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%
ARQUIPÉLAGO
lilM TORl AI.
9 788560 17 1040
Se o leitor se intrigou com o título deste
belo estudo e reagiu pensando “Mas
literatura é sempre algo a ser visto de
perto!”, seja bem-vindo: é exatamente este
contraste o ponto de partida para apreciar
e fruir adequadamente as teses de Franco
Moretti sobre estudar literatura hoje.
L u ís Augusto Fischer
A l i t e r a t u r a v i s t a d e lo n g e
TríiduVilo
Anselmo Pessoa Neto
CDU 82.09
,\ H LH JIP ÉLA G O E D IT O R IA L L T D A .
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( K l’ 90150-003
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Gráficos, mapas e árvores
ii distância não é um obstáculo, mas sim umaforma especí- veio depois, repare bem, quer continuar mudando. Estudar
j/<i) dc conhecimento. A distância faz com que se vejam menos cinema, televisão, publicidade e quadrinhos está na ordem
os detalhes, mas faz com que se observem melhor as relações, do dia. O crítico norueguês que escreveu o excelente ensaio
os paliem, as formas. sobre a narrativa contemporânea para 11 rornanzo deixou há
alguns meses sua cadeira de Literatura e foi trabalhar em um
I )o texto ao modelo, então, ou, melhor ainda, aos modelos, no centro de estudos sobre videogames. E eu acredito que o que
plural, como no título, talvez um pouco duro, severo, das três ele fez foi correto.
conferências proferidas em Berkeley, na primavera de 2002, e
que formam a base destas páginas: Modelli astrattiper la sto- E agora? Agora, como em Palmos, onde surge o perigo sur
ria lelteraria pVlodelos abstratos para a história literária)]. E ge também a salvação? Uma disciplina que está perdendo o
os modelos, além do mais, foram retirados de três disciplinas seu fascínio pode tranquilam ente arriscar tudo e procurar um
com as quais a história literária teve, no curso de sua existên novo modo, um novo método para tornar significativo o seu
cia, pouco ou nada a ver: os gráficos da história quantitati próprio trabalho. E se aqui, como já disse, os métodos serão
va, os mapas da geografia e as árvores da teoria da evolução. abstratos, as suas conseqüências são, porém, todas concretas.
As razões remotas desta escolha remetem à minha formação Gráficos, mapas e árvores nos colocam, literalmente, diante
marxista que tbi muito influenciada por Galvano delia Volpe e dos olhos (a literatura vista de longe...) o quanto é imenso o
comportava (senão na prática mesmo, pelo menos em teoria) campo literário e como sabemos tão pouco dele. E uma dupla
um grande respeito pelo método das ciências naturais. En lição, simultaneamente de humildade e euforia: humildade em
quanto a teoria literária dos últimos 20 anos - a Teoria, com relação àquilo que fizemos até aqui (bem pouco), e euforia
T maiusculo, das universidades americanas —reverberava a em relação àquilo que ainda temos que fazer (muitíssimo). E,
metafísica franco-alemã, para mim continuava a parecer que então, comecemos.
aquelas com as quais tínhamos verdadeiramente que aprender
alguma coisa (melhor: muitas coisas) eram as ciências naturais
e sociais. E este livro é também, na sua brevidade, uma tenta
tiva de iniciar um diálogo em uma direção diversa.
J“A história era...” Pomian aqui fala no passado como, talvez, seja
o correto para a história social, mas certamente não para a his
tória literária, em que o colecionador de coisas (ou obras) raras
e curiosas, que não se repetem, excepcionais —e que o close rea-
ding torna ainda mais excepcionais quando sublinha o caráter
único daquela palavra e daquela frase ali - é ainda, de longe, a
figura dominante. Mas o que aconteceria se os historiadores da
literatura decidissem também “mudar a direção do olhar” (ainda
Pomian) “do extraordinário para o cotidiano, dos acontecimen
tos excepcionais para a grande massa dos fatos”? Que literatura
terminaríamos por encontrar na “grande massa dos fatos”? J
2 K. Pomian. "L'histoire des structures". In: J. Le Goff (org.), La nouvelle histoire. Paris,
1978, p. 115-16.
14 1rmico Moretti Gráficos 15
torna-se uma necessidade da vida moderna. As lamúrias que I in Ia-se, portanto, de obter d.a história literária, como nós a conhecemos, uma conversão radical, aná-
de imediato se levantam por toda parte —os romances fazem lofia àquela que se deu quando se passou das crônicas reais para a história propriamente dita. Enrique-
t<‘r "S nossas crônicas literárias com alguns novos ingredientes históricos, aqui uma fonte inédita, acolá
com que os leitores se tornem preguiçosos, estúpidos, imo
uma biografia revisada, não serviría para nada: é a impostação que deve mudar e o objeto, converter-se.
rais, loucos, rebeldes: exatamente como se levantarão para Imputar a literatura do indivíduo! Evidentemente é uma ruptura ou, até mesmo, um paradoxo. M as
lamentar os filmes dois séculos depois - atestam o sucesso do uma história da literatura só é possível a este preço. Necessário se fa z precisar que, reconduzida para
romance muito melhor do que qualquer elogio. ilcn/iv de seus limites institucionais, a história da literatura será história tout court.
Uni.tNl) Bauthks. História ou literatura?
Gráficos 19
III.
Em torno do fin a l do período Tempo (1830-44), a edição comercial sofreu [ . . .J um ataque legisla
tivo [qu ej iniciou por tirar de circulação as publicações que representavam atores do teatro kabuki e
cortesãs A narrativa leve conhecida como gokan também fo i tirada de circulação, com a justifi
cativa de que os seus entrechos e as suas ilustrações remetiam ao teatro kabuki e ostentavam luxuosas
capas coloridas. Aos atoresf o i sugerido que se dedicassem a histórias morais e textos de am orfilial ou
de castidade, os quais eram, porém, um tanto quanto estranhos à tradição da literatura popular
As principais vítimas destas novas regrasforam os romances de amor conhecidos como mnjobon.
P r/ra t K o h n ic m . The book in Japam a cultural historyfrom lhe begmnings to the nineteenth century.
2fi | r.mro Moretti
Gráficos 27
Figura 4. O declínio do romance: Dinamarca. Número de novos títulos por ano, média quinquenal.
O romance tem uma relação ambígua com a política e os movimentos sociais. Os escritores radicais
tendem a usar formas mais curtas e mais diretamente públicas: o teatro, a poesia, ojornalismo, o con
to. Os romances pedem tempo [...] Os grandes romances sobre os movimentos revolucionários do iní
cio do século sóforam aparecer nos anos 1850 e 1870, quando aquela políticajá estava exaurida.
M ic h a e i . D en n in g . IJinternazionale dei romanzieri.
Gráficos 29
2H t r.in< t> Morotti
IV
preço do papel...7. E, como as possíveis causas se m ultipli 1Evento, ciclo e longa duração: três dimensões tem porais
cam, alguém se pergunta: mas o que estamos procurando que tiveram diferentes sortes no âmbito da história literá
explicar aqui, dois eventos singulares sem nenhum a relação ria. A leitura textual tem, norm alm ente, m uita facilidade
entre eles, ou dois m om entos de um pattern recorrente? Por para tra tar com o evento, ou seja, com o texto que não se
que se as crises são eventos singulares, então a pesquisa de repete, raro. No extrem o oposto, a longa duração de estru
causas, também essas singulares —os maus romances, Na- turas quase imutáveis desenvolveu um papel im portante em
poleão, o preço do papel, o que quer que seja - está excelen numerosos ensaios de teoria literária. Mas o tempo de meio,
te. Mas se são, ao contrário, fases de um pattern recorrente, isto é, o.tem po do ciclo, permaneceu, ao contrário, em boa
então a coisa que se deve explicar é, exatam ente, o pattern medida inexplorado. E não é porque a crítica literária não
no seu todo, e não somente um de seus momentos. tenha trabalhado m uito neste nível, é que não se compreen
deu ainda verdadeiram ente toda a sua especificidade: o fato
O pattern no seu todo, ou melhor, talvez, o ciclo no seu todo. de que os ciclos constituem estruturas temporárias internas ao
A reflexão histórica desenvolveu “uma noção cada vez mais fluxo contínuo da história. Aqui está, de resto, a lógica da tri-
precisa da multiplicidade do tempo”, escreve Braudel no en partição de Braudel: o período breve é todo fluxo e nenhum a
saio sobre a longue durée: estrutura; a longue durée é toda estru tu ra e nenhum fluxo; e
o ciclo é, por sua vez, inevitavelmente ancípite —a região
A historiografia tradicional, interessada nos ritm os breves do tem de meio entre as outras duas. E strutura, porque um ciclo
po, no indivíduo, no événement, há muito tem po nos habituou à sua com porta repetição e, portanto, regularidade, ordem , form a
narrativa fabulosa, dram ática, de breve respiro. no decorrer da história. Tem porária, porque o seu curso é
A nova historiografia econômica e social põe em prim eiro plano, na breve (dez, 20, 50 anos, isto depende das várias teorias).
sua pesquisa, as oscilações cíclicas um recitativo da conjuntura
£...] de dez, 20 ou 50 anos. O ra] estrutura temporária é também um ótimo modo de definir
M uito além disto £...] coloca-se uma história de respiro muito mais uma coisa que, à primeira vista, parece não ter nada a ver
longo, de amplidão secular £...]: a história de longa, de longuíssim a com o ciclo, vale dizer, o gênero literário, o qual é também ele
duração8*. uma forma que dura no tempo - mas sempre só por um certo
(empo. [Espécie de Jano morfológico, com uma face voltada
para a história e a outra para a forma, o gênero é, portanto,
7 J. Raven. Historical introduction: the novel comes o f age. P. Garside. The English o verdadeiro protagonista desse tempo de meio da história
novel in the romantic era: consolidation and dispersai. In: P. Garside, J. Raven e lilerária, desse nível mais racional em que o fluxo encontra-
R. Schõwerling (org.). The English novel 1770-1829: a bibliographical survey o f
se com a forma. E no qual, de fato, se encontram as longas e
prose fíction published in the British Isles. Oxford: Oxford University Press, 2000,
vol, f, p. 27, e vol. II, p. 44. regulares ondas das formas hegemônicas do romance inglês
H F. Braudel. "Storia e scienze sociali: Ia "lunga durata". In: Scritti sulla storia. Mi- dos séculos 18 e 19 (fig. 7-8): o romance epistolar de 1760 a
lano: Feltrinelli, 2003, p. 39-40.
W I ranço Moretti Gráficos 33
1790; depois o gótico, de 1790 a 1815; e, enfim, o romance rom ance histórico publicado em 1800, como Castle Rackrent
histórico, de 1815 até mais ou menos 1850. (ou em 1805, como teria acontecido à prim eira redação de
Waverley), não teria podido gozar da ex traordinária opor
Cada um dos três gêneros produz mais ou menos o mesmo tunidade oferecida a Waverley, em 1814, pelo desabam ento
núm ero de novos títulos por ano e dura cerca dos mesmos da produção g ó tica10.
25-30 anos. Sobretudo, cada uma dessas formas tem ver
dadeiram ente início só depois que a form a precedente já se
tenha praticam ente esgotado. O bservem como ascensão e
queda cruzam -se em torno de 1790 e depois de novo, mais
ou menos em 1815. “As formas de a rte dão-se o tu rn o ”,
soa uma lapidar expressão de Sklovskij9, a quem, talvez,
não seria desagradável encontrar-se em companhia des
ses gráficos. E, com efeito, o declínio da precedente forma
hegem ônica parece ser aqui a prem issa necessária para a
ascensão da seguinte. O que ajuda, entre outras coisas, a
explicar aqueles estranhos períodos de latência entre o apa
recim ento da obra-protótipo e o início propriam ente das 10 "Uma nova forma é criada para substituir uma forma velha que tenha perdido
várias ondas: Pamela sai em 1740, o Castelo de Otranto em o seu valor artístico" se lê em V. Sklovskij, Teoria delia prosa. E em La mossa
dei cavallo: "Formas novas aparecem em arte para substituir as velhas que
1764 —mas os rom ances epistolares e, depois, os góticos deixaram de ser artísticas". Mas o que faz com que uma forma “deixe de ser
publicados antes de 1760 e de 1790 são, entretanto, sem artística"? Para Sklovskij, a razão está toda na dialética interna da produção
artistica, que tem início no estranhamento artístico e termina no automatis-
pre pouquíssimos. Por que estas décadas de espera? P ro
mo banal: "Cada forma artística percorre o caminho inevitável do nascimento
vavelm ente porque enquanto uma form a hegem ônica não à morte; da visão e da percepção sensorial - quando cada detalhe do objeto
perdeu o seu valor artístico, as form as rivais não têm mui é saboreado e apreciado - ao mero reconhecimento, quando a forma se tor
na um tedioso epígono que nossos sentidos registram mecanicamente, uma
tas cartas para jogar: sempre pode ocorrer um evento (ou mercadoria invisível até para o próprio comprador".
seja, um texto) excepcional, naturalm ente, mas a exceção f:5te “caminho das formas do nascimento à morte" pode, entretanto, ser ex
plicado de outro modo, em que o essencial não é tanto a relação entre forma
não mudará o sistema. É som ente quando a astronom ia pto-
"jovem" e forma "velha" mas, sim, a relação entre forma e história. Um gênero
lomaica começa a produzir uma monstruosidade depois da literário perde o seu valor artístico - e dispara, então, a hora do gênero rival
outra, escreve T hom as Kuhn em A estrutura das revoluções quando a sua forma interna não está mais em condição de representar os
aspectos mais significativos da realidade contemporânea. Neste ponto, podem
científicas, que “chega o m om ento de oferecer uma chance ■Kontecer fundamentalmente duas coisas: o gênero renuncia à própria forma
a uma teoria rival”. E o mesmo vale para a literatu ra: um sol) o choque de realidade, acabando por desintegrar-se, ou dá as costas à rea
lidade em nome da forma, se tornando, assim, tedioso epígono. Sobre isto, ver
o apêndice à nova edição do meu Romanzodiformazíone.Torino: Einaudi, 1999.
9 V. Sklovskij. La fattura e il "controrilieva". In: La mossa dei cavallo. Bari: Laterza, I , mais adiante, o final do próximo capítulo. Mas tem ainda uma outra, ainda
1967, p. 94. iriills drástica explicação da crise dos gêneros literários, que veremos em breve.
14 I t.tmo Morettl Gráficos 35
Kailyard School
New Woman novel
se repetem mais ou menos invariáveis até desaparecerem. Gótico imperial
Romance naturalista
I ransformam-se em literatura normal, se poderia dizer, por Decadent novel
analogia às ciências normais, de Kuhn. Ou se pode pensar no Nursery stories
Romance regional
horizonte de expectativas, de Jauss: uma metáfora que norm al Cockney school
Utopia
mente é utilizada somente de forma negativa (isto é, quando Invasion literature
Romances imperiais
uma obra transcende o horizonte dado), mas que esses gráficos School stories
Children's adventures
apresentam, ao contrário, aquilo que é: as figuras 7-8 mostram Fantasia
o quanto realmente é difícil transcender o horizonte do gêne Sensation novel
Romance provinciano
ro dominante. A figura 9 m ostra como cada momento histó Romance doméstico
Romance religioso
rico possui horizontes múltiplos e assim por diante. O que os Romance de formação
Multiplot novel
gráficos nos fazem ver são, em suma, os vínculos e a inércia Mysteries
do campo literário —os limites do imaginário, por assim dizer. Chartist novel ■
Romance esportivo
Este é um tema que atravessará todos esses capítulos. Romance industrial
Romance de conversão
Newgate novel
Nautical tales
Romance militar
Silver-fork novel
Romantic farrago
Romance histórico
Romance evangélico
Village stories
Fábulas nacionais
Romance anti-jacobino
Gótico
Romance jacobino
Ramble novel mm
"Spy" novel
Romance sentimental
Romance epistolar
Oriental tale
Picaresco
Courtship novel
— I-----
1700 1750 1800 1850 1900
C-H parece m u ito mais evidente no âm bito das séries libres absurda. Assim, fecho com uma nota de perplexidade. Ainda
—a g ru p am en to s livres como os salões ou as escolas lite rá ria s — hoje, algum mecanismo de geração parece ser o único modo
do que no âm bito das instituições, as quais tendem , g eralm en te, de explicar a duração do ciclo romanesco, mas o processo de
a fixar a p r io r io m odo de agir, q u er com re g ra s explícitas, quer formação das gerações é ainda um tanto quanto obscuro. No
com em p reen d im en to s de n a tu re z a coletiva, im pedindo assim futuro, precisaremos fazer m elhor14.
a nova g eração de m o s tra r a sua o rig in alid ad e [f.-D a esfera
estética é, talvez, aquela que m elh o r reflete a m udança g eral
do clim a m e n ta l12.
VIII.
A lorma que explica os números. Aqui, os números do m er não era nada claro. No entanto, me senti no dever de dizer
cado literário. Mas, em um breve estudo sobre exportação de alguma coisa e, assim, no artigo, ofereci uma “explicação
lilmes americanos publicado alguns anos atrás na New Left (que a New Left Review, estoicamente, publicou); mas er
Uc\ iew, deparei com o mesmo, idêntico, problema: na déca rei, porque, naquele caso, a verdadeira (pequena) descoberta
da de amostra (1986-95), os filmes cômicos constituíam 20% consistia propriam ente em ter encontrado u m problem a do q ual
dos sucessos de bilheteria nos Estados Unidos, enquanto em ignorava a solução. Problemas sem solução são exatam ente
outros paises, como m ostra a figura 11, o seu sucesso era niti o que precisamos na história literária, onde nos colocamos,
damente inferior (especialmente na Ásia e no M editerrâneo). ao contrário, somente aquelas perguntas das quais já conhe
As cifras eram claríssimas. Mas se depois alguém se pergun cemos a resposta - e, dessa forma, não devemos jam ais nos
tasse p o r que as coisas eram daquele modo —isto é, por que medirmos de verdade com os limites e os vazios dos nossos
razão os filmes cômicos eram tão mais difíceis de exportar do conhecimentos. “Já percebi”, disse o senhor K. de Brecht,
que, para dar um exemplo, os filmes de ação —os percentuais “que afastamos muitas pessoas dos nossos ensinam entos
não serviam mais para nada. E seria necessário procurar a por term os uma resposta para tudo. Não poderiamos, no
explicação mais uma vez no plano formal: visto que os filmes interesse da propaganda, preparar uma lista das questões
cômicos contemporâneos fazem largo uso de frases espiritu que nos parecem completam ente irresolvidas?”11.
osas, as quais não sobrevivem nunca muito bem quando são
traduzidas para uma outra língua, esses filmes tornam-se,
inevitavelmente, muito menos divertidos em japonês, egíp
cio ou espanhol do que em inglês. (Não por acaso, a idade de
ouro para as exportações de filmes cômicos —Chaplin, Kea-
ton, Lloyd, Laurel e Hardy... —coincide, fundamentalmente,
com época do cinema mudo.)
IX.
Duas rápidas conclusões teóricas. A primeira é de novo sobre O Percentual maior Percentuais menores Percentuais maiores
o ciclo como possível fio condutor da história literária. Para do que o dos EUA 30%
Sérvia 0% República Tcheca
★ Mesmo percentual Malásia 0% Hungria 29%
que pudesse realizar-se a “elevação” ético-estética do roman dos EUA Taiwan 0% Áustria 27%
Chile 0% Israel 27%
ce, escreveu W illiam W arner, “deveria primeiro desaparecer A Percentual menor
5% Bulgária 25%
do que o dos EUA México
Colômbia 25%
o romance de intriga amorosa”. É aquilo que April Alliston Egito 7%
Dinamarca 22%
Espanha 9%
chama the great gender shift, “a grande reviravolta dos gêne Japão 9% Eslováquia 22%
Jamaica 10% Porto Rico 21%
ros” dos anos em torno de 1740: o desaparecimento daqueles Grã-Bretanha 21%
;is ( scritoras mulheres” que são, enfim, “expelidas” do cam- à Scott atrai de preferência autores homens, enquanto uma
literário pelos seus rivais homens, escrevem Tuchman inundação de histórias domésticas, sensation novels e roman
e Fortin em E d g in g w om en o ut19. Verdade. Mas é claro que ces provinciais atrai, ao contrário, escritoras mulheres, e as
uma agressividade tão forte assim lá pela metade do século sim por diante.
1!) pressupõe que a reviravolta ocorrida no meio do século
18 tenha sido, p o r sua vez, revirada. E, de fato, se entre 1750 e Entendamo-nos: dizer que todas estas pesquisas descrevem o
1780 os homens publicam efetivamente o dobro de romances retorno do mesmo ciclo literário não é uma objeção em rela
cm relação às mulheres, as coisas mudam, entretanto, já no ção aos ciclos, ao contrário, a m inha tese depende da validade
curso dos anos 1780, quando um segundo s h i f t - c \ i ] o s traços desses estudos e, em certo sentido, confirma-os também, su
ainda perceptíveis no início do século 19 (fig. 12) - revira gerindo que um princípio comum subjaz a todos os proces
as relações de força, levando para a ribalta uma geração de sos descritos. Mas é também verdade que, quando aquilo que
romancistas mulheres (Burney, Radclifí, Edgeworth, Austen) parecia tantos casos individuais é interpretado como fases de
permanece em primeiro plano até que uma terceira revira um mesmo ciclo, a natureza do problema muda. Para citar de
volta, em torno de 1820, desequilibra de novo o campo para novo Pomian:
os homens (Scott, depois Bulwer, Dickens, Thackeray). Pela
metlade do século, um quarto sh ift recoloca as mulheres no Os acontecim entos não interessam a Lucien Kebvre por suas
primeiro plano (as Bronté, Gaskell, Braddon, Eliot) e é segui unicidades, [m a s] enquanto elem entos de uma série, enquanto
do, quinta reviravolta, pela “exclusão” dos anos 1870. revelam as variações conjunturais das relações entre duas clas
ses sociais cujo conflito perm anece constante ao longo de todo o
Dados semelhantes estão começando a aparecer para a Fran período estudado20.
ça, a Espanha e os Estados Unidos. E é fascinante ver como os
resultados da pesquisa são sempre apresentados como casos Variações dentro de um conflito que permanece constante: é
úniços - a reviravolta, a ascensão do romance, a nobilitação, isto que se “vê” no nível do ciclo romanesco. E, se o conflito
a invenção de Alto e Baixo, a feminização, a educação sen permanece constante, então o im portante não é quem tenha
timental, a invasão - enquanto se trata, ao contrário, quase vencido esta ou aquela batalha, mas, sim, o fato de que nenhu
certamente, do mesmo cometa que continua a atravessar para m a vitó ria f o i ja m a is, na verdade, d efin itiva e o romance inglês
a frçnte e para trás o céu da narrativa romanesca. Do mes continuou, portanto, a oscilar entre homens e mulheres sem
mo ciclo literário, em suma, que, provavelmente, oscila entre que nenhum dos dois grupos conseguisse jamais “conquis-
homens e mulheres em sintonia com o sistema dos gêneros tá-lo” de uma vez por todas. E se pode parecer que, então,
ronjanescos em seu conjunto, no qual uma geração com mui não aconteceu nada, isto não é verdade, aquilo que aconteceu
tos romances de guerra, nautica l tales, e romances históricos foi justam ente a oscilação. Tal oscilação perm itiu ao romance
19 G. Tuchman e N. Fortin. Edging women out. New-Haven: Yale U. P, 1989, p.7-8. 20 K. Pomian. Storia delle strutture, op. cit.; p. 92.
54 Franco Morettl Gráficos 55
Sn! a sobre a Laxionomia romanesca 1996. "SPY" NOVEL, 1770-1800: Christopher Flint, "Speaking objects:
the circulation of stories in eighteenth-century prose fiction". PMLA II3
On gêneros das figuras 9 e 10 foram catalogados do seguinte modo: defi (2), March 1998, pp. 212-26. RAMBLE NOVEL, 1773-90: Simon Dickie, The
mid-century "ramble"novels, PhD dissertation, Stanford 2000. ROMANCE
n i-lo corrente, em maiuscula e frequentem ente em inglês; datas de início
JACOBINO, 1789-1805: Gary Kelly, The english jacobin novel 1780-1805,
c de fim; estudo crítico do qual tirei a (nem sempre explícita) periodização.
Oxford1976. GÓTICO, 1790-1820: Peter Garside, "The english novel in
As duas figuras são som ente os prim eiros esboços de um territó rio m uito the romantic era", in Garside, Raven and Shõwerling, The english novel
vasto. Como o conhecimento desse vasto territó rio é destinado a m udar 1770-1829, vol.ll. ROMANCE ANTI-JACOBINO, 1791-1805: M. O. GRENBY,
muito rapidamente, é bom acrescentar algum as premissas. E m primeiro The anti-jacobin novel, Cambridge 2001. NATIONAL TALE, 1800-31: Katie
lugar, com exceção daqueles (pouquíssimos) casos em que já existem es Trumpener, "National Tale", in Paul Schellinger, The encyclopedia o f the
novel, Chicago 1998, vol.ll. VILLAGE STORIES, 1804-32: Gary Kelly, English
tudos quantitativos, ou bibliografias completas, a data de início indica o
fiction ofthe romanticperiod, 1789-1830, London 1989. ROMANCE EVAN
prim eiro texto que se pode inscrever como de um determ inado gênero e
GÉLICO, 1808-19: Peter Garside, "The english novel in the romantic era".
não a ascensão do gênero propriam ente, a qual acontece, como dem onstra ROMANCE HISTÓRICO, 1814-48: Nicholas Rance, The historical novel and
a figura 7, vários anos mais tarde; ao mesmo tempo em que nosso conhe popular politic in nineteenth-century England, New York 1975. ROMANTIC
cim ento avança, a duração dos gêneros rom anescos deveria abreviar-se em FARRAGO, 1822-47: Gary Kelly, English fiction o fth e romantic period. SIL-
VER-FORK NOVEL, 1825-42: Alison Ad b urgha m, S/7ver fo/Jc soc/efy, London
relação à duração aqui indicada. Por outro lado, alguns gêneros conhecem
1983. ROMANCE MILITAR, 1826-50: Peter Garside, "The english novel in
rápidos, mas intensos renascimentos, depois de uma certa distância de seu
the romantic era". NAUTICAL TALES, 1828-50: Michael Wheeler, English
ápice originário, como a oriental tale em 1819-25, o gótico depois de 1885,
fiction o f the Victorian period:!830-90, London 1985. NEWGATE NO
o romance histórico (mais de uma vez). “Ressurgim ento” fascinante, mas VEL, 1830-47: Keith Hollingsworth, The Newgate Novel, 1830-47, Detroit
cuja explicação ficará para outra ocasião. Por fim, as figuras 9 e 10 não 1963. ROMANCE DE CONVERSÃO, 1830-53: Sarah Gracombe, Anxieties
incluem nem o policial, nem a ficção científica, embora um e outro atinjam ofinfíuence: jewishness and english cuiture in the Victorian novel, PhD dis
a sua forma m oderna em 1890 (Doyle e Wells) e sofram depois uma rele sertation, Columbia University 2003. ROMANCE INDUSTRIAL, 1832-67:
Catherine Gallagher, The industrial reformatíon o f english fiction, Chicago
vante transform ação em to rn o de 1920 - em boa sincronia com o ritm o
1985. ROMANCE ESPORTIVO, 1838-67: John Sutherland, The Stanford
seguido pela maior p arte dos outros gêneros. A peculiar duração desses
companion to Victorian literature, Stanford 1989. CHARTIST NOVEL, 1839-
dois gêneros parece pedir uma abordagem diferente. 52: Gustav Klaus, The literature o f labour, New York 1985. MYSTERIES,
1846-70: Richard Maxwell, The mysteries o f Paris and London, Charlottes-
ville 1992. MULTIPLOT NOVEL, 1846-72: Crisi Benford, The muitiplot no
COURTSHIP NOVEL, 1740-1820: Katherine Sobba Green, The courtship vel and Victorian cuiture, PhD dissertation, Stanford 2003. ROMANCE DE
novel 1740-1820, Kentucky 1991. PICARESCO, 1748-90: F.W. Chandler, The FORMAÇÃO, 1847-72: Michael Minden,'Bildungsroman', in Schellinger,
literatureofroguery, London 1907. ORIENTAL TALE, 1759-87: Emest Baker, The encyclopedia ofthe novel, vol.ll. ROMANCE RELIGIOSO, 1848-56: Whe
The history o fth e english novel, London 1924, vol.V. ROMANCE EPISTO- eler, English fiction ofthe Victorian period. ROMANCE DOMÉSTICO, 1849-
LAR, 1766-95: James Raven, "Historical introduction", in Garside, Raven 72: Sutherland, Stanford companion to Victorian literature. ROMANCE
and Schõwerling, The english novel 1770-1829, vol.l. ROMANCE SENTI PROVINCIANO, 1850-73: lan Duncan, "The provincial or regional novel",
MENTAL, 1768-90: John Mullan, "Sentimental Novels", in John Richetti, in Patrick Brantlinger and William Thesing, A companion to the Victorian
The Cambridge companion to the eighteenth-century novel, Cambridge novel, Oxford 2003. SENSATION NOVEL, 1850-76: Nicholas Rance, Wilkle
f>0 I r.itn « Morettl
22 "Não existe nenhuma outra coisa para ser vista em Yonville. A estrada (a única
que existe), tão longa quanto um tiro de fuzil, e ladeada por alguns comér
cios..." (Madame Bovary, II. I).
66 Franco Moretti Mapas 67
Fonte:Thomas M<j>ule, The english counties delineated, 1837. London: Bracken Books, 1994.
U m p e q u e n o lu g ía r é tã o a g r a d á v e l n a r e a lid a d e q u a n to n a p o e s ia o u n a p r o s a ; u m p e q u e n o m u n d o
c o m o e sta n ossa v ila d e B erk sh ire, n a q u a l e sto u e sc rev e n d o [ . . J co m u m a e s tr a d a q u e a a tr a ve s sa ,
se m p r e ch eia d e a r r o s , c a v a le ir o s e c a r r o ç a s e, u ltim a m e n te , e n r iq u e c id a p o r u m a d ilig ê n c ia q u e v a i
d e R - a S - [ ... Q ite r a tr a v e s s a r c o m ig o a n o ssa v ila , g e n t i l le ito r ? N ã o s e r á u m a lo n g a v ia g e m ...
M ahy M it f o h d . O u r villa g e.
F ig u ra 14. M a ry M itfo rd . O u r v illa g e , vol. I (1824).
68 Franco Moretti Mapas 69
24 J. Barre I. Thí idea o f iandscape and the sense ofplace 1730-1840. London-New
York: C, mbridge U. P„ 1972, p. 95.
70 Franco Moretti Mapas 71
para Stami
•-"■para Etton
•fej(4t
A neve (comum a
para Ufford Etton e Helpston)
para Peterborough
j Terras públicas
náo cultivadas
| Florestas para Wansford para Castor
A to p o g r a f ia e a o r g a n iz a ç ã o d e u m a o p e n f i e l d p a r i s h p r o m o v e m u m s e n tid o d o e sp a ç o tip ic a m e n
S e g u n d o P r ie s t , u m a e s tr a d a d e v e r ia “e n f il e ir a r ” u m a v i l a d e p o is d a o u tr a , c o m o p e r o l a z i n h a s
te c irc u la r, e n q u a n to a p a is a g e m , c r i a d a p e la s d e m a r c a ç õ e s a u t o r i z a d a s p e l o p a r l a m e n t o e x p r im ia
e m u m c o rd ã o : p a r a e le a e s tr a d a v e m a n te s d a s v i l a s q u e s ã o j u n t a d a s p o r ela , e lh e é im p o s s ív e l
u m a p e r c e p ç ã o lin ea r... [ E m , 1809fj a v i l a d e H e lp s to n e n c o n tr a -s e n o c e n tr o d a p a r is h , lá o n d e
c o n c eb e r a s v i l a s c o m o r e a li d a d e s in d e p e n d e n te s e d is tin ta s .
se e n c o n tr a m o s tr ê s c a m p o s q u e a c o n s titu e m : e ste s d is p õ e m - s e e m to r n o d a v i l a n u m a e sp écie d e
John B a h r k i .i .. T h e id e a o f la n d s c a p e a n d the sense o f p la c e 1730-1840.
c irc u n fe rê n c ia , d e n tr o d a q u a l o s h a b ita n te s d a v i l a m o v e m - s e e tr a b a lh a m .
Jo h n B a r r e i .l , T h e id e a o f la n d sc a p e a n d th e sense o f p la c e 1730-1840.
T I Franco Moretti Mapas 73
P o r q u e e x is te m c id a d e s g r a n d e s e c id a d e s p e q u e n a s e p o r q u e a s u a d is tr i b u iç ã o é tã o ir r e g u la r ?
N ó s p r o c u r a m o s d a r u m a r e s p o s ta a t a l in te r r o g a ç ã o e p r o c u r a m o s ta m b é m o m o tiv o q u e e x p lic a
p o r q u e u m a c id a d e é g r a n d e o u p e q u e n a , p o r q u e a c r e d ita m o s q u e a d is tr i b u iç ã o d e v a s e r d e a lg u m
m o d o r e g u la d a p o r u m p r i n c í p i o o r d e n a d o r q u e a i n d a n ã o in d iv id u a m o s .
[ . . . E m r e la ç ã o à c e n t r a l i d a d e j n ã o se t r a ta ta n t o d e u m a s im p le s p o s iç ã o c e n tr a l e m te r m o s d e
e sp a ç o , q u a n to d e u m a f u n ç ã o c e n tr a l em s e n tid o tr a n s la d o . [ . . . ] o s b e n s e o s s e r v iç o s c e n tr a is sã o
p r o d u z i d o s e o f e r ta d o s s o m e n te e m p o u c o s p o n to s n e c e s s a r ia m e n te c e n tr a is p a r a ser e m d e p o is u t i l i
z a d o s n o s n u m e r o s o s p o n to s d is p e r s o s.
W ai.tkk C iiristau.ek. L e lo c a lità c e n tra li d e lia G e r m a n ia m e rid w n a le.
26 M. Bakhtin." _e forme dei tempo e dei cronotopo nel romanzo". In: Estética e
romanzo, 1975.Torino, Einaudi, 2003, p. 372-73.
78 Franco Moretti Mapas 79
v
C id a d e d e B-
chapeleiro
militares
R o se d a le
dançarinas itinerantes
inquilinos sofisticados
teatro
feira
H a ze lb y
farmacêutico
Ascof
raças
Lo n d re s
sócio de grande empresa
alfaiate fashion
V
"madame falante"
Sr. Lua, o feiticeiro
amor, matrimônio, morte...”). O segundo sistema espacial une, que jamais se reproduzirá: um asno, um coco, um papagaio...),
ao contrário, Dalmailing, Irville (isto é, Irvine), Glasgow e a antítese entre casa e mundo é radical e totalm ente irrele
Edimburgo, e m ostra como funciona concretamente a hierar vante: as maravilhas são admiradas e depois desaparecem no
quia dos “lugares centrais”: escola em Irville, universidade nada (à parte o chá, naturalmente). E o idílio de Dalmailing
em Glasgow, advogados e médicos famosos em Edimburgo; prossegue do mesmo modo: “não ligado substancialmente a
notícias de segunda mão em Irville, e notícias de primeira outros lugares”.
mão em Glasgow; almoço de inauguração, lua-de-mel e lá
pide funerária... A medida que um serviço torna-se mais in Mas, em 1788, tudo muda. A poucas milhas de distância é
sólito, a narração desloca-se em direção à ponta da pirâmide, construída uma fiação de algodão, em torno da qual surge a
e se distancia de Dalmailing. Mas porque o mundo de Galt cidade industrial de Cayenneville, e as coordenadas espaciais
é ainda, em certo grau, dominado pelas simples necessida de Dalmailing são alteradas para sempre. Confrontando a
des da existência cotidiana, os lugares centrais ficam, de fato, prim eira década dos Anais com a última (fig. 20), é impossível
às margens do relato (especialmente aqueles de “nível mais não apreender a drástica reorganização do espaço produzida
alto”, como Edimburgo ou Londres). pela instalação da manufatura. O sentido do “local”, tão forte
no início do livro —a vida cotidiana de Dalmailing, a Irville
Tudo, menos marginais, são, ao contrário, as “novidades” onde os meninos vão à escola, as vilas onde se vai procurar
listadas na prim eira coluna à esquerda, que chegam a D al mulher... - agora tudo desapareceu no nada. No seu lugar,
mailing das Antilhas, do Báltico e de vários outros lugares como na Helpston de Barrell, se estabeleceu a grande “rede
deixados mais ou menos indefinidos. Aqui entra no jogo o de relações comerciais” (Cayenneville-Glasgow-Manchester-
império colonial britânico, naturalmente, mas também uma Londres), em que “cada sobressalto provoca contragolpes até
mais antiga, e quase mítica, geografia da pura e simples dis aqui no nosso canto” (ano: 1808). A nossa vila não é mais o
tância. Em Dalmailing, um papagaio, o licor e o cocker-nut (a centro de gravidade da narrativa: foi destronada pelo m er
soletração meio holandesa de Balwhidder para coco) são coi cado nacional do século 19 industrial, cujas distâncias inter
sas que chegam literalm ente de um outro mundo. Maravilhas. mediárias (nem Casa, nem Mundo) são atravessadas toda se
Ou, mais prosaicamente, objetos de luxo: produtos exclusivos mana, se não todo dia, por aqueles produtos —livros, jornais,
do comércio de longa distância, que brilham por um momen eventos políticos: todos plurais —que encarnam o novo “novo’
to no horizonte do cotidiano, e que deixam atrás de si o sabor inventado pelo século 19 industrial. O novo que te prende
de dois universos incomensuráveis. Aqui, nascimento, traba mesmo sem nada de extraordinário; o novo como ingrediente
lho, matrimônio e morte; lá, coco, bálsamo de Riga, papagaios do cotidiano, ao invés de sua antítese. Da Idade das M aravi
e aguardente de Gdansk. A Casa, e o Mundo. Mas como o lhas, não ficou nada além de uma tartaruga solitária.
mundo não se intromete, de fato, na vida de todos os dias
(as suas maravilhas são sempre no singular, como a sugerir
82 Franco Moretti Mapas 83
G la sg o w :
Igreja católica abre
gerente do moinho de algodão vai a Glasgow
companhia compra moinho
milhas]:
C a y e n n e v ille [2 -3
uma tartaruga
livraria
jornais diários de Londres
Jacobinismo
Igreja católica abre/fecha VI.
trabalhadores pagam por sua própria igreja M a n c h e s te r:
companhia pára de efetuar pagamentos supervisor do moinho de algodão
supervisor se suicida
"engenheiro inglês"
L o n d re s:
D a lm a ifin g : interesse em possuir parte de Caynenneville
Uma última coleção, alemã desta vez, as Histórias de, vilas da
poeta paroquial gerente do moinho de algodão vai a Londres Floresta Negra, de Berthold Auerbach. Escritas entre 1843 e
hotel compra sua própria carruagem órfão do supervisor é enviado
passeata da vila 1853, essas Dorfgeschichten foram um dos grandes best-sellers
relaxamento dos ensinos religiosos
assentos vazios na igreja alemães do século, e a figura 21 apresenta cerca de um terço
novos hábitos em funerais
casamentos França: daquela coleção, em 1940, nos dez volumes da edição Cotta.
medo de invasão
Também aqui, como em Galt, três espaços - local, nacional,
mundial —dividem entre si o universo narrativo. O primei
F igura 20. John Galt. Annals o f theparish. últimos dez anos (1801-10). ro, composto por N ordstetten e pelas outras vilas da Floresta
Negra, tem os traços que já nos são familiares: routine coti
diana, horizonte de poucas milhas, serviços essenciais —tudo
contido dentro do mesmo cronotopo circular das coleções in
glesas. Mas se o âmbito geográfico do idílio é mais ou menos
o mesmo em todo lugar (provavelmente porque o caráter ele
m entar de sua narrativa limita as possibilidades de variação),
o espaço internacional de Auerbach é bem diferente daquele
Mapas 87
86 Franco Moretti
guarda debaixo de cada árvore para que não briguem com o identidade coletiva. Que a prim eira incline-se em direção à
vento e para que não bebam muito quando cai a chuva”27. Aqui, acepção “inclusiva” do pronom e (nós = eu + vocês), e o hino,
até mesmo os rivais no amor - guardas florestais, soldados, ao invés, em direção à acepção “exclusiva” (nós = eu + eles
agrimensores - estão associados de um modo ou de outro às contra vocês: guerras, inimigos, glória...), é o toque final de
estruturas repressivas do poder. suas oposições simbólicas.
No conflito entre “fidelidade local” e “fidelidade nacional” Em sua hostilidade contra a centralização estatal, as histórias
que acompanhou a formação dos estados-nação europeus28, de vila distinguem-se nitidam ente do romance de província,
a D o rflite ra tu r perfila-se com as mais antigas, com as me com o qual são freqüentemente confundidas, e se assemelham
nores “pátrias”, que não vêem de bom grado a própria sub à narrativa regional, como é de resto evidente em Auerbach,
missão à Alemanha no futuro. É o dissídio, m uito alemão, e depois em Hardy. “A região []...]] define por si mesma os
entre H e im a t e Vaterland: o apego aos ritos coletivos tran s parâm etros do próprio significado e da própria identidade”,
mitidos de geração a geração, e m uito difuso em Auerbach escreve Ian Duncan, “enquanto a província é definida por sua
(mas também em M itford). A nossa vila, a nossa sociedade (as diferença (Ma capital)]”30. Exatamente. Vila e região foram
prim eiras palavras de Cranford, de Elizabeth Gaskell. Um por longo tempo, e são ainda em parte, possíveis p á tria s a l
livro cuja última palavra é “nós”). “T er o direito de dizer: tern a tiva s em relação ao estado-nação; a província marca, ao
nós!”, exclama, por sua vez, M itford em A co u n try cricket contrário, a capitulação da realidade local à cidade capital. A
m atch (Uma partida de críquete no campo). Com efeito, se idéia de Emma Bovary, de que a vida é “quelque chose de subli
guindo a fortuna deste pronome na cultura oitocentista, as me” em Paris (ou em Madri, ou em Moscou), e um deserto al-
duas formas que se separam de todas as outras são as histó gures31. Como as antigas provinciae, subordinadas ao domínio
rias de vila e os hinos nacionais29: as duas formas rivais da
ra” (15),"inimigo"e"natureza"(13), enquanto "Deus" chega a apenas 12 vezes. É
27 Depois, mais ameaçadoramente:"Vocês querem tirar-nos absolutamente tudo, também significativo que os três hinos que precedem no tempo a Marselhesa
mas saibam que existe uma coisa que não permitiremos que nos seja tirada". - Guilherme de Nassau, holandês; Deus salve a rainha, inglês; e Rei cristão, dina
Levantando o machado e rangendo os dentes, continuou: "Mesmo que tives marquês - se refiram todos os três à figura do soberano e não mostrem ne
se que arrebentar com este machado toda porta que existe entre mim e o rei, nhum interesse pela primeira pessoa plural (à exceção de Deus salve a Rainha,
não permitirei jamais que ele me seja arrancado. É nosso direito andar com o que a usa, porém, somente em forma subordinada:"que Deus salve-nos todos",
machado desde o início dos tempos...". "que reine por longo tempo sobre nós" "que defenda nossas leis"). A diferença
entre o antigo fundamento dinástico da identidade nacional e aquele coletivo
28 C. Tilly. Coercion, capital, and european States. Cambridge-Oxford: Blackwell,
do nacionalismo moderno emerge claramente deste detalhe gramatical.
1990, p. 107.
30 I. Duncan. "The provincial or regional novel". In: P. Brantlinger e W. Thesing
29 De 28 hinos europeus que pude verificar, 22 estabelecem um campo semân
(org.). A companion to the Victorian novel. Oxford: Blackwell, 2003.
tico significativo em torno do pronome de primeira pessoa plural, a partir, na
turalmente, da primeira palavra - Allons - do maior de todos. Nada parece ser 31 Em relação ao resto da Europa, a assimetria entre província e capital é muito
tão essencial para um hino nacional (europeu) do que este signo gramatical menos marcada na Inglaterra, onde Londres (que, porém, era o centro
de identidade coletiva. Até mesmo o nome do país é menos mencionado (20 financeiro do planeta) não gozou jam ais do status mítico das outras capitais
vezes), e da mesma forma o campo semântico de"glória"(19),"passado"e"guer- européias. A razão está provavelmente no melhor conceito de si mesmas das
90 Franco Moretti Mapas 91
VII.
os mapas constituam já em si mesmos uma explicação, mas, os jovens protagonistas viviam (quase) todos de um mesmo
pelo menos, nos oferece um modelo do universo narrativo lado do Sena, e suas amantes do lado oposto (ou no mundo à
que reordena, de modo não óbvio, as componentes e destas parte de Faubourg Saint-Germain). Paris como diagrama-, eis
pode fazer em ergir os p a tte rn ocultos. o que me impressionou naquele momento. Paris como matriz
de relações, não como sistema de lugares específicos. Enten-
E dos p a tte rn foi exatamente do que falei neste capítulo e em damo-no, não é que não percebesse que o espaço dos homens
precedentes trabalhos de geografia literária. G eografia literá era o Q u a rtier L a tin , e o das mulheres, a meia-lua que ia de
ria? Em uma inteligente e generosa crítica ao A tla s do ro m a n Fauborg Saint-Germain a Chaussée d’Antin (o “favo cheio de
ce europeu, Cláudio Cerreti expressou suas dúvidas em relação mel” desejado ardentem ente por Rastignac ao final de O p a i
a isto. Concentrar-se sobre os p a ttern , escreve, significa redu G oriot), mas isto me interessava muito menos. Estas localida
zir o espaço à mera “extensão”, onde “os objetos analisados des específicas pareciam-me uma premissa da pesquisa, mais
o são prevalentemente em term os de posições recíprocas e do que o seu resultado. Os lugares em si e p o r si pareciam-me,
de distâncias £...)]: os fatos observados são próximos ou são em suma, muito menos significativos do que as relações que o
distantes entre eles ou a respeito de alguma outra coisa, são m apa/diagram a tinha trazido à luz.
associados de um certo modo”32. Isto, porém, não é geografia,
continua Cerreti, mas, se for o caso, geom etria. E as figuras As relações entre os espaços como mais significativas do que
do A tlas, por sua vez, não são exatamente mapas, mas, sim, os espaços em si e para si... Mas, para a geografia, os espaços
diagramas. Os diagramas assemelham-se a mapas, sim, por em si e para si são significativos. Porque a geografia não
que no livro eu os obriguei “a um plano cartográfico”. Mas trata só da “extensão” cartesiana do espaço, mas também,
a verdadeira natureza deles emerge no momento da análise, e talvez sobretudo, de sua “intensidade” (ainda Cerreti): “a
quando minimizo, tranquilamente, as “qualidades” específi estratificação de qualidades intrinsecam ente diferentes e de
cas dos vários lugares, para concentrar-me, ao invés, sobre fenômenos heterogêneos”. O Q uartier Latin enquanto Q u a rtier
suas relações recíprocas. Que é, precisamente, o modo justo L a tin , em suma, e não só em sua oposição à Chaussée d’Antin.
de analisar um diagrama, mas não uma carta geográfica. Não há dúvida de que C erreti tem razão, e o motivo pelo
qual eu continuava a “esquecer” a geografia pela geometria
Um exemplo. A figura 22, reproduzida do A tla s do rom ance eu era, em primeiro lugar, a ignorância: para escrever o A tla s
ropeu, m ostra as habitações dos protagonistas dos romances eu tinha estudado a linguagem da cartografia, mas a tinha
parisienses de Balzac (e Flaubert), e aquelas dos seus objetos aprendido somente até certo ponto, e a coisa se percebe.
de desejo. Ora, eu me lembro perfeitamente da pequena epi- Todavia, por trás dos erros ditados pela ignorância existia
fania que tive ao trabalhar esse mapa: foi quando percebi que também um elemento de escolha, e, quem sabe, talvez até de
boa escolha: se o A tla s é cheio de diagramas - mas, de resto,
32 C. Cerreti. "In margine a um libro di Franco Moretti. Lo spazio geográfico e Ia o é também este capítulo, onde decidi não sobrepor nem
letteratura". In: Bolletíno delia Societâ Geográfica Italiana, 1998, n. I, p. 141 -48.
94 Franco Moretti Mapas 95
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Martinon Fréderic
Bianchon
Lucien 2 Rastignac
33 A geometria significa mais do que a geografia: mas raramente significa sozi ★ Objetos de desejo
nha. Neste sentido, a escolha da narrativa de vila como objeto dessas refle
xões metodológicas corre o risco de ser, talvez, um pouco despropositada,
visto que o espaço isotrópico que a caracteriza tende a exagerar o papel da
Figura 22. Os protagonistas do romance parisiense e os seus objetos
geometria em detrimento da geografia: coisa de que me dei conta só depois de
uma série de trocas de correspondência com Cláudio Cerreti e Jacques Lévy de desejo.
(aos quais agradeço de coração, e que, bem entendido, não têm nenhuma
responsabilidade pelas teses aqui expressas). Mais do que aos mapas de Our F ic a n d o s o z in h o , R a s ti g n a c c h e g a a t é a p a r t e m a is e le v a d a d o c e m ité r io e v ê P a r i s e s te n d id a a o s
village, então, os mapas literários assemelhar-se-ão, normalmente, àqueles
seu s p é s a o lo n g o d a s m a r g e n s d o S e n a . A q u i e a c o lá , a lg u m a s lu z e s c o m e ç a v a m a a cen d er-se . O seu
dos romances parisienses da figura 22, onde um pattern geométrico é bem re
o lh a r f i x o u - s e a v id a m e n te s o b re a q u e le e sp a ç o q u e se e n c o n tr a e n tr e a c o lu n a d a P l a c e V en d ô m e e
conhecível, mas é também distorcido em relação à específica geografia social
a c ú p u la d o s I n v a lid e s : a l i e s ta v a a q u e le m u n d o p le n o d e f a s c í n i o q u e ele h a v ia q u e r id o co n q u ista r.
de Paris - como é particularmente evidente para aqueles três personagens
O lh o u a q u e la c o lm é ia z u m b in d o c o m u m o lh a r q u e p r e s s e n tia a e sp o lia ç ã o , c o m o se j á s e n tisse em
que partem do lado oposto do Sena com respeito a todos os outros. (Para Du
Tillet e Popinot, a razão é simples: os dois pertencem ao espaço do comércio, seu s lá b io s o d o c e d a q u e le m el. E d is s e c o m o u m a to d e d e sa fio : “A n ó s d o is , a g o r a ! ’’.
antes de que ao mundo intelectual do Quartier Latin; para Wenceslas, não E c o m o p r i m e i r o a to d e seu d e s a f io à s o c ie d a d e , R a s ti g n a c f o i a o j a n t a r d e M a d a m e d e N u c in g e n .
saberia realmente que explicação sugerir.) H onohé de Bai./.ac. O p a i G o rio t.
96 Franco Moretti Mapas 97
V.
O condado vizinho
Os incendiários
IX.
2 milhas
• !• II feito por Moule em 1837, e reproduzido na figura 13, mostrava
o tipo de geografia social que se harm oniza com a (moderna)
Vila
forma do idílio: bosques, rios, grandes casas de eainpo, poucas
cidades (e 15 anos antes de 1837, quando M itford começa a
F ig u ra 26. M a ry M itford: q u ad ro sin tético dos volum es I, III e V escrever, a ferrovia, naturalm ente, não existe). A figura 27
de Our village. reproduz um outro mapa de Moule, o Cheshire dessa vez,
e Knutsford, perto do centro da imagem, é a “Cranford” em
N o â m b ito d a m o r f b b g ia , a a t i v i d a d e e s s e n c ia l c o n s is te f r e q u e n te m e n te e m \o n f r o n t a r e n tr e s t que, em 1853, Elisabeth Gaskell ambientou a sua reescritura
f o r m a s que, d e a lg u m k m a n e ir a , a s s e m e lh a m -s e , d o q u e e m d e f in i - la s c o m o tc L to s c a so s is o la d o s;
de Our village. Neste caso, o mapa de Moule precede o texto
e p o d e ta m b é m a c o n te c e r q u e a d e fo r m a ç ã o d e u m a f i g u r a c o m p le x a s eja u m f e n ô m e n o d e f á c i l
c o m p re e n s ã o , m e s m o q u e a f i g u r a e m s i e p e r s i p e r m a n e ç a d i f í c i l d e s e r d e f in i d a [ . . J A c o n d iç ã o
em cerca de 15 anos, porém já lança uma sombra sobre o
e s s e n c ia l é q u e to d a a e s tr u tu r a m o d if iq u e - s e d e m o d o m a is o u m e n o s u n ifo rm e. projeto idílico de Gaskell: a urbanização aqui c muito mais
D A kcy T hom pson . Ongrowth andform. avançada. M anchester fica a somente 15 milhas de distância,
e por uma sinistra coincidência a típica country walk de
Mitford chegaria mais ou menos à Grand Junction Railway,
Mapas 105
104 franco Moroltl
F ig u ra 27. C ranford.
36 "É uma coisa bastante bizarra, mas é indispensável", continua a carta a John
Murray de 31 de maio de 1859, "para mostrar a natureza das - demasiada
mente complexas - afinidades entre os animais do passado e aqueles do pre
sente". In F. Burkhardt e S. Smith (org.). The correspondence o f Charles Darwin,
vol. VII (1858-59). Cambridge: Cambridge U.P., 1991, p. 300.
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A s s u m a m o s q u e A s e ja u m a e sp écie c o m u m , la r g a m e n te d ifu s a , e p r o p e n s a à v a r ia ç ã o , a q u a l p e r
te n c e a u m g ê n e r o d e d im e n s õ e s b a s ta n te a m p lo . O p e q u e n o le q u e d e lin h a s tr a c e ja d a s q u e d iv e r g e m
a p a r t i r d e A r e p r e s e n ta r ia m a s v a r ia ç õ e s e n tr e o s seu s d e sc e n d e n te s f . . . j S ó a s v a r ia ç õ e s q u e s ã o d e
q u a lq u e r m o d o v a n ta jo s a s s e r ã o p r e s e r v a d a s , ou seja , “s e le c io n a d a s ”. E a q u i a v a n ta g e m o c a s io
O diagram a incluído nos ajudará a com preender este ponto algo morfoespaço - o espaço-das-formas: um conceito im portante
enigm ático...1'*. nas páginas que seguem - em contínua expansão. De res
to, é exatamente este incessante afastar-se das formas que
Diagrama, de novo. Depois dos diagramas quantitativos do confere às árvores morfológicas a sua força intuitiva. 'Uma
primeiro capítulo, e dos espaciais do segundo, as árvores evo árvore pode ser vista como a sim plificação visu a l de um a m a tr iz
lutivas constituem d iagram as morfológicos, em que se estabe de d istâ n cia s”, escrevem Cavalli-Sforza, Menozzi e Piazza no
lece uma correlação sistemática entre a forma e a história. Ao prelúdio metodológico à S to ria e geo g ra fia dei g e n i u m a n i (His
contrário dos estudos literários —em que as teorias da forma tória e geografia dos genes humanos); e a figura 29, em sua
não têm muito interesse pela história, e a pesquisa histórica apresentação espelhada de bifurcações genéticas, à esquerda,
não tem, de sua parte, interesse algum pela forma - , na teoria e lingüísticas, à direita (em um “paralelismo 'jju e j é notável,
da evolução a análise morfológica e a reconstrução histórica mas não perfeito”, como é dito com admirável apatia)41, de
são, de fato, as duas dim ensões de um a m esm a árvore-, onde o m onstra à perfeição aquilo que entendem.
eixo vertical acentua, de baixo para cima, o regular transcor
rer do tempo (a cada intervalo, escreve Darwin, “um milhar Mas se as línguas tornam-se aquilo que são afastando-se umas
de gerações”), enquanto o eixo horizontal mede, por sua vez, das outras, por que não também com as formas literárias?
a consistência da diversificação morfológica, que conduzirá,
com o tempo, a “variações nitidamente distintas”, ou a espé
cies completamente novas.
40 "O sentido do famoso diagrama de Darwin foi quase sempre subentendido", 41 L. L. Cavalli-Sforza, P. Menozzi e A. Piazza. Storia e geografia dei geni umani.
observa Stephen Jay Gould: "Darwin não construiu essa figura só para ilustrar Milano: Adelphi, 1997, p. 191-92 (grifo meu).
116 Franco Moretti
Arvores 117
SUPERFILO NOSTRATICO
Europeu -------- Indo-europeu
Sandiniano --------
I n d i a n o ------------
c Sudeste da índia - Oravidian .
Lapp --------------
Som oyed------------ Uralic-yugakin
Mongoliano----------
Tibetano ------------ - • Sino-tibetano
Coreano -------------
A Japonês -------- - Altaic
Ainu — ------------ I.
Turco do norte
EE Esquimó •---------
Chuckchi ------ —
Esquimó-aleut
Chuckch -Kamachatkan
Sui Ameríndio
Centro Ameríndio — Ameríndio
Norte Ameríndio
Noroeste Ameríndio N a -d e n e
Em A origem das espécies, divergência de caracteres, seleção na
Chinês do sui - ------— Sino-tibetano tural e extinção são como as três Parcas da história natural:
Mon khmer — Austroasiático
Tailandês -------- Daic — ---- na medida em que as variações divergem umas das outras, a
Indonésio —
Austríaco seleção intervém e condena à extinção a grande maioria. E
Malaio —
Fiiipino — Austronesiano
Polinésio —
visto que também em literatura os textos que sobrevivem no
EE Micronésio
Melanésio
—
—
tempo são poucos, aliás, pouquíssimos, em um seminário de
Guineano ---- Indo-pacífico alguns anos atrás decidi verificar se os três fatores individua
Australiano ---- Austraííano
lizados por Darvvin conseguiam explicar também a dizimação
das obras literárias. Pegamos umas 20 histórias escritas nos
Figura 29. Árvores literárias, árvores lingüísticas. primeiros anos do gênero policial inglês (a metade de Conan
Doyle, a outra metade de outros autores), individuamos os in
P ° r q u e e n tr e a á r v o r e lin g u ís tic a e a á r v o r e g e n é tic a e x is te u m a e str e ita s em e lh a n ç a 'i £ ..J A co r dícios como o caráter morfológico potencialmente mais revela
rela ç ã o n ã o é d e v i d a a um efe ito d o s g e n e s sobre a s lín g u a s; p e lo c o n tr á r io , é p r o v á v e l u m a in flu ê n
dor e acompanhamos as metamorfoses por meio das várias bi
c ia in v e rsa , is to é, q u e b a r r e ir a s lin g u ís tic a s reforcem o is o la m e n to g e n é tic o e n tr e g r u p o s q u e f a l a m
h n g u a s d ife r e n te s A e x p lic a ç ã o d o p a r a le lis m o e n tr e a á r v o r e g e n é tic a e a á r v o r e lin g u ís tic a
furcações, das quais surgiu a (modesta) árvore da figura 30'-.
d e v e s e r p r o c u r a d a n o efe ito c o m u m d e f a t o r e s qu e f . J c a u s a m a sep a r a ç ã o d e d o is g r u p o s , o s q u a is
p e rm a n e c e m p a r a a l m e n t e ou c o m p le ta m e n te is o la d o s u m d o o u tro , a p ó s a f i x a ç ã o e a m ig r a ç ã o d e 42 Nos parágrafos que seguem faço um resumo e atualizo o ensaio "The
u m a o u a m b a s a s p a r t e s em d ir e ç ã o a lu g a r e s d ife ren te s. O is o la m e n to recíp ro co d e te r m in a ta n to a Slaughterhouse of Líterature", in Modem Language Quarterly, março de 2000.
d ife r e n c ia ç ã o g e n é tic a q u a n to a lin g u ís tic a .
U m e s t u d o e m v e r m e lh o (Doyle)
(Doyle)
0 s o lte ir ã o n o b r e e o u t r a s h is t ó r ia s
Aqui, desde a primeira bifurcação, na margem inferior da ár T h e B o s c o m b e V a lle y m y s t e r y (Doyle)
A c a s e o f id e n t it y (Doyle)
T h e a d v e n tu r e o f t h e s p e c k le d b a n d (Doyle)
T h e Tive o r a n g e p ip s (Doyle)
vore (se os indícios estão presentes ou não),lSuas coisas ficam T h e a d v e n tu r e o f th e b lu e c a r b u n c le (Doyle)
p r o p o s iç ã o a c e s s ó r ia [ . . . ] d a d a d e h b e r a d a m e n te d e m o d o v e lo z .
V ik t o r S k lo v sk u . T e o r ia d e lia .p ro sa .
120 Franco Moretti Árvores 121
IIolm.es, coisa que, ao contrário, nós não esperávamos absolu de qualquer dúvida, a superioridade técnica de Doyle - acres
tamente. E quando, depois, se chega ^últim a bifurcação —os centaram dois novos ramos à árvore do gênero policial (fig.
indícios devem perm itir ao leitor encontrar por si mesmo a 31), tornando-a mais complicada e surpreendente. Quanto
solução —, as coisas tornam -se ainda mais surpreendentes: mais se olhava para o arquivo dos livros desaparecidos, mais
mesmo sendo generosos, esta forma de apresentar os indícios “darwiniano” tornava-se o morfoespaço literário.
encontra-se, de fato, em apenas quatro de 12 A ven tu ra s —e
55R5SSM86S
sendo severos, em nenhuma. Neste diagrama, onde a espessura da linha indica o número
de narrativas publicadas de ano em ano, os dois novos ra
Por que esta incerteza final por parte de Conan DoyleP Ten mos são respectivamente o segundo (“indícios evocados”) e o
tei explicar isto em Slaughterhouse o f literature e não repetirei terceiro (“sintomas”), a partir da esquerda. O primeiro deles
o raciocínio aqui. Mas me deterei, ao contrário, sobre uma compreende as histórias em que os indícios, mesmo estan
objeção levantada durante o seminário em relação à figura do ausentes, são, exatamente, evocados (ou, talvez, invoca
30. Esta árvore, observou um dos participantes, coloca a hi dos: “Se tivéssemos ao menos um indício!”; “Por acaso, você
pótese de que a sobrevivência literária explica-se em primei encontrou indíciosP”) por um dos personagens, naquilo que
ra instância com a morfologia: se ainda lemos Doyle hoje, e é, provavelmente, uma ulterior, mal-arranjada, tentativa de
os outros não, é porque Doyle é melhor do que eles no uso “contrabandear” o procedimento. No outro ramo, os indí
dos indícios (embora seja, também ele, tudo menos perfeito). cios estão, ao contrário, presentes, mas sempre e somente na
Mas por que dar tanta importância à forma, e não deter-se, forma de sintomas corpóreos, como a render homenagem à
ao invés, sobre o tato de que Doyle escrevia na Strand Ma antiga arte da semiótica médica (que, naturalmente, foi, des
gazine, que era uma revista de um certo prestígio, e os seus de o início, o modelo de Doyle: Holmes imita Bell, o famoso
rivais não? Não é verdade que a posição social conta, às vezes, clínico de Edimburgo. Ele tem sempre um doutor ao seu lado,
muito mais do que a técnicaP estuda os próprios clientes como se fossem também pacien
tes, e por aí vai).
Sim, às vezes é verdade; mas não neste caso, como desco
bri algumas semanas depois na biblioteca: no curso dos anos
1890, de fato, a Strand tinha publicado 108 narrativas poli
ciais (uma por mês, praticamente), além daquelas de Sherlo-
ck Holmes. Com tantos autores assim, que escreviam todos
na mesma revista, a idéia de que a sobrevivência de Doyle
fosse devida a uma posição de privilégio podia ser tranqui
lamente descartada; mas a coisa mais interessante era que
aquelas cento e tantas histórias —além de confirmar, para lá
122 Franco Moretti Árvores 123
Ausente Evocado Sintomas Presentes, mas Necessários, mas Visível, mas Decifrável
não necessários não visíveis indecifrável
1900
1899
1898
1897
1896
II.
1895
1894 I I
Necessários, mas Visível, mas Decifrável
não visíveis indecifrável
Vale também, em literatura, o princípio da divergência?
1893 Pesquisas como esta sugerem uma (cautelosa) resposta afir
Sintomas Presentes, mas
não necessários
mativa. Mas o que produz a divergência do morfoespaço li
1892 terário? Os textos? Francamente, não diria isto. Os textos
distribuem-se nos vários ramos da árvore, é verdade, mas os
“nós” dos próprios ramos não são definidos pelos textos, mas
1891
Ausente Evocado pelos indícios (as suas ausência, presença, visibilidade etc.):
por alguma coisa que é m u ito m enor do que qualquer texto
—uma frase, uma metáfora (“A banda! A banda pintada!”), às
vezes (“Só consegui, na rapidez, entender um pedaço da coi
F ig u ra 31. O s indícios e a gênese da n a rra tiv a policial: S tranc sa”) nem mesmo uma palavra inteira. E, por outro lado, esta
M agazine, 1890-99. rede de microdiferenças acaba por dar vida a um conjunto
que é m uito m a io r do que qualquer texto que se queira, e que,
no nosso caso, é, naturalmente, a árvore —vale dizer: o gêne
ro —da narrativa policial.
V.
O muito pequeno e o muito grande: são estas as forças que dão convenção afirmou-se ainda como “central”, o espaço-
a história literária a sua forma característica. Os procedimen tos das-formas está, normalmente, aberto aos mais diversos
e os gêneros; não os textos.JXs textos, bem entendido, sao os experimentos. E, depois, existe a pressão da concorrência: os
objetos reais da literatura (na Strand você não encontra os ipdí- autores da Strand estão todos brigando pelo mesmo nicho de
cios” ou o “romance policial”, mas encontra Sherlock Holmec,:, ou mercado e o girar pelo morfoespaço deles tem, provavelmente,
Hilda. JVade, ou T he adventures o f a m an o f Science); os textos são muito a ver com o desejo de vencer a disputa de uma vez por
objetos reais, mas não são os objetos de conhecimento certos para todas; de resto, quando determinados escritores apresentam
a história e a teoria literária. Tomemos o conceito de gên ero. um “aeronauta” que (por engano) engancha um sujeito com
De regra, a crítica literária o define segundo aquilo que Er nst a âncora do balão, ou um pintor assassino e sonâmbulo que
Mayr chamou de “pensamento tipológico”43: escolhe-se um enquanto dorme pinta a face do homem que acabou de matar,
“indivíduo representativo”, um “tipo”, e baseado nele se teo riza ou uma poltrona construída de propósito para catapultar
o gênero em toda a sua complexidade. Sherlock H olm es e o poli- quem nela se sentar do outro lado da praça - bem, é claro
ciai; W 'lh e lm M eister e o romance de formação. Alguém an alisa que eles todos estão procurando a Idéia Genial que os leve
o romance de Goethe e a coisa vale como uma análise do gt ne- ao sucesso. Mas é também claro, ai de mim, que a estão pro
ro como tal, porque para o pensamento tipológico não ex iste curando de modo desesperadamente casual, procedendo por
descontinuidade entre objeto real e objeto de conheciment y o tentativas, às cegas, exatamente como quer a random ness da
objeto real ê j ã em si um objeto d'e conhecimento. Mas quaj ido teoria evolucionista: no sentido de que aeronautas e catapultas
o objeto de conhecimento toma a forma de um a árvore, ou se-ja, não demonstram nenhuma capacidade de previsão —nenhuma
de um abstrato “espectro de variações” (ainda Mayr), en ão, idéia, digamos a verdade - daquilo que poderia favorecer a
claramente, as coisas mudam: a sua estrutura não tem, de fito, sobrevivência literária. E a divergência torna-se assim, como
mais nada em comum com qualquer dos objetos reais de que em Darwin, inseparável da extinção.
ele é composto —e não pode, então, “emergir” de nenhum deles
tomados individualmente. E, assim, também Escândalo na Bo Existem muitos modos de estar vivo, escreve Richard
êmia torna-se só uma entre tantás folhas da árvore do gênero Dawkins em O relojoeiro cego, mas muitos mais modos de
policial: uma delícia, naturalmente, mas não mais capaz de re estar morto, e as figuras 30 e 31, com todos aqueles textos
presentar o gênero no seu conjunto. que foram esquecidos, lhe dão total razão. Trabalhar sobre
esses livros dá, freqüentemente, a sensação de que se está em
Um espectro de variações. Bastante amplo, nas figuras 3 p e um laboratório de patologia literária (e o prazer da pesquisa,
31, porque, quando um gênero está iniciando, e nenhuma conseqüentemente, também muda: mais do que belas páginas,
busca-se absurdos significativos). Mas,[ao invés de repisar
por inteiro o veredicto do mercado e, dessa forma, reforçar
43 Ver E. Mayr. Populations, species, andevalution. Cambridge: Harvard U. P„ 1 370;
Evolution and the diversity oflife. Cambridge: Harvard U. P., 1976; e Towdfi’d a o absoluto esquecimento decretado pelos leitores do final
new philosophyofbiology. Cambridge: Harvard U. P., 1988.
126 Franco Moretti Árvores 127
I
nua, m terconedada e ram ificada por produtos do trabalho hu a p r o x im a r - s e d e u m o u tr o ra m o : d e n o r m a , p o r é m , u m n ã o se u n ir á a o o u tro . A á r v o r e d a c u ltu ra
é, a o c o n tr á r io , d e f a to , u m r a m if ic a r - s e d e ss a s a s s im ila ç õ e s e a c u ltu ra ç õ e s. E s t e d ia g r a m a e sq u e -
mano”. lnterconectada e, ao mesmo tempo, ramificada; sincretis
m á tic o v i s u a l i z a t a l co n tra ste .
mo e, ao mesmo tempo, divergência: mais do que a inconciliável A i .c h k i ) L . k k o f .b k r . A n th r o p o lo g y .
“diferença de princípio” de que fala Gould, passos como estes ninguém nos deixe desviar da forma abstrata e “topológica”
(que poderiam facilmente ser multiplicados) sugerem uma coe da controvérsia: a sua substância, concretíssima, diz respeito
xistência entre convergência e divergência - talvez, quase uma ao próprio modo que imaginamos a história da cultura. Se,
espécie de divisão do trabalho. A convergência só pode reali- de fato, o seu mecanismo de base é a divergência, então, essa
zar-se sobre a base de um preexistente processo de divergência história será plena de tentativas casuais, falsos inícios e becos
e obtém, aliás, resultados tanto mais notáveis quanto mais dis sem saída; em uma árvore cujos ramos não se unem nunca de
tantes (ou seja, divergentes: bicicletas e motores de combustão novo. Além disso, uma vez que ela tenha pego uma direção,
interna) estavam os ramos que ela soube reunir. Em contra torna-se dificílimo mudar essa direção, e a cultura enrijece-se
partida, uma convergência bem-sucedidf produz, por sua vez, em uma “segunda natureza” - uma metáfora nada consola-
um novo, fortíssimo, impulso à divergência: como quando, para dora. Se, pelo contrário, o mecanismo de base constitui-se
citar um outro exemplo de Basalla, a lançadeira de W hitney a partir da convergência, a mudança será freqüente, rápida,
para trabalhar o algodão foi o ponto de partida “de uma nova deliberada, reversível: a cultura torna-se mais plástica, mais
série evolutiva [).(] composta por um grupo de produtos total controlável - mais humana, se quisermos. Mas a história hu
mente novos”. mana é realmente humana tão raram ente, que esse argum en
to não é, talvez, assim tão sólido como pode parecer.
A divergência prepara o terreno para a convergência, a qual,
por sua vez, dá início a uma nova fase de divergência: esta
parece ser a seqüência típica. E a força dos dois mecanismos
varia muito de um ponto ao outro do sistema cultural, esten
dendo-se do extrem o tecnológico, onde a convergência é par
ticularmente difusa e eficaz, até o seu oposto, a linguagem,
onde a divergência (lembrem-se da árvore genético-lingüís-
tica da figura 2 .9 ) é claramente a força que puxa; enquanto a
posição da literatura - esta estranha tecnologia-da-lingua-
gem - permanece ainda amplamente por ser definida46. E que
imagens de
corporeidade não-funcional,
i — I
por determinação não por determinação (seja ela rude <ainda ou de novo>rude' elaborada,
(por determinação
pertinente pertinente pertinente ou não), ou elaborada)
(caducidade) (historicidade),
e apresentada e apresentada e apresentada e apresentada e apresentada e apresentada sem e apresentada e apresentada e e apresentada e apresentada e apresentada
em modo em modo não como como com condescendência com expectativa com expectativa apresentada como não-recurso como como
sério sério exemplar inconveniente condescendência (no limite, com ativa passiva como recurso (no limite ameaça) sugestões sugestões ingênuas
(no limite cômico) repugnância) escolhidas
+ - + + + _ + - + -
, a ° roto- 0 venerando- 0 desgastado- o agradecido- o o mágico- o desastre - o precioso- o estéril- o prestigioso- o pretensioso-
admoestaçao grotesco regressivo realista afetivo desolado-incoerente supersticioso terrível potenciai nocivo ornamental fictício
solene
Fonte: F. Orlando. Gli oggetti desueti nelle immagini delia /efferafura.Torino: Einaudi, 1993.
136 Franco Moretti Árvores 137
“Ninguém nunca estava no lugar certo, nada era feito como se deveria
fa z e r : o tom da frase é aquele de Fanny Price, a jovem protagonis
1950
Asturias ta do livro, de quem sentimos toda a frustração e, às vezes, o quase
desprezo pelo comportamento dos próprios familiares. “Ninguém
nunca estava no lugar certo [...] E la não conseguia respeitar os seus
Woolf
Maran
Joyce pais”: os tempos verbais (no passado) e os pronomes (de terceira
Proust
pessoa) indicam a distância de uma voz narradora, ao invés da
Lawrence proximidade de quem está envolvido diretamente nos aconteci
1900
Mann mentos. Emoções, maior distanciamento: é esta a estranha M is-
Zola James
PerezGaldós Ver9a , Clarín chu n g á o estilo indireto livre. E é graças a esta sua natureza com-
/ irônico
pósita que ele conseguiu entender-se perfeitamente com aquela
// irônico outra curiosa mistura que é a socialização moderna: ao deixar à
Dostoiévski 1 voz individual as suas vibrações, mesmo que a fechando dentro
i de uma moldura impessoal e abstrata, o indireto livre encarnou,
Flaubert de fato, aquela “véritable transposition de 1’o b je c tf dans le subjectif™
1850 que está no centro do processo de socialização. E disso emergiu
uma “terceira” voz, intermediária e quase neutra, entre aquela do
personagem e aquela do narrador: a voz composta, adulta e um
tantinho conformada do indivíduo socializado, da qual as heroínas
Goethe Austen
de Austen —essas moças que falam de si mesmas em terceira pessoa,
como de fora - são exemplos verdadeiramente extraordinários51.
irônico
1800 52 C. Bally. "Lê style indirecte libre em français moderne". In: Germanisch-Ro-
Segunda pessoa / Oralidade / Coletividade Primeira pessoa / Pensamento / Indivíduo manischeMonatschrift, 1912, segunda parte, p. 603.
53 Analisei em detalhe o nexo entre indireto livre e socialização no ensaio "O sé
Esta figura reflete trabalho em andamento e, portanto, ainda é bastante experimental, especialmente culo sério". In: Novos Estudos. São Paulo: Cebrap, 2003. Não estou procurando,
no caso das literaturas não-européias e da duração diacrônlca dos vários ramos. fique entendido, sustentar que o estilo indireto livre seja usado só para re
presentar o processo de socialização (o que seria absurdo), mas que entre os
dois existe - especialmente no período formativo da técnica - uma fortíssima
t ig u ra 34. O estilo indireto livre na n a rra tiv a m oderna, 1800-2000. afinidade eletiva.
140 Franco Moretti Árvores 141
Colocado como está a meio do caminho entre social e indi prom eter a elas para ter sem elhante direito? Vais dedicar todo
vidual, o estilo indireto livre constitui um ótimo índice de o teu destino, todo o teu futuro a elas q u a n d o t e r m in a r e s o c u r so
suas tensões - que no romance europeu-ocidental do século e a rra n ja re s u m em p re g o ? Nós já ouvimos falar disso, são h is to r ia s
19 pende, de resto, muito cedo para a d oxa social, culminan d e b ic h o - p a p ã o , mas e agora? Porque é preciso fazer algum a coi
do na bêtisepequeno-burguês eternizada por Flaubert. Mas no sa agora mesmo, estás entendendo?” ]...] Fazia m uito que [(es
momento em que o indireto livre parece estar a ponto de ser sas p e rg u n tas] haviam começado a atorm entá-lo e lhe tinham
engolido pela ideologia, uma imprevista “mutação” estilística atorm entado o coração. H á m uito tem po essa m elancolia de hoje
revira a tendência. O discurso interior de Raskolnikov, escre su rg ira nele ]...] Estava claro que não era hora de tom ar-se de
ve Bakhtin, é pleno | melancolia, de ficar sofrendo passivam ente só de pensar que as
questões não tinham solução, mas de fazer algum a coisa sem falta
de palavras do outro, por ele apenas escutadas ou lidas [... E le] se e já, o mais rápido possível. Precisava decidir-se a qualquer custo,
constrói como um conjunto de réplicas vigorosas e apaixonadas fosse lá pelo que fosse, o u . . . { C r i m e e c a s li g o p ”
pelas palavras do outro ]...] Ele não analisa os fenômenos, mas fala
com eles ]...] ele se dirige a si mesmo (frequentem ente com o uso Esplêndido. A parte final do trecho, especialmente, mostra o
do tu, como se falando com um outro), procura convencer a si mes que acontece quando uma técnica “m igra” (por assim dizer)
mo, castiga a si mesmo, se desmascara, escarnece a si m esmo” . para um habitat diferente do usual: uma vez introduzido no
mundo de C rim e e castigo, cujo centro de gravidade estilístico é
Uma língua plena de “palavras do outro”, como aquela de constituído pelo dialogismo, o indireto livre é como que “atra
Emma Bovary, ou de Bouvard: mas onde essas palavras não ído” para a sua órbita e torna-se assim muito mais intenso e
são mais repercutidas passivamente e, sim, ao contrário, pro dramático (“Estava claro que não era hora de tomar-se de me
vocam réplicas vigorosas e apaixonadas. Ou, para citar o passo lancolia, de ficar sofrendo passivamente...”) do que na tradição
escolhido pelo próprio Bakhtin para ilustrar a sua tese (trata-se precedente. Torna-se, digamos, quase dialógico. Quase. Porque
da reação de Raskolnikov ao anúncio do matrimônio da irmã): o fato é que o indireto livre exprime sempre uma perspectiva
narrativa de algum modo completa, acabada: por quanto “dialó
gico” possa tornar-se, não conseguirá nunca revelar o sentido
“N ão vai acontecer? E que tu vais fazer para que isso não acon de uma discussão ainda aberta em direção a o fu tu ro como aquelas
teça? Vais proibir? Com que direito? Por sua vez, o que podes frases “com o tu, como dirigidas a um outro” que se encontram
no início do trecho —e que são, naturalmente, com a permissão
de Bakhtin, um claríssimo exemplo de discurso direto.5
54 M. Bakhtin. Dostoevskij:poéticae stilistica.Tormo: Einaudi, 2002, p. 312. A inter
pretação dialógica do estilo indireto livre delineada por Bakhtin foi desenvol
vida porVolosinov nos capítulos sobre o "discurso quase-direto"de Marxismo
e filosofia dei linguaggio. Bari: Dédalo libri, 1976, p. 234-63. Ver também G.
Morson e C. Emerson: MikhailBakhtin: creation o fa prosaic. Stanford: Stanford 55 Usei a tradução para o português do Brasil de Paulo Bezerra de Crime e castigo.
U. P., 1990, especialmente as páginas 343-44. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 60-1 (N. doT.).
142 Franco Moretti Árvores 143
Em todos esses casos, a ideologia que preside a coesão social Esses m iseráveis ali eram jogados como ração p ara as m áqui
é, ao mesmo tempo, mais invasiva do que na Europa Oci nas, eram am ontoados como anim ais nos bairros operários, que
dental e imensamente mais débil: fundada como está sobre as grandes com panhias pouco a pouco absorviam , legalizando a
a oralidade, mais do que sobre a interiorização inconsciente, escravidão, ameaçando de arreg im en tar todos os trabalhadores
ela exige que os seus porta-vozes (conterrâneos, confessores, da cidade, milhões de braços, para fazer a riqueza de mil vadios.
chefes de tribo) estejam sempre ali, fisicamente presentes, M as o m inerador não era mais o ignorante de antigam ente, o
prontos a reafirmar os seus valores em alta voz. E, olhan anim al que se m anda m o rrer nas vísceras da terra. Do fundo das
do bem, nem mesmo isto é ^suficiente. Porque os princípios minas um exército em purrava; uma seara de cidadãos-sem entes
desta cultura hierárquico-comunitária de longa duração são brotando e que fendería a te rra em um dia de m uito sol. E então
regularm ente desautorizados pelo individualismo possessivo se veria... ( G e r m i n a l , I V )
—econômico e erótico —que se afirma irresistível dentro do
entrecho. Como uma grande mancha de óleo na superfície do Aqui, todos os elementos vistos até agora retornam . Há a
mar, o estilo indireto livre encontra-se, dessa forma, a flutuar centelha emotiva (ces misérables...) que dá à técnica a força de
sobre uma história que ele julga e condena rumorosamente, empreender vôo. Há a m istura de personagem e narrador
mas que não consegue, de nenhum modo, dirigir - e, frequen (com a metáfora do exército vingativo que volta de modo
temente, nem mesmo entender. memorável na última frase do romance), como também a
identificação entre o indivíduo e a classe com o “nós” do dis
Uma outra voz coletiva, mas de natureza diferente, ressoa curso direto que se torna terceira pessoa plural. E há, como
naqueles mesmos anos no Germinal, de Zola: a voz da clas fundamento de tudo, a metamorfose da língua popular em
se operária. Etienne Lantier, na grande reunião noturna de “francês”. Eugen Weber:
Plan-des-Dames:
O francês, que privilegia os term os abstratos em detrim ento dos
term os concretos refina a língua elim inando todos aqueles
detalhes tão im portantes na língua popular e o rico florescer de
antes sobre os penhascos. Com o pretexto de pescar, vão e roubam toda a
roupa estendida no varal, se a oportunidade aparecia. À pobre Nunziata ti term os descritivos típicos do p a t o i s . Prefere in terp re tar a realida
nham roubado, desse jeito, um lençol novo. Pobre moça! Roubar logo a ela, de mais do que descrevê-la; exprim ir idéias, não apenas rep o rtar
que trabalhava para dar de comer aos irmãozinhos que seu pai tinha deixado
em suas costas quando a deixou para ir procurar dinheiro em Alexandria do fatos. Como conscqüência, induz quem o usa a dar menos im
Egito!"Giovanni Verga. OsMalavoglia. portância ao “o que” de fatos e eventos, e mais im portância ao
"É um bom homem, o sol, e muito justo! Brilha para todos o homens, dos mais
“porquê”.’757
potentes aos mais humildes. Não diferencia rico e pobre, ou branco e negro.
Qualquer que seja a cor de suas peles, ou o volume de suas riquezas, todos os
homens são seus filhos. Ama a todos do mesmo jeito; ajuda nas plantações; afu
genta, para dar a todos alegria, o frio e a neve insistentes; reabsorve a chuva;
e afugenta a sombra. Ah! A sombra. Desapiedado, incontido, o sol a persegue 57 E. Weber. Peasants into frenchmen: the modernization ofrural France 1870-1914.
onde quer que ela esteja. É a coisa que mais odeia."René Maran. Batouala. Stanford: Stanford UP, 1976, p. 93.
146 Franco Moretti Árvores 147
B o u v a rd e Pécuchet deixa como herança a Ulisses. Mas Joyce No romance de Roa Bastos — assim como em O recurso do
aprende logo a pôr de ponta-cabeça suas funções, colocando- método, de Carpentier, e em O g en era l em seu labirinto, de G ar
as a serviço das acrobacias centrífugas da mente de Leopold cia M árquez, os outros dois romances de ditador saídos em
Bloom. E, ao fazer isto, Joyce segue a mesma estrada já per 1974, o ano sucessivo ao putsch militar contra Allende —o
corrida por Dostoiévski em C rim e e castigo : da mesma forma “Eu” de E l Suprem o é muito superior, e o indireto livre per
cjue, nas reflexões de Raskolnikov, a terceira pessoa do indire manece inevitavelmente circunscrito a um papel periférico.
to livre terminava, como regra, por ceder o passo à segunda Com M ario Vargas Llosa, porém, a técnica desloca-se para
pessoa do dialogismo, em pU lisses ela resvala - ou talvez fosse o centro do quadro e libera todo o seu potencial polêmico.
mais exato dizer precipita-se - para a p rim e ira pessoa (e para Apresentando-nos a mente do ditador sem o filtro de um
o tempo presente) do stream o f consciousness, com a sua galáxia ponto de vista julgador” —para repetir a nítida definição do
de associações particulares e, aliás, euforicamente idiossin indireto livre dada por Ann BanfieldM - Vargas Llosa pega o
cráticas58*. pútrido substrato de que se alimenta o terror político e con
fere a ele uma obviedade inesquecível:
Ultima bifurcação, uns 30 anos atrás: os “romances de dita
dor” latino-americanos. Aqui, a alternância gramatical per Os E stados Unidos tinham tido um amigo mais sincero do que
manece aquela entre terceira e primeira pessoa, mas a direção ele nos últim os 31 anos? Que governo tinha apoiado mais os
está de cabeça para baixo em relação a Ulisses-, ao invés de E stados U nidos na ONU? Que governo tinha sido o prim eiro
uma nari ação em terceira pessoa que modula rapidamente a declarar gu erra à A lem anha e ao Japão? Que governo tinha
em direção do eu, o ditador ambiciona objetivar a própria lubrificado com mais dólares representantes, senadores, governa
(e patológica) interioridade nas poses monumentais de uma dores, sindicatos, advogados e jo rn alistas dos E stados Unidos? A
pessoa publica. A minha dinastia começa e termina em mim, recom pensa: as sanções da OEA, para agradar aquele n e g r ito do
em EU -ELE , escreve Augusto Roa Bastos em E u o supremo-, Rômulo B etancourt e continuar a sugar o petróleo venezuelano.
e quase ao fim do livro: Se Johnny Abbes tivesse feito m elhor as coisas e a bomba tivesse
decapitado aquele viado do Rômulo, não e x is tir ía m sanções e os
C"0 ELE, ereto, com a sua norm al vivacidade, a soberana potên- g r in g o s escrotos não rom periam com a soberania, a dem ocracia e
i ia do prim eiro dia. Uma mão atrás, e a outra na gola do casaco os direitos humanos. (A f e s t a d o bode)
58 "Olhou seus sapatos, que tinha engraxado e dado brilho. Ela tinha sobrevivido a
ele. Perdeu o marido. Mais morto para ela do que para mim. Um deve sobreviver
ao outro. Dizem os sábios. No mundo existem mais mulheres do que homens.
Dar a eia os pêsames. A sua terrível perda. Espero que o siga logo. Só para viúvas 59 A. Banfield. Unspeakable sentences. Boston: Routledge and Kegan Paul, 1982,
hindus. Casaria com um outro. Ele? Não. Mas, quem sabe."James Joyce. Ulisses. p. 97.
150 Franco Moretti Árvores 151
Prólogo
colocar minhas reflexões em ordem e de contribuir para uma o lugar com carne. 22 Depois, da costela tirada do homem, o Senhor
discussão transversal de disciplinas diferentes. Ampara-me a Deus formou a mulher e apresentou-a ao homem.
convicção de que a literatura pode constituir-se em sistema
não vinculado aos instrum entos específicos que ela mesma Depreende-se da mensagem que o modo mais primitivo de pos
criou e está, por isso, em condição de metabolizar metáforas suir um objeto é dar a ele um nome, o mais rico de informações
e ambiguidades pertinentes a mais de um sistema de conheci possível: sem informação não se possui a vida. Entretanto, para
mento. Acrescento que o sistema de conhecimento científico, fazer com que o objeto entre em relação conosco e coopere, em
em particular o de biologia molecular m oderna que está na suma, para fazer o objeto “conviver”, não é suficiente dar a ele
base da evolução das estruturas biológicas, é, paradoxalmen um nome. À informação é preciso associar um mecanismo de
te, o mais apropriado para em prestar tal função metabolizan- “transcrição” (a costela) que a transmita de um organismo a
te à escritura. Basta pensar que em linguagem técnica fala-se outro, oxalá inserindo neste algum mínimo elemento de trans
comumente de “tradução” e “transcrição” do DNA. Enfim, formação. Entre os elementos de transformação ofertados pela
me perdoem a escassez de citações bibliográficas: me limito natureza, o mecanismo da recombinação sexual (a troca de seg
àquelas essenciais e de mais fácil leitura. mentos cromossômicos entre homem e mulher) é um dos mais
eficazes. A metáfora literária da costela (não importa o quanto
seja consciente), ela mesma transcrição, introduz do modo mais
elegante o conceito de transmissão da informação. Hoje se sabe
A evolução biológica em uma metáfora literária que as seqüências de DNA são cadeias de moléculas químicas,
cuja função é conter as informações que regulam a vida de cada
2. Na base da evolução biológica está a estrutura química do célula e transmiti-las, de uma geração à outra, com mudanças
DNA, que é a memória biológica de todos nós: humanos e mínimas, mas evolutivamente muito importantes.
não humanos. Cito Gênesis ( 2 :1 8 - 2 2 ) :
3. Para que a informação possa ser transm itida do modo mais
18 E o Senhor Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só. Vou eficaz (sem erros), é indispensável um código. Código lingüís-
fazer-lhe uma auxiliar que lhe corresponda”. 19 Então o Senhor tico e código de DNA, nomes e genes, apresentam algumas
Deus formou da terra todos os animais selvagens e todas as aves analogias com as regras de transmissão: mutação, seleção e
do céu, e apresentou-os ao homem para ver como os chamaria; cada derivação são mecanismos comuns. Ambos os códigos são
ser vivo tcria o nome que o homem lhe desse. 20 E o homem deu ambíguos, redundantes e degenerados. A presença de muitos
nome a todos os animais domésticos, a todas as aves do céu e a to nomes, de muitas informações torna necessária a sua discri
dos os animais selvagens, mas não encontrou uma auxiliar que lhe minação. É preciso, em outras palavras, um mecanismo que
correspondesse. 2 1 Então o Senhor Deus fez vir sobre o homem um garanta uma variabilidade suficiente, mas não limitada dos
profundo sono, e ele adormeceu. Tirou-lhe uma das costelas e fechou significados. É útil saber que no nosso genoma existe cerca
160 Alberto Piazza A evolução vista de perto 161
de 30-50 mil genes (isto é, unidades de informação), número deve ser transcrita fielmente, sem erros. M uita energia de
que equivale ao dos vocábulos existentes em um dicionário nossas células é destinada a reparar eventuais erros de trans
de italiano. crição: só uma mínima parte desses erros são erros “felizes”,
no sentido de que possam favorecer e não prejudicar o nosso
4. A informação codificada se organiza dando-se uma estru organismo e, portanto, lãtu senso, a nossa especie. E ntretan
tura. A estrutura evolui no tempo: o texto pede um contexto. to, a presença do contexto induziu no homem —um animal
A escrita pede o texto do contexto, constituindo dele (do con tipicamente cultural - uma evolução dos circuitos nervosos
texto) a memória. No caso do DNA, o alfabeto já se conhece, que estamos descobrindo com maravilhosa e atônita surpre
o texto também (é uma descoberta dos últimos anos e tem sa. A técnica da ressonância m agnética funcional nos permite
um nome: sequência do genoma humano), mas o significado visualizar a ativação dos circuitos ceiebrais que presidem os
é desconhecido, e constitui o desafio dos próximos anos (os vários percursos cognitivos. Aqui vou acenar a somente um
anos do “pós-genoma”, em metáfora literária o “pós-moder- fascinante campo de pesquisa sobre o nosso sistema de leitu
no”). A escrita no momento não é, portanto, reproduzível, ra. Se a um indivíduo se pede para ler uma palavra, e depois,
mas é dotada de tfma memória muito longa e precisa (o, assim ao mesmo indivíduo, em um momento em que ele não podia
chamado, “relógio molecular”). recordar a palavra em questão, essa mesma palavra e lida,
o confronto das duas imagens emitidas com a ressonância
No caso do texto literário, a sua função muda com o tempo, magnética revela que a ativação dos circuitos cerebrais diz
constituindo freqüentemente a memória do contexto mais do respeito a regiões do cérebro bem distintas'' . Sem entrai em
que de si mesmo. Ivan Illich em N ella vigna de testo, P er uma etolo- particulares sobre a anatomia funcional implicada na leitura
g ia delia lettura (1.994), discute e comenta o Didascalicon, de Ugo e sobre aquela, distinta, implicada na audição das mesmas pa
di San Vittore, teólogo e místico do século 12, escrito em torno lavras lidas, basta sublinhar ainda uma vez a importância do
de 1128. Ugo di San Vittore testemunha uma transformação da contexto: o mesmo significado é percebido por dois sistemas
velha arte da memorização do manuscrito monástico, concebido cognitivos diferentes segundo o meio com que é transm iti
para a recitação em alta voz, à arte nova do livro estruturado a do. A ambigüidade, a alusão e a redundância, freqüentemente
serviço da história. Ler equivale a recriar o tecido histórico no vilipendiadas como códigos de empobrecimento cultural, se
coração do leitor. Logo, um texto que é memória do passado e vingam reclamando percursos que não pertencem somente
que preanuncia as transformações futuras de seu contexto. ao campo literário, mas se introm etem naquele sutil jogo que
começa com a representação pré-lexical e pré-semântiea de
5. Leitura e escritura no mundo biológico do I4NA pertencem um texto visto como uma pintura, para term inar na elabora
a dois sistemas diferentes, mas complementares. O fato de ção contexto-dependente de seu significado.61
que o DNA se configure como uma dupla hélice e não como
uma hélice simples, obedece à regra de que a leitura do DNA 61 S. Dehaene et al. "The visual form area: a prelexical representation of visual
words in the fusiform gyrus". In: NeuroReport, 2002, n. 13, p. 321 -25.
162 Alberto Piazza A evolução vista de perto 163
6. O papel da variabilidade na memória do passado e na cons A evolução biológica (m uito) brevem ente
trução do presente é fundamental para a evolução de nossa es
pécie: as interrogações sobre os modos em que tal variabilidade 7. Como reconhecer o papel da variabilidade biológica na re
produz-se na natureza por longo tempo constituíram a aflição construção da memória de nosso passado (biológico)? E inte
de Darwin que, por uma estranha brincadeira do destino, não ressante examinar a distribuição geográfica de tal variabilidade
tinha podido ler o trabalho revolucionário de Mendel. visualizando e filtrando a informação oferecida pelos dados ge
néricos hoje disponíveis. Com esta finalidade, consideramos em
Franco M oretti, em seu I I ro m a n zo d ifo rm a zio n e , nos manda primeiro lugar um gene (um segmento de DNA ao qual se pode
uma mensagem muito interessante e, em minha opinião, im atribuir uma função biológica específica e reconhecível) e, para
portante: nem mesmo os gêneros literários podem sobreviver cada gene, analisamos separadamente as diferentes variantes
sem variedade cultural. O gênero do romance de formação que podem ser identificadas, os alelos do gene. A proporção de
- nos ensina - nasceu na Europa depois da Revolução Fran indivíduos que leva um determinado alelo pode variar (e muito)
cesa como resposta a uma precisa necessidade social: a media de uma localidade geográfica à outra. Se for possível examinar a
ção das exigências contrastantes de liberdade e estabilidade. presença ou ausência daquele alelo em um número adequado de
N arrar a juventude perm ite transcendê-la simbolicamente. indivíduos que habitam uma área geográfica circunscrita e uni
N arrando a minha juventude já como homem maduro, repre forme, torna-se possível desenhar mapas geográficos traçando
sento a indeterrmnação de meu passado com a voz determ i linhas que juntam os pontos em que as proporções dos alelos
nada e estável de um homem agora tornado adulto. E ntre (frequências alélicas ou gênicas ) tenham igual valor.
tanto, no momento em que se intermedeia uma tensão com a
sua distensão, se determina, pelo menos em chave narrativa, A distribuição geográfica das freqüências gênicas pode forne
uma situação de equilíbrio que prenuncia a perda da tensão cer indicações e instrum entos de medida de extrem o interesse
criativa original, daí à progressiva extinção do gênero. Em para o estudo dos mecanismos evolutivos que geram diferen
um ambiente completamente diferente, etnicamente mais he ças genéticas nas populações humanas; mas é preciso enfren
terogêneo, como os Estados Unidos, eis que renasce, com O tar problemas de interpretação bastante complexos. Quando
a p anhador no campo de centeio, de J. D. Salinger, um romance duas populações humanas são geneticamente semelhantes,
de formação em que o próprio jovem conta a sua formação. tal semelhança pode ser o resultado de uma origem histórica
M oretti nos sugere que a variabilidade cultural do contexto comum, mas pode ser também devida ao seu assentamento
americano perm itiu transplantar um gênero literário que na em ambientes físicos (por exemplo, climáticos) semelhantes.
Europa já tinha exaurido a sua função social. E não devemos esquecer que estilos de vida e comportam en
tos culturais análogos (por exemplo, o comportam ento die-
tético) poderiam favorecer o aumento ou a diminuição, até o
desaparecimento, de certos genes.
164 Alberto Piazza A evolução vista de perto 165
Por que razão os genes (por isto também suas freqüências) relativa de cada tipo genético transm itido de uma geração à
variam no tempo e no espaço? geração seguinte.
8. Os genes variam porque as seqüências de DNA que os cons A d eriva genética aleatória define um outro mecanismo evolu
tituem podem m udar por acaso. Tal mudança, que é chamada tivo: é conseqüência do fato de que cada nova geração é pro
de mutação, acontece no homem muito raram ente e, quando duzida a p artir de uma am ostragem aleatória dos genes pre
acontece, da mesma forma raram ente tem condições de durar sentes na geração precedente. Considere-se o caso dos funda
por muito tempo no interior de uma população. Para a maior dores de uma nova colônia em uma ilha rem ota (isto é, com
parte dos genes que se conhece, manifesta-se uma mutação poucos contatos). Se, por puro acaso, acontece que aos funda
aproximadamente a cada milhão de gerações. Do ponto de dores falte um gene, este gene desaparecerá completamente
vista evolutivo o mecanismo de mutação é muito im portante da população da ilha. Porque cada geração pode considerar-
porque introduz inovações, mas porque a nossa espécie de se uma am ostra de população que funda a geração sucessiva,
H o m o sapiens existe somente há alguns milhares de gerações, quanto menor é a dimensão de uma população e maior é o seu
é muito improvável que mutações exclusivas de nossa espécie isolamento, tanto mais amplas poderão ser as flutuações das
tenham contribuído de modo decisivo para criar diferenças freqüências de um gene de uma geração à outra. Ao contrário
que tornam uma população geneticamente diferente de ou da seleção natural, que favorece ou desfavorece genes singu
tra, ou um indivíduo de outro. Deveriamos, ao contrário, pen lares, a deriva genética aleatória influi sobre todos os genes
sar em versões diferentes dos mesmos genes que preexistiam do mesmo modo, mudando as suas freqüências ao acaso.
na origem de nossa espécie e que, com o tempo, assumiram
proporções diferentes nas diferentes populações. Também a migração, o mecanismo pelo qual duas populações físi
ca e geneticamente separadas se unem, age simultaneamente so
O mecanismo evolutivo em condições de m udar mais rapi bre todos os genes, mas de modo mais coerente em comparação
dam ente a estrutura genética de uma população é a seleção com a deriva. Indivíduos da população 1 que migram para a po
natural, a qual favorece os tipos genéticos mais aptos a pulação 2 modificarão as freqüências gênicas da população 2 tor-
sobreviver até a m aturidade sexual, ou aqueles que ma nando-a geneticamente mais semelhante à população 1. E todas as
nifestam uma fertilidade superior. A seleção natural, cuja freqüências gênicas mudarão do mesmo modo naquela direção.
ação é contínua no tempo e que deve eliminar as mutações
que são danosas em determ inado habitat, é o mecanismo Dos mecanismos evolutivos que foram aludidos, a deriva ge
que adapta uma população a modelar-se ao ambiente que nética é o único consistente com uma representação filogené-
a circunda, seja ele tropical, tem perado ou polar. Trata-se, tica que se vale graficamente de uma árvore da evolução, isto
então, de um processo “adaptativo”, cuja velocidade pode ser é, com um processo de separações sucessivas das populações.
prevista quantitativam ente tendo como base a distribuição Uma árvore da evolução das populações humanas é uma boa
166 Alberto Piazza A evolução vista de perto 167
representação do processo evolutivo só quando a população pulações). Pelas razões históricas antes apresentadas, as po
associada a cada um dos ramos da árvore evolui (isto é, muda pulações européias estão entre aquelas que revelam uma das
as suas freqüências gênicas) independentemente da mudança taxas evolutivas mais lentas em relação às outras, e também
que acontece nas populações dos outros ramos. Há uma boa por este motivo poderia ser enganoso reconstruir a sua evolu
afinação estatística entre os dados genéticos e algumas árvores ção no tempo mediante uma simples estrutura de árvore.
evolutivas de diferenciações humanas. A afinação é tanto me
lhor quanto mais as populações consideradas são geográfica e
geneticamente distantes, consequência não inesperada porque
quanto mais duas populações são distantes, tanto menos as Evolução daforma literária
suas evoluções podem resultar correlatas depois de suas sepa
rações. Se, por exemplo, se examina as populações européias 9. Para compreender em que ponto a metáfora biológica deixa
entre as quais são conhecidas migrações pré-históricas e his de ser tal e torna-se um instrum ento de trabalho adequado
tóricas com misturas que tornam muito inverossímeis hipó a inquirir a história da forma literária, é preciso verificar se
teses de mudanças independentes entre elas, a representação os mecanismos evolutivos que produzem as mudanças bioló
da árvore não é um bom modelo de evolução. Uma outra indi gicas - mutação, seleção natural, deriva genética e migração
cação que as nossas análises sobre dados reais nos dão é que - encontram suas correspondências naqueles mecanismos
os ramos das árvores que representam o processo evolutivo que mudam as formas literárias. Tento algumas hipóteses.
das populações humanas têm tamanhos diferentes, como se os
tempos de mudança de cada população fossem medidos com Em prim eiro lugar, os mecanismos evolutivos biológicos e
relógios com velocidades diversas. Isto reflete a observação de culturais de nossa espécie m ostram correspondências de cer
que a deriva genética produz uma mudança maior em popula to interesse. Considerando a linguagem como fenômeno cul
ções isoladas e pouco numerosas, enquanto a migração pode tural por excelência, dos quatro mecanismos evolutivos que
retardar tal mudança “misturando” os genes das populações controlam a nossa mudança genética pode-se afirmar que:
que são encontradas no mesmo território e pode, por isto, re a migração influencia genes e linguagem do mesmo modo,
duzir as diferenças geradas pela deriva genética. Em outras induzindo fenômenos de difusão; a seleção age em ambos os
palavras, as taxas evolutivas podem ser diferentes de popula campos - a seleção natural favorecendo o fenótipo biológico
ção a população. Uma população que sofreu muitas migrações mais apto a sobreviver, e a seleção cultural favorecendo a
(e por isto é muito variável internamente, mas provavelmente recíproca inteligibilidade lexical e fonética da linguagem; a
menos diferente de outras populações) evolui menos rapida mutação e a inovação linguística desenvolvem a mesma função
mente - na árvore é associada a um ramo mais curto - do que - trata-se de mudanças que, uma vez verificadas casualmen
uma população isolada (e por isto pouco variável internamente, te em indivíduos particulares, são depois adotadas por ou
mas provavelmente bem mais diferente do que as outras po tros indivíduos.
168 Alberto Piazza A evolução vista de perto 169
Passando de modo mais específico da linguagem ao gênero lite que geram variabilidade, mas tam bém para o mecanismo por
rário, a migração é certamente um fator de mudança. Este livro meio do qual tal variabilidade é transmitida. Enquanto em
não nos diz quanto a tradução em línguas diferentes do mesmo biologia a transmissão da informação só pode acontecer de
romance pode mudar a percepção e o sucesso de um gênero li pais para filho, a informação cultural pode servir-se de outros
terário no país de destinação do romance traduzido, mas as pes mecanismos de transmissão. Seguindo o esquema de Cavalli-
quisas publicadas por IVIoretti em A tlas do romance europeu (refi Sforza e Feldman62, podemos pôr em relação o sujeito e o obje
ro-me ao terceiro capítulo, sobre difusão literária e a correlação to da transmissão de informação de quatro modos:
entre modelo literário e espaço geográfico) sugerem um papel
importante da migração (não de homens, mas de “formas”), pelo a) D e p a i pa ra filh o {vertical). É o mecanismo de difusão da in
menos na Europa. Como a seleção natural em biologia denota formação biológica, lento mas selecionado para conservar
a seleção de tipo biologico que melhor sobrevive ao ambiente, a variabilidade interindividual.
também não há dúvida de que algumas formas literárias tenham b) D e um in d ivíd u o a outro {h o rizo n ta l). É um mecanismo aná
mais sucesso do que outras e sobrevivam por mais tempo graças logo ao do contágio em uma epidemia, por isto a informa
aos múltiplos fatores culturais e economicos, e disso os gráficos ção difunde-se rapidamente.
do primeiro capítulo deste livro (por exemplo, as figuras de 3 a c) D e um in d ivíd u o a m ais in d ivíd u o s {por exemplo, de u m p ro
1°) fornecem ampla e preciosa documentação. Não é necessário fessor aos seus alunos, ou de u m líder social aos seus discípulos').
gastar muitas palavras sobre a mutação que, por analogia com o É o mecanismo mais eficiente para difundir uma inovação
mecanismo biológico, poderia consistir naqueles fatores capazes em um grupo social.
de originar uma nova forma literária: como em biologia (as mu d) D e m ais de u m in d ivíd u o a um único in divíduo. E o mecanis
tações de DNA são causadas por vários e numerosos agentes) mo de pressão social: comumente impede a difusão de uma
tais fatores são presumivelmente diferentes, mas é importante inovação.
estabelecer não tanto a natureza desses fatores, mas estarmos
certos de sua existência. O exame da figura 1 do primeiro capí Qual é o mecanismo de transmissão que mais interessa ao gê
tulo parece mais do que convincente. Permanece, para ser veri nero literário? Mesmo se o mecanismo A teve no passado um
ficada, a existência, ou não, de um mecanismo evolutivo análogo papel proeminente e fornece uma explicação das associações
ao da deriva genética aleatória. Verificação extremamente delica entre genes e línguas que ainda hoje estamos em condições
da porque - como já foi dito - o significado biológico das árvores de identificar, é claro que a difusão de um gênero literário não
evolutivas em biologia depende substancialmente da presença pode prescindir de um mercado que favorece um mecanismo
ou ausência deste mecanismo. de tipo C. A família, que garantiu até hoje a transmissão não só
dos genes, mas também da cultura, dá lugar à figura do leader.
10. Um caráter genético pode ser profundamente diferente de
uma tipologia cultural não só para os mecanismos evolutivos 62 L. L. Cavalli-Sforza e M. W. Feldman. Cultural transm/ssíon and evolution: a
quantitativeapproach. Princeton: Princeton University Press, 1981.
170 Alberto Piazza A evolução vista de perto 171
Neste caso, o autor do romance, se o gênero literário exami que tende à inovação é condição, bem estudada em nível teó
nado é o romance. A transmissão da informação acontece do rico, nos casos de patologias hereditárias em populações iso
indivíduo para mais de um indivíduo. O mecanismo evolutivo ladas. A realidade biológica, como sempre, é mais complexa,
que em genética recebe o nome de deriva genética assume neste porque também a seleção natural entra no jogo se a patologia
contexto uma relevância toda particular. Foi dito antes (§8), hereditária é letal (ou se, menos dramaticamente, mas mais
que em genética a deriva é o fenômeno pelo qual quanto menor raramente, existe uma terapia) com resultados que dependem
forem as dimensões de uma população, tanto mais frequente do peso relativo dos fatores. É fácil imaginar que também a
mente os genes tendem a manifestar-se com uma só varian realidade do gênero literário sofra a influência de fatores sele
te. E um fenômeno claramente observável na distribuição de tivos culturais, os quais devem ser estudados em seu contexto
sobrenomes, que podem ser considerados na mesma medida histórico-social. Veja-se, por exemplo, o problema da mudança
dos genes situados sobre o cromossomo masculino Y: nos paí de público literário levantado para interpretar o aparecimento
ses com poucos habitantes, a proporção de sobrenomes iguais e o desaparecimento, depois de um período regular de cerca de
tende a aumentar, até torna-se cem por cento no caso limite 20, 30 anos, dos vários gêneros de romance inglês (fig. 9). O
em que a população fosse constituída por um só indivíduo. Em desafio encontra-se em identificar o significado e decompor os
termos evolutivos, a deriva reduz a variabilidade genética da vários estratos do termo “ambiente”, que os estudiosos, sejam
população, daí a sua capacidade adaptativa. de evolução biológica, sejam de outras disciplinas, adoram usar
com indiferente imprecisão. Um desafio mais radical, que vai
Ora, o mecanismo cultural de um indivíduo a mais indivíduos além do problema de identificação dos fatores evolutivos e põe
representa precisamente o caso mais extrem o de deriva antes em crise a formulação de eventuais modelos quantitativos, é
exemplificado. É como se só um indivíduo transm itisse os colocado, enfim, pela possível natureza não-linear da composição
seus genes para toda uma população, com a conseqüência de de tais fatores. A existência de comportamentos cíclicos, como
reduzir, e progressivam ente fazer desaparecer, a variabilida aqueles colocados em evidência nas figuras 7 e 8 sobre as formas
de genética. Em outras palavras, a derivação cultural poderia hegemônicas do romance inglês dos séculos 18 e 19, é sempre
tornar muito mais veloz a difusão das informações culturais, um sinal - mesmo em biologia - da presença de fenômenos não-
mas ao preço de possuir menos informações culturais para di lineares. O fato de que os fenômenos não-lineares constituam a
fundir. Os dados disponibilizados neste livro induzem a acre norma e não a exceção (pense-se, por exemplo, no simples fenô
ditar que a evolução das formas literárias tenha sido possível meno do crescimento em qualquer disciplina) constitui, hoje, um
até hoje, ou até ontem, por causa de sua elevada capacidade dos maiores limites para a elaboração de modelos quantitativos
de inovação (mutação), bem ilustrada pelo gráfico da figura 9, em todos os campos do conhecimento.
que se refere ao romance inglês de 1740 a 1900. A situação de
equilíbrio èvolutivo que se cria entre derivação genética que
tende à homogeneidade (e por isto à não evolução) e mutação
172 Alberto Piazza A evolução vista de perto 173
a maioria dos algoritmos hoje em uso, a árvore se lim itará a interior de muitos genes e não de um só gene. Entretanto,
reproduzir uma topologia em que os objetos mais próximos esta distinção importante entre árvores de genes e árvores de
serão separados por um número menor de nós, e os mais dis populações é pouco interessante se as folhas são constituídas
tantes, por um numero maior; mas não podería haver nenhu por traços culturais como os dos gêneros literários. Mais in
ma pretensão de descrição filogenética se o algoritmo usado teressantes são, ao contrário, duas propriedades das árvores
não for congruente com um modelo racional de evolução do filogenéticas usadas na evolução biológica:
qual tenham sido explicitados os mecanismos.
a) Se a árvore é usada para inferir os tempos das bifurcações,
12. A árvore reproduzida na figura 29 é diferente da prece é preciso que as mudanças que se verificam ao longo de to
dente. As suas folhas não são diferentes variações do mesmo dos os ramos, da raiz às folhas, aconteçam com velocidade
caráter ou gene, como na árvore reproduzida na figura 28, constante no tempo. Isto é bastante realístico nas árvores
mas são populações ou famílias lingüísticas diferentes, dis de genes, onde o gene especifico varia no tempo com taxa
tribuídas sobre todos os continentes. Quais relações existem aproximadamente constante. Mas não é, ao contrário, rea
entre os dois tipos de árvores e quais exames devem ser for lístico nas árvores de populações, onde genes e indivíduos
mulados para provar a validade filogenética da árvore evolu acumulam suas variabilidades e onde a demografia de po
tiva das populações e/ou famílias lingüísticas humanas? pulações específicas pode acelerar ou atrasar a mudança.
Em outras palavras, cada ramo individualmente tem a sua
E preciso considerar que todo indivíduo da nossa espécie tem taxa de variabilidade específica.
cerca de 30-50 mil genes e que toda população é constituí
da por muitos indivíduos, cuja história supõe-se comum, pelo b) A árvore da vida real deveria prever não só bifurcações, mas
menos sob o aspecto do assentamento geográfico. Porque todo também trifurcações, quadrifurcações etc. e, ainda mais im
indivíduo é diferente de outro indivíduo por cerca de dois por portante, a eventualidade de que, uma vez diversificadas, duas
mil (ou 0,2%) do seu DNA, é razoável pensar que a evolução ou mais populações possam reunir-se em uma tram a reti-
no tempo de um gene, de um indivíduo, de uma população, te cular onde genes e culturas não só divirjam, mas também
nha taxas de mudança diferentes e, portanto, também árvores convirjam, assim como é mostrado na árvore da cultura de
evolutivas diversas, certamente correlatas entre si, mas de um Kroeber reproduzida na figura 32. Que a árvore da figura
modo imprevisível. A única relação certamente verdadeira é 29 seja uma descrição bastante realística da evolução das po
que a árvore das populações apresenta bifurcações que tem pulações e das línguas humanas, depende do fato de que as
poralmente devem acontecer depois das bifurcações dos genes populações são geograficamente distantes e distintas, e que
dos indivíduos que as compõe: este desajuste temporal é devi as famílias lingüísticas têm um número de “empréstimos”
do ao fato de que os indivíduos de uma população diferenciam- recíprocos razoavelmente pequenos. Se alguém quisesse apli
se dos indivíduos de uma outra por acúmulo de mutações no car a mesma estrutura de árvore às populações européias
176 Alberto Piazza A evolução vista de perto 177
percebería que o modelo das bifurcações sucessivas é in tidos em consideração: a prudência também sugeriría que
completo porque a rede das migrações entre os diversos não se incorresse em um sutil vício de acertam ento, no sen
países imporia uma estrutura reticular que não pode ser tido de que a escolha dos romances policiais e a escolha dos
confinada em uma estrutura de árvore. De um ponto de vis indícios deveríam ser não só as mais completas possíveis,
ta prático, entretanto, a elaboração de modelos reticulares é mas também independentes uma da outra.
muito mais complexa, para não dizer que atualmente é im
possível. E no momento nos contentamos em experimentar A árvore semântica proposta por Orlando em sua obra G li
a hipótese de que os dados sejam explicáveis a partir de oggetti desueti nelle im m a g in i delia letteratura e reproduzida na
uma estrutura de árvore, com a consciência de que se esta figura 33 pode também ela considerar-se como a árvore de
hipótese não for estatisticamente provada a hipótese alter um gene, o gene “semântico”, mas não é, pelo menos em mi
nativa de uma estrutura reticular seria a mais verossímil. nha opinião, uma árvore filogenética. A dimensão do tempo
é substituída pela articulação lógica, e uma correlação muito
13. Os elementos metodológicos precedentes permitem, estreita liga os caracteres tidos em exame com os textos li
agora, um comentário específico sobre as árvores apresenta terários que os documentam. A elegância do edifício lógico e
das no terceiro capítulo. A figura 30 representa a filogênese a sua simetria estão implícitas na seleção do tema (os objetos
da narrativa policial inglesa, e os indícios constituem o ca desueti) e na relação dos textos: na metáfora biológica equiva
ráter morfológico (em biologia, se falaria de “fenótipo”) que le a selecionar um gene raro (por exemplo, o que dá origem a
muda com o tempo. T rata-se de uma árvore do tipo “gene uma doença) e procurar todas as mutações que neste causam
que muda e se pode facilmente reconstruir a sua imagem a doença. Elaborando uma “ra tio ’ capaz de unir uma mutação
biológica imaginando um gene que muda com o tempo. Em à outra. O objetivo final é o de provar a validade da “ratio”,
correspondência a cada mutação, os nós da árvore, enume não o de provar o desenvolvimento de uma forma literária.
ram-se as populações (ou os indivíduos) em que se observou Objetivo perfeitamente legítimo e fascinante, desde que se
o gene mudado. A p artir de um exame da distribuição das po tenha presente que a representação em forma de árvore não
pulações ou dos indivíduos associados a cada nó - isto é, com desenvolve uma história, mas sim um raciocínio, que deve ser
a mutação que o nó representa - , infere-se o valor “adaptati- organizado e iluminado, prática pouco usual.
vo” da mutação referido ao indivíduo ou à população, ou seja,
se a mutação foi ou não escolhida” pela seleção natural para A última árvore proposta e analisada neste livro diz respeito à
conferir uma vantagem (que é a sua própria presença), ou evolução, de 1800 até os nossos dias, da técnica narrativa cha
uma desvantagem (a sua ausência) àquele indivíduo ou àquela mada “estilo indireto livre”: reproduzida na figura 34. Retorna
população. Na árvore dos indícios e na árvore do gene, o pro o audacioso experimento de descoberta da morfologia compa
blema reside não na topologia, mas, como o próprio M oretti rada, idéia já expressa a propósito do romance de formação
reconhece, na seleção e na inteireza dos indícios (mutações) (ver §6) de que existe uma relação entre descontinuidade
178 Alberto Piazza A evolução vista de perto 179
espacial e inovação morfológica. Trata-se de um dos resulta casual. Isto não porque a seleção natural seja tida como um
dos mais estimulantes deste livro. Nas palavras de M oretti, “a efeito de pouco peso, mas porque ela pode manifestar-se de
idéia de que a gênese de uma nova espécie (aqui, mais modes muitos modos diversos e o seu efeito sobre os ramos da ár
tamente, de uma nova variante estilística) esteja em conexão vore pode ser tanto para fazê-los divergir como para fazê-los
com o deslocamento em uma nova pátria, onde só se sobrevive convergir. Em uma situação tão ambígua e imprevisível as
aprendendo a mudar muito, e muito rapidamente. Exatamente sim, prefere-se admitir que a seleção natural não tenha efeito e,
como o indireto livre quando deixa o campo inglês, ou Paris, depois, verificar ou falsificar estatisticamente tal hipótese. Ao
e deve aprender a língua de Petersburgo, Aci Trezza, Oviedo, contrário, todas as árvores neste livro representam a evolução
Dublin...” Trata-se, na metáfora literária, daquela “allopatric de diversas formas literárias. São, substancialmente, árvores
speciation, que E rnst Mayr tinha levantado como hipótese nos que fazem seleção natural - sob a forma de sobrevivência ou
anos 1940-1950 para documentar o nascimento de espécies di extinção de uma forma mais do que de uma outra - , que é o
versas de pássaros no mesmo habitat por efeito exclusivo da principal manipulador delas. Esta diversa abordagem, respon
distância geográfica e da falta de trocas genéticas. A adoção de, provavelmente, a várias perguntas. Ao estudioso da evolu
de um modelo semelhante para novas variantes estilísticas, ou ção biológica interessa de modo particular a raiz da árvore (o
mesmo para traços culturais, pressupõe que os vários ramos tempo de origem), por causa desta inferência a consideração
da árvore não podem trocar informações: no caso em exame direta da seleção natural constitui um obstáculo a ser engana
do estilo indireto livre, a assunção é garantida pelas desconti- do estudando o efeito de muitos genes cujo peso relativo é mais
nuidades lingüísticas, mas em outras aplicações deve ser docu ou menos transcurado para que divergências e convergências
mentada caso a caso. anulem-se alternadamente. Para quem estuda a evolução da
morfologia .literária, interessa não tanto a raiz da árvore (por
que se situa em uma época histórica conhecida) quanto o seu
Kpilogo percurso, a sua metamorfose. É, por isso, muito mais afim ao
estudo da evolução de um gene do qual se queira saber a na
14. Os estímulos suscitados pelo livro de Franco M oretti são tureza das mutações particulares e o crivo operado pela sele
numerosos e fascinantes, e as minhas considerações preceden ção natural. Somente hoje, conhecendo o genoma humano e
tes pretendem dar a este livro um testemunho consciente tam podendo tirar proveito de tecnologias de biologia molecular
bém de quem, como eu, não pratica a mesma área de conheci muito potentes, pode resultar não ilusória a possibilidade de
mento, mas pretende igualmente aceitar os desafios. Com esse percorrer a história de todas as mutações de um gene através
espírito, gostaria de term inar com uma reflexão. As árvores fi- da sua (e da nossa) evolução. Como um grande desafio, as hipó
logenéticas que representam a evolução biológica pressupõem teses apresentadas neste livro constituem para mim um estí
uma ausência e uma presença: a ausência do efeito da seleção mulo para afinar os instrumentos de leitura de nossa evolução.
natural e a presença de mutação, migração e derivação genética Ficaria muito contente se o fosse também para os leitores.
180 Franco Moretti índice de figuras 181
7. A s tr ê s fo rm a s h e g e m ô n ic a s d o ro m a n c e ing lês,
1 7 6 0 -1 8 5 0 .................. 35
8. C o ta de m e rc a d o d as fô rm a s h e g e m ô n ic a s do A rv o re s
ro m a n c e in g lês, 17 6 0 -1 8 5 0 ................................................................. 36
9. O s g ê n e ro s ro m a n e sc o s in g leses, 1740-1.900................................ 39 28. A d iv e rg ê n c ia d e c a ra c te re s ........... 112