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Esta é a primeira tradução para o português de duas

alegorias metafísicas do filósofo russo Peter Demianovich


Ouspensky.

O prof. Ouspensky foi o grande responsável pela difusão


das idéias de Gurdjieff e foi também um pensador profundo e
original.

"O inventor" e "O diabo bondoso", as duas histórias aqui


apresentadas, foram publicadas pela primeira vez na Rússia em
1916 e nos mostram de que forma somos escravizados pelos
nossos "demônios" pessoais. Para Ouspensky, a tarefa do próprio
demônio consiste em fazer a humanidade acreditar que a matéria é
a única realidade.

J. C. Bennett, amigo e discípulo de Ouspensky, faz uma


brilhante apresentação do livro, redescobrindo a sabedoria dessa
obra sempre atual.

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P. D. OUSPENSKY

Conversas
com o

Diabo
Organizado e introduzido por J. C. Bennett

Martins Fontes

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Título original:

Talks with a Devil

© by Tumstone Press Ltd., 1972

1ª edição brasileira: julho de 1984

Tradução: Waltensir Dutra

Revisão: Silvana Vieira

Produção gráfica: Nilton Thomé

Composição: Gabarito Arte e Texto S/C Ltda.

Revisão tipográfica: Virgínia de A. Thomé e Pedra Paulo Consales

Capa: Alexandre Martins Fontes

Todos os direitos para a língua portuguesa reservados à

LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA. :

Rua Conselheiro Ramalho, 330/340

01325 - São Paulo - SP – Brasil

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INDICE

Introdução ...................... 7

O Inventor ...................... 15

O Diabo Bondoso ............. 43

5
6
INTRODUÇÃO

Na Rússia Sagrada, diabos e demônios eram participantes muito reais da vida humana. A
imaginação popular via a atuação de seres não-humanos em cada situação que surgisse, em rios,
campos e florestas, no lar e nos céus. Os eslavos descendiam das hordas asiáticas que, durante
milênios, viveram sob a influência de magos e xamãs. Depois de sua conversão ao cristianismo,
conservaram muitas de suas crenças atávicas. Um mito que encontrava ampla aceitação na
Pequena Rússia 1 explicava que os demônios descendiam de Adão e Eva, que tiveram doze pares
de filhos. Certa vez, quando Deus os visitava, Adão escondeu metade de seus filhos, porque
havia ultrapassado a cota de seis pares que fora fixada por Deus. Os doze filhos que não
receberam a bênção divina tornaram-se os ancestrais da raça de demônios que, desde então,
vêm atormentando a humanidade. Também era crença geral que Satã, o Maligno, não era criação
de Deus, mas uma força independente que contribuiu para a criação do mundo, tomando-o presa
do tempo e da mortalidade. O Diabo (Diavol) tinha sua própria corte, enorme, de diabos
subordinados, cuja tarefa era frustrar os planos de Deus, o Espírito do Bem. Os diabos só são
hostis ao homem na medida em que este for amigo de Deus. Eles foram os responsáveis por
todos os tipos de progresso técnico: com eles a humanidade aprendeu as artes da fundição, da
fermentação e da destilação; foi o próprio Diabo quem descobriu o fogo, construiu o primeiro
moinho e a primeira carroça. A arte da leitura e da escrita foi uma de suas grandes contribuições à
humanidade. Tudo isso para tornar o homem independente de Deus e, dessa forma, romper os
elos que lhe permitiam ajudar Deus a governar o mundo. Sob esse aspecto, o Diabo é o "astuto"
(Lukhavi), que como tal aparece na antiga versão eslava do pai-nosso, nas palavras "Livrai-nos do
astuto".
Há um tipo totalmente diferente de diabo, chamado Chort, que é mais uma praga do que
uma tentação. É aliado das feiticeiras e magos que evocam espíritos impuros. Mas há numerosas
espécies de demônios, espíritos, fadas e outros seres não-humanos cujas atividades são ainda
mais difundidas do que a ação das entidades celtas correspondentes. A mais temida é Baba
Yaga, uma figura feminina grande e poderosa, que tem papel importante nas histórias legendárias
eslavas. Os Mora, ou Mara, que atormentam a humanidade, são reconhecidos como Mara nas
lendas hindus e budistas sobre as tentações de Krishna e Gautama Buda. O Kikamora, dos
eslavos orientais, torna-se o gênio que dirige as florestas e as estepes. (Um livro inteiro poderia
ser escrito sobre as variedades de espíritos naturais e seu papel na vida eslava.) Havia também
um demônio doméstico que, sendo agradado poderia ser amigo das famílias, mas se contrariado
poderia trazer todo o tipo de infortúnio. Todas as enfermidades e infortúnios eram atribuídos aos
demônios, cada um deles responsável por determinada doença.
Essa breve descrição deve bastar para mostrar porque Ouspensky, criado nas florestas, de
família relativamente humilde, mas antiga, acharia natural tomar um diabo como herói de seus
contos, tal como Gurdjieff faria mais tarde nas Histórias Contadas por Belzebu aos seus Netos.
Há, porém, uma diferença decisiva. Belzebu é retratado como um ser extraterreno, enquanto que
os diabos de Ouspensky são realmente eslavos em sua obsessão pelo mundo material. A
influência do maniqueísmo, que chegou à Rússia no segundo século da era cristã, pode ser
percebida no ódio fanático que Ouspensky tinha do materialismo, tal como via exemplificado no
marxismo e na Revolução Russa.
Ouspensky contava-nos que em sua família os nomes Pedro e Damião haviam passado de
pai para filho, alternadamente, por muitas gerações. Segundo a tradição, os Damiões eram
ascetas que odiavam o mundo, e os Pedros, alegres amantes da vida. Dizia que as duas
características formavam seu caráter. Era, na verdade, um homem com duas naturezas opostas,
e esse dualismo coloriu sua vida e suas obras. Conheci-o em 1920, pouco depois de sua chegada
a Constantinopla, vindo do Cáucaso, com a mulher Sofia Grigorevna, acompanhada de sua filha e
seu filho de um ano, Leônidas, conhecido por nós como Lonya. A cidade estava abarrotada de
soldados turcos repatriados, juntamente com o Exército Aliado de Ocupação e dezenas de

1
Região a sudoeste da Rússia. compreendida principalmente pela Ucrânia.
(N. do T.)

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milhares de refugiados russos. Ouspensky encontrou acomodações para sua família em Biyuk
Ada – ou seja, Prinkipo para os levantinos, e I'lle des Princes para os estrangeiros. Trouxeram
poucos bens da Rússia e Ouspensky teve de encontrar um meio de manter-se, e à sua família,
lecionando inglês - língua que falava com dificuldade - aos russos que tinham esperanças de ir
para a Inglaterra, onde aguardariam o colapso da Revolução, no qual confiavam. Quase todos os
russos que conheci nessa época faziam planos para retomar ao seu país. Ouspensky não tinha
tais ilusões e temia, pelo contrário, que o bolchevismo se difundisse pela Alemanha e, dali, por
toda a Europa. Achava que a Inglaterra poderia escapar da revolução iminente aliando-se
firmemente aos Estados Unidos.
Outro russo que sabia que a Rússia czarista, e talvez mesmo a "Rússia Sagrada", havia
desaparecido para sempre era Alexander Lvov, ex-coronel da Guarda Montada Imperial e membro
da mais alta aristocracia russa, que abrira mão de terras e títulos para seguir Tolstoi. Mantinha-se
com o ofício de sapateiro, que aprendera para se tornar um membro do proletariado. Em 1920,
Lvov morava na casa da Sra. Beaumont - com quem eu me casaria mais tarde -, num
apartamento de um grande edifício de madeira perto da embaixada alemã. Certo dia, Lvov
perguntou se um amigo podia usar a sala de visitas para reuniões de um grupo secreto. O líder
desse grupo era Ouspensky, que começou a vir regularmente de Prinkipo, todas as quartas-feiras,
para presidir reuniões de cerca de vinte ou trinta russos. Logo nos tornamos amigos e ele
começou a me falar do "Sistema" notável em que estava interessado. Na mesma ocasião, mas em
circunstâncias bastante diferentes, conheci Gurdjieff, o autor do "Sistema", e vários de seus
discípulos, vindos de Tíflis com ele.
Em 1921, Ouspensky mostrou-me a tradução inglesa de seu livro Tertium Organum, que
acabara de receber de Nicky Bessarabov. Havia chegado também um telegrama de Lady
Rothermere, então em Nova York, convidando-o para visitá-la na Inglaterra. Naquela época, os
cônsules britânicos tinham instruções para reduzir o número de vistos para emigrados russos,
mas consegui convencer o consulado britânico de que Ouspensky era um visitante que a
Inglaterra teria interesse em receber, e obtive visto para ele e sua família. Quando voltei para
Londres, em 1922, participei do grupo liderado por Orage e Maurice Nicoll, que seguia as
preleções de Ouspensky sobre o notável conjunto de idéias psicológicas, cosmológicas e
históricas que constituíam o "Sistema" de Gurdjieff, e também sobre as suas técnicas de auto-
desenvolvimento.
Logo que me instalei em Londres, em 1922, comecei a participar ativamente do círculo de
Ouspensky. Costumava visitá-lo em caráter pessoal em seu apartamento de Gwendwr Road, em
West Kensington, quase todas as semanas. Trabalhávamos juntos na tradução de seus livros
russos. Ele estava sempre disposto a falar de sua vida passada e das experiências que o levaram
a acreditar que nossas idéias habituais sobre o tempo, a matéria e a própria existência eram todas
ilusórias. Essas palestras muitas vezes continuavam até tarde da noite num restaurante chinês de
Oxford Street, do qual ele gostava particularmente. Era um conhecedor de comidas exóticas de
muitos países e tinha um paladar tão apurado para o chá chinês que chegou a integrar um grupo
seleto que a Twinings, conhecida marca de chá, convidava anualmente para opinar sobre a nova
colheita do produto.
Em suas conversações, Ouspensky revelava o conflito profundo entre sua crença na lei e
na ordem, seu ódio aos bolcheviques e seu desprezo pelas massas analfabetas, que vinham de
um dos lados de sua natureza, e o reconhecimento de que todos, fossem governantes ou
governados, eram igualmente incapazes de mudar ou de realizar suas intenções. Sua rejeição
pessoal do materialismo, que se evidencia em Conversas com um Diabo, nasce de uma atitude
para com a vida muito diferente da rejeição, por parte de Gurdjieff das pretensões humanas em
sua doutrina do homem como uma máquina quase impotente para fazer qualquer coisa. Naquela
época, Ouspensky trabalhava sobre as anotações que fizera no período de 1915 a 1918, durante
o qual fora discípulo de Gurdjieff, primeiro na Rússia e depois no Cáucaso. Não pretendia, na
ocasião, publicar esse material, mas sugeriu a possibilidade de uma leitura nas reuniões do grupo.
Nessa época um número crescente de pessoas, em Londres, começava a se interessar por essas
reuniões, e Ouspensky não tinha tempo de estar presente a todas elas. Por isso, delegou a mim e
a outros a tarefa de ler e, até certo ponto, explicar o conteúdo de seus livros.
Em 1922, Ouspensky trabalhou arduamente para ajudar Gurdjieff na criação do Instituto
para o Desenvolvimento Harmonioso do Homem, em Prieuré, Fontainebleau. A princípio,
esperávamos que o instituto se instalasse em Londres, mas o Foreign Office foi intransigente na
sua recomendação ao Ministério do Interior para que recusasse o visto de residência a Gurdjieff e

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seu grupo. Sabia perfeitamente que o governo da Índia o considerava como agente russo, muito
hostil à Grã-Bretanha, e concluí que o dossiê que eu vira na Turquia o havia seguido até a
Inglaterra e constituía o principal obstáculo para que recebesse permissão para se estabelecer
neste país. Parece-me que a hostilidade já então existente contra Gurdjieff perdurou durante toda
a sua vida e explica o fato de ele jamais ter voltado à Grã-Bretanha.
A posição pessoal de Ouspensky era extremamente delicada, e o fato de ele ter insistido
em tentar conseguir os vistos definitivos depõe muito a favor de sua lealdade a Gurdjieff. Só dois
anos depois, na primavera de 1924, Ouspensky mudou completamente de atitude e recomendou
a todos os seus discípulos que se desligassem de Gurdjieff. Segundo Boris Mouravieff, que
conhecia Ouspensky desde a Rússia e conhecera Gurdjieff na Turquia em 1921, o afastamento foi
provocado por motivos morais. Num estudo inédito sobre Ouspensky e Gurdjieff, Mouravieff
descreve uma visita a Paris, logo depois do acidente quase fatal sofrido por Gurdjieff em 1921, e
lembra a explosão de Ouspensky: "Se alguém muito ligado a você, seu parente próximo, se
revelasse um criminoso, o que faria?". Essas atitudes exemplificam o aspecto ascético e puritano
da natureza de Ouspensky, que constituiu um obstáculo insuperável para que compreendesse
Gurdjieff, que não se preocupava com as diferenças entre as pessoas - materialistas ou
espiritualistas, grosseiras ou refinadas, más ou boas -, mas sim com a significação objetiva da
vida humana ou, como ele mesmo dizia, "o sentido e objetivo da vida humana na terra".
A diferença se acentua se compararmos os livros escritos por Ouspensky antes e depois
desse encontro com Gurdjieff, em 1915. Sua reputação, particularmente na Rússia antes de 1914
e nos Estados Unidos depois de 1945, repousa principalmente em seu notável Tertium Organum,
cujo tema central é a necessidade de ir além do pensamento lógico para que se possa
compreender a natureza do mundo real. Os leitores ocidentais conhecem Ouspensky
principalmente através desse livro e do Em Busca do Milagroso, o primeiro é totalmente seu, e o
segundo, quase que totalmente de Gurdjieff. Entre esses livros, situa-se Um Novo Modelo do
Universo, em grande parte influenciado por suas viagens entre 1908 e 1915. Pouco se sabe sobre
esse período de sua vida e posso relatar apenas os episódios que dele ouvi, durante nossas
conversações. Ouspensky fora um jornalista de sucesso, trabalhando às vezes para os principais
jornais russos, mas principalmente como autônomo. Viajou pela Europa e Estados Unidos,
escrevendo para jornais de São Petersburgo, entre 1908 e 1912. O primeiro conto deste livro, "O
inventor", mostra seu conhecimento de Nova York, na época em que Theodore Roosevelt era
presidente dos Estados Unidos. Não chegou a conhecer a costa oeste dos Estados Unidos, o que
lamentava, embora lamentasse ainda mais não poder visitar o Japão. Em 1912, realizou o desejo
de ir à Índia, com a incumbência de escrever artigos para três jornais russos. Conheceu então
alguns dos mais destacados iogues da época, inclusive Aurobindo, já instalado em Pondicherry.
Nenhum deles o impressionou. Explicou, mais tarde, que buscava o "conhecimento real" e só
encontrara homens santos que talvez tivessem conquistado a libertação para si mesmos, mas não
podiam transmitir seus métodos a outros. Também passou algum tempo em Adhyar, em
Madrasta, sede da Sociedade Teosófica. Anos depois, tinha prazer em contar a história do
"sistema de castas" ali existente. No andar térreo ficavam todos os parasitas e os visitantes sem
importância. O segundo andar era reservado aos simpatizantes que davam dinheiro e mantinham
a sociedade. O último andar, com uma ampla cobertura, era destinado ao grupo esotérico, aos
verdadeiros iniciados da teosofia. Ouspensky lembrava, com prazer, ter sido admitido
imediatamente ao grupo esotérico, apesar de não ser membro da Sociedade Teosófica e de suas
críticas abertas à sua fundadora, Helena Blavatsky. Afirmou não ter encontrado em Adhyar nada
que lhe despertasse o desejo de ficar.
Prosseguiu viagem até o Ceilão, que lhe pareceu mais agradável, e conheceu vários dos
mais famosos bhikkus, comprovando que as velhas técnicas do budismo ainda eram praticadas
ali. Mas não sentiu, ainda dessa vez, nenhuma necessidade de cortar os laços com o Ocidente e
tornar-se monge. Escreveu, mais tarde, que não estava interessado em um caminho que o
afastasse do mundo ocidental, que detinha a chave do futuro da humanidade. Isso não significava
que duvidasse da existência de "escolas", como as chamava, na índia e no Ceilão, mas que essas
escolas já não tinham a significação do passado. Também acrescentou ter verificado que a
maioria das escolas baseavam-se em técnicas religiosas e de culto que lhe pareciam insuficientes
para penetrar a realidade essencial que buscava.
Quando Ouspensky voltou à Rússia, todo o rumo de sua vida modificou-se com o encontro
com Gurdjieff. O sistema de Gurdjieff para o Desenvolvimento Harmonioso do Homem oferecia
tantas possibilidades que não se encontravam nas escrituras budistas, as Nikayas, nem nos

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métodos dos teravadinos2 do presente, que Ouspensky sentiu nascerem novas esperanças. Este
livro foi escrito antes do encontro e, ao contrário dos posteriores, não foi revisto à luz do que
aprendeu com Gurdjieff. Pode ser classificado, junto com o Tertium Organum e Ivan Osokin, como
"Ouspensky puro". Ivan Osokin era, reconhecidamente, em grande parte autobiográfico, e nele
podemos perceber como foi a vida escolar de Ouspensky. Foi publicado inicialmente na Rússia
com o nome de Cinemadrama, para expressar a visão de Ouspensky a respeito da eterna
recorrência, mas creio que o fim foi modificado depois do encontro com Gurdjieff - introduzido na
trama como mágico (para representar "o Trabalho", tal como Ouspensky concebia) que mostra a
Osokin a maneira de escapar ao ciclo de repetidos fracassos que terminam em suicídio, e no qual
havia sido envolvido.
O conceito que Ouspensky tinha do destino humano estava claramente ligado à idéia de
"libertação". Nos últimos anos, essa necessidade de libertar-se da recorrência tornou-se quase
uma obsessão, que transmitiu aos seus seguidores mais íntimos, como Rodney Collin Smith e o
Dr. Francis Roles. A abstenção de qualquer envolvimento no processo mundial associava-se à
idéia de libertação da recorrência. Como muitos outros russos, sonhava com uma espiritualidade
culta, capaz de criar um ambiente para o qual uns poucos homens esclarecidos se pudessem
retirar do mundo e realizar, pessoalmente, a sua libertação. Esse sonho nunca o abandonou
totalmente.
Mas Ouspensky foi totalmente incapaz de seguir Gurdjieff até as etapas finais do trabalho
deste. As razões não são relevantes para este livro, mas o resultado foi que, depois de ter dado
apoio total a Gurdjieff até a época da sua viagem à América, em 1923, mudou totalmente de
posição em 1924, quando Gurdjieff ainda se encontrava nos Estados Unidos. A partir de então, e
até o fim da vida, Ouspensky não teve contato direto com ele, embora continuasse a se interessar
apaixonadamente por tudo o que fazia.
Depois do rompimento, Ouspensky voltou a ocupar-se de seus trabalhos antigos, fazendo
deles uma compilação que publicou em 1929, com o título Um Novo Modelo do Universo. Nessa
época, nossas relações eram muito estreitas. Interessava-nos muito a natureza do tempo e da
eternidade, e acreditávamos que descobertas importantes nesse campo atrairiam a atenção para
o "Sistema" que Ouspensky atribuía a uma escola de sabedoria da qual ainda esperávamos obter
a ajuda de que precisávamos, sem ter de passar por Gurdjieff, a quem ele considerava como um
"canal conspurcado". Um Novo Modelo do Universo é uma série de ensaios mais ou menos
ligados ao tema comum de que as concepções correntes do homem e do universo eram
profundamente enganosas e teriam de ser rejeitadas. A certa altura, pensou em incluir uma das
Conversas com um Diabo - creio que foi "O diabo bondoso" - nesse volume. Resolveu, finalmente,
deixar de lado o conto por não estar em harmonia com o caráter filosófico do livro (a maior parte
do qual havia sido escrita antes de 1914 e publicada em jornais russos para os quais trabalhara).
Nessa época, Ouspensky ainda escrevia em russo, e mandou uma cópia do texto para Paris, a fim
de ser traduzido para o francês pela baronesa Rausch, enquanto outra cópia era traduzida para o
inglês pela Sra. Kent, descendente de uma família nobre russa, e por outros russos de seu próprio
círculo. Colaborei na tradução, sobretudo para verificar se os significados de Ouspensky foram
interpretados corretamente.
Foi nessa época que me falou pela primeira das Conversas com um Diabo. Disse-me que
essas duas histórias haviam sido escritas para expressar sua convicção de que o principal erro do
homem era acreditar que o mundo material constitui a realidade única. Essa crença, disse
Ouspensky, é fonte da maior parte dos problemas humanos, porque as pessoas lutam inutilmente
em torno de questões irreais, deixando de lado o único problema real, que é o da libertação do
apego à matéria. Conversas com um Diabo foi escrito quando Ouspensky estava na Índia e no
Ceilão, em 1914, e publicado, com um novo final, num jornal de São Petersburgo, nos primeiros
dias da guerra. A edição a partir da qual foi feita a tradução para o inglês foi publicada em
Petrogrado, em 1916. Todos os exemplares de Ouspensky perderam-se com o resto de sua
biblioteca, depois da Revolução de Outubro, em Moscou. Ouspensky havia mandado alguns
exemplares a amigos no exterior, e perguntou-me se não seria possível localizá-los por meio da
Sociedade Teosófica. A srta. Maud Hoffman, teosofista de destaque e amiga de Leadbeater e da

2
Adeptos da Hinayana (também chamada Teravada), ramo menor e conservador do budismo.
predominante no Ceilão, Birmânia e Camboia.
(N. do T.)

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Sra. Besant, descobriu que havia um exemplar na biblioteca do Museu Britânico. Encontrei-o sob
o nome de Uspenski, P. D., e consegui duas Cópias fotos-táticas, uma das quais me foi confiada
por ele, com vistas a uma possível tradução para o inglês.
Conversas com um Diabo pertence claramente à fase de Wanderjahren de Ouspensky,
quando ele buscava o segredo que acreditava estar oculto nas escolas da Índia e do Ceilão. Suas
inclinações teosóficas evidenciam-se pela recusa de ver no Oriente, ou mesmo na Ásia central, a
fonte dos ensinamentos. Embora decepcionado com a Sociedade Teosófica que encontrou em
Adhyar, aceitava grande parte de sua filosofia. Estava particularmente fascinado pelo ciclo
teosófico da repetição histórica. Referia-se a isso com freqüência nos últimos anos e falava das
guerras mundiais como prova de que estávamos entrando nas últimas fases do Ciclo Negro. Esse
tema influencia, evidentemente, sua abordagem de "O diabo bondoso".
E interessante lembrar que Ouspensky era grande admirador de Robert Louis Stevenson e
admitia ter sido influenciado pela fábula chamada "A Filha do Rei de Duntrine", que expressa o
mesmo tema da eterna recorrência, com alusões ao segredo da liberdade. Para ele, Stevenson e
Nietzsche foram os dois autores com os quais mais aprendeu sobre a recorrência, em seus anos
de juventude.
Conversas com um Diabo, não expressa de maneira adequada a agonia da indecisão
vivida por Ouspensky nos últimos anos de sua vida. Talvez por isso não as tenha publicado. Acho
também que, de alguma forma, ele as associava com a sua ilusão de juventude segundo a qual a
espiritualidade e o humanismo poderiam andar de mãos dadas se a religião fosse eliminada da
primeira, e o materialismo do segundo. Disse-me certa vez que tinha notas para uma terceira
conversa, que daria unidade ao todo. Creio que pretendia mostrar o papel do "Trabalho" como
terceira força capaz de reconciliar espírito e matéria, mas não encontrou uma maneira de tornar
esse tema suficientemente dramático. Pouco antes da deflagração da Segunda Guerra Mundial,
disse a alguns de seus discípulos que não tinha muitas esperanças de encontrar a fonte dos
ensinamentos que vinha transmitindo. Faltava alguma coisa e, sem um conhecimento novo,
teríamos de nos resignar a encontrar nosso próprio caminho para a libertação. Nas últimas
semanas de sua vida, em 1947, repudiou publicamente o "Sistema", tal como o recebera de
Gurdjieff, e concitou seus seguidores a começar de novo, seguindo cada qual o seu próprio
caminho.
As duas histórias incluídas neste livro examinam dois problemas que, para Ouspensky,
eram muito sérios e importantes. O primeiro é o do "mal consciente". Ele conhecia as doutrinas
orientais que, no todo, negam a possibilidade de uma vontade maligna e tratam o mal como a
ausência do bem ou, na pior das hipóteses, como as conseqüências do apego ao mundo exterior.
Estivera também, desde a infância, em contato com a doutrina do pecado original, que não
conseguia aceitar, nem rejeitar. Certa vez, deu aos seus grupos de Londres a tarefa de tentar
praticar um ato conscientemente mau. Ficamos todos surpresos pela nossa incapacidade de
praticar um único ato que fosse deliberadamente mau, embora soubéssemos que muitas vezes
fazíamos coisas bem piores, com plena consciência disso. Ouspensky insistiu em que o mal é o
sono, a mecanicidade e a ausência de intenção, pelos quais somos indiretamente responsáveis -
porque está em nosso poder não nos deixarmos adormecer, e não sermos mecânicos -, mas que
não podemos controlar diretamente. Esse tema está presente em toda a história do inventor que
faz o mal quando pretende fazer o bem, e não pode aceitar as conseqüências desastrosas de sua
própria obra de gênio. Compreende que nunca se perguntou o que aconteceria se sua criação
obtivesse êxito estrondoso. Sob esse aspecto, a história do inventor é, evidentemente, uma
alegoria do homem moderno frente às conseqüências dos milagres da ciência e tecnologia.
Ouspensky conclui a história de maneira muito reveladora, mostrando que o inventor,
sempre controlando as forças materiais, começa a investi-Ias de uma qualidade nova, uma
qualidade que o aliena do Diabo e leva, finalmente, ao desaparecimento deste, o qual já não pode
seguir nem compreender o inventor, na sua elevada busca de um uso benéfico das forças
materiais que havia liberado. Tudo o que fica do Diabo é um cheiro de enxofre.
Já na primeira página, Ouspensky insinua o significado mais profundo da história. O Diabo,
"rigorosamente falando", não existe: ele e seu grupo são apenas o que o homem quer que sejam.
O Diabo pode apenas sugerir, mas até mesmo as suas sugestões se revelam como sendo as
auto-sugestões do próprio homem. Este atribui ao mundo material um caráter diabólico que não é
inerente a ele, mas também é capaz de adquirir consciência da realidade de outros valores.
Portanto, nessa história o Diabo investe constantemente contra os artistas e os místicos, que têm

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consciência da existência de algum outro mundo que não o da matéria, e no qual não há lugar
para as sugestões diabólicas.
Ouspensky é, e continua sendo, um dualista, porque vê os valores diabólicos como sendo
os valores atribuídos pelo homem ao mundo material, dominado pela quantidade, mas distingue
entre esses valores diabólicos falsos e os valores da apreciação artística, da experiência religiosa
e da qualidade espiritual. Ele próprio lembra que ao conhecer Gurdjieff tentou insistir nessa
distinção, mas o outro a rejeitou, dizendo: "Todos esses aspectos são mecânicos. Não importa se
os valores são materiais ou espirituais. O que importa é se eles são mecânicos ou conscientes".
Evidentemente, era uma idéia nova para Ouspensky, e sobre a qual ainda não havia
refletido ao escrever O inventor ou O diabo bondoso. Contudo, Ouspensky não apresenta o
conceito da matéria como um modo de ser. Emprega a expressão GRANDE MATÉRIA (as
maiúsculas estão no texto russo) para indicar que não fala da matéria em termos de sua vasta
escala no universo, da imensidão quantitativa, mas da sua condição como um modo de vida.
Nesse sentido, Ouspensky foi certamente um dualista, considerando a Grande Matéria como a
resistência ao poder criativo de Deus. Sua obra mais inspirada, Tertium Organum, é dedicada à
tese - quase uma revelação - de que o pensamento lógico aprisiona o homem no mundo material.
O "terceiro instrumento" que ele reivindica ter descoberto é a visão criativa que vai além da lógica.
Essa noção está presente em todos os trabalhos de Ouspensky, sendo visível também no horror
que o Diabo tem aos artistas e místicos, que não podem pensar de maneira lógica e normal. A
matéria e a lógica são a substância da sugestão diabólica.
Gurdjieff, por sua vez, considera a matéria e a energia como intercambiáveis (e isso muito
antes de serem compreendidas as equações de Einstein), e ensinava que o nível de materialidade
é correlato ao nível de Consciência, ou de Ser. Foram idéias surpreendentes para Ouspensky,
quando as ouviu pela primeira vez em 1915, e não procurou incorporá-las à revisão que fez de O
inventor.
O inventor, foi escrito para ser publicado num periódico russo, e, sem dúvida, Ouspensky
tinha em mente um público que demandava um material ao mesmo tempo sentimental e
sensacional. Os episódios relacionados com a invenção e a subseqüente explosão de interesse
devido ao seu uso em circunstâncias particularmente dramáticas são um tanto repetitivos e, às
vezes, tediosos. Assumi, por isso, a responsabilidade de resumir alguns deles e de cortar um
pouco da parte puramente narrativa da história. Deixei tudo o que era relevante para o tema que
Ouspensky deseja transmitir e que era para ele, certamente, o objetivo das duas histórias. E
assim fiz porque o próprio autor foi impiedoso nos cortes que fez em seu material, quando usou as
antigas publicações russas para a estruturação de seu livro Um Novo Modelo do Universo.
Quanto a O diabo bondoso, é um conto muito mais vivo, porque se baseia principalmente
nas viagens do autor pela Índia e Ceilão, e ele nos pode fazer um relato em primeira mão das
grutas de Alhora, que visitou em 1913, e também dos templos budistas que conheceu no Ceilão.
O diabo (nesse conto, Ouspensky não escreve a palavra com maiúscula, indicando assim
a pluralidade da condição diabólica) tenta impedir que acordemos para a situação de que somos
prisioneiros da materialidade apenas porque não enfrentamos e não aceitamos a verdade de que
a realidade não é deste mundo. A sugestão que permeia os dois contos, de que os diabos só
estão interessados no homem enquanto este faz um esforço real para se libertar, representa um
ponto de vista a que Ouspensky voltou freqüentemente. Há uma lei segundo a qual a todo esforço
positivo deve corresponder, inevitavelmente, uma reação negativa igualmente forte. Embora essa
lei encontre repetidos exemplos na história da humanidade - tanto em pequena como em grande
escala - não a enfrentamos. Poucos reconhecem que o preço de fazer a coisa certa é,
inevitavelmente, correr o risco de enfrentar a oposição e, até mesmo, a ameaça de destruição.
Esses homens são diferentes dos homens comuns e poderiam reconhecer-se uns aos outros se
não fossem as precauções do diabo para impedi-lo.
O diabo bondoso deseja que a humanidade seja feliz, sem se preocupar com a busca de
um "outro mundo" quimérico. Reconhecemos, aqui, o tema do "organ kundabuffer" de Gurdjieff, de
que Ouspensky certamente nunca ouvira falar quando o conto foi escrito. O diabo bondoso
enfatiza o significado da ilusão e do auto-engano do homem. Este continua voltado para a terra
porque está adormecido para a realidade e não deseja despertar. Concebe o "bem" em termos do
mundo ilusório, onde nada se pode realizar, em caso algum. A tarefa do diabo é estimular esse
engano, e ele a realiza com pessoas bem-intencionadas, jogando com a ilusão de que a boa

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intenção e a boa realização são a mesma coisa. A "nobreza" é o trunfo através do qual vence a
batalha final.
Em O diabo bondoso, Ouspensky utiliza, claramente, a lenda eslava da divisão da
humanidade nos filhos abençoados e filhos rejeitados de Adão. Modifica-a, porém, no sentido de
atribuir aos descendentes de Adão a capacidade de perceber a Realidade enquanto que aqueles
que descendem dos animais são estancados. Só os descendentes de Adão têm a possibilidade
de despertar e adquirir uma "alma".
Ouspensky não conseguiu posicionar-se diante da injustiça da vida, que oferece grandes
oportunidades para uns poucos e parece negar qualquer esperança à maioria. Suas experiências,
nessa história, estão ligadas a uma explicação do mal que remonta às origens zoroastrianas. No .
Avesta, as raças, ou homens e animais, descendem do homem Gayomart e do touro Gösh Urvan.
O Avesta não as classifica de boas ou más, mas, antes, lhes atribui diferentes papéis na luta entre
os espíritos bons e maus. Essas tradições chegaram ao povo eslavo antes de suas migrações
para o Ocidente e, separadas de suas religiões e origens cosmológicas, transformaram-se em
contos de fadas e folclore. Ouspensky pôde reconhecer algo da sua significação original e foi
capaz de usá-las para transmitir a sua própria mensagem.
O homem é vulnerável de ambos os lados de sua natureza: o que luta para alcançar a luz,
e o que busca as trevas. A sugestão diabólica que joga com a nobreza do homem pode provocar
uma queda maior do que as tentações a que está sujeita a sua natureza animal. Ouspensky tinha
consciência de que as forças "malignas" agiam para destruir a liberdade humana, e via que estas
forças não podiam ser vencidas numa confrontação direta, porque as forças "do bem" estavam
divididas entre si por lemas como "patriotismo", "abnegação", e "devoção a uma causa" - todas
podendo ser exploradas pelo diabo.
Nestas histórias, o diabo não atinge os seus objetivos, sendo tão impotente quanto suas
supostas vítimas. O mundo é totalmente irracional e não devemos esperar encontrar respostas às
nossas indagações nem moral para as nossas histórias. Essa parece ser a mensagem que
Ouspensky deseja transmitir. Seu pessimismo desapareceu temporariamente em contato com
Gurdjieff, mas voltou quando compreendeu que Gurdjieff não era o homem que havia imaginado e
esperado.
Lembro claramente uma noite de inverno em 1924, quando estava com Ouspensky em
Gwendwr Road. Ele estava de pé em frente ao aquecedor a gás, na sombria sala de estar, e,
como se falasse para si mesmo, disse: "Não podemos saber se esse trabalho é possível, mas
sabemos que sem ele não há esperança. Não devemos desistir, mesmo que não vejamos
qualquer indício de que ele irá nos tirar das trevas. Não há mais nada, e devemos apegar-nos a
essa certeza". Desde então se passaram 48 anos, e me convenci de que não só não há mais
nada, como também de que o homem não está numa situação sem esperanças. Estamos numa
crise séria - mais séria mesmo do que Ouspensky previa - e hipnotizados pelas forças materiais. A
própria gravidade da crise está provocando um despertar. O homem está começando a ver a
ameaça à sua própria existência, e muitos estão preparados para aceitar o desafio que Leslie
White não podia compreender.
A compreensão intuitiva de Ouspensky, de que certas pessoas podem ver a realidade
quando a maioria só pode ver a aparência, é hoje ainda mais relevante do que quando escreveu
esse conto, há 60 anos. Se um número suficiente de pessoas puder ser levado a ver e a aceitar o
desafio, a humanidade dará um grande passo à frente. Mas também parece que há forças
engenhosas em ação, cujo objetivo é impedir o despertar daqueles que têm a possibilidade de
ver. A alegoria do diabo, de Ouspensky, está muito próxima da verdade para ser confortável.
O fato de ter contribuído para preservar uma parte da obra literária de Ouspensky é motivo
de verdadeira satisfação. A srta. Ekaterina Petroff trabalhou intermitentemente comigo, durante
vários anos, na tradução. A srta. Anna Durkova ajudou na editoração e com o seu conhecimento
do folclore eslavo. Espero que os resultados agradem tanto os velhos admiradores de Ouspensky,
quanto os seus novos leitores.
John G. Bennet
Sherborne, Gloucestershire
Junho, 1972

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O INVENTOR

"- Vou lhe contar uma história de fadas", disse o Diabo, "mas com uma condição: não me
pergunte qual a moral. Você pode tirar a conclusão que quiser, mas por favor, não me faça
perguntas. Já nos culpam de loucuras demais quando nós, rigorosamente falando, nem mesmo
existimos. São vocês que nos criam."

Minha história se passa em Nova York, há cerca de 25 anos. Vivia ali um jovem chamado
Hugh B., cujo nome completo não direi mas você logo adivinhará por si mesmo. Seu nome é
conhecido hoje em todas as cinco partes do mundo, mas naquela época era totalmente
desconhecido.
Começarei por um momento trágico na vida desse jovem, quando ele viajava de um dos
subúrbios de Nova York para Manhattan, com a intenção de comprar um revólver e suicidar-se
numa praia solitária em Long Island, lugar que lhe ficara na lembrança desde a época de suas
excursões de meninice, quando ele e seus companheiros, fingindo-se de exploradores, haviam
descoberto países desconhecidos nas proximidades de Nova York.
Sua intenção era muito clara e a decisão, final. Na verdade, tratava-se de uma ocorrência
muito comum na vida de uma cidade grande, coisa que se repete com freqüência. De fato, e para
ser franco, tive de promover acontecimentos semelhantes milhares e dezenas de milhares de
vezes. Daquela vez, porém, um início tão comum teve seguimento inesperado, e um resultado
ainda mais inesperado.
Mas an1es de chegar ao resultado, devo contar em detalhe todos os fatos que levaram a
ele.
Hugh era um inventor nato. Desde a mais tenra infância, quando passeava com a mãe
pelo parque ou brincava com outras crianças, ou simplesmente sentado tranqüilamente num
canto, entretendo-se em fazer casinhas de tijolos ou desenhar monstros, inventava sem parar,
construindo na imaginação uma variedade de engenhocas extraordinárias, melhoramentos para
tudo neste mundo.
Tinha prazer especial em inventar aperfeiçoamentos e adaptações para sua tia.
Desenhava-a com uma chaminé, ou sobre rodas. Em conseqüência de um desses desenhos, no
qual a moça não muito nova foi retratada com seis pernas e outras variações, o pequeno Hugh foi
severamente castigado. Esta foi uma de suas primeiras recordações.
Pouco depois, Hugh aprendeu a desenhar e, logo em seguida, a fazer modelos de suas
invenções. Nessa época já havia aprendido que as pessoas vivas não podem ser aperfeiçoadas,
contudo, suas invenções eram, é claro, pura fantasia: aos 14 anos quase morreu afogado
experimentando os esquis aquáticos que tinha inventado.

Minha história começa quando Hugh tinha cerca de 26 anos. Estava casado há vários anos
e trabalhava como desenhista numa grande fábrica de produtos de engenharia; morava num
apartamento de três pequenos aposentos, do tamanho de cabines de navio, num enorme e feio
edifício de tijolos, num dos subúrbios de Nova York. Estava muito insatisfeito com sua vida.
Os escravos que trabalham arduamente em nossos escritórios e fábricas quase não têm
consciência, invariavelmente, de sua escravidão. Os poucos sonhos que por acaso alimentam não
vão além das formas de melhorar sua escravidão: divertir-se no domingo, ir a um baile à noite,
vestir-se como um cavalheiro e conseguir mais dinheiro. Mesmo quando descontentes com suas
vidas, pensam apenas em diminuir as horas de trabalho ou aumentar os seus salários e férias -
em resumo, toda a parafernália da Utopia Socialista. Jamais se poderiam revoltar, nem mesmo
mentalmente, contra o próprio trabalho - ele é o seu Deus, e não se atrevem a negá-lo nem
mesmo em pensamento. Hugh, porém, era feito de outra substância. Odiava a escravidão. Dizia
sempre que ser escravo do trabalho era indignação de Deus. Todas as fibras de seu ser se
contorciam com a consciência desse polvo, que penetrava nele com uma força estranguladora.

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Além disso, a idéia de embelezar a escravidão jamais lhe teria ocorrido, nem era do tipo de iludir-
se com distrações baratas.
Sua mãe morreu quando ele tinha 16 anos e Hugh foi obrigado a deixar a escola para
trabalhar como aprendiz na seção de desenho de uma fábrica, pelo salário de cinco dólares
semanais.
Foi assim que começou sua carreira. Aparentemente, pouco diferia dos outros aprendizes.
Copiava desenhos de máquinas, preparava o papel e as tintas, apontava os lápis e levava
recados entre os vários departamentos da fábrica. No coração, porém, não aceitava, nem por um
momento, essa vida.
A formação de Hugh foi diferente da formação da maioria dos que o cercavam, e teve um
papel importante em suas atitudes. Seus companheiros eram os filhos do trabalho e da privação,
de operários de fábrica como eles próprios e de imigrantes recentes que haviam procurado a
América para fugir da fome e do frio, da ambição dos senhores de terra e do desemprego. Tinham
um mundo pequeno, limitado, estreito e dominado pela luta onipresente contra a fome e a
privação. Vozes muito diferentes faziam-se ouvir no íntimo de Hugh. Ele pertencia a uma antiga
família americana, descendia dos pioneiros que haviam visto a floresta virgem, os rios e lutado
contra os índios. Entre seus antepassados contavam-se membros do congresso, generais da
Guerra da Independência e ricos fazendeiros da monocultura sulista.
Seu pai havia perdido o que restara da fortuna da família durante a Guerra Civil, da qual
participara como oficial do exército confederado. Ferido e aprisionado, fugira para o Canadá, onde
se casou com uma jovem franco-canadense, vindo a morrer poucos anos depois. Durante a
infância, a mãe de Hugh lhe falava de seus ancestrais, que eram capitães de navio, e dos
ancestrais de seu pai – do luxo da vida nas grandes fazendas que ela mesma jamais vira; do
bisavô de Hugh, que fora governador da Carolina do Sul; da guerra mexicana; das expedições ao
Oeste distante. Hugh cresceu ouvindo essas histórias, que constituíam parte de seu ser. Não era
surpreendente, portanto, que o estilo de vida concebido por seus companheiros de trabalho fosse
muito estreito para ele. Na verdade, no fundo do coração, desprezava esses companheiros e a
vida na fábrica, com tudo o que lhe podia proporcionar.
Entretanto, a fábrica em si, e as máquinas tinham para ele um profundo interesse. Passava
horas na frente de alguma máquina tentando compreendê-Ia, procurando chegar ao seu coração.
Colecionava os vários catálogos e listas de preço que descreviam as máquinas; estudava
diagramas, desenhos, fotografias; passava noites inteiras com livros sobre mecânica e engenharia
mecânica, sempre que os podia conseguir. E durante todo esse tempo, novas combinações de
válvulas, rodas, alavancas - novas invenções, cada uma mais surpreendente do que a outra -
flutuavam em sua cabeça.
Mas nem por um segundo deixava de odiar e ressentir-se da sua escravidão. Muitas
vezes, à noite, quando a necessidade de levantar-se às seis da manhã o obrigava a abandonar
seus livros preciosos para ir dormir, tomava resoluções sombrias, jurando que preferiria morrer a
entregar-se à tal sorte. Não se estava iludindo e tinha plena consciência dos obstáculos que havia
em seu caminho. Para escapar àquela servidão era necessário furtar-lhe tempo, mas a mão de
ferro do trabalho compulsório pesava sempre sobre o seu ombro. De vez em quando essa
necessidade diminuía por algumas horas (em raras ocasiões, por vários dias), para voltar a
abater-se sobre ele com força ainda maior. Hugh sofria com isso, e lutava por cada hora.
Apesar disso, tinha a aparência alegre, animada, de um jovem americano cheio de vida. A
diferença estava na sua incapacidade de não pensar. Era isso que o distinguia dos outros.
Durante as duas primeiras semanas na fábrica, Hugh compreendeu a gravidade de sua
posição; a princípio, não se preocupou indevidamente, pois tinha grande confiança em si mesmo,
na sua capacidade e nas suas invenções futuras. Mais tarde, porém, começou a perceber que
estava cedendo, involuntariamente, ao modo de vida da fábrica; essa vida, e as pessoas que a
viviam, já haviam deixado nele a sua marca. A partir daquele momento, sua aversão e seu ódio a
essa escravidão aumentaram, juntamente com o medo de enfrentá-la.

Depois de quatro anos de serviço na fábrica, um acontecimento veio provocar uma


mudança imediata em sua posição. Havia recebido alguns diagramas borrados de uma nova
máquina, para serem copiados. Ao reproduzi-los, Hugh encontrou um erro nos cálculos. Ao
mesmo tempo, ocorreu-lhe um aperfeiçoamento notavelmente simples e prático, que quase
duplicaria a produção da máquina. Levou o fato ao engenheiro que desenhara a máquina e este,

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não querendo reconhecer seu erro, começou a gritar e o expulsou da sala. Hugh então, procurou
o diretor, que a princípio recebeu-o mal; porém, ao compreender o que lhe estava sendo proposto,
viu que tinha razão.
Imediatamente, tudo mudou. Hugh recebeu uma gratificação pelo aperfeiçoamento que
inventara e foi promovido ao cargo de desenhista sênior. Ao invés de copiar, tinha de elaborar
diagramas a partir de esboços feitos pelos engenheiros. Começou a ser consultado, e o diretor
que o havia descoberto previu-lhe uma brilhante carreira.
De todos os empregados da fábrica, foi sobre Hugh que esse sucesso inesperado teve o
menor impacto. Aceitou tudo como se lhe fosse devido. Disse a si mesmo que o destino devia dar-
lhe tudo o que sonhava, e que o sucesso na fábrica era tão insignificante, se comparado com seus
sonhos, que nem mesmo valia a pena falar a sério do assunto. Mas é claro que sua situação
melhorou. Alugou um pequeno apartamento, instalou uma oficina onde trabalhava em suas
invenções, à noite e aos domingos. Começou com a idéia de um motor de bolso para
instrumentos manuais, coisa que não se revelou muito prática. Inventou, em seguida, um torpedo
dirigido; depois, um freio automático para guinchos, e muitas outras coisas. Mas era prejudicado
pela falta de base teórica e pelas exigências de tempo que a fábrica lhe fazia. Deixá-la, porém,
parecia impossível, ainda mais porque logo depois da promoção ele se casara com Madge O
Neill. Tinha então 22 anos.

Tudo foi muito espontâneo, como acontecem as coisas que têm de acontecer. Num
domingo, Hugh foi ao jardim zoológico no Central Park. Há muito queria ver os pássaros,
especialmente os condores. (Trabalhava, naquela época, num avião.) Ali, junto à cerca, estava
uma moça alta e simpática, cabelos e olhos pretos, usando um grande chapéu vermelho.
Conversava com uma colega de sotaque irlandês e várias vezes, rindo, olhou para Hugh. Sem
saber como, Hugh começou a conversar com ela. Deixaram os condores e, antes que
percebessem, haviam percorrido todo o zoológico. Ele não pretendia ver os bisões e os macacos,
mas por alguma razão, divertiu-se muito. Ficou sabendo que Madge trabalhava como tradutora e
estenógrafa no escritório de uma companhia alemã, que seus pais eram mortos, que tinha um
irmão pequeno e que no domingo seguinte iria à praia com a amiga. Encontraram-se no domingo
seguinte. E passaram a encontrar-se à noite. Por fim, Hugh começou a sentir que precisava tanto
de Madge como de suas invenções.
Resolveram casar-se e ele estava convencido de que não havia no mundo mulher mais
bela e inteligente do que Madge. Sentia-se muito feliz e não duvidava de que, agora; seria bem
sucedido.
Durante um de seus passeios, discutindo a futura vida de casados, Hugh disse que não
deveriam ter filhos enquanto não melhorassem de situação, ou seja, enquanto suas invenções
não fossem uma fonte real de renda, libertando-o do trabalho e permitindo uma vida abastada e
fácil.
Madge ficou contente ao ouvi-lo falar assim, isto é, contente com a conversa em si. Era
ousado - disse a si mesma. Ficava agradavelmente excitada quando falavam dos filhos que teriam
ou não teriam. Concordava com Hugh, fingindo compreender. Sua única restrição foi a de ele não
ter falado mais, mas Hugh mudou de assunto, sem explicar como fariam para não ter filhos.
Naquele momento, a idéia parecia a Madge excitantemente imprópria. Não podia adivinhar, então,
que essa decisão lhe traria sofrimento e seria motivo de desentendimento entre eles, e teria
muitas outras conseqüências.
Madge estava encantada com Hugh, então. Gostava de ouvi-lo falar de suas invenções
futuras, que lhes traria milhões; de seus antepassados na Carolina do Sul e da vida opulenta que
levavam. Mas às vezes tinha vontade de rir nessas ocasiões, pois Hugh se entusiasmava e falava
como se ele próprio tivesse comparecido às festas de outrora, ou como se já fosse um inventor
rico e famoso. Apesar disso, acreditava nele. Mais tarde, porém, os sonhos de Hugh e Madge
tomaram rumos diferentes. A fantasia dele não conhecia limites: uma vila em Sorrento, um castelo
em Veneza, um iate próprio, viagens pela Índia e Japão, relações com todas as celebridades
mundiais, com escritores e artistas; as capitais do mundo a seus pés. Outras invenções seguiam-
se, cada uma mais surpreendente do que a outra, revolucionando completamente toda a vida na
terra e trazendo incontáveis milhões para eles.
Ouvindo Hugh falar desse jeito, Madge parecia estar ouvindo a voz de seu irmãozinho,
cuja ambição era lutar contra os peles-vermelhas, quando crescesse. Madge começou a achar

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que os homens são apenas crianças que cresceram demais e assim deviam ser tratados. Uma
vila em Sorrento e um escalpo de pele-vermelha pareciam-lhe quase que a mesma coisa.
Os sonhos de Madge eram mais realistas e mundanos. Como qualquer mulher, sonhava
com enfeites, chapéus e vestidos; mas, caracteristicamente, não podia pensar no abstrato. Só
ambicionava o vestido ou o chapéu que vira numa vitrina. Falta de imaginação, talvez? Mesmo
assim, tinha alguns sonhos magníficos: pensava, por exemplo, que seria delicioso ir à cidade e
gastar, num dia, cem ou duzentos dólares naquilo que tivesse vontade. Desejava muito um belo
apartamento ou uma casa com mobília nova, vinda diretamente da loja; ou uma viagem a uma
praia ou, melhor ainda, a algum lugar "nas montanhas", o que tinha um ar mais aristocrático.
Também sonhava em ir ao teatro, à ópera e aos concertos sempre que quisesse; em sentar-se
num camarote, ou nas primeiras filas, e ouvir cantores famosos, vendo à sua volta homens e
mulheres importantes, cujos nomes conhecia pelos jornais. As colunas sociais, com as descrições
da vida na alta sociedade e, em particular, com alusões mal disfarçadas aos seus escândalos,
constituíam a leitura predileta das moças no escritório onde trabalhava.
Madge porém, não era, totalmente vulgar. Era, na verdade, superior à maioria de suas
amigas: lia livros como Looking Backward e In a Hundred Years, de Bellamy, que faziam
descrições do Estado socialista ideal; tinha muito entusiasmo pela "vida simples", pela "volta à
natureza", e assim por diante. Gostava de flores e de crianças mais do que qualquer coisa no
mundo, e seus sonhos estavam realmente nesse terreno, embora não tivesse consciência disso.
Queria muito acreditar que amava Hugh, que concordava com ele e tinha confiança em seus
inventos.
Casaram-se, então, e viveram no pequeno apartamento, no grande edifício, durante quase
cinco anos.
Esses cinco anos foram pouco compensadores para Hugh. Suas invenções não tinham
resultados práticos e o trabalho na fábrica o deprimia cada vez mais. A princípio, depois de sua
rápida promoção, ele parecia satisfeito. Mas o encontro com Madge e seu casamento lhe haviam
reacendido o desejo de liberdade, com renovada força.
Hugh adorava Madge e desejava estar sempre ao lado dela. Na verdade, porém, quase
não a via. Passava o dia no escritório e as noites em sua oficina. De vez em quando , arrancava-
se da oficina e, com o coração doendo, levava Madge a passear, sentindo porém que com isso a
estava enganando, pois apenas retardava a hora da libertação de ambos. Isso estragava o prazer
e, além do mais, pela manhã tinha de sofrer o dilaceramento que o escritório lhe causava.
Tudo isso era excepcionalmente doloroso para Hugh porque imaginava dias inteiros ao
lado de Madge, lendo com ela, viajando aos quatro cantos da Europa e do Oriente, para ver todas
as maravilhas com que sempre sonhava. Sua libertação e a realização dos seus sonhos seriam
conquistadas pelas suas invenções, mas seu caminho era sempre barrado pelo trabalho na
fábrica, que o esgotava, tomava-lhe todo o tempo e interferia em seu verdadeiro trabalho.
Hugh acabou se convencendo de que a fábrica tirava vantagens de seu talento de
inventor. O aperfeiçoamento que havia imaginado e pelo qual recebera uma gratificação de 500
dólares e o aumento de salário que parecia enorme - mas que na realidade era miserável e muito
inferior ao salário de seu antecessor - haviam provavelmente trazido centenas de milhares de
dólares para a fábrica. O aperfeiçoamento, que tinha o registro da firma, era usado agora em
todas as máquinas-ferramentas feitas pela fábrica, constituindo-se na sua característica principal.
Muitas outras invenções seguiram-se a essa, mas Hugh não voltou a receber gratificações.
Esperavam-se invenções dele. Apresentavam-lhe um determinado problema e exigiam que ele o
solucionasse. A firma o explorava, obviamente. Hugh podia ver e sentir que esse trabalho forçado
lhe estava esgotando a imaginação e prejudicando seus projetos e idéias pessoais.
Resolveu, por isso, dedicar-se menos à fábrica. Aborrecia-se porque suas contribuições
não eram valorizadas. Intimamente, fervia de indignação. "Eu poderia ter feito muito por eles",
dizia a si mesmo, "se fossem capazes de valorizar meu trabalho e pagar por ele."
Hugh sabia que um dono de fábrica do tipo antigo, que conhecia o negócio
detalhadamente, que compreendia, amava e conhecia seus empregados, o teria tratado com
cuidado. Teria percebido que seu talento para invenção representava capital, e teria feito dele um
acionista da firma, com participação nos lucros proporcionados por suas invenções.

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A empresa onde Hugh trabalhava seguia um estilo de administração industrial que tinha
muito em comum com as mais desagradáveis instituições burocráticas. As pessoas tinham pouca
importância, e o aumento dos lucros era a única preocupação.
Não havia futuro para Hugh, ali. Todas as modificações e melhorias que ele criara eram
simplesmente propriedade da fábrica, sobre as quais ele não tinha qualquer direito. Conhecia,
porém, o valor de suas invenções, e enchia-se de indignação.
Acabou finalmente tomando uma posição, e quando lhe pediam para desenvolver novos
planos de aperfeiçoamento ou adaptação, simplesmente copiava os modelos e padrões antigos,
sem fazer qualquer modificação, embora conhecesse perfeitamente os aperfeiçoamentos
possíveis. Isso foi percebido e Hugh logo recebeu uma nota do engenheiro-chefe, dizendo
casualmente que ele parecia ter esgotado seu talento.
"Sou apenas um desenhista", respondeu, "e ganho menos do que meu antecessor, que
não inventou nada."
"Inventar?", disse o engenheiro. "Que espécie de inventor você acha que é? Sua obrigação
é desenvolver os detalhes dos projetos que lhe são encaminhados. Se você só sabe copiar, logo
encontraremos alguém para substituí-lo". "Pois então encontrem!", disse Hugh para si mesmo. E
resolveu que a partir daquele dia nenhuma invenção sua cairia nas mãos da fábrica.
Sua nova atitude teve repercussões rápidas. Ao final do primeiro ano, não recebeu
aumento. No segundo ano, seu salário foi reduzido. Isso significava que poderia ser despedido
como alguém que "tinha perdido a capacidade de trabalho".
Hugh compreendeu, mas não estava disposto aceder.

Devemos observar que, enquanto isso, as relações entre Hugh e Madge não melhoravam,
tornando-se óbvio que a realidade não estava correspondendo aos seus sonhos brilhantes, e que
a vida era monótona. A princípio, Madge gostava de pensar que Hugh era um "inventor", pois isso
satisfazia sua auto-estima; com o tempo, porém, começou a desejar que ele fosse mais parecido
com os outros homens, que se preocupasse mais com ela e pensasse menos em suas fantasias.
Algum tempo depois do casamento, começou a achar que Hugh não lhe dava muita atenção,
deixava-a muito tempo sozinha, raramente conversava com ela e não procurava levá-la para
divertir-se, nem lhe ser agradável. Outros maridos eram mais solícitos - e práticos.
Na verdade, Hugh tinha perfeita consciência disso, mas não queria admitir o fracasso e
perseguia teimosamente as suas ambições. Nessa situação as diferenças de origem entre os dois
evidenciavam-se. Madge era como um cão de guarda dotado de bom faro, mas sem a obstinação
e persistência do verdadeiro cão de caça. Hugh, por sua vez, era de outra raça. Não parecia notar
que fazia sacrifícios e certamente não os considerava como tal. Tudo o que fazia era para aquilo -
então por que se preocupar?
Era difícil a Madge suportar a tirania da obsessão de Hugh. Uma vez que ele próprio
sacrificava tudo, automaticamente exigia dela os mesmos sacrifícios. Estava habituado a uma
certa maneira de pensar e era-lhe difícil aceitar o ponto de vista da mulher. Achava estranho, por
exemplo, que ela quisesse ir ao teatro... "Como justificar uma ida ao teatro, agora?", era a
pergunta que se fazia. "Mais tarde poderemos ver tudo." Madge, porém, tinha outra opinião.
Nos dois últimos anos sua relação com Hugh começara realmente a deteriorar,
especialmente depois que ela perdeu o emprego. Não conseguira outro, e dispunha agora de
mais tempo livre e menos dinheiro. Ficava em casa e entediava-se. Sofria, acima de tudo, com o
fato de não ter filhos. Antes do casamento, Madge acreditava que, de alguma maneira, os filhos
não demorariam achegar. Depois, passou a ver as coisas sob outra luz, e uma luz bastante
desagradável.
Há demônios especiais que se ocupam da organização da vida familiar das pessoas,
manipulando, por assim dizer, a intensidade do efeito do acaso na família. Esses demônios
poderiam explicar, melhor do que eu, como e por que os fatos seguiram determinado curso. Só
posso dizer uma coisa: as pessoas são diferentes. Algumas são tão primitivas e outras tão más,
que aparentam insensibilidade em questões de amor. Hugh e Madge não eram bastante primitivos
para se contentarem com aquilo que a sorte lhes dava e, ao mesmo tempo, eram muito sadios
para sujeitar a natureza aos seus caprichos. A natureza começou a vingar-se de suas inúteis
tentativas de manter um relacionamento. O que começou como uma frieza imperceptível agravou-
se rapidamente com o tempo, e ao final do último ano eram praticamente estranhos. Madge

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pensava, muitas vezes, que outra mulher, em seu lugar, já se teria divorciado de Hugh há muito
tempo e casado com um homem comum. O mais difícil de suportar eram as brigas, já habituais. A
princípio para provocar Hugh, e depois porque começava a acreditar nisso, Madge insistia em que
ele não a amava e que ela não servia para ele. Todas as tentativas de Hugh para comunicar seus
sonhos e seu entusiasmo, para falar de seus planos para o futuro acabavam invariavelmente com
Madge chorando e gritando que não queria ouvir mais nem uma palavra.
As invenções de Hugh não estavam progredindo muito. Ou não eram práticas, ou ele
demorava em requerer a patente, e quando o fazia descobria que outros inventores já o haviam
feito seis meses antes.
A mais recente de suas invenções foi um curioso aparelho para medir e registrar a
velocidade das locomotivas. Era uma invenção necessária e prática: não havia bons instrumentos
desse tipo e a companhia ferroviária estava realizando um concurso aberto para o melhor projeto.
Hugh imaginou e fez uma máquina notavelmente prática, que combinava alta precisão com um
design simples. Mas também nesse caso sofreu um revés. O princípio usado, que ele acreditava
ser único, fora empregado por outro inventor, que o apresentou três semanas antes de Hugh e
ganhou o prêmio.
Quando soube disso, Hugh sentiu, pela primeira vez na vida, algo parecido com o
desespero.
"Se eu estivesse livre do emprego, meu modelo teria ficado pronto há três meses", disse
para si mesmo. "Com essa pedra em volta do meu pescoço, perderei sempre as oportunidades, e
outros ficarão com o que era para mim."
Quis conversar com Madge sobre isso, mas tinha certeza de que ela não o compreenderia:
opunha-se com demasiada violência às suas invenções. Dizia sempre que nada resultaria delas,
que ele havia jogado fora quase que um ano inteiro, que ela tinha razão ao dizer que o dinheiro
gasto na oficina e nos modelos teria sido melhor empregado de qualquer outra maneira - numas
férias de verão, ou na compra de alguma coisa. Precisavam de tantas!
O que ele poderia dizer de tudo isso? Repetir novamente o que sempre dissera, que
tinham de esperar, que em pouco tempo teriam tudo o que quisessem. E sabia que essas
palavras, longe de acalmar Madge, iriam irritá-la e ofendê-la ainda mais.
Pensando em tudo isso, Hugh convenceu-se de que a mulher já se havia resignado à vida
que levava e que desejava apenas uma pequena melhora. No fundo, é claro que sabia o que
Madge realmente desejava, mas sabia também que isso significava abandonar todas as suas
tentativas de invenção, e dedicar todo o seu tempo e esforços a um emprego. E não podia aceitar
isso. Todo o seu ser se rebelava e protestava contra essa idéia.
Foi assim que, no dia em que tomou conhecimento do fracasso da invenção em que
depositara tanta fé, Hugh sentou-se em sua sala e ficou pensando no que devia fazer a partir de
então. Na parede à sua frente estava pendurada uma gravura comprada dois anos antes:
mostrava Prometeu acorrentado ao rochedo e uma águia comendo-lhe o fígado. Prometeu - era
como ele. A águia era seu local de trabalho, diariamente drenando sua força.
"O trabalho livre é excelente na mesma medida em que o trabalho forçado é horrível",
pensou Hugh. "Aquela criatura selvagem é o precursor de nossa cultura, que, ao invés de
consumir sua vítima de uma vez, faz dela um escravo. Somos as vítimas lentamente devoradas
por nossos conquistadores."
Você deve ter percebido que às vezes Hugh falava por aforismos. Naquele momento,
Madge chegou da rua. Fora visitar a esposa de um dos empregados da fábrica e, conversando,
ficou sabendo da redução no salário do marido. Isso acontecera há dois meses, e ele ainda não
havia dito nada a ela. Madge sentiu uma dor no coração. Primeiro, pela falta de franqueza de
Hugh e, segundo, pela preocupação de como terminaria tudo aquilo. Hugh seria despedido!
Madge sofria e sentia-se indignada com o comportamento de Hugh, porém, mais do que isso,
como sempre, perturbada e cheia de inveja por ter visto os três filhos cheios de vida de sua
amiga.
Foi para casa num tumulto de pensamentos e decisões. Estava disposta a ter uma
conversa séria com Hugh. Era 'eu dever. Tinha de salvá-lo dele mesmo. "Ele é como um
alcoólatra ou um jogador", pensou. "Vou dizer-lhe que irei embora se não deixar essa mania de
uma vez por todas. Se me amar, concordará."
Bem, você pode imaginar como foi a conversa.

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"Quero falar com você, Hugh", disse Madge entrando na sala e sentando-se.
Hugh franziu o cenho.
"Preciso sair", disse.
"Espere um pouco. Passo semanas inteiras sem ver você. Não agüento mais. Estive com
Evelyn Johnson. Pelo amor de Deus! Sabe o que estão dizendo de você no trabalho? O diretor diz
que ou você é um alcoólatra, ou um viciado em drogas. Por que se casou comigo, se não
precisava de mim ?"
A conversa tomava um rumo totalmente diferente do que Madge pretendia. A relutância de
Hugh em conversar, quando a culpa era toda dele, provocou uma explosão incontrolável.
Hugh ficou calado durante vários minutos, ouvindo-a. Seu rosto se tornou sombrio.
Começou então a falar, interrompendo Madge que, por sua vez, continuou falando; nenhum deles
ouvia o outro, cada um tentando desabafar. Hugh disse a Madge que ela não o compreendia e
não o queria compreender; a fábrica interferia no seu trabalho; precisava deixá-la; só a tolerara
até agora por causa da mulher; e agora, ela estava usando os mexericos de uma idiota para
convencê-lo de que estava arruinando seu futuro. Como se houvesse futuro naquela fábrica! Um
lugar perfeito para ele, realmente!
"Evelyn não é uma idiota", respondeu Madge asperamente. É uma mulher muito
inteligente, mais inteligente do que você, por mais formidável que você se considere. Para você,
todos os outros são bobos e idiotas. Só você tem cabeça. Não agüento mais isso, não agüento!
Madge começou a soluçar.
E assim, para resumir, as coisas se passaram de acordo com o padrão habitual.
Hugh acabou quebrando duas cadeiras e saindo para a rua, batendo a porta com tanta
força que a rachou ao meio. Passou o resto da noite bebendo num bar. Começou a conversar
com alguns atores sem trabalho, para os quais pagou bebida durante toda a noite, por toda a
cidade. Mas quanto mais bebia, mais sóbrio ficava, e mais claramente compreendia sua situação.
A manhã estava sombria e chuvosa quando Hugh voltou para casa, resolvido a não ir
'trabalhar. O mundo parecia estar nu, e Hugh via claramente expostos todos os nervos e tendões
da vida. Era impossível iludir-se naquela manhã. A crua verdade da vida, sem verniz ou disfarce,
gritava-lhe de todos os lados. "Cede, ou será esmagado! ", dizia a vida. "Talvez já seja tarde
demais; talvez você já tenha perdido o momento de baixar a cabeça, e talvez, neste momento, já
esteja morto." ,
Medonhas construções de tijolos, ruas de asfalto molhado; multidões cinzentas e
rotineiras, sombrias e grotescas; cascas de repolho nas latas de lixo; um velho bêbado de
muletas; meninos sujos, andrajosos, de vozes agudas - Hugh olhava para tudo como se fosse a
primeira vez. Jamais imaginara que a vida podia ser tão feia.
Você certamente sabe que a manhã, depois de uma bebedeira, pode ter um efeito muito
salutar, especialmente para as pessoas de estômago forte e mente clara. O homem que se sente
mal não pode ver a moral da fábula, mas Hugh era um homem saudável e viu a vida totalmente
despida.
E o que é pior, seus sonhos de alguma maneira pareciam embaçados, sem vida e
artificiais.
Sem perceber, Hugh voltou para a casa com uma resolução tomada.
Madge não estava. Sobre a mesa, havia uma carta sua, com cerca de dez páginas. Ela
parecia ter passado toda a noite escrevendo. "Não sirvo para você", era o principal tema da carta.
"Você esqueceu que sou mulher. Quero viver e não estou interessada no futuro, mas no
presente." E concluía dizendo que escrevera para a tia na Califórnia, com quem pretendia ficar.
Hugh começou a responder a carta, mas parou na segunda página. Rasgou tudo o que
havia escrito e foi dormir.
Seguiram-se dias tristes, um após o outro. Hugh várias vezes tentou conversar com
Madge, mas os encontros foram sempre um fracasso. A chave que possibilita às pessoas
conversarem e chegar a um entendimento pacífico parecia ter sido perdida. Em duas ocasiões
discutiram violentamente. Depois disso, Hugh dificilmente ia para casa. Também não podia
trabalhar e passava todas as noites num bar.

21
Duas ou três semanas transcorreram, e numa bela manhã Hugh acordou cedo, com uma
idéia. Não era preciso pensar mais: chegara o momento de agir.
Há muito tempo eu sabia o que se passava em sua cabeça; na verdade, pude notá-lo
antes dele. As pessoas freqüentemente não tem consciência da presença desse pensamento; só
raramente o percebem inteiramente. Você sabe, evidentemente, do que estou falando: muitas
pessoas frívolas alimentam a idéia de acabar com tudo por elas mesmas, se as coisas não
correrem do jeito que planejaram. Cada pessoa tem sua versão preferida: há quem veja à sua
frente um revólver; outro, um copo de veneno. Há um efeito tranqüilizador nesses sonhos, pois a
vida torna-se suportável no momento em que o homem pensa em deixá-la. Essas reflexões me
dão muito prazer porque afirmam meu poder sobre o homem. Talvez você não consiga
compreender, mas a pessoa que encontra consolo ao pensar num revólver ou num copo de
veneno acredita em meu poder e o considera mais forte do que ela mesma.
Há um tipo desagradável de pessoa para quem os pensamentos dessa natureza são
totalmente estranhos. Essas pessoas não acreditam na realidade da vida; consideram-na como
um sono. Para elas, a realidade está em algum outro lugar, fora dos limites da vida. Matar-se por
causa de um revés é tão absurdo para elas quanto matar-se depois de ir ocasionalmente ao
cinema ou ao teatro. Esse tipo de pessoa não me interessa; felizmente, Hugh não fazia parte dele.
Não tinha dúvidas sobre a realidade da vida. E essa realidade simplesmente não lhe oferecia
atrativos. Era uma pessoa observadora e compreendeu que vinha pensando no suicídio há algum
tempo. Mesmo assim, achou que os fatores decisivos foram o fracasso de sua última invenção, a
briga com Madge e sua crescente aversão ao emprego. A causa, naturalmente, é outra. Sem que
soubesse, ou fizesse qualquer esforço consciente, a "idéia" já se havia desenvolvido totalmente
em sua mente, fechando-a para qualquer alternativa. Gosto desses momentos na vida de uma
pessoa. Eles constituem o triunfo final da matéria, frente ao qual o homem é impotente; e essa
impotência jamais é tão completa e evidente como nesses momentos.
Era essa, portanto, a situação. Hugh era uma pessoa decidida, lúcida. Já havia examinado,
pesado e calculado tudo o que podia ser feito, e não queria adiar por mais tempo. Você sabe
como uma pessoa se sente pouco antes de uma viagem, quando imagina já ter partido, incapaz
de suportar a simples idéia de um adiamento. Hugh acordou exatamente nesse estado de espírito
na manhã em que minha história começa.

Tudo foi bem pensado. Cinco anos antes Hugh havia feito um seguro de vida e Madge
deveria receber o prêmio, mesmo que ele se suicidasse. Hugh escreveu-lhe uma carta breve,
deixou-a na gaveta aberta de sua mesa, vestiu-se e saiu de casa na hora em que habitualmente ia
para o escritório. Mas dessa vez foi para a cidade.
Era cedo. Sentou-se num café e tomou um desjejum reforçado. Não sentia medo. Estava
frio, decidido, calmo. Saindo do café, tomou o trem para o centro da cidade, para a Broadway.
Com as mãos metidas nos bolsos do casaco, sentou-se e ficou observando o rosto dos outros
passageiros, com uma leve expressão de nojo. Era a multidão de todas as manhãs. Pessoas que
corriam para o trabalho, para os escritórios, bancos e lojas. Hugh as olhava, e em sua cabeça se
formavam frases semelhantes à oração do fariseu: "Agradeço-vos, Senhor, por não me terdes
feito como eles; agradeço-vos por me terdes dado forças para resistir à minha escravidão; dai-me
forças para partir." As faces inexpressivas mostravam a Hugh a que teria se reduzido se não
tivesse um espírito de protesto sempre vivo, uma vontade de lutar e uma relutância em aceitar o
fracasso. As vezes seu rosto se congelava num desprezo; ele me lembrava o índio americano que
no passado, desafiando a rendição, cantava a canção final antes de se atirar no abismo, do alto
de um rochedo.
"Escravos", pensava ele, "escravos que nem mesmo têm consciência de sua escravidão.
Já se habituaram a ela. Nunca sonharam com coisas melhores; nem mesmo experimentaram o
desejo de liberdade. Sequer pensaram na liberdade. Meu Deus, dizer que eu poderia ter sido
como eles! Enquanto achava que poderia superar isso, sentia-me satisfeito em poder tolerar a
escravidão, mas agora tudo acabou. Não há como fugir dela, e recuso-me a ser escravo. Já sofri
demais."
Observava com desprezo o vaivém dos passageiros. Tinha consciência de sua
superioridade e sentia-se forte. As pessoas continuariam com suas vidas desinteressantes e
tediosas, os trens continuariam a rodar, os escravos correriam para o trabalho; a chuva cairia e o
tempo seria úmido, chuvoso, miserável. Para ele, tudo isso deixaria de existir amanhã. Um tiro na

22
praia, abafado pela chuva e pelo vento, um baque no peito - era tudo. Esse devia ser o fim de
todos os bravos derrotados.
Observei que Hugh se sentia mentalmente bem e muito mais relaxado do que no dia
anterior, o que me agradou, porque tudo isso o aproximava mais do momento de meu triunfo, isto
é, o triunfo da Grande Matéria, do Grande Engano sobre o espírito, a vontade e a consciência do
homem. Psicologicamente, esse momento é muito interessante. Para chegar a ele, a pessoa deve
acreditar incondicionalmente na realidade daquilo que, na verdade, não existe; na realidade minha
e do meu reino. Compreende o que quero dizer? O suicídio é o resultado da fé infinita na matéria.
Quem tiver a menor dúvida, a mais leve suspeita de que está havendo um engano, não se matará.
Para realizar suas intenções, terá de acreditar que tudo o que parece existir, existe de fato.
Imagine então meu prazer quando ela já tiver praticado seu último gesto - puxado o gatilho,
pulado o parapeito ou engolido o veneno; de repente, quando perceber que tudo está terminado e
não há como voltar atrás, a luz se faz: cometeu um erro; as coisas não são o que pareciam ser,
tudo está de cabeça para baixo, não há outra realidade senão aquela bênção que acaba de jogar
fora - isto é, a própria vida. E esmagado pela compreensão de que cometeu um ato de insanidade
irreversível e, convulsivamente, procura alguma coisa a que se agarrar, para se arrastar para fora
do poço, para voltar ao último momento. Para mim, isso é uma beleza! Nada me proporciona
prazer maior. Se você pudesse apreciar o que acontece na alma de um homem nesse momento;
como ele faria tudo, então, para dar um passo, apenas um, para trás.. .
Mas voltemos a Hugh.
Saltou do trem na Broadway, desceu a rua e foi a uma das maiores casas de armas. Podia
ler-lhe os pensamentos: queria comprar o melhor revólver.

Meu amigo, você nos culpa por muita coisa que acontece. Mas se soubesse o pouco que
depende de nós! Veja este caso. Se eu soubesse o resultado da compra do revólver, teria
aconselhado Hugh, do fundo do meu coração, a parar na farmácia e comprar um veneno para um
cão doente. Sim, se eu soubesse o que iria acontecer, talvez o tivesse guiado pessoalmente à
farmácia. Vou ser franco e confessar que, de modo geral, nenhum diabo pode entender vocês,
humanos. As vezes vocês me enchem de profunda indignação, às vezes me trazem uma grande
alegria, exatamente no momento em que menos a espero.
O que aconteceu na loja de armas foi um dos mais desagradáveis incidentes de minha
vida: nunca me havia sentido tão estúpido e impotente.
Eis o que aconteceu.
Hugh entrou e pediu para ver um revólver que coubesse no bolso e tivesse bom
desempenho, nem muito grande nem muito pequeno, do modelo mais recente. O vendedor trouxe
cerca de dez modelos diferentes, e Hugh começou a examiná-los, como se fosse importante
escolher a arma adequada para se matar.
A princípio não prestei atenção e atribuí essa atitude à excentricidade normal. Você há de
compreender que, de vez em quando, tenho de estar presente a essas escolhas, em cumprimento
do dever profissional, e por isso fiquei de lado e procurei passar o tempo pensando em outras
coisas. Por fim, notei que Hugh estava demorando muito para escolher o revólver, e aborreci-me
de esperar. Cheguei perto e vi algo totalmente inesperado.
Hugh tinha mudado: ali estava uma pessoa completamente diferente da que entrara na loja
minutos antes. Você não pode entender isso, mas conhecemos cada uma de suas várias faces;
até mesmo damos a elas nomes diferentes. Imagine, portanto, entrar numa loja com uma pessoa
e, cinco minutos depois, encontrar outra bem diferente. Nossa vida é cheia de mudanças desse
tipo. Fiquei furioso, particularmente porque percebi que a intenção que o levará até ali (e em cuja
evolução, devo confessar, havia trabalhado bastante) de repente esmoreceu e reduziu-se, a tal
ponto que quase não a percebi na multidão de novos pensamentos que se lançavam na sua
consciência. Pude ver, também, que todos esses pensamentos novos estavam empurrando o meu
"pensamento" para um canto. Compreendi que todos eles brotaram durante o tempo em que Hugh
estava na loja. E o que é pior, eram de uma natureza técnica totalmente incompreensível; senti-
me perdido, sem saber o que fazer com eles.
Havia uma pilha de revólveres e fuzis de repetição sobre o balcão; com os olhos brilhando
e uma expressão animada e feliz, Hugh falava ruidosamente com os dois vendedores. Estes
pareciam interessados naquele freguês minucioso, e tiraram das prateleiras todos os tipos de fuzis

23
e revólveres de modelos e sistemas novos, para mostrar a ele. Eu não tinha a menor idéia do que
falavam porque empregavam principalmente termos técnicos como “coice” e “erupção de gases".
Isso parecia interessar-lhes muito.
Finalmente, Hugh calou-se e, bastante concentrado, começou a abrir e fechar uma câmara
do cartucho, trocando algumas observações com o vendedor. Vi que estava totalmente absorvido
por um pensamento novo que afastava inteiramente os demais. Uma nova invenção! Você pode
acreditar nisso? Alguma coisa acontecera em seu cérebro naqueles últimos minutos, alguma coisa
que derrotara todas as suas boas intenções. Quando tentei saber o que se passava em sua
cabeça, fiquei totalmente desorientado. "liberação de gases" e "utilização do coice" eram os dois
pensamentos principais, como rodas girando em seu cérebro e levando-o a várias outras
considerações técnicas, fórmulas e cálculos. Tudo isso estava completamente fora de meu
campo, você há de entender. Eu só sabia que tudo aquilo tinha relação com um novo tipo de
revólver ou fuzil. É claro que não posso ser totalmente indiferente ao que acontece nessa área - é
um assunto de grande interesse para mim. Mas não confiava no entusiasmo de Hugh: ele sempre
se deixara levar para depois chegar à conclusão de que sua idéia não valia nada. E eu estava
muito preocupado com as modificações em seu estado de espírito. Como já disse, aprovava a sua
decisão. Ele estava muito próximo de um belo salto para o desconhecido, e eu já imaginava como
faria sua alma contorcer-se de angústia e desespero no momento em que estivesse dando uma
volta no espaço. É sempre tão divertido! Por outro lado, não podia ignorar seu novo pensamento
sem o devido exame. Era algo mais do que um instrumento para medir a velocidade de máquinas!
Na verdade, valia a pena saber do que se tratava. Mas encontrei uma barreira. Você sabe que os
homens são inteligentes demais para mim. Por mais que eu tentasse penetrar nos pensamentos
de Hugh, não podia entender nada, exceto alguma coisa sobre uma haste com uma mola espiral,
que por algum motivo era de importância decisiva.
Procure entender minha posição.
Se Hugh tivesse pensado em alguma coisa interessante em si mesma, como falsificar um
testamento, digamos, seduzir uma garota inocente, colocar uma bomba num cinema, eu poderia
ter ajudado, e muito. Mas ali, na haste com mola espiral, não havia nada de, como direi... de
natureza emocional. Eram detalhes de uma nova invenção, e nada mais. Não havia crime nisso, e
eu só me posso ocupar de um caso quando há algo de criminoso nele. Percebi que estava
destinado a uma passividade total, embora ao mesmo tempo pudesse ver que a nova idéia de
Hugh poderia ser muito útil, do ponto de vista do crime em geral. Esse exemplo ilustra as
dificuldades em que venho me encontrando ultimamente. Muita coisa está acontecendo às minhas
costas e sem a minha ajuda. Vocês se tornaram espertos demais para mim. Nos velhos bons
tempos eu sabia tudo e tudo podia prever. Hoje em dia, sinto-me desorientando pelo progresso
técnico.
Voltando à minha história: no fim, Hugh comprou um revólver e cartuchos, colocou-os no
bolso e saiu da loja.
Observei que saiu de maneira muito diferente da que entrara. Você não pode compreender
isso - mesmo que entenda intelectualmente, ainda assim não poderá ver -, mas vemos que um
homem caminha de muitas maneiras diferentes. O homem que resolve suicidar-se caminha de
maneira totalmente diferente do homem a quem ocorreu a idéia de uma nova invenção. Seria
necessário um longo tempo para explicar, mas parece-nos estranhamente cômico que a mesma
palavra, caminhar, possa ser usada em ambos os casos.
Continuando: foi triste para mim ver Hugh com essa nova persona. Resultaria algo de
interessante dessa nova invenção, ou não? Não podia saber a resposta, mas estava
perfeitamente consciente de que se tratava de um caso muito curioso, que aparentemente
escapava ao meu controle. E você sabe que eu sempre prefiro ter um pássaro na mão do que
dois voando. É meu ditado favorito.
Hugh saiu à rua. Sua mente estava totalmente ocupada com a idéia recém-concebida, que
zumbia como uma abelha. Ainda assim, agindo segundo um forte impulso, peculiar às pessoas de
vontade forte, Hugh se dirigiu para o lugar originalmente escolhido.
De repente, vi-me pensando: "Quem sabe? Devo acompanhar este caso até o fim."
Acontece por vezes a uma pessoa que alimentou a idéia de suicidar-se, matar-se com um tiro, ou
enforcar-se, muito tempo depois de terem desaparecido as razões que originaram esse
pensamento. Isso é apenas o trabalho do pensamento em si, que se torna independente e domina
o seu autor.

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Lembro-me de uma mulher que decidiu envenenar-se se seu amante não voltasse da
guerra. Guardava um pequeno frasco de veneno, que beijava todas as noites antes de se deitar.
Seu amante voltou são e salvo, e na noite de seu retorno, ela tomou o veneno e morreu na frente
dele.

Hugh tomou novamente o trem aéreo e, depois, o bonde elétrico; fez várias conexões, deu
uma longa caminhada e, finalmente, acabou na praia deserta, deixando para trás a cidade, o porto
e os armazéns. O lugar a que chegou era uma faixa de areia e mar, triste e desolada. Não seria
possível encontrar lugar mais adequado para o suicídio. A direita ficavam as ruínas calcinadas de
um armazém que se havia incendiado no ano anterior. Não se via mais nada.
Parara de chover. Hugh sentou-se numa pedra, não muito distante da água, tirou um
caderno de notas e começou a escrever e desenhar. Olhei várias vezes por cima de seu ombro,
mas vi apenas números e símbolos que não compreendia, e isso se tornou tedioso.
Finalmente, Hugh recolocou o caderno no bolso, e levantou-se com um ar orgulhoso e
resoluto, como se houvesse tomado uma decisão. "Ora, diabos me levem, ainda não estou
derrotado", disse ele. "Sei que acabarei vencendo, e sempre soube disso. A covardia e o
desânimo me trouxeram até aqui! Essa nova idéia me dará a liberdade, custe o que custar."
Pegou o revólver, carregou-o, subiu numa pedra em frente ao mar, levantou o braço e,
como se desafiasse alguém para uma luta, deu seis tiros, um após o outro, para o horizonte
enevoado. Depois travou o revólver, retirou as cápsulas enegrecidas, enfumaçadas, examinou-as
com um sorriso, recolocou o revólver no bolso e voltou para a cidade.
Imagine a cena e avalie como me senti idiota.
Hugh só chegou em casa à noite. Uma surpresa o aguardava. Madge havia ido embora.
Sobre a mesa estavam uma carta e as chaves.
"Querido Hugh", ela escreveu, "não me queira mal por ir embora sem me despedir. Teria
sido muito difícil porque eu o amo muito, não importa o que aconteça. Sinto, porém, que não sirvo
para você e até que estou lhe atrapalhando. Já faz algum tempo que você não me dá atenção, e,
quando o faz, é para me fazer sentir como uma mosca impertinente, zumbindo em torno de você e
atrapalhando seu trabalho. Talvez a culpa seja minha por não compreender seus pensamentos,
mas não posso concordar em sacrificar o presente por alguma coisa que talvez nunca chegue.
Lamento muito tudo o que perdemos e choro pelos filhos que poderíamos ter tido e não deixamos
vir a este mundo. Sei o que vai dizer, mas simplesmente não posso acreditar mais em você.
Compreendo que deixou de me amar. Vou morar com minha tia em Los Angeles e pensarei
sempre em você. Adeus, Hugh."
Como vê, uma carta muito comovente e sentimental, que deixou Hugh muito
impressionado.
"E eu queria me suicidar", pensou ele. "Eu devia ser enforcado só por ter pensado nisso.
Pobre Madge! Que sorte ela não ter encontrado minha carta idiota. Bem, deixe que ela fique
algum tempo na Califórnia. Será melhor assim. Vou trabalhar. E diabos me levem se não
conseguir o que quero."
Só foi se deitar muito tarde. Primeiro, escreveu uma carta muito afetuosa e meiga a
Madge. Pedia-lhe que esperasse por ele um ano, e prometia ir quando o prazo terminasse,
vitorioso ou disposto a esquecer para sempre as invenções e começar uma vida nova com ela, no
Oeste. "Tudo dará certo, minha querida Madge", escreveu, "e não pense que não a amo, ou não
preciso de você."
Em seguida, ficou, algum tempo planejando suas finanças - tarefa simples. Tinha dois mil
dólares de economia. Resolveu mandar mil para Madge e ficar os outros, mil, para viver. Deixaria
o emprego.
Mergulhou em seguida em cálculos relacionados com sua nova idéia e passou o resto da
noite fazendo diagramas, desenhos e cálculos. Por fim, exausto, deixou cair o lápis e permaneceu
sentado por um longo tempo, com os olhos, fechados, vendo alguma coisa que eu não podia ver.
"Sim", disse finalmente, "sete balas em dois segundos, dois segundos para carregar, cento
e cinco balas por minuto se as balas forem feitas com revestimento de níquel. Com todos os
gases vedados, a arma terá uma força totalmente inconcebível num simples revólver.
Foram as primeiras palavras inteligentes que ele disse, durante todo o dia.

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"Cento e cinco balas por minuto", pensei, "e com revestimento de níquel. Nada mau."
Hugh foi dormir. Era um homem sem imaginação e não pensou muito nos enormes
benefícios que sua invenção traria para toda a humanidade. Involuntariamente, entusiasmei-me.
Cento e cinco balas por minuto! Era uma idéia digna de louvor. Eu podia compreender todo o seu
valor .

Na manhã seguinte Hugh mandou a carta e o dinheiro para Madge e sentou-se para
trabalhar. Os dias seguiram-se uns aos outros, sem incidentes. Logo cedo sentava-se na
prancheta de desenho ou no torno, cortando as várias partes, testando e modificando; passava as
noites num bar, bebendo cerveja e fumando cachimbo. Deixara o emprego e nada lhe interessava,
exceto seu trabalho e as cartas de Madge. A princípio, Madge escrevia pouco; com o tempo
porém, começou a sentir falta de Hugh e a considerá-lo muito mais atraente. Passou a escrever
quase todos os dias, descrevendo a Califórnia, o mar, o calor, o sol, e pedindo-lhe que fosse mais
cedo, para trabalharem juntos e construir o seu futuro e dos filhos que certamente teriam.
"Deixe Nova York logo", escrevia, "e venha para cá. Fomos separados pela névoa
cinzenta, pelo pó e a fumaça da cidade, mas o sol nos aproximará novamente."
Madge gostava de ler poesia e de expressar-se de maneira elegante. Considerava-se
muito mais instruída do que Hugh. A verdade é que ela engolia um grande número de livros.
Hugh lia as cartas, escrevia respostas breves e continuava a trabalhar. No fundo do
coração, porém, gostaria de deixar tudo e ir para junto de Madge, na Califórnia, tentar uma vida
totalmente nova em meio à natureza, uma luta contra os elementos.
Imaginava uma montanha coberta de florestas de pinheiros. Numa elevação da montanha,
uma cabana de madeira, simples, de cuja varanda Madge lhe acenava. Lembrava-se dos
romances de Bret Harte, embora soubesse que a Califórnia contemporânea era bem diferente.
Mas principalmente sonhava com Madge. Era um sujeito estranho: estava casado há cinco anos e
ainda amava a mulher. Quando estavam juntos, as brigas, discórdias e desentendimentos
abafavam seu amor. Mas, à distância, Madge novamente parecia brilhar com todas as cores do
arco-íris e Hugh voltava a acreditar que não havia mulher mais bela, encantadora, tentadora e
inteligente. Era verdade que discordavam em muitas coisas, mas apenas porque a alma de
Madge buscava a verdade, a liberdade e a beleza. Ele buscava os mesmos objetivos, mas por um
caminho mais longo e mais difícil. Com sua sabedoria interior de mulher, ela encontraria o que
procurava no sol, na natureza, no desejo de filhos. E isso estava certo, isso era bom. Mas não era
à toa que Hugh era americano, e continuava achando que com um milhão de dólares tudo isso
ficaria muito melhor. E se seus sonhos se realizassem, então Madge concordaria com ele e
reconheceria que o esforço e sacrifício de todos esses anos valeram a pena.
Passou-se um mês, depois outro e um terceiro; pás sou-se meio ano e, finalmente, chegou
o dia em que Hugh tinha um esboço pronto.
O resultado de todo esse trabalho, raciocínio, cálculo, entusiasmo, persistência, força de
vontade, noites insones e visões foi o nascimento de uma pequena criatura bastante desajeitada.
Era a pistola automática. De fora, parecia mais um martelo ou uma chave de porca do que um
revólver. Mas sem dúvida, tinha várias características novas, que prometiam um grande futuro.
Percebi isso imediatamente. O que me interessava, porém, era saber se Hugh teria lucros com
ela. Na maioria dos casos, não são os inventores que lucram com as suas invenções.
A pistola era chata e pesada. Sete balas se localizavam no cabo, não no tambor. O coice
do tiro fazia recuar a parte superior da arma e, ao mesmo tempo, a cápsula do cartucho usado era
expelida e um novo cartucho era inserido no cano, alimentado embaixo por uma mola. Tudo muito
simples e prático. A velocidade de tiro ultrapassava, em muito, qualquer coisa conhecida na
época, e como não havia escapamento de gases entre o tambor e, o cano, era quase três vezes
mais poderosa do que um revolver do mesmo calibre.
A idéia apresentara alguns problemas. Hugh lutara muito tempo com o extrato r dos
cartuchos usados. A trava de segurança também lhe causara preocupações, e continuou sendo o
ponto fraco da criação nascida em sua oficina. Em suma, um período de ansiedades e dúvidas.
Quando compreendi exatamente que tipo de criação havia surgido, minha atitude com
relação ao trabalho de Hugh melhorou consideravelmente. Mas como já disse, não havia maneira
de ajudar, pois em seus pensamentos e sentimentos não havia nada que me interessasse; isto é,
não havia absolutamente nada que fosse criminoso. Compreenda-me: meu campo de atividades

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está limitado pelas emoções existentes. Não posso sair desse campo, do mesmo modo que um
peixe não pode voar, ou um pássaro nadar sob a água. Alguns dos meus colegas tentaram passar
por peixes voadores ou pássaros mergulhadores, mas não deu resultado. Somos criaturas de uma
força elementar definida. Hugh era totalmente imune a essa força. Já disse que ele não tinha a
menor imaginação, tal como entendo que a imaginação deve ser. Para ser franco, eu me sentia
muitas vezes constrangido com seus sonhos de Madge, de amor, de liberdade, de toda a sua
felicidade e prosperidade futuras. Era tão insípido, tão enjoativo!
Madge continuava a escrever com freqüência. Estava feliz na Califórnia; resolvera
aprender o negócio de flores e trabalhar numa fazenda de flores do marido de sua tia.
"Dou-lhe um ano de prazo, Hugh", escreveu ela. "Depois de um ano, com ou sem
invenções, você tem de estar aqui. Arrendaremos um sítio e plantaremos flores."
Hugh suspirava ao ler essas cartas, colocava-as de lado na mesa de escrever e voltava ao
torno. Você não pode imaginar como as pessoas são engraçadas, às vezes.

Finalmente nasceu a criação de Hugh: desajeitada, mas com enorme potencial e grande
futuro. Disso eu tinha certeza.
Haviam transcorrido seis meses, exatamente, desde aquela manhã enevoada em que
Hugh tomara o ônibus para ir à praia deserta. Voltava agora para lá pelo mesmo caminho, mas
com um estado de espírito bem diferente. Tocava repetidamente o pesado objeto em seu bolso e
sentia a excitação do triunfo. Levava também duas grossas pranchas quadradas de carvalho, um
alvo e um telêmetro construído nos momentos de folga. Essa carga lhe agradava. Não tinha
dúvidas quanto aos resultados. Desta vez, a multidão dos viajantes matinais que acorriam ao
trabalho provocou-lhe um misto de pena e desprezo: já não temia ser um deles.
"Pergunto-me por que será que ainda não começamos a castrar vocês", pensou ele. "Se
algum bilionário chegasse à conclusão de que empregados castrados são mais úteis, tenho a
certeza de que muitos se ofereceriam espontaneamente para uma pequena operação; os pais
mandariam os filhos aos hospitais para garantir-lhes um emprego no futuro. Talvez uma alma em
cada dez mil compreendesse o que estava acontecendo; as outras achariam que estão vivas e se
considerariam, seriamente, como pessoas. Eu também seria uma dessas, se não estivesse
disposto a morrer dez vezes, mas não viver uma vida sem liberdade e sem o meu trabalho
independente."
Hugh certamente não mostrava, nenhuma modéstia especial naquele momento, o que me
deu grande prazer. Entenda-me: não estava preocupado com a criação, mas com o criador, o
próprio Hugh. Parecia-me que ele tinha muitos defeitos e isso lhe traria muitos dissabores. O
futuro mostrou que eu tinha razão.

A sorte dos inventores, pintores, poetas e pessoas desse tipo, em geral, é muito
interessante. Francamente, nada me deu maior prazer, durante muito tempo, do que o caso do
pintor francês que se matou na miséria e no fracasso; poucos anos depois, seus quadros eram
vendidos por centenas de milhares. Foi uma delícia. As pessoas ainda não tinham perdido o seu
senso de humor. E fiz tudo o que pude para despertar a consciência desse pintor, "no outro
mundo", e dar-lhe essa boa notícia. Foi ótimo ver como a recebeu. Quando compreendeu o que
eu estava dizendo, ficou apopléctico de raiva - e teria se sufocado, se pudesse respirar. Mas não
podia fazer nada porque, rigorosamente falando, não existia. Mas percebeu o que havia de
cômico nisso. Realmente, não desejaria que o astral dele estivesse em você. Ele se envenenou
por milhões de anos, em seu ódio pelos homens. Pense bem, cinco anos depois de ter se
suicidado por causa da fome, pagarem um milhão de francos pelos seus quadros! Não é
maravilhoso?
Mas estou divagando. Tinha esperanças de que algo semelhante acontecesse a Hugh, e
logo minhas profecias começaram a se realizar.
Naquela manhã, porém, tudo corria como Hugh desejava. Não posso dizer agora,
exatamente, quantos tiros por minuto foram comprovados na primeira experiência e quantos
centímetros as balas penetraram na madeira. Mas Hugh estava exultante. A força de ação da
pistola era igual à de um fuzil grande, e a velocidade excedia à de uma metralhadora, que naquela
época demorava muito tempo para carregar.
Todos os cálculos de Hugh estavam rigorosamente certos. O cano era perfeito. A arma
podia agora ser submeti da ao julgamento das pessoas, e as pessoas seriam julgadas por ela.

27
Hugh voltou para casa com um sentimento íntimo de exaltação. Amanhã começaria o desfile
triunfal.
Mas a realidade se apresentava de modo diferente. A primeira coisa que compreendeu foi
que não tinha dinheiro. E não só isso, como também já havia contraído várias dívidas pequenas. A
questão do dinheiro foi lembrada quando começou a pensar nas patentes. Sabia, por experiência
própria, que uma patente custa caro: são necessários modelos, desenhos.. o Registro de Patentes
exige uma soma considerável em adiantamento. As patentes estrangeiras eram particularmente
caras.
"Diabo!", disse Hugh, "é um beco sem saída".
Só tinha uma coisa que podia vender: a apólice de seguro.
"Seria absurdo guardá-la agora", disse ele. "Mesmo que eu morra, Madge certamente
receberá mais dinheiro da minha invenção do que pelo preço da minha vida.
À tarde, a apólice já havia sido vendida. Hugh encomendou as várias peças do modelo a
oficinas diferentes, e os vários desenhos dos planos a diferentes escritórios de desenhos. Ah, foi
cauteloso! Ele mesmo montou os modelos e escreveu todas as legendas dos desenhos com a sua
própria letra. Esse trabalho consumiu cerca de um mês e quase todo o dinheiro ganho com a
venda da apólice. "Agora", disse finalmente para si mesmo, "é tempo de assegurarmos o destino
desta criatura."

Foi exatamente aí que surgiu o maior obstáculo. Um obstáculo que Hugh não havia
previsto e para o qual estava completamente despreparado, mas que eu, a partir de experiências
anteriores, conhecia muito bem. Tratava-se da luta contra a apatia essencial da vida. O mundo
reluta em admitir as coisas novas. Quando surge uma novidade, só raramente, muito raramente
mesmo, esta encontra um caminho fácil. Decepções e dificuldades são a recompensa habitual dos
que criam coisas novas. Mas Hugh não estava preparado para isso e esperava, ingenuamente,
que os milhões já se estivessem acumulando para ele.
Começou escrevendo cartas a todas as grandes fábricas de armas. Não teve respostas.
Escreveu novamente, perguntando se tinham recebido a primeira carta. Ninguém respondeu. Foi
pessoalmente a uma fábrica. O diretor estava em reunião. A secretária que o atendeu disse que
as ofertas de novas invenções eram examinadas por uma comissão especial, três vezes por ano,
e que a próxima reunião deveria ocorrer dentro de dois meses, sendo necessária a apresentação
de modelos e desenhos. Tudo isso foi recitado como uma lição aprendida de cor. Era evidente
que a secretária freqüentemente tinha de tratar com inventores.
"Vocês não têm ninguém que entenda dos aspectos técnicos, que pudesse simplesmente
experimentar minha pistola?", perguntou Hugh.
A secretária sorriu ligeiramente diante dessa insolência e disse que todos os inventores
exigiam verificações imediatas, e que para não perder tempo a fábrica estabelecera uma rotina,
testando apenas as invenções aprovadas pela comissão. E com isso deu um bom dia, senhor! a
Hugh.
“É claro, não deveria ter esperado que fosse diferente", disse Hugh para si mesmo. "Por
que essas múmias haveriam de acordar subitamente? Como fui idiota em não ter pensado nisso
antes. Não é de escrever cartas que preciso, mas de falar pessoalmente. Deve haver alguém vivo
em algum lugar. Um homem vivo compreenderá imediatamente."
Hugh começou a visitar as fábricas.
Os resultados foram parecidos com os da sua primeira entrevista. Exigiam-se modelos e
desenhos e pediam-lhe que voltasse dentro de um mês. Mas Hugh não queria entregar seu
modelo. Não tinha certeza de que sua patente protegeria todos os detalhes da invenção. Sabia
como era fácil fazer algumas modificações e tirar uma nova patente, e da impossibilidade de um
inventor desconhecido e sem dinheiro, mover uma ação contra uma grande empresa. As
imitações deixariam de ser perigosas depois que ele tivesse conquistado o mercado; até lá,
ninguém teria o modelo. Mas sem ver o modelo ninguém estava disposto a conversar.
Madge raramente escrevia. Parecia que, absorvida pelos seus novos interesses na vida,
começara a esquecê-lo.
Passaram-se mais dois meses. O dinheiro de Hugh estava acabando. Entregou o
apartamento e foi morar num quarto pequeno.

28
Foi num dia muito quente, numa dessas ondas de calor de Nova York, depois de ter
visitado sem êxito duas fábricas e uma agência para inventores novos, que Hugh, depois de
caminhar sem rumo por várias ruas, chegou ao Central Park.
Um homem grisalho e mal vestido, com um rosto zombeteiro e inteligente, sentou-se no
mesmo banco que Hugh, e começaram a conversar. Por alguma razão, Hugh simpatizou com o
estranho. Durante o dia, os parques de Nova York revelam toda uma galeria de ruínas humanas, e
obviamente esse homem era uma delas. Hugh ofereceu-lhe um charuto. Estava deprimido e
queria ouvir uma voz humana. O homem grisalho disse qualquer coisa engraçada sobre
transeuntes; aparentemente era uma pessoa perspicaz e espirituosa. Hugh achou que deveria ser
um artista ou um escritor fracassado, e convidou-o para tomar uma cerveja.
O bar estava fresco e nenhum dos dois tinha vontade de ir embora. Depois de várias
cervejas geladas, o velho começou a falar de si mesmo. O coração de Hugh quase parou quando
ele disse que era inventor. Quanto mais ouvia, mais lhe parecia estar ouvindo a sua própria
história, com um fim terrível, sem esperanças. O velho continuou a falar e Hugh o ouvia, gelando-
se Intimamente com terror e, ao mesmo tempo, indagando os detalhes, com uma curiosidade
mórbida. Era tudo tão familiar! Juventude, sonhos magníficos, amor, trabalho, sucesso e, de
repente, o fim incompreensível e sem sentido. Uma invenção brilhante - que fez a fortuna de
alguma outra pessoa -, a total impossibilidade de fazer com que seus direitos fossem
reconhecidos, a pobreza, a bebida, os biscates e, finalmente, a consciência de que o tempo
passara e que tudo acontecera há dez, não, há cerca de quinze anos.
Hugh sabia que essas histórias podiam ser contadas por muitas pessoas que se conhecem
nos parques. Todas estas pessoas, com a experiência da infelicidade em seu passado, tinham
histórias semelhantes, ao mesmo tempo reais e fictícias. Aquele homem podia estar imaginando
tudo, podia estar obcecado por uma invenção que jamais existiu. t.' Mas isso não servia de
consolo para Hugh. O importante era que o homem se dizia um inventor. E mesmo que tudo fosse
mentira, era morbidamente real.
"Se meus negócios derem certo, vou ajudá-lo", pensou'Hugh. E o "se" encheu-o de medo.
"Que diabo, dentro de dez anos eu também posso estar falando a alguém num bar sobre a
minha invenção." Hugh estremeceu.
Anotou o endereço do velho... o nome de uma charutaria num dos bairros mais pobres. A
caminho de casa Hugh voltou repentinamente a ter medo da vida.
Bem, eu sabia que isso aconteceria.
A vida não queria tomar conhecimento dele e de sua invenção, e Hugh começou a
compreender, de maneira cada vez mais clara e profunda, que tudo o que realizara até então - á
invenção, o trabalho, as patentes - era insignificante se comparado com a dificuldade de introduzir
uma invenção na vida.
Lembrou-se de um livro que lera sobre invenções e descobertas, feitas há muito tempo e
esquecidas; chegou a parar na calçada, falando sozinho.
"As máquinas a vapor foram inventadas na época de Roma, um monge medieval
descobriu a eletricidade; quantos outros haverá?
Naquele dia, voltou para casa com o rabo entre as pernas. Esperava-o uma carta de
Madge, em que ela pedia apenas uma coisa: que lhe escrevesse dizendo a verdade - que já não a
amava -, e ela não pensaria mais nele, não o aborreceria mais com suas cartas tolas.
A carta doeu-lhe no coração. Era inútil escrever a Madge dizendo-lhe que estava
enganada. Hugh sabia perfeitamente disso. Além do mais, já não tinha palavras para escrever. As
palavras pareciam desgastadas e inúteis. Teria de ir atrás de Madge, pois do contrário ela o
esqueceria e acabaria se apaixonando por outro. Essa idéia o preocupou durante algum tempo.
"O que farei, se tudo acontecer como previ e não houver Madge?", perguntou a si mesmo.
Esse pensamento o fazia estremecer. "Isso acontece; muitas vezes conseguimos tudo o que
queremos, mas tarde demais."
A vida começava a assustá-lo seriamente.
Estava vendendo seus últimos bens, coisas como relógio e instrumentos. Continuava
tentando; via aterrorizado que muitos inventores procuravam, como ele, os escritórios e as
fábricas. Para os empregados das fábricas, eles eram a escória. Não lhes ofereciam uma cadeira,
às vezes sequer lhes deixavam entrar, ninguém se dava ao trabalho de recebê-los. Na porta de

29
uma delas havia um aviso: Entrada Proibida a Propagandistas, Pessoas que Procuram Emprego e
Inventores.
Hugh, até então, nunca havia enfrentado isso.
Durante todo esse tempo recebera apenas duas ou três ofertas pela patente, mas eram
somas tão ridículas que teria sido absurdo aceitar. Compreendeu, finalmente, que estava batendo
com a cabeça na parede, e que acabaria voltando à sua primeira decisão; para evitar que seu
invento perecesse em vão, matar-se-ia com a nova pistola. Na verdade, tudo parecia levá-lo a
esse caminho. Mais um ou dois meses e Hugh o teria feito. Sua paciência se esgotava. Foi então
que um encontro casual, veio modificar, por algum tempo, a situação.

Num pequeno restaurante que freqüentava, Hugh encontrou um velho amigo do curso
noturno de mecânica. Esse homem - que se chamava Jones - tinha agora uma pequena fábrica
de peças de bicicleta. Disse que os negócios iam mal e era impossível enfrentar os
conglomerados, que estavam engolindo as pequenas empresas; lutara enquanto pôde, e agora
estava em Nova York para vender a sua fábrica a um grande grupo de companhias. O grupo sabia
do estado precário de seus negócios, e ele teria de concordar com quaisquer condições que
estipulassem. Haviam retardado deliberadamente o negócio para que ele praticamente fosse
obrigado a dar a fábrica em pagamento de suas dívidas.
Preocupado, Hugh o ouvia sem atenção; mas de repente, embora raramente discutisse
seus problemas com outros, contou a Jones sobre a sua invenção e seus problemas.
Jones interessou-se e Hugh convidou-o para ir até sua casa - mais por não querer ficar só
do que por qualquer outra razão. O invento impressionou muito o amigo. Jones compreendeu
imediatamente tudo o que havia por trás de seu estranho aspecto exterior. E começou a pensar
numa maneira de resolver o problema.
Na manhã seguinte, logo cedo, Jones procurou Hugh:
"Fiquei pensando a noite inteira", disse ele. "Não seria possível adaptar minha fábrica para
produzir sua máquina? Essa é, possivelmente, a nossa última oportunidade. Tenho certeza de
que os tubarões me marcaram e não pretendem me deixar escapar - vão me engolir inteiro. Se
tudo continuar como está, dentro de um ano provavelmente não passarei de um capataz em
minha própria fábrica. Não me deixarão ser nem mesmo gerente."
Juntos, começaram a desmontar a máquina, separando as peças que poderiam ser
produzidas na fábrica de Jones e as que teriam de ser feitas fora. Mais tarde, pegando o telêmetro
e o alvo, foram testar a pistola, tomando novamente o caminho da praia.
Quando chegaram, Hugh mostrou a Jones tudo o que a sua criação era capaz de fazer e
viu com secreta alegria a expressão ansiosa no rosto do companheiro. O próprio Jones
experimentou a arma - às vezes com o telêmetro e às vezes sem - esquentando-a tanto que já
não podiam tocá-la. Finalmente, com um tapa nas costas de Hugh disse:
"Bem, meu caro, estou às suas ordens. Investirei meu último centavo nisto. Posso
agüentar seis meses. Durante esse tempo, conquistaremos a América, Europa, Ásia, África e
Austrália. Nunca houve uma invenção como esta. Estou às suas ordens!"
Começaram a trabalhar juntos. Hugh animou-se. A conversão da fábrica processou-se
bem. Depois de dois meses, a primeira remessa de pistolas automáticas entrou no mercado. Mas
o preço teve de ser bastante elevado e a demanda era baixa.
A fábrica produzia a toda capacidade, mas depois de dois meses tornou-se claro que o
mercado já estava saturado e novas ordens custariam achegar. Jones levantou empréstimos;
anúncios e cartazes custavam caro, mas era evidente que sem uma campanha publicitária ampla
o negócio fracassaria. Todas as grandes lojas de armas tinham pistolas automáticas em exibição,
mas o público ainda preferia comprar revólveres.
Passaram-se seis meses desde o início da produção e Hugh e Jones enfrentavam a
ameaça de falência e de um fim ignominioso de sua colaboração. Duas fábricas de armas
dispunham-se a comprar a patente. Uma delas ofereceu dez mil dólares, a outra menos - mas isso
sequer cobria as perdas de Jones.
A estranha pistola, semelhante a um martelo, não atraía o público, mesmo quando
colocada nas vitrinas - somente uma campanha publicitária original poderia salvar a situação, e a
companhia não tinha recursos para isso.

30
Foram os dias mais negros na vida de Hugh. Desistiu, sentindo apenas, com uma dor no
coração, que agora já não teria nem forças para se suicidar.
Mas um grande futuro esperava a sua criação.
E finalmente aconteceu! As sementes, espalhadas por todo o mundo, acabaram caindo na
terra boa!
Todas as grandes famas são feitas em Paris. E assim foi também nessa ocasião.
A ocasião a que me refiro viu surgir sobre a Europa uma estrela de primeira grandeza.
Seu nome era Marion Gray.
Previa-se para ela uma carreira igual à de Patti. Seu sucesso em todas as capitais da
Europa superava tudo o que havia ocorrido nos últimos dez anos. Tinha realmente uma voz
excepcional, e mesmo sem voz teria sido conhecida em toda a Europa pelos escândalos ligados
ao seu nome. Em toda parte, seu caminho era marcado e seguido por um rastro de histórias
fantásticas sobre seus amores e paixões, duelos, suicídios, falências e homens que perdiam o
senso.
Marion tinha a aparência de uma loura frágil e magra, de rosto triste e grandes olhos
infantis. Por ela, um príncipe alemão de uma dinastia reinante suicidou-se, motivo pelo qual foi
expulsa da Alemanha. Levou ao suicídio duas condessas húngaras em Budapeste - mãe e filha. A
ela podia ser atribuída a responsabilidade de vários duelos e assassinatos sombrios na Itália, e
que faziam pensar no Renascimento. Dizia-se que havia raptado a odalisca favorita do sultão, e
que esta acabara se afogando no Mediterrâneo, saltando de um iate. Estava na raiz de um drama
terrível , em Petersburgo, do qual vagos rumores foram publicados em jornais estrangeiros.
Em suma, Marion era a causa de tudo o que valia a pena comentar, ocorrido na Europa
nos dois ou três últimos anos. O que era verdade, e o que era mentira, nessas histórias, nem eu
posso dizer. Tudo o que sei é que sua fama cresceu aos saltos.
Naquela temporada, Marion cantava em Paris. Na sua primeira noite, um jovem oficial dos
dragões, membro do Jockey Club e descendente de uma das mais renomadas famílias francesas,
matou-se no foyer do Teatro da Opera. Marion continuou a cantar e os connoisseurs disseram que
o fez como nunca. No dia seguinte, os jornais só falavam na história do trágico amor do jovem
oficial, e durante alguns dias a vida privada de Marion monopolizou a imprensa.
Paris inteira sabia que o grande amor de Marion, naquela temporada, era uma americana,
Miss Stockton, uma escritora cujo romance sobre o submundo chinês em San Francisco
provocara uma grande sensação, pouco tempo antes.
Miss Stockton bebia uma mistura de uísque e éter, em partes iguais, montava como um
vaqueiro e participava de lutas públicas de boxe, como campeão meio-pesado. Era também
terrivelmente ciumenta. Quando se embebedava (quase diariamente) espancava Marion e a
perseguia por toda parte, fazendo cenas e provocando escândalos.
O segundo favorito de Marion Gray era Lorde Tilbury, um inglês de meia-idade,
fabulosamente rico, que até então fora um homem tranqüilo, de temperamento equilibrado,
viajante e caçador por esporte que abatia tigres na Índia, cara a cara, sem pestanejar. Dizia-se
que numa temporada gastara metade de sua fortuna com Marion, sendo provável que gastasse o
resto. Nunca, desde os tempos do Segundo Império, Paris viu tamanha quantidade de ouro.
Miss Stockton provocou um ódio louco em Lorde Tilbury, que freqüentemente passava as
noites com seu fuzil de matar tigres sobre os joelhos, os olhos perdidos, pensando nela. Esta
conhecia o seu ódio e o retribuía, jurando que lhe daria uma surra em público.
Além desses dois, Marion tinha muitos outros amantes e admiradores. Seu último
entusiasmo era um jovem diplomata sueco, espiritualista e clarividente, totalmente desequilibrado.
Comunicava-se com "espíritos", pegava estrelas cadentes com as mãos e presenteou Marion com
um "leão astral" que só ele podia ver, e assim por diante.
Marion estava fascinada. (Seu entusiasmo só era comparável à sua imprevisibilidade.)
Promoveu sessões espíritas com o sueco. Os espíritos ordenaram que se tornasse sua amante -
Marion obedeceu imediatamente. Depois, mandaram que afastasse Miss Stockton - e ela o fez.
Em seguida, exigiram a presença de Lorde Tilbury nas sessões, vestido de mago assírio; um certo
poeta francês também foi convidado. As sessões deveriam realizar-se numa sombria masmorra
com 27 caixões contendo esqueletos verdadeiros. (Lorde Tilbury foi encarregado de fornecer os
caixões e esqueletos.) Mas ocorreu então um fato que os espíritos evidentemente não previram.

31
Passava da meia-noite quando Miss Stockton irrompeu pela casa de Marion a dentro. Dois
criados, obedecendo a instruções, barraram-lhe o caminho. Miss Stockton deu num deles
tamanho soco que ele mergulhou na lareira; o outro levou um pontapé no estômago e desmaiou.
Miss Stockton correu pelas escadas acima, bêbada como um gambá.
A porta da sala em que se realizava a sessão não estava trancada. O diplomata sueco, o
poeta francês, Lorde Tilbury e Marion estavam sentados em volta de uma mistura fumegante de
ópio, aloés e absinto. Os homens estavam vestidos, tal como mandavam os espíritos, com mantos
vermelhos, mas Marion trazia apenas uma grinalda de rosas vermelhas. A sala tinha móveis
vermelhos. Os caixões não haviam chegado ainda.
Miss Stockton escancarou a porta e, vendo Marion nua entre as rosas vermelhas, explodiu
numa torrente de impropérios os mais baixos, aprendidos com seus amigos vaqueiros. Lorde
Tilbury deu um pulo, para enfrentá-la. Posso assegurar-lhe que ele estava muito elegante com seu
chapéu assírio e suas barbas falsas.
De um coldre sob a jaqueta Miss Stockton sacou a nova pistola automática e baleou Lorde
Tilbury no peito, a queima-roupa; em seguida, acertou o diplomata sueco na cabeça e alojou três
balas nas costas de Marion, que tentava fugir; feriu o poeta na perna (ele teve presença de
espírito, nesse momento, e fingiu-se de morto); e com a sétima e última bala, matou-se.
"QUATRO CADÁVERES! SETE TIROS!" gritaram as manchetes parisienses no dia
seguinte.
"MORTE ENTRE ROSAS. BANHO DE SANGUE NOS CHAMPS ÉLYSÉES!"
"MISSA NEGRA NOS CHAMPS ÉLYSÉES! MORTE TRÁGICA DE UMA CANTORA
FAMOSA!"
Você pode imaginar como os jornais de Paris exploraram o fato. O público delirou de horror
com um aspecto particular do crime, o instrumento de morte - a nova pistola americana. Vários
jornais publicaram fotos e descrições da arma, enquanto o Écho de Paris e outro jornal divulgaram
até mesmo informações sobre o inventor, Hugh B. Além disso, cada um deles trazia fotos
diferentes: um ianque de meia-idade e cara decidida olhava ferozmente de um jornal, enquanto
outro - com a mesma legenda - mostrava o retrato de um filantropo americano.
Durante toda a semana os jornais estiveram cheios de Marion Gray, Miss Stockton, o
diplomata sueco e Lorde Tilbury. E nenhum dos artigos, em qualquer jornal, deixava de mencionar
a nova invenção americana - o "invento diabólico, a última novidade de nosso século de vapor e
eletricidade", como foi chamada por um dos jornais, com uma certa impropriedade gramatical e
de maneira muito ridícula. Não me restou outra coisa a fazer senão dar de ombros. O que eu tinha
a ver com isso?
Começaram então as entrevistas com o jovem poeta, que durante a primeira semana,
segundo se acreditava, correu risco de vida ou de insanidade, não me lembro mais o quê. Um
destacamento de "sergents de ville" foi enviado ao hospital onde ele estava. O poeta prestou um
depoimento confuso sobre seu papel nos acontecimentos e suas relações com Marion. Mais
tarde, porém - e você pode imaginar por quê -, resolveu acabar com as reticências. O livro que
publicou dois meses depois do fato insinuava que a estrela do drama era, na realidade, o próprio
autor e seu romance com Marion, com conotações de mistério e satanismo. O livro vendeu
dezenas de milhares de exemplares e serviu como primeiro degrau da escala que, com o tempo,
levou o poeta à Académie Française.
Esses fatos, porém, passaram-se mais tarde. Enquanto isso, antes de terminar o dia do
crime, o telégrafo mandava as notícias do sangrento drama para todo o mundo. Os jornais
americanos dedicaram páginas inteiras aos telegramas da Europa, e embora não lhes agradasse
muito fazer publicidade gratuita de Hugh, afinal de contas era um invento americano, e o nome do
inventor teve de aparecer em todas as notícias. Durante vários dias, Hugh foi o orgulho da
América.

O primeiro resultado direto do incidente foi que as casas de armas, em toda parte,
liquidaram o estoque de pistolas automáticas em poucos dias. As ordens duplicaram e a
Companhia de Armas de Fogo Automáticas afogou-se num mar de pedidos. Jones disse a Hugh
que tinham de ampliar o negócio.

32
No dia seguinte, um cavalheiro de uma das maiores fábricas de armas visitou o escritório
da companhia, com uma oferta de compra da patente. Hugh lembrou-se de que fora a empresa
desse cavalheiro que lhe oferecera mil dólares pela patente.
"Qual é a sua oferta", perguntou Hugh.
"Quinhentos mil", disse o representante.
"Não vendemos", respondeu Hugh.
"Compramos a fábrica, as máquinas, patentes, tudo. Posso oferecer até um milhão."
Hugh respondeu asperamente, "Não vendemos por nenhum preço".
Quando o cavalheiro foi embora, Jones deu um tapinha nas costas de Hugh: "Bem, meu
caro, nossa hora chegou. Agüentamos os sete anos de vacas magras, agora começaremos outros
sete de vacas gordas. Pode encomendar seu iate". Jones conhecia os sonhos de Hugh, mas,
naquele momento, Hugh não pensava em iates, mas em Madge.
Choveram pedidos de todo o mundo. Era evidente que a fábrica não podia produzir em
seis meses os pedidos que lhe chegavam em um. Hugh e Jones encontraram um gênio financeiro
que organizou uma emissão de ações da companhia no valor de dois milhões de dólares. Com
isso, os bancos adiantaram o capital de que precisavam, evitando um atraso na produção.
Mal transcorrera um mês desde o incidente de Paris, quando se espalhou por todo o
mundo a notícia de um novo feito da criação de Hugh.
Ocorreu durante as desordens de Barcelona, quando carabineiros montados atacaram um
pequeno grupo de trabalhadores. A multidão, ao contrário do que habitualmente ocorre, não
estava desarmada. Vários disparos sucessivos foram feitos, e antes que se pudesse compreender
o que estava acontecendo, cerca de quarenta carabineiros jaziam no chão, enquanto suas
montarias sem montadores galopavam pela praça. Dez pessoas, na multidão, estavam armadas
com as novas pistolas americanas. O sucesso embriaga, e a multidão aumentou rapidamente.
Levantaram-se barricadas às pressas; as autoridades chamaram a infantaria e a artilharia, e ao
cair da noite conseguiram esvaziar as ruas. Cerca de mil pessoas foram mortas ou feridas.
O governo espanhol proibiu a importação e venda das pistolas automáticas. Durante uma
semana inteira os jornais falaram da "revolução de Barcelona", e os pedidos chegavam em tais
quantidades que até Jones ficou nervoso. As ações da companhia valorizaram muito, e o gênio
financeiro falou de uma nova emissão e maior expansão dos negócios.
Mas, de repente, Hugh sentiu que nada disso importava mais. Acordou certa manhã com
um pensamento, um único: Madge!
A tarde, estava a caminho de Los Angeles.

O que aconteceu surpreendeu Hugh. Imaginava que o encontro com Madge seria, de
algum modo, diferente. Quando o trem finalmente chegou, foi direto da estação ao encontro dela.
A tia morava numa rua sossegada, bem longe do centro. Madge, vestida de preto, havia
emagrecido e parecia muito jovem. Estava sentada na sala com duas meninas, lendo em voz alta,
em francês.
"Madge, sou eu", disse Hugh.
Sabia perfeitamente que não poderia ter sido de outra maneira, mas o rosto de Madge era
inesperadamente familiar. Parecia-lhe extraordinário que esta Madge fosse tão igual à que ele
conhecia.
Na primeira hora, mal puderam trocar duas palavras. A chegada de Hugh foi uma surpresa
agradável para Madge, e as notícias que trazia eram interessantes, mas não acreditou realmente,
e ficou na defensiva. Hugh era dado a: fantasias e podia inventar qualquer coisa, mas o
importante era ter vindo. Madge começou a experimentar um sentimento muito caloroso com
relação a ele, e já tinha decidido que não o deixaria partir. Exteriormente, porém, observava-o,
imaginando qual seria a melhor maneira de se comportar diante dele - as mulheres estão sempre
preocupadas com a impressão que causam, exceto quando perdem a calma. Hugh lhe parecia tão
tolo quanto antes, mas muito simpático. Fazia dois anos que não se viam.
Hugh descobriu, finalmente, a maneira certa de quebrar as resistências: levou-a para fazer
compras e começaram a comprar tudo o que viam - flores, chapéus, meias de seda, diamantes,
pérolas, chocolates. Madge resistiu por algum tempo, mas seu coração acabou falando mais alto

33
e ela começou a escolher presentes para a tia, as filhas da tia e os empregados. Isso finalmente
derreteu o gelo. Almoçaram, passearam de carro pela praia, e voltaram para as lojas. Já era noite
quando Hugh lembrou-se de que não tinham onde ficar, e telefonou para o hotel mais luxuoso
reservando o maior e mais caro apartamento - oito aposentos com vista para o mar, um dormitório
Luís XV, uma sala de refeições semelhante a uma catedral gótica, um jardim de inverno,
banheiros de mármore em estilo romano, e varandas de frente para o mar.
Aquela noite foi uma segunda lua-de-mel. Hugh não queria nem ouvir falar na possibilidade
de Madge voltar para a casa da tia. A tia estava um tanto escandalizada com tal seqüestro, mas
Madge ficou.
Permaneceram longo tempo sentados na varanda, olhando o mar e as estrelas que
começaram a surgir.
"Sonhei com você há dois dias", disse Madge. "Onde estava, então?"
"No trem, perto de Chicago."
"Estava pensando em mim?"
"Em que poderia estar pensando, senão em você?"
"Hugh malvado, por que demorava tanto a escrever? Não, a culpa foi minha! Eu não devia
ter abandonado você. Mas Hugh, meu querido, perdoa-me, eu não podia continuar ali. Quando me
lembro de nosso apartamento e você, sempre ocupado, de cara fechada, descontente, e o cheiro
horrível daquela bebida com a qual você estava se envenenando, nem sei o que eu poderia ter
feito. Mas eu sei que se tivesse de viver tudo outra vez, fugiria novamente. E sei que tenho razão.
Se as coisas não tivessem dado resultado, você teria vindo para cá, e teríamos começado a
trabalhar juntos. Ah, Hugh, não imagina como é bom, lá na plantação de flores. Ainda não consigo
acreditar nos seus milhões. Talvez fosse melhor se você tivesse vindo sem eles. Você parece
diferente.
Depois, entraram novamente e examinaram o apartamento, que os deixava pouco à
vontade: havia sedas demais, bronzes e mármores demais, tapetes e flores demais.
Aquela altura, começaram a sentir que já não poderiam se separar. Madge sentia-se
culpada em relação a Hugh, e este se sentia culpado em relação a ela. E tudo acontecia como
num sonho. De repente, começaram a falar de muitas coisas, e, como era de se esperar, a
conversa era entremeada de muitos beijos.
Hugh tirou a roupa de Madge, beijou-lhe os ombros, mãos, pés, cabelo. Parecia-lhe que
tinha estado morto esses dois últimos anos e só agora começava a viver.
"Hugh, você tem de me perdoar. Não posso viver sem o sol, as flores e as crianças. Os
últimos anos em Nova York foram como uma prisão. Você não sabe como me sentia mal quando
o ouvia falar de Veneza ou qualquer outro desses lugares famosos onde dizia que iríamos quando
fôssemos ricos. Preferia pular pela janela, a ter de ouvir! Mas compreendo como você deve ter
sofrido, meu querido. Você acreditava em tudo isso..."
"Hugh, você vai me dar sua palavra", disse Madge, meia hora mais tarde.
"Qualquer coisa, minha querida.
"Veja bem, acredito em você, mas se fosse diferente - se não houvesse dinheiro, invenção,
riquezas -, dê-me sua palavra de que desistiria das invenções e trabalharia comigo numa fazenda
de flores, até que tivéssemos dinheiro para comprar a nossa própria fazenda. Pensei em tudo.
Primeiro, arrendaríamos a terra, depois construiríamos a casa... Certo? Quando estivesse
construída, nos mudaríamos. Sei cuidar muito bem das rosas agora. Você não imagina quantas
espécies de rosas existem, e como são cheias de vida, quase como crianças. Tudo isso, se você
estivesse sem dinheiro. Hugh, você me dá sua palavra?
"Claro que dou, minha querida."
E assim por diante. Omito a descrição da noite de núpcias, embora pudesse ser feita de
maneira muito comovente, se relatasse tudo o que esse meigo casal disse sobre os filhos que
teriam. Madge queria seis. primeiro um menino e uma menina. depois dois meninos e mais duas
meninas.
"Mais um". disse Hugh.
"Está bem. um pequenininho". disse Madge.

34
Divertiam-se e isso me irritava. Você sabe que não me interesso por esses estados de
espírito. Todo esse enlevo, prazeres. sonhos. esperanças. provocam em mim uma reação
semelhante ao enjôo. Mas não podia fazer nada. De qualquer maneira. no fundo do coração.
achava que as coisas talvez não saíssem tão bem assim.

No dia seguinte. quando Hugh chegou à varanda lateral os gritos dos jornaleiros chegaram
até seus ouvidos:
"Segunda edição! Comprem a segunda edição! Terrível assalto em San Diego! Vinte
mortos e feridos!"
Quando um criado negro, de libré. casaca vermelha e polainas brancas, trouxe os jornais
numa bandeja de prata, Hugh leu rapidamente as manchetes, que ocupavam todo o alto da
primeira página.
"ASSALTO EM SAN DIEGO. TREM EMBOSCADO. VOLTAMOS AO OESTE SELVAGEM. VINTE
MORTOS E FERIDOS. RECÉM-CASADOS ENTRE OS MORTOS. DOIS BANDIDOS PRESOS."
O que acontecera parecia de fato um retorno aos velhos tempos do Oeste Selvagem. Dois
homens usando máscaras negras fizeram explodir um túnel e pararam um trem cheio dos
primeiros turistas da primavera, que se dirigiam para as montanhas. Com Uns poucos tiros.
liquidaram o maquinista e o foguista e, aos gritos de "Mãos ao alto!", mandaram os passageiros
descerem dos vagões. Alguém deu um tiro. Os homens começaram a disparar contra a multidão.
Vinte pessoas tombaram. Além de três casais recém-casados, oito homens e seis mulheres foram
feridos. Os assaltantes desapareceram depois de se apossar de quarenta mil dólares em dinheiro
e objetos de valor. Mas, como informava uma notícia de última hora, já haviam sido presos.
O grande número de vítimas explicava-se pelas armas formidáveis dos bandidos, diziam
os jornais: cada um deles tinha duas pistolas do tipo automático que, segundo a reportagem, eram
a última palavra em armas.
"Ora, que diabos! ", disse Hugh. Mas por alguma razão, sentiu-se inquieto. E jogou fora os
jornais para que Madge não os lesse.
"LINCHAMENTO NAS MONTANHAS! CRIMINOSOS EXECUTADOS POR CIDADÃOS!"
gritavam os jornais vespertinos em letras enormes.
Ao que se dizia, um grupo de homens encapuzados e montados arrancara das mãos do
xerife e de seus auxiliares os dois assaltantes do trem e, depois de ensopá-los em querosene,
queimara-os vivos.
Hugh sentiu-se aliviado pelo fato de Madge não se interessar pelos jornais.
Passaram o dia, como eles próprios disseram, num conto de fadas. Era o dia das rosas
brancas.
Madge começou a sentir-se milionária e anunciou que as únicas flores que queria eram
rosas brancas.
O dia das rosas brancas prolongou-se por uma semana. Hugh não sentia vontade de
deixar a ensolarada Los Angeles com seu oceano brilhante e montanhas azuis ao longe.
Anos depois, eles se recordariam desse início da sua segunda lua-de-mel. No quinto dia,
porém, fones chamou Hugh de volta a Nova York com uma verdadeira salva de telegramas
especiais. Haviam recebido um número enorme de pedidos, e era necessário decidir sobre novas
políticas financeiras. Era essencial uma viagem à Europa.
Hugh alugou um vagão no expresso transamericano. Madge ainda estava agitada por
todas essas extravagâncias, mas começava a sentir o prazer de gastar dinheiro sem se
preocupar. Quando o trem partiu, abraçou o marido e disse, "Hugh, meu querido, diga que nunca
me deixará outra vez".
"Claro que não. Nunca mais, meu amor". 111
Hugh sentia-se triunfante e acreditava que sua maior recompensa era a própria Madge.
Vocês homens, são inacreditavelmente bobos!

Hugh resolveu os negócios com os fabricantes belgas de maneira rápida e multo lucrativa.
Foram em seguida para Paris, onde os velhos sonhos de Hugh se realizaram. Tiveram noites na
Ópera de Paris, almoços no Café Anglais, exposições onde ele podia comprar quadros, corridas

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de cavalo onde podia comprar cavalos. Mas tudo isso, traduzido , em realidade, parecia mais com
a vida comum e menos com o conto de fadas que, à distância, dava a impressão de ser.
Hugh e Madge acharam Paris muito suja e pequena. Nada disseram, procurando esconder
um do outro as suas impressões. Inadvertidamente, porém, Madge deixou escapar uma
observação na viagem de volta, e os dois deram uma boa gargalhada. Só muito mais tarde Hugh
começou a apreciar o verdadeiro valor de Paris.
Quando Hugh voltou da Europa, tornou-se evidente que os negócios exigiam maior
expansão. Os pedidos continuavam a chover. Encomendas para dentro de três e quatro anos
chegavam do Japão, Grécia, África do Sul.
O trabalho teve de ser dividido. Jones encarregou-se da fábrica, e Hugh, com o gênio
financeiro, da administração do negócio. Foi necessário organizar as coisas de modo que a
companhia pudesse ampliar-se sem deixar de atender à crescente demanda. Hugh encontrou as
pessoas certas para isso - ou talvez seja melhor dizer que elas o encontraram -, e juntos
conseguiram aumentar a sociedade por ações, atraindo um capital enorme e comprando várias
fábricas que garantiram a produção de pistolas em quantidade suficiente, segundo esperavam,
para atender à demanda. A essa altura, a empresa foi rebatizada Companhia de Armas
Automáticas em Geral. A produção destinada aos compradores europeus já havia sido iniciada
nas fábricas belgas.
Mas o incidente com Mimi Lacertier atrapalhou todos os cálculos e provocou um tal
aumento na demanda de pistolas que Hugh e Jones quase perderam novamente o controle da
situação.
O caso de Mimi Lacertier aconteceu cerca de um ano depois da trágica morte de Marion
Gray, e também em Paris.
Mimi Lacertier atravessava sua segunda temporada como celebridade parisiense. Não
podia, é claro, ser comparada a Marion Gray. Mesmo assim, não havia em Paris uma única
pessoa que não conhecesse seu nome.
Mimi era uma cantora dos cabarés de Montmartre, e tomara-se famosa devido à sua
roupa, que um conhecido romancista desenhara para ela usar num café literário. Era simples e
original: uma máscara negra, um espartilho preto, meias pretas e nada mais. Mimi era loura, alta,
com um corpo muito claro e cabelos dourados. Sua primeira exibição num palco, usando essa
roupa, causou furor. O público entusiasmou-se até a loucura, berrou e bateu com os pés, gritando
seu nome; recusou-se a aceitar o fim do espetáculo e, finalmente, a polícia teve que intervir. A
noite terminou com a prisão de Mimi. Houve um julgamento. A artista foi multada e condenada a
uma semana de prisão por ofender a decência pública. Em protesto contra essa injustiça, um
grupo de estudantes e artistas desfilou pela avenida principal levando retratos de Mimi Lacertier.
Ao ser libertada, Mimi voltou a exibir-se com as mesmas roupas, mas sem a máscara. E o
espartilho ficou ainda menor. Com o tempo não havia um único moleque de rua em Paris que não
conhecesse a canção de Mimi, "Mon corset". E é claro que ela se tomou a mulher mais em moda
e mais cara em todo a alegre Paris.
Tudo ia muito bem. Mimi poderia ter um grande futuro nas esferas financeiras e políticas.
Mas a cantora se sentia atraída pela vida boêmia. No coração, era uma grisette à moda antiga,
sempre apaixonada por alguém, loucamente ciumenta e possessiva. Seu último amante foi um
jovem pintor "em ascensão, chamado Max, dono de um bigode excepcionalmente sedoso e de um
coração muito inconstante. Por ele, Mimi rejeitou todos os outros homens. O pintor, depois de uma
quinzena, trocou-a por Susanne Ivry.
Mimi chorou e jurou entrar para um convento; ao invés disso, porém, naquela noite,
sentindo-se particularmente triste, apareceu no palco trajando apenas uma fita de veludo em volta
do pescoço. Depois foi para casa. Já era de manhã.
Dormiu mal e acordou com o rosto pálido e dor de cabeça. Parecia sentir todos os nervos
do corpo, quase como se os pudesse ouvir. A primeira coisa em que pensou foi no amante infiel.
Quis gritar e chorar. Meu Deus, o que não daria para ver Susanne Ivry atropelada por uma
carruagem, ou atacada de varíola! Mas o que isso representaria para ele? Dentro de duas
semanas, teria encontrado outra mulher. Não haveria nada que pudesse fazer para tê-lo
novamente? Fazê-lo sofrer, fazê-lo implorar por seu amor, para que pudesse, finalmente, recusá-
lo com orgulho? Mimi sentia que não seria capaz de resistir muito tempo. E isso era pior ainda: os
homens só valorizam as mulheres que os fazem sofrer, e Mimi era incapaz disso quando amava.

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Que deveria fazer? Sentia que simplesmente não podia deixar o pintor e Susanne Ivry em paz,
como se tudo estivesse comme il fauto Não, isso não podia ser!

Levou muito tempo se vestindo, preocupada. De modo confuso imaginava uma cena; de
repente, o véu se dissipou e ela viu que atitude devia tomar. Quando saiu, colocou a pistola
americana em seu regalo. Pesava terrivelmente. No último minuto, hesitou - levava ou não
levava? Não tinha certeza de que seria capaz de fazer o que estava pensando. Acabou levando,
para a eventualidade de sentir-se inclinada a amedrontar Susanne e Max.
Era difícil movimentar-se naquela festa de caridade. Sarah Bernhardt e outras celebridades
serviam os presentes, mas mesmo assim, quando Mimi chegou, a multidão abriu alas, e todos os
olhares a seguiram. Reconheceu o deputado que a insultara em seus discursos e notou em seu
rápido olhar um lampejo de curiosidade suspeita. Achou graça. As pessoas murmuravam à sua
volta. Ouvia apenas seu nome. Toda a sua raiva parecia desaparecer.
Mas de repente, e de maneira totalmente diferente da que imaginara, viu Max e Susanne.
Eles fingiram que nem mesmo a viram. Susanne olhou casualmente em sua direção, tocou a mão
de Max chamando-lhe a atenção para uma vitrina à direita, como se um objeto qualquer tivesse
despertado seu interesse. Max, muito à vontade e despreocupado, olhou na direção indicada,
voltando-se depois para Susanne com um sorriso terno.
A multidão que os separava afastou-se e Mimi, cega de raiva, viu-se frente a frente com o
casal, que continuava a ignorá-la. Susanne examinou-a com indiferença, e Max olhou
distraidamente por cima de sua cabeça. Isso foi intolerável para Mimi. Seus nervos começaram a
tremer, sua cabeça girava. Deu um passo atrás e gritou um epíteto montmartriano. Viu Susanne
enrubescer de raiva e Max empalidecer. Todos os olhares se voltaram para eles. Mas não havia
como recuar agora, faria tudo o que planejara. Tirou triunfalmente a pistola americana de seu
regalo e apontou-a, primeiro para Max, depois para Susanne. Tal como imaginara, fez-se um
silêncio total.
Mas então aconteceu uma coisa horrível, algo que Mimi não esperava, nem desejava.
A criatura de Hugh tinha um costume constrangedor: costumava falar antes da hora.
De repente, a pistola saltou na mão de Mimi, uma fagulha amarela explodiu e houve um
estampido medonho. Um terror mortal tomou conta dela. O que havia acontecido? Ela não
pretendia disparar. Nem mesmo sabia que aquela coisa terrível havia sido carregada. Seu
coração batia desesperadamente, sua cabeça girava. Mimi queria gritar que estava tudo errado,
que não desejava aquilo, mas não conseguia falar.
Um cavalheiro alto, com uma barba negra, ergueu a bengala e correu para ela.
Instintivamente, Mimi levantou a pistola. A arma saltou, a chama amarela espocou novamente e
houve um estampido medonho. Mimi queria fugir dali, mas suas pernas não obedeciam. O
cavalheiro alto arrastava-se sobre as mãos e joelhos. Em algum lugar, longe, a multidão gritava. A
cena se desenrolou rapidamente diante. dos olhos de Mimi, enquanto os gritos da multidão se
aproximavam e se tornavam cada vez mais agudos; teve medo de que a multidão se atirasse
sobre ela e a fizesse em pedaços pelo que havia feito. Mimi gritou, fechou os olhos, levantou a
pistola. Novamente o estampido medonho, um grito, outro estampido, outro, mais outro! Depois,
nada mais. Mimi deixou cair a criação e desmaiou ao lado dela.

Você pode imaginar o que acontece numa festa de caridade quando alguém começa a
disparar balas revestidas de níquel sobre a multidão. Quando se ouviu o primeiro tiro, houve gritos
de "Anarquistas! ", e todos correram para as portas. Durante dez minutos, foi um pandemônio.
Era uma cena digna de ser vista, posso garantir. Cerca de quarenta pessoas foram
mortalmente pisoteadas, principalmente mulheres, e o número de feridos foi duas vezes esse. (E
que feridos!) Os rostos daquelas mulheres elegantes ficaram desfigurados, os dentes saltaram
longe, os maxilares foram deslocados, os cabelos, arrancados. Que espetáculo! E era uma
reunião da alta sociedade!
Quando os guardas finalmente chegaram até Mimi, encontraram-na caída no chão, com a
boca aberta e os olhos parados. Morreu logo depois, de um ataque do coração. Susanne morreu
imediatamente; outras três pessoas morreram e muitas outras foram feridas.
"CENAS DO INFERNO DE DANTE NO BAZAR DE CARIDADE!," escreveram os jornais.
"MAIS DE CEM VÍTIMAS! A BESTA SELVAGEM DESPERTA NAS PESSOAS CULTAS!"

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Depois disso, não houve em Paris um único apache que se respeitasse, arrombador de
cofres decente, ou anarquista de projeção, que não corresse para comprar a pistola negra e
achatada, que não se fazia notar no bolso e era infalível em momentos difíceis. As vantagens da
criação de Hugh eram óbvias, e seu único defeito era o de falar, às vezes, alguns segundos antes
do que se queria. O que, do meu ponto de vista, era um mérito, já que a conversa tornava muito
mais animada.
Paris liderou as outras capitais da Europa. As províncias não quiseram ficar atrás das
capitais. Pequenos países apressaram-se a acompanhar os grandes. No leste, sul, oeste e norte,
a procura foi a mesma.
Pessoas que se cansavam de viver; pessoas que se sentiam tolhidas pelos que lhes eram
mais íntimos e mais caros; pessoas cujas vidas estavam ameaçadas pelos mais próximos - todos
compraram a criação. A pistola tornou-se um trunfo universal no jogo da vida. Com ela, parecia
muito fácil ganhar ou (se quisessem) perder.
Depressão, desespero, sofrimento, ódio, inveja, ciúme, ambição, covardia, raiva,
crueldade, infidelidade, traição e dezenas de emoções correlatas, com a ajuda da criatura de
Hugh encontraram sua melhor e mais completa expressão. A criatura estava presente ali onde a
vida começara a transbordar seus canais estreitos, comuns e vulgares. Toda notícia de um crime
mais ou menos notório - assassinato, assalto com morte, suicídios sensacionais - mencionava
invariavelmente o seu nome. Era quase indecente empreender alguma coisa séria com o revólver
antigo - era como usar arco e fecha.
O mundo demonstrou o maior interesse possível pela invenção de Hugh. Não seria
exagero dizer que a distribuição de pistolas fabricadas pela Companhia de Armas Automáticas em
Geral excedia em muito a da Bíblia. Mas era apenas o começo.
Mais ou menos na época do trágico caso de Mimi Lacertier, Madge teve seu primeiro filho.
Na vida de Hugh e Madge, como já disse, a decisão de não ter filhos havia desempenhado
um papel muito especial. Mas quando o êxito da invenção de Hugh possibilitou o reencontro e a
renovação de seu amor, mudaram imediatamente de idéia. O fato de que agora podiam ter filhos
transformou seu amor e lhes revelou um encantamento até então desconhecido.
Quando a gravidez de Madge se confirmou, Hugh sentiu como se ela tivesse sido elevada
a alturas inacessíveis. Era como se a visse pela primeira vez, tão misteriosa, reservada e
friamente distante ela se tornara.
Hugh sentiu a necessidade de criar um ambiente adequado para a chegada do
primogênito.
Sofreu, quanto a isso, um revés. Nunca conseguia acompanhar o crescimento de suas
rendas. Tudo o que começava a fazer parecia-lhe, em pouco tempo, pequeno e pobre diante das
possibilidades criadas por sua renda crescente. A casa que construíra junto da fábrica pareceu-lhe
miserável e vulgar, depois de apenas seis meses morando nela. Outra casa que iniciara em Nova
York ficou inacabada, passando ele a construir ainda outra no meio de um terreno enorme,
comprado a preço extravagante a um milionário arruinado.
Essa casa ainda não estava pronta quando Madge teve o primeiro filho. Em honra ao
nascimento, Hugh cancelou todos os planos e projetos anteriores e anunciou o concurso para os
projetos de uma mansão, com enorme prêmio para o vencedor.
Madge gostava da grandiosidade da sua nova vida. Desejava apenas que o Hugh tivesse
mais tempo para ela. Estava sempre muito ocupado, mergulhado em novos projetos financeiros
ou viajando para Paris, Rio de Janeiro ou algum outro lugar. Madge raramente o via. O próprio
Hugh percebeu que sua nova condição não correspondia muito aos sonhos do passado.
Os sonhos de visitar a Itália para gozar as maravilhas da natureza e a arte do lazer; as
viagens tranqüilas e sem pressa ao Oriente, Jerusalém e Cairo - eram agora provavelmente
menos possíveis do que na época em que trabalhava como desenhista. Mas Hugh não perdeu as
esperanças. O importante é que sua vida familiar e sua relação com Madge eram
excepcionalmente satisfatórias e plenas, todo o seu ser parecia impregnado da radiação que
vinha dela. Desde o nascimento de seu primeiro filho, Madge parecia realmente possuir uma luz
interior, sentida por todos à sua volta.
Assim se passaram mais um ou dois anos. A mansão desenhada por um arquiteto italiano
estava quase pronta. Madge esperava o segundo filho, e a Companhia de Armas Automáticas em

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Geral tinha sido tão bem-sucedida que o nome de Hugh aparecia agora nos jornais ao lado dos
nomes de Vanderbilt, Astor e Rockfeller.
Hugh descobriu que tinha vários parentes. Um deles até escreveu um livro sobre sua
genealogia. Ao comentá-lo, os jornais disseram que Hugh representava a verdadeira aristocracia
dos Estados Unidos, como um descendente dos pioneiros que carregaram o estandarte da cultura
do homem branco, e assim por diante. Uma das grandes revistas mensais ilustradas publicou uma
biografia detalhada de um dos antepassados de Hugh, que fora governador da Carolina do Sul; o
texto estava entremeado de numerosos desenhos e fotografias de gravuras antigas. Um
conhecido historiador inglês escreveu a Hugh dizendo-lhe que encontrara provas indiscutíveis de
que ele era descendente do Rei Artur, e pedia apenas cem mil libras para continuar as pesquisas
e publicá-las.

A grande época das guerras teve início.


As guerras, que até então ocorriam a intervalos de várias décadas, agora seguiam-se
umas às outras, sem interrupção. E todas essas guerras, morticínios, revoluções, massacres eram
antecedidos e seguidos de pedidos colossais do artigo fabricado pela companhia.
Para mim, tudo isso era motivo de grande satisfação. Eu gosto das pessoas, você sabe, e
desejo-lhes o melhor, e essa animação do cenário político parecia indicar um crescimento
excepcionalmente rápido da cultura. Sabe-se, desde há multo tempo, que a guerra é a mais alta
expressão da civilização e do progresso. O que teria acontecido aos homens se não houvesse
guerra? Selvageria, barbárie, total ausência de evolução. Mas sempre me pareceu que a
importância das guerras no desenvolvimento político e moral do homem nunca foi suficientemente
apreciada. Ainda recentemente, falou-se muito em paz duradoura.
Os sonhos de paz tornam anêmica até mesmo a mais civilizada das nações e, em geral,
indicam que o pais esta numa maré vazante. Em geral, só os cansados, os que estão esgotados e
espiritualmente carentes entregam-se aos sonhos de uma paz duradoura. A guerra é o princípio
criativo do mundo. Sem guerra, começam a surgir tendências doentias - misticismo, erotismo,
decadência na arte e um declínio geral de tudo o que é sadio e forte. Os períodos de paz
prolongados levam sempre à degeneração.
"Espanta-lhe que eu fale assim?", perguntou o Diabo balançando o rabo. "Estou
firmemente convencido de que a guerra é uma necessidade moral. O idealismo exige guerra. Só o
materialismo se opõe a ela, porque a guerra ensina - não com sermões, mas na prática -, como
são passageiras todas as bênçãos deste mundo, como é instável tudo o que é terreno e
temporal."
Portanto, só podia receber com prazer o início da guerra contínua. .
A prosperidade futura da companhia parecia estar assegurada.
Além de pistolas, as fábricas vinham produzindo fuzis automáticos há algum tempo. Mas
até então, os pedidos dessas armas eram feitos apenas pela América do Sul.
"Lembre-se do que estou dizendo", disse Jones. Dentro de dez ou quinze anos, toda a
Europa se estará rearmando com fuzis automáticos. No momento, o problema e que nenhum país
ousa ser o primeiro".
"Talvez você tenha razão", respondeu Hugh. "Mas quer isso aconteça ou não, devemos
pensar em termos de uma grande expansão da empresa."
"Sem dúvida, Temos de construir sem cessar. Gostaria de ter uma seção de artilharia leve.
Você sabe, temos um projeto para um notável três polegadas de tiro rápido."
"Sei disso", respondeu Hugh. "Mas devemos esperar os resultados das experiências com
os novos tipos de pólvora e explosivos. Tenho dez pessoas trabalhando nesse projeto. As
experiências com explosivos que afetam os olhos, parecem particularmente interessantes. Os
coelhos e cães ficaram completamente cegos. Já começamos a fazer experiências com cavalos."
"Muito bem", disse Jones. "Vamos esperar, mas não podemos adiar isso por muito tempo."
Já então as fábricas ocupavam e mantinham uma cidade inteira. Hugh e Jones
acompanharam atentamente o planejamento e a organização dessa cidade, orgulhando-se muito
com o fato de que seus trabalhadores tinham o menor índice de mortalidade nos Estados Unidos.

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As casas dos trabalhadores eram rodeadas por jardins; campos e bosques cercavam as
escolas, igrejas e casas. Todos os empregados, depois de determinado tempo de serviço
recebiam pensões, e o dia de trabalho de seis horas foi introduzido experimentalmente.
Hugh e Madge dedicavam grande parte de seu tempo às necessidades dos conjuntos
residenciais da fábrica. Madge sempre dizia que seu maior prazer era tornar seus moradores os
mais felizes e contentes possível.
Hugh, porém, nunca conseguiu dominar totalmente um leve sentimento de desprezo pelos
trabalhadores, pelos quais fazia tudo o que podia, mas sem conseguir admitir que fossem iguais a
ele. Respeitava somente os que não se deixavam escravizar.
A criação predileta de Hugh era o seu Instituto para a Promoção de Jovens Inventores. Eis
como começou:
Cerca de cinco anos depois da modificação ocorrida em sua vida, Hugh encontrou por
acaso um endereço que anotara num velho caderno de notas. Orgulhava-se de sua memória, mas
embora se esforçasse, não conseguia descobrir quem era Anthony Seymour. De repente,
recordou-se do encontro no Central Park com um velho e patético inventor. Aquele fora um dos
dias mais terríveis de sua vida. Hugh recordava-se ter prometido ajudar o velho se sua sorte
melhorasse, e envergonhou-se do seu esquecimento. Além disso, vinha pensando, há algum
tempo, na possibilidade de fazer alguma coisa pelas pessoas que estivessem passando pelo que
passara.
Deu instruções ao seu advogado para localizar Anthony Seymour, o inventor, que lhe dera
um endereço aos cuidados de uma charutaria, cinco anos antes. É claro que nem Seymour e nem
a loja puderam ser encontrados. Todas as investigações fracassaram, Hugh ficou muito
desapontado por não ter conseguido encontrar nenhum vestígio de Seymour.
Esse foi o estímulo de que precisava para organizar seu instituto, aberto um ano depois.
Hugh encontrou vários assistentes seus que se interessaram pela idéia, colocou um fundo
considerável à disposição deles e o novo instituto começou a funcionar.
A idéia de Hugh era ajudar as pessoas de habilidade excepcional a conseguir a posição
que mereciam na vida.
"A falha terrível da nossa sociedade", disse Hugh aos seus assistentes, "é que tudo se faz
em função do denominador comum mais baixo. Escolas, instituições, partidos políticos, todos têm
sempre em vista as pessoas de capacidade menor. Teoricamente, são adaptados ao nível médio,
mas na prática servem aos níveis mais baixos. O socialismo também visa esse nível. Devemos
querer o melhor. Nunca pensem na palavra "inventor" em seu sentido estreito. Qualquer pessoa
que tenha uma idéia própria é um inventor."
A iniciativa de Hugh não deu frutos imediatos. A primeira coleção de gênios descobertos
pelo Instituto era principalmente constituída de charlatães ou psicopatas. Mas depois de algum
tempo começaram a surgir pessoas realmente de valor, e de tempos em tempos alguma coisa de
muito original surgia, e isso bastou para que em dez anos o instituto de Hugh se tornasse
conhecido em todo o mundo. Sem dúvida, a humanidade lhe deve a preservação de muitas
descobertas valiosas que, de outro modo, poderiam ter-se perdido para sempre.
A um dos inventores do Instituto cabia o crédito do princípio da arma de tiro rápido de que
Jones falara. E a um grupo de jovens químicos do mesmo instituto foram confiados certos
problemas relacionados com novos tipos de pólvora e de explosivos que usavam gases
venenosos.
A expansão dos negócios da Companhia de Armas Automáticas em Geral significou o
estabelecimento de várias empresas periféricas. Logo tornou-se evidente que era mais lucrativo
para a Companhia ter as suas próprias minas de ferro, cobre e carvão, e seus próprios poços de
petróleo. Em seguida, a Companhia abriu alguns milhares de quilômetros de ferrovias,
absorvendo várias linhas vizinhas, incapazes de enfrentar a concorrência. E Jones (que em geral
demonstrava pouco interesse pelo lado financeiro) assumiu, com grandes vantagens, o controle
de uma companhia de transportes marítimos, incorporando à empresa uma frota de quarenta
navios de grande calado.
Mas essas múltiplas atividades não exigiam, agora, a atenção constante de Hugh e Jones.
Grande parte do que anteriormente tinham de fazer, passou a ser feita para eles; além disso, o
negócio crescia por si só - capital, lucros e os vários setores da empresa floresciam
independentemente.

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Finalmente, Hugh pôde viajar. Com Madge, ou sozinho, percorreu a Europa, Ásia, África,
América do Sul. E muitas vezes, em seu palácio de Nova York, fechava os olhos e lembrava
dessas viagens, pensando no enriquecimento que haviam representado para sua alma.
O interesse pela arte, desenvolvido após várias viagens à Itália, deu à sua vida um
significado novo. Começou a comprar quadros e, embora possa parecer estranho em uma pessoa
sem conhecimento do assunto, fez boas aquisições, desde o início. Em poucos anos havia
reunido uma coleção fascinante de quadros de artistas contemporâneos das novas escolas.
Mas, como ele mesmo dizia, seus sentimentos mais profundos estavam reservados às
obras de arte que permaneciam nos lugares onde haviam sido concebidas e criadas. Por isso, as
coleções trazidas para a América lhe pareciam estranhamente sem vida. Durante suas viagens
pela Itália e Espanha, costumava entrar em pequenas igrejas antigas, numa aldeia escondida, e
experimentar uma súbita e inexplicável alegria: das profundezas de sua alma soavam vozes,
despertadas pelo rosto de uma Madonna contra um fundo escuro, ou na penumbra e silêncio de
uma abóbada alta, por um raio de sol vespertino atravessando um vitral, ou pelo eco amortecido
dos passos no calçamento de pedra.
Hugh sentia, então, as essências secretas que viviam e se movimentavam em tudo o que o
cercava, materializadas nos quadros dos velhos mestres, nas igrejas antigas, nas paredes e
torreões, mas sempre em total harmonia com a paisagem onde nasciam: os vinhedos da
montanha, o sol poente, a estrada amarela e pedregosa, a cadeia de montanhas no horizonte.
Eram as experiências mais preciosas, depois das quais o cotidiano comum parecia pálido,
estranho e irreal.
Outra paixão de Hugh foi a astronomia. Certa noite em que seu enorme iate navegava pelo
estuário do Amazonas, e que Madge e as crianças já se haviam deitado, Hugh subiu até a ponte.
Era uma noite quente, tropical, úmida, cheia de 'estrelas brilhantes. Hugh contemplou o céu
durante longo tempo. De repente, lembrou-se da atração que tivera pela astronomia, quando
muito jovem.
"Tive de abandonar tudo isso naquela época", pensou. "Mas agora... por que não voltar
para a astronomia, agora? Quem foi que falou do céu estrelado e da alma do homem?"
Constatou o quanto as estrelas o atraíam, o quanto a simples contemplação das distâncias
incríveis entre elas e a terra podiam tornar pequenas e distantes dele todas as coisas que havia
na terra. Sentiu uma exaltação.
Ficou na ponte até tarde da noite, e no dia seguinte tomou emprestados todos os livros de
astronomia que o capitão tinha a bordo, além de um globo terrestre e vários mapas estelares.
Durante o resto da viagem Hugh só pensou nas estrelas. E quando voltou a Nova York,
sentia-se uma outra pessoa. As estrelas o haviam afastado do deserto dos negócios, nos quais
vinha se definhando nos últimos anos. Voltou a ser o velho Hugh, sonhador do impossível, que
dava livre rédea à sua imaginação exaltada.
Começou a reunir em Nova York uma biblioteca de astronomia, e instalou um pequeno
observatório, que lhe custou cerca de um milhão de dólares. Convidou um jovem cientista para
chefiá-lo, e entusiasmou-se tanto que passava dias e noites inteiros no observatório. Ali Hugh
realmente se encontrava. Notou com surpresa que seu dom para a invenção, que parecia tê-lo
abandonado ultimamente, voltava agora com as forças reduplicadas, triplicadas. Agora trabalhava
apenas por amor ao conhecimento, um trabalho criativo, conquistando a natureza e arrancando
dela os segredos mais íntimos. Seu sonho era comunicar-se com outros planetas; seus planos
avançavam.

Durante o primeiro ano dessa nova vida, Hugh começou a construir estufas para Madge.
Estas acabaram-se transformando num jardim botânico sob vidros, onde eram cultivadas apenas
rosas, mas rosas de todos os tipos. As rosas eram o orgulho e a alegria de Madge. No aniversário
de seu filho mais velho, Hugh Jr., deu uma festa na galeria de rosas, regularmente noticiada pela
imprensa de Nova York.
Madge também tinha inclinações filantrópicas, e estava construindo uma cidade-jardim
para os cegos.
Hugh e a família sempre passavam o mês de agosto num retiro nas montanhas, não muito
longe de Nova York. Na época a que me refiro, seu filho mais velho acabava de voltar de Paris,
onde fora estudar matemática e astronomia; as duas meninas, que se interessavam muito pela

41
pintura, haviam retomado do Japão; e o mais novo, dotado de excepcional talento para a música,
convalescia de uma gripe séria.
Hugh orgulhava-se muito dos filhos. Mas sempre dizia "os filhos de Madge", reconhecendo
que ela tinha mais direi to sobre eles, pois haviam estado em seus pensamentos e sonhos muito
antes de serem concebidos.
Reunida toda a família, Madge ausentou-se por vários dias, para ver como andava a
construção de sua cidade-jardim. Pouco antes da data marcada para seu retorno, enviou um
telegrama dizendo: "Finalmente, foi-me também possível, se não fazer uma invenção, pelo menos
uma descoberta. Contarei quando voltar".
No caminho entre a estação e a casa, Madge recusou-se a falar de sua "invenção",
dizendo que deveriam esperar até a noite.
Depois do jantar, tomaram café na ampla varanda que dava para um vale profundo, além
do qual havia montanhas cobertas de abetos, e duas cascatas que se distinguiam vagamente à
distância azulada. Há alguns anos, Madge vinha gostando mais desse lugar do que mesmo de
suas plantações de rosa na Calif6mia.
"Como deve ser terrível viver nas trevas, sem poder ver o sol, as montanhas, o verde...
pensem nisso, meus filhos", disse ela. "Não consigo imaginar nada pior. E por isso que tenho me
sentido tão feliz nestes últimos dias. Posso fazer pelos cegos mais do que pensei. Queria apenas
aliviar sua sorte, e agora parece possível tratar de muitos casos antes considerados perdidos.
Conheci um médico notável que trata os cegos pela sugestão, sob hipnose. O que presenciei
parecia um milagre. A cura verdadeira dos cegos. Vi como uma pessoa, depois de estar cega
durante dez anos, começou a enxergar. Até mesmo os cegos de nascença às vezes reagem ao
tratamento. Esse médico de que falo afirma que cerca de 10% dos que são considerados como
permanentemente cegos não são incuráveis. Afirma que enquanto a hipnose não for
experimentada, é impossível falar seriamente de cegueira. Na sua opinião, os médicos comuns
fazem muito mal ao dizer aos pacientes que não há esperanças. Conseqüentemente, os pacientes
ficam realmente cegos, sobretudo devido à auto-sugestão. O olho é um órgão tão delicado que é
sensível a qualquer sugestão. Se sob a hipnose sugerimos uma inversão, mandando os olhos
verem, eles obedecem e começam a ver, exceto quando o próprio nervo está atrofiado. Mas não
deram uma oportunidade a esse médico. Os oculistas de Nova York proibiram-no de fazer
experiências nos hospitais de olhos, e isso depois de ele ter curado uma menina que nascera
cega. Vejam bem, não é horrível? Esses oculistas é que são totalmente cegos! Por isso, resolvi
construir uma clínica para esse médico próximo de minha cidade-jardim e fundar um instituto no
qual os jovens médicos possam aprender o novo método. Pensem no bem que se pode fazer, na
alegria que é ter a oportunidade de praticar o bem."
"Ora, você sabe", disse o Diabo, "tudo isso era tão bonito que não pude agüentar mais
tempo. Já disse que o sentimentalismo tem sobre mim o mesmo efeito que o mar agitado tem
sobre as pessoas com tendência para enjoar. Vim embora e não sei do que continuaram falando."
"Mas, afinal de contas", perguntei, "o que significa tudo isso - foi um bem, ou um mal? Era
necessário que Hugh lutasse para se tornar inventor, ou teria sido melhor se, como todo mundo,
ficasse quieto no seu canto? Não compreendo."
O Diabo soltou uma irritada chama verde e deu um forte murro na mesa.
"Eu lhe disse para não perguntar qual a moral da história!", rugiu ele. "Entenda-a como
quiser! Deixe-me em paz! Como se eu pudesse entender alguma coisa dos homens!"
E entrou pela terra adentro, deixando apenas um cheiro de enxofre.
O Diabo anda muito irritado, ultimamente.

42
O DIABO BONDOSO

Aconteceu quando eu estava viajando pela Índia.


Encontrei-me, certa manhã, em Elora, onde ficam os famosos templos nas cavernas.
Você certamente já ouviu falar desse lugar, ou leu sobre ele.
A cadeia de montanhas - cortada por cristas pontiagudas e vales profundos que guardam
ruínas de cidades mortas - parte de Daulatabad e termina numa saliência de rocha pura, em forma
de ferradura e com vários quilômetros de extensão. Do desfiladeiro sobe uma muralha côncava,
pontilhada de buracos semelhantes a enormes ninhos de andorinhas - são as aberturas dos
templos. Toda a superfície da rocha é perfurada por templos que penetram profundamente a terra.
Há ali 58 deles, pertencentes a diferentes religiões antigas e a diferentes deuses, cada um mais
magnífico do que o outro.
No interior dos imensos espaços escuros, de uma altura que as luzes das tochas não
devassam, pode-se ouvir o bater de asas de dezenas de morcegos. Há longos corredores,
passagens estreitas, pátios internos; balcões e galerias inesperados abrem-se para as planícies,
lá embaixo; escorregadias escadas em caracol polidas por pés descalços há milhares de anos;
poços sombrios além dos quais se podem ver cavernas ocultas; penumbra, silêncio que nenhum
som perturba. Baixos-relevos e estátuas de deuses de muitos braços e cabeças, principalmente
do deus Xiva - dançando, matando e fundindo-se com outras figuras em abraços convulsivos.
Xiva é o deu do Amor e da Morte, a cujo culto estranho, cruel e fortemente erótico está
ligado o mais idealista e abstrato sistema filosófico indiano. Xiva, o deus dançarino em torno de
quem todo o universo dança como seu reflexo radiante. Todas as contradições se fundem
misteriosamente nesse deus de mil nomes. Xiva, o bondoso e misericordioso, o que nos livra das
desgraças, o terapeuta divino com mil olhos e mil aljavas de flechas para vencer os demônios.
Xiva, o protetor do "rebanho humano", com a garganta azulada por um veneno destinado a
aniquilar a humanidade, que ele próprio bebeu a fim de salvar a raça humana. Xiva, "o grande
tempo", renovador constante de tudo o que destruiu. Nesse sentido, é representado como um
língua, um falo negro existente no éter, adorado como a fonte da vida e o deus da voluptuosidade.
Xiva é também o deus do ascetismo e dos ascetas, ele próprio o grande asceta "vestido de ar"; o
deus da sabedoria, o deus do conhecimento e da luz. É ainda o senhor do mal, que vive nos
cemitérios e crematórios e usa uma coroa de serpentes e um colar de crânios. Xiva é ao mesmo
tempo deus, sacerdote e sacrifício, que é a totalidade do universo. Sua esposa é tão misteriosa e
contraditória quanto ele. Tem muitas faces diferentes, sendo conhecida por vários nomes: Parvati,
a deusa da beleza, do amor e da felicidade; Durga, protetora das mães e da família; e Kali, a
negra, senhora dos cemitérios, dançarina entre espíritos, deusa do mal, da enfermidade, do
assassínio e, simultaneamente, deusa da sabedoria e da revelação.
Mais adiante, na face da rocha, ficam os templos de Buda, onde os homens renunciavam
ao mundo e oravam para libertarem-se dele; nesses lugares, as imensas estátuas permaneceram
silenciosas, perdidas na contemplação há dois mil anos.
No centro da longa cadeia de templos está o vasto templo de Kailas, ou Templo do Céu.
Kailas é uma montanha mítica do Himalaia, onde vivem os deuses - um Olimpo indiano. Uma
enorme cavidade foi aberta na rocha para esses templo. No meio dessa cavidade há três grandes
pagodes decorados com um rendilhado feito na rocha; não há pedras sobrepostas, tudo é
entalhado na rocha sólida. Duas gigantescas estátuas de elefantes, tendo várias vezes seu
tamanho natural, foram colocadas dos lados dos pagodes, também entalhadas em pedra. Atrás
das galerias, serpenteantes e mergulhando fundo na rocha, há passagens subterrâneas e salas
escuras e misteriosas, cujas paredes ásperas ainda trazem as marcas dos instrumentos que
desbastaram o granito. Nos vãos, há estátuas e baixos-relevos de deuses aterrorizantes.
Antigamente, tudo isso era repleto de vida. Multidões de peregrinos passavam por ali,
acorrendo aos festivais nas noites de lua cheia para ver as danças sagradas e fazer sacrifícios;
centenas de dançarinas flexíveis voavam de um lado para outro, e o perfume do jasmim pairava

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por toda parte. No santuário mais secreto realizavam-se os ritos mágicos dos cultos misteriosos.
Algumas pessoas afirmam que vestígios desses ritos ainda persistem na índia de hoje, embora
sejam cuidadosamente escondidos dos europeus. Todas as cavernas, até as mais profundas,
tinham vida própria, uma vida que nem mesmo podemos começar a compreender.
Hoje, não se vê nada disso. A cidade dos templos é um deserto. Não há sacerdotes
brâmanes, dançarinas, faquires errantes ou peregrinos. Já não há as intermináveis procissões de
elefantes, ninguém leva flores, ninguém acende fogueiras. Até onde a vista alcança, não há uma
única aldeia, um único sinal de vida nas planícies lá embaixo. Apenas em duas ou três aldeias,
escondidas entre as árvores, vivem uns poucos vigias que servem de guias.
As cavernas e os templos surgem como num sonho. Em nenhum lugar do mundo a
realidade se funde com o mundo onírico de maneira tão completa quanto nessas cavernas. Quem
entra ali, tem a vaga lembrança de caminhar em sonho por corredores escuros e passagens
estreitas; de subir, aterrorizado diante do risco de cair, os degraus íngremes e escorregadios; de
abaixar-se e tatear com as mãos as paredes e o chão irregulares; de passar por estreitas galerias
inclinadas e sair na encosta da rocha, onde, lá muito abaixo, se estende a planície nevoenta.
Talvez nada disso tenha acontecido; talvez sim. Mas a lembrança das galerias e corredores
escuros permanece.

Era verão, a estação das chuvas. As planícies lá embaixo estavam cobertas com um
espesso tapete verde, e por toda parte os regatos cantavam sobre as pedras, para se juntarem
mais adiante a outros e obstruir o caminho para as cavernas distantes.
Tendo partido logo cedo, passei todo o dia perambulando pelos templos com uma câmera,
descendo às cavernas, subindo pelas rochas, arrastando-me até o alto da encosta e sempre
voltando aos templos. E tudo isso com uma espécie de curiosidade ansiosa e ávida, como se
sentisse ou soubesse que seria ali, naquele mesmo lugar, que encontraria algo que vinha
buscando. Desci várias vezes até as planícies, que eram cobertas de vegetação e encharcadas
de água, e tentei diversos caminhos para a parte mais afastada e inacessível da cidade-templo.
Disseram-me que ali, no terceiro ou quarto templos, a partir do fim, havia um certo baixo-relevo,
ou desenho simbólico na parede, e estava decidido a encontrá-la e, se possível, fotografá-la.
Meus guias procuravam diligentemente um caminho, entrando e afundando-se até a cintura nos
regatos borbulhantes, nas torrentes barrentas, pisando sem medo o capim molhado, infestado de
cobras, e abrindo caminho em meio à vegetação cerrada. Mas sempre acabávamos encontrando
algum obstáculo: uma rocha íngreme, ou águas profundas. Foi impossível atingir o extremo direito
da saliência em forma de ferradura através de um atalho na planície. Chovera o dia inteiro,
praticamente, e de tempos em tempos caía um aguaceiro. Nessas ocasiões me refugiava no
templo mais próximo, acendia um cigarro e esperava sob a estátua do Buda, com os olhos baixos,
até que a chuva torrencial diminuísse, transformando-se no chuvisco constante e familiar. Durante
todo o dia, não vi uma única coisa viva, exceto meus dois guias (com os quais falava por sinais, já
que não conheciam uma palavra de inglês), os morcegos das cavernas e uma ou outra lebre
cinzenta que fugia de uma moita ao nos aproximarmos.
Acabei perdendo a esperança de alcançar os templos mais distantes pela planície, e
resolvi que o dia seguinte, bem cedo, iria pelo alto do despenhadeiro e tentaria atingi-los por ali.
Ao anoitecer, cansado, com fome e molhado, voltei à hospedaria.
Essa "pousada", ou "bangalô do serviço postal", de um tipo que se encontra por toda a
Índia, ficava a cerca de três quilômetros das cavernas, na encosta de uma montanha, e nas
proximidades das ruínas dos túmulos dos conquistadores muçulmanos que, no século XVII,
devastaram metade da Índia.
Já estava escuro. Estava tão cansado que não consegui comer; fui direto para a cama. As
reuniões noturnas não fazem parte dos hábitos da Índia, e com o anoitecer nada mais há para
fazer, senão ir para a cama.
O tempo estava ainda pior. Chegavam as monções. Súbitas lufadas de vento sacudiam a
casa toda, e quando o vento amainava, ouvia-se a chuva caindo pesadamente no telhado. Queria,
desesperadamente, adormecer logo, ter uma boa noite de descanso para poder partir pela manhã
bem cedo. No dia seguinte tinha de encontrar o templo com o baixo-relevo simbólico na parede.
Mas fiquei acordado por muito tempo, numa espécie de torpor pesado, fascinado pela lembrança
dos templos atemorizantes, sentindo como se ainda vagasse por eles, admirando as passagens
subterrâneas que os ligavam e contemplando os deuses.

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Ao mesmo tempo, sentia-me cada vez mais tomado por uma agitação estranha. Havia
alguma coisa de medonho no barulho incessante da chuva e do vento, que traziam também outros
sons inesperados - como o de um trem, embora a estrada de ferro estivesse a mais de trinta
quilômetros dali, ou vozes humanas, ou bater de cascos nas pedras; depois o som dos passos
cadenciados de soldados em marcha e o zumbido de uma canção, às vezes perto, às vezes mais
longe, mas constante.
O cansaço pesava-me sobre os nervos. Comecei a sentir que alguma coisa estranha e
hostil me cercava nesse "bangalô". Alguém me vigiava, alguém se aproximava furtivamente da
pequena casa. Eu sabia que estava completamente só ali, que as portas não estavam bem
fechadas e que os vigias dormiam numa cabana no outro extremo de uma ampla clareira.
A sensação de mal-estar aumentava, e não me deixava dormir. Comecei a ficar irritado,
comigo, com a monção, com a Índia e com tudo ao redor. Ao mesmo tempo, deixava-me dominar
cada vez mais pelo medo, como se tivesse chegado a um lugar de onde não poderia mais voltar,
onde pairavam perigos por todos os lados e havia ameaças em todos os cantos. Decidi não
prosseguir no dia seguinte, e voltar para Daulatabad logo pela manhã. A essa altura, minha
consciência começou a se dissipar e uma sucessão de imagens e de rostos começou a desfilar
diante de meus olhos.
De repente, algo bateu violentamente na varanda, junto ao quarto contíguo ao meu. O
sono foi-se imediatamente. O terror, que já então me era familiar, e o medo de alguma presença
hostil e desagradável, voltou a dominar-me com força renovada. Saltei da cama, apanhei na mala
o revólver, carreguei-o, e o deixei na mesa junto da cama. Durante algum tempo, pareceu que
tudo se acalmava e pude cochilar.
Acordei com um sobressalto e sentei-me imediatamente. Alguém batia à minha porta, não
com as leves pancadas habituais, mas segurando a maçaneta com as duas mãos, puxando e
batendo furiosamente. Aos poucos, e como se tivesse medo de mostrar que estava acordado,
estendi a mão e procurei o revólver. Só depois que o encontrei e apontei para a porta, uma voz
singularmente calma e sóbria me disse que era apenas o vento que batia. Um tanto
envergonhado, coloquei o revólver outra vez sobre a mesa e voltei a deitar-me.
As pancadas cessaram, mas em outro quarto mais distante uma porta bateu
violentamente, como se, desesperado para se fazer ouvir por mim, alguém tivesse saído para a
varanda e batido a porta.
A "casa para visitantes" consistia em quatro aposentos, dois dos quais voltados para uma
grande varanda. Todos eram ligados por portas. No meu quarto havia quatro portas, duas que
abriam para os quartos adjacentes e duas que davam para fora.
Durante algum tempo tudo ficou em silêncio, exceto a chuva que continuava a cair. De
súbito, uma porta voltou a bater violentamente, e no quarto ao lado uma janela foi sacudida como
se a estivessem esmurrando. Depois de vários momentos de silêncio, alguém, ou alguma coisa,
deve ter se aproximado sorrateiramente e agarrado outra vez o trinco de minha porta, que voltou a
ser sacudida com violência.
Não podendo agüentar mais, pulei da cama, corri para a porta e abri-a de um só golpe. Lá
fora havia só a escuridão, e à minha esquerda, no outro quarto, uma porta bateu. Voltei ao meu
quarto, acendi uma vela e examinei as portas e as janelas. Estavam todas rachadas com o calor
do tempo seco, e os trincos, quebrados e inúteis. Enquanto andei pela casa com a vela, tudo ficou
em silêncio e as portas pareciam estar bem fechadas. Mas assim que voltei ao quarto, deitei e
apaguei a vela, uma porta num quarto mais distante voltou a bater, e as janelas foram sacudidas
novamente. Lembrei-me de que não havia encontrado nenhuma porta aberta, e comecei a pensar.
Minha ansiedade e meu medo aumentaram quando percebi que o sono havia desaparecido por
completo, e provavelmente teria de sofrer esse tormento durante o resto da noite. Era tão absurdo
não conseguir dormir depois de um dia tão cansativo! Não dormira na noite anterior porque tivera
de mudar de trem pela madrugada. De manhã bem cedo cheguei a Daulatabad e repousei por
duas horas num bangalô igual a este em que estava. Em seguida, quando os cavalos chegaram,
viajei por cerca de três horas, em meio ao vento e à chuva, numa carroça de duas rodas, subindo
e descendo morros, passando por fantásticas ruínas de fortalezas e de cidades. Depois disso,
perambulei pelas cavernas desde o meio-dia até o anoitecer.
E agora essas malditas portas e esse inexplicável medo sem nome afugentavam o meu
sono. A insônia, na Índia, é duplamente esgotante; pois ali é mais difícil livrar-nos da exaustão que

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ela provoca do que em outros lugares. Um vestígio dela sempre permanece na forma de apatia,
indiferença, irritabilidade e uma total falta de interesse por tudo. Sabia disso pela experiência.
Comecei a pensar que no dia seguinte não teria vontade de ir a lugar nenhum e que nada me
interessaria. E tal pensamento me irritava ainda mais.
De todos os problemas do viajante o mais exasperante é a falta de sono. Todos os outros
são suportáveis, mas quando é impossível dormir, o viajante é tomado por um sentimento de
desintegração, e seu eu normal se transforma numa criatura cansada, caprichosa, irritável e
irrequieta. Era o que eu mais temia.
Chamo isso de "imersão na matéria". Tudo se torna desinteressante, ordinário, prosaico; a
voz do misterioso e do milagroso, ouvida com tanta intensidade na Índia, cala-se e parece não
passar de uma invenção tola. Nota-se apenas o desconforto - o lado absurdo e desagradável de
tudo e de todos. O espelho perde seu brilho e o mundo parece universalmente cinzento e
prosaico.
Era o que o amanhã me prometia, em lugar das visões terríveis e inesperadas que me
surpreenderam tão fortemente nas cavernas, no dia anterior.
Parecia impossível voltar a dormir. Por alguns momentos, todo o bangalô parecia estar
vivo, como se fosse levantar vôo, e todas as portas, janelas e persianas batiam simultaneamente.
Aos poucos o sentimento de terror e medo começou a desaparecer, talvez devido à pura
exaustão. É claro que sob a proteção do barulho da chuva e do vento qualquer pessoa poderia ter
entrado na casa; mas, por fim isso me era indiferente: podia entrar quem quisesse, eu queria
apenas dormir.
Começou então uma luta penosa. Tentei todos os recursos que conhecia para adormecer.
Tentei o relaxamento muscular, procurando evitar os pensamentos; prestei atenção às batidas do
meu coração e procurei abandonar-me ao balanço rítmico das ondas que percorriam meu corpo.
Com os olhos fechados, procurei penetrar a escuridão e marcar um ponto central, no qual tentei
mergulhar, sem pensar em nada. Consegui isso com mais facilidade do que habitualmente. Não
tive pensamentos perturbadores e adormeci sem dificuldade. Mas assim que minha consciência
começou a se dissipar e os sonhos a surgir, alguém voltou a arranhar minha porta e a bater
novamente na varanda. Esse barulho penetrou o meu sono e me arrastou de volta à insônia.
Durante algum tempo, nos breves momentos de silêncio entre os paroxismos da agitação e
das batidas, devo ter cochilado, apenas para acordar, concentrar-me novamente e, mais uma vez,
mergulhar no sono.
Lembro-me então de que tive vontade de levantar novamente e tentar prender as
persianas que davam para a varanda; o medo desaparecera completamente. Pensei em como
seria bom encontrar-me subitamente nas cavernas, à noite. Mais uma vez as portas se agitaram e
alguém parecia caminhar pela varanda. Mas nada disso tinha importância, agora... Imagens
desfilaram em minha mente, alguém falava bem junto ao meu ouvido...
Vi-me então caminhando pela borda do precipício, acima do templo de Kailas. Pagodes de
pedra, três enfileirados, ficavam embaixo. Olhei para lá e em seguida, avançando um pouco os
pés, deixei a borda do rochedo e comecei a voar calmamente sobre os pagodes. "Assim é muito
mais confortável", pensei, "do que ter de dar a volta". Voei além dos pagodes e desci em terra
firme, perto da entrada.

Sentei-me nos degraus do primeiro pagode, ao lado do elefante com a tromba quebrada, e
fiquei à espera de alguém.
Estranho como pude esquecer! É, claro, estava esperando pelo Diabo. A última vez que o
vi, combinamos um encontro aqui, no templo de Kailas. Era essa a razão da minha vinda, embora
a caminho tivesse me esquecido dela.
O Diabo saiu de trás do elefante, envolvido numa capa preta, como se sua presença não
tivesse nada de extraordinário. Sentou-se no pedestal do elefante, encostando-se numa de suas
pernas dianteiras.
"Muito bem, aqui estou", disse ele. "Agora podemos continuar nossa conversa."
Tão logo disse isso, lembrei-me de que ele prometera contar-me detalhadamente sobre os
diabos, sobre a sua vida e o papel que desempenhavam nas questões humanas. Como pude
esquecer? Preparei-me, ansioso, para ouvir. Os encontros e conversas com o Diabo sempre me

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revelavam as coisas sob uma luz nova e inesperada, até mesmo aquilo que eu julgava conhecer
muito bem.
"Repetirei o que disse antes", disse o Diabo. "Você está interessado na natureza do mundo
satânico e em nossas relações com os humanos. Disse-lhe, daquela vez, que vocês não nos
compreendem e pintam um quadro totalmente falso de nossas relações. Os homens cometem um
grande erro ao pensar que lhes causamos danos e males. Isso não é verdade. Ficamos muito
aborrecidos porque as pessoas não compreendem o que fazemos por elas. Não sabem, e na
verdade nem mesmo imaginam, que toda a nossa vida é um sacrifício constante pela raça
humana, a que amamos, servimos e sem a qual não podemos viver ." 3
"Não podem viver?"
"Sim, falando de modo geral, vocês têm dificuldade em nos compreender, e isso acontece
porque, em primeiro lugar, mesmo que reconheçam a nossa existência, consideram-nos como
criaturas de um outro mundo. Ha, ha, ha!" O Diabo dobrava de rir. "Como se fosse possível!
Criaturas de um outro mundo! Se soubessem como isso é idiota! Somos a quintessência mesma
deste mundo, a terra, a matéria. Você não compreende? Formamos o laço, por assim dizer, entre
vocês e a terra. E fazemos com que esse laço não se rompa."
"Vocês são chamados de espíritos do mal!"
"Que absurdo! Somos espíritos da matéria. Aquilo que vocês chamam de mal é, do nosso
ponto de vista, a verdade. Muitas vezes é útil como uma medida preliminar para ligar vocês à terra
e impedir que a deixem. De qualquer modo, chamar-nos de espíritos do mal não é correto. É certo
que há entre nós espíritos do mal, aqueles que são como eu, por exemplo. Mas são exceção.
Afinal de contas, nem mesmo eu sou tão poderoso, nessa esfera, quanto acham que sou. Não
crio o mal, apenas o coleto, por assim dizer. Não sou um profissional, apenas um amador, um
colecionador. Ai está: muito provavelmente minhas inclinações são um pouco perversas. Gosto
muito de observar o modo pelo qual as pessoas praticam seus atos maléficos, especialmente
quando usam, ao mesmo tempo, belas palavras. Infelizmente, são raras as vezes que posso
ajudá-las. Você pode perceber, pelo que lhe disse da última vez, que sou completamente
impotente em relação aos casos mais interessantes. Vocês agem, com muita freqüência, de modo
bastante peculiar. Repito, portanto: sou uma exceção. A grande maioria da nossa fraternidade é
totalmente apegada ao homem. Mas vocês não compreendem o que estamos fazendo pelos
homens. Se não fôssemos nós, já teriam desaparecido há muito tempo, sem deixar vestígios.
"O que nos teria acontecido sem vocês?"
"Teriam desaparecido, teriam sido totalmente aniquilados e dissolvidos no éter cósmico",
disse o Diabo. "Tal como desaparecem quando... quando várias fantasias tolas lhes ocorrem." Fez
uma pausa. "Tal como a tolice conhecida como "transferência da consciência para o outro
mundo".
"Você deve lembrar, a partir de nossas conversas anteriores, que não acredito
absolutamente em outros mundos. Para mim, são fantasias da imaginação. Conseqüentemente,
não posso dar qualquer informação sobre eles. Conheço apenas as regiões com as quais tenho
contato imediato, e não admito a existência de outras. Você está entendendo? Isso quer dizer que
as pessoas que partem da terra, ou perdem contato com ela, estão aniquiladas: deixam de existir
em qualquer lugar, em qualquer momento. Por isso, temos pena de vocês. É uma vergonha que
sejam tão idiotas, tão sujeitos a fantasias que provocam a sua' própria ruína. Tentamos fazer tudo
o que é possível para mantê-los na terra. Se não nos importássemos com vocês, teriam deixado
de existir aqui há muito tempo. Quanto ao lugar para onde iriam - como é que vou saber? Na
minha opinião, não iriam para lugar algum, pois para mim não existe mais nada além deste
mundo. Nós apenas, e apenas nós, mantemos vocês nesta bela terra, damos a vocês a

3
Depois de escrito isto, me foi mostrado um plágio da parte do Diabo, que eu não havia percebido.
Ele me disse exatamente aquilo que o diabo disse a Ivan Karamazov. ("Eu amo sinceramente as
pessoas, mas fui ofendido muitas vezes.") Em relação a isso, posso dizer que a coincidência está
apenas nessa frase. O que o Diabo diz, no resto de seu discurso, não tem qualquer semelhança com
o que é dito pelo diabo de Dostoievski. Por outro lado, a inclinação ao plágio é um dos traços
básicos do caráter de um diabo. Além disso, não posso representá-lo a mim mesmo sem um certo
plagiarismo. (O Autor)
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oportunidade de admirar o pôr-do-sol ou a lua nascente, ouvir os rouxinóis, amar, sentir alegria.
Sem nós, nada restaria de vocês."
"Espere", disse eu. "Você acabou de dizer que não sabe para onde teríamos ido sem
vocês. Talvez não tivéssemos desaparecido totalmente, talvez não nos tivéssemos aniquilado,
talvez não tivéssemos deixado de existir, como diz. Pelo contrário, poderíamos talvez ter
começado uma vida nova e muito mais agradável em algum lugar em que vocês não existissem.
Você sabe que há teorias nesse sentido."
"Tudo isso é bobagem. Primeiro, que lugar seria esse? Onde fica, à direita, à esquerda, no
leste, no oeste? É um mito! Em segundo lugar, como é que vocês poderiam gostar de alguma
coisa que não fosse matéria? Todos os seus prazeres são materiais, seus corpos são matéria e
sem um corpo material vocês não podem experimentar nenhum tipo de sensação! Quem não tem
sensações, não existe. Finalmente, mesmo que vocês gostassem desse lugar, embora sem a
nossa companhia, que satisfação teríamos com isso? Que interesse teriam então os prazeres de
vocês, para nós? Estou dizendo meu caro, nós amamos os homens. Veja bem: imagine uma
mulher que ama um homem e tente convencê-la de que esse homem estaria muito melhor num
lugar onde ela nunca o pudesse ver novamente. Que resposta acha que ela lhe daria? Acha que
concordaria em deixá-lo partir? Nada nesse mundo poderia convencê-la, se fosse uma mulher
real, viva. Ela dirá: 'Mesmo que este não seja o melhor dos mundos para ele, aqui ele tem a mim,
e eu não o deixarei ir.' Não é verdade? E ela terá razão! Vocês são muito engraçados;
compreendem perfeitamente e ainda assim nos pedem para fazer o impossível.
"Ouça, será realmente possível acreditar em todas essas fantasias sobre um mundo no
além? Sabemos muito bem o que acontece ao homem quando morre. E sabemos perfeitamente
que ele tem em si apenas o que lhe foi proporcionado pelas impressões exteriores. Sou um
positivista, ou mais precisamente um monista. Só admito um início do universo, pelo qual um
mundo visível, audível e concreto foi criado. Fora desse mundo não há nada. Por haver forças e
vibrações ainda não descobertas, é claro, mas isso é totalmente diferente. Mais cedo ou mais
tarde, serão descobertas, e servirá simplesmente para reforçar a convicção de que tudo é
material. Ah, como vocês gostam de contos de fada! E como temos de lutar contra eles! E muito
fácil, na verdade compreender como surgem esses contos. Os homens não querem morrer, a
idéia da morte lhes causa medo; ficam apavorados com a certeza de que jamais voltarão a ver o
sol nascente; na verdade, têm pavor da palavra 'nunca'. Por isso inventam vários consolos. O
mais importante, na sua cabeça, é o desejo de que alguma coisa permaneça depois da morte.
Nós, porém, não nos enganamos. Não precisamos. Não dependemos do tempo, e viveremos
enquanto a matéria existir. E o reino da matéria é eterno!"
O Diabo pôs-se de pé, deu um grande salto no ar, uma cambalhota, e pousou na cabeça
do elefante, em meio a chamas vermelhas, gritando:
"O reino da matéria é eterno!"
Eterno... eterno... ecoaram as abóbadas das salas internas, e os morcegos, levantando-se
em enxames, formaram um estranho desenho negro acima de sua cabeça.
"Pare com essas acrobacias! ", disse eu. "Elas talvez impressionem os outros, mas estou
muito mais interessado no que você diz. Parece-me que estamos realmente muito equivocados
quanto a vocês."
O Diabo pulou do elefante e voltou à mesma posição de antes, junto ao pé do animal.
"Vocês estão totalmente enganados, do princípio ao fim", respondeu ele. "Tanto em
relação a vocês mesmos, como em relação a nós. Seu primeiro erro, como já disse, consiste em
nos tomar por criaturas de um outro mundo. Não existe nenhum outro mundo, nenhum! De
qualquer modo, não acreditamos nele. Nossa natureza, na realidade, determina que não
conhecemos e não podemos conhecer qualquer outra coisa que não seja a terra. Espanta-me que
vocês não compreendam isso. Mas já que comecei a falar francamente, vou dizer-lhe que a lenda
sobre o outro mundo foi, em grande parte, criada por nós.
"Não compreendo", estranhei.
"Veja bem, as pessoas freqüentemente, têm fantasias estranhas que, entre outras coisas,
muitas vezes as impedem de viver e de se ocuparem com seus próprios assuntos. E assim, para
libertá-las de tais fantasias, ou pelo menos para tornar as fantasias inofensivas, adotamos a única
atitude tática - ou para ser mais preciso, pedagógica - possível. Ou seja, ao lado das fantasias que
prejudicam e confundem, criamos outras, semelhantes a elas mas inofensivas.

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"Veja as fantasias sobre a irrealidade deste mundo, sobre o mundo além deste, a vida
eterna, a eternidade – em tudo isso, há alguma coisa de enfraquecedor, que priva as pessoas da
perseverança indispensável à vida. Você pode ver como o homem que acredita na vida eterna
passa a considerar a vida atual com um certo desprezo. Passa a atribuir pouco valor às coisas
boas da vida, não se sente disposto a lutar por elas, e muitas vezes nem mesmo a lutar para
retomar aquilo que lhe foi tirado. Pense no que pode resultar dessa situação. Geralmente, esse
homem começa a ter um comportamento estranho, a passar muito tempo sonhando,
experimentando sensações místicas e, finalmente, renunciando completamente à vida.
"O misticismo, eis o principal mal dos homens. Por isso temos pena de vocês, e usando as
mentes suscetíveis construímos nossa própria teoria sobre o mundo do além, a vida do além-
túmulo, a vida eterna - dê-lhe o nome que quiser -, uma teoria simples, coerente, lógica, por mais
falsa que seja. Contudo não estou querendo sugerir que exista uma teoria autêntica do além -
todas são igualmente falsas. Sem dúvida, há teorias de um certo sabor místico e religioso
desagradável, e mesmo que não conduzam as pessoas diretamente à mania da religião, ainda
assim as corrompem.
"Comparadas a essas fantasias perniciosas, as nossas teorias são, e que ninguém nos
ouça, simplesmente uma pequena farsa. Não há nada de obscuro nelas, nada de místico.
Baseamos tudo nos fatos mais terrenamente realistas: apenas nunca foram, não são, e nunca
poderão ser verdadeiras.
"Conseqüentemente, nosso mundo do além não difere, em nenhum aspecto, da terra. É
apenas, por assim dizer, a terra de cabeça para baixo. Compreenda que os lugares que têm muita
coisa em comum, mesmo vistos de cabeça pata baixo, não são perigosos.
"Nessa situação, recebemos uma grande ajuda do erro básico que vocês cometem com
relação a nós e, em última análise, do erro que cometem quanto a vocês mesmos."
"E segundo você, qual o erro que cometemos quanto a nós mesmos?", perguntei.
"Tenho dificuldade até mesmo para explicá-lo a você", respondeu o Diabo. "As idéias dos
homens são tão confusas! Tenho de voltar muito atrás.
"Naquele seu livro antigo está escrita a história de Adão e Eva. Ora bem, essa história não
está certa, e a enganosa teoria sobre a origem do homem confunde todas as suas idéias
subseqüentes a respeito dele. Quanto à nova teoria da origem do homem a partir do protoplasma,
é muito interessante. Reconheço que é. Mas está ainda mais longe da verdade. Tentarei explicar
o que realmente aconteceu.

"Adão e Eva são os nomes dos descendentes do Grande Ser. É o que dizem; não sei o
que há de verdade nisso, mas também não sei se podemos ter certeza de alguma coisa,
provavelmente não. Mas dizem que havia um Grande Ser, chamado o Portador da Luz, que lutou
e brigou, não com o céu, mas com a terra, com a matéria, ou com a falsidade, e a dominou. Só
muito depois, ao que dizem, ele brigou com o céu.
"Ele subiu muito, mas dizem que no fim teve dúvidas quanto à verdade e, por um
momento, acreditou naquela mesma falsidade contra a qual vinha lutando. Isso provocou sua
queda e ele partiu-se em mil pedaços. Foi dos seus descendentes que vieram Adão e Eva. Nem
mesmo com toda a boa vontade do mundo posso contar melhor essa história, pois, como vê, ela
chega às fronteiras de assuntos que não compreendo. E aquilo que não compreendo, não existe.
É muito desagradável falar do que se encontra na beira de algum vácuo, além do qual nada
existe. Temos medo desse vazio. Eis tudo: contei-lhe o nosso maior segredo. É por causa desse
medo, desse terror, que nos apegamos ao homem: vocês nos ajudam a ignorar e a esquecer o
nada terrível.
"Voltarei, porém, ao que dizia antes. Adão e Eva, segundo o seu livro antigo, viviam no
paraíso. Esse é o primeiro erro: viviam na terra. Mas, como dizer? Eles apenas brincavam de viver
na terra, como crianças! E como nove décimos de seu ser, viviam naquele vazio que tanto
detestamos e que é hostil à vida. Chamaram esse vazio de mundo do milagroso. Na minha
opinião, eles não eram normais e sem dúvida tinham alucinações visuais e auditivas. Veja a
afirmação de que viram Deus e falaram com Ele. Não sei o que isso significa, mas certamente é
alguma coisa terrível."
Vi o Diabo começar a tremer e enrolar-se em sua capa.

49
"E claro que não acredito em Deus", continuou ele. "Isso seria ridículo. Mas transmito a
lenda tal como existe. Dizem que nos rebelamos contra Deus: isso é absurdo. Nunca nos
rebelamos contra Deus porque não acreditávamos, não acreditamos e nunca poderemos acreditar
n'Ele. A parte da lenda que trata de nossa rebelião contra Deus foi inventada por nós mesmos.
Mais tarde lhe direi a razão disso.
"O que se diz ainda sobre Adão e Eva, no livro de vocês, está errado: está escrito ali que
eles queriam ser como deuses, queriam saber o que é o bem e o mal. Isso está errado, porque
eles eram como deuses e sabiam o que é o bem e o que é o mal. Para nós, isso era muito
desagradável e assustador."
O Diabo calou-se, como se tivesse dificuldade em falar.
"Era como se eles fossem mais fortes do que nós", prosseguiu. "E claro que tudo isso era
fantasia. Mas para eles estávamos no nível de animais. Viam-nos apenas como animais. E
também nos deram nomes, correspondentes às nossas qualidades."
O Diabo pronunciou essas últimas palavras com muita relutância.
"Também devo dizer que não estavam sozinhos na terra. A terra era habitada por outra
raça, os descendentes dos animais. Mas o seu livro não diz nada a respeito dessa outra raça.
Estavam totalmente em nosso poder e nunca poderiam escapar. Mas queríamos, acima de tudo,
subordinar Adão e Eva. Sua presença nos constrangia. Não podíamos ter certeza de nada, com
eles ali. Davam a impressão de que a qualquer momento poderiam fazer desaparecer todo o
mundo. Diziam que nada existia e que tudo era apenas um sonho, e que era possível acordar e
não encontrar mais nada."
O Diabo perdeu a sua indiferença habitual, e pareceu ter medo de falar.
Olhando-o naquele momento, compreendi que a base da sua natureza era o medo.
"São palavras difíceis de dizer", murmurou ele, olhando-me com um ar de cachorro que
apanhou. "Mas já que comecei, é melhor continuar.
- Assim, a luta começou. O problema foi livrar aqueles dois de suas fantasias, convencê-
los de que o mundo realmente existe, que a vida não é uma brincadeira, mas uma coisa muito
séria, difícil e perturbadora mesmo, e que as idéias do bem e do mal são, em última análise,
apenas relativas, sem permanência. Convencê-los seria expulsá-los do paraíso.
"Esse paraíso realmente nos enojava. Eram conversas constantes sobre Deus, amor
eterno, e beijos. Não agüentávamos tudo aquilo!
"E por que isso os deixava tão irritados?", perguntei.
"É claro que você não entenderia. Diziam que o amor era a sua força principal e uma
mágica poderosa; que através do amor ressuscitariam o Grande Ser e, assim, restaurariam o
mundo perdido. Não compreendo nada disso. Mas pense: como poderíamos tolerar uma filosofia
tão pervertida? Já era demais aceitarmos o fato de que eles podiam desaparecer diante de
nossos olhos. Muitas vezes descia uma nuvem cor-de-rosa e eles sumiam. Éramos impotentes
para impedir que isso acontecesse, embora nos perturbasse muito. Além disso, considerávamos a
sua roupa positivamente horrível - você sabe, a roupa que Adão e Eva usavam antes da Queda.
Nós a achávamos muito imprópria. A matéria exige uma certa compostura. Esses dois negavam a
matéria, e mesmo assim admiravam a beleza."
O Diabo pronunciou a palavra com desprezo.
"Tentamos convencê-los de que o corpo é essencialmente feio e indecente, e seria muito
melhor cobri-lo sempre que possível. Mas eles não estavam dispostos a ouvir.
"As coisas chegaram a tal ponto, que o exemplo deles começou a ter um efeito negativo
sobre a outra raça, os descendentes dos animais. Só havia uma maneira de fazer Adão e Eva
melhorarem: introduzir o sofrimento em sua vida, e obrigá-los a acreditar na realidade da matéria.
"'Mas como? Pensamos durante muito tempo. Finalmente, um de nós chamou a atenção
para os descendentes dos animais. Toda a vida deles consistia em alimentar ressentimentos e
procurar livrar-se das dificuldades lançando-as aos ombros de outra pessoa. Não tinham dúvidas
sobre a realidade deste mundo, nem das coisas materiais. Pelo contrário, estavam dispostos a
quebrar a cabeça uns dos outros pela menor coisa - uma pedra bonita, por exemplo. Suas idéias
de bem e de mal modificavam-se tão rapidamente que nem mesmos nós podíamos acompanhá-

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los. Pela manhã, o sol é bom; ao meio-dia, mau; à tarde, volta a ser bom. A noite, a esposa é boa;
pela manhã, má; à noite, novamente boa, e assim por diante.
"E começamos a indagar por que as coisas iam tão bem com eles; talvez isso tivesse
alguma relação com os seus hábitos. Ocorreu-nos que se um de nós conseguisse fazer com que
Adão e Eva adotassem alguns desses pequenos hábitos, talvez pudéssemos convencê-los da
realidade das coisas e da relatividade do bem e do mal.
"Entre os costumes dos descendentes dos animais havia um que era particularmente
divertido - de todos, era o que nos parecia mais idiota. Era o hábito de comer diariamente, e em
grandes quantidades, o fruto de uma certa árvore. Tinham uma lenda de que num passado
distante um deus, que havia descido à terra, lhes ensinara a comer essa fruta. Levantavam
estátuas a esse deus e o adoravam. Isso era muito engraçado, mas era ainda mais cômico o fato
de que eles realmente sofriam se não tivessem a fruta, e muitos até morriam. Por isso, as tribos
que tinham muitas frutas armazenadas, ou tinham muitas árvores dessa fruta, eram consideradas
sábias e boas, mas as que não tinham árvores nem frutas, eram consideradas desprezíveis e, às
vezes, eram até destruídas. Chegamos à conclusão de que se pudéssemos fazer com que Adão e
Eva comessem essa fruta, poderíamos ser bem-sucedidos em fazê-los entender o senso comum.
"Assim, um de nós procurou Eva e ofereceu-lhe uma das frutas, para que a provasse.
Como disse, só podíamos aparecer a eles na forma de animais, por isso meu colega teve de
tomar a forma de uma serpente”.
"O seu livro diz que os dois estavam proibidos de comer a fruta de uma certa árvore. Isso
não é verdade: nada lhes era proibido. Havia, porém, muita coisa que eles não compreendiam.
Experimentavam grande prazer simplesmente em olhar essa fruta que os descendentes dos
animais comiam tão vorazmente”.
"Quando a serpente deu a fruta a Eva e explicou-lhe que era comestível, Eva provou-a e
deu um pedaço a Adão, que também a comeu; e ambos começaram a apreciar essa nova
atração. A partir daquele dia, a serpente levou-lhes a fruta regularmente. Eles a comiam pela
manhã, ao meio-dia e à tarde. A serpente contou-lhes então onde poderiam encontrar a fruta em
abundância, e ensinou-lhes como apanhá-la. Eles também gostaram desse novo passatempo”.
"Não posso dizer que eles nunca a tivessem comido antes. Mas é certo que antes, tudo
era diferente: eles atribuíam um significado especial a todas as coisas e viam mágica em tudo.
Agora, finalmente, não havia mágica em nada. Tal como os descendentes dos animais, comiam
por prazer, ou para passar o tempo. E nós os observávamos, esperando para ver aonde isso
levaria”.
"Os resultados não tardaram”.
"Certo dia Eva notou que estava engordando, e isso a aborreceu muito. Em seguida,
começou a estranhar o comportamento de Adão. Era inegável que o amor de Adão estava
enfraquecendo rapidamente. Uma vez ele bocejou em meio do calor dos beijos apaixonados,
coisa que nunca acontecera até então. Depois, adormeceu quando Eva ainda não estava com
sono e queria que ele lhe falasse das estrelas. Depois disso, Eva teve certeza de que o caráter de
Adão estava mudando para pior, e isso se tornava mais evidente quando ele tinha fome daquela
fruta. Nessas ocasiões, tornava-se irritável, implicante e insuportável. Pelas manhãs, ao invés dos
beijos e carícias habituais, tinha um desejo apaixonado pela fruta, e até que o satisfizesse, nem
sequer olhava para Eva. Eva ficava muito ofendida com isso, e embora só a contragosto se
submetesse à nova rotina, esforçava-se para preparar mais da fruta para Adão, a fim de que este
se alimentasse bem e não a censurasse”.
"Vendo tudo isso, ficamos muito satisfeitos. Adão e Eva começavam a assemelhar-se às
pessoas comuns, isto é, aos descendentes dos animais’.
"Sem ter consciência disso, Adão e Eva criaram o hábito de comer a fruta em quantidades
muito maiores do que a necessária. E, de fato, logo começaram a sofrer quando não tinham a
fruta, ou quando achavam que era pouca. E sempre que isso acontecia, tinham dificuldades em
falar da irrealidade das coisas, porque a realidade da fruta falava por si mesma. Caso contrário,
por que não satisfariam suas necessidades com frutas imaginárias? Mas as frutas imaginárias
certamente não os satisfaziam. Precisavam da fruta real, genuína, da terra, exatamente da
mesma maneira que os descendentes dos animais”.
"Foi o começo de nossa vitória”.

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"Uma pequena causa às vezes tem grandes efeitos, e bastou que Adão e Eva, no caso da
fruta, admitissem a realidade da matéria para que a realidade se infiltrasse neles de todas as
direções”.
"Adão e Eva logo compreenderam que lhes faltavam muitas coisas de que precisavam.
Desejavam coisas que não havia ali, e ficavam com raiva quando estas não se materializavam. O
descontentamento com o mundo gradualmente apossou-se deles. Cada vez mais, o sofrimento
passou a fazer parte de suas vidas. Foi então que a alegria absurda, irracional, experimentada
com pequenas coisas - uma flor ou uma borboleta, o sol, a chuva, os ventos, as nuvens, as
tempestades e deus sabe o que mais - que nos deixava tão desgostosos, começou a diminuir e,
no fim, desapareceu quase que totalmente. O sol, agora, queimava-os; a chuva os encharcava; os
trovões lhes davam medo; o vento fazia-os sentir frio, e assim por diante. Ao mesmo tempo, as
alucinações tornaram-se menos freqüentes: o que eles chamavam de mundo do milagroso aos
poucos desapareceu de sua vista. Ficamos muito satisfeitos, porque embora seja certo que tais
mundos milagrosos não existem, as alucinações nos assustavam. Em geral, tudo o que eles
chamavam de mágica desapareceu, e perderam o dom de desaparecer à nossa frente quando
bem queriam. Mas tudo isso foi apenas o começo. As coisas tornaram-se sérias quando
começaram a brigar”.
"Você vê, quando essa tolice das mágicas acabou, a vida dos dois tornou-se maçante,
embora muito tempo se passasse antes de que tomassem consciência disso. O
descontentamento com a vida e com a sua situação começou a extravasar, de tempos em
tempos, como insatisfação mútua. Surgiram mal-entendidos, e um belo dia, finalmente, tiveram
sua primeira briga”.
"Isso aconteceu exatamente como costuma acontecer. Eva zombou de Adão devido à
quantidade de frutas que ele havia comido naquela manhã. Mais do que provavelmente, sua
brincadeira revelou alguns ressentimentos ocultos contra Adão. Talvez não fosse a primeira vez
que implicava assim com ele. De qualquer modo, Adão aborreceu-se, pois sentia a dor da fome da
fruta no estômago, e estava muito descontente consigo mesmo. Respondeu grosseiramente a
Eva. Eva se ofendeu e respondeu em voz alta que não podia tolerar aquele tom de voz, nem
aquele tratamento. Começaram a discutir e em dois minutos a briga estava a todo vapor”.
" 'Você nunca me ouve com atenção, sempre responde antes que eu termine', disse Adão,
quase gritando. 'Deixe-me falar...' ”
" 'Você não fala, você grita. Não quero ouvi-l o , enquanto proceder assim', disse Eva,
muito irritada”.
" 'Ouça-me, você está me interrompendo outra vez. Digo que...’ “
" 'Sim, estou interrompendo você e continuarei a interromper porque você não quer me
ouvir...' “
"E assim por diante", continuou o Diabo.
"Ficaram frente a frente e olharam-se com ódio. Foi então que, pela primeira vez,
perceberam que estavam nus. Isso lhes pareceu terrivelmente mau e vergonhoso, especialmente
a Eva. Correu para a mata e fez uma roupa de folhas. Adão, para mostrar-lhe que estava
ofendido, também fez uma roupa. Após esse incidente, passaram o dia todo sem se falar”.
"Depois disso, tudo se passou como se tivesse sido ensaiado. Começaram a brigar quase
que diariamente e, em pouco tempo, estavam discutindo várias vezes por dia. Quando Adão
queria alguma coisa, Eva invariavelmente queria o oposto. Ela contrariava tudo o que ele dizia,
quase sempre acrescentando observações cáusticas. Começavam discordando e acabavam
gritando e brigando. Eva descobriu muitas deficiências em Adão. Quando ele falava com ela,
tendo esquecido totalmente a briga do dia anterior, Eva dizia exatamente o que pensava dele, e
esse comportamento parecia totalmente irracional a Adão. A princípio, nessas ocasiões, ele ouvia
pacientemente, sem responder. Simplesmente sentava e comia a fruta que Eva, apesar de tudo,
ainda lhe preparava. Mais tarde, porém, alguma observação realmente inoportuna provocava a
sua irritação, e ele começava a responder. Eva ofendia-se com a resposta; Adão levantava a voz;
começavam a falar ao mesmo tempo e a interromper um ao outro, e assim a briga continuava.
Todos os dias havia um acontecimento novo, tornando impossível dizer qual seria o motivo de sua
próxima discussão”.
"Já não havia harmonia em suas vidas. Se Eva queria visitar algum lugar, Adão tinha de
colher a fruta. Se Eva queria que Adão ficasse em casa, ele sempre tinha algum lugar para ir. Eva

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sentia-se magoada porque ele a deixava sozinha e imediatamente se convencia de que Adão
tinha ido ver Lilith, sua primeira mulher, de quem se divorciara quando Deus criou Eva”.
"Bem, eis como a coisa terminou: depois de uma das piores brigas, Eva abandonou a
caverna onde vivia com Adão, jurando nunca mais voltar. Em seguida, mandou a empregada
buscar suas coisas”.
"Empregada?", estranhei.
"Sim, empregada", disse o Diabo. "Adão estava muito irritado, depois teve medo. Pediu
perdão e jurou que nunca mais voltaria a magoar Eva. Mas Eva não voltou. E Adão teve a
impressão de que os macacos que viviam na palmeira em frente da caverna riam dele e gritavam:
'Lá vai Adão, abandonado pela Eva!'.”
"Reconciliaram-se muito tempo depois. Mas você deve entender que as coisas não
voltaram a ser como antes. Já não havia mais magia em suas vidas. Eva culpava Adão por isso.
Adão achava que a culpa era de Eva. Por essa razão começaram a brigar novamente. Eva foi
embora outra vez e assim por diante. Finalmente, Adão arranjou três mulheres ao mesmo tempo,
de uma tribo negra que vivia nas proximidades, e Eva juntou-se com um jovem fauno que tocava a
flauta. Certa manhã, o fauno revelou-se muito bronco e em pouco tempo, a aborreceu, por isso
Eva fez amizade com uma ninfa de um rio da montanha e declarou que todos os homens eram
completamente desinteressantes”.
"Depois disso, caíram totalmente em nosso poder. Adão começou a ganhar a vida com o
suor de seu rosto, mas sempre que possível seguia o exemplo dos descendentes dos animais,
preferindo não ganhar o seu pão, mas tomar o dos outros, ou fazer com que os outros
trabalhassem para ele”.
"Mas, durante muito tempo a lenda do paraíso persistiu entre os descendentes de Adão e
Eva, que afirmaram que seus ancestrais foram expulsos dali devido a um crime. É essa,
realmente, a nossa versão da história, e fizemos várias outras modificações nela, ao mesmo
tempo. Por exemplo, deixamos as pessoas a acreditarem que nós é que somos os descendentes
do Grande Ser, e que o Grande Ser rebelou-se contra Deus. Deformamos os fatos a tal ponto que
poucas pessoas são capazes de descobrir a verdade. É, por isso que, como disse no início de
nossa conversa, é tão difícil para mim explicar-lhe a situação real. Vocês laboram em erro, tanto
por culpa nossa quanto por culpa de vocês mesmos”.
"Os descendentes de Adão cruzaram com os descendentes dos animais a tal ponto que se
tornou muito difícil distingui-los. Conseqüentemente, surgiram muitas situações curiosas e mal-
entendidos. Às vezes, nem nós conseguíamos notar a diferença entre eles. Por exemplo, muitos
diabos compravam almas dos descendentes de Adão, apenas para descobrir que eles não tinham
almas. Isso acontecia porque os descendentes dos animais faziam-se passar por descendentes
de Adão, e até nós éramos enganados."
"Então os descendentes dos animais não têm alma?"
"Claro que não". As almas, como tal, não existem. O que é uma alma? E apenas um nome
coletivo para os diversos fenômenos da vida psicofísica. Por outro lado, a existência de algum tipo
de alma é admitida pelos descendentes de Adão, isto é, os verdadeiros descendentes de Adão.
Eles a consideram como uma herança de família, que passa de uma geração a outra,
sucessivamente. As vezes compramos essas almas, quando são postas à venda. Como vê,
somos colecionadores, e colecionamos coisas que não têm valor nem significado para ninguém,
exceto nós."
Era evidente que o Diabo estava bastante confuso.
“O problema é que essa miscigenação com os descendentes dos animais", disse ele, "é
apenas exterior. Nossa tradição mantém que enquanto os descendentes de Adão conservam suas
almas, podem escapar de nós."
"E isso os amedronta?"
"Oh, sim. Mas nós os amamos! Por isso fazemos todo os esforços para impedir que se
afastem."
"Como fazem isso?"
"Ah, bem, usamos vários métodos diferentes. Primeiramente, é claro, tentamos impedir
que se separem dos descendentes dos animais. Esse é o nosso principal problema."

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"Sem perceber, os descendentes de Adão tentam, todo o tempo, separar-se dos
descendentes dos animais. Lutamos contra essa separação, seja assegurando-lhes que os
descendentes dos animais são seus irmãos e têm almas como as deles, ou, pelo contrário,
convencendo-os de que todos são descendentes dos animais e nenhum deles tem almas. Você
compreendeu nossa idéia, a idéia da igualdade e da fraternidade. Mais do que qualquer outra
coisa, ela desencoraja a separação dos dois grupos. Os descendentes de Adão, porém, são
incapazes de carregar tal peso por muito tempo, e freqüentemente se rendem aos descendentes
dos animais. Conseqüentemente os descendentes dos animais tomaram posse da terra, e os
descendentes de Adão agora lhes prestam serviço."
"Mas por que isso?", perguntei. "Ainda não compreendo."
"Porque os descendentes dos animais são incapazes de viver sem os descendentes de
Adão", explicou o Diabo. "Veja bem, eles não podem fazer nada por conta própria; como os
macacos, tudo o que podem fazer é copiar o que os descendentes de Adão fizeram, ou,
alternativamente, destruir tudo o que aparece em seu caminho. Mas os descendentes de Adão
podem criar e destruir continuamente. Quando lideram, toda a vida os segue. Sem eles, os
descendentes dos animais não teriam ido muito longe. Mas os descendentes de Adão não são
livres, são subordinados aos animais. É por isso que muitas vezes destroem o que eles mesmos
criaram."
"Então os descendentes dos animais sequer são capazes de destruir?".
"Ah, sim, eles destroem", disse o Diabo. "Podem destruir muito bem. Na verdade, podem
até mesmo construir, mas como direi... a partir de um modelo já existente. A questão é que tudo o
que fazem por iniciativa própria, até mesmo a destruição, é medíocre e marcado pela inutilidade,
uma combinação de aborrecimento, apatia e absurdo. Espero que você já tenha visto esse tipo de
trabalho. É por isso que os descendentes de Adão em geral têm muito valor, embora seja
essencial mantê-los firmemente sob controle. Mas os descendentes dos animais não são tão
incapazes quanto costumavam ser no passado”.
"Evoluíram muito durante aquela época, ou seja, desde a morte de Adão. Veja a cultura
contemporânea, as técnicas da engenharia, da indústria e do comércio.”
"Durante esse mesmo período, os descendentes de Adão permaneceram praticamente no
mesmo nível. Você compreende, para eles a evolução não existe. Têm tudo, apenas não sabem
disso, e consideram-se totalmente diferentes do que são. Contudo, quando encontram alguma
coisa da qual na verdade se esqueceram, até isso examinam à luz da evolução. Mas toda essa
ilusão, que se aplica a tudo o que encontram, está em suas mentes”.
"Continuando, os descendentes de Adão têm muitos preconceitos, e uma espécie de
atavismo que os impede de viver no presente. Os descendentes dos animais não têm qualquer
vestígio desse atavismo. Por exemplo, basicamente, os descendentes de Adão não atribuem
qualquer valor às coisas, e dão pouco significado à riqueza material. Não têm bastante
flexibilidade de espírito e de imaginação - qualidades que, por outro lado, são altamente
desenvolvidas entre os descendentes dos animais."
"Flexibilidade ?".
"Sim, claro. Por exemplo, os descendentes de Adão só compreendem de maneira muito
vaga a possibilidade de pensar uma coisa, dizer outra e fazer uma terceira. Seu intelecto não é
capaz de apreender essas idéias, ou ver que uma pessoa pode ter padrões completamente
diferentes para si e para os outros, e dessa forma, por exemplo, permitir e tolerar qualquer ato
seu, ao mesmo tempo que proíbe e condena esse mesmo ato em outra pessoa. Essencialmente,
querem que tudo seja constante, que uma verdade comprovada num caso seja igualmente
verdade em todos os outros casos. Mas os descendentes dos animais acham, com razão, que
isso tornaria a vida muito insípida. Não haveria variedade”.
"Tudo isso evidencia, é claro, uma certa estreiteza mental nos descendentes de Adão.
Devo acrescentar ainda, já que falamos do assunto, que nunca estão satisfeitos com a forma e as
aparências, lutando sempre pela essência, criando com isso muitos problemas desnecessários
para si mesmos. Veja, por exemplo, as questões religiosas. Os descendentes dos animais
também são muito religiosos, mas sua religião não interfere em suas vidas. Sabem adaptá-la para
que sirva ao seu modo de vida. Se fazem alguma coisa particularmente desagradável, dizem
geralmente que estão agindo por motivos religiosos, e que essa é a vontade de Deus”.

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"Quando os descendentes dos animais rezam, sempre pedem a Deus para dar-lhes
alguma coisa, principalmente as coisas que pertencem ao próximo, e que eles cobiçam. Se
encontram uma pessoa que não reza como eles, mas de maneira totalmente diferente, não
consideram indigno de louvor tratá-la com brutal desprezo. Essa tendência teve muitas
conseqüências interessantes e contribuiu muito para animar a história. Os descendentes de Adão
não compreendem nada disto. Não sabem separar a religião da vida e traçar, por assim dizer,
duas linhas paralelas”.
"Os descendentes dos animais entendem perfeitamente que a vida é dura e não tem lugar
para os sentimentos. Compreendem que na vida o poder é o bem, e agem de acordo com isso.
Os descendentes dos animais sempre imaginam que alguém lhes quer tomar aquilo que
consideram sua propriedade. Passam nove décimos de seu tempo - ou às vezes todos os dez
décimos - pensando em como manter intacto o que lhes pertence e em como tomar o que
pertence ao próximo”.
"Os descendentes de Adão sempre cedem a eles, nesse aspecto e em muitos outros. E,
além disso, muitos adotam as fantasias de antigamente, pois ainda conservam algumas
lembranças vagas da vida antes da Queda."
"E vocês ainda acham que essas fantasias são perigosas?".
"Não são perigosas", disse o Diabo, "mas de qualquer modo achamos prudente estar
prevenidos e tomar precauções."
"Mas que precauções tomam? Não compreendo."
"Há várias maneiras", disse o Diabo. "Vou contar-lhe dois casos particularmente
divertidos”.
"Era uma vez um eremita que estudou as várias maneiras de interpretar o mundo, os
ensinamentos religiosos, as doutrinas secretas e outras muito conhecidas, e as obras existentes
na época. Entre estas, encontrou várias representações errôneas, tanto deliberadas quanto não-
intencionais. Descreveu suas investigações num tomo que pretendia publicar”.
"Procurei-o disfarçado de eremita, e disse: " 'Você está escrevendo um livro?' “
" 'Sim', respondeu ele”.
" 'Você quer dizer a verdade às pessoas, toda a verdade, sem qualquer disfarce, tal como
a entende?' “
" 'Sim', disse ele. 'Acredito que esta é a melhor maneira, a verdade tem sido ocultada às
pessoas há muito tempo.' "
“ ‘Entendo a sua posição', disse eu, 'sou da mesma opinião, simpatizo com o seu ponto de
vista, que me parece excepcionalmente nobre e valioso. Por isso, se fosse você, não publicaria o
livro.' “
" 'Por que?', perguntou-me ele, desorientado”.
" 'Porque, meu bom e querido amigo, você ainda não compreende a emoção que vem
sendo seu princípio orientador’. “
" 'Que emoção é essa?', indagou ele.”
" 'Que emoção? Pois eu lhe digo. É o egoísmo! O egoísmo e a luta pela auto-afirmação!' “
"Ele ficou espantado.”
" 'Egoísmo? Mas nunca pensei em mim,' “
" 'Não pensou em você', disse eu sarcasticamente, 'E em quem acha que estava
pensando? Era nos outros que pensava durante todo esse tempo? Você não percebeu que seu
livro destruirá a crença das pessoas, acabará com as suas esperanças e consolo? Não, você não
percebeu nada disso. Mas, pelo que diz, não se trata de egoísmo. Não, meu caro amigo, é a
inteligência nativa comum que fala em você. Você queria mostrar às pessoas a sua verdade. E
onde, em tudo isso, está o seu amor ao próximo? Onde a moral? Onde o senso do dever? Onde o
desejo de ajudar as pessoas, de aliviar os fardos de suas vidas? Você encontrou a sua verdade
por si mesmo; guarde-a, então, para si. Não roube aos outros a verdade deles. Acenda o seu
próprio fogo, sem apagar o dos outros.' E assim por diante.”
"Você não pode acreditar como essas bobagens impressionaram o eremita.”
" 'Que devo fazer?', perguntou ele.”

55
" 'Não pense apenas em você mesmo', disse eu.”
"E dei-lhe muitos conselhos úteis. Conseqüentemente, seu trabalho transformou-se numa
coleção de mentiras; seu livro foi citado, mais tarde, como prova das teorias que ele queria
refutar."

"O outro caso foi ainda mais divertido.”


"Uma grande multidão juntou-se certa vez e resolveu lutar contra o mal. Era uma idéia
muito ingênua, pois as pessoas vêm lutando contra o mal desde o começo dos tempos. Em
conseqüência dessa oposição, o mal cresce e floresce. Por isso, a princípio não lhes demos
importância. Mais tarde, porém, a questão revelou-se mais grave do que imagináramos. Ocorreu
àquela gente uma idéia perigosa. 'Não há necessidade de oposição ativa', disseram eles. 'A
resistência ativa fortalece o mal. Faremos todo o possível apenas para que as pessoas
compreendam o que é o bem e o que é o mal. Vamos explicar a elas em cada um dos casos,
onde está o mal, em que ele consiste e de onde vem!' Você pode imaginar o quanto essa
explicação do mal começou a ter resultados logo sentidos por todos nós. Nossa fraternidade ficou
preocupada. Confiaram-me a solução do problema.”
"Coloquei dois planos em operação. Primeiramente, reuni os descendentes dos animais.
Procurei mostrar-lhes o perigo potencial que representava, para a sociedade, a atividade daqueles
que buscavam combater o mal. Disse muitas palavras bonitas sobre a cultura, a civilização, o bem
comum, a necessidade de sacrifício, etc., etc. A luta contra o mal foi então considerada como um
crime, que enfraquecia e corrompia a humanidade.”
"Em seguida, procurei as pessoas que lutavam contra o mal e me esforcei por ganhar-lhes
a confiança. Finalmente, escolhendo o momento adequado, perguntei: 'A quem vocês servem?'
Ficaram desorientados. 'Estão vendo, vocês mesmos não sabem', disse eu. 'Dizem que estão
lutando contra o mal. Mas como podem acreditar que o mal existe na terra sem a permissão de
Deus? Se o mal existe, obviamente deve ser parte do plano de Deus. Vocês realmente acreditam
que o Ser Supremo não teria condições de acabar com o mal, se assim o desejasse? Vocês
parecem não entender que o mal é um meio de aperfeiçoar a humanidade. O sofrimento é, com
muita freqüência, a única maneira que se tem para compreender as verdades espirituais
superiores. E vocês querem lutar contra ele! Não compreendem que estão lutando contra o plano
do Ser Superior, contra a evolução da humanidade? Além disso, todo mal é relativo. Aquilo que é
um mal num determinado nível de evolução, pode ser um bem numa fase anterior, porque
proporciona o estímulo essencial do desenvolvimento. Mas vocês querem julgar tudo pelos seus
próprios padrões. Atingiram um nível relativamente elevado e por isso consideram um mal aquilo
que combatem. Mas pensem nos outros, os que estão numa fase anterior de desenvolvimento.
Não lhes barrem o caminho do progresso e da evolução!' “
"Se você pudesse ver o efeito que essas palavras tiveram sobre eles! Mergulhados em
profundas reflexões, dispersaram-se. E, em pouco tempo, cada um deles havia escrito um livro no
qual, à sua maneira, provava a inevitabilidade e a necessidade do mal.”
"Esses livros fizeram um grande sucesso. Aos poucos, a luta contra o mal transformou-se
numa justificação do mal. Nem mesmo os autores perceberam o que estava acontecendo. Foi
muito fácil fazer isso, porque a justificação do mal estava, então, longe de constituir um crime. Era,
pelo contrário, considerada como honrosa e digna de estímulo. Acabou chegando ao ponto em
que não havia, literalmente, nenhum mal que os seus antigos adversários não estivessem
dispostos a justificar.”
"Esses dois casos estão entre os mais difíceis. Foi muito mais fácil enfrentar os outros. As
vezes, quando percebia o aparecimento de fantasias perniciosas, eu dizia às pessoas que tais
fantasias constituíam um segredo que não devia ser revelado aos não-iniciados. Isso tem um
efeito maravilhoso sobre as pessoas. Primeiramente, elas começam por se orgulhar de serem
iniciadas e, em seguida, começam a descobrir novos 'segredos', exatamente os segredos que eu
preciso.”
"O amor ao próximo e os segredos são as minhas armas favoritas. Semear as sementes
da falsidade nessas áreas produz uma colheita particularmente rica. Isso é especialmente útil na
batalha contra o misticismo, a tendência mais perigosa a que os filhos de Adão estão sujeitos. É
com base nesse misticismo comum que podem reconhecer uns aos outros. Há uma velha profecia
segundo a qual os descendentes de Adão se unirão numa 'busca mística', dominarão os
descendentes dos animais e governarão o mundo."

56
"E você acha que isso pode acontecer algum dia?"
“Acho que não", disse o Diabo, com desprezo: De qualquer modo, estamos sempre alertas
para impedIr que essas coisas aconteçam.”
"E há também o fato de que todos os descendentes de Adão têm a convicção profunda,
embora tola, de que a sua vida cotidiana é como um sono, e anseiam por despertar e ver algo
completamente diferente."
"E vocês têm medo de que despertem?”, indaguei.
"É claro que essa possibilidade existe", respondeu o Diabo. "E foi aí que comecei. Já lhe
disse quanto trabalho e sacrifício são necessários, da nossa parte, apenas para manter vocês na
terra."
"Não vejo nenhum sacrifício", retorqui.
"Não, você não pode ver. É claro que não pode, porque não lhe mostrei nada, ainda. Os
exemplos que mencionei referem-se a pessoas suscetíveis às mentiras. Mas temos alguns casos
realmente muito difíceis. Para dizer a verdade, a solução em que mais se pode confiar é aquela
que usamos para Adão. Mas esse método exige hoje um trabalho e uma abnegação muito maior.
Era fácil à serpente levar a fruta para Eva. Hoje, precisamos de disfarces muito diferentes. Muitos
de nós tiveram de renunciar a suas vidas para manter algumas pessoas obstinadas na terra.”
"E isso não é tudo. Nosso principal perigo é que, de tempos em tempos, os descendentes
de Adão percebem que são numerosos e começam a encontrar meios de se aproximarem. Esse é
o perigo.”
"Enquanto vivem separados, podemos controlá-los, tal como fizemos com Adão. Mas
quando se juntam, quando as fontes de contaminação se espalham por toda a parte e quando tais
fontes começam a se disseminar e se encontrar, então sentimos o perigo e temos de recorrer a
outros meios, mais poderosos.”
"Gostaria de mostrar-lhe um exemplo notável de abnegação da nossa parte. Vocês,
homens, são incapazes de qualquer coisa semelhante."

O Diabo estendeu a mão. A muralha de rocha à minha direita partiu-se e banhou-se de


uma luz vespertina. Vi uma rua em Colombo, próximo do parque Vitória. Havia jardins por todo
lado com caramanchões baixos, ou parapeitos de pedra. Só aqui e ali viam-se os telhados
distantes e as varandas das casas. Arvores em flor, as pohutakawas com suas grandes flores
vermelhas, e muitas árvores das mais variadas cores - azul-claro, amarelo ou cor de malva -; a
terra cor-de-rosa, peculiar do Ceilão; os cruzamentos de ruas, marcados pelas grandes figueiras
de Bengala, enormes se comparadas às outras árvores; e os bambus grossos e amarelos, com
folhas escuras. Essa parte de Colombo é uma verdadeira cidade-jardim.
No meio da rua, um riquixá negro passava. Nele ia sentado um homem de terno branco e
chapéu de sol de abas largas, do tipo comumente usado no Ceilão. Reconheci nele um
conhecido, um jovem inglês chamado Leslie White.
Encontrara-o alguns meses antes, no sul do Ceilão, numa solenidade num mosteiro
budista, depois da qual permanecemos longo tempo na cela de um erudito bikkhu, discutindo
budismo. Leslie White era, sob muitos aspectos, diferente do inglês de classe média que vive nas
colônias. Faltava-lhe totalmente o esnobismo absurdo dos funcionários públicos coloniais; cuidava
de seus múltiplos interesses com zelo e sinceridade; nunca adotava o tom de zombeteira
indiferença para com tudo no mundo, que não fosse o esporte - o esporte é a única coisa que,
supostamente, se deve levar a sério. E não escondia sua simpatia para com os nativos. Para isso
era necessária uma grande independência, num país onde um pequeno funcionário de um banco
tem vergonha de ser visto conversando em público com um brâmane.
Vivia no Ceilão há dois anos e trabalhava com o governador. Estudava as línguas locais e,
arriscando tanto a sua reputação pessoal como seu emprego, tinha muitos amigos cingaleses e
tâmules. Tratava muito friamente a sociedade inglesa local e poucas vezes era visto nela. Lia
muito, estudava as religiões e a arte indianas; compreendia muitas coisas do Oriente, com o qual
muito temos a aprender, e refletia sobre a significação que as idéias orientais poderiam ter para o
Ocidente. Tínhamos encontros freqüentes e falávamos desses assuntos. Sua companhia me era
agradável, pois, embora tão instruído, não tinha nada de pedante. Gostava de cavalos e do mar, e
possuía um catamarã, um barco comprido, no qual saía para o mar com pescadores nativos,
desaparecendo, em algumas ocasiões, por vários dias.

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Para ele, o trabalho era apenas um mal inevitável. Já o haviam classificado como uma
pessoa que não iria longe no serviço público e que estaria melhor num cargo de professor. No
todo, contrastava acentuadamente com os heróis de Kipling, e para mim parecia representar um
novo tipo de inglês na Índia, nascido depois de Kipling e ainda muito raro.
O riquixá parou junto de um caramanchão, além do qual mal se podia ver um bangalô de
dois andares. Agora eu sabia quem Leslie ia visitar: um indiano de língua tâmul morava ali. Era
rico e conhecido em todo o Ceilão, e eu o encontrara meses antes, às vésperas de partir.
Lembrei-me ter escrito a Leslie sobre ele.
Esse indiano era um homem velho e culto, no sentido europeu. Disse-me muitas coisas
interessantes sobre os iogues e a ioga. Conversando com ele, eu tinha sempre a impressão de
que sabia muito mais do que dizia. Conheci-o em circunstâncias muito peculiares e em nosso
primeiro encontro não consegui entendê-lo devidamente. Em pouco tempo, porém, convenci-me
de que era a única pessoa que podia me ajudar a descobrir a verdadeira e milagrosa Índia.
Desejava muito que Leslie o conhecesse e conversasse com ele. Já se haviam encontrado
antes, mas apenas em ocasiões oficiais. Deduzi, então, que Leslie seguira meu conselho, e o
visitava em sua casa.
O rapaz do riquixá afastou-se trotando do portão do jardim e Leslie caminhou entre os
canteiros até a casa de varanda grande. Foi recebido, inicialmente por dois criados de turbantes
brancos, e em seguida foi conduzido para o interior da casa pelo seu anfitrião, que vestia um
casaco de tussor europeu.
Depois de alguns minutos, sentaram-se e começaram a conversar.
"A ioga, e tudo o que se relaciona com ela, há muito me interessam. Li tudo o que me foi
possível sobre o assunto", disse Leslie. "Parece-me que a ioga pode responder a muitas de
nossas perguntas. Gostaria muito de ver os seus resultados práticos, de modo a convencer-me de
que ela é mais do que uma simples teoria.”
"Compreendo a idéia básica", continuou ele. "Para praticar a ioga, um indivíduo deve viver
toda a sua vida de acordo com o que decidiu fazer dela: o músico, o comerciante, o soldado, cada
um deve viver, comer e respirar de maneira diferente. Isso fará com que seu trabalho se torne da
mais alta qualidade e, como tal, será para ele um meio de purificação espiritual. A um europeu
parece absurdo que se quero estudar filosofia, devo alimentar-me de maneira especial. Mas
compreendo isso. Tal como a vejo, a ioga tem como objetivo supremo a erradicação da discórdia
e a superação do abismo entre os lados ideológico e prático da vida, subordinando às idéias tudo
o que for material. Compreendo isso teoricamente, mas quero saber se, de fato, a ioga
proporciona os resultados milagrosos que lhe são atribuídos."
"O senhor compreende perfeitamente a essência básica da ioga", respondeu o indiano. "A
ioga é precisamente a sujeição da vida ao jugo das idéias. O senhor sabe que a palavra ioga vem
do sânscrito Joga, que dá a idéia de jungir, unir.”
"Sim", respondeu Leslie. "Sei disso. E acho que é interessante e de grande importância
que o Ocidente compreenda a necessidade de unir todas as coisas triviais da vida com as mais
altas aspirações ideológicas, de modo que nada permaneça isolado, nem seja supérfluo.
Compreendo que para um iogue cada passo e cada respiração é uma prece que o aproxima cada
vez mais do ideal. E temos aí a principal diferença entre o Oriente e o Ocidente. Construímos
nosso ideal separadamente da vida, e a vida, separadamente do ideal. Aceitamos uma realidade
pequena, insignificante, vulgar e, muitas vezes, revoltante e brutal, mas nos consolamos com a
beleza de nossos ideais.”
"A ioga, ao contrário, quer que todo minuto da vida esteja impregnado do ideal, e a ele
sirva. Compreendo tudo isso, mas diga-me, foram obtidos resultados concretos pela ioga, ou tudo
o que se afirma não passa de histórias de viajantes que visitaram a Índia? Compreenda-me: quero
saber se todos os fatos milagrosos que li nos livros sobre ioga realmente ocorreram - clarividência,
segunda visão, leitura dos pensamentos, telepatia, conhecimento do futuro, e outros. Muitas vezes
acordo à noite (de repente, senti que Leslie falava do fundo do coração) e penso: pode ser
realmente verdade que algumas pessoas tenham realizado algo milagroso? Deixaria tudo para
seguir essa pessoa. Mas tenho de estar seguro de que é assim realmente. Compreenda-me, por
favor: não posso mais acreditar apenas em palavras. Muitas vezes fui enganado por elas, e já não
posso enganar-me, nem o quero. Diga-me, então, há pessoas que alcançaram algo? E o que foi
que alcançaram? Eu poderia chegar aos mesmos resultados? Como?"

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Leslie calou-se e vi que o indiano o olhava com um sorriso tranqüilo e afetuoso, como se
ele fosse uma criança.
"Sim, há pessoas que alcançaram essas coisas", disse ele lentamente. "E o senhor pode
vê-Ias. Se me procura e me diz que é esse o seu desejo, o senhor as verá. Mas deve
compreender que isso não pode ser feito imediatamente, em um dia. Se de fato quer aprender, eu
lhe direi: Amigo, vem viver comigo e tente compreender nossos pensamentos, tente aprender a
pensar de uma nova maneira. Para aprender com um mestre, é necessário compreendê-lo. Isso
exige uma longa preparação. Enquanto isso, vou localizar o paradeiro de um mestre que conheço.
Não usamos o correio, nem o telégrafo. Dentro de duas semanas, um homem viajará para a Índia,
para Puri. Ali, no templo, indagará onde o mestre pode ser encontrado, e talvez encontre alguém
que o conheça e possa informar a esse mestre que gostaria de vê-lo. Depois, da mesma maneira,
por meio de alguma outra pessoa, o mestre nos dirá quando virá aqui, ou onde devemos ir
encontrá-lo. As vezes ele mora no campo, perto de uma pequena aldeia junto da selva, ou nas
montanhas; outras vezes, pode-se encontrá-lo num dos grandes templos de Madrasta ou Tandur,
ou em algum outro lugar. Mas é necessário esperar pacientemente. O discípulo deve permanecer
à porta e esperar até que o mestre o chame. Poderia ser amanhã, poderia ser dentro de um mês,
ou de um ano."
Vi que Leslie ouvia atentamente, mas não parecia satisfeito com as palavras do indiano.
"E esse mestre alcançou todas as coisas de que falam os livros?"
O indiano sorriu novamente.
"O que, segundo o senhor, ele deveria ter alcançado? O senhor mesmo admite, e
concorda, que o objetivo da ioga é a sujeição da vida a um ideal. Não será isso uma realização
em si, um objetivo a ser alcançado, se cada minuto da vida de uma pessoa estiver sujeito à busca
de um significado maior? Não é uma realização o fato de se estar livre das contradições interiores
que compõem toda a nossa vida? Não é uma realização atingir a paz, o silêncio e a calma
interiores que reinam na alma de um mestre? E já que o senhor fala de forças psíquicas
sobrenaturais, um mestre as possui, embora não lhes atribua nenhuma significação. É possível
que ele julgue conveniente mostrar-lhe os seus poderes, mas o amigo não pode exigir que ele o
faça, não pode impor uma condição. O próprio mestre decide o que o senhor precisa. E o senhor
deve confiar nele."
Pude perceber um grande conflito na alma de Leslie. Sentia-se atraído por seu anfitrião,
gostava dele. Queria acreditar nele, mas ao mesmo tempo seu espírito europeu não podia
concordar com o que o indiano dizia, nem com a sua maneira de dizê-lo.
"O senhor diz que está preparado para abandonar tudo", continuou o indiano. "Mas isso
não é absolutamente necessário. Pelo contrário, muitas vezes é mais importante continuar a vida
de sempre e submeter essa vida ao nosso objetivo superior. Olhe para mim. O senhor me
conhece. Ocupo-me de política e negócios, vivo como um pai de família. Não abandonei nada.
Retirar-se para o deserto é, freqüentemente, o caminho mais fácil, mas nem sempre se deve fazer
o que é mais fácil. Às vezes é necessário trilhar o caminho mais difícil. Mais tarde o mestre lhe
dirá o que deve fazer. Só posso dizer uma coisa: aprenda a pensar de uma nova maneira.
Enquanto desconhecer a maneira certa de pensar, sempre lhe parecerá que minhas palavras
omitem alguma coisa de importante."
"Apenas gostaria de ver a realidade", disse Leslie. "Quando a tiver visto, será fácil aceitar
todo o resto, e farei tudo o que disserem. Compreenda-me: minha consciência intelectual não me
permite aceitar, sem prova, a existência de fatos objetivos. Para aceitá-los como fatos, preciso vê-
los."
O velho indiano sorriu uma vez mais.
"Se seguir a ioga", disse ele, "toda uma série de modificações começarão a ocorrer em sua
alma. Primeiramente, começará a descobrir uma sucessão de valores novos e diferentes. E
juntamente com o aparecimento desses valores novos, os antigos começarão a perder
importância e a desaparecer. E então, talvez, aquilo que hoje considera mais importante parecerá
sem importância alguma. Isso não pode ser explicado em palavras, só se pode sentir. Somente
aquele que viveu essas comoções internas me compreenderá. Na verdade, todos passam por
alguma experiência semelhante, na passagem da infância para a idade adulta. Para as crianças,
os brinquedos, os jogos, a atividade escolar, a opinião dos professores, tudo isso parece muito
importante. E pense em como tudo isso é insignificante para o jovem que perdeu seu coração

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para uma mulher. Nesses momentos, ele rejeita os companheiros, pois suas conversas lhe
parecem ridículas. Do mesmo modo, na alma de um iogue floresce um amor novo, e todos os
valores da vida comum parecem-lhe brinquedos de criança. Assim se passará com os fatos que o
senhor busca, pois podem acabar não lhe parecendo tão importantes.
"Pode ser", disse Leslie. "Mas por que, então, falar constantemente desses fatos, por que
mencioná-los e edificar tudo sobre eles? Não se podem mencionar fatos que não foram
comprovados. "
"Se o senhor fala dessa maneira, é porque não compreende", disse o indiano. "Aquele que
compreende fala de outras coisas, da vida interior, e não da exterior. No início, o senhor estava no
caminho certo. É necessário acabar com o conflito entre a vida das idéias e a vida cotidiana. Para
isso é necessário que o senhor se conheça. Saber, a cada momento, o que está fazendo, e por
quê. Só então será senhor das coisas, e não escravo delas. Em geral, satisfazem- se os desejos
antes de se pensar se são necessários ou não para os objetivos superiores. Procure viver de
maneira a manter-se vigilante quanto às suas ações e não fazer nada que não sirva aos
propósitos mais elevados. Ou, em outras palavras, aprenda a fazer tudo de modo a servir a um
propósito superior. Isso é possível. Se alguma coisa for particularmente difícil, considere-a como
um exercício. Lembre-se, tudo o que é difícil de ser feito tem o objetivo de sujeitar-nos ao espírito.
Assim, tudo se tornará mais fácil e terá um significado. Mas, não importa o que estejamos
fazendo, é de importância vital perguntar, antes de cada pensamento, de cada palavra, de cada
ato: Por que faço isso? É necessário? E então, imperceptivelmente, muitas de nossas ações e
atos deixarão de ser desnecessários e passarão a servir a fins superiores. O conflito interno em
nossa vida começará a desaparecer e será substituído pela harmonia. Aprenda então a repousar:
isto, talvez, é o mais importante. Aprenda a não pensar, a controlar seus pensamentos. Pergunte-
se com freqüência se é necessário pensar no que está pensando, ou se não seria melhor pensar
sobre alguma outra coisa, ou, melhor ainda, não pensar em nada? Isso é o mais difícil, mas é
essencial. Aprenda a pensar e não pensar. Saiba como parar os pensamentos. Seja capaz de
criar um silêncio interior. Chegará o momento em que ouvirá a voz do silêncio. Essa é a primeira e
mais importante ioga. Quando ocorrer, quando começar a ouvir a voz do silêncio, então essas
novas forças e capacidades de que o senhor fala começarão a aparecer. A princípio, serão vagas
e imprecisas; mais tarde, porém, tornarão tão obedientes à sua vontade quanto o olhar, a audição
e o tato. Mas tudo deve ser aceito calmamente, sem pressa, sem forçar a atenção sobre o
progresso interior - a atenção pode impedir o desenvolvimento de novas capacidades. Então será
necessário aprender a ver cada objeto como um todo. Compreende o que isso significa?
Normalmente, vemos apenas as partes de uma coisa, seja apenas o começo, sem qualquer
continuação, e o fim; ou o meio, ou o fim. Procure sempre ver tudo como um todo. Para chegar a
esse ponto, comece a pensar em tudo ao inverso; não tome o princípio sem o fim. E começará
então a ver muito mais nas coisas do que vê hoje. O que é a clarividência? Agora estamos
sentados na varanda e vemos uma parte do jardim. Se o senhor quiser ver todo o jardim, tem de
subir ao andar superior. Se subir ainda mais, verá toda a cidade. O clarividente é aquele que pode
ver mais do que os outros. Para ver mais, é preciso subir mais alto. Esse é todo o segredo."
"Mas o que significa subir mais alto?", perguntou Leslie. "Parece-me que isso é possível
em certas ocasiões, mas não em outras. E em que sentido é usada a palavra ascensão? No
sentido de meditação abstrata sobre os objetos, ou sobre outros tipos de coisas? E qual será o
resultado? Levará a qualquer tipo de novos poderes? E mais uma vez a mesma pergunta: há
alguém que possui esses poderes? Não posso acreditar que eu seria o primeiro!"
"O senhor não será o primeiro", disse o indiano. "Mas para realizar isso deve compreender
antes de tudo, a que distância está hoje dessa meta. O senhor é como uma criança que chora
porque o pai não lhe permite montar um fogoso cavalo, nem lhe dá um revólver, nem seu sabre
pesado. A criança deve crescer primeiro, para então ter tudo isso. E, de qualquer modo, no
momento ela não poderia fazer uso dessas coisas. Não agüentaria erguer o revólver nem a
espada, e o cavalo a atiraria imediatamente ao chão. É preciso, primeiro, sermos senhores
daquilo que já possuímos, para depois tentar coisas maiores. Analise o seu dia. Estará destinando
grande parte de seu tempo à busca de coisas mais elevadas? Procure indagar-se, a cada hora, o
que fez durante essa hora. Os iogues se perguntam isso a cada instante. A prática constante é
necessária para se adquirir o autocontrole. No momento, toda a sua vida consiste em
compromissos, de um tipo ou de outro. Como espera desenvolver, assim, o seu poder de
resistência?”
"O senhor provavelmente pratica esportes?"

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Leslie assentiu com um movimento de cabeça.
"Qual o seu esporte predileto? Futebol, críquete?"
"Pólo", respondeu Leslie.
"Muito bem então, pólo. O senhor certamente compreende a necessidade de treinar para
jogar pólo. É, igualmente necessário treinar tanto o cavalo quanto o cavaleiro. Ambos precisam de
exercício diário. Imagine que durante três meses deixa de montar o seu cavalo e passa as noites
num clube, jogando cartas. Seu cavalo é deixado nas cocheiras por três meses e o moço do
estábulo, desleixado, sequer se dá ao trabalho de exercitá-lo diariamente. E imagine participar de
um grande jogo. Que resultado obterá? Terá qualquer chance de ganhar? Sabe muito bem que
não há nenhuma possibilidade. O senhor não terá forças, nem habilidade, nem resistência. Seu
cavalo não lhe obedecerá. Ficará cansado logo no início do jogo e o senhor se cansará ainda
antes dele. Visto que o senhor sabe, pela sua experiência, que isso ocorre no pólo, por que não
admitirá que o mesmo se passa com sua alma? Ela se tem de habituar aos poucos à nova ordem
de idéias, ao novo plano de vida. E quando o senhor começar a realizar alguma coisa, então,
juntamente com o florescimento de poderes novos na sua alma, começará a observar que não
está sozinho em seu caminho. Embora à sua volta a noite seja escura, por toda a parte, na
estrada, o senhor começará a ver luzes, e compreenderá que são os viajantes que caminham na
mesma direção, para o mesmo templo, a mesma festa."
Leslie continuava ouvindo e pude ver que, apesar da grande quantidade de metáforas
orientais, em geral intragáveis para um europeu, o conteúdo principal do que o indiano dizia
correspondia, e muito, ao que ele próprio vinha pensando. Quase tudo o que ouvia, Leslie já havia
lido ou ouvido antes. Contudo, seu anfitrião dava-lhe a impressão de uma pessoa que sabia. Com
o bom senso frio de um inglês, Leslie percebeu a essência do que o velho indiano lhe dizia. E vi
que em seu coração nascia uma decisão firme e clara, juntamente com a simpatia e a gratidão
espontânea ao indiano.
"O que devo fazer para seguir esse caminho?", perguntou. "Até agora, não vejo nada que
possa me desencorajar."
"Comece observando a si mesmo", disse o indiano. "Tente limitar-se, mesmo que seja
apenas uma questão de eliminar as coisas de que não precisa, mas que consomem a maior parte
do seu tempo e energia. Procure compreender que está muito distante do começo do caminho. E
em pouco tempo, à distância, começará a ver o caminho.”
As imagens mudavam diante dos meus olhos. Leslie viajava novamente no riquixá,
repetindo para si mesmo as palavras do indiano e tentando entendê-las. Durante sua conversa
com o velho, havia levantado objeções, mas na verdade tudo o que ouvira impressionava-o muito
mais do que deixara transparecer.
Isso me interessava muito. Leslie era uma pessoa persistente. Sentia que se ele tomasse
uma resolução, não faria concessões. Ocorreu-me que se fosse possível realizar alguma coisa
através da ioga, ele a realizaria. Tinha um grande espírito de aventura e a coragem de um
pioneiro, sempre abrindo novos caminhos. Havia nele uma chama que não lhe permitia contentar-
se com uma vida pacífica, num lugar civilizado. Era o tipo de homem que descobre novas regiões.
O riquixá rodava entre os jardins escuros. Leslie, sentado no carro, segurava o chapéu de
cortiça sobre os joelhos. Por mais estranho que pareça, não estava sozinho. A esquerda do
riquixá corria uma pequena criatura. Olhando fixamente, percebi que se tratava de um pequeno
diabo. Era baixinho, com uma barriga grande sobre pernas desproporcionalmente finas, e suas
feições simpáticas tinham uma aparência chinesa. A única coisa estranha em seu rosto, eram os
lábios finos e hostis, que umedecia constantemente com a língua comprida. Tinha pequenos
chifres na testa e em seus olhinhos amarelos e argutos brilhavam a esperteza. E um pensamento
secreto. Corria depressa, a passos curtos, mas sem esforço, como se isso não fosse problema
para ele. Com um sorriso maroto, às vezes, segurava a alça fina do veículo, como se quisesse
dificultar o trabalho do negro que o puxava. Pelo menos duas vezes meteu-se entre as pernas do
rapaz, fazendo-o tropeçar e quase cair. E quando Leslie chegou à estação, notei que o rapaz
estava molhado de suor e respirava com dificuldade, como se tivesse corrido sob o sol.
"Veja", disse-me o Diabo. "Aquele pequenino ali recebeu a tarefa de vigiar Leslie para
impedí-lo de fazer muitas loucuras."
"De onde ele vem?", perguntei. "Como e o que pode impedir?"

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"Como impedirá é problema dele", disse o Diabo. "E o que deve impedir, você mesmo
pode imaginar. Achamos que a ioga está brincando com fogo. Aquele que se deixa levar por ela
perde contato com a terra. O perigo é muito maior do que você pensa. Essas idéias idiotas se
espalham, e às vezes temos de recorrer a medidas extremas. Veja esse Leslie White. Você tem
razão. Se ele tomar uma resolução, não a abandonará. É aí que está o perigo. E é por isso que
esse pequeno diabo o está acompanhando. É um diabrete muito esperto e bom. Ama as pessoas
de maneira autêntica e sincera. Nem mesmo eu o compreendo muito bem. Ao mesmo tempo,
concordo que nesse caso específico ele realizará mais do que eu o faria. As vezes só podemos
influenciar pela bondade. Mas veja o que está acontecendo agora."
O trem chegava. Leslie entrou no vagão da primeira classe e o trem voltou a correr ao
longo da costa. Conhecia bem esse lugar. Leslie ia da cidade para o hotel onde se hospedava. O
hotel ficava na praia, num promontório rochoso, cercado pelas águas por três lados. De ambos os
lados do hotel, para o norte na direção de Colombo, e para o sul, estendem-se praias arenosas
pontilhadas de coqueiros e pequenas aldeias de pesca.
Leslie chegou ao hotel e foi diretamente para seu quarto, que dava para o mar, e preparou-
se para o jantar. O criado negro já havia separado sua camisa, o colarinho e o smoking. Ao olhar
para aquelas roupas, porém, Leslie sentiu a monotonia que o esperava, as mesmas pessoas e as
mesmas conversas.
"Por que preciso jantar?", perguntou a si mesmo. "Estou com fome ou estou com tão
pouca energia assim?"
Esse pensamento o fez rir.
"O velho tinha razão", continuou a pensar. "Que incrível quantidade de tempo
desperdiçamos em coisas totalmente desnecessárias. Se as pessoas pudessem observar-se,
mesmo que fosse por poucos instantes, quanto tempo e energia poderiam economizar, ao invés
de despendê-los em tantas coisas desnecessárias."
Sobre a mesa havia livros que ele recebera ainda naquela manhã. Leslie sabia, por
experiência, que depois do jantar desejaria dormir. Agora, porém, queria ler, pensar.
Tocou a campainha.
"Não vou jantar", disse ao rapaz que o atendeu. "Traga-me um uísque pequeno e uma
soda grande, dois limões e mais um pouco de gelo."
Sentindo um alívio imenso, tomou um banho e vestiu o pijama.
O criado trouxe uma garrafa de soda, gelo num copo, dois pequenos limões cingaleses do
tamanho de castanhas e um pouco de uísque no fundo de um copo alto. Colocou tudo isso na
mesa e, silenciosamente, estendeu um papel e um lápis a Leslie. Era o ritual habitual: era preciso
preencher a papeleta de controle.
Espremeu os dois limões no copo, juntou o gelo, um pouco de uísque, água, bebeu um
gole, acendeu o cachimbo enegrecido pelo uso e sentou-se à mesa, numa confortável poltrona de
vime, pegou um de seus livros novos e uma faca de cortar papel e abriu as páginas do volume.
Em sua cabeça, porém, ainda permanecia a conversa com o indiano.

Percebi, de repente, a presença do diabrete. Tinha uma expressão de constrangimento e


espanto. Caminhava pelo quarto, bamboleando ridiculamente sobre as pernas curtas e finas,
passando a língua pelos lábios estreitos e salientes, evidentemente procurando Leslie. Era um
espetáculo muito estranho. Havia perdido Leslie e não conseguia encontrá-lo. Várias vezes
chegou até a mesa onde Leslie estava sentado. Parecia uma pessoa hipnotizada, a quem se
disse que não poderá ver o amigo que está a seu lado. Lá estava ele, andando sem saber o que
fazer, chegando mesmo a esbarrar no joelho de Leslie mas, desorientado, continuava a andar. Ele
percebia claramente que havia alguma coisa de errado, mas não compreendia o quê.
Sim, sem dúvida era um fenômeno muito curioso. Mais do que qualquer outra coisa, isso
me mostrava a relação real entre o diabo e o homem, a verdadeira natureza do diabo e seu medo
de perder o homem. Evidentemente, embora o meu diabo não o dissesse, isso acontecia com
freqüência muito maior do que eles desejavam.
A princípio, pensei que o desaparecimento de Leslie tinha alguma relação com o livro que
estava lendo, e olhei por cima de seu ombro. Conhecia o livro, e até mesmo o autor, cujas
opiniões me pareceram sempre bastante estreitas. Mas quando olhei para Leslie, compreendi que

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a chave não estava no livro, mas no modo como ele o lia. Todo o seu ser estava mergulhado no
mundo das idéias, a realidade material não existia para ele.
Então esse é o segredo, pensei, Fugir da realidade significa fugir do diabo, tornar-se
invisível a ele. Isso é excelente, pois significa, ao contrário, que as pessoas da realidade insípida,
do cotidiano prático - em geral, todas as pessoas comuns e sóbrias - pertencem de forma absoluta
e completa ao diabo. Para ser franco, fiquei muito satisfeito com a descoberta.
O pobre diabrete, aparentemente desesperado para encontrar Leslie, sentou-se sobre as
pernas, em um canto junto à porta, Observando-o atentamente, vi que chorava, limpando as
lágrimas com o pequeno punho, aparentemente sentindo-se muito deprimido. Estudando-o,
compreendi que sofria de fato e que seu sofrimento não era apenas egoísta. Estava realmente
preocupado com Leslie, que desaparecera subitamente e estava em algum lugar que não podia
imaginar. Era como se uma mulher tola se tivesse apaixonado por Leslie e fosse incapaz de
compreender seus pensamentos e interesses: ela sofreria daquela maneira e haveria momentos
em que também não o poderia encontrar, e se sentaria num canto para chorar.
Por alguma razão desconhecida, imagens muito vivas de uma relação semelhante me
vieram à mente. O Leslie que conheci era jovem, cheio de vida, de esperanças e perspectivas, E a
mulher era feia, nada inteligente e desinteressante. Tanto social como intelectualmente era muito
inferior a Leslie. Ele nunca quis ser visto com ela, nem apresentá-la a alguém, nem mesmo falar
dela. Trata-se, provavelmente, de uma eurasiana, e certamente tem um passado duvidoso, E
possível que pertencesse, nas palavras de Kipling, à "mais antiga profissão", Onde Leslie a
conheceu, como se envolveu com ela e por que não a pode deixar, é segredo seu, Seguramente,
há algo de muito desagradável em tudo isso, Ele tem de escondê-la. Será o fim da carreira e das
perspectivas de Leslie White se a existência dessa mulher se tornar conhecida. Ele não será mais
recebido em parte alguma, terá de deixar o serviço público e ir embora; será, de um só golpe, um
homem arruinado. A mulher sabe disso e, contudo, tenta a todo custo mantê-lo em seu laço. E
consegue, exceto naqueles momentos em que Leslie lhe escapa. Por quê? Para que Leslie a
mantém? Qual o domínio que ela tem sobre ele? Por que um homem forte e inteligente como
Leslie não expulsa esse lixo de sua vida? É incompreensível. Provavelmente, há alguma coisa
nela de que ele precisa. Provavelmente, ela desperta nele alguma força sombria. Essas mulheres
só podem manter controle sobre um homem apelando para os seus instintos mais baixos.
Meus pensamentos me surpreenderam. Como adivinhara que esse diabrete era uma
mulher?
Olhando ao redor, compreendi que de alguma forma estava em dois lugares ao mesmo
tempo - no quarto de Leslie e no templo de Kailas.
"É possível que haja alguma verdade no que eu estava pensando?", perguntei ao Diabo.
"Muito mais do que você imagina", respondeu ele. "Não é apenas uma metáfora dizer que
o diabo o ama como uma mulher. Você adivinhou o que talvez seja o aspecto mais importante de
nossa relação com os homens. Já disse que é muito difícil para mim explicar completamente a
essência e as características das relações entre os diabos e as pessoas. Há coisas que você terá
de entender por si mesmo.”
"Basicamente, não temos sexo, mas como representamos o aspecto inverso de vocês, seu
sexo sempre se reflete em nós, mas torna-se o oposto. Entendeu? Esse diabrete não é uma
mulher. Mas em relação a Leslie surgem nele traços femininos, porque Leslie é um homem. Se
fosse uma mulher, surgiriam traços masculinos."
"Isso significa que cada um de nós tem uma dessas 'elas', e que cada mulher tem um
desses 'eles'?", perguntei.
"Não necessariamente, mas é muito provável que sim", respondeu o Diabo. "Agora você
compreende porque a história de Adão e Eva e seu 'amor' nos perturbou tanto", continuou ele com
um ar de desprezo. "Tínhamos ciúmes deles. Alguns diabos tinham ciúmes de Adão por causa de
Eva, outros de Eva, por causa de Adão, e outros ainda - como eu - que se sentem igualmente
masculinos e femininos, tinham ciúmes dos dois ao mesmo tempo. Agora você pode
compreender, mas se eu tivesse dito tudo de uma só vez, não teria entendido nada. O sexo tem
um papel muito grande em nossas relações com as pessoas; além do mais, a maioria das
pessoas se deixa influenciar muito mais facilmente, quando se usa o sexo."

63
"Há alguma coisa que não compreendo absolutamente", disse eu. "Antes você disse que
não pode ver as pessoas experimentarem as emoções do amor. E agora diz que é a maneira mais
fácil de influenciá-las. Qual é a verdade?"
"Ambas", disse o Diabo sem se desconcertar. "As emoções do sexo nos provocam aversão
e nos afastam quando dão origem aos chamados sentimentos românticos. É nisso que está o mal
principal. Não poupamos energia nessa luta, mas nada podemos fazer. Esses sentimentos
românticos cercam a pessoa como um muro e a perdemos completamente, até que o romance
termine. E pior ainda, é claro, é a ligação do sexo com o místico: aquele senso do milagroso de
que tanto se falou, e sentimentos de imortalidade. Essas sensações afastam as pessoas
totalmente de nós e as tornam inacessíveis à nossa influência. Por outro lado, a mesma emoção
do sexo pode ser benéfica do nosso ponto de vista: quando ligada até mesmo ao mais leve
sentimento de aversão, a um sentimento de culpa e vergonha, à furtividade e a um sentimento de
maldade, é exatamente o que precisamos. Você vê, a mesma emoção pode manifestar-se de
maneiras diferentes nas diferentes pessoas. Pode ser a nosso favor, ou contra nós. Só aqueles
que têm a capacidade para o romance, ou sentimentos românticos, ou que experimentam uma
sensação de maravilha na emoção do sexo [o Diabo pronunciou essas palavras com uma irritação
mal disfarçada], são totalmente inacessíveis a nós. Felizmente, isso acontece muito raramente. A
maioria das pessoas, homens e mulheres, considera tais coisas de maneira muito realista, sem
qualquer idéia romântica. É muito fácil para nós lidar com essas pessoas. Esse Leslie White foi
um dos casos difíceis. Mas ele é inglês, e, portanto, há tanto preconceito e hipocrisia cercando
suas atitudes em relação ao sexo que, sem dúvida, é possível encontrar nisso uma linha de
ataque. Há muita coisa nele mesmo que lhe provoca medo, muita coisa na qual não acredita. Ao
mesmo tempo, sente-se culpado, e para justificar-se aos seus próprios olhos tenta reduzir tudo
isso ao mais baixo nível material. É ali que o apanhamos. E além de tudo isso, você se lembra do
que eu lhe disse sobre o 'brinquedo'? Enquanto as pessoas acreditarem que na experiência do
sexo a esfera dos fatos não é real, que a realidade está em alguma outra coisa, são inacessíveis
para nós. Mas assim que começam a encarar o sexo com seriedade - tomando-se,
conseqüentemente, medrosas e ciumentas - começam a odiar e a sofrer; aí então são nossas. Há
emoções de ordem material através das quais as pessoas se tornam acessíveis ao nosso poder.
Essas emoções são provocadas mais facilmente pelo sexo."
Voltei os olhos novamente para o quarto de Leslie. O criado havia trazido um pouco mais
de uísque e soda, e Leslie já estava cortando e virando as páginas do terceiro livro. O pequeno
diabo parecia estar desesperado para encontrá-lo, e sentado no canto, muito deprimido, buscava
ansiosamente uma solução. Deitou-se no chão, esticou-se como um sapo até tornar-se tão
achatado como uma folha de papel e, apoiando-se nas mãos e nos pés, arrastou-se por baixo da
porta.
Fiquei curioso para saber onde iria, agora. Levantando-se, o diabrete sacudiu-se, inchou
com um balão de gás e correu pelas escadas abaixo. Comecei a observá-lo, deixando Leslie de
lado momentaneamente. Atravessou uma porta fechada que dava para a praia e, gingando de um
lado para outro, começou a caminhar pela areia. Uma onda escura recuava, deixando atrás de si
uma linha de espuma branca. A noite era quente e escura, quase aveludada. As estrelas
brilhavam, e entre as palmeiras, como estrelas cadentes, os pirilampos esvoaçavam. Mas o
pequeno diabo não atentou para nada disso, pois de repente assumiu o ar de um pedinte de
coisas velhas, de um pequeno ambulante pensando na possibilidade de algum golpe barato na
praia, sob as palmeiras. Que relação ele tinha com as palmeiras? Sem dúvida, era impossível
cortá-las e vendê-las, e quanto aos pirilampos, não tinham qualquer valor no mercado. Se alguém
dissesse a um negociante desse tipo que a noite era encantadora e bela, ele não veria qualquer
sentido nessas palavras. Mais provavelmente, ficaria pensando em como arrancar uma ou duas
rúpias desse idiota, vendendo-lhe uma pérola artificial, ou alguma coisa do gênero. E o pequeno
diabo parecia-se exatamente com um desses vendedores ambulantes. Representava a
impossibilidade de ter consciência de qualquer coisa que encerre encanto ou beleza. Compreendi,
naquele momento, que nosso maior erro é atribuir ao diabo forças maléficas positivas, como os
traços demoníacos. Não há, nem pode haver, nada de positivo no diabo. Percebi isso muito
claramente. O diabo é a ausência de tudo o que há de mais elevado e refinado nos seres
humanos; é a ausência de sentimento religioso, de visão, de sensibilidade para o belo, de
consciência do milagroso.
Balançando de um lado para outro, o diabrete caminhou com bastante rapidez pela areia,
sob as palmeiras, olhando sempre para a escuridão, como se estivesse procurando alguma coisa.

64
Finalmente voltou-se para o lado e notei que outro diabo estava sentado na areia, ao lado do
tronco grosso de uma palmeira. A julgar pela sua aparência, era um diabo muito importante. Tinha
uma barriga inchada, uma barbicha grisalha e um gorro. O diabrete sentou-se na areia em frente a
ele e ao que tudo indicava, começou a contar do seu fracasso com Leslie, apontando de tempos
em tempos na direção do hotel. Não pude ouvir o que dizia. Surpreendeu-me, porém, o quanto ele
realmente se assemelhava a uma mulher, como se tivesse reunido em si todas as características
repreensíveis e desagradáveis encontradas numa mulher comum e vulgar. O diabo velho ouviu
com atenção e depois começou a falar, em tom obviamente didático. E o diabinho, à sua frente,
inclinou a cabeça para o lado, apoiou o queixo na mão e ouviu atentamente, como se tivesse
medo de perder uma palavra.
Voltei para Leslie, que continuou a ler por muito tempo, anotando os pensamentos que lhe
ocorriam. Mais tarde, foi para a cama.

A noite passou rapidamente e a breve aurora tropical surgiu. Na Índia e no Ceilão as


pessoas levantam-se cedo. Os criados varriam os corredores e levavam chá e café para os
quartos. Um rapaz cingalês, com um estreito sarongue branco e uma jaqueta, descalço e com um
pente de tartaruga nos cabelos, entrou silenciosamente no quarto de Leslie com uma grande
bandeja nas mãos. Leslie ainda dormia sob o mosquiteiro. Pisando suavemente, o rapaz parou e
colocou a bandeja numa mesa baixa, junto à cama.
Olhei para a bandeja e, para meu espanto, vi que em tudo nela havia o diabo, o mesmo
diabrete que eu deixara sob as palmeiras. Agora ele assumia uma variedade de formas e, devo
reconhecer, parecia muito apetitoso e atraente. Havia, primeiro, o chá, dois bules escuros de
tamanho médio, um contendo água e o outro, o forte e perfumado chá do Ceilão; a manteiga
australiana, cor de âmbar, com um pedaço de gelo num prato pequeno, e a geléia de laranja; um
ovo quente num oveiro de porcelana; dois pedaços de queijo; fatias de pão torrado; quatro
bananas curvas, amarelo-escuras; dois mangotões, fruta tão macia que não pode ser levada para
a Europa. E tudo isso era o diabrete!
Leslie abriu um olho e viu a bandeja. Espreguiçou e bocejou, abriu o outro olho e sentou-se
na cama. Vi, imediatamente, os pensamentos de ontem lhe afluírem novamente, e como se sentia
bem disposto. Era extremamente agradável para ele lembrar-se de tudo aquilo: a conversa com o
indiano, sua intenção de estudar a ioga, e todos os pensamentos que lhe ocorreram à noite.
"Tudo está no treinamento. O velho tem razão", disse Leslie para si mesmo. "Acima de
tudo, devemos observarmos sempre, não permitir que façamos qualquer coisa sem perguntar -
isso é necessário ao meu objetivo? - e observar os próprios pensamentos, palavras e ações, de
modo que tudo seja feito conscientemente."
Percebi que Leslie gostava de falar consigo mesmo dessa maneira, e que era gratificante
para ele pensar que sabia tudo sobre essas coisas.
Pouco depois, ergueu o mosquiteiro e mexeu-se na cama. Ia levantar-se mas a bandeja,
com o diabo nela, chamou sua atenção, e Leslie, involuntariamente, olhou para as bananas.
Eu havia percebido a armadilha que lhe fora preparada.
Por uma fração de segundo foi como se ele hesitasse, mas então, com uma atitude muito
prática, encheu uma grande chávena de chá forte e passou uma espessa camada de geléia sobre
uma torrada.
Leslie sentia-se excepcionalmente bem. Tudo nele ansiava por um novo começo, pelo
trabalho, e sua consciência lhe disse que não poderia negar-se um pouco de prazer.
Chá, torrada, manteiga, geléia, um ovo, bananas, queijo - tudo desapareceu rapidamente.
Fazendo um pequeno corte com a faca, Leslie rompeu a casca espessa do mangostão e extraiu a
macia carne branca da fruta, que se assemelha a uma tangerina, mas é levemente ácida e se
dissolve na boca. Uma segunda seguiu-se à primeira. E com isso, terminou. Olhando para a
bandeja com um vago arrependimento. Leslie começou a levantar-se. Enquanto se banhava e
barbeava, o pequeno diabo surgiu novamente ao seu lado. Tinha um olhar espremido, mas agora,
sem dúvida alguma, podia ver Leslie.
Leslie estava pensando em tudo, tal como antes, mas seus pensamentos tinham, por
assim dizer, um pouco menos de clareza. Agora não podia perceber neles a aura de criatividade
que revelavam na noite anterior. Os pensamentos pareciam girar em círculo. Apesar disso, Leslie
continuou a alimentá-los, e com evidente satisfação. Acabou de vestir-se, desceu, atravessou o

65
salão de refeições e saiu para a varanda, frente ao mar. Na frente da varanda havia um pequeno
relvado, e mais além das palmeiras estava o mar, azul e brilhante. A direita, a costa verde corria
na direção de Colombo, e podia-se ver o topo das velas dos catamarãs dos pescadores, secando
ao sol. Leslie olhou involuntariamente naquela direção. Na verdade, havia saído à varanda apenas
porque o criado estava arrumando o quarto e ele pretendia trabalhar até a hora do almoço. Mas
naquele momento o mar o atraía. Havia muito sol, e a leve brisa, com o cheiro da água,
acariciava-o. Leslie pensou em como seria bom balançar-se no catamarã sobre as ondas claras, e
mais uma vez começou a pensar na conversa de ontem.
"Não, é melhor trabalhar", pensou. "Não devo começar logo cedendo. Vou apenas verificar
se tudo está em ordem no catamarã."
Assobiando, desceu os degraus de pedra que levavam ao mar, e vi que o pequeno diabo,
como um cão, lançava-se à sua frente a toda velocidade.
Um jovem pescador cingalês, que sempre acompanhava Leslie ao mar, estava junto dos
barcos. Ouvia atentamente um pescador idoso, tentando não perder uma única palavra. O velho,
de cabelo grisalho amarrado atrás, falava de um processo que movia contra um homem rico,
chamado Silva, cujo carro matara um bezerro.
Não há nada no mundo mais interessante para os cingaleses e os tâmules, no Ceilão, e na
verdade em toda a Índia até o Himalaia, do que um caso judicial. Os tribunais são a forma mais
popular de diversão dos indianos, e o tema favorito das conversas. Na época dos rajás não havia
esse tipo de justiça, porque o direito pertencia a quem pagasse mais. Isso não despertava
qualquer interesse, porque se sabia antecipadamente quem pagaria mais e, portanto, quem teria
razão. Os ingleses, porém, introduziram tribunais autênticos, nos quais nunca se sabia
antecipadamente quem venceria. Esses julgamentos encerravam um elemento de incerteza e
tornaram-se um passatempo popular. O povo da Índia dedicou-se a ele com entusiasmo. O
tribunal é teatro, clube e circo; é encantamento de serpentes, queda-de-braço e rinha de galos;
tudo isso no mesmo lugar e ao mesmo tempo. Os especialistas em leis desfrutam de grande
respeito e autoridade. E alguém está sempre recorrendo à lei, processando alguém. Só as
pessoas muito pobres e muito desafortunadas não têm um processo. Mas nesse caso, devem
estar sendo processadas por alguma coisa.
O jovem pescador estava totalmente mergulhado na complexa prova apresentada pelo
dono do bezerro morto. Mas naquele momento o diabrete correu sobre ele, deu-lhe um murro no
ombro com seu punho e o empurrou na direção do hotel.
Vendo Leslie descer para o mar, o rapaz supôs que ele iria sair no seu catamarã, e
deixando de lado com uma certa pena a fascinante história, correu imediatamente ao seu
encontro, com um rosto radiante.
"O amo quer ir para o mar. Tempo maravilhoso, amo. Não tem muito vento, mas
levantamos a vela logo. Tudo ficará pronto imediatamente, senhor.”
Sem esperar resposta, o rapaz, com a cabeça baixa e os calcanhares nus faiscando,
correu para o barco de Leslie, que estava encalhado na areia, a certa distância dos outros.
Involuntariamente, Leslie deixou-se contagiar pelo entusiasmo do rapaz e, sorrindo,
seguiu-o. Resolveu que não haveria mal algum em passar meia hora no mar.
No mar, o vento revelou-se mais forte do que parecia em terra. O catamarã subia e descia,
deslizando sobre as ondas como um barco sobre o gelo, respondendo a todos os movimentos do
leme. Leslie não teve vontade de voltar durante muito tempo. E na viagem de retorno tiveram de
enfrentar um vento vindo da praia; conseqüentemente, só chegou ao hotel às nove e meia.
Quando atravessou o salão de refeições, o café da manhã estava quase terminado.
Embora estivesse com bastante fome, depois de duas horas no mar, foi diretamente para seu
quarto, a fim de não perder mais tempo. Mas o chefe dos garçons, descalço e usando um estreito
sarongue branco e uma jaqueta também branca, com um pente de tartaruga na cabeça, inclinou-
se à sua frente com um respeito tão profundo, como só os criados indianos sabem fazer, que
Leslie, sem pensar, dirigiu-se para a sua mesa e sentou-se.
Ultrapassando-o, o diabrete já havia pulado sobre a mesa, transformando-se no cardápio e
escorando-se de maneira coquete contra um vaso de flores.
O garçom trouxe chá e geléia, como é de hábito no café da manhã, e ficou à espera de
novas ordens.

66
Leslie serviu-se de uma grande chávena de chá e, enquanto bebia um gole, lançou o olhar
para o cardápio e pediu o tradicional arenque defumado inglês. Depois, pediu outro prato nacional,
ovos estrelados com presunto, um bife de tamanho médio com cebolas fritas, seguido de um prato
indiano, caril, que no Ceilão é preparado como em nenhum outro lugar. Servir o caril é, em si, um
ritual. Primeiro, o garçom trouxe uma grande terrina de arroz quente, solto e cheiroso. Leslie
colocou no prato uma grande porção. Em seguida, outro garçom trouxe dois pratos com
galheteiros cheios de molhos diferentes - feitos de lagostins, peixe, ovo e tomate, com pedaços de
carne, um repulsivo molho amarelo feito de raízes de caril e um molho de uma espécie de lentilha.
Leslie serviu-se dos três. Um terceiro garçom trouxe um prato grande, dividido em doze partes,
onde havia coco ralado, um peixe de cheiro forte, pimenta dos mais variados tipos, cebolas
picadas, uma pasta amarela muito quente e outros condimentos estranhos. E finalmente, o chefe
dos garçons colocou à frente de Leslie uma tigela com molho picante de manga.
Enquanto Leslie servia-se dos diferentes molhos e os misturava no prato, como é costume,
vi com horror que tudo isso era o pequeno diabo. Seu pé saía de uma terrina, sua cabeça
apontava de uma outra travessa.
Em seguida ao caril, que lhe provocou um ardor terrível na boca, Leslie bebeu mais duas
chávenas de chá e comeu vários pedaços de torrada e geléia. Comeu depois um pouco de queijo
e, recusando o doce, começou a comer frutas: uma laranja, várias bananas e ainda uma manga. A
manga é uma fruta grande, verde-escura, pesada e fria. Segurando-a no prato com a mão
esquerda, cortam-se com a faca vários pedaços em volta do caroço, comendo-se com uma colher
a polpa fria, aromática e suculenta. Seu gosto é uma mistura de abacaxi e sorvete de pêssego, às
vezes com uma sugestão de morangos. Duas mangas, uma garrafa de refresco de gengibre e um
cigarro concluíram a refeição de Leslie.
Fumando um cigarro, lembrou-se que teria de ir à cidade. Isso era um aborrecimento,
porque o obrigava a adiar novamente o trabalho.
O trem corria sob as palmeiras, ao longo da costa. Uma onda verde elevou-se como uma
muralha de vidro e desabou, espalhando espuma branca sobre a areia e rolando até quase o
trem. O mar estava tão brilhante e ofuscante que fazia doer os olhos. Mas Leslie não tinha
nenhum desejo especial de contemplar tudo isso. Via aquela paisagem todos os dias e no
momento parecia-lhe apenas que o trem era excessivamente vagaroso. Tinha de comparecer ao
trabalho e, em seguida, ao alfaiate, e voltar para o almoço. Não tinha vontade de pensar, mas era
agradável lembrar que havia alguma coisa muito boa à sua espera, para a qual voltaria quando
chegasse o momento.
O pequeno diabo também o acompanhava ali, embora parecesse muito cansado (percebi
que não havia conseguido fazer com que Leslie tomasse café duas vezes, sem um certo preço).
Ao mesmo tempo, parecia muito satisfeito consigo mesmo. Sentou-se no banco em frente ao de
Leslie e, de vez em quando, olhava para além da janela.

Leslie retomou ao hotel a uma e vinte. Estava calor, o habitual calor abafado e úmido do
Ceilão. Dirigiu-se ao quarto para lavar-se e mudar de roupa, e num terno branco e colarinho
flexível desceu para a sala de refeições. O almoço estava sendo servido. Numa pequena mesa ao
lado da sua estava o vizinho de sempre, um coronel indiano reformado. Antes da refeição, havia
tomado uma cerveja preta gelada, por motivos de saúde, e agora via o mundo com um olhar bem
humorado e bondoso. Leslie o cumprimentou alegremente e desdobrou o guardanapo.
O garçom colocou à sua frente um prato de creme de tomate, mas vi que na verdade era o
mesmo diabrete. Depois da sopa, ele se transformou num peixe cozido, depois em frango frito
com presunto e salada verde; em seguida, em carneiro frio com compota e geléia, um patê e
novamente caril, servido com a mesma pompa dos vinte e cinco pratinhos. Leslie comeu tudo isso
conscienciosamente. Depois do caril, o diabrete transformou-se em sorvete e frutas: laranjas,
manga e abacaxi.
Depois do almoço, ao levantar-se, Leslie sentiu-se um pouco pesado.
"Bom, agora poderei ler", disse para si mesmo. "Depois, terei de ir tomar chá na casa de
Lady Gerald".
Em seu quarto, mandou vir soda e limão, tirou quase toda a roupa e sentou-se à mesa com
um livro e o cachimbo.

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Leu atentamente uma página, mas no meio da segunda surpreendeu-se repetindo uma
frase sem conseguir entendê-la. Ao mesmo tempo, sentia um peso estranho nos olhos e, olhando
ocasionalmente para a cama, percebeu, como se fosse a primeira vez, que ela parecia
especialmente atraente. Mecanicamente, colocou o livro de lado e, bocejando, dirigiu-se para a
cama. O diabrete já estava ajeitando os travesseiros. Leslie olhou o relógio e deitou-se.
Adormeceu quase que imediatamente, um sono profundo e sadio. Enquanto isso, o diabinho subiu
na poltrona ao lado da mesa, pegou o cachimbo ainda aceso e o livro, e dando-se ares de
importância começou a soltar nuvens de fumaça e a virar as páginas do volume, que
propositalmente colocara de cabeça para baixo.
Leslie dormiu profundamente durante duas horas e quando acordou não soube distinguir, a
princípio, se era manhã ou tarde. Finalmente, olhando o relógio, viu que já eram quatro e meia.
Pulou da cama e começou a lavar-se e vestir-se. O criado trouxe-lhe novamente soda e limão e,
em quinze minutos, com uma aparência refrescada e limpa, Leslie corria para a estação, que
ficava perto do hotel. A sua frente, corria o diabrete.
O chá das cinco oferecido por Lady Gerald foi servido no jardim. Fiquei surpreso ao ver
Leslie numa mesa com duas senhoras, uma das quais, loura, alta e esguia, era Margaret Ingleby.
Compreendi então a sua pressa.
Eu conhecera Margaret cerca de dois anos antes, em Veneza, e não sabia que ela estava
no Ceilão. Estava acompanhada da tia, uma senhora de cabelos grisalhos e muito faladora. Pela
conversa, percebi que era a segunda vez que Leslie a via. Falava-lhe entusiasticamente sobre o
Ceilão e a conversa dos dois não se assemelhava em nada à que ocorria nas outras mesas. Lady
Gerald levou a tia para mostrar-lhe algumas raridades indianas no jardim e Margaret e Leslie
ficaram sozinhos. Não pude deixar de notar que se sentiam mutuamente atraídos e que Margaret
era a primeira a reconhecer isso.
Eu gostava muito dela. Parecia-se com uma figura de um quadro ou de uma gravura do
século XVIII. "Uma mulher até a raiz dos cabelos", disse dela um artista francês. Não havia nela
nenhum vestígio da dureza e secura de movimento comum nas mulheres inglesas que jogam
golfe. Tinha um pescoço maravilhosamente cinzelado, boca pequena - coisa também rara nas
mulheres inglesas -, lábios muito peculiares, enormes olhos acinzentados, voz musical e uma
maneira de falar lenta e levemente preguiçosa.
Ela notou que impressionara Leslie, e isso lhe dava prazer, à parte qualquer outra
consideração. Sabia que ele não era um bom partido: a tia, com sua loquacidade habitual, já o
havia mencionado a Lady Gerald, e Margaret a ouvira dizer que ele não tinha dinheiro, vivia do
salário, tinha 28 anos e mesmo sob as condições mais favoráveis não poderia casar-se nem nos
próximos dez anos. Margaret já tinha 29 e estava disposta a casar-se em um ano, no máximo. Em
último caso, aceitaria um de seus fiéis admiradores, que eram três. Mas isso não diminuía o seu
interesse, e ela sentia-se atraída por Leslie. Não era como os outros, falava de maneira fascinante
sobre coisas que interessavam a ela, e que ninguém mais conhecia. Era agradável estar sentada
ali numa cadeira de vime ouvindo-o e observando como seus olhos, de tempos em tempos e
involuntariamente, fixavam-se nas suas pernas, e como de repente num esforço de vontade, ele
os afastava.
Vendo-os, notei de repente algo familiar, e reparando melhor vi que Leslie e Margaret eram
Adão e Eva.
Mas, meu Deus, quantos obstáculos se haviam acumulado entre eles! Compreendi o que
significava o anjo com a espada de fogo. Eles não podiam nem mesmo olhar um para o outro sem
um certo constrangimento. Ao mesmo tempo, sentiam que se conheciam bem e há muito tempo, e
se tivessem liberdade, estabeleceriam imediatamente uma intimidade muito maior. Mas sabiam
muito bem que não se permitiriam essa liberdade, embora fosse estranho e quase absurdo que se
sentissem assim tão próximos.
Terminavam o chá e Leslie, para junto de quem o diabinho empurrara um prato de
sanduíches que estava à sua esquerda, devorou mecanicamente um considerável número deles.
"Vamos ver o mar", disse Margaret em sua voz lenta e melodiosa. Leslie levantou-se com
um vago sentimento de alarme diante da possibilidade de alguém se aproximar deles. Felizmente
isso não aconteceu. Muitos convidados já se estavam despedindo. Num canto do jardim havia
uma casa de verão, de pedras, com caminhos e degraus até a praia. Sentaram-se ali e Leslie
colocou-se de modo a ver à sua frente a silhueta de Margaret contra o pano de fundo do céu e do

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mar. A direita deles, a grande esfera vermelha do sol descia sobre o horizonte azul-escuro do mar.
As ondas quebravam docemente e uma leve brisa passava enquanto o silêncio que antecede o
crepúsculo descia sobre toda a natureza.
Leslie falava da conversa que tivera ontem com o indiano.
"O que mais me surpreendeu foram os meus próprios sentimentos", disse ele. "Não sou
nada sentimental e ainda assim, no momento da conversação, experimentei um sentimento claro
de ternura para com o velho, como se ele fosse meu pai, a quem não vejo há anos, e eu o tivesse
perdido para reencontrar novamente. Foi algo assim, entende? Na realidade, não concordava
muito com o que ele dizia. Esse sentimento vinha, de alguma forma, contra a minha consciência."
"Então isso quer dizer que a Índia realmente existe", disse Margaret. "Não, você deve
procurar conhecer tudo, totalmente. Pense em como seria fascinante. De repente você encontrará
um verdadeiro milagre. Já li tudo o que se escreveu sobre o assunto, mas as coisas mais
importantes em geral, não são ditas. E os autores dos livros dão a impressão de não saber nada,
de acreditar em tudo o que lhes dizem".
Leslie ouvia admirado. Ela, literalmente, expressava seus pensamentos, e nas suas
próprias palavras.
"Não, esse velho me deixou uma impressão bastante diferente", disse ele. "Senti, sem
sombra de dúvida, que ele sabia e que por seu intermédio seria possível encontrar as pessoas
que sabem ainda mais..."
De repente, Leslie sentiu que tudo o que dizia sobre o indiano adquiria um significado novo
e especial, porque era dito a Margaret. Compreendeu que se pudesse dar os dois passos que os
separavam, tomá-la pela cintura e levá-la até o mar, caminhar com ela junto das ondas, sentir que
as ondas banhavam seus pés, caminhar para longe até que as estrelas começassem a brilhar,
para algum lugar onde só houvesse os dois, então, se isso fosse possível, tudo o que o velho
indiano dissera se tornaria realidade. E ele não precisaria de nenhum tipo de ioga, nenhum
estudo; apenas teria de caminhar com Margaret pela praia, contemplar as estrelas, esperar o
nascer do sol, repousar num bosque ao calor do meio-dia e caminhar mais ainda, mais...
Leslie experimentava, ao mesmo tempo, a sensação de que conhecia Margaret muito bem,
intimamente. Conhecia o toque de suas mãos e de todo o seu corpo, o cheiro do cabelo, o olhar
dos olhos dela junto aos seus, o leve movimento das pestanas, a maciez do rosto, dos lábios, o
contato do corpo em movimento... e tudo isso passou de repente, como um sonho. Por uma
rápida fração de segundo, lembrou-se de Margaret e de uma noite exatamente como esta e
exatamente na mesma praia. A mesma esfera vermelha do sol se havia posto no mar, ouviam-se
crescer as mesmas ondas, as palmeiras farfalhavam da mesma maneira...
A sensação foi tão forte que o fôlego lhe faltou, e ele ficou em silêncio.
Margaret o ouvia, inclinando-se ligeiramente na sua direção. Todas as suas palavras eram
novas e interessantes, mas divertiam-na, pois ela queria algo diferente. Ria interiormente ao
pensar em como Leslie ficaria espantado se ela fizesse o que estava pensando. Gostaria de tomá-
lo pelos ombros, como uma menina, e sacudi-lo. Sentia, instintivamente, que ele era forte e
pesado, e sentia que seu corpo era sólido mas, ao mesmo tempo, flexível. Se o abraçasse pelos
ombros, não poderia sacudi-lo. Essa consciência da força e do peso vivo de Leslie era
particularmente agradável para Margaret. Fundia-se com a sensação provocada pelo olhar dele,
que voltava com insistência aos seus tornozelos, suas mãos e seus lábios, sempre que ele se
esforçava para afastá-lo.
"Tolo", disse para si mesma. "Se você soubesse o que estou pensando..." Seus olhos
começaram a lançar fagulhas.
"Onde andará o diabinho?", pensei. "Seria interessante saber o que está fazendo agora.
Será que Leslie o comeu totalmente?"
E naquele momento vi a cabeça do diabrete com os olhos fixados em Margaret, saindo
debaixo do banco em que Leslie estava sentado.
Até eu me assustei. Ali estava o monstro de olhos verdes em pessoa. Foi ali que a
natureza satânica do diabo se revelou inteiramente. Havia um ódio e uma maldade infinitos em
seu olhar, uma espécie de cinismo e de loucura grosseiros e repulsivos. Evidentemente, o que
corroia as entranhas do diabo era o medo.
"De que ele tem medo?", perguntei ao Diabo.

69
"Será que não percebe?", respondeu ele. "Leslie poderia desaparecer para ele a qualquer
momento. Pense no que deve estar sentindo. Acontecer isso, depois de todos os seus sacrifícios!
Você viu o quanto ele ama Leslie. E agora, por causa dessa maldita moça, todo o seu esforço
pode ter sido em vão. Nota-se que Leslie está novamente absorvido por essas fantasias, que se
tornaram, agora, particularmente perigosas. Note que ele já se recorda; é claro que não pode
compreender essas recordações, mas de qualquer modo está muito próximo de descobertas
perigosas.”
"Você disse que ele pode desaparecer. Como?", perguntei.
"Se ele der aquele passo", disse o Diabo.
"Que passo?"
"O passo que os está separando. Mas ele não dará. Imagine só, no jardim de Lady Gerald!
Claro que não! E o que Leslie pode fazer? Eles já estão sentados juntos há muito tempo. Isso só
se pode desculpar tendo em vista a chegada ainda recente de Margaret e dizendo-se, por
exemplo, que o poente visto da praia a fascinou."
Na verdade, não fazia muito tempo que estavam sentados juntos, nem mesmo o tempo
que levei para descrever a cena. Compreendi que era assim porque o sol, que vinha dando ao
horizonte um toque dourado quando eles saíram à praia, estava lançando seus últimos raios, e
ainda não se havia posto totalmente. E o sol se põe com muita rapidez.
Margaret, porém, já havia percebido o insólito da situação e, com um pequeno esforço,
arrancou-se do mundo da fantasia que já começava a arrastá-la.
Notou que a voz de Leslie havia mudado e que ele se calara de repente. Sentiu que devia
salvar a situação, ou aconteceria alguma tolice. Não tinha nada a temer. O que se poderia temer,
no jardim de Lady Gerald? O Diabo estava certo. Margaret tinha quase certeza de que Leslie não
diria nada. Mas até mesmo o silêncio tornava-se muito significativo.
Por isso, Margaret começou a falar, dando à voz uma inflexão metálica levemente
zombeteira que, sabia por experiência, agia muito bem sobre os homens, e a havia ajudado a sair
de muitas situações difíceis na vida.
Já na época da escola, recebera o apelido de "Margaret gelada".
"O que terá acontecido aos convidados de Lady Gerald?", perguntou ela. "Parece que
estamos numa ilha deserta."
Passaram-se três segundos completos antes que Leslie tivesse voz para responder. Mas
quando falou, Margaret percebeu que a crise havia passado.
"Provavelmente, foram ver o mar", disse Leslie, levantando- se.
Margaret desceu correndo os degraus de pedra e viram, não muito distante, um grupo de
homens e mulheres junto dos coqueiros. Os meninos cingaleses estavam demonstrando sua
habilidade e dez deles subiam ao mesmo tempo num coqueiro, como macacos.
Leslie e Margaret aproximaram-se do grupo, Margaret, porém, começou a lamentar o clima
que afugentara. Também tinha recordações vagas, mas suas lembranças eram diferentes. Sentia
como se fosse uma menina, e Leslie, um garoto. Queria segurá-lo pela manga da camisa, jogar
nele um punhado de areia e correr, gritando para que ele a alcançasse.
"Como é maçante ser adulto, e como seria bom brincar com ele", Margaret ainda teve
tempo de dizer para si mesma.
Aproximaram-se do grupo de convidados de Lady Gerald. Todos riam e falavam. Um
alemão alto, num terno de linho amarelo berrante (vendido em Port Said especialmente para
viajantes alemães) fazia cliques com sua Kodak, fotografando os meninos que subiam no
coqueiro.
"Está muito escuro, ou ainda é possível tirar fotos?", perguntou Margaret com voz suave,
voltando-se para Leslie. Tinha a impressão de que se comportara mal com ele, e desejava reparar
a falta.
"Depende do tipo de câmera", respondeu Leslie. "Você gosta de fotografar?"
"Sim, e tenho uma câmera muito boa e muito cara", disse Margaret, lembrando-se de
passagem que era presente de um de seus fiéis admiradores. "Mas não sei usá-la."

70
"É possível com uma boa câmera", disse Leslie, ainda ressentido. "Se ficar de costas para
o mar, com as lentes em 4.5, pode fotografar a um centésimo de segundo com um filme muito
sensível, de um quinto. Mas aquele tipo que está usando uma Brownie não vai conseguir nada",
acrescentou, menos irritado e sentindo que não poderia ficar zangado com ela por muito tempo.
"Veja aquele terno amarelo e a gravata azul-claro. É essa a idéia que os turistas alemães
têm de uma roupa tropical. Eu me pergunto onde Lady Gerald descobre esses tipos."
Olhando para Margaret enquanto falava, sentiu de repente uma tristeza tão dolorida,. que
se espantou. Era como se lembrasse alguma coisa de um passado distante, de tê-la perdido
exatamente da mesma maneira como iria perdê-la agora. Tudo se tornou desinteressante e
insípido, todo o mundo se transformou num alemão com uma roupa de palhaço, com um sotaque
de palhaço.
Duas senhoras começaram a conversar com Margaret. Leslie afastou-se e acendeu um
cigarro. Se pudesse ver o pequeno diabo, teria percebido que, primeiro, ele acompanhou a moça
com um olhar de despeito e de triunfo; depois, deu três cambalhotas na areia e correu para Leslie,
e à sua frente pôs-se a imitar-lhe os movimentos e a fingir que fumava um graveto.
Pouco depois, todos voltaram à casa e se despediram. Quando Leslie apertou a mão
macia de Margaret, uma corrente elétrica passou entre eles. Era a última vez.

Leslie voltou para casa pelo mesmo trem. Estava sozinho no vagão, fumando o cachimbo,
e em sua alma havia um torvelinho dos mais contraditórios pensamentos e emoções.
De um lado, seus pensamentos relacionados com a busca do milagroso adquiriam um
aspecto novo, totalmente diferente, quando a eles se misturava a imagem de Margaret. Sabia, por
outro lado, que não podia sequer sonhar com ela.
Chegara à conclusão, há muito tempo, que devido aos seus hábitos e suas idéias,
precisava permanecer solteiro. E sentia que tinha de apegar-se a essa decisão, sem permitir
hesitações nem digressões. Não tinha dinheiro. O serviço público só era tolerável enquanto
soubesse que o poderia deixar a qualquer momento, se assim o desejasse. Sonhar com o amor
seria uma fraqueza, e nada mais. Margaret teria de casar-se, talvez até já estivesse
comprometida. Lady Gerald devia saber. De qualquer maneira, como poderia pensar em
casamento? Casado, estaria atado, preso a um lugar, ao serviço público. Teria de fazer milhares
de concessões e ceder sempre, o que se recusava agora. Além disso, era impossível. Seu salário
mal chegava para ele sozinho. Não se pode viver com uma esposa num hotel. Para casar-se,
precisaria de cinco vezes mais do que ganhava.
Leslie repetiu várias vezes para si mesmo essas idéias sensatas. Ao mesmo tempo, sentia
que havia em Margaret alguma coisa que afastava toda a prudência e lógica, alguma coisa que
justificaria começar tudo de novo, aceitar tudo sem pensar.
"Sim, Margaret...", murmurou para si mesmo, como se esse nome fosse uma invocação
mágica que tornasse possível o impossível.
O pequeno diabo, que estava deitado no banco, todo enrolado, ganiu como um cão e,
abrindo um olho, contemplou Leslie com indisfarçado ódio.
"Não, não posso pensar nisso", disse finalmente para si mesmo.
Fechou os olhos resolutamente, recostou-se no banco e tentou visualizar o rosto do velho
indiano, procurando lembrar também as suas palavras. Ao invés disso, viu Margaret dizendo
lentamente: amos ver o mar.
"Querida", murmurou Leslie. O diabinho rangeu os dentes e se amarfanhou. Parecia não
se sentir bem, pois de vez em quando tremia como um cão perdido na chuva.
Leslie estava mergulhado em sonhos, vagos mas excepcionalmente agradáveis, devaneios
em que apareciam Margaret misturada com coisas maravilhosas, os iogues que Leslie
encontraria, a ajuda do velho indiano, em certas cavernas secretas.
"Deve haver alguma coisa em tudo isso", disse para si mesmo. "Aquele russo [isto é, eu
mesmo] tem razão, devemos procurar novas forças. Com o que já temos, não podemos organizar
nossas vidas, só podemos perder. Devemos encontrar uma nova chave para a vida, e então tudo
será possível."
Durante todo esse tempo, imagens vagas mas sedutoras passavam por sua mente, nas
quais a figura central era sempre Margaret.

71
Como sempre acontece nesses casos, sua consciência dividiu-se em duas. Um Leslie
sabia perfeitamente que dentro dos limites das possibilidades terrenas comuns, Margaret era-lhe
tão inacessível quanto um habitante da lua. Mas o outro Leslie não queria considerar nenhuma
das possibilidades terrenas, pois já estava construindo algo fantástico e reorganizando a vida de
acordo com suas próprias idéias.
Era excepcionalmente agradável pensar em Margaret. Permitir-se esses sonhos, essas
fantasias sobre ela, sem que o objeto de tais sonhos tivesse conhecimento, dava a Leslie a
sensação de ser um cavaleiro que serve a sua princesa sem que esta o saiba. Quando tivesse
realizado alguma coisa, quando tivesse encontrado alguma coisa, escreveria para dizer-lhe a
impressão que seu encontro lhe causara e o que Margaret fizera por ele sem sequer suspeitar,
como ao buscá-la encontrara o "milagroso".
Quando esses sonhos se interrompiam, outra voz começava a se fazer ouvir
imediatamente, e continuava, dizendo: "Margaret poderia responder a sua carta, poderia escrever
confessando que se lembrava do Ceilão com freqüência, de seu encontro e da conversação que
mantiveram, e que queria voltar outra vez; se não este ano, pelo menos no próximo".
Leslie alimentava fantasias como um escolar, mas nesses sonhos havia mais realidade do
que ele próprio poderia pensar. Para muitos, pareceria absurdo desperdiçar tempo com esses
castelos no ar, mas há muito me habituei à idéia de que as coisas mais fantásticas da vida são as
mais reais. Eu conhecia bem Margaret, porque conhecia seu tipo, e os sonhos de Leslie não me
pareceram impossíveis. Na verdade, esses são exatamente os sonhos que têm possibilidade de
se realizar. Margaret considerava-se uma pessoa muito positiva e prática. Mas estava enganada.
Na verdade, era daquelas mulheres que nascem sob uma combinação especial de planetas,
graças à qual estão sujeitas às influências do fantástico e do milagroso. Se Leslie fosse capaz de
tocar nessas cordas de sua alma, ela o teria seguido, sem perguntar mais nada.
O pequeno diabo parecia concordar com a minha opinião, pois mostrava-se muito
descontente com os sonhos de Leslie. Levantou-se e começou a fazer caretas, como se tivesse
dor de dentes. E então, não sendo capaz de suportar mais, deu um salto para fora da janela.
Com três cambalhotas no ar, o diabo foi cair na janela de um vagão de terceira classe,
totalmente às escuras (no Ceilão, os vagões de terceira não têm iluminação), muito cheio e
barulhento. Ali, interferiu numa briga que acabava de começar e em poucos instantes conseguiu
torná-la muito animada. Isso melhorou um pouco seu humor e quando voltou a acompanhar
Leslie, entre a estação e o hotel, já não parecia tão infeliz quanto antes. Percebia-se que estava
pronto para continuar a luta. Observei, porém, que em geral ao anoitecer ele se tornava apenas
uma sombra do que era, tão difícil passava a ser a vigilância sobre Leslie.

Ao chegar ao quarto, Leslie sentou-se à mesa sem mesmo acender a luz. Naquele
aposento, a realidade se impôs de súbito e ele teve perfeita consciência de que jamais voltaria a
ver Margaret. Na manhã seguinte ela partiria para Kandy e, dali, para a Índia. Quanto a ele, sua
licença logo terminaria, sendo muito provável que fosse enviado numa missão na selva, no
sudoeste da ilha.
Levantou-se e acendeu a luz. Apertando os olhos ofuscados pela claridade, fechou as
persianas e apanhou na gaveta da mesa um grosso caderno, no qual fizera anotações ontem.
Mas hoje, tudo aquilo que escrevera parecia estranho, alheio. Era como se houvesse
transcorrido um ano desde a última noite. Tudo era tão ingênuo, infantil quase. Leslie lembrou-se
da manhã e do passeio no catamarã. Também isso lhe parecia distante. De súbito, começou a
compreender grande parte do que era novo, como se seus olhos se tivessem aberto de repente.
Tudo isso acontecera durante as duas últimas horas: vinha da conversa com Margaret, das
sensações que o dominaram, das imprecisas lembranças de alguma outra coisa. Todos os
pensamentos de ontem se reconstituíram, de uma nova forma, desde que Margaret penetrara
neles, e agora se tornavam muito mais próximos, muito mais reais e ao mesmo tempo mais
inacessíveis, mais difíceis.
"Preciso pensar em tudo isso", disse Leslie para si mesmo, e involuntariamente olhou à
sua volta. Por alguma razão, naquele momento o quarto de hotel pareceu-lhe especialmente vazio
e triste.
Alguém bateu à porta.

72
"Venha jantar, White", disse uma voz do outro lado da porta. "Chegou o mineralogista de
Patnapuri, venha conhecê-lo."
Leslie não queria ir jantar, mas as quatro paredes pareciam muito pouco hospitaleiras.
Seria muito deprimente ficar sentado ali, sozinho. Ficou satisfeito por ter uma desculpa para
descer e buscar companhia.
"Já vou", respondeu.
Durante outro meio segundo, Leslie hesitou. Era aborrecido vestir-se. Ao mesmo tempo,
sentia que não podia ficar ali sentado, sozinho, durante toda a noite. Já ouvira falar desse
mineralogista de Patnapuri como sendo alguém que se apaixonara pelo Ceilão, que conhecia a
vida local melhor do que os nativos da ilha. Era o tipo de homem que Leslie gostaria de conhecer,
porque com ele sempre se podia aprender alguma coisa nova.
Levantou-se com relutância e começou a vestir-se. O pequeno diabo simplesmente girava
em volta dele. Em pouco tempo, vestindo um smoking, com colarinho alto e sapatos de verniz,
Leslie se dirigia à sala de refeições.
"Olá, White, aproxime-se", chamaram os conhecidos no bar. Foi apresentado ao
mineralogista e, ao mesmo tempo, o diabrete mergulhou num copo grande de uísque, que acabou
na mão de Leslie. Leslie olhou para o copo e, embora surpreso, acabou bebendo. "Não obrigado",
disse ao oferecerem outro. Não queria beber. Mas o mineralogista era interessante. Era um
homem baixo, negro como um besouro, e conquistou-o imediatamente com as suas anedotas
cingalesas.
Todo o grupo foi para a sala de refeições. O diabo correu à frente e transformou-se numa
tigela de sopa de tartaruga, que foi colocada na frente de Leslie. O coronel ia jantar fora e no lugar
dele sentou-se o mineralogista. Durante a conversa, Leslie terminou a sopa e pediu uma garrafa
de vinho em honra ao hóspede. O diabrete aproveitou-se disso para transformar-se numa
maionese de caranguejo, que parecia muito apetitosa. Leslie comeu mais do que deveria. O vinho
branco gelado dissipou a sensação de que se excedera. O diabo, porém, transformou-se num
peixe frito com um molho suave. Notei que quando Leslie estava terminando a sua porção, o
diabo, cambaleando e com as mãos na cabeça, afastou-se da mesa.
Em seguida, serviram filé de tartaruga e pato frito com salada. Tudo isso, é claro, era o
pequeno diabo. Embora isso não fosse fácil para ele, estava decidido a desfechar o golpe final em
Leslie, enquanto este, que nunca tivera problemas de estômago, comia tudo o que colocavam à
sua frente - mais do que o habitual, na verdade, porque se sentia decepcionado com a vida ao
lembrar-se de Margaret.
O diabo transformou-se em carneiro assado com molho picante, depois em peru frito com
presunto, pudim, creme; e, só deus sabe por quê, depois do doce, torradas quentes e caviar. O
cardápio absurdo que é comum no Ceilão estava aberto sobre a mesa - cerca de quinze pratos
mal preparados, que por alguma razão tinham todos o mesmo gosto, mas com uma grande
variedade de condimentos picantes, mais adequados ao Pólo Norte do que ao equador.
Depois disso, com as forças que ainda lhe restavam, o diabo transformou-se em
amêndoas, passas azuis e uma sobremesa indiana de gosto muito forte e quente, de frutas
açucaradas com gengibre; finalmente, uma pequena xícara de café foi colocado à frente de Leslie.
Embora fosse uma pessoa sadia, Leslie começou a experimentar uma sensação de peso por todo
o corpo.
O mineralogista ia até a cidade. Os outros dois vizinhos de Leslie iam jogar bridge perto
dali. Ele continuou só. "Bem, isso é excelente", pensou com preguiça. "Vou trabalhar".
Levantou-se, mas depois de um momento de hesitação dirigiu-se à varanda, e não para o
seu quarto. "Preciso tomar uma soda", pensou. "Um uísque grande com soda", pediu ao garçom.
Na varanda envidraçada, com espreguiçadeiras baixas, quatro pessoas cochilavam com os
jornais da tarde. Leslie encheu o cachimbo e apanhou um dos jornais. Trouxeram-lhe o uísque.
Bebericou, fumou preguiçosamente por algum tempo e bocejou.
Havia alguma coisa na qual ele precisava pensar, mas os pensamentos só a custo se
arrastavam por seu cérebro.
"Amanhã refletirei sobre tudo isso", disse para si mesmo.
Depois de meio minuto pôs sobre a mesa o cachimbo, que se apagara. Voltou a cabeça
para o lado e deu um profundo suspiro. Meio minuto depois, sua respiração se tornava regular.

73
Leslie adormecera.
Mas sobre o braço da cadeira, ainda relutando em deixá-lo, o pequeno diabo, transparente
e murcho, parecia um balão de gás vazio.
"Você está vendo como é a nossa vida", disse o Diabo. "Não é uma vida de sacrifícios?
Veja só, o pobre diabinho tem de vigiar todos os passos de Leslie, não pode abandoná-lo um
momento sequer. Deixa que o coma, esgota-se totalmente, e ainda corre o risco de perdê-lo por
causa de várias fantasias tolas. Diga-me se há entre os homens alguém capaz de fazer algo
semelhante? O que aconteceria a vocês, se não fôssemos nós?”
"Não pretendo discutir", respondi. "Admito que vocês fazem um grande esforço e usam de
muita engenhosidade para nos conservar nas suas mãos. Mas não acredito que esses métodos
simples funcionem por muito tempo."
"Têm funcionado desde a época de Adão", disse o Diabo modestamente. "Seu principal
mérito é serem simples e não provocarem suspeitas.”
"Quanto a isso, as pessoas se enquadram em duas categorias. Algumas não suspeitam o
perigo que representamos - mesmo quando lhes é mostrado, recusam-se a admiti-lo. Acham
graça dizer que café da manhã, almoços e jantares podem ter qualquer influência sobre o
‘desenvolvimento espiritual' e que podem dificultá-lo ou impedi-lo. A simples idéia dessa
dependência em que o espírito se encontra em relação à matéria parece-lhes ofensiva. Não a
toleram por causa de um falso orgulho, e recusam-se a examiná-la. Na opinião deles, um dos
lados da vida é completamente independente do outro. E claro que, em conseqüência disso,
aqueles que assim se iludem, já estão em nosso poder.”
"Por outro lado", continuou o Diabo, "as pessoas que têm alguma cabeça compreendem
onde está o perigo, mas vão imediatamente ao outro extremo. Começam a pregar a abstinência e
o ascetismo, e acham que isso é um bem em si, agrada a Deus e encerra uma moral superior.
Juntamente com isso, como de hábito, não vigiam a si mesmos tanto quanto vigiam o próximo.
São os nossos colaboradores favoritos."
"Apesar de tudo, estou convencido que Leslie White chegará à essência da questão, agora
que se interessou pela ioga."
O Diabo, obviamente furioso, bateu com as patas e uma cascata de fagulhas voou da
pedra.
"Você tem razão", disse. "Leslie chegou à essência da questão, e o que é ainda pior,
encontrou meios de se comunicar com outros lunáticos semelhantes. Isso cria uma situação muito
perigosa para ele.”
"As coisas começaram assim: ao viajar pelo sul do Ceilão, visitou novamente o mosteiro
budista onde vocês se conheceram. Bem, você sabe como ele gosta de meter o nariz em tudo.
Indagando sobre a vida dos monges, interessou-se muito em saber o que, como e quando
comiam. E quando lhe disseram que nada comiam depois do meio dia, de acordo com as regras
dos monges budistas, quis muito saber por quê.”
"Resolveu, então, tentar um regime igual", continuou o Diabo, "e está vivendo agora de
arroz e frutas, e come apenas uma vez por dia. Está fazendo uma brincadeira perigosa. Mas há
outra coisa ainda pior. Ocorreu-lhe a idéia de que não estava só. Você sabe que quando tal idéia
ocorre a uma pessoa, a confirmação não demora. Ficou sabendo da existência de uma cadeia.
Em outras palavras, tudo aconteceu como o velho indiano previra. No meio da noite escura viu as
luzes de pessoas que iam para o templo, para a mesma festa. Bem, isso já era mau. Não acredito
nessa baboseira. Mas ela é muito perigosa, particularmente para tipos como Leslie White, que não
se satisfazem com belas palavras e boas-intenções. Não sei que gênero de festa é. Todas essas
pessoas marcham para a própria destruição como mariposas, voam para o fogo. Eu já disse tudo
isso antes.”
"Temos de tolerar, ocasionalmente, a autodestruição praticada pelos homens, embora nos
desperte piedade. O problema é que eles arrastam consigo outras pessoas. Isso é terrível. Não
acredito numa cadeia mística, nem num templo, mas devo dizer que o aparecimento de
tendências nessa direção me amedronta. No fim, terei de recorrer a métodos especiais, também
bastante antigos, e terei de aplicá-los com mais intensidade.”
"E quais são esses métodos?", perguntei.

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"Isso eu não posso dizer. Já falei demais. Acrescentarei apenas que esses métodos 'jogam
com a nobreza', e nessa jogada eu nunca perdi.
"Francamente, estou surpreso que você me tenha feito tantas confidências, sabendo que
posso contá-las aos outros", disse eu.
O Diabo deu uma gargalhada terrível. "Você pode falar o quanto quiser", disse ele.
"Ninguém acreditará. Os descendentes dos animais não acreditarão porque não podem lucrar
com isso, e os descendentes de Adão não acreditarão por generosidade - resolveram considerar,
a qualquer preço, os descendentes dos animais como iguais a eles, ou mesmo considerar-se
descendentes dos animais. Além disso, tenho uma maneira especial de impedir essa conversa,
por muito tempo. E agora, adeus!"
Evidentemente, o Diabo queria fazer-me uma surpresa ao partir. De repente, começou a
subir e ficar mais alto. Em pouco tempo estava mais alto do que o elefante e maior do que os
pagodes. Finalmente, transformou-se numa enorme sombra negra, à frente da qual me senti
reduzido a uma ponta de alfinete, como acontece às vezes nas montanhas.
A Sombra Negra começou a mover-se, e eu a segui. Na planície, tornou-se ainda maior,
elevando-se para os céus. E então duas asas negras surgiram em suas costas, e ela começou a
separar-se da terra, estendendo-se aos poucos por todo o céu, como uma nuvem negra.

Com essa imagem na mente, acordei.

A chuva caía torrencialmente. O céu estava coberto de nuvens cinzentas e pelas encostas
das montanhas espalhavam-se focos de cerração, mais densos junto das depressões. Sentia-me
cansado, desanimado, doente. Depois de ficar algum tempo na varanda, resolvi não ir a lugar
nenhum, achei que havia perdido a vontade de ver qualquer coisa e queria voltar. De qualquer
modo, com a chuva seria impossível chegar até os templos, e agora, durante o dia, as cavernas
não mais me interessavam. Parecia-me que estariam vazias.
Enquanto meu condutor atrelava os cavalos à carroça, arrumei apressadamente minhas
coisas, como se tivesse alguma razão para partir o mais cedo possível. Não pensei muito no
sonho, não podia nem mesmo dizer se havia sido realmente um sonho, ou produto da minha
imaginação, provocado pelo tédio da falta de sono...
Um pouco depois, estávamos novamente viajando de uma montanha para outra, passando
junto de precipícios; no fundo dos quais jaziam negras ruínas, restos de canalizações de água e
esgotos; passamos as portas de cidades muradas e mortas, cujas casas agora abrigavam
árvores; passamos Daulatabad com sua fortaleza sobre uma pedra redonda, que Pierre Loti,
numa visita ocasional, dissera parecer-se com uma torre de Babilônia inacabada, e em cujo
minarete viviam agora abelhas selvagens.
Na estação, tive a má notícia de que os trilhos da estrada de ferro haviam sido levados
pelas águas e que eu teria de esperar, só Deus sabe quanto tempo, até que fossem reparados.
Conseqüentemente, fiquei preso ali por três dias. Mas é esse, exatamente, um dos prazeres de
viajar pela Índia na estação das chuvas.
Pouco depois, deixei o país e a caminho da Europa fiquei sabendo da guerra.
Em outubro, em Londres, vi Leslie White mais uma vez.
Estava no andar superior de um ônibus que vai do Strand para Piccadilly, e na esquina de
Haymarket paramos para deixar passar um contingente de soldados.
As gaitas de foles tocavam alegremente uma marcha animada, ao rufar surdo dos
tambores, e à nossa frente desfilou o que parecia ser um regimento escocês recém-formado. Na
frente, montado num puro-sangue inglês, ia um coronel muito ereto e de ombros largos, com um
enorme bigode que lhe caía pelos cantos da boca e um pequeno casquete com fitas. Atrás dele
vinham fileiras de soldados as quais se misturavam voluntários, muitos ainda sem uniformes,
outros usando capotes mas com boné escocês, outros sem chapéu, mas todos levando fuzis,
todos fortes, altos e marchando com os passos longos característicos dos regimentos escoceses.
Eram espantosamente elegantes, e eu simplesmente não podia tirar os olhos deles, o coronel no
seu cavalo, e o oficial alto e esguio, de joelhos à mostra, que passava a meu lado - em todos,
havia algo que torna os escoceses diferentes de todos os outros soldados.
Na minha opinião, herdaram essa peculiaridade dos romanos. Os soldados escoceses são
os soldados romanos. Conservaram o seu passo, seu tipo e seus uniformes. O uniforme dos

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escoceses, que nos parece engraçado e nos leva a dizer que estão vestindo "saias", é na verdade
o traje romano que sobrevive há dois mil anos. A simplicidade sóbria do cáqui, substituindo o
tradicional xadrez escocês, os aproximava ainda mais de Roma.
Esses pensamentos sobre a guerra, e muitos outros, atormentados e contraditórios, que
vinham me acompanhando há dois meses, passaram pela minha cabeça enquanto observava os
soldados. Mais uma vez, tive consciência daquele pesadelo do qual às vezes ainda tinha
esperanças de acordar.
Um grupo saiu de forma e perdeu o passo. O tenente alto, que marchava ao lado deles,
voltou-se e deu uma ordem ríspida. Os soldados jovens, rindo, correram, enfileiraram-se e
rapidamente retomaram o ritmo da marcha. O tenente parou, com uma expressão séria no rosto,
enquanto os homens desfilavam a seu lado. Era Leslie White.
As gaitas de foles tocavam alegremente, os tambores rufavam, soldados e voluntários
desfilavam animadamente, com os fuzis curtos sobre os ombros. Senti, de repente, o corpo gelar-
me.
Já não podia ver os soldados de um ponto de vista estético, admirando sua elegância.
Lembrei-me de tudo: das cavernas de Elora, o templo de Kailas, a sombra negra do Diabo
e sua ameaça que, então, não havia compreendido.
Agora eu sabia que era esse o método especial a que ele pretendia recorrer para afastar
Leslie White, e outros como Leslie, de pensamentos e ambições perniciosos. E compreendi como
a situação era totalmente sem esperanças.
De um lado, o sacrifício de Leslie White e dos que desfilavam era heróico. Se eles, e
muitos outros, não estivessem dispostos a dar sua vida, juventude e liberdade, os descendentes
dos animais estariam agora dominando abertamente o mundo. Os bárbaros estariam há muito em
Paris, e talvez já tivessem destruído a Notre Dame, tal como destruíram a catedral de Reims. As
velhas e sábias gárgulas, que tanto me revelaram, teriam perecido e essa estranha e complicada
alma teria partido da terra... E quanta coisa ainda poderiam ter destruído...!
Ao mesmo tempo, havia alguma coisa ainda mais terrível em tudo o que estava
acontecendo. Via que os descendentes de Adão se encontravam em campos diferentes. Que
possibilidades tinham agora de reconhecer um ao outro? Não sabia se existia ou não uma cadeia,
se começara a surgir ou não. Sentia, porém, que a possibilidade de qualquer forma de
entendimento mútuo havia desaparecido totalmente, por algum tempo. Todas as peças no xadrez
da vida haviam sido misturadas outra vez. E de remotas regiões subterrâneas, banalidades e
vulgaridades estavam sendo lançadas no mundo, juntamente com nuvens de mentiras e
hipocrisias, que as pessoas eram obrigadas a respirar. Não sei por quanto tempo isso continuará.
Os soldados passaram e o pesado ônibus, oscilando um pouco, partiu novamente,
passando à frente de outro.
"O que Leslie terá conservado da ioga, do budismo?", perguntei a mim mesmo. "Agora ele
teria de pensar, sentir e viver como um legionário romano, cujo dever é defender a Cidade Eterna
contra os bárbaros. Um mundo totalmente diferente, uma outra psicologia. Agora todos os
refinamentos do pensamento pareciam um luxo desnecessário. Provavelmente, ele já os teria
esquecido, ou esqueceria em pouco tempo. No fim, quem saberá se há mais bárbaros fora ou
dentro das muralhas? Como identificá-los? Mais uma vez, a chave foi lançada no mar profundo.
"Jogam com a nobreza", lembrei-me das palavras do Diabo. E tive de reconhecer que,
desta vez, ele vencera.

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