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questões da pós-verdade
O NEGACIONISMO NO PODER
Como fazer frente ao ceticismo que atinge a ciência e a política
TATIANA ROQUE
A crise de confiança na ciência abre espaço para o negacionismo climático em um momento crítico, quando se torna urgente
ampliar a mobilização social em torno da agenda ambiental ILUSTRAÇÃO: JOEL PETTS_2009_ TRIBUNE CONTENT
AGENCY_TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
“Q
ue aquecimento global é esse?”, questionou o deputado
federal Eduardo Bolsonaro num vídeo que gravou para o
YouTube em 2018, durante o inverno nos Estados Unidos.
Vestindo um gorro de lã e diante de um cenário tomado pela neve, o filho
Zero Três do presidente da República manifestou seu espanto com o frio,
que lhe parecia desmentir a mudança climática alardeada pelos cientistas
e pela imprensa. Concluiu com um conselho para seus seguidores: “Não
deixe que o discurso, principalmente dos globalistas, matéria em cima de
matéria, jogando essa mentira para vocês, que ela reste sedimentada
como verdade [sic].”
O raciocínio ignorou que a ocorrência de invernos rigorosos em algumas
localidades não é incompatível com o aumento da temperatura média da
superfície do planeta – que está cerca de 1ºC mais alta do que era antes da
Revolução Industrial. A suposta “mentira” denunciada por Eduardo
Bolsonaro é endossada por praticamente todos os pesquisadores que se
dedicam à análise do clima global. Um estudo do geólogo americano
James Powell publicado no final do ano passado concluiu que, dentre os
mais de 11 mil artigos científicos publicados sobre mudança climática
entre janeiro e julho de 2019, não havia um único sequer que contestasse
que o planeta está ficando mais quente por causa dos gases de efeito
estufa lançados na atmosfera por atividades humanas.
N
o mundo todo, as pessoas vêm manifestando uma confiança apenas
moderada na ciência, mesmo nas nações mais ricas. Nos países com
renda de média para alta – grupo em que o Brasil se enquadra –,
54% dos habitantes confiam medianamente na ciência. O resultado foi
obtido pelo Wellcome Global Monitor, um levantamento britânico de
2018 que investigou como a população de mais de 140 países se posiciona
em relação a questões de ciência e saúde.
Mesmo em países de renda alta, pessoas que dizem ter uma vida difícil
têm probabilidade três vezes maior de serem céticas do que aquelas que
alegam viver em condições confortáveis. Ou seja, a atitude das pessoas
em relação à ciência parece estar ligada aos benefícios tangíveis em suas
vidas cotidianas. E o ceticismo é estimulado pela percepção de uma
distância entre os resultados da ciência e os problemas enfrentados no dia
a dia. Esse é o alerta mais importante, tanto para cientistas quanto para
políticos.
Uma lição a ser tirada dos dados é que precisamos de mais diálogo,
melhores estratégias de convencimento e iniciativas de divulgação
científica abertas à autocrítica. Não basta defender a ciência a partir de
posições de autoridade, calcadas na superioridade ou na neutralidade do
saber científico. Sustentar uma verdade afirmando apenas que “é
comprovada cientificamente” pode reforçar a indiferença ou mesmo
gerar irritação.
T
alvez o efeito mais deletério da crise de confiança seja o de abrir
espaço para o negacionismo climático. Coincidência ou não, a
desconfiança atinge a ciência em um momento crítico, quando se
torna urgente ampliar a mobilização social em torno da agenda
ambiental. Se quisermos cumprir o objetivo do Acordo de Paris de limitar
o aquecimento do planeta a 1,5ºC ou no máximo 2ºC em relação ao
período pré-industrial, temos que agir com firmeza desde já.
Todo esse plano pode parecer invencível se olharmos apenas para o lado
conspiratório. Vale a pena lembrar, porém, que estratégias apoiadas no
ceticismo frutificam em um tecido social desgastado. Não fosse isso,
mesmo com dinheiro, think tanks, falsos cientistas, robôs ou
influenciadores digitais treinados, a repercussão poderia ser mais restrita.
A prova é que esses “cientistas” negacionistas já atuam há tempos, mas
não causavam tanto estrago. O pulo do gato da extrema direita foi
vampirizar a desconfiança de parte considerável da opinião pública para
legitimar governantes com posições anticientíficas e inserir o
negacionismo na máquina estatal.
C
omo agir diante disso? Antes de tudo, é importante notar que o
desinteresse é o problema principal. Não existe – ainda? – uma
adesão maciça ao anticientificismo: as pessoas querem ser mais
ouvidas e ter suas razões consideradas. Por isso, é um péssimo começo de
conversa apontar a ignorância ou a crença religiosa como culpadas pela
crise da verdade.
Uma pesquisa feita no Brasil em 2019 indica que a ciência ainda tem
crédito junto à população, mas a desconfiança está aumentando. O
Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, órgão do Ministério da Ciência,
Tecnologia, Inovações e Comunicações, comparou a opinião de diferentes
estratos sociais, analisando também sua evolução no tempo.
D
epois de décadas realizando encontros e participando ativamente
da costura de acordos internacionais pelo clima, é preocupante que
a causa ambiental não seja popular no Brasil. Culpar os atuais
governantes não basta. O desinteresse de governos, mesmo progressistas,
em relação ao tema reflete a indiferença da maior parte da população,
confirmada pela ausência desse debate nas campanhas eleitorais. Não é
por falta de conhecimento científico que a agenda ambiental não mobiliza
os brasileiros. Mesmo entre as organizações que lutam há tempos pela
preservação do meio ambiente, nota-se uma dificuldade de tornar essa
pauta mais abrangente.
Em novo livro publicado no final de 2019, Why Trust Science? (Por que
confiar na ciência?), sem edição em português, Naomi Oreskes sugere
que a confiança na ciência deve ser reconquistada por seu caráter
consensual, mais do que por sua autoridade. O método científico e as
evidências empíricas são insuficientes: cientistas se autocriticam e
criticam uns aos outros antes de tirar conclusões. Por isso, o grau de
diversidade e de abertura de uma comunidade é essencial para garantir a
confiabilidade do conhecimento obtido. A capacidade de se autocorrigir
depende do trabalho coletivo e da possibilidade de desenvolver
experiências e simulações reprodutíveis em culturas e contextos diversos.
Esses atributos diminuem o peso da autoridade e podem ajudar a
mobilizar mais pessoas para apreciar a ciência do clima, para além da
comunidade de iniciados.