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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

JOÃO RICARDO DE AZEVEDO

O SENTIDO DA VIOLÊNCIA NO COTIDIANO DE JOVENS ESTUDANTES


EM PARIPE

SALVADOR,
2018
JOÃO RICARDO DE AZEVEDO

O SENTIDO DA VIOLÊNCIA NO COTIDIANO DE JOVENS ESTUDANTES


EM PARIPE

Monografia apresentada como Trabalho


de Conclusão de Curso de graduação em
Ciências sociais como requisito para a
obtenção do título de Bacharel em
Sociologia.
Orientadora: Profª. Drª. Maria Gabriela
Hita.

SALVADOR,
2018
BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________
Prof. Dr. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Universidade Federal da Bahia

_____________________________________________________________
Prof. Dr. Xxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Universidade xxxxxxxxxx

____________________________________________________________
Prof. Dr. Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Universidade xxxxxxxxxxxx
Agradecimentos

A Deus acima de todas as coisas.


A minha família e amigos por entenderem minha luta e ausência nos
momentos mais difíceis. Destacando minha mãe, Cacilda alves que sempre acreditou
em mim e é minha fortaleza e porto seguro, minha referência de luta e integridade,
força e perseverance, quando me sentia desaninamo e exaurido, mesmo com mina
ausência.
Aos meus amados pai e avó, Cícero e Coracir, que in memoriam, sempre serão
parte maior do que sou, por estarem sempre presentes em meus pensamentos e na
minha vida. Pela saudade que sinto e pelo amor e conforto que suas lembranças me
trazem.
A estimada amiga Ana Claúdia pelo apoio e palavras de carinho, aos gentis
amigos Portugal e Simone pela paciência e presença em dias de turbulência.
A Elton e Elson pela consideração, presença e respeito. Pela realidade de vida
que serviu-me de inspiração.
Aos amigos do Departamento de Saúde do Hospital Naval de Salvador pelo
incentivo, compreensão e companheirismo em todas as etapas deste longo caminho.
Aos amigos que fiz na UFBA, que tornaram o momento de aprendizado algo
tão sério e digno do mais alto respeito. Em especial à minha orientadora Professora
Doutora Maria Gabriela Hita pela ajuda e incansável paciência dispensados a mim na
construção deste trabalho, expondo suas opiniões e contribuindo para o
enriquecimento desta monografia e sobretudo das Ciências Sociais.
Resumo

Considerando as peculiaridades da vida cotidiana em bairros periféricos e


favelas, tais como a violência do tráfico, a truculência policial, desigualdade
socioeconômica e a precariedade das condições de vida, é meu objetivo entender como
o jovem estudante de uma escola secundária em Paripe, percebe a questão da violência
no cotidiano do bairro. Os resultados desta pesquisa foram obtidos pela utilização de
entrevistas livres e em profundidade sobre o sentido da violência vivenciada no bairro
com estudantes voluntários a participar da mesma.

Palavras-Chaves: Violência - Juventude - Cotidiano

Abstract

Considering the peculiarities of everyday life in peripheral neighborhoods and


favelas, such as traffic violence, police truculence, socioeconomic inequality and the
precariousness of living conditions, it is my objective to understand how the young
student of a secondary school in Paripe perceives the violence in the daily life of the
neighborhood. The results of this research were obtained through the use of free and in
depth interviews about the sense of violence experienced in the neighborhood with
students volunteering to participate in it.

Keywords: Violence - Youth - Daily life


LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Paripe .............................................................................................................39


(Fonte: Google Maps)

Figura 2: Paripe- Rua Escola de Menor, entrada para favela “Bate-coração”................40


(Fonte: Foto: Henrique Mendes/G1)

Figura 3: Centro de Abastecimento de Paripe................................................................40


(Fonte: http://visaocidade.com.br/2015/09/paripe-o-centro-comercial-do-subúrbio)

Figura 4: Rua Almirante Mourão de Sá, entre Paripe e Fazenda Coutos. Um dos pontos
de tensão por conta do tráfico..........................................................................................41
(Fonte: http://www.correio24horas.com.br. Foto: Victor Lahiri)
Sumário

Introdução
Construção do problema...................................................................................................9

Capítulo 1
1. Mundo vivido: campo de ações compartilhadas e interações......................................20

Capitulo 2
2.1 Favelas e violência: preconceitos e estereótipos...................................................... 26
2.2 Vulnerabilidade: jovens e contextos de violência.................................................... 30

Capítulo 3
3. Estudando significados de violência entre jovens de uma escola de ensino médio em
Paripe: área de estudo, aspectos metodológicos e trabalho de campo............................36

Capítulo 4
4. Significados da violência sob a perspectiva dos jovens selecionados.........................48
4.1 A situação biográfica.................................................................................................50
4.1.2 Jovens selecionados................................................................................................50
4.2 O sentido e a percepção da violência: na ótica dos entrevistados.............................55
4.3 Preconceito e estigmatização.....................................................................................57
4.4 Medo: o risco de morte..............................................................................................60
4.5 O tráfico na favela: as regras e o proceder................................................................63

Considerações finais........................................................................................................66

Referências bibliográficas...............................................................................................68
Fonte da ilustração:
https://www.google.com.br/search?q=desenhos+sobre+morte+de+jovens+em+periferia&newwindow=1
&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=X&sqi=2&ved=0ahUKEwj31sm2__zUAhVFG5AKHQ9PBwAQs
AQIIg&biw=1366&bih=662#imgdii=ROUUEa6bvm5BAM:&imgrc=Fdj2k4YSPyNbeM :
(Sugerido por um jovem entrevistado.)
(...) Às vezes eu acho,
Que todo preto como eu,
só que um terreno no mato,
só seu,
Sem luxo,
descalço,
nadar num riacho,
sem fome,
pegando as fruta no cacho.
(...)A vida é loka nego,
e nela eu to de passagem.
( Trecho do RAP dos Racionais Mc’s, Vida Loka – parte 2. Sugerido por ‘Nescau’
como: “ (...) A verdade que dá um frio na barriga”. Nescau, 20 anos, um entrevistado
voluntário selecionado nesta pesquisa.)
9

Introdução

A construção do problema

Atualmente, muito têm-se dito sobre violência. A insegurança e o medo


espreitam a vida do cidadão comum nos grandes centros urbanos. O indivíduo sai sem a
certeza de um retorno. No meio rural, regiões afastadas das grandes metrópoles, os
crimes geralmente envolviam aspectos afetivos, morais. Hoje, é substituído pelo tráfico
e por lutas pelo controle territorial. A sociedade deste século se vê mergulhada num
contexto belingerante crescente, onde não existem garantias, onde o Estado parece
incapaz de contê-la e a sensação de caos iminente é a única certeza.

A violência parece ter sido legitimada. Ganhando espaço no que se entende por
“vida cotidiana” tanto nas grandes cidades como em seu entorno. Havendo um
entendimento de que o recrudescimento das ações do Estado sobre os supostos autores
dos crimes, pode ser uma estratégia de superação e enfrentamento da questão deste
fenômeno em sociedade. Forjando-se nas cidades áreas de isolamento, de segregação e
um espaço público visto como zona de perigo. O poder público caminha numa direção
em que considera os crimes contra o patrimônio algo prioritário. Discriminam faixas
específicas da população, focando numa criminalidade presente em comunidades
populares, resultando em altos indicadores de mortes violentas e encarceramento
(BARATTA, 1999; YOUNG, 2002; SILVA SANCHEZ, 2002; SHECAIRA, 2009;
WACQUANT, 2005).

Segundo Abramovay et.al (2002), a noção de violência é por princípio ambígua.


Não existindo uma única percepção do que seja violência. Na verdade o que ocorre é
uma multiplicidade de atos violentos, cujas significações precisam ser analisadas a
partir das normas e dos diferentes contextos sociais e das pessoas que as vivenciam. Na
realidade, na tentativa de diminuir os índices de violência, o que ocorre é um
movimento de estigmatização de áreas de pobreza, por parte da sociedade geral,
segregando e vinculando-as à periculosidade e violência, entendido como modelo de
estigmatização territorial (WACQUANT, 2008; ZALUAR, 1985; 2004). Comunidades,
invasões e favelas, designações territoriais carregadas de estigma e preconceito, que
expõem seus moradores a um duplo mecanismo de dominação: na ordem social
10

predominante, são extratos dotados de inferioridade e no cotidiano de suas relações de


vizinhança, vivem uma “Sociabilidade Violenta” (padrão específico de sociabilidade
reconhecido na representação da violência urbana). Onde moradores destas áreas
submetem-se a traficantes e milícias ou a própria truculência policial (MACHADO DA
SILVA, 2008, p.22). Diferenças sociais, econômicas, culturais se espacializam e
constituem o território, ao mesmo tempo em que gestam processos sociais de interação
dotados de particularismos e mecanismos de justiça privada. Goffman em Estigma:
notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (1975), trata a questão da vida
em territórios como um elemento criador de identidades, apontando para condições
compartilhadas de sociabilidades que se institucionalizam e constituem padrões de
condutas que se legitimam.

A modalidade de violência a ser explorada nessa pesquisa é aquela que se


consolidou com o movimento crescente de urbanização e da segregação; do desmonte
do espaço público, outrora fundamento estruturante das cidades modernas, hoje
abandonado aos pobres, “marginais” e “sem-teto”. O novo contexto urbano-industrial
separou pais e filhos, redefiniu papéis sociais. A escola, os centros de assistência social
e a polícia, passam a cumprir funções antes exclusivas da família (CALDEIRA, 2000).
Seguindo este contexto de crise de valores, indivíduos jovens mais desvinculados de
instituições como a família, a escola, em sua maioria moradores de bairros periféricos e
favelas, seriam facilmente cooptados por grupos cujas representações simbólicas e
códigos morais adotam a violência como elemento estruturador das relações entre
indivíduos e a coletividade do mesmo espaço social. (ZALUAR, 1994; ZILLI 2011,
2014.)

Nas duas últimas décadas, a questão do envolvimento de jovens em grupos


armados em ações violentas em bairros periféricos e favelas tem recebido considerável
atenção da literatura acadêmica. Segundo Zilli (2015) o foco dessas pesquisas ora tem
se concentrado na atuação desse grupos de jovens em redes de comércio de drogas nas
favelas, ora em suas representações e modos de se organizar-se dentro das comunidades
quando envolvidos com práticas ilícitas. Ora criando vínculos de dependência com
moradores locais, ora atuando em situações conflitivas seja como mediadores ou como
justiceiros. Em alguns casos podem funcionar como grave ameaça a moradores locais,
causando medo e insegurança.
11

Nesta pesquisa, o contexto social e juventudes serão elementos justapostos para


o entendimento do fenômeno da violência no qual adolescentes e jovens de 12 a 24 anos
responderiam pela autoria na maioria dos casos de homicídios principalmente por armas
de fogo, em bairros populares (ZILLI, 2015). Em Dayrell (2003), a categoria juventude
é pensada como parte de um processo totalizante, com contornos específicos dentro de
um escopo de experiências vivenciadas num contexto social. Sentido que permite ver
‘juventudes’ enquanto uma categoria plural em detrimento de uma visão fechada e de
enquadramento conceitual.

Machado de Oliveira (2008, p.268) alude à ‘juvenilização do crime’, enquanto


causa do aprofundamento das tensões e violência tanto entre os grupos que rivalizam o
comércio interno de drogas nas favelas, como os embates entre o tráfico e a polícia.
Onde a alta letalidade dos jovens envolvidos na linha de frente do tráfico pela
intervenção policial, resultaria numa permanente substituição destes elementos por
outros indivíduos jovens em sua maioria despreparados para o embate corpo a corpo
com a ação policial. No entanto, pouco tem sido discutido sobre como os jovens tidos
como “normais”, ou seja, os que não são ou estão envolvidos em práticas ilícitas nessas
favelas pensam, vivem e sentem o fenômeno desta violência que faz parte do dia a dia
das favelas brasileiras, especialmente aqueles que vivenciaram de perto a perda de um
conhecido vitimado por homicídio ou quando esse mesmo jovem foi vítima de algum
ato desta natureza no seu cotidiano. Por isso, enquanto produção de natureza acadêmica,
foi interesse desta investigação entender o sentido e a percepção (representações) deste
tipo de violência supostamente gestada nas favela e bairros populares por parte de
jovens ‘não envolvidos’, especificamente o jovem estudante do ensino médio, maior de
18 anos, morador de Paripe, bairro popular do Subúrbio Ferroviário de Salvador,
Bahia.

Paripe é um dos 22 bairros que compõem o subúrbio ferroviário de Salvador.


Em seu território estão situadas as localidades de Tubarão, Estrada da Cocisa,
Gameleira, Escola de Menor (ladeira Almirante Tamandaré), Bate Coração, Tororó,
Muribeca e Nova Canaã.
O meu interesse pelo tema foi resultado de uma inquietação com a questão do
aumento da violência gestada nas favelas e bairros periféricos e de sua relação com a
crescente vitimização por homicídio de jovens negros e pobres. Relação que se expressa
12

sobre um grupo de perfil sociodemográfico recorrente, de composição majoritariamente


negra ou parda, masculina, pobre, portadores de baixa escolaridade e moradores de
áreas periféricas e favelas dos grandes centros urbanos. Esses indivíduos são
frequentemente vitimizados por armas de fogo e quase sempre em via pública.(
SOARES, 2008; ZALUAR E MONTEIRO, 2012).

Waiselfisz (2012) utilizou os casos de morte decorrentes de homicídios por arma


de fogo, como um bom indicador do crescimento da criminalidade violenta em
sociedade, partindo de dois argumentos: primeiro porque considerando a amplitude do
conceito de violência, nem todo ato violento conduz necessariamente à morte de algum
dos protagonistas implicados. Entretanto, a morte pode revelar a violência levada a seu
grau extremo.

Segundo dados contidos no Mapa da violência 2010, na década de 1997/2007, o


número total de homicídios causados pelo uso de armas de fogo registrados no país
passou de 40.507 para 47.707, representando um incremento de 17,8%, pouco
inferior ao incremento populacional do período que segundo estimativas oficiais foi de
18,6%. Com relação aos casos de mortes violentas entre jovens para a faixa de 15 a 24
anos, índices maiores se concentram nas unidades Federadas e capitais do país, com
especificidade para as faixas dos 20 e 21 anos de idade. De acordo com as estimativas, o
ano de 2007, contava com um contingente de 35 milhões de jovens, representando
18,6% do total de 189,3 milhões de habitantes no país nesse ano. Ainda assim, a
participação desta faixa etária em eventos violentos com ocorrências de morte por
homicídio, excedia em muito o peso dela na população total do país. Nesse mesmo ano
de 2007, as vítimas na faixa de 15 a 24 anos de idade representaram 36,6% do total de
homicídios. Na faixa de 15 a 29 anos de idade, o contingente populacional existente era
de 49,8 milhões de jovens e a taxa de homicídios/tentativa em decorrência de violência,
representaram 54,7% deste total. Segundo o ordenamento das Capitais por Taxas de
Homicídio, para o período compreendido entre 1997/2007, Salvador ocupava o 7º lugar
(Mapa da violência 2010, Tabela 3.2.3. Ordenamento das Capitais por Taxas de
Homicídio em 100.000 na População Total. Brasil, 1997/2007).

O Mapa de violência de 2015 apontava que na região Nordeste concentravam-se


as maiores taxas de mortes por armas de fogo de jovens, ou seja, era a região que mais
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vitimava jovens por essa via. Para um número de 100 mil habitantes, estimava-se que a
Bahia contabilizava em 2012, uma vitimização juvenil por homicídio por armas de fogo
na faixa de 342,2%. Comparativamente, grandes capitais como Rio de Janeiro e São
Paulo, para este mesmo ano, os percentuais de vitimização juvenil eram
respectivamente 265,7% e 180,5% (Tabela 6.1. Óbitos, taxas - por 100 mil/hab. - e
vitimização Juvenil por AF nas UF. Brasil. 2012). Ainda em 2012, segundo o Mapa de
2015, na categoria raça / cor, as armas de fogo vitimaram 10.632 brancos e 28.946
negros, o que representa um percentual de 11,8% de óbitos para cada 100 mil brancos e
28,5% para cada 100 mil negros.

A afinidade desenvolvida pela temática ora apresentada é resultado do trabalho


que desenvolvi junto a jovens e tráfico de drogas num bairro do Centro Histórico
durante o curso de Etnografia em 2014, no qual a recorrência nos casos de homicídios
de jovens em sua maioria com idade que oscilavam entre 16 e 20 anos, suscitaram o
interesse por desenvolver um trabalho que pudesse contribuir para o entendimento do
que pensava o jovem sem envolvimento com práticas de ilicitudes nestas áreas
consideradas ‘áreas com tráfico’, sobre a forma de violência nelas existentes, enquanto
importante elemento de uma realidade de exclusão, estigmatização e em alguns casos de
extermínio.

Pelo interesse de captar como a violência afeta o mundo da vida cotidiana em


contextos de pobreza e pelo sistema de conhecimento adquirido que é colocado em
marcha é que nesta pesquisa se pretende dar maior tônica à compreensão do fenômeno
desta violência existente nas favelas, visto pelo olhar dos jovens não envolvidos nas
práticas consideradas “ilícitas”. O significado subjetivo elaborado pelos sujeitos de um
determinado espaço social consiste em um sistema de tipificações e relevâncias que
determinam sua concepção relativamente natural do mundo. E que, segundo Schutz
(1979), ao irem ganhando estabilidade, aparecerão como funções sociais ou
comportamentos institucionalizados: nada mais que o caráter social do conhecimento.
Por tudo isso, o desenho teórico-metodológico proposto para esta investigação
se inspirou nos aportes da teoria fenomenológica nas relações sociais de Alfred Schutz.
Este autor propõe estabelecer os fundamentos de uma Sociologia Fenomenológica, para
com ela trabalhar os processos interativos que se desenvolvem no cotidiano, referindo-
se à compreensão da ação dos sujeitos no mundo da vida, como sujeitos em si e na sua
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intersubjetividade. Teoria que faz uso do esforço interpretativo do sentido dado às ações
e entendimento do mundo da vida.

Este mundo da vida nada mais é do que o mundo cotidiano do sujeito, ‘o mundo
vivido’, um mundo compartilhado com outros, já constituído, organizado e significativo.
O mundo da vida a um só tempo como ponto de partida é o objeto de entendimento e
ação, é o mundo intersubjetivo que existia muito antes do nosso nascimento, vivenciado
e interpretado pelos nossos predecessores, como um mundo organizado que se dá à
nossa experiência e interpretação. No qual, toda interpretação se baseia num estoque de
experiências anteriores ao sujeito, experiências que nos foram transmitidas e que
funcionarão como um código de referência. O mundo da vida cotidiana é a cena e
também o objeto de nossas ações e interações, onde motivações de ordem prática
governam nossa atitude natural com relação ao mesmo, modificando nossas ações ou
sendo modificado por elas (SCHUTZ, 1979. p.72, 73).

Para este autor, a descrição do mundo social ao alcance de nossa experiência


direta, se resumiria na relação face a face orientado para alguém e na relação plural com
a sociedade. Portanto, faz-se necessário atentar para o mundo social como ele é vivido,
adotando o ponto de vista compreensivo, único capaz de apreender as “coisas sociais”
enquanto significativas graças à ação dos atores da cena social em suas “funções
típicas” (CAPALBO,1979:41). Importando processos subjetivos na crença de verdades
que estão presentes na realidade vivida no cotidiano dos atores e considerando a
violência um fenômeno multifacetado de difícil enquadramento conceitual (MINAYO,
1994; ZALUAR, 1999). A relação da pobreza com a violência não deve ser apontada
enquanto uma relação direta, ou um nexo causal, mas posta como um elemento que
encontra condições propícias para a sua ocorrência em ambientes de vulnerabilidade. De
modo que, as características sociais, econômicas, culturais e políticas da população do
lugar, podem configurar inúmeras possibilidades sejam elas de inclusão ou exclusão, ou
mesmo de práticas por parte dos atores que oscilariam num sentido pendular, ora num
extremo de resignação, ora em outro de confronto e resistência.
Justificativa
Sonoda (2016) citando Souza e Minayo ( 2005), argumenta que “ a violência é a
segunda principal causa de mortes no Brasil, e em algumas faixas etárias, a primeira. O
espaço urbano apresenta as maiores taxas de criminalidade violenta, taxas estas confirmadas
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nas estatísticas oficiais, e que são percebidas no cotidiano dos cidadãos, através do medo e
da sensação de insegurança.” Estas elevadas taxas de mortalidade juvenil por homicídio , em
especial de jovens negros, do sexo masculino e de bairros populares e favelas no Brasil,
são apontadas pelos dados ora citados e rotineiramente difundidos pela mídia, ora pela
literatura especializada que aprofunda sobre o tema, como o mais grave problema na
que jovens de periferia urbana são as principais vítimas. O que, por si só, já garantiriam
a relevância social do tema deste projeto de pesquisa.
De modo que, ao buscar nesta pesquisa me debruçar a conhecer as percepções do
fenômeno da violência pela própria juventude que é vulnerável a ela, e os modos
concretos como ela é vivida e experienciada no cotidiano de uma periferia da cidade de
Salvador, se espera alcançar o sentido atribuído a essa forma de violência.
O sentido e a percepção da violência vivida nas favelas por jovens de camadas
populares como uma realidade vivida em um contexto original, constituiria um salto
para a compreensão deste fenômeno, apartado de enquadramentos estatísticos para
compreendê-lo numa verdadeira conjuntura de vida social, experienciada e vivida nos
seus detalhes mais profundos. Explorando respostas de como estes processos complexos
de violência os afetam e quais os sentidos atribuídos por eles no dia a dia de suas vidas
na favela.
Diante da complexa dimensão do problema da mortalidade não-natural de jovens
pobres e negros por eventos de confronto violento, é esperado que os dados obtidos
sejam capazes de apontar vieses relevantes sobre o fenômeno, de forma que se possa
contribuir para o entendimento do efeito no mundo da vida de outros jovens que
convivem com essa realidade de modo contínuo e crescente, sem estar vinculado às
práticas ilícitas. Permitindo que dúvidas e inquietações, sejam feitas e postas ao
escrutínio da sociedade, como uma ponte que liga prenoções à realidade vivenciada.
Nesse contexto, abordar a percepção juvenil sobre a violência vivenciada no
cotidiano das favelas, constitui um ‘olhar de dentro’ conforme Magnani (2002) em “De
perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana.” Técnica na pesquisa, que parte
dos arranjos dos próprios atores sociais no campo, capaz de recuperar experiências e
identificar visões de mundo e sociedade no âmbito dos complexos espaços sociais
contemporâneos e suas dinâmicas. Ressaltando a importância de se ouvir o individuo
jovem na consolidação de ideias que possam servir como bases de sustentação a
mudanças nas trajetórias de outros jovens enquanto possíveis vítimas potenciais.
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Objetivo geral:

Investigar através de fundamentos de teoria e método fenomenológico sobre as


relações sociais, como a violência gestada num bairro periférico de Salvador é percebido
e vivenciado no cotidiano por jovens estudantes do ensino médio.

Objetivos específicos:

1) Compreender e descrever , segundo os aportes da teoria fenomenológica, o conceito de


mundo vivido e como desde este marco teórico, estudar o problema da violência cotidiana
entre jovens de periferia urbana de Salvador.

2) Identificar principais representações, experiências e vivências sobre a violência que


afetam favelas em relatos de jovens estudantes de uma escola secundária de Paripe;

3) Analisar em maior profundidade percepções e sentidos atribuídos à categoria violência


em trechos narrativos de entrevistas de dois jovens selecionados: um menino e uma menina.

Hipótese:

No momento histórico em que vivemos, fortemente marcado por um quadro de


desigualdades sociais, a sociedade se encontra fragmentada. A visão do Estado e da
sociedade exclui e estigmatiza. A violência perpetrada não pode ser enquadrada em
tipificações estanques, porque é diferentemente vivenciada na prática do cotidiano de
distintos segmentos sociais. O termo impossibilita uma definição que desconsidere
critérios e pontos de vista como aspectos institucionais, jurídicos e sociais. Não existe
uma forma de se abordar violência que seja objetiva. Violência implica ação,
comportamento. Ao considerá-la como algo que remete à ideia de dano, torna-se
impossível separá-la do contexto em que ela é proferida.
Nesta linha de raciocínio, a hipótese aventada nesta pesquisa acredita que o
fenômeno da violência, ora investigada segundo o sentido e percepção do jovem
favelado, é uma categoria cujo significado é apreendido pelo coletivo pesquisado como
comportamento que atribui ao negro pobre e favelado o status de perigoso, que vê em
sua forma de agir, de vestir-se uma condenação apriori. Uma violência que abriga o
preconceito, o estigma, que deliberadamente criminaliza a pobreza. Como sustentado
por Zaluar (2000,2004), e muitos outros especialistas sobre o tema, o que ocorre é uma
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suposta associação perversa entre ‘camadas pobres e classes perigosas’, reforçando a


estigmatização das periferias e favelas, demonizando os territórios vividos pela pobreza
urbana, desqualificando-os socialmente e embutindo nestes a imagem do suspeito,
perigoso.
Existe uma crença de que a vida urbana está contaminada de perigos e que a
solução para a resolução deste problema consistiria na retirada das ruas de elementos
ameaçadores. Uma crença que segundo pontuado por Bauman (2003), nos faz suspeitar
dos outros à nossa volta, e onde, nesta concepção, o estranho significa perigo.

Este trabalho foi dividido em quatro capítulos. No primeiro abordarei uma


descrição do mundo vivido baseado nos aportes da teoria fenomenológica segundo as
relações sociais em Schutz, cujo método que se caracteriza pela ênfase no ‘mundo da vida
cotidiana’ – e o seu retorno à totalidade do mundo vivido. Penetrando seu significado e
contexto com refinamento e precisão. Objetivando uma compreensão voltada para os
significados do perceber, expressos pelo sujeito que as percebe. Exaltando a interpretação
do mundo que surge intencionalmente à consciência, com ênfase na experiência do sujeito,
onde o objeto é percebido e transforma-se no tema que se põe à consciência quando volta ao
mesmo. Esta será sempre uma experiência intersubjetiva cuja base é a cooperação
formadora da vida social. (COLTRO, 2000)
No segundo capítulo, discorro sobre o processo de periferização do espaço social,
com ênfase à cidade de Salvador, e procuro desenvolver sequencialmente o passo-a-
passo de conceitos fundamentais à pesquisa no que concerne à associação perversa que
combina violência à pobreza. Objetivamente conceituo o fenômeno da violência em a
sua acepção mais genérica, sem me deter em tipificações, a despeito de sua importância.
Estratégia utilizada com vistas a orientar o leitor a perceber o diferencial observável no
sentido da violência segundo a perspectiva dos sujeitos entrevistados. Num Segundo
momento deste capítulo, o conceito de ‘juventudes’ surge com vistas a contextualizá-lo
no desenho explicativo que insere o jovem como sujeito entrevistado e aquele que atri-
__________________________________
1
Irme Salete Bonamigo em seu ensaio sobre Violências e contemporaneidade(2008), argumenta que as
mudanças que caracterizam a contemporaneidade permitiram ver a mídia como instância de subjetivação
coletiva, além de delegar os efeitos da insegurança a violência a um ‘outro’ como personificação do
‘mal’.
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bui um sentido particular ao fenômeno da violência Segundo sua experiência cotidiana.


Os conceitos de estigma, vulnerabilidade, juventudes e mundo vivido são tratados como
os principais pilares de sustentação desta monografia nesta primeira tarefa de
modelagem analítica dos dados aqui sendo analisados e que procurarei avançar mais em
minha futura dissertação de mestrado.

No terceiro capítulo, desenvolvo o caminho metodológico, composto por uma


amostragem intencional de duas entrevistas selecionadas de um escopo maior de
entrevistados, com os que estarei trabalhando em pesquisa futura de mestrado, com o
intento de buscar aprofundar e obter em seus relatos o sentido do fenômeno da violência.
Para este fim, escolhi fazer esta análise desde a ótica sobre o tema de um menino e uma
menina da escola onde fiz as entrevistas. Todas as transcrições das falas dos jovens Jamile e
Nescau foram lidas várias vezes para a obtenção de um sentido global, considerando que ao
falar em violência cada individuo ativa uma determinada experiência pessoal com o
fenômeno sobre o que fala. Para isso, foram identificadas expressões significativas relativas
às experiências consideradas pertinentes ao sentido atribuído à violência no contexto da
favela. A amostragem escolhida foi, como já dito, intencionalmente definida, sem no
entanto, visar neste momento realizar uma pesquisa com recorte fundamentado numa
perspectiva de gênero, mas sim uma análise teórica e metodologicamente fundamentada a
partir de conceitos da Fenomenologia. A imagem que os jovens constroem, e que são
experienciadas na vida das favelas em suas tramas diárias, foram utilizadas como a chave de
entendimento para elucidação de comportamentos e práticas de outros jovens que
sobrevivem em espaços similares.

No quarto capítulo trato da análise dos dados coletados, descrevendo as


percepções e sentidos atribuídos à categoria violência segundo a variabilidade de dois
voluntários, um menino e uma menina. Este capítulo foi baseado nas análises das
entrevistas destes dois jovens, e é orientado no sentido de apresentar ao leitor trechos
das suas falas, cujos discursos apontam conteúdos vivenciados pelos mesmos de
preconceito e estigmatização pela condição de serem favelados e negros. Falas que
denunciam a criminalização do pobre, do morador das favelas e do fato de serem
negros. A violência que se manifesta no desrespeito e na visão negativa que a sociedade
atribui às classes populares e a mídia faz-lhes eco.
19

As instalações físicas do ambiente escolar, foram suficientes para a observação


direta dos processos interativos entre os jovens, assim como para permitir recrutar
aqueles que tinham interesse em ser inseridos nesta pesquisa. Ao final, muitos se
voluntariaram, no entanto, a decisão de incluir apenas estudantes maiores de 18 anos (e
que não exigiria mais do que o consentimento informado dos mesmos) limitou
consideravelmente este universo, sem contudo, comprometer a realização desta
pesquisa.
As considerações finais trazem os principais achados, assim como o resultado
principal desta monografia no tipo de reflexão aqui feita, no sentido de corroborar a
hipótese levantada para o problema de pesquisa.
20

Capítulo 1

1. Mundo vivido: campo de ações compartilhadas e interações

Segundo Schutz (1979), todo o momento de vida de um homem é sua situação


biográfica, ou seja, o ambiente físico e sociocultural dentro do qual ele tem sua posição
física, de status, moral e ideológica; um lugar temporal e geograficamente determinado,
onde categorias, fenômenos tem sua designação num vocabulário específico. De modo
que:

“Compreender o significado das ações e comunicações dos outros, como


uma prática qualificada, constitui um elemento integrante das capacidades de
rotina de atores sociais competentes. A hermenêutica não é apenas um
recurso privilegiado do investigador social profissional, mas é praticada por
todos; o domínio dessa prática é a única via pela qual, tanto os cientistas
sociais profissionais, quanto os próprios atores leigos, se tornam capazes de
elaborar descrições da vida social a que recorrem em suas análises.”(Giddens,
1998, p.291)

Giddens reforça a ideia da necessidade de uma sociologia que compreenda o sentido das
ações e as interprete como atores competentes dentro de contextos específicos. Por isso,
e do mesmo modo, o cientista social para captar a realidade social de um grupo
específico precisa ir aos objetos do pensamento construídos por estes no seu mundo
social. Pela utilização do escopo teórico de Bergman e Luckman (1998), se observa o
vínculo teórico existente entre o processo sociológico da construção da realidade vivida,
onde o universo simbólico dotado de conhecimento é compartilhado pelo grupo e abarca
os valores constitutivos de uma dada ordem em constante construção, em que a
linguagem é um dos elementos que marca coordenadas desta sociedade e a preenche de
objetos dotados de significação.

A realidade é socialmente construída e reconstruída na interação, e a valoração


se dá a partir do senso comum enquanto construção social institucionalizada, cabendo
ao sociólogo a investigação do processo social de construção desta realidade. Onde,

“As instituições e os universos simbólicos são legitimados por indivíduos


vivos, que tem localizações sociais concretas e interesses sociais concretos. A
história das teorias legitimadoras é sempre parte da história da sociedade
como totalidade.(...) O que permanece sociologicamente essencial é o
reconhecimento de que todos os universos simbólicos e todas as legitimações
21

são produtos humanos, cuja existência tem por base a vida dos indivíduos
concretos”(...). (Berger e Luckmann, 1998, p.172)

A realidade cotidiana se constitui de racionalidades compartilhadas e


asseguradas no mundo da vida pelo processo legitimador deste universo de
simbolismos, do pano de fundo consensual tomado como realidade pelos membros de
um grupo; um mundo que se origina no pensamento e na ação dos homens comuns em
um contexto sociolocal, sendo afirmado por eles como o mundo real. O fenômeno da
socialização, constrói um conjunto de regras compartilhadas, que são interpretadas nos
momentos interacionais pelos atores, através do cotidiano, em um processo de
construção contínuo, legitimando uma dada ordem institucional, estabelecendo formas
de agir em acordo comum nas interações simples. Este processo aponta para a
necessidade de se considerar as especificidades de um determinado contexto social na
sua totalidade, considerando sua construção humana para compreendê-la. Segundo
Schutz (1979), quando tratamos de questionar o que faz com que o entendimento mútuo
seja possível, para a ideia do que caracterizaria, por exemplo, um ato violento, o mesmo
ressalta que os métodos de interpretação se baseiam numa descrição cuidadosa de
suposições subjacentes e suas implicações.

Este mundo vivenciado porta estigmas múltiplos, atores e ação que consistem no
mundo cotidiano do sujeito, constituindo o cenário de vida e campo específico de
distintos processos de ações compartilhadas e interações. Trata-se do mundo que age
sobre o ator e sobre seus semelhantes, cuja realidade é vista como atitude natural.
Nestes termos, um motivo dito pragmático governa a atitude natural neste mundo, que
tanto pode ser modificado quanto pode modificar-se pelas nossas ações. Por vida
cotidiana, Berger e Luckmann a definem como:

“A vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos


homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que
forma um mundo coerente. (...) o mundo da vida cotidiana não somente é
tomado como uma realidade certa pelos membros ordinários da sociedade na
conduta subjetivamente dotada de sentido, que imprimem suas vidas, mas
um mundo que se origina no pensamento e na ação dos homens comuns,
sendo afirmado como real por eles.” (1998, p.35, 36)

A realidade cotidiana se constitui de racionalidades compartilhadas e asseguradas


no mundo da vida pelo processo legitimador deste universo de simbolismos, do pano de
22

fundo consensual tomado como realidade pelos membros de um grupo; um mundo que
se origina no pensamento e na ação dos homens comuns em um contexto sociolocal,
sendo afirmado por eles como o mundo real. O fenômeno da socialização, constrói um
conjunto de regras compartilhadas, que são interpretadas nos momentos interacionais
pelos atores, através do cotidiano, em um processo de construção contínuo, legitimando
uma dada ordem institucional, estabelecendo formas de agir que se consolidam nas
interações simples. Este processo aponta para a necessidade de se considerar as
especificidades de um determinado contexto social na sua totalidade, considerando sua
construção humana para melhor compreendê-la. Ou seja, é preciso levar em
consideração o contexto desses atores e a visão que os mesmos têm de si em relação à
sociedade em geral para compreender sua maneira de conceber o mundo.
Mahfound & Massine (2008), ao trabalhar com a contribuição da fenomenologia
husserliana na defesa da pessoa como sujeito da experiência, asseguram que por
experiência, toda intuição individual dada de forma original e todas as intuições
paralelas presentificadas não deterministas, se definem pelo interesse dos homens,
enquanto sujeitos em suas ações e paixões, voltados para o mundo, em interação,
pertencente a um mundo circunstante do qual se tem consciência. Falam de uma
humanidade concreta, que parte da realidade da vida concreta e das suas formas
históricas. A realidade presente no mundo da vida cotidiana é o que se dá à nossa
experiência e interpretação, através de um estoque de experiências anteriores
transmitidas por gerações e adquiridas pela socialização, funcionando como o nosso
código referencial, envolvendo a construção cognitiva de objetos de pensamento.
Estando enraizada na atividade seletiva e interpretativa da mente humana nos mais
diferentes contextos sociais e nos sistemas de relações existentes nestas, cuja ausência
ou debilidade de mecanismos de regulação e controle de uma dada ordem, criariam o
espaço propício para o surgimento da violência. Nesta linha de raciocínio, é importante
caminhar tomando a categoria “violência”, como ato intencional dependente do “eu”,
sujeito, que o percebe e apreende a partir de sua complexidade e totalidade. Trataria-se
desse tender do “eu” na direção do objeto intencional. Onde sobre a subjetividade,
salienta Husserl:

“ A ciência da subjetividade humana toma em análise a pessoa que se dá


conta do mundo que se lhe apresenta e lhe oferece motivações, assim como
23

examina o mundo da vida apreendido pela pessoa e que por ela é


valorado.Desse modo compreende todo mundo espiritual, tematiza todas as
pessoas e seus gêneros, todas as operações pessoais em suas formações
culturais. A ciência da pessoa aborda um ‘eu’ num mundo circunstante, e por
isso no mundo, por ter consciência dele.(...), podendo agir por ter uma
experiência bem determinada e ordenada do mundo, podendo habitá-
lo.”(Mahfoud & Massine, 2008 apud Husserl, 2002, p.318)
Numa unidade entre atenção e percepção, o inicio do ato perceptivo acontece
quando o eu se volta para o objeto. Assim a atenção se constitui em ato intencional, o
que vai à consciência. Por consciência, Husserl entende:
“ Uma corrente de experiências vividas. (...) Não é uma substância (alma),
mas uma atividade constituída por atos (percepção, imaginação, volição,
paixão, etc.) com os quais visa a algo. Vale-se da noção de intencionalidade
para esclarecer a natureza das experiências vividas da consciência. A
intencionalidade é de natureza lógico-transcendental, significando uma
possibilidade que define o modo de ser da consciência como um transcender,
como o dirigir-se a outra coisa que não é o próprio ato da consciência.”
(HUSSERL, 1996, p. 29)

Unificando a consciência e o objeto, a intencionalidade da consciência atribui


um sentido ao fenômeno que se apresenta. A consciência deixa de ser vista como uma
caixa que contém as coisas do mundo, e passa a ser concebida como consciência
dirigida ao mundo (HUSSERL, 2006). A proposta husserliana se constitui na atitude
fenomenológica como meio para se chegar as intencionalidades da consciência e, por
conseguinte, suas vivências. Permitindo a apreensão do sentido do fenômeno e, o
acesso ao domínio dos vividos.
Por estar voltada para um objeto, a consciência opera apreendendo as
características de um objeto percebido. Contudo, toda percepção tem um “halo de
intuições de fundo” (lembranças, associações, sentimentos e outras vivências), que
também se manifesta no momento de “estar voltada para” o objeto, mas no “modo de
inatualidade”. O que caracteriza o vivido da consciência e sustenta não só a percepção,
mas o sentido que lhe é atribuído pela consciência intencional. De modo que pela
redução fenomenológica (e não da atitude natural), é que será possível o acesso a esse
fluxo de vivências. Para o autor, essa é a grande contribuição da fenomenologia. Assim,
“as situações que alguém vivencia não possuem, apenas, um significado em si mesmas,
24

mas adquirem um sentido para quem as experiencia, que se encontram relacionadas à


sua própria maneira de existir.” ( FORGHIERI,1993).

Uma apreensão do objeto em diversas miradas, onde o eu ocupa-se da percepção


do objeto e da constituição de sua unidade. O voltar-se do eu ao objeto na forma do “eu
percebo” torna-o um objeto meu, um objeto de minha observação e torna o mesmo ato
de observar, uma observação minha do mundo-objeto através das imagens que vou
construindo dele. De modo que com a percepção da interioridade, a que construo é uma
visão específica e individual de determinado fenômeno, apreendo o corpo vivo e o meu
próprio eu, nele (MAHFOUND & MASSINE, 2008 apud HUSSERL, 2002). Cabendo
ressaltar que em tudo isto, sem significado compartilhado, não há interação. Sendo o
significado algo experimentado reciprocamente pelos sujeitos, categorias como a
violência, por exemplo, não explicam nada se vistas fora das interações que as
constituem, isoladamente.

Logo, tratar da violência enquanto fenômeno social, implica considerá-la no


contexto intersubjetivo, compartilhado, por vezes decorrentes dos conflitos desta
intersubjetividade, gerando ou não tensões. Podendo perturbar formas particulares de
sensibilidade e chegar ao ponto de evocar sentimentos de justiça. Vida em sociedade,
demanda refletir sobre atos e escolhas, levando sempre em consideração um espaço
compartilhado de interações, em uma intrincada teia de interpretações, reformulação e
reinterpretações sucessivas. Onde a realidade da vida cotidiana aparece objetivada,
constituída por uma ordem de objetos designados apriori , referindo-se a tudo o que
vivenciamos e tomamos para si em contextos diferenciados.

Atos de violência surgem da quebra das reciprocidades socialmente constituídas


que se acentuam pelo uso de mecanismos impróprios para lidar com novas expectativas.
Corroborando essa ideia, relacionamentos sociais dependem de instrumentos simbólicos
por meio dos quais os atores se organizam cognitivamente e atuam com base nesta
organização e a depender dela, muito menos como garantia de direitos que lhe são
dispensados.
25

O mundo da vida não é apenas um mundo de produções lógicas, mas o mundo da


experiência no sentido mais concreto e cotidiano do termo. Referindo-se a um conjunto
de realidades habituais que proporcionam segurança à tomada de decisões e à ação
dentro de um escopo circunstancial. De forma que, o mundo vivido em Schutz, ou seja,
os distintos espaços sociais que compõem a sociedade como um todo, é o mundo vivido
dos significados que sustentam as relações sociais, é aquele que atribui relevância ao
caráter ordenado e organizado da vida societária, a qual precisa ser reconhecida como
resultado de distintas atividades práticas destes próprios agentes (PETERS, 2011).
26

CAPÍTULO 2

2.1 Favelas e violência: preconceitos e estereótipos

Ao considerar como pressuposto o processo de consolidação das políticas de


urbanização e seu caráter segregacional e excludente, faz-se mister assinalar a
especificidade de construções que ganham força no imaginário social, associando de
modo perverso pobreza e violência2 ao território (ZALUAR,2000,2004;
WACQUANT,2005).
A categorização socioespacial presente nas cidades brasileiras constrói a noção
de território, comportando em sua configuração a questão segregacional, o que alude a
dimensões diametralmente opostas, centro e periferia. Polarização essa que promove o
isolamento dos pobres com todos os elementos decorrentes de seu condicionamento
social, seja em termos de deslocamentos para as áreas que concentram os postos de
trabalho e serviços, seja no distanciamento em relação à convivência com outros grupos
sociais. Resultando em uma tensão que leva à delimitação das fronteiras físicas ou
socialmente construídas de forma a assegurar a distância social. A cidade torna-se
fragmentada. A discussão acerca da violência num viés urbano como o tema desta
pesquisa de teor mais interdisciplinar, objetiva alcançar uma compreensão do fenômeno
em seus mais diversos aspectos, considerando desde a sua ocorrência no contexto de
vida social urbana, permeada pelas mais variadas formas de delitos que ocorrem nas
cidades e que deixam a população em verdadeiro estado de apreensão, até os sentidos
dados a ela por jovens de periferia urbana.
Sobre a violência que é gestada nas favelas e periferias, seja por agrupamentos
criminosos, ou por desdobramentos de ações policiais é fato que essa associação que
estigmatiza o território traz sérios efeitos sobre a vida dos moradores locais e sobre a
cidade como um todo. Machado & Noronha (2002), consideram que a industrialização
_______________________
2
Leila Maria Passos de Souza Bezerra (2011), trabalha ‘Sentidos da pobreza e do viver em territórios
estigmatizados: versões de moradores do Grande Bom Jardim em Fortaleza-CE’ . Acessado em
http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2011/CdVjornada/JORNADA_EIXO_2011/DESIGUALDAD
ES_SOCIAIS_E_POBREZA/SENTIDOS_DA_POBREZA_E_DO_VIVER_EM_TERRITORIOS_ESTI
GMATIZADOS.pdf
27

contribuiu para criar novas classes sociais, concentrando pobreza e promovendo o


distanciamento entre ricos e pobres.
Em Salvador e em muitas outras capitais brasileiras, multiplicam-se as ocupações
irregulares de terras (invasões) e assentamentos, na maioria dos casos, por falta de uma
política habitacional adequada, levando ao aumento da pobreza, degradação ambiental e
por conseguinte, também ao aumento da violência em contextos de periferias urbanas.
Ao se tratar do processo de formação das áreas de periferia no espaço urbano, demanda-
se pensar mais no que faz destas áreas, palco de preocupação quanto a ameaça à “ordem
social”, ruptura à unidade e consenso. Por violência, numa acepção mais genérica,
argumenta Zaluar (1999, p.8 ):

“A dificuldade na definição do que é violência e de que violência se fala


é o termo ser polifônico desde a sua própria etimologia. Violência vem do
latim violentia, que remete a vis (força, vigor, emprego de força física ou os
recursos do corpo em exercer a sua força vital). Esta força torna-se violência
quando ultrapassa um limite ou perturba acordos tácitos e regras que
ordenam relações, adquirindo carga negativa ou maléfica. É, portanto, a
percepção do limite e da perturbação (e do sofrimento que provoca) que vai
caracterizar um ato como violento, percepção esta que varia cultural e
historicamente.”

Para a autora o que dá o sentido e o foco à ação violenta seria o conhecimento


dos seus efeitos negativos em termos de sofrimento pessoal ou prejuízos ao coletivo, a
violência vista como instrumento, e não como um fim em si mesmo. Polifônica e
múltipla, ao pensar na violência não devem ser excluídos contextos e valores que a
caracterizam, visto que não há fronteiras definidas para o seu emprego. Por sua vez,
focar-nos em enquadramentos e fronteiras apenas, poderia impedir as múltiplas
passagens e pontes que articulam o fenômeno em diferentes culturas, a processos que
por vezes são cambiantes e intermináveis.
De acordo com Espinheira (2004, p.41), a violência não é uma questão
metafísica, mas uma construção social concreta. Tanto objetiva quanto subjetiva;
instrumento e mecanismo, economicamente orientado, assim como a própria questão da
vingança, ao que também está conectada ou associada a violência.
28

Tavares dos Santos (2009) trata a violência crescente neste momento da


atualidade como um dilema societário, vendo complexidade onde ordem e desordem se
entrecruzam. Compreender o momento deve ser um esforço em buscar sentidos outros
que não os da naturalização do fenômeno. Para o autor, uma violência é antecedida, ou
por vezes justificada, previa ou posteriormente por uma violência simbólica que se
exerce mediante uma subjetivação dos agentes envolvidos na relação. Violência que se
configura como um dispositivo aberto e contínuo. Uma relação de excesso de poder que
impede o reconhecimento do outro, seja pessoa, classe, gênero ou raça. Invocando um
tipo de dano aos atores sociais e opondo-se às possibilidades de uma sociedade de
natureza democrática. Nesta análise, o pesquisador percebe o tecido social numa
perspectiva relacional onde classes, categorias e grupos sociais são tomados como
construções práticas e simbólicas de agentes posicionados na estrutura da sociedade
com inúmeras possibilidades de trajetórias.
Para Zaluar (1994) o modelo de violência atribuído pelo imaginário social às
favelas ou invasões, pode ser considerada tipicamente como uma variante urbana,
considerando, um que se consolida em meio a esses espaços de heterogeneidade social,
se encontra nas ruas, nos noticiários e nas nossas preocupações do dia a dia. No
entanto, ao considerarmos nossas concepções acerca da violência, a forma pela qual
somos atingidos pode variar significativamente de individuo para individuo.

Rizzini e Limongi (2016) ao introduzirem um debate sobre a questão da


violência na contemporaneidade, aludem à violência nos espaços urbanos como “aquela
que acontece nos espaços coletivos de vida em sociedade.” Com forte presença em
muitos países e ocupando significativo espaço nas mídias. De modo que a política
moderna atual, por exemplo, já nasce para estas realidades sociais de áreas periféricas e
centrais, atribuindo apriori, uma gama de contradições claras e disparidades entre
liberdades jurídicas e práticas disciplinares aplicáveis.

No Brasil contemporâneo, redemocratização, cidadania fraca, altas taxas de


desemprego, e aumento dos “crimes de sangue”, deram a tônica da década de 80;
período de construção da democracia pós-ditadura militar, momento em que
contraventores e pequenos bicheiros juntos com traficantes ricos, tornam-se benfeitores
de localidades e modelos de ascensão social para os mais ambiciosos; marcando o
começo do crime organizado. (ZALUAR, 1994, p.113).
29

Este período de redemocratização do país, foi o momento de deflagração para a


grande mudança na configuração tradicional do poder, associado à falência do sistema
judiciário, aos abusos sem limites do poder policial e à consequente destruição dos
espaços considerados públicos. De modo que, os espaços territoriais tornaram-se cada
vez mais polarizados: de um lado áreas de favelas ou bairros de periferia que são vistos
como violentos, e de outro, os luxuosos bairros ocupados por condomínios
extremamente seguros e que contam com toda uma infraestrutura de isolamento social
preventivo contra a suposta violência presente nos territórios em que se instalam essas
classes pobres. Local onde as ocorrências ditas violentas geralmente encontram nos
discursos midiáticos e na ação repressiva das polícias o lócus das práticas delituosas que
infestam a sociedade. No entanto, o novo cenário de violência que se desenvolveu nos
centros urbanos brasileiros se configurara do aumento do acesso às armas, da
juvenilização da criminalidade, da extrema reação violenta policial, principalmente
sobre jovens de periferias; da ampliação do mercado de drogas e da cultura
individualista e por consumo. Dinâmicas que se misturaram, combinando sentimentos
de morte e condutas de risco entre jovens de bairros periféricos envolvidos com o
narcotráfico. (ABRAMOVAY et al, 2002, p.25-26).
Nestes contextos específicos em que as práticas de violência fazem parte do
cotidiano, aprofundam-se a criminalização e a estigmatização dos setores mais
vulneráveis em um momento de transformações econômicas e políticas no Estado
brasileiro em processo crescente de “neoliberalização”. Nesta conjuntura, marcada pela
minimização da presença do Estado, por altas taxas de desemprego e pela formação de
grandes massas de excluídos, tem se dado a crescente substituição de um Estado dos
direitos sociais para um Estado punitivo. Estado este, que na maioria dos casos
destinaria um tratamento desigual e excludente às classes populares e menos
favorecidas, agora como sujeito criminalizado e responsável pelas crescentes ondas de
violência no espaço urbano.
Neste processo, a presença da juventude surge com características ora de
protagonismo, ora de vítimas potenciais. Em Salvador, segundo apontam os dados
oficiais (IBGE, SSP-BA, MS) os atores envolvidos são majoritariamente compostos por
jovens, negros, masculinos, de baixa escolaridade e moradores destas áreas periféricas.
E, ao que tudo indica, matam e morrem em função de conflitos estabelecidos e resol-
30

vidos de forma violenta e privada em seus territórios e também no entorno (ZILLI,


2015).

2.2 Vulnerabilidade: Jovens e contextos de violência

Como argumenta Dayrell (2003), a construção social da juventude como um


ator, precisa ser pensada de modo diferente ao de a conceber como condicionada a uma
fase da vida, uma etapa predeterminada ou um “vir a ser”. Faz-se mister compreendê-la
como “ parte de um processo de crescimento mais totalizante, que ganha contornos
específicos no conjunto das experiências vivenciadas pelos indivíduos no seu contexto
social.” Ela é uma categoria socialmente construída, que se elabora a partir de diferentes
contextos, sejam econômicos, sociais ou políticos. Pensar em juventude como algo
homogêneo seria arbitrário, visto que, na verdade, a juventude socialmente está
fragmentada em função de interesses, de origens sociais e diferentes perspectivas de
vida. De onde conclui-se que, a juventude em momentos específicos pode ser
considerada homogênea se tratarmos de pensá-la simplesmente num enquadramento
geracional e heterogêneo, mas se atentarmos para sua inserção em um conjunto social
específico com atributos sociais que diferenciam os jovens uns dos outros, essa
homogeneidade perde sentido.
Para o referido autor, aceitar juventude como uma sequência temporal na
formação humana, não pode implicar necessariamente em linearidade permanente ao
ponto de abster-se de considerar as experiências precedentes contextuais tributárias de
uma forma especifica de sociabilidade. Juventude não pode ser reduzida à mera
passagem de uma fase, mas como uma categoria influenciada pelo meio social concreto
relacional dos envolvidos, como os sujeitos que assumem uma importância em si
mesma. De modo que, não há um único modo de ser jovem. De onde advém que, ao
falar de “juventudes” no plural, difere de “juventude” como algo hermético, e que exige
considerar uma gama ampliada de dimensões e possibilidades de se ser jovem,
considerando-se para tal, a necessidade de estarmos atentos aos contextos sociais em
que se inserem estes atores e seus diferentes processos de socialização (ABRAMOVAY
E CASTRO, 2006).
31

A vulnerabilidade existente entre jovens de famílias pobres é abordada por


Castro & Abramovay (2002) em sua pesquisa “Jovens em situação de pobreza,
vulnerabilidades sociais e violências”, onde as pesquisadoras ressaltam os aspectos
presentes nesse momento histórico em que vivemos, como a “juvenilização da
mortalidade”, “desencantos e incertezas” para a juventude. Verificando no trabalho uma
centralidade referencial para a falta de perspectiva de vida e a estigmatização por morar
em periferia, podendo-se inferir de que forma a combinação desses dois elementos, falta
de trabalho e estigmatização, podem torná-los vulneráveis a ilicitudes e outras práticas
de violência. Práticas essas que muitas das vezes são referenciados como única opção de
vida mais palatável. A partir dessa categoria, juventude e vulnerabilidade é concebido
como um fenômeno estruturado e perpassado por diversas formas de relações com
desfechos que relacionam causa e efeito. Ao se desconsiderar as garantias dos direitos
humanos fundamentais como moradia, saúde, renda e educação, desvincula-se o
indivíduo do quadro referencial que o individualiza, transformando-o em massa coletiva
despersonalizada e imputando-lhe o sacrifício da sua liberdade. De forma a fechar um
círculo de vulnerabilidade e abrindo-se às possibilidades de danos. Marca de uma
sociedade que compreende estas questões de forma limitada, conservadora e fortemente
influenciada pela mídia e argumentos da segurança pública, que vinculando o indivíduo
a frações específicas da esfera social como negros, pobres e moradores de periferia,
reafirmam a estigmatização e a criminalização como um continuum. Pobreza é uma
violência, afirma Carvalho Soares (2004), mas não o fator único e determinante.

No que tange às práticas de ilicitudes, o problema em combinar juventude e


violência na esfera social, parece estar relacionado em partes, com formas específicas de
negociação entre diferentes atores nas contingências que são peculiares à vida em
sociedade. Exigindo destes diferentes atores um certo grau de maturidade e equilíbrio
emocional para a superação de situações onde pode ou não haver a presença de
conflitos. Na realidade da vida na esfera relacional dos espaços sociais, Santos (2004),
ao tratar sobre violência no subúrbio ferroviário de Salvador, alude que a violência deve
ser percebida como cisão entre o querer inserir-se e a força da exclusão de que são
vitimizados os indivíduos desprovidos de condições de inserção social mínima. Este
aspecto aponta para a excessiva engrenagem protocolar e exigências a que o individuo
é submetido para sua inserção, por exemplo, na esfera laborativa. No momento em que
32

vivemos, são estes jovens as vítimas deste processo de inserção mínima, problema
decorrente das exigências de capacitação profissional que o mercado brasileiro exige
para a inserção no mercado de trabalho.
De onde destaca Ruotti et al. (2014)3, no que concerne à importância de
compreender a juventude como uma fase “ em construção”, como indivíduos que
precisam de repertórios sociais e simbólicos consolidados, assim como redes de
proteção diante dos muitos riscos que se apresentam neste momento específico da vida.
A sociedade precisa estar atenta a todo este processo inicial de inserção social, para
proteger e dar suporte, assim como para referendar condutas na construção de seus
percursos. Para esse segmento geracional, sentimentos de indignidade pessoal em etapas
como estas, podem assumir proporções extremamente difíceis de compreender e se
tornar motivo de desistência. Afetando as oportunidades de forma negativa nos
diferentes círculos sociais em que se inserem, podendo funcionar como elementos
motivacionais para ações extremadas, tendo em alguns casos desfechos fatídicos.

Trazendo para esta discussão o caso dos muitos jovens das periferias dos grandes
centros metropolitanos do país, em sua maioria indivíduos portadores de baixa
escolaridade, negros, sem nenhum tipo de habilidade técnica e total desconhecedor dos
muitos processos burocráticos que constituem a etapa mais difícil à sua inserção mínima
na vida em sociedade, à obtenção da cidadania propriamente dita; é facilmente dedutível
que são ínfimas as possibilidades de recrutamento destes elementos, assim como a sua
inserção no mercado de trabalho. Esse processo repleto de etapas e exigências os
encurralam, podendo para alguns, ser o estopim para se pensar em outras alternativas
de vida, e onde a presença de atalhos são sobremaneira mais atrativos. Como pontua
________________________

3
RUOTTI et al. Em sua pesquisa “ A vulnerabilidade dos jovens à morte violenta: um estudo de caso no
contexto dos ‘Crimes de Maio’”. Este estudo aborda a história de um jovem morador de um bairro
periférico de São Paulo sumariamente executado no contexto dos “Crimes de Maio” ocorridos em 2006.
Utilizam-se do arcabouço conceitual da vulnerabilidade como forma de compreender os diferentes
elementos envolvidos neste modo de vitimização. Vulnerabilidade que segundo estes autores é um: “
Conceito que proporciona uma perspectiva ampla e dinâmica que considera a suscetibilidade a um
determinado evento enquanto dependente não só de aspectos individuais, mas também relacionais e con-
textuais(...).” Revista Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.3, p.733-748, 2014.
33

Zaluar (1994, p.10):

“Os mais destemidos e, às vezes, os mais talentosos que viram frustradas


as suas possibilidades de sair daquela vida opressiva de pobres, são os
candidatos mais certos à última opção (bandidos), que lhes trará fama, poder,
dinheiro fácil e morte quase certa.”

A estigmatização da pobreza no meio social apresenta forte responsabilização


para o aspecto territorial no sentido de pensar aqueles espaços como lócus da
criminalidade que torna insegura a vida na cidade. Goffman (1975) descreve o termo
“Estigma” como um atributo profundamente depreciativo, uma linguagem de relações,
que enquanto enquadra alguém em valor menor, pode confirmar a normalidade de outro.
Daí o preconceito existente a partir desta categoria, podendo desqualificar, discriminar,
segregar e excluir.

“Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que


ele tem um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa
categoria em que pudesse ser incluído, sendo, até, de uma espécie menos
desejável [...]. Assim deixamos de considerá-la criatura comum e total,
reduzindo-a a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é estigma,
especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande” [...]
(Goffman, 1975:12).

Logo, para este autor, “ é a sociedade quem estabelece os meios de categorizar as


pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de
cada uma dessas categorias”. (1975, p.12). Estigma é uma construção social onde
atributos específicos desqualificam as pessoas e variam de acordo com os períodos
históricos e com a cultura. Goffman pontua que os que se dizem normais constroem
uma teoria do estigma. Elaboram uma teoria para explicar a inferioridade do outro e
para ter controle do perigo que ela representa. Os estigmatizados possuem uma marca
indicando sua identidade social deteriorada para conviver com os outros. Para Goffman
normais e estigmatizados são perspectivas geradas em situações específicas que se dão
durante o contato misto entre atores no espaço social, em decorrência da disparidade nas
de condições de acessar o mesmo objetivo. Tendências morais e intelectuais de uma
época e estrutura cultural são elementos cruciais para se pensar onde e quem determina
o que é estigma 4 (SIQUEIRA & CARDOSO, 2011).
34

Este processo de estigmatização e preconceito com populações que vivem em


territórios em situação de pobreza tornou-se aspecto importante para se pensar na
questão da honra e dignidade pessoal. Podendo ser inclusive, um fator explicativo, para
compreender condutas violentas e crime, como meio disponível para indivíduos sem
perspectivas de adquirirem dinheiro e bens de consumo indispensáveis à visibilidade
social tão comuns num mundo exaustivamente midiatizado. Nesta linha de raciocínio é
possível pensar o individuo jovem enquanto elemento social em formação, no centro
das questões relacionadas ao consumo e visibilidade social, como um ser vulnerável. Na
maioria das vezes sem condições cognitivas e materiais capazes de estabelecer
estratégias de superação para estes contextos de extrema dificuldade de inserção social.
Condições mínimas de competitibilidade frente ao desigual acesso ao mercado de
trabalho, somam-se aos “ataques” contínuos de consumo e valorização social que lhes
são introduzidos nas realidades da vida cotidiana de uma juventude com poucos
recursos e parte de contextos precarizados, dando margem a pensamentos estratégicos
que os possibilitem ‘fazer parte’ de um contexto que lhes é negado socialmente. Esta
realidade processual e contínua que deixa à margem uma fatia considerável de
indivíduos poderá constituir-se como elemento motivacional a relações hostis por parte
destes, que vislumbrando a possibilidade de apelar para soluções imediatistas não
hesitará. Visto que, para ele, o mundo já está dado: um modelo de polarização social
que se constrói separando de um lado ricos e pobres, negros e brancos.

Segundo estudos de Misse (2008; 2010), por conta destes processos mais gerais
de estigmatização social, a acumulação de desvantagens sociais e econômicas
associados a um movimento de incriminação preventiva de certos padrões sociais,
fazem de crianças e adolescentes de bairros periféricos, potenciais vítimas ao escrutínio
das ações policiais que incluem desde a incriminação delituosa ao seu extremo, que
seria a eliminação definitiva da sociedade numa lógica de suposição criminal. Não se
distinguindo entre as categorias trabalhador e bandido, considerando arbitrariamente
contextos e sinais diacríticos, como marcadores absolutos para categorias ‘marginais’

_______________________
4
Ranyella de Siqueira e Hélio Cardoso trabalham com o conceito de estigma como processo social. Em
seu artigo buscaram através de uma revisão bibliográfica discutir o conceito de estigma para Goffman e
para alguns entre tantos autores que desenvolveram suas ideias a partir dele. (Imagonautas 2 (1) / 2011)
35

em uma esfera identitária para contextos específicos. O conceito de sujeição criminal


de acordo com Misse (1999, p.67) é proposto com a finalidade de determinar três
dimensões incorporadas na representação social do bandido e de seus tipos sociais. A
primeira seleciona o agente segundo uma trajetória incriminável expectante em algum
momento de sua vida social; na segunda, este agente precisará de uma experiência
social especifica obtida nas relações com grupos que vivenciam aquela prática e na
terceira diz respeito à subjetividade e a uma dupla expectativa no que concerne à auto
identidade, de onde este agente não poderá mais justificar sensatamente seu curso de
ação. Em momentos de maior crise social, acredita-se que categorizações como esta se
expandem e a ação oficial de repressão, diga-se policial, apontando difusamente aos
moradores das áreas periféricas, especialmente contra indivíduos jovens sejam estes
ligados ou não a atividades ilícitas. O cerne da questão ora apontada refere-se a uma
vinculação social de periculosidade imputada seletivamente a estes jovens. (FELTRAN,
2007).
36

CAPÍTULO 3

3. Estudando significados de violência entre jovens de uma escola de ensino médio


em Paripe: área de estudo, aspectos metodológicos e trabalho de campo.

O desenho dessa investigação social se baseia nos pressupostos da pesquisa de


natureza qualitativa, cujo objetivo é conhecer o entendimento de violência segundo a
ótica de jovens estudantes de Paripe 5.

A pesquisa qualitativa se aplica ao estudo das relações, percepções enquanto


produto de interpretações pessoais dos atores no cotidiano. Tem como característica a
empiria e a sistematização dos dados coletados até a compreensão da lógica que subjaz
às ações dos agentes. A preocupação do pesquisador aponta para o processo de
subjetividade e contexto de experiência dos atores no sentido de captar uma visão de
mundo experienciada capaz de propiciar a produção de sentido em situações de
recepção coletiva, sustentando serem os pressupostos da construção de identidades e
legitimação de suas ações.
O percurso metodológico que guiou esta pesquisa teve a seguinte estruturação: a
escolha de uma escola de ensino médio como um ambiente específico ideal para a
realização desta pesquisa por se tratar de um espaço social comum a muitos dos jovens
do bairro, além de ser este um local possibilitador da construção compartilhada de
conhecimento. O público-alvo foram jovens moradores da localidade,
preferencialmente maiores de 18 anos, de ambos os gêneros, sob a condição
previamente combinada de que manteríamos o anonimato da sua identidade por meio de
uso de pseudônimos.

A escolha do bairro se deu primeiramente em função de minha mudança


residencial para Paripe em 2007 e estar mais familiarizado com esse local. A observação

_______________________

5 É válido ressaltar que a abordagem da violência gestada em favelas e o sentido e percepção atribuído
ao fenômeno por jovens constitui o tema de minha pesquisa no Mestrado. Momento em que a
investigação tende a aprofundar-se com maior número de informantes e desenvolvimento teórico
ampliado.
37

direta e diária da rotina daquelas pessoas no bairro me fez ampliar o conhecimento do


local e do contexto relacional que me interessou pesquisar. Pela observação direta pude
ter uma noção do tipo de configuração social que me saltava aos olhos. Os pontos em
comum com outros bairros que me serviram de moradia anteriormente em Salvador
foram o de outros jovens em sua maioria trabalhando em atividades informais, outros
simplesmente dispersos nas ruas das áreas comerciais e residenciais, famílias vivendo
em subcondições como as vistas nos barracos existentes no morro do Bate-Coração e na
parte mais alta do Calombão e da Estrada da Cocisa até residências com boa estrutura
na parte mais baixa da comunidade do Bate-coração. Muito trabalho informal que se
espalhava por todo o passeio da via principal (avenida Afrânio Peixoto) de Paripe, na
frente das lojas, variando desde a venda de frutas a objetos escolares e roupas.

Paripe é um bairro relativamente grande, com população majoritariamente


negra, comércio amplo e conta com uma central importante de abastecimento. Nele há
seis escolas públicas (municipais e estaduais) e três de instituição privada. Bancos,
igrejas, uma unidade de pronto-atendimento, uma delegacia, uma subprefeitura,
mercados e lojas de comércio varejistas são alguns dos principais equipamentos que
configuram o seu espaço urbano.
Com ocupação demográfica de maioria absoluta popular (55 mil, seguido de
Periperi, 47 mil e Plataforma, 34 mil, segundo Censo do IBGE de 2010) e histórico de altos
índices de violência divulgados amplamente pela mídia. Este bairro apresenta em sua
composição diversos grupos que rivalizam entre si pela hegemonia na guerra do tráfico
de drogas, e com as comunidades vizinhas. De modo que, a indagação que originou esta
pesquisa questionou-se o sentido e significados da violência construídos pelos jovens
estudantes de uma escola secundária no cotidiano da vida no próprio bairro.
A figura de número 1, a seguir, apresenta o mapa da região onde fica localizado
o bairro. Nele pode se ver em breves linhas a Rua Almirante Mourão de Sá, que separa
a favela Bate-coração da de Fazenda-coutos, a Rua Escola de Menor separando o Bate-
coração do ‘Calombão’, na parte alta da Rua da Bélgica, tal como é popularmente
chamado este local pelos moradores, a Estrada da Cociza no meio do mapa e na orla, a
rua Doutor Eduardo Dotto, a Enseada de Tubarão. Todas essas divisões internas
constituem fraturas nevrálgicas importantes que incidirão mais diretamente sobre o
controle do tráfico local, e onde não é raro serem presenciados constantes eventos de
38

violência no espaço público do bairro. As ruas citadas são linhas proibidas à circulação
de jovens não pertencentes a esses espaços, ou que participam de gangs de outros
grupos vizinhos, sob a ameaça, caso as circulem, de sua notória morte.
A observação participativa e uso de técnicas de teor etnográficos foram vitais ao
interesse nesta linha de pesquisa, exatamente pela possibilidade que propicia de captar
as peculiaridades do cotidiano do bairro, como por exemplo o de estarmos atentos e
perceber a existência de certos ‘acordos tácitos’ que se observam entre os moradores
destas áreas, de por onde se pode, deve, ou não circular. Idosos e adultos não correm o
mesmo tipo de risco que os mais jovens. Mas os jovens, principalmente aqueles do sexo
masculino, precisam ser muito mais cautelosos no que concerne a saída de seus limites
territoriais. Esse aspecto foi pontual. “Envolvidos” ou “não envolvidos”, a sentença é
sempre certa. E a pesquisa se desenvolveu baixo esta linha de argumentação: afinal,
qual a percepção juvenil de violência que subjaz neste conjunto de normas e regras
implícitas na vida cotidiana do bairro?
O material coletado nesta pesquisa de campo, foi resultante de um ano de
trabalho de Campo em uma escola de ensino médio e da observação direta da vida dos
moradores do bairro.
Nas páginas subsequentes disponibilizo um mapa e fotografias com o propósito
de desenvolver no leitor que desconhece o campo, uma breve ideia de pontos que foram
e serão tratados ao longo do trabalho de pesquisa. Como o mapa de Paripe, Rua Escola
de Menor, entrada principal para favela “Bate-coração”, divisa com Calombão situado
na parte alta da respectiva rua, na parte baixa acessos a Tubarão e Cocisa e saída para
Avenida Suburbana. O Centro de Abastecimento de Paripe, principal centro de
abastecimento do bairro, situado no final da Escola de Menor e principal centro
comercial do entorno. Finalizando com a Rua Almirante Mourão de Sá, situada entre
Paripe e Fazenda Coutos. Conhecido popularmente como ‘faixa de gaza’, é um dos
pontos de tensão por conta do tráfico entre as duas favelas. Todas estas vias apresentam
fluxo intenso diariamente inclusive aos finais de semana, além de importante comércio
informal.
39

Figura-1 Mapa de Paripe


40

Figura 2: Paripe- Rua Escola de Menor, entrada principal para favela “Bate-
coração”, cruzamento com a rua da Bélgica.
Fonte: Foto: Henrique Mendes/G1 - Atualizado em 25/07/2016.

Figura 3: Centro de Abastecimento de Paripe. Principal centro de abastecimento


do bairro. Absorve parte considerável da Mão-de-obra local.
Fonte: http://visaocidade.com.br/2015/09/paripe-o-centro-comercial-do-suburbio-
Atualizado em 25/07/2016.
41

Figura 4: Rua Almirante Mourão de Sá, entre Paripe e Fazenda Coutos.


Conhecido popularmente como ‘faixa de gaza’, é um dos pontos de tensão por
conta do tráfico entre as duas favelas.
Fonte: http://www.correio24horas.com.br. Foto: Victor Lahiri - Atualizado
em 12.08.2014.

Foram coletadas 10 entrevistas em profundidade realizadas em uma escola


estadual local, com jovens de ambos os sexos todos maiores de dezoito anos estudantes
do ensino médio. Destas entrevistas, tendo em vista elas apontarem aspectos relevantes
sobre a percepção de violência sentida por estes jovens, selecionei duas entrevistas um
de cada sexo, para realizar com essas duas uma análise em maior profundidade e de
tipo mais fenomenológico para esta monografia. O primeiro voluntário foi um rapaz de
20 anos que relatou ter sido vítima de agressão física na favela enquanto defendia um,
por ação do tráfico e a outra escolhida foi uma jovem também de 20 anos que relatou ter
sido ‘abordada’ por uma policial militar em uma ocasião e que segundo a mesma foi
agredida simplesmente, por ser negra e moradora de favela.
Em ambos os casos, ressalto aspectos importantes que os mesmos veicularam
sobre a percepção da violência que encontrei em geral nas outras entrevistas e no bairro
42

e que considero especialmente relevantes, para iniciar um exercício de procurar explorar


os sentidos que estes relatos revelam e pode-se, a partir de derivações reflexivas das
mesas, uso da teoria e interpretações pertinentes, buscar melhor entender e captar os
sentidos possivelmente atribuídos ao fenômeno por jovens negros morando e estudando
neste bairro.
Atentando para categorias como estigma, sentimento de identidade e
criminalização da pobreza já rapidamente expostos em capítulo anterior, reitero que
todas essas categorias foram desveladas e estarão novamente presentes e estruturaram o
tipo de leitura atenta que busquei fazer de todos os relatos coletados. Em muitas das
falas dos entrevistados a alusão a um sentido negativo de “favela” foi percebido
aparecer nas suas falas, mais especialmente quando eles se referiam a suas interações
em ambientes externos aos da favela onde vivem. Por exemplo, quando interpelados por
policiais e foram obrigados a responder o nome do bairro onde residiam, os jovens
relatavam que sentiam um tipo de abordagem agressiva por parte deles, e que as
perguntas dos policiais sempre tinham um tom de ironia do tipo: “você curte uma
erva?” ou para as meninas “você gosta de bandido?”.
Em parte dos relatos dos meninos, foi mencionado que na volta da praia da
Ribeira, situado na cidade baixa de Salvador, as abordagens policiais no ônibus eram
sempre direcionadas muito mais para eles. Dois deles foram abordados na via principal
em frente ao Centro de Abastecimento de Paripe e os policiais militares já começaram
perguntando-lhes ofensivamente se os mesmos traficavam (segundo relatos dos
mesmos).
Uma regra implícita muito compartilhada entre os jovens de periferia é a de
buscarem, sempre que possível, andar juntos. Esta estratégia, quando questionada
durantes as entrevistas eram respondidas sempre como uma forma de proteger-se de
possíveis ameaças externas. Em alguns relatos foi citado por eles que andar sozinho
poderia ser perigoso, primeiro porque poderiam ser alvo de violência por parte de outros
jovens de comunidades rivais, “os alemãos” como tratam os mesmos, ou de “covardia”
policial. No geral, os bigodes louros, as bermudas da Seaway 6 os bonés de outras grifes
e os funks tocados nos celulares, são o ‘prato cheio’ para a abordagem da polícia nos
ônibus, na rua ou em qualquer outro lugar segundo os entrevistados.
______________________________
6 Grife de roupas.
43

O objetivo de uma análise considerando percepções de ambos os sexos para a


violência vivenciada e experienciada por estes jovens no cotidiano, intenciona tão
somente, registrar a variabilidade nos significados e nas experiências no sentido e
percepção do fenômeno, sem a pretensão de realizar ainda ou neste momento, um tipo
de análise que leve em conta o recorte de gênero. Haja vista se tratar de atores
pertencentes ao mesmo espaço social, submetidos aos mesmos processos de
sociabilidade, por um lado, e por outro, ao fato de que eu ainda não tenho a imersão
bibliográfica e olhar que um objetivo como o de uma analise de gênero me demandaria,
neste momento, mas algo no que espero avançar mais para o fazer na redação do meu
mestrado.
A entrada na escola ocorreu a partir de autorização formal, conseguida através
de conversas com a direção, apresentação do documento da Universidade que atestava
minha condição de pesquisador do curso de graduação e da temática que envolvia o
conhecimento do sentido da violência percebida pelo jovem estudante de um bairro
periférico de Salvador. Deste modo deixei claro que não havia nenhum interesse em
tocar em pontos que pudessem representar riscos aqueles jovens, não buscando nomes
de pessoas envolvidas em nenhuma prática delituosa, ou fazer perguntas que gerassem
insegurança e desconfiança por parte dos mesmos. Todos os entrevistados receberam
informações de que tratava-se de uma pesquisa acadêmica, da Universidade Federal da
Bahia e que o pesquisador não representava nenhum órgão da segurança pública.
Ressaltou-se também, que não se tratava de nenhum trabalho de natureza policial ou
investigativa naquele espaço. Esse detalhe foi muito importante para o prosseguimento
do trabalho de pesquisa, gerando confiança e desejo de alguns a atuarem como
voluntários, aceitando ser entrevistados.
Para isso, as duas entrevistas selecionadas foram conduzidas a partir de
conversas informais pedindo aos entrevistados que discorressem sobre suas vidas na
comunidade, trazendo fatos que os mesmos julgassem pertinentes e que apontassem
para algum aspecto relacionado à sua concepção e vivências sobre vários temas e o tipo
de violência sofridas e vividas neste contexto. Não procurei criar limites às suas falas,
deixei que falassem livremente sobre suas vidas e dentro desta imagem auto-construída
o sentido e a percepção particular de violência experienciada em suas rotinas diárias foi
emergindo. Independente de quais fossem os temas e referências de seus relatos: se
ações policiais, comportamento do tráfico ou conflitos vicinais; o que me interessava de
44

fato, em todo e qualquer relato deles, era o sentido, a categoria ‘violência’ desprendida
de artefatos teóricos e construída por aqueles sujeitos a partir de suas histórias
biográficas.
Durante a fala dos entrevistados quando os mesmos identificavam um fato
específico e o vinculavam à ideia de violência, era nesta direção que eu seguia e
continuava conduzindo o resto da entrevista. Dados presentes em algumas entrevistas
não apareciam em outras. Haviam jovens mais entusiasmados, outros mais reticentes.
Entretanto, suas histórias e experiências de vida fluíam sempre de modo muito rico em
detalhes, e sobre o processo natural de socialização por eles vividos, desenhando
estruturas constitutivas desse grupo social quanto as suas preocupações e dilemas de se
viver numa sociedade dividida e preconceituosa. E onde questões como a cor da pele,
poder econômico e gênero ainda são dimensões capitais para se pensar em quem tem
seus direitos garantidos e os que não os tem. Aspectos relativos ao sentido e percepção
do que é a violência vivenciada no cotidiano de uma favela em Salvador, serão aqui
analisadas segundo a percepção de dois jovens, abrangendo a vivência dentro e fora da
favela, o sentido de sua apreensão e entendimento e o modo como estes dois
exemplares narrativos os expressaram nas suas falas durante as entrevistas.
A duração do tempo em que se deram as entrevistas, variavam de minutos a
horas em alguns casos onde o diálogo se estendia em relatos ricos em detalhes da vida
do entrevistado, mesclando a espontaneidade de emoções vivenciadas que emergiam
nas conversas e que parecia ao meu olhar atento, algo como se aquele jovem estivesse
encontrado um momento oportuno para verbalizar seus descontentamentos e revoltas
com o que vivia no dia a dia. Partindo das minhas transcrições, procurei sistematizar o
material coletado numa gradação que pudesse organizá-lo, pontuando aspectos
elencados por estes atores quanto ao sentido e percepção do que consideram violência
em seus contextos de vida social, em atendimento ao objetivo deste trabalho de
pesquisa.
Tive a preocupação de realizar as entrevistas de maneira livre, deixando claro ao
entrevistado que meu interesse era captar o sentido dado por aqueles jovens quanto a
sua percepção de violência vivenciada em seus cotidianos, sem lançar pressupostos
teóricos prévios de violência seja ela institucional, urbana ou social. Queria ouvir, sentir
na corporeidade, na espontaneidade destes atores sociais o que emergia de real e de
contexto de vida vivida. Inicialmente solicitei que falassem de suas vidas na favela, a
45

família, o estar na favela, o lado de fora da favela, a vida social, o divertimento, para
enfim ouvir destes o que era a violência neste campo amplo de vida. Sem amarras que
pudessem enquadrar e sentir a liberdade de falar das suas vidas, e fui deixando que a
entrevista fluísse como um momento de catarse, de cumplicidade, de confiança. A
maior parte dos jovens entrevistados confidenciaram o uso de drogas ilícitas em algum
momento de suas vidas, outros relataram o seu uso contínuo ainda hoje.
As entrevistas, reitero, foram livres e descontraídas, conduzidas com o máximo
de liberdade e respeito às limitações de cada um, considerando sobretudo a temática
abordada, possíveis implicações para o local de realização das entrevistas. E desta
forma, espontaneidade e até momentos de descontração deram estímulo para que as
realidades vivenciadas no cotidiano da vida daqueles jovens fosses partilhadas com
motivação em todo o seu curso 7.
O trabalho foi lento, pois inicialmente tive o cuidado de observar o
comportamento de alunos em sala de aula, nos intervalos, nos processos interativos
dentro do espaço escolar, sempre acompanhado de um professor. Conversei com
professores e funcionários da escola sobre a percepção do que seria a dinâmica da
comunidade, sobre os detalhes mais sutis da realidade de vida trazida por aqueles alunos
para aquele espaço. Fiquei uns dois meses nessa observação e acompanhamento das
aulas até iniciar de fato as entrevistas. A direção em nenhum momento resistiu ao
propósito da pesquisa, não me permitindo apenas que as entrevistas fossem gravadas
por uma questão de segurança dos entrevistados. Este cuidado por parte da escola
residia exatamente no fato da mesma estar localizada numa comunidade dotada de
tráfico de drogas e também de que a temática abordada nas entrevistas pudessem vir a
__________________________
7
Em “Poder e ética na pesquisa social”, da Biodiversidade/Artigos, Guita Grin Debert, argumenta
segundo um trecho de Oracy Nogueira, que no presente a necessidade de se redefinir os procedimentos
éticos, haja vista que os sujeitos tradicionalmente estudados por suas diferentes disciplinas passam por
mudanças radicais, e em que novas agendas de pesquisa desafiam as fronteiras disciplinares.Devendo o
cientista social como alguém que ocupa não apenas uma posição de saber, mas é também detentor de
status, prestígio e poder, num mundo em que os setores estudados são desprivilegiados, vítimas de formas
de opressão e dominação, minorias em situação de vulnerabilidade. Cuidar para que os interesses dos
grupos pesquisados sejam precedentes aos interesses da pesquisa. Sendo temas centrais da discussão o
caráter do consentimento (formal ou informal), o tipo de informação que o pesquisado deve obter da
pesquisa de que participa, a capacidade legal e intelectual dos entrevistados de entender o trabalho
proposto e as formas de coerção que podem estar envolvidas nessa relação. Avaliam-se, também, os
riscos envolvidos na publicação dos resultados, porque as conclusões destes pesquisadores jamais
poderão constranger, humilhar ou trazer prejuízos para as populações estudadas. (Revista Cienc.
Cult. vol.55 no.3 São Paulo July/Sept. 2003).
(acessado em http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v55n3/a19v55n3.pdf)
46

comprometer a rotina de vida dos entrevistados, caso alguém equivocadamente


interpretasse o propósito do trabalho de pesquisa, entendendo que detalhes
comprometedores pudessem ser alvo de ações policiais na mesma. As instalações
físicas, por se tratar de uma escola, foram perfeitas para a observação direta dos
processos interativos entre os jovens assim como para recrutar aqueles que tinham
interesse em ser inseridos na pesquisa. Ao final, muitos se voluntariaram, no entanto a
opção por estudantes maiores de 18 anos limitou consideravelmente este universo, no
entanto não comprometeu o trabalho visto que o corpo discente era muito grande e
muitos dos relatos passaram a se repetir.
Nas conversas que desenvolvi no início de minha entrada no campo, a direção assim
como alguns professores, externaram a relevância da abordagem da pesquisa sobre o
sentido e percepção da violência sob a ótica do jovem, visto que, como em todo espaço
social neste a heterogeneidade também se faz presente. Assim como muitos alunos se
mostram aplicados e desenvolvem habilidades segundo as estratégias pedagógicas da
escola, outros agem em direção contrária. Por exemplo, sobre a vida dos alunos na
instituição escolar, algumas questões foram colocadas por professores e funcionários da
escola, tais como: a questão da evasão escolar que é maior no turno da noite, e muito
pequena no turno da manhã. As reuniões com pais de alunos também foi apontada como
problemática, em virtude do fato de que a maioria dos pais não compareciam e geralmente
não justificam sua ausência. Quanto ao uso de drogas por alunos dentro do espaço escolar,
a direção teve que ser cautelosa no trato da questão, embora tivessem admitido na ocasião
estarem sempre vigilantes no que tange ao problema. Outro ponto colocado, foi sobre
brigas entre alunos de locais distintos do bairro que rivalizavam o controle do tráfico,
considerado extremamente preocupante do ponto de vista da violência e contavam com
certa frequência de ocorrência. Todos estes pontos considerados pertinentes e de certo modo
imbricados à temática violência, foram citados durante as conversas, de modo que a
pesquisa mostrava sua validade prática e social.
De um modo geral, o que se percebe é que o espaço escolar reflete parte da realidade
vivenciada dentro da favela: conflitos entre jovens, o uso de drogas e a ausência do
elemento familiar. A questão da violência, segundo alguns professores é abordado em
atividades de classe pelo corpo docente, como forma de sensibilizá-los sobre o crescimento
da violência tanto no espaço escolar como fora dele. No entanto, os professores com mais
tempo de sala de aula pontuam que é nítido como parte das gerações que chegam ao ensino
médio oriundas das comunidades do entorno, de alguma forma, já se mostram mais
47

suscetíveis e defensores do uso da violência no cotidiano, quando já não estão envolvidos a


pequenas práticas delituosas.
48

CAPÍTULO 4

4. Significados da violência sob a perspectiva dos jovens selecionados

Neste capítulo tenho como objetivo analisar trechos selecionados dos relatos dos
dois jovens entrevistados motivados em explicitar o sentido e a percepção atribuídos ao
fenômeno da violência por estes construídos em seus espaços sociais. Neste intento,
procurei observar o modo como construíam suas narrativas na tentativa de dar conta do
fenômeno considerando o contexto social em que foram socializados, tornando-o
inteligível segundo um olhar sociológico. Outrossim, participo que nesta análise não
tenho a pretensão de sistematizar ou trazer uma conclusão objetiva do fenômeno da
violência vivida e percebida nas periferias da cidade de Salvador como um todo
generalizável, mas sim o interesse nesta questão encontra-se no fato de que a juventude
pobre e de maioria negra das favelas e bairros periféricos são rotulados de perigosos e
protagonistas no processo de delinquência. A centralidade dos discursos do mundo do
crime, dos processos de criminalização da pobreza nos territórios de periferias urbanas,
a estigmatização e preconceito por parte da sociedade como um todo destes locais e tipo
de jovens, figuraram e estiveram amplamente nos discursos dos entrevistados. Isso
aponta serem a juventude pobre das favelas um dos principais objetos de ações policiais
e da violência oficial, realizada contra os mais pobres, com certo apoio e anuência da
sociedade e da mídia. Jovens pobres e negros de periferias urbanas também são vistos
como capazes de agir com frieza e extrema crueldade, os mais associados ou vinculados
ao tráfico, a práticas de roubo e outras atividades criminosas. Meu objetivo, como dito,
nesta monografia, foi o de buscar capturar e analisar nas entrevistas o modo como estes
jovens elaboram a questão da violência vivenciada no dia a dia em seus contextos
sociais.

Das duas entrevistas selecionadas com o intento de se obter o sentido do


fenômeno da violência vivida numa favela, tive como horizonte todas as transcrições
das falas dos jovens Jamile e Nescau, lidas várias vezes e nelas foram identificadas
expressões significativas relativas às experiências consideradas pertinentes ao sentido
atribuído à violência em seu mundo vivido.

Os aspectos julgados mais pertinentes nesta análise apontam à exaustão para


questões como pensar o território como um local de violência inconteste, marcado pela
49

presença do crime que gera a insegurança da cidade em todo o seu entorno. Uma primeira e
importante ideia que foi encontrada nos relatos e passada por parte destes dois entrevistados
selecionados é que eles são vítimas da violência e triplamente condenados: “primeiro
porque são pretos e pobres, segundo porque moram numa favela - um local feio, sujo e que
reúne o que não presta na cidade – e por último, porque são eles, os jovens, pobres, negros e
favelados, os principais envolvidos nas práticas de violência que tornam a cidade insegura
e perigosa à sociedade.”
Dos dois jovens selecionados para servir de objeto da análise quanto à questão do
sentido e percepção de violência vivenciada em seus universos sociais de interação,
ambos falaram sobre o uso ostensivo da força por parte da polícia militar, e o
desrespeito destes policiais para com toda a comunidade de seus moradores, pelo seu
preconceito e principalmente exercício de violências desmedidas. Quando tratam da
presença do tráfico na favela, admitem da mesma forma existir um excesso de uso da
força física contra muitos de seus moradores, no entanto, consideram-na com um devido
ou maior grau de legitimidade, quando comparada à dos policiais, pautando-se num agir
que denota algo de uma ‘dimensão moral’ que se consolidou apriori entre os moradores
e a vida na favela. Como um código de conduta que é conhecido e torna-se uma regra
implícita entre os moradores. Uma estratégia tolerável de se viver na favela. Norteando
as ações das pessoas naquele espaço de interação, e o menor vacilo pode representar
uma forma de punição sobre o infrator, sem que se possa fazer nada para impedí-la.
Visto constituir-se no que Zilli descreve como a ‘lei da favela’. O que seria um conjunto
de crenças, valores e práticas que denotaria uma orientação normativa através do qual
jovens envolvidos e a própria comunidade operam interna e socialmente. A vida na
favela, seja no Bate-coração, Calombão, Tubarão ou Estrada da Cocisa, seguem regras
de convívio necessárias para que haja uma forma de equilíbrio tolerável entre os que
nela moram sejam vinculados ao tráfico ou não. O tráfico existe, o individuo
trabalhador também, a relação que se estabelece entre diferentes grupos tende na
maioria das vezes a buscar este equilíbrio, respeitando a lei do mais forte: no caso,
aquelas que são impostas pelo tráfico, e que pode mudar a depender de que grupos
comandam o território, se estão em guerra com outros ou tem hegemonia, etc...
50

A situação biográfica

Em Schutz a situação biográfica é uma unidade na que se constitui o sujeito


dentro de um mundo compartilhado e intersubjetivo. Um mundo que existe
independente do sujeito, composto por elementos materiais pertinentes à história de
uma cultura, onde o sujeito ancora sua biografia e onde se forma o “outro”,
imprescindível à sociabilidade que se concretiza nos atos comunicativos.

Neste tópico serão abordados em breves linhas os perfis dos entrevistados com
vistas a apresentar ao leitor pessoas reais em seus contextos sociais interativos: no caso,
sua vida na favela. Da socialização que se constrói pelas experiências em seus campos
subjetivos e particulares, dos sentidos que dão forma ao seus ‘estoques de
conhecimentos’ construídos em suas vidas diárias. Um mundo compartilhado,
intersubjetivo e de permanente deciframento das ações dos sujeitos. Neste sentido,
alude-se à importância de compreender os indivíduos dentro de seu mundo social como
um ator capacitado a apresentá-lo na essência enquanto unidade de sentido possível de
entendimento.

As entrevistas descritas constituiram uma transcrição sumária da fala dos dois


estudantes selecionados em resposta ao que ficou definido como o enunciado da
pesquisa de investigação.

Jovens selecionados:

1) Jamile

20 anos, negra, estudante do 1º ano noturno, mora no Calombão, não tem filhos,
mora com a família e com namorado [disse namorado, pois segundo a mesma ‘marido
é quando casa’] . Família vive do trabalho do pai que é porteiro em edifício no Campo
Grande, mãe do lar, namorado trabalha de cobrador de Van que circula da Ilha de São
João até Paripe. Só tem mais um irmão de 17 anos. Segundo o seu relato, o namorado
já usou maconha, mas atualmente só fuma cigarro e ambos bebem nas festas de largo
nos finais de semana. A entrevistada só estuda. Perguntada sobre sua visão de violência,
responde que “tá tudo violento”. E Prossegue; “a gente mora em invasão, favela, esses
nomes todos que as pessoas gostam de dar porque aqui moram muitos pobres e tem
tráfico; a gente sabe disso. E as pessoas aqui não se tratam assim, mas quando a
51

gente sai daqui a gente vê a diferença nos olhos dos outros, principalmente quando os
meninos usam bonés, tatuagem, bermudas da Seaway, Mahalo. Geralmente a gente
vai para praia da Ribeira final de semana e eu já vi muitas vezes os policiais dando
dura nos ônibus quando a gente volta da praia e parece que eles escolhem os meninos
para dar baculejo [revista]. A gente sabe que é por causa das roupas e porque são
negros. Um monte de coisa que a gente usa e que para polícia e para os barão é coisa
de ladrão, e nem sempre é. Até eu quando tinha 16 anos, eu já ia para ribeira, ficava
no Cantagalo e tomei vários baculejos de policiais femininas e elas são tudo tiradas,
trata a gente como lixo. Uma quase me dá um tapa na cara porque achava que eu
tinha alguma coisa na bermuda, e não achou nada em ninguém e ficou de cara feia
quando não acharam. Minha mãe sempre fala para levar documento e não andar de
bonde [em grupos grandes], mas qual é a graça de ir sozinho pra praia? – a gente é
favela, as pessoas já olham atravessado. Não adianta. A gente não nasceu em outro
lugar. Mas a praia é publica e nada a ver achar que porque é favelado tem que ser
ladrão. A maioria dos nossos amigos aqui já tem filho, tem família; estudar não vou
mentir, é chato, é melhor botar uma guia [ponto de comercio informal] de qualquer
coisa e ganhar o nosso aqui mesmo onde a gente mora, melhor que ir para outro lugar
e passar por isso. A violência para mim vem das pessoas acharem que em favela só tem
ladrão. Ladrão tem em tudo que é lugar e nem sempre vem de favela, na política tá
cheio - ri. Se o cara não tem de onde tirar dinheiro, não tem emprego, não tem
comida, tem filho, o que a pessoa vai fazer? – em casa fica aquele aperto de mente, e
ai? – olha vários amigos já foram trabalhar na boca, outros vendem amendoim,
queijo, salgado com suco, mas às vezes dá muito pouco e o cara fica na
bruxa[estressado] e acaba fazendo uma besteira. Recente agora, um amigo nosso que
vendia queijo na Ribeira, ele tem um filhinho com uma menina daqui mesmo, eu não
sei dizer o que deu na cabeça dele, ele era de boa, mas foi roubar no ônibus os
policiais encurralaram, ele correu e parou numa rua sem saída em Plataforma.
Mataram ele na covardia, me diz como um cara só e um monte de policia: precisava
matar ele? – podia prender. Ele estava só o outro que tava conseguiu fugir, ele ficou
sozinho. Isso [tudo] eu falo que é violência. Ele estava errado, tava roubando, mas ele
trabalhava, vendia queijo, você podia ver ele todo sábado e domingo indo para São
Joaquim comprar queijo. Acho que foi ver o filho sem nada para dar, acho que voltou
pra cá cheirou com os meninos e toparam fazer uma “correria” [assim comentaram
52

aqui – soube pela fala de outras pessoas da favela], que fez ele tentar essa onda. Ele
não era um menino que vivia nisso, eu acho que na primeira ele não teve sorte. Agora
ele morreu e a menina dele vai ter que se virar ou arrumar outro cara. E o filho vai ser
mais um criado aqui sem pai. A gente vê isso todo dia, e não é bom de ver. Às vezes dá
um frio na barriga. Eu acho que a violência está ai. A favela também tem o tráfico, eles
tão sempre em briga com ‘os alemão’, mas os moradores não entram em nada, agora a
gente vai tentar emprego, tem que ter cursinho, tem que ter um monte de coisa às vezes
para limpar chão[entrevistada refere-se às exigências do mercado de trabalho]. A
maioria dos meus amigos já tem filho, o cara fica neurótico com tudo isso. Eu acho que
ninguém entende a vida aqui dentro da favela. A gente vive como todo mundo, as casas
não são bonitas, falta um monte de coisa, mas se você perguntar quem gosta daqui,
quase todo mundo vai dizer que gosta. A gente está acostumado, a gente tem família,
amigos, muita resenha[momentos de descontração vividos no dia a dia dos moradores
em que se fala de assuntos diversos, inclusive sobre a vida na própria favela] . A
violência é a causa da morte de um monte de gente, a maioria muito novo, mas eu
acho que o problema é que está difícil para todo mundo, eu às vezes me pergunto, pra
que estudar tanto? – minhas amigas pararam de estudar e tão fazendo bico. Eu to
estudando e não achei nada, se meu namorado não fizesse os serviços dele e eu não
tivesse o apoio da minha família e tivesse que pagar aluguel a gente tava muito
enrolado. Existe violência sim, mas a gente daqui não somos o motivo do mundo está
como está, a gente é mal vista, e por isso a polícia desce o pau e mata sem miséria.
Mas no fundo eu acho, que a gente paga por ser o que somos. Essa é minha opinião.”

2) Nescau

19 anos, negro, não tem religião, mora com a mãe e mais quatro irmãos todos
negros [entrevistado coloca a questão da cor da pele nestes termos]. Dois são maiores.
Não conheceu o pai. Não trabalha, a mãe é doméstica na Barra, um irmão trabalha de
borracheiro na Escola de Menor [ladeira que separa Paripe e Calombão] e outro é
barbeiro na subida da mesma ladeira. O entrevistado só estuda e admite o uso de drogas
ilícitas desde os 14 anos, não tem filhos e namora uma ‘piveta’[menina segundo as
palavras do entrevistado] do Bate-coração.
Relata que numa ocasião tomou as dores de um amigo próximo numa briga com
outro menino do morro na mesma comunidade. O outro jovem envolvido no embate foi
53

até a boca e relatou que apanhou dos dois num ato de covardia. O pessoal da “boca”
puniu um dos dois ao ponto de fraturar gravemente a mandíbula do outro menor, que
ficou um mês internado porque teve que colocar uma prótese metálica para ligamento
da fratura. A mãe não pode dar queixa, por saber que representaria sua expulsão da
favela, ou quiçá, coisa pior. Como relatou um vizinho à época durante o ocorrido: “O
problema da favela, se resolve na favela”. De modo que sua mãe arcou com todas as
despesas com antibióticos e idas e vindas ao Hospital Caribé. A visão de violência
relatada pelo jovem justifica como legítima a ação dos homens da “boca”, que julgou
covardia dois contra um, e espancaram o amigo do entrevistado para que servisse de
exemplo. Perguntei sobre essa percepção, e o mesmo disse que a maioria das pessoas
na favela recorrem à boca para problemas de agressão, furtos, conflitos domésticos.
E nessa via de resolução de conflitos, tornou-se legítima a ação dos que “trabalham”
na boca sobre a questão da ordem na favela. O jovem agredido não ficou com sequela
visível, mas apresenta uma prótese metálica na mandíbula inferior. O outro, hoje
trabalha na “boca” e os antigos “soldados” da boca foram mortos em uma incursão
policial. É dito pelo entrevistado que os grupos que dominam os pontos de venda de
drogas são frequentemente substituídos, “tem sempre pivete novo”. Ou porque alguns
resolvem sair após testemunhar muitas mortes prematuras em confronto seja com
rivais do tráfico (menos frequente de acontecer) ou com a polícia, outros morrem
(maioria) e alguns são expulsos das comunidades por contrariar algumas regras do
tráfico. Como por exemplo nunca roubar na área, ou ser apontado como estuprador,
vender droga de outro grupo rival na mesma favela dentre outras atitudes vistas como
“infrações”. Do ponto de vista deste entrevistado, “a violência está mais ligada ao fato
de que as pessoas não entendem a favela”. Ele se diz usuário de maconha, a família é
conhecedora, e mais dois de seus irmãos a utilizam. O mesmo se vê como exemplo
quando diz que “sou usuário, mas não deixei de estudar, embora não goste. Vivo na
favela, amo a favela e nunca roubei. Uso tatuagem, larguei várias no corpo, mas não
sou bandido. Entendeu? Acho que é onda morar na favela para quem não é de lá, para
quem não tem nada a ver. A polícia tem um jeito que pra eles é o ladrão que eu não
acho que bate com todos os pivetes que eu conheço. Eu tenho muitos amigos como eu
que são de boa. Nunca se envolveram e não se envolvem. Já tive muitos que morreram
por que a polícia matou que eram de boa. A gente fica sem dormir com medo,
qualquer zoada já pensa que são os policia entrando. Eu não durmo com luz
54

apagada, e tem um monte aqui que é assim também. A gente nunca sabe. Policia
também cheira, vai que esses caras entram na onda e porque não vai com a cara do
pivete, mata. E ai? – Tá feito. Eu e todo mundo já viu isso aqui. Dá ultima vez
queimamos pneu na estrada velha, durou ate a tarde. Os moradores da vila da
Marinha não puderam entrar, veio jornal, repórter. Morre muito envolvido, uns
pivete que são sinistro mesmo, que gosta de encurralar, que toca terror, mas tem
muito que não entra em nada e morre de graça. Como é que a polícia vai saber se não
mora aqui dentro? – isso é violência entendeu? . A gente é tudo preto mesmo, pobre,
não tem barão na favela, só o patrão, mas ele não vive aqui dentro, ele anda pelos
camarotes, nas baladas. Policia não sabe abordar favelado, eles já chegam tocando
terror. Revistar é normal, mas pra que dar murro, tapa na cara? – isso revolta, às vezes
o policial é preto igual a gente e parece que é melhor. Não adianta falar, eu acho que
isso nunca vai mudar nada, se for matar porque a gente é preto vai matar a favela
toda. Porque tem tatuagem, porque usa maconha? – vai a favela toda. Violência é
isso. É como se aqueles caras não entendessem nada daqui e tivesse que mostrar
serviço. Isso não vai acabar. Porque favelado não pode nunca estar feliz que tem alguma
coisa errada. Não to falando que roubar é certo. Quem me deu meu celular foi minha
mãe. Aqui aparece um monte para vender, eu to ligado que a maioria é roubado, mas
prende o cara. Agora os homem saem matando. Pra mim nada nunca vai mudar, tem um
monte de coisa que eu não entendo, que é sobre os barão da política, da justiça, mas pra
mim violência é assim e eu quero ficar na minha, no meu canto e se tivesse uma casa no
interior eu me saia.

As tabelas 1 e 2 foram, a seguir, foram elaboradas com o objetivo de elencar


dados relevantes à análise, como declarações com teor significativos, seus significados
formulados e resultantes nas formas de temas que serão tratados como atinentes às falas
dos entrevistados sistematizadas e recuperadas dos relatos acima. É fato que não é
objetivo desta monografia esgotar todos os significados e temas que emergiram deles,
mas explorar analiticamente os principais pontos relacionados ao arcabouço teórico que
apresentei antes e norteou a presente pesquisa.
55

Tabela-01 “Nescau”
Declaração significativa Significado formulado Tema
“A violência está mais ligada favela: lócus da violência. Estigmatização territorial
ao fato de que as pessoas não
entendem a favela.”
(...)”Eu tenho muitos amigos O medo de ser confundido com o Medo: o risco de morte
como eu que são de boa. Nunca
envolvido. A vida sobre os trilhos.
se envolveram e não se
envolvem. Já tive muitos que
morreram por que a polícia
matou que eram de boa. A
gente fica sem dormir com
medo, qualquer zoada já pensa
que são os policia entrando. Eu
não durmo com luz apagada, e
tem um monte aqui que é assim
também. A gente nunca sabe.”

Tabela-02 “Jamile”
Declaração significativa Significado formulado Tema
“A gente mora em invasão, favela, Pobreza e favela, a encarnação Estigmatização territorial
esses nomes todos que as pessoas
do mal
gostam de dar porque aqui moram
muitos pobres e tem tráfico;
“Existe violência sim, mas a gente O ser pobre e favelado: o A sujeição criminal
daqui não somos o motivo do mundo
agente da violência no
está como está, a gente é mal vista, e
por isso a polícia desce o pau e mata determinismo social
sem miséria. Mas no fundo eu acho,
contemporâneo.
que a gente paga por ser o que somos.
Essa é minha opinião.”

O sentido e a percepção da violência: na ótica dos entrevistados

Nas leituras e observações de suas entrevistas, eu inferi que os jovens entrevistados


viveram de formas distintas uma mesma experiência coletiva dentro da favela. Para
estes, a violência não é prerrogativa da mesma, mas para esta é trazida. Por ações
policiais truculentas e não seletivas. Por falta de um trabalho investigativo direcionado e
objetivo. Por pressão da sociedade que atribui um sentido criminal à pobreza vivida na
favela. Por representar aquele que defende os interesses dos “barões”, daqueles que
discriminam a “cor da pele”, criminalizam a pobreza, interrompem os sonhos dos
amigos e trazem saudades e revolta.

A questão apontada pelos jovens entrevistados, sempre trazem nas suas falas um
sentimento de revolta e descontentamento com a polarização observada na sociedade
56

como um todo. As disparidades observadas e apontadas por estes são claramente


entendidas como falta de oportunidades que parece determinado a priori e emergem
como uma incapacidade deles em se inserir na engrenagem social. O viver o mundo do
jovem favelado sugere um processo que já nasce fadado ao insucesso desde o inicio. É
como se para alguém não houvesse a mínima possibilidade de ser diferente ou quiçá de
mudar o curso de suas vidas. A favela é feia, é suja, as pessoas que ali sobrevivem não
ostentam o que a vida fora da favela oferece a outros, no entanto, a vida favelada não é
vista, por sua vez como o problema da violência na sociedade. Cada indivíduo age de
acordo com um processo distinto de socialização, de uma situação biográfica específica
que lhe atribui uma forma de pensar e achar, a seu modo, uma forma de resolver os
conflitos que o afligem ou atingem mais diretamente. A violência, segundo os
entrevistados, existe, e é fato. Mas ela não pode ser tributada à favela. Favela e
territórios não favelados vivem uma polarização que se estabelece como regra de um
jogo que aqueles que o vivenciam na favela conhecem muito bem. Estas são fronteiras
que indicam o tipo de comunicação, como ‘vasos comunicantes’, que ocorre nestes
contextos (FELTRAN, 2008). Sem argumentar com precisão sobre os motivos pelo qual
a sociedade se encontra fragmentada, os jovens entrevistados apontam para uma
interpretação particular que denunciam o preconceito e estigmatização da sociedade
para com a vida como ela é vivida e percebida na favela, e com imagens e
representações que são reproduzidas à revelia em reportagens jornalísticas e falas
ouvidas em rodas de amigos e em família, estigmatizando, e culpando e criminalizado a
favela. No entanto, não concordam, se resistem a aceitar essa imagem que mídia e
sociedade mais ampla busca lhes impor sobre si mesmos, e seus relatos apontam
claramente para isso, eles insistem que a favela é incompreendida. Na percepção de
Jamile e Nescau:
“Existe violência sim, mas a gente daqui (da favela) não somos o motivo
do mundo está como está, a gente é mal vista, e por isso a polícia desce o
pau e mata sem miséria. Mas no fundo eu acho, que a gente paga por ser o
que somos. Essa é minha opinião.(...) A violência para mim vem das
pessoas acharem que em favela só tem ladrão. Ladrão tem em tudo que é
lugar e nem sempre vem de favela.”(Jamile)

“A violência está mais ligado ao fato de que as pessoas não entendem a


favela.” (Nescau)
57

O “matar sem miséria”, reforça a ideia da eliminação do elemento suspeito e é


ovacionado pela mídia e encontra legitimidade na sociedade que pensa ter se livrado do
mal que a impede de viver a vida perfeita e segura. O perfil da “vítima duvidosa” 8

citado por Ruotti et al (2014), encontra nas palavras de Jamile “a gente paga por ser o
que somos.”, um sentido que corrobora a justificativa para uma sujeição criminal
incontornável que dispensa discussões e buscam um consenso quanto à sua
aplicabilidade ou não a determinado indivíduo. Entretanto, quando checamos a
realidade presente na vida destas periferias o que encontramos é a constatação da
acusação social que vem ‘de fora’, punindo o sujeito num contexto onde o que
predomina é a incriminação do mesmo, resultante de uma construção social que
desconhece e o condena previamente.

Algumas vítimas podem ter suas mortes em parte justificadas ou em alguns


casos o encarceramento como forma de retirar da sociedade o elemento considerado
perigoso e nocivo. Este processo de seletividade é uma estratégia fundamental para se
entender a impunidade e violência que pesa sobre as classes populares, oriunda não só
do sistema de justiça criminal, mas principalmente pela sociedade como um todo.
Preconceito e estigmatização

A questão observada em todos os relatos do nosso universo de entrevistados, refere-


se ao fato de que há uma consciência coletiva equivocada sobre o olhar e o sentido que
a sociedade atribui à favela. Esta visão externa é carregada de preconceitos
racionalizados que em todo momento, e em todas as falas, emergem com um tom de
denúncia e queixa de que as pessoas de fora não entendem a favela e criaram para a
mesma, uma forma perversa de subjetivação permeada de mitos e considerações que
partem de um movimento generalizante para enquadrar sua população numa categoria -

_______________________
8
(Schillagi, 2009, citado por Ruotti et al, em seu estudo de caso sobre jovens, vulnerabilidade e morte
violenta durante os ‘crimes de maio em São Paulo) - O processo de seleção e diferenciação, constituem-
se no discurso público em dois tipos de vítimas: as “inocentes” e as “duvidosas” (Schillagi, 2009).
Qualidades estão relacionadas à visibilidade e à aceitação social daqueles que sofrem a agressão, sendo
fundamental para a atribuição do estatuto de vítima o pertencimento ou não a uma comunidade moral que
é identificada pelo bom proceder daqueles que a constituem.( SCHILLAGI, C. La disputa de las víctimas:
(in) seguridad, reclamos al Estado y actuación pública de organizaciones y familiares de víctimas de
delitos en la Argentina democrática. 2009. Trabalho apresentado ao Congress of the Latin American
Studies Association, Rio de Janeiro, 2009. Disponível em: . Acesso em: 1 fev. 2012.)
58

de marginalidade.

“A gente mora em invasão, favela, esses nomes todos que as pessoas


gostam de dar porque aqui moram muitos pobres e tem tráfico; a gente
sabe disso. E as pessoas aqui não se tratam assim, mas quando a gente sai
daqui a gente vê a diferença nos olhos dos outros, principalmente quando
os meninos usam bonés, tatuagem, bermudas da Seaway, Mahalo.”(Jamile)

“A gente é favela, as pessoas já olham atravessado.” (Jamile)

Nestes dois trechos selecionados da fala da entrevistada fica claro a ideia de um


tipo especifico de subjetivação que elabora um sujeito dotado de um rótulo que partindo
da forma dele ser, tende-se a inferir seu provável local de moradia e sua ocupação
dentro de um escopo de vida em sociedade. A fala dos jovens entrevistados revela uma
percepção que se materializa no dia a dia destes jovens e que os torna objeto de
repetidas abordagens policiais, em função do que Misse (2010) conceitua como sendo
uma situação de sujeição criminal. Segundo este autor, a referida situação alude a um
processo não democrático, não igualitário e principalmente não voltado ao bem comum.
O sujeito que partindo de sua composição e aparência física, seja pelo tipo de roupas,
adereços, corte de cabelo, presença de tatuagens que seu corpo porta, torna-se especial
num sentido estereotipado negativamente como agente de práticas criminais.
Moralmente repulsivo é o individuo para quem as reações de distanciamento das
pessoas tidas como de ‘bem’ são cultivadas e contam com amplo apoio da sociedade.
Tipos sociais’ de agentes demarcados (e acusados) socialmente pela pobreza, pela cor e
pelo estilo de vida. (...) não são apenas criminosos; eles são vistos e tratados como
“marginais”, “violentos”, “bandidos” (MISSE, 2010; p.18). Nas palavras de ‘Nescau’, e
também nas de Jamile, se pode inferir e avançar mais sobre o trazido em Misse quando
dizem:

“Se for matar porque a gente é preto vai [ter que] matar a favela toda.”

“A gente sabe que é por causa das roupas e porque são negros.”(Jamile)

Esses dois trechos narrativos aqui trazidos apontam bem a consciência e visão
que estes jovens têm e como vivem e sentem nas suas peles o problema que Misse
(2010) denomina de Sujeição criminal. Zaluar (1994) trata a relação entre polícia e
comunidade como ‘Quadro de mentalidades’9, por onde expressa a realidade de
59

construções oriundas de experiências destes atores no cotidiano da vida na favela. Estas


experiências, segundo a autora, se estruturam segundo uma trama de experiências entre
a vida local, pelas informações veiculadas pela mídia e pelo próprio modelo de
formação das polícias. Estas práticas de ações policiais parecem apoiar-se em ideias que
enquadram os moradores das favelas ou periferias como se todo e qualquer favelado
fosse parte das ‘classes perigosas’. O quantitativo da população carcerária brasileira
comprova este aspecto, se nos atentarmos para apurar qual a origem social da maior
parte da população carcerária e de que muitos, como o tem provado diversas pesquisas,
nem comprovação de crime tem, e ficam aguardando em prisão, anos por julgamentos
não realizados.

O que orienta a prática do trabalho policial é exatamente a ideia e construção que


passa a se erguer em torno do elemento suspeito. Onde roupas, cor da pele, idade,
trejeitos podem ser importantes indicadores a levar em conta para poder se antecipar e
detectar esse mal social. O meio social do qual sua vitima provem, na visão do policial,
como um outro possível determinante do comportamento criminoso. Nesta linha de
pensamento, fica mais clara a lógica que descreve a favela como o mundo da desordem,
que se oporia a um outro lado, o ordenado (a cidade formal) da sociedade, lado este que
não se abriga em barracos, ao que não faltam empregos, nem educação de qualidade.
As explicações mais comuns, para que indivíduos se tornem, ou sejam vistos como
‘criminosos’ variam desde a culpabilização da sociedade, às explicações deterministas
que tratam desse conjunto de compleições físicas acima descritas. E este mecanismo de
culpabilizar o pobre é apontado por moradores do Subúrbio ferroviário de Salvador
como o de um modelo arraigado em preconceito e estigmatizacão do que buscam,
criticamente, se afastar e resistir, no sentido dado a suas falas. Assim como o modus
operandi tão naturalizado no modo de operar da ação policial em bairros de periferia,
tende a desconsiderar que seus atos são preconceituosos e se dão contra pessoas da
mesma cor e classe que eles mesmos, na maior parte das vezes, desconsiderando a reali-

_______________________________

9
Em ‘A polícia e a comunidade: paradoxos da (in)convivência’, In: Condomínio do diabo, Alba Zaluar
utiliza o conceito de “quadro de mentalidades” para aludir a imagens e ideias que ficam cristalizadas em
cada uma das partes, policia e comunidade. Seriam preconceitos, estereótipos, memórias ideologizadas,
que vão se montando a partir de vários mecanismos. Resultantes de experiências concretas de moradores,
das imagens dos meios de comunicação, dos cursos de formação e praticas policiais. Onde para o meio
policial, a pobreza ou favela seriam os fatores criminógenos por excelência. (1994; pp.88-95)
60

-dade cultural e socioeconômica de uma cidade de maioria negra e pobre. Outra vez o
‘ser negro’ passa a ser usado como um dos principais critérios de suspeição. Em
contraste com outras partes da cidade, a vida favelada tende a ser mal entendida (e por
vezes vitimada por abusos policiais).

O tipo de constatação presente na fala sobre a realidade de se viver numa favela e


de ser favelado, negro, pobre e de contar com a presença do tráfico em seu cotidiano é
apresentado pela entrevistada Jamile de modo fatalista, como se fosse em um estado em
definitivo, e constituísse uma natureza irrevogável e incontornável: “A gente sabe
disso”, argumenta em tom de aceitação de uma realidade que lhe impõe a sociedade
como ‘maldição’. Ficando perceptível o conhecimento da desvantagem que se faz
presente na mente daquelas pessoas que se encontram nas franjas do tecido social,
marginalizados e pagando um custo pela falta de possibilidades e inclusão. A expressão
ora apresentada desvela uma concepção de vida que já esta cristalizada e que portanto,
pode ser um elemento capaz de corroborar a visão de sociedade fragmentada em pontos
do que é ‘ser ou não favela’. Aparência pessoal, graus de instrução, e outros sinais
diacríticos, são elementos que somados constituem o individuo que ocupa estes espaços
sociais e tornam-os alvo das medidas repressivas de violência orquestrada pela
sociedade. Sendo que são os jovens, pretos, pobres e moradores de favelas, atualmente
os mais afetados por estes mecanismos.

Medo: o risco de morte

“A gente fica sem dormir com medo, qualquer zoada já pensa que são os
polícia entrando. Eu não durmo com luz apagada, e tem um monte aqui
que é assim também.”(Nescau)

O risco de morte que se materializa nas execuções e nas trocas de tiro com a
polícia, a morte dos ditos “não envolvidos”, “trabalhadores”, apontam para um processo
de não seletividade das vítimas. As incursões policiais, segundo as palavras dos jovens,
tem pouco de objetividade na abordagens dos verdadeiros envolvidos. Fatores esses que
geram medo e insegurança para quem mora na favela e não faz parte de grupos ligados
ao tráfico.

“(...)Recente agora, um amigo nosso que vendia queijo na Ribeira, ele


tem um filhinho com uma menina daqui mesmo, eu não sei dizer o que deu
61

na cabeça dele, ele era de boa, mas foi roubar no ônibus [e] os policiais [o]
encurralaram, ele correu e parou numa rua sem saída em Plataforma.
Mataram ele na covardia, me diz como um cara só e um monte de policia
[...] Precisava matar ele? – podia prender. (...)” (Jamile)

“A gente vê isso todo dia, e não é bom de ver. As vezes dá um frio na


barriga.(Jamile)”

Depreende-se que a categoria violência objeto desta investigação, nas palavras


dos entrevistados, é reconhecida como fato real e existente. A ação policial surge como
aquele elemento externo, impessoal, estranho ao ambiente e à que é atribuída a principal
agência da violência na favela, na visão e fala de muitos dos jovens que nela moram.
Aquele que desconhece a vida vivida por aqueles indivíduos e cuja função é retirar das
ruas o que ameaça a sociedade. Ações policiais na comunidade, segundo relato dos
jovens, sempre têm como desfecho agressões físicas em alvos considerados “possíveis
suspeitos” ou nos casos mais extremos, até nos de se encontrar um corpo jogado nas
vielas ou no asfalto. E que nem sempre, segundo pontuam, é o corpo de alguém
realmente envolvido com o tráfico ou outras práticas ilícitas. Desta rotina, e práticas de
que eles são alvos, jaz o principal motivo do seu medo. Medo: sentimento constante
que faz parte e molda a vida na favela. O risco de transitar à noite na comunidade é
grande, visto que parte das ações policiais ocorrem muito mais nestes períodos.
Invasões de barracos, arrombamentos de portas com violência em casas de família e
sem devidas ordens de revista justificados em geral pela procura de ‘nomes dados’ por
algum informante infiltrado na favela não é um ato incomum e às vezes alguém é
confundido e eliminado. Para Feltran (2008), que discute e ilumina vividamente muitas
destas questões em sua reconhecida etnografia sobre os modos de operar do PCC em
São Paulo, o mundo do crime está centrado no mundo social, separado como que por
‘fronteiras’, no qual, algumas partes dos códigos de condutas são seguidos e
compartilhados com os que integram o mundo social e a outra parte se mostra oposta a
ele. Esta ideia de fronteira entre o que é o mundo do crime e o mundo social, segundo o
autor, é o que dá a tônica do indivíduo envolvido e pode confundir a busca do suspeito
na ação da polícia. Para os envolvidos há um mercado de fluxo fluído, códigos de
conduta que incluem punições e avançam sempre em práticas de violência a medida em
que mais se envolvem. Em todos os casos de envolvimento com o mundo do crime,
62

elementos comuns se fazem presentes para a concretização desta realidade: dinheiro,


consumo, sofrimento familiar e mortes violentas. (FELTRAN, 2008).
Seguindo esta linha de pensamento que recuperamos através da síntese de
algumas questões importantes trazidas nas pesquisas do Feltran sobre pessoas
envolvidas com o tráfico de drogas e o mundo do crime, no trecho narrativo de Jamile a
seguir, sobre o caso de um amigo dela da favela, com algum envolvimento, ela discorre:

“Se o cara não tem de onde tirar dinheiro, não tem emprego, não tem
comida, tem filho, o que a pessoa vai fazer? – em casa fica aquele aperto de
mente, e ai? – olha, vários amigos já foram trabalhar na boca, outros
vendem amendoim, queijo, salgado com suco, mas às vezes dá muito pouco
e o cara fica na bruxa (estressado) e acaba fazendo uma besteira.”

Nesta fala Jamile aponta que a pobreza pode ser um elemento motivador para o
ato delituoso. O ‘aperto de mente’, expressão que indica na linguagem utilizada na
favela, um tipo de cobrança exercida sobre a mente de uma pessoa em situações de
dificuldade que pode funcionar como o estopim para ações pouco racionais na
resolução de problemas. Neste caso específico a entrevistada trás um relato do jovem
que para alimentar o filho realizou um assalto em um ônibus, e foi morto por policiais.
Nas poucas oportunidades de trabalho de que fazem parte a juventude da favela, Jamile
cita os tipos de atividades informais utilizados pelos jovens para sustentar família e
adquirir bens de consumo. Vender amendoim, queijo coalho, salgado e suco... No
entanto, o lucro às vezes é baixo e concomitante às necessidades básicas, ao uso de
drogas, a vida mais difícil, acentuando as privações. E é neste contexto de necessidades
que surgem os convites para eventos isolados como pequenos furtos ou a venda de
drogas. Eventos esses que ganham uma maior aceitabilidade quando comparado com a
lucratividade incerta e o grau de dificuldade dos trabalhos informais citados acima.
Neste caso específico a entrevistada retoma o relato acerca do jovem que para
alimentar o filho realizou um assalto em um ônibus. Para Zaluar, a nova pobreza urbana
é fruto da rápida urbanização e das desiguais políticas salariais vigentes. Promovendo
distanciamentos estanques entre ricos e pobres. Num desenho social, onde a ausência
dos pais por períodos de longas jornadas de trabalho, passam parte de suas atribuições
socializadoras e de instrução, para instituições como a escola e centros de assistência
social.
63

Diferente de se pensar em desemprego ou no subemprego que afetam a


juventude, parece mais robusta este modelo de adesão juvenil à de práticas ilícitas da-se
em decorrência deste processo de agregação a grupos que Zilli chama de ‘mundo do
crime’. Para este sociólogo o que demandaria a entrada para o mundo do crime seria ter
uma arma, frequentar os eventos do “chefe” ou “patrão”, contrair guerras com grupos
rivais ou com a polícia. Tendo como garantias status, ganhos financeiros, problemas
decorrentes do envolvimento, traição, intrigas. Estes grupos dão aos seus integrantes
oportunidades de obter bens materiais e simbólicos muito valorizados entre jovens. Esse
status é desejado por outros jovens que enxergam nisso uma elevação do status nas
favelas.

Neste universo de práticas delituosas, o jovem é estimulado a consumir e


construir-se pelo que veste, pelo que tem. Para esses jovens o primeiro círculo vicioso
se dá na diferença daqueles jovens que somente roubam para se vestir e tornarem-se
parte da juventude daquela comunidade. A aquisição de algo socialmente valorizado. O
“ganhar dinheiro fácil”, e a prática se renova continuamente. A arma de fogo toma lugar
crucial no cálculo de que o crime pode compensar. Os jovens vivem a ilusão do poder
aparentemente sem limites que adquirem ao portarem o “ferro”. Arma como símbolo
fálico, instrumento de exercício da força, o respeito alcançado na localidade. Outra
razão capaz de reforçar este envolvimento. A sensação deve valer o risco; prisão e
morte nem sempre são lembrados no momento do crime (ZALUAR, 1994).

O tráfico na favela: as regras e o proceder

Contudo, também existe violência e um código de conduta impostos pelo tráfico


instalados nestes territórios. No entanto, a questão da convivência, do compartilhamento
do mesmo espaço, rompe em partes com a impessoalidade observada na ação policial.
De modo que, para os entrevistados, moradores que não são envolvidos, “não entram
em nada”, ou seja, não são objeto de atrito com estes grupos que controlam o comércio
de drogas, que vivem a margem. A questão pontuada por Jamile e corroborada por
Nescau, é que o tráfico para a favela não é o problema maior. Definindo as regras como
claras e conhecidas.
64

“A favela tem o tráfico, eles tão sempre em briga com os alemão, mas
os moradores não entram em nada.

“ (...)A maioria das pessoas na favela recorrem a boca para problemas


de agressão, furtos, conflitos domésticos. E nessa via de resolução de
conflitos, tornou-se legítima a ação dos que “trabalham” na boca sobre a
questão da ordem na favela.”(Nescau)

O entendimento do que é violência para um jovem no cotidiano da favela


perpassa por modelos de socialização que se constroem do entrelaçamento de fatores
que se complexificam numa teia densa onde o que é certo ou não depende exatamente
deste processo de experiências construídas. A dimensão simbólica ou estruturas
significantes é um componente fundante que se acopla à dimensão histórica daquele
contexto de interação. Segundo Marques (2009) “As regras de convivência são
compactadas pelos moradores como um proceder.” Regras que variam historicamente e
de acordo com este autor, para buscar a inteligibilidade da realidade destas relações
cotidianas faz-se preciso ir às narrativas destes jovens. Sobre uma dada ‘legitimidade’ e
ordem na favela. Por exemplo, Nescau relata o seguinte episódio:

“Relata que numa ocasião tomou as dores de um amigo próximo numa


briga com outro menino do morro na mesma comunidade. O outro jovem
envolvido no embate foi até a boca e relatou que apanhou dos dois num ato
de covardia. O pessoal da “boca” 10
puniu um dos dois ao ponto fraturar
gravemente a mandíbula do outro menor, que ficou um mês internado
porque teve que colocar uma prótese metálica para ligamento da fratura. A
mãe não pode dar queixa, por saber que representaria sua expulsão da
favela, ou quiçá, coisa pior.” (Transcrição da entrevista realizada em
março/2016)

“Como relatou um vizinho à época durante o ocorrido: “O problema da


favela, se resolve na favela”. De modo que sua mãe arcou com todas as
despesas com antibióticos e idas e vindas ao Hospital Caribé.” (Transcrição
da entrevista realizada em março/2016)

Nesta segunda transcrição, Nescau cita a fala de um morador local seu


conhecido, quando foi agredido pelos ‘caras da boca’ na ocasião em que tomou as
dores de um amigo. O evento acima descrito por Nescau, descortina um modelo de
65

realidade vivenciada no dia a dia das favelas, que não constitui especificidade isolada
das comunidades periféricas de Salvador. Zilli (2015) trata por ‘lei da favela”, conceito
que se constitui enquanto uma teia de valores que faz com que aqueles que a seguem
gozem de “status” na comunidade local. A quebra destas regras locais tendem a ser
punidas com extrema violência pelo tráfico. Um tipo de poder que perpassa a vida no
interior destas comunidades e institui um ‘proceder’ ou modo de agir que estaria ligado
a uma dimensão moral que é utilizado como poder por quem a instituiu: no caso, o
tráfico. Marques (2009) ressalta que a realidade no cotidiano das comunidades que tem
estes parâmetros de condutas instituídos submetem toda uma vivencia compartilhada a
um poder que atravessa o corpo social produzindo na ‘ilicitude’ o lícito que ganha corpo
na construção de discursos de verdade, capaz de julgar, sentenciar e promover outros.
Os socialização de regras específicas de convívio num movimento que aponta o certo e
o errado.

O tráfico ou os grupos de delinquência que atuam nas favelas e periferias, agem


por um conjunto de códigos e regras que parte dos moradores veem legitimidade ao
considerarem ‘ser o certo’. Justificando os atos punitivos a eles imputados segundo um
suposto modelo correto de justiça. Como alude Feltran, nesses ambientes, o mundo do
crime é o parâmetro narrativo central em torno do qual gravita todo tipo de diálogo. Tal
como uma conversa considerada simples e corriqueira entre jovens numa manhã ou ao
anoitecer numa esquina, na frente de uma casa, que sempre envolvem aspectos como a
perda de um amigo de infância, de um parente, de um companheiro ou companheira.
No entanto, ações policiais na maioria das vezes, são vistas como covardes e causadoras
de grande indignação, até mais do que as imputadas pelo tráfico. Uma espécie de honra
tradicional e local, importante para a construção da identidade que difere o morador
comum do elemento envolvido. Uma espécie de capital simbólico, tomando Bourdieu.

As regras do tráfico são claras e direcionadas e o aviso de como proceder, corre


rápido a favela.Segundo as falas dos entrevistados, a atuação do tráfico, ao contrário das
práticas policiais vividas na comunidade em questão, não atingem na maioria dos casos

_____________________
10
“Boca”, categoria empírica. Significa local onde se comercializa drogas nas favelas e são geralmente
ocupadas por ‘soldados’(jovens que garantem a comercialização e a segurança do negócio.)
66

os moradores que não se envolvem.

De acordo com Machado da Silva (2008) as ‘garantias externas’ sustentam a


segurança ontológica da vida na comunidade. As garantias são representadas por rotinas
que incorporam o “prosseguir” em situações de incerteza. Essa visão da comunidade
tomada como ‘conivência’ com o tráfico, segundo a visão das forças policiais pode ser
um estímulo à violência policial nas palavras dos entrevistados. De modo a reforçar o
estereótipo também de não moradores destas localidades quanto a sua vinculação com a
criminalidade. Nesta mesma linha de pensamento as falas dos entrevistados revelam o
isolamento tácito das favelas na cidade. E como já dito antes, a centralidade dos
discursos do mundo do crime, do processos de criminalização da pobreza e
estigmatização e preconceito por parte da sociedade como um todo figuraram nos
discursos dos entrevistados.

Considerações finais

Tendo por base as narrativas selecionadas dos jovens entrevistados fica claro a
constatação que todos estes viveram de diferentes formas a mesma experiência coletiva
dentro da favela e construíram sentidos e percepções a partir de um modelo específico
de socialização. Para alguns a vida na favela não é violenta, mas a ação da polícia, o
preconceito e a discriminação vivenciados nos espaços públicos por indivíduos que não
pertencem aquele espaço social sobre os moradores das favelas, constitui parte do seu
modelo de violência experienciada.

Na percepção de Jamile e Nescau a violência está em todas as partes, no entanto


no que concerne à favela e seus moradores, o preconceito e a estigmatização parecem
ser seus maiores aliados. O favelado na visão da jovem sofre continuamente com sua
condição social, e é condenado pelo modo como se veste, como fala. Atribuindo-lhes a
sociedade, toda sorte de insegurança e violência, que se traduz num pensamento
coletivo de grupo incorrigível, perigoso e motivo das pulsões de violência no espaço
social. A ação policial legitimada por esse modo de ver a favela, nivela em tratamentos
desrespeitosos moradores sejam jovens ou adultos de ambos os sexos. Em ambos os
entrevistados a queixa principal foi contra o preconceito: moradores de favela não
querem ser identificados com o crime. O sentido dado à violência na percepção destes
67

jovens, aponta sem vacilar para uma visão estigmatizante e não seletiva, excluindo e
fazendo destes alvo de ações repressivas e de desprezo.
A incerteza social juvenil e o dinheiro fácil referência a uma ética às avessas do
trabalho, a violência policial que se orienta pelo frágil determinismo do meio social
recai sobre determinadas parcelas da população, apontando para um contexto de
vulnerabilidade que se potencializa nos processos de estigmatização e criminalização.
Destarte, situações de impunidade estiveram presentes nos relatos dos jovens como
condições prévias e determinantes para o que os jovens identificassem estas práticas
como os modelos de violência percebidos.
É preciso atentar para um conjunto de mudanças sociais em curso nas últimas
décadas, que vêm mobilizando um conjunto de tensões, inclusive para as novas
gerações. Alterações que dizem respeito a processos sociais mais amplos (com
repercussões locais), como flexibilização e precarização do mercado de trabalho,
urbanização intensa, processos de globalização econômica, bem como aquelas
referentes ao crescimento da criminalidade violenta. Segundo Feltran (2010), nas
últimas décadas é cada vez mais emblemático nas periferias do município um menor
alheamento (alienação) da população no que concerne a esse “mundo”. Isso acaba por
influenciar a sociabilidade dos jovens, independentemente de sua adesão e participação
em atividades ilícitas.

A imagem social construída em torno das populações moradoras de determinadas


localidades de baixa renda, fortemente conectada ao aumento da criminalidade,
relaciona-se diretamente com o tratamento diferencial adotado pelas instituições
estatais, incluindo a polícia que em casos específicos operam mecanismos diacríticos
(diz-se de ou sinal gráfico complementar que modifica o valor de algum símbolo, como
por exemplo o caso das tatuagens e seus significados na identificação de filiações a
facções) aumentando a vitimização de grupos específicos. Constantes vítimas que por
conta das deficiências num projeto de gestão social deformado, perpetuam-se num
movimento inerte. Vítimas de enquadramentos, condenações e abandono. Dos
processos de estigmatização da sociedade, endossados pelas lentes míopes da mídia
sensacionalista e pela opacidade das miras policiais.

A banalização resultante destes processos de violência, demonstra que as pessoas


nas comunidades pobres já se acostumaram com eventos desta natureza, tornando-se
68

sobreviventes familiarizados, desamparados e descrentes nas possibilidades de


superação e melhora das ações de justiça social.

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