No final de um século, um clima de fin de siecle, com suas previsões e agouros
cobre os últimos anos de um éon que se estende até o início do nosso calendário. Contudo, não devemos esquecer que uma psicologia milenarista é específica para um mundo cristianizado. Os muçulmanos tem outro mito afetando seus calendários, assim como os judeus. O resto deste vasto mundo, cheio de povos tribais arcaicos e sofisticados, nômades e pagãos de todos os tipos, aldeões hindus em Bihar e Mysore, os bilhões de corpos vivendo na Ásia Oriental, na África tropical e na América — todos eles não têm nossos mitos milenaristas e psicologia milenarista. Toda essa gente pode usar nosso calendário imposto, e muito embora suas datas tenham sido convertidas – se não pela religião, certamente pelo comércio – seus mundos não têm a ameaça de um fim dos tempos, porque não iniciam seu tempo de calendário com a aparição de Jesus. O pensamento milenarista sobre o fim no século vinte, o próprio fim do tempo, pertence ao nosso livro sagrado ocidental, e àquele capitulo final de horror pavoroso, o Apocalipse, com sua visão catastrófica de uma conflagração universal. Essa ansiedade em relação ao milênio e ao que acontece em seguida é um fenômeno cristão; já que grande parte do cristianismo oficial dogmático pertence a esta cidade, é apropriado que esse tema seja discutido em Milão. Constantino e Constâncio (inimigo do pagão, Juliano), Ambrósio, o grande defensor do dogma, e o próprio Agostinho ensinaram aqui. Se desejamos trabalhar psicologicamente para ultrapassar a ansiedade constelada pelo fim desse século, seria bom começar nesse lugar específico. Ao situar o milênio dentro de um contexto global, estou tentando realizar dois movimentos psicológicos. Os dois derivam do trabalho pioneiro de C. G. Jung. O primeiro movimento Jung chamou de "relativizar o ego," isto é, situar nossas preocupações ocidentais dentro do contexto mais amplo dos mitos mundiais com seus muitos e diferentes calendários, datas, ideias de tempo e escatologia, tornando a perspectiva cristã uma entre muitas, relativa em vez de definitiva. Do mesmo modo, nosso futurismo — projeções sobre o que está por vir — tornam-se afirmações de um ego ocidental, projetando sua própria sombra. Assim como o ego não representa a psique inteira, a mente ocidental não pode falar pelo mundo todo. A autoimportância que atribuímos às nossas preocupações sobre o fim do século e as projeções futuristas que fazemos sobre o que virá em seguida, de fato as próprias agendas que compramos com datas já impressas: 31 de dezembro de 1999 e 1 de janeiro de 2000 — tudo isso é relativizado pela consciência de que esses números têm pouco significado quando saímos das nossas próprias fixações predeterminadas pelo mito básico da consciência de tempo cristianizada. Essa inclusão da variedade global é meu segundo movimento. Ele deriva da noção de Jung de consciência coletiva — as atitudes, ansiedades, opiniões, gostos, desejos, hábitos de mente e coração que todos nós compartilhamos. Eles estão no ar em que respiramos, na luz que nos permite enxergar. A consciência coletiva atual inclui uma mentalidade global, multiculturalismo, pensamento planetário, multinacionalismo — o senso de que todas as coisas privadas, pessoais e locais estão sendo afetadas pelo que os outros estão fazendo em toda parte. A música nos seus rádios é produzida em estúdios de gravação londrinos, as bananas transportam seus pesticidas tóxicos do Equador, os camarões vêm do Golfo do México, assim como os chips de computador levam para seu PC moléculas da Irlanda, Índia, Texas e Coreia. O consumismo multinacional, turismo e a “teia mundial” de comunicações da Internet são os níveis evidentes e superficiais dessa consciência coletiva, desse globalismo. No seu interior, e permeando o globalismo como um humor subliminal, há um senso de identidade difusa, uma ansiedade quanto à falta de fronteiras, o que chamamos na psicologia clínica de transtornos de personalidade borderline, ataques de pânico, defesas paranoicas e raivas narcisistas. Isto é, fronteiras difusas e purismos paranoicos, assim como recuos em um intenso isolamento autocentrado, preocupações em relação ao próprio sistema imunológico, com ódio em relação a tudo que é invasivo (incluindo imigrantes), uma síndrome de características relacionadas com a perda da certeza pessoal, autodefinição e localização dentro de fronteiras bem definidas. O globalismo e o futurismo são traduzidos no nível individual como ansiedades pânicas e recuos narcísicos. Para encontrar novamente essas fronteiras pessoais e locais, às vezes precisamos retornar a medidas hostis de exclusão. Tentamos resistir às incursões do Outro na nossa esfera privada. Participamos de movimentos separatistas, declaramos lealdade a cultos onde o Outro simplesmente é meu espelho, evitando assim o desafio da diferença. Essas defesas regressivas contra a dissolução tentam recapitular as estruturas de segurança mais antigas do ego, antes de ser deslocado e desconstruído pelo globalismo. Esses movimentos tomam forma política na xenofobia, limpeza étnica, genocídio ou em recuar até uma Liga Lombarda [N.T.: liga formada em 1167 entre trinta cidades italianas contra o Sacro Império Romano-Germânico] com seus ecos de antigas cidades- estado italianas e mediterrâneas, ou muralhas e cercas na fronteira dos EUA e de Israel. Todos esses movimentos tentam alcançar o que Jung chamava de "restauração regressiva da persona" ou status quo anterior, por meio — na esfera política — do localismo literal. Vimos isso em Israel, na Chechênia, na Bósnia e Croácia, em Chipre, e entre os bascos e catalões na Espanha.
A chegada de Hermes
Segundo a perspectiva da psicologia arquetípica, o fascínio com a troca entre os
povos em toda parte, a hipercomunicação do globalismo, a ênfase no comércio e finanças, a instantaneidade oferecida pelos aparelhos eletrônicos, a compulsão de viajar — tudo isso indica o cosmos mítico de Hermes-Mercúrio, o deus veloz de asas nos pés, capacete de invisibilidade e pensamentos alados. O globalismo parece uma overdose de Hermes, assim como a Era da Razão sofria de uma overdose de luz solar apolínea e um excesso da racionalidade normalizadora de Minerva. Ou, para outro exemplo de hipertrofia divina, a loucura de Marte que toma de tal maneira um povo que qualquer homem ou mulher comum pode tornar-se um matador furioso. Com a virada do século, um monoteísmo de Hermes nos aprisiona a todos. Não só seus novos instrumentos, mas a aceleração com que cada nova geração dessas ferramentas e dispositivos são desenvolvidos — obsolescência dentro de oito meses, cada dispositivo ultrapassado por melhorias e expansões crescentes, alcance ainda mais amplo, conexões ainda mais rápidas. Uma segunda área onde reina Hermes é o mercado — o mercado de ações. Fundos mútuos, especulações sobre moedas, commodities, futuros, opções, derivativos, fundos de cobertura. Os mercados do mundo conectam-se hoje através de comunicações instantâneas, permitindo gigantescos deslocamentos de dinheiro de um lugar para outro, de uma moeda para outra, de um mercado para outro. O que antes era um investimento crônico de longo prazo agora é uma rápida circulação hermética. O mercado como um jogo – e dizermos “jogar com o mercado” (“playing the market"). Esses grandes deslocamentos de dinheiro trazem a sombra de gigantescos roubos e fraudes, lavagens de dinheiro e trapaças. Os sistemas de contabilidade não conseguem mais acompanhar os movimentos rápidos dos banqueiros, que lidam com milhões e bilhões de dólares por transação. Os governos não podem controlar as corporações multinacionais ou regular as flutuações monetárias, o preço do ouro, e produtos básicos de consumo, ou o valor e quantidade do seu próprio suprimento de dinheiro. Antigamente Saturno regia o dinheiro. Nos antigos livros de simbolismo, Saturno era chamado de ricaço. Ele era representado um uma bolsa bem fechada e declarado Deus da Casa da Moeda. Agora, com essa hipertrofia de Hermes, o dinheiro não é mais moeda sólida nem bancado pelo ouro, só palavras e números, meras mensagens enviadas pelo processamento de dados eletrônico e representado por um pequeno cartão de plástico com texto em alto-relevo. Em muitos lugares onde as finanças herméticas alcançaram seu apogeu, a importância fundamental da casa e da terra caíram diante da intoxicação hermética. A terra e suas construções que fornecem estabilidade e abrigo encontram seu valor determinado pelo desenvolvimento especulativo e taxas de hipoteca. Hermes, que não possui lugar de descanso ou residência permanente na terra, trouxe sua impermanência e mudanças rápidas de valor diretamente para nossas habitações humanas. Um aspecto da intoxicação hermética merece atenção psicológica especial. Estou me referindo ao apetite por informação. Como devem se lembrar, Hermes era o mensageiro dos deuses, e um mensageiro indiscriminado. Isso porque ele carregava todas as mensagens sem entrar ativamente no conteúdo do que levava. Ele não tinha opiniões nem valores, não fazia comentários editoriais, não censurava. A sua tarefa era tornar a comunicação possível, mesmo a comunicação com o reino dos mortos e o mundo subterrâneo. Podemos encontrar Hermes como uma imagem pintada e esculpida na cerâmica e no mármore dos gregos, tranquilamente associado a Apolo de um lado e Dioniso do outro, com Afrodite, e com Atena e Ártemis, com Zeus e Hades, e mesmo com Hércules, ainda que o próprio Hermes nada tivesse de heroico. A informação não assume posições, não guarda rancores, e assim não tem limites – está sempre disponível. Em uma cultura que perdeu os deuses, uma cultora de onde os deuses se retiraram, temos as mensagens, mas elas não levam os significados dos deuses. Mera "informação." Contudo, Hermes, na sua devota fidelidade ao seu papel arquetípico, passa a informação, facilitando indiscriminadamente as mensagens independente do seu conteúdo, que pode ser facilmente um blog, uma piada, uma propaganda, uma proposta sexual, ou uma revelação de importância política crucial. A palavra "informação" tornou-se tão inflacionada que carrega o código da identidade e o destino do DNA de um indivíduo. Não a sabedoria, não o conhecimento, nem inspiração, aprendizado, conforto, verdade, profecia, valor moral ou beleza estética. Em vez de mensageiro dos deuses, Hermes tornou-se servo da Internet. Quando dizemos, como nos guias populares de mitologia, psicologia arquetípica e astrologia, que Hermes é o "deus da comunicação," devemos reconhecer que a comunicação não pode pertencer apenas a um deus. Há muitos modos de comunicação. Por exemplo, há a conexão – sem palavras, íntima e sensorial – entre amantes, entre mães e bebês, entre paciente e enfermeira, entre animais e seus donos. Há uma comunicação por meio das delícias cotidianas da vida: flores, culinária, beber em companhia. Há uma comunhão no nível de da "participation mystique" dionisíaca, quando todos curtem juntos um grande concerto de música pop ao ar livre, riem juntos de comediantes na tela. Existe a comunicação do trovão de Zeus, o relâmpago da inspiração, da iluminação, o amor a primeira vista por uma pessoa totalmente desconhecida. Existe a comunicação gestual entre guerreiros em formação, mesmo entre inimigos em conflitos, seja na guerra ou no campo de futebol, e entre um cruel guarda saturnino e seus prisioneiros. Também há a comunicação do ensino e do aprendizado, e lenta e detalhada, e sem o brilho e a diversão de Hermes. A comunicação também se dá através da arte e artesanato, seja por meio de uma obra que se comunica pela fagulha que salta da obra de arte até o olho e o coração do expectador, e então para sua própria mão para fazer outra obra de arte. Hermes, por favor, não é o único meio de conexão. É um pecado contra o panteão do politeísmo deduzir que Hermes é o único deus da comunicação. Essa usurpação monoteísta de todos esses modos diferentes para o hermético eleva a mídia eletrônica para a posição principal nos nossos instrumentos. Além disso, essa intoxicação hermética fornece uma definição exclusiva de comunicação, negligenciando as artes, o corpo, as sutilezas do silêncio sensorial. E essa hipertrofia de Hermes acredita que seu PC, iPod, Blackberry, PlayStation, Xbox, ATM, ou o que for tornou-se seu "servidor," tornou-se realmente um item indispensável para "receber mensagens," "manter o contato," "habilitar" você a estar na vida e apreciá-la. Além disso, a degradação de Hermes a instrumentos convenientes de astuciosa magia degrada o deus a um. E se o chip é programado para funcionar no princípio de 1-ou-0 de uma coisa/ou outra, então Hermes não é mais o deus do "espaço intermediário," da ambiguidade, como apresentado pelos mitos. Para tornar mais clara essa degradação, deixe-me usar um paralelo em relação ao herói. O herói antigo servia a cidade – na verdade, uma cidade antiga era fundada sobre o túmulo de um herói. A ideia original do herói significava alguém entre os humanos e os deuses, e que ajudava a cruzar a diferença entre mortais e imortais. Fossem eles míticos como Hércules e Enéias ou humanos como Alexandre e Júlio César, os heróis eram imaginados como tendo um progenitor humano e outro divino, incorporando assim as duas naturezas em uma figura. Jesus Cristo era imaginado segundo o mesmo padrão arquetípico. Agora, como Holderlin, Rilke e Nietzsche observaram, os deuses não estão mais conosco; eles realmente não apreciam esse mundo humano moderno – e se não se retiraram ou morreram, certamente estão menos entre nós do que antes. Em vez disso, "todos os deuses estão dentro de nós," como disse Heinrich Zimmer. Eles foram psicologizados, tornaram-se funções da psique humana. Então o herói torna-se internalizado como um componente psicológico, renomeado como "o ego," aquela figura na psique que mostra o caminho, decide o curso de ação, e vence os monstros da inconsciência. Mas esse herói, sem os deuses, sem os limites estabelecidos por eles, é meramente ambição secular, carreirismo, força brutal, misoginia e um inimigo da natureza. O ego incorpora todas as qualidades do herói antigo, mas perdeu sua raison d'etre — o serviço aos deuses, a fundação da civilização, e a ponte entre a vida humana e os mitos e valores transpessoais. Nada permanece além do avassalador orgulho heroico, a húbris egoísta da cultura secular ocidental. Estabelecendo o paralelo com o herói como um ego secular, descobrimos que Hermes tornou-se um mensageiro secular. Não mais um dos deuses, e em vez disso infiltrado com o monoteísmo que perdeu sua credibilidade viável como senhor de todos os domínios. A antiga omnisciência tornou-se o alcance geral de banda larga – a onipotência, a realidade virtual que pode simular todas as coisas – e a onipresença divina do monoteísmo, a instantaneidade das conexões etéreas e a fotografia de satélite que pode observar e mapear todos os fenômenos do planeta. A intoxicação hermética também pode nos iludir. Afinal de contas, não era Hermes o mestre da fraude? Ele é um ladrão, um conspirador, um vigarista, um sub- reptício caminhante noturno. Será Hermes que subitamente faz cair a ligação, impede o computador de funcionar, deixa de salvar o que acabei de escrever, encontra maneiras de bugs e vírus que destroem subitamente programas e bancos de dados insubstituíveis? Talvez seja Hermes, o deus dos comerciantes, que convencem o consumidor de que precisam de mais capacidade, processamento mais rápido e mais periféricos do que jamais poderão usar, vendendo o software mais recente antes que tenhamos utilizado plenamente o que já temos. Será Hermes que inspira jovens hackers a penetrar em segredos corporativos, arquivos de polícia, registros governamentais, e a roubar informações ou invadir o disco rígido e magicamente transformar o que é precioso em algo sem sentido. Talvez tenha sido Hermes que inventou o roubo de identidade, removendo nossa cobertura coletiva e deixando-nos como uma alma nua e sem nome. Assim como ele conduz almas (psicopompo) ao mundo inferior, talvez ele use o submundo para levar nossas almas para longe da identidade jurídica que trazemos nas nossas carteiras. Como psicopompo ele também é um psicogogo, um professor da psique, um psicólogo, cuja principal instrução é a ambiguidade e duplicidade, como as serpentes gêmeas entrelaçadas no seu bastão. Ele está desfazendo nossa identidade egoica pelo bem da alma, que muitas vezes é vivenciada pela perda. Uma grande pergunta me persegue: se meu diagnóstico mítico está correto e Hermes é o deus na doença, então poderia Hermes estar jogando um jogo de computador/video game com o mundo inteiro? É o futuro necessariamente eletrônico, a Nova Era coo uma idade de informação da mídia, e-mails, relações públicas, entretenimento informativo (infotainment), realidade virtual, ciberespaço? Ou será que fomos pegos em um jogo de Hermes... Não os jogos que os computadores jogam, mas será que Hermes, por meio do chip de silicone, está jogando com nossa civilização humana? Essas suspeitas me ocorrem; que elas me venham à mente é ainda outra indicação da presença de Hermes/Mercúrio, pois o engodo é tão parte do seu comércio quanto o próprio comercio. Sentimos suspeita, não por sermos luditas e contra a tecnologia, mas sim porque parte da consciência hermética é estar atento ao engodo. Simul similibus curantur – semelhante cura semelhante. Capturar Hermes é capturar um ladrão, e não só capturar um súbito lampejo de inspiração. Como os dispositivos interativos de Hermes facilitam o jogo de acasalamento de Afrodite e a tática da guerra, os cálculos da construção e agricultura, as conexões familiares, a solidão de Saturno, fornecendo até mesmo prazeres joviais, nenhum outro dos grandes impede o domínio de Hermes. Com todo o vasto mundo disponível a você individualmente, pessoalmente, só por sua conta, a intoxicação vem em seguida. Basta um clique e eu estou ligado, o epicentro de uma rede mundial. O Google, o Internet Archive, a Wikipedia ressuscitaram o fantasma do antigo hermetismo, aquela vasta coleção de literatura de sabedoria oculta, imagens mnemônicas, símbolos e práticas mágicas voltadas para o domínio de todo o conhecimento. Seus seguidores da Itália renascentista até a Inglaterra Elisabetana atribuíram os ensinamentos ao próprio Hermes, ou a outro deus universal do conhecimento, Thoth dos egípcios. Por meio de reduções alegóricas, simbólicas e matemáticas, o hermetismo procurou transpor o mundo físico em espaço mental. Dados se tornam mensagem, o mundo é angélico, o cosmos é hermético, isto é, selado até ser revelado, e a revelação é também a redenção do mundo através do conhecimento. Será que esse motivo ainda está por trás da nossa intoxicação contemporânea? Contudo, mesmo enquanto Hermes fornece esse aceso miraculoso, o que ele tira? Lembre-se, Hermes é o deus de encontrar – e perder; de dar – e de roubar. Imagine uma festa. Uma festa de jantar, uma festa dançante, uma festa de aniversário. Roupas e moda e decoração de interiores, antecipação ante do evento e fofocas depois do evento - imagine a comida e o serviço, o vinho e as flores, os corpos e seus movimentos, os flertes e seduções, o súbito encontro com um velho amigo ou um velho inimigo, e depois pense também nas sutilizas de gesto e linguagem, os tons de voz e peculiaridades de fala, dialetos regionais e pequenas frases. O perfume. No computador, uma extraordinária série de sofisticadas habilidades sociais que levaram séculos para serem elaboradas não exercem mais papel nenhum. Uma das figuras mais herméticas do nosso tempo, Brian Eno, que tomou parte em tantos níveis de invenção de mídia e performance, e que pensa muito sobre o assunto, comentou: "o problema com o computador é que não há África o bastante nele." Corpo. Ritmo. Alma. Cerimônia social. A civilização depende da sua África, das capacidades sociais que devem ser associadas à comunicação – a menos que a comunicação seja apenas uma comunicação de pontos e traços enviada por um telégrafo de Marconi. A comunicação é uma interação multinível, uma invasão complexa de almas, não apenas mensagens interativas. Além disso, a comunicação é, em última instância, em prol do conhecimento – conhecer não apenas a mensagem, mas também o emissor e o receptor – quem é o outro e qual importância a mensagem tem especificamente para você. Uma mensagem é um anjo, do grego aggelia (mensagem), pelos significados latinos e teológicos de uma mensagem divina. Os anjos eram muitos – eles tinham nomes, formas, representações particulares. Uma verdadeira mensagem anuncia algo, revela algo, altera algo – traz conhecimento de um significado mais alto. A voz do anjo era devastadora, um toque de trombeta, uma revoada de asas negras na noite. Qual celular pode transmitir um anjo? Há uma cura para a intoxicação hermética? O que pode nos libertar desse vício ao acesso e recebimento imediatos, esse deleite na passagem invisível de palavras anônimas pelo ar, esse privilégio de uma conexão possível com todos os outros? Nem Zeus, seu pai, nem Apolo, seu irmão, puderam verdadeiramente domar Hermes, ele enganou ambos. Tampouco as deusas, ninfas e humanas com quem se acasalou mudaram seu modo de ser. Com muitas dessas figuras femininas ele teve filhos, mas suas relações não resultaram em relacionamentos. Só uma das figuras mitológicas parecia ser sua contraparte: Héstia. No mundo grego, e depois no mundo romano, quando Mercúrio era associado com Vesta nós descobrimos uma mensagem.
O foco de Héstia
Antes de começarmos a falar sobre Héstia, devemos brindar a ela: antes de
qualquer evento, os antigos romanos diziam: Vestal, como nós, levantando nossos copos, dizemos: salud, kampei, saúde, prost, sante, I'chaim... Ela veio primeiro, antes de Zeus, antes de Hera, Gaia, Deméter. Em outras palavras, primeiro devemos ter foco, em casa com nós mesmos, no presente aqui e agora. O foco, nossa palavra em inglês para a atenção concentrada, o interesse que aquece toda vida que vem para dentro do seu perímetro, origina-se da palavra latina para lareira. E a lareira era Héstia. O lugar onde o fogo doméstico brilhava era Héstia. Este Foco não era seu símbolo, era a própria Héstia. O nome Héstia/Vesta provavelmente deriva do indo-europeu vas, "habitar." Outra derivação, de acordo com os filólogos, é do radical "essência." Em suma, ela não estava apenas "dentro", como dentro de casa ou dentro da lareira. Ela está na intensidade focalizada e no interesse caloroso que chamamos de consciência atenta. E, como Hermes, ela é uma qualidade da mente, uma invisibilidade. Ele é invisível na sua passagem rápida, "o momento Hermes", ela é invisível como a própria consciência. Se Hermes traz possibilidades à mente, Héstia as centraliza e fornece foco. O mercúrio elemental se espalha por toda parte em um milhão de pedaços, enquanto o sal, a matéria elemental dela, é o princípio alquímico da fixação e da imutabilidade. Com a expansão de Hermes e sua falta de local em mente, peço a vocês que agora escutem os hábitos e atributos de Héstia. Por exemplo: os antigos juízes escreviam no final de cada dia todas as coisas relativas a um caso criminal e deixavam o texto no "altar" de Héstia. Hermes também tinha uma conexão com a escrita – mas a escrita de Héstia é manter registros exatos, fixar as coisas. Ela governava contratos, Hermes celebrava acordos. A consciência hestiana circula ao redor de si mesma. Ela não vai a lugar nenhum, não deseja nada fora de si mesma. Assim, Héstia estava sempre assentada em elementos circulares, e os locais onde era venerada sempre eram circulares. No Fedro de Platão, quando os onze deuses viajam ao Olimpo, só Héstia "permanece no seu lar". A ela é atribuída a invenção da arquitetura doméstica. Não só a casa, o lugar, a ausência de movimento – como também a família: a via e a lei do clã. O único serviço real prestado em sua honra era a refeição familiar. O Hino Homérico à Héstia diz que "Sem ela, os humanos não teriam banquetes". Como isso é diferente de Hermes, sempre em movimento, sem imagens dele sentado e passando tempo com a família, compartilhando comida com os outros. Com o laptop, celular, iPod e TV vêm fazer uma boquinha, beber depressa e lanchar no caminho. Hermes vai ao restaurante com o mundo na sua bolsa. Então era com Héstia que alguém procurava o abrigo sagrado, onde poderia ter refúgio e quietude. Supostamente, a combinação da tela eletrônica estacionária e fixa dentro do seu lar e seu alcance mundial reproduzem a união Héstia-Hermes. Um altar comum, uma lareira de foco. Interior e exterior unidos: supostamente, enquanto está sentado ali, você serve igualmente esse antigo par. Esse argumento omite o sentido mais profundo de Héstia. Ela torna-se apenas uma estação de serviço fixada para Hermes, como uma esposa que guarda o vestíbulo para que o marido possa partir e chegar voando entre compromissos. Ela não tem valor em si mesma, é um simples servomecanismo. A noção de Héstia como PC omite a devoção disciplinada à interioridade, menos à mensagem do que ao significado, menos em conexão externa com os processos da interioridade, com sua natureza não contaminada e virginal. Só esses processos que não tem uso funcional direto, aqueles que não fazem conexões, que não comunicam nada, mas que vêm antes de todas as possibilidades – a interioridade da vida focalizada que não pode cair nas seduções da tentação externa, aquela pureza, até mesmo aquela ascese, da atenção disciplinada, fechada em si mesma como o círculo – oferecem a gravitas e o contrapeso para a intoxicação hermética. O fato de que a Internet, ou o seu equivalente em cada país e sistema, rapidamente tenha se tornado uma exposição de pornografia e que seja usada para vários tipos de interações sexuais "virtuais", comprova a sua associação exclusivamente hermética. O Hermes do mito tem um forte componente sexual. O galo e o carneiro eram seus animais específicos, e ele era configurado primordialmente como uma herma fálica. Quando vemos as imagens esculpidas de Hermes, enxergamos sua cabeça esculpida às vezes com seu capacete de pensamentos invisíveis acima, e seu membro bem definido abaixo. Entre a cabeça e o falo — apenas o bloco de pedra. A mente e o sexo – duas grandes forças geradoras e autônomas, mas o corpo da interioridade, da recepção e digestão, o coração e o estômago e as entranhas, está tudo em branco. Ou às vezes, seu corpo é apresentado como um jovem muito esguio e sem feridas. Hermes, um hacker adolescente? O fato da Internet ter se tornado sexualizada tão rapidamente ajuda a compreender os movimentos puritanos para colocar controles nos programas do ciberespaço e na televisão. A censura contra "sexo virtual" e o conteúdo sexual da televisão mostra novamente o contrapeso de Héstia para o lado lascivo de Hermes, onde a comunicação e a conexão também significam intercurso. Héstia, seguindo diziam, era "imune ao poder de Afrodite e às flechas de Eros." E também era dito, "a sexualidade deve ser escondida de Héstia." Suas servas, as Virgens Vestais, podiam ser executadas, e eram de fato enterradas vivas, se traíssem um único sinal de atração venusiana com seus olhos, seus gestos, ou mesmo suas vestes ou caminhada. Quando Hermes e Héstia não estão em um ritmo compatível, pressionam um ao outro a extremos. A sexualidade torna-se uma grande área de conflito, e o ascetismos puritano rigidamente atropela a fantasia e a liberdade do desejo. Nossa geração eletrônica já descobriu sua necessidade de Héstia e a coloca em prática diariamente, junto com sua intoxicação hermética mundial, atividades deliberadamente tediosas e repetitivas de foco silencioso e intenso – exercícios de ginástica em máquinas de aeróbica, corridas isoladas com fones de ouvido, assim como Zen, taoismo, Ioga e outros rituais centralizadores da meditação. Esses comportamentos fornecem contrapeso, eles oferecem um antídoto hestiano para o vício hermético. Nós oscilamos entre mensagem e meditação, entre Hermes e Héstia, do mesmo modo como soldados e marinheiros costumavam alternar entre o posto de batalha e o prostíbulo, entre Marte e Vênus. Portanto, a psicoterapia profunda e prolongada (que anteriormente eu havia questionado) pode servir como um ritual hestiano para manter Hermes no aqui e agora. A psicoterapia clássica, como propostas e praticada por Freud e Jung, era consistentemente localizada em um local físico (Bergstrasse em Viena e Seestrasse no lago de Zurique). Essa disciplina contínua e de longo prazo, interminável e sem futuro, introvertida, lenta, cuidadosa e intensamente focalizada na interioridade tornam-se, nessa era digital rápida, mais necessária do que antes.
Aqui e Agora
Agora desejo explorar outro aspecto da psicologia de fim de milênio, um aspecto
que é consequência lógica do que já dissemos sobre Héstia e o significado do local. O desejo por um lugar, o retiro para o terreno doméstico, a busca de santuário – o que os junguianos chamam de temenos ou receptáculo de contenção – sugerem uma alteração radical no nosso pensamento e sentimento, que eleva o local como um refúgio contra o tempo. Ao dizer lugar não quero me referir ao espaço. Sejamos claros. Desde Newton e Descartes, e especialmente desde Kant, concebemos um mundo baseado em dois princípios, espaço e tempo. Ambos são abstrações sem conteúdo palpável, vastos recipientes de vazio sem significado ou valor, sem qualidades ou diferenças intrínsecas. Um é coo uma sala universal onde qualquer coisa pode ser localizada por meio de coordenadas geométricas, e o outro, um rio infindável de unidades distintas, cada uma exatamente igual à outra, meros tique-taques contíguos de um relógio tirânico. Mas agora, nessa virada de milênio, observamos nosso mundo envolvido em conflitos ferozes por lugares. Pessoas no mundo inteiro estão prontas a dar suas vidas por lugares específicos, os subúrbios de Sarajevo, as vilas rochosas da Chechênia, distritos urbanos de Belfast, bairros de Los Angeles, Curdistão, Chiapas, assentamentos na Transjordânia. As guerras por território são arcaicas e animalescas. Estou sugerindo, contudo, que essas batalhas atuais pertencem aos nossos sintomas atuais, e são sempre esses sintomas que a psicologia procura quando a consciência está emergindo, quando os paradigmas estão mudando. O sintoma é a primeira fonte da compreensão psicológica. Os sintomas da limpeza étnica e do ódio racial (xenofobia) dizem "preserve a pureza deste lugar." Não permita que deuses estrangeiros sejam honrados aqui. A xenofobia é monoteísta na sua psicologia e literal na sua crença em território, solo, lar e Héstia. Poderemos compreender melhor seus protestos se virmos as suas raízes míticas, e ouvirmos suas alegações de expressões arquetípicas. Dentro do construto do par Hermes-Héstia, a limpeza étnica, o extermínio das populações nativas, a demolição de casas e a destruição do solo em um frenesi de autoproteção são excessos de Héstia combinados com os excessos de Hermes – as comunicações herméticas da rede mundial do ciberespaço e globalismo, onde qualquer lugar é toda parte, e a própria ideia de lugar tornou-se irrelevante. Assim como Hermes pode enlouquecer com a intoxicação hermética quando separado de Héstia, um monoteísmo de Héstia torna-se apenas pureza fanática, devoção fanática, o foco único no lar, na terra natal e nas relações familiares. Nenhum contato com os outros – eles se tornam um império maligno, um eixo do mal. Comunicação torna-se contaminação. Sem nuances, sem ambiguidade, sem Hermes. Robert McNamara relatou que durante seus sete anos como Secretário de Defesa não houve nem sete minutos de comunicação direta entre os presidentes Kennedy e Johnson e o presidente Ho Chi Minh. Sob as noções hestianas de segurança purificada, a diplomacia hermética é permitida apenas através de canais por trás dos panos, espionagem ilícita, inescrupulosa e disfarçada. A defesa hestiana das "boas e velhas maneiras locais" fornecem uma barricada trancada contra a torrente de uma fantasia multicultural miscigenada do futuro. Os sintomas da limpeza étnica, tribalismo e xenofobia tentam conter esse "futuro." Eles afirma o "local" como uma proteção contra as mudanças que vêm com o "tempo." Eles reafirmam o primado do lugar sobre o tempo como o princípio dominante mais importante para ordenar a existência. Eles tentam colocar um fim no tempo. E isso – o fim do tempo – é precisamente a causa das nossas ansiedades milenaristas. Nós imaginamos um fim do tempo literal e espacial, um cataclismo gigante afetando a terra inteira, uma epidemia global como o Ebola e a AIDS, aquecimento das calotas polares e enchentes, inverno nuclear, esgotamento do ozônio, câncer universal, fome universal, uma noite gasosa universal. Assim, estou sugerindo que o retorno ao lugar nos liberta da desolação do pensamento espacial e da ansiedade do tempo. De fato, poderemos então desliteralizar o "fim dos tempos" cristão e a visão assustadoramente sádica do Apocalipse como uma metáfora. Sim, o tempo para quando o milênio acaba – não literalmente, já que os relógios antigos vão continuar seus pequenos círculos mecânicos e os calendários continuarão a ter suas páginas arrancadas e jogadas fora. Mas onde estamos, e seu efeito sobre como estamos, torna-se a consideração essencial de uma vida. Pois cada lugar vai revelar seus determinantes locais, os deuses e daimones do lugar, seja como uma biorregião, um depósito de tradição, como uma composição arquitetônica, como uma atmosfera paisagística, um clima psíquico. O local onde você está torna-se a verdade essencial de uma vida, em vez de seguir adiante e ir em frente. Essa via psicológica de um "fim do tempo" promove um modo de vida ecológico e integrado, um caminho animista e politeísta. Também devolve Hermes ao panteão de onde ele se libertou e desintoxica aquela inflação de um deus acima de todos os outros. A hipertrofia de Hermes preenche nossos dias com ansiedade apressada, temendo ficar para trás. Parece que nunca somos capazes de estarmos atualizados – o tempo é tão fugidio, a vida é tão rápida. Não podemos estar onde estamos e em vez disso vivemos em um futuro, nossas cabeças inclinadas para frente, nossos pés tentando calçar as sandálias aéreas do deus. Então vivemos nossas agendas, não nossos dias – nossos compromissos e não nossos ritmos. A mudança de paradigma de tempo para lugar, essa restauração de Héstia como a primeira entre todos os deuses e deusas, naturalmente afetaria toda terapia, porque a alma não seria mais medida pelo tempo do corpo e o tempo do mundo – estágios de crescimento, idade em anos, nossa geração e nosso período da história. Os sintomas da alma de lentidão, como a depressão, resistência, esquecimento, repetição e fixação podem ser reavaliados como rejeições do tempo, movimentos para longe das pressões do tempo e para a estabilidade do lugar. Uma das principais máximas da Renascença era, "olhe para trás para ver adiante". Também é expresso como retrocedens accedit, avançar pelo recuo. Quando Brunelleschi projetou o domo da catedral florentina, ele olhou para trás para seguir para frente, dizendo "nem os antigos erigiram uma abóboda tão enorme como esta." Sua noção de progresso era governado por ideais do passado, não fantasias de um futuro inteiramente novo e independente de precedentes. O olhar para trás revela os padrões que se mostram repetidamente. Eles indicam realidades arquetípicas. Não é a história que governa o futuro, mas as projeções para frente desses padrões arquetípicos. Assim, quando a futurologia relata esperança, progresso e reflorestamento, e sustenta esses prognósticos otimistas com evidências da ciência espacial, biotecnologia, taxas mais baixas de mortalidade infantil, mais celulares, refrigeração, expectativa de vida mais longa, nova consciência ecológica – nós acreditamos que vemos a realidade. Nós imaginamos que esses são os fatos determinantes. Mas a realidade está nos olhos que veem, não no que veem. Pois é precisamente o olho do futurologista, informado por outra visão arquetípica mais saturnina, que fita o futuro e vê terror e tragédia, destruição do meio-ambiente e da espécie, enchentes e fome, insurreições civis, terrorismo e pragas – um mundo descrito pelo grande pessimista Thomas Hobbes como uma guerra de "todos contra todos," e a vida humana como "abjeta, brutal e curta". Nós olhamos para trás para ganhar informações sobre as formas arquetípicas dos nossos insights para que possamos compreender que todos os futurismos são fantasias – independente da evidência. Como as tendências presentes são múltiplas e contraditórias, as extrapolações dessas tendências para o futuro só levam a múltiplas e contraditórias predições. Nenhuma visão única pode prognosticar. Realidades objetivas além do aqui e agora permanecem desconhecidas e não podem ser conhecidas, pois esse é o significado da palavra "futuro": aquilo que não é e que não pode ser declarado no tempo presente. Não “existe” futuro. O futuro é apenas outro nome para o inconsciente no espelho onde vemos nossas próprias inclinações subjetivas. O ato de cuidar como continuação
Está na hora de concluir. O tempo ainda urge, empurra e pressiona – ainda
estamos neste milênio. O tempo nos leva junto com rapidez, nos força a sair daqui, sair deste lugar, de modo que possamos ir a outro lugar, um bar, um café, uma cama. Ou talvez Héstia esteja nos chamando para casa. Assim, vou concluir dizendo mais uma vez: o pensamento milenarista sobre o futuro é uma fantasia arquetípica. Essa fantasia nos seduz, evitando o confronto com dois fatos fundamentais de toda existência humana, de toda existência cósmica. Primeiro, qualquer momento real ocupa um lugar real, e segundo, a vida depende de uma fé profunda na continuidade existencial. O futurismo escapa do primeiro, sempre saindo daqui para algum outro lugar, e o futurismo nega o segundo, evacuando a certeza do real com especulações sobre um vago e vasto desconhecido. Pois a grande catástrofe que o futuro trás não é o futuro em si, mas o efeito do futurismo na vida presente, como ele desvia a atenção do que é para o que não é, tirando foco do pão nosso de cada dia, do sal e da água do real para o desconhecido e o conjectural, negando assim Héstia, e nos tornando a todos "sem lar." Tenho me esforçado ao máximo para restaurar a centralidade de Héstia, que pode nos localizar, onde quer que estejamos, na vida física concreta. A lareira é onde quer que esteja realmente o seu foco, como a dela também estava no meio da cidade, no Pritaneu, ou prefeitura comum. Pois seja qual for o século no calendário e a hora no relógio, esse tempo sempre ocorre em algum lugar – em uma cama, em uma mesa, em um escritório, em uma rua. Nós estamos todos sem lar quando vivemos apenas no espaço e tempo, e ninguém está sem casa quando Héstia está presente. Ela fornece a cada situação ambiental um senso de estar aqui, Da-sein. A certeza do real – aquilo que é porque está aqui, e dotado de uma eternidade que não pode ir embora e que não está sujeita ao tempo – é similar ao que George Santayana, o velho filósofo espanhol que viveu seus últimos dias na "cidade eterna", chama de "fé animal." É aquele sentimento nos nossos ossos de que a terra está embaixo dos meus pés, que o sol vai se por nessa tarde, que o mundo – seja assustador, trágico, injusto ou sem sentido – ainda assim não irá embora. Essa fé animal é como a consciência dos próprios animais, que não tem futurologia. Em vez disso, suas possibilidades de existência estão sempre fundamentadas – há ar para a asa do pássaro, a água está lá para o prazer do peixe. Este solo está sempre "aqui", não virtualmente, mas inteiramente aqui, permitindo a possibilidade de viver, permitindo-nos dormir à noite sabendo que a aurora vai nos encontrar no mesmo lugar, permitindo-nos arrumar tudo com gestos fiéis de certeza animal depois de um desastre, enterrar os mortos e servir aos que choram uma refeição quente e amistosa.