POESIA NOVECENTISTA E SUA RELAÇÃO COM O SAGRADO........................................................132
6.1 Augusto dos Anjos: um místico com Deus ..............................................................................133
6.2 Jorge de Lima: terra sagrada, religião na poesia....................................................................138
6.3 Adélia Prado: poesia materno-teologal.....................................................................................146
Unidade III
7 LINGUAGEM CRIADORA..............................................................................................................................158
7.1 Drummond, afirmação da poesia brasileira..............................................................................158
7.2 João Cabral, o idioma pedra e as palavras-pedra..................................................................163
7.3 Henriqueta Lisboa, um caso de transcodificação...................................................................171
8 SUPORTE E RECEPÇÃO DA POESIA E SUAS TENDÊNCIAS..............................................................176
8.1 O hibridismo na poética pós-moderna......................................................................................177
8.2 No ritmo da atualidade ...................................................................................................................186
8.3 Diálogo com a história: a poesia de Milton Torres................................................................194
APRESENTAÇÃO
A disciplina Literatura brasileira: poesia tem como objetivo geral proporcionar ao aluno reconhecer
o desenvolvimento e as características específicas da literatura brasileira, por meio do estudo de autores
e obras, considerando a forma mentis, o contexto cultural e social de cada período, o diálogo entre as
artes e as características específicas dos escritores pesquisados e, considerando esses aspectos, discutir
modos e formas de ensinar literatura.
• proporcionar ao aluno reconhecer a estrutura e a operação estética realizada nos textos literários
considerados canônicos para a formação e constituição da literatura brasileira, bem como a dos
textos contemporâneos;
• levar o aluno a reconhecer a cultura brasileira (obras e autores) como um processo cultural
contínuo e consolidado da consciência nacional e cultural do país — dentro e fora das culturas de
massa.
A disciplina volta-se à reflexão sobre a relação entre a literatura brasileira e a sociedade local
e a situação destas no contexto no qual se inserem os movimentos literários nos locais de origem,
com a finalidade de dar ao aluno subsídios específicos para lecionar literatura brasileira no Ensino
Médio.
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5. as vanguardas europeias e o modernismo brasileiro, os antecedentes da Semana de Arte Moderna;
os manifestos da Primeira Geração Modernista; a poesia de Mário de Andrade, Oswald de Andrade
e Manuel Bandeira; a poesia da geração de Augusto Schmidt, Carlos Drummond de Andrade,
Cecília Meireles, Murilo Mendes e Vinicius de Moraes; a poesia de Ferreira Gullar e João Cabral de
Melo Neto. As consequências da Semana de 22 para a arte e a cultura brasileira.
INTRODUÇÃO
São três os grandes aspectos, do ponto de vista da autora deste livro-texto, que envolvem a poesia
brasileira: a poesia inserida na história do Brasil, a poesia fortemente influenciada pela tradição europeia
e a poesia questionadora e questionada na literatura moderna e pós-moderna.
A literatura brasileira tem uma história permeada por transformações constantes, com consequências
culturais, políticas, sociais e identitárias. Em determinados momentos históricos, questões sobre sua
identidade ficam mais latentes.
A literatura no Brasil só adquire existência com a vinda dos europeus, em especial dos portugueses,
à América. Toda a produção cultural, inclusive a poética, pré-colombiana é desconsiderada na história
da literatura do continente. No caso do Brasil, os estudos literários iniciam-se a partir de 1500, isto é,
das escritas produzidas aqui pelos portugueses.
Todo imaginário criado por eles sobre a terra nova é refletido na literatura e marca, por conseguinte,
a história da nossa literatura. Esse aspecto envolve intimamente outro: a base religiosa em nossa
poesia. Os portugueses sempre foram um povo católico, seguidor da Bíblia cristã, assim como os povos
europeus ocidentais. A influência da Bíblia na literatura (cultura) ocidental é indiscutível e apontada por
estudiosos notórios, repercutindo nos escritores brasileiros atuais.
Por fim, a poesia brasileira, seguindo preceitos discutidos por autores europeus, reflete nova posição
em sua história. Os poetas constroem textos que questionam a própria poesia. Nunca houve tanta
consciência e questionamentos sobre a poesia, seu papel na sociedade, sua existência no presente e no
futuro quanto na sociedade pós-moderna. Essa nova poesia marca, principalmente, linguagem própria,
formando realmente a identidade de uma literatura nacional.
Esse percurso é expandido e discutido neste livro-texto, porém se trata de uma história de 500
anos, com número crescente de autores a cada século que passa, e os autores, por sua vez, lançam
várias obras. Causa dificuldade, com efeito, na seleção de material literário. Frente a tantos poetas,
por exemplo, do começo do século XX, qual deles exemplificar nesse percurso? Qual ou quais obras
discutir desses selecionados? As obras abrangem várias temáticas: indicar todas elas?
Depois da leitura, você poderá fazer uma avaliação sobre este material, no que diz respeito, por
exemplo:
2. ao autor/obra que não foi mencionado e você indica (pode fazer indicação para momentos
históricos diferentes);
3. ao autor/obra desconhecido até então por você e que lhe chamou a atenção;
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LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Unidade I
1 DISCURSOS FUNDADORES NA POESIA BRASILEIRA: O ÍNDIO ANTES DO
INDIANISMO
Passamos a ter, portanto, um ponto de vista: o dos europeus que se depararam com uma realidade,
a qual precisava ter sentido para eles. Assim, podemos adotar as perguntas feitas pela estudiosa Eni
Orlandi (2003, p. 11): “como do sem sentido se faz sentido e irrompe o sentido novo? Como, diante
de um mundo novo, com coisas, seres e paisagens ainda não nomeados vai surgindo um sentido, vão
surgindo nomes?”.
No processo de dar sentido ao novo, a construção do significar envolve: seu apagamento por uma
memória já estabelecida; resistência ao apagamento e a consequente produção de outros sentidos;
retorno do que foi excluído pelo apagamento, deslocando-o. Trata-se do percurso do sem sentido em
direção ao sentido, verificado nos primeiros discursos escritos pelos europeus colonizadores.
Tais discursos são os discursos fundadores. O discurso caracteriza-se como fundador ao criar uma
nova tradição, ressignificando o que veio antes e instituindo aí outra memória. O sentido anterior é
desautorizado, e o novo irrompe no processo significativo de tal modo que, pelo seu próprio surgir,
produz sua memória.
Em relação ao mundo novo encontrado pelos europeus, uma América diferente, com paisagens e
povo não esperados, um dos sentidos atribuídos por eles é de ter se deparado com o Eldorado, a Terra
Prometida. Com base na memória mítica e bíblica sobre o Paraíso perdido por Adão e Eva e a promessa de
reencontro com esse paraíso, os primeiros europeus atribuíram à terra descoberta americana justamente
essa terra perdida. A América passou a ser simbolicamente instituída como Eldorado, a Terra Perdida, o
Paraíso.
No caso do Brasil, a terra foi vista como fértil, abundante e diversificada em sua natureza. Na Carta
de Pero Vaz de Caminha, escrita em 1500, temos a primeira fotografia do Brasil:
11
Unidade I
Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra
ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será
tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte cinco léguas por costa. Tem, ao
longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas;
e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a
ponta, é tudo praia-palma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu,
vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão
terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa
alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito
bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre-Douro e Minho,
porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são
muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar,
dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.
Porém o melhor fruto, que dela se pode tirar me parece que será salvar esta
gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve
lançar (CAMINHA apud CASTRO, 1985, p. 239).
Quando, décadas depois, passaram efetivamente a colonizar o país, vieram grupos religiosos, em
especial os jesuítas (da Companhia de Jesus), para catequizar aquele povo tão diferente e inocente. Entre
eles, estava o padre Manoel da Nóbrega, em cujos discursos também fundadores, escritos em 1557,
estabeleceu outros sentidos sobre o povo indígena, que se tornou alvo da ação civilizadora. Segundo
Nóbrega (apud ORLANDI, 2003, p. 19):
12
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
3. Vestirem-se;
4. Tirar-lhes os feiticeiros;
6. Fazê-los viver quietos, sem se mudarem para outra parte se não for para
entre os cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem e com estes padres
da Companhia para os doutrinar.
Temos outros sentidos sobre os índios criados pelos europeus, tanto nos documentos fundadores
(cartas, crônicas) quanto nos primeiros textos literários. Esses sentidos foram mudados apenas depois,
no século XIX, no período do Romantismo, quando os escritores literários passaram a idealizar a figura
do índio, considerando-o o legítimo povo brasileiro, guerreiro, com fortes traços positivos.
Assim, quando você ouve alguém relacionar literatura brasileira com o povo ameríndio, o que primeiro
vem a sua mente? Será que você se lembra da figura do Peri, personagem do romance O guarani, ou do
jovem tupinambá, do poema I-Juca Pirama? Ou quem sabe da descrição da inocência dos índios feita
por Pero Vaz de Caminha exatamente em 1500?
Se predomina a lembrança de Peri e I-Juca Pirama, prevalece a visão que os autores do Romantismo,
no século XIX, idealizaram sobre o povo nativo e de direito do país. Se predomina a descrição de Caminha,
prevalece a visão dos primeiros europeus sobre os índios, seu encantamento e estranhamento sobre o
novo, o diferente.
Existe, então, uma marca temporal: antes e depois do indianismo. Os textos dos séculos XVI, XVII e XVIII
são anteriores ao indianismo; os textos do Romantismo alcançaram notoriedade em decorrência das ideias
criadas sobre os índios: o indianismo. Tal idealização é tão notória que sobrepujou as primeiras impressões
dos europeus sobre os índios e foram registradas em diversos documentos, como cartas e poemas.
São abundantes os textos em que é atribuída uma fala ao índio, com projeção ideológica, isto é,
a suposição de como falaria o índio brasileiro. No entanto, nessa fala emprestada a ele, temos um
documento não tanto do objeto, mas da visão sobre o objeto, servindo, assim, como registro verdadeiro
das imagens que dele foram produzidas ao longo do tempo.
Pedro Álvares Cabral. Esse documento ficou guardado por três séculos; somente em 1817 foi divulgado
na sua Corografia brasílica pelo padre Aires do Casal.
Essa carta e as crônicas dos padres e viajantes de diversas nacionalidades formam a manifestação
literária brasileira denominada Literatura de Informação, corrente nos séculos XVI e XVII.
Esses textos são fundadores e relevantes devido ao fato de seus autores registrarem suas impressões
sobre o contato estabelecido com os índios tupi, que ocupavam a costa brasileira.
Com base em Bastos (2011), elencam-se aqui sete aspectos sobre os índios apontados por Caminha
e cronistas em seus primeiros contatos com eles. Entre as obras fundadoras, temos:
Quadro 1
Ano original
Autor Nacionalidade Obra da obra
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta. In: CASTRO,
Sílvio. O descobrimento do Brasil: a carta de
Pero Vaz de Caminha português 1500
Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: L&PM,
1985.
THEVET, André. As singularidades da França
André Thevet francês Antártica. Tradução Eugênio Amado. Belo 1555
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1978.
LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil.
Jean de Léry francês Tradução Sérgio Milliet. Belo Horizonte: 1557
Itatiaia; São Paulo: USP, 1980.
ANCHIETA, José de. Cartas: informações,
Padre José de Anchieta canarino A partir de
fragmentos históricos e sermões. Belo 1553
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1988.
GANDAVO, Pero Magalhães. Tratado da Terra
Pero Magalhães Gândavo português do Brasil e a História da Província de Santa 1576
Cruz. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
USP, 1980.
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo
Gabriel Soares de Sousa português do Brasil em 1587. 5. ed. São Paulo: 1587
Nacional; Brasília: INL, 1987.
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil.
Hans Staden alemão Tradução Guiomar de Carvalho Franco. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1988.
1 – A boa aparência física dos índios (homens e mulheres) deixou ótima impressão nos primeiros
europeus chegados à nova terra. Caminha (1985, p. 78) diz que: “A feição deles é parda, algo avermelhada;
de bons rostos e bons narizes. Em geral são bem feitos”. O padre José de Anchieta (1988, p. 441) concorda
com essa visão favorável ao descrever os índios como “vermelhos de cor, de mediana estatura, a cara e
os membros mui bem proporcionados”. Thevet (1978, p. 102-103), também, anota que os “americanos”
são “bem conformados e possuem membros bem proporcionados”, embora tenha destacado que os
14
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
olhos “são mal feitos, ou seja, são negros e vesgos”, lembrando o olhar “das feras selvagens”. Jean de Léry
(1980, p. 111), por sua vez, descreve índio como:
[...]
Colocai-lhe na mão seu arco e suas flechas e o vereis retratado bem garboso
ao vosso lado.
Gabriel Soares de Sousa (1987, p. 300), que se tornou senhor de engenho na Bahia, fez menção à
cor da pele e à proporcionalidade dos membros dos índios, bem como à aparente disposição de ânimo
vista nos rostos alegres dos nativos, chegando à minúcia dos “bons dentes, alvos, miúdos, sem nunca
lhe apodrecerem”.
Outra descrição favorável da aparência física dos índios é encontrada nos textos do alemão Hans
Staden (1988, p. 161). Ele foi prisioneiro dos tupinambás durante nove meses e esteve a ponto de morrer
e servir-lhes de comida, mas não denegriu os índios, referindo-se a estes como gente “bonita de corpo
e estatura, homens e mulheres igualmente”.
De forma geral, então, os cronistas em seus primeiros textos sobre a terra descoberta descrevem
os índios de forma elogiosa, aludindo ao vigor físico e também à sua longevidade. Sobre este último
aspecto, temos o exemplo do texto de Jean de Léry (1980, p. 111):
O padre Simão de Vasconcelos (1597-1654), historiador das ações da Companhia de Jesus no Brasil,
confirma a extraordinária vitalidade dos índios:
A respeito de os americanos terem vida longa, com saúde e boa disposição, o padre José de Anchieta
faz preciosa observação ao mencionar sobre uma criança indígena de Piratininga, que nasceu sem nariz
e com outras enfermidades não conhecidas pelo padre. O tio enterrou a criança, assim como faziam os
índios com todos que nasciam com alguma falta ou deformidade. Devido a essa preocupação eugênica,
não eram encontrados índios coxos, disformes, aleijados ou doentios.
Complementando as descrições sobre a boa aparência, o vigor físico e a longevidade dos índios,
destacam-se também a bravura nos combates e a destreza no manejo de armas de guerra e de
instrumentos de caça e pesca. Segundo Anchieta (1988, p. 441-442), os índios “são guerreiros e grandes
frecheiros; basta ver um olho só descoberto a um homem para lhe pregar; [e] são tão destros que
não lhes escapa passarinho que não matem, e a frechadas matam o peixe na água”. Ao se referir aos
tupinambás sobre o costume de caçar animais de grande porte, Anchieta (1988, p. 313) acrescenta
que os índios “não arreceiam arremeter grandes cobras, que matam, e a lagartos que andam na água,
tamanhos como eles, que tomam vivos e a braços”.
Ainda sobre a aparência dos índios, a nudez, especialmente em relação à das mulheres, causou
espanto nos europeus, que, contudo, logo no início, perceberam a candura desse hábito das índias, o
qual acabaria por inibir a luxúria e a lascívia deles, como observa Léry (1980, p. 121):
Pero Vaz de Caminha, na carta de 1500, o padre Balthazar Fernandes, em carta de 1567 e mesmo
Anchieta, que sempre reprovou a nudez dos índios, reconhecem o estado de inocência.
A nudez das índias não provocou desinteresse sexual dos europeus, uma vez que inúmeros casos de
mancebia ou de casamento regular ocorreram entre os europeus e as índias. Eles se uniram às índias
de livre vontade e muitos viveram como “gentios com muitas mulheres”, no esclarecimento de Gabriel
Soares de Sousa (1987, p. 331).
Para o padre Manoel da Nóbrega, que chegou ao Brasil em 1549, a nudez dos índios causa incômodo
por razões teológicas (BASTOS, 2011). Afinal, como permitir o batismo dos índios, quando eles não
usavam roupas?
16
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Mais tarde, no século XIX, os autores do Romantismo escreveram seus poemas e prosas e criaram
índios belos, pujantes, destemidos guerreiros, delicadas virgens, situando os índios, em seu ambiente
de início da colonização, num ambiente edênico. Os românticos estavam muito longe dessa visão dos
primeiros europeus; afinal, já no século XIX, os índios eram quase um grupo em extinção.
2 – A vida comunitária dos índios é unanimemente reconhecida nesses textos fundadores. Como
diz Staden (1988, p. 167-172): “Não existe entre eles propriedade particular, nem conhecem dinheiro”.
No caso da comida, por exemplo, era de todos os índios, por igual. A caça terrestre ou aquática era
distribuída entre todos. Gabriel Soares de Sousa (1987, p. 313), com toque de humor, compara os índios
com os padres franciscanos, levando em conta o despojamento entre ambos:
Têm estes tupinambás uma condição muito boa para frades franciscanos,
porque o seu fato, e quanto têm, é comum a todos os da sua casa que
querem usar dele: assim das ferramentas, que é o que mais estimam, como
das suas roupas, se as têm, e do seu mantimento; os quais, quando estão
comendo, pode comer com eles quem quiser, ainda que seja contrário, sem
lho impedirem nem fazerem por isso carranca.
Entre eles, os que são amigos vivem em grande concórdia e amor, observando
bem aquilo que se diz: Amicorum omnia sunt communi. Se um deles mata
um peixe, todos comem deste e assim de qualquer animal (apud BASTOS,
2011, p. 33).
A bem da verdade, um dos cronistas, o padre jesuíta Antonio Blasquez, chegado ao Brasil em 1553,
em carta de 1557, destacou o lado negativo dessa vida em grupo, descrevendo as habitações dos índios
como “casas escuras, fedorentas e afumadas”, nas quais as camas “são umas redes podres com a urina,
porque são tão preguiçosos que ao que demanda a natureza se não querem levantar” (apud BASTOS,
2011, p. 33).
As guerras em que os índios se envolviam constantemente não deviam, portanto, aos interesses
materiais. A motivação não era conquista de terras ou obtenção de vantagem material. A guerra devia-
se ao desejo de vingança por ofensas anteriores. Conforme Léry (1980, p. 183):
Os selvagens se guerreiam não para conquistar países e terras uns aos outros,
porquanto sobejam para todos; não pretendem tampouco enriquecer-se
com os despojos dos vencidos ou o resgate dos prisioneiros. Confessam eles
próprios serem impelidos por outro motivo: o de vingar pais e amigos presos
e comidos, no passado.
Outro aspecto dos hábitos dos índios destacado pelos primeiros europeus no Brasil era a boa
hospitalidade, verdadeira questão de honra, incluindo nela a completa segurança dada aos visitantes.
Na observação de Gabriel Soares de Sousa (1987, p. 316), o hóspede era brindado pelo dono da casa
17
Unidade I
com a própria rede, e “a mulher lhe põe de comer diante, sem lhe perguntarem quem é, nem de onde
vem, nem o que quer”.
3 – O senso político dos índios brasileiros causou muita admiração nos europeus. Os índios não
reconheciam autoridade de rei ou de prepostos, limitando-se ao respeito por um principal apenas
quando em guerra. Nas palavras de Ambrósio Fernandes,
Observação
Podemos concordar com Bastos (2011) quando esse estudioso denomina como esdrúxula a
observação feita por Gândavo, em 1576. Como não existem os fonemas /f/, /l/, /r/ na língua indígena,
Gândavo (apud BASTOS, 2011, p. 37) diz que os índios não têm Fé, Lei nem Rei:
A língua deste gentio toda pela Costa é uma: carece de três letras –
scilicet, não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque
assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem justiça e
desordenadamente.
Essa ideia de que os índios, por não terem em sua língua esses três fonemas (que foram confundidos
com letras), não tinham fé, lei, rei foi repetida por outros europeus, que a ratificaram. O primeiro que
repetiu a ideia foi Gabriel Soares de Sousa (1987, p. 302). Na concepção deste, o índio:
4 – A suposta ausência de uma concepção religiosa foi tema enfático nas crônicas dos primeiros
europeus no Brasil. O primeiro deles foi Caminha (1985, p. 94): “Parece-me gente de tal inocência que,
se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem
crença alguma, segundo as aparências”.
Assim, a ausência de religiosidade pareceu a Caminha favorável aos propósitos dos colonizadores,
pois ele já notou que os índios não eram circuncidados, isto é, nem pagãos nem judeus. Logo, Caminha
recomendou ao rei “salvar esta gente”, enviando clérigo para batizá-la.
Também Gândavo (1980, p. 142), na obra de 1576, décadas depois da Carta de Caminha, escreveu:
Por todas as Capitanias desta Província estão edificados Mosteiros dos Padres
da Companhia de Jesus e feitas em algumas partes algumas Igrejas entre os
índios que são de paz onde residem alguns Padres pera os doutrinar e fazer
Cristãos: o que todos aceitam facilmente sem contradição alguma porque
como eles não tenham nenhuma Lei nem cousa entre si que adorem, é-lhes
muito fácil tomar esta nossa. E assim também com a mesma facilidade, por
qualquer cousa leve a tornam a deixar, e muitos fogem para o sertão, depois
de batizados na doutrina cristã.
Observação
Distinguimos antropofagia, que significa comer carne humana dos
inimigos por vingança, do canibalismo, que significa alimentar-se da carne
humana sem motivação especial.
No geral, entre os cronistas, há concordância sobre o motivo que levava os índios à antropofagia.
O motivo, segundo Staden (1988, p. 176), “não era para matar a fome, mas por hostilidade, por grande
ódio”, com o que concorda Léry (1980, p. 200), para quem os índios, embora confessassem ser a carne
humana saborosa, “seu principal intuito é causar temor aos vivos”.
Em alguns casos, como na prática dos tapuias, os índios chegavam a comer carne de entes queridos
por amor, para poupá-los de maior sofrimento, em um processo de quase eutanásia, como observa
Gândavo (1980, p. 141):
19
Unidade I
A antropofagia era praticada também com crianças e mulheres. No caso das mulheres, se estas se
tornassem cativas, eram mortas e suas carnes comidas pelos índios de tribo vencedora; ou elas poderiam
se tornar mulher do guerreiro vencedor. Sobre esse aspecto cultural indígena, Brandônio (apud BASTOS,
2011, p. 44) esclarece:
Às vezes as matam e outras não, que é quando sucede tomá-la algum dos
vencedores por sua mulher ou manceba; e por este modo escapam da morte,
mas a graça é que, se algumas destas cativas acertam de fugir, e vai prenhe,
depois de estar entre os seus posta a salvo, e chega a parir, o próprio avô, e
ainda a mesma mãe, matam a criatura nascida e a comem, dizendo que o
fazem ao filho de seu inimigo; porque a mãe foi somente um bolso em que
se criou e se aperfeiçoou a tal semente, sem tomar nada dela; e por esse
modo usam de mil crueldades em casos semelhantes.
Sousa (1987) também descreve o destino da criança, mas de outra situação. Ele fala da criança
nascida da relação entre prisioneiro e a mulher que lhe fora dada como parte dos preparativos para a
execução inevitável. A criança é criada pela mãe até a idade em que pode ser comida. A mãe a oferece
ao parente mais próximo, que quebra sua cabeça, e ela é a primeira a comer dessa carne.
Todos os cronistas da época dos primeiros contatos entre europeus e indígenas concordavam que o
ritual da execução de um prisioneiro demonstrava requinte e cavalheirismo, pois o próprio condenado
tomava parte ativa nos preparativos, com prazer e orgulho, tendo papel relevante neles. Não faltavam
cânticos e danças nem bebidas, sendo a morte tida por gloriosa. No esclarecimento do padre Anchieta
(1988, p. 55):
Justamente devido ao fato de os cristãos acreditarem em enterro, muitos índios recusavam o batismo,
porque queriam morrer como valentes, com morte formosa e gritando para seus captores que os seus
vingariam destes, assim como eles (os vencidos) já comeram muitos parentes dos captores.
6 – O senso estético dos índios foi descrito pelos europeus, que narraram as danças, os cânticos e
a dramatização rudimentar da cerimônia de execução de um prisioneiro. Além dessas manifestações,
eles mencionaram também o adorno do corpo feito com tintas, penas de aves, pedaços de ossos etc. De
acordo com Bastos (2011, p. 48): “O gosto pelo enfeite é de tal ordem que os índios não hesitavam em
‘negociar’ com os brancos, recebendo, em troca de pau-brasil, por exemplo, colares, miçangas e outras
quinquilharias”.
20
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Devo dizer com relação ao casamento dos nossos americanos que eles
observam tão somente três graus de parentesco; ninguém toma por esposa
a própria mãe, a irmã ou filha, mas o tio casa com a sobrinha e em todos os
demais graus de parentesco não existe impedimento.
Ressalta-se, porém, que um índio (tio) não se casava com as filhas de seu irmão, porque eles
acreditavam que o parentesco verdadeiro vinha pela parte dos pais. No entanto, as sobrinhas filhas das
irmãs não mereciam o mesmo respeito e com elas os homens copulavam sem qualquer impedimento.
Sobre o casamento em si, segundo o francês Thevet (1978), era realizado sem qualquer formalidade,
cerimônia, pois o casal apenas se ajuntava.
Quanto à poligamia, parece ser uma distinção concedida apenas aos bravos guerreiros. As mulheres
aceitavam sem queixa, mas não costumavam trair os maridos, porque no caso de serem surpreendidas
eram mortas por ele, que considerava o ato uma falta muito grave.
Exemplo de Aplicação
I. Faça um resumo das imagens criadas pelos cronistas e padres jesuítas sobre os índios do Brasil nos
séculos XVI e XVII.
Quadro 2
Vida comunitária
Senso político
Concepção religiosa
21
Unidade I
Antropofagia
Senso estético
Sistema de parentesco e
casamento
II. Selecione uma das imagens resumidas e faça uma breve pesquisa sobre a sociedade indígena
brasileira da nossa atualidade. Escreva um parágrafo sobre como a imagem escolhida é concebida
atualmente pelos ameríndios contemporâneos. Esclareça qual grupo foi estudado: tupi, guarani etc.
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III. Leia o jornal do dia (no momento em que você lê este livro-texto), verifique se há notícia sobre
a sociedade indígena brasileira. Faça uma síntese da notícia, verificando o tema específico abordado no
texto jornalístico sobre a sociedade indígena e discuta o posicionamento do jornalista a respeito.
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O padre José de Anchieta (1534-1597) tem lugar na literatura brasileira de forma controversa, por
vários motivos, entre eles por não ser português de nascimento e pela sua obra ter sido escrita em várias
línguas: português, espanhol, latim, tupi.
O poema épico De Gestis Mendi de Saa, por exemplo, foi escrito em latim.
22
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
À parte a discussão entre os críticos literários sobre o papel de Anchieta em nossa literatura, a parte
mais considerável de sua obra poética e de suas inúmeras cartas diz respeito ao índio brasileiro.
Parecia certo que o indígena do Brasil não tivesse qualquer concepção religiosa, como afirmava, por
exemplo, Fernão Cardim (apud BASTOS, 2011, p. 52):
Passam de 2.000 aqueles que, este ano, foram pelos nossos arrancados
à impiedade e purificados pelo batismo, em toda a província, se a eles se
juntarem os trezentos que foram batizados no Colégio do Rio de Janeiro
(como é grande a bondade divina!), não contando os que foram batizados
em casas particulares e não puderam ser registrados (ANCHIETA, 1989, p.
413).
Para alcançar esse objetivo, o jesuíta recorreu à poesia e ao teatro como meios complementares da
ação catequética, que desmantelou o universo simbólico do indígena, por meio de:
23
Unidade I
• desmoralização contínua dos pajés, que nunca se enganaram com o programa de salvação e eram,
por conseguinte, oponentes dos jesuítas;
Sobretudo na obra épica De Gestis Mendi de Saa, o estudioso Bastos (2011) verifica a quase absoluta
ausência de piedade do padre Anchieta em relação aos indígenas. No caso dessa obra, a adesão aos
vencedores portugueses sobre os índios é incondicional do poeta, que faz exortações entusiasmadas
das atrocidades praticadas pelos soldados (portugueses) ao dizimarem os inimigos (índios), e chega a
lamentar que nem todos tenham em igual intensidade o ímpeto exterminador do comandante:
O padre José de Anchieta adotou a forma do auto medieval, pondo em cena as forças opostas do
anjo e do diabo. O diabo, por ter a simpatia dos indígenas, é sempre retratado negativamente nas obras
de Anchieta. Seu discurso promove íntima relação entre o diabo e o universo indígena anterior à ação
jesuítica, visando infundir nos índios temor absoluto. Entre os recursos retóricos buscados por Anchieta,
o ardil mais sibilino, na concepção de Bastos (2011) é o empréstimo, aos diabos postos em cena, de
nomes próprios de chefes guerreiros hostis aos portugueses católicos.
Nos textos literários, poemas e autos, Anchieta ora usa a primeira pessoa do singular, ora a primeira
do plural, dando voz aos índios, que se dizem, nos textos criados, arrependidos dos vícios e dos defeitos
de seus costumes típicos, de quando ainda viviam sob a influência do diabo.
25
Unidade I
Na produção poética de Anchieta, os costumes indígenas, os velhos hábitos, passam a ser renegados.
São apresentados como condenáveis:
Evitai,
de hoje em diante, serdes maus,
para extinguirdes vossos velhos hábitos,
– a bebida, o fétido adultério,
mentiras, brigas,
ferimentos mútuos, guerras (ANCHIETA, 1989, p. 647).
Em outra poesia, o leitor depara-se com um texto que parece contraditório à ideologia jesuítica:
É bom dançar,
adornar-se, tingir-se de vermelho,
empenar o corpo, pintar as pernas,
fazer-se negro, fumar,
curandeirar...
toda essa defesa dos maus costumes é proclamada por um diabo, entidade
representativa do mal, o que dá às suas palavras a condição reflexa de
26
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
No auto de representação de Guaixará (personagem diabo com nome de chefe guerreiro), ele diz:
Como observam Cafezeiro e Gadelha (apud BASTOS, 2011, p. 60), estudiosos atuais:
Para o indígena, nada significava ser Deus ou o Diabo. Ora, a dança, as cores
(especialmente o vermelho): o estranho da figura do diabo com chifres e rabo;
o ritmo; o canto fascinavam os índios, que, também já vimos, tinham nestas
manifestações o único meio de se libertar das aflições, do tormento que o próprio
cotidiano lhes levava. Daí a alegoria do diabo funcionar, ao contrário, como
motivação, incitação psicológica, magia e não como elemento de repressão, o
que acontecia com os portugueses, para quem a ideia de diabo era aterradora.
Diante da produção poética de Anchieta, a intenção dele era desqualificar o universo indígena e sua
expectativa, então, era criar um novo imaginário no índio. Assim, costumes indígenas como a alegria
ingênua advinda da bebida e da dança são mostrados como perdição, como ocorre em outro poema, em
que há um diálogo entre o diabo Aimberê (nome de chefe guerreiro) e o Anjo:
No poema, o diabo descreve um festim indígena, com dança e bebida (cauim), o qual se torna uma
situação de ação maléfica.
Enfim, a adoção de nomes de guerreiros indígenas para o personagem diabo aparece em mais de
uma obra de Anchieta. Os nomes Guaixará e Aimbirê são verídicos. O primeiro foi herói tamoio que, em
27
Unidade I
1564, tomou parte dos ataques dos tamoios de Cabo Frio, aliados dos franceses, contra os portugueses
de São Sebastião; o segundo, também chefe tamoio e aliado dos franceses, tornou-se herói do poema
épico romântico Confederação dos Tamoios (1856), de Gonçalves de Magalhães. Anchieta recorre a esses
nomes, cujos donos tinham sido hostis ao projeto evangelizador/colonizador, e promoveu a identificação
onomástica do mal, uma vez que os chefes tamoios são, nos textos, diabos. Ele visava inculcar na
mente dos índios a certeza de que os tamoios que haviam resistido aos portugueses não eram heróis
reverenciados, mas demônios a serem exorcizados. Os autos eram representados, em forma teatral, duas
ou três décadas depois dos acontecimentos históricos, quando os chefes tamoios já estavam mortos há
muito tempo, não constituindo, então, perigo à segurança dos portugueses.
Em síntese, nos textos literários de Anchieta, o índio aparece sob a marca da negatividade, não
merecendo um olhar compreensivo do Apóstolo do Brasil.
Bento Teixeira (1561-1600?) escreveu Prosopopeia, poema épico publicado em Lisboa em 1601.
São 752 versos sobre os feitos de Jorge de Albuquerque Coelho, terceiro donatário da capitania de
Pernambuco, narrados por Proteu, deus marinho dotado do poder de profetizar os fatos.
Esse poema é considerado a primeira obra de cunho inteiramente literário, sem se voltar, portanto,
à catequese, como ocorre com as obras de José de Anchieta. É um texto produzido na colônia, podendo
ser um marco do início da literatura brasileira, mesmo levando em conta o fato de Bento Teixeira não
ser brasileiro de nascimento.
• sua atuação contra os indígenas no processo de colonização da terra, entre os anos de 1560 a 1565;
• sua atribulada viagem a Lisboa, em 1565, na qual enfrentou motins a bordo, tempestades em
alto-mar, ataques de corsários franceses e só com muito esforço chegou ao seu destino, trôpego
e com poucos remanescentes da tripulação;
• sua participação malograda na campanha de Alcácer-Quibir (1578), na África, na qual morreu o
rei de Portugal, Dom Sebastião (BASTOS, 2011).
Nesse poema, a presença do índio é mínima. A primeira referência é encontrada na parte que fala
do pai de Jorge Albuquerque Coelho. Duarte Coelho Pereira foi o primeiro donatário de Pernambuco e
entre seus triunfos está o fato de ter amansado os índios caetés:
Versos adiante, agora se referindo ao herói e seu irmão (nomeado para o governo, em razão da morte
do pai), os quais se viram também às voltas com a pacificação dos índios, o poeta emprega outro verbo
contundente e pouco apropriado para lidar com seres humanos: domesticar.
28
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Segundo a leitura interpretativa de Bastos (2011), os jovens senhores, com pouco mais de 20 anos,
no Princípio da Primavera, estavam empenhados em dilatar seu distrito por meio da persuasão pacífica;
mas, caso não conseguissem, há outros meios, como prenuncia Proteu:
Contra a gente austera e bárbaros cruéis, ou seja, o povo indígena rude, os heróis usariam instrumentos
decisivos da ação pacificadora; nada menos do que o fogo e o ferro. A descrição que segue está bem de
acordo com o gosto épico pela sangria explícita, não deixando dúvida sobre o resultado do ferro e do
fogo pelos braços vigorosos e constantes dos esforçados irmãos:
Como coroamento dessa obra meritória dos irmãos, “Quais dois soberbos rios espumosos” (TEIXEIRA,
1969, estrofe XXXII), farão destruição em toda parte, dando aos bárbaros “total exício”. Os portugueses,
na época, usavam de estratagema que consistia em embebedar índios para que denunciassem os
companheiros que matavam os brancos e os escravos. A punição contra os responsáveis é contada pelo
Frei Vicente do Salvador, em texto de 1627:
O narrador Proteu cria uma linha genealógica bizarra para reforçar a condição inferior do índio. No
poema, os índios descendem de Vulcano, que se opõe às intenções dos portugueses:
Lembrete
Em resumo, é assim que estreia o índio na literatura brasileira: estigmatizado e como obstáculo a
ser tirado do caminho do herói. Na obra de Bento Teixeira, o índio aparece bem diverso da impressão
favorável de Pero Vaz de Caminha e dos cronistas que conheceram o índio em “seu habitat quase
edênico, livre, digno e insubmisso” (BASTOS, 2011, p. 66).
Outro escritor dessa época é Gregório de Matos (1633-1696), em cuja obra o índio é presença
apenas oblíqua. Gregório de Matos viveu em século posterior ao de José de Anchieta, em uma sociedade
menos rudimentar e essencialmente urbana. Assim, Matos recorre à figura do índio apenas como dado
referencial para ridicularizar as pretensões da aristocracia dos baianos de seu tempo.
A masculina é um Aricobé
Cuja filha Cobé um branco Paí
Dormiu no promontório de Passé.
30
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
O poeta denuncia a ascendência indígena de suas vítimas, pois para ele a genealogia apresenta-se
como motivo de vergonha e não de orgulho. Ele ironiza esse aristocrata “descendente do sangue de
Tatu, / cujo torpe idioma é cobé pá”. Para o poeta, é pretensão absurda um descendente de branco e índio
querer passar por Caramuru, isto é, de raça branca.
Na descrição desse Paiaiá, o poeta descreve tanto a linha genealógica feminina quanto a masculina.
Na descrição da linha feminina, na segunda estrofe, recorre a dados culinários indígenas. A feminina é a
carimá com sua moqueca, pititinga etc. Na descrição da linhagem masculina, esse Paiaia é um Aricobé,
fruto de um branco Paí e a índia, filha de um Cobé.
A última estrofe sintetiza a ancestralidade, que é indesejável. No poema, enfim, o universo indígena
é trabalhado com a intenção de causar estranheza e até repugnância em relação à mestiçagem. Tal
efeito é obtido pela seleção lexical bizarra e pelo constante emprego de rima oxítona, desqualificando a
ascendência daqueles que dão ares de nobreza.
Outro poema é:
Ao mesmo assunto
Dos traços psicológicos, o poeta rebaixa os valores culturais do índio, reforçando o prototípico de um
índio irracional, bestial e errante.
31
Unidade I
Nesse poema, ocorre a dubiedade de sentidos do verbo morder. Rolim herdara dos antepassados,
e como diz o poeta “E como isto lhe vem por geração”, o costume de morder, em sentido estrito, e
o empregava, agora em sentido figurado, em “Morder, aos que provêm de outra Nação” nos “teirós”
(conflitos) em que se metia esse “fidalgo nos ossos”. A expressão “fidalgo nos ossos” é, segundo Bastos
(2011), maldosa e habilíssima alusão à antropofagia dos antepassados de Rolim. Este era descendente
de “um Avô nascido lá”, no Extremo Oriente, e de um avô índio, tendo, então, “três para as partes do
Cairu”, que usava os ossos dos inimigos comidos como adereço de distinção, já que “Que nisto consistia
o mor brasão”.
O índio, de forma geral, é caracterizado como inferior, objeto de ironia ou de maledicência, nunca
empática. No caso da obra de Gregório de Matos, o índio não é objeto de interesse específico nem
alvo direto de seu ressentimento, apenas uma imagem risível para servir de termo de comparação
rebarbativa para aqueles que se orgulhavam de serem caramuru e, devido a suas pretensões de serem
nobres, encobriam sua descendência nativa.
Como podemos observar, as primeiras aparições do índio na literatura brasileira não lhe foram
favoráveis.
A obra Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia, de 1781, é de Santa Rita de Durão
(1722-1784). O argumento é, nas palavras do próprio autor,
A figura do índio, portanto, constitui-se ainda secundária. O herói legítimo do poema é o português
Diogo Álvares Correia, que teria naufragado nas costas baianas e visto, com pesar, seis companheiros
de infortúnio devorados pelos índios. Diogo foi salvo por se encontrar doente no momento da captura.
Junto aos índios, que o mantiveram vivo “para melhor nutrido servir-lhes de mais gostoso pasto”
(DURÃO, 2003, p. 14), matou com uma espingarda uma ave, causando espanto nos nativos, que “o
aclamaram Filho do Trovão, e Caramuru, isto é, Dragão do mar” (DURÃO, 2003, p. 14). Mais tarde, no
combate com indígenas do sertão, venceu-os. Os chefes ofereceram-lhe inúmeras regalias, entre elas as
filhas, tendo Diogo escolhido apenas uma, Paraguaçu. Eles se casaram e foram para a França. Na volta à
Bahia, Diogo realizou grandes feitos e Paraguaçu, depois de uma visão da Virgem Santíssima lhe pedindo
para resgatar sua imagem, “roubada por um Selvagem” (DURÃO, 2003, p. 15), lançou-se à procura,
encontrando a imagem e, “com exclamações de jubilo, se lançou a abraçá-la” (DURÃO, 2003, p. 15). Na
síntese da crítica de Bastos (2011, p. 92):
Essa obra, lançada dez anos depois do épico O Uraguai, de Basílio da Gama, que constrói relativa
elevação de status dos índios, divide a opinião dos críticos literários, pois, para metade destes, volta à
concepção de inferioridade completa do nativo. De fato, logo na abertura do poema, o poeta ressalta o
aspecto mais negativo da cultura indígena, a antropofagia. Da visão de um náufrago, diz o poeta (Canto
I, estrofes XVII-XVIII):
Na recepção dos índios ao náufrago, o poeta ressalta o lado negativo, mesmo admitindo que os índios
não inauguraram o costume de comer carne humana. No entanto, continua explícita sua repugnância
contra o canibalismo. No poema, apenas os cristãos estão isentos do canibalismo.
Em outro momento, no Canto V, o poeta indica o lado positivo dos índios, como a bravura nos
momentos de guerra. Bambu, feito prisioneiro por Taparica, pai de Paraguaçu, recusa a liberdade que foi
oferecida por Diogo, seu adversário:
LIX
LX
LXI
LXII
LXIII
LXIV
LXV
O índio Bambu, ensanguentado e com todos os insetos o cobrindo, afronta Diogo, não aceitando
a liberdade. O corpo que sofre dor física não mais pertence ao índio, mas ao inimigo. Bambu alegra-se
35
Unidade I
com os próprios tormentos, pois lhe serve de consolo saber que pode ver-se “no inimigo vingado, / Nesse
corpo, que é seu, tão mal tratado”.
De forma geral, a aparência dos índios é ressaltada como feroz e amedrontadora, principalmente dos
chefes, além dos seus hábitos incivilizados, como a gula, que, segundo o poeta Durão, não distinguia feras
dos homens. As mulheres indígenas também são descritas como torpes, feias, com imagem “propriíssima
do diabo” (Canto I, LXXX). Somente as jovens, incluindo Paraguaçu, são consideradas formosas.
Paraguaçu, em especial, devido a seu papel de heroína, é caracterizada por sua superioridade sobre
as outras índias.
LXXVIl
LXXVIII
Ela, antes mesmo de conhecer Diogo, já dominava a língua portuguesa, por ter contato com um
escravo português. A aparência física é absolutamente desprovida de seu mundo natural. Ela é, em
primeiro lugar, diferente da “gente tão nojosa”; sua pele é alva, branca como a neve, e seus traços finos,
36
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
semelhantes à pastora do imaginário arcadista europeu, não faltando sequer o clichê transatlântico da
neve. A brancura extrema com matizes de rosa é inconcebível ao povo ameríndio.
Junto à beleza, suas qualidades morais são exaltadas e, igualmente, em desacordo com o meio.
Contrariamente ao ardor e desenvoltura das outras apaixonadas índias, Paraguaçu não hesita em
guardar-se (a conselho de Diogo) para o matrimônio cristão; ela é casta e jura-lhe obediência e fidelidade
(Canto II):
XC
XCI
Na interpretação de José Veríssimo (BASTOS, 2011), o frade Santa Rita Durão transformou Diogo
e Paraguaçu em esposos castos como dita a lenda cristã, tornando Caramuru triste e grave como um
monge. Não é surpresa, portanto, a completa conversão de Paraguaçu à religião dos brancos europeus,
incluindo o batismo e a troca de nome – passa a ser Catarina –, e sua renúncia aos direitos tupinambás,
como herdeira dos seus maiores principais.
LXVIII
LXIX
A poesia épica do século XVIII, de forma geral, não poderia excluir o índio de sua temática. A razão é
o compromisso com a história e a celebração da vitória do colonizador português.
Observação
Contrariamente à poesia épica, porém, a lírica do Arcadismo não dedicou atenção especial ao índio.
Causa espanto, uma vez que essa escola literária apregoava a vida em contato direto com a natureza,
contemporânea à exaltação do homem natural por Rousseau, em texto de 1754, que aconselhava:
Levando em conta que os poetas do século XVIII tinham como herói o pastor localizado em espaço
sereno bucólico, os poetas, então, desconsideraram a crispação dramática da selva americana, bem
como o homem natural dessa selva, que era visto como rústico, bruto ou animalesco.
Nas exceções em que aparece a figura indígena, o leitor depara-se com o poema de Alvarenga
Peixoto:
38
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
O sonho
39
Unidade I
Ressalta-se que o poeta não via o Brasil separado de Portugal, embora tivesse alguma preocupação
nativista. No poema anterior, o Pão de Açúcar transforma-se na “figura do índio mais gentil” e, nesta
condição, como um “Píndaro Americano”, presta a mais explícita vassalagem à “Augustíssima Imperante”,
a rainha de Portugal D. Maria I.
Essa figura mais gentil não é especificamente o índio, mas o Brasil como um todo. Os atributos
“valeroso, ativo e forte” estendem-se a todos os brasileiros. O autor adotou o índio para a representação
do Brasil, mas poderia ter recorrido a qualquer outro componente da paisagem brasileira. A figura do
índio, marcada pela opulência das penas coloridas, de perolas, cristais etc., torna-se, portanto, apenas
uma alegoria.
Outro poema que faz menção ao índio é a Carta Décima das Cartas chilenas, de Tomás Antonio
Gonzaga:
O poeta fala de castigos por crimes passados, cujas marcas, os “insepultos corpos / de inumeráveis
homens que [os europeus] mataram”, são ainda visíveis no momento do poeta. Ele fala dos europeus
que se divertiam com a caça aos índios, chegando, um deles, à infâmia de alimentar os cães com a carne
humana dos índios. O motivo dos crimes devia-se ao fato de os europeus não acreditarem na existência
de alma dos indígenas.
De acordo com Bastos (2011), nenhum outro texto do século XVIII assumiu um posicionamento
indiscutivelmente condenatório do tratamento dispensado pelos europeus aos índios.
40
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Exemplo de Aplicação
I. O poema a seguir é do português e padre Sousa Caldas, publicado em 1783. Em que o poema
se difere das poesias dos três primeiros séculos de colonização no que diz respeito à figura do índio
brasileiro?
[...]
Que Augusta imagem de esplendor subido
Ante mim se figura!
Nu; mas de graça e de valor vestido
O homem natural não teme a dura
Feia mão da Ventura:
No rosto a Liberdade traz pintada
De seus sérios prazeres rodeada.
[...]
Eu vejo o mole sono sussurrando
Dos olhos pendurar-se
Do frouxo Caraíba que, encostando
Os membros sobre a relva, sem turbar-se,
O Sol vê levantar-se,
E nas ondas, de Tétis entre os braços,
Entregar-se de Amor aos doces laços.
Ó Razão, onde habitas?... na morada
Do crime furiosa,
Polida, mas cruel, paramentada
Com as roupas do Vício, ou na ditosa
Cabana virtuosa
Do selvagem grosseiro?... Dize... aonde?
Eu te chamo, ó filósofo! responde.
Qual o astro do dia,
Que nas altas montanhas se demora,
Depois que a luz brilhante e criadora,
Nos vales já sombria,
Apenas aparece; assim me prende
O Homem natural, e o Estro acende.
Fonte: Sousa Caldas (apud HOLANDA, 1979, p. 398-399).
41
Unidade I
( ) Os lusíadas, de Camões.
( ) Odisseia, de Homero.
Se você assinalou todas as obras indicadas, ou tem boa memória ou é um excepcional leitor
literário que já leu quase ou todas elas. Afinal, não possuímos mais autores épicos em nosso mundo
contemporâneo, preocupado com novidades e velocidade, incluindo aí a própria leitura. Ler mais de oito
mil versos d’Os lusíadas, por exemplo, quando podemos ler um microconto com 140, 170 caracteres?
No Brasil setecentista, encontramos uma onda camoniana, ou seja, produção de vários poemas
épicos escritos no país, seguindo literalmente ou com modificações a estrutura do épico de Camões.
Entre esses poemas, temos a obra O Uraguai, de Basílio da Gama, publicada em 1769.
O interesse por essa obra atende a dois aspectos. Primeiro, esta disciplina trata da literatura poética,
que abrange a lírica, ou seja, os poemas, mas também a epopeia. Afinal, uma epopeia é toda estruturada
em versos. Segundo, a obra de Gama representa “a única manifestação realmente viva de poesia épica
no período colonial brasileiro” (TEIXEIRA apud BASTOS, 2011, p. 77).
A epopeia é uma forma culta proveniente da Grécia antiga, com ressalva de que a palavra propriamente
dita – o substantivo epopeia – só é encontrada na língua francesa do início do século XVII.
A corrente teórico-crítica dominante atualmente, segundo Vania Chaves (2000), identifica epopeia
com o poema épico de dimensão alargada e reconhece a diversidade de suas formas históricas. A epopeia
pode ser criação oral e popular ou erudita e individual, religiosa ou de mitos, lendas que narram guerras
e feitos históricos ou que inventam aventuras romanescas.
Na época do autor Basílio da Gama, no século XVIII, a epopeia era reconhecida pelas características
de herança do mundo greco-latino, em especial do modelo do grego Homero, cuja poesia era vista como
mais nobre e perfeita.
De forma geral, um modelo típico de epopeia clássica é estabelecido e seus traços essenciais, nem
sempre presentes em sua totalidade nos textos concretos, são (CHAVES, 2000):
• preponderância das fábulas, com única ação central com múltiplos episódios;
• personagens como seres excepcionais por seu nascimento, valor guerreiro, patriotismo, sentimento
religioso, dotes intelectuais ou virtudes morais;
• antecipações e retrospecções;
43
Unidade I
Saiba mais
Para saber mais sobre o poeta, sua notoriedade em Roma, sua expulsão
da Companhia de Jesus, entre tantos outros aspectos interessantes, leia
o livro de Vania Pinheiro Chaves – O despertar do gênio brasileiro: uma
leitura de O Uraguai de José Basílio da Gama. Campinas: Unicamp, 2000.
O poeta de O Uraguai seguiu a orientação dominante da época clássica e foi seu assunto em um
acontecimento de projeção nacional, inspirando-se, sobretudo, nos eventos que ocorrem em torno da
assinatura e execução do tratado de 1750 a respeito dos limites territoriais coloniais entre Portugal e
Espanha. Essas metrópoles tentaram trocar a colônia de Sacramento, pertencente à Coroa portuguesa,
pelo território espanhol situado na margem esquerda do rio Uruguai, em que a Companhia de Jesus
tinha instalado sete povos missioneiros. Para demarcar as novas fronteiras, foram enviados militares
chefiados pelo general português Gomes Freire de Andrade, pelo marquês espanhol Valdelirios e pelo
general José de Andonaegui. Esses comandantes combateram contra milhares de indígenas; de um lado,
dois exércitos poderosos e modernos, de outro, índios com arcos, flechas e rústicas armas de fogo. O
resultado foi a morte de milhares de indígenas.
O poeta era contemporâneo a esse evento histórico e, ao escolher tal assunto, não seguiu o caminho
mais usado pelos autores de epopeia, que é resgatar o passado. Contudo, o poeta não trata de assuntos
sucedidos até a data da produção de seu poema. Ele retoma a tentativa de demarcação das fronteiras,
as lutas geradas, a ocupação do território missioneiro, a expulsão dos padres e a sujeição temporária
dos índios rebelados.
Existe diferença entre os fatos históricos daqueles poéticos, nos quais o poeta fez supressões,
deformações e invenções não resultantes da ignorância do conflito, mas para atender às exigências
próprias da criação épica.
44
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Basílio da Gama, assim como o Marquês de Pombal, era antijesuíta. A obra O Uraguai serviu como
denúncia do império clandestino que a Companhia de Jesus teria criado na América, do treinamento
militar dado aos indígenas e da opressão e miséria em que os manteria. Assim, uma das mudanças entre
a realidade e a ficção foi a criação do episódio no poema épico sobre a tentativa de fuga dos padres
Balda e Tedeo, quando o exército luso-espanhol chega de surpresa ao povoado onde ambos estão. O
comportamento é considerado vergonhoso devido ao abandono dos índios pelos padres.
O Uraguai é composto por 1.377 versos distribuídos em cinco curtos cantos. Todavia, sua extensão não
infringe a norma poética épica. Quanto a sua forma exterior, o poema apresenta os componentes típicos
da epopeia clássica: proposição, invocação, dedicatória, início da narração in medias res, retrospecção,
prospecção, epílogo. Tais componentes são manipulados. O exórdio, por exemplo, foge à tradição, pois
faz preceder a invocação e a proposição:
Canto I
Essa cena lança o leitor no espaço tétrico de uma batalha recém-terminada e ainda não identificada.
Só então o poeta pede auxílio à Musa para celebrar o vencedor da refrega:
Canto I
Não vemos, nessa voz, a grandiloquência das epopeias. O autor funde a invocação e a proposição
numa “frase curta e singela” (CHAVES, 2000, p. 75), colocando o herói e seu feito em um plano mais
humano. Tanto que fecha o discurso com voz dissonante que lamenta o acontecido e o atribui à ambição
de poder.
A obra tem temática bélica, seguindo a fórmula típica: o relato de uma ação central de natureza
heroica, realizada em curto espaço de tempo por um herói principal, enriquecida por episódios ligados
ou não à trama central. Por conseguinte, o poema de Basílio da Gama é uma narrativa de ação militar
comandada pelo general português Andrade, que, auxiliado pelo exército espanhol, procura dar
cumprimento ao decreto real, que passava para Portugal a posse do território do Uraguai, tendo o efeito
de subjugar os nativos, conduzidos à rebelião pelos seus padres, tirânicos e usurpadores. O poema inclui
episódio lírico amoroso – o suicídio de Lindoia, bem como dois outros episódios: um do governo do
conde de Oeiras e outro da ação maléfica da Companhia de Jesus em todo o mundo.
O Canto I engloba, além dos elementos típicos do exórdio (proposição, invocação e dedicatória), os
antecedentes e primeiros movimentos da ação, como a decisão da partida do comandante Andrade à
fronteira, marcação de data e lugar, entre outros.
O Canto II inicia-se com a localização dos índios rebelados por Andrade e a tentativa deste de
dissuadi-los da luta. É o canto mais propriamente bélico do poema, tanto pelas conversações dos
caciques Cepé e Cacambo com Andrade para tentar evitar a guerra quanto pela descrição da batalha,
que termina com a retirada dos índios derrotados e na qual morre o cacique Cepé.
O Canto III tem natureza prospecta e não está imediatamente preso à ação central. O eixo da ação é
deslocado para o espaço indígena, cabendo a Cepé a ideia e a Cacambo a execução da peripécia nuclear:
o incêndio do acampamento luso-espanhol. O incêndio dá ocasião ao assassinato de Cacambo pelo
padre Balda, quando o índio retorna à aldeia para informá-lo do seu feito.
A morte de Cacambo leva a feiticeira Tanajura a tentar consolar Lindoia com a antevisão do castigo
do assassino do marido desta. Essa visão é um episódio complementar desse canto, bem como é
complementar a narrativa dos feitos louvados do “grande conde”, que, pelo contexto, sabemos ser
Pombal, então conde de Oeiras.
O Canto IV mostra a guerra como pano de fundo e os invasores deleitando-se com a visão do
panorama do local, depois de transporem uma montanha guardada pelos índios e destes serem
afugentados. A narrativa desloca-se para o espaço indígena, falando do anúncio da chegada
das tropas ao povoado e a decisão do padre Balda de incendiá-lo antes de fugirem e de nele
deixarem aprisionada Tanajura. O canto conclui com a chegada de Andrade e suas tropas à aldeia
incendiada e com sua contemplação, entre admirada e horrorizada, da igreja devastada e das
pinturas de sua abóbada.
46
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
47
Unidade I
O contraste entre as forças dos dois grupos em luta mostra-se com maior precisão no combate entre
Cepé e o governador espanhol, constituindo talvez o auge da criação épica de O Uraguai. Sua estrutura
comporta primeiramente a apresentação do guerreiro índio, que estimula os seus com exemplo e
palavras:
Canto II
Depois, a estrutura mostra o combate entre eles, frustrado, porque a arma do indígena falha. O tema
da arma que falha é característico das epopeias:
Canto II
A seguir, vêm os golpes do espanhol, dando sequência à narrativa e à morte de Cepé. A passagem
da morte do guerreiro é belíssima, segundo leitura de Chaves (2000), e inclui reduplicação do motivo da
arma que falha, sugerindo o sentido de engano trágico do acontecimento, pois antes as flechas atiradas
por Cepé tinham ensanguentado os inimigos. A descrição do ferimento provocado pelo tiro que abate
Cepé reitera a ideia de poder bélico dos luso-espanhóis e da fragilidade do índio que o enfrenta de peito
nu:
Canto II
Esse ferimento não determina o encerramento do combate, que integra ainda três tentativas de
Cepé para soerguer-se. Nessa passagem, o autor repete o tema típico do ferido que cai e recupera o
motivo tradicional da triplicação das ações:
48
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Canto II
Um dos aspectos mais originais na criação épica de Basílio da Gama das peripécias do combate é o
da utilização pelos ameríndios da técnica da queimada para impedir o avanço do inimigo:
Canto III
conservação sempre
secas as torradissimas campinas,
Nem consentião, por fazer-nos guerra,
Que a chama bemfeitora, e a cinza fria
Fertilizasse o árido terreno (GAMA, 2009, p. 31-35).
O abandono da prática agrícola tradicional da queimada fertilizadora permite aos índios manter as
pastagens crestadas pelo calor, conseguindo, assim, cortar a alimentação dos animais utilizados pelo
exército luso-espanhol e, em consequência, dificultar sua marcha.
Assim, o poeta mineiro constrói um poema épico culto e patriótico, que exalta façanhas heroicas
e enquadra o choque de culturas e do império missioneiro dos jesuítas. Contudo, os motivos usados
para realçar os heróis e acentuar os temas da dor, do incêndio e da destruição fazem da obra, em certa
medida, uma epopeia dos vencidos.
Andrade é o único personagem da história central de O Uraguai que recebe o nome de herói. Ele é
apresentado como protagonista na proposição do poema:
Canto I
49
Unidade I
Canto I
Fazendo ou mandando fazer, Andrade é o agente principal da operação que comanda. É ele quem
inicia a ação:
• responde prontamente;
• ordena a batalha;
• atalha o incêndio;
• entra no povoado;
• surpreende os índios;
• sossega o tumulto;
51
Unidade I
No poema, não há caracterização física, idade nem genealogia de Andrade. A omissão de seus
traços físicos contribui para o desenho de um retrato exclusivamente psicológico que se contrapõe ao
dos heróis épicos do passado, cuja vitória devia-se em grande parte aos prodigiosos atributos físicos.
Andrade, então, distingue-se do guerreiro tradicional da poesia épica, sobretudo do herói épico de
Homero, como vemos a seguir:
Quadro 3
Com base no quadro comparativo anterior, o herói principal nas epopeias é auxiliado em sua empresa
por outros heróis. No caso de Andrade, é assessorado em seu esforço para apossar-se do território
do Uraguai por dois grupos de heróis, sendo eles os exércitos português e espanhol, cujas ações e
qualificações fundamentais, contudo, diferem-se, pois o autor Basílio da Gama destaca o exército
português, dando-lhe posição de superioridade frente ao exército espanhol.
Na obra, o exército português mostra-se mais atuante que o espanhol e, também, mais identificado
com o ser e o fazer de seu general, revelando igual perseverança no cumprimento da tarefa e igual
hesitação no recurso à violência.
52
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Canto I
Ligeira, e leve
Passou primeiro a guarda, que na guerra
He primeira a marchar, e que a seu cargo
Tem descubrir, e segurar o campo (GAMA, 2009, p. 60-63).
• Os dos engenheiros:
Canto I
Canto I
• Os da infantaria:
Canto I
• E dos da cavalaria:
Canto I
A função de tal sequência descritiva não é apenas dar colorido à cena pitoresca, mas também
mostrar a sobrevalorização das tropas portuguesas e, principalmente, dar forma à sua força prodigiosa.
Do lado espanhol, as ações traduzem a falta de persistência na ação contra os rebeldes, bem como
a violência empregada em sua execução. O governador espanhol, por exemplo, age de forma brutal ao
matar Cepé, no combate que travam durante a batalha. Com furor guerreiro semelhante ao dos antigos
heróis épicos, o comandante lança-se alegremente contra o guerreiro índio, passando, indiferente, por
cima dos mortos e feridos. Ataca-o depois de caído e dispara a curta distância sua pistola sobre o
adversário, que se apresenta despido e armado apenas com arco e flechas. A narrativa destaca o aspecto
desumano e covarde do reencontro:
Canto II
A diferença entre os exércitos destaca-se no fato de que, nos combates em que explicitamente estão
envolvidas individualidades portuguesas, nenhuma morte ocorre do lado indígena, como no episódio
sobre os índios que guardavam o acesso à montanha ou foram afugentados ou ficaram apenas feridos.
Tal ocorrência é um ganho para a tropa portuguesa, visto que Gama valoriza ações menos violentas e
atitudes de brandura.
Ressalta-se que os exércitos identificam-se com o protagonista; agora, precisamos ver seus
antagonistas.
Nas epopeias clássicas, o herói e seu grupo defrontam adversários cujas ações e qualificações não
diferem inteiramente das suas. Em epopeias bélicas, os protagonistas e antagonistas são guerreiros
dotados de grandes qualidades marciais. Em O Uraguai, esse tipo de antagonista é o indígena, cuja
heroicidade se revela na luta travada contra Andrade e seu exército. A oposição dos nativos é,
todavia, enfraquecida pelo fato de eles se apresentarem como simples instrumentos dos verdadeiros
antagonistas: os padres.
54
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Apesar de serem os verdadeiros oponentes, os padres não participam diretamente na ação militar,
ou seja, não entram em confronto direto e corporal com o herói, tornando-os o tipo mais vulgar de
antagonista. Eles também não apresentam as qualidades heroicas que seus pares normalmente revelam
em outras epopeias, caracterizando-se apenas por traços negativos, destituídos, portanto, de qualquer
traço elevado. Eles apresentam apenas facetas baixas e negativas, dando-lhes pelo narrador certo tom
satírico.
De forma geral, na obra, os padres não têm uma identidade individual, sendo referidos como os
Padres ou, mais geral e abstrato, Império, República. O papel mais destacado cabe ao padre Balda, cujas
ações e atributos metonimizam o ser e o fazer de todo o grupo.
Lembrete
A personagem coletiva (os padres, de forma geral) só intervém em três breves sequências narrativas:
a do ataque índio a um forte português, a da divulgação da morte de Cacambo e a da vitória final das
forças de Andrade.
A ação criminosa dos religiosos, desobedecendo aos reis e preparando os índios para a rebelião, está
realçada no discurso narrativo:
Canto IV
Assim, há uma crítica aberta ao comportamento dos padres, e a alocução de Andrade a Cacambo e
Cepé discrimina vários crimes dos jesuítas:
Canto II
Esse absoluto
Império ilimitado, que exercitam
Em vós os Padres, como vós, vassalos,
55
Unidade I
No caso do padre Balda, ele desfruta do mundo indígena e intervém na revolta nativa:
• imposição a Lindoia (depois de viúva) do casamento com Baldeta (talvez filho ilegítimo de Balda),
o que provoca o suicídio da jovem;
Tais ações configuram o padre Balda como ser despótico, impiedoso, destruidor, vingativo,
covarde e assassino. Esses traços sêmicos não formam uma personagem densa, complexa,
verdadeiramente humana, mas um tipo de vilão. O narrador antipatiza com sua personagem
e utiliza expressões depreciativas (duro, obstinado, indiferente, vingativo, em tanta cólera, vis
astúcias) e de cunho irônico (grande, bom, santo, compassivo, cauteloso, engenhoso, sutil). Em
resumo, o que distingue o padre Balda das personagens típicas épicas é o fato de ele ser destituído
de qualquer traço de grandeza.
Sobre os índios, a obra escapa do maniqueísmo das obras triviais, que caracterizam o protagonista com
todo o heroísmo e o antagonista com todos os aspectos negativos. Na obra, os índios são caracterizados
de forma heterogênea. Em um primeiro momento, o general português considera os índios rudes e sem
valor, mas constata, em seguida, a disciplina militar deles.
As qualidades guerreiras dos ameríndios são apontadas em situações belicosas, em que os índios ora
insultam e provocam os adversários, ora atacam audaciosamente suas posições:
56
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Canto I
Daí que seus traços essenciais são a bravura, a fragilidade, a inocência. Ingênuos e frágeis, deixam-
se tiranizar pelos padres, mas revelam bravura ao enfrentar o exército luso-espanhol. Por causa dessa
valentia, os índios se identificam com os heróis guerreiros da épica tradicional, mas se diferenciam por
não possuírem força poderosa.
As personagens indígenas que se destacam pelas virtudes guerreiras são Cepé e Cacambo. Em
comum, têm a missão, a posição social elevada e a indumentária:
Canto II
A Cacambo, cacique dos guaranis, cabe a primazia nas negociações, e ele assume uma atitude mais
cortês e conciliadora que a do chefe tape que o acompanha. Procura dissuadir o avanço português,
enquanto Cepé, mais agressivo, “sem mostras nem sinal de cortezia” (Canto II, 45), corta qualquer
hipótese de entendimento com Andrade e prenuncia a irreversibilidade da guerra. Ao tentar, por meio do
diálogo, uma solução pacífica, Cacambo aproxima-se dos heróis épicos tradicionais sábios e moderados,
como Eneias. Ao contrário, Cepé, que entende ser a violência guerreira a única solução, encarna a
valentia intempestiva dos heróis do tipo de Aquiles.
Tais traços aproximam os guerreiros dos heróis tradicionais, mas marcam diferença entre os dois
indígenas. Outra diferença entre ambos é a maneira como morrem.
A grande proeza militar de Cacambo é o incêndio que ateia no acampamento adversário, feito
considerado equivalente aos combates travados por heróis, uma vez que representa um ato solitário de
valentia e no qual o herói arrisca a própria vida. Cacambo, todavia, difere do herói no que diz respeito ao
resultado da proeza, pois tal ação tem interferência de Andrade, herói vitorioso do poema, que intervém
prontamente, abrindo caminho que impede o alastramento do fogo.
57
Unidade I
Cacambo difere-se do herói tradicional pelo tipo de morte que tem, pois ela não resulta de qualquer
ato do adversário; ao contrário, é produto da vontade do chefe religioso (padre Balda). Essa morte
inglória é explicitada pelo poeta, que lamenta o fato:
Canto III
Cepé é também caracterizado positivamente, sendo referido como grande Cepé, Cepé valente, Tape
altivo, um dos mais nobres, caro amigo. Ele não tem a sapiência ou prudência de Cacambo, mas a
intempestiva valentia, revelada plenamente tanto no combate singular que trava com o governador
espanhol quanto na aparição fantasma em que empurra Cacambo para uma incursão solitária no
acampamento inimigo. Ao ultrapassar seus próprios limites, como os outros heróis de sua têmpera,
tem como os demais um destino trágico. Cepé acaba por morrer cedo nas mãos de um adversário mais
poderoso.
Segundo Chaves (2000), Cepé é uma personagem de comprovada base histórica, advinda da pessoa
real José Tiaraju, corregedor da aldeia de São Francisco Xavier. A criatura fictícia tem o apelido e o
papel predominante da pessoa real; assim, seu reaparecimento sobrenatural revela a intuição do autor
sobre o que havia de grandioso na figura daquele guerreiro índio, que foi se tornando mítico para as
pessoas do Rio Grande do Sul. O cacique José Tiaraju transformou-se em São Sepé na tradição gaúcha,
e sua canonização pelo povo foi imediata, pois ainda no século XVIII já aparece registrado, em 1773, no
Compêndio noticioso de Francisco João Roscio.
Convido você, caro aluno, à leitura na íntegra dessa epopeia para conhecer outras personagens
indígenas e como elas são caracterizadas. De forma geral, o poema consegue apresentar, com concisão,
variedade e expressividade seus ameríndios.
Para a estudiosa, o poeta parece querer chamar a atenção do leitor para a vasta região do Uruguai,
que o Tratado de Madri tornava o limite meridional dos domínios portugueses no Novo Mundo e cuja
conquista sua obra estaria celebrando.
58
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
A obra é, ao mesmo tempo, herdeira da tradição ocidental e produto peculiar da bárbara terra
americana, indicando uma percepção antecipadora, em Basílio da Gama, da dupla formação da literatura
brasileira. Dividida, pois, entre os modelos da tradição épica e as novas tendências da literatura do
presente, a construção do espaço em O Uraguai denota o engenho do autor ao conseguir criar um
equilíbrio entre as formas convencionais e a representação poética do real. Pelo esquema a seguir,
podemos verificar que vários espaços estão representados no poema, ora por meio de sucintas notações
geográficas, ora por meio de pequenas descrições estilizadas.
59
Unidade I
O esquema ajuda a perceber que o espaço construído na obra é, sobretudo, o território americano,
configurado por meio de diversos aspectos da natureza – rios, ribeiros, lagos, fontes, montanhas,
outeiros, precipícios, vales, grutas, planícies, campos, bosques –, embora integre também elementos
arquitetônicos e paisagísticos produzidos pela ação humana – estrada, povoados, ruas, praças, casas,
igrejas, jardins, prisões. Na síntese de Chaves (2000, p. 185), o espaço físico é abrangente e “caracterizado
como um país imenso e pouco habitado, com vastíssimas campinas, altas montanhas e rios soberbos e
caudalosos”. Entre as designações poéticas, temos a descrição da América:
Canto V
Exemplo de Aplicação
I. A obra O Uraguai, de Basílio da Gama, é uma das mais respeitadas entre os leitores e críticos
literários, mas também uma das que causam mais polêmica se é ou não epopeia, se o herói é o general
português Andrade ou os índios, entre outros aspectos.
Procure em obras de críticas literárias brasileiras, por exemplo, de Massaud Moisés, Antonio Candido,
Alfredo Bosi, e verifique o que cada um diz sobre o poema épico de Basílio da Gama. Faça um quadro
sinóptico das ideias de cada crítico.
Quadro 5
Crítico 1:
Crítico 2:
Crítico 3:
II. Leia O Uraguai na íntegra. Pode ser de qualquer editora/edição. Inicie uma discussão reflexiva
e comparativa entre suas ideias sobre a obra (no geral) ou episódio (ou personagem) e a dos autores
selecionados no exercício 1. Compartilhe com seus colegas de curso, em fórum, blogs etc.
III. Vivemos em uma sociedade imagética, em que várias obras literárias são transformadas em
histórias em quadrinhos. Que tal você escolher um episódio da obra O Uraguai e recriá-lo em quadros
grandiosos, como um gibi? Você poderá, dependendo do resultado, procurar editoras brasileiras e fazer
uma proposta de publicação de seu trabalho inédito e visual da famosa obra épica brasileira.
No século XIX, nossos poetas viram na literatura uma maneira de valorização do país, aliando-se
ao empenho da época em consolidar o país como nação recém-independente, fornecendo a mitologia
61
Unidade I
pátria de que a jovem nação carecia para fortalecer o esforço centralizador do império e garantir a tão
desejada unidade nacional.
Daí a característica mais marcante assumida pelo movimento entre os poetas românticos: o
nacionalismo. Os poetas contribuíram para a adoção de uma mitologia nacional, uma literatura e uma
historiografia próprias, capazes de garantir condições mínimas para a inserção do Brasil nas nações
civilizadas.
A busca da identidade por um indivíduo ou por uma comunidade pode caracterizar duas funções
da literatura, como aponta o poeta e crítico Édouard Glissant (apud BERND, 2011, p. 19) ao estudar a
formação das literaturas nacionais:
Assim, uma literatura que se atribui o propósito de articular o projeto nacional, de fazer emergir
os mitos fundadores e de recuperar sua memória coletiva, passa a exercer a função sacralizante,
unificante.
62
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Conforme o crítico contemporâneo e notório Antonio Candido (2000), o poeta Gonçalves Dias e
o prosador José de Alencar, dois expoentes do Romantismo, criaram a literatura nacional. O próprio
Alencar, no prefácio do romance Sonhos d’ouro (1872), emprega a expressão literatura nacional:
A literatura nacional, que outra coisa não é senão a alma da pátria, que
transmigrou para este solo virgem como uma raça ilustre, aqui se impregnou
da seiva americana desta terra que lhe serviu de regaço, e cada dia se
enriquece ao contato de outros povos e ao influxo da civilização (apud
BERND, 2011, p. 51).
Nesse nível, o texto literário incorpora seu amor à pátria, com manifestações ufanistas, exalta o que
existe de melhor na terra (na nação), que é a natureza, e valoriza seu povo nativo, levando à invenção
da uma imagem inventada do índio – o indianismo.
O termo natureza abrange sua biodiversidade e seus ambientes, os biomas. São os elementos do
ciclo da vida do planeta e sua inter-relação com o humano. A natureza é considerada, aqui, em sua
diversidade: a água, em suas manifestações diversas, como oceanos, rios, lagos e nascentes; a terra em
sua forma de cordilheiras e montanhas, vales, esplanadas, campos, matas, florestas, vastidões desérticas,
regiões geladas; flora, composta pelas árvores, ervas rasteiras, arbustos; a fauna em sua variante básica,
com mamíferos, aves, répteis, peixes e insetos, além das vidas dos moluscos, aracnídeos, batráquios
e tanta outras. Não podemos deixar de fora o ar, o vento, a chuva, o fogo; os raios e relâmpagos,
tempestades, terremotos, maremotos, erupções vulcânicas, avalanches, enchentes; o equilíbrio entre o
sol e demais estrelas.
outro famoso poema: a Teogonia, de Hesíodo. Nesse texto, a gênese do mundo é narrada pelo prisma
dos deuses do Olimpo; cada divindade é correlacionada a determinado elemento natural. Outro livro é
a própria Bíblia, cujo primeiro livro, creditado a Moisés, detalha a criação do mundo. Assim, da mesma
forma, outras civilizações e mitologias, como a hindu, a chinesa, a indo-americana (maia, incaica,
asteca, zapoteca, tupi-guarani, navaja, moicana), a aborígine (australiana, neozelandesa e silvícolas
do oceano Pacífico) e a africana convergiram para a mesma narrativa a respeito do surgimento da
natureza sobre a face da Terra. As mesmas mitologias procuraram, também, explicar o surgimento de
medo que acompanha o homem em sua jornada sobre a terra; o medo que o faz inclinar-se diante da
majestade hierática da natureza e, ao mesmo tempo, adentrar a natureza em expedições e epopeias de
desbravamento.
Sobre a sacralidade da natureza, essa noção sempre se impôs na relação entre o homem e o desconhecido,
ocasionando, justamente, a criação dos mitos em todas as culturas e religiões. Cada elemento da natureza
sempre teve seu guardião imaginário ou ente representante perante os deuses. Essa noção atinge também
o elemento humano ligado a cada elemento natural, isto é, silvícolas e aborígines. Com base nisso,
Rousseau (apud CRUZ, 2011, p. 19) assina a famosa tese do bom selvagem: “o homem é bom, a sociedade
é que o corrompe”. Esse conceito chega a nós, hoje, cuja sociedade midiática incentiva detrimentos, como
santuários ecológicos, paraíso dos turistas, aquamarinos e ambientalistas de todos os matizes.
No século XIX, nas produções poéticas do Romantismo, a natureza afigura-se patriótica, ou seja, na
ânsia de firmar a identidade do país, à parte de Portugal, os poetas encaram a natureza brasileira de
forma sublime. Vejamos o início do poema Tempestade, do poeta Gonçalves Dias:
Tempestade
Um raio
Fulgura
No espaço
Esparso,
De luz;
E trêmulo
E puro
Se aviva,
S’esquiva
Rutila,
Seduz!
Vem a aurora
Pressurosa,
Cor de rosa,
Que se cora
De carmim;
A seus raios
As estrelas,
64
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
O sol desponta
Lá no horizonte,
Doirando a fonte,
E o prado e o monte
E o céu e o mar;
E um manto belo
De vivas cores
Adorna as flores,
Que entre verdores
Se vê brilhar (DIAS, 1998, p. 112).
A beleza desse poema encontra-se tanto na seleção lexical e sua combinação para a exaltação
da natureza quanto no ritmo virtuoso, em que o poeta alinha todos os metros portugueses usados
até o Romantismo, do bissílabo, cuja lepidez abre o poema de forma fulminante, até a sinfonia dos
endecassílabos, que orquestram o clímax da procela por meio de um rico jogo de timbres:
Observação
A sensibilidade romântica dá uma nova marca à natureza: o sentimento de mistério. Para o poeta
romântico, a natureza é, sobretudo, uma fonte de mistério, inacessível, contra a qual a limitação
do homem vem bater inutilmente. O poeta, então, procura-a nos aspectos mais desordenados que,
negando a ordem aparente, permitem uma visão mais profunda. Procura mostrá-la como algo convulso:
tempestade, furacão, raio, treva, crime, desnaturalidade, desarmonia, contraste. Nas palavras de Antonio
Candido (2000, p. 29, v. 2), o poeta “adora-a e renega-a, sucessivamente, sem desprender-se do seu
fascínio nem pacificar-se ao seu contato”. Ainda para Candido,
Essa natureza convulsa, violenta e relacionada à vida e à morte, é encontrada no poema de Álvares
de Azevedo, transcritas aqui as duas primeiras partes:
II
Na ordem da natureza, fazem parte também as queimadas que arrasam florestas inteiras, como
vemos no poema a seguir:
A queimada
A natureza, na obra de Castro Alves, sugere quase sempre imensidade e infinitude, de acordo com
Bosi (1991, p. 136), “pois transpõe para seus poemas os espaços, os astros, o oceano, o sertão (vasto), o
universo (vasto), os tufões, as procelas, os alcantis, os Andes, a águia, o condor e assim por diante”. No
poema A queimada, temos um espaço com imensas dimensões, que é a floresta, com destaque para sua
variada e rica fauna (jiboia, corça, tigre...), sendo o próprio incêndio comparado a ela. O incêndio é:
• o cavalo (ou outro animal de porte grande) que galopa: “o estampido estupendo das queimadas /
galopando no ar”;
• a jiboia, pela sua extensão longilínea: “a chama lavra qual jiboia... / vibrando a cauda enorme”;
• o leão, pela cor: “o incêndio – leão ruivo, ensanguentado / a juba, a crina atira desgrenhado”.
O incêndio, tomado aqui como elemento natural, monta o palco para “um drama augusto”, ou seja,
de proporção grandiosa e “hecatomba”.
Exemplo de Aplicação
1. Tomando por referência as discussões sobre a relação do poeta com a natureza, redija um
comentário a respeito do poema a seguir, de Álvares de Azevedo:
68
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Meditação
Marquês de Maricá
II. Você conhece algum poema brasileiro, contemporâneo de nossa sociedade, que fala da natureza?
Transcreva-o (se for muito longo, apenas um trecho) e faça um comentário sobre o texto: há reminiscências
românticas nele? Há influência do mundo capitalista que incentiva o turismo ou uma atividade radical?
A forma mais reputada da literatura nacional foi o indianismo, cujo período áureo corresponde às
décadas de 1840 e 1860, tendo como expoentes Gonçalves Dias (na poesia) e José de Alencar (na prosa).
Não podemos esquecer que o tema já encontrava antecedentes na épica árcade das obras de Basílio da
Gama e de Santa Rita Durão. Além disso, a imagem do índio passava a ser cada vez mais empregada como
alegoria nacional, inclusive nas festas do Brasil de Dom João, intensificando-se com a Independência,
quando se tornou frequente a prática de adotar nomes e atribuir títulos indígenas. O período, enfim,
estimulou os poetas do Romantismo a fazer a reavaliação de nossa tradição e contribuição ao tema,
levando a reinterpretar um Basílio e um Durão segundo as aspirações românticas (BOSI, 1991; CANDIDO,
2000; BUENO, 2007).
Obviamente, a imagem heroica que emerge de um poema de Gonçalves Dias, por exemplo, não
corresponde à realidade e à cultura indígena. Para que o índio fosse elevado à condição de mito
nacional, era necessário submetê-lo a uma espécie de deformação idealizada, depurando tudo aquilo
que pudesse contrariar o estatuto de herói e os valores morais e cristãos da civilização ocidental. Para
esse herói e essa tradição nacionais, efetivamente inventados, foram tomados de empréstimos atributos
do cavaleiro medieval e da ética cortês, de modo a fazer o índio (antepassado brasileiro) semelhante
qualitativamente ao conquistador europeu-português.
As principais características herdadas do cavaleiro medieval (logo, europeu) pelo índio criado pelos
poetas românticos podem ser resumidas assim, de acordo com Mello e Souza (1979, p. 78):
71
Unidade I
A primeira imagem, compreendendo o período de 1835 a 1850, é a do índio como vítima das
consequências militares e sociais da Conquista, tal como ele aparece na poesia de Gonçalves Dias. Sua
motivação histórica é encontrada no período de conflito aberto e instabilidade que se seguiu à abdicação de
Pedro I, levando, assim, os sucessivos governos regenciais a se confrontar com violentas revoltas provinciais,
tais como Abrilada e Cabanada em Pernambuco (1832), Cabanagem no Pará (1835), Balaiada no Maranhão
(1838-45), Sabinada na Bahia (1837-38), Guerra dos Farrapos no Rio Grande do Sul (1835-45) e Revolução
Praieira no Recife (1848), que pleiteavam a descentralização do poder e as reformas liberais.
Esse sentimento de classe e antilusitanismo que animaram a massa de revoltosos dessas insurreições
provinciais (composta por membros das camadas médias e pobres da sociedade, incluindo pequenos
proprietários rurais, negros, mestiços, índios tapuios) parece ter contagiado o indianismo do poeta
Gonçalves Dias (ele também mestiço, filho ilegítimo de português com uma cafuza), que vivenciou
de perto, em sua Caxias natal, o processo todo da Balaiada, dedicando, inclusive, mais de um poema
ao levante e à repressão, descritos nos mesmos termos apocalípticos com que tratou o trauma da
Conquista em seus poemas indianistas.
A segunda imagem, compreendendo o período de 1850 a 1870, é a do índio como aliado do branco
conquistador, muitas vezes à custa do sacrifício de sua própria vida ou mesmo de toda sua tribo. Sua
motivação histórica residiria na política de Conciliação do Segundo Reinado, buscando acomodar os
novos interesses liberais aos velhos interesses do poder escravocrata e latifundiário (herança de nosso
passado colonial). Essa imagem do aliado comparece em forma de mito sacrificial na Confederação dos
Tamoios, de Gonçalves de Magalhães.
A terceira e última imagem é a do índio como rebelde, compreendendo o período de 1870 a 1888, tendo
como exemplos obras por longo tempo marginalizadas pela historiografia oficial, como O índio Afonso e o
72
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
poema obsceno O elixir do pajé, ambos de Bernardo Guimarães; o Guesa errante, de Sousândrade; e Os escravos
vermelhos, de Melo Morais Filhos. Para o crítico inglês Treece (2008), as motivações para essa terceira mudança
na figuração do índio do século XIX podem ser encontradas no Realismo, cujas propostas estéticas e polêmicas
começam a aportar aqui, combatendo a infidelidade histórica e a idealização do índio promovidas pelo
Romantismo, no republicanismo, que, ao se voltar contra a monarquia, acaba por rejeitar toda a mitologia a ela
associada, e no abolicionismo, que, com sua principal reivindicação libertária, acabava também por reconhecer
a decisiva contribuição africana para a fisionomia nacional que a imagem literária oficial tratava de ocultar em
face da condição servil do negro.
Na obra poética de Gonçalves Dias, o leitor depara-se com a dimensão trágica da colonização, que
vitimou toda uma raça, evidenciada já na própria lógica da sequência com que foram dispostos os
primeiros poemas americanos no livro de estreia Primeiros cantos, de 1846:
O canto do guerreiro
Aqui na floresta
Dos ventos batida,
Façanhas de bravos
Não geram escravos,
Que estimem a vida
Sem guerra e lidar.
– Ouvi-me, Guerreiros.
– Ouvi meu cantar.
II
Valente na guerra
Quem há, como eu sou?
Quem vibra o tacape
Com mais valentia?
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
– Guerreiros, ouvi-me;
– Quem há, como eu sou?
III
Onde eu a mandar?
– Guerreiros, ouvi-me,
– Ouvi meu cantar.
IV
Na caça ou na lide,
Quem há que me afronte?!
A onça raivosa
Meus passos conhece,
O imigo estremece,
E a ave medrosa
Se esconde no céu.
– Quem há mais valente,
– Mais destro do que eu?
VI
Se as matas estrujo
Co os sons do Boré,
Mil arcos se encurvam,
Mil setas lá voam,
Mil gritos reboam,
Mil homens de pé
Eis surgem, respondem
Aos sons do Boré!
– Quem é mais valente,
– Mais forte quem é?
VII
O vento gemendo
E as malas tremendo
E o triste carpido
Duma ave a cantar,
São eles – guerreiros,
Que faço avançar.
VIII
E o Piaga se ruge
No seu Maracá,
A morte lá paira
Nos ares frechados,
Os campos juncados
De mortos são já:
Mil homens viveram,
Mil homens são lá.
IX
E então se de novo
Eu toco o Boré;
Qual fonte que salta
De rocha empinada,
Que vai marulhosa,
Fremente e queixosa,
Que a raiva apagada
De todo não é,
Tal eles se escoam
Aos sons do Boré.
– Guerreiros, dizei-me,
– Tão forte quem é?
Fonte: Dias (1997, p. 28-31).
Neste, como em outros poemas de Gonçalves Dias, evidencia-se a aproximação entre poesia e
música, que, segundo Candido (2000), é característica do Romantismo. No caso específico do Canto do
guerreiro, essa aproximação se justifica pela isorritmia das redondilhas menores – com acento invariável
na 2ª. e na 5ª. sílabas – extremamente adequada à ideia de movimento e ao assunto guerreiro.
Posto na abertura dos primeiros poemas americanos, o canto anterior ressalta as virtudes e destrezas
bélicas do índio, estando de acordo com o que já demonstravam muitos dos primeiros cronistas, não
sem uma boa dose de preconceitos eurocêntricos, como vemos em Gândavo e outros. Gonçalves Dias
baseia-se neles, mas sem julgamento negativo.
75
Unidade I
O poema traz à cena um guerreiro que se dirige diretamente a seus iguais de maneira que parece,
à primeira vista, um tanto exibicionista ou mesmo arrogante, devido ao modo como enumera suas
qualidades e competência guerreira. Fala, insistentemente, da sua valentia na guerra e de sua destreza
no manejo do tacape (II); da precisão e da força para empunhar a lança ou a flecha e alcançar o alvo
a longas distâncias (III); da competência não só para lutar, mas também para cantar com energia seus
feitos de guerra (IV); da obediência e temor que impõe não só aos homens, mas também aos animais
(V); do espírito de liderança exercido sobre seus homens, que obedecem de pronto ao som que ele extrai
do boré para iniciar a batalha, da qual participam com ânimo inflado, lamentando quando têm de
abandonar o campo.
O modo como o guerreiro enfatiza suas qualidades visa justificar a posição de chefia e liderança que
ele ocupa em sua tribo. E também incitar o espírito guerreiro daqueles que interpela diretamente, ao
final de quase toda estrofe, ao modo de refrão.
Justamente porque sua nação indígena conta com um líder dessa envergadura é que ela gera “bravos”
e não “escravos, / que estimem a vida / sem guerra e lidar”. Cantar façanhas de bravos é estimular
a repetição dessas façanhas. É manter o espírito belicoso, diante das possíveis ameaças, que vêm se
confirmar no poema indianista.
Como ponto de curiosidade visual, as cenas da batalha descritas no Canto guerreiro por Gonçalves
Dias comparecem em termos nas sequências de pranchas de Jean-Baptiste (1768-1848):
Figura 3
De acordo com informações obtidas por Debret, o chefe indígena, segundo os costumes de sua
cultura, dá sinal de combate ao som da trombeta, e continua a tocar esse instrumento até o momento
em que deseja ordenar o término das hostilidades. O silêncio do chefe torna-se, assim, necessariamente
o sinal da retirada, em virtude da qual todos seus partidários voltam a reunir-se em torno de seu general,
trazendo do campo de batalha os feridos e os mortos. A prancha à esquerda mostra os efeitos do sinal
76
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
de combate: os companheiros armados descem pelas ravinas que conduzem a um rio já atravessado a
nado por alguns soldados do chefe Tacupecuxiari, o qual é representado com sua vestimenta completa
e soprando sua trombeta militar. Sua mulher mantém-se perto dele com as armas prontas para um caso
de necessidade.
O assunto da outra prancha é o sinal de retirada, dado por um chefe da mesma nação, de pé numa
colina, a caminho de suas florestas. Sua mulher, que não o abandonou, carrega as armas e a criança;
inúmeros companheiros trepam pelos rochedos carregando nos ombros mortos e feridos; um dos
guerreiros, que já atingiu um ponto mais elevado, transporta armas colhidas no campo de batalha. O
dardo que o chefe segura é uma arma usada nessa região do Brasil.
Durante os combates, o chefe coloca-se sempre em lugar elevado, que domine o campo de batalha,
e, não se prestando o terreno, sobe em uma árvore para ver e dirigir a ação.
Exemplo de Aplicação
Considerando o que vimos com David Treece (2008), a respeito das diferentes imagens do índio
como vítima, rebelde ou aliado, analise o seguinte poema de Gonçalves Dias, destacando e comentando
as passagens mais representativas de seus versos:
Deprecação
78
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Caro aluno, quase todos nós, brasileiros, conhecemos, pelo menos, estes versos:
São versos que integram a letra do Hino Nacional e eles foram retirados da Canção do exílio, de
Gonçalves Dias. O texto, muito mais que qualquer comentário, fala por si mesmo:
Canção do exílio
O poema foi criado em Coimbra, em 1843, quando o poeta passou um período em Portugal. Assim,
as “aves que aqui gorjeiam” referem-se ao lugar em que o poeta se encontra, distante de sua terra, que
“tem palmeiras” e “onde canta o Sabiá”.
79
Unidade I
Na Canção do exílio, o poeta enumera as qualidades da sua terra, que está distante, “lá”, ou seja,
do território brasileiro: o céu mais estrelado, o canto das aves (que é mais bonito que o da Europa), os
primores e amores. É o ufanismo tradicional brasileiro.
Esse poema abre o livro Primeiros cantos, de 1847, tornando-se a peça mais famosa de toda a poesia
brasileira, símbolo pátrio comparável à bandeira ou ao Hino Nacional (BUENO, 2007). Como diz Cyntrão
(2004, p. 91):
O poema Canção do exílio de Gonçalves Dias deve ser valorizado como exemplo por ter tido ele o
mérito de, como este poeta, ser o primeiro dos nossos autores a criar uma obra válida esteticamente em
sua totalidade, fundamentada na nacionalidade.
Gonçalves Dias nasceu em 1823, um ano após a Independência do Brasil, em meio ao grande
entusiasmo produzido por esse marco histórico. É, portanto, natural que o sentimento nacional, de
amor à terra, esteja presente em sua obra.
O poema, símbolo de nacionalismo, tornou-se matriz de outras canções de poetas das mais diferentes
épocas e estilos. Na contemporaneidade de Gonçalves Dias, foram publicados dois poemas: Canção do
exílio I e Canção do exílio II, de Casimiro de Abreu.
Canção do exílio
Não exalas
Não exalas, meu Brasil!
Explicitamente, o poeta declara: “Não amo a terra do exílio, / sou bom filho, / Quero a pátria, o meu
país”.
81
Unidade I
Esse anseio nacionalista levou poetas românticos a criar poemas ufanistas, como verdadeiras
declarações de amor ao país, a exortar a natureza, a qual sempre causou fascínio nos europeus, mas
agora como elemento da nação a ser valorizada, e a valorizar o ameríndio como símbolo nacional.
Para encerrar esta parte do livro-texto, recorremos a Antonio Candido (1995, p. 305):
Exemplo de Aplicação
I. Canção do exílio, de Gonçalves Dias, tornou-se matriz para tantas outras (re)criações de poetas
brasileiros do século XX. Entre elas, podemos destacar Nova canção do exílio, de Carlos Drummond de
Andrade, Canção do exílio, de Murilo Mendes, Canto de regresso à pátria, de Oswald de Andrade. Procure
estes e outros poemas que fazem intertexto com a Canção de Gonçalves Dias. Identifique-os (título e
autor). Discuta se cada texto mantém ou refuta a ideia original.
Quadro 6
Autor Título
II. Seja você um poeta ufanista: escreva um texto poético (no formato que desejar) sobre seu país. O
que você valorizaria dele: a natureza, o convívio entre as pessoas, os centros de compras, a facilidade de
locomoção, o agito da cidade, as oportunidades para as mulheres?
82
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Com o evento histórico Independência do Brasil, três importantes fatos sobre a literatura no país
precisam ser destacados:
1. sentimento patriótico: os poetas passaram a tematizar sobre o país ao valorizar sua natureza e
idealizar seu povo nativo (não descendente dos europeus);
2. conscientização sobre a literatura nacional: discussão sobre o que é literatura nacional, quais
autores são brasileiros, há literatura distinta e autônoma, entre outras questões, levando a estudos
sistematizados sobre a história da literatura no Brasil;
Os estudos históricos sobre a literatura e a escolarização da literatura repercutem todo o século XIX
e XX, influenciando e tornando tradição as críticas literárias, os manuais didáticos literários e o ensino
da literatura brasileira.
Temos estudiosos – notáveis e respeitados (precisamos destacar para não haver dúvidas) –, como
Alfredo Bosi (1991) e Bueno (2007), que ajudaram a firmar a tradição da abordagem da literatura pela
sua história: desde 1500 até a atualidade, dividindo suas obras segundo o aparecimento de cada estilo
na linha do tempo. Os autores de manuais didáticos, por sua vez, baseiam-se nos livros, compêndios,
dos críticos literários historiográficos e apresentam a literatura segundo seus estilos em linha temporal,
com apresentação breve da biografia do poeta, trecho e características da obra inerentes ao movimento
estético a que pertence o poeta.
Essa abordagem historiográfica é também adotada pela nossa Instituição de ensino e reflete neste
livro-texto.
Segundo Souza (2007), a literatura é necessária para que uma nação se declare como tal: nação. É
concretizada em livros e como disciplina inscrita no currículo da escola.
No Brasil, a literatura nacional é institucionalizada a partir do início do século XIX e, por meio
de análise dos programas, o Colégio Pedro II serve como modelo para um sistema educacional a ser
implantado no país.
Esse colégio foi fundado em 1837, sendo uma instituição de Ensino Médio destinada à formação de
bacharéis em um período de sete anos. Devido ao fato de não existir curso superior de Letras, o qual só
passou a existir em 1934, o Pedro II preenchia essa lacuna.
83
Unidade I
Em 1862, foi criado o primeiro compêndio, Curso elementar de literatura nacional, pelo professor do
colégio, o cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro. Em 1877, além desse livro, livros estrangeiros
também foram adotados pelo governo da época.
Durante o século XIX, o processo histórico que conduziu à legitimação da literatura nacional foi
lento. Essa legitimação ocorreu por meio de uma de suas vias privilegiadas, a do sistema de ensino, que
não só a institucionalizou, como também canonizou certas obras literárias.
Inicialmente, observamos que o estudo literário no Brasil implicou um contraponto entre a visada
universalista da literatura (chamada literatura, literatura geral ou história literária) e a perspectiva
nacional. Observamos também o status privilegiado jamais subtraído à literatura portuguesa; situação
essa que se prolongou século XX afora. Ainda hoje, nossos currículos universitários em geral equiparam
literatura brasileira e literatura portuguesa, concedendo a ambas a condição de disciplinas obrigatórias
nos cursos de Letras, privilégio não estendido às outras literaturas nacionais de língua portuguesa. Por
fim, verificamos como a ideia do nacional, no século XIX, foi conquistando posição, principalmente com
a inserção, em 1860, no programa escolar, da nova disciplina chamada Literatura Nacional.
A existência da literatura brasileira como matéria de ensino é uma construção histórica, encetada
após a Independência e concluída nas imediações da Proclamação da República. A formação da história
da literatura brasileira como disciplina processou-se num período situado entre 1805 e 1888. A primeira
data corresponde à publicação de uma obra alemã, de Friedrich Bouterwek, em que a presença do Brasil,
então colônia, se restringe à menção de dois escritores nascidos no país, Antônio José da Silva e Cláudio
Manuel da Costa.
No que diz respeito aos autores brasileiros que passaram a tratar da literatura nacional, temos o
seguinte resultado, segundo Souza (2007):
• Edições de textos constituídas de biografia sobre os autores literários, juízos críticos e notas
explicativas.
• Periodizações e sínteses historiográficas sobre a história da literatura (do panorama das épocas
sucessivas).
84
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Entre as antologias, a mais antiga é o Parnaso brasileiro (1829-1832), de Januário da Cunha Barbosa.
Entre os ensaios com princípios sobre a ideia de literatura brasileira, figuram verdadeiros manifestos
românticos, empenhados tanto em avaliar o passado literário do país quanto em projetar um futuro
em que a submissão à Europa fosse superada. Nesse tipo de texto, consta o Ensaio sobre a história da
literatura do Brasil (1836), de Domingos José Gonçalves de Magalhães. Na modalidade de galerias,
destaca-se, por exemplo, Plutarco brasileiro (1847), de João Manuel Pereira da Silva. Entre as edições
de textos, constam trabalhos de pessoas responsáveis por diversas edições de poetas de seu século e do
século anterior. Por fim, entre as narrativas do processo literário, constam as histórias da literatura com
propósito didático, tal como a obra Curso elementar de literatura nacional (1862), de Joaquim Caetano
Fernandes Pinheiro.
À procura dos ensaios fundadores de nossa historiografia literária, Souza (2007) descobriu um
estudo no tomo três da revista O Guanabara (1855), estudo pioneiro não só sobre a história da literatura
brasileira, como também por tratar exclusivamente da nossa literatura, sem considerá-la uma espécie
de apêndice da literatura de Portugal.
Em verdade, a literatura portuguesa nunca foi considerada propriamente estrangeira em nosso país,
conforme compreensão que se firmou já no século XIX.
Na passagem do século XIX para o XX, os referenciais brasileiros no campo dos estudos literários
foram: Tristão de Alencar Araripe Júnior, Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero e José Veríssimo
Dias de Matos, os famosos Araripe, Romero e Veríssimo, cujas contribuições foram decisivas no processo
de consolidação da disciplina.
A obra História da literatura brasileira, de Sílvio Romero, publicada em 1888, constitui a consolidação
da disciplina homônima, que, deste então, se instalou plenamente no sistema de ensino do país, sob
aquele nome ou, mais usualmente, sob a forma abreviada Literatura Brasileira.
O século XX deu sequência à tradição, surgindo obras que falavam da história da literatura. Por
exemplo:
Até a década de 1940, o modelo oitocentista permaneceu, em geral, como referência teórica para as
histórias literárias, com exceção de Werneck. Na década de 1950, surgiram dois livros com revisão das
bases conceituais vigentes até então. Trata-se das obras A literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho, e
Formação da literatura brasileira, de 1959, de Antonio Candido.
85
Unidade I
Os anos 1960 foram marcantes pelo lançamento dos seis volumes da série A literatura brasileira, da
editora Cultrix:
A década de 1970 assiste, entre seus lançamentos, que não assinalam novidades metodológicas
em relação aos volumes mencionados, a obra de Alfredo Bosi, intitulada História concisa da literatura
brasileira, que aliás não é tão concisa assim, considerando a extensão do volume. Esse livro é sucesso
acadêmico evidenciado no prodigioso número de reedições, sendo a quadragésima de 2002.
A partir de 1983, inicia-se a publicação da História da literatura brasileira, de Massaud Moisés, com
volumes distintos intitulados, respectivamente, Origens, Barroco e Arcadismo, Romantismo, Realismo,
Simbolismo, Modernismo. Na década de 1990, há vários livros publicados na vertente tradicional da
história, como o volume O cânone colonial (1997), de Flávio R. Kothe.
Por fim, como exemplo de obra historiográfica da primeira década dos anos 2000, temos Uma história
da poesia brasileira (2007), de Alexei Bueno, indicada entre os livros da bibliografia deste livro-texto.
A história da literatura fornece um mapa do tempo (SOUZA, 2007) e, no caso do Brasil, tornou-se
tradicional estudar os domínios da nossa literatura, distinguindo o estilo (ou escola), autores e principais
características (ou traços). Podemos, então, enquadrar da seguinte forma, explicando que o quadro
Centro significa cidade, região em que a tendência artística se apresentou primeiro ou mais fortemente,
ou a região que patrocinou a briga pela implantação do estilo.
Quadro 7
86
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Alguns estudiosos da literatura brasileira designam o momento literário a partir de 1980 como Pós-
Modernidade, Contemporâneo, Geração 00. Schøllhmmer (2009), por exemplo, ao fazer um mapeamento
das últimas gerações, indica a década de 1980 como marco de mudança de processo literário, cuja
condição principal residiria no desenvolvimento de uma economia de mercado que integrou as editoras
e profissionalizou a prática do escritor nacional. Uma das características é a combinação de qualidades
de best-sellers com as narrativas épicas clássicas. Outro traço é o texto metarreflexivo, ou seja, a
literatura trata sobre a literatura. Todavia, a principal particularidade é a dimensão híbrida, resultado
da interação entre a literatura e outros meios de comunicação, como fotografia, cinema, publicidade,
vídeo e a produção da mídia em geral. As gerações posteriores (na verdade, nossas gerações, uma vez
que trata do fim do século XX e início do XXI) intensificaram o hibridismo literário, fazendo cruzamentos
com outras linguagens.
87
Unidade I
Desse modo, a literatura brasileira é transformada em matéria escolar entre nós pelo menos desde 1858.
No ensino universitário, consagrou-se também como disciplina obrigatória a partir de 1962. Neste início
de século XXI, continua reconhecida essa disciplina no programa escolar tanto no Ensino Básico quanto na
universidade (curso de Letras), quase 200 anos depois. Como defende Souza (2007, p. 152),
Exemplo de Aplicação
I. A seguir, constam dois ensaios historiográficos sobre a literatura brasileira. O primeiro é o notório
texto Notícia da atual literatura brasileira – instinto de nacionalidade, de Machado de Assis, publicado
em 1873. O segundo é A geração de 45 na poesia brasileira (uma apreciação histórica), de 1988. Como
cada texto contribui com a historiografia literária?
Ensaio I
Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço,
certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento
buscam vestir-se com as cores do país, e não há como negar que semelhante preocupação
é sintoma de vitalidade e abono de futuro. As tradições de Gonçalves Dias, Porto Alegre e
Magalhães são assim continuadas pela geração já feita e pela que ainda agora madruga,
como aqueles continuaram as de José Basílio da Gama e Santa Rita Durão. Escusado é dizer
a vantagem deste universal acordo. Interrogando a vida brasileira e a natureza americana,
prosadores e poetas acharão ali farto manancial de inspiração e irão dando fisionomia
própria ao pensamento nacional.
Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se
fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração
nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.
Sente-se aquele instinto até nas manifestações da opinião, aliás malformada ainda,
restrita em extremo, pouco solícita, e ainda menos apaixonada nestas questões de poesia e
literatura. Há nela um instinto que leva a aplaudir principalmente as obras que trazem os
toques nacionais. A juventude literária, sobretudo, faz deste ponto uma questão de legítimo
88
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
amor-próprio. Nem toda ela terá meditado os poemas de Uruguai e Caramuru com aquela
atenção que tais obras estão pedindo; mas os nomes de Basílio da Gama e Durão são citados
e amados, como precursores da poesia brasileira.
A razão é que eles buscaram em roda de si os elementos de uma poesia nova, e deram
os primeiros traços de nossa fisionomia literária, enquanto outros, Gonzaga por exemplo,
respirando aliás os ares da pátria, não souberam desligar-se das faixas da Arcádia nem dos
preceitos do tempo. Admira-se-lhes o talento, mas não se lhes perdoa o cajado e a pastora,
e nisto há mais erro que acerto.
Dado que as condições deste escrito o permitissem, não tomaria eu sobre mim a defesa
do mau gosto dos poetas arcádicos nem o fatal estrago que essa escola produziu nas
literaturas portuguesa e brasileira. Não me parece, todavia, justa a censura aos nossos poetas
coloniais, iscados daquele mal; nem igualmente justa a de não haverem trabalhado para a
independência literária, quando a independência política jazia ainda no ventre do futuro,
e mais que tudo a metrópole e a colônia criara a história a homogeneidade das tradições,
dos costumes e da educação. As mesmas obras de Basílio da Gama e Durão quiseram antes
ostentar certa cor local do que tornar independente a literatura brasileira, literatura que não
existe ainda, que mal poderá ir alvorecendo agora.
A aparição de Gonçalves Dias chamou a atenção das musas brasileiras para a história
e os costumes indianos. Os Timbiras, I-Juca Pirama, Tabira e outros poemas do egrégio
poeta acenderam as imaginações; a vida das tribos, vencidas há muito pela civilização, foi
estudada nas memórias que nos deixaram os cronistas, e interrogadas dos poetas, tirando-
lhes todos alguma coisa, qual um idílio, qual um canto épico.
Houve depois uma espécie de reação. Entrou a prevalecer a opinião de que não estava
toda a poesia nos costumes semibárbaros anteriores à nossa civilização, o que era verdade,
– e não tardou o conceito de que nada tinha a poesia com a existência da raça extinta, tão
diferente da raça triunfante, – o que parece um erro.
É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele
recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos
da nossa personalidade literária. Mas se isto é verdade, não é menos certo que tudo é
matéria de poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os elementos de que ele
se compõe. Os que, como o Sr. Varnhagen, negam tudo aos primeiros povos deste país,
esses podem logicamente excluí-los da poesia contemporânea. Parece-me, entretanto, que,
89
Unidade I
depois das memórias que a este respeito escreveram os Srs. Magalhães e Gonçalves Dias,
não é lícito arredar o elemento indiano da nossa aplicação intelectual. Erro seria constituí-lo
um exclusivo patrimônio da literatura brasileira; erro igual fora certamente a sua absoluta
exclusão. As tribos indígenas, cujos usos e costumes João Francisco Lisboa cotejava com o
livro de Tácito e os achava tão semelhantes aos dos antigos germanos, desapareceram, é
certo, da região que por tanto tempo fora sua; mas a raça dominadora que as frequentou
colheu informações preciosas e no-las transmitiu como verdadeiros elementos poéticos.
A piedade, a minguarem outros argumentos de maior valia, devera ao menos inclinar a
imaginação dos poetas para os povos que primeiro beberam os ares destas regiões,
consorciando na literatura os que a fatalidade da história divorciou.
Esta é hoje a opinião triunfante. Ou já nos costumes puramente indianos, tais quais os
vemos n’Os Timbiras, de Gonçalves Dias, ou já na luta do elemento bárbaro com o civilizado,
tem a imaginação literária do nosso tempo ido buscar alguns quadros de singular efeito
dos quais citarei, por exemplo, a lracema, do Sr. J. Alencar, uma das primeiras obras desse
fecundo e brilhante escritor.
Compreendendo que não está na vida indiana todo o patrimônio da literatura brasileira,
mas apenas um legado, tão brasileiro como universal, não se limitam os nossos escritores a
essa só fonte de inspiração. Os costumes civilizados, ou já do tempo colonial, ou já do tempo
de hoje, igualmente oferecem à imaginação boa e larga matéria de estudo. Não menos
que eles, os convida a natureza americana, cuja magnificência e esplendor naturalmente
desafiam a poetas e prosadores. O romance, sobretudo, apoderou-se de todos esses
elementos de invenção, a que devemos, entre outros, os livros dos Srs. Bernardo Guimarães,
que brilhante e ingenuamente nos pinta os costumes da região em que nasceu, J. de
Alencar, Macedo, Sílvio Dinarte (Escragnolle Taunay), Franklin Távora e alguns mais. Devo
acrescentar que neste ponto manifesta-se às vezes uma opinião, que tenho por errônea: é
a que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local, doutrina que, a
ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa literatura. Gonçalves Dias, por exemplo, com
poesias próprias, seria admitido no panteão nacional; se excetuarmos Os Timbiras, os outros
poemas americanos e certo número de composições, pertencem os seus versos pelo assunto
a toda a mais humanidade, cujas aspirações, entusiasmo, fraquezas e dores geralmente
cantam; e excluo daí as belas Sextilhas de Frei Antão, que essas pertencem unicamente à
literatura portuguesa, não só pelo assunto que o poeta extraiu dos historiadores lusitanos,
mas até pelo estilo que ele habilmente fez antiquado.
O mesmo acontece com os seus dramas, nenhum dos quais tem por teatro o Brasil. Iria
longe se tivesse de citar outros exemplos de casa, e não acabaria se fosse necessário recorrer
aos estranhos. Mas, pois que isto vai ser impresso em terra americana e inglesa, perguntarei
simplesmente se o autor do Song of Hiawatha não é o mesmo autor da Golden Legend, que
nada tem com a terra que o viu nascer, e cujo cantor admirável é; e perguntarei mais se o
Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa
nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio
universal, um poeta essencialmente inglês. Não há dúvida que uma literatura, sobretudo
90
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a
sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam.
O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne
homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no
espaço. Um notável crítico da França, analisando há tempos um escritor escocês, Masson,
com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretão sem falar sempre
de tojo, assim Masson era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e explicava o dito
acrescentando que havia nele um scotticismo interior, diverso e melhor do que se fora
apenas superficial. Estes e outros pontos cumpria à crítica estabelecê-los, se tivéssemos
uma crítica doutrinária, ampla, elevada, correspondente ao que ela é em outros países.
Não a temos. Há e tem havido escritos que tal nome merecem, mas raros, a espaços, sem a
influência quotidiana e profunda que deveram exercer.
A falta de uma crítica assim é um dos maiores males de que padece a nossa literatura; é
mister que a análise corrija ou anime a invenção, que os pontos de doutrina e de história se
investiguem, que as belezas se estudem, que os senões se apontem, que o gosto se apure e
eduque, e se desenvolva e caminhe aos altos destinos que a esperam.
[...]
A Poesia
A ação de crítica seria sobretudo eficaz em relação à poesia. Dos poetas que apareceram
no decênio de 1850 a 1860, uns levou-os a morte ainda na flor dos anos, como Álvares
de Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu, cujos nomes excitam na nossa mocidade
legítimo e sincero entusiasmo, e bem assim outros de não menor porte. Os que sobreviveram
calaram as liras; e se uns voltaram as suas atenções para outro gênero literário, como
Bernardo Guimarães, outros vivem dos louros colhidos, se é que não preparam obras de
maior tomo, como se diz de Varela, poeta que já pertence ao decênio de 1860 a 1870. Neste
último prazo outras vocações apareceram e numerosas, e basta citar um Crespo, um Serra,
um Trajano, um Gentil-Homem de Almeida Braga, um Castro Alves, um Luís Guimarães, um
Rosendo Moniz, um Carlos Ferreira, um Lúcio de Mendonça, e tantos mais, para mostrar que
a poesia contemporânea pode dar muita coisa; se algum destes, como Castro Alves, pertence
à eternidade, seus versos podem servir e servem de incentivo às vocações nascentes.
Não faltam à nossa atual poesia fogo nem estro. Os versos publicados são geralmente
ardentes e trazem o cunho da inspiração. Não insisto na cor local; como acima disse,
todas as formas a revelam com mais ou menos brilhante resultado, bastando-me citar
91
Unidade I
neste caso as outras duas recentes obras, as Miniaturas de Gonçalves Crespo e os Quadros
de J. Serra, versos estremados dos defeitos que vou assinalar. Acrescentarei que também
não falta à poesia atual o sentimento da harmonia exterior. Que precisa ela então? Em
que peca a geração presente? Falta-lhe um pouco mais de correção e gosto, peca na
intrepidez às vezes da expressão, na impropriedade das imagens na obscuridade do
pensamento. A imaginação, que há deveras, não raro desvaira e se perde, chegando à
obscuridade, à hipérbole, quando apenas buscava a novidade e a grandeza. Isto na alta
poesia lírica, – na ode, diria eu, se ainda subsistisse a antiga poética; na poesia íntima e
elegíaca encontram-se os mesmos defeitos, e mais um amaneirado no dizer e no sentir, o
que tudo mostra na poesia contemporânea grave doença, que é força combater.
Bem sei que as cenas majestosas da natureza americana exigem do poeta imagens e
expressões adequadas. O condor que rompe dos Andes, o pampeiro que varre os campos do
Sul, os grandes rios, a mata virgem com todas as suas magnificências de vegetação, – não
há dúvida que são painéis que desafiam o estro, mas, por isso mesmo que são grandes,
devem ser trazidos com oportunidade e expressos com simplicidade.
Ambas essas condições faltam à poesia contemporânea, e não é que escasseiem modelos,
que aí estão, para só citar três nomes, os versos de Bernardo Guimarães, Varela e Álvares de
Azevedo. Um único exemplo bastará para mostrar que a oportunidade e a simplicidade são
cabais para reproduzir uma grande imagem ou exprimir uma grande ideia. N’Os Timbiras,
há uma passagem em que o velho Ogib ouve censurarem-lhe o filho, porque se afasta dos
outros guerreiros e vive só. A fala do ancião começa com estes primorosos versos:
Nada mais oportuno nem mais singelo do que isto. A escola a que aludo não
exprimiria a ideia com tão simples meios, e faria mal, porque o sublime é simples. Fora
para desejar que ela versasse e meditasse longamente estes e outros modelos que a
literatura brasileira lhe oferece. Certo, não lhe falta, como disse, imaginação; mas esta
tem suas regras, o estro leis, e se há casos em que eles rompem as leis e as regras, é
porque as fazem novas, é porque se chamam Shakespeare, Dante, Goethe, Camões.
Indiquei os traços gerais. Há alguns defeitos peculiares a alguns livros, como por exemplo,
a antítese, creio que por imitação de Vítor Hugo. Nem por isso acho menos condenável o
abuso de uma figura que, se nas mãos do grande poeta produz grandes efeitos, não pode
constituir objeto de imitação, nem sobretudo elementos de escola.
92
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Há também uma parte da poesia que, justamente preocupada com a cor local, cai muitas
vezes numa funesta ilusão. Um poeta não é nacional só porque insere nos seus versos muitos
nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de vocabulário e nada
mais. Aprecia-se a cor local, mas é preciso que a imaginação lhe dê os seus toques, e que
estes sejam naturais, não de acarreto. Os defeitos que resumidamente aponto não os tenho
por incorrigíveis; a crítica os emendaria; na falta dela, o tempo se incumbirá de trazer às
vocações as melhores leis. Com as boas qualidades que cada um pode reconhecer na recente
escola de que falo, basta a ação do tempo, e se entretanto aparecesse uma grande vocação
poética, que se fizesse reformadora, é fora de dúvida que os bons elementos entrariam em
melhor caminho, e à poesia nacional restariam as tradições do período romântico. [...]
Ensaio II
[...]
No seu livro de poemas de 1977, Arte de Armar (atente-se para o título, muito expressivo),
Gilberto Mendonça Teles insere um poema que tem por título “45” e dedicado a Domingos de
Carvalho da Silva, em que diz: “Sou da geração / de quarenta e cinco / ou tenho na mão / a porta
sem trinco? / (Nem sei quantas são / as telhas de zinco / que cobrem meu chão de quarenta e
cinco). / Semeei meu grão? / fui ao fim do afinco? / pesquei a paixão / de quarenta e cinco? / Tudo
é sim e não / em quarenta e cinco. / E a melhor lição / forma sempre um vinco / de interrogação /
no tempo, onde brinco / procurando um vão / entre o 4 e o 5.”
G.M.T, aliás, que é arguto ensaísta, ao prefaciar a Antologia Poética de Afonso Felix de
Sousa (1979), expandiu estas considerações de grande pertinência: “Acontece que, a nosso
ver e levando-se em consideração a produção poética que conscientemente se inscreveu
sob o rótulo de “Geração de 45”, não há como desprezar hoje o legado estilístico dessa
fase, sobretudo agora, em que alguns poetas da geração estão lançando os seus poemas
reunidos. Ela representa uma linha natural das transformações estéticas do modernismo.”
De sua parte, o poeta Fernando Py, no livro Vozes do Corpo (1981), inclui um poema
igualmente intitulado Quarenta e Cinco e dedicado a G.M.T., o qual contém estas estrofes:
“Esta é a geração / que me antecedeu / ou nela me insiro malgrado meu? / [...] Tanto rejeitei /
essa geração / e afinal agora / estendo a mão? / Aos quarenta e cinco / cedo chegarei / e vejo:
de novo / nada criei. [...] Essa geração: / escarmento meu: / se me impõe agora / desde a antiga
aurora / com sua lição / sua danação / de um outro eu.”
93
Unidade I
Ledo Ivo, num artigo de mais de 20 anos (1965), recordava, com muita propriedade, que o
timbre da Geração de 45 é “a procura e a conquista de uma nova liberdade, através da disciplina,
do rigor e da concentração”. E, além disso, “um continuado empenho de pesquisa da criação e
linguagem poéticas e de uma larga preocupação pela formação e informação cultural”.
Isto posto, podemos concluir que esses princípios e esses postulados dos poetas de 45
são, em última análise, os da própria grande poesia universal. E essa é a Poesia que conta e
que, afinal, permanece.
Fonte: Rodrigues (1988, p. 22-23).
São cinco séculos de poesia, com muitas realizações e entusiasmo no espírito de nossos escritores.
Assim, torna-se uma questão melindrosa a escolha de poetas e obras destes para um compêndio de um
crítico literário ou para um livro-texto como este nosso. Contudo, os historiadores da nossa literatura
dividiram-na em estilos e já canonizaram muitos poetas.
O objetivo deste capítulo, que se delimita à poesia, por razões óbvias, é mostrar como esses
historiadores mapearam a literatura brasileira. A prosa será tratada em outro livro-texto.
• Literatura Informativa
• Barroco
• Arcadismo
Literatura Informativa – relaciona-se obviamente com a chegada dos portugueses ao Brasil, visto
como Mundo Novo. Nele, além da sua certidão de nascimento na Carta de Caminha a D. Manuel, teve
o nosso país sua verdadeira porta de entrada na poesia universal, pois é pela mão de Camões que a
encontramos, na oitava 140 do último canto de Os lusíadas (BUENO, 2007, p. 15):
94
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Quatro anos depois da publicação da epopeia, em 1576, reencontramos nos versos do poeta de outro
Magalhães, Pero de Magalhães Gandavo, na elegia que abre a História da Província de Santa Cruz que
vulgarmente chamamos Brasil (edição de 1980, p. 23):
Enquanto toda essa produção acontecia na metrópole, na Terra Santa Cruz começava, de fato,
a escrever-se poesia, por obra dos jesuítas. Do padre José de Anchieta (1534-1597), os arquivos da
Companhia de Jesus, em Roma, guardam o caderno manuscrito das poesias, escritas em latim e em
português, mas, sobretudo, em tupi e em espanhol, assim como na Biblioteca Pública e no Arquivo
Distrital de Évora está guardado o único exemplar do primeiro poema brasileiro – que é também, segundo
Bueno (2007), a primeira epopeia do Novo Mundo – De Gestis Mendi de Saa, impresso em Coimbra, em
1563. Com muito lirismo, há poesias religiosas singelas, como essas redondilhas a Santa Inês:
A santa Inês
Cordeirinha linda,
Como folga o povo,
Porque vossa vinda
Lhe dá lume novo.
Cordeirinha santa,
De Jesus querida,
Vossa santa vida
O Diabo espanta.
Por isso vos canta
Com prazer o povo,
Porque vossa vinda
Lhe dá lume novo.
Nossa culpa escura
Fugirá depressa,
Pois vossa cabeça
Vem com luz tão pura.
95
Unidade I
Vossa formosura
Honra é do povo,
Porque vossa vinda
Lhe dá lume novo.
Virginal cabeça,
Pela fé cortada,
Com vossa chegada
Já ninguém pereça;
Vinde mui depressa
Ajudar o povo,
Pois com vossa vinda
Lhe dais lume novo.
Vós sois cordeirinha
De Jesus Fermoso;
Mas o vosso Esposo
já vos fez Rainha.
Também padeirinha
Sois do vosso Povo,
pois com vossa vinda,
Lhe dais trigo novo.
Não é de Alentejo
Este vosso trigo,
Mas Jesus amigo
É vosso desejo.
Morro, porque vejo
Que este nosso povo
Não anda faminto
Deste trigo novo.
Santa Padeirinha,
Morta com cutelo,
Sem nenhum farejo
É vossa farinha
Ela é mezinha
Com que sara o povo
Que com vossa vinda
Terá trigo novo.
O pão, que amassasses
Destro em vosso peito,
96
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
É o amor perfeito
Com que Deus amastes.
Deste vos fartasses,
Deste dais ao povo,
Por que deixe o velho
Pelo trigo novo.
Não se vende em praça,
Este pão da vida,
Porque é comida
Que se dá de graça.
Oh preciosa massa!
Oh que pão tão novo
Que com vossa vinda
Quer Deus dar ao povo!
Oh que doce bolo
Que se chama graça!
Quem sem ela passa
É mui grande tolo,
Homem sem miolo
Qualquer deste povo
Que não é faminto
Deste pão tão novo
Fonte: Anchieta (1989, p. 39).
O poema anuncia a nova terra, o nascimento de uma nação, mas leva a refletir também sobre a
morte e a efemeridade da vida nessa nova terra ainda na infância e, ao mesmo tempo, incute aos índios
o tão ibérico terror do inferno.
Além de Anchieta, outro poeta indicado pelos historiadores é Bento Teixeira (1560-1600), radicado
no Brasil, cuja obra Prosopopeia exalta o governador de Pernambuco Jorge de Albuquerque Coelho
com muitas citações mitológicas, em que o leitor pode encontrar uma descrição do porto do Recife e a
etimologia da terra:
Essa obra compõe o primeiro poema brasileiro escrito em português. Foi impressa em 1601, ano
exato dos últimos traços renascentistas, para dar lugar ao Barroco e a outras vertentes, momento em
que apareceu o primeiro poeta realmente grande do Brasil.
Barroco – trata-se de um modo de fazer arte ligado às ideias católicas da Contrarreforma. Nascido
na Itália, floresceu nos países em que a religião de Roma triunfava, tendo pouca presença em países em
que as religiões protestantes venceram, como no mundo anglo-saxão. Itália, Espanha e Portugal serão
os grandes espaços barrocos; nas igrejas desses países, realizava-se uma espécie de festival do estilo –
a arquitetura, a pintura, a escultura, as artes decorativas, a música e a arte literária, todas produzidas
segundo a mesma tensão.
A arte barroca trabalha sobre uma tensão, dicotomia, quase uma dilaceração. De um lado, as
determinações católicas contrarreformistas – a obrigação de tratar dos temas bíblicos e da vida de
santos; a perspectiva teocêntrica, que considera Deus como o centro do mundo, o eixo da vida. De
outro, as solicitações do mundo humano – os temas da vida real, como as conquistas, as maravilhas
inventadas pelos homens, tudo configurando uma forte ideia de liberdade na produção da arte, segundo
a perspectiva antropocêntrica, que considera o homem como medida de todas as coisas. Daí aparecerem,
na arte barroca, tensões entre o divino e o humano, o tema religioso e o tema mundano, o sublime e o
profano, o alto e o baixo etc.
Gregório de Matos Guerra (1633-1695) é considerado o primeiro grande poeta do Brasil e o maior
do período barroco. Fato inegável é sua fama entre seus contemporâneos, tendo em vista a eficácia
arrasadora de suas obras satíricas. A série de sátiras é contra a pureza de sangue da nova nobreza e dos
novos ricos da Colônia, bem como da mesquinhez da vida na capital.
A posição ideológica de Matos é a do homem letrado, de boa origem e de puro sangue reinol,
honesto ou, ao menos, posto à margem da corrupção generalizada, pretérito pelos mestiços e arrivistas
da Colônia. Na crítica à sociedade baiana, ao contrário da figura indígena, que é pretexto para satirizar
as figuras baianas, como já vimos no primeiro capítulo, o negro, o mulato são fontes de crítica. Como
homem seiscentista, o poeta recorre, sem pudor, a todas as pretensas inferioridades, sejam raciais,
culturais, sociais, físicas, sexuais, de seus desafetos.
Há outros poetas barrocos, como Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711), o primeiro brasileiro a ter
obra publicada ainda em vida. Sem ter sido grande poeta, revela indiscutível nativismo ao fazer uma
curiosa listagem de alimentos vegetais em seu poema mais famoso (BUENO, 2007, p. 32):
À medida que o século XVIII avançava para o final, preparavam-se os pastores e as pastoras da
Arcádia, que encontrariam nas Minas Gerais seu território.
Arcadismo – tem origem em Arcádia, região montanhosa da antiga Grécia, onde alguns montes alcançam
2.400 metros. A região, segundo a mitologia, teria sido o lugar do próprio Zeus, pai de Arcás, ou Arcádio,
ancestral lendário da região e de seus habitantes, os quais se dedicavam ao pastoreio, numa vida simples,
próxima da natureza, afastada da polis grega, a cidade-matriz de toda a civilização urbana ocidental.
Trata-se de uma moda literária nascida na Itália, exportada para Portugal e finalmente para a colônia
brasileira. Os poetas desse tempo tiveram na Arcádia o símbolo de sua concepção poética e nome de sua
organização, porque os poetas árcades, embora fossem habitantes das cidades, nas poesias fantasiavam-
se de personagens-pastores, vivendo em campos bucólicos, onde corriam riachos magníficos e pastavam
animais mansos; a fantasia se complementava com a figura de uma personagem pastora, no lugar da
mulher amada. As expressões latinas usadas eram carpe diem (aproveite o dia), fugere urbem (fugir da
cidade) e locus amoenus (local aprazível).
O primeiro dos líricos do período foi Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), cuja linguagem fugiu do
estilo artificial do outros árcades. Assim, para um soneto como “Transforma-se o amador na coisa amada
/ Por virtude do muito a imaginar”, de Camões, encontramos a resposta setecentista:
O soneto de Cláudio Manuel da Costa apresenta forma sintética e invariável correção, fugindo dos
maneirismos da poesia camoniana.
No entanto, quem domina esse período é Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810). Nascido no Porto,
mudou-se para o Brasil quando era criança e estabeleceu-se em Vila Rica. Nessa cidade, conheceu a
adolescente Maria Doroteia Joaquina de Seixas, 20 anos mais nova do que o poeta, que a transformou
na lendária Marília, em sua produção poética Marília de Dirceu, transformando-se ele próprio no não
menos lendário Dirceu:
Lira I
Nessa obra, já podemos ver o distanciamento do Arcadismo decadente, ou seja, o poeta foge do
estilo forçado da época, usando pouca mitologia, levando para a característica locus amenus (paisagem
bucólica, tranquila e, para nossa concepção, improvável) outro olhar. Junto com o fator histórico, faz da
obra um dos momentos centrais da poesia brasileira.
A grande obra satírica de Gonzaga é Cartas chilenas, poema inacabado, composto de treze cartas,
em decassílabos. O texto ridiculariza violentamente os desmandos do governador Luís da Cunha
Meneses, travestido em Fanfarrão Minésio, do mesmo modo que o Brasil se traveste em Chile, Vila Rica
em Santiago e Coimbra em Salamanca. É um exemplo típico de sátira do final do século atacando o
atraso do regime colonialista.
Outros árcades famosos são: Silva Alvarenga, Basílio da Gama, Frei José de Santa Rita Durão.
No século XIX, no Brasil pós-1822, havia todo um país para ser pensado. A literatura marcou-se,
então, pela busca da identidade da nação e, nos fins do século, expandiu suas preocupações a situações
e classes sociais até então fora da literatura.
• Romantismo;
• Parnasianismo;
• Simbolismo.
Na primeira obra desse estilo, Suspiros poéticos e saudades, o autor, Gonçalves de Magalhães, procurou
substituir a mitologia pagã, vigente então no Arcadismo, pela cristã; a presença do nacionalismo; forte
subjetividade, como vemos a seguir:
102
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
O poema demonstra amor à pátria, marcando o nacionalismo como tema do texto por meio, por
exemplo, de expressões “palmeira”, “bosques”, “bramido fúnebre”, “turbilhoes de ideias”, “pátrio ninho”,
“peregrino vate”. Tais expressões representam a natureza e a pátria, sendo a pátria o ser mais belo; frente
à pátria e de sua beleza, até o sol perde seu brilho em terras estrangeiras. A tônica do texto é a visão
subjetiva do poeta.
Casemiro de Abreu (1839-1860) nasceu em Barra de São João, no Rio de Janeiro. Em 1859, publicou
As primaveras e faleceu, vítima da tuberculose. Ele é autor de versos simples e intensa musicalidade.
Procura no cotidiano sua temática, recheando seus textos de sentimentalidade própria do estilo
romântico. Entre sua vasta produção, temos:
Minh’alma é triste
III
Minh’alma é triste como a flor que morre
Pendida à beira do riacho ingrato;
Nem beijos dá-lhe a viração que corre,
Nem doce canto o sabiá do mato!
103
Unidade I
Nessa segunda parte do poema, a tristeza da alma é comparada com a flor que morre. Ambas
murcham; a flor porque não recebe carícias da brisa, a alma porque está solitária, sem amor. Os versos
“Oh! quantas vezes a prendi nos braços! / Que o diga e fale o laranjal florido!” falam de um amor
fracassado e, no poema de forma geral, a natureza (flor, riacho, sabiá, brisa, laranjal) relaciona-se com o
sofrimento do poeta. O texto resulta na desilusão, nos três últimos versos.
Terceira geração romântica: marcada pela poesia social, devido ao desejo de transformação da
sociedade, leva o poeta a se ver como um missionário. O poeta dessa fase é Castro Alves (1847-1871), cujas
obras foram publicadas postumamente, exceto Espumas flutuantes, de 1870. Sua obra é vasta, abrangendo
desde poemas de cunho social e líricos amorosos, com erotismo presente. Falou com vigor dos africanos
vindos ao Brasil para servirem de escravos, demonstrando indignação. Sua poesia serviu de luta contra a
escravidão, pois seu tom de elevação era propício para récitas em praças, salões de leitura etc.
O navio negreiro
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar do açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar... (ALVES, 2000, p. 94).
O poema (longo) é eloquente e evidencia a vida miserável dos escravos. O exagero na pintura dos
horrendos quadros marca o caráter hiperbólico do texto, dando mais força às ideias e soando como um
grito de rebeldia contra a situação desumana vivida pelos africanos.
A visão é a dos infernos. O navio negreiro era, na realidade, um fantasma a navegar pelo oceano,
espalhando gritos lancinantes dos aprisionados levados para terras estranhas.
Parnasianismo – esse nome deriva de uma antologia, Parnasse Contemporain, publicada a partir
de 1866, na França. Seus poemas revelam gosto pela descrição nítida, por metrificação tradicional,
preocupação formal e um ideal de impessoalidade. No Brasil, depois da poesia de Luís Guimarães Júnior
e Teófilo Dias, essa escola literária firmou-se definitivamente com Raimundo Correia (Sinfonias, 1883),
Alberto de Oliveira (Meridionais, 1884) e Olavo Bilac (Relicário, 1888).
Antônio Mariano Alberto de Oliveira (1857-1937), aos poucos, em suas publicações poéticas,
adaptou-se aos cânones do movimento parnasiano, consagrando-se em nossa literatura. Entre seus
poemas, ele apresenta dois vasos:
105
Unidade I
Vaso grego
Nesse soneto, encontramos elementos marcantes do Parnasianismo, como o uso da ordem inversa,
que se torna exagerado, a perfeição formal, a impassibilidade, a visão de uma Grécia perfeitamente
imaginária. Em suma, é uma poesia ornamental, de excelente artesanato.
De sintaxe mais simples, contudo de estética igual, era o outro vaso, que, como o primeiro, causou
furor por todo o país:
Vaso chinês
Na leitura de Bueno (2007), é um perfeito exemplo da pintura em versos, uma pequena natureza
morta, em tudo semelhante às que, com pincéis, realizam os bons pintores acadêmicos do mesmo
período.
Simbolismo – para os críticos literários, em sua maioria, é impossível referir-se ao Simbolismo sem
reverenciar seus dois grandes expoentes: Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens.
João da Cruz e Sousa (1861-1898), chamado de Cisne negro ou Dante negro, é a figura mais
importante do Simbolismo brasileiro. Teve apenas um livro publicado em vida, Broquéis, que apresenta
uma evolução importante: à medida que abandona o subjetivismo e a angústia iniciais, avança para
posições mais universais — sua produção inicial fala da dor e do sofrimento do homem negro (colocações
pessoais, pois era filho de ex-escravos), mas evolui para o sofrimento e a angústia do ser humano.
Antífona
O poeta baiano Pedro Kilkerry (1885-1917) seria, talvez, desconhecido totalmente se outro poeta,
Augusto de Campos, não tivesse, em suas pesquisas, se deparado com seus poemas. Na mesma Salvador
onde vivia morreu quase anônimo, vitimado pela tuberculose. Kilkerry nada deixou publicado em livro,
restaram somente as contribuições em revistas de cunho simbolista. A produção do artista ganhou
evidência em 1970, quando Augusto de Campos organizou uma seleção de poemas, publicando-os sob
o título Revisão de Kilkerry.
Observe no poema a seguir a musicalidade, a provocação aos sentidos realizada pela troca
metonímica.
108
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Ad veneris lacrimas
Assim, no século XX, temos o Modernismo. Esse estilo começou com a Semana de Arte Moderna,
realizada durante os dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Cada
dia da Semana foi dedicado a um tema: pintura e escultura, poesia e literatura e, por fim, música.
O projeto modernista visava atualizar culturalmente o país, colocando-o no mesmo nível dos
países que haviam atingido a independência tanto no plano político quanto no cenário das artes
plásticas, da música e da literatura. O Modernismo foi subdividido em três fases.
Primeira fase, de 1922 a 1930: foi, evidentemente, de grande efervescência, pois ainda
enfrentava, muito próximo e frontalmente, o paradoxismo de uma metrópole provinciana, os
estilos e os críticos favoráveis à estética e às ideias contra as quais os modernistas se insurgiam.
O período foi permeado por movimentos como o desvairismo, o Prefácio Interessantíssimo, criado
por Mário de Andrade ao publicar Paulicéia Desvairada (1922), discurso contra o Parnasianismo e
o Simbolismo e a favorável busca por novos caminhos para a expressão estética, mais condizente
com os novos tempos. Nessa fase, surge também o movimento Pau-Brasil (1924), propondo
uma literatura autenticamente nacionalista, e o Verdeamarelo (1925), movimento conservador,
109
Unidade I
contravento aos ventos do modernismo, pois não acolhia uma ruptura radical com o passado,
numa demonstração de conservadorismo.
Saiba mais
Segunda fase, de 1930 a 1945: foi envolvida fortemente pelo clima político da ditadura Vargas
e pela crise gerada pela quebra da Bolsa de Nova York em 1929 (em termos de ambiente político
semelhante, o país conheceria mais tarde a Ditadura Militar, iniciada em 1964, e o mundo, no aspecto
econômico, a crise envolvendo o setor bancário dos EUA, em 2008, que se alastrou pelo mundo). Foi
a época de uma literatura politizada, crítica da situação político-social vigente. Ao lado da literatura
moderna urbana da segunda geração, a primeira fase regionalista se iniciava.
Terceira fase, de 1945 a 1956: coincidiu com dois eventos políticos. No cenário mundial, o fim
da Segunda Guerra Mundial; no nacional, o fim da ditadura Vargas. No plano literário, a poesia volta a
buscar as formas estéticas, retomando-se o conceito de arte pela arte; porém, nem tanto arte pela arte,
já que operava com temas sociais, como é o caso de João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar. Além
110
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
disso, no período de 1956 a 1970, podemos observar a influência direta dos poetas Décio Pignatari e
dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, os quais, em contato com Oswald de Andrade, participam do
Clube da Poesia e publicam seus primeiros livros de poesia pelo clube.
Assim, em 1956, foi lançado oficialmente o movimento da poesia concreta, na busca por novas
formas e desintegração total do verso tradicional; foi um movimento visto, entretanto, como produto
de uma juventude desorientada, ao estilo do rock’n roll. No entanto, foi tomando consistência, sofrendo
adesões de diversos artistas e se tornou conhecido até no exterior. Suas formas não eram apenas escritas,
mas também visuais.
• Essa perspectiva histórica da literatura foi e continua sendo sistematizada pelos estudiosos
(críticos) da literatura brasileira.
• A perspectiva histórica foi adotada na escola no século XIX e vigora até hoje nos manuais didáticos
e no cotidiano da escola e da universidade.
• A apresentação da história da literatura, ora nos manuais didáticos, ora neste livro-texto, é apenas
um panorama. No caso do livro-texto, a apresentação é extremamente superficial, pois serve
apenas para ilustrar o resultado da historiografia e da escolarização da literatura brasileira.
Para uma pesquisa ou atuação em sala de aula, como professor de literatura, você precisa consultar
e estudar os livros historiográficos, como os de Antonio Candido (2000), Alfredo Bosi (1991) e outros
notáveis que temos em nossa esfera acadêmica.
Exemplo de Aplicação
I. Na apresentação de autores literários, informações sobre sua vida e obra são tradicionais no estudo
da literatura. Com base nessa tradição, mas, ao mesmo tempo, rompendo-a, apresenta-se, a seguir, o
signo de alguns poetas brasileiros, cujo nome você precisa descobrir e preencher o espaço sublinhado.
Boa diversão!
111
Unidade I
112
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
Resumo
Exercícios
Questão 1. Considere os versos a seguir, extraídos do poema Navio negreiro, de Castro Alves e, em
seguida, leia as afirmativas:
II – Por seu caráter realista e sua linguagem essencialmente denotativa, o poema não faz parte do
Romantismo brasileiro.
III – Os versos brancos do poema são característicos do movimento literário a que pertence.
114
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA
A) I.
B) II.
C) III.
D) I e II.
E) I e III.
I) Afirmativa correta.
Justificativa: o poema faz parte da terceira fase do Romantismo e a linguagem não é essencialmente
denotativa.
(Gregório de Matos)
Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.
(Gonçalves Dias)
I– O poema de Gregório de Mattos faz parte do Romantismo brasileiro, uma vez que se refere à
natureza.
II – O poema de Gregório de Mattos faz uso da metáfora e da antítese, figuras comuns no Barroco,
e aborda a efemeridade da vida.
III – O poema de Gonçalves Dias, da primeira fase do Romantismo brasileiro, enaltece a figura do
índio.
A) I.
B) II.
C) III.
D) I e III.
E) II e III.
116