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SALVADOR,
2018
JOÃO RICARDO DE AZEVEDO
SALVADOR,
2018
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________
Prof. Dr. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Universidade Federal da Bahia
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Xxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Universidade xxxxxxxxxx
____________________________________________________________
Prof. Dr. Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Universidade xxxxxxxxxxxx
Agradecimentos
Abstract
Figura 4: Rua Almirante Mourão de Sá, entre Paripe e Fazenda Coutos. Um dos pontos
de tensão por conta do tráfico..........................................................................................41
(Fonte: http://www.correio24horas.com.br. Foto: Victor Lahiri)
Sumário
Introdução
Construção do problema...................................................................................................9
Capítulo 1
1. Mundo vivido: campo de ações compartilhadas e interações......................................20
Capitulo 2
2.1 Favelas e violência: preconceitos e estereótipos...................................................... 26
2.2 Vulnerabilidade: jovens e contextos de violência.................................................... 30
Capítulo 3
3. Estudando significados de violência entre jovens de uma escola de ensino médio em
Paripe: área de estudo, aspectos metodológicos e trabalho de campo............................36
Capítulo 4
4. Significados da violência sob a perspectiva dos jovens selecionados.........................48
4.1 A situação biográfica.................................................................................................50
4.1.2 Jovens selecionados................................................................................................50
4.2 O sentido e a percepção da violência: na ótica dos entrevistados.............................55
4.3 Preconceito e estigmatização.....................................................................................57
4.4 Medo: o risco de morte..............................................................................................60
4.5 O tráfico na favela: as regras e o proceder................................................................63
Considerações finais........................................................................................................66
Referências bibliográficas...............................................................................................68
Fonte da ilustração:
https://www.google.com.br/search?q=desenhos+sobre+morte+de+jovens+em+periferia&newwindow=1
&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=X&sqi=2&ved=0ahUKEwj31sm2__zUAhVFG5AKHQ9PBwAQs
AQIIg&biw=1366&bih=662#imgdii=ROUUEa6bvm5BAM:&imgrc=Fdj2k4YSPyNbeM :
(Sugerido por um jovem entrevistado.)
(...) Às vezes eu acho,
Que todo preto como eu,
só que um terreno no mato,
só seu,
Sem luxo,
descalço,
nadar num riacho,
sem fome,
pegando as fruta no cacho.
(...)A vida é loka nego,
e nela eu to de passagem.
( Trecho do RAP dos Racionais Mc’s, Vida Loka – parte 2. Sugerido por ‘Nescau’
como: “ (...) A verdade que dá um frio na barriga”. Nescau, 20 anos, um entrevistado
voluntário selecionado nesta pesquisa.)
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Introdução
A construção do problema
A violência parece ter sido legitimada. Ganhando espaço no que se entende por
“vida cotidiana” tanto nas grandes cidades como em seu entorno. Havendo um
entendimento de que o recrudescimento das ações do Estado sobre os supostos autores
dos crimes, pode ser uma estratégia de superação e enfrentamento da questão deste
fenômeno em sociedade. Forjando-se nas cidades áreas de isolamento, de segregação e
um espaço público visto como zona de perigo. O poder público caminha numa direção
em que considera os crimes contra o patrimônio algo prioritário. Discriminam faixas
específicas da população, focando numa criminalidade presente em comunidades
populares, resultando em altos indicadores de mortes violentas e encarceramento
(BARATTA, 1999; YOUNG, 2002; SILVA SANCHEZ, 2002; SHECAIRA, 2009;
WACQUANT, 2005).
vitimava jovens por essa via. Para um número de 100 mil habitantes, estimava-se que a
Bahia contabilizava em 2012, uma vitimização juvenil por homicídio por armas de fogo
na faixa de 342,2%. Comparativamente, grandes capitais como Rio de Janeiro e São
Paulo, para este mesmo ano, os percentuais de vitimização juvenil eram
respectivamente 265,7% e 180,5% (Tabela 6.1. Óbitos, taxas - por 100 mil/hab. - e
vitimização Juvenil por AF nas UF. Brasil. 2012). Ainda em 2012, segundo o Mapa de
2015, na categoria raça / cor, as armas de fogo vitimaram 10.632 brancos e 28.946
negros, o que representa um percentual de 11,8% de óbitos para cada 100 mil brancos e
28,5% para cada 100 mil negros.
intersubjetividade. Teoria que faz uso do esforço interpretativo do sentido dado às ações
e entendimento do mundo da vida.
Este mundo da vida nada mais é do que o mundo cotidiano do sujeito, ‘o mundo
vivido’, um mundo compartilhado com outros, já constituído, organizado e significativo.
O mundo da vida a um só tempo como ponto de partida é o objeto de entendimento e
ação, é o mundo intersubjetivo que existia muito antes do nosso nascimento, vivenciado
e interpretado pelos nossos predecessores, como um mundo organizado que se dá à
nossa experiência e interpretação. No qual, toda interpretação se baseia num estoque de
experiências anteriores ao sujeito, experiências que nos foram transmitidas e que
funcionarão como um código de referência. O mundo da vida cotidiana é a cena e
também o objeto de nossas ações e interações, onde motivações de ordem prática
governam nossa atitude natural com relação ao mesmo, modificando nossas ações ou
sendo modificado por elas (SCHUTZ, 1979. p.72, 73).
nas estatísticas oficiais, e que são percebidas no cotidiano dos cidadãos, através do medo e
da sensação de insegurança.” Estas elevadas taxas de mortalidade juvenil por homicídio , em
especial de jovens negros, do sexo masculino e de bairros populares e favelas no Brasil,
são apontadas pelos dados ora citados e rotineiramente difundidos pela mídia, ora pela
literatura especializada que aprofunda sobre o tema, como o mais grave problema na
que jovens de periferia urbana são as principais vítimas. O que, por si só, já garantiriam
a relevância social do tema deste projeto de pesquisa.
De modo que, ao buscar nesta pesquisa me debruçar a conhecer as percepções do
fenômeno da violência pela própria juventude que é vulnerável a ela, e os modos
concretos como ela é vivida e experienciada no cotidiano de uma periferia da cidade de
Salvador, se espera alcançar o sentido atribuído a essa forma de violência.
O sentido e a percepção da violência vivida nas favelas por jovens de camadas
populares como uma realidade vivida em um contexto original, constituiria um salto
para a compreensão deste fenômeno, apartado de enquadramentos estatísticos para
compreendê-lo numa verdadeira conjuntura de vida social, experienciada e vivida nos
seus detalhes mais profundos. Explorando respostas de como estes processos complexos
de violência os afetam e quais os sentidos atribuídos por eles no dia a dia de suas vidas
na favela.
Diante da complexa dimensão do problema da mortalidade não-natural de jovens
pobres e negros por eventos de confronto violento, é esperado que os dados obtidos
sejam capazes de apontar vieses relevantes sobre o fenômeno, de forma que se possa
contribuir para o entendimento do efeito no mundo da vida de outros jovens que
convivem com essa realidade de modo contínuo e crescente, sem estar vinculado às
práticas ilícitas. Permitindo que dúvidas e inquietações, sejam feitas e postas ao
escrutínio da sociedade, como uma ponte que liga prenoções à realidade vivenciada.
Nesse contexto, abordar a percepção juvenil sobre a violência vivenciada no
cotidiano das favelas, constitui um ‘olhar de dentro’ conforme Magnani (2002) em “De
perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana.” Técnica na pesquisa, que parte
dos arranjos dos próprios atores sociais no campo, capaz de recuperar experiências e
identificar visões de mundo e sociedade no âmbito dos complexos espaços sociais
contemporâneos e suas dinâmicas. Ressaltando a importância de se ouvir o individuo
jovem na consolidação de ideias que possam servir como bases de sustentação a
mudanças nas trajetórias de outros jovens enquanto possíveis vítimas potenciais.
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Objetivo geral:
Objetivos específicos:
Hipótese:
Capítulo 1
Giddens reforça a ideia da necessidade de uma sociologia que compreenda o sentido das
ações e as interprete como atores competentes dentro de contextos específicos. Por isso,
e do mesmo modo, o cientista social para captar a realidade social de um grupo
específico precisa ir aos objetos do pensamento construídos por estes no seu mundo
social. Pela utilização do escopo teórico de Bergman e Luckman (1998), se observa o
vínculo teórico existente entre o processo sociológico da construção da realidade vivida,
onde o universo simbólico dotado de conhecimento é compartilhado pelo grupo e abarca
os valores constitutivos de uma dada ordem em constante construção, em que a
linguagem é um dos elementos que marca coordenadas desta sociedade e a preenche de
objetos dotados de significação.
são produtos humanos, cuja existência tem por base a vida dos indivíduos
concretos”(...). (Berger e Luckmann, 1998, p.172)
Este mundo vivenciado porta estigmas múltiplos, atores e ação que consistem no
mundo cotidiano do sujeito, constituindo o cenário de vida e campo específico de
distintos processos de ações compartilhadas e interações. Trata-se do mundo que age
sobre o ator e sobre seus semelhantes, cuja realidade é vista como atitude natural.
Nestes termos, um motivo dito pragmático governa a atitude natural neste mundo, que
tanto pode ser modificado quanto pode modificar-se pelas nossas ações. Por vida
cotidiana, Berger e Luckmann a definem como:
fundo consensual tomado como realidade pelos membros de um grupo; um mundo que
se origina no pensamento e na ação dos homens comuns em um contexto sociolocal,
sendo afirmado por eles como o mundo real. O fenômeno da socialização, constrói um
conjunto de regras compartilhadas, que são interpretadas nos momentos interacionais
pelos atores, através do cotidiano, em um processo de construção contínuo, legitimando
uma dada ordem institucional, estabelecendo formas de agir que se consolidam nas
interações simples. Este processo aponta para a necessidade de se considerar as
especificidades de um determinado contexto social na sua totalidade, considerando sua
construção humana para melhor compreendê-la. Ou seja, é preciso levar em
consideração o contexto desses atores e a visão que os mesmos têm de si em relação à
sociedade em geral para compreender sua maneira de conceber o mundo.
Mahfound & Massine (2008), ao trabalhar com a contribuição da fenomenologia
husserliana na defesa da pessoa como sujeito da experiência, asseguram que por
experiência, toda intuição individual dada de forma original e todas as intuições
paralelas presentificadas não deterministas, se definem pelo interesse dos homens,
enquanto sujeitos em suas ações e paixões, voltados para o mundo, em interação,
pertencente a um mundo circunstante do qual se tem consciência. Falam de uma
humanidade concreta, que parte da realidade da vida concreta e das suas formas
históricas. A realidade presente no mundo da vida cotidiana é o que se dá à nossa
experiência e interpretação, através de um estoque de experiências anteriores
transmitidas por gerações e adquiridas pela socialização, funcionando como o nosso
código referencial, envolvendo a construção cognitiva de objetos de pensamento.
Estando enraizada na atividade seletiva e interpretativa da mente humana nos mais
diferentes contextos sociais e nos sistemas de relações existentes nestas, cuja ausência
ou debilidade de mecanismos de regulação e controle de uma dada ordem, criariam o
espaço propício para o surgimento da violência. Nesta linha de raciocínio, é importante
caminhar tomando a categoria “violência”, como ato intencional dependente do “eu”,
sujeito, que o percebe e apreende a partir de sua complexidade e totalidade. Trataria-se
desse tender do “eu” na direção do objeto intencional. Onde sobre a subjetividade,
salienta Husserl:
CAPÍTULO 2
vivemos, são estes jovens as vítimas deste processo de inserção mínima, problema
decorrente das exigências de capacitação profissional que o mercado brasileiro exige
para a inserção no mercado de trabalho.
De onde destaca Ruotti et al. (2014)3, no que concerne à importância de
compreender a juventude como uma fase “ em construção”, como indivíduos que
precisam de repertórios sociais e simbólicos consolidados, assim como redes de
proteção diante dos muitos riscos que se apresentam neste momento específico da vida.
A sociedade precisa estar atenta a todo este processo inicial de inserção social, para
proteger e dar suporte, assim como para referendar condutas na construção de seus
percursos. Para esse segmento geracional, sentimentos de indignidade pessoal em etapas
como estas, podem assumir proporções extremamente difíceis de compreender e se
tornar motivo de desistência. Afetando as oportunidades de forma negativa nos
diferentes círculos sociais em que se inserem, podendo funcionar como elementos
motivacionais para ações extremadas, tendo em alguns casos desfechos fatídicos.
Trazendo para esta discussão o caso dos muitos jovens das periferias dos grandes
centros metropolitanos do país, em sua maioria indivíduos portadores de baixa
escolaridade, negros, sem nenhum tipo de habilidade técnica e total desconhecedor dos
muitos processos burocráticos que constituem a etapa mais difícil à sua inserção mínima
na vida em sociedade, à obtenção da cidadania propriamente dita; é facilmente dedutível
que são ínfimas as possibilidades de recrutamento destes elementos, assim como a sua
inserção no mercado de trabalho. Esse processo repleto de etapas e exigências os
encurralam, podendo para alguns, ser o estopim para se pensar em outras alternativas
de vida, e onde a presença de atalhos são sobremaneira mais atrativos. Como pontua
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3
RUOTTI et al. Em sua pesquisa “ A vulnerabilidade dos jovens à morte violenta: um estudo de caso no
contexto dos ‘Crimes de Maio’”. Este estudo aborda a história de um jovem morador de um bairro
periférico de São Paulo sumariamente executado no contexto dos “Crimes de Maio” ocorridos em 2006.
Utilizam-se do arcabouço conceitual da vulnerabilidade como forma de compreender os diferentes
elementos envolvidos neste modo de vitimização. Vulnerabilidade que segundo estes autores é um: “
Conceito que proporciona uma perspectiva ampla e dinâmica que considera a suscetibilidade a um
determinado evento enquanto dependente não só de aspectos individuais, mas também relacionais e con-
textuais(...).” Revista Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.3, p.733-748, 2014.
33
Segundo estudos de Misse (2008; 2010), por conta destes processos mais gerais
de estigmatização social, a acumulação de desvantagens sociais e econômicas
associados a um movimento de incriminação preventiva de certos padrões sociais,
fazem de crianças e adolescentes de bairros periféricos, potenciais vítimas ao escrutínio
das ações policiais que incluem desde a incriminação delituosa ao seu extremo, que
seria a eliminação definitiva da sociedade numa lógica de suposição criminal. Não se
distinguindo entre as categorias trabalhador e bandido, considerando arbitrariamente
contextos e sinais diacríticos, como marcadores absolutos para categorias ‘marginais’
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4
Ranyella de Siqueira e Hélio Cardoso trabalham com o conceito de estigma como processo social. Em
seu artigo buscaram através de uma revisão bibliográfica discutir o conceito de estigma para Goffman e
para alguns entre tantos autores que desenvolveram suas ideias a partir dele. (Imagonautas 2 (1) / 2011)
35
CAPÍTULO 3
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5 É válido ressaltar que a abordagem da violência gestada em favelas e o sentido e percepção atribuído
ao fenômeno por jovens constitui o tema de minha pesquisa no Mestrado. Momento em que a
investigação tende a aprofundar-se com maior número de informantes e desenvolvimento teórico
ampliado.
37
violência no espaço público do bairro. As ruas citadas são linhas proibidas à circulação
de jovens não pertencentes a esses espaços, ou que participam de gangs de outros
grupos vizinhos, sob a ameaça, caso as circulem, de sua notória morte.
A observação participativa e uso de técnicas de teor etnográficos foram vitais ao
interesse nesta linha de pesquisa, exatamente pela possibilidade que propicia de captar
as peculiaridades do cotidiano do bairro, como por exemplo o de estarmos atentos e
perceber a existência de certos ‘acordos tácitos’ que se observam entre os moradores
destas áreas, de por onde se pode, deve, ou não circular. Idosos e adultos não correm o
mesmo tipo de risco que os mais jovens. Mas os jovens, principalmente aqueles do sexo
masculino, precisam ser muito mais cautelosos no que concerne a saída de seus limites
territoriais. Esse aspecto foi pontual. “Envolvidos” ou “não envolvidos”, a sentença é
sempre certa. E a pesquisa se desenvolveu baixo esta linha de argumentação: afinal,
qual a percepção juvenil de violência que subjaz neste conjunto de normas e regras
implícitas na vida cotidiana do bairro?
O material coletado nesta pesquisa de campo, foi resultante de um ano de
trabalho de Campo em uma escola de ensino médio e da observação direta da vida dos
moradores do bairro.
Nas páginas subsequentes disponibilizo um mapa e fotografias com o propósito
de desenvolver no leitor que desconhece o campo, uma breve ideia de pontos que foram
e serão tratados ao longo do trabalho de pesquisa. Como o mapa de Paripe, Rua Escola
de Menor, entrada principal para favela “Bate-coração”, divisa com Calombão situado
na parte alta da respectiva rua, na parte baixa acessos a Tubarão e Cocisa e saída para
Avenida Suburbana. O Centro de Abastecimento de Paripe, principal centro de
abastecimento do bairro, situado no final da Escola de Menor e principal centro
comercial do entorno. Finalizando com a Rua Almirante Mourão de Sá, situada entre
Paripe e Fazenda Coutos. Conhecido popularmente como ‘faixa de gaza’, é um dos
pontos de tensão por conta do tráfico entre as duas favelas. Todas estas vias apresentam
fluxo intenso diariamente inclusive aos finais de semana, além de importante comércio
informal.
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Figura 2: Paripe- Rua Escola de Menor, entrada principal para favela “Bate-
coração”, cruzamento com a rua da Bélgica.
Fonte: Foto: Henrique Mendes/G1 - Atualizado em 25/07/2016.
fato, em todo e qualquer relato deles, era o sentido, a categoria ‘violência’ desprendida
de artefatos teóricos e construída por aqueles sujeitos a partir de suas histórias
biográficas.
Durante a fala dos entrevistados quando os mesmos identificavam um fato
específico e o vinculavam à ideia de violência, era nesta direção que eu seguia e
continuava conduzindo o resto da entrevista. Dados presentes em algumas entrevistas
não apareciam em outras. Haviam jovens mais entusiasmados, outros mais reticentes.
Entretanto, suas histórias e experiências de vida fluíam sempre de modo muito rico em
detalhes, e sobre o processo natural de socialização por eles vividos, desenhando
estruturas constitutivas desse grupo social quanto as suas preocupações e dilemas de se
viver numa sociedade dividida e preconceituosa. E onde questões como a cor da pele,
poder econômico e gênero ainda são dimensões capitais para se pensar em quem tem
seus direitos garantidos e os que não os tem. Aspectos relativos ao sentido e percepção
do que é a violência vivenciada no cotidiano de uma favela em Salvador, serão aqui
analisadas segundo a percepção de dois jovens, abrangendo a vivência dentro e fora da
favela, o sentido de sua apreensão e entendimento e o modo como estes dois
exemplares narrativos os expressaram nas suas falas durante as entrevistas.
A duração do tempo em que se deram as entrevistas, variavam de minutos a
horas em alguns casos onde o diálogo se estendia em relatos ricos em detalhes da vida
do entrevistado, mesclando a espontaneidade de emoções vivenciadas que emergiam
nas conversas e que parecia ao meu olhar atento, algo como se aquele jovem estivesse
encontrado um momento oportuno para verbalizar seus descontentamentos e revoltas
com o que vivia no dia a dia. Partindo das minhas transcrições, procurei sistematizar o
material coletado numa gradação que pudesse organizá-lo, pontuando aspectos
elencados por estes atores quanto ao sentido e percepção do que consideram violência
em seus contextos de vida social, em atendimento ao objetivo deste trabalho de
pesquisa.
Tive a preocupação de realizar as entrevistas de maneira livre, deixando claro ao
entrevistado que meu interesse era captar o sentido dado por aqueles jovens quanto a
sua percepção de violência vivenciada em seus cotidianos, sem lançar pressupostos
teóricos prévios de violência seja ela institucional, urbana ou social. Queria ouvir, sentir
na corporeidade, na espontaneidade destes atores sociais o que emergia de real e de
contexto de vida vivida. Inicialmente solicitei que falassem de suas vidas na favela, a
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família, o estar na favela, o lado de fora da favela, a vida social, o divertimento, para
enfim ouvir destes o que era a violência neste campo amplo de vida. Sem amarras que
pudessem enquadrar e sentir a liberdade de falar das suas vidas, e fui deixando que a
entrevista fluísse como um momento de catarse, de cumplicidade, de confiança. A
maior parte dos jovens entrevistados confidenciaram o uso de drogas ilícitas em algum
momento de suas vidas, outros relataram o seu uso contínuo ainda hoje.
As entrevistas, reitero, foram livres e descontraídas, conduzidas com o máximo
de liberdade e respeito às limitações de cada um, considerando sobretudo a temática
abordada, possíveis implicações para o local de realização das entrevistas. E desta
forma, espontaneidade e até momentos de descontração deram estímulo para que as
realidades vivenciadas no cotidiano da vida daqueles jovens fosses partilhadas com
motivação em todo o seu curso 7.
O trabalho foi lento, pois inicialmente tive o cuidado de observar o
comportamento de alunos em sala de aula, nos intervalos, nos processos interativos
dentro do espaço escolar, sempre acompanhado de um professor. Conversei com
professores e funcionários da escola sobre a percepção do que seria a dinâmica da
comunidade, sobre os detalhes mais sutis da realidade de vida trazida por aqueles alunos
para aquele espaço. Fiquei uns dois meses nessa observação e acompanhamento das
aulas até iniciar de fato as entrevistas. A direção em nenhum momento resistiu ao
propósito da pesquisa, não me permitindo apenas que as entrevistas fossem gravadas
por uma questão de segurança dos entrevistados. Este cuidado por parte da escola
residia exatamente no fato da mesma estar localizada numa comunidade dotada de
tráfico de drogas e também de que a temática abordada nas entrevistas pudessem vir a
__________________________
7
Em “Poder e ética na pesquisa social”, da Biodiversidade/Artigos, Guita Grin Debert, argumenta
segundo um trecho de Oracy Nogueira, que no presente a necessidade de se redefinir os procedimentos
éticos, haja vista que os sujeitos tradicionalmente estudados por suas diferentes disciplinas passam por
mudanças radicais, e em que novas agendas de pesquisa desafiam as fronteiras disciplinares.Devendo o
cientista social como alguém que ocupa não apenas uma posição de saber, mas é também detentor de
status, prestígio e poder, num mundo em que os setores estudados são desprivilegiados, vítimas de formas
de opressão e dominação, minorias em situação de vulnerabilidade. Cuidar para que os interesses dos
grupos pesquisados sejam precedentes aos interesses da pesquisa. Sendo temas centrais da discussão o
caráter do consentimento (formal ou informal), o tipo de informação que o pesquisado deve obter da
pesquisa de que participa, a capacidade legal e intelectual dos entrevistados de entender o trabalho
proposto e as formas de coerção que podem estar envolvidas nessa relação. Avaliam-se, também, os
riscos envolvidos na publicação dos resultados, porque as conclusões destes pesquisadores jamais
poderão constranger, humilhar ou trazer prejuízos para as populações estudadas. (Revista Cienc.
Cult. vol.55 no.3 São Paulo July/Sept. 2003).
(acessado em http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v55n3/a19v55n3.pdf)
46
CAPÍTULO 4
Neste capítulo tenho como objetivo analisar trechos selecionados dos relatos dos
dois jovens entrevistados motivados em explicitar o sentido e a percepção atribuídos ao
fenômeno da violência por estes construídos em seus espaços sociais. Neste intento,
procurei observar o modo como construíam suas narrativas na tentativa de dar conta do
fenômeno considerando o contexto social em que foram socializados, tornando-o
inteligível segundo um olhar sociológico. Outrossim, participo que nesta análise não
tenho a pretensão de sistematizar ou trazer uma conclusão objetiva do fenômeno da
violência vivida e percebida nas periferias da cidade de Salvador como um todo
generalizável, mas sim o interesse nesta questão encontra-se no fato de que a juventude
pobre e de maioria negra das favelas e bairros periféricos são rotulados de perigosos e
protagonistas no processo de delinquência. A centralidade dos discursos do mundo do
crime, dos processos de criminalização da pobreza nos territórios de periferias urbanas,
a estigmatização e preconceito por parte da sociedade como um todo destes locais e tipo
de jovens, figuraram e estiveram amplamente nos discursos dos entrevistados. Isso
aponta serem a juventude pobre das favelas um dos principais objetos de ações policiais
e da violência oficial, realizada contra os mais pobres, com certo apoio e anuência da
sociedade e da mídia. Jovens pobres e negros de periferias urbanas também são vistos
como capazes de agir com frieza e extrema crueldade, os mais associados ou vinculados
ao tráfico, a práticas de roubo e outras atividades criminosas. Meu objetivo, como dito,
nesta monografia, foi o de buscar capturar e analisar nas entrevistas o modo como estes
jovens elaboram a questão da violência vivenciada no dia a dia em seus contextos
sociais.
presença do crime que gera a insegurança da cidade em todo o seu entorno. Uma primeira e
importante ideia que foi encontrada nos relatos e passada por parte destes dois entrevistados
selecionados é que eles são vítimas da violência e triplamente condenados: “primeiro
porque são pretos e pobres, segundo porque moram numa favela - um local feio, sujo e que
reúne o que não presta na cidade – e por último, porque são eles, os jovens, pobres, negros e
favelados, os principais envolvidos nas práticas de violência que tornam a cidade insegura
e perigosa à sociedade.”
Dos dois jovens selecionados para servir de objeto da análise quanto à questão do
sentido e percepção de violência vivenciada em seus universos sociais de interação,
ambos falaram sobre o uso ostensivo da força por parte da polícia militar, e o
desrespeito destes policiais para com toda a comunidade de seus moradores, pelo seu
preconceito e principalmente exercício de violências desmedidas. Quando tratam da
presença do tráfico na favela, admitem da mesma forma existir um excesso de uso da
força física contra muitos de seus moradores, no entanto, consideram-na com um devido
ou maior grau de legitimidade, quando comparada à dos policiais, pautando-se num agir
que denota algo de uma ‘dimensão moral’ que se consolidou apriori entre os moradores
e a vida na favela. Como um código de conduta que é conhecido e torna-se uma regra
implícita entre os moradores. Uma estratégia tolerável de se viver na favela. Norteando
as ações das pessoas naquele espaço de interação, e o menor vacilo pode representar
uma forma de punição sobre o infrator, sem que se possa fazer nada para impedí-la.
Visto constituir-se no que Zilli descreve como a ‘lei da favela’. O que seria um conjunto
de crenças, valores e práticas que denotaria uma orientação normativa através do qual
jovens envolvidos e a própria comunidade operam interna e socialmente. A vida na
favela, seja no Bate-coração, Calombão, Tubarão ou Estrada da Cocisa, seguem regras
de convívio necessárias para que haja uma forma de equilíbrio tolerável entre os que
nela moram sejam vinculados ao tráfico ou não. O tráfico existe, o individuo
trabalhador também, a relação que se estabelece entre diferentes grupos tende na
maioria das vezes a buscar este equilíbrio, respeitando a lei do mais forte: no caso,
aquelas que são impostas pelo tráfico, e que pode mudar a depender de que grupos
comandam o território, se estão em guerra com outros ou tem hegemonia, etc...
50
A situação biográfica
Neste tópico serão abordados em breves linhas os perfis dos entrevistados com
vistas a apresentar ao leitor pessoas reais em seus contextos sociais interativos: no caso,
sua vida na favela. Da socialização que se constrói pelas experiências em seus campos
subjetivos e particulares, dos sentidos que dão forma ao seus ‘estoques de
conhecimentos’ construídos em suas vidas diárias. Um mundo compartilhado,
intersubjetivo e de permanente deciframento das ações dos sujeitos. Neste sentido,
alude-se à importância de compreender os indivíduos dentro de seu mundo social como
um ator capacitado a apresentá-lo na essência enquanto unidade de sentido possível de
entendimento.
Jovens selecionados:
1) Jamile
20 anos, negra, estudante do 1º ano noturno, mora no Calombão, não tem filhos,
mora com a família e com namorado [disse namorado, pois segundo a mesma ‘marido
é quando casa’] . Família vive do trabalho do pai que é porteiro em edifício no Campo
Grande, mãe do lar, namorado trabalha de cobrador de Van que circula da Ilha de São
João até Paripe. Só tem mais um irmão de 17 anos. Segundo o seu relato, o namorado
já usou maconha, mas atualmente só fuma cigarro e ambos bebem nas festas de largo
nos finais de semana. A entrevistada só estuda. Perguntada sobre sua visão de violência,
responde que “tá tudo violento”. E Prossegue; “a gente mora em invasão, favela, esses
nomes todos que as pessoas gostam de dar porque aqui moram muitos pobres e tem
tráfico; a gente sabe disso. E as pessoas aqui não se tratam assim, mas quando a
51
gente sai daqui a gente vê a diferença nos olhos dos outros, principalmente quando os
meninos usam bonés, tatuagem, bermudas da Seaway, Mahalo. Geralmente a gente
vai para praia da Ribeira final de semana e eu já vi muitas vezes os policiais dando
dura nos ônibus quando a gente volta da praia e parece que eles escolhem os meninos
para dar baculejo [revista]. A gente sabe que é por causa das roupas e porque são
negros. Um monte de coisa que a gente usa e que para polícia e para os barão é coisa
de ladrão, e nem sempre é. Até eu quando tinha 16 anos, eu já ia para ribeira, ficava
no Cantagalo e tomei vários baculejos de policiais femininas e elas são tudo tiradas,
trata a gente como lixo. Uma quase me dá um tapa na cara porque achava que eu
tinha alguma coisa na bermuda, e não achou nada em ninguém e ficou de cara feia
quando não acharam. Minha mãe sempre fala para levar documento e não andar de
bonde [em grupos grandes], mas qual é a graça de ir sozinho pra praia? – a gente é
favela, as pessoas já olham atravessado. Não adianta. A gente não nasceu em outro
lugar. Mas a praia é publica e nada a ver achar que porque é favelado tem que ser
ladrão. A maioria dos nossos amigos aqui já tem filho, tem família; estudar não vou
mentir, é chato, é melhor botar uma guia [ponto de comercio informal] de qualquer
coisa e ganhar o nosso aqui mesmo onde a gente mora, melhor que ir para outro lugar
e passar por isso. A violência para mim vem das pessoas acharem que em favela só tem
ladrão. Ladrão tem em tudo que é lugar e nem sempre vem de favela, na política tá
cheio - ri. Se o cara não tem de onde tirar dinheiro, não tem emprego, não tem
comida, tem filho, o que a pessoa vai fazer? – em casa fica aquele aperto de mente, e
ai? – olha vários amigos já foram trabalhar na boca, outros vendem amendoim,
queijo, salgado com suco, mas às vezes dá muito pouco e o cara fica na
bruxa[estressado] e acaba fazendo uma besteira. Recente agora, um amigo nosso que
vendia queijo na Ribeira, ele tem um filhinho com uma menina daqui mesmo, eu não
sei dizer o que deu na cabeça dele, ele era de boa, mas foi roubar no ônibus os
policiais encurralaram, ele correu e parou numa rua sem saída em Plataforma.
Mataram ele na covardia, me diz como um cara só e um monte de policia: precisava
matar ele? – podia prender. Ele estava só o outro que tava conseguiu fugir, ele ficou
sozinho. Isso [tudo] eu falo que é violência. Ele estava errado, tava roubando, mas ele
trabalhava, vendia queijo, você podia ver ele todo sábado e domingo indo para São
Joaquim comprar queijo. Acho que foi ver o filho sem nada para dar, acho que voltou
pra cá cheirou com os meninos e toparam fazer uma “correria” [assim comentaram
52
aqui – soube pela fala de outras pessoas da favela], que fez ele tentar essa onda. Ele
não era um menino que vivia nisso, eu acho que na primeira ele não teve sorte. Agora
ele morreu e a menina dele vai ter que se virar ou arrumar outro cara. E o filho vai ser
mais um criado aqui sem pai. A gente vê isso todo dia, e não é bom de ver. Às vezes dá
um frio na barriga. Eu acho que a violência está ai. A favela também tem o tráfico, eles
tão sempre em briga com ‘os alemão’, mas os moradores não entram em nada, agora a
gente vai tentar emprego, tem que ter cursinho, tem que ter um monte de coisa às vezes
para limpar chão[entrevistada refere-se às exigências do mercado de trabalho]. A
maioria dos meus amigos já tem filho, o cara fica neurótico com tudo isso. Eu acho que
ninguém entende a vida aqui dentro da favela. A gente vive como todo mundo, as casas
não são bonitas, falta um monte de coisa, mas se você perguntar quem gosta daqui,
quase todo mundo vai dizer que gosta. A gente está acostumado, a gente tem família,
amigos, muita resenha[momentos de descontração vividos no dia a dia dos moradores
em que se fala de assuntos diversos, inclusive sobre a vida na própria favela] . A
violência é a causa da morte de um monte de gente, a maioria muito novo, mas eu
acho que o problema é que está difícil para todo mundo, eu às vezes me pergunto, pra
que estudar tanto? – minhas amigas pararam de estudar e tão fazendo bico. Eu to
estudando e não achei nada, se meu namorado não fizesse os serviços dele e eu não
tivesse o apoio da minha família e tivesse que pagar aluguel a gente tava muito
enrolado. Existe violência sim, mas a gente daqui não somos o motivo do mundo está
como está, a gente é mal vista, e por isso a polícia desce o pau e mata sem miséria.
Mas no fundo eu acho, que a gente paga por ser o que somos. Essa é minha opinião.”
2) Nescau
19 anos, negro, não tem religião, mora com a mãe e mais quatro irmãos todos
negros [entrevistado coloca a questão da cor da pele nestes termos]. Dois são maiores.
Não conheceu o pai. Não trabalha, a mãe é doméstica na Barra, um irmão trabalha de
borracheiro na Escola de Menor [ladeira que separa Paripe e Calombão] e outro é
barbeiro na subida da mesma ladeira. O entrevistado só estuda e admite o uso de drogas
ilícitas desde os 14 anos, não tem filhos e namora uma ‘piveta’[menina segundo as
palavras do entrevistado] do Bate-coração.
Relata que numa ocasião tomou as dores de um amigo próximo numa briga com
outro menino do morro na mesma comunidade. O outro jovem envolvido no embate foi
53
até a boca e relatou que apanhou dos dois num ato de covardia. O pessoal da “boca”
puniu um dos dois ao ponto de fraturar gravemente a mandíbula do outro menor, que
ficou um mês internado porque teve que colocar uma prótese metálica para ligamento
da fratura. A mãe não pode dar queixa, por saber que representaria sua expulsão da
favela, ou quiçá, coisa pior. Como relatou um vizinho à época durante o ocorrido: “O
problema da favela, se resolve na favela”. De modo que sua mãe arcou com todas as
despesas com antibióticos e idas e vindas ao Hospital Caribé. A visão de violência
relatada pelo jovem justifica como legítima a ação dos homens da “boca”, que julgou
covardia dois contra um, e espancaram o amigo do entrevistado para que servisse de
exemplo. Perguntei sobre essa percepção, e o mesmo disse que a maioria das pessoas
na favela recorrem à boca para problemas de agressão, furtos, conflitos domésticos.
E nessa via de resolução de conflitos, tornou-se legítima a ação dos que “trabalham”
na boca sobre a questão da ordem na favela. O jovem agredido não ficou com sequela
visível, mas apresenta uma prótese metálica na mandíbula inferior. O outro, hoje
trabalha na “boca” e os antigos “soldados” da boca foram mortos em uma incursão
policial. É dito pelo entrevistado que os grupos que dominam os pontos de venda de
drogas são frequentemente substituídos, “tem sempre pivete novo”. Ou porque alguns
resolvem sair após testemunhar muitas mortes prematuras em confronto seja com
rivais do tráfico (menos frequente de acontecer) ou com a polícia, outros morrem
(maioria) e alguns são expulsos das comunidades por contrariar algumas regras do
tráfico. Como por exemplo nunca roubar na área, ou ser apontado como estuprador,
vender droga de outro grupo rival na mesma favela dentre outras atitudes vistas como
“infrações”. Do ponto de vista deste entrevistado, “a violência está mais ligada ao fato
de que as pessoas não entendem a favela”. Ele se diz usuário de maconha, a família é
conhecedora, e mais dois de seus irmãos a utilizam. O mesmo se vê como exemplo
quando diz que “sou usuário, mas não deixei de estudar, embora não goste. Vivo na
favela, amo a favela e nunca roubei. Uso tatuagem, larguei várias no corpo, mas não
sou bandido. Entendeu? Acho que é onda morar na favela para quem não é de lá, para
quem não tem nada a ver. A polícia tem um jeito que pra eles é o ladrão que eu não
acho que bate com todos os pivetes que eu conheço. Eu tenho muitos amigos como eu
que são de boa. Nunca se envolveram e não se envolvem. Já tive muitos que morreram
por que a polícia matou que eram de boa. A gente fica sem dormir com medo,
qualquer zoada já pensa que são os policia entrando. Eu não durmo com luz
54
apagada, e tem um monte aqui que é assim também. A gente nunca sabe. Policia
também cheira, vai que esses caras entram na onda e porque não vai com a cara do
pivete, mata. E ai? – Tá feito. Eu e todo mundo já viu isso aqui. Dá ultima vez
queimamos pneu na estrada velha, durou ate a tarde. Os moradores da vila da
Marinha não puderam entrar, veio jornal, repórter. Morre muito envolvido, uns
pivete que são sinistro mesmo, que gosta de encurralar, que toca terror, mas tem
muito que não entra em nada e morre de graça. Como é que a polícia vai saber se não
mora aqui dentro? – isso é violência entendeu? . A gente é tudo preto mesmo, pobre,
não tem barão na favela, só o patrão, mas ele não vive aqui dentro, ele anda pelos
camarotes, nas baladas. Policia não sabe abordar favelado, eles já chegam tocando
terror. Revistar é normal, mas pra que dar murro, tapa na cara? – isso revolta, às vezes
o policial é preto igual a gente e parece que é melhor. Não adianta falar, eu acho que
isso nunca vai mudar nada, se for matar porque a gente é preto vai matar a favela
toda. Porque tem tatuagem, porque usa maconha? – vai a favela toda. Violência é
isso. É como se aqueles caras não entendessem nada daqui e tivesse que mostrar
serviço. Isso não vai acabar. Porque favelado não pode nunca estar feliz que tem alguma
coisa errada. Não to falando que roubar é certo. Quem me deu meu celular foi minha
mãe. Aqui aparece um monte para vender, eu to ligado que a maioria é roubado, mas
prende o cara. Agora os homem saem matando. Pra mim nada nunca vai mudar, tem um
monte de coisa que eu não entendo, que é sobre os barão da política, da justiça, mas pra
mim violência é assim e eu quero ficar na minha, no meu canto e se tivesse uma casa no
interior eu me saia.
Tabela-01 “Nescau”
Declaração significativa Significado formulado Tema
“A violência está mais ligada favela: lócus da violência. Estigmatização territorial
ao fato de que as pessoas não
entendem a favela.”
(...)”Eu tenho muitos amigos O medo de ser confundido com o Medo: o risco de morte
como eu que são de boa. Nunca
envolvido. A vida sobre os trilhos.
se envolveram e não se
envolvem. Já tive muitos que
morreram por que a polícia
matou que eram de boa. A
gente fica sem dormir com
medo, qualquer zoada já pensa
que são os policia entrando. Eu
não durmo com luz apagada, e
tem um monte aqui que é assim
também. A gente nunca sabe.”
Tabela-02 “Jamile”
Declaração significativa Significado formulado Tema
“A gente mora em invasão, favela, Pobreza e favela, a encarnação Estigmatização territorial
esses nomes todos que as pessoas
do mal
gostam de dar porque aqui moram
muitos pobres e tem tráfico;
“Existe violência sim, mas a gente O ser pobre e favelado: o A sujeição criminal
daqui não somos o motivo do mundo
agente da violência no
está como está, a gente é mal vista, e
por isso a polícia desce o pau e mata determinismo social
sem miséria. Mas no fundo eu acho,
contemporâneo.
que a gente paga por ser o que somos.
Essa é minha opinião.”
A questão apontada pelos jovens entrevistados, sempre trazem nas suas falas um
sentimento de revolta e descontentamento com a polarização observada na sociedade
56
citado por Ruotti et al (2014), encontra nas palavras de Jamile “a gente paga por ser o
que somos.”, um sentido que corrobora a justificativa para uma sujeição criminal
incontornável que dispensa discussões e buscam um consenso quanto à sua
aplicabilidade ou não a determinado indivíduo. Entretanto, quando checamos a
realidade presente na vida destas periferias o que encontramos é a constatação da
acusação social que vem ‘de fora’, punindo o sujeito num contexto onde o que
predomina é a incriminação do mesmo, resultante de uma construção social que
desconhece e o condena previamente.
_______________________
8
(Schillagi, 2009, citado por Ruotti et al, em seu estudo de caso sobre jovens, vulnerabilidade e morte
violenta durante os ‘crimes de maio em São Paulo) - O processo de seleção e diferenciação, constituem-
se no discurso público em dois tipos de vítimas: as “inocentes” e as “duvidosas” (Schillagi, 2009).
Qualidades estão relacionadas à visibilidade e à aceitação social daqueles que sofrem a agressão, sendo
fundamental para a atribuição do estatuto de vítima o pertencimento ou não a uma comunidade moral que
é identificada pelo bom proceder daqueles que a constituem.( SCHILLAGI, C. La disputa de las víctimas:
(in) seguridad, reclamos al Estado y actuación pública de organizaciones y familiares de víctimas de
delitos en la Argentina democrática. 2009. Trabalho apresentado ao Congress of the Latin American
Studies Association, Rio de Janeiro, 2009. Disponível em: . Acesso em: 1 fev. 2012.)
58
de marginalidade.
“Se for matar porque a gente é preto vai [ter que] matar a favela toda.”
“A gente sabe que é por causa das roupas e porque são negros.”(Jamile)
Esses dois trechos narrativos aqui trazidos apontam bem a consciência e visão
que estes jovens têm e como vivem e sentem nas suas peles o problema que Misse
(2010) denomina de Sujeição criminal. Zaluar (1994) trata a relação entre polícia e
comunidade como ‘Quadro de mentalidades’9, por onde expressa a realidade de
59
_______________________________
9
Em ‘A polícia e a comunidade: paradoxos da (in)convivência’, In: Condomínio do diabo, Alba Zaluar
utiliza o conceito de “quadro de mentalidades” para aludir a imagens e ideias que ficam cristalizadas em
cada uma das partes, policia e comunidade. Seriam preconceitos, estereótipos, memórias ideologizadas,
que vão se montando a partir de vários mecanismos. Resultantes de experiências concretas de moradores,
das imagens dos meios de comunicação, dos cursos de formação e praticas policiais. Onde para o meio
policial, a pobreza ou favela seriam os fatores criminógenos por excelência. (1994; pp.88-95)
60
-dade cultural e socioeconômica de uma cidade de maioria negra e pobre. Outra vez o
‘ser negro’ passa a ser usado como um dos principais critérios de suspeição. Em
contraste com outras partes da cidade, a vida favelada tende a ser mal entendida (e por
vezes vitimada por abusos policiais).
“A gente fica sem dormir com medo, qualquer zoada já pensa que são os
polícia entrando. Eu não durmo com luz apagada, e tem um monte aqui
que é assim também.”(Nescau)
O risco de morte que se materializa nas execuções e nas trocas de tiro com a
polícia, a morte dos ditos “não envolvidos”, “trabalhadores”, apontam para um processo
de não seletividade das vítimas. As incursões policiais, segundo as palavras dos jovens,
tem pouco de objetividade na abordagens dos verdadeiros envolvidos. Fatores esses que
geram medo e insegurança para quem mora na favela e não faz parte de grupos ligados
ao tráfico.
na cabeça dele, ele era de boa, mas foi roubar no ônibus [e] os policiais [o]
encurralaram, ele correu e parou numa rua sem saída em Plataforma.
Mataram ele na covardia, me diz como um cara só e um monte de policia
[...] Precisava matar ele? – podia prender. (...)” (Jamile)
“Se o cara não tem de onde tirar dinheiro, não tem emprego, não tem
comida, tem filho, o que a pessoa vai fazer? – em casa fica aquele aperto de
mente, e ai? – olha, vários amigos já foram trabalhar na boca, outros
vendem amendoim, queijo, salgado com suco, mas às vezes dá muito pouco
e o cara fica na bruxa (estressado) e acaba fazendo uma besteira.”
Nesta fala Jamile aponta que a pobreza pode ser um elemento motivador para o
ato delituoso. O ‘aperto de mente’, expressão que indica na linguagem utilizada na
favela, um tipo de cobrança exercida sobre a mente de uma pessoa em situações de
dificuldade que pode funcionar como o estopim para ações pouco racionais na
resolução de problemas. Neste caso específico a entrevistada trás um relato do jovem
que para alimentar o filho realizou um assalto em um ônibus, e foi morto por policiais.
Nas poucas oportunidades de trabalho de que fazem parte a juventude da favela, Jamile
cita os tipos de atividades informais utilizados pelos jovens para sustentar família e
adquirir bens de consumo. Vender amendoim, queijo coalho, salgado e suco... No
entanto, o lucro às vezes é baixo e concomitante às necessidades básicas, ao uso de
drogas, a vida mais difícil, acentuando as privações. E é neste contexto de necessidades
que surgem os convites para eventos isolados como pequenos furtos ou a venda de
drogas. Eventos esses que ganham uma maior aceitabilidade quando comparado com a
lucratividade incerta e o grau de dificuldade dos trabalhos informais citados acima.
Neste caso específico a entrevistada retoma o relato acerca do jovem que para
alimentar o filho realizou um assalto em um ônibus. Para Zaluar, a nova pobreza urbana
é fruto da rápida urbanização e das desiguais políticas salariais vigentes. Promovendo
distanciamentos estanques entre ricos e pobres. Num desenho social, onde a ausência
dos pais por períodos de longas jornadas de trabalho, passam parte de suas atribuições
socializadoras e de instrução, para instituições como a escola e centros de assistência
social.
63
“A favela tem o tráfico, eles tão sempre em briga com os alemão, mas
os moradores não entram em nada.
realidade vivenciada no dia a dia das favelas, que não constitui especificidade isolada
das comunidades periféricas de Salvador. Zilli (2015) trata por ‘lei da favela”, conceito
que se constitui enquanto uma teia de valores que faz com que aqueles que a seguem
gozem de “status” na comunidade local. A quebra destas regras locais tendem a ser
punidas com extrema violência pelo tráfico. Um tipo de poder que perpassa a vida no
interior destas comunidades e institui um ‘proceder’ ou modo de agir que estaria ligado
a uma dimensão moral que é utilizado como poder por quem a instituiu: no caso, o
tráfico. Marques (2009) ressalta que a realidade no cotidiano das comunidades que tem
estes parâmetros de condutas instituídos submetem toda uma vivencia compartilhada a
um poder que atravessa o corpo social produzindo na ‘ilicitude’ o lícito que ganha corpo
na construção de discursos de verdade, capaz de julgar, sentenciar e promover outros.
Os socialização de regras específicas de convívio num movimento que aponta o certo e
o errado.
_____________________
10
“Boca”, categoria empírica. Significa local onde se comercializa drogas nas favelas e são geralmente
ocupadas por ‘soldados’(jovens que garantem a comercialização e a segurança do negócio.)
66
Considerações finais
Tendo por base as narrativas selecionadas dos jovens entrevistados fica claro a
constatação que todos estes viveram de diferentes formas a mesma experiência coletiva
dentro da favela e construíram sentidos e percepções a partir de um modelo específico
de socialização. Para alguns a vida na favela não é violenta, mas a ação da polícia, o
preconceito e a discriminação vivenciados nos espaços públicos por indivíduos que não
pertencem aquele espaço social sobre os moradores das favelas, constitui parte do seu
modelo de violência experienciada.
jovens, aponta sem vacilar para uma visão estigmatizante e não seletiva, excluindo e
fazendo destes alvo de ações repressivas e de desprezo.
A incerteza social juvenil e o dinheiro fácil referência a uma ética às avessas do
trabalho, a violência policial que se orienta pelo frágil determinismo do meio social
recai sobre determinadas parcelas da população, apontando para um contexto de
vulnerabilidade que se potencializa nos processos de estigmatização e criminalização.
Destarte, situações de impunidade estiveram presentes nos relatos dos jovens como
condições prévias e determinantes para o que os jovens identificassem estas práticas
como os modelos de violência percebidos.
É preciso atentar para um conjunto de mudanças sociais em curso nas últimas
décadas, que vêm mobilizando um conjunto de tensões, inclusive para as novas
gerações. Alterações que dizem respeito a processos sociais mais amplos (com
repercussões locais), como flexibilização e precarização do mercado de trabalho,
urbanização intensa, processos de globalização econômica, bem como aquelas
referentes ao crescimento da criminalidade violenta. Segundo Feltran (2010), nas
últimas décadas é cada vez mais emblemático nas periferias do município um menor
alheamento (alienação) da população no que concerne a esse “mundo”. Isso acaba por
influenciar a sociabilidade dos jovens, independentemente de sua adesão e participação
em atividades ilícitas.
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São Paulo. São Paulo: Ed. 34/Edusp, 2000.
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ZALUAR, A. O condomínio do diabo. Rio de Janeiro: Revan: Ed. UFRJ, 1994. 280 p.
____________. Mapa da violência 2015: juventude viva, mortes matadas por arma de
fogo. Rio de Janeiro. FLACSO BRASIL.
____________. Mapa da violência 2016: homicídios por arma de fogo no Brasil. Rio de
Janeiro. FLACSO BRASIL.