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Intoxicação Hermética

James Hillman

Psicologia milenarista

No final de um século, um clima de fin de siecle, com suas previsões e agouros


cobre os últimos anos de um éon que se estende até o início do nosso calendário.
Contudo, não devemos esquecer que uma psicologia milenarista é específica para um
mundo cristianizado. Os muçulmanos tem outro mito afetando seus calendários, assim
como os judeus. O resto deste vasto mundo, cheio de povos tribais arcaicos e
sofisticados, nômades e pagãos de todos os tipos, aldeões hindus em Bihar e Mysore, os
bilhões de corpos vivendo na Ásia Oriental, na África tropical e na América — todos
eles não têm nossos mitos milenaristas e psicologia milenarista. Toda essa gente pode
usar nosso calendário imposto, e muito embora suas datas tenham sido convertidas – se
não pela religião, certamente pelo comércio – seus mundos não têm a ameaça de um fim
dos tempos, porque não iniciam seu tempo de calendário com a aparição de Jesus.
O pensamento milenarista sobre o fim no século vinte, o próprio fim do tempo,
pertence ao nosso livro sagrado ocidental, e àquele capitulo final de horror pavoroso, o
Apocalipse, com sua visão catastrófica de uma conflagração universal. Essa ansiedade
em relação ao milênio e ao que acontece em seguida é um fenômeno cristão; já que
grande parte do cristianismo oficial dogmático pertence a esta cidade, é apropriado que
esse tema seja discutido em Milão. Constantino e Constâncio (inimigo do pagão,
Juliano), Ambrósio, o grande defensor do dogma, e o próprio Agostinho ensinaram
aqui. Se desejamos trabalhar psicologicamente para ultrapassar a ansiedade constelada
pelo fim desse século, seria bom começar nesse lugar específico.
Ao situar o milênio dentro de um contexto global, estou tentando realizar dois
movimentos psicológicos. Os dois derivam do trabalho pioneiro de C. G. Jung. O
primeiro movimento Jung chamou de "relativizar o ego," isto é, situar nossas
preocupações ocidentais dentro do contexto mais amplo dos mitos mundiais com seus
muitos e diferentes calendários, datas, ideias de tempo e escatologia, tornando a
perspectiva cristã uma entre muitas, relativa em vez de definitiva. Do mesmo modo,
nosso futurismo — projeções sobre o que está por vir — tornam-se afirmações de um
ego ocidental, projetando sua própria sombra. Assim como o ego não representa a
psique inteira, a mente ocidental não pode falar pelo mundo todo.
A autoimportância que atribuímos às nossas preocupações sobre o fim do século
e as projeções futuristas que fazemos sobre o que virá em seguida, de fato as próprias
agendas que compramos com datas já impressas: 31 de dezembro de 1999 e 1 de janeiro
de 2000 — tudo isso é relativizado pela consciência de que esses números têm pouco
significado quando saímos das nossas próprias fixações predeterminadas pelo mito
básico da consciência de tempo cristianizada.
Essa inclusão da variedade global é meu segundo movimento. Ele deriva da
noção de Jung de consciência coletiva — as atitudes, ansiedades, opiniões, gostos,
desejos, hábitos de mente e coração que todos nós compartilhamos. Eles estão no ar em
que respiramos, na luz que nos permite enxergar. A consciência coletiva atual inclui
uma mentalidade global, multiculturalismo, pensamento planetário, multinacionalismo
— o senso de que todas as coisas privadas, pessoais e locais estão sendo afetadas pelo
que os outros estão fazendo em toda parte. A música nos seus rádios é produzida em
estúdios de gravação londrinos, as bananas transportam seus pesticidas tóxicos do
Equador, os camarões vêm do Golfo do México, assim como os chips de computador
levam para seu PC moléculas da Irlanda, Índia, Texas e Coreia.
O consumismo multinacional, turismo e a “teia mundial” de comunicações da
Internet são os níveis evidentes e superficiais dessa consciência coletiva, desse
globalismo. No seu interior, e permeando o globalismo como um humor subliminal, há
um senso de identidade difusa, uma ansiedade quanto à falta de fronteiras, o que
chamamos na psicologia clínica de transtornos de personalidade borderline, ataques de
pânico, defesas paranoicas e raivas narcisistas. Isto é, fronteiras difusas e purismos
paranoicos, assim como recuos em um intenso isolamento autocentrado, preocupações
em relação ao próprio sistema imunológico, com ódio em relação a tudo que é invasivo
(incluindo imigrantes), uma síndrome de características relacionadas com a perda da
certeza pessoal, autodefinição e localização dentro de fronteiras bem definidas.
O globalismo e o futurismo são traduzidos no nível individual como ansiedades
pânicas e recuos narcísicos.
Para encontrar novamente essas fronteiras pessoais e locais, às vezes precisamos
retornar a medidas hostis de exclusão. Tentamos resistir às incursões do Outro na nossa
esfera privada. Participamos de movimentos separatistas, declaramos lealdade a cultos
onde o Outro simplesmente é meu espelho, evitando assim o desafio da diferença.
Essas defesas regressivas contra a dissolução tentam recapitular as estruturas de
segurança mais antigas do ego, antes de ser deslocado e desconstruído pelo globalismo.
Esses movimentos tomam forma política na xenofobia, limpeza étnica, genocídio ou em
recuar até uma Liga Lombarda [N.T.: liga formada em 1167 entre trinta cidades
italianas contra o Sacro Império Romano-Germânico] com seus ecos de antigas cidades-
estado italianas e mediterrâneas, ou muralhas e cercas na fronteira dos EUA e de Israel.
Todos esses movimentos tentam alcançar o que Jung chamava de "restauração
regressiva da persona" ou status quo anterior, por meio — na esfera política — do
localismo literal. Vimos isso em Israel, na Chechênia, na Bósnia e Croácia, em Chipre,
e entre os bascos e catalões na Espanha.

A chegada de Hermes

Segundo a perspectiva da psicologia arquetípica, o fascínio com a troca entre os


povos em toda parte, a hipercomunicação do globalismo, a ênfase no comércio e
finanças, a instantaneidade oferecida pelos aparelhos eletrônicos, a compulsão de viajar
— tudo isso indica o cosmos mítico de Hermes-Mercúrio, o deus veloz de asas nos pés,
capacete de invisibilidade e pensamentos alados.
O globalismo parece uma overdose de Hermes, assim como a Era da Razão
sofria de uma overdose de luz solar apolínea e um excesso da racionalidade
normalizadora de Minerva. Ou, para outro exemplo de hipertrofia divina, a loucura de
Marte que toma de tal maneira um povo que qualquer homem ou mulher comum pode
tornar-se um matador furioso.
Com a virada do século, um monoteísmo de Hermes nos aprisiona a todos. Não
só seus novos instrumentos, mas a aceleração com que cada nova geração dessas
ferramentas e dispositivos são desenvolvidos — obsolescência dentro de oito meses,
cada dispositivo ultrapassado por melhorias e expansões crescentes, alcance ainda mais
amplo, conexões ainda mais rápidas.
Uma segunda área onde reina Hermes é o mercado — o mercado de ações.
Fundos mútuos, especulações sobre moedas, commodities, futuros, opções, derivativos,
fundos de cobertura. Os mercados do mundo conectam-se hoje através de comunicações
instantâneas, permitindo gigantescos deslocamentos de dinheiro de um lugar para outro,
de uma moeda para outra, de um mercado para outro. O que antes era um investimento
crônico de longo prazo agora é uma rápida circulação hermética. O mercado como um
jogo – e dizermos “jogar com o mercado” (“playing the market").
Esses grandes deslocamentos de dinheiro trazem a sombra de gigantescos roubos
e fraudes, lavagens de dinheiro e trapaças. Os sistemas de contabilidade não conseguem
mais acompanhar os movimentos rápidos dos banqueiros, que lidam com milhões e
bilhões de dólares por transação. Os governos não podem controlar as corporações
multinacionais ou regular as flutuações monetárias, o preço do ouro, e produtos básicos
de consumo, ou o valor e quantidade do seu próprio suprimento de dinheiro.
Antigamente Saturno regia o dinheiro. Nos antigos livros de simbolismo,
Saturno era chamado de ricaço. Ele era representado um uma bolsa bem fechada e
declarado Deus da Casa da Moeda. Agora, com essa hipertrofia de Hermes, o dinheiro
não é mais moeda sólida nem bancado pelo ouro, só palavras e números, meras
mensagens enviadas pelo processamento de dados eletrônico e representado por um
pequeno cartão de plástico com texto em alto-relevo.
Em muitos lugares onde as finanças herméticas alcançaram seu apogeu, a
importância fundamental da casa e da terra caíram diante da intoxicação hermética. A
terra e suas construções que fornecem estabilidade e abrigo encontram seu valor
determinado pelo desenvolvimento especulativo e taxas de hipoteca. Hermes, que não
possui lugar de descanso ou residência permanente na terra, trouxe sua impermanência e
mudanças rápidas de valor diretamente para nossas habitações humanas.
Um aspecto da intoxicação hermética merece atenção psicológica especial.
Estou me referindo ao apetite por informação. Como devem se lembrar, Hermes era o
mensageiro dos deuses, e um mensageiro indiscriminado. Isso porque ele carregava
todas as mensagens sem entrar ativamente no conteúdo do que levava. Ele não tinha
opiniões nem valores, não fazia comentários editoriais, não censurava. A sua tarefa era
tornar a comunicação possível, mesmo a comunicação com o reino dos mortos e o
mundo subterrâneo.
Podemos encontrar Hermes como uma imagem pintada e esculpida na cerâmica
e no mármore dos gregos, tranquilamente associado a Apolo de um lado e Dioniso do
outro, com Afrodite, e com Atena e Ártemis, com Zeus e Hades, e mesmo com
Hércules, ainda que o próprio Hermes nada tivesse de heroico. A informação não
assume posições, não guarda rancores, e assim não tem limites – está sempre
disponível.
Em uma cultura que perdeu os deuses, uma cultora de onde os deuses se
retiraram, temos as mensagens, mas elas não levam os significados dos deuses. Mera
"informação." Contudo, Hermes, na sua devota fidelidade ao seu papel arquetípico,
passa a informação, facilitando indiscriminadamente as mensagens independente do seu
conteúdo, que pode ser facilmente um blog, uma piada, uma propaganda, uma proposta
sexual, ou uma revelação de importância política crucial. A palavra "informação"
tornou-se tão inflacionada que carrega o código da identidade e o destino do DNA de
um indivíduo. Não a sabedoria, não o conhecimento, nem inspiração, aprendizado,
conforto, verdade, profecia, valor moral ou beleza estética. Em vez de mensageiro dos
deuses, Hermes tornou-se servo da Internet.
Quando dizemos, como nos guias populares de mitologia, psicologia arquetípica
e astrologia, que Hermes é o "deus da comunicação," devemos reconhecer que a
comunicação não pode pertencer apenas a um deus. Há muitos modos de comunicação.
Por exemplo, há a conexão – sem palavras, íntima e sensorial – entre amantes, entre
mães e bebês, entre paciente e enfermeira, entre animais e seus donos. Há uma
comunicação por meio das delícias cotidianas da vida: flores, culinária, beber em
companhia. Há uma comunhão no nível de da "participation mystique" dionisíaca,
quando todos curtem juntos um grande concerto de música pop ao ar livre, riem juntos
de comediantes na tela. Existe a comunicação do trovão de Zeus, o relâmpago da
inspiração, da iluminação, o amor a primeira vista por uma pessoa totalmente
desconhecida. Existe a comunicação gestual entre guerreiros em formação, mesmo entre
inimigos em conflitos, seja na guerra ou no campo de futebol, e entre um cruel guarda
saturnino e seus prisioneiros.
Também há a comunicação do ensino e do aprendizado, e lenta e detalhada, e
sem o brilho e a diversão de Hermes. A comunicação também se dá através da arte e
artesanato, seja por meio de uma obra que se comunica pela fagulha que salta da obra de
arte até o olho e o coração do expectador, e então para sua própria mão para fazer outra
obra de arte.
Hermes, por favor, não é o único meio de conexão. É um pecado contra o
panteão do politeísmo deduzir que Hermes é o único deus da comunicação. Essa
usurpação monoteísta de todos esses modos diferentes para o hermético eleva a mídia
eletrônica para a posição principal nos nossos instrumentos. Além disso, essa
intoxicação hermética fornece uma definição exclusiva de comunicação, negligenciando
as artes, o corpo, as sutilezas do silêncio sensorial. E essa hipertrofia de Hermes acredita
que seu PC, iPod, Blackberry, PlayStation, Xbox, ATM, ou o que for tornou-se seu
"servidor," tornou-se realmente um item indispensável para "receber mensagens,"
"manter o contato," "habilitar" você a estar na vida e apreciá-la. Além disso, a
degradação de Hermes a instrumentos convenientes de astuciosa magia degrada o deus a
um. E se o chip é programado para funcionar no princípio de 1-ou-0 de uma coisa/ou
outra, então Hermes não é mais o deus do "espaço intermediário," da ambiguidade,
como apresentado pelos mitos.
Para tornar mais clara essa degradação, deixe-me usar um paralelo em relação ao
herói. O herói antigo servia a cidade – na verdade, uma cidade antiga era fundada sobre
o túmulo de um herói. A ideia original do herói significava alguém entre os humanos e
os deuses, e que ajudava a cruzar a diferença entre mortais e imortais. Fossem eles
míticos como Hércules e Enéias ou humanos como Alexandre e Júlio César, os heróis
eram imaginados como tendo um progenitor humano e outro divino, incorporando
assim as duas naturezas em uma figura. Jesus Cristo era imaginado segundo o mesmo
padrão arquetípico.
Agora, como Holderlin, Rilke e Nietzsche observaram, os deuses não estão mais
conosco; eles realmente não apreciam esse mundo humano moderno – e se não se
retiraram ou morreram, certamente estão menos entre nós do que antes.
Em vez disso, "todos os deuses estão dentro de nós," como disse Heinrich
Zimmer. Eles foram psicologizados, tornaram-se funções da psique humana. Então o
herói torna-se internalizado como um componente psicológico, renomeado como "o
ego," aquela figura na psique que mostra o caminho, decide o curso de ação, e vence os
monstros da inconsciência. Mas esse herói, sem os deuses, sem os limites estabelecidos
por eles, é meramente ambição secular, carreirismo, força brutal, misoginia e um
inimigo da natureza. O ego incorpora todas as qualidades do herói antigo, mas perdeu
sua raison d'etre — o serviço aos deuses, a fundação da civilização, e a ponte entre a
vida humana e os mitos e valores transpessoais. Nada permanece além do avassalador
orgulho heroico, a húbris egoísta da cultura secular ocidental.
Estabelecendo o paralelo com o herói como um ego secular, descobrimos que
Hermes tornou-se um mensageiro secular. Não mais um dos deuses, e em vez disso
infiltrado com o monoteísmo que perdeu sua credibilidade viável como senhor de todos
os domínios. A antiga omnisciência tornou-se o alcance geral de banda larga – a
onipotência, a realidade virtual que pode simular todas as coisas – e a onipresença
divina do monoteísmo, a instantaneidade das conexões etéreas e a fotografia de satélite
que pode observar e mapear todos os fenômenos do planeta.
A intoxicação hermética também pode nos iludir. Afinal de contas, não era
Hermes o mestre da fraude? Ele é um ladrão, um conspirador, um vigarista, um sub-
reptício caminhante noturno. Será Hermes que subitamente faz cair a ligação, impede o
computador de funcionar, deixa de salvar o que acabei de escrever, encontra maneiras
de bugs e vírus que destroem subitamente programas e bancos de dados insubstituíveis?
Talvez seja Hermes, o deus dos comerciantes, que convencem o consumidor de que
precisam de mais capacidade, processamento mais rápido e mais periféricos do que
jamais poderão usar, vendendo o software mais recente antes que tenhamos utilizado
plenamente o que já temos. Será Hermes que inspira jovens hackers a penetrar em
segredos corporativos, arquivos de polícia, registros governamentais, e a roubar
informações ou invadir o disco rígido e magicamente transformar o que é precioso em
algo sem sentido.
Talvez tenha sido Hermes que inventou o roubo de identidade, removendo nossa
cobertura coletiva e deixando-nos como uma alma nua e sem nome. Assim como ele
conduz almas (psicopompo) ao mundo inferior, talvez ele use o submundo para levar
nossas almas para longe da identidade jurídica que trazemos nas nossas carteiras. Como
psicopompo ele também é um psicogogo, um professor da psique, um psicólogo, cuja
principal instrução é a ambiguidade e duplicidade, como as serpentes gêmeas
entrelaçadas no seu bastão. Ele está desfazendo nossa identidade egoica pelo bem da
alma, que muitas vezes é vivenciada pela perda.
Uma grande pergunta me persegue: se meu diagnóstico mítico está correto e
Hermes é o deus na doença, então poderia Hermes estar jogando um jogo de
computador/video game com o mundo inteiro? É o futuro necessariamente eletrônico, a
Nova Era coo uma idade de informação da mídia, e-mails, relações públicas,
entretenimento informativo (infotainment), realidade virtual, ciberespaço? Ou será que
fomos pegos em um jogo de Hermes... Não os jogos que os computadores jogam, mas
será que Hermes, por meio do chip de silicone, está jogando com nossa civilização
humana?
Essas suspeitas me ocorrem; que elas me venham à mente é ainda outra
indicação da presença de Hermes/Mercúrio, pois o engodo é tão parte do seu comércio
quanto o próprio comercio. Sentimos suspeita, não por sermos luditas e contra a
tecnologia, mas sim porque parte da consciência hermética é estar atento ao engodo.
Simul similibus curantur – semelhante cura semelhante. Capturar Hermes é capturar um
ladrão, e não só capturar um súbito lampejo de inspiração.
Como os dispositivos interativos de Hermes facilitam o jogo de acasalamento de
Afrodite e a tática da guerra, os cálculos da construção e agricultura, as conexões
familiares, a solidão de Saturno, fornecendo até mesmo prazeres joviais, nenhum outro
dos grandes impede o domínio de Hermes. Com todo o vasto mundo disponível a você
individualmente, pessoalmente, só por sua conta, a intoxicação vem em seguida. Basta
um clique e eu estou ligado, o epicentro de uma rede mundial.
O Google, o Internet Archive, a Wikipedia ressuscitaram o fantasma do antigo
hermetismo, aquela vasta coleção de literatura de sabedoria oculta, imagens
mnemônicas, símbolos e práticas mágicas voltadas para o domínio de todo o
conhecimento. Seus seguidores da Itália renascentista até a Inglaterra Elisabetana
atribuíram os ensinamentos ao próprio Hermes, ou a outro deus universal do
conhecimento, Thoth dos egípcios. Por meio de reduções alegóricas, simbólicas e
matemáticas, o hermetismo procurou transpor o mundo físico em espaço mental. Dados
se tornam mensagem, o mundo é angélico, o cosmos é hermético, isto é, selado até ser
revelado, e a revelação é também a redenção do mundo através do conhecimento. Será
que esse motivo ainda está por trás da nossa intoxicação contemporânea?
Contudo, mesmo enquanto Hermes fornece esse aceso miraculoso, o que ele
tira? Lembre-se, Hermes é o deus de encontrar – e perder; de dar – e de roubar.
Imagine uma festa. Uma festa de jantar, uma festa dançante, uma festa de
aniversário. Roupas e moda e decoração de interiores, antecipação ante do evento e
fofocas depois do evento - imagine a comida e o serviço, o vinho e as flores, os corpos e
seus movimentos, os flertes e seduções, o súbito encontro com um velho amigo ou um
velho inimigo, e depois pense também nas sutilizas de gesto e linguagem, os tons de voz
e peculiaridades de fala, dialetos regionais e pequenas frases. O perfume.
No computador, uma extraordinária série de sofisticadas habilidades sociais que
levaram séculos para serem elaboradas não exercem mais papel nenhum. Uma das
figuras mais herméticas do nosso tempo, Brian Eno, que tomou parte em tantos níveis
de invenção de mídia e performance, e que pensa muito sobre o assunto, comentou: "o
problema com o computador é que não há África o bastante nele." Corpo. Ritmo. Alma.
Cerimônia social.
A civilização depende da sua África, das capacidades sociais que devem ser
associadas à comunicação – a menos que a comunicação seja apenas uma comunicação
de pontos e traços enviada por um telégrafo de Marconi. A comunicação é uma
interação multinível, uma invasão complexa de almas, não apenas mensagens
interativas. Além disso, a comunicação é, em última instância, em prol do conhecimento
– conhecer não apenas a mensagem, mas também o emissor e o receptor – quem é o
outro e qual importância a mensagem tem especificamente para você.
Uma mensagem é um anjo, do grego aggelia (mensagem), pelos significados
latinos e teológicos de uma mensagem divina. Os anjos eram muitos – eles tinham
nomes, formas, representações particulares. Uma verdadeira mensagem anuncia algo,
revela algo, altera algo – traz conhecimento de um significado mais alto. A voz do anjo
era devastadora, um toque de trombeta, uma revoada de asas negras na noite. Qual
celular pode transmitir um anjo?
Há uma cura para a intoxicação hermética? O que pode nos libertar desse vício
ao acesso e recebimento imediatos, esse deleite na passagem invisível de palavras
anônimas pelo ar, esse privilégio de uma conexão possível com todos os outros?
Nem Zeus, seu pai, nem Apolo, seu irmão, puderam verdadeiramente domar
Hermes, ele enganou ambos. Tampouco as deusas, ninfas e humanas com quem se
acasalou mudaram seu modo de ser. Com muitas dessas figuras femininas ele teve
filhos, mas suas relações não resultaram em relacionamentos. Só uma das figuras
mitológicas parecia ser sua contraparte: Héstia. No mundo grego, e depois no mundo
romano, quando Mercúrio era associado com Vesta nós descobrimos uma mensagem.

O foco de Héstia

Antes de começarmos a falar sobre Héstia, devemos brindar a ela: antes de


qualquer evento, os antigos romanos diziam: Vestal, como nós, levantando nossos
copos, dizemos: salud, kampei, saúde, prost, sante, I'chaim... Ela veio primeiro, antes
de Zeus, antes de Hera, Gaia, Deméter.
Em outras palavras, primeiro devemos ter foco, em casa com nós mesmos, no
presente aqui e agora. O foco, nossa palavra em inglês para a atenção concentrada, o
interesse que aquece toda vida que vem para dentro do seu perímetro, origina-se da
palavra latina para lareira. E a lareira era Héstia. O lugar onde o fogo doméstico
brilhava era Héstia. Este Foco não era seu símbolo, era a própria Héstia.
O nome Héstia/Vesta provavelmente deriva do indo-europeu vas, "habitar."
Outra derivação, de acordo com os filólogos, é do radical "essência." Em suma, ela não
estava apenas "dentro", como dentro de casa ou dentro da lareira. Ela está na
intensidade focalizada e no interesse caloroso que chamamos de consciência atenta. E,
como Hermes, ela é uma qualidade da mente, uma invisibilidade. Ele é invisível na sua
passagem rápida, "o momento Hermes", ela é invisível como a própria consciência. Se
Hermes traz possibilidades à mente, Héstia as centraliza e fornece foco. O mercúrio
elemental se espalha por toda parte em um milhão de pedaços, enquanto o sal, a matéria
elemental dela, é o princípio alquímico da fixação e da imutabilidade.
Com a expansão de Hermes e sua falta de local em mente, peço a vocês que
agora escutem os hábitos e atributos de Héstia. Por exemplo: os antigos juízes
escreviam no final de cada dia todas as coisas relativas a um caso criminal e deixavam o
texto no "altar" de Héstia. Hermes também tinha uma conexão com a escrita – mas a
escrita de Héstia é manter registros exatos, fixar as coisas. Ela governava contratos,
Hermes celebrava acordos.
A consciência hestiana circula ao redor de si mesma. Ela não vai a lugar
nenhum, não deseja nada fora de si mesma. Assim, Héstia estava sempre assentada em
elementos circulares, e os locais onde era venerada sempre eram circulares.
No Fedro de Platão, quando os onze deuses viajam ao Olimpo, só Héstia
"permanece no seu lar". A ela é atribuída a invenção da arquitetura doméstica. Não só a
casa, o lugar, a ausência de movimento – como também a família: a via e a lei do clã. O
único serviço real prestado em sua honra era a refeição familiar. O Hino Homérico à
Héstia diz que "Sem ela, os humanos não teriam banquetes".
Como isso é diferente de Hermes, sempre em movimento, sem imagens dele
sentado e passando tempo com a família, compartilhando comida com os outros. Com o
laptop, celular, iPod e TV vêm fazer uma boquinha, beber depressa e lanchar no
caminho. Hermes vai ao restaurante com o mundo na sua bolsa.
Então era com Héstia que alguém procurava o abrigo sagrado, onde poderia ter
refúgio e quietude.
Supostamente, a combinação da tela eletrônica estacionária e fixa dentro do seu
lar e seu alcance mundial reproduzem a união Héstia-Hermes. Um altar comum, uma
lareira de foco. Interior e exterior unidos: supostamente, enquanto está sentado ali, você
serve igualmente esse antigo par.
Esse argumento omite o sentido mais profundo de Héstia. Ela torna-se apenas
uma estação de serviço fixada para Hermes, como uma esposa que guarda o vestíbulo
para que o marido possa partir e chegar voando entre compromissos. Ela não tem valor
em si mesma, é um simples servomecanismo. A noção de Héstia como PC omite a
devoção disciplinada à interioridade, menos à mensagem do que ao significado, menos
em conexão externa com os processos da interioridade, com sua natureza não
contaminada e virginal.
Só esses processos que não tem uso funcional direto, aqueles que não fazem
conexões, que não comunicam nada, mas que vêm antes de todas as possibilidades – a
interioridade da vida focalizada que não pode cair nas seduções da tentação externa,
aquela pureza, até mesmo aquela ascese, da atenção disciplinada, fechada em si mesma
como o círculo – oferecem a gravitas e o contrapeso para a intoxicação hermética.
O fato de que a Internet, ou o seu equivalente em cada país e sistema,
rapidamente tenha se tornado uma exposição de pornografia e que seja usada para
vários tipos de interações sexuais "virtuais", comprova a sua associação exclusivamente
hermética. O Hermes do mito tem um forte componente sexual. O galo e o carneiro
eram seus animais específicos, e ele era configurado primordialmente como uma herma
fálica.
Quando vemos as imagens esculpidas de Hermes, enxergamos sua cabeça
esculpida às vezes com seu capacete de pensamentos invisíveis acima, e seu membro
bem definido abaixo. Entre a cabeça e o falo — apenas o bloco de pedra. A mente e o
sexo – duas grandes forças geradoras e autônomas, mas o corpo da interioridade, da
recepção e digestão, o coração e o estômago e as entranhas, está tudo em branco. Ou às
vezes, seu corpo é apresentado como um jovem muito esguio e sem feridas. Hermes, um
hacker adolescente?
O fato da Internet ter se tornado sexualizada tão rapidamente ajuda a
compreender os movimentos puritanos para colocar controles nos programas do
ciberespaço e na televisão. A censura contra "sexo virtual" e o conteúdo sexual da
televisão mostra novamente o contrapeso de Héstia para o lado lascivo de Hermes, onde
a comunicação e a conexão também significam intercurso.
Héstia, seguindo diziam, era "imune ao poder de Afrodite e às flechas de Eros."
E também era dito, "a sexualidade deve ser escondida de Héstia." Suas servas, as
Virgens Vestais, podiam ser executadas, e eram de fato enterradas vivas, se traíssem um
único sinal de atração venusiana com seus olhos, seus gestos, ou mesmo suas vestes ou
caminhada.
Quando Hermes e Héstia não estão em um ritmo compatível, pressionam um ao
outro a extremos. A sexualidade torna-se uma grande área de conflito, e o ascetismos
puritano rigidamente atropela a fantasia e a liberdade do desejo.
Nossa geração eletrônica já descobriu sua necessidade de Héstia e a coloca em
prática diariamente, junto com sua intoxicação hermética mundial, atividades
deliberadamente tediosas e repetitivas de foco silencioso e intenso – exercícios de
ginástica em máquinas de aeróbica, corridas isoladas com fones de ouvido, assim como
Zen, taoismo, Ioga e outros rituais centralizadores da meditação. Esses comportamentos
fornecem contrapeso, eles oferecem um antídoto hestiano para o vício hermético. Nós
oscilamos entre mensagem e meditação, entre Hermes e Héstia, do mesmo modo como
soldados e marinheiros costumavam alternar entre o posto de batalha e o prostíbulo,
entre Marte e Vênus.
Portanto, a psicoterapia profunda e prolongada (que anteriormente eu havia
questionado) pode servir como um ritual hestiano para manter Hermes no aqui e agora.
A psicoterapia clássica, como propostas e praticada por Freud e Jung, era
consistentemente localizada em um local físico (Bergstrasse em Viena e Seestrasse no
lago de Zurique). Essa disciplina contínua e de longo prazo, interminável e sem futuro,
introvertida, lenta, cuidadosa e intensamente focalizada na interioridade tornam-se,
nessa era digital rápida, mais necessária do que antes.

Aqui e Agora

Agora desejo explorar outro aspecto da psicologia de fim de milênio, um aspecto


que é consequência lógica do que já dissemos sobre Héstia e o significado do local. O
desejo por um lugar, o retiro para o terreno doméstico, a busca de santuário – o que os
junguianos chamam de temenos ou receptáculo de contenção – sugerem uma alteração
radical no nosso pensamento e sentimento, que eleva o local como um refúgio contra o
tempo.
Ao dizer lugar não quero me referir ao espaço. Sejamos claros. Desde Newton e
Descartes, e especialmente desde Kant, concebemos um mundo baseado em dois
princípios, espaço e tempo. Ambos são abstrações sem conteúdo palpável, vastos
recipientes de vazio sem significado ou valor, sem qualidades ou diferenças
intrínsecas. Um é coo uma sala universal onde qualquer coisa pode ser localizada por
meio de coordenadas geométricas, e o outro, um rio infindável de unidades distintas,
cada uma exatamente igual à outra, meros tique-taques contíguos de um relógio tirânico.
Mas agora, nessa virada de milênio, observamos nosso mundo envolvido em
conflitos ferozes por lugares. Pessoas no mundo inteiro estão prontas a dar suas vidas
por lugares específicos, os subúrbios de Sarajevo, as vilas rochosas da Chechênia,
distritos urbanos de Belfast, bairros de Los Angeles, Curdistão, Chiapas, assentamentos
na Transjordânia. As guerras por território são arcaicas e animalescas. Estou sugerindo,
contudo, que essas batalhas atuais pertencem aos nossos sintomas atuais, e são sempre
esses sintomas que a psicologia procura quando a consciência está emergindo, quando
os paradigmas estão mudando.
O sintoma é a primeira fonte da compreensão psicológica. Os sintomas da
limpeza étnica e do ódio racial (xenofobia) dizem "preserve a pureza deste lugar." Não
permita que deuses estrangeiros sejam honrados aqui. A xenofobia é monoteísta na sua
psicologia e literal na sua crença em território, solo, lar e Héstia. Poderemos
compreender melhor seus protestos se virmos as suas raízes míticas, e ouvirmos suas
alegações de expressões arquetípicas.
Dentro do construto do par Hermes-Héstia, a limpeza étnica, o extermínio das
populações nativas, a demolição de casas e a destruição do solo em um frenesi de
autoproteção são excessos de Héstia combinados com os excessos de Hermes – as
comunicações herméticas da rede mundial do ciberespaço e globalismo, onde qualquer
lugar é toda parte, e a própria ideia de lugar tornou-se irrelevante.
Assim como Hermes pode enlouquecer com a intoxicação hermética quando
separado de Héstia, um monoteísmo de Héstia torna-se apenas pureza fanática, devoção
fanática, o foco único no lar, na terra natal e nas relações familiares. Nenhum contato
com os outros – eles se tornam um império maligno, um eixo do mal. Comunicação
torna-se contaminação. Sem nuances, sem ambiguidade, sem Hermes. Robert
McNamara relatou que durante seus sete anos como Secretário de Defesa não houve
nem sete minutos de comunicação direta entre os presidentes Kennedy e Johnson e o
presidente Ho Chi Minh. Sob as noções hestianas de segurança purificada, a diplomacia
hermética é permitida apenas através de canais por trás dos panos, espionagem ilícita,
inescrupulosa e disfarçada. A defesa hestiana das "boas e velhas maneiras locais"
fornecem uma barricada trancada contra a torrente de uma fantasia multicultural
miscigenada do futuro. Os sintomas da limpeza étnica, tribalismo e xenofobia tentam
conter esse "futuro." Eles afirma o "local" como uma proteção contra as mudanças que
vêm com o "tempo." Eles reafirmam o primado do lugar sobre o tempo como o
princípio dominante mais importante para ordenar a existência. Eles tentam colocar um
fim no tempo.
E isso – o fim do tempo – é precisamente a causa das nossas ansiedades
milenaristas. Nós imaginamos um fim do tempo literal e espacial, um cataclismo
gigante afetando a terra inteira, uma epidemia global como o Ebola e a AIDS,
aquecimento das calotas polares e enchentes, inverno nuclear, esgotamento do ozônio,
câncer universal, fome universal, uma noite gasosa universal.
Assim, estou sugerindo que o retorno ao lugar nos liberta da desolação do
pensamento espacial e da ansiedade do tempo. De fato, poderemos então desliteralizar o
"fim dos tempos" cristão e a visão assustadoramente sádica do Apocalipse como uma
metáfora. Sim, o tempo para quando o milênio acaba – não literalmente, já que os
relógios antigos vão continuar seus pequenos círculos mecânicos e os calendários
continuarão a ter suas páginas arrancadas e jogadas fora. Mas onde estamos, e seu efeito
sobre como estamos, torna-se a consideração essencial de uma vida. Pois cada lugar vai
revelar seus determinantes locais, os deuses e daimones do lugar, seja como uma
biorregião, um depósito de tradição, como uma composição arquitetônica, como uma
atmosfera paisagística, um clima psíquico. O local onde você está torna-se a verdade
essencial de uma vida, em vez de seguir adiante e ir em frente. Essa via psicológica de
um "fim do tempo" promove um modo de vida ecológico e integrado, um caminho
animista e politeísta. Também devolve Hermes ao panteão de onde ele se libertou e
desintoxica aquela inflação de um deus acima de todos os outros.
A hipertrofia de Hermes preenche nossos dias com ansiedade apressada,
temendo ficar para trás. Parece que nunca somos capazes de estarmos atualizados – o
tempo é tão fugidio, a vida é tão rápida. Não podemos estar onde estamos e em vez
disso vivemos em um futuro, nossas cabeças inclinadas para frente, nossos pés tentando
calçar as sandálias aéreas do deus. Então vivemos nossas agendas, não nossos dias –
nossos compromissos e não nossos ritmos.
A mudança de paradigma de tempo para lugar, essa restauração de Héstia como
a primeira entre todos os deuses e deusas, naturalmente afetaria toda terapia, porque a
alma não seria mais medida pelo tempo do corpo e o tempo do mundo – estágios de
crescimento, idade em anos, nossa geração e nosso período da história. Os sintomas da
alma de lentidão, como a depressão, resistência, esquecimento, repetição e fixação
podem ser reavaliados como rejeições do tempo, movimentos para longe das pressões
do tempo e para a estabilidade do lugar.
Uma das principais máximas da Renascença era, "olhe para trás para ver
adiante". Também é expresso como retrocedens accedit, avançar pelo recuo. Quando
Brunelleschi projetou o domo da catedral florentina, ele olhou para trás para seguir para
frente, dizendo "nem os antigos erigiram uma abóboda tão enorme como esta." Sua
noção de progresso era governado por ideais do passado, não fantasias de um futuro
inteiramente novo e independente de precedentes.
O olhar para trás revela os padrões que se mostram repetidamente. Eles indicam
realidades arquetípicas. Não é a história que governa o futuro, mas as projeções para
frente desses padrões arquetípicos. Assim, quando a futurologia relata esperança,
progresso e reflorestamento, e sustenta esses prognósticos otimistas com evidências da
ciência espacial, biotecnologia, taxas mais baixas de mortalidade infantil, mais
celulares, refrigeração, expectativa de vida mais longa, nova consciência ecológica –
nós acreditamos que vemos a realidade. Nós imaginamos que esses são os fatos
determinantes.
Mas a realidade está nos olhos que veem, não no que veem. Pois é precisamente
o olho do futurologista, informado por outra visão arquetípica mais saturnina, que fita o
futuro e vê terror e tragédia, destruição do meio-ambiente e da espécie, enchentes e
fome, insurreições civis, terrorismo e pragas – um mundo descrito pelo grande
pessimista Thomas Hobbes como uma guerra de "todos contra todos," e a vida humana
como "abjeta, brutal e curta".
Nós olhamos para trás para ganhar informações sobre as formas arquetípicas dos
nossos insights para que possamos compreender que todos os futurismos são fantasias –
independente da evidência. Como as tendências presentes são múltiplas e contraditórias,
as extrapolações dessas tendências para o futuro só levam a múltiplas e contraditórias
predições. Nenhuma visão única pode prognosticar. Realidades objetivas além do aqui e
agora permanecem desconhecidas e não podem ser conhecidas, pois esse é o significado
da palavra "futuro": aquilo que não é e que não pode ser declarado no tempo presente.
Não “existe” futuro. O futuro é apenas outro nome para o inconsciente no espelho onde
vemos nossas próprias inclinações subjetivas.
O ato de cuidar como continuação

Está na hora de concluir. O tempo ainda urge, empurra e pressiona – ainda


estamos neste milênio. O tempo nos leva junto com rapidez, nos força a sair daqui, sair
deste lugar, de modo que possamos ir a outro lugar, um bar, um café, uma cama. Ou
talvez Héstia esteja nos chamando para casa.
Assim, vou concluir dizendo mais uma vez: o pensamento milenarista sobre o
futuro é uma fantasia arquetípica. Essa fantasia nos seduz, evitando o confronto com
dois fatos fundamentais de toda existência humana, de toda existência cósmica.
Primeiro, qualquer momento real ocupa um lugar real, e segundo, a vida depende de
uma fé profunda na continuidade existencial. O futurismo escapa do primeiro, sempre
saindo daqui para algum outro lugar, e o futurismo nega o segundo, evacuando a certeza
do real com especulações sobre um vago e vasto desconhecido.
Pois a grande catástrofe que o futuro trás não é o futuro em si, mas o efeito do
futurismo na vida presente, como ele desvia a atenção do que é para o que não é, tirando
foco do pão nosso de cada dia, do sal e da água do real para o desconhecido e o
conjectural, negando assim Héstia, e nos tornando a todos "sem lar."
Tenho me esforçado ao máximo para restaurar a centralidade de Héstia, que
pode nos localizar, onde quer que estejamos, na vida física concreta. A lareira é onde
quer que esteja realmente o seu foco, como a dela também estava no meio da cidade, no
Pritaneu, ou prefeitura comum. Pois seja qual for o século no calendário e a hora no
relógio, esse tempo sempre ocorre em algum lugar – em uma cama, em uma mesa, em
um escritório, em uma rua. Nós estamos todos sem lar quando vivemos apenas no
espaço e tempo, e ninguém está sem casa quando Héstia está presente. Ela fornece a
cada situação ambiental um senso de estar aqui, Da-sein.
A certeza do real – aquilo que é porque está aqui, e dotado de uma eternidade
que não pode ir embora e que não está sujeita ao tempo – é similar ao que George
Santayana, o velho filósofo espanhol que viveu seus últimos dias na "cidade eterna",
chama de "fé animal." É aquele sentimento nos nossos ossos de que a terra está embaixo
dos meus pés, que o sol vai se por nessa tarde, que o mundo – seja assustador, trágico,
injusto ou sem sentido – ainda assim não irá embora. Essa fé animal é como a
consciência dos próprios animais, que não tem futurologia. Em vez disso, suas
possibilidades de existência estão sempre fundamentadas – há ar para a asa do pássaro,
a água está lá para o prazer do peixe. Este solo está sempre "aqui", não virtualmente,
mas inteiramente aqui, permitindo a possibilidade de viver, permitindo-nos dormir à
noite sabendo que a aurora vai nos encontrar no mesmo lugar, permitindo-nos arrumar
tudo com gestos fiéis de certeza animal depois de um desastre, enterrar os mortos e
servir aos que choram uma refeição quente e amistosa.

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