da felicidade cumpre um duplo e inte- ressante movimento. Num primeiro eixo, rea- liza uma ação acadêmica diferente. Reunindo quatorze textos de autores de diversas áreas do conhecimento, a coletânea registra edito- rialmente uma série de discussões levantadas durante um Seminário Internacional – de Ser feliz hoje: mesmo nome do livro – realizado no Rio de reflexões sobre o Janeiro em agosto deste ano. No entanto, mais imperativo da que isso, coloca a Comunicação Social como felicidade lugar de origem para a reflexão de um tema João Freire Filho que perpassa vários campos do saber e que (Org.) já habita, há muito, narrativas cotidianas das Rio de Janeiro: mais variadas: a felicidade. Nesse sentido, vale FGV, 2010. 296 p. dizer, não se trata de um livro comunicacio- nal, mas de uma obra que, na contramão do da arena midiática” (p. 22). Ou seja, “não se que comumente faz “nossa ciência” – leia-se ir trata de buscar reconstituir o que o referente até os outros campos do conhecimento –, traz felicidade poderia ser em sua forma ou esta- os outros campos até nós. do fundamental” (p. 22). O que se pretende, Fomentado por um projeto de pesqui- diz o professor, é “examinar os impactos na sa em desenvolvimento pelo organizador configuração da subjetividade e da sociedade (professor do PPG em Comunicação Social gerados por investimentos maciços em ver- da UFRJ), Ser feliz hoje tem o propósito de sões específicas da vida feliz, em detrimento pensar sobre o imperativo da felicidade que se de outros itinerários propostos no passado espraia na sociedade contemporânea. Com ou aventados, sem grande ressonância, na isso, não advoga para o nosso campo o per- atualidade” (p. 22). Com esse intuito, um tencimento da reflexão sobre o assunto, mas foco de “desconfiança” parece atuar como fio aponta para o quanto, atualmente, as pesqui- invisível, costurando os textos e trabalhando sas em nossa área encontram-se em diálogo a favor de uma rica tessitura de fontes biblio- e situam-se entre aquelas que olham de ma- gráficas e empíricas. neira complexa para os fenômenos sociais. Uma visada pelas referências comuns Assim, num segundo eixo, mais geral, a trazidas pelos autores indica: uma “sinto- obra propõe um atravessamento disciplinar nia filosófica”, com o resgate, por exemplo, e orienta-se, como aponta Freire Filho na In- do pensamento crítico de Kant, da dialéti- trodução, sob duas perspectivas. “A proposta ca de Adorno e Horkheimer e das reflexões do livro não é promover um esforço concen- de Foucault sobre a sexualidade, o poder e trado para desvelar, enfim, a verdadeira feli- o conhecimento, além de contribuições que cidade, presumivelmente ofuscada por pres- passam por Descartes, Heidegger, Nietzsche, crições e relatos oriundos do campo psi ou Wittgenstein e outros nomes de peso; um 156
compartilhamento com os fundamentos da a fragmentada e “suspeitável” presença da ci-
psicanálise, com grande menção aos escritos ência e do poder na formalização da gestão de Freud; um “olhar social”, com referência da felicidade no mundo contemporâneo. a sociólogos e antropólogos, como Geertz, Complementando tal viés, Joel Birman, Simmel, Schütz e Weber; além de outras con- Paulo Vaz, Luiz Fernando Dias Duarte e Gil- tribuições mais contemporâneas, que per- berto Velho abordam a variação paradigmá- passam estes campos e que, principalmen- tica, temporal e cultural existente nos mode- te, refletem sobre a sociedade e suas “atuais los subjetivos e sociais de felicidade. Bianca condições” (Bauman, Giddens, Harvey, Las- Freire-Medeiros e Luiz Eduardo Soares con- ch, Lyotard, Sennett); bem como alusões ao textualizam um olhar sobre a felicidade a par- contexto literário e seu “fôlego” – já antigo tir de duas experiências específicas, respecti- – no tratamento do tema da existência e da vamente: a visão do turista estrangeiro sobre felicidade humanas (Clarice Lispector, Fer- as favelas do Rio de Janeiro e a “proposta” de nando Pessoa, Fiódor Dostoievski, Machado felicidade, na década de 1970, do grupo teatral de Assis, Mário de Andrade, Victor Hugo). carioca “Asdrúbal Trouxe o Trombone”. Na trama reflexiva que se forma do cru- Tais grupos de artigos estão compostos por zamento desses saberes, questões concretas escritos de professores da Comunicação Social, aparecem problematizadas e se oferecem da Psiquiatria e Psicanálise, das Ciências So- como objetos de análise que entrelaçam os ciais e Humanas. Em todos eles, encontram-se conceitos e teorias trabalhados. ótimos e diferentes tipos de “estado da arte” so- Os meios de comunicação e sua profusão bre o conceito de felicidade, oferecendo bases histórica de mensagens sobre o ser feliz, for- autorais e construções teóricas elaboradas para matando e legitimando modelos de compor- a discussão sobre a temática. Tal “fundamenta- tamento e bem-estar, bem como a literatura ção partilhada” possibilita o tom de dúvida que de autoajuda e um sem número de manuais marca os textos, sustentando uma consistente terapêuticos são talvez os principais repre- problematização sobre os mecanismos e estra- sentantes dessa empiria que serve de hori- tégias atuais – às vezes pouco táteis e outras to- zonte analítico para os textos de Christian talmente explícitas – de privatização da felici- Ferrer, Paula Sibilia, Vera França e Denise dade e da transformação de sua “durabilidade”. Bernuzzi de Sant’Anna. Nestes artigos, a mí- Em suma, pode-se dizer que em Ser fe- dia, seus “personagens” e o culto à beleza e à liz hoje, a “obrigação moral” de ser e estar boa-forma na “sociedade do espetáculo” são sempre feliz se vê, portanto, questionada. E questionados de forma reveladora. mesmo que ao final da leitura não se alcan- Somam-se a essas reflexões, visadas sobre ce qual o “segredo” da felicidade (o que não as políticas públicas voltadas para o incre- era, como já dito, o objetivo da obra), a pro- mento e realização da satisfação individual e posital transversalidade disciplinar do livro coletiva; as diversas terapias alternativas e as deixa, sem qualquer caráter manualista, uma “novas psicologias” – pretensamente científi- “dica” investigativa e crítica: para se “alcan- cas; e a atuação marcante da indústria farma- çar” a felicidade (ou, em verdade, qualquer cêutica voltada para as patologias da mente outra temática contemporânea), o impor- (depressão, síndrome do pânico, transtornos tante é saber perguntar sobre ela. compulsivos), para as doenças crônicas (co- (resenha recebida out.2010/aprovada nov.2010) lesterol, diabetes e outras), para as doenças sexualmente transmissíveis e, em outra ver- Frederico de Mello Brandão Tavares, dou- tente, para a ”indústria da beleza” (cosméti- torando em Ciências da Comunicação pela cos, cirurgias plásticas). É o caso dos textos Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Mes- de João Freire Filho, Sam Binkley, Toby Mil- tre e jornalista pela Universidade Federal de ler e Benilton Bezerra Jr., que refletem sobre Minas Gerais.
Líbero – São Paulo – v. 13, n. 26, p. 155-156, dez. de 2010
Frederico de Mello Brandão Tavares, Ser feliz hoje: reflexões sobre imperativo da felicidade – João Freire Filho