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de Musicologia da UFRJ
MARIA ALICE VOLPE (Org.)
Anais do II Simpósio Internacional
de Musicologia da UFRJ
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Carlos Antônio Levi da Conceição
Reitor
Antônio José Ledo da Cunha
Vice-reitor
Debora Foguel
Pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa
Escola de Música
André Cardoso
Diretor
Marcos Nogueira
Vice-diretor
Conselho Editorial
André Cardoso
Diósnio Machado Neto
Elliott Antokoletz
Ilza Nogueira
Marcos Nogueira
Maria Alice Volpe
Maria Lúcia Pascoal
CDD -780.5
Sumário
ApREsEntAção 9
Maria Alice Volpe
pREFáCio
11
Maria Alice Volpe
AgRAdECiMEntos 13
CRÍtiCA
A música como linguagem e o retorno ao social 17
Edilson Vicente de Lima e Milton Castelli
tEoRiAs AnALÍtiCAs
Um estudo neo-riemanniano de dois fragmentos de música brasileira 57
Rita de Cássia Taddei e Rodolfo Coelho de Souza
INSTITUIÇÕES
Os Seminários de Música da Pró-Arte de São Paulo 145
Lenita W. M. Nogueira e Lilia de Oliveira Rosa
NOVOS RUMOS
Considerações sobre fundamentos teóricos compositivos para peças
instrumentais baseadas na escuta de paisagens sonoras 179
Marcelo Villena e Roseane Yampolschi
PERFORMANCE E CRIAÇÃO
A contribuição entre intérprete e compositor no processo de criação de três
concertos brasileiros para percussão 215
Fernando Hashimoto
PERFORMANCE E ESTILO
As Bachianas Brasileiras nº6 para flauta e fagote de Heitor Villa-Lobos: alguns
239
aspectos interpretativos para o fagotista
Aloysio Fagerlande
O presente volume Teoria, Crítica e Música na Atualidade oferece um amplo espectro dos
estudos recentes sobre a música do século XX em diante e favorece um diálogo frutífero entre
especialistas brasileiros e estrangeiros. A intersecção entre as teorias analíticas da música
e as teorias da crítica cultural tem catalizado importantes questionamentos da área, não
somente sobre os problemas teóricos e metodológicos das novas posturas, mas sobretudo
ao levar a um redimensionamento da própria identidade da disciplina. Busca-se refletir em
que medida as inovações da música do século XX em diante, ao trazer novas linguagens,
novas práticas composicionais e de performance e novas escutas, têm constituído locus
fundamental para novas proposições analíticas e críticas nos desenvolvimentos recentes da
musicologia, em sua ampla gama de abordagens. O tema apresentado neste volume mostra-
se ainda assaz propício à desejável aproximação da pesquisa musicológica aos processos
criativos. O debate entre os especialistas da música contemporânea busca ampliar o espaço
para as diversas tendências de análise e crítica, incentivando um encontro teórico-analítico
que norteie o impulso historiográfico futuro.
Maria Alice Volpe
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 11
AGRADECIMENTOS
E aos apoios de
Faperj
Capes
CNPq
Milton Castelli
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Na fala de Leoni, era como se a cultura produzida fora do mundo da elite cultural
não pudesse exercer influências para “cima”, ou seja, na música (ou na arte em geral) eru-
dita, qual seja, a música de concerto ou a música sacra. E, mais adiante, comparando Porto
Alegre e Silvio Romero, enfatiza: “Ao contrário de Porto Alegre, Sílvio Romero não separava
as manifestações populares das que mais tarde seriam chamadas de eruditas” (Leoni, 2011,
p. 103). Mais abaixo, sempre segundo Leoni, mesmo Romero que teoriza a mestiçagem,
acabará aceitando a divisão entre “baixa” e “alta” cultura:
Portanto, no limiar do século XXI, acreditamos que devemos não somente repensar
a divisão entre a produção popular e erudita, ainda muito enraizada em nossa sociedade
e refletindo em instituições e no fazer musical; mas também propor novos projetos so-
cioculturais que possam minimizar os efeitos dessa realidade. Neste sentido, a teoria da
hegemonia defendida por Jesús Martin-Barbero (2009), nos sugere outra orientação. Para o
autor, compartilhando com o pensamento gramsciano, uma dominação social se configura
como “uma imposição a partir do exterior e sem sujeitos, mas como um processo no qual
um classe hegemoniza, na medida em que representa interesses que também reconhecem
de alguma maneira como seus as classes subalternas.” (Martin-Barbero, 2009, p. 12)
A partir dessa leitura, é questionável a idéia de que as culturas populares seriam
passivas, diante da hegemonia da cultura erudita, pois esta “se faz e desfaz, se refaz per-
manentemente num ‘processo vivido’, feito não só de força, mas também de sentido, de
apropriação do sentido pelo poder de sedução e de cumplicidade” (Martin-Barbero, 2009,
p. 112). Desse modo, o popular configura-se “como um uso e não como uma origem,
como um fato e não como uma essência, como posição relacional e não como substância”
(Martin-Barbero, 2009, p. 113).
Outro ponto que parece legitimar nossa leitura seria teorizado por Michel Vovelle
(2004). No entendimento de Vovelle, os intermediários podem tanto ser sujeitos transver-
sais, que transitam entre o universo dos dominantes e dos dominados, possibilitando a
troca de valores culturais e minando não só a ideia de pureza da cultura oral e da cultura
1
Para uma discussão mais aprofundada, consultar: Martin-Barbero (2009); Canclini (2008) e Ortiz
(1992).
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 19
de Theodoro Adorno (1996, p. 66). Nesse sentido, a divisão configurada antes do século XIX
por Araújo Porto Alegre, permanece vigente. Mais uma vez, enfatizamos, o entendimento
da cultura como processo hegemônico, onde a dominação não prescinde de interação,
como defendido acima, pode nos ajudar a minimizar esse “gap”.
De qualquer modo, cabe frisar que o sistema tonal não foi somente a linguagem
da elite cortesã e burguesa dos séculos XVIII até o século XX; foi também o sistema que
possibilitou aos habitantes das zonas rurais e trabalhadores urbanos ligados à primeira
e segunda revolução industrial a produzirem suas manifestações musicais durante esse
período. Deste modo, não só óperas e concertos utilizam a linguagem tonal, mas também
uma parte das canções folclóricas e as músicas produzidas pela classe média e proletari-
ados urbanos. Assim, reconhecer-se na linguagem tonal representa algo mais do que ap-
enas comungar de valores burgueses; mas também partilhar um modo de expressividade
– que embora esteja também diretamente ligado aos valores burgueses – servirá como
meio (media) para a expressividade de outros sujeitos sociais: cultura oral, classes médias
urbanas, proletariado etc.
É evidente que não pretendemos com esta pequena comunicação discutir onde
Adorno tem ou não razão em sua crítica à indústria cultura; de certo modo comungamos
com a leitura de que o sistema capitalista tende a transformar tudo em mercadoria e,
nesse sentido, a obra de arte, e em nosso caso a música, não escapa a essa lógica. Mas o
que interessa para nós é frisar que nessa visão, a música “contemporânea”, nesse caso a
música de Schoenberg e pós weberniana, ao estruturar-se em outro sistema referencial
discursivo, o dodecafonismo e outros sistemas referenciais, acaba não somente negando
A morte da aura na obra de arte fala não tanto da arte quanto dessa nova per-
cepção que, rompendo o invólucro, o halo, o brilho das coisas, põe os homens,
Mas como discute Martin-Barbero mais adiante, Benjamin não se ilude com tecnolo-
gia, considerando que esta poderá vir a salvar os trabalhadores. Mas observa que uma nova
sensibilidade de fruir a arte, um novo modo de percepção, está sendo desenvolvido a partir
dos novos modos de produzir arte. Mas o que mais nos interessa, seria o reconhecimento
dos múltiplos sujeitos sociais que podem compartilhar a experiência da obra de arte dentro
de espaços coletivos, a cidade, e os “sentidos” que daí possam advir. Claro, uma atitude
de resistência, ou desalienada, não será imposta pelo Estado controlador, sobretudo nos
primeiros 45 anos do século XX. Porém, em Benjamin, há a esperança de que na multidão,
nos bares e cafés esfumaçados, nos cinemas ou na fotografia (e em nosso caso no youtube),
alguns “desesperados” tenham a possibilidade de experimentar um modo de fruir a arte
que não seja apenas aquele burguês: individualista; hierárquico.
Agora, muito embora uma atitude formalista possa parecer inicialmente longe
de relacionar a música com o inefável nesta acepção que foi ressaltada, todavia
existe certamente um caminho que leva de um pólo para o outro, estabelecendo
entre eles uma espécie de solidariedade peculiar. Talvez, expressando-nos
mais exatamente, poderíamos dizer que, quanto mais se exaspera o tema da
objetividade e da sintaxe, e quanto mais se ressalta a essência da obra como
um ser que de per si está separado de qualquer ligação com o mundo, tanto
mais nitidamente a impostação do problema tende a uma inversão total tão
logo se apresenta de novo a pretensão da expressão. Na música não há espaço
para tralalá de ninar. Mas tampouco fala de coisas grandes. Ela fala de nada,
ou simplesmente não fala. Mesmo assim, nestas negações existe a afirmação
Para Piana, talvez a “ausência de sentido” (o inefável) a que se referiu acima, seria
quando falta a palavra no ato da significação (Piana, 2001, p. 306). Mas isso não quer
dizer que não haja significação; ao contrário, há na verdade um excesso de sentido. E
esse excesso de sentido deve ser lido, também, como uma abertura de possibilidades,
dimensionadas histórica, social e culturalmente, ou seja, em sentido ontológico. E aqui
cabe, com certeza, a leitura efetuada por Duprat do conceito de intertextualidade inerente
ao discurso defendido por Eliseo Veron: “a noção de discurso é inseparável de um conjunto
de elementos extratextuais” e que “não se pode descrever o processo de produção de
um discurso” sem relacioná-lo “com um conjunto de hipóteses referentes a elementos
extratextuais.” (Duprat, 2005, p. 12). Sobretudo porque vige em todo discurso (o ato de a
consumação da linguagem), do qual a música não é exceção, o que Veron, nas palavras de
Duprat, caracterizou como “discursos ocultos”, ou seja, uma “profunda intertextualidade
que nunca chega a atingir a consumação social dos discursos” (Duprat, 2005, p. 13).
Mais adiante, embora Piana esteja se referindo também ao universo do “jogo” do
movimento sonoro2, e como esse movimento pode nos direcionar e dar “sentido” à nossa
escuta, a citação abaixo soa certamente como arremate:
Se é possível levantar uma problemática de sentido com relação à música, ela não
implica a sua suposta natureza linguística, mas sim a forma em que acontece o
encontro entre a imaginação e o universo dos sons. (Piana, 2001, p. 321)
Porém, não obstante a Análise Musical passe por postura culturalista, crítica e
histórico-fenomenolígica, as posturas organicistas, formalistas e estruturalistas têm sido
muito fortes (Duprat, 2005). Essas três últimas posturas buscam explicar como a obra
musical se constitui a partir de suas relações internas, reputando que só o entendimento
desse funcionamento, ou seja, “o que faz as composições ‘funcionarem’” (Kerman, 1987, p.
77), pode levar o ouvinte a um entendimento da obra, e que este (o entendimento de seu
funcionamento interno) produziria um elo comunicacional entre ouvinte e obra. E dentro
dessa perspectiva, gostaríamos de repetir parte da epígrafe que encabeça esse texto: a
música, para nós, “é assunto do sentido, do discurso, da retórica, do significado, da música
como epifenômeno de uma manifestação global do Homem, dos valores heterônomos.
Não é, portanto, exclusivamente musical.” (Duprat, 2005).
E dentro dessa leitura, já não podemos mais crer na posse exclusiva de recursos
tecnológicos (Duprat, 2005, p. 12); portanto, não podemos crer na posse exclusiva da
interpretação; ou, se quisermos, dos modelos analíticos.
2
O sentido em que Piana dá ao jogo, lembra-nos a concepção desenvolvida que Hans-Georg Gada-
mer em seu livro A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa (1985). Porém, acredita-
mos que essa comunicação não seja o lugar de aprofundarmos essa relação.
24 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Conclusão
No primeiro segmento deste texto, buscamos recompor como o popular e o erudito
são tomados como manifestações distintas já na primeira metade do século XIX, e neste
sentido os escritos de Manuel Araújo Porto Alegre (Leoni, 2011) aparecem como um marco,
norteando as discussões posteriores. Segundo Leoni, Araújo encarava a cultura popular
como um receptáculo passivo dos valores da “alta” cultura; e esta ideia continuará vigente
em alguns autores acentuando a divisão entre cultura popular e cultura erudita.
Do ponto de vista histórico, ao trabalharmos com a teoria da mediação cultural
(Machado, 2010; Vovelle, 2004) constatamos que valores de diversas classes sociais foram
trocados, não sem conflitos, obviamente. Nesse sentido, por mais que haja uma tentativa
de imposição por parte de uma classe hegemônica sobre as demais, as classes dominantes
sempre acabam absorvendo valores das classes dominadas.
É evidente que não queremos com essa pequena conclusão minimizar conflitos
sociais; mas evidenciar trocas interculturais entre classes e que o estudo de certas mani-
festações advindas de classes populares ou do que convencionamos denominar música
erudita, sempre podem conter valores comuns que concorrem ora de “cima” para baixo,
ora de “baixo” para cima. De qualquer modo, este aspecto também não deve tornar-se
uma camisa de força; um dogma. Mas estamos apenas tentando enfatizar que é possível
construir modelos analíticos do ponto de vista histórico onde esses dois mundos, o erudito
e o popular, não estejam tão separados, pelo menos na produção de bens culturais.
Outro fato, o reconhecimento das manifestações orais já no final do século XIX como
base de modelos nacionalistas e a ênfase em seus traços mestiços, também não configurou
uma inclusão das classes populares no processo de produção do conhecimento. Também
a produção popular praticada nos centros urbanos, numa visão tradicional, acaba sendo
tratada como manifestação que deve ser olhada com desconfiança, pois já nasciam con-
taminadas pelo modo de produção voltado para o mercado e, nesse sentido, com menos
valor artístico e com sua “autenticidade” comprometida.
Foi nesse sentido que destacamos que teremos uma tríplice divisão operando na
primeira metade do século XX: uma cultura popular de tradição oral, outra urbana, e uma ter-
ceira, cultura de elite (erudita). É justamente essa divisão, pelo menos no campo da produção
de conhecimento, que acredito que devemos repensar nesse princípio de século XXI.
Já o tratamento da música como linguagem, em nossa leitura, deve incorporar
sempre questões sociais e não ser tratada como uma aquisição de conhecimento técnico
que possibilite uma leitura específica (controlada). Foi nesse sentido que destacamos que a
obra musical, ao se consumar como um discurso deve levar em consideração não somente
seus pressupostos composicionais; mas seu potencial de produzir “sentidos” como destacou
Piana (2001). E esses sentidos estão seguramente relacionados com certa “intertextualidade”
inerente a qualquer discurso. Este, ao exteriorizar a obra, e ao “acontecer” no mundo real (o
mundo da vida) vai relacionar-se, seguramente, com a riqueza, ou conflitos, socioculturais
que implicam, também, elementos “extratextuais”, ou os discursos ocultos, como defendeu
Duprat (2005), e em nosso caso, extra-musicais.
Portanto a disciplina Análise Música deve, em nosso entender, ser pensada não
somente como competência técnica, mas como busca de dar sentido à música. E nesse
caso, as análises estruturais – levando em conta que houve uma liberação de sistemas de
referências e, por conseguinte, modelos analíticos – devem ser encaradas como um modo,
uma possibilidade de compreender a obra musical. Esta, a obra, que se realiza no discurso
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MACHADO, Cacá. “Batuque: mediadores culturais do final do século XIX”. In: História e
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I
Em relação às principais linhas de pensamento que têm dominado, desde o que
se costuma chamar de período romântico, a escrita e a metodologia dos livros de História
da Música e que têm, também, definido as práticas de canonização, quatro se destacam: a
Teoria do Grande Homem, a Teoria do Desenvolvimento Orgânico, o pensamento estético
de Kant e Hegel, e a filosofia idealista alemã.
Fruto do novo status atribuído aos compositores e do interesse pela música do
passado ainda em findo século XVIII, a primeira linha norteadora da escrita da História
da Música, denominada pelo musicólogo Warren Dwight Allen (1962, p. 86-91) “Teoria
do Grande Homem”, consiste na atribuição de um caráter quase religioso ao artista, con-
siderando-o um ente agraciado com um espírito genial cujo poder criativo não é produto
do seu intelecto, senão de uma revelação quase sobrenatural. Ainda que parte do ofício
artístico, a labuta e a elucubração diuturnas não bastam, segundo esta teoria, para alcançar
a excelência e produzir grande arte, mas apenas para desenvolver as potencialidades natas
que, no momento oportuno, serão reveladas.
Deveras diferente, pois, do conceito racionalista do músico como inventor que
intenta dominar, por meio de seu raciocínio, a arte da composição, este ideário enaltece
a figura do artista como um herói da História, um modelo ideal, absoluto e, por isso, inde-
pendente dos eventos temporais.
Não por acaso, é sob esta égide que recrudesce o gênero de escrita no qual a bio-
grafia de “grandes personagens” é elemento clave na construção das Historias da Música.
Assim como a História sociopolítica, a música no ocidente teve seus heróis e desbravado-
res. Concomitantemente, alguns autores passaram a defender, outrossim, a ideia de que a
genialidade e as contribuições dos biografados só seriam corretamente contempladas se
acompanhadas de uma análise estilístico-formal de suas obras.
Já a “Teoria do Desenvolvimento Orgânico” (Allen, 1962, p. 91-7), diferentemente,
propõe uma filosofia da História capaz de compreender o sujeito como um todo em suas
relações com o universal, não enquanto figura individual. A música, sob esta premissa, é
um saber cujo conhecimento representa o eixo da cultura moral humana e que, quando
dominado, conduz ao pleno entendimento do mundo. Em outras palavras, é um meio
expressivo que pode conduzir o homem, enquanto ente coletivo, à maturidade e à trans-
cendência, numa ideia de progresso contínuo. Neste âmbito, a História é compreendida
como avanço da consciência e do espírito do homem ou, nas palavras de Hegel, uma “fuga
musical, na qual, na direção do mundo, se sucedem os povos que por sua vez propõem os
temas dominantes” (apud Bodei, 2001, p. 45).
É a partir destes paradigmas que a Filosofia e a História começam a fazer uso de me-
todologias comparativas baseadas em premissas analógicas que, no intuito de corroborarem
suas “verdades”, traçam paralelos com outras áreas do saber. Como parte deste processo,
1
O próprio Hegel, por exemplo, considera a História em cinco fases: a infância (representada pelo
Oriente), a juventude (pela Ásia), a adolescência (a Grécia Antiga), o império romano representaria
a idade adulta; e, como ponto culminante da maturidade, estaria a Alemanha do século XIX. No
contexto propriamente musical, igualmente, há diversos exemplos de Histórias da Música que
fragmentam seus conteúdos nos mais variegados padrões de separação e de analogias. Grosso
modo, contudo, eles se dividem em dois grupos opostos: os progressistas, para os quais a música
contemporânea representa o ápice evolutivo e os tradicionalistas, que admiram o passado. Para
mais detalhes sobre os diversos modelos vide Allen, 1962.
2
Para o qual, grosso modo, o velho (que não se adaptava às mudanças) era substituído pelo novo.
3
Cuja teoria definia o processo evolutivo do simples e homogêneo para o complexo e heterogêneo.
4
E, em alguns casos, involuem.
5
Que, na sua concepção inicial, visava conciliar o foco na excelência nata dos grandes mestres – algo
deveras desestimulante para o jovem estudante – com o conceito de que a música aperfeiçoava-se
de modo natural, como um organismo.
6
De fato, as didáticas estudadas utilizam-no explicitamente ao traçar, por exemplo, o
“desenvolvimento” do organum, inicialmente, exclusivamente paralelo, posteriormente, paralelo
com dobramento de 5as e 8vas, organum misto oblíquo e paralelo, organum livre, o discantus da
polifonia de Aquitaine, a escola de Notre Dame e a introdução dos modos rítmicos e de até quatro
vozes.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 31
desinteressado”7, segundo o qual uma verdadeira análise da sensibilidade deve ser des-
provida de pré-expectativas, separada do entendimento de suas contingências permitindo,
assim, ignorar os contextos, circunstâncias e credos que poderiam influenciar a percepção
do objeto (Beard e Gloag, 2005, p. 6), e (b) Hegel que, norteado por Kant, trata a música
como entidade autossuficiente e autônoma. A relevância de ambos para a música reside no
fato de que a contextualização de ordem temporal ou cultural é, neste caso, não somente
prescindível como desaconselhável, quer seja por interferir no ‘real julgamento’ ou por
retirar sua independência.
Com a articulação, por vários autores e, sobretudo, por Edward Hanslick, do modelo
de autonomia de Kant e Hegel, priorizou-se o material musical e a música puramente instru-
mental em detrimento de considerações outras. E, como elemento legitimador do caráter
independente, a-cultural e atemporal da obra de arte, bem como da coerência de seus
elementos internos enquanto balizadores da valoração estética, recrudesce a importância
da teoria musical e da análise formalista para a História da Música.
Permeando este conjunto de ideias e contribuindo, assim, na consubstanciação
dos princípios norteadores da historiografia musical, destaca-se um quarto elemento
conceitual: o Idealismo, vertente estético-filosófica que dominou o pensamento artístico
(e musical) alemão a partir do inicio do século XIX. Partindo das definições do musicólogo
Mark Evan Bonds (2006, p. 6-28) acerca do mesmo, ele parece reunir elementos relevantes
das correntes supracitadas: as ponderações acerca (a) do papel do artista individual como
agente mediador entre o divino e o terrestre (presente na Teoria do Grande Homem); (b) a
atribuição da música como meio redentor, num contexto onde o espírito tem primazia sobre
a matéria (Teoria do Desenvolvimento Orgânico); e (c) na valorização do caráter autocontido
e independente da obra de arte, bem como da imperativa coerência de seus elementos
internos (Kant e Hegel). Nas palavras de Bonds: “A música ocupa o mundo separado dos
ideais, independente dos objetos e emoções mundanos, e tem o poder de nos elevar a
regiões acima das considerações cotidianas” (Bonds, 2006, p. 23).
Em resumo, somados ao culto romântico à personalidade, a construção dos pa-
radigmas da historiografia musical tem se pautado pelas teorias evolutivas, pela tradição
estética kantiana – onde o julgamento de uma obra deve ser calçado em sua estrutura e
finalidade formais, e pelas relações hegelianas entre música e história, esta como elemento
comprobatório da ação criativa do homem e possível fonte da verdade; aquela como ente
independente e separado das vicissitudes mundanas.
ii
É, pois, neste contexto de ideias onde a Musicologia surge como disciplina científica
nos moldes que se conhece atualmente e que se definem suas subáreas de pesquisa. É
quando, também, ela passa a se confundir com a própria definição de História da Música
(Kerman, 1982).
Para Alastair Williams (2007, p. 1), foi Guido Adler, sob influência do pensamento
epistemológico positivista das ciências sociais e da filologia literária, o principal responsável
por codificar os campos do estudo musical e organizar seus conteúdos e métodos, separando
o que denominou Musikwissenschaft (tradicionalmente traduzido por Musicologia) em dois
7
Kant denomina “Estética Transcendental” (Mora, 2001, p. 231).
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campos, o Sistemático, que aborda questões ‘não históricas’ em sua natureza e abrange
matérias de cunho tradicionalmente mais teórico, e o campo Histórico, que trata da música
organizada em épocas, pessoas, impérios, localidades, escolas e artistas individuais (Duckles
e Pasler, 2001, p. 490-1) e pressupõe como objeto de pesquisa a música europeia culta.
Atendendo aos princípios da ‘estética desinteressada’ de Kant e ao conceito de
autonomia da linguagem musical proposta por Hegel, caro a autores como Hanslick, Schu-
mann, Berlioz e Heinrich Schenker (Beard e Gloag, 2005, p. 6-7), bem como coadunada à
nova estética da escuta fundada no pensamento idealista alemão e articulada por autores
como E.T.A. Hoffmann (Bonds, 2006, p. 22), a classificação adleriana demonstra privilegiar
a História metafísica em detrimento da abordagem contextualista da música. Mesmo sua
Musicologia Histórica procura confirmar sua credibilidade por meio da análise musical.
Desta forma, desde sua formalização e institucionalização, consolida-se a pers-
pectiva do cânone discursivo pela ‘grande arte’, onde os eventos e objetos históricos são
medidos tendo por referência um modelo evolutivo ideal composto por obras e técnicas
composicionais e estéticas representativas da tradição musical do Ocidente (sobretudo aus-
tro-germânica) codificado, por sua vez, pela teoria musical tradicional (análise formalista).
Este modelo, que é prudente observar, não é fixo, ao definir as condições ótimas da prática
musical molda, consequentemente, a própria escrita historiográfica.
Vê-se, pois, que desde o início do século XIX até, aproximadamente, o pós-guerra, as
Histórias da Música têm proposto construir uma cronologia de como as estruturas internas
(consubstanciadas nas formas, gêneros e estilos e nas práticas composicionais), criadas,
pensadas e executadas pelos grandes mestres, têm-se desenvolvido e sido transmitidas.
E, como ‘artifício’ disso, vige a História linear e cumulativa, um continuum narrativo onde
eventos de outrora estão encadeados, sob as mais variadas formas, aos eventos do presente.
Neste mesmo contexto, tem-se consolidado a codificação de modelos ideais de referência
– o Canon, que, por sua vez, influem nas escolhas dos temas e das metodologias a serem
priorizadas, bem como as que serão esquecidas.
iii
A partir, sobretudo, da década de 1980, alguns musicólogos ingleses e norte-ame-
ricanos, propondo um entendimento hermenêutico da música e da própria disciplina, co-
meçaram a atentar para as falácias e restrições decorrentes das premissas historiográficas
e de seu papel canonizador, bem como do afunilamento do termo musicologia8. A esta
tendência crítica, deu-se o nome de New Musicology9.
8
Apesar das contribuições dos estudos sobre a música em culturas não europeias, das quais são
herdeiras da antropologia cultural e a etnomusicologia, terem iniciado alguns questionamentos
ainda na década de 1960, coube essencialmente ao nada coeso grupo de pesquisadores sob a
rubrica da New Musicology a sistematização e teorização destas inquirições.
9
É importante observar que tem havido outras tentativas de escrutínio crítico da música (e da
musicologia) que não são enquadradas nos (amplos) limites do que se denomina New Musicology.
Contudo, a extensão do presente artigo não permite detalhar tais tentativas, tampouco, deslindar
as próprias críticas à nomenclatura “New Musicology”. Para um mapeamento teórico-conceitual das
tendências recentes da musicologia, ver Volpe (2004 e 2007).
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 33
Buscando um conceito multidisciplinar10 que considerasse a música como, primei-
ramente, agente de representação cultural capaz de tornar manifesto os mecanismos de
crise e de mudança nos sistema culturais e ideológicos e, também, como produtora de
significados que vão além do puramente musical, a New Musicology questionou a prática
tradicional da disciplina e sua herança epistemológica iluminista e positivista.
Quais foram, mais especificamente, os objetos de inquirição da New Musicology? Sob
uma perspectiva ampla, a pretensão científica e filosófica da verdade, o discurso metafísico,
a metanarrativa, a visão universalista, ou seja, toda a tradição epistemológica ocidental com
bases na herança iluminista e positivista. Já no âmbito específico da disciplina, combaliu-se (a) o
positivismo historiográfico e a fixação textual – segundo o qual bastava ao pesquisador descobrir
a lógica dos fatos relevantes, presentes no texto e nos objetos arqueológicos, para reconstruir a
história; (b) a análise musical tradicional de cunho formalista como baliza qualitativa e guia de
canonização; e (c) o próprio Canon, suas premissas norteadoras e sua influência na construção
da História da Música. Em resumo, os autores da New Musicology procuraram desvelar como
tais procedimentos dominaram a pesquisa musicológica, auxiliaram na construção de seus
paradigmas e, com isto, excluíram e depreciaram de tudo que não cabia em seu modelo.
A tradição, até então considerada uma pré-condição permanente e dada, passou a
ser percebida como um elemento que é produzido na medida em que é compreendido, ou
seja, os mesmos agentes que participam de sua evolução por ela são moldados (Gadamer
apud Beard e Gloag, 2005, p. 187). Neste sentido, seus discursos não somente revelam os
prejuízos de quem a ela pertence, mas os “põe em jogo, expõe-os às nossas dúvidas, como
réplica do outro” (Bodei, 2000, p. 229). É fortalecida, pois, a convicção de que a música tanto
torna manifesto os mecanismos de crise e de mudança nos sistemas culturais e ideológi-
cos quanto é capaz de revelar padrões e sistemas que, por outros meios, permaneceriam
camuflados (Martinez apud Machado Neto, 2009, p.1).
Portanto, da perspectiva de encontrar a verdade e a melhor forma de descrevê-la,
passou-se a discutir, então, um sentido baseado na assimilação de uma fragilidade episte-
mológica (Machado Neto, 2009, p. 3) onde o sujeito é reposicionado. Neste âmbito, deu-se
maior relevância à música enquanto agente aglutinador e produtor de símbolos e significados
individuais e socioculturais, privilegiando o estudo do cotidiano e do corriqueiro, das micro-
histórias (institucional, das ideias, da recepção, dos gêneros e sexualidade, etc.), da escuta,
da performance, das relações dos sons com o corpo e com o prazer, da música popular e
da indústria cultural, entre outros temas. Valora-se, claramente, a alteridade (o excluído, o
subalterno, o ‘inferior’) e o estudo das estruturas e padrões de exclusão.
Para a disciplina como um todo, este processo desencadeou, ao longo do tempo,
na necessidade de um conceito de musicologia que englobasse elementos históricos, an-
tropológicos, sociológicos, etnológicos, psicológicos e linguísticos, que estudasse a música
como agente de representação cultural e que integrasse as atividades humanas no discurso
histórico. Como parte da reação contra o determinismo evolucionista e a história causal
como fundamento para a constatação da evolução da lógica racional, a Academia, sobretudo
por meio “novos musicólogos”, redefiniu seus paradigmas a partir de uma ótica multidis-
ciplinar e, dentre outras práticas, desenvolveu-se uma crítica que estuda como a música e
seus códigos formais participam na produção dos mais variados tipos de representações
10
Que englobasse elementos históricos, antropológicos, sociológicos, etnológicos, psicológicos e
linguísticos, por exemplo.
34 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
e direcionam a escuta do ouvinte a certos pontos de vista. Nesta senda de pensamento
consolida-se, outrossim, a importância do estudo, o estabelecimento e a sistematização
disciplina de História da Música nas instituições de ensino superior (norte-americanas) e,
consequentemente, o desenvolvimento de estratégias pedagógicas.
iV
Dentre os diversos campos de pesquisa da chamada New Musicology, sobressai o
da Crítica Feminista. Incitada pela inquirição dos estudos literários norte-americanos em
meados da década de 1970 (McClary, 2002, p. 5-31), procurou, num primeiro momento
(década de 1970 em diante), incluir a mulher nos estudos musicológicos como um todo. E
o fez, tendo por referência a ótica patriarcal da “Teoria da história compensatória” (Citron,
1990, p. 103) (e o conceito tradicional de genialidade a ela correlata), cujo objetivo era
fazer ‘justiça’ às grandes artistas que, a despeito das adversidades, atingiram a excelência
artística. Em resumo, propôs-se, em resposta ao Canon tradicional masculino, um contra-
Canon feminino, sob um molde deveras símil. A partir de então, formou-se um corpus de
biografias, edições de partituras e análise de obras de compositoras, bem como estudos
sobre performers, professoras e patronas da música, responsável por expor rico material,
até então, pouco conhecido.
Num segundo momento (fim da década de 1980), mais que uma simples busca por
uma igualdade, os textos da New Musicology aproximam-se do tradicionalmente chamado
“feminismo da segunda geração” (Lechte, 2010, p. 182), mais atento ao (a) modus operandi
das estruturas ideológicas, sociais e econômicas que colocam a mulher em desvantagem11;
aos (b) desvios de gênero na linguagem e à construção de códigos musicais de gênero e
sexualidade12 e, igualmente, em (c) desvelar a semiótica, as teorias, e a epistemologia
próprias das mulheres, ou seja, a existência de padrões de escolhas temáticas, técnicas,
estilísticas ou conceituais exclusivos às mulheres, quer sejam eles induzidos pelo contexto
discriminatório ou por qualquer outra razão. Suas estratégias ativeram-se à reformulação e
à releitura do que se considera o mais evidente símbolo de exclusão do Outro nos estudos
musicais: o Canon. Em outras palavras, deslindaram-se as condições históricas bem como
os motivos e práticas que elidiram sistematicamente a mulher da tradição do repertório
erudito referencial.
Com isso, a linha feminista da New Musicology, procurou revelar a parcialidade e a
incompletude da tradição musical, cujas normas e paradigmas são orientados sob a ótica
masculina. Como consequência, ampliou-se o repertório canônico, que passou a incluir a
mulher, e reavaliar suas orientações filosóficas (Witt, 2008). Do ponto de vista da historio-
grafia, igualmente, a busca pela independência e o intento em desmascarar os preconceitos
e enfatizar a contribuição feminina à cultura – propostas ausentes nas grandes narrativas
tradicionais – reintroduziram a mulher na História.
11
Como o patriarcado, o mercado de trabalho, contrato social iluminista, dentre outros.
12
Como, por exemplo, as associações metafóricas entre fórmulas cadenciais, terminações
harmônicas, temas da forma sonata e gêneros musicais, e atributos considerados masculinos
(bravura, racionalidade, constância, objetividade) ou femininos (sedução, inconstância, delicadeza,
liricidade), sendo que, geralmente, o primeiro têm primazia por aproximar-se mais do “ideal de
música”
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 35
V
Resumidos, pois, (1) os modelos de escrita historiográfica que fundamentaram a
escrita da História da Música, (2) o processo de formação da musicologia enquanto discipli-
na, (3) os posteriores questionamentos da New Musicology acerca da mesma, bem como
(4) as principais características da crítica feminista cabe, agora, indagar se e como três dos
mais utilizados – e representativos – compêndios da disciplina em língua inglesa adotam o
discurso desta última em suas narrativas e estratégias pedagógicas.
A partir da observação das ocorrências relativas ao feminismo ou à representação
do feminino na música percebe-se, nos livros, dois eixos principais de abordagens.
O primeiro deles, claramente, busca coadunar o modelo biográfico patriarcal, cen-
trado na análise formalista, à necessidade de dirimir o papel coadjuvante das mulheres na
música. Nos casos observados, não é a condição e a particularidade de gênero, mas sim, as
qualidades artísticas de suas obras e de suas personalidades13 que as legitimam como dignas
de inclusão na tradição musical e, consequentemente, nas narrativas históricas. A referência
é, todavia, o modelo de artista ideal forjado, sobretudo, no século XIX, no qual elas, em
nome da música e de seus anseios interiores, sobrepujaram os mais diversos obstáculos,
conseguindo, com seu ofício e talento ímpares, acercar-se do panteão da Grande Arte.
Sintomática desta abordagem é o caso de Hildergard von Bingen, sobretudo pelos
autores sublinharem nela, precisamente, as características atribuídas ao masculino: a
independência intelectual, teológica e artística perante o papado, sua grande erudição,
o respeito e a reverência com que muitos nobres, reis e mesmo clérigos a tratavam e, no
âmbito musical, seu pioneirismo em compor peças como o drama litúrgico Ordo Virtutum,
uma obra que, a despeito de seu cunho exclusivamente votivo, apresenta qualidades que
favorecem sua canonização14. Wright e Simms chegam a chamá-la, em tom elogioso, de “o
primeiro homem renascentista” (2006, p. 39-40). Mark Evan Bonds, por sua vez, comenta
que von Bingen, em virtude de sua personalidade e de sua postura, muitas vezes era tratada
“como homem” (2008, p. 47).
Há exemplos, como nos casos de Madalena Casulana (c. 1544 – c. 1590), Barbara
Strozzi (1619-1677), Clara Schumann, entre outros, onde se apontam seus feitos e logros,
enfatizando a consciência que tais personalidades tinham acerca de suas próprias virtudes e
dificuldades: “quão enganado é o homem que, ao se assumir dotado de grande inteligência,
pensa ser a mulher inapta à compartilhar de seu nível intelectual”, dizia Casulana (apud
Burkholder, 2006, p.251-2).
Noutros casos destacam-se, também, os empecilhos que impossibilitaram o desen-
volvimento profissional e o possível reconhecimento artístico de determinadas compositoras,
com destaque para Fanny Mendelsohn que, apesar de lhe ser oferecida a mesma educação
que seu irmão, foi forçosamente desestimulada, sobretudo após o matrimônio, a exercer
atividade musical profissional. Manifesta-se aqui uma espécie de nostalgia de um potencial
não concretizado que se pergunta: “aonde chegaria este imenso talento se fosse tratada
como homem, ou se não lhe fossem tolhidas certas liberdades?”.
13
Ao menos as valorizadas pelo cânone.
14
É concebida como um todo musical original analiticamente complexo e acabado, independente do
cantochão e textos pré-existentes, e com inovações melódicas, dentre outras.
36 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
As mulheres que fomentaram, sobremaneira, as artes, também são observadas
nas narrativas. Nestes exemplos, procura-se demonstrar como contribuíram tanto para
elevar qualidade da prática musical quanto para desenvolver e aperfeiçoar estilos e gê-
neros musicais. O mesmo ocorre com as pedagogas e estetas que formaram, por meio da
educação técnica, estética e intelectual, gerações de intérpretes e compositores, como o
fez Nadia Boulanger.
Mais próximo, portanto, ao que se costuma denominar “feminismo da primeira
geração” (Lechte, 2010, p. 181-2), esta abordagem propõe um ‘contra-canon’ em que as
musicistas – tal qual seus cômpares masculinos – além de admiradas pelas suas conquistas e
genialidade excepcionais, são enaltecidas como quase heroínas por vencer as adversidades
próprias do gênero15.
O segundo eixo temático, que possui viés mais sociológico e se esquiva do costu-
maz tratamento biográfico (sobretudo ao associar-se à História da Recepção), analisa as
funções e representações da mulher nas práticas comunitárias socioeconômicas e culturais
ligadas à música.
Dentre os temas comuns, destacam-se os exemplos diretamente relacionados ao
posicionamento da mulher na produção e consumo da música, sobretudo, nos períodos em
que a ascensão de uma classe média estimulou a atividade instrumental doméstica como
meio de prestigio, afirmação e entretenimento. Neste âmbito, a despeito das variantes,
observa-se nos três materiais a ênfase no fato do ímpeto criativo feminino, quer seja na
composição ou performance, ter-se circunscrito majoritariamente ao contexto privado e
aos gêneros e formações instrumentais a ele associados – o madrigal, a cantata de câmara,
o lied, a caracter piece, os duos, trios de corda, os instrumentos de teclado e a voz, em
oposição às formas mais pretensiosas (óperas, cantatas, sinfonias, concertos), próprias às
salas (públicas) de concerto e ao ambiente profissional masculino.
Relevantes, também, são os casos que tratam da educação e da profissionalização
da música, demonstrando o papel da mulher nos diversos estratos da prática musical, bem
como de sua exclusão tanto das instituições ou atividades consideradas para elas impróprias
– ou onde sua presença poderia gerar depreciação e descrédito – quanto da própria produção
bibliográfica. Como exemplo, pode-se citar o concerto dele donne da corte de Ferrara em
findo séc. XVI cujas cantoras, profissionais oriundas da classe média italiana, obtiveram o
título de duquesas simplesmente para que não precisassem trabalhar para obter sustento
(a nobreza era financiada pelos impostos), uma vez que era impróprio para mulheres de
tal talento e destaque fazerem disso uma profissão.
Um último tema de cunho social que ocorre com frequência aborda a posição do
feminino no ambiente musical religioso, descrevendo, por exemplo, a liberdade relativa
das freiras na música produzida nos conventos medievais (bem como sua exclusão da li-
turgia), as diferentes considerações das igrejas Católica e Protestante sobre a presença (ou
não) da mulher nas respectivas liturgias ou, também, o rigoroso treinamento de órfãs nos
centros religiosos da Itália desde o século XVI, cujo resultado era, não raro, a produção de
conjuntos musicais de tal excelência que atraía fieis de outras regiões, mas que, por outro
lado, era motivo de preocupação para o clero, pelo protagonismo e fascínio que exerciam.
15
De certa forma, às vicissitudes atribuídas ao artista homem do século XIX (falta de adaptabilidade
com o mundo real, não ser plenamente compreendido ou reconhecido, dentre inúmeras outras) são
adicionadas às relativas ao gênero.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 37
A preocupação com questões relativas à sexualização da mulher no meio religioso, presente
nestes casos, exemplifica o que a New Musicology denomina “disembodied music”, ou seja, a
‘descorporificação’ e a ‘des-sexualização’ da prática musical e do feminino, costumeiramente
associado, nos ambientes sacros, ao pecado.
Vi
Quando vistos à luz da crítica feminista da New Musicology, os temas predominantes nos
materiais analisados, um norteado pela a fusão entre “teoria compensatória” (presente no feminismo
da primeira geração) e uma História da Música baseada no desenvolvimento dos estilos, gêneros
e formas e sob a égide do que Hepokoski (1991, p. 233) denomina Wirkungsgeschichte (a história
cumulativa dos efeitos provocados pelos grandes personagens e obras individuais); o outro, com
clara influência dos estudos sociais, da recepção e, em menor medida, da alteridade, evidenciam
uma apropriação bastante peculiar da mencionada linha de pesquisa, pois, ao mesmo tempo em
que explicitam uma preocupação pela inclusão respeitosa do outro (a mulher), reafirmando seu lugar
no cânone e na História da Música, o faz parcimoniosamente, conjeturando muitas das sutilezas
metodológicas e temáticas pertencentes à musicologia feminista em detrimento de assuntos menos
complexos e polêmicos e, costumeiramente, aceitos pela historiografia musical tradicional.
Tal peculiaridade parece resultar, mais que do distanciamento crítico dos autores acerca
da New Musicology, do contexto da graduação em música nos Estados Unidos. Como no Brasil,
a maioria das Universidades naquele país privilegia a formação de professores de musicalização
e, sobretudo, de performers, postergando a elucubração mais crítica da música à pós-graduação.
Consequentemente, os currículos destas instituições, bem como todo corpus bibliográfico que
as atende, têm sido elaborados sob tal desígnio, salvo raras exceções. No caso particular das
didáticas de História da Música, o objetivo não é dar ao alunado subsídios críticos iniciais para
uma discussão sobre a historiografia musical ou sobre a própria História, por exemplo, mas sim,
prover ao bacharelando uma “visão geral dos fatos” e do “desenvolvimento” dos estilos, gêneros,
formas, técnicas e ideias musicais da cultura ocidental que permita, por sua vez, uma vinculação
mais direta com seus estudos performáticos cotidianos. Tal visão eminentemente funcional da
disciplina acaba por delimitar os modelos pedagógicos das didáticas, suas estratégias narrativas
e, consequentemente, os temas a ser, ou não, abordados – incluídos os da New Musicology.
Os materiais aqui estudados, não alienados às conquistas da New Musicology, mas
cientes de que uma abordagem feminista demasiado crítica vai de encontro aos intentos
pedagógicos dos cursos de música (endereçado ao instrumentista) e à escrita das próprias
didáticas (enfoque na história dos estilos, gêneros e formas, predominância do modelo tradi-
cional de canonização etc.), preferem tratar da representação do feminino com parcimônia,
trazendo a mulher para a História sem vilipendiar os agentes e estratégias de exclusão. E,
mesmo ao propor uma história de cunho mais social, desvinculada da Wirkungsgeschichte,
o faz de modo a não prejudicar o caráter claramente pragmático destas obras e o contexto
a que elas servem, aproximando-se da história da recepção16. Em resumo, busca-se um
contato com a New Musicology que não afete sobremaneira a elaboração dos compêndios
e tampouco o modelo tradicional de escrita histórica típico destas antologias.
16
Curiosamente uma das abordagens que Dahlhaus propõe ao impasse que vê na historiografia
musical (não é História da música ou história da Música) é pelos estudos da recepção. Para maiores
detalhes, vide seu Foundations of Music History (1977) e o mencionado texto de James Hepokoski.
38 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
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Apresentação do problema
O conceito de mimesis remonta à Antiguidade (do grego mímésis, mimeós), onde
já começou a receber diferentes definições e significados. No vernáculo do latim clássico
se impuseram os termos imitatio e imitare (imitação, imitar), os quais, entretanto, cor-
respondem apenas parcialmente ao significado do conceito grego. Essa é a razão porque
optemos doravante por empregar o conceito original com seus respectivos derivados em
português mimese, mimético e mímico.
Como princípio primordial, a mimesis exerceu um papel fundamental no desen-
volvimento do homem e de sua cultura. Sabe-se que o aprendizado, desde a mais tenra
idade, se embasa na imitação. Por isso, o “bom exemplo” tem importância fundamental
na educação. Nas ciências, tenta-se reproduzir, em ensaios de laboratório, as condições
de um determinado ambiente natural de maneira mais fiel, o que não raramente envolve
procedimentos de mais alta complexidade. Nas artes, a imitação de um certo modelo cos-
tuma preceder a autonomia, constituindo o comportamento mimético o ponto de partida
para a inovação artística. Assim acontece também na economia, onde se copiam produtos,
modelos e estratégias. Todavia, sucesso e poder econômicos não só dependem do capital e
dos meios de produção e sim também dos proprietários intelectuais de marcas, imagens e
patentes, ou seja, de quem adquiriu o direito sobre a sua reprodução (copyright) (Sandler,
2008, p.2-3). Esses são apenas alguns exemplos de como o princípio mimético se manifesta
em nosso cotidiano.
Analisado historicamente, o conceito de mimesis recebeu uma grande variedade
de interpretações.1 Em razão da sua natureza ambígua, a mimesis pode ser interpretada
de maneira afirmativa, como recriação, ou negativa, como mera cópia ou “macaqueação”.
Seu elo com a música deve ser procurado na história das ideias, em particular, na história
da filosofia. Halliwell (2002, p.23) sintetizou as diferentes interpretações nas acepções de
espelhamento do mundo (world-reflecting) e de recriação do mundo (world-creating).
De certa forma, as variantes de espelhamento e de recriação do mundo já encontram
em Platão e, respectivamente, também em Aristóteles uma correspondência, pois em suas
teorias de produção artística o elemento mimético exerce uma função central. Em Platão,
o dualismo entre a efemeridade do mundo sensível e a perenidade do mundo das ideias
constitui um axioma central e encontra na dualidade de corpo e alma a sua equivalência.
Os objetos do mundo físico não passam da copia de algo imutável e superior no plano das
1
Para uma exegese abrangente do conceito de mimesis e da história de suas interpretações, vide:
Gebauer/Wulf (1992) e Halliwell (2002).
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 41
idéias, tópos onde reina o grande demiurgo, o artesão divino que forma a matéria do universo
através de moldes perfeitos. Na hierarquia platônica, o poeta é basicamente um imitador,
um “criador de fantasmas” que “nada entende da realidade, mas só da aparência” (Platão,
2001, p.300; na trad. de P. Nassetti). Os objetos de arte constituem apenas “sombra da
sombra”, mera cópia, portanto, inferior aos objetos da natureza. Por conseguinte, em prol
de uma visão profundamente pragmática, o artista deve se subordinar aos fins políticos e
educacionais do estado.
Aristóteles, por sua vez, estende o princípio mimético do fazer artístico (poiesis) a
todas as artes. A mimesis explica tanto o conhecimento quanto a arte. Atribuindo às artes
propriedades de verossimilhança, as ideias não estão no exterior dos objetos, mas no inte-
rior de quem as produz (Aristóteles, 2001, 1140a, pass.). Por suas propriedades criativas e
purificadoras, a mimesis adquire em Aristóteles um caráter afirmativo. Mais do que isso, o
princípio mimético é um elemento “congênito no homem [zôon mimêtikôtaton]” (Aristóteles,
2003, 1448b, 4-6, na trad. de E. de Sousa). Acrescentando-lhe a kátharsis (purgação, purifi-
cação) como elemento funcional, a reprodução de determinados caracteres ou personagens
é para Aristóteles capaz de proporcionar no espectador uma sensação de alívio e prazer.
Ao processo de produção artística como fazer artesanal se adunam ainda os conceitos de
techné (habilidade e competência técnica) e de physis (natureza). Para o estagirita, trata-se
na criação artística de uma ação que não pode ser reduzida a uma mera cópia ou plágio
desalmado. De um lado, o poeta – em sua acepção abrangente de artista – engendra uma
determinada ação criativa, enquanto, de outro, imita algo que está presente na natureza.
Por analogia, trazendo-se a teoria aristotélica para o campo da interpretação musical,
a reprodução ao vivo de uma composição representa uma espécie de recriação de elementos
da physis por meio da techné em arte (mimesis artística), em que uma composição musical é
reconstituída com base numa realidade objetiva, dada pelo registro em forma de partitura.
Nesse processo, o intérprete lhe empresta algo de si próprio, em conformidade tanto com
a natureza da obra quanto com a sua natureza interior.
Considerando-se o enorme potencial da mimesis, surpreende que músicos-intérpre-
tes e pesquisadores da música apenas raramente se dêem conta da presença do elemento
mimético em suas práticas. Particularmente no âmbito do ensino e da pesquisa, observa-
se que a mimesis representa um elemento subestimado senão totalmente relegado ou
recalcado. Isso talvez se deva ao caráter paradoxal do princípio mimético, pois, gerando
“o antigo” em condições, circunstâncias e formas sempre distintas, a mimesis costuma se
apresentar de maneira nova e revigorada. Outrossim, ainda que demonstre certa singeleza
ou simplicidade, o princípio mimético pode surpreender ao engendrar formas da mais
alta complexidade. Tendo uma extraordinária capacidade de se duplicar e reduplicar em
diferentes formas e direções, sua múltipla face tende a disfarçar a sua onipresença e poder.
Nisto, a mimesis se assemelha com o mito, cuja presença também precisa ser literalmente
“desmascarada”.2
Na seção que se segue, a Teoria da Reprodução Musical de Adorno é apresentada
especificamente no tocante ao elemento mimético. O objetivo central é compreender melhor
a função do elemento mimético no processo reprodutivo de uma composição musical.
2
Em A dialética do esclarecimento (2008), obra de referência da teoria crítica do século XX, Theodor
Adorno e Max Horkheimer já apontaram essa relação em que o Esclarecimento iluminista, a razão
instrumental e a crença no progresso tecnológico e científico se tornaram propriamente um mito.
42 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
A teoria da Reprodução Musical de theodor Adorno
Por “Teoria da Reprodução Musical” compreendemos, grosso modo, o conjunto
das reflexões de Adorno sobre a prática interpretativa. Composto por um grande número
de fragmentos e manuscritos, revela uma face ainda pouco conhecida do autor. Editado
na Alemanha sob o título Zu einer Theorie der musikalischen Reproduktion [Para uma
teoria da reprodução musical] (2001),3 serviu também de base para a presente pesquisa.
Considerando-se que o material engloba um grande número de fragmentos e manuscritos,
não se trata de algo linear e homogêneo e sim de um conjunto de anotações heterogêneas.
Essa peculiaridade sempre precisa ser levada em conta quando o assunto for a Teoria da
Reprodução Musical.
Ao longo de suas anotações, é frequente Adorno associar a música e sua notação
à linguagem idiomática e sua escrita alfabética. É logo no início de suas reflexões que
essa questão se cristaliza como central: “Como se relacionam notação musical e notação
idiomática? Uma das questões mais centrais, impossível de se separar desta: como se
relacionam música e linguagem?” (TRM, p.11). Adorno argumenta que a notação musical
constitui um sistema gráfico que, em termos de articulação e de logicidade, não deve nada
ao da notação idiomática. Ao contrário da notação idiomática, entretanto, cuja origem está
na comunicação de palavras e conceitos, a origem da notação musical deve ser procurada
no elemento mimético. É, pois, no processo mimético que o som musical se transforma
misteriosamente em linguagem, e o signo, em imagem, ou seja, na representação de uma
idéia, de um pensamento ou na relembrança de uma experiência, de algo sensível.
Música e linguagem idiomática se aproximam principalmente em termos de
gramática e de sintaxe. A grande diferença está no fato de que a linguagem e seu sistema de
signos pertencem a um sistema homogêneo, enquanto a música e sua notação pertencem
a sistemas heterogêneros (TRM, p.222). Adorno resumiu a diferença entre a linguagem
idiomática e a linguagem musical num axioma lapidar, notável em sua lucidez: “Interpretar
a linguagem significa compreendê-la; interpretar a música significa tocá-la” (GS, v.16, p.253).
Com efeito, uma vez que a escrita musical imita o som, o intérprete terá necessariamente
de imitar a notação musical: “A verdadeira interpretação é a imitação perfeita da notação”,
assinalou Adorno (TRM, p.83).
Nessa tarefa, é necessário distinguir entre a notação como um instrumento de
“dominação do material musical” e o texto propriamente dito. Enquanto os sinais gráficos
representam o meio de fixar o som no espaço, a imagem do texto representa o vestígio
histórico da obra. Há, no texto, um substrato histórico que precisa ser resgatado ou, melhor,
“tocado” pelo músico-intérprete. Destarte, o registro gráfico representa apenas uma espécie
de “matriz” ou “mapa” para que a composição possa ser efetivamente reproduzida. Vale
ainda conferir o seguinte trecho da argumentação de Adorno:
A interpretação musical é a execução que, como síntese, preserva tudo o
que tem de semelhante com a linguagem, ao mesmo tempo em que liquida aquilo
3
Para as referências bibliográficas da obra intitulada Zu einer Theorie der musikalischen Repro-
duktion: Aufzeichnungen, ein Entwurf und zwei Schemata (Para uma teoria da reprodução musical:
anotações, um esboço e dois esquemas, 2001), doravante também chamada de “Teoria da Reprodu-
ção Musical” ou simplesmente de “teoria”, será usada a abreviação “TRM”. A paginação é da edição
de bolso (Suhrkamp, 2005). Já para as referências da Obra completa de Adorno (2003) aparece a si-
gla “GS”. Salvo indicação em contrário, a tradução das citações para o português é de minha autoria.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 43
que carrega de particular desta. Por isso, a ideia de interpretar é própria da música
e não lhe é acidental. Tocar a música corretamente significa, em primeiro lugar,
falar seu idioma de forma correta. Este capta a imitação por si mesmo e não via
decifração. A música somente se revela na prática mimética [...] e nunca através de
uma abordagem que a interpreta separada da sua execução (GS, v.16, p.253).4
4
“Musikalische Interpretation ist der Vollzug, der als Synthesis die Sprachähnlichkeit festhält und zu-
gleich alles einzelne Sprachähnliche tilgt. Darum gehört die Idee der Interpretation zur Musik selber
und ist ihr nicht akzidentell. Musik richtig spielen aber ist zuvörderst, ihre Sprache richtig sprechen.
Diese erheischt Nachahmung ihrer selbst, nicht Dechiffrierung. Nur in der mimetischen Praxis […]
erschließt sich Musik; niemals einer Betrachtung, die sie unabhängig von ihrem Vollzug deutet” (GS,
v.16, p.253).
5
Sobre a distinção conceitual dos termos reprodução, interpretação e performance, vide: Kuehn,
2010b e 2011.
44 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
(Auseinandertreten) da música em texto e som não se dá por acaso. Uma vez que o processo
de produção musical está impregnado de paradoxos, também a reprodução musical deve
ser dialética. Argumenta Adorno:
6
“Als mimisches Wesen ist sie nicht rein lesbar und nicht rein imitierbar als Sprache. Daher spaltet
sie sich ins Ideal des Klangs und in Schrift und bedarf der Interpretation als einer immer erneu-
ten Anstrengung zur Versöhnug der divergierenden Elemente. Das rechtfertigt den Anspruch von
Reproduktion als spezifische Form genommen zu werden […] Mit anderen Worten, Reproduktion ist
notwendig” (TRM, p.238-239).
7
Para reconstituir a história da notação musical, a pesquisa bibliográfica de Adorno (TRM, p.76-
84) se fundamenta, em boa parte, em Hugo Riemann (1849-1919). Influente teórico, historiador,
musicólogo, pedagogo e lexicógrafo, Riemann é autor de uma vasta produção científica. Na primeira
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 45
basicamente dois elementos que permeiam a história da música como uma espécie de fio
condutor: mimesis e racionalidade.
A seguir, acompanhemos a parte da sua pesquisa sobre a notação musical do
Ocidente de perto. O objetivo é descobrir de que modo mimesis e racionalidade se acham
na raiz da notação musical e compreender a função que ambos os elementos tiveram em
seu desenvolvimento. Para verificar as teses de Adorno e para efeito de ilustração, foram
inseridas algumas imagens de documentos históricos, disponíveis na internet.
Comecemos com a comparação de dois documentos bem antigos. O primeiro é pro-
veniente de um epitáfio de Éfeso e mostra uma estrofe da canção grega Seikilos. Estima-se
que seja do século II a.C. Vemos que os gregos já recorriam a letras do alfabeto para indicar
a altura do som. Supõe-se que as letras da escritura se refiram às cordas da khitara. No alto
das letras acham-se ainda sinais gráficos indicando a duração do som:
parte da sua pesquisa, Adorno recorreu a: Handbuch der Musikgeschichte, v.1 [Manual da história
da música, Antiguidade e Idade Média até 1300], Leipzig, 1923; Musik-Lexikon [Enciclopédia da mú-
sica], Leipzig, 1882, e: Vademecum der Phrasierung [Manual do fraseado], 1900. Na seção, intitulada
Ad antike Notenschrift [Acerca da escrita musical antiga], Adorno recorreu ainda a outras duas obras
de Riemann, a saber: Studien zur Geschichte der Notenschrift [Estudos sobre a história da escrita
musical], de 1878, e Die Entwicklung unserer Notenschrift [O desenvolvimento da nossa notação
musical], de 1881.
8
Imagem disponível em: http://de.wikipedia.org/wiki/Notation_(Musik), último acesso out. 2008. Exis-
tem também algumas gravações em áudio da canção, disponíveis em:
<http://www.amazon.com/gp/dmusic/media/sample.m3u/ref=dm_sp_smpl/180-2458157-0010228?ie=
UTF8&catalogItemType=track&ASIN=B0011BGZIS> e/ou:
<http://mp3wm.com/download-musica/corvus-corax-seikilos-2111107.html>, último acesso julho 2011.
9
“Nisi enim ab homine memoria teneantur soni, pereunt, quia scribi non possunt” (Isidoro de Sevi-
lha, 1982, v.3, cap.15) .
46 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
O segundo documento mostra um recorte de neumas iniciais. Estima-se que seja do
século X. Como podemos notar, trata-se de uma notação bem precoce. Observando-se os
traçados, surge mesmo a impressão de que se trata da representação gestual de um regente
que está marcando o movimento rítmico e melódico da música com as mãos. A tese de
Adorno é que tais gestos – convencionados numa técnica que é chamada de quironomia
– tenham inspirado os monges dos monastérios medievais a empregar os neumas como
tentativa de fixar o som musical. Esses neumas consistem precisamente numa “pictografia
dos acentos dinâmicos, empregada nas igrejas católica romana e ortodoxa grega da Idade
Média para indicar o movimento ascendente e descendente, do ritmo e do tempo da
melodia para conduzir o coro com firmeza“ (Mocquereau apud Adorno, TRM, p.230-231).
Com efeito, nesses termos, a quironomia pode ser considerada uma manifestação peculiar
da mimese.10
Adorno confere ao surgimento dos neumas grande importância. Sua tese é que
a escrita por neumas – em combinação com a quironomia como elemento mimético e a
nomeação das notas musicais por letras do alfabeto – teria dado à notação musical clareza
e univocidade necessárias para que ela pudesse se desenvolver da forma como se deu
(TRM, p.80-81).
De qualquer forma, ainda que tivessem significado um grande avanço, os neumas
representaram apenas uma forma primitiva de anotar a música. Como tal, não proporcio-
navam mais do que uma vaga lembrança dos contornos da melodia. Não havia como se
indicar a altura, nem a duração das notas com precisão. Em consequência disso, o advento
progressivo da racionalização fez com que a notação se tornasse um instrumento cada vez
mais poderoso para se poder exercer um maior controle sobre a produção e a execução
musical. Se, no início desse processo, estavam no centro os elementos mímico e gestual
10
Do grego kheironomía, gesticulação cadenciada. Sistema de sinais emitidos pelas mãos,
particularmente entre as tradições que desconheciam a escrita musical (Dourado, 2004, verbete
“quironomia”). Segundo Houaiss (2001), designa: 1) arte dos ademanes, da harmonia entre os
gestos e os discursos; 2) conjunto de gestos que acompanham a fala, mímica, e 3) figuração do
desenho melódico por meio dos movimentos das mãos.
11
Música na Idade Média (neumas iniciais). Imagem de domínio público disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Neumasiniciais.JPG#file>, último acesso março 2008.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 47
de anotar o som, no âmago do desenvolvimento subseqüente estava o aspecto normativo,
revestido de uma função claramente disciplinadora. Com efeito, foi através do elemento
mensural da notação como indicador quantitativo duracional que a música conquistou,
poucos séculos depois, a sua autonomia perante a prosódia poética (TRM, p.82).
Também as reformas que tiveram início com Guido de Arezzo (990-1050) repre-
sentaram marcos importantes no processo de racionalização da notação musical (TRM,
p.236). Adorno aponta principalmente dois eventos como cruciais: a) o alinhamento dos
neumas, e b) a introdução de sinais que indicam valores fixos para a duração do som (TRM,
p.228-229). Nessas reformas, os traçados gestuais dos neumas primitivos foram substituídos
gradativamente por notas quadradas que, ao invés de se alinhá-los em torno de uma única
linha apenas, foram distribuídas por uma pauta de quatro linhas. O quadro da fig.4 mostra
passo a passo o desenvolvimento dos neumas em notação mensural:
12
Imagem disponível em: www.wiki.commons, verbete “Mensuralnotation”, último acesso jan. 2009.
13
Sistema de estudo de solfejo auxiliado pelo uso dos dedos das mãos, quironomia (Dourado, 2004,
verbete “manossolfa”). Sistema de solfejo que indica a altura por meio de sinais dos dedos e das
mãos (Houaiss, 2001).
14
“Mão guidoniana, mão de solfa”: recurso mnemônico medieval, por meio da memória e não da
escrita, para o domínio do sistema de hexacordes. Disponível em: <www.pt.wiktionary.org/wiki/
m%C3%A3o_guidoniana>.
48 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
gestual, dinâmico e expressivo. Desse modo, mimesis e racionalidade estão constituindo
uma antinomia central que está também na raiz de seus problemas. Nas palavras de Adorno:
“A notação regula, domestica e reprime ao mesmo tempo aquilo a que ela serve – uma
dualidade de que toda reprodução musical sofre até a sua liquidação [...] A fidelidade à
obra é ao mesmo tempo a obediência que a destrói” (TRM, p.229).
Toda notação musical tem como princípio fundamental a “espacialização do tempo”
e encerra em si algo profundamente ambíguo e paradoxal. Em suma, “aquilo que [a notação]
pretende fixar, está impreterivelmente perdido”. Para compreender melhor o que Adorno
queria dizer, seguem ainda alguns trechos da sua argumentação:
Espacializar algo significa estar presente [...] [e] o que está plenamente presente,
significa ser passível de dominação [...] para trazer, a seu mando, o que, por si
mesmo, já está perdido. Toda prática musical é uma recherche du temps perdu.
Essa é a chave para a dialética da música até a sua liquidação [...] A notação
musical é o órganon da dominação do homem sobre a natureza [...] Tendo a
música, em seu estágio remoto [...] sido usada para dominar o homem [...] agora
a dominação se infiltra na música por meio da notação, ou seja, os gestos que a
música ora prescreve, ora imita se tornam, como imagens, domináveis, podendo
se proceder, em sua reprodução, ad libitum. É precisamente nesse estágio que a
racionalização do material musical começou a aumentar gradativamente (TRM,
p.228).15
Vemos, portanto, que é por meio do gesto que a música é trazida “à luz” ou, melhor,
“ao ouvido”. Desse modo, quironomia, mimesis e racionalidade resultam, na notação, numa
espécie de imagem do som em que se destacam duas qualidades centrais: a de ser uma
imitação literal do gesto, e a de ter a racionalidade como elemento normativo (na tradição
sinfônica incorporado pelo regente) (TRM, p.230). Ainda que na notação moderna sobres-
saiam os elementos mensural e disciplinador, no processo mimético da reprodução musical
predomina a dinâmica com seus elementos gestuais expressivos. Por essa razão, mimesis
e racionalidade representam na teoria de Adorno uma espécie de antinomia dialética. O
fragmento a seguir ilustra isso de forma exemplar:
15
“Etwas verräumlichen heisst da sein: [...] [und] was ganz da ist, lässt sich beherrschen [...] durch
absolute Verfügung das wiederzubringen, was durchs Verfügen selber Unwiederbringlich ward. Alles
Musizieren ist eine recherche du temps perdu. Das ist der Schlüssel zur Dialektik der Musik bis zu
ihrer Liquidation […] Musikalische Schrift ist das Organon der musikalischen Naturbeherrschung […]
Hat Musik in einem sehr frühen Stadium der Beherrschung von Menschen gedient [...] so wandert
vermöge der Notation Beherrschung in sie selber ein, das heisst, die Gesten, welche Musik seis
anregt, seis selber nachmacht, werden in ihr, als Bilder, beherrschbar, nach Belieben zu machen,
wieder hervorzubringen, und darin bereitet sich die Rationalisierung des Materials der Musik vor”
(TRM, p.228).
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 49
na notação musical já está constituída a diferença desta para com a música.
Embora empiricamente inadequada, a espacialização do elemento temporal é
necessária (TRM, p.71-72).16
O caminho para se chegar à essência de uma composição musical passa, para Adorno,
invariavelmente pela análise. Como “mais importante categoria de mediação” entre o texto
e a sua reprodução (TRM, p.125), a análise constitui sobretudo um meio para a conscien-
tização do intérprete. É nessa direção que aponta também o seguinte aforismo: “Só quem
não apenas sente a música, mas também a pensa, sente-a corretamente” (TRM, p.127).
Noutro fragmento, Adorno sintetizou sua concepção analítica da seguinte maneira:
“A verdadeira interpretação não é nem a irracional-idiomática [do músico] nem a puramente
analítica [do teórico], mas a restauração do elemento mimético pela análise. O elemento
neumático fornece notadamente as instruções para isso” (TRM, p.107). Explica-se: ao
reconstituir o elemento neumático da notação musical segundo as instruções mimético-
gestuais com base nos dados informados pelo elemento mensural, revela-se o sentido da
obra, a sua “verdade”, por assim dizer.
Para Adorno, portanto, a função da análise não está em mostrar como “funciona”
uma composição ou uma determinada técnica composicional, nem em legitimá-la, e sim
na solução de problemas concretos para a sua interpretação.
O esquema da fig.5 ilustra os processos da produção e da reprodução musical em
dois momentos distintos. Repara-se que o elemento mimético está associado ao gesto e à
espontaneidade, e a racionalidade, ao entendimento e à análise. Por parte do compositor,
a mimesis se manifesta numa espécie de auto-espelhamento da ideia musical em som (Hal-
liwell: self-mirroring). Um processo semelhante ocorre também no momento da interpreta-
ção, quando o espelhamento do texto leva a uma espécie de recriação do mundo (Halliwell:
world-creating). Por seu caráter dialético, mimesis e racionalidade foram posicionadas
perpendicularmente em oposição: a) no tocante ao espelhamento da ideia musical em som,
e b) no tocante à análise e sua articulação em entendimento (ou conhecimento):
16
“Zugleich aber liegt in der musikalischen Schrift ein dem Musikalischen – ihrem eigenen Inhalt
– Entgegengesetztes. Die Rationalisierung, Bedingung aller autonomen Kunst, ist deren Feind
zugleich. Die Notation reguliert, hemmt, unterdrückt immer zugleich, was sie notiert und entwickelt
– und daran laboriert alle musikalische Reproduktion. Genauer gesprochen: im Aufschreiben von
Musik ist konstitutiv bereits die Differenz von dieser mitgesetzt. Die Veräumlichung des Zeitlichen ist
notwendig, nicht bloss empirisch inadäquat” (TRM, p.71-72).
50 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Fig.5: Esquema dos processos de produção e de reprodução musical em dois momentos distintos da
história.
Considerações finais
Por interagirem tanto na produção quanto na reprodução da música, mimesis e ra-
cionalidade formam a base da Teoria da Reprodução Musical de Adorno. Uma interpretação
que recorre a apenas um único elemento estaria, portanto, fadada a fracassar.
O campo de força, por sua vez, é composto por uma grande diversidade de el-
ementos intramusicais e extramusicais que interagem de forma agonal.
Os elementos da notação musical podem ser resumidos a três: a) o idiomático,
remetendo à linguagem musical; b) o mensural, remetendo à racionalidade; e c) o neumático,
remetendo à mimese do gesto em som. Sua relação é dialética. É na historicidade da música
e na tensão entre as antinomias da sociedade que o princípio dialético se manifesta. Quanto
mais a interpretação for capaz de revelar os elementos divergentes, encapsulados no inte-
rior de uma composição musical, melhor a reprodução como um todo. O modo e a medida
em que isso deve ocorrer dependem fundamentalmente das circunstâncias históricas e do
caráter da composição.
A rigor, a relação entre mimesis e prática interpretativa já está no interior da própria
denominação da teoria de Adorno, onde o prefixo “re” em “reprodução” evidencia essa
Epílogo
Tudo o que foi dito também se aplica, em maior ou menor grau, a outros contextos
interpretativos onde se recorre à notação musical ou a outro registro que serve à reprodução
como base. Uma variante ainda relativamente recente da mimese emergiu com a internet
e os meios eletrônicos. Também o DJ, o sampleador, o remix e o dubbing são variantes
miméticas que empregam tecnologias digitais de reprodução. Espalhando-se, em escala
global, pelas redes de comunicação, essas novas variantes de mimesis geram cópias, espe-
lhamentos e clones, entre outras formas híbridas do mundo cibernético.
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tradição vienense: uma introdução. Rio de Janeiro: PPGM, CLA, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), 2010a. Tese de doutorado. Disponível em: <http://www.
O sinal < indica semitom ascendente, e, de modo similar, o sinal > indica semitom
descendente. Abarcando essas duas possibilidades – alterações cromáticas ou acréscimo
de notas – Riemann obtém uma coleção considerável de acordes alterados, os quais são
apresentados detalhadamente no livro Harmonia e Modulação.
O resultado é que, dentro de uma tonalidade, são possíveis quase todas as com-
binações de três e quatro sons, englobando os doze sons do sistema temperado
– alguns até podem ser escritos de diversas maneiras. Seria, contudo, uma grande
falta não observar a teoria da tonalidade concreta, ou seja, a teoria da harmonia
baseada no sistema tonal: os três acordes de tônica, dominante e subdominante.
Precisamente, dever-se-ia fazer o contrário, reforçar nossa convicção, mas dirig-
indo a visão até as inesgotáveis possibilidades da figuração livre melódica, e que
só se obtém partindo de uma base sólida para avançar com passo seguro nessa
imensidade de formações vacilantes. (Riemann, 1930, p. 148)
Segue-se a análise da estrutura harmônica dos compassos 21-28 (ver a figura 3).
Note-se que no pentagrama inferior procedemos a uma redução da estrutura harmônica
para facilitar o entendimento da estruturação dos acordes e da condução das vozes.
Assim como todos os acordes guardam uma estreita relação funcional com o
acorde principal de tônica, e cada novo acorde, que sucede a este, ainda que
diferente, esclarece por si mesmo seu significado pela relação que guarda com
aquele, assim também toda tonalidade estranha a um contexto harmônico, ad-
quire sua significação e sua unidade conceitual com relação ao lugar que ocupa
com referência à tonalidade principal. (Riemann, 1930, p. 152)
Para esse teórico, se entendermos cada uma das notas da melodia como parte
integrante das três harmonias fundamentais da tonalidade, em lugar de nos guiarmos indi-
vidualmente pelos sons da melodia, podemos olhar para o movimento natural das cadências
no curso normal de harmonia por meio das suas funções. Assim, formam-se cadências sobre
as harmonias da tonalidade, sem que haja uma mudança da tonalidade.
Posto que esses conceitos já haviam sido apresentados por Riemann ao redor
de 1887, é fato que eles antecederam em muitas décadas as colocações de Schoenberg
sobre monotonalidade expostas em Funções Estruturais da Harmonia (1954), como por
exemplo:
A mistura de notas e acordes alterados com diferentes progressões diatônicas,
mesmo em segmentos não cadenciais, era considerada modulação pelos teóricos
antigos. Trata-se de uma visão limitada e, portanto, obsoleta da tonalidade. Não se
deve falar de modulação a menos que uma tonalidade tenha sido definitivamente
abandonada, e por tempo considerável, e outra tonalidade tenha se estabelecido
quer harmonicamente quer tematicamente. O conceito de regiões é uma conse-
qüência lógica do princípio de monotonalidade. De acordo com este princípio,
considera-se que qualquer desvio da tônica ainda permanece na tonalidade, não
importando se sua relação com ela é direta ou indireta, próxima ou remota. Em
outras palavras, há somente uma tonalidade em uma peça, e, cada segmento,
considerado antigamente como outra tonalidade, é apenas uma região, um
contraste harmônico interno à tonalidade original. (Schoenberg, 2004, p. 37)
Como vimos acima, a explicação de Riemann sobre a formação dualista dos acordes
maior e menor está embasada nos sons da série harmônica em movimentação ascendente
e descendente (ver a figura 5). Observamos que um é a inversão em espelho do outro. O
mesmo conceito é abraçado pela Teoria dos Conjuntos.
Ao reorganizarmos a estrutura acima com outro formato de exposição, a simetria fica ainda
mais evidente (ver a figura 6).
A redução dessa passagem, apresentada na figura 12, nos permite apreciar a engen-
hosidade do deslizamento cromático na condução das vozes que favoreceu ao compositor
uma inusitada manipulação da funcionalidade tonal. Para facilitar a comparação com os
acordes cromáticos dos exemplos anteriores, considerados enharmônicamente, a redução
da passagem foi transposta uma quarta justa abaixo.
Conclusão
Este estudo sobre a teoria harmônica riemanniana procurou demonstrar como o
entendimento usual que se dá no Brasil ao estudo da harmonia funcional deixa a desejar
primeiramente na compreensão de seus fundamentos teóricos, como é o caso de se
desconsiderar seus fundamentos dualistas e seu objetivo central de dar conta das alterações
cromáticas dos acordes funcionais. Também deixa a desejar quando ela não é aplicada
com todos os critérios da teoria riemanniana ao estudo das progressões cromáticas, tanto
na música erudita brasileira do período romântico, quanto da MPB da segunda metade
do século XX, que, conforme estabelecemos, utiliza diversas características da harmonia
romântica em sua linguagem.
Referências bibliográficas
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SCHOENBERG, Arnold. Harmonia. (1ª ed. 1922). Tradução de Marden Maluf. São Paulo:
Edunesp, 1999.
Eduardo Lopes
Universidade de Évora – Portugal
Que peso perceptual terá então o “novo” terceiro tempo? O princípio da relativa
sucessão de tempos fracos do primeiro ao último tempo foi confirmada através do trabalho
experimental (Lopes 2003), dando assim a seguinte forma para a organização interna de
um compasso ternário (Fig. 3).
Um Estudo de Caso
Em forma de caso de estudo, apresentarei uma análise rítmica de um excerto musical
tentando mostrar de que modo Just in Time operacionaliza e aborda as qualidades rítmicas
de uma peça musical. Este excerto compreende a primeira página do andamento da March
– uma das oito peças de Elliot Carter para Quatro Tímpanos.
Com os quatro tímpanos afinados nas notas g2-b2-c3-e3, o início da March envolve
o uso de duas sonoridades distintas, criando assim uma sensação de duas linhas musicais.
Isto é realizado pela mão esquerda tocando com a baqueta ao contrário (ponta de madeira),
e a mão direita tocando com a parte normal (ponta de feltro). A qualidade de som staccato
na mão esquerda, juntamente com o padrão de ostinato rítmico, estabelece uma linha de
acompanhamento; o som normal dos tímpanos na mão direita, juntamente com a expressão
tenuto estabelece facilmente uma linha melódica.
Questões de ordem métrica numa peça intitulada “March” são também importantes
de abordar. Embora em alguns casos a natureza simples de um compasso binário é o pre-
ferido, as qualidades firmes, focadas, e conduzidas do ato de marchar parecem ser melhor
representadas por uma métrica quaternária.
Como mostra o exemplo na Fig. 8, as construções rítmicas que melhor reflectem
as qualidades básicas de uma marcha são aquelas em que uma nota é atribuída a cada um
dos três primeiros tempos, sendo o quarto tempo composto por uma célula que acentua
o 1º tempo seguinte. Desta forma, enquanto os três primeiros tempos implicam uma cer-
ta qualidade passo-a-passo em ordem com a qualidade cinética de marcha, as durações
menores no quarto tempo servem uma espécie de trampolim, resolvendo o movimento
iniciado para o primeiro tempo, completando assim e organizando perceptualmente o
compasso quaternário.
A Fig. 9 apresenta uma análise rítmica dos primeiros quatro compassos da secção
A. Como mencionado anteriormente, esta secção começa com uma saliência clara em [3:1],
causada não só pela ênfase da melodia e notas de acompanhamento, mas também pela
resolução do movimento cinético anterior (abordarei isto mais adiante). Assim, do ponto
de vista rítmico, as saliências claras em [3:1], e [5:1], juntamente com o padrão de acom-
panhamento do ostinato, criam nos compassos 3 a 5 uma sensação razoável de marcha.
Vale também a pena mencionar que a organização da afinação dos tímpanos, com as notas
do acorde de sétima maior (especificamente a tónica e a quinta no acompanhamento, e
a terceira e sétima na melodia) provocam também uma sensação de fanfarra. Por outro
lado, o movimento controlado passo-a-passo da marcha é de certa forma contrastado pela
1
[nr. de compasso:nr. de tempo]
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 73
acção das notas da melodia colocadas em pontos métricos fracos que libertam impulsos
cinéticos (energia perceptual através da instabilidade métrica). Devido à diferença de ca-
rácter entre as duas linhas musicais (quase como dois intérpretes), acredito que a energia
cinética liberada pela linha melódica nos compassos 3 e 4, tende a não resolver nos tempos
fortes da linha de acompanhamento - daí notados como livremente se dissipando (setas
em tracejado). No entanto, mantendo a linha de acompanhamento o seu padrão ao longo
deste compasso, qualquer eventual ambiguidade métrica criada pelo grande momento
cinético dos compassos 3 e 4, é resolvida pela saliência das duas notas em [5:1]. Também,
[5:1] inicia perceptualmente outra frase bastante cinética de dois compassos (compassos
5-6). Começando de uma forma idêntica à frase anterior, a linha da melodia torna-se cada
vez mais cinética até o final do compasso 5. Devido à última nota do compasso 5 ser ime-
diatamente precedida (sem pausas no meio) por outra nota muito instável, parte da energia
cinética desta última poderá ser avaliada como resolvendo na primeira (como mostra a seta
tracejada vertical na Fig. 9). Assim, a última nota do compasso 5 receberá uma acentuação
devido à resolução da energia cinética das notas anteriores, tornando-se mais saliente, e
liberando ainda mais energia. Este momento extremamente cinético impulsiona a peça
para o compasso 6, elevando assim em mais um estado o crescendo de cinética - através
da eliminação da qualidade de continuidade do acompanhamento em ostinato. Idêntico
ao motivo rítmico do final do compasso 5, as três últimas notas pertencentes ao motivo
rítmico que começa em [6:2] recebem uma acentuação extra resultado da resolução da
energia cinética da nota anterior. Criando um efeito bola-de-neve que consiste no aumento
da saliência e energia cinética de nota para nota, o processo anterior desenvolve um cres-
cendo de sensação de movimento de dois compassos até ao seu clímax na última nota do
compasso 6. Este padrão rítmico infere então um momento extremamente cinético que é
resolvido em [7:1] (similar à transição entre os compassos 2 e 3).
De forma a manter o contexto do compasso quaternário no sequencia da grande
instabilidade rítmica do compasso 6, a linha de acompanhamento do compasso 7 apresenta
pela primeira vez na peça um exemplo da forma rítmica básica de uma marcha (ou seja,
incluindo uma célula rítmica no quarto tempo que acentua o tempo seguinte). Iniciando com
uma saliência clara em [8:1] e por três compassos, a melodia cria um momento bastante
cinético que é resolvido de três em três tempos - acentuando assim [8:4] e [9:3]. Desta forma,
a melodia cria a um nível hierárquico mais elevado uma polirritmia de três-contra-quatro,
aumentando assim a consciência para o padrão de três tempos que é iniciado em [8:1], [8:4]
e [9:3]. No compasso 10, há uma mudança de métrica para um compasso 5/8. Sem a linha de
acompanhamento, a melodia termina o terceiro dos últimos padrões de três tempos, come-
çando um outro no terceiro tempo. Este último padrão fica incompleto devido ao tamanho
do compasso 5/8, e é seguido por uma saliência clara em [11:1], marcando assim o retorno
da construção quaternária. O compasso 10 pode então ser avaliado como uma coda às frases
anteriores de dois compassos. Embora Carter pudesse manter a construção quaternária no
compasso 10, completando o ciclo de polirritmia três-contra-quatro em [11:1], ele optou
por não fazê-lo. Em vez disso, decidiu romper abruptamente a fácil percepção da resolução
do padrão de três-contra-quatro. Ao mesmo tempo que a diminuição súbita de estabilidade
devido à remoção da linha acompanhamento, a natureza desequilibrada do compasso 5/8
cria um efeito de tropeço que só é resolvido em [11:1]. Considerando que o compasso 11
inicia um momento idêntico aos compassos 8-9, a construção rítmica do compasso 10 pode
ser avaliada como um dispositivo de interjeição perceptualmente eficiente, que também
Como apresenta a Fig. 10, a construção rítmica do compasso 8 é composta por uma
saliência no primeiro tempo que inicia uma frase de três tempos; seguindo-se 3 momentos
cinéticos, dos quais o último resolve no saliente quarto tempo, começando aqui a próxima
frase de três tempos. Embora começando da mesma forma que a construção rítmica do
compasso 8, a construção do compasso 11 difere substancialmente no terceiro tempo – o
tempo que precede o primeiro de uma frase de três tempos. Em ambas as linhas de música,
o terceiro tempo inclui células rítmicas que acentuam ainda mais o tempo seguinte. Na
linha da melodia este processo compreende um grande momento de cinética, que pode
ser avaliado como resolvendo na próxima nota, e assim activamente acentuando ainda
mais o tempo forte seguinte. Deve-se ter em mente que tendo em conta a distância entre
os pontos de ataque, a acentuação produzida pela resolução do grande momento cinético
da colcheia pontuada em [8:3], é mais fraco do que o produzido pelo conceito células
rítmicas - em que a distância entre os pontos de ataque da célula e da nota a acentuar é
relativamente mais pequeno.
Carter reitera a sua composição rítmica através da atribuição de sinais de stress, e
crescendo e decrescendo de acordo com o referido anteriormente. Embora pelo que men-
cionei atrás, evitei analisar ambas as linhas musicais como uma só, no entanto devo referir
que neste exemplo, uma descrição rítmica de nível hierárquica superior poderia considerar
ambas as linhas, produzindo assim uma célula única de quatro semicolcheias - o que iria
novamente acentuar ainda mais o quarto tempo. O processo rítmico e resultado no final
da segunda frase de três tempos [12:2] é idêntico ao da primeira, contendo apenas uma
ligeira alteração na forma do ritmo das linhas individuais - isto sem alterar a qualidade
particular da construção total.
Diferentemente da anterior frase de três compassos com a polirritmia de três-contra-
quatro (compassos 8-10), o ultimo padrão de três tempos é completo. Isto deve-se ao fato
de que Carter mantém o compasso 13 como quaternário, permitindo assim que os ciclos de
três-contra-quatro possam ser concluídos. Somando-se à grande saliência do primeiro tempo
Bibliografia
COOPER, G. e MEYER L. The Rhythmic Structure of Music. University of Chicago Press,
1960.
KOFFKA, K. Principles of Gestalt Psychology. New York: Harcourt, 1935.
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LOPES, E. Just in Time: towards a theory of rhythm and metre. 2003. 249 f. Tese (Doutorado
Carlos Almada
Universidade Federal do Rio de Janeiro
1
Ver, por exemplo, o famoso ensaio Brahms the progressive, publicado na coletânea Style and idea
(Schoenberg, 1984, p. 398-441). É também bastante ilustrativa a análise que Schoenberg faz do
primeiro movimento do quarteto de cordas K 465 de Mozart, sob o aspecto da variação progressiva
(Schoenberg, 2006, p. 53-60).
2
Flauta (e flautim), oboé, corne inglês, requinta, clarineta, clarone, fagote, contrafagote, duas
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 79
centrada na tonalidade de Mi maior, apresenta uma considerável expansão dos recursos do
tonalismo, levando-o a latitudes inéditas.3 Uma de suas principais características é a arquitetura
formal, fundamentada em um único e ininterrupto movimento de grande extensão (596 com-
passos), subdivido, num nível básico, em cinco grandes partes, sendo sua sucessão organizada
de modo a evidenciar uma revolucionária concepção de forma-sonata em larga escala. Como
se observa no esquema da fig.1, é possível considerar que as partes ímpares (representadas
pelos retângulos sombreados) formam uma espinha dorsal de sonata, com as partes pares
interpondo-se a suas fronteiras, funcionando como espécies de episódios contrastantes.
Figura 1 - duas interpretações para a estrutura básica das cinco Partes da Sinfonia
Figura 1 - duas interpretações para a estrutura básica das cinco Partes da Sinfonia
80 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
notas da escala de tons inteiros (como uma versão do acorde dominante) e, finalmente, à
tríade maior de Fá.7 Percebe-se como as vozes são conduzidas por movimento de semitons
(quando não sustentadas como notas comuns entre acordes), o que é um fator de decisiva
importância em toda estrutura melódico-harmônica da peça. Como se percebe no ex. 1,
há quatro elementos distintos que definem a Grundgestalt: o intervalo de nona menor
descendente (Lá@-Sol), o hexacorde quartal, a verticalização da escala de tons inteiros e a
linha cromática descendente, Sol-Sol@-Fá.
7
O protótipo desse tipo de encadeamento (que expande o conceito schoenberguiano de acorde
errante) é apresentado como modelo no livro Harmonia (Schoenberg, 2001, p. 557), publicado em
1911.
8
A rigor, é possível considerar d como uma elaboração de A (através de simplificação da nona para
segunda menor e de expansão do modelo), como sugere a seta ondulada no ex. 2. Sob outro ponto
de vista, A e d poderiam ser fundidos em uma só linha cromática descendente com quatro notas
(A@-G-G@-F) (em um caso ou no outro, veríamos a variação progressiva em ação dentro da própria
“semente”!). No entanto, pelas razões que ficarão evidentes mais adiante no texto, prefiro manter
as quatro GG como estruturas distintas. É bastante interessante constatar que algo semelhante
acontece na Sonata para Piano op.1, de Berg, obra que mantém com a Sinfonia estreitas relações
de afinidade (Almada, 2008a): sua Grundgestalt subdivide-se em três fragmentos, sendo o terceiro
deles derivado do primeiro (Almada, 2010b).
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 81
peça, que é empregado especialmente na articulação das seções formais de maior relevo.
Como se observa no ex. 3, esse tema (que será aqui, por conveniência e simplicidade, de-
nominado “Tema Quartal”)9 deriva da horizontalização da GG B, a partir de sua transposição a
uma quarta justa ascendente, e pela incorporação de uma configuração rítmica. Do contorno
quase neutro do arpejo quartal em semínimas destaca-se o fragmento rítmico conclusivo
do tema, de forte personalidade, que terá desdobramentos vários na construção de temas
subsequentes. Abstraindo do fragmento seu conteúdo melódico-intervalar obtém-se uma
espécie de Grundgestalt intermediária (a partir deste ponto, gg), subordinada ao nível das
Grundgestalten auxiliares, que mantém apenas a essência rítmica em relação ao original.
Esse fragmento, não sendo diretamente derivado de uma das quatro GG´s (mas da concret-
ização de uma delas), passa a ser denominado x, configurando-se como um novo ramo, a
partir do qual elaborações adicionais serão perpetradas. Por outro lado, é possível destacar
o fragmento inicial do tema quartal – suas três primeiras notas –, e também submetê-lo a
uma operação de abstração (desta vez, em sentido contrário, com a manutenção de seu
conteúdo de alturas), resultando numa gg de caráter intervalar: b-1.
Ex. 3 - Derivação do Tema Quartal da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 5-6)10
O Tema Quartal é imediatamente sucedido pelo Tema Cadencial,11 que tem a função
de preparar harmonicamente a entrada do Tema Principal (a ser analisado mais adiante).
O ex. 4 apresenta a análise derivativa do Tema Cadencial, evidenciando a ação dos proces-
sos de variação progressiva em sua construção. Surge, assim, uma nova gg – xd-1 –, uma
forma híbrida, a partir da associação de x com d. Essa nova variante é então reiterada,
deslocada metricamentee e transformada, através de operações conjuntas de sequencia-
ção (não literal) e aumentação (c.9). Tal nova formulação gera, através de abstração dupla,
duas novas gg´s: x-1 e d-1.
9
Para uma terminologia mais precisa e detalhada dos temas da Sinfonia, ver Almada (2007).
10
Para as descrições das operações abreviadas neste e nos próximos exemplos, ver o quadro 1 (p.
14).
11
Denominação criada por Alban Berg, em uma análise por ele feita da Sinfonia (Berg, 1993, p. 245).
82 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Ex. 4 - Derivação do Tema Cadencial da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 8-10)
Segue-se então a entrada do Tema Principal da Sinfonia (ex. 5), cuja anacruse é resultante
de uma transformação de b-1, na qual o segundo intervalo de quarta tem sua qualidade trocada
de justa para aumentada. A nova gg – b-2 – recebe uma configuração rítmica quialterada, que
passa a ser empregada no próprio tema (compassos 9, 10 e 11), bem como em diversas ideias
subsequentes.12 A primeira frase do tema (o trecho que é mostrado no ex. 5) é inteiramente
construída com a escala de tons inteiros, revelando assim uma derivação direta de C.
Ex. 5 - Derivação do Tema Principal da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 9-11)
Após tal concentração de temas em tão curto espaço de tempo (11 compassos)
há uma relativa retração da velocidade da variação progressiva (ao menos no aspecto da
12
Não tendo, porém, um caráter transformativo, o que faz com que seus desdobramentos não
sejam suficientemente relevantes para este estudo.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 83
derivação temática). A entrada de um novo tema importante – que encabeça a seção de
transição da Parte I – acontece apenas no c. 78. O ex. 6 relaciona o enunciado desse tema
a duas transformações de gg´s anteriores: d-1 e x-1 (esta última tendo a intermediação de
uma nova variante, x-2).
Ex. 6 - Derivação do tema da transição da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 68-70)
Ex. 7 - Derivação do Tema Lírico da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 84-6)
13
Tomando emprestado o termo cunhado por Schoenberg para a designação dessa estrutura
temática, a partir de suas relações funcionais dentro da forma-sonata (Schoenberg, 1991, p. 184-5).
84 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
O trecho seguinte (ainda dentro da Exposição), embora não se refira propriamente
a ideias temáticas, ao contrário dos casos anteriores, possui grande importância, pois
apresenta transformações intermediárias necessárias para a construção definitiva de um
dos temas da Parte subsequente. Como se observa no ex. 8, a nova formulação motívica
é fruto de uma interessante conjunção entre a GG A (até este momento em “hibernação”,
por assim dizer) e a ubíqua gg x, resultando na variante híbrida xa-1, que, por sua vez, é
imediatamente transformada e disseminada através de vários tipos de imitação (dois deles
são mostrados no exemplo).
Ex. 8 - Preparação para a Parte II da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 148-9)
Ex. 9 - Derivação do tema do Scherzo da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 160-3)
Ex. 10 - Derivação do Tema do Trio da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 160-3)
Ex. 11 - Derivação do Tema (principal) do Adágio da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 382-3)
Por fim, o Tema secundário do Adágio (ex. 12) tem grande parte de sua estrutura
melódica derivada da escala de tons inteiros (coleção b),14 o que o associa à GG C. É pos-
14
Por sua estrutura simétrica, a escala de tons inteiros possui somente duas coleções possíveis:
aquela que começa com uma determinada nota (como mi, por exemplo: Mi-Fá#-Sol#-Lá#-Dó-
Ré), e a outra iniciada pela nota um semitom acima da referencial (Fá-Sol-Lá-Si-Dó#). Apenas por
conveniência, levando-se em conta a tonalidade central da Sinfonia, essas coleções são designadas,
86 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
sível, portanto, perceber uma relação indireta (de “consanguinidade”) entre este tema e o
principal da Sinfonia (ver ex. 4), cuja frase inicial também é construída a partir da escala de
tons inteiros, porém relacionando-se à coleção a.
Ex. 12 - Derivação do tema secundário do Adágio da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 415-9)
Conclusões
Este estudo examinou aquela que pode ser considerada a mais importante finali-
dade composicional da variação progressiva: a obtenção de temas distintos a partir da ideia
básica primordial – a Grundgestalt – de uma obra, que é em geral (como no caso presente)
apresentada em seus primeiros compassos. Isso se mostra notavelmente bem exemplificado
na peça selecionada para análise, a Primeira Sinfonia de Câmara, de Schoenberg. Como foi
constatado, sua Grundgestalt subdivide-se em quatro componentes básicos, cada qual dando
início a diversos processos derivativos, em diferentes graus de profundidade e – por assim
dizer – em diferentes velocidades de propagação, o que permitiu a geração de elementos
caracterizadores e consideravelmente distintos (muitas vezes fortemente constrastantes
entre si) em seus formatos definitivos nos nove principais temas que formam a espinha
dorsal da obra. Os estágios intermediários (gg´s) resultam de transformações diretas de
formas precedentes ou da conjunção de algumas delas (i.e., por hibridismo) que, por sua
vez em certos casos, dão início a novas linhas de descendência.
Os exemplos elaborados para ilustrar os procedimentos acima descritos constituem
uma etapa inicial em relação ao objetivo de criação de um modelo analítico específico para a
variação progressiva, o que se concretiza através de recursos gráficos (retângulos em linhas
cheia ou tracejada, setas onduladas indicadoras de derivação etc.) e de abreviaturas, as-
sociadas a novos símbolos e terminologia (GG, gg, as operações de transformação etc.).
respectivamente, pelas letras a e b (para maiores detalhes, ver Almada, 2010a). Observe-se ainda no
ex. 12 que algumas poucas notas (indicadas por asteriscos) não pertencem à coleção b da escala, o
que pode ser atribuído a uma intenção puramente colorística por parte do compositor.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 87
Figura 2 - Rede de derivações na construção dos temas da Primeira Sinfonia de Câmara op.9, a partir
dos componentes auxiliares da Grundgestalt
Referências bibliográficas
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sica%20Hodie_82_Carlos.pdf>
Alejandro Martínez
Universidad Nacional de La Plata – Argentina
Formenlehre revisitada
Desde hace unos años, puede observarse en la teoría musical tonal la aparición
de ciertas obras que retoman la problemática formal. Textos como los de Caplin (1994,
1998, 2009), Hepokoski y Darcy (2006) o Gjerdingen (2007) proponen diferentes enfoques
– a veces decididamente contrapuestos- de lo que puede entenderse como un retorno a la
tradición de la Formenlehre. William Caplin, particularmente, ha desarrollado cierto enfoque
formal heredero de observaciones y planteos formulados por primera vez por la teoría
de Schoenberg. La Formenlehre de Schoenberg (Schoenberg 1942, 1967, 2006) se apoya
significativamente en una serie de oposiciones: la distinción entre dos estructuras temáti-
cas básicas, la oración (Satz) y el período (Periode), así como en dos tipos de organización
formal, caracterizables como estable o firme (fest), y lábil o inestable (locker). Una de sus
mayores contribuciones a la teoría de la forma es la primera caracterización relativamente
precisa de los rasgos que definen y diferencian a la oración del período.
Las ideas formales de Schoenberg fueron posteriormente retomadas por su
discípulo Erwin Ratz (1951), quién profundiza el concepto de “función formal” planteado
por Schoenberg en varios de sus textos teóricos. El trabajo de Caplin sobre la música instru-
mental del Clasicismo -que es el punto de partida de nuestro trabajo-, se inscribe en esta
tradición, pero avanza significativamente en su grado de sofisticación -tanto en relación a
Schoenberg como a Ratz-, al definir con mayor precisión las características del período y la
oración, las diferencias concretas entre secciones estables y lábiles y en proponer nuevos
tipos formales (que Caplin denomina “formas híbridas”) que amalgaman características de
la oración y el período.
Pero indudablemente el concepto más importante que la teoría de Caplin clari-
fica y ubica en lugar central es, precisamente, el de “función formal”, definida como “el rol
específico que un pasaje musical particular desempeña en la organización formal de una
obra musical” (Caplin, 1998, p.254-255). En la propuesta de Caplin, cada pasaje presente en
una obra musical es capaz de comunicar su función formal como resultado de la interacción
de varios aspectos musicales. De este modo, la constitución interna de un pasaje musical
(en términos rítmicos, armónicos, melódicos, de agrupamiento y texturales) y su relación
con pasajes anteriores son factores que proporcionan a aquél una determinada cualidad
temporal. El concepto de función formal apunta entonces a un aspecto que Caplin busca
recuperar en su acercamiento a la forma musical: la experiencia de temporalidad que
suscita la audición musical:
Desde la publicación del libro de Caplin en 1998 han aparecido algunos trabajos aplicando
su enfoque funcional a repertorios posteriores al de la música instrumental del período clásico que
aquél examina (e.g., BaileyShea 2003; Somer, 2005; Broman, 2007). Estos trabajos plantean varias
cuestiones interesantes en relación a las propuestas originales de Caplin. Por un lado, muestran que
tanto la oración como el período y las formas híbridas están presentes en la música de otros períodos
históricos. Por otro lado, sugieren también algunas revisiones, adaptaciones y extensiones a la teoría,
sobre todo aquellas vinculadas con la expansión de los tipos formales básicos y con su aplicación
en contextos no tonales o incluso modales. Una revisión necesaria apunta a precisar entonces
los elementos y procesos formales específicos que permitan todavía caracterizar funcionalmente
un pasaje musical como oración, período u otra forma híbrida o no convencional en repertorios
diferentes al clásico. Por ejemplo, BaileyShea (2003) ha señalado la presencia de nuevos modelos
de forma oración utilizados por Wagner en sus óperas. En estas “oraciones wagnerianas”, este autor
muestra que Wagner modifica en la forma oración prototípica el modo de expresar la función de
continuación, mientras que la presentación (con la enunciación de la idea básica y su repetición) per-
manece esencialmente sin alterar1. Asimismo, para abordar repertorios más recientes, es necesario
elucidar y clasificar procesos formales en el plano de la textura, la dinámica y el timbre –elementos
anteriormente secundarios con respecto al aspecto armónico/motívico- para establecer su contri-
bución a la funcionalidad formal postonal tras el debilitamiento o la ausencia de funcionalidad tonal.
1
Ver más adelante en la figura 1, la definición de los componentes formales de la forma oración.
92 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
agotadas, pertenecientes a la música tonal del pasado, éstas siguen siendo utilizadas por los
compositores como medio para una coherente exposición de las ideas musicales, aunque en
forma extendida y exhibiendo un tratamiento más complejo de los elementos motívicos.
Tal como nos enseña Schoenberg, lo que caracteriza al período y la oración como estruc-
turas contrastantes se encuentra en la diferente disposición y tratamiento otorgado a los elemen-
tos motívicos. En términos de la expresión usada por Webern, es el modo de “presentación de
las ideas musicales” el aspecto que está en juego entre ambas formas. Por idea musical Webern
(1984, p.41) entiende “la expresión de una idea por medio de sonidos” y en sus conferencias,
sostiene que, tanto el surgimiento de la música atonal libre como el de la técnica dodecafónica,
están necesaria e ineludiblemente ligados a la exploración y expansión del material sonoro así
como al refinamiento progresivo en la presentación de las ideas musicales. Webern señala que:
Si bien no tan explícitamente como Webern, en algunos pasajes de sus escritos Schoenberg
también deja ver la persistencia de ciertas formas anteriores en su música atonal libre y en aquella
basada en la técnica dodecafónica. Sin embargo, tanto Schoenberg como Webern no proporcionan
claramente ejemplos propios en los que podamos apreciar su utilización del período o la oración
en una obra musical no tonal. Ello supone un problema a resolver: ¿de qué maneras podrían
operan estos prototipos formales en contextos en los que la dimensión estructural que aporta la
tonalidad ya no es aplicable? Schoenberg acerca una respuesta a esta pregunta cuando afirma que
[…] se puede sacrificar lógica y unidad en la armonía antes que en la sustancia te-
mática, en los motivos, en el contenido de ideas [musicales] […] Es difícil concebir
que una pieza de música tenga significado a menos que haya significado en los
motivos y en la presentación temática de las ideas. (Schoenberg, 1984, p. 280)
En la formulación más típica de la forma oración, como hemos visto, la función con-
tinuación se fusiona con la función cadencial en un mismo agrupamiento.3 En el siguiente
ejemplo, el comienzo del op. 24 de Webern, cada función formal es asignada a un diferente
agrupamiento. Los primeros tres compases presentan la idea básica en los instrumentos de
2
Caplin propone un esquema de tres cualidades temporales principales distinguibles en todo
segmento temporal: comienzo, medio o fin y dos accesorias: antes-del-comienzo y después-del final.
3
Caplin representa este hecho con la indicación “continuación → cadencia”.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 95
viento. Luego, el piano reexpone esta idea básica con una operación variativa característica
de la música dodecafónica de Webern: el palíndromo. De este modo, se produce una re-
trogradación de los valores rítmicos de la idea básica original, así como una retrogradación
interna de las notas en cada grupo (delimitados por los diferentes valores rítmicos) de la idea
básica. Ambas presentaciones comienzan en F y descienden al P. Seguidamente, la función
continuación se proyecta a través de un evidente incremento en la actividad rítmica (con el
uso de las semicorcheas, el valor más breve aparecido en la idea básica). Hacen su aparición
la viola y el violín y la dinámica se mantiene en F y FF. Todo ello refuerza la sensación de
aumento de la tensión, característico de la función continuación. Hacia el compás 8 hay una
cierta reducción de la actividad rítmica con la reaparición de las corcheas y los tresillos de
corcheas que anticipa el gesto de los acordes del piano que expresan una cualidad temporal
conclusiva (reforzada por la dinámica descendente y la aparición del primer PP aparecido
hasta aquí). Tal como muestra la figura, el inicio y la finalización de cada componente formal
mencionado están adecuadamente resaltados con cambios de tempo:
Como puede apreciarse debajo del esquema, la forma período expresa dos niveles
de temporalidad musical: la relación comienzo→conclusión dentro del antecedente y el
consecuente se proyecta, en un nivel jerárquico superior, a la forma en su totalidad.
El detalle saliente de este pasaje con estructura de período se encuentra en el compás
6. Desde el punto de vista de la estructura “modelo”, este compás puede pensarse como una
interpolación al comienzo de la frase consecuente. El análisis interválico revela que el tricordio
(015) es subconjunto de (0145), el conjunto de la idea básica, y que (016) es subconjunto de
(1247), el conjunto de la idea contrastante. Ambos tricordios se articulan desde el sonido sol 4,
siguiendo una direccionalidad opuesta. Por ello, esta interpolación constituye una suerte de ver-
sión reducida de los materiales interválicos que caracterizan a la idea básica y la idea contrastante.
Otro rasgo para señalar es el calderón del compás 5. Schoenberg afirmaba, al des-
cribir la estructura de la forma período en Fundamentals of Musical Composition, que el
antecedente debía finalizar con una “cesura” (Schoenberg, 1967, p.25). (usualmente una
semicadencia en la música tonal). Aquí, el calderón, sumado al ritardando contribuye a crear
la sensación suspensiva que caracteriza típicamente el final del antecedente.
En este pasaje se aprecia una forma oración cuyas idea básicas se superponen
(representadas por el conjunto (0156), primero en el violín y luego en el piano). En esta
presentación, asimismo, cada idea básica presenta una red de relaciones interválicas inte-
resantes, tal como ilustra la figura siguiente:
100 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Figura 9. Análisis interválico de la presentación de Webern, op.7/3, c.1-5.
Conclusión
Los análisis anteriores han intentado mostrar de qué modo pueden presentarse
las formas período y oración en ciertas obras de Schoenberg y Webern, en un contexto
no-tonal y en concordancia con las ideas expresadas por éste último acerca de su uso ex-
tendido. Recordemos que Webern afirmaba que las formas habían evolucionado de modo
tal que su identificación podía resultar difícil. Sin embargo, los ejemplos anteriores ponen
de manifiesto que ciertos rasgos característicos que definen al período o a la oración per-
manecen, aun cuando la tonalidad no está presente y el trabajo motívico sea más complejo.
En los ejemplos vistos hay un predominio de ejemplos de forma oración. Recordemos que
Schoenberg afirmaba que:
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 101
incremento de la tensión y al crecimiento orgánico de los elementos motívicos. Por estas
razones, es posible considerar a la oración como la estructura temática más adecuada para
aplicar a las ideas musicales los procesos de intensificación, diferenciación y crecimiento
gradual que caracterizan al principio de variación progresiva
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102 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Elementos postonales como factores de integración
de estructuras modales, tonales y postonales en la
expresión estética modernista: a sonata para guitarra y
clavecín (1926) de Manuel ponce
1
Saavedra (2001, p. 327).
2
Barceló (2011, p. 34).
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 103
Figura 1
La estructura MEL2Q proyecta horizontalmente las quintas justas E-B y A-E. Por su
parte, P4q2seg despliega una progresión de quintas justas enunciadas como cuartas justas
ascendentes. La figura 2 expresa esta estructura como resultado de la aplicación de las
operaciones T5 y T1.
Figura 2
El cuarto pulso del primer compás exhibe una aparente anomalía al proceso de las
dos estructuras mencionadas MEL2Q y P4q2seg. La situación musical tiene relación con el
predominio de una expectativa por encima de otra. La expectativa perdedora, provocada
por la estructura MEL2Q deriva del procedimiento de repetición, su contorno melódico nos
hace esperar la repetición de E4 en el cuarto pulso del compás 1. Sin embargo, la estructura
P4q2seg transforma a MEL2Q en el pulso antes señalado: P4q2seg genera la expectativa de
F 4 como continuación de la progresión de quintas justas –enunciadas como cuartas justas
ascendentes-; de esta manera, el F 4 aparece en MEL2Q, y P4q2seg finalmente produce la
expectativa musical ganadora. Mas adelante, la segunda parte de P4q2seg conduce por grado
conjunto, el sentido de movimiento dirigido hacia E4 en el primer pulso del compás 2.
El diseño distintivo de las dos estructuras comentadas nos permite intuir en una
lectura local una relación musical concreta, la interpretación tonal de una triada menor que
decora a una sonoridad armónica o klang cuyo tono fundamental es E. Es decir, el (F ) que
104 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
podría haber presentado MEL2Q en el contexto sugerido de un entorno tonal en (E, -), es
transformado por P4q2seg en (F ), generando una inflexión asociada al modo frigio.
Enseguida P3qKTON repite casi de manera exacta la información ofrecida por
P4q2seg complementando el significado musical con la segunda mitad de MEL2Q que pro-
longa a A4 en el compás 2. Tal significado consiste en afianzar la representación de la tónica
con un klang cuya estructura tiene como base el intervalo de cuarta justa (o su inversión, la
quinta justa), de ahí la etiqueta para esta tercera estructura –una progresión de tres quintas
descendentes que definen al klang tónica-. Por otra parte, la percepción de una proporción
de cambio rítmico en P4q2seg contribuye a definir el E como tono fundamental del klang
que representa en este contexto a la tónica: el cambio de nota de octavo (corchea) a nota
de cuarto (negra) produce la intuición de una sensación de freno, de expectativa de llegada
a una meta parcial y de manera mas precisa, a la sensación de estar en la ubicación espacial
musical inmediata anterior a una meta. La figura 3 expresa la proporción mencionada.
Figura 3
Figura 4
3
Schoenberg (1995, p. 56).
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 105
En suma, al funcionar el GPA como la presentación de la idea, Ponce responde a una
tradición históricamente arraigada que procede al menos de las composiciones barrocas
y clásicas de J. S. Bach (1685-1750), G. F. Händel (1685-1759), J. Haydn (1732-1809), W. A.
Mozart (1756-1791) y L. van Beethoven (1770-1827). Sin embargo, este proceder estruc-
tural y formal en el contexto de la época y con los recursos postonales que se mencionarán
enseguida, constituye también un gesto modernista. El impulso modernista se expresa en
un entorno diatónico donde la estructuración del GPA deriva de las operaciones T5 y T7
con la consecuente inflexión al modo frigio de un segmento melódico y la transformación
por mixtura de la subtónica (VII ), así como la representación armónica de la tónica con
un klang de base cuarta.
Pero el movimiento por intervalos de quintas diatónicas ubicadas naturalmente en
la escala de la tonalidad correspondiente, es un distinguido y antiguo procedimiento tonal
¿de dónde viene entonces la idea de un procedimiento modernista? Del énfasis en la estruc-
turación de una retícula de áreas que se delimitan a partir de puntos armónicos derivados
de las operaciones T5 y T7 pero que no necesariamente prolongan el punto armónico.
Entre otros factores, esta es una lógica musical audible que aunada a otros elemen-
tos estructurales de la pieza, impide escuchar la sonata como una obra tonal en el sentido
funcional mayor-menor que Heinrich Schenker4 generaliza en su teoría tonal, i. e., no es
posible derivar un Urlinie5 ni tampoco un Ursatz en cada uno de los movimientos de la
sonata y aunque se escuchan prolongaciones armónicas en diferentes planos de audición,
en este sentido profundo estructural la pieza es una obra postonal diatónica modernista
con fuertes énfasis tonales e inflexiones modales y las maneras de conciliación de estos
materiales constituyen la riqueza artística, estética y musical de la obra.
En este orden de ideas es pertinente el comentario de Richard Taruskin al respecto
del Modernismo musical como fenómeno cultural ambivalente que contiene tanto propu-
estas radicales como moderadas6.
Existe un radicalismo de fines y un radicalismo de medios […] ambos no necesari-
amente coinciden. No todo radicalismo debería considerarse como modernismo y no todo
modernismo requiere medios radicales de expresión.
Veamos el alcance estructurador de las operaciones T5 y T7. La figura 5 ilustra en
tres niveles insertos de atención una porción de este alcance. Un primer nivel que deter-
mina la estructura del klang tónica (P3qKTON), un segundo nivel que establece la relación
de intervalos entre triadas locales menores contiguas y un tercer nivel que gobierna la
progresión y articulación de la música en un nivel medio de percepción mas profundo que
el nivel anterior.
4
Schenker (2001, p. 86).
5
Urlinie y Ursatz, respectivamente, “línea fundamental” y “estructura fundamental” (N. del A.)
6
Taruskin (2010, p. 3).
106 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Figura 5
Figura 6
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 107
Figura 7
Una conciliación creativa de usos tonales con usos modernistas diatónicos es la
manera en que Ponce afianza la polarización armónica que se espera de la sección Exposición.
108 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
En este caso hay una verdadera prolongación en un plano medio de atención, de la domi-
nante de la tonalidad sugerida de mi menor. Se trata de un procedimiento de oscilación de
klangs por relaciones de mediantes, los klangs proyectan estructuras armónicas de novena
no funcionales, a tono con el color armónico predominante en la música de Claude Debussy7.
La figura 8 ilustra esta prolongación.
Figura 8
Figura 9
Una primera elipse vertical sombreada proyecta los puntos armónicos de (E, +).
Esta área corresponde a la Exposición del allegro moderato. La elipse horizontal refiere una
extensa área que prolonga en un nivel medio profundo a F a través de doce aplicaciones
7
Devoto (2003. p. 184).
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 109
de la operación T5. El punto armónico F es relevante en tanto mediante de la tonalidad
sugerida de (D, -) que exhibe el Andantino. La tercera figura, con forma de círculo, proyecta
grados de la tonalidad (E, +) que pueden asociarse con el tercer movimiento.
Al respecto de Otros culturales asociados al movimiento cultural del Modernismo,
son relevantes los siguientes dos significadores audibles distintivos; uno, la estructura
P4q2seg del gesto GPA del allegro moderato, que razonablemente puede conectarse con la
progresión ascendente de cuartas justas en la primera sinfonía de cámara, op. 9 de Arnold
Schönberg, sin duda un símbolo de la vanguardia vienesa antes del giro serial del autor de
Verklärte Nacht y dos, la estructura MEL2Q, también del gesto GPA del primer movimiento,
que puede relacionarse con el contorno melódico del preludio 8 en (G , +). - La fille aux
cheveux de lin- de la primera serie de Préludes (1909-1910) de Claude Debussy. Esta segunda
relación se asocia con el extenso vínculo de Ponce hacia el género de canción popular, es
interesante destacar que el preludio para piano antes mencionado, tiene su antecedente en
la canción para voz y piano La fille aux cheveux de lin: Sur la luzeme en fleur (1882) también
de Debussy. Se trata de una composición creada por el autor de La Mer para acompañar la
poesía La fille aux cheveux de lin, cuarta de una serie de seis chansons écossaises publicadas
en el libro Poèmes Antiques (1852) del poeta francés, Charles-Marie-Rene Leconte De Lisle.
(1818-1894). Las figuras 10 y 11 ilustran fragmentos de las obras mencionadas.
Figura 10
110 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Figura 11
8
Saavedra (2001, p. 328).
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 111
Figura 12
Figura 13
Por su parte, en el Andantino destacan las siguientes tres relaciones musicales que
brindan cohesión estructural entre los tres movimientos de la sonata, de una manera mo-
dernista. La primera relación ocurre en la sección central (“poco piú mosso”) del segundo
movimiento, un movimiento central con forma tripartita. Aunque una primera intuición
musical nos puede llevar a significar musicalmente la sección mencionada como una pro-
longación de la dominante con mixtura de la forma que muestra la figura 14, la aparente
presentación en segunda inversión de la dominante cromatizada (V6/4) no refleja el sentido
de coherencia y naturalidad que resulta de la audición de tal sección en su contexto.
Figura 14
112 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Una significación musical que permite conectar nuestra percepción musical con
el significado de lógica musical que la propia obra propone de manera consecuente, es el
conectar el sentido de familiaridad de la sonoridad que supuestamente habíamos sugerido
como V6/4 con mixtura, con la representación de la tónica en el allegro moderato en tanto
klang base cuarta que engloba las quintas justas E-B y A-E (el supuesto V6/4 ahora se puede
generalizar en tanto KTON –klang tónica-). Esta interpretación explica nuestra intuición de
paralelismo musical con el primer movimiento, la familiaridad con la sonoridad y la natu-
ralidad en el flujo musical de esta sección.
Adicionalmente, la percepción de los siguientes elementos locales en la prolongación
del klang KTON base cuarta (compases 13 a 18 y compás 26) afianza la significación aludida:
la centralización de E a la manera de una tónica, así como la significación de E como tono
fundamental del klang KTON, el uso de la colección de tonos de la escala de E mayor en los
compases 17 a 21 y la consecuente intuición de una articulación de los puntos estructurales
E-A-B. La figura 15 muestra las relaciones comentadas.
Figura 15
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 113
Como refuerzo y consecuencia de la interpretación anterior, hay dos interpretaciones
armónicas relevantes hacia el final de la tercera sección del Andantino. La figura 16 explora
el sentido cadencial de esa sección y la figura 17 interpreta esa misma sección, a la luz de
los paralelismos mencionados en el párrafo previo y en tanto tercera relación: Es posible
escuchar una estructura de quinta justa vertical que es transpuesta vía T10 desde E hacia
D: (E-B) T10 = (D-A), lo cual induce un paralelismo de E-B con los movimientos externos de
la sonata y de D-A con el movimiento central, el Andantino.
Figura 16
Figura 17
Figura 18
114 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
La preponderante textura polifónica del primer movimiento tiene su continuidad en
el tercer movimiento. También en este último movimiento de la sonata se sigue el esquema
de las formas sonata, aunque de manera mas libre que en allegro moderato.
Hacia el principio de la Exposición, un vaivén armónico por mediantes prolonga la
tónica sugerida (primeros cuatro compases); en los siguientes cuatro compases, con una
textura polifónica a cuatro partes y con una sonoridad mas cromática que la precedente, el
proceso de prolongación de la tónica continúa en una manera que razonablemente podemos
ubicar como modernista: se trata de la presentación de dos klangs con estructura de acorde
de séptima semi-disminuída y de dos klangs con estructura de séptima de dominante, cuatro
sonoridades que hacen familiar la audición del tramado polifónico y que nos conducen
a la tónica, ataviada con un traje de séptima de dominante con novena (X9). La figura 19
expone la música en su registro correspondiente.
Figura 19
Por su parte, la figura 20 muestra una aproximación mas detallada en dos sistemas
de pentagramas.
Figura 20
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 115
El primer pentagrama hace explícitas las descripciones de las sonoridades armónicas
arriba descritas. El pasaje es relevante para ilustrar una estrategia modernista de estructu-
ración local para articular el sentido de dirección en una sonoridad cromatizada. Se trata
de un contrapunto implícito a tres voces.
Una voz superior desplaza una estructura vertical de quinta justa –expresada
como cuarta justa ascendente- a través de las operaciones T4 y T3:
(G -C )T4→(E -A ) T3→(C -F )
Por otra parte, en la voz inferior, una progresión de quintas con pequeños ajustes
con fines contrapuntísticos y armónicos locales, genera un sentido de movimiento dirigido
en apoyo a la voz superior:
(E)T5→(A)T6→(D )T5→(G )T10→(F )T5→(B)T6→(F )T1→
(F )T5→(B)T5→(E)
Finalmente, una tercera voz en un registro medio, proyecta una progresión melódica
descendente y así colabora con la guía auditiva de dirección en el pasaje aludido:G -F -E-D -C .
Por su parte, el segundo pentagrama de la figura 20 muestra las relaciones men-
cionadas. Una polifonía a tres partes que aporta cohesión y dirección de audición en un
entorno con cromatismo contextualmente significativo, que adquiere un significado musical
de tipo armónico cadencial hacia los compases 7-9. Tres acordes de tipo dominante séptima
en el entramado contrapuntístico que se intuyen local y tonalmente como una dominante
aplicada a la dominante y la llegada a una tónica local que por integrar un intervalo de
novena en su estructura vertical, genera una sensación de reposo sin perder el momentum
en la percepción de movimiento dirigido.
En otro orden de ideas, es muy importante un elemento diatónico articulador de
secciones que por su función cadencial y su rasgo principalmente melódico y rítmico, brinda
cohesión al tercer movimiento. Se trata de la estructura tac –tema anacrúsico cadencial-. Es
un contrapunto a cuatro partes cuya voz inferior prolonga un primer punto armónico X por
medio de las operaciones T7 y T5. Una vez de regreso en el punto X, una aplicación adicional
de T5 nos deposita en Z. La figura 21 muestra el gesto armónico de la voz inferior.
Figura 21
116 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Figura 22
Figura 23
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 117
Figura 23 (cont.)
Una relación importante entre el segundo y tercero movimientos tiene conexión con
la repercusión melódica del patrón horizontal monofónico que exhibe el Andantino y que se
establece en el área armónica y temática 2 del Allegro non troppo e piacevole. De la sección
aludida del Andantino son relevantes la semifrase A de la frase 1 (sfA de F1) y la semifrase
C de la frase 2 (sfC de F2). La figura 24 indica el esquema de frases en la partitura.
Como se observa en la figura 24, los finales de ambas semifrases se enuncian con
valores de nota de cuarto (negra); en sfA: G-A y en sfC: G -A; en el primer caso la meta A
se obtiene por T2 y en el segundo caso la meta A se obtiene por T1. En cuanto al allegro
non troppo e piacevole, la repercusión melódica anunciada consiste en la prolongación
de dos grados melódicos contiguos –supertónica y mediante en el entorno local tonal
sugerido– por medio de una secuencia cromática que enuncia a una estructura melódica,
t2 prolonga melódicamente y a través de sus dos semifrases a (F ) y a (G ); en el
primer caso, la meta F se obtiene vía T2; en el segundo caso, la meta G se obtiene vía
T1. La figura 25 muestra este procedimiento de prolongación que se intuye también como
estructura melódica t2.
El esquema siguiente exhibe la relación transformacional entre ambas situaciones
musicales del Andantino y el Allegro non troppo e piacevole:
[(g)T2=(A)] t1 [(g )T1=(A)]
[(E)T2=(F )] t3 [(F )T1=(G )]
Un caso adicional de interacción de estructuras armónicas de base cuarta con
estructuras de base triada, sucede en la parte final del área armónica temática 2 de la Ex-
posición, en el tramo que finaliza en el inicio de la Recapitulación –número de ensayo 22-.
En esta sección de ocho compases (compases 59-67) que se percibe dividida en dos partes
que llamaremos ASUBD-1 y ASUBD-2 –“a la subdominante”, la dirección del despliegue
armónico que subyace, prepara y conecta un proceso contrapuntístico que culmina en el
compás 67 con la llegada al IV en la Recapitulación.
En la parte ASUBD-1 (compases 59-62), la voz del bajo presenta la progresión
melódica - que tiene su repercusión homóloga - . El paralelismo esta mediado por
un movimiento de quinta –expresado como cuarta ascendente- - que a su vez progresa
en un descenso de tercera - , conectándose con la repercusión - ya mencionada.
La progresión melódica ascendente por grado conjunto es importante tanto por
los paralelismos locales de ASUBD-1 como del pasaje antes citado previo a la llegada a la
Recapitulación.
ASUBD-1 anuncia de forma prematura en dos ocasiones el acorde meta del des-
118 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
pliegue armónico que ocurre después de las enunciaciones de ASUBD-1 y ASUBD-2, es
decir, el IV en el compás 67.
Otra anticipación que presenta ASUBD-1, es la presentación de un klang base cuarta que
aparecerá de manera predominante en ASUBD-2. En ASUBD-1 ocurre dos veces, D -G -C en
el compás 60 y A- D -G en el compás 61. Es posible intuir ambos klangs como una sola
estructura vertical que se transpone vía T7.
Por su parte ASUBD-2 –compases 63-66– exhibe estructuras base cuarta que
podemos expresarlas aquí con intervalos tono-clase: {6-5-5}, {5-6-5} y {5-5-5}. La audición
contextual refiere estructuras verticales basadas en cuartas ascendentes, lo que a su vez
puede interpretarse como un bloque diatónico vertical que se va transformando en su
estructura interna y transponiendo a través de T9, desplazándose así, desde D hacia B. La
figura 26 expresa las relaciones musicales anteriores.
Figura 24
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 119
Figura 25
Figura 26
120 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Por otra parte, una relación importante que ofrece cohesión adicional a la sección del
Desarrollo en el tercer movimiento es el pasaje que tiene a (D , -) como klang tónica local.
La enunciación repetida de un patrón melódico con estructura modal frigia a partir de D ,
refuerza la intuición de un paralelismo, con la estructura monofónica lineal del Andantino.
La figura 27 presenta un extracto de la edición Peer International.
Figura 27
El pasaje se escucha como una sección interna natural y consecuente con el pasado
del Andantino. El carácter menor con fluctuaciones modales del segundo movimiento
emerge aquí pero no sobre D , sino en D . La relación transformacional que se forma
de la sección “poco piú mosso” del Andantino –que hace un paralelismo con el KTON del
primer movimiento- con el área en (D , -) del Desarrollo en el tercer movimiento, puede
expresarse como:
2º mov. “poco piú mosso” (D, -)T2 (E, -)
3º mov. “Desarrollo” (D , -)T1 (E, +)
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 121
Los puntos armónicos que marcan la parte final de la retícula de secciones que
culminan el allegro final, se expresan en la figura 28, que ilustra la relevancia de T7 y T5
como generadores de estructura.
Figura 28
9
Aubry (1910. p. 14).
122 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Figura 29
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 123
Por su parte la figura 30 ofrece un acercamiento del manuscrito con el detalle de
la notación cuadrada a cuatro líneas10 y el texto (ver texto completo en apéndice 3) en la
lengua occitana antigua: langue d´oc:
Figura 30. Giraut de Bornelh, MS R, fol. 8V 22543, [Reis glorios, verais lums e clartatz] Département
de la reproduction, image numérique >1.8<50 Mo / CD, Bibiothèque nationale de France (copia
digital, MS, siglo XII)
10
Roussel (1981, p. 378) explica que en la notación cuadrada “las melodías están pautadas sobre
un número variable de líneas que oscilan entre tres y ocho. La notación cuadrada manifiesta una
intencionalidad diastemática, o sea, de precisar la notación de los intervalos”.
11
Werf (1972, p. 17).
124 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
de Reis glorios, se divide en dos partes: un movimiento por grado conjunto que ornamenta
el A con notas vecinas superior e inferior respectivamente y otro movimiento que procede
por segunda mayor descendente; este gesto ocurre de manera igual en 2 ocasiones en el
alba. En el Andantino, la semajanza aplica solo en la primera parte del gesto en el contorno
melódico descendente y ascendente hacia el compás 3 a partir del pulso número cuatro,
donde se escucha en cada pulso la progresión: B -A-G -A.
Figura 31
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 125
Figura 32
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128 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Signos da Brasilidade Modernista numa canção
de Guarnieri & Mário de Andrade:
Lembranças de Losango Cáqui
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 129
Análise Musical intrínseca
Essa peça, composta por M. Camargo Guarnieri, logo após o começo de seus estudos
com o maestro Lamberto Baldi em 1928, utiliza uma linguagem modal, que se apresenta
logo na pequena introdução pianística (ex.1, comp. 1-2).
Ex.1
Verifica-se o emprego do modo frígio pelo compositor, um modo que pode ser
encontrado em melodias folclóricas de origem ibérica principalmente no sul do Brasil, mas
também no interior da Bahia.
Segundo Ermelinda Azevedo Paz (1989, p. 20), os modos do folclore brasileiro
correspondem, em sua estrutura escalar aos modos medievais europeus, “porém com
ritmos e melodias caracteristicamente brasileiros”. Neste sentido, M. Camargo Guarnieri
(doravante CG) tanto poderia ter retirado os modos empregados nessa canção do folclore
brasileiro quanto, sob a influência dos impressionistas franceses, poderia tê-los resgatado
dos modos medievais europeus. A análise musical intrínseca1, que na teoria semiótica da
música elaborada por José Luiz Martinez (1997) trata dos signos musicais em si mesmos e
lida com as qualidades musicais (timbre, melodia, ritmo, forma, etc...) e a significação musical
interna, não tem como resolver essa questão, sendo necessário realizar uma investigação
da referência musical, ou seja, do modo como os modos representam objetos dinâmicos
(no caso os vários significados veiculados pela poesia de Mário de Andrade) para lançar
uma luz sobre ela mais adiante.
De qualquer forma, vale a pena ressaltar que em artigo mais recente Ermelinda A. Paz
(1999, p. 59) salienta que Mário de Andrade (doravante MA) na década de trinta “chamava
1
J. L. Martinez (1997) definiu três campos de investigação como ferramenta para tornar mais claro
o estudo da semiose musical partindo da concepção peirceana da ação sígnica como processo
triádico: semiose musical intrínseca, referência musical e interpretação musical. Tal divisão baseia-se
na lógica da semiose que envolve a relação entre signo, objeto e interpretante e reflete também as
categorias universais (primeiridade, secundidade e terceiridade). Neste sentido, a semiose musical
intrínseca corresponde a um dos subcampos da semiótica (a gramática especulativa), em que se lida
com a natureza intrínseca dos signos e da semiose, assim como examina-se as relações entre os sig-
nos. Já a referencia musical corresponde ao campo da crítica, lidando com a relação entre os signos
e seus objetos e a interpretação musical, correspondendo ao subcampo da metodêutica, lida com a
relação entre os signos e seus intérpretes, focalizando o processo de semiose a partir do ângulo do
intérprete e dos interpretantes gerados em sua mente.
130 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
a atenção para a riqueza inesgotável de melodias e ritmos provenientes da região nordes-
tina e que poderiam ser empregados como fonte de renovação para a música brasileira”,
citando os irmãos João e José Baptista Siqueira, CG e C. Guerra-Peixe como autores que
“empregaram largamente em suas obras elementos desta música”. Todavia tal afirmação,
ainda que possivelmente válida para obras compostas por esses artistas nos anos trinta e
quarenta não poderia explicar o uso do modalismo por CG em 1928, considerando-se que a
Missão de Pesquisas idealizada por MA quando diretor do Departamento de Cultura de São
Paulo chegou a Pernambuco somente em 1938, ou seja, uma década após a composição da
canção “Lembranças de Losango Cáqui”. Sendo assim é mais provável que tenha descoberto
o modalismo, sob a influência das modas de Paris.
Os dois modos utilizados pelo compositor (frígio e eólio) possuem o mesmo centro, em
fá# (ex.2), mas diferenciam-se pelo seu 2º grau - um semitom acima da tônica no caso do modo
frígio e um tom acima no caso do eólio. A estrutura dos intervalos entre os sete tons que compõem
esses modos diatônicos, portanto, é diferente. Em toda a canção, o modo frígio predomina e o
modo eólio faz somente duas breves aparições ao final de cada seção (comp. 13-14; comp. 34-35),
quebrando a monotonia do modo frígio, tal como é recriado por CG ao longo da peça.
Ex.2
Sobre a utilização de dois modos numa mesma peça, como ocorre neste caso, o compositor
José Siqueira (1981) observou que se trata de uma ocorrência freqüente, denominada dualismo
modal, acrescentando que os tipos de dualismo mais comuns na música folclórica brasileira são
entre os modos jônio/ lídio, jônio/ mixolídio e mixolídio/ lídio. Assim, pode-se afirmar que ao
criar um dualismo incomum, misturando os modos frígio e eólio, CG foi além da tradição popular
brasileira, seguindo a orientação de Mário de Andrade, contida no Ensaio sobre a Música Brasileira
(publicado em 1928, ano de composição da obra): “O artista tem só que dar pros elementos já
existentes (na arte nacional, popular) uma transposição erudita que faça da música popular, música
artística, isto é: imediatamente desinteressada” (Andrade, 1962, p. 16).
Sendo assim, o contato com MA e a leitura do Ensaio chamou a atenção de Guarnieri
para a necessidade de fazer tal transposição, unindo elementos da música folclórica aos pro-
cedimentos das vanguardas européias. Neste sentido, seu contato com a obra de Debussy,
antes mesmo do começo dos estudos com Baldi, tal como afirmaram Antonio L. de Sá Pereira2
2
Antonio L. de Sá Pereira afirmou que antes de completar seus estudos, CG teria sido “arrastado
por dois poderosos campos magnéticos: o italiano e o wagneriano. [...] A essas influências teria se
somado, com o aparecimento de Debussy, um terceiro campo, posteriormente, o francês” (Silva,
2001, p. 23).
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 131
e Maria Abreu3, contribuiu certamente para despertar seu interesse pelos modos.
Um traço geral da música modal tradicional, resgatado nessa canção por CG, con-
siste na circularidade das melodias que encaminham o ouvinte para a “experiência de um
não-tempo”, como observou J. M. Wisnik (1989, p. 71), a respeito dessa temporalidade que
“não se reduz à sucessão cronológica nem à rede de causalidades que amarram o tempo
social comum”. Trata-se de uma experiência de produção comunal do tempo, resgatada e
recriada pelo compositor paulista, que faz a música parecer monótona ou intensamente
sedutora e envolvente, dependendo de como é escutada4.
Cumpre demonstrar de que forma CG produz essa circularidade temporal das
músicas modais em sua pequena peça para canto e piano. Na verdade, esse efeito circular
é obtido através da subordinação das notas da escala a um som fundamental (a tônica em
fá#), repetido no baixo (executado pela mão esquerda do pianista) que cai no tempo forte de
cada compasso, seguido por um semitom ascendente e pelo retorno à tônica, gerando assim
uma ondulação hipnótica nos ouvintes. Sobre este centro tonal as outras linhas melódicas
(do piano e do canto) criam um jogo polirrítmico e polifônico que lembra as experiências
de Debussy quando começara a se libertar do tonalismo através dos modos medievais.
Na música modal tradicional, como observa Wisnik (1989), as linhas melódicas são
geralmente manifestações da escala que colocam em cena as possibilidades dinâmicas do
modo, mais do que motivos acabados. Sobre as notas da escala, geralmente os intérpretes
têm a liberdade de improvisar, tal como ocorre na música clássica indiana ou mesmo em
certos estilos do folclore brasileiro. Mas na peça de CG, a seqüência de graus conjuntos
descendentes (dó#-si-lá-sol) que aparece na linha melódica do piano (ex.1), antes de ser
ampliada e variada ritmicamente na primeira frase do canto (ex.3), pode ser compreen-
dida como um motivo. Ele reaparece na segunda frase do canto (ex.4), variado através de
mudança de direção, tornando-se uma seqüência ascendente de graus conjuntos (dó#-ré-
mi-fá#), antes de cadenciar no 5º grau.
Ex.3
3
Segundo Maria Abreu, CG conheceu a obra de Debussy nas gavetas de partituras da Casa Di Franco,
onde trabalhou como pianista (Silva, 2001, p. 36).
4
Wisnik (1989, p. 71) salientou que “a circularidade em torno de um eixo harmônico fixo é um traço
próprio do mundo modal”, que o diferencia do mundo da música tonal. Neste sentido, perceber tal
circularidade seria “a pedra de toque que introduz a uma outra experiência do tempo musical”.
132 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Ex.4
Tal como na música modal tradicional, na canção de CG as notas da escala também
circulam em torno de uma nota fundamental (fá#), que serve de ponto de referência para
os outros sons. Mas, como se trata de uma paráfrase da música tradicional, isto é, de um
processo de recriação de uma linguagem tradicional e não de uma citação de um trecho
de música modal, o compositor tem a possibilidade de individualizar sua criação, o que se
realiza através da construção de motivos que revelam a intervenção de sua subjetividade,
algo muito valorizado na estética ocidental ao menos desde o romantismo.
Outra intervenção da subjetividade do compositor consiste na inesperada aparição
do modo eólio no final da primeira seção (ex.5, comp. 13-14), antes da conclusão (ex.5,
comp.15), na qual o modo frígio é restaurado. Como será visto adiante, essa intervenção
decorre da interpretação que o compositor faz do texto e de sua necessidade de expressar
seu espanto diante da semelhança entre a brancura da moça e a da neve.
Ex.5
A segunda seção (A’), é uma variação da primeira, já que mantém os mesmos
elementos rítmicos, melódicos e harmônicos. As pequenas variações introduzidas na voz
superior do piano (as apojaturas) não chegam a afetar a estrutura harmônica modal, idêntica
a da seção inicial (A) na qual o fá# funciona como som fundamental.
A linha melódica do canto (ex.6) sofre maiores alterações do que a parte pianística
(ex.7) na segunda seção, mas pode-se verificar que o motivo de graus conjuntos descen-
dentes é mantido no piano e no canto, a despeito das variações que sofre, o que garante
a unidade da obra.
Ex.6
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 133
Ex.7
Na terceira frase do canto (ex.8), quando o cantor declara não gostar da neve, há
um crescendo de dinâmica e a melodia atinge a tônica aguda através de um salto de quarta
ascendente.
Ex.8
A última frase do canto (ex.9), que inicia no ponto mais agudo da melodia do canto,
onde há uma indicação de maior intensidade de dinâmica (forte), consiste no clímax da
canção. Mesmo aí a estrutura realizada pelo piano no modo frígio é mantida, notando-se
a sutil introdução de acordes de sétimas e diminutos (A7 - F#4(7) - Em7 - C#°), tencionando
a harmonia, justamente quando o poeta declara algo bastante inesperado.
Ex.9
Uma nova aparição do modo eólio (ex. 10), rompendo com a monotonia do frígio
(que,como será visto adiante, representa musicalmente a paisagem indicada no poema)
ocorre antes da conclusão da peça. Não se trata, todavia, de uma modulação propriamente
dita, já que a tônica continua fixa em fá#, em sua unidade indivisa, soando através do tempo
como eixo harmônico contínuo. A peça conclui com um retorno ao modo frígio (comp. 36)
e ouvem-se os últimos acordes, formados por quintas (sem as terças que caracterizam os
134 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
acordes tonais), soarem em dinâmicas contrastantes (forte e pianíssimo), que concluem a
peça com o tilintar brilhante da apojatura (sobre o 2º grau do modo) na região aguda do
piano, reafirmando o “território modal” frígio, para usar uma expressão de Wisnik.
Antes de concluir a análise musical, cumpre observar que embora a diferença entre
os modos frígio e eólio seja aparentemente pequena, já que apenas o 2º grau distingue suas
escalas (quando ambas tem a mesma tônica), a passagem de um modo para o outro significa a
transformação de um ethos ao qual cada modo estava ligado no contexto das culturas tradicionais.
No campo da análise musical intrínseca cumpre investigar qual a significação musi-
cal interna desses modos, lembrando que, como observou J. M. Wisnik, não são apenas as
escalas e suas estruturas intervalares que distinguem os modos. Uma das características
dos territórios modais consiste na “identificação da escala com uma determinada proprie-
dade semântica, dinâmica, que se pode dizer também dinamogênica (corresponde a um
movimento ou a um estado de corpo e de espírito)” (Wisnik, 1989, p. 68). Nas sociedades
pré-modernas esses ethos foram codificados, fazendo parte de uma rede de signos mais
ampla que estabelece correspondências, relacionando os modos aos deuses, às estações
do ano, cores, astros - tal como ocorre na música clássica indiana e também na da Grécia
Antiga. Em termos semióticos pode-se dizer que os modos nas culturas tradicionais são
legisignos5 já que funcionam a partir de hábitos e convenções que os associam a uma rede
ampla de significados.
Ex.10
5
Termo da teoria peirceana usado para designar os signos convencionais, o que Peirce chamou de um
“tipo geral sobre o qual há uma concordância de que seja significante” (Peirce apud Nöth, 1995, p. 77).
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 135
a música, sendo a arte dos sons, é expressão e conhecimento compreensivo, observando
que “uma frase musical não é apenas objeto de conhecimento como também objeto de
compreensão” (1995, p. 41).
Como será abordado logo adiante, CG, seguindo o pensamento de seu mentor
intelectual e os procedimentos dos compositores impressionistas franceses, utilizou os
modos atribuindo-lhes novos significados, que entram em paralelo com os sentidos da
poesia de MA.
O poeta-narrador nos dois versos iniciais compara sua musa à neve. Numa aborda-
gem semiótica, essa musa poderia ser considerada um qualisigno6, ou seja, um signo que
possui uma qualidade, a brancura. Mas esse signo, do ponto de vista do narrador que o
interpreta, não é uma possibilidade qualitativa (rema), representando um objeto possível.
Trata-se, antes, de um signo de “existência real”, ou melhor dizendo, de um signo que
transmite, nesse caso, uma informação veiculada pelo narrador.
Deve-se notar que a voz desse narrador é, todavia, reticente e que sendo assim,
a informação que veicula parece estar envolta na perplexidade do narrador diante da
brancura de sua musa. É importante ressaltar que as reticências são indícios, na poética
expressionista que MA absorveu ao longo dos anos vinte, da sensibilidade exacerbada e
do complexo mundo interno de personagens muitas vezes divididos e contraditórios que
se debatem internamente.
Tal como o narrador de Amar, verbo Intransitivo, romance escrito entre 1923 e
1926, o eu do poeta de “Losango Cáqui” segue a linha machadiana de perplexidade, es-
pantando-se com a mulher cuja qualidade, a brancura, desconhece. No romance citado, o
narrador tenta entender “uma figura singular de mulher, dela se distanciando, ou com ela
se solidarizando, admitindo, todavia, que Fräulein lhe escapa [...] e faz com que se ques-
tione”, como observa Telê Porto Ancona Lopes em seu prefácio à obra de MA, Amar Verbo
Intransitivo (Andrade, 2002, p. 10).
Aqui no poema musicado por CG só há o estranhamento e a perplexidade. À medida
que o poeta se dá conta de que não conhece a neve e que não gosta dela, desmorona-se a
possibilidade da paisagem monocromática sugerida vir a ser um idílio de amor. Aos poucos
6
Analisando o signo do ponto de vista do representamen (ou seja, do que o receptor percebe do
signo), Peirce observa que o qualisigno “é uma qualidade que é um signo” (Peirce apud Noth, 1995,
p. 76) e tão logo passe a pertencer à classe da secundidade, sendo posto em relação a um objeto,
torna-se um signo individual, uma qualidade que representa algo singular.
136 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
são reveladas as diferenças entre o poeta-narrador e sua musa inspiradora. Caberia então
perguntar quem seria essa Musa na trajetória do escritor.
Talvez um dado biográfico possa esclarecer não apenas quem foi objetivamente
essa musa na via de MA, como também o significado do signo (“ela”) no poema. Em 1922,
o escritor paulista escrevia os poemas que vieram a ser publicados em 1926 sob o título
Losango Cáqui ou afetos militares com os porquês de eu saber alemão. Conforme revela
Telê Porto A. Lopez, foram dedicados à amiga Anita Malfatti, “confessando-lhe terem os
poemas nascido de sua paixão por uma ‘diabinha de alemã’” (apud Andrade 2002, p. 34).
Essa pesquisadora acrescenta informações sobre os estudos de alemão que MA começou
no mesmo ano da Semana de Arte Moderna com a profa. Käthe Blosen e levanta a hipótese
dele ter transplantado para Amar, Verbo Intransitivo algumas características dessa profes-
sora., como a apreciação da obra poética de Schiller.
Outro ponto que vale a pena comentar é que através de Else Scholer e de K. Blosen,
suas primeiras professoras de alemão, MA se abriu à cultura germânica, deixando-se fascinar
por sua literatura, artes plásticas, teatro, dança e música – fazendo assim um contraponto à
forte influência francesa na cultura brasileira àquela época. Sabe-se, através de depoimento
de Lotte Sievers (amiga da segunda professora), que em 1924 já era capaz de traduzir per-
feitamente textos de canções alemãs, sem perder o sopro poético dos originais.
Após essa digressão, é possível retornar aos signos utilizados no poema musicado por
CG, onde o narrador-poeta rememora alguém que ficou no passado, em sua memória (“era
branca, era parecida com a neve...”), registrada por sua cor, cuja qualidade parece indicar
um modo de ser europeu (ou talvez alemão), distinto do modo de ser tropical do poeta.
É interessante acrescentar que em Amar, Verbo Intransitivo, a personagem central,
que representa o caráter do povo alemão (Fräulein), é construída a partir da necessidade do
autor de definir as identidades nacionais. Como observou Telê Porto, “a oposição que estru-
tura a psique do alemão [...] vem a propósito da grande preocupação nacionalista de Mário
de Andrade – definir nosso caráter, ou, como escreveu em 1926 no primeiro Prefácio de
Macunaíma, descobrir, o mais que pudesse, a ‘entidade nacional dos brasileiros’”(Andrade,
2002, p. 14).
Neste sentido, percebe-se que tanto nesse romance, terminado em 1926, quanto no
poema musicado por CG (possivelmente de 1928), as identidades nacionais são construídas
por comparação e contraste. No romance, o escritor vê traços positivos e negativos dos
dois lados, criticando o alemão por sua tendência de “amordaçar o sublime e o brasileiro
porque não possui consciência, conhecimento do seu modo de ser”, conforme revela Telê
Porto (idem, ibidem). Já no poema, o escritor utiliza a neve para indicar o Outro, ou melhor,
a Outra, a mulher “Civilizada”, que acaba sendo renegada pelo poeta, voz da consciência
nacionalista do escritor.
A neve pode ser considerada, de acordo com a teoria sígnica de Peirce, um sinsigno
icônico remático, na medida em que pode evocar no leitor (como possibilidade interpreta-
tiva) a idéia do objeto representado, a cultura germânica. Mas, se a neve for compreendida
pelo receptor como objeto particular e real não poderá ser considerada um qualisigno, ou
seja, como uma possibilidade qualitativa. Torna-se um sinsigno já que, num processo de
semiose representa iconicamente, isto é, através de suas qualidades e por semelhança com
o objeto representado, a dita “Civilização” para os leitores brasileiros desse poema.
Sabendo-se que MA, ao longo dos anos vinte moveu-se em direção a um afastamento
do eurocentrismo que caracterizava a primeira fase do modernismo brasileiro, peneirando os
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 137
procedimentos vanguardistas que considerava compatíveis com a identidade nacional, pode-
se considerar o desfecho do poema como um grito de independência da cultura nacional,
ao mesmo tempo que numa outra leitura, pode-se perceber uma ruptura com expectativas
oriundas da tradição poética romântica. Nas duas leituras, os versos finais soam como um
grito expressionista, sem polimentos nem artificialismos, dando vazão ao “eu-profundo” de
um poeta que descobre a distância que o separa da chamada “Civilização”.
7
Segundo Peirce, a metáfora “representa o caráter representativo de um representamen (parte
percebida do signo) pelo estabelecimento de um paralelismo com outra coisa”(Peirce apud Martinez
1997. p. 112- 113).
138 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
É interessante notar que essa “comoção” (para usar o termo que MA retirou das
teorias psicológicas, especialmente a de William James) do poeta é fruto do lirismo do
escritor, tal como a ruptura com o modo frígio decorre da intervenção da subjetividade
do compositor. Assim, pode-se deduzir que a introdução do modo eólio pelo compositor,
quebrando o tom monocromático da paisagem sonora, expressa o assombro do poeta ao
constatar a brancura de sua musa. Esse é o significado que o modo eólio, em sua primeira
aparição adquire no contexto da canção. Trata-se, desse modo, de um signo que causa uma
surpresa ao introduzir um elemento estrutural diferente na ordem modal. O mais interes-
sante é que este signo ressalta algo não dito explicitamente no poema – o fato do poeta
admirar-se, surpreender-se com a brancura de sua musa – mas enfatizado pelo compositor
em sua leitura do texto. É neste sentido que se pode falar, como fez o semioticista William
Dougherty (1994), numa manipulação do signo verbal pelos compositores.
A partir do terceiro verso, o poeta começa a revelar fatos inesperados que destroem
qualquer possibilidade de um desenlace romântico do poema. Inicialmente ele afirma
não saber como é a neve, nem nunca tê-la visto. No entanto, a paisagem monocromática
continua presente no signo musical, especialmente na parte o piano, na qual se verifica
a repetição da tônica e a presença do modo frígio. Em termos harmônicos, há uma sutil
intensificação das tensões com o aumento das dissonâncias, como foi visto anteriormente.
Essa harmonia, mesmo contida dentro da ordem modal, acaba se tornando cada vez mais
tensa até que o ponto em que o poeta declara não gostar da neve. A palavra neve, até então
representada por duas notas na mesma freqüência, é representada pela primeira vez como
um salto do 5º grau da escala para a oitava aguda. Diversos signos musicais são utilizados
concomitantemente para expressar o “grito” do poeta, sua expressão autêntica de aversão
à moça e à neve. A melodia do canto atinge, então, seu clímax (comp. 30, ex. 9) quando o
poeta constata que não gostava da moça branca.
O último verso contraria as expectativas oriundas da estética romântica, o que pode
ser visto como uma característica da poética modernista de MA que desde a juventude
se contrapunha ao sentimentalismo e ao virtuosismo dessa corrente na literatura. É bom
lembrar que o poeta MA não desejava nos textos de sua juventude extinguir a sensibilidade
e o lirismo da arte moderna, mas procurava a expressão de uma sensibilidade moderna,
evitando o sentimentalismo romântico.
O rompimento que se verifica a nível poético não é, todavia, acompanhado pelo
signo musical, uma vez que o acompanhamento pianístico mantém, em sua estrutura básica,
a paisagem monocromática configurada pelo modo frígio, ao passo que a última frase do
cantor, com indicações de tenuto para cada nota na região mais aguda da voz, cadenciando
na oitava superior, parece representar o “grito” do poeta. Somente na coda final é que a
comoção do poeta parece atingir o piano e quebrar a estrutura monocromática do modo
frígio, através de uma nova aparição do modo eólio, ao qual se associam indicações de
dinâmica (crescendo) até que o 1º e o 5º graus justapostos encerrem a obra numa textura
polifônica que relembra certos procedimentos de Debussy e Ravel.
A possibilidade de não paralelismo entre os significados verbal e musical é explorada
por Guarnieri nesse interessante afastamento entre o piano e o canto. O que o signo musical
indica neste caso? Possivelmente representa a presença da musa branca, a qual se refere
o poeta, já que, conforme visto, o mesmo signo musical representava a brancura da moça
na primeira parte da canção. Ao final da peça, a última irrupção do modo eólio expressa
novamente uma emoção que vem a reboque, após o cantor declarar seu repúdio pela moça
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 139
e pela neve, tal como na teoria dos sentimentos reflexos de W. James, Ribot que CG pode
ter conhecido através de MA, segundo a qual nos sentimos mal porque choramos. Assim,
se para W. James e Théodule A. Ribot (autores com os quais MA discute em seu curso de
Estética8), a emoção pode ser induzida pela manipulação anterior de um movimento cor-
poral que a antecede, do mesmo modo para Guarnieri o “grito” do poeta vem a posteriori,
como algo que resulta do que foi dito anteriormente. Portanto somente ao final da peça,
através da irrupção final do modo eólio, o signo musical expressará a emoção contida de
um sujeito moderno e tropical, que declara ter descoberto que não gosta da musa branca
e de tudo o que ela representa como signo da cultura européia.
Considerando-se a virada do movimento modernista ocorrida por volta de 1924,
quando o imediatismo da fase inicial foi suplantado pelo desejo de mediatizar a incorpora-
ção dos procedimentos das vanguardas européias através da tematização da brasilidade,
(Moraes 1978; Wolff 1991), essa canção pode ser vista como um signo dentro de uma rede
mais ampla de signos culturais, articulando-se com o contexto da virada modernista e ten-
sionando o projeto dessa segunda fase do movimento, já que parece levar o nacionalismo
a um rompimento com a ordem universal ditada pela “Civilização”.
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8
MA em torno de 1925 havia escrito em sua Introdução à Estética Musical, publicada postumamen-
te, que “os psicólogos enrabichados pela teoria dos sentimentos reflexos da escola de James, Sergi,
Ribot, consideram a música como simples provocadora de comoções sensoriais, puro fenomeno
fisiológico sem nenhuma inteligibilidade consciente” (1995, p. 45). Embora MA preferisse a posição
de Combarieu, de que a música “é a arte de pensar sem conceitos por meio de sons” (1995, p. 45),
é possível que tenha transmitido tais idéias a seu aluno Guarnieri, que frequentou suas aulas de
estética no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.
140 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
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Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 141
INSTITUIÇÕES
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 143
Os Seminários de Música da Pró-Arte de São Paulo
Lenita W. M. Nogueira
Universidade Estadual de Campinas
Heuberger e a Pró-Arte
Para se falar dos Seminários de Música da Pró-Arte de São Paulo, fundada em
1952 com o nome de Escola Livre de Música da Pró-Arte, é preciso voltar ao ano de 1924,
época que marca a chegada ao Brasil do alemão Theodor Heuberger, nascido em Munique
em 1898. Com uma atuação respeitada na Alemanha e ligado às tendências mais contem-
porâneas das artes e aos ideais da Bauhaus, Heuberger veio ao país a convite do pintor
e cônsul geral do Brasil em Munique, Navarro da Costa, para organizar a 1ª Exposição de
Arte e Artesanato Alemães no Rio de Janeiro, inaugurada naquele mesmo ano de 1924. O
sucesso foi grande e a mostra foi apresentada também em São Paulo, Santos e Campinas.
Em 1928 fundou no Rio de Janeiro uma galeria de arte que levava seu nome e ali
foram expostas obras de artistas contemporâneos ainda desconhecidos no Brasil como
Barlach, Klee, Feininger, Kokoschka, entre outros. Desta galeria surgiu também a empresa
“Casa e Jardim” que fabricava móveis e artefatos, bem como promovia a difusão do arte-
sanato alemão e obras de artistas brasileiros.
A presença de Heuberger em um Rio de Janeiro ainda bastante conservador,
em especial no que se refere às artes plásticas, caracterizadas por uma produção ligada
ao ideal acadêmico na linha da Escola Nacional de Belas Artes, trouxe uma movimentação
de grande valia para o desenvolvimento das artes no Brasil. Ao visitar a XXXI Exposição
Geral de Belas Artes, que ocorreu em 1924 no prédio da Escola Nacional de Belas Artes no
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 145
centro do Rio de Janeiro, ficou chocado com a maneira como os quadros foram expostos e
comentou sobre isso em entrevista bastante posterior. Além do registro de sua decepção
perante a organização da mostra, revelou à pesquisadora Maria Cristina Burlamaqui como
contrariou esta postura ao montar a Deutsche Werkbund-Bauhaus (1929) e a Exposição
Alemã em homenagem ao Brasil em 1931 (Valle, 2011):
Foi com essa visão inovadora da arte que Heuberger atuou também no campo da
música ao fundar em 1931, ao lado da pianista Maria Amélia Rezende Martins2, a Pró-Arte
1
In: <http://www.dezenovevinte.net/arte decorativa/egba_instalacao.htm>. Acesso em: 03 set. 2011.
2
Trata-se da neta do Barão Geraldo de Rezende, antigo proprietário da Fazenda Santa Genebra em Cam-
146 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Sociedade de Artes, Letras e Ciências na cidade do Rio de Janeiro. Nos salões desta instituição
realizaram-se exposições, conferências e concertos, em geral conectados à arte contem-
porânea. Heuberger e Maria Amélia extrapolaram os limites do Rio de Janeiro e percorreram
diversas cidades do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, levando mostras de pintura,
exposições de artesanato e concertos de música.
Em 1950 Heuberger criou na cidade de Teresópolis, região serrana do Rio de Janeiro,
o I Curso Internacional de Férias, pioneiro deste tipo de encontro no Brasil. Chamou para
assumir o cargo de diretor artístico o compositor, flautista e professor alemão radicado
no Brasil, Hans Joachin Koellreutter (Freiburg, 1915-São Paulo, 2005), que já havia se
apresentado diversas vezes como flautista na Pró-Arte. O curso teve continuidade e entre
seus diretores artísticos podemos destacar músicos como Roberto Schnorrenberg, Heitor
Alimonda, Homero Magalhães, Gilberto Tinetti, Alberto Jaffé, Roberto Ricardo Duarte
e Carlos Alberto Figueiredo. Entre seus professores destacam-se Villa-Lobos, E. Krenek,
Karl Ulrich Schnavel, Gerard Huesch, Carl Seeman, Tomas Teran, Noemie Perugia, Oscar
Niemeyer, Mario Pedrosa, Manuel Bandeira, Guilherme Figueiredo. E dele, saíram alunos
que depois se projetaram no cenário musical, tais como Isaac Karabtchevsky, Edino Krieger,
David Machado, Cláudio Santoro, Saloméa Gandelman, Mauro Moreira, João Carlos Martins,
Berenice Menegale, entre tantos outros.
O curso serviu assim de modelo para os festivais de Ouro Preto, de Porto Alegre,
Curitiba, Campos do Jordão e outros. Durante o XV Curso, Teresópolis foi declarada a “Cidade
dos Festivais” e o prefeito, Paulo Torres, doou uma área para a fundação da Escola de Arte
e Artesanato, que depois se tornou Centro Cultural e posteriormente sede dos Cursos de
Férias de Teresópolis3.
Após a terceira edição do festival, Heuberger resolveu expandir a Pró-Arte e, então,
funda em 1952 a Escola Livre de Música da Pró-Arte em São Paulo que, mais tarde, em
1956, passaria a ser chamada Seminários de Música da Pró-Arte. Nesta época, Koellreut-
ter morava em São Paulo e, segundo o maestro Júlio Medaglia (2002), muito contribuiu
para isso a insistência da nova geração de músicos paulistas, que, ávida por conhecer as
novas tendências da música contemporânea, começou a solicitar constantemente a sua
presença. Para dar início às aulas e palestras do compositor alemão, a família Gregori
cedeu uma sala com piano em sua residência na capital paulista. Ali foi se agrupando um
bom número de artistas e músicos como Damiano Cozzella, Olivier Toni, Jorge Wilheim,
Henrique Gregori, Nininha Gregori, Roberto Schnorrenberg, Eunice Catunda e outros, além
de músicos populares.
A esta altura, Heuberger também morava em São Paulo e, vendo o interesse que
as aulas de Koellretter despertavam nos jovens músicos paulistas, propôs a ele a criação
de uma escola de música, da qual seria diretor. A partir daí, “Koell” ou “K”, como era
chamado carinhosamente por seus alunos e colaboradores, começou a formar um grupo
de professores de instrumento e de matérias teóricas, escolhidos a dedo os seus entres os
mais destacados da época. Corria o ano de 1952 e a Escola Livre de Música estabeleceu-se
na Rua Sergipe, 271.
pinas, onde hoje está localizado o campus da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.
3
Conforme consta no site da Pró-Música do Rio de Janeiro em: <http://www.proarte.org.br/Home.htm>.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 147
Figura 2. Seminários de Música da Pró-Arte em São Paulo – Rua Sergipe, 271
Fonte: Arquivo Particular de L. C. Vinholes.
Koellreutter implantou uma política educacional que diferia das demais escolas e
conservatórios brasileiros. O fato de esta escola ter sido fundada em São Paulo e não no Rio
de Janeiro, como seria mais lógico, deve ser creditado ao ambiente artístico mais tradicional
que ainda predominava na então capital federal. São Paulo era uma cidade formada por
classes bastante heterogêneas, a expansão de seu parque industrial era notável e estava
atenta aos ideais artísticos da modernidade desde a Semana de Arte Moderna de 1922.
Koellreutter
Hans-Joachim Koellreutter nasceu em 2 de setembro de 1915, em Freiburg, na
Alemanha. Estudou na Staatliche Akademische Hochschule für Musik de Berlim e no Con-
servatoire de Musique de Genebra, formando-se em flauta, piano, musicologia, composição
e regências coral e orquestral (Kerr, 2002). Dentre seus professores, Kurt Thomas, Paul Hin-
4
A quem agradecemos o fornecimento de grande parte do material para este artigo.
148 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
demith e Hermann Scherchen foram fundamentais para a formação do jovem Koellreutter.
De acordo com Kater (2001), Scherchen influenciou profundamente a sua personalidade
e as realizações futuras no Brasil como, por exemplo, divulgar a música nova de todos os
tempos e a produção musical de autores de sua época, além de promover a música de
maneira pedagógica.
Em 16 de novembro de 1937, a bordo do navio Augustus, Koellreutter chegou ao
Rio de Janeiro, onde passou a residir e a desenvolver suas atividades musicais. No ano
seguinte, é apresentado a Theodor Heuberger que o convida para realizar vários recitais de
flauta, promovidos pela Sociedade Pró Arte, cuja estreia no país se deu no Conservatório
Mineiro de Música de Belo Horizonte (atual Escola de Música da Universidade Federal de
Minas Gerais). Atuou também como flautista na Orquestra Sinfônica do Rio de Janeiro e,
em seguida, dedicou-se às atividades pedagógicas.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 149
São Paulo e Rio de Janeiro, uma forma de atuação pedagógica autônoma que se intensificou
até os últimos dias de sua vida.
Com o apoio do empresário e amigo Theodoro Heuberger e a colaboração da
cantora austríaca Hilde Sinnek, Koellreutter fundou em 1950 os Cursos Internacionais de
Férias Pró-Arte, em Teresópolis, Rio de Janeiro. Em 1952, fundou a Escola Livre de Música
de São Paulo e, em 1954, os Seminários Internacionais de Música da Universidade da Bahia
(1954-1962), que originou mais tarde a Escola de Música da referida Universidade. Minis-
trou aulas nos cursos de pós-graduação do Conservatório Brasileiro de Música do Rio de
Janeiro, da Universidade de Minas Gerais (BH) e da Universidade Estadual do Ceará. Ainda,
paralelamente, desenvolveu atividades na FAP-ARTE de São Paulo, Piracicaba, Curitiba e
Ouro Preto, nas décadas de 1970-1980 (Rosa, 2011).
As propostas pedagógicas de Koellreutter sempre se mostraram bastante originais
e, especificamente no projeto de criação do SMUB – Setor de Música da Universidade da
Bahia (1954) –, os programas das disciplinas e cursos, bem como as atividades culturais
apresentam-se de maneira integradora, desenvolvendo o indivíduo em todo o seu potencial
criativo e humano (Kater, 2001).
Propôs a criação de um instituto modelo para o norte brasileiro, consagrado ao
ensino da arte musical, que consistia num conjunto de cursos livres de todas as matérias
musicais e correlatas, além de uma Seção de Dança. Dentre as matérias obrigatórias, ele
listou as seguintes: pedagogia, interpretação, metodologia e prática de ensino. Ainda,
sugeriu um Departamento de Difusão Cultural, no intuito de proporcionar aos alunos o
conhecimento das obras representativas da literatura de todos os tempos, além de um
espaço que compreenderia uma Orquestra Universitária e os corais do SMUB.
Este documento mostra que Koellreutter procurava proporcionar ao estudante de
música um ensino musical completo, além de cursos complementares e de extensão muito
similares ao que já vinha ocorrendo nas cidades de São Paulo e Teresópolis.
Em 1952, na cidade de São Paulo, como veremos adiante, Koellreutter fundou e diri-
giu uma das mais importantes escolas de música do país, além de ter atuado intensamente
como professor de diversas disciplinas, divulgador da produção musical contemporânea e
promotor de encontros com artistas, filósofos e músicos nacionais e estrangeiros.
A partir de 1956, passou a se chamar Seminários de Música da Pró-Arte, cujas metas
visavam tanto o preparo de bons profissionais, quanto à formação de um público capacitado
a apreciar e a julgar os diversos tipos de música.
No âmbito da composição, Koellreutter foi bastante criativo e instigador, estreando
sua primeira obra de forma aberta, Sistática, para flauta solo, em 1955, cujos princípios
técnicos e estéticos ali apresentados contribuíram para o desenvolvimento de uma técnica
própria, de caráter vanguardista, que a denominou Planimetria.
Nas décadas de 1960-70, Koellreutter desenvolveu intensa atividade pedagógica fora
do Brasil como Alemanha (Berlim, Munique), Índia (Nova Delhi, Mysore, Bombaim), Japão
(Tóquio), entre outros. Após treze anos de ausência, Koellreutter retornou ao Brasil, dando
continuidade às suas aulas particulares, palestras e cursos em diversos centros de ensino
do país. Essas atividades, caracterizadas sempre pela reflexão e debate vivos, confronto de
idéias e posicionamentos filosóficos, estéticos e ideológicos, levaram muitos educadores e
músicos a tomar consciência de si e da realidade sociocultural brasileira, de sua função como
artista na sociedade e da importância da música na educação de seres humanos melhores.
Uma fase que durou até os seus últimos dias de vida (2005).
150 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Seminários de Música da Pró-Arte de São Paulo
Na empreitada paulista, Heuberger teve o auxílio de Koellreutter que implantou
uma política educacional que diferia das demais escolas e conservatórios brasileiros. Um
dos pontos mais importantes de seu projeto era uma proposta educacional inovadora
que, além da preparação de artistas e profissionais, tinha um objetivo mais audacioso, a
formação “de um público dotado de conhecimentos que o capacite a apreciar e julgar as
obras musicais, assim como outras manifestações artísticas”, conforme publicado em um
folheto de divulgação da escola (Kater, 2001).
Outra novidade introduzida nesta escola foi o estudo de jazz e nisto foi pioneira
na América Latina. Além das matérias tradicionais, constavam no seu currículo disciplinas
que ainda não constavam nas escolas oficiais, tais como harmonia funcional, harmonia de
jazz, canto gregoriano, entre outras.
Ali se estudou, pela primeira vez no Brasil, os livros de Paul Hindemith e seu Ludus
Tonalis, o contraponto dodecafônico de Ernst Krenek e o Microkosmos de Béla Bartók. Em
1954, chegou a ter um pequeno laboratório de música eletrônica sob a responsabilidade
de Ernst Mahle. Por sua sede, à Rua Sergipe, passaram artistas e instrumentistas de renome
internacional como Walter Gieseking, Henrry Jolles e Sebastian Benda, o bailarino Masami
Kuni, idealizador da “creative dance”, os compositores Pierre Boulez e Wolfgang Fortner,
o regente coral Kurt Thomas e a compositora Kikuko Kanai, representante do Japão às
comemorações do IV Centenário de São Paulo.
A prática do canto coral com um repertório nada convencional, obras instrumentais
e vocais polifônicas e as jam-sections aos sábados e domingos faziam da Escola um ambiente
singular. As apresentações de jazz tinham no pianista Paul Urbach seu grande incentivador.
Em uma turnê pelo Brasil, o pianista austríaco Frederich Gulda teve a oportunidade de
assistir a uma jam-section e ficou impressionado com a qualidade do jazz ali praticado, es-
pecialmente por tratar-se de um ambiente dedicado à “música erudita”. Ao voltar à Áustria,
inclusive, introduz o jazz no currículo da Academia de Viena (Vinholes, 2002).
Seus alunos e professores foram responsáveis por primeiras audições no Brasil de
obras como a Missa Notre Dame de Guillaume de Machaut, a Paixão de Schultz, a Sinfonia
op.21 de Anton Webern, além de peças corais de compositores do barroco brasileiro e
europeus. Havia um público fiel e foi histórico o concerto realizado na Igreja da Consolação
quando foram apresentadas a Missa em Dó de Mozart e o Pater Noster de Igor Stravinsky.
Os recitais realizados no salão da escola, com repertório pouco comum aos programas dos
eventos musicais de São Paulo, atraiam público fiel que ocupava todos os espaços internos
e os do jardim que circundava o prédio (Vinholes, 2002).
Ainda segundo Vinholes (2002), a Escola teve influência decisiva na criação dos
Cursos Internacionais de Música de Teresópolis e, em meados de 1954, do Seminário
Internacional de Música da Bahia, embrião da Escola de Música da Universidade daquele
Estado, e da Escola Livre de Música da Pró-Arte em Piracicaba, hoje, Escola de Música de
Piracicaba Ernst Mahle.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 151
Figura 4. Koellreutter (ao piano) e L. C. Vinholes
Fonte: Arquivo Particular de L. C. Vinholes.
152 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Figura 5. Ernst Mahle, Rosita Salgado Góis, Sandino Hohagen e Munir Busamra
Fonte: Arquivo Particular de L. C. Vinholes.
Conclusão
Nosso estudo sobre a Escola e Seminário de Música da Pró-Arte ainda está no seu
início, mas podemos afirmar com certeza a sua importância na história da educação musical,
especialmente na organização dos cursos e formação de muitos dos que viriam a integrar
a nata da música brasileira.
No seu corpo docente inicial, além de Koellreutter (idealizador e também diretor
da escola) que lecionava composição, harmonia funcional, contraponto, regência, flauta,
estética e análise, outros marcaram presença como Celina Sampaio, Hilda Sineck5 (canto),
Damiano Cozzella (harmonia funcional e análise), Roberto Schnorrenberg (história da música
e regência), Conrad Bernard (repetição e leitura a primeira vista), Walter Bianchi (óboe),
Bino Pedini (trompete), Alexandre Schaffman (violino), Johannes Olsner (viola), José Kliass,
Hans e Isolda Bruch (piano), Rosita Salgado Góis (iniciação musical), Yulo Brandão (estética
e filosofia da música), Yanka Rudzka (dança moderna) e Madalena Nicols (teatro).
Entre os alunos que passaram pela Escola-Seminário, encontramos um bom número
daqueles que se destacariam no cenário nacional e internacional e se fossemos citar alguns,
certamente ficaríamos em dívida com muitos outros. Entretanto, não podemos deixar de
destacar nomes como Klaus Dieter Wolff, Ney Salgado, Sandino Hohagen, Gerardo Parente,
Maria de Lourdes (Baby) e Henrique Gregori, Norma Graça, Antonieta Moreira Leite, Clélia
Ognibene, Carlos Alberto Pinto Fonseca, Ronaldo Bolonha, Eva Milko, Hortência Ravagnani
Montgomery, Cláudio Petraglia, Orlando Leite, Severino Filho, K-Ximbinho, José Carlos e José
Eduardo Martins, Marli Hatsbach, Carlos Eduardo Prates, Paulo Affonso de Moura Ferreira,
Gilberto Tinetti, Dalva Barbosa, Brasil Eugênio da Rocha Brito, Antônio Naclério Galvão
Novaes, Araçari de Oliveira, Lia Carvalho, Isaac Karabtchevsky, Clara Sverner, Marina e Dilza
de Freitas Borges, Ronaldo Bolonha, Maria Amélia (Meméia) Cozzela, Tiche Vespaziano,
5
Colaborou para a criação dos Cursos de Férias de Teresópolis.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 153
Paulo Herculano, Samuel Kerr, Ula Wolf, Lídia Hortélio, Suzana Bandeira de Melo, Terezinha
Schnorrenberg e Munir Bussamra, mentor do Grêmio Bela Bartok e criador de mini-cartazes
de precursora plasticidade gráfica, usados na divulgação dos eventos promovidos pela Escola.
Outro aspecto que ainda demanda novas pesquisas é a produção intelectual de
alguns professores e alunos ligados às atividades da Escola, que se destacaram escrevendo
colunas especializadas, assinando críticas e comentários na imprensa paulista, todos de
grande interesse para leitores e frequentadores das salas de concertos, estudiosos e apre-
ciadores de música. Até o momento temos conhecimento de que H. J. Koellreutter, Roberto
Schnorrenberg, L. C. Vinholes e Cyro Monteiro Brisolla escreveram para o Diário de São Paulo,
Diogo Pacheco para O Tempo e José Luiz Paes Nunes para O Estado de São Paulo.
Figura. 6. José Luis Paes Nunes, Carlos Alberto Pinto da Fonseca e L. C. Vinholes em 1954
Fonte: Arquivo Particular de L. C. Vinholes.
154 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
exposição individual de Tomie Ohtake no Brasil.
Foi, sem dúvida, um dos momentos mais emocionantes de nossas vidas, ainda
que entristecidos que estávamos com a ausência daquele que foi nosso “guru”.
Koellreutter, apesar de viver em São Paulo, já habita outras esferas levado pe-
los sintomas do mal de Alzheimer. Se o tom do reencontro foi emocional, não
podemos dizer que teria sido melancólico, pois a sensação que todos tinham era
a de que seriam possíveis outros encontros e, talvez, até a recriação, num breve
futuro, de outra instituição que tivesse o espírito daquela que foi a maior usina
de criação de música e músicos deste país nos tempos modernos, a Escola Livre
de Música. (Medaglia, 2002)
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 155
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156 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Gênero feminino, relações afetivas e pedagogia em
bandas de música nordestinas, de 1930 a 2000
o gênero
Sandra Unbehaum, socióloga da Universidade de São Paulo, define:
1
Esta pesquisa constitui um desdobramento da tese de doutorado Mulheres em Bandas de Música:
Relações de Gênero em Filarmônicas nordestinas brasileiras e Portuguesas (1990 a 2000). A Univer-
sidade Federal de Alagoas-UFAL mantem o grupo de pesquisa-PROPEP-CNPQ, Metodologia e Con-
cepção Social do Ensino Coletivo Instrumental, sob coordenação deste autor. Fundado em 2008, tal
grupo de pesquisa da UFAL firmou acordo de cooperação institucional com o grupo de Investigação
do Instituto Piaget em Viseu, Portugal, pelo qual os projetos de pesquisa sobre as bandas nordesti-
nas e lusitanas têm sido desenvolvidos de modo integrado.
2
O Dicionário da língua portuguesa (1990), de Aurélio Buarque de Holanda define: “Gênero - Ca-
tegoria que indica por meio de desinências uma divisão dos nomes baseada em critérios tais como
sexo e associações psicológicas. Há gêneros masculino, feminino e neutro”.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 157
compreender que essa maneira de organizar a sociedade – dividida em dois jeitos
de ser: homem e mulher, masculinos e femininos. (Unbehaum, 2005, p. 35)
Portanto, seja numa visão biológica, que define a mulher como inferior ao homem
do ponto de vista da força física; seja numa visão religiosa que identifica a mulher
como subproduto do homem, já que foi construída da costela de Adão, seja do
ponto de vista cultural, que define um campo específico para a atividade femi-
nina e o outro, privilegiado, para atividade masculina, todos estes argumentos,
na maioria pseudocientíficos, prestam-se a construir uma identidade negativa
para mulher e, assim, justificar os diversos níveis de subordinação e opressão a
que as mulheres estão submetidas e a promover, nelas, a aceitação de um papel
subordinado socialmente. (Carneiro, 1993, p. 48)
Para muitos sociólogos que lidam sobre a categoria de gênero, o sistema patriarcal,
associado aos caminhos estruturais históricos da sociedade, tanto do ponto de vista social
propriamente dito, como econômico, ratifica a hegemonia do masculino.
3
Feminismo: um termo que traduz todo um processo desenvolvido ao longo da História, e que
continua a ser trabalhado diariamente, em todos os espaços da vida social. Como todo processo de
transformação, contém contradições, avanços, recuos, medos e alegrias. Para entendê-lo, é preciso
confrontar a situação da mulher na sociedade antiga, medieval e moderna, buscar suas raízes
enquanto movimento político e desvendar a ideologia que ainda hoje outorga direitos, deveres e
comportamentos distintos para homens e mulheres (Branca e Pitanguy, 1985).
158 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
ero-feminismo), por todo o século XX. Freitas (2003), Cemin e Nienow (2005) e Carvalho
(2010) fazem referência a Pierre Bourdieu, especialmente O poder simbólico (2000) e A
Dominação Masculina (2010), ao analisar a supremacia masculina como conseqüência de
uma construção social dentro de instituições sociais, sejam escolas, instituições religiosas,
associações de classe; uma dominação, ou, como o próprio Bourdieu denomina, uma vio-
lência simbólica. O sociólogo francês alerta sobre a necessidade de reflexão acerca de tais
relações de gênero, de poder e da análise politicoeconômica e cognitiva, que influenciam
a sociedade de forma geral:
Para Dantas (1992), o tema gênero feminino ganhou destaque por causa dos movi-
mentos feministas do século XX em detrimento de temas do masculino sobre determina-
das profissões, principalmente na área de ensino, sendo menos explorado nas pesquisas
brasileiras. Para este autor, o que se encontra como referencias bibliográficas no Brasil é
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 159
bastante escasso:
Mapeando as produções acadêmicas impulsionadas por esses movimentos, ob-
servei lacunas importantes, reconhecidas pelos próprios autores, em relação ao
universo masculino. A grande maioria dos estudos sobre gênero foi produzida por
mulheres, sobre mulheres e para mulheres... O diálogo entre estes dois conjuntos
de produções ainda é incipiente. (Dantas, 1992, p. 12; grifo nosso)
O gênero feminino, neste caso, é explanado não só sob o ponto de vista de relação de poder
do corpo propriamente dito, mas filosoficamente, sobre concepções analíticas da Teoria
musical e da musicologia: A New Musicology. Tal teoria, como análise de discurso musical,
influenciou diversos teóricos do meado do século XX em relação ao contexto música-socie-
dade-discurso, proposto por Susan McClary4. Mello e Gomes (2007), fazendo referências
a McClary (1994) e, posteriormente, Kermann (1985), em seu artigo Relações de gênero e
musicologia: reflexões para uma análise do contexto brasileiro, aborda tal conceito feminino
e suas ramificações em apologias da estrutura composicional de sons “femininos” em obras
musicais desde o período clássico, particularmente sonatas de Beethoven (1770-1827).
Assim coloca a autora:
4
Notável por seu trabalho combinando musicologia e uma crítica de música feminista, McClary
é professora adjunta de Musicologia e vice-reitora do Instituto Internacional da Universidade da
Califórnia, Los Angeles. Nasceu em 1946 e está entres os líderes do movimento New Musicology,
destacando-se pela combinação da musicologia com o feminismo. Sugere que a forma sonata deve
ser interpretada como sexista ou imperialista e que tem “tonalidade própria - com o seu processo de
incutir confiança e, posteriormente, retenção de superação prometida até o clímax”. Para McClary é
a principal forma musical, durante o período de 1600-1900, para despertar e canalizar o desejo. Ela
interpreta o princípio da forma sonata para as construções de gênero e identidade sexual. Importan-
te destacar o artigo anterior de Maus (1993), sobre o discurso masculino na teoria musical.
160 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
ocidental tonal, surgiu todo um conjunto de pressupostos teóricos, explicitados
através de convenções e construções retóricas repletas de metáforas sexuais. Es-
tas se ligam a questões de gênero que estão na base de um paradigma narrativo
poderoso, em cujo âmago está o ponto de vista masculino. Contudo, apesar da
centralidade destas questões, a disciplina não parece tratá-las de modo consciente
(McClary, 1994). Por exemplo, neste modelo androcêntrico, os tempos fortes de
um determinado trecho musical são considerados “masculinos”, enquanto que os
fracos, “femininos”; sobre as tríades maiores, é dito que elas exercem atração, em
oposição às menores, ligadas à repulsão; também percebe-se “ímpetos procria-
tivos” ocorrendo por meio das qualidades dinâmicas da música tonal; ou ainda a
ideia prevalente, desde o século XVII, do processo desencadeado pela expectativa
(clímax) e resolução da expectativa, também chamado de tensão vs. relaxamento,
presente no cerne da música ocidental, o que parece uma forte metáfora da ativi-
dade sexual. A forma sonata-allegro é estruturalmente um exemplo deste modelo: o
tema de abertura deve ter um “caráter masculino”, enérgico, determinado, heróico,
enquanto que o tema subsidiário é “feminino”, flexível, considerado o “outro”.
Todos estes pontos são “naturalizados”, de modo a que “o feminino” nunca dê a
última palavra neste contexto: no mundo da narrativa musical tradicional não há
terminações femininas. (Mello e Gomes, 2007, p. 20)
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 161
termos demulheres diretoras de bandas universitárias, pesquisadores investiga-
ram as tendências do emprego, características pessoais e profissionais, modelos
de trabalho e identidade profissional. (Gould, 2005, p. 7)
162 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
admiradas como era possível formar uma banda de música exclusivamente
feminina. (Silva, 2000, p. 26)
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Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 165
Reflexão sobre uma proposta metodológica
para pesquisas de performance musical em
grupo à distância
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 167
de 45 minutos por semestre ao final dos quais é realizada uma apresentação musical.
Esse projeto é desenvolvido na UnB com o objetivo de oportunizar uma vivência
lúdico-musical voltada para a performance por meio do ensino presencial e virtual em
grupo para crianças. A proposta visa desenvolver o potencial humano da criança por meio
dos aspectos afetivo, social, psicomotor e cognitivo a partir de uma vivência musical rica
e diversificada mediada por jogos e brincadeiras, lançando um olhar sobre a presença das
tecnologias na atualidade, testando e analisando algumas das consequências implicadas
no seu uso e adaptando-as para a aprendizagem da música.
O projeto se desenvolve com atividades presenciais por meio da Prática de Conjunto
que visam, prioritariamente, desenvolver as habilidades musicais da performance coletiva
equalizando e homogeneizando as habilidades musicais do grupo e com atividades virtuais
por meio de vídeos tutoriais que priorizam o desenvolvimento individual das questões
técnicas e de performance do instrumento propriamente dito.
Nas aulas presenciais do projeto, as crianças participam de atividades nas quais a
interação individual com o professor, os pais e as outras crianças promovem a criatividade
e a imaginação, valorizando as respostas de cada criança para o processo de construção
do conhecimento musical. As atividades virtuais propostas pelos vídeos são exercitadas
presencialmente em sala e depois encaminhadas aos pais utilizando-se três meios digitais, e-
mail, Youtube e Clube do Piano, para que os pais possam auxiliar e monitorar adequadamente
o estudo de seus filhos em casa.
O canal do projeto de extensão no Youtube foi criado vinculado à conta gmail
“pianoparacriancas”. Os vídeos tutoriais produzidos pelos professores são enviados para o
canal e configurados na opção de privacidade “vídeos não listados ( qualquer pessoa com
o link pode visualizar)”. Depois que é feito o upload do vídeo no canal, um link é gerado e
enviado por email aos pais dos alunos. Só os usuários que possuem o link podem visualizar
o conteúdo do vídeo. Esta é uma forma de garantir a privacidade e a segurança do material
postado, pois em muitos casos eles envolvem imagens dos alunos. Estes vídeos estão
organizados dentro do canal de acordo com as turmas para facilitar a sua localização e
também como uma forma de mantermos o histórico de acessos e a evolução dos alunos
de cada turma.
O Clube do Piano é uma rede social fechada na qual realizamos experiências musicais
lúdicas, didáticas e pedagógicas envolvendo pais, alunos e monitores. O acesso se dá por
meio de uma senha individual digitada no endereço eletrônico <http://pianoparacriancas.
ning.com>. Esse clube auxilia o processo de interação tanto dos conteúdos musicais e dos
vídeos tutoriais como dos professores/monitores com crianças/pais.
O projeto inicialmente partiu de uma proposta presencial baseada no ensino de
piano tradicionalmente ofertado em escolas e conservatórios de música e voltado para o
desenvolvimento de habilidades individuais. Com o decorrer do tempo, as necessidades
demandadas, principalmente pelo público, foram modificando os processos de ensino-
aprendizagem, incluindo a organização e elaboração de conteúdos gravados em vídeos e a ênfase
às metodologias presentes na Prática de Conjunto como mostrado na secção a seguir.
168 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
e seis crianças tocando em uníssono. O repertório era proveniente de métodos de piano
em grupo internacionais. Mais tarde, o projeto se configurou em uma proposta de Prática
de Conjunto com repertório adaptado à realidade local com arranjos que utilizam três
elementos – base harmônica, rítmica e melódica. No quadro abaixo, demonstramos que o
uso do teclado versus tecnologias, no lugar do instrumento acústico, possibilitaram atingir
os objetivos pedagógico-musicais do curso, a vivência lúdico-musical através da Prática de
Conjunto adaptada ao universo infantil.
Figura 1. Possibilidades trazidas ao projeto pelo piano acústico e pelo teclado eletrônico
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 169
música - das crianças em casa. Neste sentido, foram enviadas tarefas com desenhos que
mostravam a posição das mãos e dos dedos para tocar determinada melodia em que a mão
direita se diferenciava da esquerda pelas cores. Acima da letra da música, foi colocado o
dedilhado em algarismos numéricos seguindo o catálogo de cores das respectivas mãos. A
partitura seguia com o desenho e a letra com as notas musicais também apresentadas por
cores diferentes – vermelho para a mão esquerda e azul para a mão direita.
Para potencializar os tempos e espaços de aprendizagem dos conteúdos individuais
em casa e da Prática de Conjunto em sala de aula foram criados os vídeos tutoriais. Há três
tipos de vídeos de acordo com as suas funções: 1) aqueles gravados pelos celulares dos pais
para ajudá-los a acompanhar o monitoramento das crianças em casa; 2) os vídeos tutoriais
gravados pelos professores para o aprendizado tanto dos conteúdos individuais quanto
coletivos; e 3) os vídeos gravados pelos pais e enviados aos professores para monitoramento
da tarefa realizada em casa.
A sistematização dos conteúdos dos vídeos gravados pelos professores teve como
objetivo desenvolver as competências individuais de cada elemento musical a ser trabalhado
e as competências coletivas da Prática de Conjunto. Foi necessária a classificação dos vídeos
tutoriais, visando a organização dos dados para futuras análises. Neste sentido, classificamos
os vídeos em duas grandes categorias: uma que visa o desenvolvimento individual de cada
criança dos três elementos e a outra que prioriza as habilidades perceptivas destinadas à
Prática de Conjunto. Essas categorias possuem várias sub-categorias elaboradas a partir do
conteúdo do vídeo – exercício técnico; posição da mão; aprendizado da melodia, da percussão
ou do baixo/harmonia; execução de um elemento ouvindo um outro – play along.
As categorias e sub-categorias foram sistematizadas como:1) inserindo os elementos
no contexto: 1.1) exercitando os cincos dedos - posição da melodia no teclado; 1.2)
exercitando a melodia; 1.3) percussão corporal; 1.4) transpondo a percussão corporal para o
teclado; e, 1.5) exercitando a base harmônica/ baixo; 2) juntando os elementos (play alongs):
2.1) a melodia cantada com a percussão corporal; 2.2) a melodia com a percussão/ritmo;
2.3) a melodia com o baixo/harmonia; e 2.4) o baixo com a percussão/ritmo.
O uso dos vídeos como ferramenta tecnológica nesse processo de potencialização
do tempo e espaço de aprendizagem são caracterizados por: reprodução do som em alta-
fidelidade; visualização dos gestos; posição da mão; dedilhado; localização espacial no
teclado; isolar ou repetir determinadas passagens do conteúdo a ser apreendido, facilitando
sua compreensão e estudo; tutoriais personalizados, ou seja, conteúdos específicos de
aprendizagem adaptados às especificidades de cada aluno.
Mesmo com os problemas de delay que acontecem, principalmente, no momento
do download dos vídeos pelos pais em suas casas, os vídeos renovam a interação da
relação professor-aluno, auxiliando a lembrança dos conteúdos já trabalhados nas aulas
anteriores, reproduzindo a experiência sensorial, perceptiva e visual fidedignamente. O
aluno, ao assistir os vídeos em casa, vivencia novamente a experiência da performance da
maneira correta.
Os desafios atuais do projeto de extensão estão relacionados à busca de referenciais
teóricos e metodológicos que sirvam de embasamento para a análise qualitativa e
quantitativa dos dados observados e levantados no contexto da sala de aula; nos encontros
de planejamento; no feedback dos pais sobre as tarefas virtuais enviadas e na elaboração
e sistematização dos conteúdos a serem gravados. A seguir apresentaremos uma breve
revisão de autores que abordam o processo de ensino-aprendizagem de instrumentos
170 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
musicais mediado por vídeos e das mudanças causadas pelo uso da tecnologia na educação
e na relação professor-aluno.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 171
organismo ou fator ambiental pode ser tratado e estudado isoladamente de seu sistema,
já que a alteração do organismo afeta seu ecossistema e vice-versa.
Esse ecossistema que envolve os recursos tecnológicos e a comunidade de
mestres e aprendizes – chamado digital - atua como um sistema que apóia a cooperação,
o compartilhamento do conhecimento, o desenvolvimento de tecnologias abertas e
adaptativas e a evolução de ambientes ricos em conhecimentos (Ficheman, 2008).
A pesquisa, ora aqui fomentada pelo curso de extensão, se baseia no conceito de
ecossistema quando considera que o processo de ensino-aprendizagem é bilateral – de
uma lado, é alimentado por seus professores e monitores e de outro, pelas crianças e seus
pais. Na próxima secção discutiremos a a/r/tografia (Irwin, 2004; Gouzouasis, 2008) como
opção metodológica para essa pesquisa.
172 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
da evolução de perguntas internas ao processo de pesquisa viva do praticante. Em outras
palavras, os praticantes estão interessados numa constante busca pelo entendimento, uma
procura, se desejar. Este momento ativa a criação de conhecimento através da pesquisa,
revela suas práticas, fazendo suas pesquisas temporais, emergentes, gerativas e responsivas
a todos aqueles envolvidos.
Sullivan (2005), adepto da prática da arte como pesquisa, defende a pesquisa
baseada na prática e aponta que a teorização para a compreensão através da prática está
“baseada na práxis do envolvimento humano e rende resultados que podem ser vistos como
individualmente libertadores e culturalmente iluminadores” (Sullivan, 2005, p.74). Esse autor
afirma que “se a medida da utilidade da pesquisa é vista como a capacidade de criar novo
conhecimento que seja individual e culturalmente transformador, então o critério precisa
ir além da probabilidade e da plausibilidade à da possibilidade” (Sullivan, 2005, p.72).
Os artistas vêem o tempo e o espaço como condições de vida: condições de
compromisso com o mundo a través da pesquisa e da performance. Os educadores vêem
também o espaço e o tempo de maneiras particulares. A aprendizagem, dessa forma, nunca
é previsível e é compreendida como uma participação no mundo, um tipo de co-evolução
dos que aprendem juntos.
Na revisão de literatura realizada no tema da A/r/tografia e Música encontramos
poucas referências. Não há publicações nacionais na área e, dentre as internacionais,
encontramos alguns trabalhos como o de Peter Gouzouasis, onde a a/r/tografia é utilizada
no contexto de análise de obras de compositores e análises de processos de composição
musical.
Gouzouasis (2008) também sugere uma abordagem a/r/tográfica para a análise,
o aprendizado e a performance das formas musicais. Para ele, em certo sentido, o
aspecto mais importante deste processo de pesquisa é permitir ao intérprete, ouvinte, e
professor conceituar a partitura (no caso do artigo citado, a Sonata op. 109 de Beethoven),
compreendendo a obra a partir de sua escuta, leitura e análise. Neste processo, ele observa
que a pesquisa a/r/tográfica pode começar com a análise de perguntas como, por exemplo,
noções sobre a natureza dos dados, as possíveis influências da música e da forma musical
na pesquisa narrativa, no (des)usos das terminologias musicais e seus significados, podendo
terminar com muito mais perguntas do que as colocadas no início do processo.
Analogamente, assim como acontece com as características de transição entre
exposição, desenvolvimento e reexposição de uma forma sonata, esta profunda auto-
reflexão se desenvolverá em um fluxo de consciência de como os motivos temáticos são
desvendados e revelados em sua estrutura/forma musical como um todo, tal como um
discurso fundamentado na lógica e escrita criativa. Neste contexto, enquanto as diversas
formas de pesquisa se interessam em reportar ao conhecimento que já existe ou em
encontrar conhecimento que precisa ser desvendado, a pesquisa ação e a a/r/tografia estão
interessadas em criar as circunstâncias para produzir conhecimento e compreensão através
de um processo carregado de pesquisa (Irwin e Cosson, 2004).
Nas considerações finais demonstraremos como os vídeos tornam-se ferramentas
imprescindíveis para o monitoramento da aprendizagem das crianças fora da sala de aula
constituindo-se ainda em um registro para sistematização dos procedimentos pedagógicos
e didáticos do instrumento e coleta de dados subsidiar a pesquisa.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 173
Considerações finais
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NOVOS RUMOS
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 177
Considerações sobre fundamentos teóricos
compositivos para peças instrumentais baseadas na
escuta de paisagens sonoras
Marcelo Villena
Universidade Federal do Paraná
Roseane Yampolschi
Universidade Federal do Paraná
Este trabalho tem por objetivo investigar ideias de natureza estética com vistas a
ampliar as possibilidades de abordagem compositiva. O nosso propósito é desenvolver
ferramentas teóricas a partir de princípios pertinentes à soundscape composition, gênero
pertencente ao repertório de música eletroacústica, para nortear o processo compositivo
em meio instrumental.
As sonoridades ambientais oferecem um estímulo à criatividade do compositor,
que participa por meio de sua escuta das diversas situações que emergem acidentalmente
através da combinação de agentes naturais e da vida social. Se por um lado as combinações
de sons de seu entorno oferecem desafios que sejam de interesse à discussão de questões
técnicas (timbre, temporalidade, espacialidade), por outro elas nos remetem às suas
vivências afetivas e às maneiras de canalizá-las expressivamente para orientar o processo
de comunicação com o seu auditório.
A pesquisa que apoia este trabalho, de natureza experimental, requer um corpo de
ideias para nortear aquelas vivências de escuta e as tomadas de decisões necessárias du-
rante o processo compositivo; e para estimular a reflexão enriquecedora de conhecimentos
na área em questão. O conceito de mimesis, compreendido de modo lúdico e abrangente,
e o de gesto musical, como um fenômeno de impulso e articulação do discurso musical
fundamentam as considerações feitas neste trabalho.
Soundscape composition
No final da década de 1960, o compositor canadense Murray Schafer (1933) e
a equipe de pesquisadores da Simon Fraser University (SFU), dentre eles Barry Truax e
Hildegard Westerkamp, se unem para criar, em Vancouver, o World Soundscape Project
com a finalidade de encontrar soluções para um ambiente sonoro ecologicamente sau-
dável, ajustado ao equilíbrio da comunidade humana (Westerkamp, 1991). A partir de
suas intervenções práticas e sociais e estudos sobre ecologia sonora, Schafer introduz o
termo soundscape – paisagem sonora, para se referir a um campo sonoro que compõe um
determinado ambiente acústico:“eu denomino soundscape (paisagem sonora) ao entorno
acústico e com este termo me refiro ao campo sonoro total, qualquer que seja o lugar em
que nos encontremos.” (apud Ferreti, 2006, p. 25, tradução nossa) Nesse sentido, o termo
pode ser compreendido como uma “trama” acústica que se mostra perceptível em um espaço
determinado, seja ela uma praça, um museu, uma sala de concertos etc.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 179
A relativa aceitação do termo nos meios artísticos reflete em parte o interesse cres-
cente que o som do meio ambiente vem adquirindo desde o início do século XX. Exemplos
disso são o manifesto A arte dos Ruídos (1913) de Luigi Russolo, que convida os músicos
futuristas a usar o som/ruído das cidades industrializadas na composição musical; e a in-
fluência dos ambientes sonoros nas ideias de Cage (1973) sobre “música indeterminada”
e nas suas propostas de ação para performance. Contribui também para a assimilação, por
parte dos compositores, de materiais antes não musicáveis o surgimento das tecnologias
de gravação (e edição) e a música concreta.
O pensamento de Schafer pode ser considerado uma extensão ecológica do pensa-
mento cageano. Dele incorpora a disposição de abrir os ouvidos aos estímulos do mundo e
receber os sons do acaso como um fenômeno passível de fruição estética; contudo, desvia
a sua atenção dessa orientação estética para focar na qualidade sonora das paisagens – na
sua visão, o aspecto “mais negligenciado” do meio ambiente.1 Sob a liderança de Schafer,
então, o World Soundscape Project trouxe uma extensão do aspecto ecológico já mencio-
nado. Anteriormente, sons e ruídos de um ambiente eram percebidos como ocorrências
sonoras. A partir das ideias de Schafer sobre paisagem sonora, esses sons passaram a ser
percebidos e assimilados em contextos variados, do ponto de vista social e psicológico; com
efeito, o processo compositivo propiciou a ampliação da escuta e das vivências estéticas do
compositor e do ouvinte em relação ao ambiente evocado (Truax, 2002).
O núcleo da SFU iniciou suas atividades com o registro de paisagens sonoras em
Vancouver. As primeiras gravações tiveram o objetivo de documentar as mudanças da so-
noridade ambiental local. Por este motivo, as gravações eram editadas com um mínimo de
processamento, apenas equalizadas para deixar o som “cristalino”, com maior definição.
Gradualmente, porém, os pesquisadores da SFU ampliaram a sua experiência por meio de
processamentos na gravação. Conforme Truax (2002), dessa experiência surgiu um novo
gênero de música eletroacústica: a soundscape composition.
O termo soundscape composition se refere a uma estética compositiva que enfatiza
os nexos do ouvinte com os estímulos sonoros que recebe no seu cotidiano. Esta ênfase
na relação do ouvinte com o som distingue em parte essa forma de fruição daquela vivên-
cia sonora global, da paisagem sonora; e também estabelece limites entre a soundscape
composition e a música concreta: enquanto nesta os sons são trabalhados como “objetos
sonoros” autorreferentes, em uma poética criada “internamente” pelo compositor, na
soundscape composition os sons são empregados de maneira a criar a ilusão no ouvinte
de estar imerso em uma ambiência sonora referencial.
Para Simon Emmerson (1986), a oposição entre esses valores estéticos reflete de
certo modo a divergência histórica de princípios que orientavam gêneros de composição.
Daí a sua afirmação de que na música eletroacústica, a intenção explícita do compositor
em “evocar” uma situação do mundo real sinaliza controvérsias de natureza estética que
prevaleceram em séculos anteriores na prática compositiva.2 Conforme essa ideia, Emmerson
cria um eixo imaginário discursivo para representar aquela oposição estética com limite em
dois polos: o “discurso mimético” e o “discurso aural”. O primeiro se refere à intenção de
1
Essa ideia já está presente no World Soundscape Project e se tornou um dos principais objetivos de
seu livro The Tuning of the World (1977).
2
Por exemplo, entre a polifonia renascentista da prima prattica e as formas “barrocas” da seconda
prattica, desenvolvida no início do século XVII.
180 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
imitar, sugerir, eventos do mundo real; o segundo, de criar materiais a partir de “valores
musicais mais abstratos”.3 Na prática, porém, se constata o emprego de diversos graus de
combinação de ambos, o que Emmerson define como “discurso musical”. Este é o que mais
oferece possibilidades criativas ao compositor.
A visão de Emmerson serve como ponto de partida para esta discussão à medida
que estabelece nexos entre a produção contemporânea e a tradição musical. Este vínculo
com o passado serve para situar a nossa proposta, com base em uma ideia de mimesis, em
relação ao repertório tradicional. Por um lado, podemos observar a diferença de foco entre
a concepção mimética na música (associada comumente com a literatura e a recriação de
fatos excepcionais) e a poética da soundscape composition (recriação artística do cotidiano);
e então compreender a experiência da música eletroacústica como fator de expansão das
técnicas de execução instrumental (técnicas expandidas). O “discurso musical” não mais
requer, como no período da “prática comum”, de uma “gramática” pré-determinada.
Por outro lado, a elaboração do conceito de mimesis vem à tona nesta reflexão para
gerar caminhos alternativos para investigação de mecanismos de criação, fazendo do que
parece um entrave, a princípio, uma motivação à pesquisa compositiva. A mimesis, segundo
Benjamin, pode ser compreendida como base para um processo de escuta aberta a determi-
nadas formas de interpretação (Ferretti, 2011) e reconstrução criativa de eventos de um meio
em outro. Nesse sentido, a principal opção neste trabalho será considerar uma aproximação
entre mimesis e gesto musical.
Mimesis e criação
A mimesis esteve presente em diversas regiões do mundo como fundamento original
de criação artística dentro de um contexto mítico-mágico. Exemplos disso são as pinturas
rupestres, as reproduções de fenômenos naturais no teatro tradicional japonês e o vínculo
do som ambiental com a criação musical da etnia dos Suyá (Mato Grosso) (Seeger, 2004,
p. 53-54). Nesses casos, a mimesis é trabalhada dentro de um código pré-estabelecido de
simbolismo religioso.
Na época da filosofia clássica, o conceito de mimesis se estendeu às representações
artísticas. A filósofa Jeanne Marie Gagnebin assinala a particularidade desse conceito na
música:
Os gregos clássicos pensam sempre a arte como uma figuração enraizada na
mímesis, na representação, ou, melhor, na “apresentação” da beleza do mundo
[...]; a música é o exemplo privilegiado de mímesis, sem que seja imitativa no
nosso sentido restrito. (Gagnebin, 2011, p. 68)
Foi a partir dos escritos de Platão e Aristóteles que o conceito, da forma como o
compreendemos hoje, influenciou o pensamento filosófico ocidental. Para Aristóteles, a
mimesis apresenta um papel importante no conhecimento do mundo – ela abriga a raiz da
3
Emmerson exemplifica o uso de “discurso aural” através de peças eletrônicas de fundamento serial
(Ensemble - Babbit) e o uso de “discurso mimético” através de peças que empregam som ambiental
com mínimos processamentos em estúdio (Presque Rien - Ferrari). Esses discursos também repre-
sentam polos opostos em outra categoria empregada pelo compositor: a “sintaxe abstrata” e a “sin-
taxe abstraída”. Na “sintaxe abstrata” a organização dos materiais obedeceria a critérios estabeleci-
dos a priori, enquanto que na “sintaxe abstraída” a organização é deduzida dos próprios materiais.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 181
criação artística. Em seu fundamento, a mimesis condiciona toda forma de criação artística e
o modo como ela deve ser contemplada para o desfrute de sua Beleza. Assim, Aristóteles em
sua Poética prescreve normas do fazer poético que, embora contemplem aspectos morais,
se concentram em “como” se realiza a mimesis (Gagnebin, 1993, p. 69).
No século XX os filósofos germânicos Adorno e Benjamin contribuíram
significativamente para aprofundar o conceito do ponto de vista social e artístico. Para
Gagnebin, a noção de mimesis em Dialética do Esclarecimento oscila do ponto de
vista ontológico. Adorno parte do pensamento mítico/mágico – em que sentimentos
contraditórios de temor e prazer são comuns diante de fenômenos de perigo e exaltação
da vida, respectivamente. A esta ideia primeva de mimesis Adorno sobrepõe uma segunda,
de acordo com a sua constatação histórica da formação racional, rígida, do modo de
pensamento ocidental. Com base em Freud, o filósofo vê no comportamento do homem
moderno uma espécie de recalque mimético de experiências originais, no passado, de
abandono e de fraqueza (Gagnebin, 2008, 146-148). Esta mimesis negativa faz regredir o
homem a uma condição que avilta e denigre a sua própria natureza. Em suas conclusões,
a autora se refere à possibilidade de que a mimesis – em Teoria Estética, último trabalho
de Adorno – seja uma via de abertura para que o homem possa redefinir os seus limites
cristalizados pela perversidade e autoritarismo e então alcançar a sua liberdade própria
em direção ao “outro” (Gagnebin, p. 152).
Para Benjamin, a mimesis parece ser uma lei da natureza, um dom, que outrora
representava para o homem uma forma essencial de agir e de compreender o mundo e
que, no curso do tempo, perdera a sua força de expressão na vida moderna. O homem,
dentre os seres da natureza, é aquele que tem a capacidade “suprema para produzir as
semelhanças.” Assim como para Aristóteles, Benjamin postula a relevância da faculdade
mimética para a aprendizagem das coisas no mundo: a mimesis está na raiz do conhecimento
de como as coisas funcionam na realidade. E em sua natureza educativa, ela gera “prazer
em conhecer”. Prova disso é a persistência da mimesis, no curso da história, nos jogos de
aprendizagem infantil, e aparentemente, nos atos de criação artística. A criança, em sua
brincadeira, toma para si o controle dos objetos à sua disposição e cria, a partir deles, o seu
próprio mundo de forma original (Benjamin, 2002, p. 238).
Outro exemplo da força da experiência mimética está na astrologia. Em tempos
passados, a conjunção dos astros era “dada” para o astrólogo de modo imediato. Mas
para o homem moderno, é a linguagem que medeia a sua “leitura” O que é comunicável
na linguagem, para o filósofo, não está apenas na sua natureza significativa. A percepção
mimética tem como correlato uma natureza “mágica” da linguagem, uma natureza
que afeta o seu leitor, em sua expressão. Nesse sentido, o conceito ultrapassa a ideia
de semelhança. Saber ler uma história exige do seu leitor a capacidade de reconhecer
semelhanças que não se encontram na parte visível de objetos, as semelhanças não
sensíveis, o que implica reunir as partes em “uma relação de configuração” (Gagnebin
apud Schlesener, 2009, p. 155).
Esta explicação nos remete a outro ensaio de Benjamin, em que o filósofo expõe
a tarefa do tradutor. Deste texto consideramos a hipótese de que os conceitos de mimesis
e tradução, conforme Benjamin, convergem, ao menos, em um ponto. Essa hipótese
é relevante devido ao nosso propósito de conceituar do ponto de vista mimético a
interpretação e reconstrução de determinados “comportamentos” e morfologias sonoras
da música eletroacústica na música instrumental.
182 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Em suas reflexões, Benjamin afirma que a tradução “é uma forma”. Ele então
relaciona o conceito de forma à noção de “traduzibilidade”, própria de certas obras. A
“traduzibilidade” de uma obra literária, que está na “sua própria essência” – não depende
diretamente de seu significado ou da frase que o contém4 – implica de certo modo uma
visão autorreferente da forma artística. O que é comunicável está na própria língua, não
exatamente em seu conteúdo, mas em seu “modo-de-querer-dizer” (Camacho, 2008,
p. 32). Em outro ensaio, Benjamin explica essa ideia de outra forma: “a linguagem desta
lâmpada não comunica a lâmpada mesma (pois a essência espiritual da lâmpada enquanto
comunicável não é nunca a lâmpada mesma), mas a lâmpada-na-linguagem, a lâmpada-na-
comunicação, a lâmpada-na-expressão.” (apud Portugal, 2011, p. 61) 5
Essa condição da natureza das coisas, comunicáveis enquanto forma de “expressão”
na linguagem, significa um ponto de partida metafísico: o que é comunicável da
espiritualidade do ser das coisas na natureza está na própria linguagem de modo imediato.
Esse é o motivo pelo qual Benjamin pode se referir a uma “linguagem” da música,6 dentre
outras linguagens, pois a “comunicação” de sua essência, a sua “expressão”, reside na
música. Assim, a magia da linguagem, como forma poética, se refere a essa imediatidade.
Não há forma de representação a priori.
Portanto, é possível inferir que a mimesis consiste num modo de apreensão da
realidade que “tangencia” a tarefa do tradutor. É esta visão da mimesis que interessa à
nossa abordagem, do ponto de vista musical. A mimesis propicia a criação de formas mais
ou menos livres, do ponto de vista produtivo e lúdico, pois ela faz ecoar aquele modo de
agir das crianças no processo de escritura do compositor. Esta visão abrangente e aberta
a inúmeras possibilidades de criação é condizente com a abordagem fenomenológica
proposta à medida que favorece a investigação de novas relações entre o som ouvido e
a construção musical, instigada pela memória e universo afetivo do compositor. Assim, o
trabalho proposto considera as possibilidades de interpretação que as paisagens sonoras
oferecem para a realização de um trabalho compositivo aberto a diferentes abordagens.
4
Apesar da importância dos valores estéticos herdados de sua tradição romântica, sobretudo os de
Iena, interessa ao nosso propósito discutir questões de natureza imanente.
5
Portugal especula sobre a extensão que o significado de expressão apresenta para Benjamin.
6
A noção de linguagem no âmbito musical, para o nosso propósito, é compreendida como discurso.
7
Esta forma de escuta não prescinde de uma análise de gravações. Estas fornecem dados
qualitativos e quantificáveis sobre o “comportamento” de uma paisagem.
8
A associação da mimesis com o gesto musical passa pela esfera cognitiva e corporal. Há muitos
estudos hoje que versam sobre a importância da mimesis como forma de conhecimento de si e do
mundo. Cox (2011) desenvolve as suas ideias baseada na premissa de que toda forma de imagem
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 183
Em The performance of Gesture, then, and now (1984) Mark Sullivan propõe que
“gesto musical” seja o termo próprio para conceituar as diversas terminologias que tratam
das relações entre “parâmetros” e entre eventos de diferentes meios (p. 1). Importa
destacar duas ideias que são relevantes para o nosso propósito, a saber:
– o gesto se distingue como um “todo”, como uma gestalt composta; ou seja, o
gesto é um fenômeno híbrido em que prevalece o som em movimento. Está implícito que
tal configuração referencia materiais de meios diversos. O gesto deixa transparecer uma
ou mais configurações que são criadas conjuntamente entre esses parâmetros. Em suas
palavras: “o gesto musical não pode ser encontrado ao se olhar para uma sequência de
tons [...] ou para uma dinâmica de constelações [...] isoladamente. Ele é encontrado em
configurações criadas conjuntamente entre parâmetros” (Sullivan, 1984, p. 32; tradução
nossa).
– gesto e meio são indissociáveis, este caracteriza aquele do ponto de vista físico e
histórico. Quanto à materialidade, um meio se distingue a partir de seu comportamento.
Este comportamento apresenta, por sua vez, uma “ordem” estrutural que gera restrições
de uso: um meio oferece resistência ou favorece a elaboração de certas ideias. As
características físicas de um meio estão condicionadas ao tempo. Assim, à natureza
histórica do meio corresponde, por exemplo, hábitos de uso, condicionamentos práticos e
valores estéticos que foram preservados nele como um resíduo histórico.
Assim, a resistência que um meio oferece ao compositor limita a sua escolha e
organização de elementos constitutivos na criação. Pode-se tentar alterar a “ordem” deste
meio ao se adotar materiais de outro meio. Ao fazer isso intencionalmente, o compositor
cria um meio híbrido – o qual Sullivan reconhece imageticamente como “gesto”.
Quando componho gestos, eu crio ligações propositais. Por meio de uma configu-
ração inserida num evento em um meio, eu o ligo a uma configuração em outro
meio, e assim, às características de um evento em outro meio, às características
de uma classe de eventos em outro meio, ou às características de uma classe de
eventos que abarcam vários meios. (Sullivan, 1984, p. 21-22; tradução nossa)
ou pensamento musical é em parte imagem motora, isto é, imagem que é encorpada a partir de
exercícios e movimentos realizados pelo nosso corpo, em performance.
184 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
suas possíveis dinâmicas de interação comportamental; e as suas “morfologias”, incluindo
o seu ataque, impulso, direcionamento, variações de espectro e de intensidade e formas
de articulação em seu contexto sonoro global. As ideias de Sullivan também sugerem para
nós uma hipótese valiosa em relação à estética da soundscape composition: quando um
evento característico de um meio é “levado” para outro, ele ativa a memória e cria novas
relações afetivas. Daí a relevância da faculdade mimética tal como concebida por Benjamin
para direcionar em parte a percepção de sons como gestos: o campo referencial que dá
sentido à mimesis em um meio se expande e se multiplica, abrindo novas possibilidades de
apreensão do fenômeno sonoro em sua forma híbrida.
É nesse sentido, mais global, que nos voltamos para aquela representação de
Emmerson das várias possibilidades de “discurso”. 9 A característica híbrida do gesto musical
o distingue como uma configuração dinâmica, uma imagem em “ação”. A possibilidade de
distinguir o gesto como discurso, no entanto, depende em parte de como ele se efetua
perceptivelmente como expressão. Para ampliar a compreensão desses conceitos e o
modo como eles se inter-relacionam esteticamente, será útil considerar, a seguir, alguns
fatores de criação e percepção do gesto musical na composição.
Conforme o compositor Trevor Wishart (1996), as ocorrências sonoras na música
eletroacústica podem ser “re-criadas” de modo direto na música instrumental. Em suas
palavras:
A morfologia de gestos intelectuais e psicológicos (um aspecto do comportamento
humano) pode ser transportada diretamente na morfologia dos objetos sonoros
pela ação da laringe ou da musculatura e um transdutor instrumental. (Wishart,
1996, p. 15; tradução nossa)
9
Ananay Aguilar (2005), em sua análise sobre a proposta de Emmerson dos conceitos de discurso e
sintaxe argumenta que essa proposta depende da relação direta do ouvinte com o fenômeno sonoro
por meio da escuta.
10
Para Cox (2011) esta relação é evidente.
11
Os instrumentos transpositores são um exemplo claro disto: para o instrumentista importa,
sobretudo, visualizar a posição dos dedos.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 185
concreta, jamais poderiam ser grafadas numa escrita convencional e talvez sejam um
exemplo claro da importância do gesto corporal na concepção e interpretação de uma
obra.
Wishart distingue dentre os instrumentos musicais aqueles que reforçam mais ou
menos a intenção do compositor: o poder gestual da voz vem em primeiro lugar, seguido
dos instrumentos de sopro e as cordas tocadas com arcos. A percussão e o piano, segundo
o autor, estão em uma categoria à parte. Essa distinção se refere às possibilidades de
mudanças na morfologia interna de uma só nota ou uma determinada ocorrência
musical. Apenas os primeiros apresentam tal possibilidade de transformação tímbrica
e dinâmica. Exemplo dessa capacidade de transmitir ideias ou “imagens” (por meio dos
instrumentos) está no uso dos instrumentos de percussão “falantes” em algumas etnias
da costa ocidental africana (Haussas, Ghana, Yorubás).12 Em culturas tradicionais, esses
instrumentos produzem padrões sonoros em ritmos proporcionados, os “códigos” gestuais
instrumentais, que imitam as inflexões das linguais tonais usadas por esses povos; desse
nodo, eles conseguem transmitir determinados “conteúdos” para suas comunidades.
Outra dimensão relevante da concepção gestual para a apreensão mimética
consiste no sentido espacial que o som apresenta na escuta. O gesto musical, por ser um
evento híbrido, tende a gerar um sentido espacial que se constitui no tempo. Assim, a
pesquisa da escuta do som no espaço, no campo da música eletroacústica, por exemplo,
poderá servir para estimular a memória e a criatividade no trabalho instrumental (Caesar,
2004). A ambientação espacial do som no local de sua apresentação aviva a intenção do
compositor em relação às configurações construídas em seu meio.
Por sua vez, Oliveira e Toffolo (2008) sinalizam a relevância de aspectos psicológico-
afetivos na criação de soundscape compositions: “a paisagem sonora apresenta restrições
de significação em situações de performance em palco italiano” já que o foco da escuta
acontece por um corpo imerso no meio e não por um ouvinte passivo “fora da cena”.
Estratégias de espacialização sonora se tornam então a melhor maneira de trazer a exper-
iência fenomenológica do ouvinte no entorno sonoro para o palco. A dimensão espacial do
som se projeta por meio da distribuição dos instrumentos no palco e de sua profundidade
no ambiente. A concepção de estratégias de performance, portanto, devem se ajustar às
condições artísticas de organização sonora em seu conjunto.
A concepção espacial do som, em geral, enfatiza a gestualidade musical no espaço
acústico de uma sala de concerto. Os instrumentos concorrem, cada um com seu impulso,
ataque e energia, para gerar planos que interagem no espaço; assim, eles evocam a multi-
plicidade sonora de uma ambiência musical. Por meio deles, ajustamos a concepção sonora
à realização prática. Na música eletroacústica, a percepção da profundidade sonora no local
de apresentação pode fracassar parcialmente devido à movimentação “automática” dos
sons entre os alto-falantes. Já os instrumentos acústicos podem ser movidos e manipulados
durante a execução, ou amplificados e reproduzidos em outro local da sala para gerar novas
ambiências sonoras.
Enfim, a concepção espacial do som reafirma a potencialidade discursiva do gesto,
pois ela cria uma identidade sonora reconhecível para o ouvinte, que poderá então inter-
pretá-la de outro modo. Ela pode servir também para articular formalmente os eventos ou
ser usada como matriz de ideias maiores. Wishart observa que uma ocorrência gestual se
12
Talking Drum. Disponível em <http://www2.si.umich.edu/chico/instrument/pages/tlkdrum_gnrl.html>.
186 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
articula em eventos de maiores e menores proporções, em camadas estruturais distintas na
composição.13 Já a contraposição de estruturas sonoras que apresentam comportamentos
diversos possibilita ao compositor, para fins expressivos, articular essas estruturas para
ampliar os materiais e recriar espacialmente as relações de comportamentos. Esse processo
de articulação formal entre os materiais estimula a imaginação discursiva do compositor, e
afeta o seu ouvinte por meio de experiências de surpresa e expectativa.
Considerações finais
Este trabalho buscou refletir sobre princípios estéticos que possam nortear a
criação de composições de caráter experimental. A proposta de aproximar o conceito
de mimesis (segundo Benjamin) a um processo de escuta e interpretação de materiais
de um meio em outro, de modo lúdico e criativo, oferece vários desafios, dentre eles: a
consciência da mediação subjetiva na vivência musical, como um todo; a representação
imagética de comportamentos sonoros em meios distintos e a percepção dos modos e
da intensidade com os quais eles afetam o seu ouvinte; a vivência estésica/poética do
fenômeno musical, imediata e pré-reflexiva.
Sob essa perspectiva, uma determinada correspondência entre gesto – um evento
híbrido – e estratégia mimética nos conduz a uma compreensão focada das possibilidades
de abordagem conceitual e prática do “discurso” na música instrumental. Desse modo,
o gesto pode funcionar como elemento articulador e impulsionador do discurso sonoro;
como ferramenta de interpretação das sonoridades ambientais, tanto no aspecto unitário
(eventos pontuais) quanto macro-formal (“comportamentos”, “massas sonoras”) e sua
aplicação compositiva; e por meio de sua dimensão cinemática e espacial (estratégias
para mimetizar, por exemplo, características sonoras como: ataque, impulso, energia,
densidade, direcionamento, articulação e duração dos sons no ambiente reservado).
Portanto, a concepção híbrida do gesto musical serve a uma tarefa poética de
interpretação e reconstrução de ‘momentos comportamentais’ diversos; e a sua concreção
sonora tem por finalidade mover o seu ouvinte em sua expressão. O empenho na qualidade
da pesquisa do som, como forma de transgredir em parte aquela dupla natureza do meio,
vem a ser determinante, nesse sentido, para estear o processo de composição e ativar a
memória do ouvinte no fluxo do discurso musical.
Outra questão que foi implicitamente abordada e que merece ser investigada
posteriormente trata do “foco auditivo” da experiência sonora em um determinado
ambiente. A complexidade na sucessão e simultaneidade de eventos sonoros nesse
contexto pode oferecer desafios para o compositor no que se refere ao direcionamento
de sua percepção e interpretação dos mesmos durante o processo de escuta. Este foco
servirá para traçar estratégias para a prática composicional e afetar produtivamente a
percepção de seu ouvinte. Deste modo, a noção de gesto musical – que se distingue como
uma configuração dinâmica, de impulso referencial (para dentro e para fora de seu meio
composto) – poderá então ser ampliada a partir desta nova pesquisa.
13
Essas ocorrências podem revelar, através de uma análise espectromorfológica, elementos sonoros
de meios diversos. A referência às estruturas de grandes proporções é exemplificada por certo tipo
de repertório pós-serial (Penderecki, Xenakis), em que predomina uma concepção “arquitetônica”
na organização sonora. Nestas obras as “massas sonoras” podem ser compreendidas como
“desdobramentos gestuais de eventos muito lentos e muito controlados” (Wishart, 1996, p. 32).
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 187
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Steve Reich e a estética minimalista
Ismael Lins Patriota
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Descendente de judeus alemães, Steve Reich (1936-) estudou filosofia a partir dos
16 anos na Cornell University, terminando o curso com uma dissertação sobre o filósofo
Wittgenstein (1889-1951). Em 1958 entrou na Julliard School of Music, estudando com
Vincent Persichetti (1915-1987), compositor e pianista americano. Entre os vários empregos
no início de sua carreira, destaco aqui sua experiência como taxista, que o levou a compor
Livelihood (1964), feita de colagens em fita magnética de sons gravados em seu taxi. Ele
iria destruir a fita nos anos 1980. Podemos imaginar que a experiência com as colagens
em Livelihood não o interessaram, composicionalmente, tanto pela ausência desta peça
em seu conjunto de obras, como pela destruição da fita. De qualquer modo, nos anos
1960 Reich já havia composto algumas obras para o grupo teatral Francisco Mime Troupe
Theater, participando também como pianista. Foi numa das apresentações da trupe que
ele conheceu Terry Riley e a amizade entre os dois acabou por levar Reich a participar da
première de In C (Riley, 1964). Potter (2004, p. 164) destaca a influência desta peça na
formação do compositor, pois ela “apontou para um mais organizado e consistente tipo de
“fazer-padrões” com meios altamente redutivos”. Reich considerou In C uma peça seminal
e importante também para seu caminho composicional. De fato, It’s Gonna Rain (1965) e
Come Out (1966), que trabalham com os “meios altamente redutivos” de que fala Potter,
vieram logo depois desta experiência com Riley.
Reich também se envolveu nos eventos promovidos pelas artes plásticas e a première
de Violin Phase (1967) foi feita no School of Visual Arts em 1967 (Potter, 2004, p. 171),
sob a direção de Robert Rauschenberg (1925-2008), este um importante escultor e pintor
americano. A importância destas experiências com outros artistas levou Potter a declarar
que “Reich descobriu que ele tinha mais em comum com os que trabalhavam na escultura
ou pintura, teatro ou filme, do que com a maioria dos músicos” (Potter, 2004, p. 171).
Mas quais seriam essas familiaridades? Como podemos estabelecer relações entre
o compositor e as artes plásticas? Procurando responder a esta pergunta, discutimos a seg-
uir um pouco de suas preferências estéticas a partir do trabalho de Jonathan Bernard, The
Minimalistic Aesthetic in The Plastic Arts and in Music (1993) que expõe algumas caracterís-
ticas do Minimalismo compartilhadas pela música e artes visuais. Analisaremos três pontos
problematizados por Bernard, a saber: a reação ao Expressionismo Abstrato, o destaque
sobre a superfície e a mudança da ênfase na composição para o arranjo. Discutiremos esses
três pontos enfocando as escolhas composicionais e estéticas de Reich.
O Expressionismo Abstrato foi uma corrente do pós-guerra que valorizava a espon-
taneidade gestual e o acaso. Teve como conhecido representante o artista Jackson Pollock
(1912–1956), que pintava com as telas no chão, à medida que as circulava, na técnica con-
hecida como “drip painting”. O método, criado por Pollock, consiste em gotejar a tinta sobre
a tela, resultando em linhas difusas, desconexas, embora o artista negasse a existência do
acaso, ou de “uma “ação aleatória” em suas obras” (Emmerling, 2003, p. 68). Levine (1971,
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 191
p. 24) destaca que o Expressionismo de Pollock leva a um “perder-se nos ritmos... Ele usa a
linha não para criar forma, mas para evitar qualquer experiência de forma e, portanto, de
qualquer entidade individualizada.”1 Este foco no gestual e no acidental,
traz à lembrança as obras de John Cage, Morton Feldman e Earle Brown do início
dos anos 50. Todos os três incorporaram em suas peças métodos baseados no
acaso, seja como um processo composicional, um veículo da performance, ou
os dois.2 (Bernard, 1993, p. 91)
Nesta linha de pensamento, a obra musical de Cage nos levaria a um perder-se nos
sons, através da utilização sonora fora de contexto formal, rompendo com a experiência
linear no sentido em que “a redução do contexto musical à apresentação do fenômeno
sonoro isolado... Aniquila o som musical, que possui significado somente através de seu
contexto”3 (Boehmer e Pepper, 1997, p. 69). A ausência contextual em suas obras só aumenta
as incertezas e surpresas auditivas. Isolando um som de outro, “só assim eles podem ser
eles mesmos” (Boehmer e Pepper, 1997, p. 69). Cage claramente rompe com os Serialistas
pós-webernianos, que, nas palavras de Paulo de Tarso Salles (2005, p. 68), “sustentavam
ainda a continuidade de uma tradição fundada sobre a coerência tonal”. Nesse contexto, é
importante destacar que o Minimalismo musical não foi contra o acaso de Cage. Eles viam
o acaso apenas como uma proposta a não ser seguida, uma abordagem reacionária com a
qual eles não simpatizavam.
Steve Reich, na sua segunda entrevista a Michael Nyman em 1976, fala que, ao
escrever o artigo Music as a Gradual Process (1968), sua intenção era se separar do acaso
e da livre improvisação. “O que eu queria era uma mistura de escolha individual controlada
com certa impessoalidade” (Reich, 2004, p. 92). Ele iria afirmar:
Certamente não há lugar para o acaso [em minha música], além do lugar tradicio-
nal que ela ocupa. Isto é, depois dos ensaios, ninguém pode afirmar exatamente
como irá ocorrer a performance. A ideia de compor jogando moedas ou através
de oráculos, ou outras formas de acaso, eu rejeitaria agora tal como eu rejeitei
em 1967... Mas há uma grande diferença entre acaso e escolha, e o que eu estava
tentando fazer nas minhas primeiras peças, era, até certo grau, eliminar escolhas
pessoais como compositor.4 (Reich, 2004, p. 93)
1
“Lose oneself in the rhythms… He uses line not to create form but to obviate any experience of
form and hence an individualized entity.”
2
“Bears a good deal of resemblance to the work of John Cage, Morton Feldman, and Earle Brown
from the early fifties onward. All three of these composers incorporated chance-based methods into
their music, either as a matter of compositional process, or a vehicle for performance, or both.”
3
“The reduction of musical context to the presentation of isolated sound phenomena… liquidates
musical sound, which possesses significance only through its contextual placement.”
4
“Certainly there’s no place for chance beyond the traditional place for it. Namely, after the
rehearsals, one can never know exactly how a live performance will go. The idea of composing
through tossing coins, or oracles, or other chance forms I would reject now, as I did in 1967… But
there is a great difference between chance and choice, and what I was trying to do in my earlier
pieces was, to some extent, eliminate personal choices as a composer.”
192 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Como podemos perceber, Reich não se interessou pela proposta de Cage em usar
nas composições, moedas, oráculos etc. e sua busca por eliminação de escolhas pessoais o
levaria a outros caminhos, como veremos mais adiante. Bernard destaca ainda que o acaso
não foi totalmente eliminado pela estética Minimalista. “Devido à simplificação drástica
do material e das rédeas formais às quais o material está sujeito, que são consideráveis,
o resultado permanece afunilado em um pequeno campo de possibilidades”5 (Bernard,
1993, p. 96). Assim, Bernard dá dois exemplos do que ele chama de constrained chance.
Terry Riley (1935 -), por exemplo, em In C (1964), deixa em aberto não só o número de
instrumentistas e a instrumentação, mas também o tempo exato que cada instrumentista
pode levar em cada uma das 53 figuras que compõem a peça. Um segundo exemplo vem
de La Monte Young (1935 -), com The Well-Tuned Piano (1964), que dura de três a quatro
horas e meia, podendo durar até mais. Esse tempo, diz Bernard, está baseado em seções
que podem ser alongadas ou contraídas, dependendo da escolha do intérprete. Podemos
indagar se as escolhas em algumas obras de Steve Reich não podem ser incluídas nesta
categoria. Tome-se, por exemplo, Piano Phase (1967), em que um padrão melódico tocado
inicialmente em uníssono, por dois pianistas, entra em defasagem. A escolha do tempo que
leva para a entrada de uma nova fase como também a duração das fases depende exclusi-
vamente de um dos intérpretes. Logicamente, a cada nova apresentação uma nova versão
da peça será ouvida e já que ela se resume basicamente a esse processo de defasagem,
somos tentados a incluí-la na categoria de Bernard: não é somente uma escolha, porque
aqui esse processo é a própria peça.
A ênfase sobre a superfície é outra característica que se buscou no Minimalismo. Na
pintura e na escultura, essa procura tomou a forma de objetos e telas como se feitos indus-
trialmente. Frank Stella (1936-) diria: “tentei manter a tinta na pintura tão próxima quanto
à que estava na lata de tinta”6 (apud Bernard, 1993, p. 97) e Robert Morris (1931-) dizia ser
essa busca fundamental para “quebrar a tediosa cadeia de artisticidade7 que circunscreveu
cada nova fase da arte desde a Renascença”8 (apud Bernard, 1993, p. 99). Stella e Morris
claramente estavam se afastando da subjetividade das artes plásticas e se aproximavam
de uma clareza discursiva, no sentido em que as subjetividades se afastam e o espectador
observa as obras como num contato direto, sem a necessidade de interpretações próprias.
Como disse Frank Stella (1936-) “O que você vê é o que você vê”9 (apud Bernard, 1993, p.
53). Esse foco se manifestou radicalmente no uso do monocromatismo, em que as telas
são pintadas com somente uma cor. Strickland reconhece três artistas como pioneiros: Yves
Klein (1928-1962), Ad Reinhardt (1913-1967) e Robert Rauschenberg (1925-2008). Klein, por
exemplo, ficou conhecido por telas completamente azuis. A escolha do azul seria inspirada
no céu, e daria às suas obras “patente subjetividade e simbolismo... Evocam forças elemen-
tares ou eternas” (Strickland, 2000, p. 34). É interessante que mesmo o monocromatismo
azul de Klein sugere, para Strickland, certo grau de subjetividade. Talvez, por isso, as cores
5
“Because the material itself has been drastically simplified, and because the formal constraints to
which it is subjected are considerable, the result remains channeled within a relatively narrow range
of possibilities.”
6
“I tried to keep the paint as good as it was in the can.”
7
Palavra sugerida pelo professor Rodrigo Cicchelli (UFRJ) na falta de uma tradução em português.
8
“the tedious ring of ‘artiness’ circumscribing each new phase of art since the Renaissance.”
9
“What you see is what you see.”
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 193
branca e preta foram as mais utilizadas no monocromatismo, pois o branco é a soma das
cores, enquanto que o preto é a ausências delas. Isto é, telas brancas e pretas se afastam
tanto da expressividade quanto da subjetividade que as cores podem trazer. Esta visão
objetiva, privada de subjetivismos, seria muito influente com o passar dos anos e chama
a nossa atenção porque diz respeito ao próprio papel da obra de arte, vista aqui como um
objeto que não precisa nem remete a algo fora de si mesmo. Isso influenciou no uso de
materiais industriais por parte dos escultores. Eles utilizaram desde o aço inoxidável até
tubos e lâmpadas fluorescentes, plásticos, vidro, papel de jornal etc. Os artistas buscaram
então, com obras “manufaturadas”, remover ou encobrir traços de pessoalidade artística,
levando o espectador a entrar em contato com a obra de arte sem intermediações de
qualquer tipo. Reich também fala:
O que eu queria era uma mistura de escolha individual controlada com certa
impessoalidade. Você está fazendo algo que por si só está sendo trabalhado,
e ainda por que você escolheu o material e o processo, isto também é uma
expressão de você mesmo, não necessitando uma intromissão maior para você
expressar sua personalidade.10 (Reich, 2004, p. 92)
10
“What I want was a blend of controlled individual choice and impersonality. You’re doing
something that’s working itself out and yet because you’ve chosen the material and the process
it’s also expressive of yourself and you needn’t meddle with it any further for it to express your
personality.”
11
Maquinations, no original.
194 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
ção do grupo percussivo em suas obras, junto com uma ênfase em processos repetitivos,
ao nosso olhar, legitimam o uso do termo maquinístico, mas devemos usá-lo de forma
cuidadosa, evitando simplificar a riqueza dos processos de uma peça a uma mera questão
rítmica. A evocação de um caráter “industrial” é somente um ponto de vista. Como Reich
falou no início de seu artigo Music as a Gradual Process: “eu não considero o processo da
composição, mas obras musicais que são, literalmente, processos”12 (Reich, 2004, p. 34).
Ou seja, claramente a questão processual se sobrepõe ao caráter percussivo. Por exemplo,
em The Four Sections (1987), sua primeira peça para orquestra, cada um dos quatro movi-
mentos pode ser dividido em quatro partes, onde cânones e repetições são constantemente
explorados em partes específicas da orquestra. Há também o uso de uma harmonia simples
(mesmo no quarto movimento, parte em que há mais cromatismo, há extensa repetição
do motivo, que ajuda na compreensão) e, logicamente, essa ênfase harmônica e a maior
liberdade na exploração orquestral estão sendo usados de um modo limitado, sem a busca
de virtuosismos ou complexidades melódicas ou timbrísticas.
A terceira característica do Minimalismo discutida por Bernard vem das artes
plásticas, onde os artistas mudaram a ênfase da composição para o arranjo, ou das partes
para o todo. Ele explica:
12
“I do not mean the process of composition, but pieces of music that are, literally, processes.”
13 “Arrangement is taken here to imply ‘a preconceived notion of the whole,’ as opposed to
composition, which “usu-ally means the adjustment of the parts, that is, their size, shape, color, or
placement, to arrive at the finished work, whose exact nature is not known beforehand.”
14
Sand – Lime bricks.
15
“The same number of bricks (120) is placed to form each of eight larger blocks, all two bricks high
but varying in their other two dimensions”
16
“One sees and immediately ‘believes’ that the pattern within one’s mind corresponds to the
existential fact of the object.”
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 195
Um exemplo musical que Bernard cita é a peça de Alvin Lucier, I am sitting in a room (1969),
em que a própria voz de Lucier é gravada e depois regravada, repetidas vezes, até que o
ouvinte não distingue mais o texto.
Mesmo o ouvinte que nunca viu a ‘partitura’ logo irá perceber – após ouvir o texto
algumas vezes – que as decisões composicionais foram todas feitas anteriormente
ao início da obra – que de fato elas precederam o momento em que a composição,
diga-se, mesmo conceitualmente, começou.17 (Bernard, 1993, p. 101)
O que nos chama a atenção é que o interesse artístico não está mais no processo
criativo, mas no resultado. Esta ideia de pré-concepção seria levada adiante por um escultor
ligado ao movimento: Sol Lewitt (1928-2007) trabalharia com a chamada arte conceitual.
Vou me referir ao tipo de arte em que estou envolvido como arte conceitual. Na
arte conceitual a ideia ou o conceito é o aspecto mais importante da obra... Isto
significa que todos os planos e decisões são feitas de antemão e a execução é
uma questão sem muita importância... As ideias não necessitam ser complexas...
Não importa qual a forma que ela [a obra de arte] finalmente tome, ela deve
começar com uma ideia. É o processo da concepção e realização com o qual o
artista está preocupado... Uma vez que ela [a obra de arte] está fora das mãos
do artista, ele não tem mais controle sobre o modo com que o espectador irá
perceber a obra. Diferentes pessoas irão perceber a mesma obra de diferentes
maneiras.18 (Lewitt, 1969)
A ideia de uma concepção anterior à obra, de que fala Lewitt, seja ela simples ou
não, lembra o artigo de Reich Music as a Gradual Process. Podemos indagar se, ao conceber
suas composições como processos, Reich está, de certo modo, pensando primeiramente
no conceito. O processo, uma vez pensado, ou seja, pré-concebido, irá prosseguir por ele
próprio. Michael Nyman percebeu a similaridade entre o que Lewitt fala: “todos os planos
e decisões são feitas de antemão”, com o que Steve Reich diz: “uma vez que o processo
está pronto, ele prossegue por ele mesmo” (Reich, 2004, p. 34). Respondendo a Nyman,
Reich admite a ideia de uma impessoalidade buscada no inicio de sua carreira, como visto
anteriormente, mas por outro lado, não concorda com a ideia de que todas as decisões sejam
tomadas de antemão e a execução seja uma questão sem importância. Ele diz que em suas
17
“Even the listener who has never seen the “score” will soon realize – having heard the text throu-
gh a few times – that the compositional decisions were all made before the beginning of the work
– that in fact they preceded the moment at which the composition could be said, even conceptually,
to have begun.”
18
“I will refer to the kind of art in which I am involved as conceptual art. In conceptual art the idea
or concept is the most important aspect of the work… it means that all of the planning and decisions
are made beforehand and the execution is a perfunctory affair… The ideas need not to be complex…
No matter what form it may finally have it must begin with an idea. It’s the process of conception
and realization with which the artist is concerned… Once it’s out of his hand the artist has no control
over the way a viewer will perceive the work Different people will understand the same thing in a
different way.”
196 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
composições, “a forma pode preceder o conteúdo assim como também o conteúdo pode
preceder a forma” (Reich, 2004, p. 92). Pelo que percebemos, sua principal preocupação
estética não é o conceito em si, ou no processo como anterior à obra, mas o processo como
base da sua composição.
19
“Also, I’m not a conceptual artist... In my music, the musical material has usually become clear
before the form. In It’s gonna rain, the material, the original loop, preceded the phasing idea…
For me, sound has been uppermost in my mind, and even in It’s gonna rain the question of how
long the execution of the phasing would be… That decision was crucial. So the execution is never
perfunctory… So I would completely disagree with what Sol says… as far as my own music is
concerned…”
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 197
através da fusão de uma tonalidade com algodão saturado”20 (Strickland, 2000, p. 37); as
telas negras de Rauschenberg, “compostas com papeis de jornal rasgados e mergulhados
em tinta preta, colados às telas e pintados com mais tintas preta, são fragmentados e irregu-
lares na estrutura e textura e alusivos em conteúdo”21 (Strickland, 2000, p. 38). Já Reinhardt
misturava azul, vermelho e verde para chegar a várias tonalidades de preto e “suas telas
pretas também tinham um diferente senso de tempo... Diametricalmente oposto ao tipo de
imediatismo... procurado por escultores e pintores posteriores”22 (Strickland, 2000, p. 52).
O papel e as particularidades de cada artista nos leva a ver o Minimalismo com
uma junção de diferentes pontos de vista, onde o social tem um papel fundamental. Isto
é, apesar das particularidades de cada um, os artistas envolvidos na estética Minimalista
estavam vivendo em uma sociedade que na época sofria importantes mudanças. Como
diz Cervo (2005, p. 45), “o Minimalismo é, portanto, filho de uma década muito especial
na história do século XX”. Strickland (2000, p. 282) percebeu o paralelo entre a revolução
artística provocada pelo Minimalismo e a revolução social ocorrente na época:
Não é uma coincidência que os artistas que trabalhavam com formas simples,
regulares ou frequentemente seriais vivessem em um ambiente em que analo-
gias arquiteturais daquelas formas proliferassem a uma taxa sem precedentes.
A paisagem americana foi transformada por estrondos da construção, seja no
comércio urbano e torres comerciais no estilo Internacional, seja nas casas sub-
urbanas em padrões pré-fabricados das caixas dos Levittowns, do pós-guerra.23
(Strickland, 2000, p. 282)
20
“As important as the endlessness of symbolic space, however, is the absence of compositional
space… Spatiality was erased through the fusion of the single hue and the saturated cotton.”
21 “Composed with torn sheet of newspapers dipped in black paint, pasted to the canvas and
brushed over in more black paint, are fragmented and irregular in structure and texture and allusive
in content.”
22
“His blacks also had a different sense of time… Diametrically opposed to the kind of immediacy…
Sought by some of the later painters and sculptors.”
23
“It is not coincidental that artists working in stripped-down, regularized, often serial forms were
living in an environment in which architectural analogues of those forms were proliferating at an
unprecedented rate. The American landscape had been transformed by construction booms both
in urban commercial and residential towers in the International Style and suburban houses in the
pre-fabricated box patterns of the post-war Levittows.”
198 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
de jornal etc., como também através de uma abordagem superficial, industrial, não pessoal,
não individual, do objeto artístico. Também podemos enxergar na obra de Steve Reich uma
alusão a esse novo momento da sociedade norte americana, através de processos repetitivos,
claros, e de certa forma, industriais, maquínísticos. Sua obra City Life (1995), ao utilizar sons
gravados da própria vida na cidade em um contexto sonoro repetível em cinco movimentos,
explora não só a vida cotidiana e suas questões específicas, como a polícia, mas também
as influências da própria cidade em cada cidadão. Assim, tanto na música, como nas artes
plásticas, o Minimalismo é tanto uma crítica como um reflexo de uma sociedade que se
utiliza da repetição, seja na construção de casas, no consumo, com produtos agora feitos
industrialmente e em larga escala, ou mesmo no dia-a-dia, com hábitos de vida constantes
e interruptos. Isto nos abre mais os olhos, pois os questionamentos que os minimalistas
propuseram aos nossos conceitos de obra de arte sugeriram que ela não pode ser vista
apenas como um mundo à parte, longe de nosso cotidiano. Ao contrário, ela agora põe em
discussão a nossa própria vida, falando diretamente, sem mediações, artifícios ou subjetiv-
ismos, tão claro e audível quanto àquilo que vemos e ouvimos diariamente.
Figura 1. Levittown, NY. The U.S. National Archives and Records Administration, William Thomas, 1950.
Fonte: <http://www.understandingrace.org/history/society/post_war_economic_boom.html>.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 199
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STRICKLAND, Edward. Minimalism: origins. Bloomington: Indiana University Press, 2000.
200 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Considerações sobre materiais compositivos
utilizados em Méditations sur les Mystères de la Sainte
Trinité de Olivier Messiaen
Miriam Carpinetti
Universidade Estadual de Campinas
Méditations sur les Mystères de la Sainte Trinité1 surgiu da feliz conjunção das
atividades litúrgicas de seu autor e da celebração do centenário da Église de la Trinité, onde
ele exerceu o ofício de organista durante 61 anos. Por sua sugestão, foi convidado o reitor
do Sacré-Coeur, Monsenhor Charles, para pregar sobre a doutrina da Santa Trindade, que
nomeia a referida igreja, no dia 23 de novembro de 1967. Nessa ocasião, Messiaen impro-
visou antes, entre e depois das três partes do sermão, sempre finalizando com o canto do
Bruant jaune.2 Para Messiaen, que desde 1950 não improvisava em concertos (apenas nas
liturgias e nos acompanhamentos do cantochão), este foi um evento musical marcante e de
grande expectativa, não sabendo o que ocorreria: “talvez alguma coisa muito boa vá acon-
tecer, talvez algo muito ruim – mas de qualquer maneira eu tocarei com amor” (Messiaen
apud Gillock, 2010, p. 199). Dessas improvisações nasceram as ideias para a composição
da obra presentemente estudada, a qual Messiaen estreou em 20 de março de 1972 em
Washington, DC, e publicou em 1973.
A macro-forma desta obra é dividida em nove meditações que podem ser, grosso
modo, classificadas por sua maior ou menor complexidade estrutural (Bruhn, 2008, p. 131).
As meditações de número par são mais simples: duas estrofes e coda (med. II), quatro seções
(med. IV), duas estrofes (med. VI), quatro seções (med. VIII); e apresentam certo direciona-
mento tonal. Já as meditações de número ímpar apresentam estruturas mais complexas.
As nove meditações foram apenas numeradas por Messiaen; contudo, elas são
tradicionalmente nomeadas pelos organistas em razão dos temas nelas abordados: I – O
Pai Inengendrado; II – A Santidade de Jesus Cristo; III – A relação real em Deus é realmente
idêntica à essência; IV – Eu Sou, Eu Sou!; V – Deus é imenso, eterno, imutável – O sopro do
Espírito – Deus é amor; VI – O Filho, Verbo e Luz; VII – O Pai e o Filho amam a si mesmos e
a nós pelo Espírito Santo; VIII – Deus é simples; IX – Eu Sou o que Sou.3
1
Doravante a obra estudada será designada Méditations e seus nove movimentos meditações.
2
O canto desse pássaro foi o sinal de Messiaen para indicar o final de cada improvisação e o início
de cada uma das três partes do sermão.
3
I – Le Père Inengendré; II – La Saintité de Jésus Christ; III – La relation réelle en Dieu est réellement
identique à l’essence; IV – Je Suis, Je Suis!; V – Dieu est immense, éternel, immuable – Le souffle de
l’Esprit – Dieu est amour; VI – Le Fils, Verbe et Lumière; VII – Le Père et le Fils aiment, par le Saint-
Esprit, eux-mêmes et nous; VIII – Dieu est simple; IX – Je Suis celui qui Suis. Esta tradução, assim
como todas as que se seguirão foram realizadas pela autora.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 201
Materiais utilizados e sua grafia
As estruturas temporais utilizadas em Méditations são amétricas, com duração
flexível, desligadas do conceito de repetição idêntica, tendo por princípio a repetição vari-
ada.4 O compositor justapõe e sobrepõe ritmos de formação diversa, criados pela livre soma,
subtração e multiplicação de um valor de pequena duração.5 Inspira-se em princípios da
rítmica hindu e da prosódia grega; contudo, modifica e deforma os ritmos por meio das suas
operações aritméticas preferidas (Messiaen, 1990, p. 14-18), as quais privilegiam a criação
de figuras com durações expressas por números primos: 5, 7, 9, 11 e 13. Também utiliza o
cromatismo de durações, explicado em Mode de valeurs et intensités (1950).
A ordenação das alturas valoriza a melodia – muitas vezes constituída de grandes
saltos – que varia conforme o material escolhido: diatonia do cantochão, composição
derivada dos cantos de pássaros e modos de transposição limitada (Messiaen, 1990, p.
33-34 e 58-63).6 O desenvolvimento melódico se dá por eliminação de intervalos, inversão,
interversão, mudanças de registros, ampliação e redução assimétrica de intervalos (Mes-
siaen, 1990, p. 35-36).
Silêncios com diferentes durações, geralmente, separam as texturas que variam da
monodia à combinação complexa de diversas camadas, diferenciadas por suas densidades
(texturais e rítmicas) e intensidades (geradas pela registração organística e pela sobreposição
de diversos eventos musicais).
Os textos da Summa Teologica de São Tomás de Aquino integram e constroem a
obra estudada, diferentemente de outras de suas obras, nas quais os textos apenas indicam
sua inspiração. Em Méditations, materiais de diversas procedências são apresentados para
criar imagens e símbolos relativos à criação do universo e à Santa Trindade.
Para esta obra, Messiaen utiliza a primeira notação, grafia criada por ele mesmo para
registrar peças solísticas ou para pequenas formações, que, em vez das tradicionais fórmulas
de compasso, recorre a “barras apenas para indicar os períodos e anular o efeito dos acidentes”
(Messiaen, 1990, p. 28).7 Diferentemente das obras da literatura organística alemã, as de Messiaen
exploram, em longos trechos, a região superior dos teclados, apresentando texturas mais rarefeitas,
em busca de maior clareza e brilho. Assim, muitos trechos a serem tocados pela mão esquerda são
grafados em clave de sol (Wills, 1997, p. 106). Constatamos também que, quando escreve dentro
dos sistemas modal e tonal – cantochão, suas variações e alguns outros fragmentos – emprega os
acidentes dentro das regras tradicionais; por outro lado, quando em sistemas preponderantemente
atonais – cantos dos pássaros, linguagem comunicável e outros – indica antes de cada nota um
sustenido, bemol ou bequadro, considerando-as como entidades individuais.
4
As estruturas temporais utilizadas por Messiaen apresentam uma maior liberdade em relação à
música metrificada, muito embora sejam apresentadas com padrões rítmicos e grafia precisos.
5
Procedimento que o autor prefere, desde sua juventude, ao da divisão de um valor maior.
6
Os modos são indicados por dois algarismos como no Traité de rythme, de couleur, et
d’ornithologie (Tratado de ritmo, de cor e de ornitologia), de 2002, sendo o primeiro o número
indicativo do modo e o segundo, sobrescrito, o indicativo da transposição. O algarismo “um”
sobrescrito indica a altura original do modo.
7
Utilizaremos o termo divisão para referir-nos aos trechos musicais encerrados entre as barras
divisórias, já que o compositor utiliza conceitos de tempo diversos aos da metrificação empregada
na música tradicional. Numeramos as divisões para possibilitar sua localização durante os
comentários.
202 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
tratamento dado aos materiais
No que se refere ao tratamento dado a alguns dos materiais empregados em Médi-
tations, Gillock (2010, p. 200) considera que há uma maior variedade destes em relação
aos apresentados na década anterior, quando o compositor lançou as bases do serialismo
integral. Na obra estudada, há um tratamento mais emocional, com maior variedade de
material, pelo emprego do cantochão – representando a espírito humano – e cantos de 12
pássaros, que representam a natureza e as demais criaturas. A grande diversidade do mate-
rial utilizado corresponde ao resgate de elementos da linguagem de suas fases compositivas
anteriores como marca de sua maturidade composicional.
Neste texto, damos especial destaque ao código serial denominado por Messiaen de
linguagem comunicável,8 criado e empregado pela primeira vez nesta obra.9 No prefácio de
Méditations, Messiaen discorre sobre as convenções – vocalização, movimentos, imagens,
cores, perfumes, toque (no caso do alfabeto Braille) – necessárias para que se estabeleça
um tipo de linguagem para transmissão de ideias.
Em suas considerações declara que a música não pode «dizer», informar nada com
precisão, podendo apenas “sugerir, suscitar um sentimento, um estado de alma, tocar o sub-
consciente, ampliar as faculdades oníricas, e estes são já imensos poderes” (Messiaen, 1973,
prefácio). Embasado na Summa Teologica de Aquino, Messiaen ressalta que “apenas os anjos
têm o privilégio de se comunicar entre si sem linguagem, sem convenção, e, mais maravilho-
samente ainda, sem necessidade de levar em conta o tempo e o espaço” (Id., ibid.).
A partir dessas considerações, criou um código de correspondência estrita entre
elementos da linguagem verbal (unidades mínimas distintivas) e elementos da linguagem
musical, visando traduzir em música ideias colhidas na Summa Theologica de Aquino. Esse
código pode ser considerado como um processo de serialização, embora na peça não haja
uma aplicação rigorosa do serialismo, apresentando as frases em linguagem comunicável
sempre em contextos diferentes, sobrepostas a materiais modais e cantos de pássaros.
Diferentemente da tradição latina, que utiliza sílabas de solfejo para nomear as
notas musicais, ele parte da tradição germânica, que utiliza letras do alfabeto. Entretanto,
em vez representar com elas somente as alturas, ele atribui valores de altura – em oitavas
determinadas – e durações específicas para representar as letras do alfabeto francês (seu
idioma nativo), a fim de transcrever palavras em elementos musicais. Nessa codificação,
ele diferencia grupos de letras, iniciando com as tradicionalmente utilizadas no sistema
musical alemão (A, B, C, D, E, F, G, H). A seguir, ele completa seu código com outras que
ele mesmo categoriza por suas características fonético-morfológicas: vogais (A, E, I, O, U),
palatais (I, J, Y), sibilantes (S, Z), dentais (D, T), C duro (C, Q, K), labiais (B, P, F, V, M), linguais
(L, N), acrescentando a estas as letras R, W, X. A série completa é apresentada no exemplo
1 e é interessante observar que, reunindo as três notas/letras de maior duração, é possível
formar o termo francês mot, que significa palavra.
8
Langage communicable.
9
Posteriormente, Messiaen voltou a utilizá-lo em Des canyons aux étoiles, obra para pequena
formação orquestral de 1974, e no Livre du Saint Sacrement, sua última e mais longa obra para
órgão, composta em 1984.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 203
Ex.1 Série completa da linguagem comunicável
Para evitar o acúmulo de palavras, ele cria motivos para estabelecer relações entre
as palavras, substituindo artigos, pronomes, advérbios e preposições pelo sistema de casos
e declinações que depreende do latim, criando também, dois temas para representar os
verbos ser e ter. O quadro 1 mostra os motivos criados para representar casos e declinações
e verbos.
No prefácio da partitura, Messiaen discorre sobre o tema que criou para representar
a “única palavra importante de qualquer linguagem, a palavra que não é apenas o nome de
um rei, mas do Rei dos reis, o Nome Divino!”. O compositor explica que, a forma direta e
a retrógrada representam “que Deus é imenso tanto quanto eterno, sem começo nem fim
tanto no espaço quanto no tempo” como “dois extremos que se olham e que poderiam se
retroceder indefinidamente…”. Esse tema especial é mostrado no exemplo 2.
204 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Ex.2 Tema de Deus e seu retrógrado.
Além do tema de Deus, Messiaen criou outros para as três pessoas da Trindade e
um para o verbo amar; contudo não os indicou no prefácio, apenas no decorrer da obra.
Esses temas são mostrados no quadro 2.
As frases em linguagem comunicável são apresentadas nas meditações I, III e VII.
A utilização dos temas (Deus, Pai, Filho, Espírito Santo e amor)10 e de motivos musicais
(representando os artigos, pronomes, advérbios, preposições e os verbos ser e ter) são
elementos que oferecem maior unidade ao discurso, apesar de serem circundados sempre
por contextos musicais diferentes. Os temas podem ser considerados como personagens de
um poema para órgão sinfônico, cuja primeira cena descrita apresenta o Pai das estrelas.11
Esse primeiro tema, em sucessivas variações nos transmite a sensação do caos inicial da
criação do mundo pelo Incriado Deus Pai.
Além das frases musicais construídas com seu código, no final de cada uma das
meditações, Messiaen coloca uma breve conclusão dos artigos da Summa Theologica que
selecionou para explicar a doutrina da Santa Trindade. A seguir, apresentamos essas frases
e trechos da partitura que ilustram a variedade de tratamentos empregados na elaboração
da composição.
O primeiro texto codificado estabelece que Deus é o princípio, é o criador e não foi
10
Neste texto, serão referidos em português: Deus, Pai, Filho, Espírito Santo, amor.
11
Assim denominado por Messiaen, pois sua melodia é composta de notas relacionadas aos astros
do nosso sistema solar, tal como apontadas pelo astrônomo E. Savin. (Messiaen, 2002, p. 152-156).
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 205
criado; apresentando também sua primazia em relação às outras pessoas da Trindade. “Em
relação às pessoas que procedem d’Ele, o Pai é conhecido por sua paternidade e inspiração;
como ‘Princípio que não tem princípio’, conhecido pelo fato de que Ele não é de outro; essa
é precisamente a propriedade de inascibilidade designada pelo termo Incriado”.12
No exemplo 3, podemos observar os primeiros elementos empregados na construção
desta frase: um tema (Pére), um conectivo (datif: vers les) e um substantivo (personne);13
assim como o modo de Messiaen indicar os diferentes elementos de seu código: temas
(encartuchados),14 motivos conectores (entre parênteses) e palavras (soletradas acima das
respectivas notas). A mão esquerda acompanha e complementa ritmicamente a frase com
uma melodia que emprega notas do tema Pai das estrelas.15
12
“Par rapport aux Personnes qui procèdent de lui, le Père se notifie ainsi: paternité et spiration; en
tant que “Principe qui n’a pas de principe”, il se notifie ainsi: il n’est pas d’un autre: c’est là précisé-
ment la propriété d’innascibilité désignée par le nome d’Inegendré.” Esta citação, que se encontra no
rodapé, ao final da meditação, Messiaen indica como proveniente de “Saint Thomas d’Aquin, Somme
Théologique – la Trinité, livre II, question 33, “la personne du Père” – article 4, conclusion”; contudo,
não a localizamos literalmente na Suma Teológica, fato que se repete nas demais referências men-
cionadas por Messiaen.
13
O final deste substantivo encontra-se no pentagrama seguinte, que não aparece no recorte do
exemplo.
14
Messiaen indica a procedência deste método no prefácio da partitura, explicando que os temas
– Pai, Filho, Espírito Santo – são envolvidos em cartuchos, assim como os nomes das divindades nos
antigos escritos persas e egípcios.
15
No exemplo 3 podemos notar o início da linguagem comunicável empregada na construção desta
melodia, que se apresenta da seguinte forma “Père (datif: vers les) personnes procédant (ablatif: du)
Père (avoir: il a) paternité spiration Père (datif: vers le) principe (privative: sans) principe (avoir: il a)
(privatif: ne pas) (être) (ablatif: d’un) autre (être: c’est) (avoir) innascibilité (être) inengendré Père”.
206 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
registração e tessitura muito graves, dinâmica em ffff e em tempo extremamente lento),
conferindo profundidade à apresentação do texto de Aquino.16
16
Para os leitores não familiarizados com a grafia organística, apontamos os sinais indicativos do
pedilhado que, acima da nota, se referem ao pé direito e, abaixo, ao pé esquerdo: ponta do
pé e talão; e as substituições silenciosas para tocar e manter a nota enquanto se substitui a
ponta ou o talão: .
17
“La relation réelle en Dieu est réellement identique à l’essence”. (Saint Thomas d’Aquin, Somme
Théologique – question 28, “les relations Divines” – article 2, conclusion).
18
Texto utilizado na construção da melodia: “Relation (locatif: en) Dieu (est – verbe être) identique
(datif: à) essence (genitive: de) Dieu”.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 207
16’.19 Ela é acompanhada por registros de fundos com base 16’ no manual e 32’ no pedal,
como se vê no exemplo 5. As vozes do acompanhamento são organizadas com ritmos hindus:
na mão esquerda, pratâpaçekhara (força que emana da fronte),20 râgavardhana (ritmo que
dá vida à melodia) e varnamanthikâ (análise da cor); na pedaleira, em forma de ostinato
rítmico, são apresentados sempre duas vezes o ritmo rangapradîpaka (cor luminosa), sendo
cada apresentação circundada por silêncios de diferentes durações. Messiaen escolhe os
ritmos por seu significado espiritual e os modifica para adaptá-los ao contexto, como indica
a observação anotada na primeira divisão, logo abaixo do pentagrama do pedal.
Ex.5 Méditations. Segunda frase em linguagem comunicável (med. III, divs. 1-2).
Fonte: Alphonse Leduc, 1973.
Na oitava meditação, o enunciado declara “Pai, Filho – amam – Pai, Filho por meio
do Espírito Santo – Amor procedente. Pai, Filho – amam – raça humana por meio do Espírito
Santo”. Ao final do movimento ele acrescenta “O Pai e o Filho amam, pelo Espírito Santo
(o Amor que procede), a eles mesmos e a nós”.21 Esta mensagem de amor é acompanhada
por duas linhas melódicas de caráter muito distintos dos apresentados anteriormente:
um ostinato na pedaleira construído a partir da cromatização de durações,22 cujo perfil é
composto de grandes saltos descendentes (perfil melódico que se assemelha ao da palavra
Inengendrado apresentado no exemplo 4, na primeira meditação) e o canto do pássaro
Bulbul na mão direita, que complementa ritmicamente as outras vozes.
19
Para mensurar o comprimento dos tubos, é utilizada a unidade de medida inglesa Pé (indicada pelo
sinal diacrítico apóstrofe), equivalente a um pouco mais do que 30 cm. Portanto, um tubo de 16’
mede quase 5 m; um de 32’, o dobro. Para mais informações sobre o instrumento, conferir o primeiro
capítulo da dissertação da autora: CARPINETTI, Miriam Emerick de Souza. O órgão tubular: guia prático
sobre seu idiomático com ilustrações dos Quadros de uma Exposição de Moussorgski, 2008.
20
Significado espiritual do ritmo, como se encontra na tabela de 120 Deçî-tâlas que, segundo John
Satterfield, Messiaen obteve no Conservatório de Paris (Messiaen, 1990, p. 14).
21
Texto utilizado na construção da melodia: “Père Fils (aiment – verbe aimer) Père Fils (ablative: par) Saint
Esprit (Amour – verbe aimer) procédant Père Fils (aiment – verbe aimer) race humaine (ablative: par) Saint
Esprit (Amour – verbe aimer) (genitive: du) Père (genitive: du) Fils”. Texto explicativo colocado ao final da
meditação: “Le Père et le Fils aiment, par le Saint-Esprit (l’Amour qui procède), eux-mêmes, et nous.” (Saint
Thomas d’Aquin, Somme Théologique – “la Trinité”, tome II – question 37, article 2, conclusion).
22
O cromatismo de durações é explicado na obra para piano Quatre études de rythme (1949-50) e
utilizado também nas obras para órgão Messe de la Pentecôte (1950) e Livre d’Orgue (1951).
208 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Ex.6 Méditations. Terceira frase em linguagem comunicável (med. VII, divs. 17-18).
Fonte: Alphonse Leduc, 1973.
Diferentemente das outras apresentações já ilustradas, nas quais as frases são
acompanhadas de materiais variados, na quarta meditação, ela aparece em um breve trio,
como podemos observar no exemplo 7. Nele, cada voz apresenta uma das três pessoas da
Trindade, cada qual com um ritmo hindu: râgavardhana (ritmo que dá vida à melodia),
pratâpaçekhara (força que emana da fronte) e simhavikrama (a força do leão). Aparente-
mente, Messiaen apresenta os temas conforme sua ordem de procedência – em primeiro
lugar, o Pai Incriado; procedendo dele, o Filho e de ambos, o Espírito Santo – e com ritmos
que os caracterizam.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 209
a discrepância de duração das notas do cantus firmus e vozes que o envolviam foi sendo
reduzida progressivamente, à medida que o moteto focava na relação entre o Divino e a
humanidade, veiculando mensagens de compreensão no plano sensível. Assim, a lentidão
do texto em linguagem comunicável e a velocidade muito maior dos contrapontos apre-
sentados por Messiaen, afirmam a diferença de natureza que existe entre Deus e as “cores”
que representam Seu amor neste mundo.
Direcionamo-nos ao âmbito estritamente musical observando que, em Méditations,
as melodias tratadas como personagens de forma simultaneamente autônoma geram extra-
tos musicais independentes, um contraponto de camadas. Messiaen não utiliza a polifonia
como entendida na música ocidental, na qual, em geral, as formas imitativas tem um papel
preponderante. Seguindo modelos de agenciamento de materiais provenientes de outras
culturas, assim como de outras fases da linguagem musical ocidental, Messiaen sobrepõe
materiais heterogêneos e de sistemas musicais diferentes, pelo controle vertical. Esse efeito
é explicado por Pierre Boulez (1995, p. 263), quando compara a tradição do contraponto
ocidental ao que se apresenta em outras culturas, mesmo as que possuem consistentes
bases teóricas: “Nas músicas chamadas exóticas, observa-se frequentemente a heterofonia,
a antifonia e todas as formas de superposição devidas a relações simultâneas no tempo,
mas não responsáveis”.23
Conclusão
Em Méditations, Messiaen trabalha com dois tipos de materiais: o primeiro formado
por elementos de caráter fixo, que remetem ao significado que ele estabeleceu e que se
apresentam, geralmente, da forma como foram criados (motivos conectores da linguagem;
motivos dos verbos ser, ter e amar; e os temas Deus, Pai, Filho e Espírito Santo), para gerar
unidade; e o segundo, por elementos móveis (canto gregoriano, cantos dos pássaros e
das estrelas, melodias e acordes em camadas simultâneas aos elementos fixos), que são
trabalhados mais pela variação do que pelo desenvolvimento.
Como Bach e Mahler, busca sintetizar um amplo conjunto de conhecimento musical
em diferentes níveis disponibilizados em sua época, diferentemente de compositores como
Anton Webern e John Cage que se radicalizaram na busca da construção de uma linguagem
específica, monográfica. Como Cage e Murray Schafer, em Méditations, ele se vale de pin-
turas sonoras para transmitir os Mistérios da Santa Trindade, conforme seu conhecimento
da teologia da Igreja Católica Apostólica Romana.
Messiaen, com amplitude de visão, utiliza uma vasta paleta de sistemas, procedi-
mentos e materiais, tanto da música tradicional europeia como de outras culturas, em uma
linguagem pessoal, atual para a sua época e inovadora no âmbito organístico. Integra-os em
uma proposta musical consistente, coerente e totalizante, apesar da riqueza de diversidade
desses recursos.
23
Inferimos de seu texto que o termo “responsáveis” refere-se à capacidade das vozes reportarem-
se umas às outras.
210 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Referências
BOULEZ, Pierre. Apontamentos de aprendiz. Tradução Stella Moutinho; Caio Pagano; Lídia
Bazarian. São Paulo: Perspectiva, 1995. (Coleção Signos/Música).
BRUHN, Siglind. Messiaen’s interpretations of holiness and Trinity: echoes of medieval
theology in the oratorio, organ meditations, and opera. Hillsdale, NY: Pendragon Press,
2008.
CARPINETTI, Miriam Emerick de Souza. O órgão tubular: guia prático sobre seu idi-
omático com ilustrações dos Quadros de uma Exposição de Moussorgski. 275 p. Disser-
tação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas,
2008. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/index.
php?did=34640>. Acesso em: 29 set. 2011.
GILLOCK, Jon. Performing Messiaen’s organ music. 66 masterclasses. Bloomington: Indi-
ana University Press, 2010.
MESSIAEN, Olivier. Méditations sur le mystère de la Sainte Trinité. Paris: Alphonse Leduc,
1973. 1 partitura (95 p). Órgão Tubular.
MESSIAEN, Olivier. The technique of my musical language. Translated by John Satterfield.
Paris: Alphonse Leduc, 1990.
MESSIAEN, Olivier. Traité de rythme, de couleur, et d’ornithologie. Vol. VII. Paris: Alphonse
Leduc, 2002. Reimpressão.
WILLS, Arthur. Organ. London: Kahn & Averill, 1997. (Yehudi Menuhin Music Guides).
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 211
PERFORMANCE E CRIAÇÃO
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 213
A contribuição entre intérprete e compositor
no processo de criação de três concertos brasileiros
para percussão
Fernando Hashimoto
Universidade Estadual de Campinas
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 215
Eight Pieces for Four Timpani de Elliott Carter, composta entre 1950-66, e o trabalho
de comissionamento e estréias da marimbista japonesa Keiko Abe, a qual realiza em
04 de outubro de 1968, em Tokyo, o considerado “primeiro” recital de marimba como
instrumento solista. O programa incluiu obras de Akira Yuyama, Divertimento for Marimba
and Alto Saxophone (1968), de Minoru Miki, Time for Marimba (1968), de Teruyuki Noda,
Quintetto per Marimba, 3 Flauti e Contrabasso “Matinnata” (1968). (Kite, 2007) Outras
obras para percussão nesse período que merecem citação incluem The King of Denmark
de Morton Feldman, de 1964, Circles composta por Luciano Berio em 1960, e Persephassa,
escrita em 1969 por Iannis Xenakis.
216 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Figura 1. Set sugerido pelo autor.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 217
Figura 2. Variações sobre Duas Séries para Percussão e Orquestra de Cordas, Eleazar de Carvalho –
partes de viola, percussão solista e cello, compassos 65-67.
218 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Nós trabalhávamos na Globo, éramos eu, o Radamés, e o Mário Tavares que
fazia a regência do trabalho, e outros. O fato é que naquele tempo, pela falta de
repertório, eu comecei a fazer algumas transcrições para a marimba. Eu estava
trabalhando uma peça do Radamés, que é o Moto-Contínuo nº 1, uma peça para
piano que eu comecei a transcrever para marimba. Um dia, eu estava trabalhando
em um programa, e o Radamés estava no programa também, e no intervalo eu
fui praticar na marimba e estava vendo uns detalhes desse Moto-Contínuo, e
de repente ele apareceu. Ele ficou me olhando praticar a peça dele, e comecei
a perguntar se estava bom, se eu poderia fazer algumas alterações. E ele me
olhando, olhando. De repente ele disse: se eu soubesse como, eu escreveria
um concerto para você. Eu prontamente respondi: é só querer! Aí ele disse que
não sabia tocar marimba e que ficaria difícil, e eu disse a ele que pensasse no
piano tocado com somente quatro dedos e que depois a gente iria discutir. O
tempo passou, e estou eu em casa um certo dia e ele me telefona dizendo que
a música estava pronta. Eu logo relacionei com alguma orquestração da Globo,
e disse a ele que estava tudo certo, que eu não havia pedido para ele fazer
nenhum programa e que o material já estava com o copista. Então ele me disse
que a música para marimba estava pronta. Eu nem acreditei, e fui na mesma
hora buscar. No mesmo dia começamos a trabalhar a peça, ver alguns detalhes.
Ele escreveu para a marimba que eu tinha, uma Deagan de quatro oitavas, e ele
usou da primeira a última nota. Em uma das minhas idas aos Estados Unidos
para estudar na universidade, eu mostrei a peça ao [John] Galm. Ele me disse
que a peça era muito bem feita, mas sugeriu que o compositor incluísse uma
cadência para colocar a peça num outro status. Assim que voltei pro Rio eu contei
o acontecido pro Radamés que concordou prontamente. Só que o Radamés disse
que eu é que deveria fazer a cadência. No início eu relutei um pouco porque
a peça era dele, mas no final aceitei e como já conhecia bem a peça escrevi a
cadência. Quando terminei eu mostrei pro Radamés, e ele disse: essa eu assino!
(D’Anunciação, 2002)
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 219
em 26 de novembro de 1981, na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, executado pela
Orquestra de Câmara do Brasil, com a regência do próprio José Siqueira, e tendo como
solista o percussionista americano Gary Diperna (Diperna, 2011).
Em 2001, durante pesquisa sobre os concertos brasileiros para percussão, procurei
o material original do concertino de Siqueira. Encontrei parte do material original no acervo
do compositor no Rio de Janeiro. As partes de orquestra e a partitura estavam em estado
legível, porém a parte solista não foi encontrada. Comecei uma busca pelo músico que
tocou como solista na estréia, porém após anos de procura sem sucesso, abandonei a idéia
e me conformei com a análise do material encontrado. Porém, em 2011, encontrei o Sr.
Diperna, em uma situação completamente inusitada, através de um amigo em comum de
Boston, o percussionista Neil Grover. Ao ler os nomes na parte de baixo de uma foto tirada
dos membros de um naipe de percussão onde meu amigo recentemente havia tocado,
notei o nome de Gary Diperna. No mesmo instante perguntei ao Grover se ele o conhecia
e se possuía os contatos telefônicos. Nesse mesmo dia liguei e conversei com Diperna, o
qual mediante algumas entrevistas forneceu informações valiosas sobre a primeira e única
performance da obra, bem como forneceu cópia do programa do concerto de estréia, fotos
e a cópia da parte solista original tão procurada. Gary Diperna, que vive hoje em dia em
Massachusetts nos EUA, estudou no Boston Conservatory com Vic Firth, e foi contratado
como timpanista da Orquestra Sinfônica Brasileira entre 1979 e 1982. A parte do solista foi
levemente alterada na cadência, com anuência do compositor. Um trecho da cadência já
com as alterações pode ser vista na Figura 3.
220 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
A Figura 4, mostra uma das poucas fotos do percussionista Gary Diperna, tirada no
dia da estréia em frente ao cartaz anunciando o concerto. Diperna está à esquerda ao lado
do solista de trompete que tocou no mesmo concerto.
Conclusão
Nota-se que em muitos obras para percussão solista escritas no século XX, a
contribuição entre compositor e intérprete é um fato constante, e podemos até mesmo
inferir que devido as especificidades da percussão, surgidas tardiamente no repertório
consagrado de concertos, compositores buscaram na consulta aos intérpretes soluções
para alcançar uma escrita idiomática em suas obras.
Fica evidente também que essa cooperação entre intérpretes e compositores
produziu toda uma nova perspectiva para as gerações posteriores a esse período. A
expansão dos instrumentos de percussão ocorrida neste período é impressionante. Se torna
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 221
impossível comparar as mudanças de notação, técnicas e de construção dos instrumentos
de percussão sofridas no último século, com relação a qualquer outro instrumento musical
utilizado na música de concerto. Nos três primeiros concertos brasileiros para percussão,
se nota, em diferentes níveis de contribuição, que essa interação entre intérprete e
compositor foi determinante no resultado final das obras.
Referências bibliográficas
D’ANUNCIAÇÃO, Luiz. Entrevista de Fernando Augusto de Almeida Hashimoto em 25 mai.,
2002, Sala Cecília Meirelles, Rio de Janeiro.
DIPERNA, Gary. Entrevista de Fernando Augusto de Almeida Hashimoto em 18 abr., 2011.
Boston, MA, EUA.
FINK, Ron. “An Interview with Jack Connor – Marimba Virtuoso”, Percussive Notes 16, nº
2, p. 26-27, Winter 1978.
HASHIMOTO, Fernando Augusto de Almeida. Análise Musical de “Estudo para
Instrumentos de Percussão”, 1953. M. Camargo Guarnieri; Primeira Peça Escrita Somente
para Instrumentos de Percussão no Brasil. Campinas, 2003. Dissertação de Mestrado.
Universidade Estadual de Campinas.
HASHIMOTO, Fernando Augusto de Almeida. Variations on Two Rows For Percussion and
Strings by Eleazar de Carvalho: a Critical Edition and Study. Tese de Doutorado. The City
University of New York, 2008.
KASTNER, Kathleen. “An Examination of the Marimba Concerti”, Percussive Notes, p. 83-
87, August 1994.
KITE, Rebecca. Keiko Abe: A Virtuosic Life. Leesburg: GP Percussion, 2007.
LESNIK, Igor. “Darius Milhaud’s Concerto for Percussion”, Percussive Notes, p. 64-67, April
1997.
O’DONNELL, Richard. Entrevista de Fernando Augusto de Almeida Hashimoto em 05 jun.,
2007. St. Louis, MO, EUA.
222 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Colaboração saxofonista-compositor na criação
musical mista: Plexus para sax tenor e eletrônica,
de Arturo Fuentes
Pedro Bittencourt
Universidade Federal do Rio de Janeiro / Université Paris VIII, França
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 223
assistir o trabalho do compositor. Tomamos como exemplo Plexus (2009) para sax tenor
e eletrônica do compositor Arturo Fuentes (1975-), que foi estreada no projeto ENLARGE
YOUR SAX (sax, eletrônica e imagens digitais) na sala de concertos Kubus_ZKM (Karlsruhe,
Alemanha) em 26 de fevereiro de 2010. A peça foi gravada ao vivo nessa ocasião e poste-
riormente em estúdio (ZKM, fevereiro de 2011), para integrar futuramente os anexos da
tese de doutorado em andamento (Universidade Paris 8, França) e os arquivos do ZKM no
projeto europeu Media Art Base (<www.mediaartbase.de>). Plexus foi também interpre-
tada ao vivo em outras ocasiões (Festival Primavera en La Habana-Cuba, Festival Visiones
Sonoras –México, Ibrasotope e Sesc pompéia — São Paulo). Alguns trechos de gravações
de Plexus podem ser ouvidos nos links <http://soundcloud.com/pedro-bittencourt-sax> e
<http://pedrobittencourt.info>.
224 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Fig. 1. Longo glissando (em torno de 20 segundos), os sons mais agudos obtidos com harmônicos do Sib (a
nota mais grave no sax tenor). Os sons “intrusos” não estão escritos na partitura, mas podem ser ouvidos.
Foram superpostos sons eólios com ruídos de chaves, que puderam ser “preenchi-
dos” de sons normais do sax pouco a pouco (os pontilhados na partitura indicam mudanças
graduais) e pontuados de slaps (sons curtos e percussivos, obtidos por uma ventosa da língua
golpeando a palheta, indicados como pizzicato ou simplesmente “slap” na partitura). Para
um melhor equilíbrio das nuances e conforto no fraseado, a digitação dos sons de chaves
(indicados com “x”) ficam ao critério do saxofonista, sempre respeitando a métrica e a direção
(agudo/grave). A proposta do compositor era de alternar mão direita com mão esquerda,
mas dessa forma seria difícil controlar as nuances. O saxofonista pode então escolher as
notas exatas para que o controle da nuance seja bem realizado, e nesses momentos (sons
eólios com ruídos de chaves) não houve improvisação. Assim pode ser obtida uma espécie
de polifonia de sons extendidos, “idiomática” e confortável a ser executada apesar da com-
plexidade sonora. Em outras partes, o compositor deixa livre o saxofonista pra escolher as
notas improvisadas, indicando a direção (ascendente/descendente) e a região a ser tocada,
no que ele denominou “velato” (Figura 2).
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 225
Na figura 3 podemos observar como ruídos de chaves são utilizados com sons eólios
e articulados por slaps. Na figura 4 apresentamos outro exemplo de sons eólios combinados
com ruídos de chaves, dessa vez com varredura de harmônicos em glissando ascendente.
Fig.5. Transformações reflexivas e graduais de altura, sons eólios em sons normais e nuance (p – f).
226 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
salas de concerto. No clímax da peça, na parte final (Figura 7), a eletrônica reforça os sons
agressivos do saxofone (slaps, frulatos, growl), sempre seguindo a ideia principal de trabalhar
gradualmente as técnicas extendidas e fusionar o instrumento acústico à eletrônica.
Fig.7. Parte final da peça, após clímax do glissando agudo. Os pontos indicam acentos (ataques secos).
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 227
Considerações finais
As experiências realizadas para a composição e interpretação de Plexus mostram
como a colaboração de um saxofonista com um compositor podem resultar em novas
combinações de técnicas extendidas, que não se encontram necessariamente descritas e
exemplificadas em métodos de referência do saxofone (Londeix, 1989), nem estão ao alcance
de musicólogos, que não acompanham as escolhas feitas durante o processo criativo, que
pode incluir a improvisação e também erros qeu podem ser adotados de forma criativa.
Alguns efeitos que surgem durante o trabalho em conjunto nem estão devidamente ano-
tados na partitura. Assim, a comunicação oral durante esse processo é fundamental para
uma boa performance da peça. A versão final da partitura em muitos momentos permite
improvisações dirigidas do instrumentista, para que elas sejam idiomáticas, à vontade para
cada instrumentista. O objetivo é que os efeitos desejáveis funcionem, e que haja um maior
controle dos instrumentistas para uma melhor integração da parte eletrônica. Isso não quer
dizer que uma morfologia geral não deva ser respeitada (intervalos ascendentes, descen-
dentes, limites de alturas, etc). A interpretação de Plexus é construída pelo saxofonista e
pelo compositor, em conjunto. Podemos afirmar que através desse trabalho colaborativo
houve uma otimização do processo criativo musical. Tanto o saxofonista quanto o compo-
sitor (que operou a parte eletrônica e que tem a “última palavra” em relação às escolhas
feitas) dividem a interpretação de Plexus, que a cada performance contou com diferentes
configurações, que continuarão a ser modificadas por outros intérpretes da parte eletrônica.
O fato do saxofonista ter participado ativamente na produção da peça em questão implica
numa visão dinâmica do processo criativo, que pode ser continuado e atualizado.
Referências bibliográficas
KIENTZY, Daniel. Du potentiel acoustico-expressif des 7 saxophones. Tese de doutorado,
Université Paris 8, Ed. Nova Musica, 1990
LALITTE, Philippe. “Towards a semiotic model of mixed music analysis”. Organised Sound,
v.11, n. 2, Cambridge University Press, p. 93-100, 2006.
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TIFFON, Vincent. Recherches sur les musiques mixtes, tese de doutorado, Université Aix
en Provence, 1994.
VAGGIONE, Horacio. “Représentations musicales numériques: temporalités, objets, contex-
tes”. In: SOULEZ, A., VAGGIONE, H, (org.), Manières de faire des sons. Paris: L’Harmattan,
2010, p. 45-82.
228 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Vozes da Voz: a trajetória de Fátima Miranda*1
Estéticas de vanguarda
A produção artística de Fátima Miranda situa-se no contexto contemporâneo, numa
época de pós-vanguarda, onde a procura por novas formas e surgimento de múltiplas esté-
ticas resultam parcialmente da exploração de procedimentos apontados pelas vanguardas
*
Pesquisa de pós-doutorado realizada com o apoio da FAPESP.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 229
artísticas do século XX. Em especial, a influência das vanguardas futuristas e dadaístas do
início do século ainda se faz perceptível, já que estes movimentos foram responsáveis por
mudanças significativas na forma de se fazer arte, norteando parte da produção artística
posterior. Entre as principais transformações deflagradas por estes movimentos estão a
mudança de foco no fazer artístico – do resultado para o processo, estimulando desta forma
os processos de investigação, assim como uma crescente dissolução das fronteiras artísticas,
provocada pelo uso de uma mixagem de linguagens nas diversas manifestações e eventos
artísticos. Observa-se também uma procura por novos materiais, acompanhada pelo desejo
de aproximar arte e vida cotidiana. Na criação musical observa-se a inclusão de sons do
meio-ambiente, tidos até então como não-musicais, um procedimento estimulado também
pelo Bruitismo. Originalmente o Bruitismo (1913) é uma concepção musical do futurista
Luigi Russolo. Porém, este conceito não se restringe à música, mas também influencia o
desenvolvimento da poesia experimental, uma forma realizada principalmente por repre-
sentantes do movimento dadaísta em Zürich e que conduz ao surgimento de gêneros como
a poesia fonética e a poesia sonora, com desdobramentos até os dias atuais (Schoon, 2006,
p. 26-28). Além disso, grande parte das manifestações artísticas destas vanguardas ocorre
através de performances, onde o corpo ganha destaque, uma tendência que se expande
ainda mais nas últimas décadas do século, com o surgimento dos Happenings e da Perfor-
mance Art. Assim, a investigação do corpo, que já se tornava importante no âmbito artístico
especialmente a partir do final do século XIX, passa a ser ainda mais relevante para a geração
de processos de criação. A voz é parte deste processo de investigação e o aparelho fonador
com sua enorme gama de sons oferece-se como material sonoro, gerando novas possibili-
dades de criação. Pouco a pouco estabelece-se uma tradição de experimentação vocal, que
resulta em linguagens artísticas singulares. É a partir de um processo de experimentação e
investigação pessoal, e tendo como base um conhecimento prévio das manifestações das
vanguardas artísticas do século XX, resultante de sua formação como historiadora da arte,
que Fátima Miranda dá início a sua trajetória como criadora e performer.
230 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
de papel (celofane, papel de seda, jornais, papelão, papel de alumínio, etc) juntamente com
um trabalho de cena, luzes e até mesmo odores, provenientes da queima de papel realizada
durante a própria performance. O resultado sonoro resulta principalmente “da interação
entre os participantes, da reação sensível ao estímulo do outro, compondo um processo de
trabalho coletivo e improvisacional” onde, segundo Fátima Miranda, “todos sabem o que
vão fazer, mas não como vão fazer”, o que é determinado pelo momento, pelo espaço e pela
atmosfera do local (Nauck, 1996, p. 26). Em 1996, a Opera para Papel chegou a ser encenada
no espaço Podewil em Berlin, porém o grupo Taller de Música Mundana caracteriza-se por
apresentar suas performances em locais diferenciados, muitas vezes em espaços públicos, tais
como jardins e parques. O trabalho neste grupo desperta Fátima Miranda para um percurso de
investigações sonoras. A voz é no início apenas uma entre outras fontes sonoras pesquisadas,
como a própria Fátima Miranda relata:
Comecei a ensaiar com objetos encontrados. Com uma atitude muito dada,
muito dadaísta. Eu ensaiava com metais, com tubos de plásticos, com conchas,
com cornetas, com papel, papelão, plástico, panelas, pedras, tudo o que en-
contrava... eu improvisava com pedaços de bambu, pedaços de madeira... E foi
nestes ensaios, que motivada pelos ritmos e pelo trabalho que se fazia, que a
voz saiu como uma reação, mas sem buscá-la...eu não buscava. Na realidade
foi o contrário, eu trabalhava de maneira orgânica, trabalhava com sons e a voz
saia como consequência disto...Claro, como eu não sabia cantar, a voz saia de
uma maneira singular...Há uma frase muito bonita de Santo Agostinho: eu não a
teria buscado, se não a tivesse encontrado... Eu não busquei a voz, a encontrei”
(Miranda, 2011).
Assim, estimulada por sua atividade neste grupo, Fátima Miranda começa a trilhar
um caminho não planejado, ditado “pela própria vida”, através de encontros especiais, que
possibilitam a descoberta e desenvolvimento de seus recursos vocais. Seja pelo antigo desejo
de querer estudar um instrumento, seja pela potencialidade natural até então insuspeitada
de sua voz, Fátima Miranda passa a ser guiada por suas inúmeras vozes, tornando-se não
apenas uma cantora, mas uma performer e criadora que faz da voz uma arte.
O início da atividade artística de Fátima Miranda junto ao grupo Taller de Música
Mundana é um período de pesquisas e descobertas, funcionando como uma escola que
privilegia a investigação e a criatividade, que não impõe caminhos, mas que deixa seus
participantes encontrá-los. A improvisação livre é a base deste trabalho. Não há limites, mas
eventualmente algumas propostas. Por exemplo: o grupo decide fazer um concerto com
água, vento e pedras. Sem outras indicações ou restrições sobre o que fazer ou não fazer,
os limites são determinados pelos materiais escolhidos. O material sonoro, o jogo entre os
participantes e uma audição sensível orientam a realização destes concertos, assim como
a relação com o espaço onde se realizam. Se, para um músico tradicional a improvisação é
muitas vezes uma entre outras estratégias, para Fátima Miranda representa sua atividade
musical inicial e torna-se fundamental, na medida em que é capaz de gerar um processo de
estudos e pesquisas pessoais. A partir de seu envolvimento junto ao grupo Taller de Música
Mundana e também estimulada pela relevância que sua voz passa a ter, Fátima Miranda
começa a aprimorar o conhecimento de seu aparato vocal através de aulas de canto. Sem
nunca ter pretendido “trabalhar com a voz, nem ser artista, nem cantora, nem atriz”, sua
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 231
carreira artística surge como uma surpresa para ela mesma, revelando sua potencialidade
incomum como artista e criadora (Miranda, 2011). Em 1986 Fátima Miranda cria junta-
mente com Llorenç Barber o grupo de poesia fonética Flatus Vocis Trío. Assim, descobre
a fala como música, enriquecendo ainda mais sua pesquisa vocal. Deste trabalho provém,
segundo Llorenç Barber, “as inúmeras personagens que sua voz desenha com toques de
ironia e suas falas diferentes, de verdureiros a anjos” (Barber, 2000, p. 9).
232 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
trabalho vocal, que revela as muitas vozes que uma voz carrega. Nesta e nas próximas obras
a voz de Fátima Miranda não é apenas canto ou fala, mas é capaz de transitar por diversas
tradições e linguagens, pela música, pela poesia, pela arte sonora, fundindo não somente
as técnicas aprendidas, mas também as desenvolvidas por ela. Em 1994 surge Concierto
en Canto, com composições que revelam claramente a influência do canto Dhrupad como
Dhrupad Dreams, espécie de meditação sonora em que as diversas vozes criadas por Fátima
Miranda e gravadas em cinco pistas diferentes circulam em torno de um som contínuo. Mas
também há obras como El Principio del Fin, em que um texto é repetido inúmeras vezes,
revelando as complexas relações entre meninas e meninos, mulheres e homens. A peça
é construída a partir da correspondência entre fonemas e palavras do texto em espanhol
e o ritmo da tala indiana, trazendo na performance uma gestualidade e coreografia que,
realizadas com muito humor, permitem a apreciação das diversas vozes simultaneamente.
Em 2000 surge ArteSonado. Entre outras composições, esta obra traz Desasosiego, uma
peça que revela, através de um denso entrelaçamento de doze vozes, o cruzamento dos
caminhos entre oriente e ocidente. Em 2005 Fátima Miranda estréia o espetáculo Cantos
Robados. Entre Salamanca, cidade natal de Fátima Miranda e Samarkanda, a caminho da
Índia, onde aprofunda seus conhecimentos musicais, entre ocidente e oriente, entre tradição
e avant-garde, reside a essência deste espetáculo.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 233
Imitar e copiar é indigno. Roubar, apropriar-se das fontes para poder integrá-las,
digerir e esquecer, transcendendo-as e transformando-as em outra coisa, pode
pelo contrário levar a uma arte original, uma arte sem artifícios. A obra de arte
só pode ser o resultado de um processo: nem se cria, nem se elege. Está tudo
lá. As musas não existem, o novo, tanto na arte como na ciência, é um segredo
aberto à espera de ser revelado (In: <www.fatima-miranda.com>).
O processo criativo de Fátima Miranda envolve muitas vezes uma espécie de jogo
com as palavras, o que se observa também nos títulos de suas composições e performances.
Em 2011, estréia PerVERSIONES. Performance estruturada em sete partes ou atmosferas, é
o primeiro espetáculo em que Fátima Miranda apresenta canções de outros compositores,
hits consagrados, canções de uma vida inteira. PerVERSIONES como projeto seria talvez o
primeiro, anterior a todos os outros projetos de Fátima Miranda. Ao realizá-lo neste período
de maturidade artística, após ter desenvolvido sua linguagem musical, o espetáculo adquire
contornos bastante pessoais trazendo uma reinvenção de cada canção escolhida. O espe-
táculo inclui temas tanto introspectivos como extrovertidos, cotidianos ou sagrados. Assim,
a primeira parte da performance apresenta o tema Deuses, Preces e Perguntas e tem início
com Fátima Miranda girando em torno de si mesma, executando o giro sagrado dos Derviches
em meio a um cenário representando o espaço, repleto de estrelas. A primeira canção de
autor anônimo é Salmo Copto. Neste espetáculo, Fátima Miranda, acompanhada apenas
por um pianista, faz um percurso através das canções mais diversas, trazendo não apenas
uma nova versão de composições consagradas como Cry me a River (Arthur Hamilton) e
Chega de Saudade (Antonio Carlos Jobim), mas procedendo a sua reconstrução. Com fina
ironia e humor Fátima Miranda as perverte. Em Cry me a River há o exagero vocal e de
sentimentos, deixando-se aflorar o aspecto melodramático e uma voz furiosa, que delineia
o sentimento que esta canção suscita. Já em Chega de Saudade, um clássico absoluto da
bossa-nova, Fátima Miranda traz irreverência e um toque de brincadeira, introduzindo
uma língua inventada e fazendo um solo de sopro com o auxílio das mãos. Interrompendo
repetida e ritmicamente o fluxo do som ao virar o rosto para os lados, como se estivesse a
mudar a estação de rádio, Fátima Miranda interrompe o fluxo da voz quebrando as palavras
em partes, para em seguida realizar a melodia com uma língua inventada. Contracenando
com o pianista Miguel Angel Alonso Mirón, Fátima Miranda finaliza a canção com uma
brincadeira de bater com as palmas das mãos, brincadeira de crianças, acompanhada pelo
verso final “não quero mais este negócio de você viver sem mim”. O repertório eclético
deste concerto congrega desde melodias medievais, ragas, lieds de Schubert, canções de
John Dowland, Erik Satie, Gabriel Fauré e Kurt Weill, até canções pop, fados, chanson, bossa-
nova e standards do jazz. Como observado no programa do concerto, realizado no Festival
de Otõno en Primavera em Madrid em maio de 2011, este repertório eclético é capaz de
criar “um mapa sem fronteiras que por sua vez dirige-se a e emerge da memória coletiva”.
Juntamente com a performance vocal, Fátima Miranda interage com o cenário, as luzes, o
figurino e a história destas canções de “toda a vida”, integrando as diversas linguagens de
modo a ofuscar suas fronteiras. Proporciona, através de suas perVERSÕES, uma experiência
única e a transformação de nossa percepção.
234 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Figura 2. PerVERSIONES (Foto: Juanjo Delgado)
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 235
Em sua obra há principalmente uma desvinculação entre palavra e sentido, a palavra
surge na maior parte das vezes enquanto som. Sua trajetória é uma busca das possibilidades
primordiais da voz. Como observa Fátima Miranda ao relatar sobre o trabalho no grupo
Flatus Vocis Trío, não existe “a pretensão de descobrir algo novo, em certa medida se volta
en-cantado às fontes” (In: <www.fatima-miranda.com>).
Este retorno às possibilidades originais da voz torna-se ainda mais curioso, por ocorrer
numa época em que a música resulta cada vez mais de sons sintetizados. Mas a voz não está
aqui procurando um caminho para imitar estes sons, muito pelo contrário, existe um desejo
de recuperar possibilidades sonoras esquecidas, qualidades inerentes aos recursos vocais, um
desejo que conduz a uma pesquisa constante e que revela uma enorme diversidade de sons,
que podem então fazer da voz uma linguagem artística. O que está em sintonia com parte
da produção musical contemporânea é a pesquisa e valorização do som enquanto material
para a criação. O movimento dos artistas da voz orienta-se no entanto a partir de um outro
pressuposto, de retorno às fontes, a uma voz que é ela própria uma linguagem.
Habitualmente se considera a voz como um instrumento, como o violino, como o fagote ou o
piano, mas a voz é muito mais . Eu falaria da arte da voz, como a arte da pintura ou da arte da música.
A voz pode ter uma dimensão enorme, pois não é somente um instrumento (Miranda, 2011).
Referências
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Fátima Miranda). Madrid, El Europeo Musica-52 PM, Colección LCD 19, p. 8-21, 2000.
MIRANDA, Fátima. Las Voces de la Voz. CD. Unió Músics, 1992.
MIRANDA, Fátima. Concierto em Canto. CD EEM 003. El Europeo, 1994.
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MIRANDA, Fátima. Sobre Flatus Vocis Trío. Disponível em: <http://www.fatima-miranda.
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MIRANDA, Fátima. Entrevista Pessoal. Madrid, 03.06.2011.
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SCHOON, Andi. Die Ordnung der Klänge: Das Wechsespiel der Künste vom Bauhaus zum
Black Mountain College. Bielefeld: Transcript, 2006.
WEBER-LUCKS, Theda. “Schier grenzenlose Stimmkunst
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236 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
PERFORMANCE E ESTILO
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 237
As Bachianas Brasileiras nº6 para flauta e fagote de
Heitor Villa-Lobos: alguns aspectos interpretativos
para o fagotista
Aloysio Fagerlande
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Aspectos históricos
A partir de 1930 a pioneira e febril atividade modernista da década anterior dá lugar
a uma atividade mais ordenada, mais clássica, embora com a mesma entusiástica exploração
de temas brasileiros. Não só a música, mas vários setores da cultura brasileira, passado o
ímpeto dos anos 20, expandiram-se, com o lançamento de dicionários, enciclopédias na-
cionais, filmes brasileiros, além da fundação de orquestras e coros (Wright, 1992).
Havia também uma tendência mundial de retorno ao século XVIII, já que a música dos
períodos barroco e clássico oferecia como modelos “formas claras e concisas, tão opostas...
ao que havia de longo e complexo em [Gustav] Mahler... além disso, a música de Bach em
especial podia ser considerada um modelo de construção objetiva, e a objetividade estava
agora entre as primeiras preocupações dos artistas” (Griffiths, 1987, p. 62).
A série das Bachianas Brasileiras foi composta entre os anos de 1930 e 1945. Um
dos maiores desafios para Heitor Villa-Lobos após a fase dos Choros, entre 1920 e 1928,
foi procurar um caminho no qual pudesse objetivar a síntese do nacional com o universal.
Ele estava profundamente ligado à obra de Johann Sebastian Bach, de quem fez várias
transcrições, notadamente de peças do “Cravo Bem Temperado”, para coro ou conjunto
de violoncelos. Também estaria estimulado pelas afinidades que acreditava existir entre
as composições de Bach e a música popular e folclórica brasileira, em que cada parte in-
strumental possui uma considerável autonomia melódica, segundo Luiz Heitor Correa de
Azevedo (Sadie [org], 1980, p. 765).
É igualmente interessante estabelecer uma analogia entre Villa-Lobos, Bela Bártok e
Paul Hindemith. Estes dois últimos, como bem observou Paul Griffiths, igualmente buscaram
influências do mestre do barroco alemão, e a abordagem da música barroca, para Bártok, foi
como “a da canção folclórica... profunda e analítica” (Griffiths, 1987, p. 78). Mais um ponto
em comum com Villa-Lobos, que cresceu ouvindo e tocando peças do mestre alemão, e na
juventude participava de grupos de chorões.
Vários autores, como Nóbrega, Neves e Guérios, apenas para mencionar represen-
tantes de três gerações distintas de pesquisadores, abordaram a questão da interpenetração
da música de concerto européia, representada por J.S.Bach, e a música popular urbana
carioca do início do século XX, representada principalmente pelo choro.
Tentarei demonstrar, então, como duas fontes aparentemente tão distintas con-
tribuíram para esta Bachianas Brasileiras n° 6, nosso objeto de estudo.
O próprio choro, enquanto gênero, constituiu-se basicamente através do modo de
tocar de músicos populares das danças de salão européias, em voga na virada do século
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 239
XIX para o XX1, sobretudo a polca e a mazurca. Aos poucos, o choro sedimentou-se quanto
à forma: A-B-A-C-A.
Alguns estudiosos da obra de Villa-Lobos também mencionam um paralelismo, entre
figuras melódicas tipicamente bachianas com algumas encontradas no choro.
Segundo Ademar Nóbrega,
Em seu aspecto formal, a maior parte das Bachianas pode ser considerada como
suítes, constituídas de dois, três ou quatro movimentos. É interessante observar a dupla
denominação dos movimentos: a tradicional da música de concerto e uma outra, tipicamente
brasileira, aludindo ao aspecto rítmico, melódico ou ao conteúdo expressivo.
Esta dupla denominação dos movimentos também remete à própria questão de
dualidade da série - Bach e música popular brasileira.
Em um aspecto mais amplo, a série das Bachianas Brasileiras descarta as combi-
nações instrumentais pouco comuns dos Choros, além de seus efeitos sonoros, sua com-
plexidade rítmica e seu vocabulário harmônico; a bitonalidade praticamente inexiste, e a
harmonia é predominantemente tonal.
A Bachianas Brasileiras n° 6 foi composta em 1938, sendo dedicada a dois músicos
amadores da época, Alfredo Martins Lage, flautista, e Evandro Moreira Pequeno, fagotista.
Interessante notar que é a única obra, de toda a série, para conjunto de câmara.
Villa-Lobos, em depoimento sobre a peça, disse:
1
Segundo Ary Vasconcelos, o choro surge por volta de 1870 no Rio de Janeiro, inicialmente não
como um gênero, mas como um determinado tipo de conjunto musical, “um jeito brasileiro de se
tocar a música européia da época” (Vasconcelos, 1977:13).
2
Comunicação pessoal, 1995.
240 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Quadro 1
As nove Bachianas Brasileiras
Número e ano Destinação instrumental Denominação tradicional dos Denomina-
de composição movimentos ção brasile-
ira dos mo-
vimentos.
1- 1930 Orquestra de violoncelos - Introdução - Embolada
- Prelúdio - Modinha
- Fuga - Conversa
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 241
A primeira audição da Bachianas Brasileiras n° 6 ocorreu na então Escola Nacional
de Música, atual Escola de Música da UFRJ, por ocasião do evento “Música das Américas”.
Encontrei duas datas de ocorrência: 21 de janeiro de 1945, segundo Adhemar Nóbrega
(Nóbrega, 1976:95), e 24 de setembro de 1945, segundo o catálogo “Villa-Lobos - Sua
Obra”, publicado pelo Museu Villa-Lobos. Os intérpretes dessa primeira audição foram
Hans Joachin Koelreutter, flautista, e Achiles Spernazzati, fagotista. e a obra encontra-se
editada pela Associated Music Publishers Inc. (1946), nos Estados Unidos, e no Suplemento
Musical do Boletim Latino-Americano de Música - vol. 6, do Instituto Interamericano de
Musicologia, Rio de Janeiro (1946).
Aspectos analítico-interpretativos
1º movimento: Ária (Choro)
Villa-Lobos não estabelece indicações metronômicas para nenhum movimento da
Bachianas Brasileiras nº6. Segundo sua tese de mestrado sobre o Trio do mesmo composi-
tor, defendida em 1996, Luis Carlos Justi afirma que
242 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Ex.1. Bachianas Brasileiras nº 6, Ária: o motivo na parte do fagote (destacado), c.3 a c.5.1.
3
Encontrada em qualquer tabela de posições para fagote.
4
Alguns dos principais tratados de orquestração do final do séc. XIX e início do séc. XX, como os de
Berlioz e Lavignac, não recomendam a utilização de intervalos descendentes ligados, para o fagote.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 243
Ex.2. Bachianas Brasileiras nº 6, Ária: motivo na flauta (em destaque), c.15 a c.17.1.
244 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
No c.40 surge na parte do fagote o ritmo deslocado, comum ao choro e tão car-
acterístico da obra de Villa-Lobos, fato já mencionado anteriormente.
A flauta apresentará o seu sentido conclusivo cinco compassos antes do fim, en-
quanto o fagote continuará nas reproduções descendentes, passando por uma pequena
conclusão durante três compassos antes do fim, para só então apresentar a entrada final,
embora parcial, do motivo principal para encerrar a Ária. Toda a expressividade natural
deste movimento deverá ser repetida de maneira concentrada na execução, por parte do
fagotista, desta entrada final.
2º movimento: Fantasia
O termo “Fantasia”, de origem italiana, tem vários significados musicais, e quase
sempre é associado a uma livre ordenação de idéias do compositor, em oposição às formas
tradicionais estabelecidas. Mesmo com uma aparente liberdade de apresentação dos moti-
vos, a Fantasia, assim como a Ária, está intrinsecamente ligada à forma binária, com todas
as características desta. É também interessante notar que as seções transitivas constituem
variações motívicas.
Também neste movimento não há indicação metronômica na partitura. Pelos mes-
mos motivos já expostos, a sugestão é de h = 64.
Os pontos para respiração, aqui, são encontrados mais facilmente, pois sendo
basicamente composta por variações motívicas, a Fantasia é mais seccionada que a Ária.
Outro fato interessante é que existe um processo totalmente interligado, no qual tanto a
respiração é dependente do andamento quanto este é determinado por ela.
Quanto ao aspecto virtuosístico, todas as Variações apresentam uma parte de flauta
excepcionalmente difícil do ponto de vista técnico, com figurações bastante variadas: grandes
saltos, vários grupos de fusas com graus disjuntos, e o uso de registros diversos. A parte
do fagote também exige bastante do músico em termos virtuosísticos, principalmente no
tocante aos grandes saltos intervalares e o uso de registros diversos.
Quanto à questão rítmica, assim como na Ária, aparecem com frequência certos
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 245
procedimentos comuns ao choro, como o ritmo deslocado. Na Fantasia, ele surge logo no
c. 5 na parte da flauta e c.6 e c.7 na do fagote.
246 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
bastante mais difícil; é o caso dos c.13, c.14, c.15, c.17 e c.18.
No c.73, há o início de um pedal de Mib, com a ligadura interrompida para uma
articulação pelo próprio compositor, entre os c.75 e c.76. Após este pedal, há uma ampliação
cadencial, na qual o fagote apresenta um desenho extremamente expressivo e que deve
ser enfatizado, tanto na tercina ligada à mínima pontuada (c.78.4 e c.79.1), como na nota
Sib cadencial (c.79.4) que deve ser articulada como o violoncelo, em uma cadência perfeita
de algum movimento de uma das Suítes de Bach. Nos c.80 e c.81, a repetição é idêntica, e
nos c.82, c.83 e c.84, a imagem da articulação de um violoncelo se adequa perfeitamente.
Em termos interpretativos, podemos nos remeter a J.S. Bach e ao modo de se articular na
música barroca.
Os sinais de portato indicados pelo compositor nas três primeiras notas dos c.90,
c.91 e c.92, não significam que elas devam ser articuladas da mesma maneira. Segundo
Pablo Casals, um dos princípios básicos da execução musical é que a nota repetida jamais
deve ser tocada do mesmo modo que a anterior (Blum, 1980). A execução ideal deste trecho
é um crescendo nas três notas repetidas, e um diminuendo nas sextinas posteriores; mas
cada compasso em um grau de dinâmica mais forte que o anterior, até chegar ao ponto
culminante (c. 95).
No início da Coda (c.116.3) aparece uma figuração imitativa também bastante uti-
lizada no choro e que, segundo A. Nóbrega, “evoca as primeiras notas do Tico-tico no Fubá”
(Nóbrega, 1976, p. 99). Isto se deve, provavelmente, às bordaduras duplas encontradas nos
incisos iniciais, tanto do trecho da Fantasia como do início do choro de Zequinha de Abreu.
Com esta figuração imitativa, a partir do c.116.3, a preocupação básica na Coda é
a sincronia entre os dois instrumentos, que devem ser articulados de modo bem preciso,
sendo então necessário uniformizar os ataques.
Os arpejos repetidos, e em oitava, a partir do c.121, devem ser articulados com um
staccato leve e bastante claro; qualquer peso na articulação pode atrapalhar a sincronia
deste desenho conjunto de flauta e fagote, e novamente a repetição da figuração na região
grave do fagote, por cinco compassos seguidos, pode provocar uma eventual falha.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 247
Isto poderá ajudar a vencer as dificuldades técnicas da obra, como as notas superagudas
da flauta ou as ligaduras descendentes para a região grave do fagote, sempre procurando
colocar a idéia musical acima dos problemas mecânicos da técnica.
248 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Ex.9. Bachianas Brasileiras nº 6, Fantasia: Coda, c.114 ao fim.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 249
Considerações finais
Certos procedimentos usuais na música de J.S. Bach encontram-se presentes ao lado de
elementos brasileiros, sem que haja, contudo, uma deformação da lógica interna da obra.
Justamente aí se encontra o traço de genialidade de Villa-Lobos: apropria-se de elementos
pertinentes ao universo bachiano, e em seguida constrói uma obra essencialmente pessoal
e brasileira.
Assim, a cada vez que interpreto a Bachianas Brasileiras n°6, surge um novo mo-
vimento interpretativo, ainda que pequeno – e desde 1986 mantenho esta obra em meu
repertório regular, tendo-a tocado com diversos flautistas, em vários países. Mesmo após
gravá-la para o CD A Obra de Câmara para Sopros de Heitor Villa-Lobos (ABMusica, 2005),
em dezembro de 2004, sempre me surgem novas idéias, nos ensaios e concertos. Não no
que diz respeito a grandes conceitos estruturais, mas a pequenos detalhes, que variam um
pouco em cada apresentação. Salas diferentes, climas diferentes, palhetas diferentes, públi-
cos diferentes, tudo contribui para que um concerto ao vivo jamais seja igual a outro.
O intérprete sempre experimenta transformações diárias, o que contribui para tornar
a arte interpretativa cada vez mais viva. É o retrato de um instante, de um momento, com
todas as suas peculiaridades e particularidades. Ele jamais se repetirá.
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252 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Le tombeau de Couperin de Maurice Ravel:
música sobre música*1
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 253
pela pianista Marguerite Long, viúva de Joseph de Marliave, dedicatário da última peça da
Suíte. Segue trecho da crítica do concerto de estréia, publicado pelo Le Courrier Musicale
em 1 de maio de 1919.
Nationale de Musique – SNM, criada em 1871, esta com o objetivo de divulgar a música contempo-
rânea porém restrita aos compositores franceses.
254 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
desse trabalho. Os principais acervos consultados foram: as salas de trabalho restritas
aos pesquisadores no departamento de música Bibliothèque Nationale de France – BNF
(sítios Louvois, Opera e Tolbiac), a Bibliothèque de l´IRCAM, Bibliothèque du Centre George
Pompidou e Bibliothèque de la Sorbonne. Durante a mesma jornada, entrevistas foram
concedidas à autora pelo pianista Dominique Merlet3, pela pianista Dana Ciocarlie4 e pela
cravista Elizabeth Joyé5. Em tais entrevistas foram abordadas questões interpretativas per-
tinentes à linha de pesquisa do presente estudo. As orientações recebidas foram transcritas
no capítulo referente à análise da obra.
3
Pianista francês de renome internacional foi professor do Conservatório Nacional Superior de Mú-
sica de Paris e do Conservatório Nacional de Genève. Merlet é considerado pela crítica especializada
um dos maiores intérpretes da obra pianística de Maurice Ravel da atualidade. Sua versão da inte-
gral da obra para piano de Maurice Ravel foi registrada em 1991 pela gravadora Mandala e recebeu
o prêmio Diapason d´or. Sua versão da obra Le Tombeau de Couperin foi usada como referência para
este trabalho.
4
Jovem pianista romena. É professora de piano na École Normale de Musique de Paris e vem se
afirmando como intérprete de um vasto repertório – o qual inclui a Suíte Le Tombeau de Couperin
- em importantes salas da Europa.
5
Cravista, especialista da música de François Couperin. Esta entrevista foi de grande importância
no sentido de sanar as dúvidas relacionadas à linguagem do cravo barroco francês, em particular os
vários questionamentos sobre a ornamentação usada na obra para cravo de François Couperin, e
usada por Maurice Ravel na suíte Le Tombeau de Couperin.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 255
vezes consecutivas pela sua estatura, 1,57 metros, e seu peso, 48 quilos – o peso mínimo
exigido era 50 quilos – recorreu a amigos influentes para poder participar de seu projeto
patriótico.
As transcrições foram organizadas cronologicamente e traduzidas a partir dos tra-
balhos referenciais sobre o assunto. Existem três trabalhos dedicados à correspondência
de Ravel: Ravel au miroir de ses lettres, livro raro e antigo organizado por René Chalupt em
1956, no qual encontramos 190 cartas; Lettres à Roland Manuel et à sa famille6, no qual
Jean Roy reúne a correspondência do compositor com o amigo e primeiro biógrafo Roland
Manuel e sua mãe, a senhora Fernand Dreyfus, madrinha de guerra e figura importante
na vida do compositor, sobretudo durante os anos do conflito; e Maurice Ravel – Lettres,
écris, entretiens, organizado por Arbie Orenstein, que reúne, após 20 anos de pesquisa, o
essencial da correspondência de Maurice Ravel, 350 cartas inéditas até então.
Em pesquisa de campo realizada em Paris foi obtida autorização para analisar o
acervo das lettres autographes7 da Bibliothèque National de France, que possui um grande
número de cartas de Maurice Ravel, trocadas entre 1900 e 1933, a maioria escrita durante
a Primeira Guerra, sendo que muitas delas se encontram transcritas no trabalho de Oren-
stein. Nesta análise foi possível encontrar algumas cartas inéditas nos trabalhos referentes
à correspondência do compositor e que se encontram transcritas neste capítulo.
O terceiro capítulo pretendeu fazer um levantamento e uma reflexão sobre a
produção musical durante os anos da Primeira Guerra Mundial. Representados por Lili
Boulanger (1893-1918), Erik Satie (1866-1925), Claude Debussy (1862-1918) e Maurice
Ravel (1875-1937). O objetivo deste capítulo foi apontar os procedimentos adotados na
composição das obras de guerra, permitindo-nos reconhecer tal produção, juntamente com
a suíte Le Tombeau de Couperin, como obras inseridas dentro desse contexto histórico.
Com o quarto capítulo dá-se início à análise da obra Le Tombeau de Couperin, em
que se aborda a linguagem que inspirou a criação da obra em questão: a linguagem dos
cravistas franceses do século XVIII. O estudo concentrou-se na obra para cravo de François
Couperin, ancestral homenageado por Maurice Ravel. Nesse sentido, o foco, já com prévio
conhecimento do Tombeau, é direcionado a todo tipo de detalhe relacionado ao personagem
homenageado e a obra do período em questão que levasse a um possível paralelo entre os
procedimentos usados no século XVIII e a obra que esta tese se propôs analisar.
Para tanto, foi importante o estudo e a utilização da obra didática L´Art de toucher
le Clavecin (A Arte de tocar o Cravo), publicada em 1717, e das Pièces de Clavecin, escritas
entre 1713 e 1730 - obras que François Couperin dedicou ao instrumento - como fonte dos
elementos necessários para que esta análise fosse realizada da maneira mais completa e
minuciosa possível. Para estas obras foram consultados fac-símiles dos manuscritos originais
mantidos na Bibliotheque National de France, organizados pela Éditions Fuzeau, a edição de
L´Art de toucher le Clavecin das Edition Breitkopf e para uma leitura mais clara das Pièces
de Clavecin, além das partituras fidedignas, a edição organizada pela Dover Publications a
partir da edição de Fr. Chrysander datada de 1888.
A entrevista realizada em Paris com a cravista Elizabeth Joyé, professora e intérprete
6
Correspondência trocada entre os anos de 1911 a 1934. Mme. Dreyfus ou “Chère marraine” (que-
rida madrinha), termo usado por Ravel ao iniciar as cartas, era casada com Fernand Dreyfus, pai de
René e Jean Dreyfus, ao qual foi dedicado o Minueto do Tombeau.
7
Cartas autógrafas.
256 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
especialista na obra do compositor francês, por ocasião de pesquisa de campo foi de grande
importância, uma vez que possibilitou esclarecer dúvidas relacionadas à complexa linguagem
do cravo barroco francês e, em especial, à obra para cravo de François Couperin.
No quinto capítulo apresento a análise pianístico-musical da obra Le Tombeau de
Couperin escrita para piano solo pelo compositor francês Maurice Ravel entre os anos de
1914 e 1917. Resultado importante para a realização desta análise foram os documentos
coletados e analisados por ocasião de pesquisa de campo em Paris, que levam ao ponto
de partida para a criação do Tombeau.
O ponto de partida para a criação da obra Le Tombeau de Couperin é bastante
curioso. No final do século XIX, autoridades da igreja católica francesa proíbem a dança do
tango argentino, considerado “de natureza lasciva e ofensiva para a moral”8. Tal proibição
criaria grande polêmica e vários artigos seriam publicados sobre o assunto. Com a conde-
nação desta, outra dança deveria ser colocada em seu lugar e, em uma declaração sobre o
assunto, o Papa Pio X diria não ver mal algum na dança condenada, mas que a Forlane lhe
parecia mais bela. Este pronunciamento provocaria o interesse na esquecida dança do século
XVII, de origem italiana, fazendo com que vários compositores fossem convidados a escrever
aos moldes da dança em questão. A Revue Musicale, da qual Ravel era leitor assíduo e na
qual colaborou com alguns artigos durante os anos de 1912 e 1922, publica em 14 de abril
de 1914 um artigo intitulado La Forlane, escrito pelo musicólogo Jules Écorcheville. O longo
artigo de Écorcheville retrata o histórico desta dança e da polêmica causada pela proibição
do tango que deveria ser substituído pela antiga dança. No final do artigo encontramos uma
versão da Forlane do 4º Concert Royale de François Couperin, harmonizada por A. Bertelin.
Certamente Maurice Ravel teria lido o artigo, conforme escreve em carta enviada de Saint
Jean de Luz, onde passava férias, ao amigo Cipa Godebski em maio de 1914.
8
Laloy (1914).
9
Neste referencial Catálogo cronológico de todos os trabalhos musicais esboçados ou concluídos
por Maurice Ravel, Marnat fornece uma ficha completa das obras de Ravel contendo as seguintes
informações: instrumentação, duração da obra, época de composição, dedicatários, para as obras
vocais as indicações sobre o texto de inspiração, data, local e intérpretes que estrearam as obras,
localização e proprietários dos manuscritos originais; se editada, a casa editora e data de edição da
obra (Marnat, 1986, p.721-778).
10
Autor de inúmeros trabalhos dedicados à obra de Maurice Ravel, Arbie Orenstein é professor na
Escola de Música ‘Aaron Copland’ em New York, EUA.
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 257
quentemente não teve herdeiros diretos. Com a sua morte em 28 de dezembro de 1937, o
irmão Eduard foi seu único herdeiro e com a sua morte, todos os manuscritos de posse da
família que perdia seu último membro seriam deixados ao casal de empregados da família.
A Sra. Taverne possui ainda hoje muitos manuscritos, entre eles a versão para piano solo da
suíte Le Tombeau de Couperin – a versão orquestral foi vendida para a The Morgan Library
em New York – e a transcrição em questão da Forlane de François Couperin. Orenstein em
contato com a Sra. Taverne obteve permissão para a reprodução desta transcrição que
publicou no final de seu artigo “Some Unpublished Music and Letters by Maurice Ravel”
(Orenstein, 1973).
A cópia dessa transcrição juntamente com a reprodução da versão original da Forlane
de François Couperin, fazem parte do corpo desse trabalho e foram analisados na primeira
parte desse capítulo. O objetivo desse estudo foi apontar as semelhanças encontradas entre
a Forlane de Couperin e a de Ravel.
Para que a realização da análise pianístico-musical da obra Le Tombeau de Couperin
fosse concretizada, foi necessário, primeiramente como material de suporte, a realização
das análises formal e harmônica que sustentam a estrutura musical da obra, uma vez que
este trabalho está vinculado a linha de pesquisa deste estudo: Técnicas Composicionais e
Questões Interpretativas.
Quanto a análise formal, a pesquisa remeteu-se ao estilo das formas das obras de
François Couperin e dos cravistas franceses do século XVIII, tendo como fonte de pesquisa
o estudo das danças do século XVII e XVIII realizado por Sophie Jouve-Ganvert em seu
Theorie Musicale, os Fundamentos da Composição Musical de Arnold Schoenberg e o Dic-
tionnaire Encyclopedique de la Musique, organizado por Denis Arnold, voltando-se também
aos elementos de composição levantados capítulo anterior, aliado à sua fundamentação
bibliográfica.
Referente à análise harmônica a ferramenta adotada voltou-se ao conceito de regiões
de Arnold Schoenberg expostas em seu estudo Funções Estruturais da Harmonia. Como
bibliografia de apoio para esta análise faz-se importante citar o ensaio analítico realizado por
Jean Claude Teboul em seu Ravel le langage musical dans l´oeuvre pour piano, baseado a
partir dos princípios elaborados por Schoenberg; da análise da suíte Le Tombeau de Couperin
realizada por Oliver Messiaen, publicada em seu Ravel - Analyses des oeuvres pour piano
de Maurice Ravel e do Ètude technique et stylistique de l´Harmonie, do estudioso francês
Jean Doué. A importância desta análise é compreender de que maneira Ravel se afasta dos
paradigmas do século XVIII, conservando assim o seu idiomático.
Logo, o objetivo fundamental e a originalidade desta pesquisa – análise pianística,
cravística e musical da suíte Le Tombeau de Couperin – consiste na comparação e no estudo
da fusão de dois estilos musicais distanciados no tempo: o cravo de François Couperin e o
pianismo de Maurice Ravel, sob o olhar do intérprete.
Apontamentos relacionados as questões interpretativas constituem um item a parte
dentro da análise de cada uma das seis peças do ciclo, enfatizando as dificuldades encon-
tradas e direcionando o executante a soluções no sentido de uma interpretação histórica
e cientificamente fundamentada. Esses apontamentos foram guiados por intermédio dos
intérpretes consultados para este trabalho: Margueritte Long11, Vlado Perlemuter12, Henri-
11
Marguerite Long au piano avec Maurice Ravel (ed. 1995).
12
No livro Ravel d´après Ravel, organizado por Jean Roy, o pianista de origem polonesa (1904-2002)
258 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
ette Fauré13, Dana Ciocarlie14 e Dominique Merlet15. Nesse sentido, foi realizado sob minha
interpretação e encontra-se anexo ao trabalho, o registro sonoro da obra que significa o
cerne desta pesquisa, a suíte para piano solo Le Tombeau de Couperin de Maurice Ravel.
Para a composição de Le Tombeau de Couperin, Ravel volta no tempo e restaura
a obra de um mestre esquecido durante o século XIX: François Couperin. Presta a ele seu
respeito e suas homenagens sem, entretanto, esquecer que a obra é dedicada ao piano
do século XX. Assim, é importante salientar que o estudo da obra Le Tombeau de Couperin
evidenciou uma fase, uma postura ímpar de Ravel que, ao retroceder no tempo a partir de
um ponto de vista musical, enfatiza o nacionalismo e resgata um período da música francesa
que estava esquecido, tendo como cenário e fonte de inspiração um dos maiores conflitos
da história da humanidade: a Primeira Guerra Mundial.
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260 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
La formación integral del intérprete en cuerdas,
especializado en la música contemporánea
Mariela Nedyalkova
Universidad de Cuyo, Mendoza – Argentina
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 261
especializado en música contemporánea. Su virtuosismo es consecuencia del avance y la
renovación constante de las escuelas de técnica instrumental. El compositor potencia este
grado de perfeccionamiento agregando sucesivas dificultades mecánicas que sus ideas
necesitan para ser expresadas. Es una equivocación pensar que un intérprete no debe mane-
jar mas que conocimientos sobre la técnica y la mecánica de su instrumento, como también
que un buen compositor no precisa del buen manejo de un instrumento. No deberían existir
diferencias de formación en las primeras etapas para intérpretes y compositores.
En la práctica actual en muchas ocasiones al alumno se le induce a imitar la versión
del profesor, pero lo que no se hace, frecuentemente al menos, es formar el criterio del
alumno desde el indicio de los estudios formales educándolo a escuchar varias versiones
de una misma obra y mostrándole detalladamente el trabajo a realizar con la partitura para
convertirla en música. Según el español Pedro Cañada la Improvisación y la Creatividad
tendrían que ser el fundamento del Sistema Pedagógico desde la Primaria hasta terminar
el Ciclo Superior.
262 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Este planteamiento, llevado al plano de la enseñanza, ha disminuido notablemente
en los intérpretes la capacidad creativa y de improvisación. Casi todas las energías del
proceso educativo están enfocadas a la formación de instrumentistas y a su perfeccionami-
ento técnico, lo que ha llevado en muchos casos a la mecanización de la lectura, haciendo
que el alumno llega a cursos elevados sin haber comprendido realmente el significado el
mensaje musical, que interpreta y sin poder tocar su instrumento fuera del contexto de
una partitura, salvo en los casos donde la intuición lo permite. Podríamos decir que la
técnica y la expresión estética del mensaje musical han sido los pilares de la formación del
músico-interprete.
Sin embargo:
- la técnica no puede ser un fin de si misma, sino una herramienta para acceder a
la música a través del instrumento
- la expresión del mensaje musical debe basarse en un conocimiento, lo mas pro-
fundo posible, de los elementos de la partitura y no a la intuición como única quía
Por otro lado todas estas metas no podrían ser alcanzadas, al menos durante el
cursado de la carrera, sin la eliminación de algunas paradojas en los denominados Progra-
mas de Estudio. Me refiero que en ninguna de las edades del estudiante estos programas
no consideran el conocimiento del instrumento como parte de la cultura material, como
objeto artesanal, tecnológico, fruto de la creatividad y gran capacidad humana. La Estética
de la Música, la Organología y la Historia de la Luteria como saberes científicos no están
integradas al estudio instrumental. Otra paradoja es el no-estudio de la físico-acústica, el
conocimiento científico del sonido, propiedades, formas de emisión básicas en el instru-
mento, formas de expansión, propagación, reverberación en el medioambiente( acústica)
y de percepción por parte del auditor (socio acústica).
Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 263
Además, en la formación del intérprete contemporáneo interviene todo tipo de
intercambios con otras áreas de conocimiento, en particular con otras artes, ya sean me-
dios alternativos o más tradicionales. En los programas de licenciatura o de Profesorado
en instrumento rara vez aparece la materia Historia del arte y menos todavía la del Arte
Contemporáneo.
Quizá el elemento más característico de un intérprete de música contemporánea es
el trato frecuente y cercano con compositores vivos que son la fuente natural de la música
que ejecuta. Otro aspecto a fomentar seria la revisión de la bibliografía, en primer lugar de
los tratados contemporáneos a la música que interesa interpretar.
Indudablemente el desarrollo de la creatividad interpretativa debería empezar con
la iniciación al instrumento.
Como resultado de la búsqueda de un método adecuado para niños pequeños,
confiado en sus capacidades perceptivas, estimulando su creatividad y despertando su
amor hacia la interpretación correcta, recomendaría algunos métodos de enseñanza inicial
en violín y en violonchelo ( según mi criterio y experiencia son los instrumentos de cuerda
que exigen la iniciación en una edad temprana)
El método de Ljerko Spiller, Iniciación al violín en grupos, contiene importantes
logros y ofrece al principiante estudios de índole técnica por medio de canciones infantiles
y danzas argentinas. Otro pro es el agregado a la voz principal otra de acompañamiento de
modo que el alumno aprenda a adaptarse desde tierna edad a la ejecución en conjunto,
despertando su oído y sentir para la música de cámara. También es de suma importancia
la exigencia del autor que el niño cante cada canción con el texto, acompañado por el otro
violín o por el piano.
Pero en algunos casos las tonalidades de las canciones parecen ser elegidas de
acuerdo con consideraciones de índole técnica sin tomar en cuenta el registro natural de
la voz infantil.
Tampoco está presente un orden didáctico progresivo.
Queda en duda la necesidad de los ejercicios de gimnasia preparatoria y sobre
todo el extenso periodo de duración, entre 4 y 6 semanas? Suficiente para que el joven
principiante pierda el interés.
Otro punto débil de este método es el comienzo en tercera posición, sobre todo
por la inestable posición del primer dedo y el difícil control de afinación con la octava en-
tre el primer dedo y la cuerda al aire más baja, esto es posible solo si el niño tiene previa
preparación auditiva y reconocimiento de intervalos.
Además el autor usa recursos musicales fuera del alcance de la comprensión infantil,
como ritmos, armonías o contrapuntos más completos.
Mirando hacia el viejo continente podríamos señalar un método mucho más completo
y parejo, basado sobre un orden didáctico progresivo, 33 conversaciones con el joven músico,
de S. Schalmann. El autor lo determina como un complejo de lecciones que se van a desarrollar
en el término de tres años. Cada “conversación” consiste en unas cuantas tareas cuyo objetivo
es desarrollar la musicalidad, la expresión, la percepción auditiva y la habilidad motriz. El autor
está tratando de presentar el contenido al alcance del niño y sobre todo motivador y divertido.
Cada lección es acompañada por textos, que el alumno puede leer solo o con la ayuda de
sus padres. Cabe destacar el lado más valioso de este método-las cartas dirigidas al alumno,
a sus padres y al pedagogo, pero su principal punto débil es su contenido donde prevalecen
canciones de origen ruso, lo que lo hace inaplicable en el medio Nacional.
264 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
De todos modos, las conversaciones y los consejos dirigidos al pequeño violinista
son el logro más significativo del maestro de Siberia.
Otro método que tiene la modalidad de estimular la creatividad infantil es el de Eta
Cohen (Inglaterra). El método está pensado a favorecer la concentración del alumno con
juegos, integrar melodías de todo el mundo, usar desde temprano armonías, pizzicatos,
golpeteos y otros efectos, que acercan a los niños al lenguaje musical contemporáneo.
Aquí, los ejercicios de gimnasia preparatoria se realizan en forma de juego y sin
dedicar tiempo innecesario las partes del violín o como afinar las cuerdas (algo absurdo
en los primeros años del aprendizaje), ofrece al niño imitar al banjo o practicar divertidos
ejercicios de contacto imaginario con el violín y el arco. Otra exigencia muy valiosa es de
tocar todo el material de memoria (después de leerlo).
El niño se inicia simultáneamente con el estudio del violín al de la música vinculada
a ella con este método desde los ejercicios en cuerda al aire. Todas las melodías, escalas
y ejercicios, siguen un orden didáctico progresivo y sirven para despertar el amor hacia la
práctica noble, o sea el fin mismo del aprendizaje musical.
El Método CAD (Desarrollo de la habilidad creativa) de Allice Kay Kanack sostiene
que todos los niños nacen con habilidad creativa, que puede desarrollarse en un alto grado
usando la formula Libertad de elección más Practica disciplinada es igual a Habilidad crea-
tiva. Las instrucciones son presentadas en forma de juego, comparando sus reglas con las
del ejercicio.
Analizando el proceso creativo se destine el trabajo consciente, el subconsciente y
la inspiración. Se apunta a la conciencia del estudiante que no hay creatividad ni inspiración
sin practica. El CD que acompaña el método entrena el oído del estudiante en la afinación
musical y el ritmo y desarrolla su habilidad de hablar el idioma musical. El método propor-
ciona una multitud de estilos y armonías con el objetivo de de alentar nuevas ideas.
Enseñar a los niños de tocar el violonchelo de manera sencilla y lúdica y a la vez
resolver los problemas iniciales de ritmo y extensiones es el propósito del método “Vio-
lonchelo en colores” de la mexicana Pilar Gadea Lacasa. Este método está integrado por
canciones tradicionales de todo Latinoamérica, pero también contiene la letra de las mis-
mas, creadas por grandes poetas del continente. Así los niños toman contacto con el arte
de la poesía y empiezan a vivirla como una parte íntima y cotidiana. Un gran aporte a la
formación integral de los pequeños chelistas son los arreglos para ensambles de violonch-
elos que permiten desarrollar “el oído armónico” y la habilidad de tocar en conjunto, que
además es muy positivo para acostumbrarse a la poliritmia y a la polifonía y desarrollar
habilidades técnicas y motrices.
Otro de los métodos de enseñanza en violonchelo más activos, creativos, y contem-
poráneos es el de K. y D. Blackwell. Este, igual a los ya mencionados parte desde el sonido
hacia el símbolo, contiene más elementos innovadores y asigna un papel más activo al
alumno en su propio proceso de aprendizaje. Estas características junto con las aportaciones
de la tecnología, en forma de grabaciones en los métodos, favorecen una interpretación y
expresiva por parte del alumno.
No es de menor importancia la manera de presentar hasta la melodía más sencilla con
acompañamiento de piano, acostumbrando así al infante a ensamblar la afinación no temperada
de su instrumento con la temperada del piano y acostumbrar el oído la armonía.
Definitivamente cada método tiene sus “pro y sus contras” y es aquí donde entra en
juego el rol del profesor quien sabe combinar los métodos y hacer los arreglos necesarios
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según las diferencias de personalidad del alumno, su temperamento, velocidad con que
procesa la información, agudeza sensorial y capacidad motriz.
Todos los métodos mencionados más arriba ponen en relieve, la importancia de
la formación del profesorado en formas de enseñanza más activas, creativas, y contem-
poráneas.
En conclusión me gustaría reiterar que solamente un cambio cualitativo programático
de los contenidos curriculares de aprendizaje seria el soporte para la formación integral del
intérprete en cuerdas, especializado en música contemporánea.
Referencias bibliográficas
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BLACKWELL K. y D. Cello Time Runners (Volume 2°). Oxford University Press, 2002.
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COHEN, Eta. Eta Cohen’s violin method. Londres: Novello Publishing,1996.
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SHALMANN, Serguei. 33 conversaciones con el joven músico. Leningrado: Editorial Composi-
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Referencias electrónicas
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com/pdf/pedro.pdf>
<http://www.violoncellodecolores.com/menu/contnedor.html>
<www.redesmusica.org/no3>
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Anais do Simpósio Internacional de
Musiologia da UFRJ
II SIM_UFRJ 2011 - Teoria, Crítica e
Música na Atualidade
III SIM_UFRJ 2012 - Patrimônio
Musical na Atualidade: Tradição,
Memória, Discurso e Poder