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QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 1

2 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 3

PREFÁCIO

Meus olhos ouviam, meus olhos viam: Isabel me inoculava


a sua brutalidade. Que o dedo atravesse a cidade, que o
dedo perfure os matadouros. Eu sofria com a queimadura,
eu sofria, mais ainda, com os nossos limites. Mas o dedo
obstinado despertou a carne, mas os golpes me purificavam.
(LEDUC, Violette. Teresa e Isabel)

Os dedos que escrevem o poema são os mesmos dedos que atravessam


os corpos, as cidades, e provocam disrupções e rasuras constantes
no patriarcado e em seus matadouros. Dedos que caminham nessa
ambivalência: força/intensidade e na delicadeza. O mesmo dedo que toca
com carícia, transforma radicalmente a existência, reorganizando fronteiras
e se colocando em uma constante criação dos afetos. Os dedos que
IDEALIZAÇÃO, CURADORIA E EDIÇÃO escrevem o poema são os mesmos que exploram corpos, peles, cavidades.
Aline Miranda, Bel Baroni e Dri Azevedo
A poesia nos oferece outras formas de ver o mundo. Talvez ela seja o
instrumento perfeito para encarnar vivências lésbicas. Criamos às margens
PROJETO GRÁFICO da discursividade hegemônica, e quem sabe essa marginalização nos dê,
Carol Secco, Beta Guizan e Fernanda Guizan em contraponto, a liberdade para produzirmos outras sensibilidades.

ILUSTRAÇÃO DA CAPA A presente zine surgiu da necessidade de reunir vozes de sapatões que
Camila Cuqui produzem literatura nesse espaço fértil e fronteiriço, nas brechas da
heteronorma e do falocentrismo. Das palavras sapatões, e de seus sentidos
que se unem em diferenças e encontros, há a possibilidade de se produzir
Impresso e encadernado por nós mesmas no conexões e comunidade.
Colaboratório (Esdi/UERJ).
Recebemos mais de oitenta submissões de escritoras de variadas
localizações geográficas. Esses textos passaram por uma curadoria, devido
à nossa limitação de espaço físico, e uma cuidadosa edição, que os reuniu
aos poemas e contos das demais autoras convidadas.

Aqui está o resultado. Aqui transbordamos. Aqui somos multidão.

A todas as sapatonas que atravessam e perfuram com suas escritas. /

Palavra Sapata, 2018. Dri Azevedo


4 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 5

ICAMIABAS 2.0 –––


eu agora vou escrever poemas lésbicos uma vez conheci uma mulher
feito a angélica freitas que me fazia rir de coisas inimagináveis
ou a maria iorio para minha natureza indolente
que escreveram poemas como por exemplo
lésbicos o cu de um gato
e radioativos gargalhávamos na cama enquanto o gato descansava apático
feito também a poeta nos azulejos frios embora fosse verão
que não vou dizer o nome não conseguíamos olhar para o gato
pois fomos amantes porque desmanchávamos e nos contorcíamos na cama
por quase uma década perdíamos o ar e enfim respirávamos fundo
e ao final não sobrou vencidas
nem um nude mas isso foi há muito tempo
pra eu enquadrar dentro de um quarto com paredes verdes
vou então gritar poemas que ficava parecendo um grande aquário de peixes
sobre mulheres quando entravam as primeiras fendas de luz
abertas da manhã
pois é preciso muitas bocas
para se amar uma mulher
nós mulheres /
nos multiplicamos e
somos maioria, dizem Ludmila Rodrigues :: BA
recentemente
demitimos satanás y
readmitimos lilith
para o setor de
recursos humanos
não vai sobrar
falo sobre
falo

Ana Beatriz Domingues :: SP


6 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 7

À PRIMEIRA MULHER A REGAR MEU TERRENO DESCER UMA ESCADA


você Quando você está em um alojamento, competindo, dormindo mal mas muito
você que tira leite de pedra cansada, com preocupações estranhas como enfrentar o time de basquete
arrebenta asfaltos e descobre terras da PUC-SP às 8:30 do dia seguinte mas antes entrar na fila do café da
você irrigação eu absorção manhã e comer um pão com manteiga, você mergulha no cotidiano da
você e eu competição e o tempo da vida comum se suspende. Tanto que a memória
de água desses momentos acabam sempre embaçadas, viram uma pequena
e pedregulhos saudade que aparece depois de viver um cansaço enorme na volta pra
casa e você nem se acostuma mais a não estar rodeada daquele monte de
pessoas. O quarto igual, quase igual como se deixou. A mala fechada por
alguns dias ainda, no canto. Dormir em uma cama suspensa do chão, tomar
/ banho descalça, conhecer os caminhos da casa no escuro.

Rebeca Rose :: RJ O que tinha acontecido naquele alojamento, no último dia da competição,
na última festa do campeonato que todas estavam decididas a prolongar até
o momento de subir no ônibus e voltar pras suas cidades, foi que Isabel se
esgueirou para o colchão de Luiza enquanto a música ainda soava altíssima
e abafada lá fora, na quadra. As vozes das pessoas, o cheiro de bebida
barata e cerveja, os cheiros de quem tinha acabado de tomar banho e de
quem estava sujo ainda, tudo lá fora. E Isabel encheu os pulmões de ar e
abriu um espaço com o próprio corpo nas cobertas de Luiza, que estava
deitava não tinha nem 15 minutos, meio bêbada, meio cansada, meio de
saco cheio do jogo que Isabel estava tentando sustentar. Isabel tinha
dado os sinais e Luiza sabia que ela sabia que Luiza era lésbica e então
aconteceu o episódio de Isabel entrar no banheiro enquanto Luiza trocava
de roupa e dizer: “olha, eu não sou gay”. Então, o que Luiza estava sentindo
no momento que Isabel, fria, de short e moletom, com os dedos gelados
encostou no corpo de Luiza quente quase adormecido, era uma irritação
inquieta e um arrepio de medo. Medo do tesão ser só dela. De fechar os
olhos, beijar a boca de Isabel mas ela não estar ali.

Quando você é adolescente e começa a beijar as suas amigas, quando


você é lésbica, adolescente e começa a beijar suas amigas, o seu maior
medo é de que aquilo seja só uma brincadeira pra elas e pra você ser algo,
sei lá, você não relaxa, sabe? Alguma coisa acontece só pra você. Só você
atravessa a porta e depois elas vão conversar entre si: você lembra que
fulana era sapatão mesmo?
8 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 9

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E Luiza não era mais uma adolescente e aquele medo todo, de repente, de Eu pensava em te beijar em meio ao caos da Central do Brasil
volta por conta de uma menina que não sabia o que queria, era um medo Entre vigas, vergalhões e poeira fina de obras inacabadas e que atacam
que deixou Luiza com vontade de que Isabel não estivesse ali, roubando o bem mais que rinite
calor do corpo dela. Gritos muitos entre corpos que tentam não ser vistos e
os que precisam pra existir
No gesto de oferecer a boca, no orgulho de ter se enchido de coragem Todos cercados por soldados fardados de chumbo
e no conforto de encontrar o corpo quente e grande de Luiza naquela -rir do Rio é uma piada de mau gosto.-
coberta às 2:14 da madrugada, o que Isabel queria era atropelar logo
aquela parte. Esquecer do desejo de beijar outra mulher e ser logo beijada Ironia e raiva vejo um vlt com nome de tia ciata
por Luiza, porque Luiza beijava outras mulheres. Se Isabel oferecesse a Vem pensamento intruso de
boca e ela percebesse o gesto, para Isabel talvez aquilo pudesse significar terminar quebrar esse deboche
que o pecado de querer beijar outra mulher não era seu. Ela seria beijada, Mas
ela só estaria ali sendo beijada. A boca de Luiza se encontraria com a o único veículo que quero
dela devagar e Isabel só ia precisar relaxar o corpo, soltar todo o ar pelo contato é a minha Caminhão.
nariz em um quase gemido e os braços de Luiza dariam voltas e voltas em Passa por cima.
torno de sua cintura, esmagando-a como uma cobra. Isabel sentaria por
cima dela para se esfregar naquele corpo enorme. Luiza falaria “você é tão
linda” e ela se sentiria linda, afogando dentro de si mesma, contorcendo o /
corpo sem ossos.
sofia_viaja :: RJ
Mas com a boca da Isabel ali se oferecendo tão óbvia, Luiza sabia, existia
ainda uma página entre as duas, uma folha fina e áspera. Se Luiza se
aproximasse, se ela beijasse Isabel e ela se encolhesse de volta e ela não
respondesse de acordo com o que seu corpo mostrou até aquele momento,
seria o passo em falso da descida de uma escada que você acredita ter 17
degraus mas são, na verdade, 16 e aquele passo não encontra chão senão
por alguns segundos depois do esperado e mergulha no vazio da certeza
que estava ali antes. Isabel podia retirar o corpo e depois Luiza quem
confundiu as coisas.

Leíner Hoki :: MG
10 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 11

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negra mulher, tu vem de onde? o afeto dado
nesse balanço dos corpos & receoso
de repente de ser visto
nossas águas se misturam tem das suas regras
desejo nascente
crescente mas às vezes me agarro
cachoeira que desce à minha
cachoeira que sobe capa de invisibilidade:
sobre o nosso sentir atravesso a cidade
sobre o nosso querer mares
quem é que sabe você
senão a gente? por dentro

sem que ninguém perceba


/
intimidade
Gabrielle Souza :: RJ matéria
coragem

Dri Azevedo :: RJ
12 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 13

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Se eu tivesse um super poder Ser assumidamente
Se? Diferente da norma
Já o possuo entre os dedos Nos torna assustadores.
Lésbica
Invisível Uso o plural na esperança
Indizível De não estar só.
Olhares me atravessam
Me cospem Se cabem outros, ainda que não
Menosprezam Os conheça,
Enquanto tremo -nunca de medo- Eu os saúdo do fundo da minha alma.
De gozo e de arrepio pelas pontas dos teus dedos.
Pela maciez da tua língua Se assumir alguma minoria
Mãos se espalmam contra o meu rosto E se expôr ao ridículo
Invisível Ao excrutínio
Suja E ao debate,
Indizível ainda que esse não lhe envolva,
Heroína sem capa nem onda É existir.
Atravesso ruas úmidas como o teu sexo
Lésbica E, se eu posso existir,
Invisível No seu amor ou no seu ódio,
Indizível Até mesmo na sua indiferença,
Mas, pro teu azar, bem comida, querida e inquebrável. Então não estou sozinha.

Mantenho a luz acesa


/ Para que você possa me achar,
Para que ilumine seu caminho,
Mari Cê :: RJ Ainda que em outras direções,
Para que outros possam se encontrar,
Na semelhança ou na diferença,
Ou até mesmo me encontrar
Amanhã ou na eternidade.

E não estaremos sozinhos.

Mariana Augusta :: RJ
14 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 15

PARA [É VERBO E TAMBÉM DEDICATÓRIA: LUANA(S) BARBOSA(S)] - já é suspeita em viver


padrões de gênero que não correspondem
É queda ó
corpo mais um ó
couraça humana desfalecida ó
- espancada - olha bem,
- humilhada - parece o que nomeiam homem
- arroxeada no baque -foi revistada que nem homem
interrompida a vida precisou foi implorar
precarizada existência -não me toque, polícia homem
é só mais uma -precisou levantar a blusa
-não sou homem, olha
[ importa? ]
desce, soca, bate, espalma
É queda Luana gritando -para
que é brusca, filho gritando -para
que é rombo, vizinhança gritando -para
que é grado, bocas gritando -para
que é soco-soca,
cassetada-cassetete, e essa máquina violência-assassinato-preto
d’instinto do ódio, que não para
distintivo pm, essa máquina arquitetada-estado
no peito colete, que não passa
no pé é a bota, essa máquina que tem nome
de um lado porrete, que é polícia
do outro é armado. é só desgraça

a mesma matéria que carrega esta composição farda essa máquina não graça
também é massa capaz de receber golpe que tantas vidas despedaça
no entanto escolha de ação é poder
e neste momento Luana Barbosa, assassinada pela polícia militar de Ribeirão Preto em 13 de
o que esta massa-farda vê na frente [abril de 2016,
é mulher presente, presente, presente
é negra assim como Luana Barbosa, de Presidente Prudente,
é lésbica assassinada com um tiro pela pm durante uma blitz, em 27 de junho de
[2014, um dia após completar 25 anos de idade.
[ sapatão, importa? ]
Não - nunca - esqueceremos.

Bárbara Esmenia :: SP
16 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 17

MARIELLE FRANCO –––


Em meio ao derramamento de palavras suor baba e lágrimas Tinha amado mulheres sua vida inteira.
Luto doído e molhado Havia se apaixonado, sentido desejo, vontade de beijo, amor, gratidão.
Vivido no encontro entre corpos diversos Mas foi arrancada de tal possibilidade, em sua ingenuidade via tudo aquilo
Tomou todos espaços com luta. [como mera admiração.
Com dezesseis anos não deu mais pra esconder, amou uma mulher e
Foi possível contar com palavras fotos vídeos textos localizações arte e afetações [começou a entender.
e as coisas que não sei nomear Falava que era só ela, fazia de tudo pra esquecer.
A vida de uma mulher negra Começou a se odiar tanto que fez sangue escorrer.
Se mutilou, se afastou, mergulhou no lago seco da rejeição.
gigante foi, gigante é, gigante será Nunca esquecerá da amiga que lhe deu a mão.
sem mais interrupções Se mostrou igual, falou que não faz mal.
Uma identidade começou a se formar.
“Vai nascer uma em cada esquina” Ela que nunca tinha testemunhado o amor entre duas mulheres, seja na vida,
[seja na televisão.
E contarão suas histórias, Agora essas histórias habitavam inclusive sua imaginação.
e escutaremos, Se tornou real, se tornou aquilo que sempre foi.
celebraremos e acolheremos. Sentiu aceitação brotar, ao amar mulheres se tornou livre para se amar.

Vidas negras importam.


Sensibilidade e diálogos negros importam.
Memória preta passada a vida preta, importa. /

diga seu nome e conte sua história Rebecca Nora :: RJ

sofia_viaja :: RJ
18 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 19

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rio de janeiro, 7 de julho de 2018 — tenho
liza, meu bem, ele refaz a pergunta:
quanta saudade que eu tou de ti — mas é namorado ou namorada?
não cabe em carta, não cabe no peito, nem nos quilômetros que tem entre a sem pensar duas vezes, com mais convicção ainda:
gente. — namorado. na verdade é meu noivo.
como tu tá? o que tem visto por aí de bonito nos teus dias? silêncio de alguns segundos. volto a reafirmar:
me conta, o que tem habitado teu coração? — estamos preparando a cerimônia da troca de alianças, sabe?
por aqui, tudo bem. tem comida na mesa, tô viva e tenho tido tempo pra
descansar o corpo, dormir bem. grande silêncio. uma sensação gelada dentro do meu corpo, um medo,
mas tô aqui nos corres da vida vontade louca de chegar logo.
tô com um tantão de coisas pra fazer: iniciar projetos, retomar projetos, fechar quando íamos chegando na esquina, fiquei muito atenta prestando atenção se
projetos, dar sequência, limpar a casa, etc. a listinha de tarefas tá feita, agora é ele ia entrar na rua certa, ou se ia acelerar e fazer outro trajeto. eu tava pronta
só fazer acontecer e ir riscando o que já foi feito (adoro isso). pra saltar e rolar pelo chão e correr.
mas antes de começar qualquer coisa resolvi botar uma música e sentar pra te ele me deixou na porta do prédio, catei a chave na pochete o mais rápido
escrever a punho. a máquina quer dominar nossos tempos, nossos corpos... possível. abri o portão, entrei como se tivesse traçando uma rota de fuga.
mas eu escapo. às vezes escapo. subi os dois lances de escadas soltando o ar preso. entrei em casa, sentei na
quero te contar de anteontem, o dia que o brasil perdeu e que eu ganhei. varanda e entrei num vórtex de reflexões.
vai vendo: passei o dia na casa da tamara e da milena, esse casalzão sapatão mandei mensagens de áudio pra milena e pra tamara contando o que tinha
mais maravilhoso da cidade. acabado de acontecer, pra digerir o medo. como o apoio das amigas é
fizemos um almoço e passamos o dia inteiro imersas em trocas de ideias sobre importante nessas horas!
uns projetos em texto e em vídeo sapatão. te conto mais em breve, mas tem a ver cara, a gente passou o dia inteiro falando sobre existência sapatão, sobre
com autocuidado e resistência. produzir imagens e escritas a partir disso e olha o que me aconteceu no
lá pra umas oito e tanto da noite eu fui embora, coração aquecido e super feliz final do dia! a necessidade da volta ao armário como estratégia política de
com as nossas trocas. sobrevivência diante de uma situação de vulnerabilidade.
aí eu tava a caminho de casa, uma chuva querendo acontecer, uns ventos pro cara não bastou eu ter respondido que tinha namorado. ele me leu como
gelados batendo. o ônibus que passa pertinho da minha rua tava demorando pra sapatão, e, ao refazer a pergunta pra saber o gênero da minha pessoa parceira,
passar, então resolvi pegar um mototáxi, dois reais a mais e o vento nos cabelos ele queria ao mesmo tempo me localizar. e pra quê? “ah, você é lésbica porque
que eu gosto. não conheceu um homem que faça direito”. ah, não quis pagar pra ver.
cheguei lá e reconheci um cara que já me trouxe aqui na rua outro dia. ele refleti com as amigas que acionar a palavra NOIVO sem pensar duas vezes
demonstrou me reconhecer e diz que já me trouxe mesmo. foi uma maneira de dizer que meu corpo já tinha um dono, já pertencia a um
sabe o que ele fez? uma cara de tarado pra um outro cara que tava lá no ponto, latifundiário, dentro do código da cisheteronorma. não é assim que as coisas
mototaxi também. se operam nesses códigos?
na mesma hora mandei uma mensagem de voz pra alguém (quem nunca?), elaboro junto a elas que foi uma maneira debochada de responder, já que
avisando que eu tava indo de moto e onde eu tava iniciando a corrida. ah, eu não visivelmente sou lida como uma sapatão, que o armário donde eu saí pode me
quis recuar ali, não. só queria ir pra casa, foda-se a broderagem escrota desses proteger sim, pensando na perspectiva de escolha – porque até meus 17 anos
machos. subi na moto e logo começamos a subir a ladeira que dá acesso à rua não era escolha, era sufocamento, aniquilamento de existência por causa da
da minha casa. no ponto mais escuro e vazio, o macho me pergunta: família lesbofóbica.
— você tem namorado? ter que usar os códigos da cisheteronorma pra permanecer viva é doido
eu respondo imediatamente, convicta: quando a gente tá vivendo um contexto de afirmação, de visibilidade. que
abusemos do deboche, então. a poda rolou, mas a raíz permanece firme,
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forte. o brasil perdeu, mas eu ganhei. tive medo, mas agora tou rindo.
liza, te amo, meu bem. que essa carta te chegue em um momento de paz e quando pequena, eu falava “obrigado”
de tranquilidade. sigamos existindo, vamos ficar sapas velhas olhando pelas e não entendia essa mania de quererem me corrigir.
girinas que esse mundo ainda há de ver existir, insistir e resistir. com meio metro,
um grande abraço, sapatão. me escreve quando der e quiser, vou amar te ler. eu entenderia a expressão “se tornar mulher”
seguimos, uma puxa a outra. e com o triplo do tamanho ainda há quem não entenda.
com muito carinho,
mar me deixe falar do meu jeito
ou eu te deixo falando sozinho.
o nordestino com “os zóio” vive contente,
/ ai, diacho! não é o certinho que te faz feliz.

mar :: RJ a vida não é uma receita de bolo, mas se fosse


a minha cozinharia sempre
de mais
ou de menos.

“querida, é pro seu bem”


do meu bem, eu que sei
obrigado, mas passo sua ilustre gentileza.
não sou assim, obrigada.
não sou obrigada a ser assim.

Luiza Otero :: RJ
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MENINA DO PAU OCO


tons de rosa, ia lá mexer no armário do pai fazendo nó de gravata na frente
olha, não é por nada não, do espelho do banheiro conjugado atentos ouvidos na escada que se a
mãe pegasse era coça na certa. um apreço muito grande pelas bolinhas
mas esse seu cabelo essa sua roupa esses seus sapatos escuros de de gude que ganhava escondida do avô, consertava bicicletas com ele aos
homem os passos duros & solitários nas calçadas da cidade sozinha à noite fins de semana e voltava toda suja de graxa pra casa contrariando então da
você não tem medo, parece um moleque com essa bermuda folgada essa sujidade permitida as regras, labuta árdua pra máquina de lavar roupas que
camiseta cobrindo os peitos desprotegidos de lingeries, tem um espaço já não mais centrifugava.
na sua gaveta de calcinhas cheio das rendas que sua mãe comprou pra
você ainda com etiquetas da loja & pijamas azul-bebê que nunca vestiram
suas coxas adormecidas na cama cujos lençóis andam já férteis de tantos /
hormônios. você tem amantes demais, não para quieta, vive pelos bares
falando alto com essa sua voz rouca, passando a mão nos cabelos curtos Cecília Floresta :: SP
e ovacionando as últimas paixões de pouco ou longo prazo, mas sempre
destinatárias as correspondentes dos seus desejos.

a avó insistia que você devia ter nascido homem, jurava que a filha estava
prenha de um neto & antes de você nascer seu nome já era Carlos
Henrique, tiveram que correr às pressas a imaginação pra sacar outro
batismo e daí Clara tardia menina que foi Carlos Henrique nesse meio-
tempo já aprendia a abrir os olhos. os outros também afiançavam de pés
juntos, tanto que o quarto azul & os mijões, a avó nunca errava o caminhar
dos netos, uns diziam que era bruxa porque benzia as crianças da rua
em troca de mantimentos batendo aquele emaranhado de folhas recém-
colhidas do módico jardim que cuidava verde no quintal da frente e dizendo
umas coisas assim que ninguém entendia, mandinga mandinga. você
passava tardes inteiras ali & teve um tempo que a velha a contragosto mas
a mando de sua mãe acendia vela todo dia e se estrebuchava em seu corpo
de cima a baixo com as dádivas de Ossanha em punho pedindo pra limpar
os caminhos da neta que só fazia querer jogar bola com os meninos.

do primeiro estojo de maquiagem, presente de natal forçoso, fez-se saliva,


que seu primeiro movimento foi comer aquele colorido pra ver que gosto
tinha, nenhum efeito colateral a não ser a mãe aos gritos com o pai na sala
dizendo que não sabia mais o que fazer com a filha, tão difícil, antes fosse
como a prima que andava já empanturrada de sapatos vestidos lenços
macios no guarda-roupa imaculadamente branco. você foi crescendo
contrária a qualquer coisa que lhe impunham, bonecas panelas variados
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E OS NAMORADINHOS?

Quero pedir desculpas Valérie e meu prazer de ter prazer contigo


Às namoradas que eu escondi A vocalista de uma banda de garagem
Que não apresentei pra minha família O bairro quente e cheio de copo de guaravita pela rua
Foram cinco A tua família imensa de sobrinhxs carinhosxs e olhares adultos duvidosos
Meu numero de sorte As viagens de ônibus da universidade
A soma da casa onde vivo O nosso namorar no campus fumando e olhando a baía de guanabara
E de onde tenho memórias da vida O teu apelido “masculino” e tua cara de falsa marra
Onde vive minha família Os teus bermudões e seus seios fartos
Que sorte, que sorte Os teus bermudões em mim
Estar viva num país onde mais nos morrem As tuas fotos de mim
A vez que curti um motel de verdade
// e fomos de lotada, saltando antes para disfarçar
A tua paixão pela Gia
Joana O nosso sexo escondido
Valérie O nosso sexo no vão entre a laje e o telhado
Mariana
Elaine //
Letícia
Mariana e a nossa amizade sincera
// A gêmea da minha amiga
A tua descoberta de amar mulheres
Joana e meu beijo chorado por amar uma mulher As violetas na janela
A primeira sapatão que realmente conheci As mil rosas na tua porta pra desculpar minhas mancadas
Os ensaios de teatro A tua família de mulheres unidas
A reconciliação após um show da Zélia na praça As quatro ou cinco ruas a separar nossas casas
A minha imaturidade de terminar e voltar toda vez A tua firmeza com a minha avalanche sentimental
As caronas na bicicleta Os nossos trançares de cabelo no sofá da sala antes do primeiro beijo
O meu urso que eu vesti com a blusa de teu cheiro O cachorro de pelúcia que você me deu e até hoje dorme (eu durmo) comigo
O meu primeiro sexo que só anos mais tarde (re)considerei A nossa trilha sonora Duncan (de novo ela)
O tapa na cara que você me dava em cena A segunda leonina das cinco (ou seis?) da minha vida
O menino que namorei depois de você, tentando ht_ser A que não mais namorou mulher
O teu telefonema sobre o amigo diretor de teatro assassinado
A fogueirinha que você fez com o que eu te dei //
As nossas vidas até hoje amigas

//
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–––

Elaine e os nossos signos complementares de nós duas


O teu jeito calmo e manso de lidar com a vida só as lembranças
As tuas camisetas listradas e as roupas de bolinha do céu caindo
As tuas pernas magras e tua barriga bonita enquanto
A tua risada engraçada e as imitações de vozes
O teu jeito doce de me chamar de Lica esquecidas
O nosso grupo de amigxs afetuosxs aquecidas
A tua insistência de dizer que morava na Tijuca, mas era Rio Comprido
A tua cara se um dia ler isso precipitavam-se as folhagens
O meu pouco tato de saber lidar com o nosso fim dos nossos corpos
O nosso namoro que não era chamado assim, até que terminou condensados em ar
raro
// e
feito entre
Letícia e os nossos corpos harmônicos
O teu prazer pela vida as bocas
A tua cara linda
O teu jeito parceria e malandragem e as virilhas
A tua vida tão adulta
A geladeira sempre farta intocáveis
A tua casa a poucos passos da praia doloridas
O homem que vi morto, na calçada, após se lançar duma janela em suma
As tuas amigas que eu não mais gostava com sumo
A tua certeza de não se ver num futuro com mulher de decênios
As minhas apostas abandonadas
(você está no segundo casamento, graças às deusas)
A fantasia de noivas que não usamos no carnaval e fiquei triste /
As tuas ancas onde eu gostava de apoiar a cabeça e dormir
A que também ficou amiga da minha irmã Nayara Priscila Xavier :: RN
A 3x4 mais encantadora da minha coleção
O cd da Calcanhotto que você me dedicou perto do nosso fim
A tua mania de chamar minhas amigas de sapastrólogas antes disso ser moda
O teu ciúme premonitório com a que eu viria a casar

Aline Miranda :: RJ
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––– FOME DE BOCETA


Respiro o ar que sai do teu nariz Entre nós têm quatro bocas:
Das tuas bochechas Duas minhas, duas suas.
Das tuas orelhas Todas espaçosas e ocas,
Meu perfume favorite Ambas ansiosas e nuas.
Não é flor
Nem chocolate Quanto mais se comem,
café da minha terra, Mais sinto aquela fome.
Pão saindo do forno ou chuva no asfalto Confundo a de cima com a de baixo,
o cheiro que sai da tua cara Mas nas duas, as minhas encaixo.
campos verdes de respire Se olham,
Refloresta cidades no meu corpo Me molham.
rua noturna em tua boceta de chocolate em dia quente
Crescem plantas de manjericão dentro dos meus olhos no pátio da tua cara Trocam beijos com dentes,
No atardecer rosado das tuas bochechas na terra humeda dos teus olhos Ou então sem, ainda ardentes.
Mais bem barro tão barrosos teus olhos mudantes que crescem Trocam saliva com gosto,
Como uma planta Ou então sem, aí já é gozo.
Ante os meus
Que cosa tiene rulos que no la mata la mata diamante de la tierra la perla del Essa fome que não me larga!
[mundo la mata Tenho essa minha ânsia que insiste,
Tu cielo que beso en tu frente céu mel véu da tua noite dos teus dias Enquanto a sua me lambe e me alarga,
Carpa de circo el cielo estrellado sobre mi cabeza que beso tu frente A minha te baba e assiste.
Por tus orejas entro yo
Cuando te hablo de jugos de frutas o te canto un poema entro yo como De tanto que agoniza na minha,
bajando el gran canion chiquita ahi te entro y me guardas y me comes por las A sua se contorce e se queixa.
orejas me dijeris y me decis canciones que entran en mi y hacen carnavales Culpa dessa vontade que eu tinha,
recorriendo mis brazos despertando meus sinais - arriba lunares! - a nadar Fome de boceta que não me deixa.
como peixinhos em um mar que termina onde começa o teu
dum dum dum
Aí vem a onda grande aí vem a molhar tudo /
Dum dum dum aaahh
A molhar a vida o atardecer a mata o céu o mel teus dias e tuas noites o Camila F. Machado :: RJ
circo o carnaval a molhar a onda o mar mis lunares el canion dum dum se
mojan mis peces lunares agua quente de vida se mojan tus ojos barrosos y
la embarcación de tu lengua tus labios de helado lo tanto que brilla la vida
cuando todo está mojado
O tanto que brilha a vida nos teus olhos de barro

Paola Santi Kremer :: RS/ARG


30 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 31

––– POR ISSO INVENTARAM OS QUARTOS


Descansando a face entre suas coxas quentes, entendi por fim que minha boca na sua
há melhores lugares para minha língua do que dentro da minha boca buceta durante a sua boca na minha
silenciada. buceta isso visto de fora
por alguém com sobrenome
dizem que parece tão inofensivo
/ quanto uma aranha
peluda imensa solta tremendo
Maria :: SP de fome

Maria Isabel Iorio :: RJ


32 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 33

––– –––
Eu vi o futuro nas letras de tua canção e ele era sapatão. no teu cabelo
Então imaginei que eu era instrumento e que no futuro você me tocava. colho fruto doce
Dedilhando acordes no meio de minhas pernas, a lírica da tua língua compondo dos teus rodeios
melodias a meia noite, fazendo versos do meu avesso e nenhum medo. o gosto quase maduro…
Imaginei até que eu era fruta madura e tu me chupava, garota!
me liquidificava e me bebia eu tudo perdi, eu tudo ganhei.
Como o ritual da sua vitamina do dia. nos teus seios
Imaginei que eu era bicho, nos meus medos
gata no cio e me roçava no seu pescoço longo, me embolava nos teus dedos
no seu cabelo curto e ronronava na tua orelha previsões de futuro. nos meus buracos…
De tanto imaginar desejei escrever uma poesia que criasse ponte concreta, onde garota!
eu passava por cima de minhas inseguranças apenas para dizer por dizer, sem eu tudo lambi, eu tudo chupei.
esperanças, mas que dizendo eu me acercasse do teu corpo, das tuas palavras o ruído interno que eu escuto
no presente. Quem sabe sua boca que diz tanta coisa linda, ficasse perto da da tua unha no meu couro cabeludo
minha boca cansada de sonhar sempre aberta. a fome que teu toque me dá
nossos músculos, nosso pulso…
garota!
/ eu tudo bebi, eu tudo jorrei.
você rebola
Gênesis :: RJ o líquido que é seu
desce na boca que é minha
e esse rosto é lugar pra você sentar…
garota,
eu quis.

Bel Baroni :: RJ
34 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 35

TEU NOME
Caminho pela casa tropeçando nas coisas que fui deixando pelo chão ao Na varanda, chamo pelo teu nome, mas chamo baixo. O confidencio com amor
longo da semana. A desordem me incomoda, nunca fui de não me importar e desejo, querendo que todos pudessem escutá-lo, porém com o cuidado de
com isso, mas por algum motivo deixei o caos tomar conta da casa. Ainda meio quem não quer que ninguém te machuque. Confesso e repito teu nome para
entorpecida com a tua última visita, sento no sofá e consigo sentir teu cheiro que ele fique gravado em mim da mesma forma que teu cheiro já se apoderou
entranhado no meu corpo, na mistura de desejo e já saudade constato que é do meu corpo. Continuo chamando porque tua desordem e vontade de vida
tarde demais, agora a bagunça faz todo sentido, eu estou apaixonada. Preciso é parecida com a minha. Repito teu nome porque parece que te conheço há
de um cigarro. cem anos, mesmo sendo praticamente duas desconhecidas.
A desordem, que agora é explicável, me confronta, posso ouvir daqui da sala a Confidencio teu nome, amor, à medida que vou fumando meu cigarro porque
pilha de louça e as roupas jogadas no chão do quarto. Pela primeira vez na vida quero que o mundo saiba de nós, ainda que ele não nos entenda e não nos
estou apaixonada por uma mulher, ao mesmo tempo que isso me deixa feliz, me suporte. Foda-se o mundo, ele tá tão sujo quanto a minha louça acumulada.
amedronta. E não, não é nada parecido com “Azul é a cor mais quente”. Confidencio teu nome para mim, para minha casa e para minha vida. A
Consigo ouvir a voz da minha mãe na minha cabeça. Ela está perguntando onde desordem agora não me é tão estranha, consegui encontrar nela uma
errou comigo e afirmando que a culpa é minha por não ter rezado o suficiente. beleza revolucionária.
Daria tudo pra ter meu isqueiro vermelho, que deve estar perdido nessa
bagunça toda. Eu só queria fumar um cigarro. Não quero saber se esse não é
o modelo de casal que cresci vendo nas novelas. Também nunca vi mulheres /
parecidas comigo lá e ainda assim achei que eu merecia ser amada. Também
não quero saber se as pessoas irão falar, ou se os resquícios religiosos- Aline Sabino :: RJ
heteronormativos da minha adolescência enchem meu saco de vez em quando,
já ouvi de todos que só por ser mulher eu era inferior e precisava mais cuidar do
que ser cuidada. Desacreditei de tudo isso.
“Se permita viver nessa desordem”, você me disse quando eu costumeiramente
reclamava sobre a situação da casa. Permaneço no sofá. Com um sorriso de
canto de boca, recordo da tua maneira incisiva de falar. Não foi tão difícil eu me
apaixonar por uma mulher tão poderosa como você.
Finalmente consigo levantar e procurar pelo isqueiro. É fim de tarde. E todo fim
de tarde fumo um cigarro ao mesmo tempo que vejo o pôr-do-sol na varanda.
Ritualizar meus dias me faz pausar em meio a tantas obrigações e prazos para
cumprir, parar um pouco me faz bem. Acho o que procuro entre as roupas
espalhadas pelo chão. É hora de bolar um cigarro. Você acha cafona quando eu
fumo, sorrio novamente ao lembrar disso. Fudeu, você não sai da minha cabeça.
Te queria aqui na varanda comigo.
Duas mulheres. Dois corpos negros. Duas filhas do fogo.
Poderíamos ganhar essa cidade, sabia? Se juntar tua intensidade com a
minha é energia pra ganhar o mundo todo. Poderíamos comprar uma Kombi e
conhecer outros países. Poderíamos ser um casal piegas. Poderíamos fazer e
desfazer planos na mesma velocidade que vamos mergulhando cada vez mais
uma na outra.
36 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 37

BATIZADO APROXIMAÇÕES AMOROSAS


no quartinho dos fundos 1. Tenho sono, saudade e distância. Caminho paciente uma estrada traiçoeira.
me encontrou no meio O vacilo prescreve. Revigoro o ritmo. Tenho pernas resistentes e um coração
com a coxa ansioso, mas inatacável. Tenho meta: chegar em casa. Não a casa dura,
voltamos à festa concreta demais; mas a casa amorosa, onde meu bem-querer te habita.
úmidas
os dedos ainda afoitos 2. Quando a tua mão busca o justo espaço, o espaço posto, o espaço falta,
fizeram amor comigo quando a tua mão busca, espalma, quando a tua mão busca coluna, pele,
quando a tua mão busca osso, a tua mão busca, digo, quando busca, a tua
mão busca quando busca qualquer coisa no meu corpo, digo, quando ela
/ busca não para encontrar, mas para seguirnbuscando, assim quando a tua
mão busca em mim; é sempre nosso encontro.
Ana Beatriz Domingues :: SP
3. Com quantos copos de armagnac liquefaz-se o amor entre duas mulheres?

4. Ao acordar, te chamo. Você: lenta. Dentro do sono. Profunda: você. Eu:


superfície. Antemanhã. E te chamo naquela hora aquosa em que o peso do
corpo é nulo. Te chamo na hora em que tua coxa cobre o lençol amassado, na
hora que faz calor dentro (e tua coxa nua embaraça a cama). Te chamo. Você:
úmida. Desenho: saliva sobre travesseiro. Ao acordar: vinco, visco, isca, fecho
os olhos. Você: presença.

5. Bravura: a minha vida e a tua.

Natalia Borges Polesso :: RS


38 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 39

ASSALTO
Clara já pressentiu, antes de entrar no quarto, que havia algo de errado. A porta e a gente ficou ali se vendo. Não sei quanto tempo passou. Eu me perdi um
estava mal fechada e não era assim que ela tinha deixado. Respirou fundo, pouco. Só sei que quando eu vi a gente tava se beijando. Um beijo calmo e
sentiu o suor nas mãos, meditou cinco segundos e botou a mão no trinco. bom. Ao mesmo tempo voraz. Mas não sei se durou tanto assim. Sei que uma
Um ar gélido percorreu toda a sua espinha. Queria cair no chão, mas manteve- hora olhei pra ela e disse que eu não era sapatão. Que ela me desculpasse,
se em pé, firme. Olhou o quarto de cima a baixo e de lado a lado. Não tinha um mas que eu tava empolgada com a Lua e segui o impulso. Corri pra dentro
só espaço imune à bagunça. Roupas, gavetas, papéis, sapatos, até o colchão da festa e dei jeito de ir embora logo. Mas agora eu to aqui sem conseguir
havia sido arrancado. dormir. Agitada. Não consigo parar de sentir aquele beijo. Mas eu to com
Ela tinha saído pela manhã pra tomar um sorvete com as amigas e o sorvete medo. O que isso significa?”
virou almoço na casa da Maria e depois uma sessão de Netflix na casa Um medo profundo percorreu Clara. Ela sabia quem tinha feito aquela
da Bianca. Era sempre assim, todo domingo elas se perdiam no tempo e bagunça no seu quarto. Ela sentia que o pai andava desconfiado de alguma
aproveitavam a única folga de tudo na semana entre elas. mudança. Na verdade, o pai já farejava alguma coisa em Clara, antes dela
Clara tinha deixado o quarto limpo e arrumado, como sempre. Era seu ritual pra mesma. Que merda! Não era pra ser assim. Ela só queria seu tempo pra se
poder começar a semana bem. Acordava domingo bem cedinho, tomava café e entender. Mas o pai era muito religioso e não permitia nada fora dos seus
deixava o quarto perfeito e ia vendo ele se desfazer um pouquinho ao longo da padrões. Clara sabia que aquela bagunça era o sinal de que mais cedo ou
semana. Mas nada comparado ao cenário que ela via agora. Um furacão tinha mais tarde, a qualquer momento, a sua pele arderia em punição por não ser
passado por ali. uma filha normal.
Veio um vento frio pelo estômago de Clara. E ela correu pra gaveta da Tentou pensar no que fazer, mas sua cabeça não conseguia sair do lugar.
escrivaninha amarela que ela achou no lixo e restaurou. Foi catar o diário, ou Lágrimas brotaram nos olhos. Será que a mãe já sabia? O que estaria
melhor, um caderninho de palestra da escola que ela customizou e passou a pensando? Não era pra ser assim. Ela não tinha contado nada pra mãe ainda,
usar como lugar de refúgio. Ali Clara escrevia e desenhava sua vida. Ali era por medo do pai. Se ele desconfiasse que a esposa sabia, sobraria pra ela
como um buraco negro onde desapareciam suas aflições em forma de linhas e também. Mas Clara sentiu-se traindo a mãe, porque o pai não acreditaria na
traços que davam asas à sua cabeça. inocência da mulher. Bosta!!! Clara chorou fundo, soluçando. Seu desejo era
O caderninho tinha desaparecido. E ao fundo da gaveta uma das páginas desaparecer e levar a mãe junto. Seu desejo era ser de outra forma. Era não
arrancadas dele estava ali meio amassada, como que um vestígio intencional do ter escrito aquelas palavras. Por que não guardou tudo só pra si?
ladrão. Era a página do primeiro dia das férias do verão passado. Clara sabia de Ela tinha que tentar achar um jeito de sair daquela situação. Girava em
cor tudo o que estava escrito naquele pedaço de papel que jazia no fundo da torno do mesmo sentimento: medo. Culpa também sentia. Raiva, angústia,
gaveta desordenada. vergonha. A pele dela gritava de medo.
“Hoje eu mergulhei num mar aberto muito profundo e tive medo. A gente foi com Ela intuía que o pai estava esperando a vizinhança voltar dos seus passeios
a galera toda na festinha da Cora. Dancei, bebi um pouquinho de cerveja – se dominicais pra poder fazer um alvoroço com plateia. Ele queria humilhar a
o meu pai sonha! Comi umas coisas gostosas e dancei mais, sem parar. Teve filha em praça pública. Era assim que ele achava que se faziam as coisas.
uma hora que a Bianca gritou alguma coisa sobre a Lua e eu corri pra rua. A Ouviu um estrondo na porta da frente. Se tremeu inteira. Era ele, era ele, era
Lua sempre mexe comigo. Lá fora olhando pro céu, encantada, eu acho que ele... Dali pra frente não lembrou de mais nada.
passei mais de meia hora. Daí eu senti um ar mais quente se aproximando e vi
um All Star vermelho contrastando com a grama verde. Nunca tinha visto aquela
menina na minha vida. Ela disse que era uma prima da Cora que vinha de outra /
cidade pra passar o verão. A gente ficou conversando e eu fiquei meio nervosa
– mas não entendi porquê. Ela ria gostoso. Parecia música. Teve uma hora que Marina Monteiro :: RJ
a mão dela esbarrou nas minhas canelas e eu senti um ar quente me percorrer
por dentro. Arrepiei todinha. A conversa tava muito boa. Fazia tempo que não
encontrava alguém pra falar tanto, sem tédio. Uma hora ela me olhou tão fundo
40 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 41

É MELHOR TOMAR CUIDADO.


É melhor tomar cuidado com o que vão dizer... O que será que vão pensar de nós se nos virem nessa viela?
Me diga com quem tu andas Disfarça... relaxa.
Que eu lhe direi quem é você. Somos apenas duas amigas, conversando aqui na praça.
Passo, me afasto.
É melhor tomar cuidado com o que vão dizer... Paro, disfarço.
É melhor tomar cuidado... De perto, o peito aperta
É melhor tomar... De longe eu tenho que existir, mas se for pra ficar aqui, tenho que ser mais
discreta.
Mulher! Conduta, complexa.
Confusa...confessa.
Me olho no espelho, me vejo Que o meu amor também te toca e o teu medo atravessa.
Não me reconheço. Faz até jurar promessa.
Desejos divididos, desejos desconhecidos Pedir redenção pelos pensamentos.
Mulher, O que tanto se abomina, é o que te causa tanto tormento.
Desejo. Mas não anula o sentimento, de surpresa, frente a verdade.
Mãos, medos e mamas Saber que é pequeno e fraco, pois amar, não é pra gente covarde.
Coisas estranhas, tem me acontecido.
Me sinto molhar, Mas é melhor tomar cuidado com o que vai dizer...
Me vejo inundar, É melhor tomar cuidado...
Me olhar nos olhos, Mulher É melhor tomar...
Me mata aos poucos, mas se alguém descobrir
Me matam de novo. VIADO! DEMÔNIO! BIXA! SAPATÃO!

Minha mãe até que, tem amigos que também são assim, Se algum dia nos calaram, nunca mais nos calarão.
Acho que ela não vai ligar quando se tratar de mim. A sapatão que existe em mim, saúda a sapatão que existe em você.
E o viado que em mim habita, saúda o viado que habita em você.
Mas, por enquanto
É melhor eu nem comentar com meus amigos Mas, se dentro de ti, nada faz morada
Porque, nem eu mesma, sei direito o que tá acontecendo comigo. O que é que te preenche e te arrepia os fios?
Qual é o amor que aquece o teu peito,
É melhor tomar cuidado. Nos dias cinzentos, tristes e vazios?
É melhor tomar cuidado...
É melhor... Sobre o Mar, a Mulher e o melhor a se fazer
É incerto. Intenso.
PECADO! Revolucionário.
Sobre o Homem, a Terra e suas más escolhas
MULHER, PRECE É terrivelmente oculto e trágico.
MULHER, PRESSA
MULHER, PESTE
MULHER...SE APRESSA!
42 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 43

SONO RETROATIVO
Mais que satisfação e puro prazer Sair de casa exige muito de mim
É se encontrar no outro e poder transcender. É assustador viver em uma cidade
Trazer luz, em forma de amor. Que não te quer
Apagar toda dor, dos seres subdesenvolvidos. Viva

Prazer, sou o X da questão. Vivo atenta


Mais um ser, então Caminho com minha namorada
Subversivo. sem mãos dadas
Rimos juntas, geralmente caladas
O meio fio é mais seguro
/ que as calçadas

Mariana Valha :: SP Mas juntas não andaríamos


Se não fossem as que antes aqui estiveram
E decidiram andar pelo mundo
Sendo quem eram

Estou muito cansada,


e sei que não estamos sós
Será possível dormir as noites
em claro que passaram
as que vieram antes de nós?

Sinto muito por elas


Sinto-as comigo
Me sustentando
e me consumindo
Nos recuperamos
Do desabono
e do sono
dormindo

Natália Affonso :: RJ
44 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 45

––– PRESENÇA FEMININA


eu passei a minha vida inteira Resiste, mulher!
rindo sem vontade já que a vida toda foi difícil aceitarem o que tu é
de tudo que homens falavam te aceita (a primeira lição de todas)
aceitando impertinências tá olhando o quê? respeita!
tentando, a qualquer custo imagina que louco na rua não poder andar de mãos dadas
ser palatável a suas goelas frágeis é, cês tão ligados que mina com mina também pode ser namoradas?!
minha vida inteira pedindo desculpas desde a infância, brincadeira de criança
pelo que quer que fosse juntar boneca & boneca
e sentindo o estômago embrulhar nem sabia que tinha nome esse lance de ‘’ser lésbica’’
por nunca ser boa o suficiente só mais um rótulo nesse mundo de astral/moral/física & ciência
eu passei minha vida inteira tentando a gente segue lado a lado
caber no que haviam planejado sapatão é resistência!
rompendo contratos, jogando roupas pela janela deixa falar, do amor de mulher pra mulher
tendo crises intempestivas dentro do carro que não é lojas marisa
em movimento é ventania, sente a brisa
dormindo ao lado de monstros tenebrosos acontece! se bem que não te parece
ou contando as folhas secas do chão cê olha e pensa: devem ser amigas
por sempre estar de cabeça baixa mas a gente fortalece!
e eu não me lembro de ter atinado em nenhum momento de mina pra mina tu não imagina
para o fato de que as coisas absolutamente o que contagia essa força feminine
não precisavam ser daquele jeito sapatão, revolução, a conexão?
hoje, de um lugar calmo e quieto é violenta, um vulcão!
eu passo noites inteiras tentando além disso altos dilemma
suportar acordada resolvi escrever poemas
a tortura de rever minha vida nessa espécie pra falar dos bons momentos
de filme maldito não só guardar tudo aqui dentro
que teima em me exibir entender desse caminho
agonizante que é de amor, cuidado, carinho
durante anos a fio e poder explicar pra tia, que não tem namoradinho!
sufocada do lado de dentro tem aquelas mais caminhão,
da minha própria pele aí vem suave com as mãos
ou outros jeitos de usar a boca, só de pensar já ficou louca
estacionei no flow que isso dá
/ dopamina, cerotonina, força feminina
quero ver segurar!
Ludmila Rodrigues :: BA tu pressa, eu pausa
nosso amor: uma causa
primeiro a família, cada uma com a sua
depois seilá..militar, andar de mãos dadas na rua
mergulhar, transmutar
46 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 47

–––
ser tão verdadeira ao ponto de ninguém desviar o olhar Deixa disso, mulher
sob a luz do luar Vem comigo
quem sabe aquele sopro pra relaxer Cola esse corpo
solto o som e abre os braços Explode esse grito
hoje a gente vai decolar Deixa disso, mulher
amo nós Não tenha medo
que viram laços Me entregue os seus descaminhos
como a tua presença Descole esse desejo escondido
aqui nos meus braços Deixa disso, mulher
não vejo a hora da gente se assumir Não crie idiossincrasias
já que a hora é agora e o lugar é aqui Já te dei meu mapa
e eu que nem tinha parado pra pensar Já comprovei a sinergia
trouxe nossos versos pra rua que é o nosso lugar! Deixa disso, mulher
Não te trago promessas
Caminho improvável
/ Provo - contigo, o gosto
da bala mais incerta.
Amanda de Lima Ribeiro :: RS
//

Te pego no escuro
Molhada
Em qualquer cama frígida de motel
Te quero aberta
E com todas as cicatrizes que o tempo foi capaz de te romper
Te pego em verdade
Sintonia e sinceridade
Regendo a sinfonia dos nossos corpos em ação
Te pego reta, ereta, em direção-
como um lacre de um vulcão
Com a boca aberta, língua salivando
Os olhos azulados, imprimindo satisfação
Te quero decidida e imprevisível
Tal como tudo isso nos apareceu
Te quero aprendiz, te quero professora
Com todas as posições que ainda vamos criar e redescobrir
Te quero na humildade e na coragem
Com todos os enfrentamentos sociais que ainda nos caberão
Te quero mistério, incerteza e desafio
48 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 49

–––
Te quero inteira-sentada-na minha língua tuas mãos molhadas de suor
Te quero fogo e explosão. e gozo
Te quero corpo quente volátil macias
Te quero na mais ingênua insatisfação. mananciais
minuciosas
as manhãs das tuas palavras
/ não sei se cê consegue ouvir,
elas tem som de Pará,
Livia Orsati :: SP de Minas
chegam doce no ouvido
e na boca
o teu ésse
combina com o xis
que insiste

em sair
da
garganta
dos rios
mais profundos
das poetas
daqui

Gabrielle Souza :: RJ
50 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 51

––– –––
arco-íris na tela molhei vermelho o seu branco lençol
meu amor te dou aos goles sem dor
a fresta de sol na janela atenta a cor
prova que na tarde no toque ceguei o sol
o amor mais quente é o nosso ela não gostou porque é higiênica
carros passam mas na hora do ato se lambuzou toda com a minha performance cênica.
o caos da cidade e o cansaço
e aquela calma que nos cobre sua mão de peixe
teu gosto era mais cheiro minha perna aberta
teu cheiro um manancial de flor
sem nenhum sentido
passeio em teu corpo o agora é só um momento
minha língua de orvalho
em minhas mãos tu és a vida ela,
que encanta os viajantes doentia de sensação
minhas preces ditas aos gritos inexplicavelmente desesperada pelo futuro
silenciam o barulho da urbe por não saber aonde lavar as mãos

e como tudo é doce sobre ontem.


quando se unem os seios
e as bocas parecem apenas metade
de um grande sonho faminto /

Bruna Freitas Nogueira :: MG


/

Gabrielle Dal Molin :: RN


52 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 53

–––
ela eu
com todos os poréns e uma puta sorte
os tratos de doer
as dores com você
os comprimidos
os descuidados
os excessos /
de informação
que catalogam Carolina Muait :: RJ
possíveis tragédias
dos 1%
que não tem solução

eu
e os calma aí
os pera lá
os vem aqui
os não faz isso
os deixa assim
os não tem razão

eu
com todos os poréns
os destratos
as dores
os esquecimentos
das doses que não curam
e os excessos
de aflição
que catalogam
mais mazelas pra coleção

ela
e os toma isso
os deixa comigo
os não esqueça disso
os leva aquilo
os beijos nas dobras
os ‘tá bem assim?
54 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 55

––– –––
esses momentos de despedida tecnologia é confluência (aprendi nas aulas de férias)
me deixa com olhos de rio de ciência, técnica e mercado.
[Se eu fosse um dia, você me elegeria sábado. Se você fosse um dia, aleatória
mas dancemo cas coisas que cutucam a alma alegria de feriado emendado. Nós duas juntas, férias em casas de veraneio.]
bora?
[ciência]
o bronze de sol e as brincadeiras na beira do mar, do corpo
as memórias que fazem o corpo da gente estremecer, suspenso em alma
[infinitos sentimentos] rendido a instintos
um futuro político nadando de creu nas incertezas, excitado em hormônios
as distâncias, porque viver é boiar no mar
ditas ânsias agora
se apaixonar
quero te viver tão logo é transitar
for possível entre mergulhos e ascensões atmosféricas.
pros nossos tempos (e amar é permanecer)

vou caçar 60 segundos de netuno [técnica]


pra botar na nossa conta de tempo terrestre alquimia de encaixes
e poder ficar mais dias contigo forja de trancas
chaves, fechaduras
maçaneta de cômodos iluminados, lugares-de-morada
/ arquitetura das suas escápulas em minhas mãos

mar :: RJ ou construção de paredes esbranquiçadas.


você amalgama de abraço d’água
e inspiração profunda
encontro do dentro e fora.

[mercado]
and time is money, baby
e, se você é a pessoa mais rica do mundo
eu, malandramente
ao estar com você
com a ciência da fortuna
e a técnica da sorte
56 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 57

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deito a ampulheta Uma gata de mil patas invadiu a minha sala. Estava tudo tão vazio e
do tempo calmo que eu nem me preparei. Quando percebi, se alojava em minhas
que rege vestes tomando o colo pra si, ou era eu quem aninhava no colo que era
o tempo - do mundo dela. Embalsamada em ternura, esquentei minhas mãos naquela pele e
: fabrico valiosos infinitos. afundamos na bruma da companhia uma da outra. De vez em quando
vinha uma inspiração. Ela, de seu universo interno, calmamente devolvia o
novelo pra mim. Costuramos mundos caminhando noite a dentro. Virando
/ latas, lambemos a poeira das estrelas de cada constelação. Percorremos
horas, dias, meses, até que contar o tempo perdeu totalmente o sentido.
Juliana de Castro Bueno :: SP Nos engalfinhamos também. Grunhidos incessantes cortavam a luz da
lua nas horas de dedicação. Secretamos. Camufladas sob o lírio furtacor.
A gata e eu nos fundimos formando um novo ser. Toda sorte de prole
parimos. Depois ela partiu, eu também, mas nós nunca nos deixamos.
Vivemos na intensidade das doses homeopáticas que nos preocupamos
em servir a conta gotas, por consciência do risco que corremos de sorver
completamente uma a outra.

Gabriela Luna :: RJ
58 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 59

NÃO FALAMOS DO ADEUS –––


A cabeça resiste enigma.
ao que o peito anuncia desvio.
é chegada a hora de partida como chamar o inominável?
expedicionária da vida como poder fazê-lo viver... sem nome?
amarelas foram como saber o que é?
todas as tuas sinas
todas as 7 terras nos encontramos.
a terra batida em momentos de mar.
e junto com ela em momentos de retorno.
pedra papel tesoura e quintal para cada uma.

uma, percorrendo a lua.


/ outra, sendo a própria cratera esburacada.

Rebeca Rose :: RJ uma tornando-se profundeza marítima, buraco negro


e outra sendo levada pelo mesmo desejo, o poço sem fim.

você me faz ver as minhas garras.


me deixa ver
o pior de mim
e eu gosto de te mostrar,
as minhas garras e o pior de mim
você sabe ver sem se assustar.
você me instiga
me intriga
me causa
medo do descontrole.
tragédia absurda,

marco um ponto, e uma vírgula


uma tentativa de final e uma possibilidade de retorno
sinto que vai no fôlego. ou sem fôlego.
se as palavras te perseguem para tentar dizer, me dizer,
eu quero que elas surjam mais!

um ponto e uma vírgula para ver tudo o que te faço produzir.


quero saber que é comigo que se dizem suas palavras.
60 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 61

–––
com elas sinto um contorno. Laço não sufoca, não
um espaçamento no tempo oprime. Laço
uma materialidade ressignifica o
um sentimento (efêmero) de constância. entrelaço das
nossas pernas
escreve em meu corpo abertas.
marca com sal minha carne
a tinta na minha pele //
estremece a minha pele
com seu nome Terminei o dia descendo no mesmo ponto, da mesma linha de ônibus que
vi você subir de manhã cedo. Na correria do começo nem nos despedimos
faz da sua presença indômita direito, você já estava atrasada e o ônibus chegou muito mais rápido do que
inscrição de letra imaginei. Seu sorriso me satisfez.
e assim não desvio. No fim do dia, no então ônibus de nome circular, fiquei tonta mais uma vez
com as voltas que o mundo dá, parece até que meu estômago encucou que
consegue sentir as rotações da Terra, ou que vivo em permanente estado de
/ montanha russa. Com você foi queda livre.
Quase passei do ponto, perdida nas ruas que
Emília V. :: RJ se encontram
e desencontram
e continuam em um vai e vem sem fim,
como um borrão pela janela, ou brigadeiro com biscoito na panela, ou sua casa
amarela, ou minha voz cantando em capela, ou seus olhos me dando aquela
piscadela, ou eu te carregando na minha magrela, ou nós juntas dividindo a
sequela, ou suas mãos fazendo em mim aquarela.
Nada disso é balela.
Agora, já tá tarde, já tomei banho gelado, já me tranquei no quarto, já me desfiz
em meia dúzia de retalhos. Agora, meus olhos estão um pouco inchados e
ainda é difícil enxergar as luzes.
Agora, vamos aproveitar?
O presente é leve, intenso e segue ao ritmo de um axé antigo ou de um indie
rock brasileiro.
Bom e ruim
Felicidade e tristeza
Amor e dor
Não são opostos
Mas complementares
Afinal, a vida é bem mais complexa do que duas extremidades, né?
/

PScheiadenos :: SE
62 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 63

LÂMPADAS, GERMES E SUCULENTAS O ABRAÇO EM QUE ENVELHEÇO


gravaria o instante se pudesse I
rebentou no meu peito um disco chegou o momento que esperava
aquele branco do Caetano te escrever ia levar tempo, já sabia
ao te ver descendo a 13 de maio não contava com a companhia das águas nos olhos
lembrei da amoreira em sua casa só do coração quente
do seu hidratante com cheiro de goiaba amor
estou comprando lâmpadas, eu digo não imagino não pensar em ti quando cruzo com alguém com esse cheiro tão teu
encabulada com o peito aceso tão teu mas vende no Boticário e
você muito atenta à mudanças sinto a cada rotatória
pergunta quando passei a não cuidar II
das unhas (e de mim, eu penso) parece egoísmo desejar o pensamento em mim, é
digo que comecei a roê-las e tudo bem sinto vontade dos teus dedos dentro e for a
você com seu sotaque virginiano das tuas costas
diz que não aprova colônias de bactérias do jeito que construíamos os dias
e eu rio dizendo muito do carinho na testa e boca
bem que você gostava dos meus dedos e reaprendi a andar foi de mão dada contigo
o silêncio entre nós revira velhos medos
eu sempre atropelo tudo III
por favor não vamos ter recaídas eu não guardo mágoa, eu não sinto raiva
mudamos para filmes de ação me dá nos nervos quando não gostam de mim por nada
com lésbicas protagonistas e você sabe que tento de um tudo ser o melhor ser humano possível
só mais um corte entrenós nunca ninguém conseguirá agradar todos
teus olhos quentes cruzam os meus só que em algum lugar
velozes e furiosos das fanchas espero você me defender
pode exalar sensualidade pois eu sei
perdoe-me os excessos ainda escrevo que fui uma das pessoas mais importantes da sua vida
em vermelho mas não com os lábios
ainda cuido da tua babosa IV
tornei-me mãe de plantas admiro o processo de separação não foi como imaginava
a força das suculentas mas acredito que o percurso não é traçado previamente
em outra vida quero ser planta o som do seu choro no meu colo ecoa
mas tudo bem se for fancha abraço a saudade
outra vez não me importa mentalizando seu bem estar
quero amar outra mulher novas aventuras e novos saberes e novos amores
como amei você. chamego com chulé seu e dela
espero que esteja mais feliz ainda
/ que se realize
e siga voando
Lana Maciel :: SP /

Vaza :: RJ
64 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 65

––– [UNÍSSONO]
também estou com saudade dela, frida você me contava da esposa do Lou Reed, em canções faladas
eu digo triste um discman tocando um álbum japonês poético frente aos homens
com uma resignação própria de quem sabe [imprudentemente poéticos do hugo mãe
que cachorros não entendem língua de gente tão ingênuos ao lado do erotismo da obscena senhora D.
é fim de tarde, eu fumo na janela Ítaro, “eu me incomodo com esse nome”
trago seu bilhete nas mãos é que o seu nome reduzido a duas sílabas ou oito letras podia soar
que diz fique calma, tudo é passageiro e ainda podemos [“como um vírus”
morar numa casa com piso de madeira etc mas todo o seu susto me encanta
já reli vinte vezes descobri que ruídos têm melodia
e ainda não consegui compreender nada descobri que manhãs são tão excitantes, sol adentro e dois anjos na
exceto a parte de que tudo é passageiro [cabeceira da cama
penso numa casa com o piso de madeira seu peito colado ao meu
vejo a cidade de cima a bíblia na mesa do lado e todos os santos dentro do armário
tá tudo dourado ouvindo nossos gemidos
e ninguém percebe que eu grito mais altos do que os latidos madrugada afora
já não havia nada a esconder
já não há
/ os vinis tocam aqui perfeitamente
deslizando a agulha da vitrola
Ludmila Rodrigues :: BA o que é o som?
ou melhor, o que é o silêncio?
não existe silêncio
só sons gravados e sons não gravados
o não me instiga mas o sim me excita
descobri que um dos melhores lugares do mundo é úmido e escuro
onde cabem apenas os meus dedos
perfeitamente
olhares omissos na nossa esfera interfacial
19:37
mil cuidados com a vitrola
isso te molha?
Matsu, a menina do rosto aberto. e o rosto sem face
disfarce de uma barbie roots da sobrancelha descolorida
para onde você foge?
eu sequer saberia dizer as horas diante daquele celular sem tela
uma queda, um derrame, metade apagada
um flagra
uma metade que se apagou depois de meio dia de domingo
uma metade perdida na lembrança de um caso do acaso bem marcado em
[cartas de tarôt
66 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 67

–––
notas altas em frente a fogueira ou no fogo sob estrelas Parece um sonho e eu quero acordar
escutava uma kate bush brasileira Forjar a perfeição é se isolar dentro de si
e gostava de passar aquele tempo com você Mesmo que eles estejam sorrindo
“duas impulsivas” ou apenas duas devotas do desejo. não Derrelição As raízes do meu jardim ainda apodrecem
uma noite onírica a primeira noite
te encontrar no meu sonho e do meu lado e no seu sonho do seu lado Eu cresci e o os sonhos deles não me cabem mais
acho que caibo aí inteira Me moldaram em rosa e me arrancaram os espinhos
mas não somos muito de pedir licença Espremeram meus sonhos em rendas e eu não conseguia respirar
seu corpo minha paisagem do prazer Mancharam meu reflexo no espelho
quero me deitar no jardim das delícias
Odiaram meu amor
e isso é um convite a você Como se quem eu era sou fosse o pior pesadelo
E o príncipe fosse a alma do final feliz
E meu sonho era é ter a liberdade de ser aceita.
/
//
triste hillé :: RJ
Qual a cor da tua essência?
Qual o nome do teu sonho?
Qual o gosto do teu amor?

Já sei que ama cerveja


E que o samba te abre um sorriso
Mas quero ver além dessa mesa de bar

Tocar tuas palavras


Caminhar pelo teu perfume
Experimentar o teu lar

Desvendar o ponto perfeito pro teu café


Pra onde viaja quando fecha os olhos
Me afogar no céu da tua boca

Descobrir a música que teus olhos cantam


Embaralhar teus medos
Dedilhar tuas trilhas

Amanda Marchiori :: SP
68 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 69

––– AMOR MARÉ


mude Garota, você me mata.
mas, eu suplico, Morro a cada despedida
que seja sempre pelo doce desejo de mudar morro em cada discussão
não pelas críticas morro cada vez que gozo preenchida por sua paixão
na sua fala, nas suas manias, ou no seu jeito de aconchegar as pernas,
descruzadas. Já te contei o quanto eu amo morrer?
pise firme no chão,
de salto ou tenis. A vida acaba a cada mergulho de cabeça no abismo
não deixe nenhum grito tirar o sopro da sua, Renasce das chamas
e só sua, E sai voando por aí
vida. reconstruída
A morte alimenta a vida nessa roda eterna
e se você pensar que não se encaixa É aquela antiga cicatriz de guerra
no padrão. É o casamento que se encerra
lembre-se É a flor que nasce no concreto
ninguém se encaixa E é você
nesse pedindo pra eu chegar mais fundo
pa mais perto
drão. muito intenso
irreal e ridículo. tudo aberto
que perigo!
Mas que perigo te deixar entrar...
/ Nem eu sei onde vou parar
Ela é um cristalzinho de quartzo
Luiza Otero :: RJ Não posso deixar quebrar
Você não deveria entrar nesses mares
inconstantes e mutáveis
porque
você sabe
eu preciso navegar
Mudar.
E quando eu te disse, menina
que a gente ta junta
foi sincero
eu juro
mas venta o vento e tudo muda
Não te firas com minha mente em paradoxo
Eterno conflito não sei
se me escondo
ou se te mostro
70 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 71

–––
É que eu te quero toda Rio de Janeiro, 04 de agosto de 2018
te quero inteira
te quero só pra mim Eu fui embora sem alardes, porque ainda não tinha aprendido a anunciar
na minha casa nem a digerir minhas angústias. Eu não sabia como dizer que te amava, mas
na minha cama que só isso não adianta. Eu te amava e tinha dúvidas de que a sua proposta
todo dia a gente se ama de vida me bastava. Eu te amava e tinha dúvida, como se pudesse romper
de mãos dadas a gente anda com todas as verdades para formular uma fala assim, em que amar e duvidar
e voce me chama de namorada podem ser conjugados juntos e em paz. Nunca aconteceu.
Eu canto no teu ouvido até ficar rouca
você prepara o jantar e eu lavo a louça Quando eu digo que não confiava em você, é porque antevendo a vida,
e de sobremesa quase que com atrevimento, eu não acreditava que nossos laços iam
teu mel na minha boca conseguir dissolver os problemas que a gente nem poderia prever, mas que
eu lambo viriam. O que a gente tinha já não era suficiente para os medos, as barras,
penetro as felicidades extremas. E confiança é um pouco isso, li num texto esses
portal celestial entre as suas pernas dias: afinidade com o futuro em comum. Eu duvidei da nossa.
a parede nos venera
e eu amo Eu me dei conta que estar com você - apesar da grandiosidade do nosso
a forma como eu não me canso encontro - não poderia ser maior do que aquilo que queremos com a vida.
dessa rotina em uma tela Eu não me permito estar nesse lugar da castração das individualidades,
do admirável mundo das idéias incompatibilidades. Nunca fomos de amar nesses moldes. Sempre
enfrentamos o mundo de frente. Sempre passamos pelas curvas com
É que eu te quero solta precisão para não nos ferimos mais do que o mundo lá fora já faz todos os
te quero por aí dias.
te quero em outros braços
te quero nem aí A sua proposta de vida não me bastava mais. E aqui eu só posso falar por
pro que eu to fazendo mim. Não bastava. Como foi triste quando me dei conta disso, como me
ou por quem eu to vibrando pareceu injusto ter que abandonar um tanto do que éramos quando juntas.
a boca que eu to beijando Mas era evidente que precisava ir e deixar ir. Desde então, todos os dias eu
a energia que eu to trocando nos perdoo um pouquinho. Às vezes acho que esticamos a corda mais do
que deveríamos. Ás vezes penso que amar e se despedir machuca mesmo
Então segue a vida e vê se me esquece e que a a gente só se lembra do quanto, quando nos deixamos ir. Com ou
-vou morrer pra te esquecer, mulher- sem anúncios. Eu pensava em você como alguém que queria contar uma
Mas segue a vida porque você não merece história diferente da que eu seria capaz de escrever. Os trechos em que
alguém que não sabe o que quer estávamos juntas, mão a mão, se rareavam cada dia mais. E cada vez que
minha narrativa ganhava lucidez, como num processo consciente, você
se afastava. Estaríamos juntas dali em diante só nas neuroses? Só nos
/ abismos que criamos com a proposta de darmos as mãos? Para que?

Anna Victoria Mignone :: RJ O amor, esqueceram de nos dizer, também é isso de partir e repartir.
72 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 73

CENAS
Mesmo quando não se podia prever. O amor é dado às saudades, aos vontade desenfreada
apertos e às despedidas. Até evaporar, trocar de um estado para o outro. a voz no escuro
E, hoje, olhando daqui entre meus medos e minha vontade de acertar, tua casa é caminho difuso
penso que soltar as mãos pode grandioso. Essencial. e árduo
mas há a marca na parede
Obrigada por tudo e por ser. Até e uma frase sobre amor
em espiral
eu chego logo e
/ tudo dá coragem. cama, talheres, filme
esperando a gente começar
Dara Bandeira :: RJ tudo deixa passagem. tuas falas e pernas
desejo que não para
o sopro na ferida, a boca seca
boca molhada pelo gozo
a voz no escuro
Recomeço.

Valine Dalosto :: RS
74 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 75

–––
Dia primeiro. Uma construção em ruínas. Pela fenda por onde se abriu maio, A casa, lentamente, perde poeira e ganha forma. Os rasgos nas paredes
agora podemos olhar. Ali mesmo, da parede cujo pedaço foi arrancado, são preenchidos. Primeiro continuam marcados como buracos pela
provavelmente a marteladas. Agora uma janela. Um pouco depois da parede diferença do cimento; depois, cobertos de tinta, desaparecem. Os traços
é possível ver um fragmento do mar. Um recorte. Daqui vemos também: que o que riscamos nas paredes também são rasurados pela tinta branca. Mas
desejo opera no acaso. Que o mistério do encontro é feito da matéria do desejo. ali permanecem, marcados na estrutura, por debaixo das camadas, nós
podemos ler. A cor é o que vem dar forma - mesmo a cor branca. Antes
No primeiro dia, na linha torta da fila, uma esperava. Estava só. Esperava por dela, tudo é remendo. Com a cor se faz o limite de uma parede. Decidi que
um acontecimento. Uma aparição. Como aparição, outra entra em cena. A cena nessa forma era preciso incluir o mar: o que se deforma a todo instante.
começa fora do teatro. Olhar na fronteira do encontro. A aparição arranca o chão Deixei a cor me escolher pelo nome: maré - o nome de um movimento.
sob os pés daquela uma. É preciso que ela se volte, respire fundo, se concentre Risquei um horizonte vertical na parede do meu quarto. Como a parede de
na bilheteria, para poder pisar novamente. mar que vimos a partir da sua varanda. Um risco horizontal que se levanta
Desconhecidas, se reconhecem. A cena já havia começado antes do primeiro inteiro, lado a lado com os prédios, na mesma altura deles. No primeiro dia
dia, a outra virá contar, no momento exato em que derrubou um objeto no chão. você manchou a parede azul com o líquido de mar do seu corpo.
Mais tarde descobririam que era isso mesmo, que o amor só poderia ter lugar na
queda de um objeto, que é neste ponto que nasce o olhar. Agora reconhecem Fazer do impossível, lugar. A casa inabitável ganha o contorno da cor.
que estariam ali por isso: gostariam de seguir juntas, que essa noite durasse. Um mar rasgado de azul. Se torna casa neste amor que pulsa, dentro
Partem para direções opostas. das paredes, sobre o chão, debaixo do teto. Há uma hora do dia, em
determinada época do ano, em que o sol enche o espaço dos cômodos,
Depois saberiam que este viria a ser um maio inteiro de dias primeiros. Dias de percebe-se, uma única hora em que as linhas da janela desenham no chão
trabalho. Trabalho braçal. Uma começa a gostar quando a outra a puxa pelo uma sombra enviesada que bem poderia contornar um corpo. Coisas de
braço para mais perto do corpo enquanto caminham. Andam muito, por todas as madeiras ocuparão os cantos, coisas de apoiar outras coisas, mas antes
ruas da cidade, o caminho se refaz, mudam de direção para não chegarem cedo de tudo, um tapete, para tornar o chão menos frio, menos duro, mais gentil
ao destino final, para se movimentarem, mais, juntas. Andam pelo escuro para com as extremidades dos corpos. Não mais a fineza da poeira que entra
não serem vistas, andam pela luz para atravessar o tempo. pelos poros, pelos olhos, pelos pelos; agora um chão limpo, um tapete, uma
mesa. E ainda entre as peles, entre as ossadas, o atrito. Os fundamentos de
Antes de existir uma casa, havia um chão. Enquanto tudo se desfazia, ali uma casa.
permaneceram, se chocando contra o chão, lambendo poeira do corpo, sentindo
a aspereza nos dentes, machucando as extremidades dos membros, vendo as
marcas roxas surgindo e desaparecendo com o correr dos dias, frases escritas /
na pele. No correr dos dias era só ali que podiam se encontrar. De encontro ao
chão. Se desencontram a todo instante. Era preciso sempre partir. Um dente Marina Gorayeb Sereno :: RJ
se partiu e restou na madeira do chão branco de poeira um pedaço branco da
mordida. A casa só podia ser enquanto habitada. Habitavam uma casa destruída
indo embora dela. Se deixando. A cada partida, um retorno. Da necessidade de
retornar se constitui o desejo – dessa necessidade e também da descoberta de
que numa mão pode caber um corpo inteiro.
76 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 77

A PRIMEIRA MANHÃ –––


Quando o sol nasce, assim olhando agora, quando o sol nasce da janela se és uma película
dela parece mais verdadeiro. Eu não consigo explicar. É como se só agora, voltarei a rever todas as cenas
nesse momento, ela deitada ainda na cama, meio sonolenta, fingindo que como aquele minuto
ainda não acordou, e eu aqui, fumando meu primeiro cigarro do dia, sentada em que desci as escadas dos teus lábios
no parapeito da janela dela, olhando esse sol que nasce, agora sim, agora como trepadeira
sim parece que eu vi o sol nascer. Engraçado, né? Eu tenho 27 anos e já e nas ruínas dos teus peitos fiz arrimo
vi o sol nascer várias vezes, mas tudo aquilo, todo aquele antes, parece para traduzir os teus ruídos
que foi só um ensaio para o dia de hoje, para o nascer de hoje, enquanto e relembrar de quando envelheci no teu ventre
ela murmura ainda meio bêbada pra eu voltar pra cama e eu fico aqui, só de onde saio e entro
mais um pouquinho, gastando meus pulmões e olhando para o horizonte. E para ancorar minhas naus
pensando. Só pensando. Eu não vou dizer porque ela vai rir e me chamar
de boba. Eu já conheço o sorriso dela quando ela percebe que eu estou
sonhando demais. Eu estou sonhando demais? Agora - vamos focar nesse /
momento - eu me sinto acordada como nunca estive. Eu revezo meu olhar
entre o sol recém descoberto e o corpo dela quase coberto na cama que Nayara Priscila Xavier :: RN
a gente bagunçou. Eu quero emoldurar o instante agora do lado de dentro
das minhas pálpebras pra que toda vez que eu pisque eu me lembre. Pra
que sempre que me perguntem sobre plenitude, que eu possa descrever
essa imagem desse agora.
Ela se alonga na cama, sorri, me pede pra voltar.
Eu volto.

Jéssica Lusia :: RS
78 QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS QUE O DEDO ATRAVESSE A CIDADE, QUE O DEDO PERFURE OS MATADOUROS 79

––– ÍNDICE
quero terminar teu poema sobre poetas lésbicas Ana Beatriz Domingues ________ 4 Natália Affonso _______________ 43
quero deitar sobre teu colo
Ludmila Rodrigues ____________ 5 Ludmila Rodrigues ____________ 44
ouvir teu dedilhar
e a voz que canta sorrindo Rebeca Rose _________________ 6 Amanda de Lima Ribeiro _______ 45
Leíner Hoki ___________________ 7 Livia Orsati __________________ 47
quero o silêncio dos nossos corpos a não despertar a casa em domingo
sofia_viaja ____________________ 9 Gabrielle Souza ______________ 49
quero mirar teu quartzo rosa sobre o lugar onde sentarei Gabrielle Souza ________________ 10 Gabrielle Dal Molin ____________ 50
a te fazer perguntas
a te falar da vida Dri Azevedo ___________________ 11 Bruna Freitas Nogueira _________ 51
Mari Cê ________________________ 12 Carolina Muait _______________ 52
e mais que isso
Mariana Augusta _______________ 13 mar ________________________ 54
quero comer arepas naquele lugar que parece a hora de um recreio bonito
e molhar contigo os pés no espelho d’água com vista pros prédios Bárbara Esmenia _______________ 14 Juliana de Castro Bueno _______ 55
sofia_viaja ___________________ 16 Gabriela Luna ________________ 57
quero riscar palavras no teu corpo natureza
contarmos nossos sonhos da noite no café da manhã Rebecca Nora ________________ 17 Rebeca Rose ________________ 58
voltar e comer a tapioca que tua mãe dirá verdadeira mar __________________________ 18 Emília V. ____________________ 59
e perceber teus olhos nos dela
e tua ternura na do teu pai enquanto ele te beija a cabeça Luiza Otero __________________ 21 PScheiadenos _______________ 61
Cecília Floresta _______________ 22 Lana Maciel _________________ 62
quero confessar tudo o que esqueci
Aline Miranda ________________ 24 Vaza _______________________ 63
e beijar-te onde nunca te beijei.
Nayara Priscila Xavier __________ 27 Ludmila Rodrigues ___________ 64
Paola Santi Kremer ___________ 28 triste hillé ___________________ 65
/
Camila F. Machado ___________ 29 Amanda Marchiori ____________ 67
Aline Miranda :: RJ Maria _______________________ 30 Luiza Otero __________________ 68
Maria Isabel Iorio _____________ 31 Anna Victoria Mignone ________ 69
Gênesis _____________________ 32 Dara Bandeira _______________ 71
Bel Baroni ___________________ 33 Valine Dalosto _______________ 73
Aline Sabino _________________ 34 Marina Gorayeb Sereno _______ 74
Ana Beatriz Domingues _______ 36 Jéssica Lusia ________________ 76
Natalia Borges Polesso _______ 37 Nayara Priscila Xavier _________ 77
Marina Monteiro ______________ 38 Aline Miranda ________________ 78
Mariana Valha ________________ 40

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