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MOOC

Magic in the Middle Ages


(Magia na Idade Média)

By
Universitat de Barcelona
Curso de Magia na Idade Média

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................................................................................4
UNIDADE 1 – INTRODUÇÃO A MAGIA MEDIEVAL..........................................................................................................4
1.1 A IDEIA DA MAGIA................................................................................................................................................4
1.2 OS ANTIGOS PRECEDENTES..................................................................................................................................5
1.3 MAGIA E SUPERSTIÇÃO NA EUROPA CRISTÃ.......................................................................................................7
1.4 O DECLÍNIO DA MAGIA.........................................................................................................................................9
CONCLUSÃO DA PRIMEIRA SEMANA (VÍDEO SEMANAL 1)..........................................................................................10
UNIDADE 2 – MAGIA E HERESIA...................................................................................................................................12
2.1 IGREJA VERSUS MAGIA: O INÍCIO DA IDADE MÉDIA..........................................................................................12
2.2 A ASCENSÃO E QUEDA DA MAGIA NATURAL.....................................................................................................14
2.3 PERSEGUIÇÃO DESENCADEADA.........................................................................................................................15
2.4 O CONTO DO INQUISIDOR NÃO TÃO MAL.........................................................................................................17
2.5 NECROMANCIA: QUANDO OS DEMÔNIOS FALAVAM LATIM............................................................................18
CONTEÚDO COMPLEMENTAR......................................................................................................................................20
COMUNIDADES JUDAICAS ORIENTAIS: UM POUCO DE CONTEXTO........................................................................20
A IDÉIA JUDAICA DE MAGIA.....................................................................................................................................22
CONCLUSÃO DA SEGUNDA SEMANA (VÍDEO SEMANAL 2)..........................................................................................24
UNIDADE 3 – DA MAGIA A BRUXARIA..........................................................................................................................26
3.1 A ORIGEM MEDIEVAL DO CRIME DE BRUXARIA................................................................................................26
3.2 BRUXARIA E MAGIA MALÉVOLA.........................................................................................................................27
3.3 A MITOLOGIA DA BRUXARIA..............................................................................................................................28
3.4 PROVAS DE BRUXARIA MEDIEVAIS (I)................................................................................................................30
3.5 PROVAS DE BRUXARIA MEDIEVAIS (II)...............................................................................................................32
3.6 VÍDEO OPCIONAL: FONTES MEDIEVAIS SOBRE BRUXARIA (I)............................................................................34
3.7 VÍDEO OPCIONAL: FONTES MEDIEVAIS SOBRE BRUXARIA (II)...........................................................................36
CONCLUSÃO DA TERCEIRA SEMANA (VÍDEO SEMANAL 3)...........................................................................................37
UNIDADE 4 – MAGIA NO ISLÃ.......................................................................................................................................39
4.1 AS VARIEDADES DE MAGIA NO ISLÃ..................................................................................................................39
4.2 COMO A MAGIA FOI RECEBIDA NO ISLÃ?..........................................................................................................41
4.3 O IKHWĀN AL-'AFĀ 'SOBRE MAGIA E OCULTISMO............................................................................................43
4.4 A CIÊNCIA DAS LETRAS.......................................................................................................................................45
ALQUIMIA I: ALQUIMIA ÁRABE................................................................................................................................48
ALQUIMIA II: ALQUIMIA ÁRABE-LATINA..................................................................................................................49
CONCLUSÃO DA QUARTA SEMANA (VÍDEO SEMANAL 4)............................................................................................52

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Curso de Magia na Idade Média

UNIDADE 5 – ASTROLOGIA E GEOMANCIA...................................................................................................................54


5.1 ASTROLOGIA MEDIEVAL: ENTRE CIÊNCIA E MAGIA...........................................................................................55
5.2 O CALDEIRÃO DA ASTROLOGIA MEDIEVAL........................................................................................................56
5.3 ASTRONOMIA MEDIEVAL PRECOCE: LUA, ZODÍACO, TROVÕES E SONHOS......................................................57
5.4 HORÓSCOPOS E EVENTOS MUNDIAIS: OS FEITOS DA ASTROLOGIA DE PONTA................................................59
5.5 GEOMANCIA.......................................................................................................................................................62
5.6 TAREFA COM CLASSIFICAÇÃO POR PARES: ANÁLISE DE IMAGENS ASTROLÓGICAS..........................................66
MINHA RESPOSTA....................................................................................................................................................68
VÍDEO OPCIONAL - CICLOS MUNDIAIS 1: O GRANDE ANO DA DOUTRINA NA ANTIGUIDADE (1)...........................68
VÍDEO OPCIONAL - CICLOS MUNDIAIS 1: O GRANDE ANO DA DOUTRINA NA ANTIGUIDADE (2)...........................70
VÍDEO OPCIONAL - CICLOS MUNDIAIS 2: O GRANDE ANO DA DOUTRINA NA IDADE MÉDIA (1)............................72
VÍDEO OPCIONAL - CICLOS MUNDIAIS 2: O GRANDE ANO DA DOUTRINA NA IDADE MÉDIA (2)............................74
CREDITOS......................................................................................................................................................................76
ORGANIZADORES..........................................................................................................................................................76
INSTRUTORES................................................................................................................................................................76
COMITÊ CISNTÍFICO......................................................................................................................................................76
TÉCNICO EM AUDIO VISUAL.........................................................................................................................................77
ILUSTRAÇÃO..................................................................................................................................................................77
ANIMAÇÃO....................................................................................................................................................................77
LICENÇA E DIREITOS AUTORAIS....................................................................................................................................77
COM A COLABORAÇÃO DAS SEGUINTES INSTITUIÇÕES...............................................................................................77
VÍDEOS COMPLEMENTARES DA PRIMEIRA EDIÇÃO.....................................................................................................77
VERSÃO ATUAL DISPONÍVEL EM...................................................................................................................................79
TRADUÇÃO E ORGANIZAÇÃO.......................................................................................................................................79

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Curso de Magia na Idade Média

CURSO: MAGIA NA IDADE MÉDIA


UNIVERSIDADE DE BARCELONA

INTRODUÇÃO
Olá! Sou Delfi Nieto e estou na Biblioteca de Manuscritos e Livros Raros em Barcelona  para falar do nosso
MOOC, Magia na Idade Média. 

Nosso objetivo é apresentar um panorama das concepções medievais de magia e oferecer-lhes ferramentas
críticas para analisá-las como um historiador.

Abordaremos o tema da magia de uma perspectiva histórica. Para isso, não só teremos a contribuição de
historiadores medievais, mas também de especialistas em história da ciência e da filologia.

Eles nos levarão em uma viagem através dos quase dez séculos de história da Europa medieval. 

A estrutura do nosso curso é composta por cinco unidades. A primeira vai fornecer-lhes uma introdução
geral ao conceito de magia na Idade Média. Abordaremos também a diferença entre aquela concepção e a
nossa ideia atual de magia. A Igreja e os seus representantes mais temíveis, os inquisidores, também
aparecerão no nosso curso: o modo como eles viram e, posteriormente, perseguiram a magia e como a
relacionaram com a heresia. 

Examinaremos a magia popular do início da Idade Média ao início da Era Moderna e será lá, na unidade 3,
que discutiremos sobre as chamadas bruxas, a feitiçaria, e a histeria em massa no começo da Era Moderna. 

Discutiremos o nascimento e o florescimento da alquimia e a ideia Islâmica de magia na unidade 4.

UNIDADE 1 – INTRODUÇÃO A MAGIA MEDIEVAL

1.1 A IDEIA DA MAGIA

Antes de começarmos a falar de magia medieval, temos primeiro que estabelecer algumas ideias básicas
sobre magia.

Não é fácil para nós, que vivemos no século 21 entendermos como nossos ancestrais viam o mundo e
conceituavam sua natureza mágica.

Apesar de tal dificuldade, temos que reconhecer que a percepção mágica da realidade foi hegemônica
durante a maior parte da história humana e ainda é hoje em dia, em várias partes do planeta.

Isso tem sido explicado por diversos estudiosos por abordagens diferentes Uma dessas abordagens associa
magia ao estado de sabedoria primitiva característica de culturas pré-modernas. 

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Essas culturas, incapazes de entenderem certos fenômenos teriam criado explicações mágicas para dar
sentido ao mundo que lhes rodeava.

Essa ideia é firmemente baseada na noção de um progresso humano linear atribuindo um menor valor ao
desenvolvimento das culturas antigas uma melhora gradual através da história, da escuridão a
luz colocando-nos no topo da progressão teleológica.

Por essa lógica, o suposto despertar intelectual moderno nos teria libertado dessa baboseira mágica
característica das culturas precedentes.

Outra explicação para o pensamento mágico, baseada em estudos antropológicos, está ligada a sua função
e estrutura como um construto social feito para regular as emoções humanas, como medo, violência poder
ou a coesão de grupos de pessoas.

As duas explicações têm, na verdade, muito em comum.

Em primeiro lugar, ambas foram formuladas por cientistas ocidentais que normalmente enxergam como
inferiores as sociedades e povos que compartilham de crenças mágicas, historicamente e na atualidade.

Em segundo lugar, ambas entendem crenças em magia como algo intrinsecamente errado como provado
pela ciência moderna.

Como você talvez já tenha imaginado, não compartilhamos desse ponto de vista pois compartilhá-lo
significaria catalogar como ignorante a maioria das sociedades que existiram no mundo desde
que humanos começaram a andar nesta Terra. 

Pelo contrário, consideraremos magia e especificamente magia medieval como simplesmente uma outra
forma de ver e interpretar as coisas.

Um modo de entender e mediar o mundo que nos cerca. 

Nossa meta não seria explicar, provar ou desaprovar uma realidade mágica, mas sim descrever e tentar
compreender crenças mágicas e práticas dos povos medievais sem pré-julgamentos.

1.2 OS ANTIGOS PRECEDENTES

Para começar esta jornada na magia medieval, temos que nos colocar no final do mundo romano, logo no
início da chamada antiguidade tardia.

Num período caracterizado pelo desmantelamento de estruturas anteriores e a fusão de diferentes


culturas e sociedades, crenças mágicas também se fundiram,dando origem a novas realidades emitidas
pelas trocas entre Roma, culturas judaico-cristãs e germânicas.

A primeira coisa importante a se notar é que, naquele momento, as fronteiras entre magia e religião não
estavam tão claramente estabelecidas na mente das pessoas.

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Entre os romanos, por exemplo, as práticas mágicas eram abundantes e faziam parte do próprio ritual
religioso.Observando o vôo dos pássaros ou as entranhas dos animais para prever o futuro.Compondo
amuletos e fórmulas para atrair boas ou má sorte, objetos encantadores ou inventar filtros e
poções.Mediação com forças espirituais invisíveis, fazendo pomadas e recitando encantos para curar,
proteger ou ferir outras pessoas.

Todas essas práticas faziam parte do sistema romano de crenças, constituindo sua maneira de entender e
se relacionar com o mundo visível e o invisível.

Não é muito diferente das orações, cerimônias ou sacrifícios oferecidos aos deuses.

Mas então, quando a palavra “magia” realmente apareceu e o que isso significava para povos antigos?

Já no século V a.C., a palavra grega mageia já era usada para referir-se às atividades dos padres
zoroastrianos da Pérsia, conhecidos como magoi.

As crenças e práticas atribuídas àqueles magoi eram vistas como sombrias e perigosas, pois diferiam da
religião grega.

Com o tempo, a palavra mageia também seria usada de maneira pejorativa para se referir a algumas
práticas realizadas pelos gregos e camponeses romanos (pagãos), desviados das práticas religiosas oficiais
do Império Romano.

Durante os tempos romanos, a palavra mageia (magia), era fixada na língua latina para designar algumas
práticas percebidas como diferentes ou que se desviaram do código oficial romano e, às vezes, até
referindo-se a trapaça ou engano.

É com esse significado que a palavra “magia” foi passada para o latim e demais línguas durante os tempos
medievais.

Mas até então, a antiga ideia de magia já estava relacionada a um conceito mais obscuro advindo da
religião cristã, o conceito de superstição.

É melhor você conhecer essa palavra, pois será crucial para entendera percepção da magia durante os
tempos medievais.

Então, e a superstição, e quando a magia era retratada como tal?

Com a chegada das religiões monoteístas no final da era romana,especialmente o judaico-cristão.O padrão
mental em relação à magia acabaria por ser mudado para sempre.

Crendo em um único Deus verdadeiro, os cristãos consideravam uma grande variedade de crenças e
práticas realizadas por seus contemporâneos como essencialmente falsas ou supersticiosas.

Muitas atividades anteriormente realizadas por povos antigos, incluindo as práticas da mageia, eram
consideradas más e equivocadas pelos autores cristãos.

Além disso, como essas práticas ficaram fora da única religião verdadeira,elas só poderiam estar
relacionados a demônios e deveriam ser erradicadas.

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Como você verá nas seguintes unidades, essa mudança marcaria a evolução da cultura ocidental nos
próximos séculos,uma vez que as chamadas crenças supersticiosas seriam vistas como erradas e perigosas
pelas novas autoridades religiosas, que então se pressionaram por sua extirpação, a fim de abraçar
plenamente a nova religião de Cristo.

No entanto, a magia se tornaria um aspecto central da nova sociedade medieval.

Uma grande variedade de fontes atesta as crenças mágicas compartilhadas por homens e mulheres de
todos os estratos sociais.

Nos próximos capítulos, veremos alguns exemplos desse pensamento mágico característico da sociedade
medieval, desde as cortes reais, até as aldeias camponesas e mesmo incluindo alguns ambientes
eclesiásticos.

Também veremos os esforços empreendidos por algumas elites medievais para terminar com as práticas
mágicas e crenças mantidas pelo povo dos territórios cristianizados.

Um esforço, devemos acrescentar, que não foi bem realizado durante os tempos medievais. Mas, por
enquanto, continuaremos a olhar para a evolução da ideia de magia ao longo dos séculos medievais.

1.3 MAGIA E SUPERSTIÇÃO NA EUROPA CRISTÃ

Durante os primeiros séculos medievais, as novas autoridades cristãos tentaram convencer as pessoas a
abandonar as suas crenças e práticas mágicas, retratadas como superstições pagãs. A superstição foi
repetidamente condenada nos conselhos eclesiásticos e nos trabalhos pastorais, enquanto os governantes
cristãos promulgavam sua própria legislação contra tais crenças e práticas entre seus súditos.

Fontes assim são preciosas para nós, historiadores, pois elas descrevem, ao condená-los, os diferentes tipos
de atividades mágicas realizadas na época.

Quando mergulhamos nessas fontes, a magia geralmente vem à tona.

Podemos encontrar ordenanças legais contra quem realiza atos de adivinhação a fim de prever o futuro ou
de desvendar o destino de reis e seus súditos. As fontes os chamam de 'divini', ou 'divinatores', ou seja,
videntes ou adivinhos, e condenam aqueles que os consultam. Também encontramos condenações contra
quem podia influenciar o clima, os chamados 'tempestarii', considerados capazes de controlar trovões e
relâmpagos através de encantamentos mágicos.

Outras fontes mencionam os chamados necromantes, do grego 'necros', os mortos, e 'manteia',


adivinhação. Eram os que faziam mediação com os mortos a fim de obter algumas respostas ou mesmo
para causar o mal entre os vivos.

A natureza perigosa dos sonhos premonitórios também é atestada nas fontes, bem como a natureza
diabólica dos rituais mágicos realizados pelos 'magi' ou 'sortilegi'. Ou seja, os feiticeiros e feiticeiras a quem
as pessoas recorriam com o objetivo de evitar a má sorte, aconselhar-se sobre futuros empreendimentos,
curar doenças e atrair ou evitar o amor de outra pessoa.

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Muitas dessas leis anti-superstição visavam às mulheres, principalmente porque executavam uma ampla
gama de atividades mágicas, sobretudo práticas de cura com ervas, poções, nós mágicos, encantos e
amuletos.

Além dos próprios magos, muitas fontes condenam aqueles que os consultam ou procuram sua assistência.
Elas também legislam contra práticas mágicas comuns realizadas pela maioria do povo, como acreditar na
influência das estrelas e planetas, criar ou usar amuletos e fórmulas escritas, realizar alguns rituais mágicos
em árvores, fontes ou sepulturas, acreditar em figuras espirituais como fadas e exércitos noturnos e deixar-
lhes comida e bebida durante a noite, usar rituais mágicos para proteger crianças ou gado, e um longo etc.

Apesar dos esforços de algumas autoridades eclesiásticas, a vasta gama de atividades mágicas realizadas
por nossos antepassados medievais continua aparecendo nas fontes por toda a Idade Média. Esse fato
mostra seu profundo enraizamento entre as pessoas e também a dificuldade experimentada pelas
autoridades cristãs em seu objetivo de erradicá-las.

Veremos um exemplo retirado da série de visitas pastorais do século XIV realizadas no Principado da
Catalunha, líder da Coroa Ibérica de Aragão. Para quem não sabe, visitas pastorais eram uma prática
comum naquele tempo em muitos territórios cristãos. Consistiam na inspeção anual das paróquias,
conduzidas pelos seus bispos. Durante essas inspeções, os bispos ou seus enviados perguntavam ao povo e
aos sacerdotes locais sobre o estado do culto entre eles e o comportamento dos paroquianos. Eles seguiam
as regras da igreja ou eram briguentos, adúlteros, blasfemos ou mesmo supersticiosos? Vamos ver o que
responderam aqueles paroquianos catalães durante essas visitas no século XIV. Em 1310, durante a visita
pastoral da diocese de Barcelona, as pessoas foram questionadas sobre a presença de feiticeiros e
adivinhos em sua paróquia. Os moradores de Badalona, uma aldeia perto de Barcelona, disseram ao bispo
que uma mulher chamada Nadala era 'divinatrix et sortilega', que as pessoas costumavam procurá-la para
diferentes fins e que ela fazia encantamentos usando uma correia e usando símbolos encantados gravados
no solo. O documento original diz: "facit coniurationes suas cum corrigia et in terra cum signis
coniuratoribus".

Em outras aldeias os vizinhos denunciaram mulheres, geralmente chamadas 'sortilegas', 'divinatrices' ou


'coniuratrices'. Ou seja, feiticeiras, adivinhas e conjuradoras que fizeram algum tipo de feitiçaria com pão,
grãos de trigo, facas, ervas ou pedras e que eram capazes de unir as almas de homens e mulheres, de tratar
doenças, encantar animais, curar ou prevenir o mau-olhado e outros malefícios, prever o futuro, achar
objetos perdidos usando rituais mágicos e até mesmo vagar pela noite com espíritos femininos conhecidos
como "as boas senhoras", as fadas da noite.

Todas essas atividades mágicas haviam sido condenadas por leis eclesiásticas desde os primeiros séculos
medievais. Mas as visitas pastorais na Baixa Idade Média mostram seu enraizamento entre as pessoas que
recorriam a essas 'sortilegas','divinatrices' e 'coniuratrices' a fim de curar doenças na família e no rebanho,
resolver um problema amoroso ou sexual e recuperar objetos perdidos ou roubados.

Apesar disso, os esforços para mudar a atitude das pessoas em relação à magia começariam a dar resultado
no fim do período medieval. Os motivos? São principalmente dois: os renovados esforços de evangelização
empreendidos pela igreja e o surgimento de novos paradigmas científicos e teológicos provenientes das
universidades medievais.

1.4 O DECLÍNIO DA MAGIA

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Durante os últimos séculos medievais, ocorreu uma mudança na percepção das práticas mágicas. Por um
lado, as novas abordagens racionalistas lançadas pelas universidades começaram a deslocar as práticas
mágicas tradicionais, estendendo assim uma sombra de suspeita sobre feiticeiros, adivinhos e
conjuradores.

Por outro lado, as tentativas até então sem êxito da Igreja de arrancar atividades mágicas começaram a
valer graças à ação dos poderosos pregadores das ordens mendicantes. Esses pregadores empreenderam
uma campanha massiva de evangelização entre a sociedade medieval através de uma série de sermões
convincentes, nos quais eles demonizaram atividades mágicas.

Ambas as frentes, a ciência racionalista e a evangelização cristã contribuirão definitivamente para a


desaprovação e descrédito da magia durante o final dos séculos medievais e o início do período moderno.
Para se ter uma ideia dessa mudança de mentalidade, veremos alguns exemplos dessas novas concepções
de magia baseadas nos novos paradigmas científicos do final da Idade Média.

Vamos dar uma olhada em uma série de tratados escritos pelo bispo castelhano do século XV, Lope de
Barrientos.

Barrientos estudara na Universidade de Salamanca e fazia parte da comitiva humanista do rei castelhano
João II, que o nomeou como seu próprio confessor e preceptor de seu primogênito.

Durante os anos centrais do século XV, o bispo Barrientos escreveu uma série de três livros, dedicados ao
seu rei, nos quais o aconselhou sobre assuntos de magia e superstição. Esses três livros foram os chamados
"Tratado sobre Dormir e Despertar; de sonhar e adivinhar; de presságios e profecias", "Tratado sobre
profecias" e "Tratado sobre adivinhação".

Em todos eles, esse homem instruído analisou os assuntos humanos relacionados à magia a partir de uma
perspectiva tomística, baseando-se em uma abordagem empírica e materialista e com grande confiança na
razão humana. Como ele próprio declarou no início desses tratados, o objetivo de Barrientos era educar e
corrigir a credulidade do rei em relação às atividades mágicas. Quando lemos esses tratados, percebemos
que o conceito de magia do Bispo incluía uma ampla gama de rituais e crenças que iam da astrologia às
artes divinatórias, das causas do mau-olhado e de outras doenças aos rituais de feitiçaria e encantamento.

Ao condenar esse tipo de prática e aqueles que as praticam, Barrientos também tentou refutar a realidade
de tais coisas. Por exemplo, ele criticou aqueles que acreditavam no mau-olhado, que ele considerava uma
simples doença óptica, suscetível de ser curada por procedimentos médicos. Ao abordar o assunto de
premonições e adivinhação, ele os atribuiu às operações de fantasia na mente das pessoas, o que as levou
a acreditar em coisas que não eram reais. Ele também falou sobre a crença prolongada no fato de que
algumas mulheres eram capazes de sair de seus corpos à noite e, dessa maneira, entrar em casas fechadas
através das fendas mais estreitas com o objetivo de prejudicar crianças pequenas.

Nesse sentido, Barrientos argumentou a impossibilidade de tais coisas mágicas, uma vez que não era
possível um corpo tridimensional passar por esses pequenos espaços. Todas essas crenças mágicas,
segundo Barrientos, nada mais eram do que efeitos de distúrbios mentais ou naturais, ou pior, eram
causadas pelas operações de maus espíritos.
Homens instruídos como Barrientos e outros contribuíram para o descrédito das práticas mágicas entre as
elites, reforçando a confiança na ciência experimental e nos procedimentos médicos. Além desses homens
de ciência, os membros das Ordens Mendicantes também contribuíram para a denegrir atividades mágicas
entre a população.

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Para exemplificar isso, podemos dar uma olhada nos sermões dados pelos pregadores mendicantes
durante os últimos séculos da Idade Média, tendo sempre em mente que esses sermões, pregados na
linguagem vernacular, tiveram um efeito convincente entre o público reunido pelos centenas, aguardando
a chegada de um desses pregadores admirados às suas cidades e aldeias.

Vamos ouvir algumas partes de um sermão proferido pelo pregador valenciano Vicent Ferrer no início do
século XV:

"Porque se seu pai, sua esposa ou outra pessoa está doente, ou você perdeu alguma coisa,
ou se está em perigo, nunca vá aos adivinhos, mas a Deus. E vocês, minhas filhas, se seus
filhos estão sofrendo alguma doença, não faça feitiços nem vá às feiticeiras, porque seria
melhor que seus filhos morressem.As mulheres vão para a confissão e dirão: 'a criança
estava doente e não havia médico por perto, e então eu fui ao feiticeiro'. E o confessor
responderá: 'Um pecado que você cometeu!' E eles se defenderão discutindo como
poderiam deixar a criança morrer. Seria melhor que ele morresse.Ela foi aos adivinhos
masculinos e femininos, aos demônios, porque tudo o que eles fazem, eles fazem isso pela
ação dos demônios. Feitiçarias diabólicas! É isso que são os adivinhos masculinos e
femininos, feiticeiros e feiticeiras que fazem coisas com encantos, pão, garrafas e pratos.
Evite a presença deles na sua circunscrição. Caso contrário, a ira de Deus cairá sobre a vila e
sua circunscrição."

Tais fortes advertências feitas pelos pregadores influentes tiveram um grande impacto entre a multidão.
Muitas vezes encontramos leis locais contra atividades mágicas promulgadas pelos conselhos da cidade
logo após a aprovação de um deles. O efeito desse tipo de pregação, juntamente com o papel proeminente
assumido pelos novos paradigmas científicos, contribuiu para o declínio da magia durante o final da Idade
Média, além de implicar o descrédito e a difamação de práticas mágicas, eles também estabeleceram um
vínculo perigoso entre os feiticeiros e adivinhos e os delitos que assombraram a sociedade; até
relacionando essas pessoas supostamente perigosas à ação de demônios e encorajando a população a
expulsá-los de suas aldeias.

Como veremos nas seguintes unidades, a situação foi o prelúdio de terríveis perseguições vindouras, nas
quais milhares de pessoas seriam queimadas na fogueira, acusadas de um crime sombrio com conotações
mágicas explícitas: o crime da bruxaria.

CONCLUSÃO DA PRIMEIRA SEMANA (VÍDEO SEMANAL 1)


Por Dr. Pau Castell Granados

Olá a todos. Espero que tenham gostado desta primeira semana de Magia na Idade Média. Hoje, está um
dia ensolarado em Barcelona, e eu estou aqui no claustro da Faculdade de Letras, para gravar este primeiro
vídeo semanal, e discutir alguns dos temas que têm aparecido nos fóruns. Antes de mais, deixem-me dizer
que estamos muito felizes por ver o interesse que o curso tem despertado. Há atualmente vários milhares
de alunos matriculados no curso, e isso, como vocês já viram, gera muita atividade nos fóruns. Para além
disso, vocês devem saber que este é o primeiro MOOC da nossa equipa e, portanto, estamos muito gratos
pelos vossos comentários e críticas, pelo apontar dos pequenos problemas que podem aparecer no curso, e
por nos ajudarem a melhorar. Então, um dos temas que tem gerado um grande debate nos fóruns, é o
conceito de superstição. A sua etimologia, o seu significado pejorativo, ou a sua utilização, ao longo da

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história, e na atualidade. Na verdade, desde a antiguidade até ao presente, diversas crenças e padrões de
comportamento foram caracterizados como supersticiosos. Sabemos que a palavra superstição vem do
termo latino "superstitio", embora sua tradução exata seja controversa. Atualmente, não há consenso
entre os estudiosos sobre o seu significado original, mas parece que o termo latino é, até certo ponto,
sinónimo do antigo termo grego "deisidaimonia". Ambos os termos, o latino "superstitio" e o grego
"desidaimonia", têm implícita a ideia de uma espécie de medo excessivo dos poderes numinosos, e foram
também usados para se referirem às crenças e práticas das religiões estranhas. Seja como for, o termo
latino foi adotado pelo idioma Romano e pelo inglês, durante a época medieval, e foi usado para designar
as crenças e rituais, não aprovados pela hierarquia teológica oficial, e, por essa razão, consideradas
irracionais e falsas. Durante a maior parte da idade média, a visão que prevaleceu foi a de Santo Agostinho,
que ele desenvolveu na sua famosa obra, "A Cidade de Deus". Este pai da Igreja entendia a superstição, não
apenas como um culto ilícito para com o Deus verdadeiro, mas também, como o culto prestado aos falsos
deuses, da antiga religião pagã. Então, por muitos séculos, o termo superstição foi, de alguma forma, um
sinónimo de paganismo. Quando era usado por autores cristãos, ele referia-se geralmente à crença em
amuletos, em sonhos e visões, em encantamentos, adivinhação, feitiçaria, necromancia, prodígios,
presságios, predições, feitiços e assim por diante. Muitos destes, eram de facto baseados em crenças e ritos
pagãos, e o clero condenou-os como tal. Uma mente supersticiosa, era geralmente atribuída a uma pessoa
não educada, especialmente camponeses ou rústicos. Mas muitas vezes, as mesmas, chamadas
superstições, existiam também, entre as classes mais altas. Nesse sentido, podemos definir a superstição
medieval, como um conjunto de crenças e de ritos, co-existentes, mas desaprovados, pela religião oficial.
De facto, ao longo da história, o termo superstição foi usado por muitos grupos sociais, para se referirem a
qualquer tipo de crenças, de forma pejorativa. O conteúdo específico deste termo, invariavelmente
pejorativo, só depende das crenças dos definidores, da sua própria estrutura cultural. Então, os pensadores
romanos, por exemplo, qualificavam o Cristianismo como superstição, enquanto os cristãos expressavam a
mesma opinião sobre o judaísmo, ou sobre a religião pagã. Durante o início dos tempos modernos,
teólogos reformados denunciaram muitos aspetos da fé e da devoção católicas, como supersticiosos. De
forma semelhante, alguns cientistas ocidentais da atualidade, definem como supersticiosas, uma grande
variedade de crenças, que não são sancionadas pela ciência moderna. Atualmente, no entanto, há uma
crescente sensibilidade para as conotações claramente negativas e a implícita arrogância cultural
conectada com o termo, que impede muitos estudiosos de usar a palavra superstição nas suas obras,
quando falam sobre crenças e práticas, que são apenas diferentes das suas. Bem, espero que isto tenha
sido útil, e convido-vos a consultar a bibliografia fornecida no final deste vídeo, e a continuarem a dar a
vossa opinião sobre o assunto, através dos diferentes fóruns. Esta próxima semana, faremos uma
abordagem ao tema da magia e da heresia, pela mão de Delfi Nieto, e depois juntar-me-ei novamente a
vocês, na terceira unidade, para falar sobre bruxaria.Vejo-vos em breve.

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UNIDADE 2 – MAGIA E HERESIA

2.1 IGREJA VERSUS MAGIA: O INÍCIO DA IDADE MÉDIA


Por Delfi I. Nieto, Isabel

Oi. Bem-vindo ao Museu de História de Barcelona. Esta é a segunda semana do nosso MOOC, Magia na
Idade Média. Como você está indo até agora? Tenho certeza disso muito bem. Espero que você esteja tão
animado quanto nós no início desta segunda unidade. Na seção anterior, já vimos que a ideia medieval de
magia era bem diferente de nossa própria concepção. Nos vídeos a seguir, discutiremos um ponto de vista
muito particular e penetrante, o da Igreja.

Essa perspectiva foi mais influente na determinação do que era oquê. Ou seja, embora provavelmente não
tenha sido compartilhado ou mesmo entendido pela maioria da população, certamente estabeleceu o que
era perigoso e deveria ser evitado, e o que representava uma ameaça e tinha que ser perseguido e,
finalmente, punido. Também veremos como a Igreja ou, para ser mais específico, os teólogos, imaginaram
que a magia estava longe de ser monolítica durante a Idade Média, embora várias características fossem
constantes desde o início do cristianismo e continuassem muito além do período medieval. Nesta unidade,
falaremos sobre demônios, o próprio diabo, invocações, encantos, inquisidores e hereges, em suma,
prepare-se para se divertir!

E se no final dos vídeos obrigatórios você começar a se perguntar sobre a perspectiva de outras religiões, vá
em frente e veja os vídeos opcionais, que tratam da Cabala e da ideia judaica de magia.

Vamos começar com a classificação da magia mais favorecida pelos intelectuais e teólogos medievais, para
quem a natureza da magia dependia principalmente do poder invocado por ela. Assim, a magia natural
estava envolvida em qualquer fenômeno que pudesse ser atribuído a algum tipo de força natural oculta,
enquanto, por outro lado, se a fonte de qualquer evento pudesse ser rastreada até a intervenção de
demônios, certamente era o resultado de magia demoníaca.

No entanto, como você pode imaginar, essa divisão está longe de ser direta e, de qualquer forma, durante
os primeiros séculos do cristianismo, ambos os tipos de magia foram percebidos como igualmente
perigosos. Os escritos da Antiguidade, bem conhecidos pelos primeiros autores cristãos, definiram os
poderes manifestos da natureza e, assim, estabeleceram o que era fisicamente possível. O resto caiu
dentro do reino da magia.

Os escritores cristãos primitivos tendiam a ver todas as formas de magia relacionadas aos demônios.

Tatian, um teólogo cristão do século II, repreende todo tipo de magia em sua obra “Oratio ad Graecos”,
(Discurso aos gregos). Para ele, ervas e amuletos não têm poder em si mesmos, mas os demônios criaram
um propósito para cada um deles. Assim como os humanos inventaram a escrita, os demônios inventaram
esse código para escravizar a humanidade e afastar as pessoas de Deus. A adivinhação também é realizada
apenas com a ajuda de demônios. Para os cristãos, como para a maioria dos judeus, os demônios eram
anjos que traíram seu criador e se voltaram para o mal. Mas Tatian é apenas um entre muitos. Esses
autores consideravam a magia uma ameaça às crenças cristãs, pois oferecia um poder alternativo que
poderia ajudar contra as adversidades.

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Por exemplo, João Crisóstomo pregou contra mulheres que recorriam à magia quando seus filhos estavam
doentes, em vez de usar meios cristãos. De fato, escritores pagãos e cristãos atribuíram magia
especialmente às mulheres. O famoso Tertuliano alegou que as mulheres eram geralmente mais inclinadas
a tais práticas e que os demônios lhes ensinavam os poderes secretos das ervas porque estavam mais
sujeitas à decepção dos espíritos malignos do que os homens. Mais uma vez, vemos que para ele os
poderes mágicos já estavam lá dentro das ervas, mas foi através dos demônios que as mulheres
aprenderam sobre eles.

De qualquer forma, os primeiros escritos cristãos que tiveram maior impacto na cultura medieval não
foram surpresa por Agostinho de Hipona, particularmente seu livro clássico Civitas Dei, (A Cidade de Deus).
Agostinho escreveu este trabalho em resposta ao argumento de que o império romano havia declinado
depois de se tornar cristão. Segundo ele, a religião romana, fundamentada na necromancia e em outras
artes mágicas, deveria ser responsabilizada pela queda do império. Agostinho insiste que toda a magia é
trabalhada por demônios. Esses espíritos malignos primeiro instruem as pessoas a realizar rituais mágicos
que envolvem pedras, plantas, animais e encantos mágicos. Quando os mágos fazem uso dessas coisas, os
demônios vêm e fazem o trabalho. Isso não quer dizer que Agostinho não reconheça certos poderes
naturais maravilhosos. Por exemplo, ele reconhece as qualidades misteriosas do ímã e também admite que
certas substâncias podem curar pessoas doentes. No entanto, mesmo reconhecendo a eficácia do que mais
tarde seria chamado de magia natural, ele permaneceu desconfiado de que os demônios estão por trás
disso. Quando o cristianismo se tornou dominante, a magia ficou cada vez mais sob suspeita, e a Igreja não
apenas pregou contra a magia, mas também aprovou legislação eclesiástica contra ela.

As primeiras formas do Direito Canônico já condenavam a magia. Em 306, um sínodo na cidade espanhola
de Elvira declarou que as pessoas que matassem outras pessoas por maleficium (feitiçaria) não deveriam
receber comunhão nem em seus próprios leitos de morte, porque tais ações sempre envolviam a invocação
do mal.

Nos séculos anteriores, o direito romano punia apenas a magia prejudicial, mas após a conversão dos
imperadores ao cristianismo, todos os tipos de magia se tornaram uma ofensa capital, e medidas severas
contra ela aparecem no Código Teodósio (que entrou em vigor em 439) e no código de Justiniano em 529.
O declínio da autoridade central na Europa Ocidental provocou a inevitável mudança cultural. A língua e a
literatura gregas tornaram-se raras e, com a evolução das línguas vernáculas, o latim lentamente se tornou
o privilégio de uma elite clerical. Novos governantes governavam o Ocidente, e a primeira tarefa da Igreja
era converter esses governantes e seus súditos à fé cristã e católica.

No processo, a própria fé sofreu uma mudança, à medida que o cristianismo medieval incorporou
elementos da cultura pré-cristã. Os clérigos ainda pregavam contra a magia, mas a acomodação a certos
elementos da cultura pagã era comum no início da Idade Média. Os penitenciais, uma espécie de manual
para confessores, são uma ótima fonte para os historiadores acompanharem as variedades de magia
praticadas nesse período inicial. Eles prescrevem comprimentos variados de penitência para aqueles que
realizaram "encantamentos ou adivinhações diabólicas", mas rejeitam a crença de que a mágica pode
perturbar o clima, influenciar a mente das pessoas ou despertar amor ou ódio, porque todas essas noções
infringem a prerrogativa de Deus como criador. Acreditar nessas coisas também implicava penitência, mas
a maior parte da literatura penitencial se preocupava com o que as pessoas faziam, não com o que
pensavam. No entanto, como veremos em breve, isso estava prestes a mudar.

No próximo vídeo, veremos como o status da magia natural melhorou um pouco a partir do século XII,
graças à chegada de disciplinas como astrologia e alquimia. Mas essa situação favorável era bastante breve,

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e as obras de um dos mais influentes teólogos e filósofos medievais de todos os tempos, Tomás de Aquino,
logo colocaram em pedra que a magia estava inquestionavelmente relacionada à intervenção de espíritos
malignos.

2.2 A ASCENSÃO E QUEDA DA MAGIA NATURAL

Oi de novo. No último vídeo, vimos como os primeiros autores cristãos perceberam a magia como
resultado de uma intervenção demoníaca na vida dos seres humanos. Essa concepção permaneceu entre os
teólogos até o século XII. A magia adotou formas diferentes, as quais Isidoro de Sevilha, seguindo o
estudioso romano Varro, entre outros, haviam listado como geomancia, hidromancia, aeromancia e
piromancia, que é adivinhação por terra, água, ar e fogo; juntamente com a observação divinatória de
pássaros, entranhas, estrelas e planetas (o que poderíamos chamar de astrologia), encantamentos e outros
fenômenos. Essas categorias também permaneceriam padrão até o século XII.

O século XIII traria várias mudanças. Primeiro, alguns autores começaram a diferenciar a magia natural de
sua contraparte demoníaca. Entre eles, encontramos o influente Guilherme de Auvergne, que foi bispo de
Paris, e o famoso Alberto, o Grande, também conhecido como Santo Alberto, o Grande, que é atualmente o
santo padroeiro das ciências experimentais. A segunda grande mudança que afetou os teólogos do século
13 foi o surgimento de um novo tipo de conhecimento que incluía astrologia científica e alquimia.

Uma das seguintes unidades deste curso será dedicada a essas disciplinas. Basta dizer aqui que o novo
aprendizado reivindicou ser o herdeiro da filosofia e da ciência antigas, e parecia ser mais rigoroso e
avançado. O surgimento de universidades nas escolas catedrais anteriores e a importação do aprendizado
do árabe, que incluiu a transmissão da filosofia e ciência aristotélicas, afetaram profundamente a vida
intelectual da Europa nesse período. Mas os astrólogos e alquimistas do século XII não se considerariam
magos, embora seus oponentes os vissem como tais. Eles acabariam se vendo como praticantes de magia
natural apenas por volta do final da Idade Média.

No entanto, mesmo antes disso, muitas pessoas ainda pensavam que toda a magia era
inquestionavelmente demoníaca; e, de fato, quando discutiam os poderes ocultos da natureza, nem
sempre usavam o termo "magia" para se referir a eles. O próprio Tomás de Aquino (mais uma vez, São
Tomás de Aquino, curiosamente o santo padroeiro dos estudiosos), acreditava em fenômenos ocultos
causados pelas estrelas e planetas, mas reservava "magia" para circunstâncias que envolviam a intervenção
de demônios. Ele lidou com essas questões em sua Summa contra os gentios. O fato é que, segundo ele, a
maioria dos tipos de magia tinha a ver com demônios no final. Assim, mesmo que os magos parecessem ler
as estrelas ou usar ervas, eles teriam que estar em contato com algum tipo de ser racional que os ajudaria a
realizar todo tipo de coisa, concedendo-lhes conhecimento geralmente além do alcance de qualquer ser
humano normal. Encantamentos, invocações, personagens estranhos e tais eram claramente dirigidos a
seres sobrenaturais inteligentes, que tinham que ser maus e, portanto, demônios. Se os primeiros autores
cristãos já haviam alertado sobre a invocação de demônios quando o medo da magia se tornou quase
obsessão no final da Idade Média, aumentaram as preocupações e exortações dos clérigos. Mas atribuir
muito poder aos demônios era um negócio arriscado. Como os teólogos poderiam atribuir a eles o poder de
transformar uma criatura em outra, ou prever o futuro sem invadir o território pessoal de Deus? Por outro
lado, subestimar influências demoníacas era tão perigoso quanto. O resultado foi que, no final da Idade
Média, praticamente todos os tipos de magia estavam relacionados a demônios. Encantos, palavras e
gestos, todos eles profundamente enraizados nos costumes populares, foram repreendidos como
superstitio, como você viu na unidade anterior. Mas no final da Idade Média, o superstitio, mesmo que não
envolvesse demônios diretamente, também poderia ser inspirado por eles, como todos os pecados. Os

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remanescentes do que antes eram costumes pagãos e, muito mais tarde, vistos como fenômenos mágicos
naturais (como rituais relacionados a poços e nascentes, ofertas, maldições e até ervas medicinais), foram
rapidamente associados a demônios, e homens e mulheres quem os executasse caiam imediatamente sob
suspeita. As autoridades seculares e eclesiásticas continuaram emitindo legislação contra a magia durante a
Idade Média. Vimos um pouco disso em nosso último vídeo. As penas eram variadas, mas, embora as leis
seculares estivessem geralmente relacionadas aos danos causados pela magia, a Igreja estava geralmente
mais preocupada com a ofensa a Deus.

Contudo, clérigos e autoridades seculares tiveram pouco efeito no atual declínio do exercício da magia. E
quando os frades franciscanos e dominicanos se tornaram pregadores populares no século 13, a
condenação da magia ainda era um dos tópicos mais recorrentes em seus sermões. Por exemplo, é o caso
do franciscano Bernardino de Siena, um missionário também canonizado, que deve ter sido muito bom em
seu trabalho, pois se tornou o santo padroeiro da publicidade. De qualquer forma, se as leis contra a magia
fossem basicamente as mesmas durante todo o período medieval, o século XIII testemunharia um grande
desenvolvimento no método mais eficiente para perseguir e processar a magia. E os inquisidores
medievais, cujo objetivo principal era perseguir os hereges, lançariam as bases para o que estava por vir.
Até o próximo vídeo!

2.3 PERSEGUIÇÃO DESENCADEADA

Olá! Bem vindo de volta! Em nossos dois últimos vídeos, estabelecemos como, em geral, a Igreja percebia a
magia como uma ameaça por toda a Idade Média. Desde os primeiros autores cristãos até os últimos
teólogos medievais, os clérigos advertiram contra os perigos da magia natural e demoníaca. A magia e seus
praticantes caíram progressivamente sob suspeita e se tornaram alvo de perseguição religiosa.

Em nosso último vídeo, também vimos como as leis emitidas pelas autoridades eclesiásticas e seculares
tiveram pouco ou nenhum efeito sobre realmente convencer as pessoas de velhos costumes e invocações
perigosas. No século XIII, um novo ator entra em cena e a perseguição começa a dar frutos por meio de sua
arma mais eficaz até o momento: tribunais inquisitoriais.

A década de 1230 é geralmente considerada a data fundamental do que é comumente conhecido como a
Inquisição. No entanto, a Idade Média ainda estava longe de testemunhar o surgimento de uma instituição
sólida de estrutura e, pelo menos do século 13 até o final da Idade Média, seria mais preciso falar de
indivíduos designados para fazer um trabalho que eles se esforçaram para executar excepcionalmente
bem: eles eram os inquisidores.

O principal objetivo desses clérigos era perseguirhereges, aquelescristãos(e isso é uma observação
importante pois os inquisidores não tinham jurisdição sobre judeus ou muçulmanos), esses cristãos, eu
digo, que se desviaram do caminho definido pelo dogma e pela autoridade do papa e dos bispos. Para fazer
isso, os inquisidores desfrutavam de certos privilégios. Eles estavam diretamente sob a autoridade papal e
tinham o direito de agir em virtude de seu ofício, ex officio, o que lhes permitia agir com base em um
simples boato inquisito, isto é, a própria investigação, foi seguido por um período de graça durante o qual
as pessoas foram encorajadas a denunciar outras pessoas e se incriminar. Depois disso, o processo foi
realizado em segredo. Testemunhas consideradas inadequadas por outras causas foram aceitas aqui (como
crianças ou condenados) e o acusado não tinha o direito de apelar.

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Mas como os inquisidores acabaram perseguindo os praticantes de magia? (O que eles chamariam de
'feiticeiros'). O ponto principal era que, durante o batismo, os cristãos renunciavam a Satanás e seus servos.
Portanto, cair de volta em suas patas significava abjurar a fé cristã.

Estritamente falando, aqueles que o fizeram podem até ser considerados como recaídas, literalmente,
alguém que caiu duas vezes (isto é, contando a queda de Adão e Eva, um pecado com o qual todos os
humanos nascem) e a punição para esses malfeitores era clara o suficiente, a terrível morte por fogo na
fogueira.

Esse tipo de caso poderia facilmente levar os inquisidores a se desviarem de seu objetivo principal e o Papa
Alexandre IV, por volta de 1260, afirmou que, a menos que a magia estivesse inconfundivelmente
relacionada à heresia, eles deveriam deixá-la às autoridades locais. Alguns inquisidores, no entanto,
argumentaram que toda magia implicava heresia, pois tudo era de natureza demoníaca. Heresia também
pode ser encontrada nas ações de uma pessoa, e não apenas em suas crenças. Nessa base, o papa João
XXII, no início do século 14, instruiu os inquisidores a perseguir necromantes e outros feiticeiros.

Muitos julgamentos medievais tardios, especialmente naquele século, foram dirigidos contra clérigos
envolvidos em necromancia (que discutiremos no último vídeo obrigatório desta unidade). Se eu lhe
pedisse agora para descrever um inquisidor medieval, você provavelmente apresentaria o perfil de algum
tipo de sádico; mas diga-se que os inquisidores medievais eram, antes de tudo, crentes, que aconselharam
contra a tortura e cuja missão principal era identificar, expor e erradicar qualquer coisa, ou qualquer
pessoa, que representasse um perigo para o cristianismo. A estaca nunca foi sua primeira opção, e
deliberações cuidadosas precederam cada sentença, enquanto as perseguições populares eram arbitrárias,
indiscriminadas e não seguiam nenhum procedimento.

Não estou tentando sugerir que ficar diante dos inquisidores acusados de feitiçaria era o melhor cenário
para qualquer um, mas ainda assim fornecia certas garantias de que outros "procedimentos" mais
espontâneos faltavam totalmente.

Dito isto, as famosas provas nas quais o próprio Diabo esteve envolvido vêm à mente e parecem
contradizer um pouco esse argumento. Veja, por exemplo, os casos de Joana D'Arc ou dos Cavaleiros
Templários, que, entre outras coisas, foram acusados de venerar uma cabeça e um gato. Mas todos eles
tinham um forte componente político, motivações que estavam muito além do zelo religioso. Poderosas
forças estavam em jogo e transformaram Satanás em um conveniente bode expiatório, por assim dizer.

As acusações de orgias, sodomia, incesto, banhos de sangue e convocações presentes nessas provações
seriam o pão e a manteiga da mania de bruxas da Era Moderna; mas, ironicamente, eram bastante antigos
e haviam sido aplicados no início de nossa Era a uma seita bastante herética e perigosa que acabaria
mudando a face do mundo para sempre: o cristianismo.

A seguir, seguiremos os passos de um inquisidor particularmente famoso em sua incansável luta contra o
mal. Aprenderemos algumas das preocupações dele com relação à magia e descobriremos o feiticeiro mais
improvável levado a julgamento. Não perca!

2.4 O CONTO DO INQUISIDOR NÃO TÃO MAL

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Oi Como vai você? Fico feliz em ver que você ainda está conosco! Se você se lembra do nosso último vídeo,
apresentamos a figura do inquisidor e discutimos como esses clérigos se tornaram a personificação da
perseguição religiosa a partir do século XIII. Muitos inquisidores são conhecidos por nós através dos
documentos que deixaram para trás e muitos fizeram para si um lugar bastante infame na história. Alguns
deles você já deve ter ouvido falar, Jacques Fournier, que se tornou Papa Bento XII em 1334, Nicolas
Eymerich, o Inquisidor Geral da Coroa de Aragão na segunda metade do século XIV, ou Tomás de
Torquemada, Grande Inquisidor do Santo Ofício da Inquisição no final do século XV, um personagem
sombrio ao qual os inquisidores devem grande parte de sua fama, apesar de ele não pertencer
adequadamente à categoria de inquisidor medieval que definimos em nossa última lição.

Hoje, vamos seguir um desses homens, que se tornou bastante famoso no final do século 20, graças a um
livro e um filme.

Se você leu The Name of the Rose (O nome da Rosa), o romance de Umberto Eco, ou assistiu ao filme (e se
não leu, o que está esperando?), certamente se lembra do malvado Bernard Gui, o Inquisidor dominicano
que desempenha um papel fundamental no tormento e na execução de dois monges falsamente acusados
e de um espectador inocente, uma garota que, é claro, é acusada de ser uma bruxa; um fanático odioso
que exerce o poder da Igreja por sua própria vingança pessoal e aceita sem escrúpulos confissões absurdas
obtidas através da tortura.

Bem, Bernard Gui era dominicano, tudo bem; ele atuou como inquisidor por muitos anos e ainda estava
vivo no início do século 14, quando a história acontece. Mas isso é tudo! O restante dos detalhes é bastante
fictício e, embora constituam um maravilhoso drama histórico, eles também promoveram todo tipo de
preconceito sobre os inquisidores. Não é minha intenção defendê-los aqui, mas, como historiadores,
devemos fazer um esforço para entender as ações das pessoas do passado, por mais terríveis que possam
nos parecer. É o raciocínio deles que devemos procurar, se queremos realmente entender seus
compromissos e preocupações. E Bernard Gui estava certamente comprometido, e certamente preocupado
com os inimigos e as ameaças que, segundo ele e muitos outros, cercavam a Igreja medieval tardia. Ele
nasceu por volta de 1261, entrou na Ordem Dominicana antes de completar 20 anos e foi nomeado
inquisidor da região de Toulouse em 1307, cargo que ocupou por quase 18 anos. Durante esse período, ele
levou a julgamento mais de 600 pessoas, e 10% delas (cerca de 40 homens e mulheres) foram entregues a
autoridades seculares para serem queimadas na fogueira. Ele finalmente morreria pacificamente em sua
cama em 1331, aos 70 anos de idade.

Ele foi o autor de vários trabalhos, mas o mais importante deles foi, sem dúvida, o seu Practica Inquisitionis
Heretice Pravitatis (Condução da Inquisição à Heresia), um dos manuais mais renomados para os
inquisidores, já que o público deste trabalho foram precisamente seus colegas. Escrito em latim, o Practica
é composto por cinco livros que compilam a própria experiência de Gui como inquisidor. Seu objetivo é
reunir todas as informações disponíveis sobre os diferentes grupos heréticos, para que possam ser
facilmente desmascarados: cátaros, valdenses, beguins, pseudo-apóstolos, etc., mas mais interessantes
para o nosso curso e para esta unidade, feiticeiros.

Como já discutimos, depois do Papa Alexandre IV, clarividentes e feiticeiros não foram levados a tribunais
inquisitoriais, a menos que estivessem envolvidos em doutrinas e atos heréticos. Mas na década de 1320, o
papa João XXII colocou todos os tipos de feiticeiros, sem distinção, sob a jurisdição dos inquisidores. A
partir de então, convocadores e adoradores de demônios, aqueles que fizeram negócios com eles, aqueles
que modelaram figuras de cera e aqueles que profanaram os sacramentos foram todos considerados, e
tratados, como hereges.

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Com quais destes feiticeiros Bernard Gui estava preocupado?

Em seu manual, ele criou uma forma de questionamento para que todo inquisidor pudesse obter a verdade
desses terríveis pecadores, que tentavam se esconder por todos os meios. Ele diz:

"A praga e o erro de feiticeiros, clarividentes e invocadores de demônios assumem


numerosas e diferentes formas em várias províncias e regiões, intimamente relacionados às
múltiplas invenções e imaginações falsas e vaidosas de pessoas supersticiosas, que prestam
atenção à espíritos do erro e as doutrinas dos demônios."

Eles tiveram que ser questionados sobre suas práticas. O que eles sabiam? O que eles ouviram? Eles
lançaram feitiços em crianças? Ajudaram as mulheres estéreis a conceber? Que tipo de substâncias eles
haviam alimentado com os outros: cabelos, unhas? Eles previram o futuro? Eles curaram as pessoas através
de encantamentos? Mas, para Bernard, o mais terrível de tudo é a profanação de práticas e rituais cristãos
ortodoxos para fins mágicos: rituais realizados com a Santa Hóstia ou óleos abençoados, imitando os
sacramentos, por exemplo, batizando figuras de cera moldadas à imagem de um verdadeiro pessoa e, em
seguida, perfurando-os com agulhas para prejudicá-lo.

Bernard Gui também estava interessado em saber onde esses feiticeiros haviam aprendido seus caminhos,
o quanto eles realmente acreditavam e quem os procurara por esses serviços. Ele adverte seus colegas:
"você questionará minuciosamente, tendo em mente a qualidade e a condição de cada pessoa, porque o
questionamento não pode ser o mesmo para todos. Você questionará homens de um modo e mulheres de
outro".

E aqui chegamos a um ponto muito interessante, porque neste momento, no início do século XIV, a
feitiçaria estava relacionada a homens e mulheres. De fato, um tipo muito específico de empreendimento
mágico foi atribuído apenas aos homens: necromancia. E esse será, precisamente, o tópico que
discutiremos a seguir, na última lição obrigatória desta unidade. Sim, por último, mas não menos
importante, falaremos sobre demônios e a maneira menos fácil que os homens medievais encontraram
para convocá-los a cumprir suas ordens. Não pode perder essa, pode?

2.5 NECROMANCIA: QUANDO OS DEMÔNIOS FALAVAM LATIM

Olá! Bem-vindo ao último vídeo obrigatório desta unidade. Mas não fique triste por isso! Se você quiser
saber mais sobre o relacionamento entre magia e religião, ainda poderá assistir aos vídeos opcionais
dedicados à ideia judaica de magia.

Hoje, para ser franco, vamos falar sobre demônios. Quão legal é isso?

Na unidade a seguir, você aprenderá tudo sobre bruxas, feiticeiros e a perseguição selvagem que centenas
de homens e mulheres, mas principalmente mulheres, sofreram por esse suposto crime no final da Idade
Média e da Era Moderna. No entanto, como previ em nosso último vídeo, o tipo de mágica que
discutiremos nesta lição era quase exclusivo para os homens. Mas porque isso? Bem, vamos começar
apresentando-o corretamente, não é? Necromancia, também chamada nigromancia, significa literalmente
"adivinhação entre os mortos", do grego nekros (corpo morto) e manteia (profecia ou adivinhação). Pelo
menos esse era o seu significado original. Um necromante conjurou os espíritos dos mortos para prever o
futuro, usá-los como armas ou forçá-los a revelar informações ocultas. Mas trazer de volta os mortos pode
representar um problema para uma religião baseada na ressurreição de sua figura mais importante, que só

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foi capaz de voltar e ressuscitar outras pessoas (lembra-se da história de Lázaro?) através do poder de
Deus.

Portanto, autores cristãos interpretaram esses eventos em termos de demônios, que assumiram a
aparência de pessoas mortas para cometer todo tipo de travessuras. Por extensão, então, o termo
"necromancia" começou a ser usado para se referir à conjuração de demônios, e esse era seu significado
mais comum no final da Idade Média.

Vimos como entre os teólogos medievais encontramos opiniões diferentes quanto ao grau de envolvimento
dos demônios nos vários tipos de magia, mas a necromancia era, inquestionavelmente, de natureza
demoníaca. Os necromantes invocaram demônios e o fizeram mais do que de bom grado. E como eles
fizeram isso? Bem, surpreendentemente, os necromantes eram em sua maioria clérigos, ou seja, falando
em geral alguém que sabia latim (observe aqui o gênero do possessivo "his", pois como você já deve ter
imaginado, o latim era principalmente, se não exclusivamente, acessível aos homens e ainda assim, apenas
para alguns homens).

Para ser mais preciso, esses clérigos eram geralmente ordenados, pelo menos em ordens inferiores. Eles
pertenciam aos escalões mais baixos da hierarquia eclesiástica.

De qualquer forma, a necromancia só poderia ser aprendida nos livros, pois envolvia conjurações
complexas que precisavam ser muito específicas para produzir o fim desejado.

O inquisidor Nicholas Eymerich, a quem mencionei brevemente no último vídeo, escreveu em seu
Directorium Inquisitorium por volta de 1376 (onde ele assimila feitiçaria com heresia, justificando assim seu
próprio envolvimento no assunto). Ele escreveu que havia confiscado livros dedicados à necromancia pelos
próprios necromantes, livros que ele prontamente queimou publicamente, é claro. Esses livros, bem como
as confissões desses necromantes infelizes o suficiente para comparecer perante o Inquisidor, fornecem a
Nicholas e seus colegas uma riqueza de informações sobre as práticas desses clérigos rebeldes.

Eles batizaram imagens, sabiam os nomes de demônios, misturaram-nos com os nomes de santos e anjos, a
fim de perverter orações, queimaram as carcaças de vários animais diferentes e, o pior de tudo, adoraram
explicitamente demônios. Os necromantes se curvaram diante dos demônios, os honraram e prometeram
obediência em troca de seu favor.

Como sempre, ao lidar com fontes inquisitoriais, devemos ter muito cuidado com a confiabilidade deles.
Em outras palavras, quanto do que eles confessavam sob provável coação era verdade? O fato é que,
apesar das confissões, vários manuscritos existentes contêm esses rituais e descrições. E não estou me
referindo às obras daqueles que procuraram erradicar a necromancia. Estou falando de livros adequados
para necromantes. Os usos de ter demônios do lado de alguém eram incontáveis, assim como as
conjurações específicas para cada objetivo: afetar principalmente as mentes e os corpos de outras pessoas
(por exemplo, atrair seu amor, prejudicá-los, de alguma forma ou forçá-los a realizar uma certa ação como
por exemplo: criar ilusões, ressuscitar os mortos, fazer algo aparecer do nada, descubrir segredos sobre o
futuro ou o passado etc). Desnecessário será dizer que nenhum desses propósitos parece especialmente
adequado para homens religiosos.

Os principais elementos desse tipo de magia são sempre círculos mágicos, conjurações e sacrifícios, todos
complexos e requerem certas habilidades e treinamento.

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Quanto à sua eficácia, como você viu na unidade introdutória e repetimos em nossos últimos vídeos, não é
nosso objetivo como historiadores discutir, ou mesmo considerar, a chamada validade das abordagens de
nossos ancestrais. Se esse é um argumento sólido para o estudo da história em geral, e da história medieval
em particular, é especialmente importante no estudo histórico da magia. O mais interessante na análise do
desenvolvimento da necromancia é que seus praticantes e seus detratores a perceberam como um passo
adicional no conhecimento.

A necromancia e sua condenação mostraram que a sociedade medieval acreditava fortemente no poder
dos rituais e na sua perversão.

Se certas palavras se pronunciam em uma determinada ordem e, como parte de uma determinada
apresentação, podem fornecer poder demoníaco, o mesmo pode ser dito sobre as orações apropriadas e a
realização ritual dos sacramentos. Estaríamos totalmente errados se cedêssemos à tentação e
desconsiderássemos as pessoas medievais como ingênuas, mesmo os homens mais instruídos
(necromantes por um lado, os únicos capazes de acessar um conhecimento tão complexo; teólogos e
inquisidores, por outro, capazes de perceber a ameaça que representava).

Nós mesmos somos os herdeiros de suas concepções e ainda concedemos a maior importância a todos os
tipos de rituais. Pense nisso na próxima vez que você evitar passar debaixo de uma escada ou, na verdade,
na próxima vez que fizer uma oração. Vemo-nos na nossa próxima unidade!

CONTEÚDO COMPLEMENTAR

COMUNIDADES JUDAICAS ORIENTAIS: UM POUCO DE CONTEXTO

Olá. Bem-vindos a este local privilegiado em frente da igreja medieval de Santa Maria. Se vocês estão a
assistir a este vídeo, isso significa que estão curiosos sobre a forma como outras religiões entendiam a
magia, na idade média.

Tal como prometido, este é o lugar certo para aprender mais sobre isso.

Os dois vídeos opcionais incluídos nesta unidade, irão conduzi-los através da vida das comunidades judaicas
no Oriente próximo e da sua noção de magia. Mas, antes disso. Quem eram essas pessoas? E como é que
elas conseguiram viver num contexto onde foram sempre estranhos? Na idade média, as comunidades
judaicas estavam espalhadas pelos vários reinos da Europa, da Ásia e do norte da África. Estiveram sempre
em minoria, em todos esses lugares, e o seu estatuto legal, dependia diretamente da legislação religiosa e
política, da maioria que os rodeava. Por exemplo, os judeus que viviam nos reinos cristãos da Europa
estavam sujeitos às leis dos monarcas e aos regulamentos da igreja. Já os judeus que viviam nos territórios
islâmicos, dependiam dos regulamentos do Islão e dos seus governantes. Durante os minutos seguintes,
vamos-nos centrar nos últimos e em particular, no seu sistema religioso de educação.

Isto é importante porque o nosso próximo e último vídeo, abordará a questão da magia judaica, que foi
ensinada e aprendida, de forma completamente diferente. Os Judeus orientais estavam protegidos, e
também limitados pelo "dhimma", o acordo de proteção, entre muçulmanos e não-muçulmanos, que
permitiu aos últimos viver em territórios islâmicos, mas que ao mesmo tempo, condicionava o seu modo de
vida. Os não-muçulmanos estavam sujeitos a impostos especiais. Os seus trajes tinham que ser
visivelmente diferente dos que usavam os muçulmanos. Não podiam erigir novos centros de culto. Os
homens não-muçulmanos, não podiam casar com uma mulher muçulmana e o seu testemunho não era

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considerado aceitável, em julgamento contra um muçulmano, nem podiam ter escravos muçulmanos ou
receber uma herança de um muçulmano.

É claro que o proselitismo era estritamente proibido. Por outro lado, eles eram tolerados. Eles tinham
direitos legais e eram livres para praticar sua própria religião, escolher os seus líderes e manter uma
próspera atividade comercial e profissional. Foi graças a esta comunidade, religiosa e profissionalmente
independente que o judaísmo sobreviveu, e mais do que isso, influenciado pelo contexto islâmico,
floresceu em muitos campos tais como a poesia, filosofia, medicina, matemática ou agricultura. Muitas
obras literárias foram escritas em Hebraico, e muitos outras foram escritas em Árabe, usando o alfabeto
hebraico, isto é, o que chamamos de Judaico-árabe. Mas, como é que as crianças judias eram educadas?
Sem qualquer dúvida, a resposta está relacionada com a sinagoga. Os eventos mais importantes da vida de
qualquer judeu medieval aconteciam lá, no centro da liturgia e da vida comunitária. Ela realizava
assembleias e estava organizada de forma a garantir a sobrevivência da comunidade, que, tal como poderia
ser dito para qualquer grupo humano, começava com a educação dos seus filhos.

A educação religiosa dependia inteiramente do rabino. Ele era o representante religioso da "aljama", ou
seja, de toda a comunidade. Dirigia as atividades da sinagoga, a casa de estudo, que é a "bet midrash", e
muitos outros serviços da comunidade.

Altamente respeitado, devido à sua moralidade, religiosidade e conhecimentos bíblicos, ele era eleito pelos
órgãos de decisão da comunidade. Ele era o responsável pela educação das crianças. Na verdade, a
educação religiosa, foi uma preocupação dos Judeus, ao longo de toda a sua história. E a sua
regulamentação já estava bem estabelecida nos textos mais importantes do judaísmo.

A primeira fonte de leitura, para a aprendizagem de qualquer criança judia, era a "Tanakh", a Bíblia judaica,
que é, principalmente, o Antigo Testamento dos cristãos.

Ela incluiu, entre outros, o Pentateuco, ou seja, a Torah, um termo provavelmente está mais familiar para
quem tiver formação cristã.

De um ponto de vista didático foi uma escolha inteligente, pois incluía história, lendas, fé, literatura e língua
hebraica, ao mesmo tempo que permitia que as crianças se familiarizassem com a vontade de Deus e com a
sua intervenção na história dos judeus, como povo escolhido para fazer uma aliança com ele.

As outras referências mais importantes para a educação das crianças foram, em primeiros lugar, a
"Mishnah", a tradição oral que foi passada de Deus a Moisés, deste para Josiah e assim por diante. Que foi
compilada e escrita no final do segundo século da era cristã. Ela regula a vida das comunidades judaicas até
os mínimos detalhes.

Em segundo lugar, o Talmud. Ou seja, os comentários dos grandes estudiosos, de várias gerações, desde o
terceiro século da era cristã, sobre o texto da Torah.

A educação das crianças judias, decorria, supostamente, ao longo dos primeiros 18 anos. Quanto mais
alguém estudava, mais respeitado se tornava na sua comunidade.

Essa era a teoria base, mas o facto é que o nível cultural médio dos Judeus medievais, era superior ao dos
membros de outras comunidades religiosas do seu tempo, e não apenas quantitativamente mas também
qualitativamente. As meninas também tinham direito a receber essa educação. No Egito do século XII, por
exemplo, os homens cegos eram considerados os candidatos mais adequados para ensinar as meninas.

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Sendo incapazes de as verem, a sua interação não escandalizava ninguém. Inclusive houve mulheres a atuar
como professoras.

Estudando as escrituras, as crianças alimentavam suas mentes, mas também moldavam o seu caráter e
adquiriam a ética que governaria as suas vidas. Os judeus passavam a maior parte do seu tempo na
sinagoga e na casa de estudo, especialmente aos sábados e nos feriados.

Daí, a sinagoga ter sido a pedra angular do sistema educativo judaico, por mais de 2.000 anos. Na idade
média, não importa quão pobre era a comunidade, a casa de estudo e a sinagoga eram os dois locais
fundamentais para a transmissão da educação.

Embora a educação básica fosse da responsabilidade dos pais, também eram contratados professores
particulares. A figura do judeu analfabeto era muito pouco frequente durante o período Medieval. No
entanto, a mais alta educação religiosa, estava apenas disponível para aqueles que a podiam pagar e a
maioria dos judeus não conhecia o Talmud em detalhe, e menos ainda, outros tratados.

No entanto, o estudo das ciências, era um assunto inteiramente diferente. O rabino não era responsável
por ele e o aluno tinha que procurar um mestre que lhe proporcionasse essa formação. Tal como em
muitos outros campos profissionais, o mestre era geralmente um parente ou um especialista de renome
que aceitasse o aluno, sob o seu cuidado. E qual era a posição de magia neste sistema educativo? Seria
aprendida com as outras ciências? Representaria uma ameaça para a religiosidade dominante, tal como
vimos acontecer relativamente ao cristianismo? Receio que tenham de esperar pelo vídeo da próxima
semana.

A IDÉIA JUDAICA DE MAGIA

Oi de novo! Neste último vídeo da segunda unidade de nosso curso sobre magia na Idade Média,
tentaremos analisar o que os estudiosos sabem hoje sobre a ideia judaica de magia no período medieval.
Deixe-me lembrá-lo de que este vídeo e o anterior são opcionais e você pode ignorá-los, claro, se você
estiver interessado apenas na perspectiva cristã, o que sinceramente espero que não seja o caso. De
qualquer forma, como vimos na última lição, enquanto a educação religiosa era institucional, a formação
profissional e científica foi adquirida através de um mestre. O que aconteceu com o conhecimento mágico?
O fato é que a magia quase não é mencionada na literatura medieval judaica. A Bíblia proíbe explicitamente
a prática de artes mágicas. No entanto, fontes medievais falam sobre remédios, amuletos e curas, que
eram uma atividade bastante popular e generalizada entre os judeus medievais. A natureza da literatura
mágica era principalmente divinatória, preocupada com a interpretação de sinais e sonhos, medicina
popular e fórmulas para produzir amuletos. É muito difícil resumir a magia medieval judaica porque, de
fato, ainda não foi muito estudada até agora. Os autores de tratados mágicos permanecem anônimos e sua
produção era escassa no começo. Mas é fato que os judeus orientais e ocidentais acreditavam em magia.

Poucos são os trabalhos que realmente criticam a magia e são bastante marginais. Não existem tratados
contra a magia, como aqueles que vimos entre os autores cristãos mais proeminentes da época. Por outro
lado, também não encontramos tratados que apoiem a magia, pois o fato é que devemos diferenciar a
crença na magia de sua prática.

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As práticas mágicas, assim como a medicina popular, não eram motivo de discussão entre estudiosos; eles
eram simplesmente outra disciplina científica. Mas era realmente difícil diferenciá-los de outros campos de
especialização, como a astrologia ou a própria medicina.

Como uma combinação de ervas, alimentos e outras substâncias, as práticas mágicas eram uma alternativa
à própria prática médica.

De acordo com os judeus, quando a Bíblia proíbe a magia, ela proíbe apenas a magia não natural, a que
pretende influenciar poderes cósmicos, a magia negra (quase na mesma linha que separa a magia natural
da magia demoníaca entre certos autores cristãos, você não acha?)

Como sempre, porém, o fato de certos manuais conterem fórmulas para a convocação de anjos e demônios
para controlar alguém, não significa que esses rituais foram realmente realizados. A diferença mais
importante entre o sistema educacional religioso que vimos em nosso último vídeo e o ensino de magia é
que este último não foi transmitido oralmente. Não havia mestres oferecendo lições mágicas especiais. No
entanto, sabemos que havia magos judeus medievais, eles eram chamados mekhashef ou mekashefah,
dependendo do sexo, e eram na maioria indivíduos possuídos por uma espécie de conhecimento mágico
que deveriam usar em proveito próprio ou em benefício de outros. Nesse sentido, eles eram profissionais
que eram remunerados por seu trabalho.

Mas, a fonte da magia judaica da qual você provavelmente espera ouvir é a Cabala, não é? O que é a
Cabala?

O conceito foi tão contaminado por todos os tipos de rabiscos da nova era que algumas palavras
explicativas são mais do que necessárias. A Cabala é uma antiga tradição judaica de interpretação mística
da Bíblia (transmitida pela primeira vez por via oral e usando métodos esotéricos, incluindo cifras) que
atingiu o auge de sua influência na Idade Média posterior e permanece significativa em vários movimentos
judaicos ainda hoje (como Hasidismo).

O objetivo da Kabbalah é entender Deus e Sua Criação, e isso não pode ser completamente alcançado por
meio da razão, mas através da contemplação e iluminação resultante que vem da leitura da Torá. A Cabala
encarna a tentativa de transformar a Lei escrita nas leis internas que governam o Universo. Coisa pequena,
não é? Assim, o judaísmo se torna um sistema de símbolos místicos que refletem os mistérios de Deus e do
Universo, um sistema que os cabalistas tentam compreender por vários meios. Mas a Cabala é muito mais
do que isso (bem, tenha paciência comigo aqui, como se "isso" "não fosse suficiente!) A Cabala também é o
que é chamado de interpretação teosófica, isto é, uma filosofia que afirma que o conhecimento de Deus
pode ser alcançado através do êxtase espiritual, intuição direta ou relações individuais especiais. A parte
mais esotérica e oculta da lei oral, a Mishnah que vimos em nosso último vídeo, também tem seu lugar na
Cabala: é chamada de Cabala prática, mas é claramente diferenciada de sua contraparte mais mística. A
Cabala prática se refere à magia, em particular, ao discutir a convocação do anjo da guarda que guia a vida
espiritual de cada ser humano. Além disso, a manipulação e permutação dos nomes de Deus, anjos e
demônios, carregados de significado esotérico, afeta o mundo físico e espiritual e pode até acelerar o
advento da era messiânica. Também não é pouca coisa! Aqui, o Livro da Criação, oSéfer Ietsirà (onde os
caracteres hebraicos incorporam uma espécie de poder criacional) desempenham um papel da maior
importância. Como você pode ver, era um campo de conhecimento bastante complexo e elevado, fora do
alcance da maioria das pessoas. De fato, os rabinos não foram autorizados a começar a descobrir seus
mistérios até que tivessem, pelo menos, 40 anos de idade, ou seja, após uma vida inteira de estudo.

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Se você atingiu a idade apropriada e se sente tentado a entender seus segredos, lembre-se de que não é a
idade, mas o pano de fundo que a faz. Você ainda precisará gastar pelo menos algumas décadas cobrindo
todos os estágios da educação filosófica e religiosa que um estudioso medieval judeu normalmente
passaria. Vemo-nos na nossa próxima unidade!

CONCLUSÃO DA SEGUNDA SEMANA (VÍDEO SEMANAL 2)


Olá, seja bem-vindo ao jardim do edifício histórico da Universidade de Barcelona. Neste, nosso segundo
vídeo semanal, abordaremos algumas das perguntas e ideias levantadas por suas contribuições aos fóruns.
Quero começar agradecendo a todos pelo entusiasmo e compromisso contínuo com este curso. Nós,
organizadores, estamos entusiasmados com a maneira como a magia na Idade Média está funcionando, e
tenha certeza de que sabemos que é você quem a faz funcionar porque sua participação e feedback nos
ajudam a melhorá-la.

E essa é a minha sugestão para me desculpar, porque, como alguns de vocês notaram, preciso desacelerar
um pouco. Sinto muito se falo tão rápido que você teve problemas para entender os vídeos desta semana.
Há tanta informação em cada um deles e eu tendo a me empolgar um pouco, principalmente quando
falamos sobre esse tipo de coisa. Vou tentar compensar você falando hoje a um ritmo mais razoável neste
vídeo.

Dito isto, vamos começar discutindo as atividades sugeridas para a unidade dois. Você deveria comparar o
personagem de Bernardo Gui, retratado no filme de Jean-Jacques Annaud, O nome da rosa, baseado no
romance de Umberto Eco, e interpretado por Fahrid Murray Abraham. Você tinha que compará-lo, eu
disse, com a figura histórica que apresentamos em vídeo.

Por um lado, como muitos de vocês apontaram, a caracterização ficcional de Bernardo Gui incorpora vários
estereótipos diferentes do inquisidor. Apresenta-o como um vilão sem explorar seus antecedentes ou seu
raciocínio. Ele simplesmente age como o equivalente maligno de William de Baskerville. Por outro lado, a
imagem que fornecemos é baseada na análise histórica de Bernardo Gui, não apenas como inquisidor, mas
também como uma pessoa real com suas próprias motivações e crenças.

O que nos leva a um ponto bastante interessante.

Nós intitulamos o vídeo quatro de “O Conto do Inquisidor Não Tão Mal”. E um de seus colegas de curso
estava preocupado com o fato de ser uma abordagem um pouco frívola para um tópico bastante sério. Por
que a parte não é tão má?

Bem, não estamos de forma alguma afirmando que enviar quase 60 pessoas a uma morte terrível por fogo
é moralmente justificável de qualquer forma. Ou o torna menos mal do que, por exemplo, Conrad de
Marburg, um dos primeiros inquisidores que discutimos no fórum especializado e quem enviou centenas de
pessoas à fogueira depois de forçar suas confissões por tortura.

Como seres humanos, melhor ainda, como seres humanos do século XXI, é natural que tomemos partido,
especialmente ao lado das vítimas que foram condenadas por suas crenças. Algo que a maioria de nós acha
impensável, mesmo que ainda aconteça hoje em algumas partes do mundo. Mas, como historiadores, isso
não pode ser uma maneira de abordar o assunto. Nossa primeira e principal missão é entender as pessoas
do passado, acusadas e inquisidores, e tentar colocá-las em seu contexto. E vê-los como pessoas, não

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apenas como vítimas e monstros, respectivamente. Julgamentos morais não são nossos para passar. No
entanto, um dos nossos principais objetivos, quando estávamos criando este curso, foi dissipar alguns dos
equívocos mais comuns sobre magia na Idade Média. Entre eles, como vimos nesta semana e veremos
novamente na próxima unidade, a demonstração dos inquisidores precisava ser abordada. Pois, os
inquisidores medievais eram na verdade uma voz da razão, pelo menos às vezes, enquanto os linchamentos
espontâneos que eram tão cruéis quanto a morte na estaca não ofereciam absolutamente nenhum abrigo
legal para os suspeitos de serem feiticeiros e prejudicarem outros através do uso da magia.

Outra preocupação sua ao longo desta semana foi a razão pela qual queremos que você analise um filme
quando há tanta literatura não-ficção relevante para o tópico de magia e heresia. Bem, no final dos vídeos,
você pode ver muitas videografias especializadas sobre esse assunto. E você também tem um arquivo PDF
no painel do curso, que pode ser consultado e baixado, se quiser saber mais sobre ele. Também
adicionaremos recursos online nas próximas semanas. Mas, de qualquer forma, se quiséssemos que você
refletisse sobre a figura do inquisidor, como retratada nos filmes, foi porque os filmes tiveram um papel
importante na formação da concepção mais difundida desse inquisidor maligno de que eu estava falando.
Goste ou não, o cinema reflete nossas próprias referências como sociedade. E é importante para nós,
historiadores, e também para qualquer pessoa interessada em história, assim como vocês, desenvolver um
espírito crítico que nos ajude a dar crédito artístico onde o crédito é devido. Mas também compare o
produto artístico com o que realmente sabemos sobre esse período histórico, especialmente agora que o
interesse na Idade Média foi reacendido por tantos filmes, romances e programas de TV. Houve um ponto
deste exercício, que você teve um desempenho extraordinário, a propósito.

Quanto aos testes que acompanharam os vídeos desta unidade, gostaria de revisar brevemente as
respostas corretas. Primeiro, a diferença entre a magia natural e a demoníaca está no poder que eles usam.
Enquanto a magia natural está relacionada ao poder da natureza, a magia demoníaca tem a ver com os
demônios e sua intervenção nos assuntos humanos.

Quanto ao segundo teste, os pontos de vista da igreja sobre magia. Os clérigos eram absolutamente
constantes, como se poderia esperar, ao considerar a magia demoníaca e o mal que precisavam ser
perseguidos, mas as visões sobre a magia natural variaram ao longo da Idade Média, como vimos. O teste
mais problemático foi o terceiro. Por que os inquisidores foram encarregados de perseguir os feiticeiros?
Embora o argumento, na medida em que a magia fosse de natureza demoníaca, estivesse sob a alçada dos
inquisidores, era usado por muitos inquisidores que queriam chegar lá com as mãos sobre esse assunto.
Não foi até a época do papa João 22, no início do século 14, que eles foram realmente ordenados a cuidar
disso. Até então, eles deveriam passar esses casos para as autoridades seculares, a menos que estivessem
diretamente ligados a crenças heréticas. Quanto à quarta pergunta, você não tem problemas por lá, o
Practica de Gui foi um manual que ele escreveu para seus colegas com base em sua própria experiência. E,
finalmente, a necromancia era praticada principalmente por clérigos instruídos que conheciam o latim.

A unidade da próxima semana abordaremos longamente o tema da bruxaria e sua perseguição. O Dr. Will o
acompanhará através da construção do estereótipo da bruxa e do alegado crime de bruxaria. Você verá
como os primeiros julgamentos funcionaram e também os papéis que as autoridades seculares e
eclesiásticas desempenharam nesses julgamentos no final da Idade Média. Tenho certeza que você vai
gostar. Por favor, continue nos dizendo o que acha do nosso curso e contribuindo com a sua opinião nos
fóruns. Nós realmente apreciamos isso. Obrigado e até breve.

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UNIDADE 3 – DA MAGIA A BRUXARIA

3.1 A ORIGEM MEDIEVAL DO CRIME DE BRUXARIA

Olá. Como você está indo? Estou muito feliz por estar novamente aqui na Biblioteca de Manuscritos e
Livros Raros, da Universidade de Barcelona, para introduzir um dos tópicos mais ansiosamente esperados,
do nosso curso: “Bruxaria”.

No final da chamada idade média surgiu um novo crime, em diferentes partes da Europa. Caracterizava-se
por voos noturnos, assembleias diabólicas, apostasia, pactos com o diabo e, por causar doença e morte,
através de vários meios. Os homens e mulheres considerados culpados destes crimes, receberam
diferentes nomes, nas fontes da época: "witches", "streghe", "hexen", "sorcières" ou "bruxas".
Confirmando assim as várias tradições associadas ao nascimento deste fenômeno. Alguns desses nomes
referiam-se claramente a uma tradição anti-herética, enquanto outros estavam relacionados com magia
maléfica ou com a evocação de figuras míticas, associadas com ataques noturnos.

Durante os vídeos seguintes, vamos tentar compreender a súbita explosão destas novas acusações, na
Europa Medieval tardia. Veremos os componentes mágicos do estereótipo das bruxas e a sua progressiva
diabolização. E entraremos nas câmaras de tortura, para ver como funcionavam os julgamentos de bruxaria
e para descobrir que tipo de acusações e de confissões, foram feitos pelos homens e mulheres,
principalmente mulheres, condenados por crimes tão terríveis. Mas para fazermos isso, temos de nos
colocar, a nós próprios, no início do século XV, mais ou menos onde a unidade anterior terminou. Como se
devem lembrar, já discutimos o declínio da magia que ocorreu paralelamente à emergência de novos
paradigmas científicos. E o terrível efeito causado por esses pregadores que aconselhavam contra as
práticas mágicas e que estabeleceram a ligação entre feiticeiros diabólicos e adivinhos, com as desgraças
que assolavam a sociedade. Vamos então começar por nos focarmos num desses sermões, dado pelo bem
conhecido Vincent Ferrer. Em 1416 Ferrer andou a pregar os seus sermões por todo o sul da França. Na
aldeia de Clermont-Ferrand ele disse:

"Devemos recorrer a Cristo e não aos feiticeiros que não te podem dar nada, além do
inferno. E devemos expulsar os feiticeiros, porque sustentá-los é terrível aos olhos de Deus.
E para este fim, não deveis poupar a lenha, porque uma vez conhecida a verdade, eles
devem ser queimados. Tal como Deus espalha a semente da verdade neste campo, que é o
mundo, também o diabo espalha a semente da falsidade, que são os feitiços, adivinhações,
envenenamentos e coisas semelhantes. E quando sustentais esse tipo de pessoas, a ira de
Deus cai sobre as vossas terras. E até mesmo a presença de apenas um deles, é suficiente
para que toda a terra seja destruída. E por isso, esse tipo de pessoas deve ser queimado."

Uma advertência muito forte, não é mesmo?! Bem, o resultado foi que, poucos anos depois de Ferrer e de
outros pregadores terem espalhado a palavra, começaram os primeiros julgamentos por bruxaria, em
diferentes partes da Europa, dando início à uma perseguição que durou vários séculos e levou para a
fogueira, milhares de pessoas, alegadamente culpadas desses hediondos crimes contra Deus e a sociedade.

Vocês irão aprender muito mais sobre este assunto com o Dr. Pau Castell, um especialista em história da
bruxaria. Fique ligado.

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3.2 BRUXARIA E MAGIA MALÉVOLA

Em 1996, o historiador britânico Jonathan Barry afirmou que, passo a citar: "Poucos empreendimentos
históricos tem sido tão intensamente historiográficos e de carácter reflexivo, como o estudo da bruxaria." As
palavras de Barry ilustram efetivamente o fato, de que, durante os últimos 200 anos, dezenas de estudiosos
têm dedicado seus estudos, à história da bruxaria, oferecendo assim uma enorme quantidade de literatura
historiográfica onde podemos mergulhar.

Nesta unidade, tentaremos resumir algumas das suas conclusões, de forma a entendermos o surgimento
da caça às bruxas, no final da Idade Média. Para o fazermos, vamos analisar primeiro o chamado
"estereótipo da bruxa", que surgiu na Europa durante os séculos XIV e XV. Um aspeto central desse
estereótipo da bruxa está claramente relacionados com o mundo da magia maléfica.

Ao longo da história humana, a maioria das sociedades tem acreditado na existência de algumas pessoas
capazes de fazer mal a outras, através de meios mágicos. Essas práticas eram conhecidas nos tempos
medievais pelo nome "maleficia" (crime maléfico), muitas vezes acompanhado pela expressão "vereficia",
isto é, envenenamento. Durante os primeiros séculos medievais, as leis seculares estabeleceram uma clara
diferença entre esse tipo de práticas maléficas e a magia benéfica. Podemos encontrar um exemplo disso
no Código da Lei, promulgada pelo rei castelhano Afonso, o Sábio, durante o século XII. Que diz o
seguinte:

"Todas as pessoas da aldeia podem acusar adivinhos, feiticeiros, e outros impostores de


que falamos neste capítulo, perante o juiz. E se os testemunhos provarem que eles
fizeram alguns desses atos maldosos, eles devem morrer por causa isso. Mas aqueles que
executam encantamentos ou outras coisas com boa intenção, tais como, para expulsar os
demónios do corpo das pessoas, para curar os casais atingidos com impotência, para
evitar que o granizo caia das nuvens, para evitar a névoa que estraga as colheitas, para
exterminar os gafanhotos e pulgões que estragam o pão e as vinhas ou por qualquer
outro motivo benéfico, como estes, não lhes deve ser feito mal, e devem mesmo receber
um prémio por isso."

Esta distinção entre magia boa e má, dependendo das intenções do executante, não era tão clara entre as
elites eclesiásticas. Para eles, a maioria dos tipos de magia eram supersticiosos e deviam ser evitados pois
podiam levar as pessoas a afastar-se da crença num único Deus verdadeiro, como já vimos na unidade
anterior. Seja como for, esta distinção estava bem estabelecida nas mentes das pessoas, como pode ser
visto, através das leis seculares da Europa medieval, e nos julgamentos realizados contra a magia maléfica,
em muitos tribunais seculares. Por exemplo, podemos encontrar inúmeros julgamentos contra homens e
mulheres retratadas como "malefici", por impedirem a relação sexual entre casais, através de meios
mágicos. Podemos também encontrar leis seculares contra as mulheres que eram capazes de provocar
bócio e outras doenças da garganta, a pessoas ou animais, doenças bastante comuns nas áreas
montanhosas europeias. A pena para aqueles crimes era bastante severa. De acordo com um código de leis
do século XIV, do vale dos Pirenéus, de Aneu, os réus tinham que provar a sua inocência, através da
provação do ferro. Esta provação consistia em forçá-los a segurar um ferro incandescente e, em seguida,
avaliar a evolução das feridas. No caso de uma recuperação rápida, a mulher era considerada inocente.
Caso contrário, era vista como culpada do alegado crime, condenada a ser queimada e todos os seus bens
eram confiscados e entregues ao seu Senhor e ao acusador. Tal como vimos na unidade anterior, todos os
tipos de práticas mágicas, boas e maléfica, começaram a ser vistas sob uma luz mais sinistra, durante os
últimos séculos medievais. Elas foram associadas com comportamento diabólico e mesmo com heresia.

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Este fenômeno, atestado em muitas obras teológicas e nos sermões de dos pregadores mendicantes,
induziu uma mudança da forma como as pessoas que executavam atividades mágicas eram percebidas. A
partir desse momento, os adivinhos e feiticeiros, e também os malefici começaram a ser vistos, não apenas
como indivíduos maus, mas também como membros de um grupo malévolo de pessoas, uma espécie de
seita herética, que poluía a sociedade cristã com meios diabólicos. Algumas obras do século XV, começaram
a falar sobre a seita dos adivinhos, enquanto alguns pregadores mendicantes, como San Bernardino de
Siena, falavam sobre algumas seitas, cujos membros se reuniram durante a noite para realizar rituais
negros e que eram capazes de provocar doença, ou morte, através de feitiçaria ou veneno.

Nesse cenário, o Papa Alexander V, promulgou uma bula, em 1409, em que condenava, e cito: "As novas
seitas compostas por cristãos e judeus, que são feiticeiros, adivinhos, invocadores de demónios,
encantadores, ilusionistas, pessoas supersticiosas e adivinhos, que usam artes malditas que pervertem e
mancham a cristandade." Dentro desse contexto, as antigas acusações contra indivíduos por magia
maléfica, deram lugar a um cenário muito mais perturbador, em que os males que assombravam a
sociedade eram atribuídos aos atos de uma coletividade herética e diabólica.

Lembram-se da provação do ferro, a que as mulheres, supostamente causadoras de doenças de garganta,


nos vales dos Pirenéus, eram sujeitas? Bem, 100 anos mais tarde, em 1424, os notáveis do mesmo vale,
decidiram legislar contra esses crimes mágicos. Mas desta vez, as mulheres não eram apenas acusadas de
causar a doença, mas também de serem parte de um grupo de pessoas que se reuniam durante a noite,
abjuravam a fé cristã, prestavam homenagem ao diabo, sequestravam bebês de junto das suas mães, para
os matarem, e provocavam doenças de garganta e outras, através de veneno ou feitiçaria. Esta fusão de
heresia e diabolismo, com magia maléfica, viria a dar lugar ao crime de bruxaria.

3.3 A MITOLOGIA DA BRUXARIA

Como vimos em nosso último vídeo, a magia maléfica foi um dos aspectos centrais do estereótipo de bruxa
que surgiu no final da Idade Média. Mas, para compreender completamente a figura da bruxa, devemos
também examinar seu componente mitológico.

Um dos principais especialistas na história da bruxaria, Richard Kieckhefer, estudou o que chamou de
primeiras mitologias da bruxaria que apareceram durante o século XV. Ao fazer isso, ele percebeu que os
primeiros ensaios e tratados sobre bruxas sempre incluíam alguns elementos mágicos relacionados a uma
série de figuras noturnas míticas, caracterizadas por sua capacidade de voar, entrar em casas fechadas,
mudar de forma e também por suas tendências infanticidas.

Essas figuras tinham, de fato, uma origem antiga, pois já as encontramos no período grego e romano, e
mesmo antes.

São as chamadas Strigae, as mulheres-pássaros que, segundo os antigos, se transformavam em unguentos


e fórmulas e entravam nas casas à noite para sugar o sangue das crianças.

E também as Lamiae, uma figura maléfica semelhante que raptava bebês de seus berços para desmembrá-
los e comê-los.

As duas figuras noturnas, os Strigae e os Lamiae, também estavam muito próximos de um terceiro
personagem mítico, o Pesadelo, uma figura que recebeu nomes diferentes em muitas partes da Europa, e
que se acreditava que entrasse em casas à noite para esmagar ou sufocar adormecidos e até matá-los.

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Todas essas figuras noturnas se tornaram parte do sistema medieval de crenças. Sabemos que as mulheres
costumavam realizar vários tipos de rituais para proteger seus filhos do ataque daqueles demônios da
noite.

Um deles consistia em deixar comida, bebida e um espelho em uma mesa, para entretê-los e evitar seus
ataques durante a noite. Muitas mães medievais colocam colares de coral em seus bebês, buscando um
efeito semelhante, ou pedem os serviços de feiticeiros e mágicos para proteger seus filhos com seus
encantos e encantamentos.

Não obstante, acreditava-se que todas essas figuras noturnas eram entidades espirituais, de natureza
semelhante a outras figuras míticas, como fadas, duendes, duendes domésticos etc. De acordo com as
autoridades eclesiásticas, elas não passavam de demônios ou maus espíritos, cujo objetivo era
simplesmente enganar as pessoas em crenças supersticiosas e afastá-las da verdadeira fé. Mas então, como
é que essas figuras e suas ações maléficas foram finalmente atribuídas a pessoas reais, isto é, bruxas?

Para responder a essa pergunta, precisamos nos colocar no final do período medieval, em um momento em
que as autoridades eclesiásticas começaram a se preocupar com os poderes do diabo e sua capacidade de
agir fisicamente no mundo humano.

Os clérigos começaram a perceber muitas dessas figuras míticas, não como ilusões diabólicas ou maus
espíritos, mas como seres reais e corporais, capazes de agir no mundo físico. Não apenas isso, mas as
pessoas que costumavam acreditar nessas figuras e interagir com elas começaram a ser vistas com
desconfiança e até consideradas responsáveis pelos delitos causados durante a noite.

Vamos ver alguns exemplos extraídos de fontes medievais tardias.

O primeiro caso acontece na Itália durante os anos 1380. Duas mulheres do território de Milão, Sibilla e
Pierina, foram repetidamente levadas à corte do bispo sob acusações de superstição e atividades mágicas.
Entre outras coisas, eles confessaram ter interagido com uma espécie de sociedade de fadas e se juntaram
à noite ao que chamavam de "o jogo" (il gioco), uma assembleia presidida por uma figura feminina, onde
cantavam e bebiam, e então entravam em casas diferentes. Se os encontrassem limpos e arrumados, se
sentiam felizes e sua amante os abençoava.

Essa narrativa está claramente relacionada à tradição das "boas moças", atestada nas fontes pelos nomes
de Dominae Nocturnae ou Dominae Albae, ou seja, as senhoras brancas ou as damas noturnas, e também
pelos nomes de Bonae Dominae ou Bonae Res (as boas damas, as boas coisas).

A crença nessas figuras noturnas é atestada em toda a Europa durante os tempos medievais. Acreditava-se
que algumas mulheres passeavam com aquelas damas durante a noite, participando de sua procissão.

Naquelas noites em que as pessoas suspeitavam da visita das boas damas, costumavam manter suas casas
arrumadas e deixavam comida e bebida para atrair boa sorte.

Mas o julgamento de Sibilla e Pierina deu uma guinada após a intervenção dos inquisidores de Milão. Sob
pressão, elas finalmente confessaram ter prestado homenagem àquela figura feminina, em cuja presença
era proibido pronunciar o nome de Deus. Eles até confessaram ter invocado um espírito ruim chamado
Lucifelum, que as transportou para o jogo, onde tiveram relações sexuais com ele, e até lhe deram seu
próprio sangue para selar um pacto de fidelidade.

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As duas mulheres foram finalmente condenadas como hereges e queimadas em Milão em 1390.

Nosso segundo caso acontece alguns anos depois na cidade catalã de Barcelona. Em 1419, uma mulher foi
levada à frente do bispo por acusações relacionadas a atividades mágicas, envolvendo alguns rituais de
fertilidade e proteção de crianças. Quando interrogada em frente à quadra, a mulher afirmou que era capaz
de proteger bebês recém-nascidos do ataque de maus espíritos, como bruxas ou exércitos de fantasmas,
colocando a mesa à noite com uma toalha de mesa, pão, vinho e um espelho, para que as bruxas e os
membros do exército fantasma se divertissem comendo e bebendo, e se olhando no espelho; e, assim, eles
não atacariam o bebê recém-nascido.

Obviamente, essa mulher não estava se referindo a soldados corporais ou grupos de mulheres assassinas,
mas a entidades espirituais maléficas. No entanto, a pergunta feita pelo tribunal era bastante clara quanto
às intenções do juiz, uma vez que ele perguntou à mulher (cito): "se ela já foi com algumas mulheres
chamadas bruxas, ou esteve na companhia delas, ou se ela conhecesse alguém que fizesse esse tipo de
coisa na cidade".

Não sabemos o resultado desse julgamento, mas alguns anos depois, nos vales dos Pirenéus, ao norte de
Barcelona, as mulheres começaram a ser condenadas e queimadas por terem se juntado às bruxas à noite
para prestar homenagem ao diabo, abjurar a fé cristã, beber e cantar e festejar com demônios, e entrar em
casas fechadas para sequestrar e matar bebês recém-nascidos.

3.4 PROVAS DE BRUXARIA MEDIEVAIS (I)

Bem vindo de volta. Depois de analisar as origens do estereótipo de bruxa durante o final da Idade Média,
devemos agora examinar mais de perto os julgamentos de bruxaria que começaram a ser realizados
durante o século XV. Como eles começaram? Quem foram os juízes? O que sabemos sobre as mulheres
acusadas? Quais foram as acusações feitas contra eles?

Para responder a todas essas perguntas, temos que entrar nos tribunais medievais com a ajuda de fontes
judiciais.

A primeira coisa a notar é que o crime de bruxaria, por sua própria natureza, poderia ser processado por
diferentes tribunais de justiça. Como representava uma espécie de heresia devido à apostasia realizada
durante as reuniões sabáticas, o crime de bruxaria poderia cair sob a jurisdição dos inquisidores. E assim foi
em alguns casos. Mas, como também envolvia danos mágicos contra pessoas ou bens, também poderia ser
julgado por uma corte secular, a corte real ou qualquer uma das muitas cortes autônomas presididas por
um senhor ou um conselho da cidade.

Este último tipo de tribunais (isto é, tribunais seculares autônomos) foram, de fato, os tribunais mais ativos
na acusação de bruxaria durante os tempos medievais e modernos.

Apesar da ideia comum sobre o papel desempenhado pela Inquisição contra as bruxas, o fato é que a
maioria dos julgamentos realizados durante a mania de bruxas foram iniciados por tribunais locais
presididos por autoridades seculares e, muitas vezes, a pedido da própria população. Uma população que,
em um contexto de morte e doenças, pressionou as autoridades locais a processar e punir os autores de
tais ações demoníacas.

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Vamos ver alguns exemplos disso, extraídos dos registros judiciais catalães da região dos Pirenéus.

Em 1477, começou uma caça às bruxas no senhorio catalão de Mont-rós. Os registros judiciais desse
incidente contêm uma solicitação feita pelos vizinhos e notáveis da região e endereçada ao seu
governador. Diz:

"Nesta terra de Mont-rós, somos muito oprimidos, abusados e assediados por pessoas
venenosas, isto é, bruxas e envenenadores, de modo que todos os dias encontramos
crianças e gado mortos, e outros aleijados e desperdiçados. E nós reivindicar e pensar que
isso vem apenas de pessoas más e venenosas, das quais é sabido publicamente que somos
bem providos. E assim, para evitar tantos danos e maleficências e expurgar a terra de tais
criminosos enormes, humildemente imploramos a Suas Misericórdias que proceder à
correção de tais crimes enormes e à punição dos criminosos".

O governador aceitou esta reivindicação e começou a perseguir e capturar os supostos autores, que foram
presos e processados pelo tribunal local de Mont-rós.

Alguns anos depois, em outra vila dos Pirinéus, um dos vizinhos foi interrogado durante um julgamento de
bruxaria e ele foi perguntado sobre o início dos procedimentos.

Ele respondeu em tais termos:

"As pessoas da vila se reuniram e perguntaram ao oficial de justiça o que poderia ser feito,
porque ela era considerada uma bruxa e muitas pessoas reclamavam de seu gado e de
outras coisas...”

E o povo concordou em fazer um pedido ao oficial de justiça para prendê-la. E o oficial de justiça
respondeu: “Vou de fato prender a mulher, mas se ela não for culpada, todos vocês pagarão os custos do
julgamento.”

E então eles disseram para conseguir um notário público para tomar depoimentos e, dependendo do
resultado, prendê-la.

Esse era o cenário típico para a maioria dos julgamentos de bruxaria iniciados na Europa medieval e
moderna. As fontes existentes frequentemente revelam um padrão de perseguição iniciado de baixo, em
um contexto caracterizado pela disseminação de doenças, falhas de colheita ou mortes de crianças ou
gado, atribuídas pelas comunidades à ação de algumas pessoas malignas e, portanto, exigindo a
intervenção das autoridades.

As suspeitas e acusações de magia maléfica feitas contra algumas mulheres estavam na origem da maioria
dos julgamentos. O gênero de acusações que foram substituídas por acusações muito mais obscuras
durante os julgamentos, especialmente durante as sessões de tortura, quando os acusados confessaram ter
participado de reuniões noturnas com o diabo, abjurando Deus e tomando o diabo como seu Senhor,
fazendo pomadas venenosas para matar ou causar doenças aos vizinhos ou ao gado, e até causar
tempestades de granizo para destruir as plantações e entrar em casas à noite para esmagar bebês.

Para entender os fundamentos de tais confissões, precisamos examinar mais profundamente a mecânica
dos julgamentos de bruxaria. Este será o objetivo do último vídeo desta unidade.

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3.5 PROVAS DE BRUXARIA MEDIEVAIS (II)

Olá, neste último vídeo da unidade, analisaremos a mecânica dos julgamentos medievais de bruxaria. Como
já vimos no vídeo anterior, a maioria dos procedimentos contra bruxas começou com acusações de magia
maléfica feitas pelas comunidades locais em um contexto de morte ou doenças atribuídas a agentes do mal
que estavam escondidos entre elas.

Depois que o tribunal decidiu iniciar os procedimentos judiciais, foi iniciado um inquérito entre os vizinhos,
perguntando sobre suas suspeitas, sobre a presença de bruxas na região, sobre uma morte ou doenças que
apareceram em circunstâncias estranhas e assim por diante.

Durante essas primeiras investigações, chamadas de voz e reputação (inquisitio de vox et fama), uma série
de nomes foi dada ao tribunal, permitindo assim a compilação de uma lista de suspeitos.

Esses suspeitos, geralmente mulheres, foram presos e levados ao tribunal para interrogatório.

Durante esses primeiros interrogatórios, a maioria dos acusados manteve sua inocência.

No entanto, as declarações das testemunhas reunidas no inquérito já constituíam uma espécie de evidência
incriminatória que poderia ser reforçada por meio de outros tipos de procedimentos judiciais.

O mais utilizado foi o teste conhecido como exame de marcas. Consistia em despir o acusado e procurar
marcas em seu corpo. Quais eram consideradas as marcas do diabo, indicativas de que ela pertencia à seita
maligna. Como você pode ver na imagem, as marcas eram geralmente encontradas nos ombros ou nas
costas e, às vezes, eram visíveis depois de esfregá-las com água benta ou perfurá-las com agulhas.

Com esse tipo de evidência, o promotor já poderia pedir ao tribunal uma sentença condenatória. Mas na
maioria das vezes isso não era suficiente para demonstrar culpa. E assim o tribunal procedeu ao que foi
chamado de "sentença interlocutória de tormento" (interlocutoria tormentorum). Isso significava que os
interrogatórios seriam retomados, mas agora com a ajuda de tortura ou tormento judicial.

Como você pode imaginar, esse foi um momento importante na maioria dos julgamentos, pois as sessões
de tormento foram o prelúdio de uma grande série de confissões às supostas ações perpetradas pelos
acusados.

Um dos sistemas usuais de tortura consistia em prender o acusado pelos polegares enquanto perguntava
sobre as acusações. Um sistema semelhante consistia em pendurar o acusado com as mãos amarradas nas
costas, até adicionando um pouco de peso aos pés para aumentar a dor, como você pode ver na imagem.

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Vamos ver um exemplo do tipo de confissão emitida nessas sessões de tortura. Em 1471, uma mulher
chamada Guillema Casala, do vale dos Pirenéus de Andorra, foi acusada por algumas de suas vizinhas,
juntamente com outras seis mulheres, de serem responsáveis pelas mortes e doenças que ocorreram no
vale.

Apesar de refutar as acusações feitas contra ela, o tribunal secular de Andorra decidiu pronunciar uma
sentença de agravo interlocutório.

Depois de ser enforcada várias vezes, Guillema confessou ser uma bruxa e ter sido iniciada por outra
mulher chamada Garreta.

E então ela fez a seguinte declaração:

Que o mencionado Garreta a fez ir ao bode. Porque o mencionado Garreta a ungiu sob as axilas e disse-lhe
para dizer: 'Suba a folha!' E com isso ela se viu fora de casa com a mencionada Garreta.

E assim eles foram pelo ar até uma montanha, cujo nome ela não se lembra, e lá ela viu um homem muito
grande chamado Diabo; e ela viu ao seu redor 20 pessoas, homens e mulheres, alguns dançando e outros
comendo frutas.

E então o diabo a pegou e mandou beijar a mão dele, e ela o fez.

E então ela pensa que beijou suas nádegas e prestou homenagem a ele e o tomou como seu Senhor,
abjurando o Criador. E ela prometeu a ele fazer o mal a qualquer momento e nunca confessá-lo, mas a
receber todos os anos a Santa Comunhão.

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E assim, sendo interrogada, ela disse que depois disso, o Diabo teve relações carnais com ela. Interrogada,
ela disse que ele tinha um membro muito frio ".

Confissões como essa são comuns em muitos julgamentos de bruxaria em toda a Europa.

Em vez de descrever reuniões reais, essas confissões revelaram o padrão usado pelos interrogadores, todos
leitores dos mesmos trabalhos e tratados sobre o que uma bruxa deveria ser.

Esse padrão foi reproduzido durante os julgamentos com a ajuda de tortura judicial. Enquanto a magia
maléfica era a principal preocupação dos vizinhos e a origem da maioria das acusações, o diabo entrou na
câmara de tormentos com a ajuda dos interrogadores.

Após aquelas terríveis sessões de tormento, o acusado ficou com pouco espaço para manobra.

Tendo qualquer prova refutável de sua culpa (ou seja, suas próprias confissões), o tribunal tinha o direito
de emitir uma sentença de morte.

As execuções públicas, enforcamentos, seguidas da queima do cadáver, nada mais fizeram do que reforçar
a imagem das bruxas como uma ameaça pública, abrindo assim a porta para as terríveis perseguições que
duraram séculos e inflamaram o continente europeu e além.

3.6 VÍDEO OPCIONAL: FONTES MEDIEVAIS SOBRE BRUXARIA (I)

Olá, bem-vindo a esses dois vídeos extras da terceira unidade.

Nesses vídeos, veremos alguns exemplos de fontes medievais relacionadas à bruxaria e tentaremos
identificar as diferentes tradições relacionadas ao suposto crime de bruxaria durante o final da Idade
Média.

Vamos começar com um extrato do trabalho de Ambrosius de Vignate, um respeitado magistrado e


especialista em direito da Itália do século XV que lecionou nas universidades de Pádua, Bolonha e Torino.

Durante sua vida, Ambrosius participou de vários julgamentos contra supostas bruxas e ouviu homens e
mulheres confessarem (livremente e sob tortura) que eles pertenciam a essa seita maléfica e haviam
cometido todo tipo de crimes e coisas terríveis.

Em uma passagem de seu trabalho sobre a acusação de heresia, ele dedica uma pergunta ao assunto da
bruxaria. Seguiremos a tradução em inglês dada por Hans Peter Broedel. Cito:

"O que, portanto, dizemos sobre as mulheres que confessam que andam à noite por
grandes distâncias em um momento e entram nos aposentos trancados de outras pessoas
com a ajuda de seus mestres diabólicos (como dizem), com quem eles falam, a quem
pagam e com quem (como eles dizem), eles têm relações carnais, e por cuja persuasão
(como eles dizem), eles negam Deus e a Virgem Maria, e com os pés pisam a cruz sagrada, e
quem, com a ajuda de demônios (como eles dizem), mata crianças e mata pessoas e as faz
sofrer várias lesões, e que dizem que fazem muitas coisas como essas e dizem que às vezes
se transformam na forma de um rato e, às vezes, dizem eles, o diabo se transforma na

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forma de um cachorro ou outro animal? Essas e outras coisas semelhantes são possíveis,
prováveis ou credíveis?"

Nesta passagem, Ambrosius nos dá um exemplo bastante completo do estereótipo de bruxa sobre o qual
falamos nesta unidade.

Podemos ver nela uma combinação de motivos mitológicos, heresia demonolátrica e magia maléfica.

Essa combinação particular de elementos em um todo coerente apareceu pela primeira vez na Europa no
declínio da Idade Média. Na verdade, nem todos acreditavam na existência da seita das bruxas e muitos
eram abertamente céticos quanto à realidade das coisas confessadas durante essas provações.

No entanto, uma vez formulado o estereótipo de bruxa, ele se espalhou gradualmente por todo o
continente.

Vamos ver outro exemplo do mesmo período, desta vez de uma fonte francesa. É um extrato da obra
Flagellum Maleficorum, escrita por volta de 1460 por Petrus Mamoris, o regente da Universidade de
Poitiers. Petrus Mamoris escreveu um tratado interessante sobre o tema da bruxaria, a pedido do bispo de
Saintes. Em uma passagem de seu trabalho, Mamoris afirma que as bruxas confessaram que:

"Algumas delas são transportadas à noite ou durante o dia por um demônio para lugares
próximos e distantes; e lá, elas podem dançar e adorar o diabo, os homens podem ter
relações sexuais com mulheres e demônios podem substituir as mulheres; elas podem
comer e beber na realidade ou na aparência, causar morte e doença a outras pessoas, que
podem entrar nas adegas e arrastar o vinho e levá-lo para lugares distantes, levar as
pessoas a dormir , pegue os filhos dos braços de suas mães e assá-los, divinar alguns
eventos do futuro, incite trovões e tempestades de granizo, derrube e mate com raios,
destrua colheitas e perpetram muitos outros males com a ajuda de demônios."

Como no caso de Ambrosius de Vignate, o magistrado italiano, a narrativa desenvolvida pelo francês Petrus
Mamoris exemplifica claramente as diferentes tradições que se fundiram no estereótipo de bruxa durante
o século XV. Vamos tentar agora identificar alguns desses diferentes motivos nas narrativas desses
primeiros teóricos das bruxas. Antes de tudo, o magistrado italiano nos fala sobre mulheres que andam à
noite por grandes distâncias e entram nos quartos trancados. Enquanto o regente francês menciona que
eles entram nas adegas e arrastam o vinho, tomam os filhos dos braços de suas mães e os assam.

Essas são referências claras às tradições dos espíritos noturnos, como as "strigae" e as "lamiae" das quais
falamos nesta unidade. Além disso, a referência às viagens noturnas e à pilhagem do vinho também lembra
a narrativa daquelas boas damas da noite com suas procissões, suas casas fechadas e seu desejo por vinho
e pão.

Vale ressaltar que todas essas características atribuídas às bruxas maléficas aparecem agora sob um quadro
demonológico. Os demônios transportam essas mulheres e abrem as portas fechadas para entrar nas
câmaras de suas vítimas. Esses mesmos demônios com quem eles têm relações sexuais, com quem eles se
deleitam nas reuniões noturnas onde eles abjuram a Deus e prestam homenagem ao seu Lorde das trevas.

No próximo vídeo, examinaremos mais de perto um dos aspectos centrais desse estereótipo de bruxa: as
tendências infanticidas atribuídas às supostas bruxas. Te vejo em breve!

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3.7 VÍDEO OPCIONAL: FONTES MEDIEVAIS SOBRE BRUXARIA (II)

Bem-vindo a este último vídeo extra da terceira unidade dedicada à bruxaria e à magia maléfica. Vamos
agora examinar mais de perto um dos aspectos centrais do estereótipo de bruxa. Isto é, as tendências
infanticidas atribuídas às supostas bruxas.

Os ataques perpetrados a crianças recém-nascidas durante a noite são uma das acusações comuns contra
bruxas nos tempos medievais e modernos.

Vamos ver um exemplo retirado do trabalho de um dos primeiros teóricos das bruxas, Johannes Nider, e
chamado Formicarius.

Enquanto fala sobre as confissões feitas durante os julgamentos, o autor fornece uma descrição precisa
desse infanticídio herético nas palavras de quem confessou. Segundo Nider, a mulher confessou (cito):

"...atacamos crianças não batizadas e até batizadas, especialmente se elas não são
guardadas com o sinal da cruz e com orações.Com nossas cerimônias, matamos crianças
em seus berços ou ao lado de seus pais, que se acredita terem sido sufocados ou mortos por
outra causa.Nós secretamente roubamos seus corpos dos túmulos, os fervemos em um
caldeirão até que toda a sua carne se separe dos ossos e se torne sugável e potável.Da
matéria sólida, fazemos uma pomada que realiza nossos desejos, nossa arte e nossas
transformações."

Você pode pensar que esse tipo de confissão, muitas vezes obtida sob tortura, não passava da imaginação
sombria de alguns clérigos ou fanáticos religiosos. E poderia até ser o caso, até certo ponto, mas deixando
de lado a origem dessa crença, o fato é que, durante os tempos medievais, ela ficou profundamente
enraizada na mentalidade das pessoas. E tornou-se uma opinião comum que algumas mulheres eram
realmente responsáveis pela morte de crianças que aconteceram em circunstâncias estranhas.

Para avaliar a opinião do povo sobre esses assuntos, precisamos procurar novamente as fontes; mas desta
vez, nos depoimentos feitos por testemunhas durante os julgamentos.

Vamos ver um primeiro exemplo retirado de um julgamento contra a mulher chamada Joana Call e
presidido pela corte secular do vale dos Pirenéus de Andorra em 1472. Durante o julgamento de Joana, um
de seus vizinhos afirmou que (cito):

"Em sua opinião, durante a noite de Natal, uma coisa entrou em sua cama e subiu nele, e
ele sentiu que era pesado como chumbo e que o apalpou.E ele acredita que estava
procurando pela criança que estava na cama para matá-lo.Mas ele pegou e deu um soco. E
ele acreditava que era a Joana acima mencionada."

Esta declaração dada pela testemunha não era única.

Vários vizinhos, homens e mulheres, informaram o tribunal sobre as mortes de crianças ou gado ocorridas
em suas casas; muitas vezes acompanhada de sons estranhos durante a noite e seguidas de certas marcas
deixadas nos cadáveres das crianças.

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Vamos ver outro exemplo desse mesmo vale, retirado de uma série de julgamentos contra bruxas, durante
os quais certas mulheres da família Tomasa foram acusadas.

Uma das testemunhas, uma mulher que havia perdido recentemente seu bebê recém-nascido, respondeu
às perguntas feitas pelo tribunal em tais termos:

"E ela confirmou que havia encontrado uma marca de mão no peito e também tinha
encontrado seu filho todo desembrulhado, com o umbigo esticado e o braço todo
aleijado.Foi perguntada se ela havia notado, enquanto examinava a criança, que ele havia
sido tratado ou machucado.E ela disse que a criança foi maltratada e manipulada, e as
marcas dos dedos ainda eram visíveis. Foi-lhe perguntado se, vendo a criança assim, tinha
percebido que ela havia sido realmente esmagada por mãos humanas. E ela respondeu que
achava que sim, já que os lados da criança eram todos azuis, que ela viu a criança morta,
que estava toda machucada, esmagada e azul, e que suspeitavam das mulheres da casa de
Tomasa."

Esse padrão narrativo, criança morta com marcas estranhas, suspeita, acusação e julgamento de bruxas, é
uma constante em muitos processos judiciais de bruxaria em toda a Europa.

Às vezes, uma série de mortes de crianças desencadeia uma caça às bruxas em algumas paróquias, com os
vizinhos pedindo às autoridades que tomem medidas para impedir essa praga maléfica.

Bem, se você quiser saber mais sobre o assunto bruxaria e caça às bruxas, não perca os links abaixo, bem
como as referências bibliográficas fornecidas para esta unidade. Te vejo em breve.

CONCLUSÃO DA TERCEIRA SEMANA (VÍDEO SEMANAL 3)

Olá. Bem-vindos a este terceiro vídeo semanal, e parabéns pela conclusão desta terceira unidade de "Magia
na Idade Média", uma unidade dedicada ao crime de bruxaria.

Entre as muitas questões levantadas nos programas, escolhi uma relativa à possibilidade das bruxas sob
suspeita, serem declaradas inocentes pelo Papa. Ou seja, haverá alguns casos em que a mulher acusada de
bruxaria tivesse sido absolvida? A resposta é afirmativa, embora requeira algum esclarecimento. No meu
trabalho com fontes judiciais, relacionadas com as acusações por bruxaria, encontrei quatro cenários
diferentes, em que os acusados foram capazes de evitar a sentença condenatória, quando eram suspeitos
ou já tinham sido julgados por bruxaria.

O primeiro cenário era aquele onde uma mulher, acusada de bruxaria por um ou vários dos seus vizinhos,
era capaz de confrontar os seus acusadores, ao apresentar uma queixa por difamação.

Se a queixa fosse bem sucedida, o acusador era forçado a retirar as acusações e a pagar os custos do
julgamento e, até mesmo, uma multa judicial. O segundo cenário típico, era aquele onde as autoridades
começaram de facto com um inquérito de reputação de envenenamento, junto dos vizinhos, mas não
foram capazes de reunir suficientes evidências, e por essa razão, declararam as mulheres suspeitas, como
livres de culpa.

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O terceiro cenário está relacionado com a possibilidade de apresentar uma defesa no julgamento, através
da nomeação de advogados, a fim de refutar as acusações, invalidando algumas das evidências, ou as
testemunhas apresentadas pelo acusador, e também, chamando as suas próprias testemunhas. Então, nos
casos onde o acusado era capaz, ou autorizado, a apresentar uma defesa sólida, para provar sua inocência,
ele poderia, de fato, ser absolvido.

O mesmo acontecia quando era capaz de resistir as sessões e ainda continuava a afirmar a sua inocência,
porque, nesse caso, o Tribunal considerava que o acusado estava acima de qualquer suspeita e todas as
evidências anteriores, eram então invalidadas.

Finalmente, o último cenário, tem a ver com a possibilidade de apelar para um tribunal superior. Este era
uma espécie de último recurso, para as mulheres julgadas por bruxaria. Mesmo nos casos onde o Tribunal
já tinha extraído uma confissão válida, da boca do acusado, às vezes, quando o caso era revisto por um
outro tribunal, ele terminava com a nulidade das provas e das confissões anteriormente efetuadas pelos
acusados.

Este último cenário leva-nos a um aspeto central para compreendermos a desigual intensidade da caça às
bruxas, entre os diferentes territórios da Europa. Em algumas regiões, as acusações de bruxaria levaram a
uma enorme quantidade de sentenças de morte, ao longo dos anos, enquanto que noutras, não há
nenhuma. Muitos especialistas têm sugerido que isso tem a ver com o sistema judicial desses territórios, e
com as autoridades envolvidas.

Na verdade, nas regiões onde a perseguição foi liderada principalmente pelas autoridades locais, com o
vulgar uso, e abuso, da tortura tradicional e com a falta de controle pela autoridade judiciária central,
abundaram as sentenças de morte. Pelo contrário, nos territórios, com um sistema judicial centralizado e
com um maior grau de controle dos tribunais locais, em suma, territórios onde o resultado dos
julgamentos, era decidido, longe dos lugares de origem das acusações, as sentenças condenatórias por
bruxaria, eram poucas e, em alguns casos, completamente inexistentes.

Obrigado por terem assistido e não hesitem em continuar a debater este interessante assunto nos fóruns,
durante a próxima semana, quando abordarmos o assunto da magia no Islão, pela mão do professor
Sébastien Moureau e do professor Godefroid de Callataÿ, da Universidade de Leuven. Divirtam-se.

UNIDADE 4 – MAGIA NO ISLÃ

4.1 AS VARIEDADES DE MAGIA NO ISLÃ

Olá, talvez eu possa começar me apresentando em poucas palavras. Meu nome é Godefroid de Callatay,
sou professor de estudos árabes e islâmicos no Instituto Oriental da Universidade de Lovaina, na Bélgica.

Gostaria de recebê-lo no primeiro vídeo desta unidade, dedicado às variedades de magia no Islã. Por favor,
junte-se a nós para saber mais sobre este tópico.

A magia no Islã é definitivamente um assunto de natureza proteana, e muitas vezes se observa que existem
quase tantas tentativas de definir o que é mágica, como há pessoas escrevendo sobre esse assunto.

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De fato, uma visão mais ou menos abrangente dos materiais e práticas relacionadas à magia no Islã
medieval exigiria que se lidasse com disciplinas ou conceitos tão diversos quanto amuletos, talismãs,
truques e conjurações, ordenação e prestidigitação, quadrados mágicos, letras mágicas, interpretação de
sonhos, e até fisionomia e astrologia, para citar apenas alguns deles.

Uma das fontes mais informativas que temos sobre magia no Islã é o historiador do século 14, Ibn Khaldūn.

No Muqaddima ("A introdução"), Ibn Khaldūn nos deixa um relato excepcionalmente detalhado sobre
magia e talismãs, definido como (citando a tradução de Rosenthal) "ciências que mostram como as almas
humanas podem estar preparadas para exercitar uma mente". Influência sobre o mundo dos elementos,
sem qualquer auxílio ou com o auxílio de assuntos celestes ".

Falando sobre as almas que têm habilidade mágica, Ibn Khaldūn afirma que elas são de três graus:

"O primeiro (tipo), ele diz, exerce sua influência apenas através do poder mental. Sem nenhum instrumento
ou auxílio. Isso é o que os filósofos chamavam de mágica (siḥr).

O segundo (tipo) exerce sua influência com o auxílio do temperamento das esferas e dos elementos, ou
com o auxílio das propriedades dos números. Isso é chamado de talismãs (ṭilasmāt). É mais fraco em grau
que o primeiro.

O terceiro (tipo) exerce sua influência sobre os poderes da imaginação. É isso que os filósofos chamam de
prestidigitação ".

Deixando de lado o terceiro nível, o de prestidigitação e fantasmagoria, que Ibn Khaldun não considera real,
podemos concentrar nossa atenção nos dois primeiros graus.

O que o texto aparentemente significa é que o nível mais alto de magia, na verdade o único que deveria ser
chamado siḥr no sentido apropriado, é reservado àqueles capazes de executar recorrendo a poderes
sobrenaturais sem nenhum instrumento ou intermediário.

Note-se que isso pode ser profetas, cujo poder espiritual é reconhecido como uma qualidade divina, ou
então feiticeiros, ou seja, pessoas capazes de derivar seu poder das forças satânicas.

Enquanto a primeira forma de mágica é frequentemente chamada de alta magia, a segunda é


frequentemente descrita como baixa mágica, uma dicotomia que corresponde vagamente à posição
tradicional entre magia branca e negra.

Quanto ao outro nível de mágica, aquele que implica a existência de um meio a ser realizado, geralmente
significa corresponder à teurgia ou à magia natural, uma vez que nenhum poder sobrenatural é necessário
aqui.

Uma forma particular de magia natural é, de fato, a dos talismãs, ṭilasm, da palavra grega telesma, na qual
inscrições com um significado geralmente astrológico são usadas como amuletos para proteger alguém ou
alguma comunidade contra perigos como tempestades, animais selvagens ou várias manifestações
geralmente entendidas como resultantes do mau-olhado.

Vários séculos antes de Ibn Khaldūn, nas linhas iniciais da versão longa de sua Epístola da Magia, os Ikhwān
al-Safā 'ou irmãos de pureza forneceram a seguinte definição de siḥr:

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"Você deve saber, meu irmão, que a essência da magia e sua realidade são as coisas pelas
quais os intelectos são enfeitiçados e as coisas pelas quais as almas se rendem através de
discursos e ações que produzem espanto, submissão, atenção, audição, audição,
consentimento, obediência ou aceitação. "

A definição ikhwana de magia foi adotada pelo autor andaluzi do Ghāyat al-ḥakīm ("O objetivo do sábio"),
um tratado de magia celeste que deveria exercer uma enorme influência no Ocidente, durante o
Renascimento, graças a sua adaptação latina, conhecida como Picatrix. A autoria do Ghāyat al-ḥakīm e de
outro tratado sobre alquimia, intitulado Rutbat al-ḥakīm ("O Grau do Sábio"), permaneceu um problema
até bem recentemente quando Maribel Fierro teve o mérito de demonstrar de maneira convincente em
1996 que o autor era, de fato, o esoterista e tradicionalista Maslama Ibn Qāsim al-Qurṭubī, que viajara para
o Oriente na primeira metade do século X.

Há razões para acreditar que este Maslama também é o estudioso que introduziu o corpus enciclopédico
de Ikhwān al-'afā 'a al-Andalus pela primeira vez. O Ghāyat al-ḥakīm se apresenta como um curioso livro de
magia, que, além de descrever formas altamente elaboradas de rituais nos quais os espíritos dos planetas e
outros seres celestes estão sendo invocados, impressiona o leitor pela extrema heterogeneidade de suas
fontes, a maioria deles claramente de preferência oriental.

Como David Pingree observou certa vez, "as fontes desta compilação - e o autor se orgulha de ter saqueado
duzentos e vinte e quatro livros - parecem ter sido textos árabes sobre hermetismo, bianābianism,
ismā'īlism, astrologia, alquimia e magia produzidas em árabe no Oriente próximo nos séculos IX e X d.C."
Outro aspecto muito importante da magia no Islã medieval foi a interpretação mágica das palavras e letras
do Alcorão, uma ciência geralmente referida como ilm al-ḥurūf ou sīmiyā ', e sobre a qual meu colega
Sébastien Moureau falará mais detalhadamente em outro vídeo da unidade atual.

Entre as contribuições mais importantes nesse campo, deve-se mencionar aqui, no Oriente, algumas das
obras atribuídas ao famoso alquimista Jābir ibn ayayan, um estudioso que deveria ter vivido no século VIII e
a quem um corpus volumoso de escritos foi atribuído nas fontes clássicas.

Em al-Andalus, certamente se deve nomear Ibn Masarra, um filósofo geralmente reconhecido como o
primeiro estudioso da Andaluzia com uma forma original de pensamento e cujo Kitāb khawāṣṣ al-ḥurūf (“O
Livro das Propriedades das Letras”) foi recentemente redescoberto em um único manuscrito.

Vários séculos depois de Ibn Masarra, Ibn ‘Arabī, o conhecido pensador místico também escreveu trabalhos
muito significativos sobre a" ciência das letras ", principalmente suas" Revelações de Meca ".

Para se ter uma ideia melhor de quão importante e ramificada a ciência da magia era no Islã,
provavelmente não há exemplo melhor do que o compilador e enciclopédico turco do século XVII Ḥājjī
Khalīfa, também conhecido como Katip Çelebi. Seu Kashf al-zunūn (“A Remoção de Dúvidas”) inclui sob o
título “siḥr” uma variedade surpreendente de 14 disciplinas, que foram listadas por Toufic Fahd como:
"adivinhação, magia natural, propriedades dos Nomes Mais Bonitos, de números e de certas invocações,
magia simpática, conjurações demoníacas, encantamentos, evocações de espíritos de seres corporais,
invocação de espíritos de planetas, filactérias (amuletos, talismãs, filtros), faculdade de desaparecimento
instantâneo da visão, artifícios e fraude, a arte de divulgar fraudes, feitiços e recorrer às propriedades das
plantas medicinais ". No próximo vídeo, veremos como a magia foi realmente recebida no Islã medieval.

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4.2 COMO A MAGIA FOI RECEBIDA NO ISLÃ?

A palavra siḥr ("mágica") é formada na raiz árabe 's-ḥ-r'. Essa raiz que transmite o significado de
"encantamento", "fascínio" e "encanto" aparece cerca de 60 vezes no Alcorão, sob uma ou outra de suas
derivações lexicais.

Nos Meca sūras, os primeiros capítulos do Alcorão, onde aparece com maior frequência, siḥr ou um de seus
derivados, são mencionados com mais frequência na ocasião de narrativas que visam demonstrar que
todos os profetas, tendo adotado a visão monoteísta, foram inevitavelmente enfrentadas com a acusação
de enfeitiçar seu próprio povo.

Curiosamente, essas narrativas dizem respeito não apenas a figuras bíblicas como Noé, Abraão, Ló ou
Moisés, mas também a árabes como Hūd, Ṣāliḥ, Shu'ayb e, é claro, o próprio Muhammad, o selo da missão
profética de acordo com a visão tradicional.

De fato, como foi observado recentemente por Constant Hamès, o profeta do Islã é frequentemente
referido por seus oponentes como sāḥir ("mágico" ou "feiticeiro"), uma qualificação que normalmente se
encontra em combinação com um dos seguintes palavras: kāhin ("adivinho"), shā'ir ("poeta") ou majnūn
("tolo"). Em comparação com o período de revelação de Meca, os Medinan sūras continham muito menos
referência à magia, mas incluem a mais ilustre declaração do Alcorão sobre magia, e fazem isso, através da
famosa história do anjos Hārūt e Mārūt, conforme dados no segundo Sūra. Uma história cujo histórico final
pode ser encontrado nas antigas tradições indo-iranianas.

O começo do verso, ou seja, 2: 102, nos leva ao tempo de Salomão e lê (cito):

"E eles seguiram [em vez] o que os demônios haviam recitado durante o reinado de
Salomão. Não foi Salomão quem não acreditou, mas os demônios não acreditaram,
ensinando magia às pessoas e aquilo que foi revelado aos dois anjos em Babilônia, Hārūt e
Mārūt. Mas os dois anjos não ensinam a ninguém, a menos que digam 'Somos uma prova,
por isso não descreva [praticando magia]."(fim da citação)

Qualquer que seja a maneira como este versículo pode ser interpretado (e, de fato, parece que o versículo
foi interpretado de muitas maneiras diferentes, por Ṭabarī, Razī ou Zamakhsharī), ele deve ser
definitivamente considerado o locus classicus da exegese islâmica com respeito à magia.

O que está claro em qualquer caso é que o Alcorão em nenhum lugar condena ou proíbe explicitamente o
uso de magia. Em um nível mais prático e popular, podemos até observar que certos versos específicos e
também sūras inteiros, como os dois últimos sūras do Livro Sagrado, têm sido frequentemente usados para
fins mágicos e, mais especificamente, profiláticos.

E também não devemos esquecer de mencionar aqui a extensa literatura dedicada ao Islã medieval a
"questões mágicas" como as cartas de abertura do Alcorão, os nomes dos "Companheiros da Caverna" em
Sūra 18, ou os 99 epítetos de Deus.

Agora, também é verdade que podemos encontrar na ortodoxia islâmica um julgamento muito menos
favorável sobre a magia e seus praticantes, que geralmente têm sido considerados uma grande ameaça
para a comunidade de crentes.

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Já, em um estágio inicial da história do Islã, várias tradições proféticas devem ter circulado com histórias
nas quais a magia foi severamente condenada. O tradicionalista do século IX, Tirmidhī, autor de uma das
seis coleções canônicas de Ḥadīth no islamismo sunita, afirma, por exemplo (cito): "a penalidade para o
mágico é a morte pela espada".

Este tipo de condenação, por sua vez, foi repetida ao longo dos séculos pela grande maioria dos juristas e
teólogos que todos advertiram contra os perigos de siḥr, da mesma maneira que na Idade Média cristã,
magos, bruxas e feiticeiros eram regularmente acusados de seguir o diabo. E alguns deles foram
perseguidos, enviados para a prisão ou mesmo executados.

Os praticantes de magia eram geralmente acusados de bid‘a (isto é, de trazer inovações heréticas) uma
crítica muito séria, de acordo com a ortodoxia muçulmana.

Em seu famoso e mais influente "Renascimento das Ciências Religiosas", Ghazālī varia inequivocamente
magia, talismãs, prestidigitação e sortilégio como ciências culpáveis.

E, no entanto, pode-se afirmar que a grande maioria dos juristas e teólogos, mesmo entre os mais
tradicionais, fez algum esforço para distinguir entre as diferentes categorias de magia, e que seu principal
objetivo ao fazê-lo era pretender separar-se de um ao outro o recurso permitido à magia e um proibido.

Para retomar a formulação de Toufic Fadh sobre este ponto (cito):

"O que é permitido é a magia natural, conhecida como 'branca', incluindo, entre outros
elementos, encantos; fenômenos imaginários produzidos por meios naturais, com base em
propriedades, tendo sem conexão com a religião, fenômenos psíquicos materializados pelo
uso de filtros e amuletos ativados por meio da absorção ou fumigação de pós e gorduras. A
prática dessa mágica é tolerada na medida em que não causa dano a outras pessoas. Mas
quando o mago influencia a natureza com o objetivo de causar dano, ele está exercitando
magia proibida.Isso implica o recurso à inspiração demoníaca (magia negra) e à invocação
dos planetas (teurgia)."

Considerando tudo, o que aparece com grande clareza para qualquer investigador moderno nesse campo é
que sempre existiu no Islã uma enorme lacuna entre as visões teóricas da magia, professadas pelos juristas
e pelos tradicionalistas da Idade Média, por um lado e, por outro lado, as práticas reais que foram
realizadas continuamente até o presente por magos, feiticeiros e especialistas em talismãs em muitas
partes do dār al-islām.

Provavelmente, isso pode ser explicado principalmente pela divergência de opiniões, mesmo entre os
representantes mais qualificados da teoria jurídica.

Assim, por exemplo, o autor andaluz Abū 'Abdallāh al-Qurṭubī, do século XIV, que é uma dessas autoridades
que comentou extensivamente a famosa passagem do Alcorão sobre Harūt e Marūt, é conhecido por ter
adotado uma abordagem muito mais tolerante e posição conciliatória do que a maioria de seus
antecessores.

Outra razão importante certamente deve ser buscada nas virtudes curativas que muitas dessas práticas
deveriam possuir. Como já foi enfatizado, a teoria jurídica da magia provou ser particularmente severa,
sempre e onde quer que a magia pudesse ser vista como uma ameaça ou um perigo para a comunidade de
crentes.

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Mas, na medida em que ele não transgrediu com muita clareza os limites do proibido, um mago local que
possuísse conhecimento esotérico era geralmente muito respeitado por sua capacidade de contribuir para
o bem-estar da vila. E isso é algo que pode ser observado ainda hoje na maioria dos países do mundo
muçulmano.

No próximo vídeo, estaremos lidando com magia e outras ciências ocultas, de acordo com o Ikhwān al-'afā
'.

4.3 O IKHWĀN AL-'AFĀ 'SOBRE MAGIA E OCULTISMO

Ikhwān al-'afā '(ou irmãos da pureza) é o nome adotado por um misterioso grupo de pensadores
muçulmanos da Idade Média, que escreveram uma enciclopédia (conhecida como Rasa'il) sem equivalente
durante esse período, dentro ou fora do mundo islâmico.

Esta enciclopédia assume a forma de um corpus de cerca de 50 epístolas, cada uma destinada a cobrir uma
ciência ou tipo de conhecimento específico, e organizada de modo a permitir que a pessoa adequadamente
qualificada faça uma progressão pelas ciências nobres em direção à sabedoria mais inefável.

Exatamente quem eram os Ikhwān e onde eles moravam é motivo de disputa há séculos, e a questão
permanece em debate até hoje.

Geralmente, acredita-se que esses autores foram ativos no Iraque no século X, mas, de fato, a composição
do corpus pode ter se estendido por várias gerações, e sua criação real poderia até ter sido anterior.

O que agora está se tornando cada vez mais claro é que os autores eram filósofos neoplatonistas que
deviam ter pelo menos algumas afinidades com o ismaelismo, um sub-ramo do xiismo particularmente
intelectualizante.

Apesar de seu caráter profundamente heterodoxo, hoje também está se tornando cada vez mais claro que
o trabalho deles (no qual uma tentativa de explicar o universo à nossa volta é apresentada de maneira
muito coerente) nunca deixou de exercer uma influência importante ao longo dos séculos, e que essa
influência estava longe de ser restrita ao mundo do Islã.

Como vários outros filósofos muçulmanos de sua época, os Ikhwān al-Ṣafā 'esforçaram-se muito para
reconciliar as "ciências tradicionais", ou seja, aquelas que poderiam ser vistas como diretamente enraizadas
na revelação do Alcorão, com as "ciências intelectuais" que ou seja, aquelas ciências que um homem é
capaz de adquirir por si mesmo (como lógica, matemática, ciências naturais e metafísica) e pelas quais o
Islã medieval era tão grato às civilizações do passado: Grécia Antiga, em primeiro e acima de tudo, mas
também Egito, Babilônia, Irã e Índia.

Uma característica notável da Enciclopédia dos Irmãos é sua ênfase no lado esotérico do conhecimento e a
predileção de seus autores por ciências que hoje seriam definitivamente abrangidas pelas ciências ocultas.

Isso já pode ser inferido a partir da classificação do conhecimento que os Ikhwān fornecem na Epístola 7:
'nas artes científicas'.

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Esta é uma classificação tríplice das ciências na qual um grupo de "ciências propedêuticas" (em outras
palavras, ciências criadas para a felicidade do homem neste mundo) precede os outros dois grupos de
ciências superiores cuja missão é garantir a felicidade do homem no próximo mundo, a saber, as ciências
religiosas, por um lado, e as ciências racionais e filosóficas, por outro.

Dito isto, parece imediatamente que cada um dos três grupos, conforme definido pelo Ikhwān, inclui
ciências ou artes de natureza esotérica. Assim, o grupo de ciências propedêuticas inclui adivinhação, magia,
encantamentos, alquimia. O grupo de ciências religiosas inclui uma referência explícita à "ciência da
interpretação dos sonhos".

Quanto ao grupo de ciências filosóficas, ele contém uma seção sobre angelologia.

De fato, como foi observado por Pierre Lory, a três divisão completa da classificação geral dos Irmãos se
encaixa muito bem nos três aspectos diferentes das ciências ocultas que foram concebidas e praticadas
durante a Idade Média islâmica.

Primeiro, encontra-se o aspecto puramente utilitário da magia, que é projetado para o conforto do homem
e que busca garantir-lhe saúde e riqueza neste mundo.

Então, a vida religiosa também se beneficia de certas práticas "esotéricas", como a interpretação dos
sonhos, e isso é legitimado no Islã por alguns ḥadīth e até por algumas passagens do Alcorão, como a
história de Joseph.

Agora, permanece que "a grande Magia", aquela com a qual os Irmãos estão mais preocupados, é aquela
por cujo conhecimento um homem é, por assim dizer, nascido de seu "verdadeiro" ser. A importância da
magia para o Ikhwān é esclarecida especialmente pelo fato de que a última epístola do corpus, que é a
Epístola 52, é inteiramente dedicada a ele.

Além disso, os autores mencionam explicitamente, na introdução deste tratado, que a magia e,
presumivelmente, o restante das ciências esotéricas relacionadas", fazem parte da filosofia e, além disso,
fazem parte das ciências da filosofia, já que é necessário aprender as ciências precedentes antes dele".

A tradição manuscrita deste tratado provou recentemente ser mais complexa do que se pensava
anteriormente, uma vez que se sabe que pelo menos duas versões diferentes circularam. A versão mais
curta, agora editada de forma crítica, traz o seguinte título: "Sobre a quantidade de magia, encantamentos,
mau-olhado, incitações aos animais, intuição e feitiços".

Além da magia, mas obviamente em estreita relação com ela, está a astrologia, uma ciência com a qual os
autores estavam visivelmente mais familiarizados e aos quais devotaram inúmeras passagens de sua
enciclopédia, incluindo uma epístola inteira sobre "ciclos e revoluções".

Neste tratado, que é a Epístola 36, os autores revisam uma longa lista de revoluções e conjunções celestes
e depois passam a mencionar as implicações que esses eventos exercem sobre o mundo e seus habitantes.
Do futuro surgimento de vermes, insetos e piolhos, ao surgimento de novas religiões e impérios; e da
substituição do homem no trono real, ao intercâmbio de continentes e mares em toda a superfície da
Terra. Parece que absolutamente nada neste mundo de futuro e falecimento escapa à influência desse
determinismo extremo.

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Nesta e em outras epístolas do corpus, os Irmãos propuseram uma teoria segundo a qual a história do
mundo é feita de uma série de ciclos de 7.000 anos cada, e cada um dividido em 7 milênios.

Dizem que todo milênio é anunciado por um profeta.

Agora, o interessante a observar é que Muhammad, o profeta do Islã, não é o sétimo e último, mas ele é o
número seis, depois de Adão, Noé, Abraão, Moisés e Jesus.

Quanto ao número sete, os Irmãos o chamavam de "Qā'im da Ressurreição": ele é o Mahdi que virá no fim
dos tempos e por quem a parte esotérica da revelação será esclarecida para toda a humanidade.

Desnecessário dizer que esse é o tipo de teoria que deve ter sido considerada totalmente inaceitável para
uma ampla gama de leitores e que pode ter levado os autores a publicar seus trabalhos anonimamente.

4.4 A CIÊNCIA DAS LETRAS

Olá, sou Sébastian Moureau, pesquisador do Fundo de Pesquisa Científica, da Universidade de Lovaina, na
Bélgica. Estudo principalmente as chamadas ciências ocultas no mundo islâmico, bem como sua
transmissão e recepção no mundo latino.

A Ciência das Letras, ‘ilm al-ḥurūf 'em árabe, é uma ciência teórica e prática baseada nas letras do alfabeto
árabe.

Essa ciência também é chamada de sīmiyā ', que vem da transcrição da palavra grega σημεῖον, que significa'
sinal ',' símbolo '. A proximidade desta palavra com o árabe, kīmiyā ',' alquimia ', deixou a porta aberta para
inúmeras especulações e comparações.

Como a maioria dos alfabetos semíticos, o alfabeto árabe consiste apenas de consoantes: o alfabeto árabe
possui um sistema de vogais, mas eles não pertencem ao alfabeto; são sinais diacríticos, que foram
introduzidos no script posteriormente. Esse script feito de consoantes implica que, ao ler o árabe, a pessoa
que o lê precisa entender o texto ou, pelo menos, a vocalização da maioria das palavras: uma criança
inglesa pode ler um tratado sobre química orgânica, mesmo que ele não entende o conteúdo, mas isso se
mostra impossível em árabe (caso contrário, essa criança estaria bem antes da idade). Às vezes, os
alfabetos semíticos são comparados às flautas, sendo a flauta o roteiro, o jogador o leitor e a respiração do
jogador as vogais.

A origem da ciência das letras é bastante obscura. Uma das hipóteses mais citadas é o jafr, o sistema xiita
de adivinhação, uma 'onomatomancia', ou seja, um sistema de adivinhação baseado em nomes; mas
nenhuma data convincente pode ser dada, de fato. A ciência das letras se desenvolveu rapidamente em
várias tendências sobrepostas: um místico al ilm al-ḥurūf, um filosófico, um alquímico, um mágico e assim
por diante. Na verdade, ‘ilm al-ḥurūf não se restringe às letras. Muitas vezes, se não na maioria dos casos, é
uma ciência das palavras e não uma ciência das letras. Apareceu no contexto da cultura islâmica, talvez por
causa do status peculiar que dá ao discurso. No Islã, o Alcorão é considerado as palavras de Deus, e as
palavras de Deus são a possibilidade sensata de acessar a Deus. A importância do status Qur'ān pode ter
levado os estudiosos a se concentrarem no idioma de uma maneira muito específica. Para muitos
estudiosos medievais, interessados na ciência das letras, a fala não apenas tem um valor epistemológico,
como é o caso da cultura moderna ocidental, mas também um valor ontológico. Isso significa que, aos seus

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olhos, as palavras e, portanto, as letras, não apenas fornecem informações sobre as coisas, mas também
refletem sua natureza interior. O nome deles reflete o seu ser.

E alguns pensadores medievais foram ainda mais longe e afirmaram que o nome das coisas não é apenas
um reflexo de sua natureza, mas é sua própria natureza, seu ser.

Se o nome da coisa é ou reflete sua natureza, isso significa que conhecer o nome da coisa é o mesmo que
conhecer a própria coisa.

Esse sistema inevitavelmente nos lembra a Kabbalah, uma ciência judaica da linguagem e das letras, que se
desenvolveu mais tarde e foi introduzida nos vídeos opcionais da segunda unidade deste curso.

Essa concepção levou os pensadores medievais a desenvolver sistemas de análise da linguagem. Eles
classificaram as letras de maneiras diferentes, de acordo com vários critérios; o mais conhecido é a
classificação das letras de acordo com os quatro elementos: das 28 letras do alfabeto árabe, sete
pertencem ao fogo, sete ao ar, sete à água e sete à terra. Uma classificação semelhante é feita em relação
às propriedades elementares. Sete letras são quentes, sete são frias, sete são secas e sete são úmidas.

Outro método de análise foi o uso dos valores alfanuméricos das letras. Antes da introdução dos chamados
algarismos arábicos (que na verdade são chamados de 'algarismos indianos' em árabe), as letras do
alfabeto eram usadas como numerais, como ainda é o caso em alguns scripts como o hebraico. Assim, o
valor isopsephic dos nomes, isto é, seu valor numérico uma vez que os valores numéricos de todas as letras
são adicionados um ao outro, foi usado para classificar e analisar as coisas.

Um dos sistemas mais refinados e sofisticados de análise das coisas através dos nomes é encontrado no
corpus de textos atribuídos ao Jābir ibn Ḥayyān, uma grande coleção de textos alquímicos escritos, com
toda a probabilidade, por diferentes autores, e que eu irei em mais detalhes no vídeo sobre alquimia árabe.

Os autores desses textos postularam que, como os nomes das coisas refletem sua natureza, é possível
saber a composição exata de uma coisa graças ao seu nome.

Para fazer isso, eles desenvolveram um sistema chamado ‘ilm al-mīzān, 'ciência da balança', ou mīzān al-
ḥurūf, 'equilíbrio das letras'.

Eles propõem um cálculo muito complexo a partir das letras do nome de uma coisa, que, como disseram,
revelam a composição exata da coisa, ou seja, a proporção exata de propriedades elementares (calor, frio,
secura e umidade). Este foi o primeiro passo para a teoria principal, a teoria do elixir, que será investigada
no próximo vídeo.

Em uma ordem de ideias mais religiosa, a ciência das letras foi desenvolvida especialmente de duas
maneiras: o asmā 'al-'usnā' e o fawātiḥ al-suwar, ou'urūf muqaṭṭa‘a. Os asmā 'al-'usnā', literalmente os
'nomes mais bonitos', são os 99 nomes divinos: uma tradição islâmica atribui 99 nomes a Deus, que são as
99 maneiras de descrever os diferentes aspectos de Deus.

Muitos comentários foram escritos sobre isso. O fawātiḥ al-suwar, ou seja, a 'abertura dos suras' (sura é o
nome árabe de uma parte do Alcorão), ou o ḥurūf muqaṭṭa'a, literalmente as 'letras isoladas', são letras
misteriosas ou pequenos grupos de letras que são encontradas no início de 29 suras do Alcorão. Nenhuma
explicação foi dada sobre isso pelo Profeta, e isso deu origem a amplas especulações.

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Muḥyi al-dīn Ibn al-abArabī, um dos filósofos mais importantes do Islã, desenvolveu uma série de
considerações místicas sobre essas cartas. Na mesma linha mística, deve-se mencionar também a seita do
ḥurūfiyya, principalmente o 'literal', que se desenvolveu no final do século XIV.

Como as cartas têm um valor ontológico, elas não apenas permitem que se saiba as coisas, mas também
age sobre elas através de seu nome. Essa noção deu origem à magia das letras, que é um dos campos mais
amplos da ciência das letras.

A figura mais famosa na magia das letras é, indiscutivelmente, Aḥmad al-Būnī, que viveu no início do século
XIII. A esse estudioso é atribuída uma série de tratados mágicos que tiveram uma profunda influência sobre
a magia no mundo islâmico, não apenas no mundo acadêmico, mas também, e talvez principalmente, em
um nível mais popular.

No entanto, estudos recentes apontaram que o trabalho mais influente e famoso atribuído a Būnī, o Shams
al-ma'ārif al-kubrā, literalmente o 'Grande Sol do conhecimento', era na verdade uma compilação apócrifa
composta de várias camadas escritas durante vários períodos.

Este tratado apresenta uma grande síntese do conhecimento teórico sobre a magia das letras (como
especulação sobre os nomes mais bonitos e assim por diante), mas também receitas muito práticas. Nesse
tipo de tratados mágicos, as próprias letras são às vezes consideradas seres espirituais: elas estão ligadas
aos anjos, e é possível agir sobre as entidades espirituais por seus meios, ou mesmo para restringir os
anjos.

ALQUIMIA I: ALQUIMIA ÁRABE

A alquimia é, em seu sentido mais literal, uma tentativa de transmutar metais vis como chumbo ou cobre
em metais nobres, prata ou ouro. De fato, o ouro não é apenas o metal mais valioso, é também o único
metal conhecido pelos alquimistas medievais que não corroem. Dessa maneira, os alquimistas tentaram
tornar inalteráveis os metais corruptíveis.

No entanto, a alquimia não consiste apenas de argyropeia e crisopeia (ou seja, prata e ouro), mas abrange
um campo mais amplo de estudos. Já na Antiguidade, a alquimia pode ser definida como uma disciplina na
qual se encontram práticas técnicas mescladas com doutrinas filosóficas da época.

Ao contrário do que geralmente se acredita, a maioria das partes dos tratados alquímicos inclui receitas
técnicas, que não são fantasias fantasiosas, mas geralmente mostram conhecimento empírico.

Os alquimistas não estavam apenas tentando fazer ouro, mas também tingindo metais, sais de refino e
muitos outros processos.

A palavra "alquimia" deriva (em latim) do árabe al-kīmiyā ", que é provavelmente extraído do grego χυμεία
ou χημεία (que significa fusão, liga) ou, mas isso é menos provável, do egípcio qmyt, que significa 'resina'
ou 'goma'. A história da palavra "alquimia" reflete a história da própria alquimia.

A alquimia nasceu durante a Antiguidade. As primeiras evidências textuais datam da Grécia helenística,
embora sua origem possa ser o Egito Antigo; depois passou para o mundo árabe. Segundo a lenda, o
primeiro alquimista árabe foi Khālid ibn Yazīd, o quarto califa omíada, que viveu no século VII. Ele teria
recebido os ensinamentos de um monge grego chamado Maryānūs. No entanto, a verdade histórica deste

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evento não pode ser demonstrada, e se a alquimia pode muito bem ter chegado ao mundo árabe muito em
breve, é sobretudo através das traduções do grego ou do siríaco (por ocasião do amplo movimento de
tradução do oitavo e do nono século) que o Oriente descobriu essa ciência.

O mundo árabe herdou a alquimia grega e a assimilou muito rapidamente. Muito em breve, encontramos
não apenas traduções do grego, mas também escritos árabes genuínos. Esses foram inicialmente atribuídos
a figuras gregas famosas como Pitágoras, Sócrates ou Platão, mas os nomes dos alquimistas árabes
apareceram já na segunda metade do século oito. Os alquimistas árabes fizeram novas descobertas
técnicas, como o ácido clorídrico, por exemplo, mas também desenvolveram a tendência filosófica da
alquimia. Com base em suas experiências metalúrgicas e químicas, os alquimistas explicaram os processos
físicos e químicos através dos sistemas filosóficos de seu tempo e, às vezes, através de seus próprios
sistemas; e eles aplicaram suas explicações não apenas à metalurgia, mas ao mundo inteiro. A alquimia
tornou-se uma "ciência total".

O alquimista árabe mais famoso e proeminente foi Jābir ibn Ḥayyān (na segunda metade do século 8).

Uma coleção muito grande de textos alquímicos foi atribuída a essa figura (não sabemos se isso faz parte
da lenda ou da história), e essa coleção é geralmente chamada de corpus Jābirianum.

Embora o núcleo desta coleção possa ter sido escrito por uma única pessoa, talvez o próprio Jābir ibn
Ḥayyān, muitos tratados foram obviamente escritos por outras mãos, entre a segunda metade do século
VIII e o século IX, ou até mais tarde. Esse corpus é uma das primeiras testemunhas da alquimia árabe, mas
também, de longe, a mais influente. De fato, influenciou profundamente quase todos os autores
posteriores, até um dos últimos grandes alquimistas árabes, Jildakī.

Os textos jabirianos apresentaram uma doutrina física inspirada no sistema grego dos quatro elementos,
como se encontra nas palavras de Galeno, mas refinada para um grau excepcional de complexidade. Cada
coisa do mundo sublunar é composta de quatro elementos: fogo, terra, ar e água. Esses quatro elementos,
por sua vez, são caracterizados por quatro propriedades elementares: o fogo é quente e seco, o ar é quente
e úmido, a água é fria e úmida e a terra é fria e seca.

As coisas se distinguem pela proporção de elementos e, consequentemente, pela proporção de


propriedades elementares. Os autores jabirianos inovaram e desenvolveram uma teoria que teve uma
influência proeminente em toda a tradição alquímica, no Oriente e no Ocidente, a saber, a teoria do elixir.

Como uma coisa é caracterizada por sua proporção de elementos, é teoricamente possível, quando essa
proporção é modificada, transformar uma coisa em outra, por exemplo, chumbo em ouro. Como isso pode
ser feito? Calculamos as proporções elementares de chumbo e ouro e avaliamos a 'intensidade' das quatro
propriedades nelas. Dessa forma, sabemos quanto de cada propriedade devemos adicionar para levar a
transformá-la em ouro. Depois, pegamos um material chamado 'pedra' (jarajar em árabe), mas que não é
necessariamente uma pedra: pode ser um mineral, um animal ou uma planta. Nós o destilamos para isolar
seus quatro elementos. Trabalhamos com esses elementos para reduzir a 'intensidade' de uma de suas
duas propriedades e, assim, obter calor puro, frieza pura, secura pura e umidade pura.

Em seguida, produzimos uma mistura dessas quatro propriedades de acordo com a proporção que deve ser
adicionada ao chumbo. Essa mistura é chamada de 'elixir' (do árabe al-iksīr, do grego ξήριον, ‘pó seco').
Projetamos o elixir no chumbo para transmutá-lo em ouro. Este sistema se tornará um padrão para todos
os alquimistas. Este é um dos principais princípios da alquimia árabe.

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Outra figura importante da alquimia árabe é Abū Bakr al-Rāzī, que viveu na virada dos séculos 9 e 10. Sua
alquimia pode ser caracterizada como mais empírica do que qualquer outro tratado de seu tempo. Rāzī
costumava confiar em seus próprios experimentos mais do que em autoridades, especialmente por sua
classificação de materiais, que permaneceu por muito tempo uma das classificações mais precisas e
detalhadas.

Diz-se que a alquimia floresceu no mundo islâmico até o século 14, sendo a última figura importante Jildakī,
mas novas investigações sobre a alquimia turca mostram que essa concepção precisa ser revisada e que a
alquimia no mundo árabe-muçulmano estava realmente viva por muito mais tempo do que se pensava até
hoje.

ALQUIMIA II: ALQUIMIA ÁRABE-LATINA

Como já foi dito no vídeo anterior, a alquimia nasceu no Egito ou na Grécia e depois veio para o mundo
árabe. No entanto, o mundo grego não esqueceu a alquimia depois de transmiti-la ao Oriente. A alquimia
ainda estava muito viva em Bizâncio por um longo tempo. No entanto, é do mundo árabe que o Ocidente
latino descobriu a nova ciência da alquimia. Podemos traçar algumas traduções raras das receitas
alquímicas gregas para o latim antes que a alquimia viesse do mundo árabe; por exemplo, no núcleo
original do Mappae Clavicula, um texto que trata de metalurgia e pintura compilado antes do século XII.

Junto com essas receitas gregas, algumas receitas árabes já estavam circulando antes da penetração real da
alquimia no Ocidente. É o caso, por exemplo, de uma famosa receita para fazer "ouro espanhol" na
Diversarum artium schedula do monge Theophilus, um pseudônimo do Roger saxão de Helmarshausen, que
viveu no início de século XII.

Mas a verdadeira penetração em larga escala da alquimia no mundo latino veio com o grande movimento
de tradução do árabe para o latim dos séculos 12 e 13 na Espanha e na Itália.

Ao contrário do que se pensa hoje em dia, a alquimia parece ter sido altamente considerada pelos
tradutores medievais. Muitos tratados foram realmente traduzidos. Isso pode resultar do fato de que, em
algumas classificações das ciências no mundo árabe, a alquimia era considerada uma disciplina por si só.

O Liber de compositione alchimiae, atribuído a Morienus, foi traduzido por Robert de Chester em 1144 do
tratado árabe Risālat Maryānus al-rāhib (Epístola do monge Maryānūs), que relaciona as provavelmente
lendárias conversas entre Maryānūs e o califa Khālid ibn Yazīd. Este tratado é frequentemente considerado
o primeiro tratado alquímico completo traduzido para o latim. No entanto, é mais provável que essa data
seja tomada como um começo simbólico do que como um termo fixo, pois a maioria das traduções de
textos alquímicos não pode ser datada com precisão.

A penetração da alquimia árabe no oeste latino pode ser dividida em três estágios sobrepostos.

O primeiro é o período de traduções do árabe para o latim e abrange aproximadamente a segunda metade
do século XII e XIII.

Durante esse período, novos materiais foram disponibilizados para estudiosos latinos por meio de
traduções.

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Na segunda etapa, que abrange aproximadamente o século XIII, apareceram composições latinas, mas
ainda eram consideravelmente devidas ao material árabe. Podemos observar compilações de receitas
reunidas em várias traduções e frequentemente modificadas (como algumas obras atribuídas a Michael
Scot), mas também tratados em latim escritos no estilo de traduções e frequentemente atribuídos a
autores árabes ou gregos.

Durante o terceiro estágio de assimilação, a partir da segunda metade do século XIII, mas com maior
intensidade a partir do início do século XIV, uma alquimia puramente latina começou a se desenvolver, que
não era mais baseada em traduções para o árabe, mas em composições em latim do segundo estágio.

Entre as várias doutrinas alquímicas que penetraram no Ocidente, as teorias jabirianas encontraram uma
recepção entusiástica.

Eles penetraram em vários textos, mas, principalmente, diretamente no Liber de septuaginta, a tradução
em latim do Kitāb al-sab'īn (o Livro dos setenta), uma série de tratados atribuídos a Jābir ibn. Ḥayyān, e
indiretamente através da alquimia De anima, uma compilação e tradução para o latim de três tratados
alquímicos árabes perdidos até hoje, atribuídos erroneamente a Avicena. De fato, o genuíno Avicena se
opunha à alquimia, como será mencionado mais adiante.

Esse tratado se tornou uma fonte fundamental para os alquimistas e ajudou a propagar a teoria do elixir
para o Ocidente, principalmente porque foi usada como uma das principais fontes alquímicas por Vicente
de Beauvais, o famoso enciclopédico do século XIII.

O De anima consiste principalmente de receitas técnicas, e não é a única tradução desse tipo, muito pelo
contrário. De fato, podemos observar que os tradutores medievais parecem estar mais interessados em
tratados técnicos do que em alquimia teórica. No entanto, essa presença de material prático pode resultar
da escolha dos tradutores, mas também da disponibilidade das fontes à sua disposição (pode ser que eles
não tenham acesso a mais tratados teóricos).

Um dos tratados técnicos mais influentes da época é o De aluminibus et salibus a outra principal fonte
alquímica de Vicente de Beauvais.

Este tratado, que às vezes foi atribuído a Rāzī, provavelmente por causa de seu caráter técnico, é a
tradução de um tratado árabe parcialmente perdido (fragmentos de uma versão hebraica também
existem), e consiste em uma série de breves 'discursos' sobre vários materiais, cada um seguido de receitas
práticas. No entanto, o tratado alquímico latino mais influente de toda a Idade Média permanece, sem
dúvida, a Summa Perfectionis, atribuída a Geber. Este texto não é uma tradução, mas um tratado escrito
em latim no final do século XIII, no estilo de uma tradução do árabe. É atribuído a Geber, que é o nome
latino de Jābir ibn Ḥayyān, mas essa atribuição faz parte da falsificação. O autor atual é um falante de latim,
talvez o monge Paulo de Taranto. Este tratado rompe com a tradição do De anima e do Liber de
septuaginta, pois propõe fazer o composto para transmutação (o elixir dos tratados jabirianos) não a partir
de um material retirado de um dos três reinados (refiro-me ao reino animal, mineral ou vegetal), como é o
caso das teorias jabirianas, mas apenas do mercúrio. Mercúrio e somente mercúrio são trabalhados e, em
seguida, projetados em chumbo para produzir ouro. Essa teoria, às vezes chamada de teoria do "mercúrio
sozinho", superou a teoria do elixir jabiriano e se tornou o padrão na alquimia latina por muito tempo.

A Summa perfectionis também participou do chamado hoje "debate alquímico". Durante os séculos XIII e
XIV, estudiosos ocidentais se opuseram em um animado debate sobre a possibilidade de transmutação. O
ponto de partida dessas intensas disputas foi uma passagem chamada artifícios de Sciant.

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Neste pequeno extrato latino, o autor explica e argumenta que, segundo ele, não é possível transmutar
espécies. Esta passagem vem na verdade do Kitāb al-shifā '(Livro de cura) de Avicena. No entanto, chegou
ao oeste latino através de uma transformação crucial.

Por volta do ano 1200, Alfred de Sareshill, um tradutor, traduziu o quarto livro do Meteorologica de
Aristóteles, que trata dos fenômenos celestes e terrestres.

Mas quando ele observou que no tratado de Aristóteles não havia descrição da criação de metais na terra,
ele pegou uma parte do livro de Avicenna, talvez pensando que Avicenna estava resumindo a ideia de
Aristóteles, e a colocou no final da tradução do livro de Aristóteles, como se fosse parte do texto. Esse
pequeno acréscimo resultou em conceder essa passagem à autoridade mais influente, a saber Aristóteles, e
isso provocou o debate alquímico. Desde seu surgimento no Ocidente no século XII e até o século XVII, a
alquimia ganhou cada vez mais sucesso, mas nunca penetrou nas universidades, mesmo que alguns dos
mais famosos estudiosos da época estivessem interessados nela, como Albert, o Ótimo, que viveu no século
XIII.

Este foi o último vídeo sobre magia árabe. Também o incentivo a assistir ao vídeo opcional desta unidade,
que trata da geomancia. [Nesta edição do curso, o vídeo sobre Geomancia agora é o quinto vídeo do último
módulo. Aproveite!]

CONCLUSÃO DA QUARTA SEMANA (VÍDEO SEMANAL 4)


Bem-vindo de volta à UCL para o vídeo semanal sobre magia no Islã. Até agora, ficamos bastante
impressionados com a qualidade de suas respostas e perguntas nos fóruns. E também vimos que alguns de
vocês esperam um pouco mais de explicações. Porque, de fato, ao vir para o Oriente e para o mundo
islâmico com uma cultura do Ocidente, às vezes é difícil entender cada objetivo. E cada assunto com o qual
lidamos. Então, o que vamos tentar fazer é explicar um pouco mais facilmente e dar um pouco mais de
contexto sobre a magia islâmica. E a magia no mundo muçulmano árabe. Como devemos fazer? Faremos
isso de uma maneira bastante antiga, digamos, usando este mapa maravilhoso. E explicando a você onde as
pessoas estavam, quem eram, qual era o contexto da produção de seus escritos. Qual era o contexto do
mundo islâmico em geral, sobre o tópico específico da magia. Agora, vou apresentar alguns pontos básicos
da cultura islâmica e árabe-muçulmana.

Bem, sim, começarei com fatos muito básicos e muito conhecidos sobre o início do Islã. Tudo começou,
como todos sabem, na península árabe, em torno da cidade de Medina e Meca. Esse é o lugar onde o
profeta nasceu, é o lugar onde a revelação do Alcorão veio. E esse também é o lugar logo após a morte do
profeta, de onde um gigantesco movimento de conquista se espalhou bem além das fronteiras da
península do Iraque. Temos que perceber como essas conquistas foram fantásticas. Desde que em menos
de 100 anos, temos que ter em mente que o Islã se estendeu por três continentes. Indo de Al-Andalus no
oeste ao norte da Índia, cidades no norte da Índia. Incluindo, também, grandes partes do norte da África,
do Oriente Médio, é claro, e até da Ásia Central. Portanto, isso é mais ou menos o que este mapa
realmente representa. Essas são as conquistas da dinastia chamadas omíadas. Então, a partir de meados do
século VIII, outra dinastia chegou ao poder, talvez a dinastia mais famosa de toda a história do Islã. Eles
foram os abássidas, foram os que criaram uma nova cidade, Bagdá, e, digamos, quase uma nova cultura. E
coincidindo mais ou menos com a chegada ao poder dos abássidas, temos o início de um movimento
enorme, outro. Um movimento de tradução em Bagdá e em outros lugares do império. Muitas pessoas

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começaram a traduzir obras de culturas e civilizações antigas vindouras, especialmente a civilização grega
antiga. Mas também eram traduções do persa, do sânscrito e de várias outras línguas. Quem foram os
tradutores? É importante dizer que eles não eram todos muçulmanos; eram cristãos entre eles; também
havia judeus. Portanto, é uma espécie de empreendimento muito amplo. E esse empreendimento não
deveria terminar antes de outros 200 séculos. Esse é um fenômeno, quase único na história da
humanidade, digamos. O que foi traduzido, de fato? Aqui, novamente, é importante dizer que
essencialmente, mas é enorme, é a maior parte do que no Islã era chamado de ciências racionais e incluía
as ciências matemáticas, a filosofia, é claro, a física, a metafísica e também, em boa parte, o que chamamos
de ciências. Isso é astrologia, alquimia e magia.

Talvez alguns de vocês tenham comentado que falamos muito em nossos vídeos sobre Al-Andalus, a
Espanha moderna. Que é um lugar crucial no mundo islâmico porque é um local de transferência de
conhecimento e de ciências do leste para o oeste. De fato, nos séculos 12 e 13, um grande movimento de
traduções do árabe para o latim surgiu no Al-Andalus. E é por isso que temos nos concentrado nisso. E
também magia e alquimia, onde duas das ciências importantes que foram transmitidas do leste para o
oeste durante esse movimento de tradução.

Agora, vamos nos concentrar nas figuras que colocamos e explicamos em nosso vídeo. O primeiro deles é
Jabir Ibn Hayyan.

É concedido a muitos sobre alquimia. Porque achamos que a figura lendária é uma cópia de mais de
centenas de textos que tratam principalmente da alquimia. Mas também com mágica e outras chamadas
ciências reais. Jabir Ibn Hayyana figura lendária, não sabemos se ele existe ou não, teria vivido no século
VIII e poderia estar morrendo em Kufa. Mas não sabemos nada realmente bem fundamentado sobre esse
número. Portanto, temos um conjunto de textos instrumentais atribuídos a ele. É isso que você deve saber
sobre essa pessoa e ele é uma das figuras alquímicas mais influentes do mundo muçulmano árabe.

Bem, permaneceremos no Oriente com meu amado Ikhwan al-Safa. Quem eram os Ikhwan al-Safa, ou
irmão da pureza? Bem, essa é uma grande questão para mim e para muitos outros estudiosos agora. Eles
eram um grupo de filósofos que escreveram uma espécie de enciclopédia. Uma enciclopédia muito
importante sobre o porquê da diversidade de assuntos na forma de epístolas, Rasa'ilem árabe. Então,
sabemos quase nada sobre eles. Mas supomos que eles eram do Iraque, então eu os colocarei aqui no
Iraque. É um pouco como a previsão do tempo aqui. E eles escreveram esta enciclopédia sobre um grande
número de ciências. E o interessante é que há um tipo de progressão no conhecimento. E o que é notável é
que a última epístola, e há 50 ou 52 epístolas, a última é muito longa.

E é inteiramente dedicado à magia. Agora, de Ikhwan al-Safa, nos mudaremos para o Ocidente, o mundo
muçulmano, com uma figura que também mencionamos. E é uma figura deIbn Masarra. Quem foi Ibn
Masarra?Um estudioso muito ilustre até os anos 70 do século passado. Acreditava-se que tudo o que ele
havia escrito havia sido perdido, mas, de repente, dois de seus textos foram redescobertos em um único
manuscrito em Dublin. E agora temos uma maneira melhor de saber sobre o trabalho dele. E ele é uma
figura muito importante para o misticismo islâmico. Ele escreveu um desses dois textos, que é um texto
sobre as letras, as famosas letras do Alcorão que encontramos no início de certas capas. Há muita mística
sobre isso. E ele foi, talvez, o primeiro a introduzir isso do Oriente para Al-Andalus. E é bem possível que ele
tenha se inspirado em parte de suas obras pelo Ikhwan al-Safa e por isso também o mencionamos nesse
contexto.Agora, deixarei Sebastian apresentar outra figura.

Sim. Outra figura importante é o nosso amadoMaslama ibn Qasim al-Qurtubi. Quando digo amado, porque
atualmente estou trabalhando em Massamá. al-Qurtubinasceu em Cordoba e nós o colocamos aqui em um

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camelo porque ele fez o que é chamado de rehla, que é uma viagem ao leste para adquirir conhecimento.
Principalmente sobre Hadith, isso é tradição profética, mas também sobre o que veremos, chamado
ciências ocultas. E ele voltou então para Cordoba.

Maslama é famoso porque ele tem um papel muito importante de importador de ciências do Oriente para
o Ocidente. Ele é realmente o primeiro a introduzir o Rasa'il em Ikhwan al-Safa. Mas também parece que
ele foi introduzido pela primeira vez em algumas partes dostextos jabirianos no Al-Andalus. E ele escreveu
duas trindades muito importantes que são chamadas de Rutbat al-Hakim e Ghayat al-Hakim.

Talvez alguns de vocês já conheçam Ghayat al-Hakim, que foi traduzido no século XIII em castelhano e latim
e que é conhecido como Picatrix que talvez alguns de vocês conheçam. Vamos agora avançar para as três
últimas figuras que explicaremos hoje.

Sim, então em um ou dois de nossos vídeos também mencionamos o nome de Ghazali (Abul Amide Maomé
ibne Maomé Algazali, também conhecido apenas como Algazali).

Quem foi Ghazali? Ghazali é uma figura muito importante do Islã e do pensamento, ele era um teólogo. Ele
também era sufi, mas como teólogo era um defensor muito forte da ortodoxia sunita. E é claro que essa é a
razão pela qual quando se trata de alquimia, magia e outras ciências ocultas. Porque Ghazali foi um crítico
muito severo sobre tudo isso e ele condena e diz que todas essas ciências eram culpáveis, certo. Vou
colocá-lo em qualquer coisa no Oriente, porque Ghazalié alguém que viajou muito entre o Cairo, Damasco
e outros lugares no Oriente.

Nosso próximo vídeo é Ibn'Arabi. Que viveu de meados do século 12 a meados do século 15, e nasceu aqui
sob Massarra (sob o desenho de Massarra preso no Mapa) em Múrcia, em Al-Andalus. Ele é conhecido
como uma das figuras místicas mais importantes do mundo islâmico. Ele fez uma doutrina muito
importante e muito influente que foi estudada por séculos depois dele e que é chamada Akbariyya,
movimento Akbariyya.

E Ibn'Arabi viajou para o leste, também como Maslama, mas ele nunca voltou para Al-Andalus. E viajou no
Oriente e morreu em Damasco, aqui. Ele também era conhecido e foi citado em nossos vídeos, porque fez
uma reflexão muito importante. Uma reflexão muito importante sobre al ilm al-ḥurūfa ciência das letras. E
sobre as cartas do Alcorão e as cartas sobre as quais falamos no início de Sūra.

Portanto, nosso último autor não é outro senão ibn khaldun. Portanto, ibn khaldun foi o assunto do teste
que propusemos resolver como parte de nossas atividades. Quem foi ibn khaldun? Ele é historiador. Um
historiador muito, muito importante, talvez seja o maior historiador da história da literatura árabe. Ele
também é frequentemente apresentado como o pai da sociologia moderna, o que não é incorreto até certo
ponto. ibn khaldun nasceu na Tunísia, mas descendente de Al-Andalus.Mas então ele se mudou e viajou
para muito também para o leste. E ele é muito conhecido por ter compilado obras de história. Mas, acima
de tudo, uma grande introdução à história, que é a famosa Muqaddimah, que significa a introdução. É uma
introdução muito grande, quase três livros apenas para a introdução. Parece um tipo de classificação das
ciências para o que um historiador precisa saber. E é sobre esses sinais que ele faz essa distinção muito
importante entre as ciências racionais e as ciências tradicionais. E, é claro, magia, alquimia, astrologia são
reunidas com as ciências racionais. E ele parece condená-los como não uma boa ciência, porque esse é o
tipo de ciência que afasta o crente das convicções muçulmanas.
Vou colocar aqui porque Muqaddimah foi escrito a caminho do Oriente. Então é isso que temos aqui, estas
sete figuras. Esperamos que esses elementos sejam úteis e ajudem você a esclarecer um pouco os vídeos
que propusemos esta semana. E que algumas dúvidas foram removidas. Se você ainda tiver dúvidas, não

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hesite em escrever, usar os fóruns e tentaremos responder suas perguntas, suas perguntas. Também
através do folheto que teremos na próxima semana. Muito obrigado pela atenção. >> Obrigado.

UNIDADE 5 – ASTROLOGIA E GEOMANCIA

5.1 ASTROLOGIA MEDIEVAL: ENTRE CIÊNCIA E MAGIA

Olá, bem vindo de volta. Espero que a maioria de vocês ainda esteja conosco nesta semana final do nosso
MOOC, Magia na Idade Média. Hoje, estamos muito empolgados porque, para aqueles que fizeram a
primeira edição deste curso, toda esta unidade está cheia de novos materiais dos quais nos orgulhamos. E
para aqueles que estão participando deste curso pela primeira vez, este é um exemplo de quanta atenção
prestamos aos seus comentários e sugestões. Então, por favor, compartilhe-os conosco. Os vídeos da
unidade cinco serão dedicados à astrologia e geomancia, as irmãs não tão pequenas da ciência medieval.
Sei que essa é provavelmente uma afirmação chocante, mas não julgue este livro pela capa e nos dê a
chance de falar sobre eles para que, ao final desses vídeos, você possa formar sua própria opinião sobre ele
(e, é claro, discuta-o conosco e com seus colegas de classe). Hoje vamos começar com a astrologia, não é?
Não sejamos tímidos aqui. Atualmente, a astrologia é uma disciplina marginal, pelo menos no mundo
ocidental. Foi banido para uma coluna regular, porém mesquinha, ou para o horário mais hostil da
televisão. O perfil sociológico de seus praticantes habituais também não ajuda nisso. De qualquer forma,
dada a sua situação atual, poucos suspeitariam que, até recentemente, a astrologia tivesse seu status de
ciência, ou que, durante a Idade Média, bem como na antiguidade, a literatura astrológica desenvolvesse
compartilhando profusamente, por um lado, as rotas de transmissão de astronomia, matemática e
medicina e, por outro, os caminhos do conjunto mais diversificado de técnicas de adivinhação. Lembremos,
por exemplo, que no final do século XVI, para algumas das principais figuras da chamada Revolução
Científica Europeia, a astrologia ainda era a ciência das estrelas.

Para eles, a influência dos corpos celestes sobre o mundo sublunar como eles o chamavam, isto é,
literalmente, o mundo sob a Lua, que inclui os humanos, não estava menos sujeita às leis naturais e não
menos pesquisável ou compreensível que a qualidade, a velocidade ou os movimentos daqueles corpos
celestes que são o objeto da astronomia.

E também não estou falando de figuras obscuras e anônimas. Estou falando de Galileu Galilei, que
provavelmente não precisa de uma introdução; sobre Tycho Brahe, que escreveu sobre supernovas no
século 16, ousando refutar a ideia de Aristóteles de que o céu não mudou; e sobre Johannes Kepler, o
primeiro a desenvolver as leis do movimento planetário que ainda hoje são ensinadas nas faculdades de
física de todo o mundo.

Isso não significa, porém, que o prestígio da astrologia tenha sido universal e incontestado ao longo dos
séculos. A oposição à "validade científica" das previsões astrológicas (e observe as aspas para isso é um
enorme anacronismo), não foi uma inovação do cristianismo europeu medieval. Tomemos, por exemplo, a
defesa introdutória da astrologia que Ptolomeu sentiu-se compelido a fazer em seu grande manual
astrológico escrito no segundo século de nossa Era. Os Apotelesmatiká (literalmente, efeitos), também
conhecidos como Tetrabiblós (quatro livros), e desculpe minha terrível pronúncia grega.

Mais uma vez, estamos falando de uma figura respeitada por toda a Idade Média e além, o estudioso
alexandrino que escreveu o Almagest, o livro em que ele apresentou o que conhecemos como sistema
ptolomaico para explicar os movimentos de as estrelas, um modelo geocêntrico que foi levado a valor de

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face até o surgimento do sistema heliocêntrico copernicano no final do século XVI, isto é, cerca de 1400
anos depois.

O argumento de Ptolomeu em favor da astrologia era sólido e seria retomado repetidamente pelas
autoridades posteriores. Se as previsões astrológicas não acertam, se não conseguem prever o futuro, a
culpa não está na ciência e no seu método, mas na intenção fraudulenta dos pseudo-astrólogos e na falta
de habilidade de alguns praticantes que são incapazes de compreender a enormidade da disciplina e a
sutileza de seus princípios. Longe de apoiar o ponto de vista de Ptolomeu (lembre-se de que não estamos
aqui para julgar a história, mas para tentar entendê-la), a verdade é que sua defesa / denúncia também
serve como um lembrete de um fato que precisamos ter em mente quando lidar com astrologia histórica.
Não era apenas uma ciência com a aspiração de determinar a influência das estrelas no mundo abaixo.
Desde os tempos antigos, a astrologia também era uma ocupação. Uma fonte de renda que
frequentemente atraía indivíduos motivados por um interesse muito mais material do que científico e que
estavam mais preocupados em manter sua clientela do que em respeitar os princípios e regras da disciplina
que praticavam. Em nosso próximo vídeo, veremos como uma variedade surpreendente de tradições
astrológicas chegou ao oeste medieval, onde se fundiram e deram origem a uma disciplina rica e complexa
que, diferente de qualquer outra, com a possível exceção da medicina, testemunha o berço cultural que é o
legado mais valioso da Europa para o mundo. Fique ligado!

5.2 O CALDEIRÃO DA ASTROLOGIA MEDIEVAL

Oi de novo. Espero que você tenha tido tempo para refletir sobre o último vídeo e refletir sobre o fato de
que a ideia histórica da ciência e a ideia histórica da magia compartilham um elemento-chave. Eles
mudaram ao longo do tempo. A fronteira entre eles pode ficar embaçada às vezes, mas especialmente
quando estamos lidando com uma disciplina, como a astrologia. Hoje, discutiremos como a astrologia
medieval na Europa cristã era composta de uma grande variedade de tradições astrológicas.

Imagine um edifício complexo, construído para as idades. Onde toda civilização contribui com sua peça.
Estilos e materiais se combinam a um ponto em que é difícil dizer o que veio de onde. Mas,
ocasionalmente, alguns elementos distintos sobrevivem bem o suficiente para que possamos identificar sua
origem. Esse é precisamente o caso de alguns elementos astrológicos específicos que foram assimilados
pela astrologia cristã, sem muita adaptação, como veremos em um minuto. Mas primeiro, deixe-me
esclarecer uma coisa. Quando falamos sobre astrologia cristã, nos referimos à astrologia que foi estudada e
praticada na Europa cristã. E como a Astrologia era uma disciplina reservada aos estudiosos, essa chamada
astrologia cristã foi, é claro, escrita na língua acadêmica da época, o latim. Assim, um bom exemplo desses
elementos distintos que acabei de mencionar são as mansões lunares.

Uma mansão lunar é um segmento do caminho aparente da lua em sua órbita ao redor da terra. Essas
mansões eram frequentemente usadas por culturas antigas como parte de seu sistema de calendário. Mas
o que os qualifica como um desses elementos externos facilmente identificáveis é que seus nomes foram
assimilados por textos astrológicos latinos, mantendo sua forma árabe: Alnath, Albotain, Aldebaran. Agora,
aqueles de vocês que estão familiarizados com a astronomia atual provavelmente estão pensando que o
que acabei de dizer é uma lista de estrelas, e vocês estariam absolutamente certos. A explicação é que as
mansões lunares árabes geralmente se referem a uma constelação e sua estrela mais importante, ou seja, a
estrela mais brilhante que pode ser vista na área definida por cada mansão lunar. Às vezes, no entanto, o
sincretismo, em outras palavras: a fusão de diferentes tradições astrológicas, foi muito mais bem-sucedido
e o resultado incluiu materiais babilônicos, egípcios e gregos tardios, compilados na Grécia durante o
período helenístico, filtrados e enriquecidos com iranianos, indianos e Contribuições árabes, reformuladas

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na fase islâmica, e finalmente traduzidas para o grego e o latim primeiro e, posteriormente, para as línguas
vernaculares. Esse corpus de conhecimento era destinado a um público cristão europeu e, portanto,
incorporou os ajustes apropriados em cada caso para evitar a censura da Igreja.

Existem muitos exemplos dessa complexa mistura de concepções astrológicas. Fique comigo aqui por um
momento, porque é aí que as coisas ficam complicadas. Por exemplo, astrologia mundial. Essa é a aplicação
da astrologia para prever e entender os eventos mundiais. Bem, então, a astrologia mundial foi resultado
da combinação de um milenarismo zoroastriano, que é uma filosofia nascida no platô iraniano, em algum
lugar entre os séculos 18 e 6 antes da era comum. E dois, a astrologia do Império Sassaniano. Mas, por sua
vez, a astrologia sassaniana combinou tradições indianas e helenísticas e se desenvolveu no Irã entre os
séculos III e VII de nossa era. Como é isso complicado?

Mas espere, tem mais. As eleições, escolhas ou interrogatórios, eram uma prática astrológica que, para
simplificar, baseava-se em responder a perguntas específicas do tipo sim ou não e em ajudar a decidir o
melhor hora de fazer alguma coisa. Vamos discuti-los nos próximos vídeos, mas o que os torna relevantes
para o nosso argumento de que a astrologia era uma verdadeira mistura de tradições, é o fato de serem um
empréstimo da tradição islâmica, mas também o último legado remanescente da chamada catártica A
astrologia grega que se espalhou pela Índia pela primeira vez no século II de nossa era e muito mais tarde a
partir do século 9, foi assimilada e transmitida para o oeste pela ciência árabe.

Então, como você vê, o panorama geral da astrologia histórica é realmente enorme.

O corpus astrológico disponível para a Europa Medieval era um produto da evolução que era amplamente
semelhante ao da medicina europeia. Não podemos dividi-lo em simples períodos consecutivos lineares.
Algo como astrologia clássica, astrologia medieval, astrologia renascentista. Também não podemos pensar
nisso como um bloco monolítico, onde todos os materiais vêm da mesma fonte e compartilham o mesmo
estilo. A verdade está mais próxima de uma complexa rede de sistemas heterogêneos, cada um com sua
história particular, que convergiu apenas incidentalmente na Idade Média e deu origem às novas tradições
híbridas.

Em nosso próximo vídeo, examinaremos os diferentes materiais e tradições até agora reconhecidos no
conjunto de ideias, práticas e textos que compõem o conhecimento astrológico da Idade Média.
Especificamente, focalizaremos os primeiros séculos do período medieval e como o cristianismo assumiu
um conjunto bastante antigo de princípios e crenças e o adaptou ao seu próprio simbolismo. Mas,
novamente, se você acompanhou as unidades anteriores deste MOOC, isso não é exatamente uma
novidade, é? Fique ligado.

5.3 ASTRONOMIA MEDIEVAL PRECOCE: LUA, ZODÍACO, TROVÕES E


SONHOS

Olá! Ainda bem que continuam conosco. O último vídeo foi muito duro, não foi? Vejamos se neste vídeo
conseguimos ir diretos ao assunto e dar-vos alguns dados específicos sobre as diferentes fontes e práticas
que compunham o corpus astrológico dos primeiros séculos da idade média, na Europa cristã.

Desta vez, não vamos usar os períodos convencionais com que estão familiarizados: início da idade média,
final da idade média e assim sucessivamente. Em vez disso, usaremos uma divisão muito mais simples, com
um período pré-islâmico e um período pós-islâmico, entendidos como os períodos anterior e posterior à
idade de ouro islâmica, que começou com a subida ao poder da dinastia dos Abássidas, no século VIII.

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Isto não quer dizer que nós iremos concentrar, exclusivamente, no contexto islâmico. De facto, a tradição
cientifica islâmico-árabe, era na verdade grego-árabe. E a astrologia pré-islâmica coexistiu com sucessivas
contribuições arábico-latinas durante séculos. Mas dado que o Islão foi, ao mesmo tempo, o receptor final
do legado astrológico da antiguidade, e um dos principais meios através dos quais esse legado passou para
o Ocidente, o uso da sua expansão como linha divisória entre dois períodos astrológicos distintos, parece
adequado. No período pré-islâmico, não parece que a Astrologia Ocidental deva muito, ao legado clássico
da antiguidade tardia. A maioria dos conceitos astrológicos produzidos por estudiosos gregos ou romanos,
durante este período, eram noções vagas, não-técnicas e anónimas, geralmente misturadas com textos
astronómicos, orientados, principalmente, para a cosmologia. O foco era colocado na explicação da
estrutura do universo, através de um modelo, em que a terra estava no centro, e as descrições dos planetas
e dos signos do zodíaco, estavam algures, entre a ciência e a poesia. Este tipo de materiais foram
preservados, principalmente, numa espécie de enciclopedismo filológico primitivo, cujas principais obras
foram a "Saturnalia" e "O Comentário ao Sonho de Cipião de Cícero", por Macróbio, no final do século IV,
"De nuptiis Philologiae et Mercurii" ("As Núpcias da Filologia e Mercúrio"), por Martianus Capella, no início
do século V, "As etimologias" e a "Natura Rerum" ("Sobre a natureza das coisas"), por Isidoro de Sevilha, no
século VI, e um século mais tarde, o trabalho de Bede, "De temporum ratione", ("Sobre o cálculo do
tempo").

(Estrutura do Universo)

Este tipo de astrologia filológica, foi acompanhado por várias versões diferentes, de um Zodíaco cristão,
que interpretavam os diferentes signos, como alegorias da Bíblia, substituindo assim as interpretações
mitológicas que tinham prevalecido até então. O corpus astrológico, destes primeiros séculos medievais,
era o que o próprio Isidoro criticava, descrevendo-o como "astrologia superstitiosa", astrologia
supersticiosa. A astrologia divinatória apareceu em muitas miscelâneas, por toda a Europa, em conjunto

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com outras técnicas preditivas. Quanto à literatura astrológica, em latim, foi constituída, principalmente a
partir do século IX, por dois géneros específicos: as "Lunaria" e as "Zodiologias". Por um lado, as "Lunaria"
eram uma série de textos que ofereciam informações básicas sobre a conveniência de comprar e vender,
de embarcar numa viagem, de ser submetido a uma flebotomia, ou de tomar um remédio, dependendo da
posição e da fase da lua. Por exemplo, contêm afirmações como: "a oitava lua, é o momento mais favorável
para semear os campos e mover as bestas". Por outro lado, as "zodiologias", forneciam breves descrições e
previsões gerais, para os nativos de cada signo zodiacal: "a mulher nascida sob o signo do leão, será tímida,
engenhosa e espiritualizada", por exemplo. Estas obras, eram geralmente acompanhadas, de
"brontologias", previsões baseadas nos trovões: "se começar a trovejar, durante a primeira hora da noite,
haverá grande mortalidade". Textos sobre quiromancia, textos com interpretação de sonhos, como os
conhecidos "Sonhos de Daniel", e previsões meteorológicas e com o calendário: "se as calendas de Janeiro
calharem numa segunda-feira, o inverno vai ser duro".

Apesar da sua aparência pouco sofisticada, e quase folclórica, toda esta literatura divinatória, era produto
da erudição Latina, especialmente a produzida durante a Renascença carolíngia, do final do século VIII,
baseada em fontes muito antigas. A sua natureza simples, e a falta de exigência de qualquer habilidade
técnica, tornaram muito popular este tipo de astrologia, mesmo para além da esfera monástica, e estes
textos foram, desde muito cedo, traduzidos para línguas vernáculas, especialmente no mundo anglo-saxão.
No entanto, esta astrologia carolíngia, não possuía nenhum dos elementos mais característicos da tradição
ocidental, como o Horóscopo e o típico jargão astrológico, tal como: Ascendente, aspeto, triplicidade,
exaltação, combustão, casas. Todos estes termos, e os conceitos por trás deles, pertencem à matemática
ou à astrologia técnica, praticada originalmente pelos matemáticos gregos ou romanos. Mas a transmissão
dos seus conhecimentos, para a Europa medieval, foi interrompida com a queda de Roma. De facto, ela não
foi verdadeiramente reintroduzida e restabelecida na Europa Latina, senão com a chegada das traduções
de textos árabes, realizadas, principalmente, entre os séculos X e XII.

Enquanto que as traduções gregas dos mesmos textos, estavam em circulação em Bizâncio, desde o início
do século XI.

Em qualquer caso, esta astrologia culta, embora essencial, não substituiu a tradição mais pobre e mais
primitiva, que acabei de descrever.

Ambas floresceram, porque ambas respondiam às necessidades e interesses da sociedade Medieval,


embora de maneiras diferentes. Afinal, foi precisamente o facto de Merovíngios e Carolíngios manterem
viva a sua curiosidade sobre as doutrinas astrológicas, que tornou possível a pesquisa e a tradução de
novos textos, que tratam de temas semelhantes, e que, naquela época, estavam necessariamente escritos
em árabe.

No nosso próximo vídeo, iremos abordar a evolução da recém-nascida astrologia medieval, e iremos
testemunhar o renascimento da astrologia técnica, que é, de certa forma, o nascimento dos horóscopos,
uma das últimas peças do quebra-cabeças astrológico da idade média, que conseguiu sobreviver até ao
nosso, extremamente científico, século XXI. Fique ligado.

5.4 HORÓSCOPOS E EVENTOS MUNDIAIS: OS FEITOS DA ASTROLOGIA DE


PONTA

Olá novamente, bem-vindo ao último vídeo desta série dedicada à astrologia medieval na Europa cristã.
Como prometido em nossa última lição, hoje, discutiremos a evolução da disciplina no período pós-

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islâmico, isto é, nos séculos que se seguiram ao período de maior expansão do Islã. Durante o século 10,
várias traduções e tratados em latim sobre astrologia divinatória enriqueceram a tradição astrológica
popular local, que manteve seu sucesso entre o setor mais baixo da profissão até o período moderno. Mas
a influência islâmica árabe foi especialmente notável na astrologia técnica a partir do século XII. Astrologia
europeia aprendida, a única que merecia o nome de "ciência das estrelas" de acordo com seus praticantes,
estava inextricavelmente relacionada a nomes árabes como Albumasar ou Albohazen. Os novos textos
disponíveis eram manuais que compilavam os princípios da ciência astrológica praticada pelas autoridades
gregas, persas, indianas e caldeiras, entre outros. Voltando à Europa, foi graças à tarefa dos tradutores do
século XII que os nomes de Dorotheus de Sidon e Ptolomeu retornaram à elite das autoridades astrológicas
da Europa cristã e que seus trabalhos entraram nos programas da universidade.

Alguns desses tradutores também criaram suas próprias compilações com base em fontes árabes.

Por assim dizer, a nova astrologia tinha seu próprio aparato e seu próprio grau de pompa, assim como o
resto das ciências da época. A quantidade de cálculos complexos necessários para lançar um horóscopo
envolveu três coisas. Um, habilidades matemáticas que foram além da aritmética. Segundo, o uso de
instrumentos como o astrolábio, explicado em vários manuais islâmicos árabes que também ensinavam
como fazer um. E três, o uso de cartas astronômicas abrangentes e precisas que precisavam ser adaptadas
à latitude da cidade onde o astrólogo exercia seu ofício.

Uma vez que as posições relativas dos planetas para um momento específico foram determinadas e
representadas, o astrólogo teve que consultar uma das muitas compilações canônicas para encontrar o
significado dessa configuração astral específica e lançar a previsão para seu cliente. O objetivo da previsão
também definiu diferentes tipos de práticas astrológicas, que eram a Astrologia Interrogativa, as eleições
que mencionamos alguns períodos atrás. Astrologia Mundial e Astrologia Natal. Cada um deles tinha seus
próprios métodos e histórico, incluídos em manuais específicos. Astrologia interrogativa, basicamente,
tratava de determinar a conveniência de realizar uma determinada atividade, dependendo das posições
relativas dos planetas naquele momento específico. O cliente poderia fazer uma pergunta sobre o
momento mais adequado para embarcar em uma jornada em direção ao leste, fazer um purgativo ou
escolher o melhor dia da semana ou mês para plantar sua vinha. A Astrologia Mundial, também conhecida
como astrologia política é estranha à tradição greco-romana, tentou estabelecer o momento preciso de
cada uma das principais conjunções astrais e suas qualidades. Com base nesses dados, o astrólogo poderia
prever grandes eventos históricos, como guerras, queda de reinos ou aparecimento de seitas e profetas.
Finalmente, os astrólogos natais estavam preocupados em determinar o futuro de seus clientes a partir da
configuração astral presente no momento de seu nascimento. A astrologia natal já desenvolvida no período
helenístico, com seu jogo característico de ascendentes e aspectos, é provavelmente o representante mais
renomado e estereotipado da astrologia medieval. Prova disso é o grande número de autores que
escreveram livros sobre o planeta em línguas árabe, hebraica, latina, grega e vernacular, e os tratados
homonymus que foram criados anonimamente ou sob um pseudônimo.

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Em suma, a partir do século XV, os europeus ocidentais tinham um grande corpo literário astrológico ao seu
alcance. Um corpus que incluía uma grande variedade de técnicas, desde as mais básicas e adivinhações até
os cálculos matemáticos mais complicados. A circulação e o uso do primeiro ou do último dependiam
principalmente de circunstâncias sociais, pois ambos responderam a um público específico. Os horóscopos
eram obviamente reservados para as poucas eruditas que possuíam os livros e instrumentos necessários e
para os clientes que podiam pagar por seus serviços. Não é por acaso que esse tipo de astrologia se
desenvolveu nos meios da corte. Por exemplo, Kepler e Tycho Brahe foram ambos apontados como
astrólogos imperiais e Galileu fez suas previsões a serviço dos poderosos Medicis. Por outro lado, sem
astrolábios, mapas astronômicos ou sem as habilidades essenciais para usá-los, os astrólogos ainda
poderiam recorrer a técnicas muito mais simples. Eles olharam para a posição da lua ou degradaram os
princípios da ciência das estrelas, acrescentaram os números que se correlacionavam com as letras do
nome de seus clientes e atribuíam a eles um signo do zodíaco, depois se voltaram para o mais simples
manuais, que forneciam uma série de previsões um pouco semelhantes às oferecidas pela astrologia de
ponta. Naquela época, exatamente como acontece agora, o contexto social e intelectual determinava o
tipo de astrologia que as pessoas procuravam e as leis de oferta e demanda eram igualmente
predominantes. A demanda cristã por textos astrológicos promoveu a tarefa dos tradutores que resultaram
na incorporação maciça da tradição árabe-islâmica. Do mesmo modo, as demandas do público que vivia
fora dos tribunais e das universidades favoreceram a sobrevivência de um corpus diferente, muito mais
primitivo e cientificamente inferior, que não era uma competição pela astrologia matemática, mas
simplesmente ofereceu uma alternativa a ela.

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5.5 GEOMANCIA

Olá. Neste vídeo, vamos mergulhar no mundo da adivinhação. A adivinhação assenta sobre a crença na
omnisciência divina, e ao longo da história, os seres humanos, desenvolveram diversas metodologias, para
receber conhecimento dos deuses. As técnicas de adivinhação podem, sem dúvida, ser consideradas um
fenómeno diferente do que geralmente incluímos, na categoria de recursos mágicos. Mas, em muitos
casos, a prática destas técnicas requer o recurso a fórmulas especificas e a execução de um conjunto de
rituais, uma característica comum, à maioria dos procedimentos mágicos. Agora, gostaria de vos apresentar
uma técnica, conhecida no Ocidente como "geomancia". A palavra geomancia, que deriva do grego "geo"
("terra") e "manteia" ("adivinhação"), é o nome que a prática recebeu dos primeiros tradutores dos
manuais árabes, onde era geralmente designada por "ilm ar-raml" ("ciência de areia"), por referência à
utilização da areia como a superfície onde eram tradicionalmente realizadas as predições. Estas traduções
ocorreram no século XII, em Espanha, e promoveram extensivamente a prática da geomancia na Europa,
especialmente, durante o final da idade média e no renascimento. Em seguida, vocês irão aprender os
procedimentos básicos deste método de adivinhação, de forma a identificarem quilo que distingue esta
técnica popular. Para realizar as predições, são usadas 16 figuras. Como podem ver, cada uma dessas
figuras é construída com quatro linhas de pontos. E em cada linha, podem existir, um ou dois pontos. O
número das figuras - dezasseis - é o resultado de todas as combinações possíveis dos dois valores, pares e
ímpares, agrupados em grupos de quatro. Agora, e apenas com introdução das figuras, vocês começam a
perceber as implicações matemáticas desta técnica divinatória. Com efeito, o procedimento recorre a
princípios derivados da aritmética, da teoria dos números e da álgebra. Esta é a razão porque a geomancia
se tornou um assunto de interesse para os estudiosos do campo da antropologia matemática, como se
pode constatar pela seguinte bibliografia.

As figuras geomanticas receberam um nome e um significado. As previsões podem ser feitas, levando em
consideração o valor de apenas uma figura, obtida de forma aleatória. Mas geralmente, a prática requer
um procedimento mais sofisticado que envolve a construção de uma tabela, com 15 ou 16 posições, em
que são colocadas as figuras. Vou agora apresentar-vos as etapas desse processo, já que elas ilustram a
complexidade e a natureza técnica do sistema, um aspeto chave para entendermos como cada prática
divinatória, está inserida no contexto intelectual a que pertence. Tal como já mencionámos, a geomancia
está fortemente ligada à aritmética, e isso torna-se especialmente claro, nas leis que regem a construção da
tabela. Em primeiro lugar, e seguindo um processo aleatório, obtemos quatro figuras. Uma das formas mais
tradicionais de o fazer, é desenhar quatro linhas de pontos, sem os contar. Logo que isso esteja feito, os
pontos são descartados, aos pares, deixando apenas um ou dois pontos, no final de cada linha. Os pontos
restantes são colocados uns sobre os outros, formando uma figura.

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Esta operação é repetida quatro vezes, de forma a obter as quatro figuras que irão ocupar as primeiras
posições da tabela, conhecidos como "mães". A razão para este nome, é que estas quatro figuras são
responsáveis pelo resto, através do recurso às leis de derivação. A primeira chama-se "transposição" e
produz as figuras que irão preencher as quatro posições seguintes, designadas por "filhas". Consiste em
transferir os pontos da posição horizontal para a vertical, usando as linhas superiores de pontos, ou
"cabeças", das quatro "mães" para criar a primeira das "filhas" e, continuando até ao fundo, cada linha é
usada para construir o resto das filhas. A segunda lei da derivação, a adição, é usada para obter as figuras
para as restantes posições. A adição consiste em combinar duas figuras para produzir uma terceira.
Contam-se os pontos em cada linha, e se a soma for ímpar, ela corresponde a um ponto, e se a soma for
par, corresponde a dois. Desta forma, a tabela fica preenchida e pronta para a interpretação.

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A geomancia revela aqui uma estreita relação com a astrologia. As posições na tabela denominam-se
"casas", um conceito importado da astrologia, tal como alguns dos princípios que regem a tabela. As casas,
podem estar relacionadas com um planeta, cor, papel social, número ou elemento, propriedades que têm
de ser relacionadas com as características da figura lá posicionada. Dada a grande quantidade de
informações necessárias para interpretar uma tabela, os manuais escritos são úteis, senão mesmo
necessários. A produção de manuais foi consideravelmente grande, Já na idade média, se tivermos em
conta o número de exemplares preservados. Eles são a melhor fonte para conhecer a história desta técnica.
Quanto às fontes indiretas, elas devem ser tomadas com cautela, porque os nomes pela qual era
conhecida, são por vezes aplicados a outras técnicas que também envolvem o uso de areia, ou de terra, tais
como a "litomancia", a "psammomancia" ou o "feng shui". Alguns desses manuais são também
interessantes sob o ponto de vista da história económica e social, porque incluem frequentemente, as
perguntas que faziam mais vezes. Com base nos exemplos preservados, assume-se que, como
mencionámos anteriormente, a geomancia entrou na Europa depois da tradução dos manuais árabes, que
ocorreu no século XII, e dado que não há provas de ter sido praticada antes, em qualquer outro lugar, é
geralmente aceite que as origens desta técnica divinatória, podem ser seguidas até terras árabes. Esta ideia
é consistente com os lendários contos de a sua génese e transmissão, encontradas em várias fontes árabes.
As lendas procuram explicar a natureza divina desta ciência, fornecendo uma cadeia de transmissores,
geralmente liderada pelo Arcanjo Gabriel (Jibril em árabe).

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Mestre do conhecimento, Gabriel deu ao Profeta Idris a possibilidade de aprender e transmitir aos
humanos. O anjo e o profeta encontraram-se várias vezes até o aprendiz ter dominado a técnica. Depois,
Idris ensinou a técnica a um sábio indiano chamado Tumtum al-Hindi. O legado deste homem sábio era
desconhecido até à chegada de Khalf al-Barbari, "o Velho", um contemporâneo do profeta Maomé. Khalaf
al-Barbari estudou-a na Índia durante 120 anos e depois escreveu um livro que ofereceu ao seu discípulo,
Nasr al-Din al-Barbari, "o Jovem", antes de morrer, no ano 13 da Hégira, com a idade de 186 anos. A lista
termina geralmente, com o geomancer mais famoso de todos os tempos, Abu Abd Allah Muhammad al-
Zanati, que sucedeu ao seu mestre Abu Sa'id al-Tarabulusi. Em outros casos, os transmissores míticos são
substituídos por outros com um papel equivalente. Por exemplo, Idris pode ser equiparado a Hermes
Trismegistus, Thoth, o profeta Daniel e a Enoch. Enquanto que, no lugar de Tumtum al-Hindi, poderíamos
encontrar Ptolomeu. Além disso, em alguns casos, é possível encontrar Sem, Presunto, Sibyl, Pitágoras,
Abraão, Moisés ou Cristo. Mas a prática da geomancia não é exclusiva das terras árabes e da Europa, nem
da idade média e do renascimento. A adivinhação através de figuras geomanticas conheceu uma grande
expansão, no tempo e no espaço. Viajou muito cedo, para as regiões do sul de África e tão remotas como
Madagascar. Aí, tornou-se uma prática muito popular e ritualizada, depois de ter sido integrada em crenças
e cultos locais. Em seguida, da costa africana ocidental, onde era conhecido como "Ifa" ou "Fa", chegou às
Caraíbas levada pelo comércio de escravos. Viajou também para leste, especialmente para o Irão e
Paquistão, Em todos estes lugares, a geomancia continuou a ser praticada até à atualidade.

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5.6 TAREFA COM CLASSIFICAÇÃO POR PARES: ANÁLISE DE IMAGENS


ASTROLÓGICAS

Neste exercício, você comparará duas imagens (no máximo 1900 caracteres com espaços) relacionadas à
concepção de astrologia na Idade Média. As perguntas abaixo fornecem dicas para guiá-lo através da
análise. Tente respondê-las em seu exercício.

Imagem número 1

TRANSCRIÇÃO DO POEMA:

O Caranguejo é a minha feira de mansões, Toda influência celestial através de mim deve ir
E quando você me vê parado lá Agora forte, agora fraco, agora rápido, agora
Se Júpiter pode me olhar, lento.
Não farei nenhum mal então, você verá. Teimoso, desatento e meio selvagem -
Eu sou exaltado no Boi, Se ele não for liderado, ele é filho de Luna.
No Escorpião, caio baixo, eu temo. Rostos pálidos e redondos e olhos castanhos,
Através das estrelas eu pulo e pulo, Dentes cruéis, nariz arrebitado e nunca sábios,
Em vinte e sete dias eu chego. Facilmente irritado, mas logo consolado,
Curto, preguiçoso, ciumento, ganancioso por
ouro.
Funileiros e malabaristas e estudantes que
vagam,
Moleiros, apanhadores de pássaros, aqueles que
nunca estão em casa,
Se você pescar, nadar ou velejar,

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Como filho da Lua, você não pode falhar.

A primeira imagem apresenta um bloco de anotações feito para dar ao leitor não especialista a sensação de
que ele está olhando as páginas de um livro astrológico medieval. Você pode descobrir mais sobre esta
edição aqui e mais informações sobre este tópico na página inicial do site:
http://www.billyandcharlie.com/planets/.

Agora, volte para a imagem. Veja a imagem e leia o texto (você encontrará uma transcrição seguindo o link
na parte inferior da página). A que se refere o texto e a ilustração? (É importante que você tente vincular
brevemente o conteúdo do livro com uma certa concepção do poder das estrelas). Com qual prática esse
livro está relacionado? A que tipo de público este livro pode ter sido dirigido? Por quê? O texto é uma peça
técnica ou literária? Se você procurar o livro inteiro, vê alguma tabela ou instrumento complementar usado
para realizar cálculos matemáticos?

Depois de analisar a primeira imagem e refletir sobre as perguntas sugeridas acima, você pode dar uma
olhada na segunda.

Número da imagem 2

Você pode ler mais sobre astrolábio aqui em: http://www.hps.cam.ac.uk/starry/isaslabe.html e aqui:
http://www.astrolabes.org/. Segundo essas fontes, para que foram usados os astrolábios? Você precisa de
algum conhecimento especializado para usar este instrumento? Estamos falando do mesmo tipo de
práticas astrológicas refletidas na primeira imagem (o bloco de anotações)?

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MINHA RESPOSTA

ASTROLOGIA: DO USO POPULAR AO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

A ilustração claramente apresenta a casa da Lua no Zodíaco. A Lua era chamada de Luna pelos romanos,
Selene e Ártemis pelos gregos e ainda foi chamada de muitos outros nomes em outras mitologias. A Casa
4 é associada a Lua, que rege o signo de Câncer e tem como dia da semana a segunda-feira - ou Monday
("moon day" em inglês). Tem sua exaltação no signo de Touro e sua queda em Escorpião. Ao que me
parece, o poema inicialmente fala sobre a ascensão da lua através das casas zodiacais, voltando sua
narrativa para as características da personalidade comuns aos cancerianos que nascem sob a regência
da Lua, aqui tratados como seus filhos (como no meu caso que nasci no dia 18/07/1980). Apesar da sua
aparência pouco sofisticada trata-se de uma literatura divinatória. A sua natureza simples, e a falta de
exigência de qualquer habilidade técnica, tornaram muito popular este tipo de astrologia.

Não pude deixar de perceber a grande similaridade desta imagem com a expressa pelo Arcano XVIII do
Tarot de Marselha (A Lua), usado igualmente para fins oraculares.

A imagem 2 por sua vez, apresenta um astrolábio que é um instrumento naval antigo, usado para medir
a altura dos astros acima do horizonte e sua construção é o resultado prático de várias teorias
matemáticas desenvolvidas por célebres estudiosos antigos.

E certamente ao comparar a segunda imagem com a primeira, fica evidente que esta trata de um tipo de
prática astrológica completamente diferente daquelas refletidas na primeira imagem, por ter um caráter
mais técnico e científico e uma aplicação que não está vinculada as previsões oraculares e ao horóscopo.

VÍDEO OPCIONAL - CICLOS MUNDIAIS 1: O GRANDE ANO DA DOUTRINA


NA ANTIGUIDADE (1)

Vamos começar considerando um relógio. Um relógio analógico muito comum, com seus mostradores e
ponteiros para indicar as horas e os minutos.

Desde muito cedo, estamos acostumados a ler esse tipo de mostrador, para que todos possamos entender,
quase instantaneamente, o que significam as respectivas posições dos dois ponteiros.

Todos sabemos também que os ponteiros do relógio não giram em torno do mostrador na mesma
velocidade.

No entanto, sabemos que eles coincidirão um em cima do outro em horários específicos durante o dia ao
meio-dia ou à meia-noite, quando os dois ponteiros se reúnem no 12 do mostrador.

Agora, vamos nos perguntar a seguinte questão matemática.

Como o mostrador está dividido em 12 seções para indicar as horas, quantas vezes no decorrer de 12 horas
ocorrerá essa conjunção dos dois ponteiros?

Vou te dar cinco segundos para pensar.

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Bem, a menos que você esteja produzindo ou vendendo, observe toda a sua vida, há uma boa chance de
você responder a essa pergunta dizendo: 12. E você estará errado.

A resposta correta é, é claro, 11.

De fato, ao longo de 12 horas, o ponteiro dos minutos completará 12 rotações ao redor do mostrador.

Mas devemos estar cientes de que o ponteiro das horas também avançou e, enquanto isso, ele conseguiu
concluir uma revolução.

E o que importa aqui é precisamente a diferença entre os respectivos números de revoluções. 12 menos
um é 11. Por que estou lhe dizendo tudo isso? Porque o Annus Platonicus, ou a doutrina maior à qual esta
unidade é dedicada, é um problema astronômico e matemático que precisa ser entendido e interpretado
essencialmente da mesma forma que o problema de todos os relógios.

Como todas as outras pessoas na antiguidade, os gregos não conceberam o tempo como linear, mas como
cíclico. Da mesma forma, eles também viam o universo ao seu redor como geocêntrico, o que significa que
eles colocavam a Terra no centro de seu sistema.

Nesse sistema, a Terra estava cercada por sete esferas. Um para cada um dos planetas que eles conheciam,
incluindo o sol.

Essas sete esferas foram elas próprias circunscritas por uma esfera última, que era a esfera das estrelas
fixas.

Como em todas as outras culturas, os ciclos mais importantes para a vida cotidiana foram determinados
por períodos específicos de revolução, como o dia de 24 horas, o mês ou o ano.

Em seu Timeu, Platão define o tempo como a semelhança ou imagem em movimento da eternidade e
iguala os planetas, ou mais apropriadamente, as esferas planetárias, os instrumentos do tempo.

É também no mesmo texto que encontramos a primeira discussão genuína e incontestável da doutrina do
Grande Ano.

Essa discussão se tornaria a referência padrão para as teorias do ciclo mundial até o renascimento europeu.

Assim, depois de lembrar que um mês é medido pelo retorno da lua e um ano pelo sol, Platão explica que
cito: “não obstante, é possível compreender que o Número Perfeito de tempo cumpre o Ano Perfeito no
momento em que as velocidades relativas de todas as oito revoluções concluíram seus cursos juntos e
atingiram sua consumação, medida pelo círculo do Mesmo e uniformemente em movimento”.

Em outras palavras, Platão convida seu leitor a considerar que o maior ciclo do universo, que ele próprio
chama de Ano Perfeito em vez de Grande Ano, é marcado pelo retorno à conjunção de todas as sete
esferas planetárias com uma estrela como esfera.

Platão não atribui nenhum valor a esse ciclo. E não é onde o filósofo fornece um método explícito para
calculá-lo.

O restante da passagem, no entanto, sugere que esse cálculo é possível, pelo menos para algumas pessoas.

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O problema é, como podemos ver, muito semelhante ao nosso problema de relógio. Exceto que, nesse
caso, teríamos que considerar um relógio com oito ponteiros e cada um deles presumivelmente com uma
velocidade de revolução diferente.

Voltarei a isso no próximo vídeo.

VÍDEO OPCIONAL - CICLOS MUNDIAIS 1: O GRANDE ANO DA DOUTRINA


NA ANTIGUIDADE (2)

Olá de novo. Fontes antigas, gregas e latinas, contêm muitas referências a este grande ano conjunta.

Aristóteles, o gigante autor da filosofia grega, parece também ter se preocupado muito com a teoria.

Infelizmente, o tratado em que foi discutido o Protrepticus foi perdido.

No mundo latino, descobrimos que Cícero também estava muito interessado na doutrina. Ele se refere ou
alude a isso em pelo menos seis de suas obras. Na literatura antiga, também encontramos listas diversas de
períodos supostamente entendidos como grandes anos no sentido platônico.

Mas estes claramente não correspondem a ele na realidade.

Eles incluem períodos sólidos curtos e malucos, como, por exemplo, o chamado ciclo de Saros. Esse famoso
ciclo astronômico de cerca de 18 anos e 11 dias permite que os antigos prevejam, com um grau razoável de
precisão, o retorno de eclipses solares e lunares. As mesmas listas também mencionam ciclos mundiais
verdadeiramente gigantescos. Isso inclui um ciclo de 120.000 anos atribuído ao lendário Orfeu e até um
período de 3.006.000 anos atribuído a certas Cassandras. Mas nem é preciso dizer que esses tipos de
grandes anos não têm nada a ver com o Grande Ano conjunto de Platão.

Mas também encontramos na literatura antiga uma grande variedade de fontes discutindo o Grande Ano
no sentido de Platão.

O que esse material revela, no entanto, é uma tendência crescente entre os autores de mudar a teoria
original, que é fundamentalmente um problema da astronomia matemática para o reino das especulações
e crenças astrológicas na doutrina do eterno retorno.

Assim, tornou-se um hábito, com muitos estudiosos, adotar visões extremamente deterministas sobre o
universo.

Eles afirmaram que, ciclo após ciclo, ano após ano, todos os eventos no mundo aqui em baixo aconteceriam
novamente exatamente na mesma ordem que no ciclo anterior. Essa tendência é melhor ilustrada por essa
passagem tirada das Naturales Quaestiones do filósofo latino estóico, Seneca.

Aqui, a doutrina do Grande Ano é derivada das especulações do padre e cientista babilônico Berosus e
ligada a eventos apocalípticos, como inundações e conflagrações universais, cito:

“Que tanto a inundação quanto a conflagração ocorrerão quando parecer melhor a Deus
que as coisas antigas terminem e que coisas melhores comecem. Água e fogo dominam as

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coisas terrenas. Deles é a origem, deles é a morte. Portanto, sempre que uma renovação
para o universo é decidida, o mar é enviado contra nós do alto, como fogo ardente, quando
outra forma de destruição é decidida.”

Berosus, que traduziu Belus, diz que essas catástrofes ocorrem com os movimentos dos planetas. De fato,
ele tem tanta certeza que atribui uma data para a conflagração e o dilúvio.

O resto da passagem explica que a conflagração universal ocorrerá quando todos os planetas se juntarem
sob o signo de Câncer, o local do solstício de verão. O dilúvio universal ocorrerá quando todos se
encontrarem sob o signo de Capricórnio, que é o local do solstício de inverno.

Muitas outras referências do mesmo tipo poderiam ser fornecidas para mostrar que a suposição de que a
conjunção geral dos planetas era a causa das inundações, inundações e outros eventos neste mundo se
tornara a norma entre as principais escolas de pensamento na antiguidade.

A única posição séria dessa crença no poder absoluto das estrelas era vir do meio cristão, com intelectuais
como Orígenes ou Santo Agostinho.

Esses autores condenaram completamente essa visão. Em particular, enfatizaram que tal recorrência
periódica de eventos era apenas incompatível com a encarnação de Jesus Cristo.

Na cidade de Deus, encontramos uma passagem interessante em que Agostinho procura ridicularizar seus
adversários sobre esse assunto.

Ao mesmo tempo, ele tenta justificar a famosa frase: não há nada novo sob o sol alterado por Salomão na
Bíblia.

Sua linha de argumentação consiste em imaginar um modelo no qual o filósofo Platão se encontraria em
uma repetição interminável de ciclos constrangidos a ensinar as mesmas coisas aos mesmos alunos, sem
absolutamente nenhuma mudança de um ciclo para o outro.

Confiando no texto sagrado, ele conclui, cito:“que o Céu proíbe, digo, que devemos acreditar nisso. Pois
Cristo morreu uma vez por nossos pecados, mas ressuscitando dentre os mortos, ele não morre mais, e a
morte não terá mais domínio sobre ele”. Certamente não é por acaso que Agostinho coloca Platão no
centro de seu exemplo. A fama da passagem do Grande Ano levou a maioria das pessoas na antiguidade e,
em períodos posteriores, a responsabilizá-lo também por todo tipo de crenças, de acordo com a teoria das
conjunções planetárias.

Ao mesmo tempo, podemos medir o grau de distorção que a concepção original sofreu ao longo dos
séculos. É bastante evidente que o próprio Platão nunca teria adotado a visão rígida e determinista
denunciada por Agostinho.

Na próxima unidade, que é dedicada à recepção da doutrina do Grande Ano na Idade Média oriental e
ocidental, veremos que outra série de amálgamas e confusões afetou a teoria original, distorcendo-a quase
irreconhecível.

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VÍDEO OPCIONAL - CICLOS MUNDIAIS 2: O GRANDE ANO DA DOUTRINA


NA IDADE MÉDIA (1)

Olá de novo. Na unidade anterior, vimos como a teoria do Grande Ano, conforme mencionada por Platão
no Timeu, era recebida na antiguidade.

Neste vídeo, exploraremos o mesmo tópico ainda mais. Mas agora, vamos nos concentrar na recepção da
doutrina no Islã medieval e depois na Idade Média Latina na Europa.

No Islã, durante a Idade Média, a astronomia e a astrologia usualmente se misturavam sob uma única
designação 'ilm at nujum, literalmente, os signos das estrelas.

É comum reconhecer que, no final do século VIII d.C. e, portanto, coincidindo com o glorioso reinado dos
califas abássidas em Bagdá, os sinais das estrelas já haviam absorvido totalmente os componentes
decorrentes de três grandes culturas do passado, a grega, o iraniano e o indiano.

Essa assimilação foi possível através de um extraordinário movimento de tradução. Um movimento que
possivelmente não tem equivalente na história.

Por cerca de dois séculos, em Bagdá e em muitos outros lugares do mundo muçulmano árabe, um número
impressionante de obras científicas e filosóficas originalmente escritas em grego, mas também em persa e
sânscrito, foram traduzidas para o árabe. E disponibilizado para os intelectuais da época.

Entre esses cientistas, uma nota especial deve ser feita a Abu Mashar al Balkhi, chamado Albumasar na
tradição latina. Sua influência sobre a astrologia na Idade Média, seja no leste ou no oeste latino,
permaneceu sem paralelo.

Em particular, Abu Ma'shar foi o autor de várias obras de astrologia histórica ou mundana.

O objetivo desses trabalhos era explicar a influência de grandes conjunções planetárias e períodos
milenares em grandes áreas e comunidades de pessoas neste mundo. Curiosamente, um desses livros,
Kitab al Uluf, o livro de milhares, mencionou vários sistemas astronômicos indianos que incorporam a
doutrina do Grande Ano no mesmo sentido que Platão no Timeu. Esses sistemas diferem um do outro na
medição do grande ciclo, que varia de 180.000 a 4,32 bilhões de anos, de acordo com o sistema utilizado.
Todos eles postulam que o início do presente ciclo ocorreu no ano 3.101 a.C. E que foi marcado por uma
inundação universal, bem como pela conjunção de todos os planetas no primeiro grau do zodíaco, ou os
signos zodiacais de Áries.

Em sua magistral reconstrução do tratado perdido de Abu Ma'shar, David Pingree situa a proveniência
direta dessas especulações astronômicas no Brahmasphutasiddhanta. Um tratado escrito pelo astrônomo
indiano Brahmagupta no ano 628 da Era Comum.

Brahmagupta, por sua vez, pode muito bem ter retirado esses materiais de Aryabhata, que viveu um século
antes e é frequentemente considerado o primeiro astrônomo e matemático importante no período clássico
da Índia.

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Em sua epístola astrológica sobre ciclos e revoluções, o grupo de pensadores do século X conhecido como
Ikhwan al Safa, Irmãos da Pureza, também atribui explicitamente aos hindianos a origem do Grande Ano
conjunta com um alinhamento de todos os planetas em primeiro grau de Áries.

Nesse caso, no entanto, a periodicidade do ciclo é mencionada em 360.000 anos.

Curiosamente, em outra de suas epístolas, os Ikhwan também relatam uma fábula ou alegoria indiana
destinada a ilustrar, como fizemos com o exemplo do relógio na unidade anterior, o problema do Grande
Ano conjunto. Ou, em outras palavras, o caminho para encontrar o múltiplo menos comum das revoluções
planetárias. Eles fazem isso usando o exemplo de sete homens que são convidados a correr pelas muralhas
de uma cidade circular, cada um na sua velocidade.

Solicita-se ao leitor que calcule o número de rotações que cada uma realizará, antes que todas voltem à
linha de partida.

Foi, sem dúvida, uma tentativa muito agradável de explicar o mecanismo do Grande Ano. Infelizmente,
porém, para nossos autores, que claramente não tinham experiência em matemática, os valores fornecidos
pelo cálculo os levaram a um resultado errado.

Na história da doutrina do Grande Ano, o Islã medieval também teve sua parcela de confusões e distorções
do conceito original.

O mais sério deles é, sem dúvida, a fusão de nosso Grande Ano conjunta com outro grande ciclo do mundo,
tecnicamente chamado de ciclo de precessão equinocial.

É impossível determinar exatamente quando essa amálgama de teorias ocorreu.

Mas o certo é que ele já aparece na obra do astrônomo Farghani, o Alfraganus da tradição latina, que
também esteve ativo durante o século IX.

Mas qual é a procissão equinocial? Bem, no século II a.C., foi descoberto, presumivelmente pelo astrônomo
grego Hiparco, que o eixo da Terra não está absolutamente fixo no espaço.

Em vez disso, gira lentamente como um pião em torno dos polos da eclíptica. A eclíptica é o círculo que
representa o caminho aparente do sol durante o ano.

Da mesma forma, o ponto vernal, isto é, o ponto de interseção entre a eclíptica e o equador celeste, se
move na mesma velocidade ao longo da eclíptica com um movimento retrógrado. Esse movimento tem
implicações imensas, pois afeta as coordenadas de todas as estrelas. E foi chamado de precessão equinocial
porque traz todos os anos um equinócio de adnância vernal de leste a oeste, através das estrelas dos signos
do zodíaco.

Foi também para explicar esse movimento de precessão que muitos astrônomos começaram a introduzir
em seu sistema uma nona esfera, uma esfera sem estrelas, além da esfera estrelada e das sete esferas
planetárias.

Não sabemos o valor atribuído por Hiparco ao ciclo processional, pois seu trabalho foi perdido. Mas
possuímos a estimativa fornecida no século II d.C. por Ptolomeu, em seu famoso Almagesto.

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A estimativa de Ptolomeu foi de 36 segundos de arco por ano. Ou 1 grau em 100 anos, que chega a uma
revolução completa em 36.000 anos.

Devido à incomparável autoridade do Almagest como modelo de astronomia teórica, esse valor de 36.000
anos se tornou a figura canônica do movimento de precessão durante a maior parte da Idade Média.

Não é preciso dizer que, de um ponto de vista estritamente astronômico, o movimento de precessão e a
doutrina do Grande Ano não têm absolutamente nada a ver um com o outro. O último envolve todas as
esferas celestes. Enquanto a precessão equinoxal está envolvida com apenas um deles, a estratosfera.

Mas como esses dois períodos podem ser considerados de alguma forma como o maior ciclo do universo,
talvez possamos entender a razão pela qual essas duas teorias foram confundidas.

A confusão pode muito bem ter sido facilitada pela grande semelhança dos valores associados a cada ciclo
de 36.000 anos para a precessão e, como vimos com Ikhwan al-Safa, 360.000 anos para o Grande Ano
conjunto.

Vou desenvolver isso um pouco mais em outro vídeo.

VÍDEO OPCIONAL - CICLOS MUNDIAIS 2: O GRANDE ANO DA DOUTRINA


NA IDADE MÉDIA (2)

A história dos ciclos mundiais no Islã é ainda mais complicada pelo fato de ser frequentemente associada a
outros ciclos mais curtos da história, supostamente determinados pelo retorno à conjunção de dois
planetas, e especialmente dos dois planetas mais afastados do sistema, Júpiter e Saturno, cujos períodos de
revolução são de 12 e 30 anos, respectivamente. Adotando uma teoria originalmente desenvolvida na
Pérsia Sassânida, os astrólogos muçulmanos atribuíram grande importância a três tipos particulares de
conjunções Júpiter-Saturno. Isso pode ser determinado levando-se em consideração os signos do zodíaco e,
mais especificamente, o que os astrólogos definem como as triplicidades do zodíaco.

Não é necessário entrar nos detalhes dessa teoria. O que importa para nós aqui é reter que os três tipos de
conjunções determinados dessa maneira correspondem a períodos de 20 anos para o tipo de conjunção
pequena, 240 anos para o tipo de conjunção intermediária e 960 anos para o tipo de conjunção grande.

Acreditava-se que cada tipo determinava uma mudança específica nos assuntos do mundo. A substituição
de um soberano por outro após 20 anos, a substituição de uma dinastia por outra após 240 anos e a
substituição da religião por outra após 960 anos. Em vários meios do mundo árabe muçulmano, tornou-se
bastante comum o uso desses elementos para construir uma forma altamente desenvolvida de história do
mundo dividida em diferentes ciclos de vida profética. Esse foi o caso mais notável em ramos do Islã como
o ismaelismo, que estavam claramente à margem da ortodoxia convencional.

Voltando aos estudiosos da idade média latina, observamos quão profundamente eles foram inspirados
nisso e em muitos outros campos pelos predecessores no mundo muçulmano árabe.

Em particular, os séculos 12 e 13 na Europa mostraram uma tendência tão acentuada para previsões
astrológicas e especulações de todos os tipos que esses tempos foram frequentemente descritos como
outro grande período de conjunção. De fato, acreditar nesses ciclos e nos efeitos que eles deveriam
produzir na terra e em seus habitantes era a regra. E assim descobrimos que a doutrina das conjunções

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planetárias foi completamente endossada até pelos defensores do cristianismo, como Robert Grossteste,
Alberto, o Grande, e Roger Bacon.

Agora, é verdade que um alinhamento bastante notável dos planetas ocorreu durante esse período.

Isso ocorreu no dia 16 de setembro de 1186 EC, quando todos os planetas e até os nós da lua foram
encontrados juntos no signo de Libra.

O mais notável é que temos amplas evidências das literaturas latina, bizantina e árabe da época, relatando
que o fenômeno havia sido previsto com vários anos de antecedência por certos astrônomos e astrólogos
de Toledo.

Em uma carta enigmática ao papa, eles haviam alertado contra ventos devastadores e outras calamidades
resultantes da conjunção.

Como nenhuma dessas calamidades realmente ocorreu, não é de surpreender encontrar na literatura
posterior sobre esse assunto alguns comentários muito sarcásticos sobre o poder da astrologia.

Mas mais uma vez, foi das autoridades cristãs do período que uma reação contrária organizada a essa
atmosfera de pura especulação e superstição estava por vir. Em 7 de março de 1277, Etienne Tempier,
bispo de Paris, publicou uma lista de 219 artigos oficialmente condenados pela Igreja. O artigo seis desta
longa lista de doutrinas condenadas é conciso. Consiste em apenas 21 palavras latinas, que podem ser
traduzidas da seguinte forma. Que quando todos os corpos celestes voltarem ao mesmo ponto, que ocorre
a cada 36.000 anos, os mesmos efeitos agora em operação voltarão.

Mas foi preciso muito para a condenação de Tempier, na qual se pode observar a persistência da fusão
discutida acima, para conseguir impedir as pessoas de acreditarem nos efeitos do grande ano.

Por muitas gerações, a doutrina permaneceu extremamente popular em toda a Europa, apesar dos ataques
muito rigorosos de seus oponentes.

Um desses oponentes era Nicole Oresme.

Ele assumiu, em suas próprias palavras, atacar filósofos com filosofia e matemáticos com matemática e
demonstrar que a perfeita conjunção dos planetas era impossibilitada pela própria incomensurabilidade de
seus períodos de revolução.

E, no entanto, não foi antes do renascimento que a grande doutrina do ano deu seu último suspiro.

Olhando para trás nesta época de grandes descobertas, podemos assumir que a teoria morreu uma morte
natural.

Obviamente, já estava fora de moda em grande parte, já que não conseguia mais encontrar lugar nos novos
modelos heliocêntricos do universo.

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CREDITOS

Com o apoio do Secretário de Universidades e Pesquisa do Ministério da Economia e do Conhecimento do


Governo da Catalunha e da Vice-Reitoria de Políticas de Ensino e Idiomas da Universitat de Barcelona.

ORGANIZADORES
Gemma Pellissa Prades: coordination, idea and design of the course and the syllabus, logistics, institutional
relations, pedagogic advisor, revision of the contents of the MOOC and all related organisational and
promotional tasks.
Delfi I. Nieto-Isabel: linguistic and pedagogic advisor, host of the course, and other organisational and
promotional tasks.
Joana Palau i Mumany: logistics, technical assistance, institutional relations and other organizational tasks.
Marta Sancho: executive director (coordinator of Contrataedium).

INSTRUTORES
Godefroid de Callataÿ, Jordi Casals, Pau Castell, Theo Loinaz, Sébastien Moureau, Delfi I. Nieto-Isabel and
Blanca Villuendas.

COMITÊ CISNTÍFICO (2014-2015)


Blanca Garí (dir.), Carles Mancho, Charles Burnett, Lourdes Soriano, and Glòria Sabaté.
Community/web manager and customer service
Carlos López Arenillas

TÉCNICO EM AUDIO VISUAL


Eider Sanjuan

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ILUSTRAÇÃO
Laura de Castellet

ANIMAÇÃO
Clara de Ramon and Eider Sanjuan
© Gemma Pellissa Prades (coord.), Delfi I. Nieto-Isabel and Joana Palau Mumany

LICENÇA E DIREITOS AUTORAIS


Magic in the Middle Ages by Gemma Pellissa Prades (coord.), Delfi I. Nieto-Isabel and Joana Palau Mumany
is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0 International License.

COM A COLABORAÇÃO DAS SEGUINTES INSTITUIÇÕES


Activitats Institucionals i Protocol de la Universitat de Barcelona, AGAUR (with the support of the Secretary
for Universities and Research of the Ministry of Economy and Knowledge of the Government of Catalonia),
Biblioteca de Reserva de la Universitat de Barcelona, Castillo de los Templarios de Ponferrada, Catalunya
Ràdio, Departament d’Història Medieval, Paleografia i Diplomàtica de la Universitat de Barcelona, Facultat
de Filologia de la Universitat de Barcelona, Museu d’Història de Barcelona (MUHBA), Museu Marítim de
Barcelona, Santa Maria del Mar, Serveis Audiovisuals de la Universitat de Barcelona and Vicerectorat de
Política Docent de la Universitat de Barcelona.

VÍDEOS COMPLEMENTARES DA PRIMEIRA EDIÇÃO


Em relação à primeira edição de Magic in the Middle Ages, aqui está uma lista dos vídeos da primeira
edição que não estão mais disponíveis na plataforma do Coursera ("O mundo mágico da cultura celta" e "A
mágica dos objetos"):

1) Title: Welsh Legends and the Matter of Britain


Authors: Pellissa Prades, Gemma
http://hdl.handle.net/2445/101766

2) Title: Arthurian Propaganda


Authors: Pellissa Prades, Gemma
http://hdl.handle.net/2445/101772

3) Title: Chrétien de Troyes' Arturian Romances I


Authors: Pellissa Prades, Gemma
http://hdl.handle.net/2445/101777

4) Title: The Knight's Path


Authors: Pellissa Prades, Gemma

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http://hdl.handle.net/2445/101778

5) Title: The Mistery of the Grail


Authors: Pellissa Prades, Gemma
http://hdl.handle.net/2445/101779

6) Title: Ireland, a magical land from a continental perspective. Introduction to Tristan and Iseult
(optional)Authors: Sancho Fibla, Sergi & Pellissa Prades, Gemma
http://hdl.handle.net/2445/101780

7) Title: Irish women in Medieval Literature: Outsiders or Magicians?


Authors: Sancho Fibla, Sergi & Pellissa Prades, Gemma
http://hdl.handle.net/2445/101784

8) Title: Weekly video


Authors: Pellissa Prades, Gemma; Carrillo Rangel, David; Soriano, Lourdes
http://hdl.handle.net/2445/101786

9) Title: Religiosity, Symbolism and Magic in the Middle Ages


Authors: Álvarez da Silva, Noemi
http://hdl.handle.net/2445/101789

10) Title: Relics: Miraculous, liturgical amb magical objects


Authors: Álvarez da Silva, Noemi
http://hdl.handle.net/2445/101790

11) Title: Typologies and examples of reliquaris


Autors: Álvarez da Silva, Noemi
http://hdl.handle.net/2445/101791

12) Title: The power of gold: material and symbolic connotations


Authors: Álvarez da Silva, Noemi
http://hdl.handle.net/2445/101792

13) Title: Ivory: material and symbolic connotations


Authors: Álvarez da Silva, Noemi
http://hdl.handle.net/2445/101793

14) Title: The chalice of Doña Urraca and the Holy Grail
Authors: Álvarez da Silva, Noemi
http://hdl.handle.net/2445/101794

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VERSÃO ATUAL DISPONÍVEL EM


A versão deste curso que deu origem a este material está disponível em:
https://www.coursera.org/learn/magic-middle-ages
(As vídeo-aulas são apresentadas em inglês)

TRADUÇÃO E ORGANIZAÇÃO
Estematerial foi integralmente compilado, traduzido e organizado porDavid Jansen Pinheiro Pecis, Teólogo,
Psicólogo, Tarólogo e Hermetista. Dedica-se ao estudo das Ciências Ocultas, éIniciado na Ordem Rosacruz
(AMORC), Mestre Instalado e Grau 33 na Maçonaria (GOBRJ), Superior Incógnito Iniciador na Ordem
Martinista, Sacerdote de Bruxaria, Membro da Federação Pagã Internacional (PFI) e Reitor do Grande
Colegiado dos Magos.

Retribuições solidárias são uma forma de reconhecer o trabalho de tradução e organização desta obra, bem
como auxiliar na continuidade destas atividades.
Aqueles que sentirem o desejo de contribuir com qualquer quantia pode utilizar o link abaixo:

http://www.colegiadodosmagos.org.br/p/donativos.html

Que o Universo retribua abundantemente sua generosidade.

Sincera e Fraternalmente,

David J. P. Pecis
(SII, FR+C, M.’.I.’., G33)

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