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Anais do II Simpósio Internacional

de Musicologia da UFRJ
MARIA ALICE VOLPE (Org.)
Anais do II Simpósio Internacional
de Musicologia da UFRJ
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Carlos Antônio Levi da Conceição
Reitor
Antônio José Ledo da Cunha
Vice-reitor
Debora Foguel
Pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa

Centro de Letras e Artes


Flora de Paoli
Decana

Escola de Música
André Cardoso
Diretor
Marcos Nogueira
Vice-diretor

Afonso Barbosa Oliveira - Diretor Adjunto de Ensino de Graduação


Celso Ramalho - Coordenador do Curso de Licenciatura
João Vidal - Diretor Adjunto do Setor Artístico Cultural
Miriam Grosman - Diretora Adjunta dos Cursos de Extensão
Marcos Nogueira - Coordenador do Programa de Pós-graduação em Música
Maria Alice Volpe - Editora-chefe

Normalização: Maria Alice Volpe


Projeto gráfico: Márcia Carnaval
Editoração e tratamento de imagens: Patrícia Perez
Ilustração: efeito color halftone sobre reprodução de Impressão III (Concert) de W. Kandinsky, 1911.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ “Teoria, Crítica e Música na Atualidade”


Maria Alice Volpe (org.)

Conselho Editorial
André Cardoso
Diósnio Machado Neto
Elliott Antokoletz
Ilza Nogueira
Marcos Nogueira
Maria Alice Volpe
Maria Lúcia Pascoal

Copyright © 2012 by Autores


500 exemplares

Simpósio internacional de musicologia da UFRJ


Anais do II Simpósio internacional de musicologia da UFRJ Teoria, crítica e música na atualidade
Maria Alice Volpe (org.). – Rio de Janeiro : Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Música, Programa de Pós-graduação em Música, 2012 . 268 p. : il. ; 21cm.
S612a
Trabalhos originalmente apresentados no II Simpósio Internacional de Músicologia da UFRJ (2. :
15 a 17 de agosto de 2011 : Rio de Janeiro, RJ)
ISBN: 978-85-65537-02-5
1. Teoria Musical – História e crítica. 2. Musicologia – História e crítica. I. Volpe, Maria Alice, org.
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Música. Programa de Pós-graduação em
Música. III. Anais do II Simpósio internacional de musicologia da UFRJ.

CDD -780.5
Sumário
ApREsEntAção 9
Maria Alice Volpe

pREFáCio
11
Maria Alice Volpe

AgRAdECiMEntos 13

CRÍtiCA
A música como linguagem e o retorno ao social 17
Edilson Vicente de Lima e Milton Castelli

Musicologia feminista, historiografia musical e teoria compensatória


29
Diósnio Machado Neto e Leonardo Salomon Soares Tramontina

A prática interpretativa é uma arte mimética? – Acerca de mímesis e


interpretação na Teoria da Reprodução Musical de Theodor Adorno 41
Frank Michael Carlos Kuehn

tEoRiAs AnALÍtiCAs
Um estudo neo-riemanniano de dois fragmentos de música brasileira 57
Rita de Cássia Taddei e Rodolfo Coelho de Souza

A análise rítmica: uma perspectiva da percepção no contexto do século XXI


Eduardo Lopes 67

A variação progressiva aplicada na geração de ideias temáticas 79


Carlos Almada
La música de la Segunda Escuela de Viena: una lectura desde la teoría de las 91
funciones formales
Alejandro Martínez

Elementos postonales como factores de integración de estructuras modales,


tonales y postonales en la expresión estética modernista: a sonata para guitarra 103
y clavecín (1926) de Manuel Ponce
Alejandro Barceló Rodríguez

Signos da Brasilidade Modernista numa canção de Guarnieri & Mário de


Andrade: Lembranças de Losango Cáqui 129
Marcus Straubel Wolff

INSTITUIÇÕES
Os Seminários de Música da Pró-Arte de São Paulo 145
Lenita W. M. Nogueira e Lilia de Oliveira Rosa

Gênero feminino, relações afetivas e pedagogia em bandas de música


nordestinas, de 1930 a 2000 157
Marcos dos Santos Moreira

Reflexão sobre uma proposta metodológica para pesquisas de performance


musical em grupo à distância 167
Beatriz de Freitas Salles e Juliana Rocha de Faria Silva

NOVOS RUMOS
Considerações sobre fundamentos teóricos compositivos para peças
instrumentais baseadas na escuta de paisagens sonoras 179
Marcelo Villena e Roseane Yampolschi

Steve Reich e a estética minimalista


191
Ismael Lins Patriota

Considerações sobre materiais compositivos utilizados em Méditations sur les


Mystères de la Sainte Trinité de Olivier Messiaen 201
Miriam Carpinetti

PERFORMANCE E CRIAÇÃO
A contribuição entre intérprete e compositor no processo de criação de três
concertos brasileiros para percussão 215
Fernando Hashimoto

Colaboração saxofonista-compositor na criação musical mista: Plexus para sax


tenor e eletrônica, de Arturo Fuentes 223
Pedro Bittencourt
Vozes da Voz: a trajetória de Fátima Miranda
229
Wânia Mara Agostini Storolli

PERFORMANCE E ESTILO
As Bachianas Brasileiras nº6 para flauta e fagote de Heitor Villa-Lobos: alguns
239
aspectos interpretativos para o fagotista
Aloysio Fagerlande

Le Tombeau de Couperin de Maurice Ravel: música sobre música


253
Danieli Verônica Longo Benedetti

La formación integral del intérprete en cuerdas, especializado en la música


contemporánea 261
Mariela Nedyalkova
apresentação

Os Anais do Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ seguem a proposta de


coletâneas temáticas vinculadas ao evento científico de mesmo nome e tem por objetivo
publicar os trabalhos selecionados mediante submissão. Os Anais complementam a Série
Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ, dedicada aos conferencistas convidados, e
conta igualmente com a colaboração estudiosos oriundos de instituições com diversidade
geográfica, intensificando assim o diálogo entre as comunidades nacional e internacional.
O Conselho Editorial empenha-se em contribuir para a catalisação do avanço do
conhecimento científico na área e para a sistematização e aprofundamento da temática
escolhida para cada volume.

Maria Alice Volpe


Editora

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 9


PREFÁCIO

O presente volume Teoria, Crítica e Música na Atualidade oferece um amplo espectro dos
estudos recentes sobre a música do século XX em diante e favorece um diálogo frutífero entre
especialistas brasileiros e estrangeiros. A intersecção entre as teorias analíticas da música
e as teorias da crítica cultural tem catalizado importantes questionamentos da área, não
somente sobre os problemas teóricos e metodológicos das novas posturas, mas sobretudo
ao levar a um redimensionamento da própria identidade da disciplina. Busca-se refletir em
que medida as inovações da música do século XX em diante, ao trazer novas linguagens,
novas práticas composicionais e de performance e novas escutas, têm constituído locus
fundamental para novas proposições analíticas e críticas nos desenvolvimentos recentes da
musicologia, em sua ampla gama de abordagens. O tema apresentado neste volume mostra-
se ainda assaz propício à desejável aproximação da pesquisa musicológica aos processos
criativos. O debate entre os especialistas da música contemporânea busca ampliar o espaço
para as diversas tendências de análise e crítica, incentivando um encontro teórico-analítico
que norteie o impulso historiográfico futuro.
Maria Alice Volpe

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 11
AGRADECIMENTOS

Aos membros do Conselho Editorial

E aos apoios de
Faperj
Capes
CNPq

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 13


CRÍTICA

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 15


A música como linguagem e o retorno ao social

Edilson Vicente de Lima


Universidade Federal de Ouro Preto

Milton Castelli
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Ora, a prática [musical] propriamente dita, é quase uma


física acústica da produção de som. Já a prática teórica ou
teoria da prática instrumental é assunto do sentido, do
discurso, da retórica, do significado, da música como epi-
fenômeno de uma manifestação global do Homem, dos
valores heterônomos. Não é, portanto, exclusivamente
musical. (Duprat, 1991)

Erudito versus popular

Apesar do modelo de estado-nação vigente no século XIX atentar para valores da


cultura popular (seja aquela transmitida oralmente, ou a já produzida nos centros urbanos
mais desenvolvidos), incorporando-os, paulatinamente, no fazer artístico dominante, a
separação em dois campos distintos, um erudito e outro popular, persistirá como conceito
válido na classificação do campo da música durante o século XX; e pelo que percebemos,
prosseguirá no século XXI. Em nosso entender, essa divisão, mais do que um problema
relacionado com a linguagem (puramente) musical – um sistema referencial que normatiza
sua produção – reflete uma divisão que espelha opções de controle social na época e que
se estenderá para adiante: uma elite “culta” que tem conhecimentos técnicos específicos
e que pode fruir uma música mais sofisticada; e uma parte da sociedade “inculta” e impos-
sibilitada de absorver toda uma sofisticação presente na música culta, ou erudita.
Essa divisão entre cultura de elite e cultura “popular” (como doravante classifi-
caremos a produção artística ligada às tradições orais ou àquela produzida nos centros não
vinculados á opera, à música religiosa e de concerto, ligadas às classes médias e baixas),
já vinha sendo observada nos séculos precedentes. Tanto Mikhail Bakhtin (2008) quanto
Peter Burke (2010) ressaltam uma relação mais próxima (mesmo que não democrática)
entre cultura popular e cultura de elite. Será, portanto, durante o século XVIII (e inicio do
XIX), que uma divisão clara entre cultura de elite e cultura popular será operada de modo
categórico.
No Brasil, conforme observou Leoni em sua “Historiografia musical e hibridação
racial” (2011), essa divisão entre cultura de elite e cultura popular será defendida por
Manuel Araújo Porto Alegre já na primeira metade do século XIX, e norteará toda uma
discussão até o inicio do século XX. Para Leoni, foi a partir de Porto Alegre que uma clara
divisão teórica entre cultura erudita (produtora de alta cultura) e outra popular (receptora

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 17


da cultura da elite) estabeleceu-se e norteou toda uma reflexão que alcançou o século XX.
E sobre a música popular, ou seja, aquela produzida pelas classes populares, via nela uma
atitude subserviente:

O popular, principalmente o de origem negra, não influenciava a cultura, era


como se estivessem em esferas diferentes, elementos a serem modificados e
encampados posteriormente. Via em tudo sempre uma influência de cima para
baixo, rumo ao novo e, no seu entendimento, essencialmente nacional. (Leoni,
2011, p. 110)

Na fala de Leoni, era como se a cultura produzida fora do mundo da elite cultural
não pudesse exercer influências para “cima”, ou seja, na música (ou na arte em geral) eru-
dita, qual seja, a música de concerto ou a música sacra. E, mais adiante, comparando Porto
Alegre e Silvio Romero, enfatiza: “Ao contrário de Porto Alegre, Sílvio Romero não separava
as manifestações populares das que mais tarde seriam chamadas de eruditas” (Leoni, 2011,
p. 103). Mais abaixo, sempre segundo Leoni, mesmo Romero que teoriza a mestiçagem,
acabará aceitando a divisão entre “baixa” e “alta” cultura:

A vertente romântica de interpretação cultural de Porto Alegre admitia os negros


e mulatos como representantes de um estágio inicial de desenvolvimento artístico
nacional, desde que circunscritos a um modelo que o Império brasileiro já havia
superado. Sílvio Romero admitia sua presença e influência, mas com a ressalva de
que seria necessário um branqueamento para não prejudicar a evolução cultural
e racial. Ambos os movimentos, antagônicos, caminharam para uma separação
de alta e baixa cultura. (Leoni, 2011, p. 106)

Portanto, no limiar do século XXI, acreditamos que devemos não somente repensar
a divisão entre a produção popular e erudita, ainda muito enraizada em nossa sociedade
e refletindo em instituições e no fazer musical; mas também propor novos projetos so-
cioculturais que possam minimizar os efeitos dessa realidade. Neste sentido, a teoria da
hegemonia defendida por Jesús Martin-Barbero (2009), nos sugere outra orientação. Para o
autor, compartilhando com o pensamento gramsciano, uma dominação social se configura
como “uma imposição a partir do exterior e sem sujeitos, mas como um processo no qual
um classe hegemoniza, na medida em que representa interesses que também reconhecem
de alguma maneira como seus as classes subalternas.” (Martin-Barbero, 2009, p. 12)
A partir dessa leitura, é questionável a idéia de que as culturas populares seriam
passivas, diante da hegemonia da cultura erudita, pois esta “se faz e desfaz, se refaz per-
manentemente num ‘processo vivido’, feito não só de força, mas também de sentido, de
apropriação do sentido pelo poder de sedução e de cumplicidade” (Martin-Barbero, 2009,
p. 112). Desse modo, o popular configura-se “como um uso e não como uma origem,
como um fato e não como uma essência, como posição relacional e não como substância”
(Martin-Barbero, 2009, p. 113).
Outro ponto que parece legitimar nossa leitura seria teorizado por Michel Vovelle
(2004). No entendimento de Vovelle, os intermediários podem tanto ser sujeitos transver-
sais, que transitam entre o universo dos dominantes e dos dominados, possibilitando a
troca de valores culturais e minando não só a ideia de pureza da cultura oral e da cultura

18 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade


de elite; mas também as feiras e mercados, os cafés, as festas públicas, o carnaval, e até
mesmo gêneros musicais, que podem assumir um papel de intermediários, ou mediadores
culturais, recolocando a cultura popular urbana dentro de uma transversalidade dialógica
com a cultura da elite (Machado, 2010).
Neste aspecto não só temos que abandonar a postura da cultura popular como um
receptáculo passivo de valores advindos da elite; mas entendermos que a cultura popular e
a cultura de elite – tanto em seu aspecto oral como cultura já adaptada aos centros urbanos
– auto influenciam-se diretamente; e não negando uma dominação por parte daqueles que
melhor se articularam na história do capitalismo ocidental. Uma separação em campos
nitidamente delimitados no que tange à produção de bens culturais, não faz sentido, na
atualidade nem no passado remoto. E nesse sentido acreditamos que os estudos musicais
atuais não podem mais excluir essa relação, mas sim tê-la diante dos olhos e dos ouvidos,
o que em nosso modo de ver, proporcionará mais riqueza à produção de conhecimento
em nossa área.

O folclore e tutela oficial versus cultura popular urbana e as “classes perigosas”


Sobretudo pela falência do modelo iluminista emancipador a cultura popular será,
durante o século XIX, entendida como manifestação oral; tornar-se-á base para o modelo
de Estado-Nação1. É nesse sentido que os estudos folclóricos serão imprescindíveis para
a consolidação desse projeto. Segundo Rafaelle Corso, citado por Nestor Garcia Canclini,
“o trabalho folclórico é ‘um movimento de homens de elite que, através da propaganda
assídua, esforçam-se para despertar o povo e iluminá-lo em sua ‘ignorância’” (Canclini,
2008, p. 209).
Embora os “românticos” efetuem a crítica aos preceitos iluministas, em se tratando
da cultura popular, eles acabam se afinando com estes, pois, ao decidir que a especificidade
da cultura reside em sua fidelidade ao passado rural, tornam-se cegos às mudanças que a
redefinem nas sociedades industriais e urbanas. Ao atribuir-lhe uma autonomia imaginada
suprimem a possibilidade de explicar o popular pelas interações que tem com a nova cultura
hegemônica. O povo é ‘resgatado’, mas não conhecido (Canclini, 2008, p. 210). E é nesse
sentido que o popular/folclórico terá de ser “tutelado”; pois de outro modo, o modelo de
estado novecentista perderia seu sentido.
Por outro lado, numa visão tradicionalista, a cultura popular produzida nos cen-
tros urbanos tenderá a ser diminuída, pois já nasceriam “contaminadas” pelo processo
de produção do mercado. Dentro dessa leitura, a cultura da classe média e, sobretudo, a
do trabalhador urbano, serão desvalorizadas; e é justamente por este motivo, que Renato
Ortiz afirma que a cultura das “classes perigosas” (o proletariado urbano) será alijada do
processo de construção do Estado-Nação (Ortiz, 1992. p. 35).
Nessa perspectiva de uma visão tradicionalista, consolidar-se-á uma tríplice divisão:
a cultura popular oral (original, essencial e pura), a cultura popular urbana considerada
mediana, e uma cultura de elite, entendida como alta cultura. Para a concepção nacionalista
vigente na época, as manifestações orais deveriam tornar-se base para a cultura musical
erudita e assim, elevadas a alta cultura; enquanto aquelas não orais permaneciam como
“semicultura”, como classificou Mário de Andrade (1980[1930]) ou “ligeira”, nas palavras

1
Para uma discussão mais aprofundada, consultar: Martin-Barbero (2009); Canclini (2008) e Ortiz
(1992).

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 19
de Theodoro Adorno (1996, p. 66). Nesse sentido, a divisão configurada antes do século XIX
por Araújo Porto Alegre, permanece vigente. Mais uma vez, enfatizamos, o entendimento
da cultura como processo hegemônico, onde a dominação não prescinde de interação,
como defendido acima, pode nos ajudar a minimizar esse “gap”.

O silêncio das vanguardas e divórcio com relação às medias


Durante o século XX, mais enfaticamente no período entre guerras, o advento do
que se convencionou denominar indústria cultural, acentuou a separação entre a música de
vanguarda e a produção vinculada ao mercado de bens culturais. A crítica dos intelectuais
de esquerda, sobretudo aqueles associados à escola de Frankfurt, era dupla: de um lado
eles atacavam a produção musical “culta” conservadora, centrada na música tonal e no ideal
romântico (burguês) advindos do século XIX e que persistiam no XX; de outro, o modo como
a música se associava ao mercado musical (publicação de partituras, long plays, concertos)
adentrando a lógica de entretenimento associada ao modelo capitalista.
Deste modo, alguns artistas sustentaram uma dupla tarefa em sua resistência anti-
capitalista: uma, combater a lógica do mercado negando o tonalismo, já que este se tornou,
de acordo com leituras frankfurtianas, o sistema musical da burguesia por excelência; outra,
combater a indústria cultural, ou seja, a lógica da produção capitalista aplicada à produção
artística. Desta forma, sua “ruptura” não só se daria em sentido estético, em uma tentativa
de superação dos pressupostos artísticos românticos; como também no social, negando-se
a contribuir para a perversidade capitalista e seu controle desvairado no que acreditavam
ser uma das últimas instâncias da liberdade humana: a arte. Nesse sentido, a postura de
Adorno foi emblemática e, segundo a leitura de Fubini,

en la sociedad capitalista avanzada, la única vía de supervivencia de que dispone


la música, aunque sea precaria para ella, consiste en ser la antítesis de la sociedad,
conservando así “su verdad social gracias al aislamiento”. (Fubini, 2001, p. 150)

De qualquer modo, cabe frisar que o sistema tonal não foi somente a linguagem
da elite cortesã e burguesa dos séculos XVIII até o século XX; foi também o sistema que
possibilitou aos habitantes das zonas rurais e trabalhadores urbanos ligados à primeira
e segunda revolução industrial a produzirem suas manifestações musicais durante esse
período. Deste modo, não só óperas e concertos utilizam a linguagem tonal, mas também
uma parte das canções folclóricas e as músicas produzidas pela classe média e proletari-
ados urbanos. Assim, reconhecer-se na linguagem tonal representa algo mais do que ap-
enas comungar de valores burgueses; mas também partilhar um modo de expressividade
– que embora esteja também diretamente ligado aos valores burgueses – servirá como
meio (media) para a expressividade de outros sujeitos sociais: cultura oral, classes médias
urbanas, proletariado etc.
É evidente que não pretendemos com esta pequena comunicação discutir onde
Adorno tem ou não razão em sua crítica à indústria cultura; de certo modo comungamos
com a leitura de que o sistema capitalista tende a transformar tudo em mercadoria e,
nesse sentido, a obra de arte, e em nosso caso a música, não escapa a essa lógica. Mas o
que interessa para nós é frisar que nessa visão, a música “contemporânea”, nesse caso a
música de Schoenberg e pós weberniana, ao estruturar-se em outro sistema referencial
discursivo, o dodecafonismo e outros sistemas referenciais, acaba não somente negando

20 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade


o sistema tonal tradicional; mas afastando-se tanto do gosto burguês calcado na música de
concerto e a ópera tradicionais, como da linguagem tonal, que serviu de veículo também
para música das classes populares em época coeva.
Uma atitude combativa nesse momento passava tanto pela pesquisa de novas
linguagens que pudessem estruturar o discurso musical; como por uma negação de todo
aparato de produção. Mas, passados os anos de pós-guerra, e adentrado o terceiro milênio,
necessitamos reavaliar nossas posturas e buscar outros modos de dialogar com o público;
sobretudo aquele não especializado. De outro modo, cairemos não somente no ostracismo;
mas no esquecimento.
Ao acompanhar a trajetória de Adorno verificaremos que mais adiante, ao propor
o conceito de “audição consciente e estrutural”, ele procura minimizar os efeitos do que
considera a “regressão da audição” planificada, principalmente, pelos meios como o rádio e
o cinema. E para alcançar este fim (uma audição comprometida com a obra e a sociedade)
vai procurar os meios massivos, como o programa que desenvolveu no rádio no final da
década de 1930 e inicio de 1940 (Fubini, 2001). Adorno, também tocara num ponto central
para a superação de uma escuta “alienada”: o tecnicismo ligado à formação de uma escuta
tradicional, descartando o que denominou “apreciação” (uma escuta abstrata, superficial e
genérica) por “compreensão”, entendida como uma escuta consciente da estrutura sonora
e sua relação com o momento histórico, individualizando-a como obra; e sempre nas pala-
vras de Fubini (2001, p. 153-156). De qualquer modo, essa atitude crítica – não sem razões,
diga-se de passagem – abriu uma “gap” entre público (tradicional) e música de vanguarda,
e suas consequências são ainda hoje enfaticamente sentidas.
A postura de Adorno, em que pese a profundidade de suas discussões, não deixa
margem alguma para uma recuperação do diálogo entre arte e os meios massivos, pois, ao
tematizar o divórcio da arte com os meios técnicos de produção, deixa pouco espaço para
os possíveis encontros, entendendo-se estes como uma arte reconciliadora, como pastiche,
“essa mistura de sentimento e vulgaridade, esse elemento plebeu que a verdadeira arte
abomina” (Martin-Barbero, 2009, p. 78). E nesse sentido, “a crítica de Adorno [...] cheira
demais a um aristocratismo cultural que se nega a aceitar a existência de uma pluralidade
de experiências estéticas, uma pluralidade dos modos de fazer e usar socialmente arte”
(Martin-Barbero, 2009, p. 78). E mais abaixo, o mesmo autor enfatiza: “Lastimável que uma
concepção radicalmente pura e elevada da arte deva, para formular-se, rebaixar todas as
outras formas possíveis até o sarcasmo e fazer do sentimento um torpe e sinistro aliado da
vulgaridade” (Martin-Barbero, 2009, p. 79).
Ao contrário de Adorno, Walter Benjamin, sobretudo em seu texto A obra de arte
na época de sua reprodutibilidade técnica, publicado em 1936 (apud Costa Lima, 2000, p.
217), aponta para outra relação entre arte, sociedade e meios tecnicisados. Benjamin, ao
invés de centrar sua análise na obra, elege a experiência. Esta, por sua vez, múltipla e sem
centro, lhe possibilita enxergar de modo diverso a relação entre história, massa, técnicas
(Martin-Barbero, 2009, p. 80) e consequentemente, a arte.
Outro ponto de sua crítica seria seu entendimento da concepção de “aura”. Se para
Adorno a perda da aura representava a banalização da arte e sua desvalorização como obra
única; para Benjamin,

A morte da aura na obra de arte fala não tanto da arte quanto dessa nova per-
cepção que, rompendo o invólucro, o halo, o brilho das coisas, põe os homens,

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 21


qualquer homem, o homem de massa, em posição de usá-la e gozá-la. Antes,
para a maioria dos homens, as coisas, e não só as de arte, por próximas que
estivessem, ficavam sempre longe, porque um modo de relação social lhes fazia
parecer distantes. (Martin-Barbero, 2009, p. 82)

Mas como discute Martin-Barbero mais adiante, Benjamin não se ilude com tecnolo-
gia, considerando que esta poderá vir a salvar os trabalhadores. Mas observa que uma nova
sensibilidade de fruir a arte, um novo modo de percepção, está sendo desenvolvido a partir
dos novos modos de produzir arte. Mas o que mais nos interessa, seria o reconhecimento
dos múltiplos sujeitos sociais que podem compartilhar a experiência da obra de arte dentro
de espaços coletivos, a cidade, e os “sentidos” que daí possam advir. Claro, uma atitude
de resistência, ou desalienada, não será imposta pelo Estado controlador, sobretudo nos
primeiros 45 anos do século XX. Porém, em Benjamin, há a esperança de que na multidão,
nos bares e cafés esfumaçados, nos cinemas ou na fotografia (e em nosso caso no youtube),
alguns “desesperados” tenham a possibilidade de experimentar um modo de fruir a arte
que não seja apenas aquele burguês: individualista; hierárquico.

A música como linguagem e o retorno ao social


Uma questão que merece ser revisitada é o tratamento da música como linguagem.
Em nosso entender, a linguagem está sempre vinculada a uma dimensão histórico-sócio-
cultural. Com isso queremos destacar que o plano da sintaxe e da morfologia, tão caros
à analise de qualquer língua, sempre serão redimensionados pela sua inserção em uma
momento histórico, por sua relação com os sujeitos sociais que com ela compartilham
e pelos valores (sentidos) erigidos e compartilhados por aqueles que condividem uma
experiência comum, ou seja, pela cultura. Neste caso, o que nos interessa é que a música,
tal e qual outras artes, configura-se como uma discurso, ou seja, “uma língua vista como
uma manifestação, envolvendo sujeitos que falam e escrevem e, portanto, também e pelo
menos parcialmente, leitores e ouvintes” (Eagleton, 2003, 173).
Embora a citação acima se refira a linguagem falada, vários pontos interessa
para nós músicos, sobretudo o aspecto performático do discurso (sua manifestação)
envolvendo sujeitos que participam, social e historicamente, desse processo. Isso, a nosso
ver, coloca o discurso dentro de um campo de batalha, já que os “sujeitos” envolvidos
dentro do processo discursivo pertencem a alguma classe social ou a diversas classes
sociais. Portanto, mais do que buscar leis que governam uma determinada obra, ou seja,
sua sintaxe ou morfologia como uma poética ou nas palavras de Joseph Kerman (1987),
quais são os mecanismos que fazem a obra funcionar, acreditamos que devemos entendê-
lo dentro de uma processo histórico social.
No campo da música, em especial na disciplina Análise Musical e na teoria como
um todo, a busca por modelos estáveis que possam explicar a obra através de modelos
analíticos estruturais, tem sido uma constante. E de certo modo, isso foi possível, pelos
menos até o alvorecer do século XX, por causa dos sistemas que vigeram na música
ocidental, tais como o modalismo e o tonalismo, e que serviram de princípio unificador
à música ocidental durante um período de tempo. Evidentemente uma reflexão de como
surgiram e se consumaram pode colocar melhor a discussão dentro de parâmetros menos
rígidos. Porém, uma guinada nesta direção fugiria do escopo desse texto.
Em todo caso, em se tratando de música modal, tonal e até mesmo serial, uma

22 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade


análise que dê conta da base estrutural desses sistemas referenciais pode ser mais
acessível. Mesmo assim, se acompanharmos a história desses sistemas de referência,
veremos o quanto eles foram se transformando, mesmo que vagarosamente, durante sua
vigência como sistemas hegemônicos. E que essas transformações partiram do uso social
e da possibilidade de significados para determinadas classes sociais em épocas específicas.
Mas na música contemporânea, mais do que um sistema estável, o compositor partiu de
uma “vocação ontológica” de uma determinada poética (Duprat, 2005, p. 6). Ou seja, ele
partiu do potencial significativo de determinada organização sonora e seu potencial de
ser erigido como obra. E, no caso da música pós-werberiana, devemos falar de poéticas,
já que cada compositor, ou grupo, liberou-se para o exercício da criação de seu próprio
sistema composicional. E nesse sentido, também nas palavras de Duprat (2005), a análise,
se manifesta no “varejo” e não mais no atacado. Tampouco, estamos defendendo a ideia de
que a Análise Musical seja uma disciplina dispensável na formação do músico. Acreditamos
apenas que a análise estrutural, não dá conta inteiramente da gama de significados que a
música pode assumir na sociedade. E para que a música erudita, seja do passado ou atual,
recupere seu diálogo com o público, faz-se necessária uma abertura dos significados que a
obra musical possa assumir no mundo da vida.
Nesse sentido, o que queremos discutir é que a música, ainda que calcada numa
dimensão estrutural subjacente mais estável (como em qualquer linguagem/discurso),
não prescinde de uma dimensão polissêmica ligada não só aos sujeitos que a produziram,
detentores de um conhecimento especializado; mas também à recepção e sua pluralidade
sociocultural, relacionada, certamente, com fatores históricos e socioculturais. Dessa
forma, a obra musical, tal e qual qualquer linguagem, só faz sentido no mundo da vida!
Consequentemente, a luta por um modelo interpretativo hegemônico estável, configura-
se como ideologia, ou seja: um modo de controlar a interpretação/recepção, dando a esta
uma dimensão estática (portanto metafísica por parte de um grupo). Consequentemente
cairíamos dentro de um modelo contratual clássico iluminista da linguagem associada ao
individualismo burguês, ou seja, a linguagem seria “apenas uma espécie de instrumento
que indivíduos [...] usam para trocar suas experiências pré-linguísticas” (Eagleton, 2003, p.
173). Portanto, “se eu tinha um conceito, fixava-lhe um signo verbal e oferecia-o a alguma
outra pessoa” (Eagleton, 2003, p. 173), também detentora de uma ideal capacidade de
análise. Assim sendo, o aprendizado deve seguir uma proposta muito clara do que seja
válido ou não; tem o sentido de uma aquisição tecnicista.
E como afirma Giovanni Piana:

Agora, muito embora uma atitude formalista possa parecer inicialmente longe
de relacionar a música com o inefável nesta acepção que foi ressaltada, todavia
existe certamente um caminho que leva de um pólo para o outro, estabelecendo
entre eles uma espécie de solidariedade peculiar. Talvez, expressando-nos
mais exatamente, poderíamos dizer que, quanto mais se exaspera o tema da
objetividade e da sintaxe, e quanto mais se ressalta a essência da obra como
um ser que de per si está separado de qualquer ligação com o mundo, tanto
mais nitidamente a impostação do problema tende a uma inversão total tão
logo se apresenta de novo a pretensão da expressão. Na música não há espaço
para tralalá de ninar. Mas tampouco fala de coisas grandes. Ela fala de nada,
ou simplesmente não fala. Mesmo assim, nestas negações existe a afirmação

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 23


de todas as coisas extremamente grandes que ela faz transparecer justamente
neste seu não-falar. A ausência de sentido deve ter como contrapeso o excesso
de sentido. (Piana, 2001, p. 307)

Para Piana, talvez a “ausência de sentido” (o inefável) a que se referiu acima, seria
quando falta a palavra no ato da significação (Piana, 2001, p. 306). Mas isso não quer
dizer que não haja significação; ao contrário, há na verdade um excesso de sentido. E
esse excesso de sentido deve ser lido, também, como uma abertura de possibilidades,
dimensionadas histórica, social e culturalmente, ou seja, em sentido ontológico. E aqui
cabe, com certeza, a leitura efetuada por Duprat do conceito de intertextualidade inerente
ao discurso defendido por Eliseo Veron: “a noção de discurso é inseparável de um conjunto
de elementos extratextuais” e que “não se pode descrever o processo de produção de
um discurso” sem relacioná-lo “com um conjunto de hipóteses referentes a elementos
extratextuais.” (Duprat, 2005, p. 12). Sobretudo porque vige em todo discurso (o ato de a
consumação da linguagem), do qual a música não é exceção, o que Veron, nas palavras de
Duprat, caracterizou como “discursos ocultos”, ou seja, uma “profunda intertextualidade
que nunca chega a atingir a consumação social dos discursos” (Duprat, 2005, p. 13).
Mais adiante, embora Piana esteja se referindo também ao universo do “jogo” do
movimento sonoro2, e como esse movimento pode nos direcionar e dar “sentido” à nossa
escuta, a citação abaixo soa certamente como arremate:

Se é possível levantar uma problemática de sentido com relação à música, ela não
implica a sua suposta natureza linguística, mas sim a forma em que acontece o
encontro entre a imaginação e o universo dos sons. (Piana, 2001, p. 321)

Porém, não obstante a Análise Musical passe por postura culturalista, crítica e
histórico-fenomenolígica, as posturas organicistas, formalistas e estruturalistas têm sido
muito fortes (Duprat, 2005). Essas três últimas posturas buscam explicar como a obra
musical se constitui a partir de suas relações internas, reputando que só o entendimento
desse funcionamento, ou seja, “o que faz as composições ‘funcionarem’” (Kerman, 1987, p.
77), pode levar o ouvinte a um entendimento da obra, e que este (o entendimento de seu
funcionamento interno) produziria um elo comunicacional entre ouvinte e obra. E dentro
dessa perspectiva, gostaríamos de repetir parte da epígrafe que encabeça esse texto: a
música, para nós, “é assunto do sentido, do discurso, da retórica, do significado, da música
como epifenômeno de uma manifestação global do Homem, dos valores heterônomos.
Não é, portanto, exclusivamente musical.” (Duprat, 2005).
E dentro dessa leitura, já não podemos mais crer na posse exclusiva de recursos
tecnológicos (Duprat, 2005, p. 12); portanto, não podemos crer na posse exclusiva da
interpretação; ou, se quisermos, dos modelos analíticos.

2
O sentido em que Piana dá ao jogo, lembra-nos a concepção desenvolvida que Hans-Georg Gada-
mer em seu livro A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa (1985). Porém, acredita-
mos que essa comunicação não seja o lugar de aprofundarmos essa relação.

24 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Conclusão
No primeiro segmento deste texto, buscamos recompor como o popular e o erudito
são tomados como manifestações distintas já na primeira metade do século XIX, e neste
sentido os escritos de Manuel Araújo Porto Alegre (Leoni, 2011) aparecem como um marco,
norteando as discussões posteriores. Segundo Leoni, Araújo encarava a cultura popular
como um receptáculo passivo dos valores da “alta” cultura; e esta ideia continuará vigente
em alguns autores acentuando a divisão entre cultura popular e cultura erudita.
Do ponto de vista histórico, ao trabalharmos com a teoria da mediação cultural
(Machado, 2010; Vovelle, 2004) constatamos que valores de diversas classes sociais foram
trocados, não sem conflitos, obviamente. Nesse sentido, por mais que haja uma tentativa
de imposição por parte de uma classe hegemônica sobre as demais, as classes dominantes
sempre acabam absorvendo valores das classes dominadas.
É evidente que não queremos com essa pequena conclusão minimizar conflitos
sociais; mas evidenciar trocas interculturais entre classes e que o estudo de certas mani-
festações advindas de classes populares ou do que convencionamos denominar música
erudita, sempre podem conter valores comuns que concorrem ora de “cima” para baixo,
ora de “baixo” para cima. De qualquer modo, este aspecto também não deve tornar-se
uma camisa de força; um dogma. Mas estamos apenas tentando enfatizar que é possível
construir modelos analíticos do ponto de vista histórico onde esses dois mundos, o erudito
e o popular, não estejam tão separados, pelo menos na produção de bens culturais.
Outro fato, o reconhecimento das manifestações orais já no final do século XIX como
base de modelos nacionalistas e a ênfase em seus traços mestiços, também não configurou
uma inclusão das classes populares no processo de produção do conhecimento. Também
a produção popular praticada nos centros urbanos, numa visão tradicional, acaba sendo
tratada como manifestação que deve ser olhada com desconfiança, pois já nasciam con-
taminadas pelo modo de produção voltado para o mercado e, nesse sentido, com menos
valor artístico e com sua “autenticidade” comprometida.
Foi nesse sentido que destacamos que teremos uma tríplice divisão operando na
primeira metade do século XX: uma cultura popular de tradição oral, outra urbana, e uma ter-
ceira, cultura de elite (erudita). É justamente essa divisão, pelo menos no campo da produção
de conhecimento, que acredito que devemos repensar nesse princípio de século XXI.
Já o tratamento da música como linguagem, em nossa leitura, deve incorporar
sempre questões sociais e não ser tratada como uma aquisição de conhecimento técnico
que possibilite uma leitura específica (controlada). Foi nesse sentido que destacamos que a
obra musical, ao se consumar como um discurso deve levar em consideração não somente
seus pressupostos composicionais; mas seu potencial de produzir “sentidos” como destacou
Piana (2001). E esses sentidos estão seguramente relacionados com certa “intertextualidade”
inerente a qualquer discurso. Este, ao exteriorizar a obra, e ao “acontecer” no mundo real (o
mundo da vida) vai relacionar-se, seguramente, com a riqueza, ou conflitos, socioculturais
que implicam, também, elementos “extratextuais”, ou os discursos ocultos, como defendeu
Duprat (2005), e em nosso caso, extra-musicais.
Portanto a disciplina Análise Música deve, em nosso entender, ser pensada não
somente como competência técnica, mas como busca de dar sentido à música. E nesse
caso, as análises estruturais – levando em conta que houve uma liberação de sistemas de
referências e, por conseguinte, modelos analíticos – devem ser encaradas como um modo,
uma possibilidade de compreender a obra musical. Esta, a obra, que se realiza no discurso

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 25


e como discurso, deve carregar consigo a possibilidade de suscitar sentidos e estes, a nosso
ver, devem relacionar-se com a riqueza sociocultural e suas possibilidades de leitura; mesmo
que estas, algumas vezes, sejam elaboradas a partir da convivência com outras artes e outros
discursos e possam contradizer as intenções do analista e/ou compositor.
É nesse sentido que concebemos a linguagem: dentro de uma dimensão histórico-
socio-cultural, onde diversos grupos, ou sujeitos sociais, condividem não apenas tempo e
espaço, mas formas de compreensão que possibilitam interpretações, muitas vezes, que
nunca passariam por nossas cabeças. Assim sendo, a reprodutibilidade técnica, nem sempre
pode representar uma camisa de força, sobretudo porque os “usos” e os “sentidos”, e em
nosso caso específico as escutas e os sentidos daí advindos, podem -- não que sejam -- ser
diferentes; e não o mero “retorno do mesmo”.

Referências bibliográficas
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26 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade


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Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 27


Musicologia feminista, historiografia musical
e teoria compensatória

Diósnio Machado Neto


Universidade de São Paulo – Ribeirão Preto

Leonardo Salomon Soares Tramontina


Universidade de São Paulo

Sob influência teórico-metodológica de algumas linhas feministas provenientes,


sobretudo, da crítica literária e dos estudos de alteridade, alguns autores da chamada New
Musicology propuseram abordagens analíticas que almejavam inserir a mulher no corpus
intelectual e bibliográfico da Academia e na disciplina de História da Música. A partir deste
contexto, o objetivo do presente artigo é descrever como este movimento dialogou com a
crítica de cunho feminista e, sobretudo, demonstrar como tal contato refletiu-se em três
das mais utilizadas didáticas de História da Música norte-americanas. Em resumo, serão
deslindadas as estratégias de apropriação do pensamento feminista pela musicologia de
língua inglesa pós-1980 e, outrossim, analisadas como elas foram incluídas (e adaptadas)
pelos seguintes textbooks:

(1) Music in Western Civilization, de Craig Wright e Bryan Simms


(2) A History of Music in Western Culture, de Mark Evan Bonds
(3) A History of Western Music, de J. Peter Burkholder, Donald J. Grout e Claude V. Palisca

Esses compêndios, acompanhados por (a) antologia de partituras (referentes às


obras analisadas no texto), (b) CDs (contendo gravações destes exemplos), (c) sítios inte-
rativos na Internet e (d) livros de apoio ao aluno (exercícios) e (e) ao docente (contendo
estratégias pedagógicas, bibliografia complementar e sugestões de aulas e testes), são
representativos tanto de um modelo de escrita de História da Música bastante difundido na
graduação norte-americana (cujos paradigmas serão abordados) quanto do próprio ambiente
de produção e de consumo (e, consequentemente, de ensino) musicais naquele país, que
tende a privilegiar a prática instrumental. Assim como a Musicologia anterior à década de
1980, tal privilégio parece ser determinante na definição do modo como as narrativas aqui
analisadas apropriam-se dos discursos do feminino.
Contudo, um estudo que se propõe deslindar as relações da crítica feminista com
a musicologia e a escrita de Antologias de História da Música deve contemplar, antes de
se aventurar pelas comparações e análises críticas, seus respectivos contextos, bem como
as decorrentes especificidades na formação de seus pressupostos e de suas práticas, so-
bretudo aquelas responsáveis por moldar o contato entre estas três áreas. Portanto, antes
de proceder tal análise, serão abordadas (1) as principais linhas de pensamento que têm
dominado, desde o século XIX, as narrativas e a metodologias dos livros e compêndios de

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 29


História da Música e que têm, neste processo, definido e sido definidas pelas práticas de
canonização, bem como a (2) reflexão hermenêutica que a denominada New Musicology
propôs acerca de tais processos buscando, dentre outras coisas, inserir a mulher nos dis-
cursos de pesquisa e escrita musicológicos por meio, sobretudo, do contato com algumas
teorias da crítica feminista.

I
Em relação às principais linhas de pensamento que têm dominado, desde o que
se costuma chamar de período romântico, a escrita e a metodologia dos livros de História
da Música e que têm, também, definido as práticas de canonização, quatro se destacam: a
Teoria do Grande Homem, a Teoria do Desenvolvimento Orgânico, o pensamento estético
de Kant e Hegel, e a filosofia idealista alemã.
Fruto do novo status atribuído aos compositores e do interesse pela música do
passado ainda em findo século XVIII, a primeira linha norteadora da escrita da História
da Música, denominada pelo musicólogo Warren Dwight Allen (1962, p. 86-91) “Teoria
do Grande Homem”, consiste na atribuição de um caráter quase religioso ao artista, con-
siderando-o um ente agraciado com um espírito genial cujo poder criativo não é produto
do seu intelecto, senão de uma revelação quase sobrenatural. Ainda que parte do ofício
artístico, a labuta e a elucubração diuturnas não bastam, segundo esta teoria, para alcançar
a excelência e produzir grande arte, mas apenas para desenvolver as potencialidades natas
que, no momento oportuno, serão reveladas.
Deveras diferente, pois, do conceito racionalista do músico como inventor que
intenta dominar, por meio de seu raciocínio, a arte da composição, este ideário enaltece
a figura do artista como um herói da História, um modelo ideal, absoluto e, por isso, inde-
pendente dos eventos temporais.
Não por acaso, é sob esta égide que recrudesce o gênero de escrita no qual a bio-
grafia de “grandes personagens” é elemento clave na construção das Historias da Música.
Assim como a História sociopolítica, a música no ocidente teve seus heróis e desbravado-
res. Concomitantemente, alguns autores passaram a defender, outrossim, a ideia de que a
genialidade e as contribuições dos biografados só seriam corretamente contempladas se
acompanhadas de uma análise estilístico-formal de suas obras.
Já a “Teoria do Desenvolvimento Orgânico” (Allen, 1962, p. 91-7), diferentemente,
propõe uma filosofia da História capaz de compreender o sujeito como um todo em suas
relações com o universal, não enquanto figura individual. A música, sob esta premissa, é
um saber cujo conhecimento representa o eixo da cultura moral humana e que, quando
dominado, conduz ao pleno entendimento do mundo. Em outras palavras, é um meio
expressivo que pode conduzir o homem, enquanto ente coletivo, à maturidade e à trans-
cendência, numa ideia de progresso contínuo. Neste âmbito, a História é compreendida
como avanço da consciência e do espírito do homem ou, nas palavras de Hegel, uma “fuga
musical, na qual, na direção do mundo, se sucedem os povos que por sua vez propõem os
temas dominantes” (apud Bodei, 2001, p. 45).
É a partir destes paradigmas que a Filosofia e a História começam a fazer uso de me-
todologias comparativas baseadas em premissas analógicas que, no intuito de corroborarem
suas “verdades”, traçam paralelos com outras áreas do saber. Como parte deste processo,

30 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade


a música, em sua temporalidade, passa a ser fragmentada em diferentes fases evolutivas1.
Sob esta égide, destaca-se a explicação orgânica dos eventos e características mu-
sicais a partir da ideia de progresso contínuo, onde se destaca, no século XIX, o papel das
ciências biológicas, especialmente das teorias de Charles Darwin2 e de Herbert Spencer3.
Conforme Ruth Solie (1982, p. 297-308) e Warren Allen (1962), a obra de ambos os cien-
tistas tiveram mais relevância na construção da historiografia musical da época do que o
próprio pensamento historiográfico proveniente das áreas humanas ou da filosofia. Como
reflexo disso, não raro os textbooks da disciplina trazem, em seus títulos, subtítulos e na
organização da própria narrativa, termos e conceitos oriundos do pensamento darwinista
e, sobretudo, spenceriano (“progresso” e “evolução”, etc.).
A ideia de progresso orgânico da História, segundo a qual os estilos, técnicas, gê-
neros e formas musicais “aprimoram-se”, “desenvolvem-se” ou “crescem” 4 no decorrer
das gerações, que tem servido de modelo na elaboração de textbooks desde John Hawkins
(1719-1789), Charles Burney (1726-1814), Nikolaus Forkel (1749-1818), Raphael Georg
Kiesewetter (1773-1850) e François-Joseph Fètis (1784-1871), parece encontrar, pois, nas
teorias biológicas do século XIX, sua legitimação.
Soma-se a isso um importante dado: a conciliação de aspectos de ambas as te-
orias (do Grande Homem e do Desenvolvimento Orgânico) como parte do processo de
sistematização dos materiais didáticos para uso nas recém-criadas instituições de ensino
musicais. Desde então, este modelo5 tem moldado, grosso modo, as antologias de História
da Música6.
Junto às duas teorias supracitadas, há que mencionar, também, os debates filosóficos
a respeito da natureza da música que, além de perpassarem a teoria estética relacionada
às artes, foi substancialmente relevante para o pensamento do período. Sobressaem, aqui,
dois articuladores: (a) Immanuel Kant, que propõe o conceito de “julgamento estético

1
O próprio Hegel, por exemplo, considera a História em cinco fases: a infância (representada pelo
Oriente), a juventude (pela Ásia), a adolescência (a Grécia Antiga), o império romano representaria
a idade adulta; e, como ponto culminante da maturidade, estaria a Alemanha do século XIX. No
contexto propriamente musical, igualmente, há diversos exemplos de Histórias da Música que
fragmentam seus conteúdos nos mais variegados padrões de separação e de analogias. Grosso
modo, contudo, eles se dividem em dois grupos opostos: os progressistas, para os quais a música
contemporânea representa o ápice evolutivo e os tradicionalistas, que admiram o passado. Para
mais detalhes sobre os diversos modelos vide Allen, 1962.
2
Para o qual, grosso modo, o velho (que não se adaptava às mudanças) era substituído pelo novo.
3
Cuja teoria definia o processo evolutivo do simples e homogêneo para o complexo e heterogêneo.
4
E, em alguns casos, involuem.
5
Que, na sua concepção inicial, visava conciliar o foco na excelência nata dos grandes mestres – algo
deveras desestimulante para o jovem estudante – com o conceito de que a música aperfeiçoava-se
de modo natural, como um organismo.
6
De fato, as didáticas estudadas utilizam-no explicitamente ao traçar, por exemplo, o
“desenvolvimento” do organum, inicialmente, exclusivamente paralelo, posteriormente, paralelo
com dobramento de 5as e 8vas, organum misto oblíquo e paralelo, organum livre, o discantus da
polifonia de Aquitaine, a escola de Notre Dame e a introdução dos modos rítmicos e de até quatro
vozes.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 31
desinteressado”7, segundo o qual uma verdadeira análise da sensibilidade deve ser des-
provida de pré-expectativas, separada do entendimento de suas contingências permitindo,
assim, ignorar os contextos, circunstâncias e credos que poderiam influenciar a percepção
do objeto (Beard e Gloag, 2005, p. 6), e (b) Hegel que, norteado por Kant, trata a música
como entidade autossuficiente e autônoma. A relevância de ambos para a música reside no
fato de que a contextualização de ordem temporal ou cultural é, neste caso, não somente
prescindível como desaconselhável, quer seja por interferir no ‘real julgamento’ ou por
retirar sua independência.
Com a articulação, por vários autores e, sobretudo, por Edward Hanslick, do modelo
de autonomia de Kant e Hegel, priorizou-se o material musical e a música puramente instru-
mental em detrimento de considerações outras. E, como elemento legitimador do caráter
independente, a-cultural e atemporal da obra de arte, bem como da coerência de seus
elementos internos enquanto balizadores da valoração estética, recrudesce a importância
da teoria musical e da análise formalista para a História da Música.
Permeando este conjunto de ideias e contribuindo, assim, na consubstanciação
dos princípios norteadores da historiografia musical, destaca-se um quarto elemento
conceitual: o Idealismo, vertente estético-filosófica que dominou o pensamento artístico
(e musical) alemão a partir do inicio do século XIX. Partindo das definições do musicólogo
Mark Evan Bonds (2006, p. 6-28) acerca do mesmo, ele parece reunir elementos relevantes
das correntes supracitadas: as ponderações acerca (a) do papel do artista individual como
agente mediador entre o divino e o terrestre (presente na Teoria do Grande Homem); (b) a
atribuição da música como meio redentor, num contexto onde o espírito tem primazia sobre
a matéria (Teoria do Desenvolvimento Orgânico); e (c) na valorização do caráter autocontido
e independente da obra de arte, bem como da imperativa coerência de seus elementos
internos (Kant e Hegel). Nas palavras de Bonds: “A música ocupa o mundo separado dos
ideais, independente dos objetos e emoções mundanos, e tem o poder de nos elevar a
regiões acima das considerações cotidianas” (Bonds, 2006, p. 23).
Em resumo, somados ao culto romântico à personalidade, a construção dos pa-
radigmas da historiografia musical tem se pautado pelas teorias evolutivas, pela tradição
estética kantiana – onde o julgamento de uma obra deve ser calçado em sua estrutura e
finalidade formais, e pelas relações hegelianas entre música e história, esta como elemento
comprobatório da ação criativa do homem e possível fonte da verdade; aquela como ente
independente e separado das vicissitudes mundanas.

ii
É, pois, neste contexto de ideias onde a Musicologia surge como disciplina científica
nos moldes que se conhece atualmente e que se definem suas subáreas de pesquisa. É
quando, também, ela passa a se confundir com a própria definição de História da Música
(Kerman, 1982).
Para Alastair Williams (2007, p. 1), foi Guido Adler, sob influência do pensamento
epistemológico positivista das ciências sociais e da filologia literária, o principal responsável
por codificar os campos do estudo musical e organizar seus conteúdos e métodos, separando
o que denominou Musikwissenschaft (tradicionalmente traduzido por Musicologia) em dois

7
Kant denomina “Estética Transcendental” (Mora, 2001, p. 231).

32 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
campos, o Sistemático, que aborda questões ‘não históricas’ em sua natureza e abrange
matérias de cunho tradicionalmente mais teórico, e o campo Histórico, que trata da música
organizada em épocas, pessoas, impérios, localidades, escolas e artistas individuais (Duckles
e Pasler, 2001, p. 490-1) e pressupõe como objeto de pesquisa a música europeia culta.
Atendendo aos princípios da ‘estética desinteressada’ de Kant e ao conceito de
autonomia da linguagem musical proposta por Hegel, caro a autores como Hanslick, Schu-
mann, Berlioz e Heinrich Schenker (Beard e Gloag, 2005, p. 6-7), bem como coadunada à
nova estética da escuta fundada no pensamento idealista alemão e articulada por autores
como E.T.A. Hoffmann (Bonds, 2006, p. 22), a classificação adleriana demonstra privilegiar
a História metafísica em detrimento da abordagem contextualista da música. Mesmo sua
Musicologia Histórica procura confirmar sua credibilidade por meio da análise musical.
Desta forma, desde sua formalização e institucionalização, consolida-se a pers-
pectiva do cânone discursivo pela ‘grande arte’, onde os eventos e objetos históricos são
medidos tendo por referência um modelo evolutivo ideal composto por obras e técnicas
composicionais e estéticas representativas da tradição musical do Ocidente (sobretudo aus-
tro-germânica) codificado, por sua vez, pela teoria musical tradicional (análise formalista).
Este modelo, que é prudente observar, não é fixo, ao definir as condições ótimas da prática
musical molda, consequentemente, a própria escrita historiográfica.
Vê-se, pois, que desde o início do século XIX até, aproximadamente, o pós-guerra, as
Histórias da Música têm proposto construir uma cronologia de como as estruturas internas
(consubstanciadas nas formas, gêneros e estilos e nas práticas composicionais), criadas,
pensadas e executadas pelos grandes mestres, têm-se desenvolvido e sido transmitidas.
E, como ‘artifício’ disso, vige a História linear e cumulativa, um continuum narrativo onde
eventos de outrora estão encadeados, sob as mais variadas formas, aos eventos do presente.
Neste mesmo contexto, tem-se consolidado a codificação de modelos ideais de referência
– o Canon, que, por sua vez, influem nas escolhas dos temas e das metodologias a serem
priorizadas, bem como as que serão esquecidas.

iii
A partir, sobretudo, da década de 1980, alguns musicólogos ingleses e norte-ame-
ricanos, propondo um entendimento hermenêutico da música e da própria disciplina, co-
meçaram a atentar para as falácias e restrições decorrentes das premissas historiográficas
e de seu papel canonizador, bem como do afunilamento do termo musicologia8. A esta
tendência crítica, deu-se o nome de New Musicology9.

8
Apesar das contribuições dos estudos sobre a música em culturas não europeias, das quais são
herdeiras da antropologia cultural e a etnomusicologia, terem iniciado alguns questionamentos
ainda na década de 1960, coube essencialmente ao nada coeso grupo de pesquisadores sob a
rubrica da New Musicology a sistematização e teorização destas inquirições.
9
É importante observar que tem havido outras tentativas de escrutínio crítico da música (e da
musicologia) que não são enquadradas nos (amplos) limites do que se denomina New Musicology.
Contudo, a extensão do presente artigo não permite detalhar tais tentativas, tampouco, deslindar
as próprias críticas à nomenclatura “New Musicology”. Para um mapeamento teórico-conceitual das
tendências recentes da musicologia, ver Volpe (2004 e 2007).

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 33
Buscando um conceito multidisciplinar10 que considerasse a música como, primei-
ramente, agente de representação cultural capaz de tornar manifesto os mecanismos de
crise e de mudança nos sistema culturais e ideológicos e, também, como produtora de
significados que vão além do puramente musical, a New Musicology questionou a prática
tradicional da disciplina e sua herança epistemológica iluminista e positivista.
Quais foram, mais especificamente, os objetos de inquirição da New Musicology? Sob
uma perspectiva ampla, a pretensão científica e filosófica da verdade, o discurso metafísico,
a metanarrativa, a visão universalista, ou seja, toda a tradição epistemológica ocidental com
bases na herança iluminista e positivista. Já no âmbito específico da disciplina, combaliu-se (a) o
positivismo historiográfico e a fixação textual – segundo o qual bastava ao pesquisador descobrir
a lógica dos fatos relevantes, presentes no texto e nos objetos arqueológicos, para reconstruir a
história; (b) a análise musical tradicional de cunho formalista como baliza qualitativa e guia de
canonização; e (c) o próprio Canon, suas premissas norteadoras e sua influência na construção
da História da Música. Em resumo, os autores da New Musicology procuraram desvelar como
tais procedimentos dominaram a pesquisa musicológica, auxiliaram na construção de seus
paradigmas e, com isto, excluíram e depreciaram de tudo que não cabia em seu modelo.
A tradição, até então considerada uma pré-condição permanente e dada, passou a
ser percebida como um elemento que é produzido na medida em que é compreendido, ou
seja, os mesmos agentes que participam de sua evolução por ela são moldados (Gadamer
apud Beard e Gloag, 2005, p. 187). Neste sentido, seus discursos não somente revelam os
prejuízos de quem a ela pertence, mas os “põe em jogo, expõe-os às nossas dúvidas, como
réplica do outro” (Bodei, 2000, p. 229). É fortalecida, pois, a convicção de que a música tanto
torna manifesto os mecanismos de crise e de mudança nos sistemas culturais e ideológi-
cos quanto é capaz de revelar padrões e sistemas que, por outros meios, permaneceriam
camuflados (Martinez apud Machado Neto, 2009, p.1).
Portanto, da perspectiva de encontrar a verdade e a melhor forma de descrevê-la,
passou-se a discutir, então, um sentido baseado na assimilação de uma fragilidade episte-
mológica (Machado Neto, 2009, p. 3) onde o sujeito é reposicionado. Neste âmbito, deu-se
maior relevância à música enquanto agente aglutinador e produtor de símbolos e significados
individuais e socioculturais, privilegiando o estudo do cotidiano e do corriqueiro, das micro-
histórias (institucional, das ideias, da recepção, dos gêneros e sexualidade, etc.), da escuta,
da performance, das relações dos sons com o corpo e com o prazer, da música popular e
da indústria cultural, entre outros temas. Valora-se, claramente, a alteridade (o excluído, o
subalterno, o ‘inferior’) e o estudo das estruturas e padrões de exclusão.
Para a disciplina como um todo, este processo desencadeou, ao longo do tempo,
na necessidade de um conceito de musicologia que englobasse elementos históricos, an-
tropológicos, sociológicos, etnológicos, psicológicos e linguísticos, que estudasse a música
como agente de representação cultural e que integrasse as atividades humanas no discurso
histórico. Como parte da reação contra o determinismo evolucionista e a história causal
como fundamento para a constatação da evolução da lógica racional, a Academia, sobretudo
por meio “novos musicólogos”, redefiniu seus paradigmas a partir de uma ótica multidis-
ciplinar e, dentre outras práticas, desenvolveu-se uma crítica que estuda como a música e
seus códigos formais participam na produção dos mais variados tipos de representações

10
Que englobasse elementos históricos, antropológicos, sociológicos, etnológicos, psicológicos e
linguísticos, por exemplo.

34 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
e direcionam a escuta do ouvinte a certos pontos de vista. Nesta senda de pensamento
consolida-se, outrossim, a importância do estudo, o estabelecimento e a sistematização
disciplina de História da Música nas instituições de ensino superior (norte-americanas) e,
consequentemente, o desenvolvimento de estratégias pedagógicas.

iV
Dentre os diversos campos de pesquisa da chamada New Musicology, sobressai o
da Crítica Feminista. Incitada pela inquirição dos estudos literários norte-americanos em
meados da década de 1970 (McClary, 2002, p. 5-31), procurou, num primeiro momento
(década de 1970 em diante), incluir a mulher nos estudos musicológicos como um todo. E
o fez, tendo por referência a ótica patriarcal da “Teoria da história compensatória” (Citron,
1990, p. 103) (e o conceito tradicional de genialidade a ela correlata), cujo objetivo era
fazer ‘justiça’ às grandes artistas que, a despeito das adversidades, atingiram a excelência
artística. Em resumo, propôs-se, em resposta ao Canon tradicional masculino, um contra-
Canon feminino, sob um molde deveras símil. A partir de então, formou-se um corpus de
biografias, edições de partituras e análise de obras de compositoras, bem como estudos
sobre performers, professoras e patronas da música, responsável por expor rico material,
até então, pouco conhecido.
Num segundo momento (fim da década de 1980), mais que uma simples busca por
uma igualdade, os textos da New Musicology aproximam-se do tradicionalmente chamado
“feminismo da segunda geração” (Lechte, 2010, p. 182), mais atento ao (a) modus operandi
das estruturas ideológicas, sociais e econômicas que colocam a mulher em desvantagem11;
aos (b) desvios de gênero na linguagem e à construção de códigos musicais de gênero e
sexualidade12 e, igualmente, em (c) desvelar a semiótica, as teorias, e a epistemologia
próprias das mulheres, ou seja, a existência de padrões de escolhas temáticas, técnicas,
estilísticas ou conceituais exclusivos às mulheres, quer sejam eles induzidos pelo contexto
discriminatório ou por qualquer outra razão. Suas estratégias ativeram-se à reformulação e
à releitura do que se considera o mais evidente símbolo de exclusão do Outro nos estudos
musicais: o Canon. Em outras palavras, deslindaram-se as condições históricas bem como
os motivos e práticas que elidiram sistematicamente a mulher da tradição do repertório
erudito referencial.
Com isso, a linha feminista da New Musicology, procurou revelar a parcialidade e a
incompletude da tradição musical, cujas normas e paradigmas são orientados sob a ótica
masculina. Como consequência, ampliou-se o repertório canônico, que passou a incluir a
mulher, e reavaliar suas orientações filosóficas (Witt, 2008). Do ponto de vista da historio-
grafia, igualmente, a busca pela independência e o intento em desmascarar os preconceitos
e enfatizar a contribuição feminina à cultura – propostas ausentes nas grandes narrativas
tradicionais – reintroduziram a mulher na História.

11
Como o patriarcado, o mercado de trabalho, contrato social iluminista, dentre outros.
12
Como, por exemplo, as associações metafóricas entre fórmulas cadenciais, terminações
harmônicas, temas da forma sonata e gêneros musicais, e atributos considerados masculinos
(bravura, racionalidade, constância, objetividade) ou femininos (sedução, inconstância, delicadeza,
liricidade), sendo que, geralmente, o primeiro têm primazia por aproximar-se mais do “ideal de
música”

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 35
V
Resumidos, pois, (1) os modelos de escrita historiográfica que fundamentaram a
escrita da História da Música, (2) o processo de formação da musicologia enquanto discipli-
na, (3) os posteriores questionamentos da New Musicology acerca da mesma, bem como
(4) as principais características da crítica feminista cabe, agora, indagar se e como três dos
mais utilizados – e representativos – compêndios da disciplina em língua inglesa adotam o
discurso desta última em suas narrativas e estratégias pedagógicas.
A partir da observação das ocorrências relativas ao feminismo ou à representação
do feminino na música percebe-se, nos livros, dois eixos principais de abordagens.
O primeiro deles, claramente, busca coadunar o modelo biográfico patriarcal, cen-
trado na análise formalista, à necessidade de dirimir o papel coadjuvante das mulheres na
música. Nos casos observados, não é a condição e a particularidade de gênero, mas sim, as
qualidades artísticas de suas obras e de suas personalidades13 que as legitimam como dignas
de inclusão na tradição musical e, consequentemente, nas narrativas históricas. A referência
é, todavia, o modelo de artista ideal forjado, sobretudo, no século XIX, no qual elas, em
nome da música e de seus anseios interiores, sobrepujaram os mais diversos obstáculos,
conseguindo, com seu ofício e talento ímpares, acercar-se do panteão da Grande Arte.
Sintomática desta abordagem é o caso de Hildergard von Bingen, sobretudo pelos
autores sublinharem nela, precisamente, as características atribuídas ao masculino: a
independência intelectual, teológica e artística perante o papado, sua grande erudição,
o respeito e a reverência com que muitos nobres, reis e mesmo clérigos a tratavam e, no
âmbito musical, seu pioneirismo em compor peças como o drama litúrgico Ordo Virtutum,
uma obra que, a despeito de seu cunho exclusivamente votivo, apresenta qualidades que
favorecem sua canonização14. Wright e Simms chegam a chamá-la, em tom elogioso, de “o
primeiro homem renascentista” (2006, p. 39-40). Mark Evan Bonds, por sua vez, comenta
que von Bingen, em virtude de sua personalidade e de sua postura, muitas vezes era tratada
“como homem” (2008, p. 47).
Há exemplos, como nos casos de Madalena Casulana (c. 1544 – c. 1590), Barbara
Strozzi (1619-1677), Clara Schumann, entre outros, onde se apontam seus feitos e logros,
enfatizando a consciência que tais personalidades tinham acerca de suas próprias virtudes e
dificuldades: “quão enganado é o homem que, ao se assumir dotado de grande inteligência,
pensa ser a mulher inapta à compartilhar de seu nível intelectual”, dizia Casulana (apud
Burkholder, 2006, p.251-2).
Noutros casos destacam-se, também, os empecilhos que impossibilitaram o desen-
volvimento profissional e o possível reconhecimento artístico de determinadas compositoras,
com destaque para Fanny Mendelsohn que, apesar de lhe ser oferecida a mesma educação
que seu irmão, foi forçosamente desestimulada, sobretudo após o matrimônio, a exercer
atividade musical profissional. Manifesta-se aqui uma espécie de nostalgia de um potencial
não concretizado que se pergunta: “aonde chegaria este imenso talento se fosse tratada
como homem, ou se não lhe fossem tolhidas certas liberdades?”.

13
Ao menos as valorizadas pelo cânone.
14
É concebida como um todo musical original analiticamente complexo e acabado, independente do
cantochão e textos pré-existentes, e com inovações melódicas, dentre outras.

36 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
As mulheres que fomentaram, sobremaneira, as artes, também são observadas
nas narrativas. Nestes exemplos, procura-se demonstrar como contribuíram tanto para
elevar qualidade da prática musical quanto para desenvolver e aperfeiçoar estilos e gê-
neros musicais. O mesmo ocorre com as pedagogas e estetas que formaram, por meio da
educação técnica, estética e intelectual, gerações de intérpretes e compositores, como o
fez Nadia Boulanger.
Mais próximo, portanto, ao que se costuma denominar “feminismo da primeira
geração” (Lechte, 2010, p. 181-2), esta abordagem propõe um ‘contra-canon’ em que as
musicistas – tal qual seus cômpares masculinos – além de admiradas pelas suas conquistas e
genialidade excepcionais, são enaltecidas como quase heroínas por vencer as adversidades
próprias do gênero15.
O segundo eixo temático, que possui viés mais sociológico e se esquiva do costu-
maz tratamento biográfico (sobretudo ao associar-se à História da Recepção), analisa as
funções e representações da mulher nas práticas comunitárias socioeconômicas e culturais
ligadas à música.
Dentre os temas comuns, destacam-se os exemplos diretamente relacionados ao
posicionamento da mulher na produção e consumo da música, sobretudo, nos períodos em
que a ascensão de uma classe média estimulou a atividade instrumental doméstica como
meio de prestigio, afirmação e entretenimento. Neste âmbito, a despeito das variantes,
observa-se nos três materiais a ênfase no fato do ímpeto criativo feminino, quer seja na
composição ou performance, ter-se circunscrito majoritariamente ao contexto privado e
aos gêneros e formações instrumentais a ele associados – o madrigal, a cantata de câmara,
o lied, a caracter piece, os duos, trios de corda, os instrumentos de teclado e a voz, em
oposição às formas mais pretensiosas (óperas, cantatas, sinfonias, concertos), próprias às
salas (públicas) de concerto e ao ambiente profissional masculino.
Relevantes, também, são os casos que tratam da educação e da profissionalização
da música, demonstrando o papel da mulher nos diversos estratos da prática musical, bem
como de sua exclusão tanto das instituições ou atividades consideradas para elas impróprias
– ou onde sua presença poderia gerar depreciação e descrédito – quanto da própria produção
bibliográfica. Como exemplo, pode-se citar o concerto dele donne da corte de Ferrara em
findo séc. XVI cujas cantoras, profissionais oriundas da classe média italiana, obtiveram o
título de duquesas simplesmente para que não precisassem trabalhar para obter sustento
(a nobreza era financiada pelos impostos), uma vez que era impróprio para mulheres de
tal talento e destaque fazerem disso uma profissão.
Um último tema de cunho social que ocorre com frequência aborda a posição do
feminino no ambiente musical religioso, descrevendo, por exemplo, a liberdade relativa
das freiras na música produzida nos conventos medievais (bem como sua exclusão da li-
turgia), as diferentes considerações das igrejas Católica e Protestante sobre a presença (ou
não) da mulher nas respectivas liturgias ou, também, o rigoroso treinamento de órfãs nos
centros religiosos da Itália desde o século XVI, cujo resultado era, não raro, a produção de
conjuntos musicais de tal excelência que atraía fieis de outras regiões, mas que, por outro
lado, era motivo de preocupação para o clero, pelo protagonismo e fascínio que exerciam.

15
De certa forma, às vicissitudes atribuídas ao artista homem do século XIX (falta de adaptabilidade
com o mundo real, não ser plenamente compreendido ou reconhecido, dentre inúmeras outras) são
adicionadas às relativas ao gênero.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 37
A preocupação com questões relativas à sexualização da mulher no meio religioso, presente
nestes casos, exemplifica o que a New Musicology denomina “disembodied music”, ou seja, a
‘descorporificação’ e a ‘des-sexualização’ da prática musical e do feminino, costumeiramente
associado, nos ambientes sacros, ao pecado.

Vi
Quando vistos à luz da crítica feminista da New Musicology, os temas predominantes nos
materiais analisados, um norteado pela a fusão entre “teoria compensatória” (presente no feminismo
da primeira geração) e uma História da Música baseada no desenvolvimento dos estilos, gêneros
e formas e sob a égide do que Hepokoski (1991, p. 233) denomina Wirkungsgeschichte (a história
cumulativa dos efeitos provocados pelos grandes personagens e obras individuais); o outro, com
clara influência dos estudos sociais, da recepção e, em menor medida, da alteridade, evidenciam
uma apropriação bastante peculiar da mencionada linha de pesquisa, pois, ao mesmo tempo em
que explicitam uma preocupação pela inclusão respeitosa do outro (a mulher), reafirmando seu lugar
no cânone e na História da Música, o faz parcimoniosamente, conjeturando muitas das sutilezas
metodológicas e temáticas pertencentes à musicologia feminista em detrimento de assuntos menos
complexos e polêmicos e, costumeiramente, aceitos pela historiografia musical tradicional.
Tal peculiaridade parece resultar, mais que do distanciamento crítico dos autores acerca
da New Musicology, do contexto da graduação em música nos Estados Unidos. Como no Brasil,
a maioria das Universidades naquele país privilegia a formação de professores de musicalização
e, sobretudo, de performers, postergando a elucubração mais crítica da música à pós-graduação.
Consequentemente, os currículos destas instituições, bem como todo corpus bibliográfico que
as atende, têm sido elaborados sob tal desígnio, salvo raras exceções. No caso particular das
didáticas de História da Música, o objetivo não é dar ao alunado subsídios críticos iniciais para
uma discussão sobre a historiografia musical ou sobre a própria História, por exemplo, mas sim,
prover ao bacharelando uma “visão geral dos fatos” e do “desenvolvimento” dos estilos, gêneros,
formas, técnicas e ideias musicais da cultura ocidental que permita, por sua vez, uma vinculação
mais direta com seus estudos performáticos cotidianos. Tal visão eminentemente funcional da
disciplina acaba por delimitar os modelos pedagógicos das didáticas, suas estratégias narrativas
e, consequentemente, os temas a ser, ou não, abordados – incluídos os da New Musicology.
Os materiais aqui estudados, não alienados às conquistas da New Musicology, mas
cientes de que uma abordagem feminista demasiado crítica vai de encontro aos intentos
pedagógicos dos cursos de música (endereçado ao instrumentista) e à escrita das próprias
didáticas (enfoque na história dos estilos, gêneros e formas, predominância do modelo tradi-
cional de canonização etc.), preferem tratar da representação do feminino com parcimônia,
trazendo a mulher para a História sem vilipendiar os agentes e estratégias de exclusão. E,
mesmo ao propor uma história de cunho mais social, desvinculada da Wirkungsgeschichte,
o faz de modo a não prejudicar o caráter claramente pragmático destas obras e o contexto
a que elas servem, aproximando-se da história da recepção16. Em resumo, busca-se um
contato com a New Musicology que não afete sobremaneira a elaboração dos compêndios
e tampouco o modelo tradicional de escrita histórica típico destas antologias.

16
Curiosamente uma das abordagens que Dahlhaus propõe ao impasse que vê na historiografia
musical (não é História da música ou história da Música) é pelos estudos da recepção. Para maiores
detalhes, vide seu Foundations of Music History (1977) e o mencionado texto de James Hepokoski.

38 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
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40 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade


A prática interpretativa é uma arte mimética? – Acerca
de mímesis e interpretação na teoria da Reprodução
Musical de theodor Adorno

Frank Michael Carlos Kuehn


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Apresentação do problema
O conceito de mimesis remonta à Antiguidade (do grego mímésis, mimeós), onde
já começou a receber diferentes definições e significados. No vernáculo do latim clássico
se impuseram os termos imitatio e imitare (imitação, imitar), os quais, entretanto, cor-
respondem apenas parcialmente ao significado do conceito grego. Essa é a razão porque
optemos doravante por empregar o conceito original com seus respectivos derivados em
português mimese, mimético e mímico.
Como princípio primordial, a mimesis exerceu um papel fundamental no desen-
volvimento do homem e de sua cultura. Sabe-se que o aprendizado, desde a mais tenra
idade, se embasa na imitação. Por isso, o “bom exemplo” tem importância fundamental
na educação. Nas ciências, tenta-se reproduzir, em ensaios de laboratório, as condições
de um determinado ambiente natural de maneira mais fiel, o que não raramente envolve
procedimentos de mais alta complexidade. Nas artes, a imitação de um certo modelo cos-
tuma preceder a autonomia, constituindo o comportamento mimético o ponto de partida
para a inovação artística. Assim acontece também na economia, onde se copiam produtos,
modelos e estratégias. Todavia, sucesso e poder econômicos não só dependem do capital e
dos meios de produção e sim também dos proprietários intelectuais de marcas, imagens e
patentes, ou seja, de quem adquiriu o direito sobre a sua reprodução (copyright) (Sandler,
2008, p.2-3). Esses são apenas alguns exemplos de como o princípio mimético se manifesta
em nosso cotidiano.
Analisado historicamente, o conceito de mimesis recebeu uma grande variedade
de interpretações.1 Em razão da sua natureza ambígua, a mimesis pode ser interpretada
de maneira afirmativa, como recriação, ou negativa, como mera cópia ou “macaqueação”.
Seu elo com a música deve ser procurado na história das ideias, em particular, na história
da filosofia. Halliwell (2002, p.23) sintetizou as diferentes interpretações nas acepções de
espelhamento do mundo (world-reflecting) e de recriação do mundo (world-creating).
De certa forma, as variantes de espelhamento e de recriação do mundo já encontram
em Platão e, respectivamente, também em Aristóteles uma correspondência, pois em suas
teorias de produção artística o elemento mimético exerce uma função central. Em Platão,
o dualismo entre a efemeridade do mundo sensível e a perenidade do mundo das ideias
constitui um axioma central e encontra na dualidade de corpo e alma a sua equivalência.
Os objetos do mundo físico não passam da copia de algo imutável e superior no plano das

1
Para uma exegese abrangente do conceito de mimesis e da história de suas interpretações, vide:
Gebauer/Wulf (1992) e Halliwell (2002).

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 41
idéias, tópos onde reina o grande demiurgo, o artesão divino que forma a matéria do universo
através de moldes perfeitos. Na hierarquia platônica, o poeta é basicamente um imitador,
um “criador de fantasmas” que “nada entende da realidade, mas só da aparência” (Platão,
2001, p.300; na trad. de P. Nassetti). Os objetos de arte constituem apenas “sombra da
sombra”, mera cópia, portanto, inferior aos objetos da natureza. Por conseguinte, em prol
de uma visão profundamente pragmática, o artista deve se subordinar aos fins políticos e
educacionais do estado.
Aristóteles, por sua vez, estende o princípio mimético do fazer artístico (poiesis) a
todas as artes. A mimesis explica tanto o conhecimento quanto a arte. Atribuindo às artes
propriedades de verossimilhança, as ideias não estão no exterior dos objetos, mas no inte-
rior de quem as produz (Aristóteles, 2001, 1140a, pass.). Por suas propriedades criativas e
purificadoras, a mimesis adquire em Aristóteles um caráter afirmativo. Mais do que isso, o
princípio mimético é um elemento “congênito no homem [zôon mimêtikôtaton]” (Aristóteles,
2003, 1448b, 4-6, na trad. de E. de Sousa). Acrescentando-lhe a kátharsis (purgação, purifi-
cação) como elemento funcional, a reprodução de determinados caracteres ou personagens
é para Aristóteles capaz de proporcionar no espectador uma sensação de alívio e prazer.
Ao processo de produção artística como fazer artesanal se adunam ainda os conceitos de
techné (habilidade e competência técnica) e de physis (natureza). Para o estagirita, trata-se
na criação artística de uma ação que não pode ser reduzida a uma mera cópia ou plágio
desalmado. De um lado, o poeta – em sua acepção abrangente de artista – engendra uma
determinada ação criativa, enquanto, de outro, imita algo que está presente na natureza.
Por analogia, trazendo-se a teoria aristotélica para o campo da interpretação musical,
a reprodução ao vivo de uma composição representa uma espécie de recriação de elementos
da physis por meio da techné em arte (mimesis artística), em que uma composição musical é
reconstituída com base numa realidade objetiva, dada pelo registro em forma de partitura.
Nesse processo, o intérprete lhe empresta algo de si próprio, em conformidade tanto com
a natureza da obra quanto com a sua natureza interior.
Considerando-se o enorme potencial da mimesis, surpreende que músicos-intérpre-
tes e pesquisadores da música apenas raramente se dêem conta da presença do elemento
mimético em suas práticas. Particularmente no âmbito do ensino e da pesquisa, observa-
se que a mimesis representa um elemento subestimado senão totalmente relegado ou
recalcado. Isso talvez se deva ao caráter paradoxal do princípio mimético, pois, gerando
“o antigo” em condições, circunstâncias e formas sempre distintas, a mimesis costuma se
apresentar de maneira nova e revigorada. Outrossim, ainda que demonstre certa singeleza
ou simplicidade, o princípio mimético pode surpreender ao engendrar formas da mais
alta complexidade. Tendo uma extraordinária capacidade de se duplicar e reduplicar em
diferentes formas e direções, sua múltipla face tende a disfarçar a sua onipresença e poder.
Nisto, a mimesis se assemelha com o mito, cuja presença também precisa ser literalmente
“desmascarada”.2
Na seção que se segue, a Teoria da Reprodução Musical de Adorno é apresentada
especificamente no tocante ao elemento mimético. O objetivo central é compreender melhor
a função do elemento mimético no processo reprodutivo de uma composição musical.

2
Em A dialética do esclarecimento (2008), obra de referência da teoria crítica do século XX, Theodor
Adorno e Max Horkheimer já apontaram essa relação em que o Esclarecimento iluminista, a razão
instrumental e a crença no progresso tecnológico e científico se tornaram propriamente um mito.

42 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
A teoria da Reprodução Musical de theodor Adorno
Por “Teoria da Reprodução Musical” compreendemos, grosso modo, o conjunto
das reflexões de Adorno sobre a prática interpretativa. Composto por um grande número
de fragmentos e manuscritos, revela uma face ainda pouco conhecida do autor. Editado
na Alemanha sob o título Zu einer Theorie der musikalischen Reproduktion [Para uma
teoria da reprodução musical] (2001),3 serviu também de base para a presente pesquisa.
Considerando-se que o material engloba um grande número de fragmentos e manuscritos,
não se trata de algo linear e homogêneo e sim de um conjunto de anotações heterogêneas.
Essa peculiaridade sempre precisa ser levada em conta quando o assunto for a Teoria da
Reprodução Musical.
Ao longo de suas anotações, é frequente Adorno associar a música e sua notação
à linguagem idiomática e sua escrita alfabética. É logo no início de suas reflexões que
essa questão se cristaliza como central: “Como se relacionam notação musical e notação
idiomática? Uma das questões mais centrais, impossível de se separar desta: como se
relacionam música e linguagem?” (TRM, p.11). Adorno argumenta que a notação musical
constitui um sistema gráfico que, em termos de articulação e de logicidade, não deve nada
ao da notação idiomática. Ao contrário da notação idiomática, entretanto, cuja origem está
na comunicação de palavras e conceitos, a origem da notação musical deve ser procurada
no elemento mimético. É, pois, no processo mimético que o som musical se transforma
misteriosamente em linguagem, e o signo, em imagem, ou seja, na representação de uma
idéia, de um pensamento ou na relembrança de uma experiência, de algo sensível.
Música e linguagem idiomática se aproximam principalmente em termos de
gramática e de sintaxe. A grande diferença está no fato de que a linguagem e seu sistema de
signos pertencem a um sistema homogêneo, enquanto a música e sua notação pertencem
a sistemas heterogêneros (TRM, p.222). Adorno resumiu a diferença entre a linguagem
idiomática e a linguagem musical num axioma lapidar, notável em sua lucidez: “Interpretar
a linguagem significa compreendê-la; interpretar a música significa tocá-la” (GS, v.16, p.253).
Com efeito, uma vez que a escrita musical imita o som, o intérprete terá necessariamente
de imitar a notação musical: “A verdadeira interpretação é a imitação perfeita da notação”,
assinalou Adorno (TRM, p.83).
Nessa tarefa, é necessário distinguir entre a notação como um instrumento de
“dominação do material musical” e o texto propriamente dito. Enquanto os sinais gráficos
representam o meio de fixar o som no espaço, a imagem do texto representa o vestígio
histórico da obra. Há, no texto, um substrato histórico que precisa ser resgatado ou, melhor,
“tocado” pelo músico-intérprete. Destarte, o registro gráfico representa apenas uma espécie
de “matriz” ou “mapa” para que a composição possa ser efetivamente reproduzida. Vale
ainda conferir o seguinte trecho da argumentação de Adorno:
A interpretação musical é a execução que, como síntese, preserva tudo o
que tem de semelhante com a linguagem, ao mesmo tempo em que liquida aquilo

3
Para as referências bibliográficas da obra intitulada Zu einer Theorie der musikalischen Repro-
duktion: Aufzeichnungen, ein Entwurf und zwei Schemata (Para uma teoria da reprodução musical:
anotações, um esboço e dois esquemas, 2001), doravante também chamada de “Teoria da Reprodu-
ção Musical” ou simplesmente de “teoria”, será usada a abreviação “TRM”. A paginação é da edição
de bolso (Suhrkamp, 2005). Já para as referências da Obra completa de Adorno (2003) aparece a si-
gla “GS”. Salvo indicação em contrário, a tradução das citações para o português é de minha autoria.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 43
que carrega de particular desta. Por isso, a ideia de interpretar é própria da música
e não lhe é acidental. Tocar a música corretamente significa, em primeiro lugar,
falar seu idioma de forma correta. Este capta a imitação por si mesmo e não via
decifração. A música somente se revela na prática mimética [...] e nunca através de
uma abordagem que a interpreta separada da sua execução (GS, v.16, p.253).4

Problemático é que os sinais gráficos da música não se aglutinam em palavras que


designam objetos. Por essa razão, pode se falar, na música, de sons organizados em torno
de temas, períodos e frases, mas não em palavras. As letras do alfabeto, empregadas para
designar os diferentes sons, foram lhe acrescentadas apenas posteriormente. Como tal,
representam para Adorno uma espécie de “conceitualidade primitiva” (primitive Begrif-
flichkeit) (TRM, p.221).
Considerando-se que a notação musical encerra em si uma série de antinomias, o
processo da sua transposição em som não é menos paradoxal. Daí, “interpretar” significa,
nas palavras de Adorno, “a imitação de um processo dialético que se deu na própria com-
posição” (TRM, p.92). Sua tarefa está “na restauração dialética” (TRM, p.273, 92), processo
em que a unidade do tempo principal constitui um elemento fundamental para a coesão
de suas partes (TRM, p.9). O problema central de toda interpretação está precisamente
em reproduzir o todo e suas partes de forma adaquada, ou seja, na restauração do sentido
da obra (TRM, p.9). O segredo de uma interpretação bem-sucedida está, portanto, em seu
processo da transposição de sinais gráficos em som musical.5
O princípio dialético, por sua vez, emerge no interior da história e na tensão entre
as antinomias da sociedade (GS, v.10, p.3, 36). Os diversos elementos que se encontram
encapsulados no interior de uma obra de arte se desdobram dialeticamente num processo
que de forma alguma pode ser separado da sua função crítica (TRM, p.286). Já o desdo-
bramento de uma composição musical está em suas incontáveis reproduções ao longo da
história. Por essa razão, a interpretação forma o que Adorno chama de “campo de força”: “O
campo de força que a interpretação musical há de realizar está em seu aspecto histórico”,
postula (TRM, p.121). Trata-se de uma espécie de campo agonal em que as “diferentes
camadas, fortemente contrastantes” da composição são trazidas para o plano fenomênico
(TRM, p.169). Quanto mais a interpretação revela as tensões que se encontram no interior
da composição, melhor a reprodução como um todo.
Para, nesse campo, poder “navegar” de forma mais segura, o intérprete deve pon-
derar entre a consciência subjetiva da necessidade em revelar as antinomias da obra e a
fidelidade ao texto, que representa algo como a ideia objetivada do compositor. Destarte,
conclui Adorno, “interpretar não significa apenas cristalizar a ideia e sim tornar visível o
campo de força” (TRM, p.183). Sendo a expressão do seu caráter ambíguo, a separação

4
“Musikalische Interpretation ist der Vollzug, der als Synthesis die Sprachähnlichkeit festhält und zu-
gleich alles einzelne Sprachähnliche tilgt. Darum gehört die Idee der Interpretation zur Musik selber
und ist ihr nicht akzidentell. Musik richtig spielen aber ist zuvörderst, ihre Sprache richtig sprechen.
Diese erheischt Nachahmung ihrer selbst, nicht Dechiffrierung. Nur in der mimetischen Praxis […]
erschließt sich Musik; niemals einer Betrachtung, die sie unabhängig von ihrem Vollzug deutet” (GS,
v.16, p.253).
5
Sobre a distinção conceitual dos termos reprodução, interpretação e performance, vide: Kuehn,
2010b e 2011.

44 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
(Auseinandertreten) da música em texto e som não se dá por acaso. Uma vez que o processo
de produção musical está impregnado de paradoxos, também a reprodução musical deve
ser dialética. Argumenta Adorno:

Como ser mímico, [a música] não é perfeitamente legível nem perfeitamente


imitável pela linguagem, por isso ela se divide entre o ideal sonoro e a escrita,
precisando da interpretação como esforço sempre renovado para conciliar seus
elementos divergentes. Isto já justifica a reivindicação de se tratar a reprodução
como uma categoria específica [...] Noutras palavras, a reprodução é necessária
(TRM, p.238-239).6

O esquema da fig.1 ilustra esse campo de força, no qual a música se desdobra em


som e texto:

Fig.1: O desdobramento da música em som e texto, permeado pelo campo de força.

Vimos, portanto, que uma interpretação bem-sucedida representa o resultado


de um processo agonal em que os diversos elementos divergentes mantêm a música, por
mimesis, em fluxo, ao mesmo tempo em que a unidade é pensada em termos de tempo
e de produção de sentido. O modus procedendi de Adorno é dialético porque encara um
determinado elemento ou objeto sempre com o seu pendant implícito, mesmo que este
esteja oculto, seja na abstração do conceito, seja na do tempo histórico.
É precisamente nos dois manuscritos mais longos e elaborados da teoria que Adorno
discorre sobre as origens e o desenvolvimento da notação musical a partir dos neumas
(do grego, gesto, sinal).7 Para Adorno existem no desenvolvimento da notação musical

6
“Als mimisches Wesen ist sie nicht rein lesbar und nicht rein imitierbar als Sprache. Daher spaltet
sie sich ins Ideal des Klangs und in Schrift und bedarf der Interpretation als einer immer erneu-
ten Anstrengung zur Versöhnug der divergierenden Elemente. Das rechtfertigt den Anspruch von
Reproduktion als spezifische Form genommen zu werden […] Mit anderen Worten, Reproduktion ist
notwendig” (TRM, p.238-239).
7
Para reconstituir a história da notação musical, a pesquisa bibliográfica de Adorno (TRM, p.76-
84) se fundamenta, em boa parte, em Hugo Riemann (1849-1919). Influente teórico, historiador,
musicólogo, pedagogo e lexicógrafo, Riemann é autor de uma vasta produção científica. Na primeira

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 45
basicamente dois elementos que permeiam a história da música como uma espécie de fio
condutor: mimesis e racionalidade.
A seguir, acompanhemos a parte da sua pesquisa sobre a notação musical do
Ocidente de perto. O objetivo é descobrir de que modo mimesis e racionalidade se acham
na raiz da notação musical e compreender a função que ambos os elementos tiveram em
seu desenvolvimento. Para verificar as teses de Adorno e para efeito de ilustração, foram
inseridas algumas imagens de documentos históricos, disponíveis na internet.
Comecemos com a comparação de dois documentos bem antigos. O primeiro é pro-
veniente de um epitáfio de Éfeso e mostra uma estrofe da canção grega Seikilos. Estima-se
que seja do século II a.C. Vemos que os gregos já recorriam a letras do alfabeto para indicar
a altura do som. Supõe-se que as letras da escritura se refiram às cordas da khitara. No alto
das letras acham-se ainda sinais gráficos indicando a duração do som:

Fig.2: Estrofe da canção Seikilos em notação grega do século II a.C.8

Com a ascensão do Império Romano, a notação grega se perdeu. Misteriosamente,


a música atravessou longos séculos sem deixar muitos vestígios. Prova disso é Isidoro
de Sevilha que – já no século VII d.C. – exclamou que “os sons perecerão se ninguém os
guardar na memória, pois não há como escrevê-los”.9 É apenas por volta do século IX d.C.
que aparecem os primeiros registros em neumas como tentativa de registrar o som (TRM,
p.78-79 e 84). Por conseguinte, argumenta Adorno, é muito mais provável que o processo
de formação da notação musical moderna tenha sido desencadeado apenas na Idade Média
e não na Antiguidade grega, como havia se acreditado (TRM, p.230).

parte da sua pesquisa, Adorno recorreu a: Handbuch der Musikgeschichte, v.1 [Manual da história
da música, Antiguidade e Idade Média até 1300], Leipzig, 1923; Musik-Lexikon [Enciclopédia da mú-
sica], Leipzig, 1882, e: Vademecum der Phrasierung [Manual do fraseado], 1900. Na seção, intitulada
Ad antike Notenschrift [Acerca da escrita musical antiga], Adorno recorreu ainda a outras duas obras
de Riemann, a saber: Studien zur Geschichte der Notenschrift [Estudos sobre a história da escrita
musical], de 1878, e Die Entwicklung unserer Notenschrift [O desenvolvimento da nossa notação
musical], de 1881.
8
Imagem disponível em: http://de.wikipedia.org/wiki/Notation_(Musik), último acesso out. 2008. Exis-
tem também algumas gravações em áudio da canção, disponíveis em:
<http://www.amazon.com/gp/dmusic/media/sample.m3u/ref=dm_sp_smpl/180-2458157-0010228?ie=
UTF8&catalogItemType=track&ASIN=B0011BGZIS> e/ou:
<http://mp3wm.com/download-musica/corvus-corax-seikilos-2111107.html>, último acesso julho 2011.
9
“Nisi enim ab homine memoria teneantur soni, pereunt, quia scribi non possunt” (Isidoro de Sevi-
lha, 1982, v.3, cap.15) .

46 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
O segundo documento mostra um recorte de neumas iniciais. Estima-se que seja do
século X. Como podemos notar, trata-se de uma notação bem precoce. Observando-se os
traçados, surge mesmo a impressão de que se trata da representação gestual de um regente
que está marcando o movimento rítmico e melódico da música com as mãos. A tese de
Adorno é que tais gestos – convencionados numa técnica que é chamada de quironomia
– tenham inspirado os monges dos monastérios medievais a empregar os neumas como
tentativa de fixar o som musical. Esses neumas consistem precisamente numa “pictografia
dos acentos dinâmicos, empregada nas igrejas católica romana e ortodoxa grega da Idade
Média para indicar o movimento ascendente e descendente, do ritmo e do tempo da
melodia para conduzir o coro com firmeza“ (Mocquereau apud Adorno, TRM, p.230-231).
Com efeito, nesses termos, a quironomia pode ser considerada uma manifestação peculiar
da mimese.10

Fig.3: Recorte de primeiros neumas (século X).11

Adorno confere ao surgimento dos neumas grande importância. Sua tese é que
a escrita por neumas – em combinação com a quironomia como elemento mimético e a
nomeação das notas musicais por letras do alfabeto – teria dado à notação musical clareza
e univocidade necessárias para que ela pudesse se desenvolver da forma como se deu
(TRM, p.80-81).
De qualquer forma, ainda que tivessem significado um grande avanço, os neumas
representaram apenas uma forma primitiva de anotar a música. Como tal, não proporcio-
navam mais do que uma vaga lembrança dos contornos da melodia. Não havia como se
indicar a altura, nem a duração das notas com precisão. Em consequência disso, o advento
progressivo da racionalização fez com que a notação se tornasse um instrumento cada vez
mais poderoso para se poder exercer um maior controle sobre a produção e a execução
musical. Se, no início desse processo, estavam no centro os elementos mímico e gestual

10
Do grego kheironomía, gesticulação cadenciada. Sistema de sinais emitidos pelas mãos,
particularmente entre as tradições que desconheciam a escrita musical (Dourado, 2004, verbete
“quironomia”). Segundo Houaiss (2001), designa: 1) arte dos ademanes, da harmonia entre os
gestos e os discursos; 2) conjunto de gestos que acompanham a fala, mímica, e 3) figuração do
desenho melódico por meio dos movimentos das mãos.
11
Música na Idade Média (neumas iniciais). Imagem de domínio público disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Neumasiniciais.JPG#file>, último acesso março 2008.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 47
de anotar o som, no âmago do desenvolvimento subseqüente estava o aspecto normativo,
revestido de uma função claramente disciplinadora. Com efeito, foi através do elemento
mensural da notação como indicador quantitativo duracional que a música conquistou,
poucos séculos depois, a sua autonomia perante a prosódia poética (TRM, p.82).
Também as reformas que tiveram início com Guido de Arezzo (990-1050) repre-
sentaram marcos importantes no processo de racionalização da notação musical (TRM,
p.236). Adorno aponta principalmente dois eventos como cruciais: a) o alinhamento dos
neumas, e b) a introdução de sinais que indicam valores fixos para a duração do som (TRM,
p.228-229). Nessas reformas, os traçados gestuais dos neumas primitivos foram substituídos
gradativamente por notas quadradas que, ao invés de se alinhá-los em torno de uma única
linha apenas, foram distribuídas por uma pauta de quatro linhas. O quadro da fig.4 mostra
passo a passo o desenvolvimento dos neumas em notação mensural:

Fig.4: Primeiros neumas e seu desenvolvimento em notação mensural.12

Outro marco representa o desenvolvimento do manossolfa, no qual se passou a


acrescentar o uso de sílabas na leitura do melos (do grego, canto, canção). Com base em
princípios da quironomia, o manossolfa,13 mão de solfa ou mão guidoniana,14 introduziu o
uso de sinais em que mãos e dedos do regente indicam cada nota musical da pauta. Adicio-
nalmente, Arezzo denominou cada nota da escala natural de acordo com as sílabas iniciais
de cada versículo da primeira estrofe do hino eclesiástico Ut queant laxis (ut [dó], ré, mi, fá
etc.), o que permitiu, pela primeira vez, que se cantassem tanto a altura quanto o nome de
cada nota simultaneamente. Com efeito, o manossolfa forma a base para o solfejo como
ele é praticado até hoje sem grande variação.
Tudo isso mostra que a história da música ocidental está estreitamente entrelaçada
com o desenvolvimento da sua notação. Ainda que na notação moderna predominem os
aspectos normativos, no processo mimético da reprodução sonora prevalecem os aspectos

12
Imagem disponível em: www.wiki.commons, verbete “Mensuralnotation”, último acesso jan. 2009.
13
Sistema de estudo de solfejo auxiliado pelo uso dos dedos das mãos, quironomia (Dourado, 2004,
verbete “manossolfa”). Sistema de solfejo que indica a altura por meio de sinais dos dedos e das
mãos (Houaiss, 2001).
14
“Mão guidoniana, mão de solfa”: recurso mnemônico medieval, por meio da memória e não da
escrita, para o domínio do sistema de hexacordes. Disponível em: <www.pt.wiktionary.org/wiki/
m%C3%A3o_guidoniana>.

48 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
gestual, dinâmico e expressivo. Desse modo, mimesis e racionalidade estão constituindo
uma antinomia central que está também na raiz de seus problemas. Nas palavras de Adorno:
“A notação regula, domestica e reprime ao mesmo tempo aquilo a que ela serve – uma
dualidade de que toda reprodução musical sofre até a sua liquidação [...] A fidelidade à
obra é ao mesmo tempo a obediência que a destrói” (TRM, p.229).
Toda notação musical tem como princípio fundamental a “espacialização do tempo”
e encerra em si algo profundamente ambíguo e paradoxal. Em suma, “aquilo que [a notação]
pretende fixar, está impreterivelmente perdido”. Para compreender melhor o que Adorno
queria dizer, seguem ainda alguns trechos da sua argumentação:

Espacializar algo significa estar presente [...] [e] o que está plenamente presente,
significa ser passível de dominação [...] para trazer, a seu mando, o que, por si
mesmo, já está perdido. Toda prática musical é uma recherche du temps perdu.
Essa é a chave para a dialética da música até a sua liquidação [...] A notação
musical é o órganon da dominação do homem sobre a natureza [...] Tendo a
música, em seu estágio remoto [...] sido usada para dominar o homem [...] agora
a dominação se infiltra na música por meio da notação, ou seja, os gestos que a
música ora prescreve, ora imita se tornam, como imagens, domináveis, podendo
se proceder, em sua reprodução, ad libitum. É precisamente nesse estágio que a
racionalização do material musical começou a aumentar gradativamente (TRM,
p.228).15

Vemos, portanto, que é por meio do gesto que a música é trazida “à luz” ou, melhor,
“ao ouvido”. Desse modo, quironomia, mimesis e racionalidade resultam, na notação, numa
espécie de imagem do som em que se destacam duas qualidades centrais: a de ser uma
imitação literal do gesto, e a de ter a racionalidade como elemento normativo (na tradição
sinfônica incorporado pelo regente) (TRM, p.230). Ainda que na notação moderna sobres-
saiam os elementos mensural e disciplinador, no processo mimético da reprodução musical
predomina a dinâmica com seus elementos gestuais expressivos. Por essa razão, mimesis
e racionalidade representam na teoria de Adorno uma espécie de antinomia dialética. O
fragmento a seguir ilustra isso de forma exemplar:

Na notação musical subsiste algo de contrário ao seu conteúdo: a racionalidade,


precondição de toda arte, ao mesmo tempo torna-se o seu adversário. A notação
regula, obstrui aquilo que ela denota e desenvolve – tornando, desta forma, a
reprodução um empreendimento bastante laborioso. Dito de forma mais clara:

15
“Etwas verräumlichen heisst da sein: [...] [und] was ganz da ist, lässt sich beherrschen [...] durch
absolute Verfügung das wiederzubringen, was durchs Verfügen selber Unwiederbringlich ward. Alles
Musizieren ist eine recherche du temps perdu. Das ist der Schlüssel zur Dialektik der Musik bis zu
ihrer Liquidation […] Musikalische Schrift ist das Organon der musikalischen Naturbeherrschung […]
Hat Musik in einem sehr frühen Stadium der Beherrschung von Menschen gedient [...] so wandert
vermöge der Notation Beherrschung in sie selber ein, das heisst, die Gesten, welche Musik seis
anregt, seis selber nachmacht, werden in ihr, als Bilder, beherrschbar, nach Belieben zu machen,
wieder hervorzubringen, und darin bereitet sich die Rationalisierung des Materials der Musik vor”
(TRM, p.228).

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 49
na notação musical já está constituída a diferença desta para com a música.
Embora empiricamente inadequada, a espacialização do elemento temporal é
necessária (TRM, p.71-72).16

O caminho para se chegar à essência de uma composição musical passa, para Adorno,
invariavelmente pela análise. Como “mais importante categoria de mediação” entre o texto
e a sua reprodução (TRM, p.125), a análise constitui sobretudo um meio para a conscien-
tização do intérprete. É nessa direção que aponta também o seguinte aforismo: “Só quem
não apenas sente a música, mas também a pensa, sente-a corretamente” (TRM, p.127).
Noutro fragmento, Adorno sintetizou sua concepção analítica da seguinte maneira:
“A verdadeira interpretação não é nem a irracional-idiomática [do músico] nem a puramente
analítica [do teórico], mas a restauração do elemento mimético pela análise. O elemento
neumático fornece notadamente as instruções para isso” (TRM, p.107). Explica-se: ao
reconstituir o elemento neumático da notação musical segundo as instruções mimético-
gestuais com base nos dados informados pelo elemento mensural, revela-se o sentido da
obra, a sua “verdade”, por assim dizer.
Para Adorno, portanto, a função da análise não está em mostrar como “funciona”
uma composição ou uma determinada técnica composicional, nem em legitimá-la, e sim
na solução de problemas concretos para a sua interpretação.
O esquema da fig.5 ilustra os processos da produção e da reprodução musical em
dois momentos distintos. Repara-se que o elemento mimético está associado ao gesto e à
espontaneidade, e a racionalidade, ao entendimento e à análise. Por parte do compositor,
a mimesis se manifesta numa espécie de auto-espelhamento da ideia musical em som (Hal-
liwell: self-mirroring). Um processo semelhante ocorre também no momento da interpreta-
ção, quando o espelhamento do texto leva a uma espécie de recriação do mundo (Halliwell:
world-creating). Por seu caráter dialético, mimesis e racionalidade foram posicionadas
perpendicularmente em oposição: a) no tocante ao espelhamento da ideia musical em som,
e b) no tocante à análise e sua articulação em entendimento (ou conhecimento):

16
“Zugleich aber liegt in der musikalischen Schrift ein dem Musikalischen – ihrem eigenen Inhalt
– Entgegengesetztes. Die Rationalisierung, Bedingung aller autonomen Kunst, ist deren Feind
zugleich. Die Notation reguliert, hemmt, unterdrückt immer zugleich, was sie notiert und entwickelt
– und daran laboriert alle musikalische Reproduktion. Genauer gesprochen: im Aufschreiben von
Musik ist konstitutiv bereits die Differenz von dieser mitgesetzt. Die Veräumlichung des Zeitlichen ist
notwendig, nicht bloss empirisch inadäquat” (TRM, p.71-72).

50 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Fig.5: Esquema dos processos de produção e de reprodução musical em dois momentos distintos da
história.

Considerações finais
Por interagirem tanto na produção quanto na reprodução da música, mimesis e ra-
cionalidade formam a base da Teoria da Reprodução Musical de Adorno. Uma interpretação
que recorre a apenas um único elemento estaria, portanto, fadada a fracassar.
O campo de força, por sua vez, é composto por uma grande diversidade de el-
ementos intramusicais e extramusicais que interagem de forma agonal.
Os elementos da notação musical podem ser resumidos a três: a) o idiomático,
remetendo à linguagem musical; b) o mensural, remetendo à racionalidade; e c) o neumático,
remetendo à mimese do gesto em som. Sua relação é dialética. É na historicidade da música
e na tensão entre as antinomias da sociedade que o princípio dialético se manifesta. Quanto
mais a interpretação for capaz de revelar os elementos divergentes, encapsulados no inte-
rior de uma composição musical, melhor a reprodução como um todo. O modo e a medida
em que isso deve ocorrer dependem fundamentalmente das circunstâncias históricas e do
caráter da composição.
A rigor, a relação entre mimesis e prática interpretativa já está no interior da própria
denominação da teoria de Adorno, onde o prefixo “re” em “reprodução” evidencia essa

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 51


relação em que uma composição é apresentada ao vivo. Nesse momento, ela é trazida por
meio do gesto para o plano fenomênico do som, podendo a mimesis artística se manifestar
como espelhamento e como recriação do mundo.

Epílogo
Tudo o que foi dito também se aplica, em maior ou menor grau, a outros contextos
interpretativos onde se recorre à notação musical ou a outro registro que serve à reprodução
como base. Uma variante ainda relativamente recente da mimese emergiu com a internet
e os meios eletrônicos. Também o DJ, o sampleador, o remix e o dubbing são variantes
miméticas que empregam tecnologias digitais de reprodução. Espalhando-se, em escala
global, pelas redes de comunicação, essas novas variantes de mimesis geram cópias, espe-
lhamentos e clones, entre outras formas híbridas do mundo cibernético.

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Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 53


TEORIAS ANALÍTICAS

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Um estudo neo-riemanniano de dois fragmentos
de música brasileira

Rita de Cássia Taddei


Universidade de São Paulo

Rodolfo Coelho de Souza


Universidade de São Paulo – Ribeirão Preto

A teoria de análise harmônica tonal conhecida como Harmonia Funcional, usual-


mente associada ao nome de Hugo Riemann (1849-1919), conquistou amplo espaço no Brasil
devido à influência que H. J. Koellreutter e seus alunos. Uma parcela significativa dos cursos
de música do Brasil, em universidades e conservatórios, utiliza essa teoria como ferramenta
básica para o ensino de harmonia. A pesquisa que origina esta comunicação procura desven-
dar a congruência da versão usada no Brasil da teoria da harmonia funcional, com os textos
originais de Riemann que, nas últimas décadas, tem merecido substancial reavaliação por
uma nova geração de teóricos, chamados de neo-riemannianos, entre os quais David Kopp,
Daniel Harrison, Alexander Rehding, David Lewin, Henry Klumpenhower e Richard Cohn.
Esclareça-se, todavia, que embora esteja no escopo global desta pesquisa, neste trabalho
não abordaremos o problema das transformações entre acordes mediantes, tema central
das teorias neo-riemannianas, concentrando-nos em uma revisão do problema dos acordes
cromaticamente alterados, de acordo com as proposições originais de Riemann.
Ao longo do século XIX diversos compositores contribuíram para a expansão da
linguagem harmônica tonal por meio da utilização de novas combinações de acordes, de
relações entre tonalidades distantes e do próprio vocabulário harmônico, como resultado de
um emprego sistemático da escala cromática. O uso intensivo do cromatismo foi considerado
pela teoria tradicional da harmonia como um aparente enfraquecimento da estruturação
tonal, ainda que, do ponto de vista da percepção, as obras ultra-cromáticas continuassem
a soar fortemente ancoradas no sistema tonal. Essa contradição gerou a necessidade de se
buscar novas teorias analíticas: se essa música não é totalmente coerente com os princípios
teóricos da tonalidade diatônica, que outros princípios a justificariam?
A Teoria Funcional de Hugo Riemann surgiu em 1887 trazendo como um dos seus
objetivos a proposição de um sistema capaz de esclarecer e codificar a linguagem harmônica
mais complexa que vinha então se desenvolvendo.
Na primeira parte do texto apresentaremos um resumo de alguns conceitos do
método analítico proposto por Riemann que enfocam aspectos da técnica utilizada para
descrever a estrutura de acordes alterados. Exemplificaremos esse método com um frag-
mento das “Variações sobre um Tema de Telemann” Op. 134 para piano de Max Reger.
Escolhemos uma peça desse compositor porque ele estudou pessoalmente com Riemann
e utilizou como ferramenta composicional os conceitos do mestre sobre processos har-
mônicos cromáticos.
Esse exemplo demonstrará algumas diferenças existentes entre o método original

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de Riemann e a versão da harmonia funcional usada no Brasil que na verdade é uma al-
ternativa teórica proposta por Wilhelm Maler (1902-1976) que procura simplificar o pen-
samento riemanniano tentando compatibilizá-lo com a tradição da harmonia tradicional.
Apresentaremos a seguir uma análise de duas passagens de peças brasileiras – trechos
de uma canção de Geraldo Vandré arranjada para coro por Cozzella e de uma canção de
Nepomuceno – que ilustram a diferença entre as abordagens.
Mostraremos também como a preocupação de Riemann com a unificação da fun-
ções harmônicas antecipa o conceito de expansão de tonalidade apresentado em Funções
Estruturais da Harmonia (1954), de A. Schoenberg e como sua concepção da constituição
de acordes, baseada no princípio dualista de formações ascendente e retrógrada da série
harmônica, antecipa um princípio fundamental da Teoria dos Conjuntos (1973) de Allen
Forte, demonstrando assim que os conceitos originais de Riemann pavimentaram o caminho
para a análise da música pós-tonal enquanto, por outro lado, ficaram obscurecidos quando
reformulados como a 5ª lei tonal de Wilhelm Maler, derivada de um aforismo de Reger.

A teoria de Hugo Riemann para a análise de acordes cromaticamente alterados


Riemann apresenta a formação dos acordes relacionando-os aos sons da série
harmônica em movimentação ascendente e descendente (Riemann, 1893, p.6). Conforme
Klumpenhouwer (2002, p.456) essa concepção teórica dualista ancora-se em uma sólida
linhagem de teorias desenvolvidas na Alemanha prussiana através das pesquisas de Haupt-
mann, Helmholtz e Oettingen. Estipula-se nessa teoria que a sonoridade que resulta da
ressonância da série harmônica de uma fundamental produz o acorde maior (acorde de
harmonia superior ou overclang), enquanto a congruência das notas de um acorde com a
ressonância de uma fundamental entre as possíveis séries harmônicas a que elas pertencem,
produz o acorde menor (acorde de harmonia inferior ou underclang).
No que diz respeito à questão do cromatismo, a visão riemanniana de acordes al-
terados distingue-se da visão tradicional por considerar que todas as alterações têm igual
grau de importância, e não somente aquelas que caracterizam acordes com função de
dominante ou que integram processos de modulação. Essa postulação encontrou um eco
posterior no Harmonielehre de Schoenberg em que este defende que “não existem sons
estranhos à harmonia” (Schoenberg 1922/1999, p.435).
Sendo mais preciso: a teoria de Riemann distingue dois tipos principais de dis-
sonâncias, as características e as figurativas, mas atribui a ambas significado estrutural.
Com isso Riemann procurou resolver uma questão da análise harmônica que a harmonia
tradicional (ou seja, a teoria do baixo cifrado) evitava enfrentar. No livro Harmonia Simpli-
ficada, encontramos a seguinte afirmação:

Trata-se agora de estender a categoria das dissonâncias características e organizar


em grupos o grande número de dissonâncias figurativas. Se começássemos pelas
últimas, entenderíamos que a figuração através de notas de passagem ou de
notas auxiliares naturalmente nos faz reconhecer um grande número de acordes
dissonantes, aos quais, no método usual de ensino de harmonia, fundamentado
no baixo cifrado, um excesso de importância é conferido a eles serem colocados
no nível de dissonâncias características (Riemann, 1893, p. 107).
Quanto à indicação das alterações de acordes, é importante apontar que as
mesmas ocorrem sempre em semitons ascendentes ou descendentes em relação

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a um dos graus que estruturam um acorde maior ou menor (fundamental, terça
ou quinta), havendo ainda a possibilidade de se acrescentar notas às tríades.

O sinal < indica semitom ascendente, e, de modo similar, o sinal > indica semitom
descendente. Abarcando essas duas possibilidades – alterações cromáticas ou acréscimo
de notas – Riemann obtém uma coleção considerável de acordes alterados, os quais são
apresentados detalhadamente no livro Harmonia e Modulação.

O resultado é que, dentro de uma tonalidade, são possíveis quase todas as com-
binações de três e quatro sons, englobando os doze sons do sistema temperado
– alguns até podem ser escritos de diversas maneiras. Seria, contudo, uma grande
falta não observar a teoria da tonalidade concreta, ou seja, a teoria da harmonia
baseada no sistema tonal: os três acordes de tônica, dominante e subdominante.
Precisamente, dever-se-ia fazer o contrário, reforçar nossa convicção, mas dirig-
indo a visão até as inesgotáveis possibilidades da figuração livre melódica, e que
só se obtém partindo de uma base sólida para avançar com passo seguro nessa
imensidade de formações vacilantes. (Riemann, 1930, p. 148)

Para demonstrar um dos grupos de acordes alterados, transcrevemos do livro


Harmonia e Modulação de Riemann as alterações possíveis para um acorde de tônica, na
tonalidade de dó maior (ver a figura 1).

Figura 1. Acordes de tônica alterados e com notas acrescentadas em dó maior

Empregando este método, procedemos à análise de um fragmento das Variações


sobre um tema de Telemann, Opus 134, de Max Reger (Variação X – comp. 21-28). Escolhemos
este compositor não só porque ele foi aluno de Riemann, mas também porque ele utilizou
de forma sistemática a concepção do mestre sobre processos harmônicos cromáticos como
ferramenta composicional. Antes de apresentar a análise dos oito compassos menciona-
dos, destacamos um detalhe do compasso 27, no qual ocorre um acorde com estrutura
análoga ao chamado “acorde de Tristão”, ou seja, uma sonoridade de tríade diminuta com
7ª menor (ver a figura 2). A sonoridade circulada com uma elipse é a que corresponde ao
problema em estudo. Note-se que a condução cromática desse acorde difere da resolução
wagneriana. Essa questão da resolução por deslizamento cromático do acorde de Tristão,
considerado como acorde apojatura, aparecerá, com outras configurações, nas análises de
música brasileira que apresentaremos mais adiante.

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Figura 2. Reger – Variações Op. 134 – X – c. 27 – ocorrência de uma “sonoridade de Tristão”

Segue-se a análise da estrutura harmônica dos compassos 21-28 (ver a figura 3).
Note-se que no pentagrama inferior procedemos a uma redução da estrutura harmônica
para facilitar o entendimento da estruturação dos acordes e da condução das vozes.

Figura 3. Reger – Variações Op. 134 – X – c. 21-28 – Análise da estrutura harmônica

Evidencia-se na análise da figura 3 que a metodologia original de Riemann julgava har-


monicamente relevantes, e procurava considerar na análise, todas as notas consideradas como
“de passagem” pela harmonia tradicional. As análises funcionais que normalmente são praticadas
no Brasil também evitam esse detalhamento das notas cromáticas, uma vez que a teoria que se
costuma utilizar é a versão simplificada da harmonia funcional empreendida por Wilhem Maler
que incorpora, entre outros, o conceito de nota estranha à harmonia da teoria do baixo cifrado.
Note-se também que adotamos a nomenclatura internacional para acordes relativos e anti-relativos,
conforme Harrison (1994) ou Krämer (1997): as funções relativas são indicadas com um “P ou p”
(de Parallel, em alemão) e as anti-relativas com um “G ou g” (de Gegen).

A unificação das funções harmônicas na teoria de Riemann


Examinando as análises apresentadas neste artigo, verificamos que, ao aplicar a

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teoria de acordes alterados de Riemann, resultou que todos os acordes apresentam funções
de tônica, subdominante ou dominante, o que se coaduna com o pensamento riemanniano
sobre a unificação das funções harmônicas. Segundo essa visão, qualquer passagem diatônica
ou cromática pode ser vinculada a uma única tonalidade, pois a teoria riemanniana reduz
todas as funções dos acordes de uma tonalidade como sendo subordinadas a três funções
principais: T = tônica, S = subdominante e D = dominante.
A defesa desta concepção pode ser encontrada em diversas passagens de Riemann,
como na citada abaixo, escolhida por ser de um texto tardio, o que demonstra que ele se
conservou fiel a esse princípio ao longo de sua extensa obra:

Assim como todos os acordes guardam uma estreita relação funcional com o
acorde principal de tônica, e cada novo acorde, que sucede a este, ainda que
diferente, esclarece por si mesmo seu significado pela relação que guarda com
aquele, assim também toda tonalidade estranha a um contexto harmônico, ad-
quire sua significação e sua unidade conceitual com relação ao lugar que ocupa
com referência à tonalidade principal. (Riemann, 1930, p. 152)

Para esse teórico, se entendermos cada uma das notas da melodia como parte
integrante das três harmonias fundamentais da tonalidade, em lugar de nos guiarmos indi-
vidualmente pelos sons da melodia, podemos olhar para o movimento natural das cadências
no curso normal de harmonia por meio das suas funções. Assim, formam-se cadências sobre
as harmonias da tonalidade, sem que haja uma mudança da tonalidade.
Posto que esses conceitos já haviam sido apresentados por Riemann ao redor
de 1887, é fato que eles antecederam em muitas décadas as colocações de Schoenberg
sobre monotonalidade expostas em Funções Estruturais da Harmonia (1954), como por
exemplo:
A mistura de notas e acordes alterados com diferentes progressões diatônicas,
mesmo em segmentos não cadenciais, era considerada modulação pelos teóricos
antigos. Trata-se de uma visão limitada e, portanto, obsoleta da tonalidade. Não se
deve falar de modulação a menos que uma tonalidade tenha sido definitivamente
abandonada, e por tempo considerável, e outra tonalidade tenha se estabelecido
quer harmonicamente quer tematicamente. O conceito de regiões é uma conse-
qüência lógica do princípio de monotonalidade. De acordo com este princípio,
considera-se que qualquer desvio da tônica ainda permanece na tonalidade, não
importando se sua relação com ela é direta ou indireta, próxima ou remota. Em
outras palavras, há somente uma tonalidade em uma peça, e, cada segmento,
considerado antigamente como outra tonalidade, é apenas uma região, um
contraste harmônico interno à tonalidade original. (Schoenberg, 2004, p. 37)

Examinando a extensa tabela de acordes alterados organizada por Riemann para


o livro Harmonia e Modulação e comparando-a com o quadro de regiões proposto por
Schoenberg no livro acima citado, observa-se que as semelhanças são claras, evidenciando
a influência direta do pensamento de Riemann sobre Schoenberg, ainda que este não tenha
adotado o modelo de cifragem de acordes proposta pelo outro. Para além deste aspecto
superficial de nomenclaturas verifica-se a adesão de Schoenberg a diversos princípios
fundamentais da harmonia dualista de Riemann.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 61


Relacionando a teoria de Riemann com a teoria dos conjuntos
O elemento estrutural que tomamos como base para determinar a influência do
pensamento riemanniano em relação à Teoria dos Conjuntos é a simetria. A Teoria dos Con-
juntos, geralmente associada a Allen Forte (1973), trabalha com agrupamentos de notas sem
considerar sua ordenação, as quais formam conjuntos e estes por sua vez conjuntos de classes
de intervalos. Nesta ferramenta de análise, que demonstra sua aplicabilidade a peças atonais da
primeira metade do século XX, considera-se a questão da equivalência da oitava, e trabalha-se
com a isometria. Neste contexto, um de seus postulados fundamentais é a simetria na inversão.
Retomando as propostas analíticas e estruturais de Hugo Riemann, verificamos que
o elemento simetria está presente em todas as suas abordagens. A despeito de trabalhar
com um material assimétrico, como é a escala diatônica, Riemann compreendia os intervalos
considerando alterações cromáticas ascendentes e descendentes, tal como se apresentam os
conjuntos de classes de intervalos (i) de acordo com sua quantidade de semitons (ver a figura 4).

Figura 4. Riemann – Representação de intervalos

Como vimos acima, a explicação de Riemann sobre a formação dualista dos acordes
maior e menor está embasada nos sons da série harmônica em movimentação ascendente
e descendente (ver a figura 5). Observamos que um é a inversão em espelho do outro. O
mesmo conceito é abraçado pela Teoria dos Conjuntos.

Figura 5. Riemann e Forte – Estruturação dos acordes maior e menor

Ao reorganizarmos a estrutura acima com outro formato de exposição, a simetria fica ainda
mais evidente (ver a figura 6).

Figura 6. Riemann e Forte – simetria entre os acordes maior e menor

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Complementando este aspecto da teoria de Riemann, apontamos que o cuidado
deste teórico no que concerne à simetria se estende às alterações ocorrentes nas coleções
escalares em ambos os modos, as quais ocasionarão o surgimento dos acordes menores
em modo maior e vice versa (ver a figura 7).

Figura 7. Riemann e Forte – simetria entre as alterações das coleções escalares

Analisando acordes alterados em duas canções brasileiras


Análise de um fragmento de arranjo coral de Cozzella
Trata-se de um trecho da canção Arueira de Geraldo Vandré, adaptada para coro
a quatro vozes por Damiano Cozzella. O fragmento que nos despertou o interesse está
apresentado na figura 8.

Figura 8. Fragmento da canção Arueira de Vandré em arranjo coral de Cozzella

Apresentamos na figura 9 uma redução harmônica daquela textura coral, com a


respectiva análise, tanto em cifragem tradicional, como de harmonia funcional riemanniana.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 63


Figura 9. Redução e análise harmônica do fragmento do arranjo de Cozzella

Podemos comparar os acordes 1-2-3 da passagem de Cozzella com os acordes cor-


respondentes do famoso início do prelúdio de Tristão de Isolda de Wagner. Para facilitar a
comparação transpusemos para Dó menor a progressão paradigmática de Wagner (isto é,
terça menor abaixo, uma vez que o original está em Lá menor).

Figura 10. Análises harmônicas tradicional e funcional do acorde de Tristão em Wagner

As análises da progressão de Wagner da figura 10 são de Roig-Francolí (2003, p.844-


850), para a cifragem tradicional, e de Krämer (1997, p.56), para a cifragem funcional. Note-se
que na passagem de Cozzella aparecem os mesmo acordes da progressão de Wagner, mas
em ordem reversa. Por outro lado, esses acordes têm vínculos diferentes com a topologia
funcional, pois os mesmos acordes 3 e 2 funcionam em Wagner como uma cadeia de pré-
dominantes em dó menor, enquanto na passagem de Cozzela o acorde de Tristão funciona
como dominante sem fundamental da dominante, precedida por uma dominante individual,
porém na tonalidade de ré menor.
Vale ressaltar que pode passar despercebido ao ouvinte que a passagem de Cozzela
é uma releitura da harmonia cromática wagneriana, pois esse vínculo fica obscurecido pelo
ritmo harmônico mais rápido e pelo ritmo sincopado. Mesmo assim isso demonstra que
os compositores brasileiros da geração de Cozzella consideravam como uma sofisticação,
explícita ou irônica, impregnar as harmonizações de melodias populares com a linguagem
cromática do romantismo. O mesmo poderia ser demonstrado em algumas canções de
Tom Jobim.
Análise de um fragmento de canção de Nepomuceno
Trata-se de um trecho da canção O wag’ es nicht de Alberto Nepomuceno, sobre
poema de Nicolaus Lenau. O fragmento que nos despertou o interesse está apresentado

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na figura 11. Num artigo sobre a Bar Form em Nepomuceno (Coelho de Souza, 2006)
mencionou-se a inventividade da harmonia cromática dessa passagem, sem que, porém,
ela tenha sido examinada em detalhe.

Figura 11. Compassos 21 a 23 da canção O wag’es nicht de Nepomuceno

A redução dessa passagem, apresentada na figura 12, nos permite apreciar a engen-
hosidade do deslizamento cromático na condução das vozes que favoreceu ao compositor
uma inusitada manipulação da funcionalidade tonal. Para facilitar a comparação com os
acordes cromáticos dos exemplos anteriores, considerados enharmônicamente, a redução
da passagem foi transposta uma quarta justa abaixo.

Figura 12. Redução transposta dos compassos 21 a 23 da canção de Nepomuceno

Observe-se que, neste caso, a sonoridade de Tristão é o último acorde da pas-


sagem. O início da passagem caminha por deslizamento cromático da tônica para duas
versões da dominante da subdominante, um procedimento algo sutil, mas ainda justificável
como tonalmente funcional. A novidade aparece na passagem do terceiro para o quarto
acorde da progressão, em que todas as notas daquela dominante com sétima deslizam
cromaticamente para outra sonoridade de dominante com sétima que, entretanto, não
parece ter uma funcionalidade tonal justificável. Esse acorde progride, a seguir, também
por deslizamento cromático de duas das quatro vozes (enquanto as outras duas mantém-se
suspensas) para uma sonoridade que, neste contexto de harmonias cromáticas, sugere a
sonoridade de um acorde de Tristão, enquanto o anterior poderia sugerir uma sonoridade

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de sexta aumentada germânica (que, entretanto, não resolve adequadamente de modo a
confirmar essa hipótese). O acorde em questão vai ser resolvido na seqüência como um
acorde usual de subdominante, mas na tonalidade tônica relativa. Vemos assim como as
sonoridades cromáticas do âmbito da progressão wagneriana do Tristão são usadas aqui
com outro propósito, o de modular para outra tonalidade.

Conclusão
Este estudo sobre a teoria harmônica riemanniana procurou demonstrar como o
entendimento usual que se dá no Brasil ao estudo da harmonia funcional deixa a desejar
primeiramente na compreensão de seus fundamentos teóricos, como é o caso de se
desconsiderar seus fundamentos dualistas e seu objetivo central de dar conta das alterações
cromáticas dos acordes funcionais. Também deixa a desejar quando ela não é aplicada
com todos os critérios da teoria riemanniana ao estudo das progressões cromáticas, tanto
na música erudita brasileira do período romântico, quanto da MPB da segunda metade
do século XX, que, conforme estabelecemos, utiliza diversas características da harmonia
romântica em sua linguagem.

Referências bibliográficas
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SIMPEMUS 3 - Anais do Simpósio de Pesquisa em Música 2006. Curitiba: Editora Deartes,
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FORTE, Allen. The Structure of Atonal Music. New Haven: Yale, 1973.
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musical thought.” In: Christensen, (ed.). Thomas Western Music Theory. Cambridge:
Cambridge University Press, 2002.
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ROIG-FRANCOLÍ, Miguel A. Harmony in Context. New York: McGraw, 2003.
SCHOENBERG, Arnold. Funções Estruturais da Harmonia. (1ª ed. 1954). Trad. Eduardo Seic-
man. São Paulo: Via Lettera, 2004.
SCHOENBERG, Arnold. Harmonia. (1ª ed. 1922). Tradução de Marden Maluf. São Paulo:
Edunesp, 1999.

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A análise rítmica: uma perspectiva da percepção no
contexto do século XXI

Eduardo Lopes
Universidade de Évora – Portugal

Jim Samson (1999) de uma forma pragmática e totalmente inclusiva conecta o


‘antigo’ e o ‘novo’ lembrando à ‘Nova’ Musicologia a preocupação de Umberto Eco sobre
“os perigos da superinterpretação” (levada pela superintertextualidade), apontando que do
ponto de vista histórico por vezes tem sido errado simplesmente ignorar a voz conservadora.
Samson conclui que o antigo formalismo – como a musicologia contemporânea – vivem do
prazer e da intensidade, e que a co-existência de perspectivas pode criar aquele ‘surplus’
que resultaria numa melhor crítica – sendo esta a razão, se houver necessidade, para uma
defesa do formalismo. Samson não está somente a pedir cuidado a alguns que por vezes
procuram indiscriminadamente ‘novidade’, mas mais importante está a defender uma
forma de estudar a música totalmente inclusiva – em que o musicólogo poderá escolher a
‘ferramenta’ (antiga ou contemporânea) que lhe será mais ajustada para o seu argumento
e objectivo final que será sempre o desfrutar a música.
A teoria da música no mundo pós-moderno (democrático e inclusivo) deverá assim
também considerar os ouvintes, examinando assuntos mais ligados à experiência da música,
evitando somente o uso de abstracções ideológicas. Sobre isto, Eugene Narmour (1984)
refere que provavelmente devido à visão Romântica do artista como um ‘sacerdote’, tem
sido assumido que uma relação directa existe entre o que um compositor planeia e o que
o ouvinte recepciona. Para Narmour não há nenhuma razão a priori para acreditar que a
correspondência entre estruturas composicionais e estruturas perceptuais é constante. O
interface perceptual entre a música (composição) e o ouvinte é uma das relações mais tran-
sitórias e flutuantes de todo domínio da comunicação humana. O facto de um compositor
planear cuidadosamente aquilo que pensa serem as relações estruturais de uma peça não
garante que estas sejam percepcionadas pelos ouvintes. Para Narmour, um compositor po-
derá estruturar à partida um esquema de tonalidades para uma secção de desenvolvimento
de 200 compassos, mas depois de composto, este esquema que dura um longo período de
tempo poderá não possuir qualquer significado estrutural do ponto de vista da percepção
– movendo-se assim distante do ouvinte.
São então as qualidades perceptuais da superfície musical (ritmo e métrica) que, num
contexto pós-moderno, deverão ser ainda mais exploradas devido à sua fácil relação com
os ouvintes. Em linha com isto, Just in Time (Lopes, 2003) propõe uma construção teórica
capaz de avaliar a operação e qualidades derivadas de uma sequência rítmica duracional,
e a sua interacção com outros parâmetros musicais. Esta construção foi desenvolvida em
três partes: (1) estudando o comportamento perceptual do ritmo e da métrica como uma
unidade - na forma como é apresentada aos ouvintes; (2) estudando independentemente o
ritmo e a métrica de forma a produzir duas taxinomias ou modelos operacionais; (3) reinte-
grando o ritmo e a métrica como uma unidade perceptual. Este artigo irá então apresentar

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 67


a construção Just in Time como uma ferramenta de análise musical rítmica capaz de abordar
vários géneros musicais numa perspectiva pós-moderna: a próxima secção apresentará um
resumo da conceptualização da construção teórica, seguindo-se, em forma de estudo de
caso, uma análise rítmica de parte da peça March - uma das Eight Pieces for Four Timpani
de Elliot Carter.

O Empirismo na Construção Rítmica Just in Time


Após a formulação com algum detalhe de qualquer teoria sobre uma determinada
área artística, e se as regras propostas correspondem de alguma maneira aos princípios
inconscientemente reconhecidos e usados pelos receptores de uma determinada obra de
arte, devemos sempre de questionar a forma de como estes receptores os assimilam; de
todas as possíveis organizações que se podem formular sobre uma determinada teoria, por-
que será que os receptores inferem determinadas organizações? A resposta que parece ser
mais consensual é a de que muita da complexidade da instituição artística não é aprendida
mas existe inerentemente na organização da nossa mente, ela própria determinada pela
herança genética humana. No que respeita à música, os teóricos Lerdahl and Jackendoff
(1983) denominam o anterior por musical innateness. Lerdahl and Jackendoff acreditam
que a existência de diversos universos de teoria musical, que são resultantes da difusão
cultural ou “acidentes” históricos, não afectam a base de competências cognitivas de toda a
raça humana – aspectos inatos da mente que transcendem culturas ou períodos históricos.
Os autores referem que se por um lado alguns universos musicais diferem em possibilida-
des métricas, não existe nenhuma música que faça uso de regularidades métricas de, por
exemplo, 31 em 31 tempos.
Se por um lado, o conceito de musical inateness de Lerdahl and Jackendoff não refere
considerações de ordem fisiológica, eu acredito que estas considerações são tão relevantes
quanto as de ordem psicológica. De acordo com Maury Yeston (1976), para além de con-
tribuir com uma base de dados que poderá ser utilizada por todos os teóricos, uma teoria
que enraíze o processo da percepção musical na fisiologia e psicologia nunca foi formulada
sistematicamente. Yeston acredita que essa formulação deverá estar intimamente ligada a
modelos fisiológicos baseados quer nos ritmos biológicos internos (batimento do coração,
pulsação, ondas alfa, e outros relógios internos) como nas actividades externas humanas
(caminhar, saltar, etc.). Com uma atitude orientadamente Gestalt, dever-se-á então tentar
descobrir operações intrínsecas ou construções perceptuais, como por exemplo a tendên-
cia inata humana de agrupar objectos (virtuais ou reais) em grupos recorrentes de 2 ou 3.
O conceito psicológico Gestalt da unidade temporal do Par, propõe uma organização
mental de sequências temporais por pares de pulsações contínuas. Segundo Koffka (1935),
para ouvirmos duas pulsações como um par, estas terão que estar unidas por forças de al-
guma espécie. O problema principal deste conceito, está em que a primeira pulsação deixa
de existir no momento em que aparece a segunda. Assim, a conclusão de que forças são
necessárias para produzir a unidade do Par de pulsações faz assumir os psicólogos Gestalt
de que apesar da primeira pulsação deixar de existir aquando do início da segunda, algo
deverá ter ficado que serve como um dos pontos nos quais as forças se fazem sentir – este
processo é conhecido como “rasto”. Esta percepção de algo que apesar de terminado se
mantém presente levou a que, segundo os princípios Gestalt para a organização cognitiva
de unidades, fosse proposto que a primeira unidade de um grupo seja perceptualmente
descodificada como mais saliente.

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Uma Taxinomia da Métrica
Os compassos binários são de grande importância no processo da organização
métrica da música (Lopes, 2008a). Estruturas deste tipo são compostas por dois tempos,
em que o primeiro é perceptualmente mais acentuado que o segundo (Fig. 1).

Fig. 1. Organização interna de um compasso binário

Para melhor entender as qualidades perceptuais dos compassos binários, é rele-


vante reavivar a retórica Grega e os conceitos de thesis e arsis, aplicados aos pés métricos.
O historiador Curt Sachs (1953) explica que existe duas secções para cada pé métrico: uma
forte e outra fraca. No entanto, esta diferença de pesos não seria sempre realizada; bastava
por vezes sugeri-la. Os Gregos apelidavam a parte forte de thesis ou basis, ou simplesmente
kato (para baixo), pois os maestros de coros marcavam esta parte (tempo) batendo com
o pé no chão. A parte (tempo) fraca, coincidia com o levantar do pé e era apelidada de
arsis (levantar), ou ano (para cima). Da mesma forma, mais tarde, os Romanos falavam
de positio e sublatio. A acção do maestro Grego em bater com o pé na parte forte do pé
métrico, e levantá-lo na parte fraca, é uma clara realização das qualidades perceptuais dos
compassos binários que têm sido discutidas até agora neste artigo. Hoje em dia o maes-
tro moderno quando dirige um compasso binário ainda o faz de uma maneira similar ao
maestro Grego através dos movimentos que realiza para baixo e para cima com a batuta.
Utilizando o conceito gravitacional, pode-se descrever isto da seguinte forma: o peso do
primeiro tempo tende a estabilizar o movimento, como é demonstrado no bater do pé no
chão ou o movimento para baixo da batuta; o segundo tempo, perceptualmente mais fraco,
cria um potencial cinético que procura estabilidade, sendo realizado através do movimento
para cima do pé ou batuta.
Organizações ternárias representam de certa maneira elaborações de organizações
base binárias (Lopes, 2008b). Desta maneira poder-se-á conceber um compasso ternário
como um compasso binário ao qual foi adicionado um tempo extra (Fig. 2).

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 69


Fig. 2. Derivação de um compasso ternário

Que peso perceptual terá então o “novo” terceiro tempo? O princípio da relativa
sucessão de tempos fracos do primeiro ao último tempo foi confirmada através do trabalho
experimental (Lopes 2003), dando assim a seguinte forma para a organização interna de
um compasso ternário (Fig. 3).

Fig. 3. Organização interna de um compasso ternário

Uma Taxinomia do Ritmo


Durante o processo cognitivo de inferência de uma sequência de tempos (grelha
métrica), é a relativa proporção das durações das notas que define a subdivisão dos tempos.
Trabalho experimental conduzido por Povel e Essens (1985) mostra que uma sequência
duracional composta pelas seguintes durações: 250/250/250/250/1000 mseg. será inferida
como dois tempos com a duração de 1000 mseg. cada, em que o primeiro começa na primeira
duração de 250 mseg., e o segundo iniciar-se á na duração de 1000 mseg. Tendo em conta
que neste caso as durações das notas têm uma relação de potência de 2 (mais precisamente
uma relação de 1:4), a subdivisação dos tempos será interpretada como binária.
A Fig. 4 apresenta exemplos de células rítmicas de subdivisão binária num contexto
de um tempo equivalendo a uma semínima. Dever-se-á considerar que a notação utilizada
derivada dos pés poéticos (similar à utilizada em Cooper e Meyer 1960), ilustra apenas as
relações interiores de uma célula; tendo em conta o número infinito de possíveis células
rítmicas (resultando num número infinito de relações internas), Just in Time adoptou uma
notação mais aberta, que no entanto não deixa mostrar eficientemente a organização
básica das células rítmicas.

70 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade


Fig. 4. Células rítmicas de subdivisão binária

Contrastando com a células rítmicas apresentadas na Fig. 4, as da Fig. 5 não apre-


sentam uma hierarquia de durações salientes; este tipo de células só poderão ser abordadas
num determinado contexto métrico ou através do conceito de motivos rítmicos: fazendo
parte de um grupo de células.

Fig. 5. Células rítmicas isócronas

A Fig. 6 apresenta vários exemplos de células rítmicas de subdivisão ternária e as


suas organizações internas; estando estas notadas com base em tempos com a duração de
uma semínima pontuada.

Fig. 6. Células rítmicas de subdivisão ternária

Em nível hierárquico mais elevado, grupos de células rítmicas perceptualmente


identificáveis (como aqueles precedidos e seguidos por pausas) são apelidados de motivos
rítmicos. Operando de uma forma similar às células rítmicas, os motivos rítmicos podem
funcionar perceptualmente como um eficaz meio para acentuar ainda mais uma determi-
nada nota. A Fig. 7 mostra o processo de acentuação de dois motivos rítmicos, notados
novamente num contexto métrico de um tempo equivalendo a uma semínima. No motivo
rítmico a) a semínima é extremamente acentuada pois é precedida por um número sig-
nificativo de pequenas durações; a grande acentuação que a colcheia recebe no motivo
rítmico b) é acção não só da grande quantidade de relativamente pequenas durações que
a precedem mas também através do crescendo de acentuação que resulta da diminuição
da duração das notas.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 71


Fig. 7 Exemplos de motivos rítmicos

Um Estudo de Caso
Em forma de caso de estudo, apresentarei uma análise rítmica de um excerto musical
tentando mostrar de que modo Just in Time operacionaliza e aborda as qualidades rítmicas
de uma peça musical. Este excerto compreende a primeira página do andamento da March
– uma das oito peças de Elliot Carter para Quatro Tímpanos.
Com os quatro tímpanos afinados nas notas g2-b2-c3-e3, o início da March envolve
o uso de duas sonoridades distintas, criando assim uma sensação de duas linhas musicais.
Isto é realizado pela mão esquerda tocando com a baqueta ao contrário (ponta de madeira),
e a mão direita tocando com a parte normal (ponta de feltro). A qualidade de som staccato
na mão esquerda, juntamente com o padrão de ostinato rítmico, estabelece uma linha de
acompanhamento; o som normal dos tímpanos na mão direita, juntamente com a expressão
tenuto estabelece facilmente uma linha melódica.
Questões de ordem métrica numa peça intitulada “March” são também importantes
de abordar. Embora em alguns casos a natureza simples de um compasso binário é o pre-
ferido, as qualidades firmes, focadas, e conduzidas do ato de marchar parecem ser melhor
representadas por uma métrica quaternária.
Como mostra o exemplo na Fig. 8, as construções rítmicas que melhor reflectem
as qualidades básicas de uma marcha são aquelas em que uma nota é atribuída a cada um
dos três primeiros tempos, sendo o quarto tempo composto por uma célula que acentua
o 1º tempo seguinte. Desta forma, enquanto os três primeiros tempos implicam uma cer-
ta qualidade passo-a-passo em ordem com a qualidade cinética de marcha, as durações
menores no quarto tempo servem uma espécie de trampolim, resolvendo o movimento
iniciado para o primeiro tempo, completando assim e organizando perceptualmente o
compasso quaternário.

Fig. 8. Uma construção rítmica típica de marcha

72 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade


Embora num contexto de uma métrica notada de compasso quaternário (4/4), o
início da March não cumpre as generalidades e qualidades rítmicas de uma marcha. Isto
acontece devido a todo o trecho introdutório (compassos 0-2) não apresentar qualquer
acentuação clara no primeiro tempo do compasso. Também, e tendo em conta a anacrusa
longa (compasso 0), a peça começa com uma acentuação clara no terceiro tempo através
do ênfase criado pelas duas notas em uníssono. Por outro lado, a organização das alturas
dos sons desta peça (com base num acorde dó maior de sétima) acentua o terceiro (e o
primeiro), tempos na linha de acompanhamento. Desta forma, em comparação com [0:3]1,
[1:1] recebe apenas uma pequena acentuação derivada dos parâmetros da frequência -
considerando a nota dó como mais perceptualmente saliente no contexto tonal de dó maior.
Também, [2:1] não apresenta qualquer nota, sendo seguido por uma acentuação notória no
segundo tempo devido a ser precedido por 3 notas curtas. O compasso segue ainda com três
notas salientes (longas) em pontos métricos fracos. Através de duas notas, só existe então
uma acentuação clara no primeiro tempo do compasso quaternário em [3:1] - o início da
secção A. Porque a relevância da introdução da peça só pode ser plenamente avaliada mais
tarde, por enquanto deve-se principalmente ter em conta que a linha de acompanhamento
ao colocar notas em todos o tempos do compasso quaternário está em conformidade com
uma das generalidades das marchas; mas não havendo uma clara acentuação do primeiro
tempo nos primeiros dois compassos e meio, não se poderá assumir que as qualidades
básicas de marcha estão presentes na introdução desta peça.

Fig. 9. Análise rítmica Just in Time

A Fig. 9 apresenta uma análise rítmica dos primeiros quatro compassos da secção
A. Como mencionado anteriormente, esta secção começa com uma saliência clara em [3:1],
causada não só pela ênfase da melodia e notas de acompanhamento, mas também pela
resolução do movimento cinético anterior (abordarei isto mais adiante). Assim, do ponto
de vista rítmico, as saliências claras em [3:1], e [5:1], juntamente com o padrão de acom-
panhamento do ostinato, criam nos compassos 3 a 5 uma sensação razoável de marcha.
Vale também a pena mencionar que a organização da afinação dos tímpanos, com as notas
do acorde de sétima maior (especificamente a tónica e a quinta no acompanhamento, e
a terceira e sétima na melodia) provocam também uma sensação de fanfarra. Por outro
lado, o movimento controlado passo-a-passo da marcha é de certa forma contrastado pela

1
[nr. de compasso:nr. de tempo]

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 73
acção das notas da melodia colocadas em pontos métricos fracos que libertam impulsos
cinéticos (energia perceptual através da instabilidade métrica). Devido à diferença de ca-
rácter entre as duas linhas musicais (quase como dois intérpretes), acredito que a energia
cinética liberada pela linha melódica nos compassos 3 e 4, tende a não resolver nos tempos
fortes da linha de acompanhamento - daí notados como livremente se dissipando (setas
em tracejado). No entanto, mantendo a linha de acompanhamento o seu padrão ao longo
deste compasso, qualquer eventual ambiguidade métrica criada pelo grande momento
cinético dos compassos 3 e 4, é resolvida pela saliência das duas notas em [5:1]. Também,
[5:1] inicia perceptualmente outra frase bastante cinética de dois compassos (compassos
5-6). Começando de uma forma idêntica à frase anterior, a linha da melodia torna-se cada
vez mais cinética até o final do compasso 5. Devido à última nota do compasso 5 ser ime-
diatamente precedida (sem pausas no meio) por outra nota muito instável, parte da energia
cinética desta última poderá ser avaliada como resolvendo na primeira (como mostra a seta
tracejada vertical na Fig. 9). Assim, a última nota do compasso 5 receberá uma acentuação
devido à resolução da energia cinética das notas anteriores, tornando-se mais saliente, e
liberando ainda mais energia. Este momento extremamente cinético impulsiona a peça
para o compasso 6, elevando assim em mais um estado o crescendo de cinética - através
da eliminação da qualidade de continuidade do acompanhamento em ostinato. Idêntico
ao motivo rítmico do final do compasso 5, as três últimas notas pertencentes ao motivo
rítmico que começa em [6:2] recebem uma acentuação extra resultado da resolução da
energia cinética da nota anterior. Criando um efeito bola-de-neve que consiste no aumento
da saliência e energia cinética de nota para nota, o processo anterior desenvolve um cres-
cendo de sensação de movimento de dois compassos até ao seu clímax na última nota do
compasso 6. Este padrão rítmico infere então um momento extremamente cinético que é
resolvido em [7:1] (similar à transição entre os compassos 2 e 3).
De forma a manter o contexto do compasso quaternário no sequencia da grande
instabilidade rítmica do compasso 6, a linha de acompanhamento do compasso 7 apresenta
pela primeira vez na peça um exemplo da forma rítmica básica de uma marcha (ou seja,
incluindo uma célula rítmica no quarto tempo que acentua o tempo seguinte). Iniciando com
uma saliência clara em [8:1] e por três compassos, a melodia cria um momento bastante
cinético que é resolvido de três em três tempos - acentuando assim [8:4] e [9:3]. Desta forma,
a melodia cria a um nível hierárquico mais elevado uma polirritmia de três-contra-quatro,
aumentando assim a consciência para o padrão de três tempos que é iniciado em [8:1], [8:4]
e [9:3]. No compasso 10, há uma mudança de métrica para um compasso 5/8. Sem a linha de
acompanhamento, a melodia termina o terceiro dos últimos padrões de três tempos, come-
çando um outro no terceiro tempo. Este último padrão fica incompleto devido ao tamanho
do compasso 5/8, e é seguido por uma saliência clara em [11:1], marcando assim o retorno
da construção quaternária. O compasso 10 pode então ser avaliado como uma coda às frases
anteriores de dois compassos. Embora Carter pudesse manter a construção quaternária no
compasso 10, completando o ciclo de polirritmia três-contra-quatro em [11:1], ele optou
por não fazê-lo. Em vez disso, decidiu romper abruptamente a fácil percepção da resolução
do padrão de três-contra-quatro. Ao mesmo tempo que a diminuição súbita de estabilidade
devido à remoção da linha acompanhamento, a natureza desequilibrada do compasso 5/8
cria um efeito de tropeço que só é resolvido em [11:1]. Considerando que o compasso 11
inicia um momento idêntico aos compassos 8-9, a construção rítmica do compasso 10 pode
ser avaliada como um dispositivo de interjeição perceptualmente eficiente, que também

74 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade


enfatiza o retorno das qualidades da polirritmia três-contra-quatro.
Embora idênticos aos compassos 8-9, as construções rítmicas dos compassos 11-12
pontuam mais fortemente as frases de três tempos. A fim de avaliar a diferença entre ambas
as construções, vamos apresentar novamente uma análise com a notação Just in Time.

Fig. 10. Análise rítmica Just in Time dos compassos 8 e 11

Como apresenta a Fig. 10, a construção rítmica do compasso 8 é composta por uma
saliência no primeiro tempo que inicia uma frase de três tempos; seguindo-se 3 momentos
cinéticos, dos quais o último resolve no saliente quarto tempo, começando aqui a próxima
frase de três tempos. Embora começando da mesma forma que a construção rítmica do
compasso 8, a construção do compasso 11 difere substancialmente no terceiro tempo – o
tempo que precede o primeiro de uma frase de três tempos. Em ambas as linhas de música,
o terceiro tempo inclui células rítmicas que acentuam ainda mais o tempo seguinte. Na
linha da melodia este processo compreende um grande momento de cinética, que pode
ser avaliado como resolvendo na próxima nota, e assim activamente acentuando ainda
mais o tempo forte seguinte. Deve-se ter em mente que tendo em conta a distância entre
os pontos de ataque, a acentuação produzida pela resolução do grande momento cinético
da colcheia pontuada em [8:3], é mais fraco do que o produzido pelo conceito células
rítmicas - em que a distância entre os pontos de ataque da célula e da nota a acentuar é
relativamente mais pequeno.
Carter reitera a sua composição rítmica através da atribuição de sinais de stress, e
crescendo e decrescendo de acordo com o referido anteriormente. Embora pelo que men-
cionei atrás, evitei analisar ambas as linhas musicais como uma só, no entanto devo referir
que neste exemplo, uma descrição rítmica de nível hierárquica superior poderia considerar
ambas as linhas, produzindo assim uma célula única de quatro semicolcheias - o que iria
novamente acentuar ainda mais o quarto tempo. O processo rítmico e resultado no final
da segunda frase de três tempos [12:2] é idêntico ao da primeira, contendo apenas uma
ligeira alteração na forma do ritmo das linhas individuais - isto sem alterar a qualidade
particular da construção total.
Diferentemente da anterior frase de três compassos com a polirritmia de três-contra-
quatro (compassos 8-10), o ultimo padrão de três tempos é completo. Isto deve-se ao fato
de que Carter mantém o compasso 13 como quaternário, permitindo assim que os ciclos de
três-contra-quatro possam ser concluídos. Somando-se à grande saliência do primeiro tempo

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 75


do padrão de três tempos, [12:3], Carter acentua ainda mais o último tempo do padrão (a
colcheia pontuada em [13:1]), precedendo-a de três notas curtas. Sem a presença do cons-
tante acompanhamento quaternário, o aumento da saliência destes tempos extremamente
cinéticos no padrão de três tempos, inicia um processo perceptual de modulação. Através
do dispositivo enfático de duas notas, a nota na segundo metade de [13:3] é acentuada.
Assim, Carter reitera sua intenção de acentuar todos as notas do padrão, através da notação
um crescendo no final do compasso 13. Desta forma, o aumento contínuo da importância
de cada uma das 4 notas bastante cinéticas e igualmente espaçados do padrão de três
tempos, culmina numa modulação de tempo em [14:1]. Resumindo, o processo rítmico da
modulação de tempo que leva a semínima da secção A de 104 (por minuto) num compasso
quaternário, para um tempo de semínima = 140 no compasso 14, pode ser avaliado em
três etapas: (1) Carter começa por introduzir um padrão de 4 notas perceptualmente muito
cinéticas que reflectem o tempo a atingir, na forma de uma polirritmia de três contra quatro
(compassos 8-9). (2) Esta construção é também perceptualmente reforçada nos compassos
11-12 através da acentuação activa na primeira nota de cada padrão de quatro notas. E
por último (3), juntamente com a eliminação da linha de acompanhamento, o compasso
13 descarta completamente a construção quaternária através de acentuar ritmicamente (e
fisicamente através de sinais de stress) as restantes notas do padrão de quatro.
Neste ponto, e tendo em conta a análise rítmica da secção A, eu gostaria de voltar
brevemente à introdução da peça. A natureza pouco clara acima mencionada do compasso
quaternário nos compassos 0-1 - em que a primeira saliência da peça é [0:3], e em que o
compasso 1 não tem nenhuma saliência clara no primeiro tempo - introduz o motivo da
contradição constante da métrica quaternária na linha melódica da secção A. Mas impor-
tante de observar é a construção do compasso 2, que inclui as duas principais construções
rítmicas envolvidas no discurso musical da secção A. A partir de [2:2] é facilmente observável
o padrão de quatro notas, que não só dá origem à polirrtimia de três-contra-quatro, mas
que também está presente na fase final da modulação. Além disso, o dispositivo rítmico
que Carter utiliza no compasso 2 para acentuar ainda mais o padrão de quatro notas, é
uma célula rítmica que se torna fundamental na fase final da modulação; acentuando, pela
primeira vez uma nota diferente que a primeira do padrão de 4 notas (a colcheia pontuada
em [13:1]). Esta célula rítmica torna-se assim o ponto de pivô do momento modulatório.
Carter usa assim a introdução de March para apresentar material temático significativo
para o desenvolvimento da peça.
Consistindo apenas em uma linha de musical, a secção B da March começa no
compasso 14 com quatro notas que definem claramente o novo contexto métrico (especi-
ficamente o novo tempo). Consistindo em construções rítmicas quaternárias básicas, esta
secção apresenta uma série de frases explorando o contraste entre a sonoridade dos tímpa-
nos normal com a sonoridade em staccato de “ponta de madeira”. Depois de uma mudança
da métrica quaternária da secção B para uma binária (2/4) no compasso 24 (que de certa
forma funciona como uma resolução estendida do motivo rítmico iniciado em [23:3]), um
outro processo de modulação começa a emergir. No compasso 25 uma mudança métrica
é apoiada pelas colcheias como um denominador comum, dando origem a um compasso
de 10/8. A construção rítmica deste compasso compreende uma simples sequência de dez
colcheias em que a primeira e a sexta estão notadas com um stress. Com uma acentuação
clara na primeira colcheia, o compasso 26 reintroduz as duas linhas musicais, tornando a
sexta colcheia extremamente saliente. Da mesma forma, o primeira colcheia no compasso 27

76 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade


é também acentuada. A crescente saliência das notas nos pontos que dividem o compasso
10/8 em duas partes iguais que ocorre nos compassos 25-27, culmina surpreendentemente
com uma pausa na segunda metade do compasso 27. Após a densidade da sequência de
dez colcheias, e a crescente consciencialização perceptual da divisão do compasso em duas
partes iguais, a total falta de actividade rítmica na segunda parte do compasso 27 é um
outro dispositivo perceptual para inferir a métrica pretendida. A modulação métrica de 10/8
para um compasso de 2/2 é então realizada no início da secção de C da peça (compasso
28). Gostaria também de salientar que devido à segunda metade do compasso 27 ser uma
pausa, Carter precedeu-o com uma nota muito cinética (a segunda na linha da melodia) a
fim de conectar as duas secções. Embora esta nota não esteja em completa sintonia com a
modulação em curso, a grande cinética libertada cria uma ponte perceptual entre as duas
secções, escalando no ornamento de duas notas e com resolução em [28:1].
Esta análise tornou evidente o domínio de Carter da composição rítmica. Não só
esta peça implica uma grande quantidade de qualidades perceptuais rítmicas, mas também
foram encontrados recursos composicionais rítmicos que promovem a ideia da consciência e
controle que Carter possui sobre as qualidade intrinsecamente rítmicas. Num contexto que
se poderá dizer empobrecido de alturas de notas, Carter utilizou principalmente os parâme-
tros duracionais a fim de produzir um discurso musical. Na March, pode-se observar como
Carter moldou ritmicamente um dos temas mais comuns na música ocidental (a marcha),
conferindo-lhe até uma roupagem de vanguarda. Esta peça é também um excelente texto
para o estudo de uma das assinaturas composicionais de Carter - a modulação métrica.
Usando as qualidades rítmicas primárias da saliência e cinética, Carter explora diferentes
processos para realizar com sucesso estas modulações. Desta forma, esta peça também
serve como um bom estudo de caso sobre a capacidade dos parâmetros rítmicos como
ferramenta composicional de modulação.
Para concluir, embora a análise anterior aborde principalmente um contexto pu-
ramente duracional, a construção Just in Time poderá também ser usada como uma ferra-
menta na análise de música com uma maior componente de estruturas de pitch, apontando
qualidades rítmicas, e como essas qualidades são integradas com outros parâmetros. Esta
integração poderá ser conceptualizada numa abordagem rhythm-to-pitch ou pitch-to-
rhythm de Maury Yeston (1976); ou mesmo numa abordagem analítica multi-paramétrica,
como proposto por Eugene Narmour (1983). Além disso, porque o modelo promove uma
compreensão sistemática dos meios para produzir, sublinhar, ou contradizer saliência e
cinética rítmica, acredito que ele poderá ter algo a oferecer à composição, interpretação
e ensino de música.

Bibliografia
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1960.
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Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 77


em Teoria da Música). Departamento de Música. Universidade de Southampton. Reino
Unido, 2003.
LOPES, E. “Rhythm and Meter Compositional Tools in a Chopin’s Waltz”. Ad Parnassum
Journal, v. 6, n. 11, p. 64-84, 2008a.
LOPES, E. “From Blues to Latin Just in Time: A rhythmic analysis of ‘Unit Seven’”, Jazz Research
Journal, v. 2, n. 1, p. 55-82, 2008b.
NARMOUR, E. “Some Major Theoretical Problems Concerning the Concept of Hierarchy in
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POVEL, D.; Essens, P. “Perception of Temporal Patterns”. Music Perception, v. 4, p. 411-440,
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SACHS, C. Rhythm and Tempo: a study in music history, New York: W. W. Norton, 1953.
SAMSON, J. “Analysis in Context”. In: Cook, N; Everist, M. (eds.). Rethinking Music. Oxford:
Oxford University Press, 1999, p. 34-54.
YESTON, M. The Stratification of Musical Rhythm. New Haven: Yale University Press,
1976.

78 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade


A variação progressiva aplicada na geração de
ideias temáticas

Carlos Almada
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Elaborado por Arnold Schoenberg, o princípio da variação progressiva descreve es-


sencialmente o conjunto de procedimentos composicionais empregados na contínua trans-
formação da ideia primordial (ou Grundgestalt, segundo a terminologia schoenberguiana)
de uma determinada peça, gerando motivos, temas e fragmentos temáticos. Esse princípio
foi elaborado por Schoenberg a partir de análises de obras de, entre outros, Bach, Mozart,
Beethoven e, especialmente, Brahms, a quem deve reconhecidamente o desenvolvimento
de várias das técnicas elaborativas em sua própria música.1 As inúmeras possibilidades
geradas pela variação progressiva têm merecido considerável atenção nas últimas décadas e
são tema de vários estudos acadêmicos (ver Carpenter, 1983; Frisch, 1984; Dahlhaus, 1990;
Haimo, 1997 e Dudeque, 2003, 2005 e 2007). O assunto também vem sendo um de meus
objetos de pesquisa, antes mesmo da concepção do projeto atual, resultando em exames
analíticos de peças de Beethoven (Almada, 2008b), Schoenberg (Almada, 2007 e 2009) e
Alban Berg (Almada, 2008a e 2010b). O presente estudo inicia uma abordagem que visa,
em última instância, o estabelecimento de bases para a elaboração de tipologia abrangente
e detalhada e metodologia analítica para a variação progressiva, considerando não apenas
o conjunto de técnicas existentes e os meios com que elas podem ser aplicadas, como as
próprias finalidades de seu emprego, o que está ligado a uma concepção estrutural dos meios
composicionais. Das várias finalidades existentes, é aqui destacada aquela que pode ser
considerada a primordial: a extração de material construtivo de uma Grundgestalt (podendo
se apresentar como uma unidade monolítica ou subdividida em fragmentos básicos) para a
elaboração de diversas ideias temáticas componentes de uma peça, o que pode ser efetuado
diretamente ou através de transformações progressivas, revelando linhas de derivação
por vezes consideravelmente complexas. É justamente este o caso da obra escolhida para
a exemplificação de tais procedimentos derivativos, a Primeira Sinfonia de Câmara op.9,
composta por Schoenberg em 1906, da qual serão analisados diversos trechos.

informações básicas sobre a Sinfonia de Câmara


Pertencente à porção final do período tonal schoenberguiano, a Primeira Sinfo-
nia de Câmara op.9, escrita para quinze solistas,2 é extraordinariamente peculiar. Embora

1
Ver, por exemplo, o famoso ensaio Brahms the progressive, publicado na coletânea Style and idea
(Schoenberg, 1984, p. 398-441). É também bastante ilustrativa a análise que Schoenberg faz do
primeiro movimento do quarteto de cordas K 465 de Mozart, sob o aspecto da variação progressiva
(Schoenberg, 2006, p. 53-60).
2
Flauta (e flautim), oboé, corne inglês, requinta, clarineta, clarone, fagote, contrafagote, duas

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 79
centrada na tonalidade de Mi maior, apresenta uma considerável expansão dos recursos do
tonalismo, levando-o a latitudes inéditas.3 Uma de suas principais características é a arquitetura
formal, fundamentada em um único e ininterrupto movimento de grande extensão (596 com-
passos), subdivido, num nível básico, em cinco grandes partes, sendo sua sucessão organizada
de modo a evidenciar uma revolucionária concepção de forma-sonata em larga escala. Como
se observa no esquema da fig.1, é possível considerar que as partes ímpares (representadas
pelos retângulos sombreados) formam uma espinha dorsal de sonata, com as partes pares
interpondo-se a suas fronteiras, funcionando como espécies de episódios contrastantes.

Figura 1 - duas interpretações para a estrutura básica das cinco Partes da Sinfonia
Figura 1 - duas interpretações para a estrutura básica das cinco Partes da Sinfonia

Chama também bastante atenção na Sinfonia a profusão de temas e motivos, em


diferentes funções e gradações de importância hierárquica.4 Como se pretende demonstrar
neste estudo, todos os nove mais importantes temas que compõem a obra, por mais dis-
tintos que sejam seus formatos e estruturas motívico-frasais, apresentam entre si notáveis
graus de parentesco, que podem, em última instância, ser associados retroativamente à
ideia primordial – a Grundgestalt.5

A Grundgestalt da Sinfonia de Câmara e seus componentes


O ex. 1 apresenta uma redução dos quatro compassos de abertura da Sinfonia, de
modo a melhor evidenciar sua Grundgestalt. Após a entrada desacompanhada do 1º violino
com um Lá bemol agudo, que se prolonga em pedal, segue-se uma espécie de cadência
autêntica, direcionada ao I grau de Fá maior (região Napolitana em relação à tônica cen-
tral, Mi).6 Nessa cadência enriquecida e transformada, um acorde quartal tem a função de
dominante-da-dominante da tonalidade visada, encadeando-se a um acorde formado pelas

trompas, dois violinos, viola, violoncelo e contrabaixo.


3
Para informações detalhadas sobre a extraordinária estrutura harmônica da Sinfonia, ver Almada
(2010a).
4
Para um estudo aprofundado sobre os motivos e os temas presentes na Sinfonia e as relações
hierárquicas que os regem, ver Almada (2007b, p. 95-127).
5
Limitar a prospecção ao grupo dos nove temas principais não significa que os demais temas,
subordinados àqueles, não possuam também ligações com a Grungestalt, tratando-se apenas de
uma opção metodológica, que é baseada na concentração sobre elementos de maior relevo da obra.
6
A relação napolitana consiste na relação entre um determinado polo tonal e um outro dele
distanciado por segunda menor ascendente, podendo se manifestar nos níveis das notas, dos
acordes e das regiões tonais. A relação napolitana é um dos aspectos estruturais mais importantes
na construção harmônica da Sinfonia (ao lado das harmonias baseadas no intervalo de quarta justa
e na escala de tons inteiros). A despeito de todo seu destaque, entretanto, para os objetivos deste
estudo trata-se de um fator de menor relevância, sendo portanto deixado de lado. Para maiores
informações, ver Almada (2010a).

80 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
notas da escala de tons inteiros (como uma versão do acorde dominante) e, finalmente, à
tríade maior de Fá.7 Percebe-se como as vozes são conduzidas por movimento de semitons
(quando não sustentadas como notas comuns entre acordes), o que é um fator de decisiva
importância em toda estrutura melódico-harmônica da peça. Como se percebe no ex. 1,
há quatro elementos distintos que definem a Grundgestalt: o intervalo de nona menor
descendente (Lá@-Sol), o hexacorde quartal, a verticalização da escala de tons inteiros e a
linha cromática descendente, Sol-Sol@-Fá.

Ex. 1 - Grundgestalt da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (redução dos c. 1-4)

No ex. 2, os quatro componentes básicos são isolados, tornando-se Grundgestalten


auxiliares (ou, abreviadamente, GG): A, B, C e d. Cada qual apresenta uma característica
marcante e identificadora,8 contudo não possuem necessariamente idênticos pesos de
importância hierárquica (que são determinados, em suma, pela significação estrutural de
seus desdobramentos, no decorrer da peça), como será devidamente demonstrado.

Ex.2 - As quatro Grundgestalten auxiliares

Análise derivativa dos temas principais da Sinfonia de Câmara


Logo após a resolução da cadência inicial surge um dos temas mais importantes da

7
O protótipo desse tipo de encadeamento (que expande o conceito schoenberguiano de acorde
errante) é apresentado como modelo no livro Harmonia (Schoenberg, 2001, p. 557), publicado em
1911.
8
A rigor, é possível considerar d como uma elaboração de A (através de simplificação da nona para
segunda menor e de expansão do modelo), como sugere a seta ondulada no ex. 2. Sob outro ponto
de vista, A e d poderiam ser fundidos em uma só linha cromática descendente com quatro notas
(A@-G-G@-F) (em um caso ou no outro, veríamos a variação progressiva em ação dentro da própria
“semente”!). No entanto, pelas razões que ficarão evidentes mais adiante no texto, prefiro manter
as quatro GG como estruturas distintas. É bastante interessante constatar que algo semelhante
acontece na Sonata para Piano op.1, de Berg, obra que mantém com a Sinfonia estreitas relações
de afinidade (Almada, 2008a): sua Grundgestalt subdivide-se em três fragmentos, sendo o terceiro
deles derivado do primeiro (Almada, 2010b).

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 81
peça, que é empregado especialmente na articulação das seções formais de maior relevo.
Como se observa no ex. 3, esse tema (que será aqui, por conveniência e simplicidade, de-
nominado “Tema Quartal”)9 deriva da horizontalização da GG B, a partir de sua transposição a
uma quarta justa ascendente, e pela incorporação de uma configuração rítmica. Do contorno
quase neutro do arpejo quartal em semínimas destaca-se o fragmento rítmico conclusivo
do tema, de forte personalidade, que terá desdobramentos vários na construção de temas
subsequentes. Abstraindo do fragmento seu conteúdo melódico-intervalar obtém-se uma
espécie de Grundgestalt intermediária (a partir deste ponto, gg), subordinada ao nível das
Grundgestalten auxiliares, que mantém apenas a essência rítmica em relação ao original.
Esse fragmento, não sendo diretamente derivado de uma das quatro GG´s (mas da concret-
ização de uma delas), passa a ser denominado x, configurando-se como um novo ramo, a
partir do qual elaborações adicionais serão perpetradas. Por outro lado, é possível destacar
o fragmento inicial do tema quartal – suas três primeiras notas –, e também submetê-lo a
uma operação de abstração (desta vez, em sentido contrário, com a manutenção de seu
conteúdo de alturas), resultando numa gg de caráter intervalar: b-1.

Ex. 3 - Derivação do Tema Quartal da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 5-6)10

O Tema Quartal é imediatamente sucedido pelo Tema Cadencial,11 que tem a função
de preparar harmonicamente a entrada do Tema Principal (a ser analisado mais adiante).
O ex. 4 apresenta a análise derivativa do Tema Cadencial, evidenciando a ação dos proces-
sos de variação progressiva em sua construção. Surge, assim, uma nova gg – xd-1 –, uma
forma híbrida, a partir da associação de x com d. Essa nova variante é então reiterada,
deslocada metricamentee e transformada, através de operações conjuntas de sequencia-
ção (não literal) e aumentação (c.9). Tal nova formulação gera, através de abstração dupla,
duas novas gg´s: x-1 e d-1.

9
Para uma terminologia mais precisa e detalhada dos temas da Sinfonia, ver Almada (2007).
10
Para as descrições das operações abreviadas neste e nos próximos exemplos, ver o quadro 1 (p.
14).
11
Denominação criada por Alban Berg, em uma análise por ele feita da Sinfonia (Berg, 1993, p. 245).

82 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Ex. 4 - Derivação do Tema Cadencial da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 8-10)

Segue-se então a entrada do Tema Principal da Sinfonia (ex. 5), cuja anacruse é resultante
de uma transformação de b-1, na qual o segundo intervalo de quarta tem sua qualidade trocada
de justa para aumentada. A nova gg – b-2 – recebe uma configuração rítmica quialterada, que
passa a ser empregada no próprio tema (compassos 9, 10 e 11), bem como em diversas ideias
subsequentes.12 A primeira frase do tema (o trecho que é mostrado no ex. 5) é inteiramente
construída com a escala de tons inteiros, revelando assim uma derivação direta de C.

Ex. 5 - Derivação do Tema Principal da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 9-11)

Após tal concentração de temas em tão curto espaço de tempo (11 compassos)
há uma relativa retração da velocidade da variação progressiva (ao menos no aspecto da

12
Não tendo, porém, um caráter transformativo, o que faz com que seus desdobramentos não
sejam suficientemente relevantes para este estudo.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 83
derivação temática). A entrada de um novo tema importante – que encabeça a seção de
transição da Parte I – acontece apenas no c. 78. O ex. 6 relaciona o enunciado desse tema
a duas transformações de gg´s anteriores: d-1 e x-1 (esta última tendo a intermediação de
uma nova variante, x-2).

Ex. 6 - Derivação do tema da transição da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 68-70)

O ex. 7 apresenta o elemento mais importante da seção secundária, o Tema Lírico.13


A múltipla derivação do fragmento de abertura desse tema é bastante interessante e carac-
terística nesse tipo de processo construtivo, envolvendo aqui três fontes intermediárias.

Ex. 7 - Derivação do Tema Lírico da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 84-6)

13
Tomando emprestado o termo cunhado por Schoenberg para a designação dessa estrutura
temática, a partir de suas relações funcionais dentro da forma-sonata (Schoenberg, 1991, p. 184-5).

84 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
O trecho seguinte (ainda dentro da Exposição), embora não se refira propriamente
a ideias temáticas, ao contrário dos casos anteriores, possui grande importância, pois
apresenta transformações intermediárias necessárias para a construção definitiva de um
dos temas da Parte subsequente. Como se observa no ex. 8, a nova formulação motívica
é fruto de uma interessante conjunção entre a GG A (até este momento em “hibernação”,
por assim dizer) e a ubíqua gg x, resultando na variante híbrida xa-1, que, por sua vez, é
imediatamente transformada e disseminada através de vários tipos de imitação (dois deles
são mostrados no exemplo).

Ex. 8 - Preparação para a Parte II da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 148-9)

Os dois próximos temas encontram-se na Parte II da Sinfonia. O Tema do Scherzo


(ex. 9) tem sua frase inicial claramente derivada das GG A e D (desta, por inversão), como
se fizesse necessário ao compositor voltar às fontes básicas de material, após um longo
trecho de transformações sobre outras transformações intermediárias.

Ex. 9 - Derivação do tema do Scherzo da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 160-3)

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 85


O Tema do Trio (ex. 10), por sua vez, baseia sua construção principalmente nas
formulações obtidas na ponte que conecta as Partes I e II, a partir das quais for gerada a
gg xa-1 (ver ex. 8). Observa-se ainda o emprego de d-2 no segmento cadencial que fecha
a frase-enunciado do tema.

Ex. 10 - Derivação do Tema do Trio da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 160-3)

Após o Desenvolvimento (onde, evidentemente, não surge qualquer ideia temática


nova, apenas elaborações daquelas introduzidas nas Partes I e II), tem lugar o Adágio (Parte
IV), com dois temas, um principal e um secundário. O ex. 11 apresenta o primeiro deles,
marcado principalmente pela anacruse construída a partir da recorrente figura pontuada (gg
x), presente em quase todos os outros temas. Embora o parentesco com o Tema Cadencial
(ver ex. 4) seja evidente, uma transformação da gg xd-1, tornando-se cromática, parece
resultar da influência da GG d (incluindo a manutenção das alturas iniciais Sol-Sol@[Fá#]-
Fá), numa espécie de volta às origens.

Ex. 11 - Derivação do Tema (principal) do Adágio da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 382-3)

Por fim, o Tema secundário do Adágio (ex. 12) tem grande parte de sua estrutura
melódica derivada da escala de tons inteiros (coleção b),14 o que o associa à GG C. É pos-

14
Por sua estrutura simétrica, a escala de tons inteiros possui somente duas coleções possíveis:
aquela que começa com uma determinada nota (como mi, por exemplo: Mi-Fá#-Sol#-Lá#-Dó-
Ré), e a outra iniciada pela nota um semitom acima da referencial (Fá-Sol-Lá-Si-Dó#). Apenas por
conveniência, levando-se em conta a tonalidade central da Sinfonia, essas coleções são designadas,

86 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
sível, portanto, perceber uma relação indireta (de “consanguinidade”) entre este tema e o
principal da Sinfonia (ver ex. 4), cuja frase inicial também é construída a partir da escala de
tons inteiros, porém relacionando-se à coleção a.

Ex. 12 - Derivação do tema secundário do Adágio da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 415-9)

A fig. 2 resume as diversas relações de derivação entre os nove temas apresentados e


a Grundgestalt da obra, através das Grundgestalten auxiliares (A, B, C e d) e intermediárias.
As setas cheias representam operações de variação progressiva, enquanto as tracejadas
referem-se a simples aplicações (ou seja, sem transformações) dos fragmentos sobre os
temas.

Conclusões
Este estudo examinou aquela que pode ser considerada a mais importante finali-
dade composicional da variação progressiva: a obtenção de temas distintos a partir da ideia
básica primordial – a Grundgestalt – de uma obra, que é em geral (como no caso presente)
apresentada em seus primeiros compassos. Isso se mostra notavelmente bem exemplificado
na peça selecionada para análise, a Primeira Sinfonia de Câmara, de Schoenberg. Como foi
constatado, sua Grundgestalt subdivide-se em quatro componentes básicos, cada qual dando
início a diversos processos derivativos, em diferentes graus de profundidade e – por assim
dizer – em diferentes velocidades de propagação, o que permitiu a geração de elementos
caracterizadores e consideravelmente distintos (muitas vezes fortemente constrastantes
entre si) em seus formatos definitivos nos nove principais temas que formam a espinha
dorsal da obra. Os estágios intermediários (gg´s) resultam de transformações diretas de
formas precedentes ou da conjunção de algumas delas (i.e., por hibridismo) que, por sua
vez em certos casos, dão início a novas linhas de descendência.
Os exemplos elaborados para ilustrar os procedimentos acima descritos constituem
uma etapa inicial em relação ao objetivo de criação de um modelo analítico específico para a
variação progressiva, o que se concretiza através de recursos gráficos (retângulos em linhas
cheia ou tracejada, setas onduladas indicadoras de derivação etc.) e de abreviaturas, as-
sociadas a novos símbolos e terminologia (GG, gg, as operações de transformação etc.).

respectivamente, pelas letras a e b (para maiores detalhes, ver Almada, 2010a). Observe-se ainda no
ex. 12 que algumas poucas notas (indicadas por asteriscos) não pertencem à coleção b da escala, o
que pode ser atribuído a uma intenção puramente colorística por parte do compositor.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 87
Figura 2 - Rede de derivações na construção dos temas da Primeira Sinfonia de Câmara op.9, a partir
dos componentes auxiliares da Grundgestalt

88 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade


Ao mesmo tempo, este estudo também inicia a elaboração de uma tipologia
abrangente e detalhada da variação progressiva (que será gradualmente ampliada no
decorrer da pesquisa, a partir de novos estudos). Neste sentido, o quadro 1 apresenta um
resumo das técnicas/operações derivativas empregadas na formação dos temas da Sinfonia,
de acordo com o que foi apresentado nos exs.3 a 12.

Quadro 1 - operações de variação progressiva na construção temática da


Primeira Sinfonia de Câmara

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2006.

90 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade


La música de la Segunda Escuela de Viena: una
lectura desde la teoría de las funciones formales

Alejandro Martínez
Universidad Nacional de La Plata – Argentina

Formenlehre revisitada
Desde hace unos años, puede observarse en la teoría musical tonal la aparición
de ciertas obras que retoman la problemática formal. Textos como los de Caplin (1994,
1998, 2009), Hepokoski y Darcy (2006) o Gjerdingen (2007) proponen diferentes enfoques
– a veces decididamente contrapuestos- de lo que puede entenderse como un retorno a la
tradición de la Formenlehre. William Caplin, particularmente, ha desarrollado cierto enfoque
formal heredero de observaciones y planteos formulados por primera vez por la teoría
de Schoenberg. La Formenlehre de Schoenberg (Schoenberg 1942, 1967, 2006) se apoya
significativamente en una serie de oposiciones: la distinción entre dos estructuras temáti-
cas básicas, la oración (Satz) y el período (Periode), así como en dos tipos de organización
formal, caracterizables como estable o firme (fest), y lábil o inestable (locker). Una de sus
mayores contribuciones a la teoría de la forma es la primera caracterización relativamente
precisa de los rasgos que definen y diferencian a la oración del período.
Las ideas formales de Schoenberg fueron posteriormente retomadas por su
discípulo Erwin Ratz (1951), quién profundiza el concepto de “función formal” planteado
por Schoenberg en varios de sus textos teóricos. El trabajo de Caplin sobre la música instru-
mental del Clasicismo -que es el punto de partida de nuestro trabajo-, se inscribe en esta
tradición, pero avanza significativamente en su grado de sofisticación -tanto en relación a
Schoenberg como a Ratz-, al definir con mayor precisión las características del período y la
oración, las diferencias concretas entre secciones estables y lábiles y en proponer nuevos
tipos formales (que Caplin denomina “formas híbridas”) que amalgaman características de
la oración y el período.
Pero indudablemente el concepto más importante que la teoría de Caplin clari-
fica y ubica en lugar central es, precisamente, el de “función formal”, definida como “el rol
específico que un pasaje musical particular desempeña en la organización formal de una
obra musical” (Caplin, 1998, p.254-255). En la propuesta de Caplin, cada pasaje presente en
una obra musical es capaz de comunicar su función formal como resultado de la interacción
de varios aspectos musicales. De este modo, la constitución interna de un pasaje musical
(en términos rítmicos, armónicos, melódicos, de agrupamiento y texturales) y su relación
con pasajes anteriores son factores que proporcionan a aquél una determinada cualidad
temporal. El concepto de función formal apunta entonces a un aspecto que Caplin busca
recuperar en su acercamiento a la forma musical: la experiencia de temporalidad que
suscita la audición musical:

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 91


La forma musical involucra directamente nuestra experiencia tempo-
ral de una obra musical ya que sus segmentos temporales tienen la
capacidad de expresar su propia ubicación dentro del tiempo musical.
(Caplin, 2009, p. 23)

Puede afirmarse que su teoría conjuga tres aspectos de la funcionalidad formal


(Caplin, 1998, p.9):
Función formal: se refiere -como ya se ha afirmado anteriormente-, al rol de un deter-
minado segmento temporal identificado dentro de la organización formal de una obra
musical. Términos como “antecedente”, “continuación”, “tema principal”, “introducción”,
“codetta”, etc., aluden –en distintos niveles jerárquicos- a una determinada función formal
de una sección musical.
Proceso formal: se refiere a los mecanismos o técnicas compositivas que permiten comunicar o
proyectar determinada función formal. Entre estos pueden mencionarse procesos de repetición,
fragmentación, secuenciación, liquidación, compresión, extensión, expansión cadencias, etc.
Tipo formal: se refiere a combinaciones generalizables entre funciones y procesos formales, a
varios niveles en la jerarquía formal. Esto abarca a tipos formales en varios niveles jerárquicos
como la oración el período hasta piezas enteras como un rondó o la forma sonata

Desde la publicación del libro de Caplin en 1998 han aparecido algunos trabajos aplicando
su enfoque funcional a repertorios posteriores al de la música instrumental del período clásico que
aquél examina (e.g., BaileyShea 2003; Somer, 2005; Broman, 2007). Estos trabajos plantean varias
cuestiones interesantes en relación a las propuestas originales de Caplin. Por un lado, muestran que
tanto la oración como el período y las formas híbridas están presentes en la música de otros períodos
históricos. Por otro lado, sugieren también algunas revisiones, adaptaciones y extensiones a la teoría,
sobre todo aquellas vinculadas con la expansión de los tipos formales básicos y con su aplicación
en contextos no tonales o incluso modales. Una revisión necesaria apunta a precisar entonces
los elementos y procesos formales específicos que permitan todavía caracterizar funcionalmente
un pasaje musical como oración, período u otra forma híbrida o no convencional en repertorios
diferentes al clásico. Por ejemplo, BaileyShea (2003) ha señalado la presencia de nuevos modelos
de forma oración utilizados por Wagner en sus óperas. En estas “oraciones wagnerianas”, este autor
muestra que Wagner modifica en la forma oración prototípica el modo de expresar la función de
continuación, mientras que la presentación (con la enunciación de la idea básica y su repetición) per-
manece esencialmente sin alterar1. Asimismo, para abordar repertorios más recientes, es necesario
elucidar y clasificar procesos formales en el plano de la textura, la dinámica y el timbre –elementos
anteriormente secundarios con respecto al aspecto armónico/motívico- para establecer su contri-
bución a la funcionalidad formal postonal tras el debilitamiento o la ausencia de funcionalidad tonal.

Webern y el período y la oración


La presencia de las oración y el período en la música atonal de los compositores de
la Segunda Escuela de Viena es sugerida por Anton Webern en un pasaje de las conferencias
que éste dictara privadamente en el año 1933, y que fueron publicadas póstumamente en
1960 con el título Der Weg zur neuen Musik (“El camino hacia una música nueva”). En el
transcurso de estas conferencias Webern deja entrever que, lejos de ser formas obsoletas y

1
Ver más adelante en la figura 1, la definición de los componentes formales de la forma oración.

92 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
agotadas, pertenecientes a la música tonal del pasado, éstas siguen siendo utilizadas por los
compositores como medio para una coherente exposición de las ideas musicales, aunque en
forma extendida y exhibiendo un tratamiento más complejo de los elementos motívicos.
Tal como nos enseña Schoenberg, lo que caracteriza al período y la oración como estruc-
turas contrastantes se encuentra en la diferente disposición y tratamiento otorgado a los elemen-
tos motívicos. En términos de la expresión usada por Webern, es el modo de “presentación de
las ideas musicales” el aspecto que está en juego entre ambas formas. Por idea musical Webern
(1984, p.41) entiende “la expresión de una idea por medio de sonidos” y en sus conferencias,
sostiene que, tanto el surgimiento de la música atonal libre como el de la técnica dodecafónica,
están necesaria e ineludiblemente ligados a la exploración y expansión del material sonoro así
como al refinamiento progresivo en la presentación de las ideas musicales. Webern señala que:

Estas dos formas [se refiere al período y la oración] constituyen el elemento


fundamental, la base de toda construcción temática en la época clásica y de todo
lo que sucedió en la música hasta nuestros días. Es una larga evolución y a veces
es difícil localizar estos elementos básicos. No obstante, todo puede ser atribuido
a ellos [...] ¿Por qué esas formas surgieron así? Bien, en el fondo, existe el deseo
de expresarse de la manera más comprensible posible. (Webern, 1984, p.66)

Naturalmente, una sinfonía de Mahler difiere en su forma de composición de


una de Beethoven, pero en esencia ambas son iguales; un tema de Schoenberg
también se basa en las formas período y oración de ocho compases [...] En el
desarrollo ocurrido después de Beethoven se dio preferencia a la oración de
ocho compases. Más tarde –por ejemplo en Brahms-, se hace difícil relacionar
las obras a esos tipos formales, sin embargo ellas están allí. La sinfonía moderna
también se basa en esas formas. (Webern, 1984, p.81)

Si bien no tan explícitamente como Webern, en algunos pasajes de sus escritos Schoenberg
también deja ver la persistencia de ciertas formas anteriores en su música atonal libre y en aquella
basada en la técnica dodecafónica. Sin embargo, tanto Schoenberg como Webern no proporcionan
claramente ejemplos propios en los que podamos apreciar su utilización del período o la oración
en una obra musical no tonal. Ello supone un problema a resolver: ¿de qué maneras podrían
operan estos prototipos formales en contextos en los que la dimensión estructural que aporta la
tonalidad ya no es aplicable? Schoenberg acerca una respuesta a esta pregunta cuando afirma que

La coherencia en la música clásica se basa -en términos generales- en las cualida-


des cohesivas de ciertos factores estructurales tales como ritmos, motivos, frases
y la constante referencia de todos los rasgos melódicos y armónicos al centro de
gravitación -la tónica. La renuncia al poder unificador de la tónica aun deja en
operación a los restantes factores. (Schoenberg, 1984, p.87)

[…] se puede sacrificar lógica y unidad en la armonía antes que en la sustancia te-
mática, en los motivos, en el contenido de ideas [musicales] […] Es difícil concebir
que una pieza de música tenga significado a menos que haya significado en los
motivos y en la presentación temática de las ideas. (Schoenberg, 1984, p. 280)

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 93


Estas citas sugieren entonces que tras el abandono de la tonalidad, el tratamiento y
la elaboración de los materiales motívicos cobran una importancia decisiva en la construcción
formal de una obra musical, en especial a través del principio de variación progresiva o desarro-
llante, uno de los pilares de la construcción formal en la teoría y el pensamiento compositivo de
Schoenberg. Éste la concibe como una técnica especial de variación (diferente de la variación
ornamental) en la que se aspira a la generación constante de nuevos materiales motívicos
derivados de materiales anteriores (Haimo, 1997). La variación progresiva supone un proceso
teleológico que permite vincular lógicamente entre sí las diferentes formaciones motívicas
que una obra presenta en su desarrollo temporal (aun las más contrastantes). Puesto que es
principalmente el tratamiento motívico lo que define que una unidad temática constituya un
período, una oración o una forma híbrida y éste puede actuar también en un contexto no-tonal,
el recurso a estos prototipos formales ya probados en la música del pasado supone tanto un
tributo a la tradición tonal -en el sentido de la continuidad con el pasado que plantea Webern
repetidamente en sus conferencias-, como un desafío: mostrar de qué modo la presentación
lógica de las ideas musicales -cuyo fin, según Schoenberg, es la comprensibilidad-, permite
construir un discurso coherente y orgánico prescindiendo de la tonalidad.

Algunos ejemplos musicales


Los fragmentos musicales que analizaremos a continuación muestran unidades
temáticas en las que se aprecian ejemplos de oración o período. Si bien las obras musicales
que abordaremos son anteriores a la fecha de las principales publicaciones de Schoenberg
sobre la cuestión formal, parece haber suficiente consenso acerca de que ellas manifiestan
ideas sobre la forma y la construcción musical que Schoenberg siempre mantuvo a lo largo
de su carrera como docente y compositor (Adams, 1993).
La formulación típica (o “forma modelo”, en términos de Schoenberg) de la forma
oración en la música tonal podría representarse del modo siguiente:

Figura 1. Esquema de la forma oración.

94 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade


Debajo del esquema se representan las cualidades temporales asociadas a las
funciones formales involucradas junto con algunos rasgos compositivos que caracterizan a
éstas.2 La oración que muestra la figura 2, perteneciente a la quinta pieza, compases 29-41
del op.23 de Schoenberg, presenta todas las características enunciadas anteriormente:

Figura 2. Schoenberg op.23/5, c.28-41.

En la formulación más típica de la forma oración, como hemos visto, la función con-
tinuación se fusiona con la función cadencial en un mismo agrupamiento.3 En el siguiente
ejemplo, el comienzo del op. 24 de Webern, cada función formal es asignada a un diferente
agrupamiento. Los primeros tres compases presentan la idea básica en los instrumentos de

2
Caplin propone un esquema de tres cualidades temporales principales distinguibles en todo
segmento temporal: comienzo, medio o fin y dos accesorias: antes-del-comienzo y después-del final.
3
Caplin representa este hecho con la indicación “continuación → cadencia”.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 95
viento. Luego, el piano reexpone esta idea básica con una operación variativa característica
de la música dodecafónica de Webern: el palíndromo. De este modo, se produce una re-
trogradación de los valores rítmicos de la idea básica original, así como una retrogradación
interna de las notas en cada grupo (delimitados por los diferentes valores rítmicos) de la idea
básica. Ambas presentaciones comienzan en F y descienden al P. Seguidamente, la función
continuación se proyecta a través de un evidente incremento en la actividad rítmica (con el
uso de las semicorcheas, el valor más breve aparecido en la idea básica). Hacen su aparición
la viola y el violín y la dinámica se mantiene en F y FF. Todo ello refuerza la sensación de
aumento de la tensión, característico de la función continuación. Hacia el compás 8 hay una
cierta reducción de la actividad rítmica con la reaparición de las corcheas y los tresillos de
corcheas que anticipa el gesto de los acordes del piano que expresan una cualidad temporal
conclusiva (reforzada por la dinámica descendente y la aparición del primer PP aparecido
hasta aquí). Tal como muestra la figura, el inicio y la finalización de cada componente formal
mencionado están adecuadamente resaltados con cambios de tempo:

Figura 3. Webern op. 24/1, c.1-10.

El siguiente ejemplo muestra una forma oración en el comienzo de la primera pieza


de las op.23 de Schoenberg. El rasgo más saliente de este ejemplo es el efecto que produce la
técnica de variación progresiva sobre la repetición de la idea básica. La generación continua
de nuevos materiales motívicos tiene como consecuencia una cierta desestabilización del
contexto funcional de la presentación. No obstante, el pasaje siguiente, expresa claramente
una funcionalidad de continuación, por lo que la oración se completa satisfactoriamente.

96 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade


Figura 4. Schoenberg, op. 23/1, c. 1-12.

En su libro y en artículos posteriores, Caplin parece asumir como evidente la identifi-


cación de ciertas unidades formales como repeticiones o contrastes con respecto a unidades
anteriores. Sin embargo, ya sea por la acción desestabilizante de la variación progresiva o por
la presencia de conexiones motívicas más sutiles, ello no resulta tan sencillo en la música de
la Segunda Escuela de Viena. En los ejemplos siguientes de oración y período es necesario
recurrir a la Set Theory para la identificación de las diferentes funciones formales (idea bá-
sica e idea contrastante), de modo de poder develar ciertas correspondencias interválicas.
En la cuarta pieza del op. 7 de Webern se muestra una forma período. La estructura
típica del período en la música tonal es la siguiente:

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 97


Figura 5. Esquema de la forma período.

Como puede apreciarse debajo del esquema, la forma período expresa dos niveles
de temporalidad musical: la relación comienzo→conclusión dentro del antecedente y el
consecuente se proyecta, en un nivel jerárquico superior, a la forma en su totalidad.
El detalle saliente de este pasaje con estructura de período se encuentra en el compás
6. Desde el punto de vista de la estructura “modelo”, este compás puede pensarse como una
interpolación al comienzo de la frase consecuente. El análisis interválico revela que el tricordio
(015) es subconjunto de (0145), el conjunto de la idea básica, y que (016) es subconjunto de
(1247), el conjunto de la idea contrastante. Ambos tricordios se articulan desde el sonido sol 4,
siguiendo una direccionalidad opuesta. Por ello, esta interpolación constituye una suerte de ver-
sión reducida de los materiales interválicos que caracterizan a la idea básica y la idea contrastante.

98 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade


Figura 6. Webern, op. 7/4, c.1-9.

Figura 7.Análisis interválico de Webern, op. 7/4, c.1-9.

Otro rasgo para señalar es el calderón del compás 5. Schoenberg afirmaba, al des-
cribir la estructura de la forma período en Fundamentals of Musical Composition, que el
antecedente debía finalizar con una “cesura” (Schoenberg, 1967, p.25). (usualmente una
semicadencia en la música tonal). Aquí, el calderón, sumado al ritardando contribuye a crear
la sensación suspensiva que caracteriza típicamente el final del antecedente.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 99


El último ejemplo pertenece al comienzo de la tercera de las piezas para violín y
piano op.7 de Webern.

Figura 8. Webern, op. 7/3, c.1-9.

En este pasaje se aprecia una forma oración cuyas idea básicas se superponen
(representadas por el conjunto (0156), primero en el violín y luego en el piano). En esta
presentación, asimismo, cada idea básica presenta una red de relaciones interválicas inte-
resantes, tal como ilustra la figura siguiente:

100 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Figura 9. Análisis interválico de la presentación de Webern, op.7/3, c.1-5.

En el compás 5, Webern indica una pequeña articulación antes de las notas si y fa


de la mano derecha del piano. Con ellas se inicia la frase de continuación que se extiende
hasta el final del compás 9 con la articulación del tricordio (012) en la mano izquierda del
piano, cuya cualidad cadencial es resaltada con la indicación “apenas audible”. En la función
continuación, se observa la técnica de fragmentación en la parte del violín, que articula
repetidas veces el conjunto (0167), una ampliación semitonal del conjunto (0156) de la idea
básica.. Como puede apreciarse, la frase de continuación exhibe también uno de sus rasgos
típicos: el aumento de la actividad rítmica con respecto a la presentación.

Conclusión
Los análisis anteriores han intentado mostrar de qué modo pueden presentarse
las formas período y oración en ciertas obras de Schoenberg y Webern, en un contexto
no-tonal y en concordancia con las ideas expresadas por éste último acerca de su uso ex-
tendido. Recordemos que Webern afirmaba que las formas habían evolucionado de modo
tal que su identificación podía resultar difícil. Sin embargo, los ejemplos anteriores ponen
de manifiesto que ciertos rasgos característicos que definen al período o a la oración per-
manecen, aun cuando la tonalidad no está presente y el trabajo motívico sea más complejo.
En los ejemplos vistos hay un predominio de ejemplos de forma oración. Recordemos que
Schoenberg afirmaba que:

La oración es una forma de construcción más elevada que el período. No sólo


establece una idea sino que al mismo tiempo inicia un cierto desarrollo. Puesto
que el desarrollo es la fuerza motora de la construcción musical, comenzarlo
simultáneamente indica premeditación. (Schoenberg, 1967, p. 58)

Podemos concluir entonces que la naturaleza evolutiva de la oración, gracias a la


presencia de una unidad inicial fuertemente implicativa, creada por la enunciación repetida
de un mismo material musical, genera una tendencia significativa hacia la continuación, al

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 101
incremento de la tensión y al crecimiento orgánico de los elementos motívicos. Por estas
razones, es posible considerar a la oración como la estructura temática más adecuada para
aplicar a las ideas musicales los procesos de intensificación, diferenciación y crecimiento
gradual que caracterizan al principio de variación progresiva

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102 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Elementos postonales como factores de integración
de estructuras modales, tonales y postonales en la
expresión estética modernista: a sonata para guitarra y
clavecín (1926) de Manuel ponce

Alejandro Barceló Rodríguez


Universidad Veracruzana, Mexico

La audición e interpretación de la sonata para guitarra y clavecín (1926) del composi-


tor mexicano Manuel M. Ponce (1882-1948), permite escuchar y entender musicalmente
la convivencia de elementos procedentes de tres tradiciones o prácticas de composición;
la primera es la homogénea tradición de la tonalidad funcional mayor-menor, la segunda
es la modalidad con sus colecciones de tonos característicos en proyecciones horizontales
y la tercera es la heterogenea práctica postonal con sus múltiples propuestas en el uso de
estructuras y procedimientos.
La sonata fue escrita en el París de 1926, entonces, el centro nodal de una intensa
red cultural que se nutría del encuentro de artistas procedentes de diversas regiones, entre
otras, América Latina, Estados Unidos y Europa. En tal arena de confluencias, los juegos ide-
ológicos de préstamos musicales y representaciones culturales, fueron prácticas inevitables
que derivaron en productos culturales como la sonata que este estudio atiende.
Así, Manuel M. Ponce integra en el discurso musical de esta sonata, elementos
tonales, modales y postonales y al hacerlo, también asimila y representa a través de signifi-
cadores audibles distintivos1, identidades culturales que aquí se comentan en tanto Otros
culturales2, a fin de ubicar esta sonata en su contexto multidimensional.
El propósito de este artículo es mostrar cualidades modernistas en la sonata para gui-
tarra y clavecín por medio de la explicación de algunas relaciones musicales y la descripción
de significadores audibles distintivos relacionados con la noción de Otros culturales. Pero,
¿Qué productos culturales pueden inscribirse en la constelación del Modernismo cultural
europeo? Es posible apuntar que aquellos que tengan que ver con prácticas artísticas que
emplean usos no tonales de estructuras con base en la triada (acordes no funcionales), el uso
de estructuras con base distinta a la triada (por ejemplo, base cuarta), así como referencias
intertextuales de otras composiciones en tanto resultado de prácticas de actualización en
boga, pero asimiladas estructuralmente en una obra cerrada, relacionada entre sus partes
y la totalidad de la pieza.
Uno de los aspectos esenciales para la comprensión musical auditiva tanto del primer
movimiento, como de esta sonata en su totalidad es la presentación del material inicial.
Se trata de un gesto polifónico de apertura (GPA) donde confluyen un trío de estructuras.
(Ver Figura 1)

1
Saavedra (2001, p. 327).
2
Barceló (2011, p. 34).

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 103
Figura 1

La estructura MEL2Q proyecta horizontalmente las quintas justas E-B y A-E. Por su
parte, P4q2seg despliega una progresión de quintas justas enunciadas como cuartas justas
ascendentes. La figura 2 expresa esta estructura como resultado de la aplicación de las
operaciones T5 y T1.

Figura 2

El cuarto pulso del primer compás exhibe una aparente anomalía al proceso de las
dos estructuras mencionadas MEL2Q y P4q2seg. La situación musical tiene relación con el
predominio de una expectativa por encima de otra. La expectativa perdedora, provocada
por la estructura MEL2Q deriva del procedimiento de repetición, su contorno melódico nos
hace esperar la repetición de E4 en el cuarto pulso del compás 1. Sin embargo, la estructura
P4q2seg transforma a MEL2Q en el pulso antes señalado: P4q2seg genera la expectativa de
F 4 como continuación de la progresión de quintas justas –enunciadas como cuartas justas
ascendentes-; de esta manera, el F 4 aparece en MEL2Q, y P4q2seg finalmente produce la
expectativa musical ganadora. Mas adelante, la segunda parte de P4q2seg conduce por grado
conjunto, el sentido de movimiento dirigido hacia E4 en el primer pulso del compás 2.
El diseño distintivo de las dos estructuras comentadas nos permite intuir en una
lectura local una relación musical concreta, la interpretación tonal de una triada menor que
decora a una sonoridad armónica o klang cuyo tono fundamental es E. Es decir, el (F ) que

104 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
podría haber presentado MEL2Q en el contexto sugerido de un entorno tonal en (E, -), es
transformado por P4q2seg en (F ), generando una inflexión asociada al modo frigio.
Enseguida P3qKTON repite casi de manera exacta la información ofrecida por
P4q2seg complementando el significado musical con la segunda mitad de MEL2Q que pro-
longa a A4 en el compás 2. Tal significado consiste en afianzar la representación de la tónica
con un klang cuya estructura tiene como base el intervalo de cuarta justa (o su inversión, la
quinta justa), de ahí la etiqueta para esta tercera estructura –una progresión de tres quintas
descendentes que definen al klang tónica-. Por otra parte, la percepción de una proporción
de cambio rítmico en P4q2seg contribuye a definir el E como tono fundamental del klang
que representa en este contexto a la tónica: el cambio de nota de octavo (corchea) a nota
de cuarto (negra) produce la intuición de una sensación de freno, de expectativa de llegada
a una meta parcial y de manera mas precisa, a la sensación de estar en la ubicación espacial
musical inmediata anterior a una meta. La figura 3 expresa la proporción mencionada.

Figura 3

Del comentario anterior respecto de la estructura GPA es importante resaltar las


siguientes cuatro intuiciones musicales; uno, hay una audición polifónica diatónica estruc-
turada principalmente con las operaciones T5 y T7 y que en el contexto del GPA refieren
diatónicamente a intervalos de quintas justas descendentes; dos, la representación de la
tónica con un klang cuya estructura se basa en el intervalo de cuarta justa (en contraste
con la triada); tres, la percepción del procedimiento tonal de prolongación llamado nota
vecina y que por extensión podremos nombrar aquí como acorde vecino, i. e., el klang tónica
base cuarta es decorado a través de una triada menor -II con mixtura desde la audición
de mi menor- (Ver Figura 4) y cuatro, la inflexión melódica de MEL2Q hacia una estructura
modal de tipo frigio.

Figura 4

En términos Hegelianos y con la expresión de Arnold Schönberg, el GPA juega el


papel de la presentación de la Idea musical3, esto es, un material musical que presenta de
forma concentrada y a manera de semilla el sentido musical o la idea que la obra autónoma
desarrollará.

3
Schoenberg (1995, p. 56).

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 105
En suma, al funcionar el GPA como la presentación de la idea, Ponce responde a una
tradición históricamente arraigada que procede al menos de las composiciones barrocas
y clásicas de J. S. Bach (1685-1750), G. F. Händel (1685-1759), J. Haydn (1732-1809), W. A.
Mozart (1756-1791) y L. van Beethoven (1770-1827). Sin embargo, este proceder estruc-
tural y formal en el contexto de la época y con los recursos postonales que se mencionarán
enseguida, constituye también un gesto modernista. El impulso modernista se expresa en
un entorno diatónico donde la estructuración del GPA deriva de las operaciones T5 y T7
con la consecuente inflexión al modo frigio de un segmento melódico y la transformación
por mixtura de la subtónica (VII ), así como la representación armónica de la tónica con
un klang de base cuarta.
Pero el movimiento por intervalos de quintas diatónicas ubicadas naturalmente en
la escala de la tonalidad correspondiente, es un distinguido y antiguo procedimiento tonal
¿de dónde viene entonces la idea de un procedimiento modernista? Del énfasis en la estruc-
turación de una retícula de áreas que se delimitan a partir de puntos armónicos derivados
de las operaciones T5 y T7 pero que no necesariamente prolongan el punto armónico.
Entre otros factores, esta es una lógica musical audible que aunada a otros elemen-
tos estructurales de la pieza, impide escuchar la sonata como una obra tonal en el sentido
funcional mayor-menor que Heinrich Schenker4 generaliza en su teoría tonal, i. e., no es
posible derivar un Urlinie5 ni tampoco un Ursatz en cada uno de los movimientos de la
sonata y aunque se escuchan prolongaciones armónicas en diferentes planos de audición,
en este sentido profundo estructural la pieza es una obra postonal diatónica modernista
con fuertes énfasis tonales e inflexiones modales y las maneras de conciliación de estos
materiales constituyen la riqueza artística, estética y musical de la obra.
En este orden de ideas es pertinente el comentario de Richard Taruskin al respecto
del Modernismo musical como fenómeno cultural ambivalente que contiene tanto propu-
estas radicales como moderadas6.
Existe un radicalismo de fines y un radicalismo de medios […] ambos no necesari-
amente coinciden. No todo radicalismo debería considerarse como modernismo y no todo
modernismo requiere medios radicales de expresión.
Veamos el alcance estructurador de las operaciones T5 y T7. La figura 5 ilustra en
tres niveles insertos de atención una porción de este alcance. Un primer nivel que deter-
mina la estructura del klang tónica (P3qKTON), un segundo nivel que establece la relación
de intervalos entre triadas locales menores contiguas y un tercer nivel que gobierna la
progresión y articulación de la música en un nivel medio de percepción mas profundo que
el nivel anterior.

4
Schenker (2001, p. 86).
5
Urlinie y Ursatz, respectivamente, “línea fundamental” y “estructura fundamental” (N. del A.)
6
Taruskin (2010, p. 3).

106 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Figura 5

Por su parte, la articulación de las secciones correspondientes a la Exposición y


Recapitulación del allegro moderato es generada también por las operaciones T5 y T7. La
figura 6 muestra esta idea.

Figura 6

Finalmente, la figura 7 representa un plano gráfico del allegro moderato dispuesto en


un orden de quintas justas relacionadas por las operaciones de transformación T5, T7, que
a su vez, además de otras operaciones de transposición involucradas, se ubican asociadas
a las secciones formales de las formas sonata.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 107
Figura 7
Una conciliación creativa de usos tonales con usos modernistas diatónicos es la
manera en que Ponce afianza la polarización armónica que se espera de la sección Exposición.

108 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
En este caso hay una verdadera prolongación en un plano medio de atención, de la domi-
nante de la tonalidad sugerida de mi menor. Se trata de un procedimiento de oscilación de
klangs por relaciones de mediantes, los klangs proyectan estructuras armónicas de novena
no funcionales, a tono con el color armónico predominante en la música de Claude Debussy7.
La figura 8 ilustra esta prolongación.

Figura 8

En un nivel más profundo de atención estructural y partiendo de la figura 7, es


posible detectar relaciones musicales que vinculan al allegro moderato que, sin ser tonal,
está fuertemente orientado a (E, -), con el Andantino que enfatiza al (D, -) como centro de
atracción y con el Allegro non troppo e piacevole que sugiere la tonalidad de (E, +). La figura
9 explica gráficamente, entre otras relaciones musicales, las siguientes tres relaciones.

Figura 9

Una primera elipse vertical sombreada proyecta los puntos armónicos de (E, +).
Esta área corresponde a la Exposición del allegro moderato. La elipse horizontal refiere una
extensa área que prolonga en un nivel medio profundo a F a través de doce aplicaciones

7
Devoto (2003. p. 184).

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 109
de la operación T5. El punto armónico F es relevante en tanto mediante de la tonalidad
sugerida de (D, -) que exhibe el Andantino. La tercera figura, con forma de círculo, proyecta
grados de la tonalidad (E, +) que pueden asociarse con el tercer movimiento.
Al respecto de Otros culturales asociados al movimiento cultural del Modernismo,
son relevantes los siguientes dos significadores audibles distintivos; uno, la estructura
P4q2seg del gesto GPA del allegro moderato, que razonablemente puede conectarse con la
progresión ascendente de cuartas justas en la primera sinfonía de cámara, op. 9 de Arnold
Schönberg, sin duda un símbolo de la vanguardia vienesa antes del giro serial del autor de
Verklärte Nacht y dos, la estructura MEL2Q, también del gesto GPA del primer movimiento,
que puede relacionarse con el contorno melódico del preludio 8 en (G , +). - La fille aux
cheveux de lin- de la primera serie de Préludes (1909-1910) de Claude Debussy. Esta segunda
relación se asocia con el extenso vínculo de Ponce hacia el género de canción popular, es
interesante destacar que el preludio para piano antes mencionado, tiene su antecedente en
la canción para voz y piano La fille aux cheveux de lin: Sur la luzeme en fleur (1882) también
de Debussy. Se trata de una composición creada por el autor de La Mer para acompañar la
poesía La fille aux cheveux de lin, cuarta de una serie de seis chansons écossaises publicadas
en el libro Poèmes Antiques (1852) del poeta francés, Charles-Marie-Rene Leconte De Lisle.
(1818-1894). Las figuras 10 y 11 ilustran fragmentos de las obras mencionadas.

Figura 10

110 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Figura 11

En suma, los significadores audibles distintivos P4q2seg y MEL2Q representan,


respectivamente, a los Otros culturales: la vanguardia modernista tonal de Schönberg en su
op. 9 y el Modernismo musical à la Debussy. Asimismo, MEL2Q constituye un significador
permeable multicultural8 pues también representa a un tercer Otro cultural: La canción
popular en su dimensión francesa.
Antes de exponer algunas relaciones musicales del segundo movimiento, es
relevante comentar una estructura simétrica de importancia estética y estructural que se
ubica dentro de la retícula de secciones articuladas por T5 y T7 en el allegro moderato y
que constituye un rasgo estructural modernista. Se trata de una estructura postonal AUM
(percepción diatónica de triada aumentada) en virtud de su cualidad simétrica. Se percibe
en un nivel medio estructural en la Exposición, el Desarrollo y la Recapitulación y deriva de
tres aplicaciones de T4 con la proyección resultante de una octava dividida en tres segmen-
tos iguales. A nivel local se interpreta como un despliegue de tres terceras mayores cuyo
principio y meta de movimiento es F ( ). El hecho musical de que esta estructura AUM
se ubique sobre este punto armónico, estimula y prepara la recepción de la mediante menor
del área tonal enfatizada del Andantino que es (D, -). Es interesante ver como Ponce ajusta
dentro de una progresión de áreas relacionadas por quintas diatónicas a la estructura AUM
incluso sobre el mismo punto armónico, desplegando la estructura en tanto F - A-C -E . Las tres
presentaciones de AUM generan un sabor característico dentro de la retícula por quintas.
Las figuras 12 y 13 muestran respectivamente la presentación de AUM en la Exposición y
en el Desarrollo (compases 51-53).

8
Saavedra (2001, p. 328).

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 111
Figura 12

Figura 13

Por su parte, en el Andantino destacan las siguientes tres relaciones musicales que
brindan cohesión estructural entre los tres movimientos de la sonata, de una manera mo-
dernista. La primera relación ocurre en la sección central (“poco piú mosso”) del segundo
movimiento, un movimiento central con forma tripartita. Aunque una primera intuición
musical nos puede llevar a significar musicalmente la sección mencionada como una pro-
longación de la dominante con mixtura de la forma que muestra la figura 14, la aparente
presentación en segunda inversión de la dominante cromatizada (V6/4) no refleja el sentido
de coherencia y naturalidad que resulta de la audición de tal sección en su contexto.

Figura 14

112 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Una significación musical que permite conectar nuestra percepción musical con
el significado de lógica musical que la propia obra propone de manera consecuente, es el
conectar el sentido de familiaridad de la sonoridad que supuestamente habíamos sugerido
como V6/4 con mixtura, con la representación de la tónica en el allegro moderato en tanto
klang base cuarta que engloba las quintas justas E-B y A-E (el supuesto V6/4 ahora se puede
generalizar en tanto KTON –klang tónica-). Esta interpretación explica nuestra intuición de
paralelismo musical con el primer movimiento, la familiaridad con la sonoridad y la natu-
ralidad en el flujo musical de esta sección.
Adicionalmente, la percepción de los siguientes elementos locales en la prolongación
del klang KTON base cuarta (compases 13 a 18 y compás 26) afianza la significación aludida:
la centralización de E a la manera de una tónica, así como la significación de E como tono
fundamental del klang KTON, el uso de la colección de tonos de la escala de E mayor en los
compases 17 a 21 y la consecuente intuición de una articulación de los puntos estructurales
E-A-B. La figura 15 muestra las relaciones comentadas.

Figura 15

La segunda relación que brinda cohesión a los movimientos de la sonata subyace a


la percepción de contraste armónico entre los movimientos externos (Allegro moderato y
Allegro non troppo e piacevole) que enfatizan el eje E-B mientras que el movimiento central
enfatiza la tonalidad (D, -). Se trata de una relación de similaridad entre uno de los asuntos
centrales del allegro moderato y que aparece en GPA en el primer movimiento, el procedi-
miento de nota vecina –por extensión de acorde vecino– : (E, KTON)-(D, -)-(E, KTON).
Por una parte, una lectura tonal de las relaciones armónicas sugeridas en cada movimiento:
(E, -) – (D, -) – (E, +) apuntan a un desplazamiento hacia un área armónica remota no tradicional en la
práctica tonal (D, -), ya que los destinos armónicos mas usuales en una obra de varios movimientos
a partir de una tonalidad que gobierna la obra completa serían la dominante (B, -), la subdominante
o dominante inferior (A, -), la paralela mayor (E, +), la mediante (G, +) y la submediante (C, -). De
esta manera, la mudanza temporal, en el segundo movimiento, hacia un área armónica tonalmente
remota, tiene su fundamento en el procedimiento de acorde vecino contenido en el cuarto pulso
del compás 1 de la presentación de la Idea (gesto GPA) del primer movimiento y de manera mas
precisa es el tejido contrapuntístico de P4q2seg con MEL2Q y la consecuente transformación de
en , esto es, la semilla que provoca la fruto consecuente.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 113
Como refuerzo y consecuencia de la interpretación anterior, hay dos interpretaciones
armónicas relevantes hacia el final de la tercera sección del Andantino. La figura 16 explora
el sentido cadencial de esa sección y la figura 17 interpreta esa misma sección, a la luz de
los paralelismos mencionados en el párrafo previo y en tanto tercera relación: Es posible
escuchar una estructura de quinta justa vertical que es transpuesta vía T10 desde E hacia
D: (E-B) T10 = (D-A), lo cual induce un paralelismo de E-B con los movimientos externos de
la sonata y de D-A con el movimiento central, el Andantino.

Figura 16

Figura 17

De manera similar a como el allegro moderato presenta el procedimiento de acorde


vecino en tanto uno de sus asuntos centrales, el allegro non troppo e piacevole por su parte,
exhibe también el procedimiento mencionado en su material inicial. En este caso, en lugar
de derivar del procedimiento de nota vecina inferior, deriva del procedimiento de nota
vecina superior. Aquí la representación de la tónica es una triada mayor con sexta (X, M6)
y el acorde vecino superior es (F , +), la figura 18 muestra este procedimiento.

Figura 18

114 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
La preponderante textura polifónica del primer movimiento tiene su continuidad en
el tercer movimiento. También en este último movimiento de la sonata se sigue el esquema
de las formas sonata, aunque de manera mas libre que en allegro moderato.
Hacia el principio de la Exposición, un vaivén armónico por mediantes prolonga la
tónica sugerida (primeros cuatro compases); en los siguientes cuatro compases, con una
textura polifónica a cuatro partes y con una sonoridad mas cromática que la precedente, el
proceso de prolongación de la tónica continúa en una manera que razonablemente podemos
ubicar como modernista: se trata de la presentación de dos klangs con estructura de acorde
de séptima semi-disminuída y de dos klangs con estructura de séptima de dominante, cuatro
sonoridades que hacen familiar la audición del tramado polifónico y que nos conducen
a la tónica, ataviada con un traje de séptima de dominante con novena (X9). La figura 19
expone la música en su registro correspondiente.

Figura 19

Por su parte, la figura 20 muestra una aproximación mas detallada en dos sistemas
de pentagramas.

Figura 20

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 115
El primer pentagrama hace explícitas las descripciones de las sonoridades armónicas
arriba descritas. El pasaje es relevante para ilustrar una estrategia modernista de estructu-
ración local para articular el sentido de dirección en una sonoridad cromatizada. Se trata
de un contrapunto implícito a tres voces.
Una voz superior desplaza una estructura vertical de quinta justa –expresada
como cuarta justa ascendente- a través de las operaciones T4 y T3:
(G -C )T4→(E -A ) T3→(C -F )
Por otra parte, en la voz inferior, una progresión de quintas con pequeños ajustes
con fines contrapuntísticos y armónicos locales, genera un sentido de movimiento dirigido
en apoyo a la voz superior:
(E)T5→(A)T6→(D )T5→(G )T10→(F )T5→(B)T6→(F )T1→
(F )T5→(B)T5→(E)
Finalmente, una tercera voz en un registro medio, proyecta una progresión melódica
descendente y así colabora con la guía auditiva de dirección en el pasaje aludido:G -F -E-D -C .
Por su parte, el segundo pentagrama de la figura 20 muestra las relaciones men-
cionadas. Una polifonía a tres partes que aporta cohesión y dirección de audición en un
entorno con cromatismo contextualmente significativo, que adquiere un significado musical
de tipo armónico cadencial hacia los compases 7-9. Tres acordes de tipo dominante séptima
en el entramado contrapuntístico que se intuyen local y tonalmente como una dominante
aplicada a la dominante y la llegada a una tónica local que por integrar un intervalo de
novena en su estructura vertical, genera una sensación de reposo sin perder el momentum
en la percepción de movimiento dirigido.
En otro orden de ideas, es muy importante un elemento diatónico articulador de
secciones que por su función cadencial y su rasgo principalmente melódico y rítmico, brinda
cohesión al tercer movimiento. Se trata de la estructura tac –tema anacrúsico cadencial-. Es
un contrapunto a cuatro partes cuya voz inferior prolonga un primer punto armónico X por
medio de las operaciones T7 y T5. Una vez de regreso en el punto X, una aplicación adicional
de T5 nos deposita en Z. La figura 21 muestra el gesto armónico de la voz inferior.

Figura 21

Las diferentes presentaciones de la estructura tac asumen los rasgos armónicos


a ó b de la figura 22, que se ejemplifica con el área armónica de F como klang meta del
gesto tac.

116 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Figura 22

Como lo expresa la figura anterior, el acorde meta de la estructura tac corresponde


a la estructura de la representación de la tónica en el tercer movimiento, esto es, de una
triada mayor con sexta. Enseguida la figura 23 explora las cinco presentaciones del tac en
el Allegro non troppo e piacevole con la interpretación local correspondiente.

Figura 23

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 117
Figura 23 (cont.)

Una relación importante entre el segundo y tercero movimientos tiene conexión con
la repercusión melódica del patrón horizontal monofónico que exhibe el Andantino y que se
establece en el área armónica y temática 2 del Allegro non troppo e piacevole. De la sección
aludida del Andantino son relevantes la semifrase A de la frase 1 (sfA de F1) y la semifrase
C de la frase 2 (sfC de F2). La figura 24 indica el esquema de frases en la partitura.
Como se observa en la figura 24, los finales de ambas semifrases se enuncian con
valores de nota de cuarto (negra); en sfA: G-A y en sfC: G -A; en el primer caso la meta A
se obtiene por T2 y en el segundo caso la meta A se obtiene por T1. En cuanto al allegro
non troppo e piacevole, la repercusión melódica anunciada consiste en la prolongación
de dos grados melódicos contiguos –supertónica y mediante en el entorno local tonal
sugerido– por medio de una secuencia cromática que enuncia a una estructura melódica,
t2 prolonga melódicamente y a través de sus dos semifrases a (F ) y a (G ); en el
primer caso, la meta F se obtiene vía T2; en el segundo caso, la meta G se obtiene vía
T1. La figura 25 muestra este procedimiento de prolongación que se intuye también como
estructura melódica t2.
El esquema siguiente exhibe la relación transformacional entre ambas situaciones
musicales del Andantino y el Allegro non troppo e piacevole:
[(g)T2=(A)] t1 [(g )T1=(A)]
[(E)T2=(F )] t3 [(F )T1=(G )]
Un caso adicional de interacción de estructuras armónicas de base cuarta con
estructuras de base triada, sucede en la parte final del área armónica temática 2 de la Ex-
posición, en el tramo que finaliza en el inicio de la Recapitulación –número de ensayo 22-.
En esta sección de ocho compases (compases 59-67) que se percibe dividida en dos partes
que llamaremos ASUBD-1 y ASUBD-2 –“a la subdominante”, la dirección del despliegue
armónico que subyace, prepara y conecta un proceso contrapuntístico que culmina en el
compás 67 con la llegada al IV en la Recapitulación.
En la parte ASUBD-1 (compases 59-62), la voz del bajo presenta la progresión
melódica - que tiene su repercusión homóloga - . El paralelismo esta mediado por
un movimiento de quinta –expresado como cuarta ascendente- - que a su vez progresa
en un descenso de tercera - , conectándose con la repercusión - ya mencionada.
La progresión melódica ascendente por grado conjunto es importante tanto por
los paralelismos locales de ASUBD-1 como del pasaje antes citado previo a la llegada a la
Recapitulación.
ASUBD-1 anuncia de forma prematura en dos ocasiones el acorde meta del des-

118 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
pliegue armónico que ocurre después de las enunciaciones de ASUBD-1 y ASUBD-2, es
decir, el IV en el compás 67.
Otra anticipación que presenta ASUBD-1, es la presentación de un klang base cuarta que
aparecerá de manera predominante en ASUBD-2. En ASUBD-1 ocurre dos veces, D -G -C en
el compás 60 y A- D -G en el compás 61. Es posible intuir ambos klangs como una sola
estructura vertical que se transpone vía T7.
Por su parte ASUBD-2 –compases 63-66– exhibe estructuras base cuarta que
podemos expresarlas aquí con intervalos tono-clase: {6-5-5}, {5-6-5} y {5-5-5}. La audición
contextual refiere estructuras verticales basadas en cuartas ascendentes, lo que a su vez
puede interpretarse como un bloque diatónico vertical que se va transformando en su
estructura interna y transponiendo a través de T9, desplazándose así, desde D hacia B. La
figura 26 expresa las relaciones musicales anteriores.

Figura 24

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 119
Figura 25

Figura 26

120 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Por otra parte, una relación importante que ofrece cohesión adicional a la sección del
Desarrollo en el tercer movimiento es el pasaje que tiene a (D , -) como klang tónica local.
La enunciación repetida de un patrón melódico con estructura modal frigia a partir de D ,
refuerza la intuición de un paralelismo, con la estructura monofónica lineal del Andantino.
La figura 27 presenta un extracto de la edición Peer International.

Figura 27

El pasaje se escucha como una sección interna natural y consecuente con el pasado
del Andantino. El carácter menor con fluctuaciones modales del segundo movimiento
emerge aquí pero no sobre D , sino en D . La relación transformacional que se forma
de la sección “poco piú mosso” del Andantino –que hace un paralelismo con el KTON del
primer movimiento- con el área en (D , -) del Desarrollo en el tercer movimiento, puede
expresarse como:
2º mov. “poco piú mosso” (D, -)T2 (E, -)
3º mov. “Desarrollo” (D , -)T1 (E, +)

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 121
Los puntos armónicos que marcan la parte final de la retícula de secciones que
culminan el allegro final, se expresan en la figura 28, que ilustra la relevancia de T7 y T5
como generadores de estructura.

Figura 28

El camino de quintas justas ascendentes se ve interrumpido con una intrusión tem-


poral al universo del Andantino, cuando la expectativa de aplicar por cuarta ocasión T7, se
sustituye por T6 con la consecuencia de hacer una parada corta en D. Luego T1 retoma el
camino de quintas justas ascendentes para llegar a la mediante de la dominante y desde
este último punto, aplicar T5 con un resultado cadencial que impulse la caída al E.
Como comentario final a la suma de estrategias de representación de identidades y
de procedimientos analíticos que subrayan el impulso modernista asimilado y representado
por el compositor en esta sonata, es pertinente la mención de una situación de intertex-
tualidad musical en el Andantino, así como la indicación de un patrón modal en boga en la
segunda década de los veintes que bien pudo servir como significador de un Otro cultural,
el medievalismo musical francés de principios del siglo XX.
La estructura lineal monofónica del Andantino tiene semejanza estructural con el
alba Reis glorios del troubadour occitano Giraut Bornelh (c. 1138- 1215). De las publicacio-
nes de la época a las que pudo haber tenido acceso Manuel M. Ponce en París, de 1925,
fecha en que llega a la Ciudad Luz a 1926, año en que concluye la sonata para guitarra y
clavecín; destaca el libro de divulgación Trouvères et Troubadours (París, 1910) de Pierre
Aubry9, (1874-1810) filólogo y paleólogo de la École nationale des Chatres, Aubry, además de
proponer una transcripción musical en su libro de 1910, refiere la ubicación del manuscrito
original en la Bibliothèque nationale de France. MS F-Pn fr. 22543, (folio 8V). La figura 29
muestra la ilustración del manuscrito.

9
Aubry (1910. p. 14).

122 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Figura 29

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 123
Por su parte la figura 30 ofrece un acercamiento del manuscrito con el detalle de
la notación cuadrada a cuatro líneas10 y el texto (ver texto completo en apéndice 3) en la
lengua occitana antigua: langue d´oc:

Figura 30. Giraut de Bornelh, MS R, fol. 8V 22543, [Reis glorios, verais lums e clartatz] Département
de la reproduction, image numérique >1.8<50 Mo / CD, Bibiothèque nationale de France (copia
digital, MS, siglo XII)

La comparación de estructuras entre el patrón melódico del Andantino y el alba


Reis Glorios de Bornelh permite establecer las siguientes cinco relaciones musicales de se-
mejanza. (Del alba se utiliza la trascripción de Hendrik van der Werf11). La figura 31 muestra
los dos patrones lineales.
Uno, el intervalo de inicio de quinta perfecta que repite cada nota del intervalo;
dos, la repetición de un primer gesto musical, el cual esta delimitado por el intervalo de
quinta en el principio de la frase; tres, el movimiento ascendente y descendente por grado
conjunto de un esquema con inflexión modal dórica: - - - - ; cuatro, el descenso
melódico por grado conjunto en una relación de segunda mayor para cerrar gestos mu-
sicales. En Reis glorios, el descenso hacia la repercusa A en la primera frase y al final del
alba en el descenso a la finalis D. En el Andantino, al final de los compases 2 y 4 sobre la
tónica D y cinco, una similitud mínima que se refiere al contorno melódico que en el caso

10
Roussel (1981, p. 378) explica que en la notación cuadrada “las melodías están pautadas sobre
un número variable de líneas que oscilan entre tres y ocho. La notación cuadrada manifiesta una
intencionalidad diastemática, o sea, de precisar la notación de los intervalos”.
11
Werf (1972, p. 17).

124 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
de Reis glorios, se divide en dos partes: un movimiento por grado conjunto que ornamenta
el A con notas vecinas superior e inferior respectivamente y otro movimiento que procede
por segunda mayor descendente; este gesto ocurre de manera igual en 2 ocasiones en el
alba. En el Andantino, la semajanza aplica solo en la primera parte del gesto en el contorno
melódico descendente y ascendente hacia el compás 3 a partir del pulso número cuatro,
donde se escucha en cada pulso la progresión: B -A-G -A.

Figura 31

La finalidad de este ejercicio es proponer una posible fuente específica musical


de referencia en el Andantino. Sin embargo, es mas relevante apuntar que Ponce buscaba
establecer una evocación medieval a través de una sonoridad modal característica y muy
probablemente una referencia a la canción secular, negociando así una identidad cultural,
i. e., representando en su música un significador permeable multicultural; por una parte,
la práctica modernista à la Debussy en el sentido de evocar en una perspectiva exótica un
pasado distante y por otro lado, la negociación entre su impulso nacionalista representado
por la canción popular mexicana y la dimensión histórica de identidades francesas tales
como los repertorios seculares medievales de los troubadours y que aquí se expresa como
resultado de tal negociación con el alba Reis glorios de Girout Bornelh.
Finalmente, el patrón armónico modal en boga que bien pudo fungir como signi-
ficador del Otro cultural, el medievalismo musical francés de principios del siglo XX, es sin
duda, la cadencia frigia, que se muestra en la figura 32.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 125
Figura 32

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128 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Signos da Brasilidade Modernista numa canção
de Guarnieri & Mário de Andrade:
Lembranças de Losango Cáqui

Marcus Straubel Wolff


Universidade Cândido Mendes – Nova Friburgo, RJ

A análise semiótica da canção “Lembranças de Losango Cáqui” composta por


Camargo Guarnieri em 1928, sobre um texto do poeta e escritor modernista brasileiro
Mário de Andrade, procura demonstrar como se dá a relação intersemiótica entre poesia e
música, de modo a formar o todo complexo e composto que é a canção. Procura-se também
revelar a relação entre os signos verbal e musical e os objetos representados, mostrando
como suas interações articulam vários níveis de significação. Para isso, ferramentas da
semiótica peirceana são aplicadas ao campo musical, na linha aberta pelos semioticistas
de W. Dougherty (1993), Hatten (1994) e Martinez (1997), que compreenderam a canção
e as obras musicais em geral como signos da cultura que fazem parte de numa rede sígnica
mais ampla – composta por correntes estéticas, políticas, musicais e outras - que forma
o universo cultural de um contexto histórico preciso, neste caso, o momento posterior à
primeira fase do movimento modernista brasileiro, na qual se buscou uma atualização das
linguagens artísticas através da incorporação dos procedimentos das vanguardas européias
(Moraes, 1978, 1983).
Assim, a análise semiótica da canção “Losango Cáqui” permite que se compreenda
de que modo o compositor Camargo Guarnieri interpretou as diretrizes estéticas lançadas
por Mário de Andrade, seu professor no “Conservatório Dramático e Musical de São Paulo”,
chegando a tensionar o projeto do segundo momento do movimento modernista, caracter-
izado pela tentativa de se atingir a modernidade ditada pelos centros culturais hegemônicos
através da mediação e da tematização da brasilidade, vista como a contribuição original da
nação à cultura universal. A análise dessa canção torna possível um exame mais acurado de
como o compositor, que participou do projeto político e estético do nacionalismo musical
brasileiro, esbarrou nos limites desse projeto, revelando o conflito entre o pólo nacional e
o universal dessa relação.
Buscando-se um diálogo com a musicologia e a história da cultura, espera-se
demonstrar, através das ferramentas da semiótica musical peirceana, como uma obra musi-
cal específica se insere numa rede mais ampla de significados – num contexto histórico e
cultural preciso, sem cair em explicações reducionistas ou mecanicistas que tenderam a ver
a obra como mero reflexo da estrutura econômica e social. A análise semiótica da canção,
diversamente, permite que se verifiquem os elos que ligam o compositor, a obra e seu
contexto, revelando-se como a obra é ao mesmo tempo gerada pelos signos do passado,
mas também geradora de novos processos culturais (Dougherty, 1994).

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 129
Análise Musical intrínseca

Essa peça, composta por M. Camargo Guarnieri, logo após o começo de seus estudos
com o maestro Lamberto Baldi em 1928, utiliza uma linguagem modal, que se apresenta
logo na pequena introdução pianística (ex.1, comp. 1-2).

Ex.1

Verifica-se o emprego do modo frígio pelo compositor, um modo que pode ser
encontrado em melodias folclóricas de origem ibérica principalmente no sul do Brasil, mas
também no interior da Bahia.
Segundo Ermelinda Azevedo Paz (1989, p. 20), os modos do folclore brasileiro
correspondem, em sua estrutura escalar aos modos medievais europeus, “porém com
ritmos e melodias caracteristicamente brasileiros”. Neste sentido, M. Camargo Guarnieri
(doravante CG) tanto poderia ter retirado os modos empregados nessa canção do folclore
brasileiro quanto, sob a influência dos impressionistas franceses, poderia tê-los resgatado
dos modos medievais europeus. A análise musical intrínseca1, que na teoria semiótica da
música elaborada por José Luiz Martinez (1997) trata dos signos musicais em si mesmos e
lida com as qualidades musicais (timbre, melodia, ritmo, forma, etc...) e a significação musical
interna, não tem como resolver essa questão, sendo necessário realizar uma investigação
da referência musical, ou seja, do modo como os modos representam objetos dinâmicos
(no caso os vários significados veiculados pela poesia de Mário de Andrade) para lançar
uma luz sobre ela mais adiante.
De qualquer forma, vale a pena ressaltar que em artigo mais recente Ermelinda A. Paz
(1999, p. 59) salienta que Mário de Andrade (doravante MA) na década de trinta “chamava

1
J. L. Martinez (1997) definiu três campos de investigação como ferramenta para tornar mais claro
o estudo da semiose musical partindo da concepção peirceana da ação sígnica como processo
triádico: semiose musical intrínseca, referência musical e interpretação musical. Tal divisão baseia-se
na lógica da semiose que envolve a relação entre signo, objeto e interpretante e reflete também as
categorias universais (primeiridade, secundidade e terceiridade). Neste sentido, a semiose musical
intrínseca corresponde a um dos subcampos da semiótica (a gramática especulativa), em que se lida
com a natureza intrínseca dos signos e da semiose, assim como examina-se as relações entre os sig-
nos. Já a referencia musical corresponde ao campo da crítica, lidando com a relação entre os signos
e seus objetos e a interpretação musical, correspondendo ao subcampo da metodêutica, lida com a
relação entre os signos e seus intérpretes, focalizando o processo de semiose a partir do ângulo do
intérprete e dos interpretantes gerados em sua mente.

130 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
a atenção para a riqueza inesgotável de melodias e ritmos provenientes da região nordes-
tina e que poderiam ser empregados como fonte de renovação para a música brasileira”,
citando os irmãos João e José Baptista Siqueira, CG e C. Guerra-Peixe como autores que
“empregaram largamente em suas obras elementos desta música”. Todavia tal afirmação,
ainda que possivelmente válida para obras compostas por esses artistas nos anos trinta e
quarenta não poderia explicar o uso do modalismo por CG em 1928, considerando-se que a
Missão de Pesquisas idealizada por MA quando diretor do Departamento de Cultura de São
Paulo chegou a Pernambuco somente em 1938, ou seja, uma década após a composição da
canção “Lembranças de Losango Cáqui”. Sendo assim é mais provável que tenha descoberto
o modalismo, sob a influência das modas de Paris.
Os dois modos utilizados pelo compositor (frígio e eólio) possuem o mesmo centro, em
fá# (ex.2), mas diferenciam-se pelo seu 2º grau - um semitom acima da tônica no caso do modo
frígio e um tom acima no caso do eólio. A estrutura dos intervalos entre os sete tons que compõem
esses modos diatônicos, portanto, é diferente. Em toda a canção, o modo frígio predomina e o
modo eólio faz somente duas breves aparições ao final de cada seção (comp. 13-14; comp. 34-35),
quebrando a monotonia do modo frígio, tal como é recriado por CG ao longo da peça.

Ex.2
Sobre a utilização de dois modos numa mesma peça, como ocorre neste caso, o compositor
José Siqueira (1981) observou que se trata de uma ocorrência freqüente, denominada dualismo
modal, acrescentando que os tipos de dualismo mais comuns na música folclórica brasileira são
entre os modos jônio/ lídio, jônio/ mixolídio e mixolídio/ lídio. Assim, pode-se afirmar que ao
criar um dualismo incomum, misturando os modos frígio e eólio, CG foi além da tradição popular
brasileira, seguindo a orientação de Mário de Andrade, contida no Ensaio sobre a Música Brasileira
(publicado em 1928, ano de composição da obra): “O artista tem só que dar pros elementos já
existentes (na arte nacional, popular) uma transposição erudita que faça da música popular, música
artística, isto é: imediatamente desinteressada” (Andrade, 1962, p. 16).
Sendo assim, o contato com MA e a leitura do Ensaio chamou a atenção de Guarnieri
para a necessidade de fazer tal transposição, unindo elementos da música folclórica aos pro-
cedimentos das vanguardas européias. Neste sentido, seu contato com a obra de Debussy,
antes mesmo do começo dos estudos com Baldi, tal como afirmaram Antonio L. de Sá Pereira2

2
Antonio L. de Sá Pereira afirmou que antes de completar seus estudos, CG teria sido “arrastado
por dois poderosos campos magnéticos: o italiano e o wagneriano. [...] A essas influências teria se
somado, com o aparecimento de Debussy, um terceiro campo, posteriormente, o francês” (Silva,
2001, p. 23).

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 131
e Maria Abreu3, contribuiu certamente para despertar seu interesse pelos modos.
Um traço geral da música modal tradicional, resgatado nessa canção por CG, con-
siste na circularidade das melodias que encaminham o ouvinte para a “experiência de um
não-tempo”, como observou J. M. Wisnik (1989, p. 71), a respeito dessa temporalidade que
“não se reduz à sucessão cronológica nem à rede de causalidades que amarram o tempo
social comum”. Trata-se de uma experiência de produção comunal do tempo, resgatada e
recriada pelo compositor paulista, que faz a música parecer monótona ou intensamente
sedutora e envolvente, dependendo de como é escutada4.
Cumpre demonstrar de que forma CG produz essa circularidade temporal das
músicas modais em sua pequena peça para canto e piano. Na verdade, esse efeito circular
é obtido através da subordinação das notas da escala a um som fundamental (a tônica em
fá#), repetido no baixo (executado pela mão esquerda do pianista) que cai no tempo forte de
cada compasso, seguido por um semitom ascendente e pelo retorno à tônica, gerando assim
uma ondulação hipnótica nos ouvintes. Sobre este centro tonal as outras linhas melódicas
(do piano e do canto) criam um jogo polirrítmico e polifônico que lembra as experiências
de Debussy quando começara a se libertar do tonalismo através dos modos medievais.
Na música modal tradicional, como observa Wisnik (1989), as linhas melódicas são
geralmente manifestações da escala que colocam em cena as possibilidades dinâmicas do
modo, mais do que motivos acabados. Sobre as notas da escala, geralmente os intérpretes
têm a liberdade de improvisar, tal como ocorre na música clássica indiana ou mesmo em
certos estilos do folclore brasileiro. Mas na peça de CG, a seqüência de graus conjuntos
descendentes (dó#-si-lá-sol) que aparece na linha melódica do piano (ex.1), antes de ser
ampliada e variada ritmicamente na primeira frase do canto (ex.3), pode ser compreen-
dida como um motivo. Ele reaparece na segunda frase do canto (ex.4), variado através de
mudança de direção, tornando-se uma seqüência ascendente de graus conjuntos (dó#-ré-
mi-fá#), antes de cadenciar no 5º grau.

Ex.3

3
Segundo Maria Abreu, CG conheceu a obra de Debussy nas gavetas de partituras da Casa Di Franco,
onde trabalhou como pianista (Silva, 2001, p. 36).
4
Wisnik (1989, p. 71) salientou que “a circularidade em torno de um eixo harmônico fixo é um traço
próprio do mundo modal”, que o diferencia do mundo da música tonal. Neste sentido, perceber tal
circularidade seria “a pedra de toque que introduz a uma outra experiência do tempo musical”.

132 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE

Ex.4
Tal como na música modal tradicional, na canção de CG as notas da escala também
circulam em torno de uma nota fundamental (fá#), que serve de ponto de referência para
os outros sons. Mas, como se trata de uma paráfrase da música tradicional, isto é, de um
processo de recriação de uma linguagem tradicional e não de uma citação de um trecho
de música modal, o compositor tem a possibilidade de individualizar sua criação, o que se
realiza através da construção de motivos que revelam a intervenção de sua subjetividade,
algo muito valorizado na estética ocidental ao menos desde o romantismo.
Outra intervenção da subjetividade do compositor consiste na inesperada aparição
do modo eólio no final da primeira seção (ex.5, comp. 13-14), antes da conclusão (ex.5,
comp.15), na qual o modo frígio é restaurado. Como será visto adiante, essa intervenção
decorre da interpretação que o compositor faz do texto e de sua necessidade de expressar
seu espanto diante da semelhança entre a brancura da moça e a da neve.

Ex.5
A segunda seção (A’), é uma variação da primeira, já que mantém os mesmos
elementos rítmicos, melódicos e harmônicos. As pequenas variações introduzidas na voz
superior do piano (as apojaturas) não chegam a afetar a estrutura harmônica modal, idêntica
a da seção inicial (A) na qual o fá# funciona como som fundamental.
A linha melódica do canto (ex.6) sofre maiores alterações do que a parte pianística
(ex.7) na segunda seção, mas pode-se verificar que o motivo de graus conjuntos descen-
dentes é mantido no piano e no canto, a despeito das variações que sofre, o que garante
a unidade da obra.

Ex.6

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 133
Ex.7

Na terceira frase do canto (ex.8), quando o cantor declara não gostar da neve, há
um crescendo de dinâmica e a melodia atinge a tônica aguda através de um salto de quarta
ascendente.

Ex.8

A última frase do canto (ex.9), que inicia no ponto mais agudo da melodia do canto,
onde há uma indicação de maior intensidade de dinâmica (forte), consiste no clímax da
canção. Mesmo aí a estrutura realizada pelo piano no modo frígio é mantida, notando-se
a sutil introdução de acordes de sétimas e diminutos (A7 - F#4(7) - Em7 - C#°), tencionando
a harmonia, justamente quando o poeta declara algo bastante inesperado.

Ex.9

Uma nova aparição do modo eólio (ex. 10), rompendo com a monotonia do frígio
(que,como será visto adiante, representa musicalmente a paisagem indicada no poema)
ocorre antes da conclusão da peça. Não se trata, todavia, de uma modulação propriamente
dita, já que a tônica continua fixa em fá#, em sua unidade indivisa, soando através do tempo
como eixo harmônico contínuo. A peça conclui com um retorno ao modo frígio (comp. 36)
e ouvem-se os últimos acordes, formados por quintas (sem as terças que caracterizam os

134 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
acordes tonais), soarem em dinâmicas contrastantes (forte e pianíssimo), que concluem a
peça com o tilintar brilhante da apojatura (sobre o 2º grau do modo) na região aguda do
piano, reafirmando o “território modal” frígio, para usar uma expressão de Wisnik.
Antes de concluir a análise musical, cumpre observar que embora a diferença entre
os modos frígio e eólio seja aparentemente pequena, já que apenas o 2º grau distingue suas
escalas (quando ambas tem a mesma tônica), a passagem de um modo para o outro significa a
transformação de um ethos ao qual cada modo estava ligado no contexto das culturas tradicionais.
No campo da análise musical intrínseca cumpre investigar qual a significação musi-
cal interna desses modos, lembrando que, como observou J. M. Wisnik, não são apenas as
escalas e suas estruturas intervalares que distinguem os modos. Uma das características
dos territórios modais consiste na “identificação da escala com uma determinada proprie-
dade semântica, dinâmica, que se pode dizer também dinamogênica (corresponde a um
movimento ou a um estado de corpo e de espírito)” (Wisnik, 1989, p. 68). Nas sociedades
pré-modernas esses ethos foram codificados, fazendo parte de uma rede de signos mais
ampla que estabelece correspondências, relacionando os modos aos deuses, às estações
do ano, cores, astros - tal como ocorre na música clássica indiana e também na da Grécia
Antiga. Em termos semióticos pode-se dizer que os modos nas culturas tradicionais são
legisignos5 já que funcionam a partir de hábitos e convenções que os associam a uma rede
ampla de significados.

Ex.10

Ao transportar os modos para o contexto da modernidade secularizada, os composi-


tores que buscavam uma saída para a crise do sistema tonal, especialmente os franceses
Ravel e Debussy, descontextualizaram os modos e retiraram deles suas propriedades semân-
ticas tradicionais. Mas para Mário de Andrade, professor do curso de estética musical e
orientador intelectual de Guarnieri, a arte musical vai além do seu aspecto psicofísico para
se tornar objeto de compreensão e de conhecimento, mas de um conhecimento específico
que não pode ser traduzido pela linguagem verbal.
Para MA, “o Belo musical artístico é compreensível porque é uma expressão, um
símbolo abstrato tal qual a palavra e como tal chega a ser objeto não só de conhecimento
como o Belo musical natural porém de compreensão” (1995, p. 43). Sendo assim, discutindo
com os psicólogos da música (sobretudo Bourgès e Denéréaz), MA defende a tese de que

5
Termo da teoria peirceana usado para designar os signos convencionais, o que Peirce chamou de um
“tipo geral sobre o qual há uma concordância de que seja significante” (Peirce apud Nöth, 1995, p. 77).

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 135
a música, sendo a arte dos sons, é expressão e conhecimento compreensivo, observando
que “uma frase musical não é apenas objeto de conhecimento como também objeto de
compreensão” (1995, p. 41).
Como será abordado logo adiante, CG, seguindo o pensamento de seu mentor
intelectual e os procedimentos dos compositores impressionistas franceses, utilizou os
modos atribuindo-lhes novos significados, que entram em paralelo com os sentidos da
poesia de MA.

Análise do signo Verbal

“Meu Deus como ela era branca!...


Como era parecida com a neve...
Porém não sei como é a neve,
Eu nunca vi a neve
Eu não gosto da neve!
Eu não gostava dela...”*

Mário de Andrade. “Lembranças do Losango Cáqui”. São Paulo: Chiarato, 1928.

O poeta-narrador nos dois versos iniciais compara sua musa à neve. Numa aborda-
gem semiótica, essa musa poderia ser considerada um qualisigno6, ou seja, um signo que
possui uma qualidade, a brancura. Mas esse signo, do ponto de vista do narrador que o
interpreta, não é uma possibilidade qualitativa (rema), representando um objeto possível.
Trata-se, antes, de um signo de “existência real”, ou melhor dizendo, de um signo que
transmite, nesse caso, uma informação veiculada pelo narrador.
Deve-se notar que a voz desse narrador é, todavia, reticente e que sendo assim,
a informação que veicula parece estar envolta na perplexidade do narrador diante da
brancura de sua musa. É importante ressaltar que as reticências são indícios, na poética
expressionista que MA absorveu ao longo dos anos vinte, da sensibilidade exacerbada e
do complexo mundo interno de personagens muitas vezes divididos e contraditórios que
se debatem internamente.
Tal como o narrador de Amar, verbo Intransitivo, romance escrito entre 1923 e
1926, o eu do poeta de “Losango Cáqui” segue a linha machadiana de perplexidade, es-
pantando-se com a mulher cuja qualidade, a brancura, desconhece. No romance citado, o
narrador tenta entender “uma figura singular de mulher, dela se distanciando, ou com ela
se solidarizando, admitindo, todavia, que Fräulein lhe escapa [...] e faz com que se ques-
tione”, como observa Telê Porto Ancona Lopes em seu prefácio à obra de MA, Amar Verbo
Intransitivo (Andrade, 2002, p. 10).
Aqui no poema musicado por CG só há o estranhamento e a perplexidade. À medida
que o poeta se dá conta de que não conhece a neve e que não gosta dela, desmorona-se a
possibilidade da paisagem monocromática sugerida vir a ser um idílio de amor. Aos poucos

6
Analisando o signo do ponto de vista do representamen (ou seja, do que o receptor percebe do
signo), Peirce observa que o qualisigno “é uma qualidade que é um signo” (Peirce apud Noth, 1995,
p. 76) e tão logo passe a pertencer à classe da secundidade, sendo posto em relação a um objeto,
torna-se um signo individual, uma qualidade que representa algo singular.

136 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
são reveladas as diferenças entre o poeta-narrador e sua musa inspiradora. Caberia então
perguntar quem seria essa Musa na trajetória do escritor.
Talvez um dado biográfico possa esclarecer não apenas quem foi objetivamente
essa musa na via de MA, como também o significado do signo (“ela”) no poema. Em 1922,
o escritor paulista escrevia os poemas que vieram a ser publicados em 1926 sob o título
Losango Cáqui ou afetos militares com os porquês de eu saber alemão. Conforme revela
Telê Porto A. Lopez, foram dedicados à amiga Anita Malfatti, “confessando-lhe terem os
poemas nascido de sua paixão por uma ‘diabinha de alemã’” (apud Andrade 2002, p. 34).
Essa pesquisadora acrescenta informações sobre os estudos de alemão que MA começou
no mesmo ano da Semana de Arte Moderna com a profa. Käthe Blosen e levanta a hipótese
dele ter transplantado para Amar, Verbo Intransitivo algumas características dessa profes-
sora., como a apreciação da obra poética de Schiller.
Outro ponto que vale a pena comentar é que através de Else Scholer e de K. Blosen,
suas primeiras professoras de alemão, MA se abriu à cultura germânica, deixando-se fascinar
por sua literatura, artes plásticas, teatro, dança e música – fazendo assim um contraponto à
forte influência francesa na cultura brasileira àquela época. Sabe-se, através de depoimento
de Lotte Sievers (amiga da segunda professora), que em 1924 já era capaz de traduzir per-
feitamente textos de canções alemãs, sem perder o sopro poético dos originais.
Após essa digressão, é possível retornar aos signos utilizados no poema musicado por
CG, onde o narrador-poeta rememora alguém que ficou no passado, em sua memória (“era
branca, era parecida com a neve...”), registrada por sua cor, cuja qualidade parece indicar
um modo de ser europeu (ou talvez alemão), distinto do modo de ser tropical do poeta.
É interessante acrescentar que em Amar, Verbo Intransitivo, a personagem central,
que representa o caráter do povo alemão (Fräulein), é construída a partir da necessidade do
autor de definir as identidades nacionais. Como observou Telê Porto, “a oposição que estru-
tura a psique do alemão [...] vem a propósito da grande preocupação nacionalista de Mário
de Andrade – definir nosso caráter, ou, como escreveu em 1926 no primeiro Prefácio de
Macunaíma, descobrir, o mais que pudesse, a ‘entidade nacional dos brasileiros’”(Andrade,
2002, p. 14).
Neste sentido, percebe-se que tanto nesse romance, terminado em 1926, quanto no
poema musicado por CG (possivelmente de 1928), as identidades nacionais são construídas
por comparação e contraste. No romance, o escritor vê traços positivos e negativos dos
dois lados, criticando o alemão por sua tendência de “amordaçar o sublime e o brasileiro
porque não possui consciência, conhecimento do seu modo de ser”, conforme revela Telê
Porto (idem, ibidem). Já no poema, o escritor utiliza a neve para indicar o Outro, ou melhor,
a Outra, a mulher “Civilizada”, que acaba sendo renegada pelo poeta, voz da consciência
nacionalista do escritor.
A neve pode ser considerada, de acordo com a teoria sígnica de Peirce, um sinsigno
icônico remático, na medida em que pode evocar no leitor (como possibilidade interpreta-
tiva) a idéia do objeto representado, a cultura germânica. Mas, se a neve for compreendida
pelo receptor como objeto particular e real não poderá ser considerada um qualisigno, ou
seja, como uma possibilidade qualitativa. Torna-se um sinsigno já que, num processo de
semiose representa iconicamente, isto é, através de suas qualidades e por semelhança com
o objeto representado, a dita “Civilização” para os leitores brasileiros desse poema.
Sabendo-se que MA, ao longo dos anos vinte moveu-se em direção a um afastamento
do eurocentrismo que caracterizava a primeira fase do modernismo brasileiro, peneirando os

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 137
procedimentos vanguardistas que considerava compatíveis com a identidade nacional, pode-
se considerar o desfecho do poema como um grito de independência da cultura nacional,
ao mesmo tempo que numa outra leitura, pode-se perceber uma ruptura com expectativas
oriundas da tradição poética romântica. Nas duas leituras, os versos finais soam como um
grito expressionista, sem polimentos nem artificialismos, dando vazão ao “eu-profundo” de
um poeta que descobre a distância que o separa da chamada “Civilização”.

Análise da intersemiose entre poesia e música


Nesta parte da análise procura-se demonstrar como a canção, considerada como
um signo composto, articula a relação entre os signos poético e musical ao longo da obra.
Para isso, é preciso revelar os diferentes modos de articulação desses signos e as tensões
no interior da obra, podendo-se também apontar suas relações com outros signos – dife-
rentes tradições, identidades, correntes estéticas, etc. Neste caso atinge-se um nível mais
amplo, em que se dá uma relação com outros níveis de significação e com outros signos
que formam o universo cultural de um contexto histórico preciso.
Inicialmente, pode-se afirmar que Lembranças do Losango Cáqui é uma peça
monocromática, se Guarnieri não tivesse introduzido o modo eólio nas duas passagens já
vistas ao final de cada seção da peça. Esse efeito monocromático advém da circularidade em
torno do eixo harmônico na parte pianística, bem como da repetição da estrutura rítmica
das vozes superiores do piano. Também a parte do canto reforça essa circularidade, na
medida em que mantém (em toda a primeira seção e no começo da segunda) uma mesma
estrutura baseada num único motivo de graus conjuntos descendentes. Colocando-se os
signos verbal e musical em confronto, pode-se observar que a paisagem sonora que resulta
da superposição desses signos musicais procura representar iconicamente a brancura da
neve que caracteriza o lugar de origem da musa do poeta. O signo musical, pensado como
um todo, possui assim qualidades que permitem aproximá-lo, por similitude, das qualidades
do signo verbal.
Todavia, para que o signo musical possa funcionar num processo de semiose é pre-
ciso que o ouvinte perceba que as qualidades dele (a repetição, a circularidade, a presença
constante da tônica, os motivos melódicos) e elas entrem em paralelo com as do signo verbal
(a brancura da musa e da neve). Neste caso, o signo musical pode ser visto como icônico, já
que representa seu objeto (verbal) pela semelhança. Pode ainda ser classificado como uma
metáfora (no sentido peirceano7), possuindo um forte aspecto de terceiridade, ou seja, é
um tipo de signo icônico que depende do interpretante gerado na mente do ouvinte para
que possa significar. A chave para a compreensão dessa metáfora consiste na percepção do
aspecto monocromático comum à brancura de uma paisagem de neve e à paisagem sonora
criada por CG a partir do modo frígio.
Outro aspecto dos versos iniciais do poema, que Guarnieri apreende e procura
ressaltar através da música, é a surpresa do poeta ao constatar a brancura de sua musa.
Após essa constatação veiculada pelo texto, um signo musical procura expressar a súbita
“iluminação” do poeta por meio da súbita aparição do modo eólio com seu brilho específico
(devido a alteração do 2º grau, que agora passa a ser sol#).

7
Segundo Peirce, a metáfora “representa o caráter representativo de um representamen (parte
percebida do signo) pelo estabelecimento de um paralelismo com outra coisa”(Peirce apud Martinez
1997. p. 112- 113).

138 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
É interessante notar que essa “comoção” (para usar o termo que MA retirou das
teorias psicológicas, especialmente a de William James) do poeta é fruto do lirismo do
escritor, tal como a ruptura com o modo frígio decorre da intervenção da subjetividade
do compositor. Assim, pode-se deduzir que a introdução do modo eólio pelo compositor,
quebrando o tom monocromático da paisagem sonora, expressa o assombro do poeta ao
constatar a brancura de sua musa. Esse é o significado que o modo eólio, em sua primeira
aparição adquire no contexto da canção. Trata-se, desse modo, de um signo que causa uma
surpresa ao introduzir um elemento estrutural diferente na ordem modal. O mais interes-
sante é que este signo ressalta algo não dito explicitamente no poema – o fato do poeta
admirar-se, surpreender-se com a brancura de sua musa – mas enfatizado pelo compositor
em sua leitura do texto. É neste sentido que se pode falar, como fez o semioticista William
Dougherty (1994), numa manipulação do signo verbal pelos compositores.
A partir do terceiro verso, o poeta começa a revelar fatos inesperados que destroem
qualquer possibilidade de um desenlace romântico do poema. Inicialmente ele afirma
não saber como é a neve, nem nunca tê-la visto. No entanto, a paisagem monocromática
continua presente no signo musical, especialmente na parte o piano, na qual se verifica
a repetição da tônica e a presença do modo frígio. Em termos harmônicos, há uma sutil
intensificação das tensões com o aumento das dissonâncias, como foi visto anteriormente.
Essa harmonia, mesmo contida dentro da ordem modal, acaba se tornando cada vez mais
tensa até que o ponto em que o poeta declara não gostar da neve. A palavra neve, até então
representada por duas notas na mesma freqüência, é representada pela primeira vez como
um salto do 5º grau da escala para a oitava aguda. Diversos signos musicais são utilizados
concomitantemente para expressar o “grito” do poeta, sua expressão autêntica de aversão
à moça e à neve. A melodia do canto atinge, então, seu clímax (comp. 30, ex. 9) quando o
poeta constata que não gostava da moça branca.
O último verso contraria as expectativas oriundas da estética romântica, o que pode
ser visto como uma característica da poética modernista de MA que desde a juventude
se contrapunha ao sentimentalismo e ao virtuosismo dessa corrente na literatura. É bom
lembrar que o poeta MA não desejava nos textos de sua juventude extinguir a sensibilidade
e o lirismo da arte moderna, mas procurava a expressão de uma sensibilidade moderna,
evitando o sentimentalismo romântico.
O rompimento que se verifica a nível poético não é, todavia, acompanhado pelo
signo musical, uma vez que o acompanhamento pianístico mantém, em sua estrutura básica,
a paisagem monocromática configurada pelo modo frígio, ao passo que a última frase do
cantor, com indicações de tenuto para cada nota na região mais aguda da voz, cadenciando
na oitava superior, parece representar o “grito” do poeta. Somente na coda final é que a
comoção do poeta parece atingir o piano e quebrar a estrutura monocromática do modo
frígio, através de uma nova aparição do modo eólio, ao qual se associam indicações de
dinâmica (crescendo) até que o 1º e o 5º graus justapostos encerrem a obra numa textura
polifônica que relembra certos procedimentos de Debussy e Ravel.
A possibilidade de não paralelismo entre os significados verbal e musical é explorada
por Guarnieri nesse interessante afastamento entre o piano e o canto. O que o signo musical
indica neste caso? Possivelmente representa a presença da musa branca, a qual se refere
o poeta, já que, conforme visto, o mesmo signo musical representava a brancura da moça
na primeira parte da canção. Ao final da peça, a última irrupção do modo eólio expressa
novamente uma emoção que vem a reboque, após o cantor declarar seu repúdio pela moça

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 139
e pela neve, tal como na teoria dos sentimentos reflexos de W. James, Ribot que CG pode
ter conhecido através de MA, segundo a qual nos sentimos mal porque choramos. Assim,
se para W. James e Théodule A. Ribot (autores com os quais MA discute em seu curso de
Estética8), a emoção pode ser induzida pela manipulação anterior de um movimento cor-
poral que a antecede, do mesmo modo para Guarnieri o “grito” do poeta vem a posteriori,
como algo que resulta do que foi dito anteriormente. Portanto somente ao final da peça,
através da irrupção final do modo eólio, o signo musical expressará a emoção contida de
um sujeito moderno e tropical, que declara ter descoberto que não gosta da musa branca
e de tudo o que ela representa como signo da cultura européia.
Considerando-se a virada do movimento modernista ocorrida por volta de 1924,
quando o imediatismo da fase inicial foi suplantado pelo desejo de mediatizar a incorpora-
ção dos procedimentos das vanguardas européias através da tematização da brasilidade,
(Moraes 1978; Wolff 1991), essa canção pode ser vista como um signo dentro de uma rede
mais ampla de signos culturais, articulando-se com o contexto da virada modernista e ten-
sionando o projeto dessa segunda fase do movimento, já que parece levar o nacionalismo
a um rompimento com a ordem universal ditada pela “Civilização”.

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8
MA em torno de 1925 havia escrito em sua Introdução à Estética Musical, publicada postumamen-
te, que “os psicólogos enrabichados pela teoria dos sentimentos reflexos da escola de James, Sergi,
Ribot, consideram a música como simples provocadora de comoções sensoriais, puro fenomeno
fisiológico sem nenhuma inteligibilidade consciente” (1995, p. 45). Embora MA preferisse a posição
de Combarieu, de que a música “é a arte de pensar sem conceitos por meio de sons” (1995, p. 45),
é possível que tenha transmitido tais idéias a seu aluno Guarnieri, que frequentou suas aulas de
estética no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.

140 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
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Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 141
INSTITUIÇÕES

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 143
Os Seminários de Música da Pró-Arte de São Paulo

Lenita W. M. Nogueira
Universidade Estadual de Campinas

Lilia de Oliveira Rosa


Universidade Estadual de Campinas

Apesar de vasta literatura sobre a história da educação musical no Brasil, a década de


1950, especificamente o resgate da Escola Livre de Música da Pró-Arte de São Paulo, criada
em 1952 pelo empresário Theodoro Heuberger e compositor Hans-Joachim Koellreutter, ainda
não recebeu a devida atenção pela importância de suas proposições musicais e pedagógicas
inovadoras no meio musical. Esta instituição foi responsável pela formação de inúmeros
músicos que formaram a nata da música brasileira com reflexos até os dias de hoje.
O presente estudo tem como objetivo investigar a Escola, o currículo, os cursos
e eventos ali desenvolvidos, as ideias de Heuberger e Koellreutter, bem como os mais
significativos alunos ou discípulos, enfim, a instituição e a contribuição de Koellreutter no
período 1952-1958.
A metodologia de pesquisa emprega a análise de textos (livros, dicionários e trabal-
hos acadêmicos), artigos publicados e inéditos, principalmente de ex-alunos como Samuel
Kerr, Júlio Medaglia, Luiz Carlos Lessa Vinholes, Carlos Kater e outros, relatos, entrevistas
e documentos oficiais ou pessoais (cartas, registros etc.).

Heuberger e a Pró-Arte
Para se falar dos Seminários de Música da Pró-Arte de São Paulo, fundada em
1952 com o nome de Escola Livre de Música da Pró-Arte, é preciso voltar ao ano de 1924,
época que marca a chegada ao Brasil do alemão Theodor Heuberger, nascido em Munique
em 1898. Com uma atuação respeitada na Alemanha e ligado às tendências mais contem-
porâneas das artes e aos ideais da Bauhaus, Heuberger veio ao país a convite do pintor
e cônsul geral do Brasil em Munique, Navarro da Costa, para organizar a 1ª Exposição de
Arte e Artesanato Alemães no Rio de Janeiro, inaugurada naquele mesmo ano de 1924. O
sucesso foi grande e a mostra foi apresentada também em São Paulo, Santos e Campinas.
Em 1928 fundou no Rio de Janeiro uma galeria de arte que levava seu nome e ali
foram expostas obras de artistas contemporâneos ainda desconhecidos no Brasil como
Barlach, Klee, Feininger, Kokoschka, entre outros. Desta galeria surgiu também a empresa
“Casa e Jardim” que fabricava móveis e artefatos, bem como promovia a difusão do arte-
sanato alemão e obras de artistas brasileiros.
A presença de Heuberger em um Rio de Janeiro ainda bastante conservador,
em especial no que se refere às artes plásticas, caracterizadas por uma produção ligada
ao ideal acadêmico na linha da Escola Nacional de Belas Artes, trouxe uma movimentação
de grande valia para o desenvolvimento das artes no Brasil. Ao visitar a XXXI Exposição
Geral de Belas Artes, que ocorreu em 1924 no prédio da Escola Nacional de Belas Artes no

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 145
centro do Rio de Janeiro, ficou chocado com a maneira como os quadros foram expostos e
comentou sobre isso em entrevista bastante posterior. Além do registro de sua decepção
perante a organização da mostra, revelou à pesquisadora Maria Cristina Burlamaqui como
contrariou esta postura ao montar a Deutsche Werkbund-Bauhaus (1929) e a Exposição
Alemã em homenagem ao Brasil em 1931 (Valle, 2011):

Eu quase desmaiei quando vi a exposição do Salão de 1924, na Escola de Belas


Artes, com quadros em quatro filas... por isso eu organizei uma exposição em
uma linha só! Foi uma beleza! Eles disseram: ‘Que coisa, a gente pode respirar,
a gente pode ver um quadro diferente do outro, em vez de um quadro matar
o outro!’1

Seguem abaixo registros fotográficos da exposição onde Heuberger apresenta sua


concepção do que deveria ser uma exposição de arte:

Figura 1. Exposição Alemã em homenagem ao Brasil montada por Theodor Heuberger.


Escola Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, 1931.

Em artigo recente dedicado a essa mesma Exposição Alemã, o pesquisador Marcelo


S. Masset Lacombe assim a ela se referiu:

Heuberger, de acordo com as fotografias que fazem parte do álbum de 31,


realizou uma curadoria inovadora para os padrões habituais do Rio de Janeiro;
os quadros foram expostos alinhados sobre o lambri das paredes do salão,
de forma a estarem na altura da vista dos expectadores e não dispostos uns
sobre os outros até o pé direito da parede como parece ter sido comum na
década de 20. Com isso Heuberger conseguia pôr o espectador numa situação
de contemplação íntima de cada obra, acentuando em cada uma delas a sua
individualidade (Valle, 2011).

Foi com essa visão inovadora da arte que Heuberger atuou também no campo da
música ao fundar em 1931, ao lado da pianista Maria Amélia Rezende Martins2, a Pró-Arte

1
In: <http://www.dezenovevinte.net/arte decorativa/egba_instalacao.htm>. Acesso em: 03 set. 2011.
2
Trata-se da neta do Barão Geraldo de Rezende, antigo proprietário da Fazenda Santa Genebra em Cam-

146 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Sociedade de Artes, Letras e Ciências na cidade do Rio de Janeiro. Nos salões desta instituição
realizaram-se exposições, conferências e concertos, em geral conectados à arte contem-
porânea. Heuberger e Maria Amélia extrapolaram os limites do Rio de Janeiro e percorreram
diversas cidades do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, levando mostras de pintura,
exposições de artesanato e concertos de música.
Em 1950 Heuberger criou na cidade de Teresópolis, região serrana do Rio de Janeiro,
o I Curso Internacional de Férias, pioneiro deste tipo de encontro no Brasil. Chamou para
assumir o cargo de diretor artístico o compositor, flautista e professor alemão radicado
no Brasil, Hans Joachin Koellreutter (Freiburg, 1915-São Paulo, 2005), que já havia se
apresentado diversas vezes como flautista na Pró-Arte. O curso teve continuidade e entre
seus diretores artísticos podemos destacar músicos como Roberto Schnorrenberg, Heitor
Alimonda, Homero Magalhães, Gilberto Tinetti, Alberto Jaffé, Roberto Ricardo Duarte
e Carlos Alberto Figueiredo. Entre seus professores destacam-se Villa-Lobos, E. Krenek,
Karl Ulrich Schnavel, Gerard Huesch, Carl Seeman, Tomas Teran, Noemie Perugia, Oscar
Niemeyer, Mario Pedrosa, Manuel Bandeira, Guilherme Figueiredo. E dele, saíram alunos
que depois se projetaram no cenário musical, tais como Isaac Karabtchevsky, Edino Krieger,
David Machado, Cláudio Santoro, Saloméa Gandelman, Mauro Moreira, João Carlos Martins,
Berenice Menegale, entre tantos outros.
O curso serviu assim de modelo para os festivais de Ouro Preto, de Porto Alegre,
Curitiba, Campos do Jordão e outros. Durante o XV Curso, Teresópolis foi declarada a “Cidade
dos Festivais” e o prefeito, Paulo Torres, doou uma área para a fundação da Escola de Arte
e Artesanato, que depois se tornou Centro Cultural e posteriormente sede dos Cursos de
Férias de Teresópolis3.
Após a terceira edição do festival, Heuberger resolveu expandir a Pró-Arte e, então,
funda em 1952 a Escola Livre de Música da Pró-Arte em São Paulo que, mais tarde, em
1956, passaria a ser chamada Seminários de Música da Pró-Arte. Nesta época, Koellreut-
ter morava em São Paulo e, segundo o maestro Júlio Medaglia (2002), muito contribuiu
para isso a insistência da nova geração de músicos paulistas, que, ávida por conhecer as
novas tendências da música contemporânea, começou a solicitar constantemente a sua
presença. Para dar início às aulas e palestras do compositor alemão, a família Gregori
cedeu uma sala com piano em sua residência na capital paulista. Ali foi se agrupando um
bom número de artistas e músicos como Damiano Cozzella, Olivier Toni, Jorge Wilheim,
Henrique Gregori, Nininha Gregori, Roberto Schnorrenberg, Eunice Catunda e outros, além
de músicos populares.
A esta altura, Heuberger também morava em São Paulo e, vendo o interesse que
as aulas de Koellretter despertavam nos jovens músicos paulistas, propôs a ele a criação
de uma escola de música, da qual seria diretor. A partir daí, “Koell” ou “K”, como era
chamado carinhosamente por seus alunos e colaboradores, começou a formar um grupo
de professores de instrumento e de matérias teóricas, escolhidos a dedo os seus entres os
mais destacados da época. Corria o ano de 1952 e a Escola Livre de Música estabeleceu-se
na Rua Sergipe, 271.

pinas, onde hoje está localizado o campus da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.
3
Conforme consta no site da Pró-Música do Rio de Janeiro em: <http://www.proarte.org.br/Home.htm>.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 147
Figura 2. Seminários de Música da Pró-Arte em São Paulo – Rua Sergipe, 271
Fonte: Arquivo Particular de L. C. Vinholes.

Segundo o compositor L. C. Vinholes4, secretário da Escola e também do professor


Koellreutter, rapidamente a sede da nova escola transformou-se no

mais fervilhante, criativo, informativo e moderno centro musical do país. As pes-


soas não “passavam” por lá para ter aulas e sim, ao terem os primeiros contatos,
enfeitiçadas com o astral do ambiente, consideravam-na, praticamente, sua
segunda casa. Além da elevadíssima qualidade técnica do ensino, Koellreutter
cuidava da “cabeça” das pessoas, fazendo-as mergulhar em outros repertórios
musicais e culturais. Os alunos assistiam a palestras e dialogavam com filósofos,
cineastas, coreógrafos, atores e diretores de teatro, jazzistas, artistas plásticos,
poetas concretistas e compositores da vanguarda – entre eles Pierre Boulez.
Todos estudavam uma matéria principal, mas participavam de dezenas de outras
atividades, cantando no coro de alunos, formando grupos de câmara, integrando
espetáculos não musicais, “happenings”, frequentavam coletivamente mostras
e exibições culturais, espalhavam música pela cidade nos mais diversos espaços
e assim por diante. (Vinholes, 2004)

Koellreutter implantou uma política educacional que diferia das demais escolas e
conservatórios brasileiros. O fato de esta escola ter sido fundada em São Paulo e não no Rio
de Janeiro, como seria mais lógico, deve ser creditado ao ambiente artístico mais tradicional
que ainda predominava na então capital federal. São Paulo era uma cidade formada por
classes bastante heterogêneas, a expansão de seu parque industrial era notável e estava
atenta aos ideais artísticos da modernidade desde a Semana de Arte Moderna de 1922.

Koellreutter
Hans-Joachim Koellreutter nasceu em 2 de setembro de 1915, em Freiburg, na
Alemanha. Estudou na Staatliche Akademische Hochschule für Musik de Berlim e no Con-
servatoire de Musique de Genebra, formando-se em flauta, piano, musicologia, composição
e regências coral e orquestral (Kerr, 2002). Dentre seus professores, Kurt Thomas, Paul Hin-

4
A quem agradecemos o fornecimento de grande parte do material para este artigo.

148 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
demith e Hermann Scherchen foram fundamentais para a formação do jovem Koellreutter.
De acordo com Kater (2001), Scherchen influenciou profundamente a sua personalidade
e as realizações futuras no Brasil como, por exemplo, divulgar a música nova de todos os
tempos e a produção musical de autores de sua época, além de promover a música de
maneira pedagógica.
Em 16 de novembro de 1937, a bordo do navio Augustus, Koellreutter chegou ao
Rio de Janeiro, onde passou a residir e a desenvolver suas atividades musicais. No ano
seguinte, é apresentado a Theodor Heuberger que o convida para realizar vários recitais de
flauta, promovidos pela Sociedade Pró Arte, cuja estreia no país se deu no Conservatório
Mineiro de Música de Belo Horizonte (atual Escola de Música da Universidade Federal de
Minas Gerais). Atuou também como flautista na Orquestra Sinfônica do Rio de Janeiro e,
em seguida, dedicou-se às atividades pedagógicas.

Fig. 3. Hans-Joachin Koellreutter

Com a colaboração de Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, Koellreutter estreitou con-


tato “com o núcleo de músicos e intelectuais frequentadores da loja de música Pingüim”
(KATER, 2001, p.48) e, a partir daí, fundou o grupo Música Viva, movimento pioneiro de
renovação musical, que lutou pela produção musical contemporânea ou pela revelação do
“novo” como princípio estético.
O movimento foi efervescente e durou até 1952, destacando-se inúmeras ativi-
dades como audições, concertos, boletins, aulas de composição, palestras, conferências,
publicação de obras, criação de revista, programas radiofônicos, eventos artísticos, criação
da “sociedade”, promoção da educação musical moderna e elaboração de Manifestos que
provocaram discussões estéticas e ideológicas calorosas.
Na década de 1940, Koellreutter lecionou composição para jovens alunos, dentre os
quais Santoro e Guerra-Peixe, aplicando em suas aulas particulares a técnica dodecafônica.
A partir daí desenvolveu grande dinâmica de atividades, principalmente como compositor
e educador, sistematizando Cursos Independentes de Composição Musical, nas cidades de

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 149
São Paulo e Rio de Janeiro, uma forma de atuação pedagógica autônoma que se intensificou
até os últimos dias de sua vida.
Com o apoio do empresário e amigo Theodoro Heuberger e a colaboração da
cantora austríaca Hilde Sinnek, Koellreutter fundou em 1950 os Cursos Internacionais de
Férias Pró-Arte, em Teresópolis, Rio de Janeiro. Em 1952, fundou a Escola Livre de Música
de São Paulo e, em 1954, os Seminários Internacionais de Música da Universidade da Bahia
(1954-1962), que originou mais tarde a Escola de Música da referida Universidade. Minis-
trou aulas nos cursos de pós-graduação do Conservatório Brasileiro de Música do Rio de
Janeiro, da Universidade de Minas Gerais (BH) e da Universidade Estadual do Ceará. Ainda,
paralelamente, desenvolveu atividades na FAP-ARTE de São Paulo, Piracicaba, Curitiba e
Ouro Preto, nas décadas de 1970-1980 (Rosa, 2011).
As propostas pedagógicas de Koellreutter sempre se mostraram bastante originais
e, especificamente no projeto de criação do SMUB – Setor de Música da Universidade da
Bahia (1954) –, os programas das disciplinas e cursos, bem como as atividades culturais
apresentam-se de maneira integradora, desenvolvendo o indivíduo em todo o seu potencial
criativo e humano (Kater, 2001).
Propôs a criação de um instituto modelo para o norte brasileiro, consagrado ao
ensino da arte musical, que consistia num conjunto de cursos livres de todas as matérias
musicais e correlatas, além de uma Seção de Dança. Dentre as matérias obrigatórias, ele
listou as seguintes: pedagogia, interpretação, metodologia e prática de ensino. Ainda,
sugeriu um Departamento de Difusão Cultural, no intuito de proporcionar aos alunos o
conhecimento das obras representativas da literatura de todos os tempos, além de um
espaço que compreenderia uma Orquestra Universitária e os corais do SMUB.
Este documento mostra que Koellreutter procurava proporcionar ao estudante de
música um ensino musical completo, além de cursos complementares e de extensão muito
similares ao que já vinha ocorrendo nas cidades de São Paulo e Teresópolis.
Em 1952, na cidade de São Paulo, como veremos adiante, Koellreutter fundou e diri-
giu uma das mais importantes escolas de música do país, além de ter atuado intensamente
como professor de diversas disciplinas, divulgador da produção musical contemporânea e
promotor de encontros com artistas, filósofos e músicos nacionais e estrangeiros.
A partir de 1956, passou a se chamar Seminários de Música da Pró-Arte, cujas metas
visavam tanto o preparo de bons profissionais, quanto à formação de um público capacitado
a apreciar e a julgar os diversos tipos de música.
No âmbito da composição, Koellreutter foi bastante criativo e instigador, estreando
sua primeira obra de forma aberta, Sistática, para flauta solo, em 1955, cujos princípios
técnicos e estéticos ali apresentados contribuíram para o desenvolvimento de uma técnica
própria, de caráter vanguardista, que a denominou Planimetria.
Nas décadas de 1960-70, Koellreutter desenvolveu intensa atividade pedagógica fora
do Brasil como Alemanha (Berlim, Munique), Índia (Nova Delhi, Mysore, Bombaim), Japão
(Tóquio), entre outros. Após treze anos de ausência, Koellreutter retornou ao Brasil, dando
continuidade às suas aulas particulares, palestras e cursos em diversos centros de ensino
do país. Essas atividades, caracterizadas sempre pela reflexão e debate vivos, confronto de
idéias e posicionamentos filosóficos, estéticos e ideológicos, levaram muitos educadores e
músicos a tomar consciência de si e da realidade sociocultural brasileira, de sua função como
artista na sociedade e da importância da música na educação de seres humanos melhores.
Uma fase que durou até os seus últimos dias de vida (2005).

150 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Seminários de Música da Pró-Arte de São Paulo
Na empreitada paulista, Heuberger teve o auxílio de Koellreutter que implantou
uma política educacional que diferia das demais escolas e conservatórios brasileiros. Um
dos pontos mais importantes de seu projeto era uma proposta educacional inovadora
que, além da preparação de artistas e profissionais, tinha um objetivo mais audacioso, a
formação “de um público dotado de conhecimentos que o capacite a apreciar e julgar as
obras musicais, assim como outras manifestações artísticas”, conforme publicado em um
folheto de divulgação da escola (Kater, 2001).
Outra novidade introduzida nesta escola foi o estudo de jazz e nisto foi pioneira
na América Latina. Além das matérias tradicionais, constavam no seu currículo disciplinas
que ainda não constavam nas escolas oficiais, tais como harmonia funcional, harmonia de
jazz, canto gregoriano, entre outras.
Ali se estudou, pela primeira vez no Brasil, os livros de Paul Hindemith e seu Ludus
Tonalis, o contraponto dodecafônico de Ernst Krenek e o Microkosmos de Béla Bartók. Em
1954, chegou a ter um pequeno laboratório de música eletrônica sob a responsabilidade
de Ernst Mahle. Por sua sede, à Rua Sergipe, passaram artistas e instrumentistas de renome
internacional como Walter Gieseking, Henrry Jolles e Sebastian Benda, o bailarino Masami
Kuni, idealizador da “creative dance”, os compositores Pierre Boulez e Wolfgang Fortner,
o regente coral Kurt Thomas e a compositora Kikuko Kanai, representante do Japão às
comemorações do IV Centenário de São Paulo.
A prática do canto coral com um repertório nada convencional, obras instrumentais
e vocais polifônicas e as jam-sections aos sábados e domingos faziam da Escola um ambiente
singular. As apresentações de jazz tinham no pianista Paul Urbach seu grande incentivador.
Em uma turnê pelo Brasil, o pianista austríaco Frederich Gulda teve a oportunidade de
assistir a uma jam-section e ficou impressionado com a qualidade do jazz ali praticado, es-
pecialmente por tratar-se de um ambiente dedicado à “música erudita”. Ao voltar à Áustria,
inclusive, introduz o jazz no currículo da Academia de Viena (Vinholes, 2002).
Seus alunos e professores foram responsáveis por primeiras audições no Brasil de
obras como a Missa Notre Dame de Guillaume de Machaut, a Paixão de Schultz, a Sinfonia
op.21 de Anton Webern, além de peças corais de compositores do barroco brasileiro e
europeus. Havia um público fiel e foi histórico o concerto realizado na Igreja da Consolação
quando foram apresentadas a Missa em Dó de Mozart e o Pater Noster de Igor Stravinsky.
Os recitais realizados no salão da escola, com repertório pouco comum aos programas dos
eventos musicais de São Paulo, atraiam público fiel que ocupava todos os espaços internos
e os do jardim que circundava o prédio (Vinholes, 2002).
Ainda segundo Vinholes (2002), a Escola teve influência decisiva na criação dos
Cursos Internacionais de Música de Teresópolis e, em meados de 1954, do Seminário
Internacional de Música da Bahia, embrião da Escola de Música da Universidade daquele
Estado, e da Escola Livre de Música da Pró-Arte em Piracicaba, hoje, Escola de Música de
Piracicaba Ernst Mahle.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 151
Figura 4. Koellreutter (ao piano) e L. C. Vinholes
Fonte: Arquivo Particular de L. C. Vinholes.

Em 1956, com sua metodologia de ensino já consolidada, a escola foi pressionada


pela Secretaria Estadual de Educação a refazer seu currículo para adequar-se às normas
oficiais e assim receber autorização para manter suas atividades. A legislação vigente es-
tabelecia uma grade de matérias para o funcionamento de uma escola de música e estas
não se adequavam aos propósitos da Pró-Arte, que trazia em sua proposta a ideia, expressa
em seu nome, de ser “livre”, não ligada aos padrões oficiais. Defendendo as linhas do seu
ensino, optou-se pela continuidade do trabalho que vinha sendo feito e, ao não atender às
normas da Secretaria de Educação, houve a necessidade de eliminar a palavra “escola” de seu
nome. A instituição passou a ser chamada de Seminários de Música da Pró-Arte, palavra de
sentido mais amplo e em consonância com as ideias que haviam norteado a criação daquele
estabelecimento de ensino. De acordo com Vinholes (2002), a troca de palavras foi uma
sugestão dos assessores jurídicos da Pró-Arte que trabalhavam com Theodor Heuberger.
Contudo, o ‘braço’ de Piracicaba, criado em 1953 por Ernst Mahle com o nome Escola
Livre de Música da Pró-Arte, optou por se alinhar à grade definida pelos órgãos oficiais e
“para melhor atender às exigências legais referentes á certificação oficial de diplomas teve
seu nome alterado para Escola de Música de Piracicaba (EMP)”, conforme consta no site
da escola, desvinculando-se da Pró-Arte em 1961.

152 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Figura 5. Ernst Mahle, Rosita Salgado Góis, Sandino Hohagen e Munir Busamra
Fonte: Arquivo Particular de L. C. Vinholes.

Conclusão
Nosso estudo sobre a Escola e Seminário de Música da Pró-Arte ainda está no seu
início, mas podemos afirmar com certeza a sua importância na história da educação musical,
especialmente na organização dos cursos e formação de muitos dos que viriam a integrar
a nata da música brasileira.
No seu corpo docente inicial, além de Koellreutter (idealizador e também diretor
da escola) que lecionava composição, harmonia funcional, contraponto, regência, flauta,
estética e análise, outros marcaram presença como Celina Sampaio, Hilda Sineck5 (canto),
Damiano Cozzella (harmonia funcional e análise), Roberto Schnorrenberg (história da música
e regência), Conrad Bernard (repetição e leitura a primeira vista), Walter Bianchi (óboe),
Bino Pedini (trompete), Alexandre Schaffman (violino), Johannes Olsner (viola), José Kliass,
Hans e Isolda Bruch (piano), Rosita Salgado Góis (iniciação musical), Yulo Brandão (estética
e filosofia da música), Yanka Rudzka (dança moderna) e Madalena Nicols (teatro).
Entre os alunos que passaram pela Escola-Seminário, encontramos um bom número
daqueles que se destacariam no cenário nacional e internacional e se fossemos citar alguns,
certamente ficaríamos em dívida com muitos outros. Entretanto, não podemos deixar de
destacar nomes como Klaus Dieter Wolff, Ney Salgado, Sandino Hohagen, Gerardo Parente,
Maria de Lourdes (Baby) e Henrique Gregori, Norma Graça, Antonieta Moreira Leite, Clélia
Ognibene, Carlos Alberto Pinto Fonseca, Ronaldo Bolonha, Eva Milko, Hortência Ravagnani
Montgomery, Cláudio Petraglia, Orlando Leite, Severino Filho, K-Ximbinho, José Carlos e José
Eduardo Martins, Marli Hatsbach, Carlos Eduardo Prates, Paulo Affonso de Moura Ferreira,
Gilberto Tinetti, Dalva Barbosa, Brasil Eugênio da Rocha Brito, Antônio Naclério Galvão
Novaes, Araçari de Oliveira, Lia Carvalho, Isaac Karabtchevsky, Clara Sverner, Marina e Dilza
de Freitas Borges, Ronaldo Bolonha, Maria Amélia (Meméia) Cozzela, Tiche Vespaziano,

5
Colaborou para a criação dos Cursos de Férias de Teresópolis.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 153
Paulo Herculano, Samuel Kerr, Ula Wolf, Lídia Hortélio, Suzana Bandeira de Melo, Terezinha
Schnorrenberg e Munir Bussamra, mentor do Grêmio Bela Bartok e criador de mini-cartazes
de precursora plasticidade gráfica, usados na divulgação dos eventos promovidos pela Escola.
Outro aspecto que ainda demanda novas pesquisas é a produção intelectual de
alguns professores e alunos ligados às atividades da Escola, que se destacaram escrevendo
colunas especializadas, assinando críticas e comentários na imprensa paulista, todos de
grande interesse para leitores e frequentadores das salas de concertos, estudiosos e apre-
ciadores de música. Até o momento temos conhecimento de que H. J. Koellreutter, Roberto
Schnorrenberg, L. C. Vinholes e Cyro Monteiro Brisolla escreveram para o Diário de São Paulo,
Diogo Pacheco para O Tempo e José Luiz Paes Nunes para O Estado de São Paulo.

Figura. 6. José Luis Paes Nunes, Carlos Alberto Pinto da Fonseca e L. C. Vinholes em 1954
Fonte: Arquivo Particular de L. C. Vinholes.

Sem dúvida alguma, Koellreutter renovou os conceitos e as ideias de compositores,


instrumentistas, cantores, educadores e estudantes através de novas técnicas composicionais
(dodecafonismo e serialismo), de propostas pedagógicas inovadoras (improvisação como
técnica e didática) e reflexões filosóficas sobre música, educação musical, arte e vida. Para
ele, a arte possui função social e é essencial à existência do homem, além de “converter-se
em fator preponderante de estética e de humanização do processo civilizador” (Koellreut-
ter, 1988, p.40 apud Rosa, 2011).
Dentro deste pensamento, a escola foi palco de eventos importantes na história
das artes e da cultura de São Paulo e do Brasil, e não podemos deixar de citar a primeira

154 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
exposição individual de Tomie Ohtake no Brasil.

Figura 7. Exposição de Tomie Othake – Década de 1950


Fonte: Arquivo Particular de L. C. Vinholes.

Ali os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, juntamente com Décio Pignatari,


Waldemar Cordeiro, Maurício Lima e Saciloto puderam expor suas ideias no início do
concretismo na literatura e na pintura; o pintor Sanson Flexor, um dos responsáveis pela
difusão do abstracionismo no Brasil, apresentou sua metodologia de estruturação do espaço
pictórico e Hercules Barsotti e Anatol Wladislav expuseram suas obras.
Para que se tenha ideia da importância dos ensinamentos de Koellreutter para
os discípulos daquela escola, recorremos ao depoimento do maestro Júlio Medaglia, que
no dia primeiro de setembro de 2002, véspera do octogésimo sétimo aniversário de H. J.
Koellreutter, recebera em sua casa um grupo de mais de cinquenta ex-alunos da Pró-Arte
para um almoço de confraternização. Ele afirma:

Foi, sem dúvida, um dos momentos mais emocionantes de nossas vidas, ainda
que entristecidos que estávamos com a ausência daquele que foi nosso “guru”.
Koellreutter, apesar de viver em São Paulo, já habita outras esferas levado pe-
los sintomas do mal de Alzheimer. Se o tom do reencontro foi emocional, não
podemos dizer que teria sido melancólico, pois a sensação que todos tinham era
a de que seriam possíveis outros encontros e, talvez, até a recriação, num breve
futuro, de outra instituição que tivesse o espírito daquela que foi a maior usina
de criação de música e músicos deste país nos tempos modernos, a Escola Livre
de Música. (Medaglia, 2002)

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 155
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156 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Gênero feminino, relações afetivas e pedagogia em
bandas de música nordestinas, de 1930 a 2000

Marcos dos Santos Moreira


Universidade Federal de Alagoas

Este ensaio aborda o papel socioeducativo e artístico da presença das mulheres em


grupos filarmônicos na região nordeste, comparando-a com dois casos lusitanos1. A pesquisa
empreendida visa a compor uma constatação da atuação do Gênero Feminino2 e sua relevân-
cia nestes grupos centenários. Sabe-se que a presença feminina nas bandas só ocorrerá de
fato no século XX, mais precisamente a partir da década de 1930. Assim, faz-se necessária
uma busca histórica a partir da referida década, averiguando-se atas e documentos que
indiquem a presença feminina e sua entrada nos grupos pesquisados e como esta situação
decorreu em termos pedagógicos, sociais, bem como estudar o convívio e a interação com
integrantes masculinos em instituições de euterpes nas últimas décadas.

gênero e música: Uma fundamentação proposta


O argumento que torna o tema relevante baseia-se no levantamento bibliográfico
temático enfatizando uma análise dos papéis de gênero feminino na sociedade a partir das
mudanças ocorridas nos estatutos e a abertura para as mulheres nos grupos pesquisados,
não somente do lado social e artístico em questão, mas também pedagógico. Primeira-
mente, far-se-á uma leitura do que significa o termo Gênero na ciência educacional e social
no nosso país.

o gênero
Sandra Unbehaum, socióloga da Universidade de São Paulo, define:

Gênero é uma linguagem, uma forma de comunicação, uma forma de ordenar o


mundo, que orienta a conduta das pessoas na maneira como elas vão se relacionar
com as outras... é mais do que uma maneira como as pessoas se relacionam, é
também um jeito de olhar e compreender a realidade ... O gênero nos ajuda a

1
Esta pesquisa constitui um desdobramento da tese de doutorado Mulheres em Bandas de Música:
Relações de Gênero em Filarmônicas nordestinas brasileiras e Portuguesas (1990 a 2000). A Univer-
sidade Federal de Alagoas-UFAL mantem o grupo de pesquisa-PROPEP-CNPQ, Metodologia e Con-
cepção Social do Ensino Coletivo Instrumental, sob coordenação deste autor. Fundado em 2008, tal
grupo de pesquisa da UFAL firmou acordo de cooperação institucional com o grupo de Investigação
do Instituto Piaget em Viseu, Portugal, pelo qual os projetos de pesquisa sobre as bandas nordesti-
nas e lusitanas têm sido desenvolvidos de modo integrado.
2
O Dicionário da língua portuguesa (1990), de Aurélio Buarque de Holanda define: “Gênero - Ca-
tegoria que indica por meio de desinências uma divisão dos nomes baseada em critérios tais como
sexo e associações psicológicas. Há gêneros masculino, feminino e neutro”.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 157
compreender que essa maneira de organizar a sociedade – dividida em dois jeitos
de ser: homem e mulher, masculinos e femininos. (Unbehaum, 2005, p. 35)

Arneide Bandeira Cemin afirma:

O conceito de gênero, apesar de sua imprecisão teórica, diz respeito à construção


cultural e simbólica das relações entre homens e mulheres. No Ocidente, desde
os gregos e passando pelos iluministas, o valor máximo é a razão clara, objetiva,
considerada atributo masculino, em confronto com a subjetividade obscura,
identificada ao feminino. (Cemin, 2001, p. 26)

As relações do gênero feminino estão ligadas política e sociologicamente a movimen-


tos antropológicos como o feminismo3. Carneiro (1993) e Branca e Pitanguy (1985) destacam
a precisão ideológica do movimento pela necessidade da representação não só simbólica,
mas como fundamental para tal representação de identidade da mulher na sociedade:

Portanto, seja numa visão biológica, que define a mulher como inferior ao homem
do ponto de vista da força física; seja numa visão religiosa que identifica a mulher
como subproduto do homem, já que foi construída da costela de Adão, seja do
ponto de vista cultural, que define um campo específico para a atividade femi-
nina e o outro, privilegiado, para atividade masculina, todos estes argumentos,
na maioria pseudocientíficos, prestam-se a construir uma identidade negativa
para mulher e, assim, justificar os diversos níveis de subordinação e opressão a
que as mulheres estão submetidas e a promover, nelas, a aceitação de um papel
subordinado socialmente. (Carneiro, 1993, p. 48)

Para muitos sociólogos que lidam sobre a categoria de gênero, o sistema patriarcal,
associado aos caminhos estruturais históricos da sociedade, tanto do ponto de vista social
propriamente dito, como econômico, ratifica a hegemonia do masculino.

Foram as feministas americanas que começaram a utilizar a palavra “gênero”


no sentido mais literal, como uma maneira de referir-se à organização social da
relação entre os sexos. O termo gênero indicava uma rejeição ao determinismo
biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual” e tam-
bém sublinhava o aspecto relacional das definições normativas de feminilidade
e, conseqüentemente, de masculinidade. (Scott, 2004, p. 26)

O termo gênero se torna, a priori, muito complexo e amplo, envolvendo vários


aspectos ideológicos, políticos, sociais, educativos, onde a literatura se entrelaça (Gên-

3
Feminismo: um termo que traduz todo um processo desenvolvido ao longo da História, e que
continua a ser trabalhado diariamente, em todos os espaços da vida social. Como todo processo de
transformação, contém contradições, avanços, recuos, medos e alegrias. Para entendê-lo, é preciso
confrontar a situação da mulher na sociedade antiga, medieval e moderna, buscar suas raízes
enquanto movimento político e desvendar a ideologia que ainda hoje outorga direitos, deveres e
comportamentos distintos para homens e mulheres (Branca e Pitanguy, 1985).

158 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
ero-feminismo), por todo o século XX. Freitas (2003), Cemin e Nienow (2005) e Carvalho
(2010) fazem referência a Pierre Bourdieu, especialmente O poder simbólico (2000) e A
Dominação Masculina (2010), ao analisar a supremacia masculina como conseqüência de
uma construção social dentro de instituições sociais, sejam escolas, instituições religiosas,
associações de classe; uma dominação, ou, como o próprio Bourdieu denomina, uma vio-
lência simbólica. O sociólogo francês alerta sobre a necessidade de reflexão acerca de tais
relações de gênero, de poder e da análise politicoeconômica e cognitiva, que influenciam
a sociedade de forma geral:

Também sempre vi na dominação masculina, e no modo como é imposta e viven-


ciada, o exemplo por excelência desta submissão paradoxal, resultante daquilo
que eu chamo de violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas
próprias vitimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas
da comunicação e do conhecimento... do sentimento. (Bourdieu, 2010, p. 7)

Assim, descaracteriza as naturezas biológicas, numa elaboração de conjuntura so-


ciocultural dos papéis. Bourdieu retrata esta visão simbólica, decisiva para o termo por ele
abordado, divisão social do trabalho, produzindo tais papéis através das ações, da linguagem,
dos símbolos, peremptórios para impor funções masculinas e femininas na sociedade. Em
Boff e Muraro (2002), esta concepção se estrutura na sociedade como um todo e abre a
discussão, sobretudo baseado em alicerces do surgimento das instituições citadas, como
família, igreja e sociedades de classe na história social humana:

A dominação dos homens sobre as mulheres e o direito masculino de acesso


sexual regular a elas estão em questão na formulação do pacto original. Rela-
ções essas que estão diretamente vinculadas aos preceitos religiosos, princi-
palmente àqueles em que seus códigos foram se estruturando sob a ideia de
um Deus masculino: Em conseqüência, todas as grandes religiões históricas
que estruturaram no código patriarcal a sua experiência originária do Divino
são reducionistas e nos transmitem uma tradução parcial. O mesmo aconteceu
com as instituições religiosas. O imaginário, a linguagem, os símbolos, os ritos e
os textos fundadores destas instituições trazem a marca da cultura masculina.
(Boff e Muraro, 2002, p. 86).

Em Saffioti (1979) o foco aborda a discriminação sobre as mulheres ligadas ao


conceito do patriarcado no Brasil:

O Patriarcado constitui-se num pacto masculino para garantir a opressão de


mulheres. As relações hierárquicas entre homens, como a solidariedade exis-
tente entre eles, capacitam a categoria constituída por homens a estabelecer e
a manter o controle sobre as mulheres. (Saffioti, 1979, p. 14)

Para Dantas (1992), o tema gênero feminino ganhou destaque por causa dos movi-
mentos feministas do século XX em detrimento de temas do masculino sobre determina-
das profissões, principalmente na área de ensino, sendo menos explorado nas pesquisas
brasileiras. Para este autor, o que se encontra como referencias bibliográficas no Brasil é

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 159
bastante escasso:
Mapeando as produções acadêmicas impulsionadas por esses movimentos, ob-
servei lacunas importantes, reconhecidas pelos próprios autores, em relação ao
universo masculino. A grande maioria dos estudos sobre gênero foi produzida por
mulheres, sobre mulheres e para mulheres... O diálogo entre estes dois conjuntos
de produções ainda é incipiente. (Dantas, 1992, p. 12; grifo nosso)

As relações de poder na música


Considerando-se Joana de Holanda (2005), Mello e Gomes (2007) e Mello, Piedade
e Schneider (2010), as pesquisas sobre gênero e música no Brasil são ainda mais recentes e
escassas quando comparadas às americanas, principalmente no terreno da musicologia:

As pesquisas relacionando gênero e música são recentes. Na década de [19]80,


surgiram as primeiras antologias de partituras, CDs e biografias de compositoras,
principalmente nos Estados Unidos e Inglaterra. No início dos anos 90, autoras
como Susan McClary (1991) e Marcia Citron (1993) suscitaram discussões sobre as
metáforas de gênero presentes no código musical. (Mello e Gomes, 2007, p. 28)

O gênero feminino, neste caso, é explanado não só sob o ponto de vista de relação de poder
do corpo propriamente dito, mas filosoficamente, sobre concepções analíticas da Teoria
musical e da musicologia: A New Musicology. Tal teoria, como análise de discurso musical,
influenciou diversos teóricos do meado do século XX em relação ao contexto música-socie-
dade-discurso, proposto por Susan McClary4. Mello e Gomes (2007), fazendo referências
a McClary (1994) e, posteriormente, Kermann (1985), em seu artigo Relações de gênero e
musicologia: reflexões para uma análise do contexto brasileiro, aborda tal conceito feminino
e suas ramificações em apologias da estrutura composicional de sons “femininos” em obras
musicais desde o período clássico, particularmente sonatas de Beethoven (1770-1827).
Assim coloca a autora:

Como aponta Joseph Kermann (1985), a tradição musicológica esteve sempre


muito mais voltada para análises formais do que para questões sensíveis às
humanidades, e isto se deve muito ao fato de que, no desenvolvimento da música

4
Notável por seu trabalho combinando musicologia e uma crítica de música feminista, McClary
é professora adjunta de Musicologia e vice-reitora do Instituto Internacional da Universidade da
Califórnia, Los Angeles. Nasceu em 1946 e está entres os líderes do movimento New Musicology,
destacando-se pela combinação da musicologia com o feminismo. Sugere que a forma sonata deve
ser interpretada como sexista ou imperialista e que tem “tonalidade própria - com o seu processo de
incutir confiança e, posteriormente, retenção de superação prometida até o clímax”. Para McClary é
a principal forma musical, durante o período de 1600-1900, para despertar e canalizar o desejo. Ela
interpreta o princípio da forma sonata para as construções de gênero e identidade sexual. Importan-
te destacar o artigo anterior de Maus (1993), sobre o discurso masculino na teoria musical.

160 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
ocidental tonal, surgiu todo um conjunto de pressupostos teóricos, explicitados
através de convenções e construções retóricas repletas de metáforas sexuais. Es-
tas se ligam a questões de gênero que estão na base de um paradigma narrativo
poderoso, em cujo âmago está o ponto de vista masculino. Contudo, apesar da
centralidade destas questões, a disciplina não parece tratá-las de modo consciente
(McClary, 1994). Por exemplo, neste modelo androcêntrico, os tempos fortes de
um determinado trecho musical são considerados “masculinos”, enquanto que os
fracos, “femininos”; sobre as tríades maiores, é dito que elas exercem atração, em
oposição às menores, ligadas à repulsão; também percebe-se “ímpetos procria-
tivos” ocorrendo por meio das qualidades dinâmicas da música tonal; ou ainda a
ideia prevalente, desde o século XVII, do processo desencadeado pela expectativa
(clímax) e resolução da expectativa, também chamado de tensão vs. relaxamento,
presente no cerne da música ocidental, o que parece uma forte metáfora da ativi-
dade sexual. A forma sonata-allegro é estruturalmente um exemplo deste modelo: o
tema de abertura deve ter um “caráter masculino”, enérgico, determinado, heróico,
enquanto que o tema subsidiário é “feminino”, flexível, considerado o “outro”.
Todos estes pontos são “naturalizados”, de modo a que “o feminino” nunca dê a
última palavra neste contexto: no mundo da narrativa musical tradicional não há
terminações femininas. (Mello e Gomes, 2007, p. 20)

Sair do contexto composicional e adentrar na pedagogia implica concomitantemente


indagações sobre de que maneira as práticas de ensino foram constituídas, tanto na
Educação geral, formal, como no ensino musical em filarmônicas. As relações de ensino
professor-aluno, além das questões do gênero e se conceituando relações humanas, levam
a investigar paralelamente o processo da afetividade nestes conflitos de figuras masculina
e feminina em tal práxis, que se pretende abordar. Tais contextos são vistos na pesquisa de
gênero em Educação Musical por Lucy Green:

As características das práticas musicais de meninas, como descrito por professores


e alunos, não só representam convenções do comportamento feminino, mas per-
petuam construções discursivas da própria feminilidade. (Green, 1997, p. 35)

Exemplificando a temática de ascensão feminina na música, em seu artigo sobre


administração e direção de mulheres em bandas americanas, Gould (2005) retrata que a
educação musical nas ocupações os EUA foi segregada por gênero e raça durante décadas.
Enquanto as mulheres são mais suscetíveis a ensinar os jovens estudantes em sala de aula,
os homens são mais propensos a ensinar os alunos mais velhos em todas as configurações,
mas em particular nos grupos de percussão.

Apesar de práticas de gênero afirmativas de emprego, os homens constituem


a grande maioria entre os diretores da banda em todos os níveis. No nível pós-
secundário nos EUA, as mulheres constituem menos de 10%. Em todos os casos e
todos os níveis, a grande maioria dos diretores da banda são brancos. Segregação
ocupacional inibe o desenvolvimento de carreiras dos indivíduos, bem como o
desenvolvimento da profissão como os indivíduos escolhem ou são contratados
para cargos com base em seu gênero e / ou raça, em vez de suas habilidades. Em

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 161
termos demulheres diretoras de bandas universitárias, pesquisadores investiga-
ram as tendências do emprego, características pessoais e profissionais, modelos
de trabalho e identidade profissional. (Gould, 2005, p. 7)

Portanto, dentro da conjuntura apresentada, a profissão regente, na maioria das


vezes, está condicionada diretamente e de forma contemporânea, às questões diferenciais
de gênero, raça e habilidades profissionais em boa parte das Instituições de Ensino Superior
de Música nos Estados Unidos.

Revisão de literatura sobre bandas de música


No Brasil ainda há uma carência considerável de trabalhos científicos que tratem
do assunto Banda Filarmônica ou Banda de Música, como é denominada mais comumente
no sul do país. Apesar do crescente interesse investigativo sobre filarmônicas, pouco se
tem dito sobre a participação feminina nestas instituições. Por muitos anos, na relação
social das filarmônicas, a influencia masculina é visível desde a sua criação ainda como
Guildas5 até meados do século XX quando as mulheres não eram vistas nos seus quadros
como musicistas.
Como no Brasil, a participação do gênero feminino nas Bandas filarmônicas portu-
guesas é diminutamente similar sob predominância masculina. Podem-se destacar casos
no país lusitano em centenas de grupos (proposta de pesquisa). Em Évora, cidade lusitana,
somente na segunda metade do século XX observa-se a citação onde o gênero feminino
compartilha as primeiras incursões relevantes:

A década de 70/80 foi outro período durante o qual se registraram


grandes mudanças, não só em Portugal como em termos globais, que permiti-
ram novas conquistas sociais e culturais que tiveram repercussões ao nível da
sociedade e da sua sociabilidade. Foi, por exemplo, a partir deste período que as
mulheres começaram a integrar as bandas filarmónicas. (Russo, 2007, p. 18)

No Brasil, mas especificamente no nordeste, em Sergipe, em período anterior à


referência acima, nas décadas de 1950/60, Silva (2000, p. 26) e Andrade (2010, p. 38) revelam
dois exemplos abordados em seus trabalhos sobre surgimentos de bandas exclusivamente
femininas no Estado.

[Banda de Música Feminina da Associação Maria Rosa Vieira de Melo-Rosário


do Catete-Sergipe]... Fundada em 1959 pela presidente da Associação, a ben-
emérita Srª Maria Passos, conhecida como Dona. Inicialmente as moças eram
previamente preparadas pelo regente Luiz Ferreira Gomes... As pessoas ficavam

5 Na Renascença,os grupos filarmônicos surgem como as guildas, que


eram agremiações de artistas, geralmente funcionários públicos, vigias, que to-
cavam seus cromornes, sacabuxas ou sacabutes e charamelas, em vários eventos
nas cidades onde “... tinham estruturas profissionais mais ou menos definidas com
uma série de regulamentações estatutárias” (Massim, 1997, p. 71)

162 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
admiradas como era possível formar uma banda de música exclusivamente
feminina. (Silva, 2000, p. 26)

Na década de 1960... Na Escola Normal, [Leozírio Guimarães] fundou um coral


e uma banda de música só de moças... O desfile da Escola Normal no Sete de
Setembro tinha a marca da presença bonita das jovens instrumentistas que se
esmeravam na interpretação de dobrados e canções brasileiras, tendo sempre
à frente o seu maestro Leozírio Guimarães. (Andrade, 2010, p. 38)

Outro exemplo nordestino e sergipano da entrada das mulheres ocorreu no municí-


pio de Japaratuba, a poucos quilômetros de Aracaju. Santos (2004) afirma que a centenária
Lira Sociedade Filarmônica Japaratubense, fundada em 1900, só permitiu alguma interfer-
ência feminina nos idos anos de 1960:

Nos primeiros anos de existência da Banda as Mulheres não faziam


parte dela como instrumentista. Acompanhantes e simpatizantes femininos
eram muitos. Apenas admiradoras. Excepcionalmente na década de 1960 é que
uma mulher tivera um contato mais direto com os músicos, ajudando direta-
mente à Banda. [...] Mimosa Moura, que fez parte do coral da Euterpe-que se
apresentava regularmente nas missas, foi a única mulher que mais se aproximou
dos instrumentistas. Trinta anos [anos 1990] se passaram até que, por iniciativa
própria, as mulheres resolveram tornarem-se profissionais na área. Três mulheres
compunham a Banda até o ano de 2001. (Santos, 2004, p. 34; grifo nosso)

Além disso, em tempos recentes pode-se enfatizar já na década de 1990/2000, profes-


soras ou musicistas em geral, algumas com titulação de mestrado e doutorado, que atuam até
os dias atuais como regentes de banda no Brasil.
Sendo assim, as bandas, que tinham um histórico exclusivamente masculino, hoje
despontam para um universo mais feminino, apesar de ainda haver um domínio masculino
considerável na práxis instrumental e pedagógica. Ratifica-se assim uma mudança mesmo branda
sobre a tradição do ensino musical em filarmônicas, que sempre tiveram desde os primórdios
de formação a figura do homem, e que vem modificando este panorama a cada década.

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Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 165
Reflexão sobre uma proposta metodológica
para pesquisas de performance musical em
grupo à distância

Beatriz de Freitas Salles


Universidade de Brasília

Juliana Rocha de Faria Silva


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília,
campus Planaltina

A atualidade pressupõe o avanço tecnológico com as mudanças sociais, culturais,


educacionais, econômicas, políticas e as relações entre seres vivos e computadores
(Santaella, 2003). Neste sentido, a performance e seu ensino-aprendizagem passam por
transformações demandadas por essas mudanças. O presente artigo pretende relatar o
processo de integração das tecnologias com o ensino da performance de instrumento e
das práticas de conjunto em um curso dentro do projeto de extensão “Piano/Teclado para
Crianças em Grupo” realizado na Universidade de Brasília (UnB). Tendo como objetivo realizar
uma reflexão sobre processos, práticas, produtos e, principalmente, buscar a integração
das novas possibilidades pedagógicas que a mídia da atualidade oferece aos contextos
metodológicos específicos do ensino de música, procuramos neste artigo refletir sobre a
seguinte questão: qual a abordagem metodológica de pesquisa capaz de integrar a análise
qualitativa e quantitativa de dados com as questões artíticas, pedagógicas e tecnológicas
do ensino coletivo de piano/teclado para crianças?
Para tanto, apresentamos o histórico da questão que envolve o ensino da
performance em grupo com o uso da tecnologia; a trajetória presencial à virtual da proposta
metodológica do projeto de extensão; a contextualização da pedagogia do ensino com a
metodologia de pesquisa mediada pelos vídeos nas atividades virtuais; a a/r/tografia, uma
abordagem metodológica de pesquisa em artes, como uma possibilidade de convergência
para o processo de ensino-aprendizagem da performance em grupo.

Histórico do piano/teclado para crianças em grupo


O projeto de extensão onde a pesquisa se desenvolve apresenta a proposta de
ensino e aprendizagem de piano em grupo com crianças de 5,5 a 12 anos mediados por
recursos tecnológicos dentro da perspectiva do Ensino a Distância (EAD). Essa perspectiva
aqui entendida é como tudo o que diz respeito aos processos de ensino e aprendizagem
mediados pela tecnologia, em plataformas alternativas ao Modular Object-Oriented Dynamic
Learning Environment (MOODLE) e nos formatos semipresencial e à distância, no âmbito
do ensino, da pesquisa e da extensão. Funciona desde 2005 com 15 encontros presenciais

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 167
de 45 minutos por semestre ao final dos quais é realizada uma apresentação musical.
Esse projeto é desenvolvido na UnB com o objetivo de oportunizar uma vivência
lúdico-musical voltada para a performance por meio do ensino presencial e virtual em
grupo para crianças. A proposta visa desenvolver o potencial humano da criança por meio
dos aspectos afetivo, social, psicomotor e cognitivo a partir de uma vivência musical rica
e diversificada mediada por jogos e brincadeiras, lançando um olhar sobre a presença das
tecnologias na atualidade, testando e analisando algumas das consequências implicadas
no seu uso e adaptando-as para a aprendizagem da música.
O projeto se desenvolve com atividades presenciais por meio da Prática de Conjunto
que visam, prioritariamente, desenvolver as habilidades musicais da performance coletiva
equalizando e homogeneizando as habilidades musicais do grupo e com atividades virtuais
por meio de vídeos tutoriais que priorizam o desenvolvimento individual das questões
técnicas e de performance do instrumento propriamente dito.
Nas aulas presenciais do projeto, as crianças participam de atividades nas quais a
interação individual com o professor, os pais e as outras crianças promovem a criatividade
e a imaginação, valorizando as respostas de cada criança para o processo de construção
do conhecimento musical. As atividades virtuais propostas pelos vídeos são exercitadas
presencialmente em sala e depois encaminhadas aos pais utilizando-se três meios digitais, e-
mail, Youtube e Clube do Piano, para que os pais possam auxiliar e monitorar adequadamente
o estudo de seus filhos em casa.
O canal do projeto de extensão no Youtube foi criado vinculado à conta gmail
“pianoparacriancas”. Os vídeos tutoriais produzidos pelos professores são enviados para o
canal e configurados na opção de privacidade “vídeos não listados ( qualquer pessoa com
o link pode visualizar)”. Depois que é feito o upload do vídeo no canal, um link é gerado e
enviado por email aos pais dos alunos. Só os usuários que possuem o link podem visualizar
o conteúdo do vídeo. Esta é uma forma de garantir a privacidade e a segurança do material
postado, pois em muitos casos eles envolvem imagens dos alunos. Estes vídeos estão
organizados dentro do canal de acordo com as turmas para facilitar a sua localização e
também como uma forma de mantermos o histórico de acessos e a evolução dos alunos
de cada turma.
O Clube do Piano é uma rede social fechada na qual realizamos experiências musicais
lúdicas, didáticas e pedagógicas envolvendo pais, alunos e monitores. O acesso se dá por
meio de uma senha individual digitada no endereço eletrônico <http://pianoparacriancas.
ning.com>. Esse clube auxilia o processo de interação tanto dos conteúdos musicais e dos
vídeos tutoriais como dos professores/monitores com crianças/pais.
O projeto inicialmente partiu de uma proposta presencial baseada no ensino de
piano tradicionalmente ofertado em escolas e conservatórios de música e voltado para o
desenvolvimento de habilidades individuais. Com o decorrer do tempo, as necessidades
demandadas, principalmente pelo público, foram modificando os processos de ensino-
aprendizagem, incluindo a organização e elaboração de conteúdos gravados em vídeos e a ênfase
às metodologias presentes na Prática de Conjunto como mostrado na secção a seguir.

Do acústico ao tecnológico, do presencial ao virtual

A trajetória pedagógica e didática do “Piano/Teclado em Grupo para Crianças” partiu


de uma proposta tradicional de ensino contando, inicialmente, com três pianos acústicos

168 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
e seis crianças tocando em uníssono. O repertório era proveniente de métodos de piano
em grupo internacionais. Mais tarde, o projeto se configurou em uma proposta de Prática
de Conjunto com repertório adaptado à realidade local com arranjos que utilizam três
elementos – base harmônica, rítmica e melódica. No quadro abaixo, demonstramos que o
uso do teclado versus tecnologias, no lugar do instrumento acústico, possibilitaram atingir
os objetivos pedagógico-musicais do curso, a vivência lúdico-musical através da Prática de
Conjunto adaptada ao universo infantil.

Figura 1. Possibilidades trazidas ao projeto pelo piano acústico e pelo teclado eletrônico

A proposta musical do projeto de extensão foi construída a partir da elaboração de


arranjos com três elementos diferentes como a melodia, o ritmo e o baixo e/ou harmonia.
O repertório foi escolhido considerando as músicas folclóricas locais e as sugestões das
crianças, trilhas sonoras de desenhos animados e filmes infantis como, por exemplo, Speed
racer, Indiana Jones, Backyardigans, Harry Potter e Screk.
Os arranjos foram construídos pelos professores/monitores combinando diferentes
ritmos provenientes de partes da bateria ou de instrumentos de percussão originais; da
elaboração de uma segunda voz ou de ostinatos melódicos ou de riffs# ou, ainda, da criação
de padrões ritmicos baseados na harmonia da melodia. Alguns arranjos foram pensados a
partir das composições originais transcritas em partituras, outros a partir de gravações re-
arranjadas dos clássicos por músicos e arranjadores de diferentes estilos/gêneros musicais
e, ainda, outros elementos percebidos pelas crianças através da audição das trilhas sonoras
originais dos desenhos e dos filmes.
No decorrer da execução desse projeto foram surgindo necessidades pedagógicas
e didáticas para possibilitar o acompanhamento pelos pais – em sua maioria, leigos em

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 169
música - das crianças em casa. Neste sentido, foram enviadas tarefas com desenhos que
mostravam a posição das mãos e dos dedos para tocar determinada melodia em que a mão
direita se diferenciava da esquerda pelas cores. Acima da letra da música, foi colocado o
dedilhado em algarismos numéricos seguindo o catálogo de cores das respectivas mãos. A
partitura seguia com o desenho e a letra com as notas musicais também apresentadas por
cores diferentes – vermelho para a mão esquerda e azul para a mão direita.
Para potencializar os tempos e espaços de aprendizagem dos conteúdos individuais
em casa e da Prática de Conjunto em sala de aula foram criados os vídeos tutoriais. Há três
tipos de vídeos de acordo com as suas funções: 1) aqueles gravados pelos celulares dos pais
para ajudá-los a acompanhar o monitoramento das crianças em casa; 2) os vídeos tutoriais
gravados pelos professores para o aprendizado tanto dos conteúdos individuais quanto
coletivos; e 3) os vídeos gravados pelos pais e enviados aos professores para monitoramento
da tarefa realizada em casa.
A sistematização dos conteúdos dos vídeos gravados pelos professores teve como
objetivo desenvolver as competências individuais de cada elemento musical a ser trabalhado
e as competências coletivas da Prática de Conjunto. Foi necessária a classificação dos vídeos
tutoriais, visando a organização dos dados para futuras análises. Neste sentido, classificamos
os vídeos em duas grandes categorias: uma que visa o desenvolvimento individual de cada
criança dos três elementos e a outra que prioriza as habilidades perceptivas destinadas à
Prática de Conjunto. Essas categorias possuem várias sub-categorias elaboradas a partir do
conteúdo do vídeo – exercício técnico; posição da mão; aprendizado da melodia, da percussão
ou do baixo/harmonia; execução de um elemento ouvindo um outro – play along.
As categorias e sub-categorias foram sistematizadas como:1) inserindo os elementos
no contexto: 1.1) exercitando os cincos dedos - posição da melodia no teclado; 1.2)
exercitando a melodia; 1.3) percussão corporal; 1.4) transpondo a percussão corporal para o
teclado; e, 1.5) exercitando a base harmônica/ baixo; 2) juntando os elementos (play alongs):
2.1) a melodia cantada com a percussão corporal; 2.2) a melodia com a percussão/ritmo;
2.3) a melodia com o baixo/harmonia; e 2.4) o baixo com a percussão/ritmo.
O uso dos vídeos como ferramenta tecnológica nesse processo de potencialização
do tempo e espaço de aprendizagem são caracterizados por: reprodução do som em alta-
fidelidade; visualização dos gestos; posição da mão; dedilhado; localização espacial no
teclado; isolar ou repetir determinadas passagens do conteúdo a ser apreendido, facilitando
sua compreensão e estudo; tutoriais personalizados, ou seja, conteúdos específicos de
aprendizagem adaptados às especificidades de cada aluno.
Mesmo com os problemas de delay que acontecem, principalmente, no momento
do download dos vídeos pelos pais em suas casas, os vídeos renovam a interação da
relação professor-aluno, auxiliando a lembrança dos conteúdos já trabalhados nas aulas
anteriores, reproduzindo a experiência sensorial, perceptiva e visual fidedignamente. O
aluno, ao assistir os vídeos em casa, vivencia novamente a experiência da performance da
maneira correta.
Os desafios atuais do projeto de extensão estão relacionados à busca de referenciais
teóricos e metodológicos que sirvam de embasamento para a análise qualitativa e
quantitativa dos dados observados e levantados no contexto da sala de aula; nos encontros
de planejamento; no feedback dos pais sobre as tarefas virtuais enviadas e na elaboração
e sistematização dos conteúdos a serem gravados. A seguir apresentaremos uma breve
revisão de autores que abordam o processo de ensino-aprendizagem de instrumentos

170 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
musicais mediado por vídeos e das mudanças causadas pelo uso da tecnologia na educação
e na relação professor-aluno.

Contextualizando a pedagogia do ensino com a metodologia de pesquisa mediada pelos


vídeos
A temática ensino-aprendizagem musical mediada por recursos tecnológicos está
presente nos trabalhos de Gohn (2002) e Ribeiro e Braga (2010). Este propõe a pesquisa-ação
para o estudo do ensino coletivo de instrumento em grupo à distância, por essa modalidade
constituir-se em uma estrutura aberta que proporciona um alto nível de análise da interação
entre professor e aluno por meio de vídeos-conferência, chats e listas de discussão. Por
outro lado, Ribeiro e Braga (2010) teve como objeto de pesquisa os mecanismos de auto-
aprendizagem de um instrumento musical, abordando um estudo comparativo do ensino
formal e não formal, bem como o uso e análise de vídeos tutoriais no processo de ensino-
aprendizagem. Para Gohn (2002), um dos objetivos centrais dos processos de educação
musical não-formal# voltados para a auto-aprendizagem é desenvolver instrumentistas,
habilitando os aprendizes tecnicamente para a performance musical, e criar um domínio
da prática e da teoria - a prática sempre sendo enfatizada - de instrumentos musicais.
A utilização de conteúdos audio-visuais permite a aprendizagem pela observação
da prática. Sua utilização como uma ferramenta de potencialização dos espaços e tempo
de aprendizagem substitui, parcialmene, a necessidade da presença física do professor no
local da realização musical. Essa utilização de recursos tecnológicos na educação infere na
aprendizagem centrada no aprendiz que constrói seu conhecimento ao criar e desenvolver
projetos, ao interagir com os objetos de estudo, com os seus pares, com os seus professores
e mentores.
Como serão, então, no futuro, os modelos educacionais na era digital? Esta pergunta
poderá ser respondida a partir de modelos propostos nos quais a nova geração de aprendizes
tem contato com tecnologias digitais em contextos diversos. Imagens, sons, vídeos,
ambientes tridimensionais e simulações são exemplos de recursos tecnológicos que podem
ser utilizados em ambientes de ensino-aprendizagem para a construção do conhecimento.
Esses ambientes, mediados pela tecnologia, viabilizam vários tipos de interfaces interativas.
Essa interação visa, de forma ainda incipiente, gerar a criação de interfaces com vários níveis
de complexidade para o desenvolvimento de habilidades afetivas, motoras, lúdicas, sensório-
perceptivas e cognitivas que garantam a interação fluida da sensibilidade e inteligência
humanas diante da máquina (Santaella, 2003).
Segundo Prensky (2001), esses aprendizes antenados às tecnologias, denominados
de geração dos nativos digitais, se envolvem em experiências de aprendizagem informais
em diferentes situações, tais como interagir com jogos, conteúdos na internet ou participar
de comunidades on-line. Estas novas sociedades de conhecimento necessitarão de sistemas
educacionais ad hoc, onde salas de aula deverão se conectar a instrumentos, dispositivos
e redes de conhecimento continuamente atualizado.
Uma vez que o aprendiz desempenha diferentes atividades, a relação professor-aluno
também é transformada nesta perspectiva tecnológica. Sedita (2003) argumenta que em
um mundo estático o importante é acumular conhecimento e não aprender; no entanto,
em um mundo incerto, onde ocorrem mudanças diárias, é primordial aprender a aprender,
transformando o clássico binômio professor aluno na construção de um ecossistema
interativo de conhecimento. Esta abordagem ecológica traz o conceito de que nenhum

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 171
organismo ou fator ambiental pode ser tratado e estudado isoladamente de seu sistema,
já que a alteração do organismo afeta seu ecossistema e vice-versa.
Esse ecossistema que envolve os recursos tecnológicos e a comunidade de
mestres e aprendizes – chamado digital - atua como um sistema que apóia a cooperação,
o compartilhamento do conhecimento, o desenvolvimento de tecnologias abertas e
adaptativas e a evolução de ambientes ricos em conhecimentos (Ficheman, 2008).
A pesquisa, ora aqui fomentada pelo curso de extensão, se baseia no conceito de
ecossistema quando considera que o processo de ensino-aprendizagem é bilateral – de
uma lado, é alimentado por seus professores e monitores e de outro, pelas crianças e seus
pais. Na próxima secção discutiremos a a/r/tografia (Irwin, 2004; Gouzouasis, 2008) como
opção metodológica para essa pesquisa.

A/r/tografia como possibilidade de convergência


A escolha da a/r/tografia como metodologia de pesquisa se deu pelo fato dessa
proposta metodológica, principalmente, estar vinculada à internet e suas possibilidades
interativas e ao vínculo intrínseco entre o pesquisador como artista e como professor.
A a/r/tografia tem sua origem na necessidade de uma pesquisa baseada nas artes
que busque a participação ativa na criação e construção de significados tornando-a um
espaço para o compartilhamento de experiências. É uma metodologia de pesquisa, com
base em práticas artísticas, que enfatiza o questionamento vivo e a prática reflexiva em
que o conhecimento é criado a partir dos diferentes olhares do sujeito enquanto artista,
pesquisador e professor. Nessa perspectiva, essa relação é traduzida como o cerne de uma
nova metodologia: a/r/tografia (“a” de artist, “r” de research e “t” de teacher). As barras
contemplam o espaço/lugar que viabiliza os diferentes olhares e a integração das identidades
(Irwin e Cosson, 2004).
A/r/tografia é uma metodologia de pesquisa que se enreda e funciona como
um rizoma, como referido por Giles Deleuze e Felix Guattari (1987). Um rizoma é uma
montagem que se move e desliza em um momento dinâmico. É um espaço intersticial,
aberto e vulnerável onde os significados e as compreensões são interrogados e rompidos.
Construída sobre o conceito de rizoma, a a/r/tografia transforma radicalmente a idéia de
teoria como um sistema abstrato distinto e separado da prática. Ao invés disto, a teoria é
entendida como um intercâmbio crítico que é reflexivo, responsivo e relacional e que esta
em contínuo estado de reconstrução e conversão em outra coisa. Assim, a teoria como
prática se converte em espaço vivo e corporificado de pesquisa em que os rizomas ativam
o entre-lugar; uma incitação para explorar os espaços intersticiais da criação artística, da
pesquisa e do ensino.
A pesquisa a/r/tográfica resulta, portanto, num processo de intercâmbio que não
está separado do corpo; mas emerge do entrelaçado de corpo e mente, eu e o outro e
através das nossas interações com o mundo. Está situada no entre-lugar, onde a teoria-
como-prática-como-processo-como-complicação intencionalmente altera a percepção e o
conhecimento através da pesquisa viva.
Enquanto as tradições disciplinares da ciência entendem a pesquisa como um meio
para explicar o fenômeno ou para revelar o significado, a a/r/tografia entende a pesquisa
como uma disposição para criar conhecimento e compreensão através de atos de teorização
como complicação. À princípio, a teoria e a pesquisa são usadas para encontrar respostas
às perguntas. A teorização através do questionamento procura o entendimento por meio

172 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
da evolução de perguntas internas ao processo de pesquisa viva do praticante. Em outras
palavras, os praticantes estão interessados numa constante busca pelo entendimento, uma
procura, se desejar. Este momento ativa a criação de conhecimento através da pesquisa,
revela suas práticas, fazendo suas pesquisas temporais, emergentes, gerativas e responsivas
a todos aqueles envolvidos.
Sullivan (2005), adepto da prática da arte como pesquisa, defende a pesquisa
baseada na prática e aponta que a teorização para a compreensão através da prática está
“baseada na práxis do envolvimento humano e rende resultados que podem ser vistos como
individualmente libertadores e culturalmente iluminadores” (Sullivan, 2005, p.74). Esse autor
afirma que “se a medida da utilidade da pesquisa é vista como a capacidade de criar novo
conhecimento que seja individual e culturalmente transformador, então o critério precisa
ir além da probabilidade e da plausibilidade à da possibilidade” (Sullivan, 2005, p.72).
Os artistas vêem o tempo e o espaço como condições de vida: condições de
compromisso com o mundo a través da pesquisa e da performance. Os educadores vêem
também o espaço e o tempo de maneiras particulares. A aprendizagem, dessa forma, nunca
é previsível e é compreendida como uma participação no mundo, um tipo de co-evolução
dos que aprendem juntos.
Na revisão de literatura realizada no tema da A/r/tografia e Música encontramos
poucas referências. Não há publicações nacionais na área e, dentre as internacionais,
encontramos alguns trabalhos como o de Peter Gouzouasis, onde a a/r/tografia é utilizada
no contexto de análise de obras de compositores e análises de processos de composição
musical.
Gouzouasis (2008) também sugere uma abordagem a/r/tográfica para a análise,
o aprendizado e a performance das formas musicais. Para ele, em certo sentido, o
aspecto mais importante deste processo de pesquisa é permitir ao intérprete, ouvinte, e
professor conceituar a partitura (no caso do artigo citado, a Sonata op. 109 de Beethoven),
compreendendo a obra a partir de sua escuta, leitura e análise. Neste processo, ele observa
que a pesquisa a/r/tográfica pode começar com a análise de perguntas como, por exemplo,
noções sobre a natureza dos dados, as possíveis influências da música e da forma musical
na pesquisa narrativa, no (des)usos das terminologias musicais e seus significados, podendo
terminar com muito mais perguntas do que as colocadas no início do processo.
Analogamente, assim como acontece com as características de transição entre
exposição, desenvolvimento e reexposição de uma forma sonata, esta profunda auto-
reflexão se desenvolverá em um fluxo de consciência de como os motivos temáticos são
desvendados e revelados em sua estrutura/forma musical como um todo, tal como um
discurso fundamentado na lógica e escrita criativa. Neste contexto, enquanto as diversas
formas de pesquisa se interessam em reportar ao conhecimento que já existe ou em
encontrar conhecimento que precisa ser desvendado, a pesquisa ação e a a/r/tografia estão
interessadas em criar as circunstâncias para produzir conhecimento e compreensão através
de um processo carregado de pesquisa (Irwin e Cosson, 2004).
Nas considerações finais demonstraremos como os vídeos tornam-se ferramentas
imprescindíveis para o monitoramento da aprendizagem das crianças fora da sala de aula
constituindo-se ainda em um registro para sistematização dos procedimentos pedagógicos
e didáticos do instrumento e coleta de dados subsidiar a pesquisa.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 173
Considerações finais

A importância da utilização das tecnologias está na ampliação dos espaços e tempos


de aprendizagem, na potencialização do espectro do público-alvo, no aperfeiçoamento dos
processos de monitoramento da aprendizagem de conteúdos musicais a distância e na
formação de professores, monitores e alunos em processos que envolvam políticas publicas
de inclusão musical, incentivando-os a participarem criativamente e de forma crítica da
humanização das tecnologias e da sensibilização musical pela arte.
Consideramos que para o ensino e aprendizagem da performance musical é
necessário que o músico reúna três competências: a do artista, a do professor e a do
pesquisador. O artista, enquanto intérprete, capaz de inspirar e sensibilizar o aprendiz a
desenvolver seu potencial criativo e dramático; o educador, enquanto mentor, capaz de
viabilizar a eficiência, eficácia e efetividade dos conteúdos a serem apreendidos através
de práticas e metodologias didático-pedagógicos; e o pesquisador, que com seu espírito
crítico e inovador, observa, questiona, testa, analisa e atualiza os processos de ensino e
aprendizagem propondo soluções adequadas as demandas específicas do público alvo a
ser atendido.
A proposta de pesquisa do projeto de extensão ora em curso pretende aliar conceitos
metodológicos da A/r/tografia para fundamentar as práticas da performance de teclado
em grupo com processos de ensino e aprendizagem que envolvem crianças, pais, tutores
e professores na produção de produtos onde a performance musical em tempo real está
aliada a produção de conteúdos multimídia, representações dramático e cênico musicais
criadas e desenvolvidas no projeto.

Referências bibliográficas
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SALLES, Beatriz e SILVA, Juliana R. F. “Tecnologia x perfomance de instrumentos em grupo
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SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura.
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SEDITA, S.R. Back to “tribal fires”? explicit and tacit knowledges, formal and informal learning,
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Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 175
NOVOS RUMOS

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 177
Considerações sobre fundamentos teóricos
compositivos para peças instrumentais baseadas na
escuta de paisagens sonoras

Marcelo Villena
Universidade Federal do Paraná

Roseane Yampolschi
Universidade Federal do Paraná

Este trabalho tem por objetivo investigar ideias de natureza estética com vistas a
ampliar as possibilidades de abordagem compositiva. O nosso propósito é desenvolver
ferramentas teóricas a partir de princípios pertinentes à soundscape composition, gênero
pertencente ao repertório de música eletroacústica, para nortear o processo compositivo
em meio instrumental.
As sonoridades ambientais oferecem um estímulo à criatividade do compositor,
que participa por meio de sua escuta das diversas situações que emergem acidentalmente
através da combinação de agentes naturais e da vida social. Se por um lado as combinações
de sons de seu entorno oferecem desafios que sejam de interesse à discussão de questões
técnicas (timbre, temporalidade, espacialidade), por outro elas nos remetem às suas
vivências afetivas e às maneiras de canalizá-las expressivamente para orientar o processo
de comunicação com o seu auditório.
A pesquisa que apoia este trabalho, de natureza experimental, requer um corpo de
ideias para nortear aquelas vivências de escuta e as tomadas de decisões necessárias du-
rante o processo compositivo; e para estimular a reflexão enriquecedora de conhecimentos
na área em questão. O conceito de mimesis, compreendido de modo lúdico e abrangente,
e o de gesto musical, como um fenômeno de impulso e articulação do discurso musical
fundamentam as considerações feitas neste trabalho.

Soundscape composition
No final da década de 1960, o compositor canadense Murray Schafer (1933) e
a equipe de pesquisadores da Simon Fraser University (SFU), dentre eles Barry Truax e
Hildegard Westerkamp, se unem para criar, em Vancouver, o World Soundscape Project
com a finalidade de encontrar soluções para um ambiente sonoro ecologicamente sau-
dável, ajustado ao equilíbrio da comunidade humana (Westerkamp, 1991). A partir de
suas intervenções práticas e sociais e estudos sobre ecologia sonora, Schafer introduz o
termo soundscape – paisagem sonora, para se referir a um campo sonoro que compõe um
determinado ambiente acústico:“eu denomino soundscape (paisagem sonora) ao entorno
acústico e com este termo me refiro ao campo sonoro total, qualquer que seja o lugar em
que nos encontremos.” (apud Ferreti, 2006, p. 25, tradução nossa) Nesse sentido, o termo
pode ser compreendido como uma “trama” acústica que se mostra perceptível em um espaço
determinado, seja ela uma praça, um museu, uma sala de concertos etc.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 179
A relativa aceitação do termo nos meios artísticos reflete em parte o interesse cres-
cente que o som do meio ambiente vem adquirindo desde o início do século XX. Exemplos
disso são o manifesto A arte dos Ruídos (1913) de Luigi Russolo, que convida os músicos
futuristas a usar o som/ruído das cidades industrializadas na composição musical; e a in-
fluência dos ambientes sonoros nas ideias de Cage (1973) sobre “música indeterminada”
e nas suas propostas de ação para performance. Contribui também para a assimilação, por
parte dos compositores, de materiais antes não musicáveis o surgimento das tecnologias
de gravação (e edição) e a música concreta.
O pensamento de Schafer pode ser considerado uma extensão ecológica do pensa-
mento cageano. Dele incorpora a disposição de abrir os ouvidos aos estímulos do mundo e
receber os sons do acaso como um fenômeno passível de fruição estética; contudo, desvia
a sua atenção dessa orientação estética para focar na qualidade sonora das paisagens – na
sua visão, o aspecto “mais negligenciado” do meio ambiente.1 Sob a liderança de Schafer,
então, o World Soundscape Project trouxe uma extensão do aspecto ecológico já mencio-
nado. Anteriormente, sons e ruídos de um ambiente eram percebidos como ocorrências
sonoras. A partir das ideias de Schafer sobre paisagem sonora, esses sons passaram a ser
percebidos e assimilados em contextos variados, do ponto de vista social e psicológico; com
efeito, o processo compositivo propiciou a ampliação da escuta e das vivências estéticas do
compositor e do ouvinte em relação ao ambiente evocado (Truax, 2002).
O núcleo da SFU iniciou suas atividades com o registro de paisagens sonoras em
Vancouver. As primeiras gravações tiveram o objetivo de documentar as mudanças da so-
noridade ambiental local. Por este motivo, as gravações eram editadas com um mínimo de
processamento, apenas equalizadas para deixar o som “cristalino”, com maior definição.
Gradualmente, porém, os pesquisadores da SFU ampliaram a sua experiência por meio de
processamentos na gravação. Conforme Truax (2002), dessa experiência surgiu um novo
gênero de música eletroacústica: a soundscape composition.
O termo soundscape composition se refere a uma estética compositiva que enfatiza
os nexos do ouvinte com os estímulos sonoros que recebe no seu cotidiano. Esta ênfase
na relação do ouvinte com o som distingue em parte essa forma de fruição daquela vivên-
cia sonora global, da paisagem sonora; e também estabelece limites entre a soundscape
composition e a música concreta: enquanto nesta os sons são trabalhados como “objetos
sonoros” autorreferentes, em uma poética criada “internamente” pelo compositor, na
soundscape composition os sons são empregados de maneira a criar a ilusão no ouvinte
de estar imerso em uma ambiência sonora referencial.
Para Simon Emmerson (1986), a oposição entre esses valores estéticos reflete de
certo modo a divergência histórica de princípios que orientavam gêneros de composição.
Daí a sua afirmação de que na música eletroacústica, a intenção explícita do compositor
em “evocar” uma situação do mundo real sinaliza controvérsias de natureza estética que
prevaleceram em séculos anteriores na prática compositiva.2 Conforme essa ideia, Emmerson
cria um eixo imaginário discursivo para representar aquela oposição estética com limite em
dois polos: o “discurso mimético” e o “discurso aural”. O primeiro se refere à intenção de

1
Essa ideia já está presente no World Soundscape Project e se tornou um dos principais objetivos de
seu livro The Tuning of the World (1977).
2
Por exemplo, entre a polifonia renascentista da prima prattica e as formas “barrocas” da seconda
prattica, desenvolvida no início do século XVII.

180 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
imitar, sugerir, eventos do mundo real; o segundo, de criar materiais a partir de “valores
musicais mais abstratos”.3 Na prática, porém, se constata o emprego de diversos graus de
combinação de ambos, o que Emmerson define como “discurso musical”. Este é o que mais
oferece possibilidades criativas ao compositor.
A visão de Emmerson serve como ponto de partida para esta discussão à medida
que estabelece nexos entre a produção contemporânea e a tradição musical. Este vínculo
com o passado serve para situar a nossa proposta, com base em uma ideia de mimesis, em
relação ao repertório tradicional. Por um lado, podemos observar a diferença de foco entre
a concepção mimética na música (associada comumente com a literatura e a recriação de
fatos excepcionais) e a poética da soundscape composition (recriação artística do cotidiano);
e então compreender a experiência da música eletroacústica como fator de expansão das
técnicas de execução instrumental (técnicas expandidas). O “discurso musical” não mais
requer, como no período da “prática comum”, de uma “gramática” pré-determinada.
Por outro lado, a elaboração do conceito de mimesis vem à tona nesta reflexão para
gerar caminhos alternativos para investigação de mecanismos de criação, fazendo do que
parece um entrave, a princípio, uma motivação à pesquisa compositiva. A mimesis, segundo
Benjamin, pode ser compreendida como base para um processo de escuta aberta a determi-
nadas formas de interpretação (Ferretti, 2011) e reconstrução criativa de eventos de um meio
em outro. Nesse sentido, a principal opção neste trabalho será considerar uma aproximação
entre mimesis e gesto musical.

Mimesis e criação
A mimesis esteve presente em diversas regiões do mundo como fundamento original
de criação artística dentro de um contexto mítico-mágico. Exemplos disso são as pinturas
rupestres, as reproduções de fenômenos naturais no teatro tradicional japonês e o vínculo
do som ambiental com a criação musical da etnia dos Suyá (Mato Grosso) (Seeger, 2004,
p. 53-54). Nesses casos, a mimesis é trabalhada dentro de um código pré-estabelecido de
simbolismo religioso.
Na época da filosofia clássica, o conceito de mimesis se estendeu às representações
artísticas. A filósofa Jeanne Marie Gagnebin assinala a particularidade desse conceito na
música:
Os gregos clássicos pensam sempre a arte como uma figuração enraizada na
mímesis, na representação, ou, melhor, na “apresentação” da beleza do mundo
[...]; a música é o exemplo privilegiado de mímesis, sem que seja imitativa no
nosso sentido restrito. (Gagnebin, 2011, p. 68)

Foi a partir dos escritos de Platão e Aristóteles que o conceito, da forma como o
compreendemos hoje, influenciou o pensamento filosófico ocidental. Para Aristóteles, a
mimesis apresenta um papel importante no conhecimento do mundo – ela abriga a raiz da

3
Emmerson exemplifica o uso de “discurso aural” através de peças eletrônicas de fundamento serial
(Ensemble - Babbit) e o uso de “discurso mimético” através de peças que empregam som ambiental
com mínimos processamentos em estúdio (Presque Rien - Ferrari). Esses discursos também repre-
sentam polos opostos em outra categoria empregada pelo compositor: a “sintaxe abstrata” e a “sin-
taxe abstraída”. Na “sintaxe abstrata” a organização dos materiais obedeceria a critérios estabeleci-
dos a priori, enquanto que na “sintaxe abstraída” a organização é deduzida dos próprios materiais.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 181
criação artística. Em seu fundamento, a mimesis condiciona toda forma de criação artística e
o modo como ela deve ser contemplada para o desfrute de sua Beleza. Assim, Aristóteles em
sua Poética prescreve normas do fazer poético que, embora contemplem aspectos morais,
se concentram em “como” se realiza a mimesis (Gagnebin, 1993, p. 69).
No século XX os filósofos germânicos Adorno e Benjamin contribuíram
significativamente para aprofundar o conceito do ponto de vista social e artístico. Para
Gagnebin, a noção de mimesis em Dialética do Esclarecimento oscila do ponto de
vista ontológico. Adorno parte do pensamento mítico/mágico – em que sentimentos
contraditórios de temor e prazer são comuns diante de fenômenos de perigo e exaltação
da vida, respectivamente. A esta ideia primeva de mimesis Adorno sobrepõe uma segunda,
de acordo com a sua constatação histórica da formação racional, rígida, do modo de
pensamento ocidental. Com base em Freud, o filósofo vê no comportamento do homem
moderno uma espécie de recalque mimético de experiências originais, no passado, de
abandono e de fraqueza (Gagnebin, 2008, 146-148). Esta mimesis negativa faz regredir o
homem a uma condição que avilta e denigre a sua própria natureza. Em suas conclusões,
a autora se refere à possibilidade de que a mimesis – em Teoria Estética, último trabalho
de Adorno – seja uma via de abertura para que o homem possa redefinir os seus limites
cristalizados pela perversidade e autoritarismo e então alcançar a sua liberdade própria
em direção ao “outro” (Gagnebin, p. 152).
Para Benjamin, a mimesis parece ser uma lei da natureza, um dom, que outrora
representava para o homem uma forma essencial de agir e de compreender o mundo e
que, no curso do tempo, perdera a sua força de expressão na vida moderna. O homem,
dentre os seres da natureza, é aquele que tem a capacidade “suprema para produzir as
semelhanças.” Assim como para Aristóteles, Benjamin postula a relevância da faculdade
mimética para a aprendizagem das coisas no mundo: a mimesis está na raiz do conhecimento
de como as coisas funcionam na realidade. E em sua natureza educativa, ela gera “prazer
em conhecer”. Prova disso é a persistência da mimesis, no curso da história, nos jogos de
aprendizagem infantil, e aparentemente, nos atos de criação artística. A criança, em sua
brincadeira, toma para si o controle dos objetos à sua disposição e cria, a partir deles, o seu
próprio mundo de forma original (Benjamin, 2002, p. 238).
Outro exemplo da força da experiência mimética está na astrologia. Em tempos
passados, a conjunção dos astros era “dada” para o astrólogo de modo imediato. Mas
para o homem moderno, é a linguagem que medeia a sua “leitura” O que é comunicável
na linguagem, para o filósofo, não está apenas na sua natureza significativa. A percepção
mimética tem como correlato uma natureza “mágica” da linguagem, uma natureza
que afeta o seu leitor, em sua expressão. Nesse sentido, o conceito ultrapassa a ideia
de semelhança. Saber ler uma história exige do seu leitor a capacidade de reconhecer
semelhanças que não se encontram na parte visível de objetos, as semelhanças não
sensíveis, o que implica reunir as partes em “uma relação de configuração” (Gagnebin
apud Schlesener, 2009, p. 155).
Esta explicação nos remete a outro ensaio de Benjamin, em que o filósofo expõe
a tarefa do tradutor. Deste texto consideramos a hipótese de que os conceitos de mimesis
e tradução, conforme Benjamin, convergem, ao menos, em um ponto. Essa hipótese
é relevante devido ao nosso propósito de conceituar do ponto de vista mimético a
interpretação e reconstrução de determinados “comportamentos” e morfologias sonoras
da música eletroacústica na música instrumental.

182 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Em suas reflexões, Benjamin afirma que a tradução “é uma forma”. Ele então
relaciona o conceito de forma à noção de “traduzibilidade”, própria de certas obras. A
“traduzibilidade” de uma obra literária, que está na “sua própria essência” – não depende
diretamente de seu significado ou da frase que o contém4 – implica de certo modo uma
visão autorreferente da forma artística. O que é comunicável está na própria língua, não
exatamente em seu conteúdo, mas em seu “modo-de-querer-dizer” (Camacho, 2008,
p. 32). Em outro ensaio, Benjamin explica essa ideia de outra forma: “a linguagem desta
lâmpada não comunica a lâmpada mesma (pois a essência espiritual da lâmpada enquanto
comunicável não é nunca a lâmpada mesma), mas a lâmpada-na-linguagem, a lâmpada-na-
comunicação, a lâmpada-na-expressão.” (apud Portugal, 2011, p. 61) 5
Essa condição da natureza das coisas, comunicáveis enquanto forma de “expressão”
na linguagem, significa um ponto de partida metafísico: o que é comunicável da
espiritualidade do ser das coisas na natureza está na própria linguagem de modo imediato.
Esse é o motivo pelo qual Benjamin pode se referir a uma “linguagem” da música,6 dentre
outras linguagens, pois a “comunicação” de sua essência, a sua “expressão”, reside na
música. Assim, a magia da linguagem, como forma poética, se refere a essa imediatidade.
Não há forma de representação a priori.
Portanto, é possível inferir que a mimesis consiste num modo de apreensão da
realidade que “tangencia” a tarefa do tradutor. É esta visão da mimesis que interessa à
nossa abordagem, do ponto de vista musical. A mimesis propicia a criação de formas mais
ou menos livres, do ponto de vista produtivo e lúdico, pois ela faz ecoar aquele modo de
agir das crianças no processo de escritura do compositor. Esta visão abrangente e aberta
a inúmeras possibilidades de criação é condizente com a abordagem fenomenológica
proposta à medida que favorece a investigação de novas relações entre o som ouvido e
a construção musical, instigada pela memória e universo afetivo do compositor. Assim, o
trabalho proposto considera as possibilidades de interpretação que as paisagens sonoras
oferecem para a realização de um trabalho compositivo aberto a diferentes abordagens.

O gesto musical como estratégia para a apreensão mimética


A escuta direta, lúdica, do som propicia a distinção e interpretação pelo compositor
de modos de comportamento e organização de eventos sonoros. Esta vivência lhe
possibilita estabelecer vínculos afetivos com o seu objeto e de buscar, em sua escuta,
uma nova dimensão poética da forma sonora.7 Essa constatação nos oferece terreno para
desenvolvermos, nos próximos parágrafos uma possível ligação entre mimesis e gesto
musical: a estratégia mimética, concebida no limiar daquela tarefa, própria do tradutor,
apresenta de certo modo, um correlato sonoro: o gesto.8

4
Apesar da importância dos valores estéticos herdados de sua tradição romântica, sobretudo os de
Iena, interessa ao nosso propósito discutir questões de natureza imanente.
5
Portugal especula sobre a extensão que o significado de expressão apresenta para Benjamin.
6
A noção de linguagem no âmbito musical, para o nosso propósito, é compreendida como discurso.
7
Esta forma de escuta não prescinde de uma análise de gravações. Estas fornecem dados
qualitativos e quantificáveis sobre o “comportamento” de uma paisagem.
8
A associação da mimesis com o gesto musical passa pela esfera cognitiva e corporal. Há muitos
estudos hoje que versam sobre a importância da mimesis como forma de conhecimento de si e do
mundo. Cox (2011) desenvolve as suas ideias baseada na premissa de que toda forma de imagem

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 183
Em The performance of Gesture, then, and now (1984) Mark Sullivan propõe que
“gesto musical” seja o termo próprio para conceituar as diversas terminologias que tratam
das relações entre “parâmetros” e entre eventos de diferentes meios (p. 1). Importa
destacar duas ideias que são relevantes para o nosso propósito, a saber:
– o gesto se distingue como um “todo”, como uma gestalt composta; ou seja, o
gesto é um fenômeno híbrido em que prevalece o som em movimento. Está implícito que
tal configuração referencia materiais de meios diversos. O gesto deixa transparecer uma
ou mais configurações que são criadas conjuntamente entre esses parâmetros. Em suas
palavras: “o gesto musical não pode ser encontrado ao se olhar para uma sequência de
tons [...] ou para uma dinâmica de constelações [...] isoladamente. Ele é encontrado em
configurações criadas conjuntamente entre parâmetros” (Sullivan, 1984, p. 32; tradução
nossa).
– gesto e meio são indissociáveis, este caracteriza aquele do ponto de vista físico e
histórico. Quanto à materialidade, um meio se distingue a partir de seu comportamento.
Este comportamento apresenta, por sua vez, uma “ordem” estrutural que gera restrições
de uso: um meio oferece resistência ou favorece a elaboração de certas ideias. As
características físicas de um meio estão condicionadas ao tempo. Assim, à natureza
histórica do meio corresponde, por exemplo, hábitos de uso, condicionamentos práticos e
valores estéticos que foram preservados nele como um resíduo histórico.
Assim, a resistência que um meio oferece ao compositor limita a sua escolha e
organização de elementos constitutivos na criação. Pode-se tentar alterar a “ordem” deste
meio ao se adotar materiais de outro meio. Ao fazer isso intencionalmente, o compositor
cria um meio híbrido – o qual Sullivan reconhece imageticamente como “gesto”.

Quando componho gestos, eu crio ligações propositais. Por meio de uma configu-
ração inserida num evento em um meio, eu o ligo a uma configuração em outro
meio, e assim, às características de um evento em outro meio, às características
de uma classe de eventos em outro meio, ou às características de uma classe de
eventos que abarcam vários meios. (Sullivan, 1984, p. 21-22; tradução nossa)

Seguindo o raciocínio de Sullivan, conclui-se que a percepção auditiva de um


evento, desde uma fruição estética (tal como proposto por Murray Schafer), se efetua
concretamente em um meio híbrido. Por exemplo, o foco na escuta apreende o som de
um caminhão trafegando que se mistura ao canto de um pássaro, a um objeto metálico
batendo, à fricção de uma vassoura no chão, ao pregão de um vendedor de rua. Os sons de
diversas fontes se misturam de forma dinâmica e extremamente complexa, sugerindo ao
compositor diferentes relações sonoras para sua interpretação em um meio instrumental
(relações comportamentais de materiais sonoros na composição também podem
referenciar o entorno sonoro). As mudanças na dinâmica de comportamentos sonoros
durante um lapso de tempo, portanto, poderão servir de subsidio a um planejamento
macroestrutural da composição, tendo em mente certa liberdade apropriada à nova
dimensão física e psicológica dos materiais na música.
Com efeito, o conceito de gesto se amplia para abarcar as diversas sonoridades, com

ou pensamento musical é em parte imagem motora, isto é, imagem que é encorpada a partir de
exercícios e movimentos realizados pelo nosso corpo, em performance.

184 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
suas possíveis dinâmicas de interação comportamental; e as suas “morfologias”, incluindo
o seu ataque, impulso, direcionamento, variações de espectro e de intensidade e formas
de articulação em seu contexto sonoro global. As ideias de Sullivan também sugerem para
nós uma hipótese valiosa em relação à estética da soundscape composition: quando um
evento característico de um meio é “levado” para outro, ele ativa a memória e cria novas
relações afetivas. Daí a relevância da faculdade mimética tal como concebida por Benjamin
para direcionar em parte a percepção de sons como gestos: o campo referencial que dá
sentido à mimesis em um meio se expande e se multiplica, abrindo novas possibilidades de
apreensão do fenômeno sonoro em sua forma híbrida.
É nesse sentido, mais global, que nos voltamos para aquela representação de
Emmerson das várias possibilidades de “discurso”. 9 A característica híbrida do gesto musical
o distingue como uma configuração dinâmica, uma imagem em “ação”. A possibilidade de
distinguir o gesto como discurso, no entanto, depende em parte de como ele se efetua
perceptivelmente como expressão. Para ampliar a compreensão desses conceitos e o
modo como eles se inter-relacionam esteticamente, será útil considerar, a seguir, alguns
fatores de criação e percepção do gesto musical na composição.
Conforme o compositor Trevor Wishart (1996), as ocorrências sonoras na música
eletroacústica podem ser “re-criadas” de modo direto na música instrumental. Em suas
palavras:
A morfologia de gestos intelectuais e psicológicos (um aspecto do comportamento
humano) pode ser transportada diretamente na morfologia dos objetos sonoros
pela ação da laringe ou da musculatura e um transdutor instrumental. (Wishart,
1996, p. 15; tradução nossa)

Essa visão aparentemente objetiva de “transposição” de materiais de um meio


para outro deve ser compreendida com ressalvas. A compreensão mimética deste
processo relativiza a racionalidade operadora, e abre espaço para a contextualização da
força de expressão mimética do intérprete. O gesto preciso do instrumentista é necessário
para uma boa performance. Quando um compositor concebe uma obra, ele “visualiza” os
gestos que o instrumentista deve realizar. Desta maneira, uma intenção musical carrega
em si muitas vezes uma intenção gestual.10
Prova disso é que frequentemente a escrita musical (descritiva e prescritiva) se
refere tanto à representação do som quanto à “ação” do instrumentista. Os sinais gráficos
de uma partitura são em parte instruções dadas pelo compositor ao intérprete sobre as
“ações” corporais que ele deve realizar para dar vida à “ideia” musical.11 Dessa maneira,
o gesto físico que produz o som está presente não só na execução; ele ganha sentido na
intenção, na concepção imagética de uma peça. Por tal motivo, a renovação das ideias no
decorrer da história tornou necessária a renovação dos sinais. Ideias musicais como as
do compositor Helmut Lachenmann, por exemplo, derivadas das experiências da música

9
Ananay Aguilar (2005), em sua análise sobre a proposta de Emmerson dos conceitos de discurso e
sintaxe argumenta que essa proposta depende da relação direta do ouvinte com o fenômeno sonoro
por meio da escuta.
10
Para Cox (2011) esta relação é evidente.
11
Os instrumentos transpositores são um exemplo claro disto: para o instrumentista importa,
sobretudo, visualizar a posição dos dedos.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 185
concreta, jamais poderiam ser grafadas numa escrita convencional e talvez sejam um
exemplo claro da importância do gesto corporal na concepção e interpretação de uma
obra.
Wishart distingue dentre os instrumentos musicais aqueles que reforçam mais ou
menos a intenção do compositor: o poder gestual da voz vem em primeiro lugar, seguido
dos instrumentos de sopro e as cordas tocadas com arcos. A percussão e o piano, segundo
o autor, estão em uma categoria à parte. Essa distinção se refere às possibilidades de
mudanças na morfologia interna de uma só nota ou uma determinada ocorrência
musical. Apenas os primeiros apresentam tal possibilidade de transformação tímbrica
e dinâmica. Exemplo dessa capacidade de transmitir ideias ou “imagens” (por meio dos
instrumentos) está no uso dos instrumentos de percussão “falantes” em algumas etnias
da costa ocidental africana (Haussas, Ghana, Yorubás).12 Em culturas tradicionais, esses
instrumentos produzem padrões sonoros em ritmos proporcionados, os “códigos” gestuais
instrumentais, que imitam as inflexões das linguais tonais usadas por esses povos; desse
nodo, eles conseguem transmitir determinados “conteúdos” para suas comunidades.
Outra dimensão relevante da concepção gestual para a apreensão mimética
consiste no sentido espacial que o som apresenta na escuta. O gesto musical, por ser um
evento híbrido, tende a gerar um sentido espacial que se constitui no tempo. Assim, a
pesquisa da escuta do som no espaço, no campo da música eletroacústica, por exemplo,
poderá servir para estimular a memória e a criatividade no trabalho instrumental (Caesar,
2004). A ambientação espacial do som no local de sua apresentação aviva a intenção do
compositor em relação às configurações construídas em seu meio.
Por sua vez, Oliveira e Toffolo (2008) sinalizam a relevância de aspectos psicológico-
afetivos na criação de soundscape compositions: “a paisagem sonora apresenta restrições
de significação em situações de performance em palco italiano” já que o foco da escuta
acontece por um corpo imerso no meio e não por um ouvinte passivo “fora da cena”.
Estratégias de espacialização sonora se tornam então a melhor maneira de trazer a exper-
iência fenomenológica do ouvinte no entorno sonoro para o palco. A dimensão espacial do
som se projeta por meio da distribuição dos instrumentos no palco e de sua profundidade
no ambiente. A concepção de estratégias de performance, portanto, devem se ajustar às
condições artísticas de organização sonora em seu conjunto.
A concepção espacial do som, em geral, enfatiza a gestualidade musical no espaço
acústico de uma sala de concerto. Os instrumentos concorrem, cada um com seu impulso,
ataque e energia, para gerar planos que interagem no espaço; assim, eles evocam a multi-
plicidade sonora de uma ambiência musical. Por meio deles, ajustamos a concepção sonora
à realização prática. Na música eletroacústica, a percepção da profundidade sonora no local
de apresentação pode fracassar parcialmente devido à movimentação “automática” dos
sons entre os alto-falantes. Já os instrumentos acústicos podem ser movidos e manipulados
durante a execução, ou amplificados e reproduzidos em outro local da sala para gerar novas
ambiências sonoras.
Enfim, a concepção espacial do som reafirma a potencialidade discursiva do gesto,
pois ela cria uma identidade sonora reconhecível para o ouvinte, que poderá então inter-
pretá-la de outro modo. Ela pode servir também para articular formalmente os eventos ou
ser usada como matriz de ideias maiores. Wishart observa que uma ocorrência gestual se

12
Talking Drum. Disponível em <http://www2.si.umich.edu/chico/instrument/pages/tlkdrum_gnrl.html>.

186 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
articula em eventos de maiores e menores proporções, em camadas estruturais distintas na
composição.13 Já a contraposição de estruturas sonoras que apresentam comportamentos
diversos possibilita ao compositor, para fins expressivos, articular essas estruturas para
ampliar os materiais e recriar espacialmente as relações de comportamentos. Esse processo
de articulação formal entre os materiais estimula a imaginação discursiva do compositor, e
afeta o seu ouvinte por meio de experiências de surpresa e expectativa.

Considerações finais
Este trabalho buscou refletir sobre princípios estéticos que possam nortear a
criação de composições de caráter experimental. A proposta de aproximar o conceito
de mimesis (segundo Benjamin) a um processo de escuta e interpretação de materiais
de um meio em outro, de modo lúdico e criativo, oferece vários desafios, dentre eles: a
consciência da mediação subjetiva na vivência musical, como um todo; a representação
imagética de comportamentos sonoros em meios distintos e a percepção dos modos e
da intensidade com os quais eles afetam o seu ouvinte; a vivência estésica/poética do
fenômeno musical, imediata e pré-reflexiva.
Sob essa perspectiva, uma determinada correspondência entre gesto – um evento
híbrido – e estratégia mimética nos conduz a uma compreensão focada das possibilidades
de abordagem conceitual e prática do “discurso” na música instrumental. Desse modo,
o gesto pode funcionar como elemento articulador e impulsionador do discurso sonoro;
como ferramenta de interpretação das sonoridades ambientais, tanto no aspecto unitário
(eventos pontuais) quanto macro-formal (“comportamentos”, “massas sonoras”) e sua
aplicação compositiva; e por meio de sua dimensão cinemática e espacial (estratégias
para mimetizar, por exemplo, características sonoras como: ataque, impulso, energia,
densidade, direcionamento, articulação e duração dos sons no ambiente reservado).
Portanto, a concepção híbrida do gesto musical serve a uma tarefa poética de
interpretação e reconstrução de ‘momentos comportamentais’ diversos; e a sua concreção
sonora tem por finalidade mover o seu ouvinte em sua expressão. O empenho na qualidade
da pesquisa do som, como forma de transgredir em parte aquela dupla natureza do meio,
vem a ser determinante, nesse sentido, para estear o processo de composição e ativar a
memória do ouvinte no fluxo do discurso musical.
Outra questão que foi implicitamente abordada e que merece ser investigada
posteriormente trata do “foco auditivo” da experiência sonora em um determinado
ambiente. A complexidade na sucessão e simultaneidade de eventos sonoros nesse
contexto pode oferecer desafios para o compositor no que se refere ao direcionamento
de sua percepção e interpretação dos mesmos durante o processo de escuta. Este foco
servirá para traçar estratégias para a prática composicional e afetar produtivamente a
percepção de seu ouvinte. Deste modo, a noção de gesto musical – que se distingue como
uma configuração dinâmica, de impulso referencial (para dentro e para fora de seu meio
composto) – poderá então ser ampliada a partir desta nova pesquisa.

13
Essas ocorrências podem revelar, através de uma análise espectromorfológica, elementos sonoros
de meios diversos. A referência às estruturas de grandes proporções é exemplificada por certo tipo
de repertório pós-serial (Penderecki, Xenakis), em que predomina uma concepção “arquitetônica”
na organização sonora. Nestas obras as “massas sonoras” podem ser compreendidas como
“desdobramentos gestuais de eventos muito lentos e muito controlados” (Wishart, 1996, p. 32).

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 187
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Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 189
Steve Reich e a estética minimalista
Ismael Lins Patriota
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Descendente de judeus alemães, Steve Reich (1936-) estudou filosofia a partir dos
16 anos na Cornell University, terminando o curso com uma dissertação sobre o filósofo
Wittgenstein (1889-1951). Em 1958 entrou na Julliard School of Music, estudando com
Vincent Persichetti (1915-1987), compositor e pianista americano. Entre os vários empregos
no início de sua carreira, destaco aqui sua experiência como taxista, que o levou a compor
Livelihood (1964), feita de colagens em fita magnética de sons gravados em seu taxi. Ele
iria destruir a fita nos anos 1980. Podemos imaginar que a experiência com as colagens
em Livelihood não o interessaram, composicionalmente, tanto pela ausência desta peça
em seu conjunto de obras, como pela destruição da fita. De qualquer modo, nos anos
1960 Reich já havia composto algumas obras para o grupo teatral Francisco Mime Troupe
Theater, participando também como pianista. Foi numa das apresentações da trupe que
ele conheceu Terry Riley e a amizade entre os dois acabou por levar Reich a participar da
première de In C (Riley, 1964). Potter (2004, p. 164) destaca a influência desta peça na
formação do compositor, pois ela “apontou para um mais organizado e consistente tipo de
“fazer-padrões” com meios altamente redutivos”. Reich considerou In C uma peça seminal
e importante também para seu caminho composicional. De fato, It’s Gonna Rain (1965) e
Come Out (1966), que trabalham com os “meios altamente redutivos” de que fala Potter,
vieram logo depois desta experiência com Riley.
Reich também se envolveu nos eventos promovidos pelas artes plásticas e a première
de Violin Phase (1967) foi feita no School of Visual Arts em 1967 (Potter, 2004, p. 171),
sob a direção de Robert Rauschenberg (1925-2008), este um importante escultor e pintor
americano. A importância destas experiências com outros artistas levou Potter a declarar
que “Reich descobriu que ele tinha mais em comum com os que trabalhavam na escultura
ou pintura, teatro ou filme, do que com a maioria dos músicos” (Potter, 2004, p. 171).
Mas quais seriam essas familiaridades? Como podemos estabelecer relações entre
o compositor e as artes plásticas? Procurando responder a esta pergunta, discutimos a seg-
uir um pouco de suas preferências estéticas a partir do trabalho de Jonathan Bernard, The
Minimalistic Aesthetic in The Plastic Arts and in Music (1993) que expõe algumas caracterís-
ticas do Minimalismo compartilhadas pela música e artes visuais. Analisaremos três pontos
problematizados por Bernard, a saber: a reação ao Expressionismo Abstrato, o destaque
sobre a superfície e a mudança da ênfase na composição para o arranjo. Discutiremos esses
três pontos enfocando as escolhas composicionais e estéticas de Reich.
O Expressionismo Abstrato foi uma corrente do pós-guerra que valorizava a espon-
taneidade gestual e o acaso. Teve como conhecido representante o artista Jackson Pollock
(1912–1956), que pintava com as telas no chão, à medida que as circulava, na técnica con-
hecida como “drip painting”. O método, criado por Pollock, consiste em gotejar a tinta sobre
a tela, resultando em linhas difusas, desconexas, embora o artista negasse a existência do
acaso, ou de “uma “ação aleatória” em suas obras” (Emmerling, 2003, p. 68). Levine (1971,

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 191
p. 24) destaca que o Expressionismo de Pollock leva a um “perder-se nos ritmos... Ele usa a
linha não para criar forma, mas para evitar qualquer experiência de forma e, portanto, de
qualquer entidade individualizada.”1 Este foco no gestual e no acidental,

traz à lembrança as obras de John Cage, Morton Feldman e Earle Brown do início
dos anos 50. Todos os três incorporaram em suas peças métodos baseados no
acaso, seja como um processo composicional, um veículo da performance, ou
os dois.2 (Bernard, 1993, p. 91)

Nesta linha de pensamento, a obra musical de Cage nos levaria a um perder-se nos
sons, através da utilização sonora fora de contexto formal, rompendo com a experiência
linear no sentido em que “a redução do contexto musical à apresentação do fenômeno
sonoro isolado... Aniquila o som musical, que possui significado somente através de seu
contexto”3 (Boehmer e Pepper, 1997, p. 69). A ausência contextual em suas obras só aumenta
as incertezas e surpresas auditivas. Isolando um som de outro, “só assim eles podem ser
eles mesmos” (Boehmer e Pepper, 1997, p. 69). Cage claramente rompe com os Serialistas
pós-webernianos, que, nas palavras de Paulo de Tarso Salles (2005, p. 68), “sustentavam
ainda a continuidade de uma tradição fundada sobre a coerência tonal”. Nesse contexto, é
importante destacar que o Minimalismo musical não foi contra o acaso de Cage. Eles viam
o acaso apenas como uma proposta a não ser seguida, uma abordagem reacionária com a
qual eles não simpatizavam.
Steve Reich, na sua segunda entrevista a Michael Nyman em 1976, fala que, ao
escrever o artigo Music as a Gradual Process (1968), sua intenção era se separar do acaso
e da livre improvisação. “O que eu queria era uma mistura de escolha individual controlada
com certa impessoalidade” (Reich, 2004, p. 92). Ele iria afirmar:

Certamente não há lugar para o acaso [em minha música], além do lugar tradicio-
nal que ela ocupa. Isto é, depois dos ensaios, ninguém pode afirmar exatamente
como irá ocorrer a performance. A ideia de compor jogando moedas ou através
de oráculos, ou outras formas de acaso, eu rejeitaria agora tal como eu rejeitei
em 1967... Mas há uma grande diferença entre acaso e escolha, e o que eu estava
tentando fazer nas minhas primeiras peças, era, até certo grau, eliminar escolhas
pessoais como compositor.4 (Reich, 2004, p. 93)

1
“Lose oneself in the rhythms… He uses line not to create form but to obviate any experience of
form and hence an individualized entity.”
2
“Bears a good deal of resemblance to the work of John Cage, Morton Feldman, and Earle Brown
from the early fifties onward. All three of these composers incorporated chance-based methods into
their music, either as a matter of compositional process, or a vehicle for performance, or both.”
3
“The reduction of musical context to the presentation of isolated sound phenomena… liquidates
musical sound, which possesses significance only through its contextual placement.”
4
“Certainly there’s no place for chance beyond the traditional place for it. Namely, after the
rehearsals, one can never know exactly how a live performance will go. The idea of composing
through tossing coins, or oracles, or other chance forms I would reject now, as I did in 1967… But
there is a great difference between chance and choice, and what I was trying to do in my earlier
pieces was, to some extent, eliminate personal choices as a composer.”

192 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Como podemos perceber, Reich não se interessou pela proposta de Cage em usar
nas composições, moedas, oráculos etc. e sua busca por eliminação de escolhas pessoais o
levaria a outros caminhos, como veremos mais adiante. Bernard destaca ainda que o acaso
não foi totalmente eliminado pela estética Minimalista. “Devido à simplificação drástica
do material e das rédeas formais às quais o material está sujeito, que são consideráveis,
o resultado permanece afunilado em um pequeno campo de possibilidades”5 (Bernard,
1993, p. 96). Assim, Bernard dá dois exemplos do que ele chama de constrained chance.
Terry Riley (1935 -), por exemplo, em In C (1964), deixa em aberto não só o número de
instrumentistas e a instrumentação, mas também o tempo exato que cada instrumentista
pode levar em cada uma das 53 figuras que compõem a peça. Um segundo exemplo vem
de La Monte Young (1935 -), com The Well-Tuned Piano (1964), que dura de três a quatro
horas e meia, podendo durar até mais. Esse tempo, diz Bernard, está baseado em seções
que podem ser alongadas ou contraídas, dependendo da escolha do intérprete. Podemos
indagar se as escolhas em algumas obras de Steve Reich não podem ser incluídas nesta
categoria. Tome-se, por exemplo, Piano Phase (1967), em que um padrão melódico tocado
inicialmente em uníssono, por dois pianistas, entra em defasagem. A escolha do tempo que
leva para a entrada de uma nova fase como também a duração das fases depende exclusi-
vamente de um dos intérpretes. Logicamente, a cada nova apresentação uma nova versão
da peça será ouvida e já que ela se resume basicamente a esse processo de defasagem,
somos tentados a incluí-la na categoria de Bernard: não é somente uma escolha, porque
aqui esse processo é a própria peça.
A ênfase sobre a superfície é outra característica que se buscou no Minimalismo. Na
pintura e na escultura, essa procura tomou a forma de objetos e telas como se feitos indus-
trialmente. Frank Stella (1936-) diria: “tentei manter a tinta na pintura tão próxima quanto
à que estava na lata de tinta”6 (apud Bernard, 1993, p. 97) e Robert Morris (1931-) dizia ser
essa busca fundamental para “quebrar a tediosa cadeia de artisticidade7 que circunscreveu
cada nova fase da arte desde a Renascença”8 (apud Bernard, 1993, p. 99). Stella e Morris
claramente estavam se afastando da subjetividade das artes plásticas e se aproximavam
de uma clareza discursiva, no sentido em que as subjetividades se afastam e o espectador
observa as obras como num contato direto, sem a necessidade de interpretações próprias.
Como disse Frank Stella (1936-) “O que você vê é o que você vê”9 (apud Bernard, 1993, p.
53). Esse foco se manifestou radicalmente no uso do monocromatismo, em que as telas
são pintadas com somente uma cor. Strickland reconhece três artistas como pioneiros: Yves
Klein (1928-1962), Ad Reinhardt (1913-1967) e Robert Rauschenberg (1925-2008). Klein, por
exemplo, ficou conhecido por telas completamente azuis. A escolha do azul seria inspirada
no céu, e daria às suas obras “patente subjetividade e simbolismo... Evocam forças elemen-
tares ou eternas” (Strickland, 2000, p. 34). É interessante que mesmo o monocromatismo
azul de Klein sugere, para Strickland, certo grau de subjetividade. Talvez, por isso, as cores

5
“Because the material itself has been drastically simplified, and because the formal constraints to
which it is subjected are considerable, the result remains channeled within a relatively narrow range
of possibilities.”
6
“I tried to keep the paint as good as it was in the can.”
7
Palavra sugerida pelo professor Rodrigo Cicchelli (UFRJ) na falta de uma tradução em português.
8
“the tedious ring of ‘artiness’ circumscribing each new phase of art since the Renaissance.”
9
“What you see is what you see.”

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 193
branca e preta foram as mais utilizadas no monocromatismo, pois o branco é a soma das
cores, enquanto que o preto é a ausências delas. Isto é, telas brancas e pretas se afastam
tanto da expressividade quanto da subjetividade que as cores podem trazer. Esta visão
objetiva, privada de subjetivismos, seria muito influente com o passar dos anos e chama
a nossa atenção porque diz respeito ao próprio papel da obra de arte, vista aqui como um
objeto que não precisa nem remete a algo fora de si mesmo. Isso influenciou no uso de
materiais industriais por parte dos escultores. Eles utilizaram desde o aço inoxidável até
tubos e lâmpadas fluorescentes, plásticos, vidro, papel de jornal etc. Os artistas buscaram
então, com obras “manufaturadas”, remover ou encobrir traços de pessoalidade artística,
levando o espectador a entrar em contato com a obra de arte sem intermediações de
qualquer tipo. Reich também fala:

O que eu queria era uma mistura de escolha individual controlada com certa
impessoalidade. Você está fazendo algo que por si só está sendo trabalhado,
e ainda por que você escolheu o material e o processo, isto também é uma
expressão de você mesmo, não necessitando uma intromissão maior para você
expressar sua personalidade.10 (Reich, 2004, p. 92)

A procura e o interesse na organização do material sonoro levaram Reich a obras


impessoais, ou superficiais, utilizando o termo de Bernard, ainda que ele fale de “expressar
de sua personalidade”. Para Bernard, a superficialidade seria consequência do uso exten-
sivo da repetição, estando ou não a serviço de uma mudança gradual. Quando a repetição
é combinada com um pulso firme e uniforme, a obra “parece calculada para evocar um
senso de horizontalidade, negar que exista algo além da superfície para atrair a atenção do
ouvinte” (Bernard, 1993, p. 99). Podemos enxergar uma ênfase na superfície como provinda
da busca pelo controle do material e do processo, de que fala Reich, principalmente nas
primeiras peças do compositor, quando ele se utiliza de um processo “puro” (Reich, 2004,
p. 92), isto é, a utilização de um processo como sendo aquilo que ocorre, acontece, na
música. Logo depois de It’s Gonna Rain (1965) e Come Out (1966), Reich compôs Piano
Phase (1967) e Violin Phase (1967) utilizando o mesmo processo anterior realizado com
fitas magnéticas: a defasagem, que consiste basicamente de uma mudança de fase entre
duas vozes em uníssono.
Posteriormente, suas obras perderão a ênfase na “pureza processual” em vista de
uma maior liberdade harmônica, mas mesmo depois das primeiras experiências do com-
positor na utilização de um processo puro, a maioria de suas obras continua a manter um
pulso firme e uniforme. Potter, por exemplo, utiliza o termo maquinístico11 (Potter, 2004, p.
242) ao se referir à última parte de Music for 18 Musicians (1976), mesmo já considerando
a obra, em sua análise, como pertencente a uma fase pós-minimalista do compositor. Esta
peça é um bom exemplo aqui, pois o ritmo firme e pulso uniforme são apenas destaques
sonoros para outros processos. O interesse de Reich pela percussão e posterior valoriza-

10
“What I want was a blend of controlled individual choice and impersonality. You’re doing
something that’s working itself out and yet because you’ve chosen the material and the process
it’s also expressive of yourself and you needn’t meddle with it any further for it to express your
personality.”
11
Maquinations, no original.

194 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
ção do grupo percussivo em suas obras, junto com uma ênfase em processos repetitivos,
ao nosso olhar, legitimam o uso do termo maquinístico, mas devemos usá-lo de forma
cuidadosa, evitando simplificar a riqueza dos processos de uma peça a uma mera questão
rítmica. A evocação de um caráter “industrial” é somente um ponto de vista. Como Reich
falou no início de seu artigo Music as a Gradual Process: “eu não considero o processo da
composição, mas obras musicais que são, literalmente, processos”12 (Reich, 2004, p. 34).
Ou seja, claramente a questão processual se sobrepõe ao caráter percussivo. Por exemplo,
em The Four Sections (1987), sua primeira peça para orquestra, cada um dos quatro movi-
mentos pode ser dividido em quatro partes, onde cânones e repetições são constantemente
explorados em partes específicas da orquestra. Há também o uso de uma harmonia simples
(mesmo no quarto movimento, parte em que há mais cromatismo, há extensa repetição
do motivo, que ajuda na compreensão) e, logicamente, essa ênfase harmônica e a maior
liberdade na exploração orquestral estão sendo usados de um modo limitado, sem a busca
de virtuosismos ou complexidades melódicas ou timbrísticas.
A terceira característica do Minimalismo discutida por Bernard vem das artes
plásticas, onde os artistas mudaram a ênfase da composição para o arranjo, ou das partes
para o todo. Ele explica:

Arranjo aqui implica em uma noção pré-concebida do todo, e oposta à noção


de composição, que implica num ajuste das partes, isto é, os tamanhos, formas,
cores ou localização, em vista a se chegar ao trabalho final, cuja natureza exata
não é conhecida de antemão.13 (Bernard, 1993, p. 99)

O interesse, então, é reduzir o número de partes que compõem a obra, de modo


a uma maior uniformidade e clareza no discurso. A partir dessa clareza discursiva, alguns
artistas desenvolveram as chamadas “formas simples”, ou formas “unitárias” isto é, polie-
dros regulares ou irregulares, no qual o espectador não precisa se mover para ter a ideia
do todo. Em Equivalents I-VIII,

as formas são “capturadas” instantaneamente pelo espectador... O mesmo


número de tijolos14 (120) é colocado para formar cada um dos oito blocos maio-
res, todos com dois blocos de altura, mas variando nas outras duas dimensões.15
(Bernard, 1993, p. 101)

Ou seja, “alguém vê e imediatamente ‘acredita’ que o padrão dentro de sua mente


corresponde à existência factual do objeto”16 (Robert Morris, apud Bernard, 1993, p. 101).

12
“I do not mean the process of composition, but pieces of music that are, literally, processes.”
13 “Arrangement is taken here to imply ‘a preconceived notion of the whole,’ as opposed to
composition, which “usu-ally means the adjustment of the parts, that is, their size, shape, color, or
placement, to arrive at the finished work, whose exact nature is not known beforehand.”
14
Sand – Lime bricks.
15
“The same number of bricks (120) is placed to form each of eight larger blocks, all two bricks high
but varying in their other two dimensions”
16
“One sees and immediately ‘believes’ that the pattern within one’s mind corresponds to the
existential fact of the object.”

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 195
Um exemplo musical que Bernard cita é a peça de Alvin Lucier, I am sitting in a room (1969),
em que a própria voz de Lucier é gravada e depois regravada, repetidas vezes, até que o
ouvinte não distingue mais o texto.

Mesmo o ouvinte que nunca viu a ‘partitura’ logo irá perceber – após ouvir o texto
algumas vezes – que as decisões composicionais foram todas feitas anteriormente
ao início da obra – que de fato elas precederam o momento em que a composição,
diga-se, mesmo conceitualmente, começou.17 (Bernard, 1993, p. 101)

O que nos chama a atenção é que o interesse artístico não está mais no processo
criativo, mas no resultado. Esta ideia de pré-concepção seria levada adiante por um escultor
ligado ao movimento: Sol Lewitt (1928-2007) trabalharia com a chamada arte conceitual.

Vou me referir ao tipo de arte em que estou envolvido como arte conceitual. Na
arte conceitual a ideia ou o conceito é o aspecto mais importante da obra... Isto
significa que todos os planos e decisões são feitas de antemão e a execução é
uma questão sem muita importância... As ideias não necessitam ser complexas...
Não importa qual a forma que ela [a obra de arte] finalmente tome, ela deve
começar com uma ideia. É o processo da concepção e realização com o qual o
artista está preocupado... Uma vez que ela [a obra de arte] está fora das mãos
do artista, ele não tem mais controle sobre o modo com que o espectador irá
perceber a obra. Diferentes pessoas irão perceber a mesma obra de diferentes
maneiras.18 (Lewitt, 1969)

A ideia de uma concepção anterior à obra, de que fala Lewitt, seja ela simples ou
não, lembra o artigo de Reich Music as a Gradual Process. Podemos indagar se, ao conceber
suas composições como processos, Reich está, de certo modo, pensando primeiramente
no conceito. O processo, uma vez pensado, ou seja, pré-concebido, irá prosseguir por ele
próprio. Michael Nyman percebeu a similaridade entre o que Lewitt fala: “todos os planos
e decisões são feitas de antemão”, com o que Steve Reich diz: “uma vez que o processo
está pronto, ele prossegue por ele mesmo” (Reich, 2004, p. 34). Respondendo a Nyman,
Reich admite a ideia de uma impessoalidade buscada no inicio de sua carreira, como visto
anteriormente, mas por outro lado, não concorda com a ideia de que todas as decisões sejam
tomadas de antemão e a execução seja uma questão sem importância. Ele diz que em suas

17
“Even the listener who has never seen the “score” will soon realize – having heard the text throu-
gh a few times – that the compositional decisions were all made before the beginning of the work
– that in fact they preceded the moment at which the composition could be said, even conceptually,
to have begun.”
18
“I will refer to the kind of art in which I am involved as conceptual art. In conceptual art the idea
or concept is the most important aspect of the work… it means that all of the planning and decisions
are made beforehand and the execution is a perfunctory affair… The ideas need not to be complex…
No matter what form it may finally have it must begin with an idea. It’s the process of conception
and realization with which the artist is concerned… Once it’s out of his hand the artist has no control
over the way a viewer will perceive the work Different people will understand the same thing in a
different way.”

196 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
composições, “a forma pode preceder o conteúdo assim como também o conteúdo pode
preceder a forma” (Reich, 2004, p. 92). Pelo que percebemos, sua principal preocupação
estética não é o conceito em si, ou no processo como anterior à obra, mas o processo como
base da sua composição.

Eu não sou um artista conceitual... Em minha música, o material musical tem


normalmente se tornado claro antes da forma. Em It’s Gonna Rain, o material,
o loop original, precedeu a ideia de phase... Pra mim, sempre pensei o som
como superior e mesmo em It’s Gonna Rain a questão de quanto tempo seria
a execução da fase... Esta decisão foi crucial. Assim a execução nunca é o de
menos... Eu discordo completamente com o que Sol Lewitt fala... Pelo menos no
que diz respeito à minha música...19 (Reich, 2004, p. 92)

Estas considerações de Reich nos fazem chegar a algumas conclusões importantes.


Primeiro, quando ele diz que não é um artista conceitual, isto significa, entre outras coisas,
que sua proposta não é seguir uma única estética, ou seguir o modelo composicional de
Sol Lewitt. Ele próprio diz, na mesma entrevista, que seu interesse não está em uma música
genuinamente minimalista. Claramente Reich não quer rotular sua obra ou dedicar-se a
algum estilo de composição específico. Segundo, ao pensar o som como algo superior, ele
diz que mesmo os processos estão sujeitos ao resultado sonoro. Seu interesse não está
nos processos em si, como em Lewitt, mas na forma com que ele vai usá-los. Estes proc-
essos, portanto, estarão sujeitos ao seu julgamento. Isto adquire uma maior importância
se percebermos que a pintura ou escultura se fixam no tempo. A música, ao contrário, se
move nele. Ou seja, enquanto a pintura mostra algum processo em uma tela fixa, a música
pode se valer de mais ferramentas que se modificam com o passar do tempo. Para Lewitt,
uma vez que o conceito seja concebido, depois da realização da obra, a peça estará pronta,
imóvel. Em música, no caso de Reich, uma vez que o processo é concebido, ele é posto em
movimento, implicando não em uma estaticidade, mas na variabilidade. Por fim, também
podemos perceber que o compositor não estava, quando escreveu seu artigo, somente
reagindo ao Serialismo ou seguindo uma estética parecida com o das artes plásticas. Reich
também estava tentando se firmar como um artista que tem seu próprio modo de compor.
O fato de ele discordar completamente de Sol Lewitt com relação à sua música é justamente
isto, uma afirmação de liberdade composicional, que embora tenha algumas conexões com
Lewitt e com outros compositores e artistas, também é única.
Strickland também fala sobre isso e é muito claro em defender as particularidades
de cada artista. Por exemplo, se Klein, Reinhard e Rauschenberg são vistos como pioneiros
na estética monocromática, no caso de Klein, “tão importante quanto à infinitude do espaço
simbólico, entretanto, é a ausência do espaço composicional... A espacialidade foi apagada

19
“Also, I’m not a conceptual artist... In my music, the musical material has usually become clear
before the form. In It’s gonna rain, the material, the original loop, preceded the phasing idea…
For me, sound has been uppermost in my mind, and even in It’s gonna rain the question of how
long the execution of the phasing would be… That decision was crucial. So the execution is never
perfunctory… So I would completely disagree with what Sol says… as far as my own music is
concerned…”

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 197
através da fusão de uma tonalidade com algodão saturado”20 (Strickland, 2000, p. 37); as
telas negras de Rauschenberg, “compostas com papeis de jornal rasgados e mergulhados
em tinta preta, colados às telas e pintados com mais tintas preta, são fragmentados e irregu-
lares na estrutura e textura e alusivos em conteúdo”21 (Strickland, 2000, p. 38). Já Reinhardt
misturava azul, vermelho e verde para chegar a várias tonalidades de preto e “suas telas
pretas também tinham um diferente senso de tempo... Diametricalmente oposto ao tipo de
imediatismo... procurado por escultores e pintores posteriores”22 (Strickland, 2000, p. 52).
O papel e as particularidades de cada artista nos leva a ver o Minimalismo com
uma junção de diferentes pontos de vista, onde o social tem um papel fundamental. Isto
é, apesar das particularidades de cada um, os artistas envolvidos na estética Minimalista
estavam vivendo em uma sociedade que na época sofria importantes mudanças. Como
diz Cervo (2005, p. 45), “o Minimalismo é, portanto, filho de uma década muito especial
na história do século XX”. Strickland (2000, p. 282) percebeu o paralelo entre a revolução
artística provocada pelo Minimalismo e a revolução social ocorrente na época:

Não é uma coincidência que os artistas que trabalhavam com formas simples,
regulares ou frequentemente seriais vivessem em um ambiente em que analo-
gias arquiteturais daquelas formas proliferassem a uma taxa sem precedentes.
A paisagem americana foi transformada por estrondos da construção, seja no
comércio urbano e torres comerciais no estilo Internacional, seja nas casas sub-
urbanas em padrões pré-fabricados das caixas dos Levittowns, do pós-guerra.23
(Strickland, 2000, p. 282)

A transformação da paisagem americana, como fala Strickland, afetou a própria


procura estética do Minimalismo, que não surgiu somente como uma reação, mas também
como uma problematização sobre aquilo que estava ocorrendo na sociedade. As Levittowns,
localizadas em Nova York (figura 1), Pensilvânia e New Jersey, foram cidades construídas
para os veteranos da segunda guerra e suas famílias. Nesse contexto, o Minimalismo talvez
tenha se firmado justamente por trazer à discussão, como diz Strickland, uma sociedade
que construía casas em padrões pré-estabelecidos, levando o espectador a perceber, nas
obras artísticas, paralelos com sua vida diária. Os “padrões pré-fabricados” das casas dos
Levittowns se mostravam na arte Minimalista através das repetições, da clareza discursiva,
da falta de subjetividade, do uso de objetos cotidianos, como lâmpadas, plásticos, papéis

20
“As important as the endlessness of symbolic space, however, is the absence of compositional
space… Spatiality was erased through the fusion of the single hue and the saturated cotton.”
21 “Composed with torn sheet of newspapers dipped in black paint, pasted to the canvas and
brushed over in more black paint, are fragmented and irregular in structure and texture and allusive
in content.”
22
“His blacks also had a different sense of time… Diametrically opposed to the kind of immediacy…
Sought by some of the later painters and sculptors.”
23
“It is not coincidental that artists working in stripped-down, regularized, often serial forms were
living in an environment in which architectural analogues of those forms were proliferating at an
unprecedented rate. The American landscape had been transformed by construction booms both
in urban commercial and residential towers in the International Style and suburban houses in the
pre-fabricated box patterns of the post-war Levittows.”

198 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
de jornal etc., como também através de uma abordagem superficial, industrial, não pessoal,
não individual, do objeto artístico. Também podemos enxergar na obra de Steve Reich uma
alusão a esse novo momento da sociedade norte americana, através de processos repetitivos,
claros, e de certa forma, industriais, maquínísticos. Sua obra City Life (1995), ao utilizar sons
gravados da própria vida na cidade em um contexto sonoro repetível em cinco movimentos,
explora não só a vida cotidiana e suas questões específicas, como a polícia, mas também
as influências da própria cidade em cada cidadão. Assim, tanto na música, como nas artes
plásticas, o Minimalismo é tanto uma crítica como um reflexo de uma sociedade que se
utiliza da repetição, seja na construção de casas, no consumo, com produtos agora feitos
industrialmente e em larga escala, ou mesmo no dia-a-dia, com hábitos de vida constantes
e interruptos. Isto nos abre mais os olhos, pois os questionamentos que os minimalistas
propuseram aos nossos conceitos de obra de arte sugeriram que ela não pode ser vista
apenas como um mundo à parte, longe de nosso cotidiano. Ao contrário, ela agora põe em
discussão a nossa própria vida, falando diretamente, sem mediações, artifícios ou subjetiv-
ismos, tão claro e audível quanto àquilo que vemos e ouvimos diariamente.

Figura 1. Levittown, NY. The U.S. National Archives and Records Administration, William Thomas, 1950.
Fonte: <http://www.understandingrace.org/history/society/post_war_economic_boom.html>.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 199
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STRICKLAND, Edward. Minimalism: origins. Bloomington: Indiana University Press, 2000.

200 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Considerações sobre materiais compositivos
utilizados em Méditations sur les Mystères de la Sainte
Trinité de Olivier Messiaen

Miriam Carpinetti
Universidade Estadual de Campinas

Méditations sur les Mystères de la Sainte Trinité1 surgiu da feliz conjunção das
atividades litúrgicas de seu autor e da celebração do centenário da Église de la Trinité, onde
ele exerceu o ofício de organista durante 61 anos. Por sua sugestão, foi convidado o reitor
do Sacré-Coeur, Monsenhor Charles, para pregar sobre a doutrina da Santa Trindade, que
nomeia a referida igreja, no dia 23 de novembro de 1967. Nessa ocasião, Messiaen impro-
visou antes, entre e depois das três partes do sermão, sempre finalizando com o canto do
Bruant jaune.2 Para Messiaen, que desde 1950 não improvisava em concertos (apenas nas
liturgias e nos acompanhamentos do cantochão), este foi um evento musical marcante e de
grande expectativa, não sabendo o que ocorreria: “talvez alguma coisa muito boa vá acon-
tecer, talvez algo muito ruim – mas de qualquer maneira eu tocarei com amor” (Messiaen
apud Gillock, 2010, p. 199). Dessas improvisações nasceram as ideias para a composição
da obra presentemente estudada, a qual Messiaen estreou em 20 de março de 1972 em
Washington, DC, e publicou em 1973.
A macro-forma desta obra é dividida em nove meditações que podem ser, grosso
modo, classificadas por sua maior ou menor complexidade estrutural (Bruhn, 2008, p. 131).
As meditações de número par são mais simples: duas estrofes e coda (med. II), quatro seções
(med. IV), duas estrofes (med. VI), quatro seções (med. VIII); e apresentam certo direciona-
mento tonal. Já as meditações de número ímpar apresentam estruturas mais complexas.
As nove meditações foram apenas numeradas por Messiaen; contudo, elas são
tradicionalmente nomeadas pelos organistas em razão dos temas nelas abordados: I – O
Pai Inengendrado; II – A Santidade de Jesus Cristo; III – A relação real em Deus é realmente
idêntica à essência; IV – Eu Sou, Eu Sou!; V – Deus é imenso, eterno, imutável – O sopro do
Espírito – Deus é amor; VI – O Filho, Verbo e Luz; VII – O Pai e o Filho amam a si mesmos e
a nós pelo Espírito Santo; VIII – Deus é simples; IX – Eu Sou o que Sou.3

1
Doravante a obra estudada será designada Méditations e seus nove movimentos meditações.
2
O canto desse pássaro foi o sinal de Messiaen para indicar o final de cada improvisação e o início
de cada uma das três partes do sermão.
3
I – Le Père Inengendré; II – La Saintité de Jésus Christ; III – La relation réelle en Dieu est réellement
identique à l’essence; IV – Je Suis, Je Suis!; V – Dieu est immense, éternel, immuable – Le souffle de
l’Esprit – Dieu est amour; VI – Le Fils, Verbe et Lumière; VII – Le Père et le Fils aiment, par le Saint-
Esprit, eux-mêmes et nous; VIII – Dieu est simple; IX – Je Suis celui qui Suis. Esta tradução, assim
como todas as que se seguirão foram realizadas pela autora.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 201
Materiais utilizados e sua grafia
As estruturas temporais utilizadas em Méditations são amétricas, com duração
flexível, desligadas do conceito de repetição idêntica, tendo por princípio a repetição vari-
ada.4 O compositor justapõe e sobrepõe ritmos de formação diversa, criados pela livre soma,
subtração e multiplicação de um valor de pequena duração.5 Inspira-se em princípios da
rítmica hindu e da prosódia grega; contudo, modifica e deforma os ritmos por meio das suas
operações aritméticas preferidas (Messiaen, 1990, p. 14-18), as quais privilegiam a criação
de figuras com durações expressas por números primos: 5, 7, 9, 11 e 13. Também utiliza o
cromatismo de durações, explicado em Mode de valeurs et intensités (1950).
A ordenação das alturas valoriza a melodia – muitas vezes constituída de grandes
saltos – que varia conforme o material escolhido: diatonia do cantochão, composição
derivada dos cantos de pássaros e modos de transposição limitada (Messiaen, 1990, p.
33-34 e 58-63).6 O desenvolvimento melódico se dá por eliminação de intervalos, inversão,
interversão, mudanças de registros, ampliação e redução assimétrica de intervalos (Mes-
siaen, 1990, p. 35-36).
Silêncios com diferentes durações, geralmente, separam as texturas que variam da
monodia à combinação complexa de diversas camadas, diferenciadas por suas densidades
(texturais e rítmicas) e intensidades (geradas pela registração organística e pela sobreposição
de diversos eventos musicais).
Os textos da Summa Teologica de São Tomás de Aquino integram e constroem a
obra estudada, diferentemente de outras de suas obras, nas quais os textos apenas indicam
sua inspiração. Em Méditations, materiais de diversas procedências são apresentados para
criar imagens e símbolos relativos à criação do universo e à Santa Trindade.
Para esta obra, Messiaen utiliza a primeira notação, grafia criada por ele mesmo para
registrar peças solísticas ou para pequenas formações, que, em vez das tradicionais fórmulas
de compasso, recorre a “barras apenas para indicar os períodos e anular o efeito dos acidentes”
(Messiaen, 1990, p. 28).7 Diferentemente das obras da literatura organística alemã, as de Messiaen
exploram, em longos trechos, a região superior dos teclados, apresentando texturas mais rarefeitas,
em busca de maior clareza e brilho. Assim, muitos trechos a serem tocados pela mão esquerda são
grafados em clave de sol (Wills, 1997, p. 106). Constatamos também que, quando escreve dentro
dos sistemas modal e tonal – cantochão, suas variações e alguns outros fragmentos – emprega os
acidentes dentro das regras tradicionais; por outro lado, quando em sistemas preponderantemente
atonais – cantos dos pássaros, linguagem comunicável e outros – indica antes de cada nota um
sustenido, bemol ou bequadro, considerando-as como entidades individuais.

4
As estruturas temporais utilizadas por Messiaen apresentam uma maior liberdade em relação à
música metrificada, muito embora sejam apresentadas com padrões rítmicos e grafia precisos.
5
Procedimento que o autor prefere, desde sua juventude, ao da divisão de um valor maior.
6
Os modos são indicados por dois algarismos como no Traité de rythme, de couleur, et
d’ornithologie (Tratado de ritmo, de cor e de ornitologia), de 2002, sendo o primeiro o número
indicativo do modo e o segundo, sobrescrito, o indicativo da transposição. O algarismo “um”
sobrescrito indica a altura original do modo.
7
Utilizaremos o termo divisão para referir-nos aos trechos musicais encerrados entre as barras
divisórias, já que o compositor utiliza conceitos de tempo diversos aos da metrificação empregada
na música tradicional. Numeramos as divisões para possibilitar sua localização durante os
comentários.

202 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
tratamento dado aos materiais
No que se refere ao tratamento dado a alguns dos materiais empregados em Médi-
tations, Gillock (2010, p. 200) considera que há uma maior variedade destes em relação
aos apresentados na década anterior, quando o compositor lançou as bases do serialismo
integral. Na obra estudada, há um tratamento mais emocional, com maior variedade de
material, pelo emprego do cantochão – representando a espírito humano – e cantos de 12
pássaros, que representam a natureza e as demais criaturas. A grande diversidade do mate-
rial utilizado corresponde ao resgate de elementos da linguagem de suas fases compositivas
anteriores como marca de sua maturidade composicional.
Neste texto, damos especial destaque ao código serial denominado por Messiaen de
linguagem comunicável,8 criado e empregado pela primeira vez nesta obra.9 No prefácio de
Méditations, Messiaen discorre sobre as convenções – vocalização, movimentos, imagens,
cores, perfumes, toque (no caso do alfabeto Braille) – necessárias para que se estabeleça
um tipo de linguagem para transmissão de ideias.
Em suas considerações declara que a música não pode «dizer», informar nada com
precisão, podendo apenas “sugerir, suscitar um sentimento, um estado de alma, tocar o sub-
consciente, ampliar as faculdades oníricas, e estes são já imensos poderes” (Messiaen, 1973,
prefácio). Embasado na Summa Teologica de Aquino, Messiaen ressalta que “apenas os anjos
têm o privilégio de se comunicar entre si sem linguagem, sem convenção, e, mais maravilho-
samente ainda, sem necessidade de levar em conta o tempo e o espaço” (Id., ibid.).
A partir dessas considerações, criou um código de correspondência estrita entre
elementos da linguagem verbal (unidades mínimas distintivas) e elementos da linguagem
musical, visando traduzir em música ideias colhidas na Summa Theologica de Aquino. Esse
código pode ser considerado como um processo de serialização, embora na peça não haja
uma aplicação rigorosa do serialismo, apresentando as frases em linguagem comunicável
sempre em contextos diferentes, sobrepostas a materiais modais e cantos de pássaros.
Diferentemente da tradição latina, que utiliza sílabas de solfejo para nomear as
notas musicais, ele parte da tradição germânica, que utiliza letras do alfabeto. Entretanto,
em vez representar com elas somente as alturas, ele atribui valores de altura – em oitavas
determinadas – e durações específicas para representar as letras do alfabeto francês (seu
idioma nativo), a fim de transcrever palavras em elementos musicais. Nessa codificação,
ele diferencia grupos de letras, iniciando com as tradicionalmente utilizadas no sistema
musical alemão (A, B, C, D, E, F, G, H). A seguir, ele completa seu código com outras que
ele mesmo categoriza por suas características fonético-morfológicas: vogais (A, E, I, O, U),
palatais (I, J, Y), sibilantes (S, Z), dentais (D, T), C duro (C, Q, K), labiais (B, P, F, V, M), linguais
(L, N), acrescentando a estas as letras R, W, X. A série completa é apresentada no exemplo
1 e é interessante observar que, reunindo as três notas/letras de maior duração, é possível
formar o termo francês mot, que significa palavra.

8
Langage communicable.
9
Posteriormente, Messiaen voltou a utilizá-lo em Des canyons aux étoiles, obra para pequena
formação orquestral de 1974, e no Livre du Saint Sacrement, sua última e mais longa obra para
órgão, composta em 1984.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 203
Ex.1 Série completa da linguagem comunicável

Para evitar o acúmulo de palavras, ele cria motivos para estabelecer relações entre
as palavras, substituindo artigos, pronomes, advérbios e preposições pelo sistema de casos
e declinações que depreende do latim, criando também, dois temas para representar os
verbos ser e ter. O quadro 1 mostra os motivos criados para representar casos e declinações
e verbos.

Quadro 1 – Motivos conectores presentes nas Meditations.


Fonte: informações de Messiaen colhidas no prefácio de Meditations.

No prefácio da partitura, Messiaen discorre sobre o tema que criou para representar
a “única palavra importante de qualquer linguagem, a palavra que não é apenas o nome de
um rei, mas do Rei dos reis, o Nome Divino!”. O compositor explica que, a forma direta e
a retrógrada representam “que Deus é imenso tanto quanto eterno, sem começo nem fim
tanto no espaço quanto no tempo” como “dois extremos que se olham e que poderiam se
retroceder indefinidamente…”. Esse tema especial é mostrado no exemplo 2.

204 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Ex.2 Tema de Deus e seu retrógrado.

Além do tema de Deus, Messiaen criou outros para as três pessoas da Trindade e
um para o verbo amar; contudo não os indicou no prefácio, apenas no decorrer da obra.
Esses temas são mostrados no quadro 2.
As frases em linguagem comunicável são apresentadas nas meditações I, III e VII.
A utilização dos temas (Deus, Pai, Filho, Espírito Santo e amor)10 e de motivos musicais
(representando os artigos, pronomes, advérbios, preposições e os verbos ser e ter) são
elementos que oferecem maior unidade ao discurso, apesar de serem circundados sempre
por contextos musicais diferentes. Os temas podem ser considerados como personagens de
um poema para órgão sinfônico, cuja primeira cena descrita apresenta o Pai das estrelas.11
Esse primeiro tema, em sucessivas variações nos transmite a sensação do caos inicial da
criação do mundo pelo Incriado Deus Pai.
Além das frases musicais construídas com seu código, no final de cada uma das
meditações, Messiaen coloca uma breve conclusão dos artigos da Summa Theologica que
selecionou para explicar a doutrina da Santa Trindade. A seguir, apresentamos essas frases
e trechos da partitura que ilustram a variedade de tratamentos empregados na elaboração
da composição.

Quadro 2 - Outros temas utilizados nas Méditations.

O primeiro texto codificado estabelece que Deus é o princípio, é o criador e não foi

10
Neste texto, serão referidos em português: Deus, Pai, Filho, Espírito Santo, amor.
11
Assim denominado por Messiaen, pois sua melodia é composta de notas relacionadas aos astros
do nosso sistema solar, tal como apontadas pelo astrônomo E. Savin. (Messiaen, 2002, p. 152-156).

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 205
criado; apresentando também sua primazia em relação às outras pessoas da Trindade. “Em
relação às pessoas que procedem d’Ele, o Pai é conhecido por sua paternidade e inspiração;
como ‘Princípio que não tem princípio’, conhecido pelo fato de que Ele não é de outro; essa
é precisamente a propriedade de inascibilidade designada pelo termo Incriado”.12
No exemplo 3, podemos observar os primeiros elementos empregados na construção
desta frase: um tema (Pére), um conectivo (datif: vers les) e um substantivo (personne);13
assim como o modo de Messiaen indicar os diferentes elementos de seu código: temas
(encartuchados),14 motivos conectores (entre parênteses) e palavras (soletradas acima das
respectivas notas). A mão esquerda acompanha e complementa ritmicamente a frase com
uma melodia que emprega notas do tema Pai das estrelas.15

Ex.3 Méditations. Primeira frase em linguagem comunicável (med. I, divs. 52-57).


Fonte: Alphonse Leduc, 1973.

Apresentamos no exemplo 4, a última palavra em linguagem comunicável a aparecer


na primeira meditação é Inengendrado. Sobreposta por blocos harmônicos, ela é interpre-
tada na pedaleira (em legato, com intervalos descendentes que sobrepassam a oitava, com

12
“Par rapport aux Personnes qui procèdent de lui, le Père se notifie ainsi: paternité et spiration; en
tant que “Principe qui n’a pas de principe”, il se notifie ainsi: il n’est pas d’un autre: c’est là précisé-
ment la propriété d’innascibilité désignée par le nome d’Inegendré.” Esta citação, que se encontra no
rodapé, ao final da meditação, Messiaen indica como proveniente de “Saint Thomas d’Aquin, Somme
Théologique – la Trinité, livre II, question 33, “la personne du Père” – article 4, conclusion”; contudo,
não a localizamos literalmente na Suma Teológica, fato que se repete nas demais referências men-
cionadas por Messiaen.
13
O final deste substantivo encontra-se no pentagrama seguinte, que não aparece no recorte do
exemplo.
14
Messiaen indica a procedência deste método no prefácio da partitura, explicando que os temas
– Pai, Filho, Espírito Santo – são envolvidos em cartuchos, assim como os nomes das divindades nos
antigos escritos persas e egípcios.
15
No exemplo 3 podemos notar o início da linguagem comunicável empregada na construção desta
melodia, que se apresenta da seguinte forma “Père (datif: vers les) personnes procédant (ablatif: du)
Père (avoir: il a) paternité spiration Père (datif: vers le) principe (privative: sans) principe (avoir: il a)
(privatif: ne pas) (être) (ablatif: d’un) autre (être: c’est) (avoir) innascibilité (être) inengendré Père”.

206 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
registração e tessitura muito graves, dinâmica em ffff e em tempo extremamente lento),
conferindo profundidade à apresentação do texto de Aquino.16

Ex.4 Méditations. Palavra em linguagem comunicável (med. I, divs. 132-133).


Fonte: Alphonse Leduc, 1973.

A terceira meditação enuncia: “A relação em Deus é idêntica à essência de Deus”.17


Para compreender melhor esta frase, podemos nos reportar às informações dadas por Mes-
siaen à organista alemã Almut Rössler, quando ele expõe que, os seres humanos podem
melhorar ou piorar suas qualidades e viver em relação uns com os outros. Contudo, Deus
é imutável, nada pode ser adicionado ou subtraído de sua essência, Ele está em si, assim
como as três pessoas da Trindade estão n’Ele. (Rössler apud Bruhn, 2008, p. 28).18
Diferentemente da primeira frase, que era acompanhada apenas por uma melodia,
esta é apresentada em um contexto de textura mais densa, pelo acréscimo de duas vozes:
uma no manual de acompanhamento e outra na pedaleira. A melodia – que se estende por
quase todo o teclado – é registrada com fundos (tous les fonds 16, 8, 4) abrilhantados e en-
riquecidos por um coro de linguetas (Bombarde 16, Trompete 8, Clairon 4), ambos com base

16
Para os leitores não familiarizados com a grafia organística, apontamos os sinais indicativos do
pedilhado que, acima da nota, se referem ao pé direito e, abaixo, ao pé esquerdo: ponta do
pé e talão; e as substituições silenciosas para tocar e manter a nota enquanto se substitui a
ponta ou o talão: .
17
“La relation réelle en Dieu est réellement identique à l’essence”. (Saint Thomas d’Aquin, Somme
Théologique – question 28, “les relations Divines” – article 2, conclusion).
18
Texto utilizado na construção da melodia: “Relation (locatif: en) Dieu (est – verbe être) identique
(datif: à) essence (genitive: de) Dieu”.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 207
16’.19 Ela é acompanhada por registros de fundos com base 16’ no manual e 32’ no pedal,
como se vê no exemplo 5. As vozes do acompanhamento são organizadas com ritmos hindus:
na mão esquerda, pratâpaçekhara (força que emana da fronte),20 râgavardhana (ritmo que
dá vida à melodia) e varnamanthikâ (análise da cor); na pedaleira, em forma de ostinato
rítmico, são apresentados sempre duas vezes o ritmo rangapradîpaka (cor luminosa), sendo
cada apresentação circundada por silêncios de diferentes durações. Messiaen escolhe os
ritmos por seu significado espiritual e os modifica para adaptá-los ao contexto, como indica
a observação anotada na primeira divisão, logo abaixo do pentagrama do pedal.

Ex.5 Méditations. Segunda frase em linguagem comunicável (med. III, divs. 1-2).
Fonte: Alphonse Leduc, 1973.

Na oitava meditação, o enunciado declara “Pai, Filho – amam – Pai, Filho por meio
do Espírito Santo – Amor procedente. Pai, Filho – amam – raça humana por meio do Espírito
Santo”. Ao final do movimento ele acrescenta “O Pai e o Filho amam, pelo Espírito Santo
(o Amor que procede), a eles mesmos e a nós”.21 Esta mensagem de amor é acompanhada
por duas linhas melódicas de caráter muito distintos dos apresentados anteriormente:
um ostinato na pedaleira construído a partir da cromatização de durações,22 cujo perfil é
composto de grandes saltos descendentes (perfil melódico que se assemelha ao da palavra
Inengendrado apresentado no exemplo 4, na primeira meditação) e o canto do pássaro
Bulbul na mão direita, que complementa ritmicamente as outras vozes.

19
Para mensurar o comprimento dos tubos, é utilizada a unidade de medida inglesa Pé (indicada pelo
sinal diacrítico apóstrofe), equivalente a um pouco mais do que 30 cm. Portanto, um tubo de 16’
mede quase 5 m; um de 32’, o dobro. Para mais informações sobre o instrumento, conferir o primeiro
capítulo da dissertação da autora: CARPINETTI, Miriam Emerick de Souza. O órgão tubular: guia prático
sobre seu idiomático com ilustrações dos Quadros de uma Exposição de Moussorgski, 2008.
20
Significado espiritual do ritmo, como se encontra na tabela de 120 Deçî-tâlas que, segundo John
Satterfield, Messiaen obteve no Conservatório de Paris (Messiaen, 1990, p. 14).
21
Texto utilizado na construção da melodia: “Père Fils (aiment – verbe aimer) Père Fils (ablative: par) Saint
Esprit (Amour – verbe aimer) procédant Père Fils (aiment – verbe aimer) race humaine (ablative: par) Saint
Esprit (Amour – verbe aimer) (genitive: du) Père (genitive: du) Fils”. Texto explicativo colocado ao final da
meditação: “Le Père et le Fils aiment, par le Saint-Esprit (l’Amour qui procède), eux-mêmes, et nous.” (Saint
Thomas d’Aquin, Somme Théologique – “la Trinité”, tome II – question 37, article 2, conclusion).
22
O cromatismo de durações é explicado na obra para piano Quatre études de rythme (1949-50) e
utilizado também nas obras para órgão Messe de la Pentecôte (1950) e Livre d’Orgue (1951).

208 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Ex.6 Méditations. Terceira frase em linguagem comunicável (med. VII, divs. 17-18).
Fonte: Alphonse Leduc, 1973.
Diferentemente das outras apresentações já ilustradas, nas quais as frases são
acompanhadas de materiais variados, na quarta meditação, ela aparece em um breve trio,
como podemos observar no exemplo 7. Nele, cada voz apresenta uma das três pessoas da
Trindade, cada qual com um ritmo hindu: râgavardhana (ritmo que dá vida à melodia),
pratâpaçekhara (força que emana da fronte) e simhavikrama (a força do leão). Aparente-
mente, Messiaen apresenta os temas conforme sua ordem de procedência – em primeiro
lugar, o Pai Incriado; procedendo dele, o Filho e de ambos, o Espírito Santo – e com ritmos
que os caracterizam.

Ex.7 Méditations. Trio em linguagem comunicável (med. IV, divs. 20-22).


Fonte: Alphonse Leduc, 1973.
Observamos que a linguagem musical criada por Messiaen não guarda a mesma
objetividade da verbal. As dificuldades para a compreensão da mensagem veiculada com
esse código são de ordem fonético-fonológica, sintática e semântica. Ela não segue regras
de prosódia quanto à união de consoantes e vogais nem elisões, apenas soletra as palavras
e as ordena sintaticamente com os casos. Assim, sua comunicação se dá para o ouvinte
como a de qualquer outro sistema musical.
Acrescemos a nossas observações, as hipóteses de Bruhn (2008, p. 138), que conecta
a prática de criar uma linha melódica com palavras em longas durações, à prática do cantus
firmus dos motetos dos séculos XII e XIII. Para ela, a ininteligibilidade da mensagem é cor-
relata ao caráter transcendente da doutrina que está sendo musicada e ao fato de que a
mente humana não consegue – nem em palavras, nem em música – compreendê-la total-
mente. Segundo Bruhn, o próprio fato de se acrescer vozes com textos rápidos em outros
idiomas, como se fazia no moteto medieval, demonstra a diferença entre o Ser supremo e
o mundo cronológico sobre o qual ele reina. Ela acrescenta que, do século XV em diante,

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 209
a discrepância de duração das notas do cantus firmus e vozes que o envolviam foi sendo
reduzida progressivamente, à medida que o moteto focava na relação entre o Divino e a
humanidade, veiculando mensagens de compreensão no plano sensível. Assim, a lentidão
do texto em linguagem comunicável e a velocidade muito maior dos contrapontos apre-
sentados por Messiaen, afirmam a diferença de natureza que existe entre Deus e as “cores”
que representam Seu amor neste mundo.
Direcionamo-nos ao âmbito estritamente musical observando que, em Méditations,
as melodias tratadas como personagens de forma simultaneamente autônoma geram extra-
tos musicais independentes, um contraponto de camadas. Messiaen não utiliza a polifonia
como entendida na música ocidental, na qual, em geral, as formas imitativas tem um papel
preponderante. Seguindo modelos de agenciamento de materiais provenientes de outras
culturas, assim como de outras fases da linguagem musical ocidental, Messiaen sobrepõe
materiais heterogêneos e de sistemas musicais diferentes, pelo controle vertical. Esse efeito
é explicado por Pierre Boulez (1995, p. 263), quando compara a tradição do contraponto
ocidental ao que se apresenta em outras culturas, mesmo as que possuem consistentes
bases teóricas: “Nas músicas chamadas exóticas, observa-se frequentemente a heterofonia,
a antifonia e todas as formas de superposição devidas a relações simultâneas no tempo,
mas não responsáveis”.23

Conclusão
Em Méditations, Messiaen trabalha com dois tipos de materiais: o primeiro formado
por elementos de caráter fixo, que remetem ao significado que ele estabeleceu e que se
apresentam, geralmente, da forma como foram criados (motivos conectores da linguagem;
motivos dos verbos ser, ter e amar; e os temas Deus, Pai, Filho e Espírito Santo), para gerar
unidade; e o segundo, por elementos móveis (canto gregoriano, cantos dos pássaros e
das estrelas, melodias e acordes em camadas simultâneas aos elementos fixos), que são
trabalhados mais pela variação do que pelo desenvolvimento.
Como Bach e Mahler, busca sintetizar um amplo conjunto de conhecimento musical
em diferentes níveis disponibilizados em sua época, diferentemente de compositores como
Anton Webern e John Cage que se radicalizaram na busca da construção de uma linguagem
específica, monográfica. Como Cage e Murray Schafer, em Méditations, ele se vale de pin-
turas sonoras para transmitir os Mistérios da Santa Trindade, conforme seu conhecimento
da teologia da Igreja Católica Apostólica Romana.
Messiaen, com amplitude de visão, utiliza uma vasta paleta de sistemas, procedi-
mentos e materiais, tanto da música tradicional europeia como de outras culturas, em uma
linguagem pessoal, atual para a sua época e inovadora no âmbito organístico. Integra-os em
uma proposta musical consistente, coerente e totalizante, apesar da riqueza de diversidade
desses recursos.

23
Inferimos de seu texto que o termo “responsáveis” refere-se à capacidade das vozes reportarem-
se umas às outras.

210 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Referências
BOULEZ, Pierre. Apontamentos de aprendiz. Tradução Stella Moutinho; Caio Pagano; Lídia
Bazarian. São Paulo: Perspectiva, 1995. (Coleção Signos/Música).
BRUHN, Siglind. Messiaen’s interpretations of holiness and Trinity: echoes of medieval
theology in the oratorio, organ meditations, and opera. Hillsdale, NY: Pendragon Press,
2008.
CARPINETTI, Miriam Emerick de Souza. O órgão tubular: guia prático sobre seu idi-
omático com ilustrações dos Quadros de uma Exposição de Moussorgski. 275 p. Disser-
tação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas,
2008. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/index.
php?did=34640>. Acesso em: 29 set. 2011.
GILLOCK, Jon. Performing Messiaen’s organ music. 66 masterclasses. Bloomington: Indi-
ana University Press, 2010.
MESSIAEN, Olivier. Méditations sur le mystère de la Sainte Trinité. Paris: Alphonse Leduc,
1973. 1 partitura (95 p). Órgão Tubular.
MESSIAEN, Olivier. The technique of my musical language. Translated by John Satterfield.
Paris: Alphonse Leduc, 1990.
MESSIAEN, Olivier. Traité de rythme, de couleur, et d’ornithologie. Vol. VII. Paris: Alphonse
Leduc, 2002. Reimpressão.
WILLS, Arthur. Organ. London: Kahn & Averill, 1997. (Yehudi Menuhin Music Guides).

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 211
PERFORMANCE E CRIAÇÃO

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 213
A contribuição entre intérprete e compositor
no processo de criação de três concertos brasileiros
para percussão
Fernando Hashimoto
Universidade Estadual de Campinas

Instrumentos de percussão são com toda certeza um dos últimos a entrarem no


repertório de concertos solistas com orquestra. Este artigo discute a contribuição entre
intérprete e compositor durante o processo composicional dos três primeiros concertos
brasileiros para percussão, compostos respectivamente por José Siqueira, Radamés
Gnattali e Eleazar de Carvalho, bem como traça um paralelo desses concertos com outros
concertos para percussão pertencentes ao repertório consagrado internacional. Devido ao
pouco material publicado sobre essas três obras, grande parte do levantamento histórico
se baseou em fontes primárias como entrevistas com os percussionistas envolvidos, e
críticas contemporâneas encontradas em jornais, revistas e programas de concerto.
Preliminarmente à apresentação desses três concertos brasileiros para percussão,
e no intuito de mapear e contextualizar o leitor, enumero alguns dos considerados
principais concertos para percussão compostos anteriormente a 1968. O primeiro concerto
para percussão foi escrito por Darius Milhaud em 1929, em Paris, e emprega um set de
percussão múltipla solista acompanhado de uma orquestra de câmara. Dedicado à Paul
Collaer, o Concerto pour Batterie et Petit Orchestre, teve sua primeira performance pela
Pro Arte Orchestre no ano de 1930, no Palais des Beaux-Arts em Bruxelas, tendo como
solista Theo Coutelier (Lesnik, 1997).
O primeiro concerto para marimba, Concertino for Marimba and Orchestra, foi
escrito pelo compositor americano Paul Creston em 1940, e foi estreado pela Orchestrette
Classique em 1940, no Carnegie Chamber Music Hall, em New York, tendo Ruth Stuber
Jeanne como solista. Na época a crítica definiu a obra como uma extravagância e um
gênero sem muitas perspectivas futuras (Kastner, 1994).
Em 1947, Darius Milhaud escreve novamente um concerto para percussão,
mas tendo agora como instrumentos solistas a marimba e o vibrafone. O Concerto for
Marimba and Vibraphone foi comissionado e estreado pelo percussionista americano Jack
Connor em 1949 com a St. Louis Symphony Orchestra (Fink, 1978). Ainda se referindo aos
concertos para percussão, é importante destacar o Concerto pour Percussion et Orchestre,
do francês André Jolivet, escrito em 1958, e o Concerto for Timpani and Orchestra de
Harold Faberman escrito em 1962, o qual teve sua primeira performance a cargo de Vic
Firth, timpanista da Boston Symphony Orchestra.
O primeiro concerto brasileiro para percussão data de 1968, e nesse período é
pertinente citar obras para instrumentos de percussão que se tornaram referência para
gerações futuras. Obras estas que foram resultado de uma cooperação extensa entre
intérprete e compositor, das quais resultaram novas grafias, explorações timbrísticas
e expansões técnicas instrumentais. Como por exemplo a obra para timpanos solo

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 215
Eight Pieces for Four Timpani de Elliott Carter, composta entre 1950-66, e o trabalho
de comissionamento e estréias da marimbista japonesa Keiko Abe, a qual realiza em
04 de outubro de 1968, em Tokyo, o considerado “primeiro” recital de marimba como
instrumento solista. O programa incluiu obras de Akira Yuyama, Divertimento for Marimba
and Alto Saxophone (1968), de Minoru Miki, Time for Marimba (1968), de Teruyuki Noda,
Quintetto per Marimba, 3 Flauti e Contrabasso “Matinnata” (1968). (Kite, 2007) Outras
obras para percussão nesse período que merecem citação incluem The King of Denmark
de Morton Feldman, de 1964, Circles composta por Luciano Berio em 1960, e Persephassa,
escrita em 1969 por Iannis Xenakis.

Primeiros Concertos Brasileiros para Percussão


Em 1968, Eleazar de Carvalho escreve a obra Variações Sobre Duas Séries para
Percussão e Orquestra de Cordas, em um caso de cooperação única com o percussionista
americano Richard O‘Donnell. Regente da St. Louis Symphony Orchestra, Carvalho solicita
ao percussionista da orquestra, O’Donnell, para escrever uma cadência para percussão
sobre a qual Carvalho escreve seu concerto para percussão. A obra foi estreada em
1969 pela Saint Louis Symphony Orchestra, no Powell Hall, tendo como solista Richard
O’Donnell, e com regência do próprio compositor (Hashimoto, 2008).
O compositor foi surpreendido ao receber a cadência de O’Donnell, uma vez
que o percussionista utilizou em seu set alguns instrumentos com altura definida, bem
como utilizou uma notação gráfica e proporcional muito semelhante à empregada por
Stockhausen em sua obra Zyklus Nr. 9.
O set de instrumentos utilizados na cadência é enorme, sendo que muitos
instrumentos foram construídos pelo próprio percussionista. A instrumentação inclui:
tam-tam amplificado, steel drum (com extensão de G3-B4), bombo, 5 temple blocks, 4 slit
drums, boo-bams (afinados cromaticamente com extensão de E2-F3, e construídos com
canos de PVC de 3 polegadas de diâmetro e fechados somente por um lado com peles
plásticas regulares de tambor; o comprimento do casco determina a altura desejada),
1 tímpano (B2-G3), prato suspenso, cuíca, bell-tree, 1 pequeno tam-tam, caixa-clara, 5
cowbells, wood-chimes, metal-chimes, cluster-hanging cowbells, picolo wood-blocks
cromáticos, 4 timp-toms (tambores de duas peles com o casco feito de tubos de papel
cartão duro, com 8 polegadas de diâmetro e 6 polegadas de comprimento), triângulo,
pandeiro, talking drum, flexatone, 4 tuilis (similares a grandes wood-blocks; com relação
ao timbre estão entre o som de wood-blocks e temple-blocks). Eleazar adicionou ao set
original da cadência xilofone, vibrafone, glockenspiel, marimba de 4.6 oitavas (F2-C7) e 2
pratos suspensos. Para ilustrar melhor, veja a Figura 1 com a disposição do set sugerida
pelo autor após estudo interpretativo.

216 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Figura 1. Set sugerido pelo autor.

A utilização de instrumentos com altura definida obrigou o compositor a adaptar


partes desta ao material utilizado na orquestra de cordas. Eleazar estabeleceu duas séries
dodecafônicas como material composicional básico de sua obra, e em alguns trechos ele
alterou ou permutou notas da parte de percussão com notas das séries empregadas. O
compositor ainda teve que acomodar a notação tradicional utilizada nas cordas com a
notação gráfica e proporcional da parte de percussão. A solução encontrada foi determinar
o andamento da parte de cordas em concordância com a organização de tempo da escrita
gráfica, como mostra a Figura 2.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 217
Figura 2. Variações sobre Duas Séries para Percussão e Orquestra de Cordas, Eleazar de Carvalho –
partes de viola, percussão solista e cello, compassos 65-67.

Eleazar utilizou na obra três distintos procedimentos composicionais: 1. notação


tradicional para todas as partes de cordas e em algumas seções na parte de percussão
solista; 2. notação gráfica e proporcional em algumas seções da parte de percussão solista;
e 3. recortando e colando literalmente partes da cadência na partitura.
De certo modo, podemos considerar o caso do concerto de Eleazar como um
extremo exemplo de cooperação entre intérprete e compositor, onde fica até mesmo em
questão a possível co-autoria da obra. Ao ser perguntado pelo autor sobre a idéia de co-
autoria na obra, O’Donnell respondeu tranquilamente que a obra é de Eleazar, e que toda
a idéia geral da obra e a fusão das partes foi realizada por Eleazar, segundo O’Donnell ele
somente forneceu a cadência (O’Donnell, 2007).
O segundo concerto brasileiro para percussão foi escrito por Radamés Gnattali em
1973. O Divertimento para Marimbafone e Orquestra de Cordas é dedicado ao percussionista
Luiz D’Anunciação. A estréia da obra foi realizada pela Orquestra Sinfônica Brasileira, regida
por Chleo Goulart, em 1976, tendo como solista o próprio Luiz D’Anunciação. Escrita em
um movimento contínuo, possui três seções, e a cadência, escrita por Luiz D’Anunciação,
serve como ligação da primeira com a segunda seção. Tem duração aproximada de 12
minutos. A primeira gravação ocorreu em 1977, em disco da II Bienal da Música Brasileira
Contemporânea, com execução da Camerata da Universidade Gama Filho, regida pelo
maestro Isaac Karabtchevsky, e tendo como solista D’Anunciação.
Semelhante ao concerto de Eleazar de Carvalho, o concerto para marimba nasceu
da convivência diária entre Gnattali e D’Anunciação. Neste caso o percussionista estimulou
o compositor a escrever uma obra para um instrumento ainda inusitado na época, e o
compositor, após a composição da obra, pediu para D’Anunciação escrever a cadência
de marimba do concerto (Hashimoto, 2003). Luiz D’Anunciação relata como ocorreu o
processo de composição da obra:

218 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Nós trabalhávamos na Globo, éramos eu, o Radamés, e o Mário Tavares que
fazia a regência do trabalho, e outros. O fato é que naquele tempo, pela falta de
repertório, eu comecei a fazer algumas transcrições para a marimba. Eu estava
trabalhando uma peça do Radamés, que é o Moto-Contínuo nº 1, uma peça para
piano que eu comecei a transcrever para marimba. Um dia, eu estava trabalhando
em um programa, e o Radamés estava no programa também, e no intervalo eu
fui praticar na marimba e estava vendo uns detalhes desse Moto-Contínuo, e
de repente ele apareceu. Ele ficou me olhando praticar a peça dele, e comecei
a perguntar se estava bom, se eu poderia fazer algumas alterações. E ele me
olhando, olhando. De repente ele disse: se eu soubesse como, eu escreveria
um concerto para você. Eu prontamente respondi: é só querer! Aí ele disse que
não sabia tocar marimba e que ficaria difícil, e eu disse a ele que pensasse no
piano tocado com somente quatro dedos e que depois a gente iria discutir. O
tempo passou, e estou eu em casa um certo dia e ele me telefona dizendo que
a música estava pronta. Eu logo relacionei com alguma orquestração da Globo,
e disse a ele que estava tudo certo, que eu não havia pedido para ele fazer
nenhum programa e que o material já estava com o copista. Então ele me disse
que a música para marimba estava pronta. Eu nem acreditei, e fui na mesma
hora buscar. No mesmo dia começamos a trabalhar a peça, ver alguns detalhes.
Ele escreveu para a marimba que eu tinha, uma Deagan de quatro oitavas, e ele
usou da primeira a última nota. Em uma das minhas idas aos Estados Unidos
para estudar na universidade, eu mostrei a peça ao [John] Galm. Ele me disse
que a peça era muito bem feita, mas sugeriu que o compositor incluísse uma
cadência para colocar a peça num outro status. Assim que voltei pro Rio eu contei
o acontecido pro Radamés que concordou prontamente. Só que o Radamés disse
que eu é que deveria fazer a cadência. No início eu relutei um pouco porque
a peça era dele, mas no final aceitei e como já conhecia bem a peça escrevi a
cadência. Quando terminei eu mostrei pro Radamés, e ele disse: essa eu assino!
(D’Anunciação, 2002)

Esse processo de cooperação também pode ser visto em concertos anteriores ao de


Eleazar e Gnattali. A composição do concerto para marimba e vibrafone de Darius Milhaud
se deve em grande parte ao esforço imenso do percussionista americano Jack Connor. Ao
comissionar a obra, Connor ouviu de Milhaud que não acreditava que a marimba ou o
vibrafone pudessem ser bem recebidos como instrumentos solistas, e que ele não tinha
interesse em escrever um concerto para esses instrumentos. Deste modo, Connor se
empenhou ao máximo para convencer Milhaud a compor a obra. Connor frequentemente
visitava o compositor onde nesses encontros tocava trechos de obras e adaptações para
o instrumento. Após um longo periodo de comissionamento Milhaud compôs uma obra
onde vários procedimentos encontrados nela são resultados diretos dessa proximidade
com o intérprete. Milhaud utilizou mais de uma dezena de tipos de indicações de baquetas
durante a obra, bem como a utilização dos dedos nas teclas do instrumento e o uso do
cabo da baqueta para explorar novas sonoridades do instrumento (Fink, 1978).
O Concertino para Tímpanos e Orquestra de Câmara de José Siqueira foi escrito
em 1976. A obra possui duração aproximada de 14 minutos e é estruturada em três
movimentos: I. Cadência – Devagar, II. Ciranda, III. Dança Regional. Foi estreado somente

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 219
em 26 de novembro de 1981, na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, executado pela
Orquestra de Câmara do Brasil, com a regência do próprio José Siqueira, e tendo como
solista o percussionista americano Gary Diperna (Diperna, 2011).
Em 2001, durante pesquisa sobre os concertos brasileiros para percussão, procurei
o material original do concertino de Siqueira. Encontrei parte do material original no acervo
do compositor no Rio de Janeiro. As partes de orquestra e a partitura estavam em estado
legível, porém a parte solista não foi encontrada. Comecei uma busca pelo músico que
tocou como solista na estréia, porém após anos de procura sem sucesso, abandonei a idéia
e me conformei com a análise do material encontrado. Porém, em 2011, encontrei o Sr.
Diperna, em uma situação completamente inusitada, através de um amigo em comum de
Boston, o percussionista Neil Grover. Ao ler os nomes na parte de baixo de uma foto tirada
dos membros de um naipe de percussão onde meu amigo recentemente havia tocado,
notei o nome de Gary Diperna. No mesmo instante perguntei ao Grover se ele o conhecia
e se possuía os contatos telefônicos. Nesse mesmo dia liguei e conversei com Diperna, o
qual mediante algumas entrevistas forneceu informações valiosas sobre a primeira e única
performance da obra, bem como forneceu cópia do programa do concerto de estréia, fotos
e a cópia da parte solista original tão procurada. Gary Diperna, que vive hoje em dia em
Massachusetts nos EUA, estudou no Boston Conservatory com Vic Firth, e foi contratado
como timpanista da Orquestra Sinfônica Brasileira entre 1979 e 1982. A parte do solista foi
levemente alterada na cadência, com anuência do compositor. Um trecho da cadência já
com as alterações pode ser vista na Figura 3.

Figura 3. Concertino para Tímpanos e Orquestra de Câmara, de José Siqueira – cadência de


tímpanos, compassos 140-155.

220 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
A Figura 4, mostra uma das poucas fotos do percussionista Gary Diperna, tirada no
dia da estréia em frente ao cartaz anunciando o concerto. Diperna está à esquerda ao lado
do solista de trompete que tocou no mesmo concerto.

Figura 4. Gary Diperna em foto tirada no dia da estréia.

Conclusão
Nota-se que em muitos obras para percussão solista escritas no século XX, a
contribuição entre compositor e intérprete é um fato constante, e podemos até mesmo
inferir que devido as especificidades da percussão, surgidas tardiamente no repertório
consagrado de concertos, compositores buscaram na consulta aos intérpretes soluções
para alcançar uma escrita idiomática em suas obras.
Fica evidente também que essa cooperação entre intérpretes e compositores
produziu toda uma nova perspectiva para as gerações posteriores a esse período. A
expansão dos instrumentos de percussão ocorrida neste período é impressionante. Se torna

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 221
impossível comparar as mudanças de notação, técnicas e de construção dos instrumentos
de percussão sofridas no último século, com relação a qualquer outro instrumento musical
utilizado na música de concerto. Nos três primeiros concertos brasileiros para percussão,
se nota, em diferentes níveis de contribuição, que essa interação entre intérprete e
compositor foi determinante no resultado final das obras.

Referências bibliográficas
D’ANUNCIAÇÃO, Luiz. Entrevista de Fernando Augusto de Almeida Hashimoto em 25 mai.,
2002, Sala Cecília Meirelles, Rio de Janeiro.
DIPERNA, Gary. Entrevista de Fernando Augusto de Almeida Hashimoto em 18 abr., 2011.
Boston, MA, EUA.
FINK, Ron. “An Interview with Jack Connor – Marimba Virtuoso”, Percussive Notes 16, nº
2, p. 26-27, Winter 1978.
HASHIMOTO, Fernando Augusto de Almeida. Análise Musical de “Estudo para
Instrumentos de Percussão”, 1953. M. Camargo Guarnieri; Primeira Peça Escrita Somente
para Instrumentos de Percussão no Brasil. Campinas, 2003. Dissertação de Mestrado.
Universidade Estadual de Campinas.
HASHIMOTO, Fernando Augusto de Almeida. Variations on Two Rows For Percussion and
Strings by Eleazar de Carvalho: a Critical Edition and Study. Tese de Doutorado. The City
University of New York, 2008.
KASTNER, Kathleen. “An Examination of the Marimba Concerti”, Percussive Notes, p. 83-
87, August 1994.
KITE, Rebecca. Keiko Abe: A Virtuosic Life. Leesburg: GP Percussion, 2007.
LESNIK, Igor. “Darius Milhaud’s Concerto for Percussion”, Percussive Notes, p. 64-67, April
1997.
O’DONNELL, Richard. Entrevista de Fernando Augusto de Almeida Hashimoto em 05 jun.,
2007. St. Louis, MO, EUA.

222 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Colaboração saxofonista-compositor na criação
musical mista: Plexus para sax tenor e eletrônica,
de Arturo Fuentes

Pedro Bittencourt
Universidade Federal do Rio de Janeiro / Université Paris VIII, França

A música mista conjuga instrumentos acústicos a dispositivos eletrônicos diversos,


sejam eles fixos (fita magnética, arquivos digitais), sejam eles transformações ao vivo (mais
citado como em “tempo real”), com difusão através de caixas de som. A música mista repre-
senta hoje um terreno fértil para a criação musical, tendo em vista alguns fatores como a sua
curta história, o crescente interesse dos músicos e do público, os avanços na tecnologia digital
e a democratização da informática musical. A parte eletrônica da música mista se encontra
atualmente muitas vezes estratificada numa “pletora de objetos informáticos” (Vaggione,
2010), com múltiplas configurações e interações em tempo real e em tempo diferido.
O saxofone foi inventado há menos de 200 anos, sendo portanto um instrumento
bastante recente, se comparado à outros da mesma família (madeiras). O seu repertório se
encontra em expansão, como uma conseqüência da disseminação de suas técnicas exten-
didas em diferentes estilos musicais e em diversas instituições de ensino (conservatórios,
universidades). Desde o primeiro estudo de fundo sobre essas possibilidades expressivas
(Kientzy, 1990), a utilização dessas novas sonoridades pelas novas gerações de saxofonistas
têm crescido consideravelmente. Esse aumento da “paleta” sonora do sax muitas vezes
ocorre dentro do repertório da música mista, onde a eletrônica também possibilita novas
perspectivas sonoras aos músicos e ao público.
Na nossa abordagem, as fontes sonoras na música mista não pertencem à “dois
mundos diferentes”, ou mesmo à duas fontes sonoras antagônicas, como já foi proposto por
musicólogos franceses (respectivamente, Tiffon, 1994 e Lallite, 2006). No saxofone podemos
produzir sons múltiplos bastante complexos que se aproximam de sonoridades produzidas
eletronicamente, assim como hoje é possível sintetizar sons de instrumentos acústicos a
ponto de não diferenciarmos o real do artificial. Nós consideramos essas fontes sonoras
(acústica e eletrônica) como complementares. Nosso interesse é na articulação dos dois, em
investigar como a colaboração entre um instrumentista e um compositor pode se tornar um
intercâmbio de competências produtivo na música. Esse trabalho participativo ­— que de
certa maneira pode ser considerado como uma “cumplicidade” entre os músicos — pode
abrir um verdadeiro celeiro de explorações e descobertas sonoras. Na nossa pesquisa, tanto
o compositor quanto o saxofonista são considerados como intérpretes das obras musicais
em questão. Vale ressaltar entretanto que a autoria continua sendo exclusivamente dos
compositores, não há “co-autoria” por parte do instrumentista.
Nos limites desse artigo, propomos que a participação de um saxofonista no pro-
cesso criativo e interpretativo de uma peça mista, desde a concepção até a realização,
seja um diferencial para otimizá-la, e que o instrumentista tenha um papel criativo ao

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 223
assistir o trabalho do compositor. Tomamos como exemplo Plexus (2009) para sax tenor
e eletrônica do compositor Arturo Fuentes (1975-), que foi estreada no projeto ENLARGE
YOUR SAX (sax, eletrônica e imagens digitais) na sala de concertos Kubus_ZKM (Karlsruhe,
Alemanha) em 26 de fevereiro de 2010. A peça foi gravada ao vivo nessa ocasião e poste-
riormente em estúdio (ZKM, fevereiro de 2011), para integrar futuramente os anexos da
tese de doutorado em andamento (Universidade Paris 8, França) e os arquivos do ZKM no
projeto europeu Media Art Base (<www.mediaartbase.de>). Plexus foi também interpre-
tada ao vivo em outras ocasiões (Festival Primavera en La Habana-Cuba, Festival Visiones
Sonoras –México, Ibrasotope e Sesc pompéia — São Paulo). Alguns trechos de gravações
de Plexus podem ser ouvidos nos links <http://soundcloud.com/pedro-bittencourt-sax> e
<http://pedrobittencourt.info>.

Colaboração saxofonista-compositor em Plexus


O compositor mexicano e residente na Áustria Arturo Fuentes (1975-) quis explorar
desde o início possibilidades de articulação entre diversas técnicas extendidas no sax tenor,
especialmente sons eólios (sons de sopros, ou “vento”, com ou sem altura definida) e “var-
reduras” de harmônicos (variações de um som obtido com mesma digitação e diferentes
combinações de embocadura). Antes de escrever Plexus, o compositor pediu auxílio para
a revisão de uma outra obra sua, Antecedente X (2007), originalmente para sax alto, piano
et percussão. A ideia de articular e de sobrepor camadas de ruídos de chaves, sons eólios
e harmônicos poderiam dar melhores resultados no sax tenor, por ser mais grave do que
o sax alto, e assim foi feita a adaptação, que consistiu no embrião da colaboração para a
nova peça, Plexus.
Em seguida foram realizadas duas longas seções de gravações áudio e vídeo com
improvisações no sax tenor, dirigidas pelo compositor. A partir dessas improvisações,
muitas partes da peça foram construídas, e representações gráficas foram propostas pelo
compositor para indicar as improvisações dirigidas da partitura, como veremos nas figuras
abaixo. O compositor optou pro escrever primeiro a partitura para sax integralmente, e a
parte eletrônica foi elaborada posteriormente, para ser executada em tempo real (sem
partes pré-gravadas), embora um trabalho de pesquisa das sonoridades produzidas deva
ser realizado nos ensaios.
Foram exploradas formas de obtenção dos harmônicos no sax tenor. Começamos
pela nota mais grave, um Sib escrito (Láb 1, nota real) nas mais variadas nuances, com
possibilidades de trêmulos e trilos. Durante as improvisações, notamos que os harmôni-
cos mais agudos a serem obtidos (estáveis ou em glissando) quando tocados pianissimo
também geravam sons eólios e ruídos brancos intermediários, que foram posteriormente
explorados ao longo da peça, em diversos registros do sax. A obtenção dessa sonoridade
(harmônico mais agudo possível, sons eólios e freqüências intermediárias) foi acidental: o
saxofonista buscava atingir sons cada vez mais agudos, diminuindo a nuance, até o ponto de
tornar audíveis ao mesmo tempo o agudo em glissando e também os sons intermediários
(chamados “intrusos”), que o compositor adotou como um efeito desejável na parte final da
sua peça. Não fosse pelas gravações realizadas pelo compositor durante as improvisações,
o saxofonista talvez não acreditasse que tal efeito seria possível. O controle do fluxo do ar
deve ser minucioso, a embocadura nunca crispada em demasia. A nuance deve ser bem
piano, senão não seria possível ouvir todos os sons simultaneamente.

224 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Fig. 1. Longo glissando (em torno de 20 segundos), os sons mais agudos obtidos com harmônicos do Sib (a
nota mais grave no sax tenor). Os sons “intrusos” não estão escritos na partitura, mas podem ser ouvidos.

Foram superpostos sons eólios com ruídos de chaves, que puderam ser “preenchi-
dos” de sons normais do sax pouco a pouco (os pontilhados na partitura indicam mudanças
graduais) e pontuados de slaps (sons curtos e percussivos, obtidos por uma ventosa da língua
golpeando a palheta, indicados como pizzicato ou simplesmente “slap” na partitura). Para
um melhor equilíbrio das nuances e conforto no fraseado, a digitação dos sons de chaves
(indicados com “x”) ficam ao critério do saxofonista, sempre respeitando a métrica e a direção
(agudo/grave). A proposta do compositor era de alternar mão direita com mão esquerda,
mas dessa forma seria difícil controlar as nuances. O saxofonista pode então escolher as
notas exatas para que o controle da nuance seja bem realizado, e nesses momentos (sons
eólios com ruídos de chaves) não houve improvisação. Assim pode ser obtida uma espécie
de polifonia de sons extendidos, “idiomática” e confortável a ser executada apesar da com-
plexidade sonora. Em outras partes, o compositor deixa livre o saxofonista pra escolher as
notas improvisadas, indicando a direção (ascendente/descendente) e a região a ser tocada,
no que ele denominou “velato” (Figura 2).

Fig. 2 Exemplo de “Velato” (improvisações de notas dirigidas)

Fig 3. Ruídos de chaves e sons eólios simultâneos, com súbitos slaps.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 225
Na figura 3 podemos observar como ruídos de chaves são utilizados com sons eólios
e articulados por slaps. Na figura 4 apresentamos outro exemplo de sons eólios combinados
com ruídos de chaves, dessa vez com varredura de harmônicos em glissando ascendente.

Fig.4. Exemplo de glissandos de harmônicos com ruídos de chaves

Como vemos na Figura 5, a peça apresenta transformações graduais e de certa


forma reflexiva (ou mesmo “elástica”), como uma respiração.

Fig.5. Transformações reflexivas e graduais de altura, sons eólios em sons normais e nuance (p – f).

A parte eletrônica de Plexus (Figura 6) foi escrita no aplicativo Max-MSP. O patch de


Plexus consiste em uma série de quatro granuladores (módulos 1 a 4) e quatro moduladores
de freqüências (módulos 5 a 8), todos individualmente controláveis, e que transformam em
diferentes escalas temporais diferentes regiões do espectro sonoro em tempo real. Nenhum
som pré-gravado é utilizado na versão atual, apesar de na parte de baixo e à direita do
Patch haver um controle para “sound files” que foi usado apenas na estreia e abandonado
em seguida, pois os resultados não foram satisfatórios). O compositor previu que sejam
memorizadas diferentes configurações (pre-sets) com diversas disposições dos granuladores/
moduladores, que podem produzir diversas respostas aos sons produzidos pelo saxofone,
sempre modificando, complementando ou enriquecendo os timbres produzidos(ouvir as
diferentes versões em <http://soundcloud.com/pedro-bittencourt-sax> e <http://pedro-
bittencourt.info>). O Patch permite uma abertura à diversas versões a serem realizadas
pelos seus intérpretes, além de poder se comportar e se adaptar a diferentes acústicas de

226 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
salas de concerto. No clímax da peça, na parte final (Figura 7), a eletrônica reforça os sons
agressivos do saxofone (slaps, frulatos, growl), sempre seguindo a ideia principal de trabalhar
gradualmente as técnicas extendidas e fusionar o instrumento acústico à eletrônica.

Fig.6. Janela principal da parte eletrônica (Patch) Max-Msp de Plexus.

Fig.7. Parte final da peça, após clímax do glissando agudo. Os pontos indicam acentos (ataques secos).

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 227
Considerações finais
As experiências realizadas para a composição e interpretação de Plexus mostram
como a colaboração de um saxofonista com um compositor podem resultar em novas
combinações de técnicas extendidas, que não se encontram necessariamente descritas e
exemplificadas em métodos de referência do saxofone (Londeix, 1989), nem estão ao alcance
de musicólogos, que não acompanham as escolhas feitas durante o processo criativo, que
pode incluir a improvisação e também erros qeu podem ser adotados de forma criativa.
Alguns efeitos que surgem durante o trabalho em conjunto nem estão devidamente ano-
tados na partitura. Assim, a comunicação oral durante esse processo é fundamental para
uma boa performance da peça. A versão final da partitura em muitos momentos permite
improvisações dirigidas do instrumentista, para que elas sejam idiomáticas, à vontade para
cada instrumentista. O objetivo é que os efeitos desejáveis funcionem, e que haja um maior
controle dos instrumentistas para uma melhor integração da parte eletrônica. Isso não quer
dizer que uma morfologia geral não deva ser respeitada (intervalos ascendentes, descen-
dentes, limites de alturas, etc). A interpretação de Plexus é construída pelo saxofonista e
pelo compositor, em conjunto. Podemos afirmar que através desse trabalho colaborativo
houve uma otimização do processo criativo musical. Tanto o saxofonista quanto o compo-
sitor (que operou a parte eletrônica e que tem a “última palavra” em relação às escolhas
feitas) dividem a interpretação de Plexus, que a cada performance contou com diferentes
configurações, que continuarão a ser modificadas por outros intérpretes da parte eletrônica.
O fato do saxofonista ter participado ativamente na produção da peça em questão implica
numa visão dinâmica do processo criativo, que pode ser continuado e atualizado.

Referências bibliográficas
KIENTZY, Daniel. Du potentiel acoustico-expressif des 7 saxophones. Tese de doutorado,
Université Paris 8, Ed. Nova Musica, 1990
LALITTE, Philippe. “Towards a semiotic model of mixed music analysis”. Organised Sound,
v.11, n. 2, Cambridge University Press, p. 93-100, 2006.
LONDEIX, Jean-Marie (1989) Hello Mr. Sax, ed. Leduc, Paris
TIFFON, Vincent. Recherches sur les musiques mixtes, tese de doutorado, Université Aix
en Provence, 1994.
VAGGIONE, Horacio. “Représentations musicales numériques: temporalités, objets, contex-
tes”. In: SOULEZ, A., VAGGIONE, H, (org.), Manières de faire des sons. Paris: L’Harmattan,
2010, p. 45-82.

228 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Vozes da Voz: a trajetória de Fátima Miranda*1

Wânia Mara Agostini Storolli


Universidade de São Paulo

A voz tem desempenhado papel fundamental como condutora de diversos processos


de criação artística a partir da exploração de seus diversos registros, de diferentes formas de
emissão e da investigação dos inúmeros sons que é capaz de produzir. Sobretudo desde o
século XX, a voz é revelada enquanto possibilidade sonora. Os processos de experimentação
incentivam a redescoberta da enorme gama de sons vocais, ativando formas de expressão
naturais da voz humana, trazendo à tona aspectos por vezes adormecidos pelas limitações
das línguas faladas no cotidiano. Como material sonoro a ser transformado, a voz incorpora
influências do meio, representando uma possibilidade de fusão de culturas, suas línguas e
sons. A redescoberta das possibilidades da voz gera desdobramentos junto aos processos
de criação e influencia continuamente o surgimento de novas estéticas. Nas diversas mani-
festações em que está presente, na música, no teatro e na poesia experimental, surgem
novos parâmetros vocais, para os quais são determinantes os movimentos das vanguardas
artísticas do início do século XX. Muitos são os artistas que se dedicam a descobrir a voz
enquanto linguagem, podendo-se citar, entre outros, Demetrio Stratos, Joan La Barbara,
David Moss, Diamanda Galás, Meredith Monk e Fátima Miranda. No contexto da contem-
poraneidade observa-se como algumas artistas, a partir de um processo de investigação
da voz, conseguem afirmar-se como artistas criadoras de linguagens singulares. Natural de
Salamanca, na Espanha, a criadora e performer Fátima Miranda, é uma das artistas que
faz da voz o principal elemento propulsor de seu processo criativo. Este estudo relata a
trajetória desta artista singular, observando especificamente como sua linguagem musical
resulta de seu processo de experimentação com a voz, além de ressaltar a importância de
sua performance. Como metodologia procede-se à apreciação de obras gravadas e regis-
tros de imagem, incluindo-se parcialmente dados da entrevista recentemente concedida
por Fátima Miranda a esta autora, assim como impressões sobre sua última performance
PerVERSIONES. A pesquisa também se fundamenta em artigos de Llorenç Barber e Theda
Weber-Lucks, pretendendo-se enfatizar o fato de que o contato com outras culturas e
tradições assim como a condução de processos de experimentação têm resultado em
transformações significativas da voz no âmbito das manifestações artísticas.

Estéticas de vanguarda
A produção artística de Fátima Miranda situa-se no contexto contemporâneo, numa
época de pós-vanguarda, onde a procura por novas formas e surgimento de múltiplas esté-
ticas resultam parcialmente da exploração de procedimentos apontados pelas vanguardas

*
Pesquisa de pós-doutorado realizada com o apoio da FAPESP.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 229
artísticas do século XX. Em especial, a influência das vanguardas futuristas e dadaístas do
início do século ainda se faz perceptível, já que estes movimentos foram responsáveis por
mudanças significativas na forma de se fazer arte, norteando parte da produção artística
posterior. Entre as principais transformações deflagradas por estes movimentos estão a
mudança de foco no fazer artístico – do resultado para o processo, estimulando desta forma
os processos de investigação, assim como uma crescente dissolução das fronteiras artísticas,
provocada pelo uso de uma mixagem de linguagens nas diversas manifestações e eventos
artísticos. Observa-se também uma procura por novos materiais, acompanhada pelo desejo
de aproximar arte e vida cotidiana. Na criação musical observa-se a inclusão de sons do
meio-ambiente, tidos até então como não-musicais, um procedimento estimulado também
pelo Bruitismo. Originalmente o Bruitismo (1913) é uma concepção musical do futurista
Luigi Russolo. Porém, este conceito não se restringe à música, mas também influencia o
desenvolvimento da poesia experimental, uma forma realizada principalmente por repre-
sentantes do movimento dadaísta em Zürich e que conduz ao surgimento de gêneros como
a poesia fonética e a poesia sonora, com desdobramentos até os dias atuais (Schoon, 2006,
p. 26-28). Além disso, grande parte das manifestações artísticas destas vanguardas ocorre
através de performances, onde o corpo ganha destaque, uma tendência que se expande
ainda mais nas últimas décadas do século, com o surgimento dos Happenings e da Perfor-
mance Art. Assim, a investigação do corpo, que já se tornava importante no âmbito artístico
especialmente a partir do final do século XIX, passa a ser ainda mais relevante para a geração
de processos de criação. A voz é parte deste processo de investigação e o aparelho fonador
com sua enorme gama de sons oferece-se como material sonoro, gerando novas possibili-
dades de criação. Pouco a pouco estabelece-se uma tradição de experimentação vocal, que
resulta em linguagens artísticas singulares. É a partir de um processo de experimentação e
investigação pessoal, e tendo como base um conhecimento prévio das manifestações das
vanguardas artísticas do século XX, resultante de sua formação como historiadora da arte,
que Fátima Miranda dá início a sua trajetória como criadora e performer.

Ao revés... um percurso artístico singular


“Ao revés...”, essa é a forma como Fátima Miranda descreve sua trajetória musi-
cal. Sem uma formação musical sistemática e desfrutando de liberdade e curiosidade
para investigar, Fátima Miranda começa seu percurso artístico com processos de criação e
performances. Seu aprendizado musical tem início diretamente no ambiente estimulante
e inovador da produção contemporânea através de sua própria atuação. Como ela mesma
relata: “Comecei ao revés... as pessoas começam estudando, eu comecei diretamente no
palco....” (Miranda, 2011).
Considerando-se antes de mais nada uma criadora, Fátima Miranda inicia sua trajetória
artística através da participação no grupo Taller de Música Mundana em 1979, a partir do
convite de um colega - Llorenç Barber, músico, compositor e musicólogo (Weber-Lucks, 2003,
p. 6). Com forte enfoque experimental e inspirado em John Cage, este grupo, composto na
maioria por participantes sem formação musical acadêmica, é sua escola de improvisação.
Nele Fátima Miranda tem a oportunidade de desenvolver suas primeiras pesquisas, que con-
sistem em investigar diversos materiais e suas sonoridades particulares, tais como os sons da
água, das pedras, do papel. O grupo Taller de Música Mundana apresenta, por exemplo, um
concerto com sons de papel e posteriormente até mesmo uma ópera composta apenas com
este material. Na Opera para papel o grupo faz uso de sons produzidos por diferentes tipos

230 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
de papel (celofane, papel de seda, jornais, papelão, papel de alumínio, etc) juntamente com
um trabalho de cena, luzes e até mesmo odores, provenientes da queima de papel realizada
durante a própria performance. O resultado sonoro resulta principalmente “da interação
entre os participantes, da reação sensível ao estímulo do outro, compondo um processo de
trabalho coletivo e improvisacional” onde, segundo Fátima Miranda, “todos sabem o que
vão fazer, mas não como vão fazer”, o que é determinado pelo momento, pelo espaço e pela
atmosfera do local (Nauck, 1996, p. 26). Em 1996, a Opera para Papel chegou a ser encenada
no espaço Podewil em Berlin, porém o grupo Taller de Música Mundana caracteriza-se por
apresentar suas performances em locais diferenciados, muitas vezes em espaços públicos, tais
como jardins e parques. O trabalho neste grupo desperta Fátima Miranda para um percurso de
investigações sonoras. A voz é no início apenas uma entre outras fontes sonoras pesquisadas,
como a própria Fátima Miranda relata:

Comecei a ensaiar com objetos encontrados. Com uma atitude muito dada,
muito dadaísta. Eu ensaiava com metais, com tubos de plásticos, com conchas,
com cornetas, com papel, papelão, plástico, panelas, pedras, tudo o que en-
contrava... eu improvisava com pedaços de bambu, pedaços de madeira... E foi
nestes ensaios, que motivada pelos ritmos e pelo trabalho que se fazia, que a
voz saiu como uma reação, mas sem buscá-la...eu não buscava. Na realidade
foi o contrário, eu trabalhava de maneira orgânica, trabalhava com sons e a voz
saia como consequência disto...Claro, como eu não sabia cantar, a voz saia de
uma maneira singular...Há uma frase muito bonita de Santo Agostinho: eu não a
teria buscado, se não a tivesse encontrado... Eu não busquei a voz, a encontrei”
(Miranda, 2011).

Assim, estimulada por sua atividade neste grupo, Fátima Miranda começa a trilhar
um caminho não planejado, ditado “pela própria vida”, através de encontros especiais, que
possibilitam a descoberta e desenvolvimento de seus recursos vocais. Seja pelo antigo desejo
de querer estudar um instrumento, seja pela potencialidade natural até então insuspeitada
de sua voz, Fátima Miranda passa a ser guiada por suas inúmeras vozes, tornando-se não
apenas uma cantora, mas uma performer e criadora que faz da voz uma arte.
O início da atividade artística de Fátima Miranda junto ao grupo Taller de Música
Mundana é um período de pesquisas e descobertas, funcionando como uma escola que
privilegia a investigação e a criatividade, que não impõe caminhos, mas que deixa seus
participantes encontrá-los. A improvisação livre é a base deste trabalho. Não há limites, mas
eventualmente algumas propostas. Por exemplo: o grupo decide fazer um concerto com
água, vento e pedras. Sem outras indicações ou restrições sobre o que fazer ou não fazer,
os limites são determinados pelos materiais escolhidos. O material sonoro, o jogo entre os
participantes e uma audição sensível orientam a realização destes concertos, assim como
a relação com o espaço onde se realizam. Se, para um músico tradicional a improvisação é
muitas vezes uma entre outras estratégias, para Fátima Miranda representa sua atividade
musical inicial e torna-se fundamental, na medida em que é capaz de gerar um processo de
estudos e pesquisas pessoais. A partir de seu envolvimento junto ao grupo Taller de Música
Mundana e também estimulada pela relevância que sua voz passa a ter, Fátima Miranda
começa a aprimorar o conhecimento de seu aparato vocal através de aulas de canto. Sem
nunca ter pretendido “trabalhar com a voz, nem ser artista, nem cantora, nem atriz”, sua

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 231
carreira artística surge como uma surpresa para ela mesma, revelando sua potencialidade
incomum como artista e criadora (Miranda, 2011). Em 1986 Fátima Miranda cria junta-
mente com Llorenç Barber o grupo de poesia fonética Flatus Vocis Trío. Assim, descobre
a fala como música, enriquecendo ainda mais sua pesquisa vocal. Deste trabalho provém,
segundo Llorenç Barber, “as inúmeras personagens que sua voz desenha com toques de
ironia e suas falas diferentes, de verdureiros a anjos” (Barber, 2000, p. 9).

Dissoluções de fronteiras e PerVersões


Assim como uma parcela da produção artística contemporânea, o trabalho de Fátima
Miranda orienta-se a partir de uma mixagem de linguagens, em que a performance é funda-
mental, abrangendo não somente a voz, como também a movimentação, os cenários, luzes
e figurinos, onde cada elemento é detalhadamente pensado e planejado. A voz é o território
de Fátima Miranda, uma voz que atravessa as diversas linguagens, trazendo personagens
diversos e fundindo diferentes tradições musicais através de um registro vocal privilegiado de
quatro oitavas. Em seu trabalho, as fronteiras entre as linguagens se interpõem, “entre o que
é música, canto, performance, poesia em geral, poesia fonética, composição, interpretação.
São fronteiras muito sutis, praticamente não existem...” (Miranda, 2011). Tudo, no entanto,
parece originar-se na voz. Se primeiro houve a descoberta dos inúmeros sons que pode
realizar com a voz, houve também uma intensa disciplina por parte de Fátima Miranda para
catalogar seus sons vocais. Descobrir a diversidade de sons vocais é o primeiro passo, mas
o que fazer com eles, como organizar o material sonoro, constitui um caminho de trabalho
árduo. A voz é sem dúvida o centro do processo criativo de Fátima Miranda, porém, como
ela mesma afirma, “há um componente poético tão importante” em seu trabalho, pois
“está tudo muito pensado...está tudo muito medido”. A dramaturgia surge portanto como
um componente fundamental, entrelaçando as criações e organizando as performances.
Há um diálogo contínuo entre as vozes de Fátima Miranda e as performances que estas
podem gerar, os contextos e personagens que podem criar. Estes por sua vez estimulam a
geração de outras vozes, tornando as fronteiras entre criação e performance indefinidas.
Se as vozes sugerem um contexto, a dramaturgia idealizada conduz também à descoberta
de outras vozes, uma intrincada trama onde os fios se confundem.
A voz de Fátima Miranda transforma-se pouco a pouco numa espécie de amálgama,
incorporando influências de tradições musicais do ocidente e do oriente, que ela procura
com determinação. Primeiramente tem aulas de canto com a soprano japonesa Yumi Nara
(1987-1988) e canto difônico mongol com Tran Quang Haï, ambos em Paris. A estadia em
Paris, que ao contrário de uma Espanha defasada culturalmente devido às imposições do
regime de Franco, oferecia uma vida cultural intensa, repleta de eventos artísticos prove-
nientes de diversas tradições e povos, também é determinante para a formação da artista,
despertando seu interesse pelo canto clássico do norte da Índia. Decidindo ir para a Índia,
Fátima Miranda lá aprende o canto Dhrupad com a família Dagar (1989-1990). Mas, nesta
estadia, o mais importante não é a assimilação de uma nova técnica, sua intenção inicial.
A estadia revela-se antes como um aprendizado de vida, de extrema disciplina, que requer
dela exercícios diários como acordar antes do nascer do sol e entoar por duas horas o som
mais grave possível. Também através do canto Dhrupad sua percepção auditiva torna-se
mais aguçada. É a partir desta mistura de influências e tradições de canto, combinada com
uma pesquisa vocal e uma potencialidade dramática natural, que surge a primeira obra indi-
vidual de Fátima Miranda – Las Voces de la Voz (1991), título que expressa claramente o seu

232 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
trabalho vocal, que revela as muitas vozes que uma voz carrega. Nesta e nas próximas obras
a voz de Fátima Miranda não é apenas canto ou fala, mas é capaz de transitar por diversas
tradições e linguagens, pela música, pela poesia, pela arte sonora, fundindo não somente
as técnicas aprendidas, mas também as desenvolvidas por ela. Em 1994 surge Concierto
en Canto, com composições que revelam claramente a influência do canto Dhrupad como
Dhrupad Dreams, espécie de meditação sonora em que as diversas vozes criadas por Fátima
Miranda e gravadas em cinco pistas diferentes circulam em torno de um som contínuo. Mas
também há obras como El Principio del Fin, em que um texto é repetido inúmeras vezes,
revelando as complexas relações entre meninas e meninos, mulheres e homens. A peça
é construída a partir da correspondência entre fonemas e palavras do texto em espanhol
e o ritmo da tala indiana, trazendo na performance uma gestualidade e coreografia que,
realizadas com muito humor, permitem a apreciação das diversas vozes simultaneamente.
Em 2000 surge ArteSonado. Entre outras composições, esta obra traz Desasosiego, uma
peça que revela, através de um denso entrelaçamento de doze vozes, o cruzamento dos
caminhos entre oriente e ocidente. Em 2005 Fátima Miranda estréia o espetáculo Cantos
Robados. Entre Salamanca, cidade natal de Fátima Miranda e Samarkanda, a caminho da
Índia, onde aprofunda seus conhecimentos musicais, entre ocidente e oriente, entre tradição
e avant-garde, reside a essência deste espetáculo.

Figura 1. Cantos Robados (Foto: Juanjo Delgado)

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 233
Imitar e copiar é indigno. Roubar, apropriar-se das fontes para poder integrá-las,
digerir e esquecer, transcendendo-as e transformando-as em outra coisa, pode
pelo contrário levar a uma arte original, uma arte sem artifícios. A obra de arte
só pode ser o resultado de um processo: nem se cria, nem se elege. Está tudo
lá. As musas não existem, o novo, tanto na arte como na ciência, é um segredo
aberto à espera de ser revelado (In: <www.fatima-miranda.com>).

O processo criativo de Fátima Miranda envolve muitas vezes uma espécie de jogo
com as palavras, o que se observa também nos títulos de suas composições e performances.
Em 2011, estréia PerVERSIONES. Performance estruturada em sete partes ou atmosferas, é
o primeiro espetáculo em que Fátima Miranda apresenta canções de outros compositores,
hits consagrados, canções de uma vida inteira. PerVERSIONES como projeto seria talvez o
primeiro, anterior a todos os outros projetos de Fátima Miranda. Ao realizá-lo neste período
de maturidade artística, após ter desenvolvido sua linguagem musical, o espetáculo adquire
contornos bastante pessoais trazendo uma reinvenção de cada canção escolhida. O espe-
táculo inclui temas tanto introspectivos como extrovertidos, cotidianos ou sagrados. Assim,
a primeira parte da performance apresenta o tema Deuses, Preces e Perguntas e tem início
com Fátima Miranda girando em torno de si mesma, executando o giro sagrado dos Derviches
em meio a um cenário representando o espaço, repleto de estrelas. A primeira canção de
autor anônimo é Salmo Copto. Neste espetáculo, Fátima Miranda, acompanhada apenas
por um pianista, faz um percurso através das canções mais diversas, trazendo não apenas
uma nova versão de composições consagradas como Cry me a River (Arthur Hamilton) e
Chega de Saudade (Antonio Carlos Jobim), mas procedendo a sua reconstrução. Com fina
ironia e humor Fátima Miranda as perverte. Em Cry me a River há o exagero vocal e de
sentimentos, deixando-se aflorar o aspecto melodramático e uma voz furiosa, que delineia
o sentimento que esta canção suscita. Já em Chega de Saudade, um clássico absoluto da
bossa-nova, Fátima Miranda traz irreverência e um toque de brincadeira, introduzindo
uma língua inventada e fazendo um solo de sopro com o auxílio das mãos. Interrompendo
repetida e ritmicamente o fluxo do som ao virar o rosto para os lados, como se estivesse a
mudar a estação de rádio, Fátima Miranda interrompe o fluxo da voz quebrando as palavras
em partes, para em seguida realizar a melodia com uma língua inventada. Contracenando
com o pianista Miguel Angel Alonso Mirón, Fátima Miranda finaliza a canção com uma
brincadeira de bater com as palmas das mãos, brincadeira de crianças, acompanhada pelo
verso final “não quero mais este negócio de você viver sem mim”. O repertório eclético
deste concerto congrega desde melodias medievais, ragas, lieds de Schubert, canções de
John Dowland, Erik Satie, Gabriel Fauré e Kurt Weill, até canções pop, fados, chanson, bossa-
nova e standards do jazz. Como observado no programa do concerto, realizado no Festival
de Otõno en Primavera em Madrid em maio de 2011, este repertório eclético é capaz de
criar “um mapa sem fronteiras que por sua vez dirige-se a e emerge da memória coletiva”.
Juntamente com a performance vocal, Fátima Miranda interage com o cenário, as luzes, o
figurino e a história destas canções de “toda a vida”, integrando as diversas linguagens de
modo a ofuscar suas fronteiras. Proporciona, através de suas perVERSÕES, uma experiência
única e a transformação de nossa percepção.

234 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Figura 2. PerVERSIONES (Foto: Juanjo Delgado)

Como o título perVERSIONES sugere, através desta performance Fátima Miranda


pretende revelar um sabor distinto, um outro perfume, através da execução das canções
escolhidas, propiciando ao ouvinte-espectador outra escuta, outro sentir.

A voz como arte


Juntamente com a pesquisa da voz, com a descoberta de novos sons e incorporação de
técnicas vocais diversas, que não se substituem, mas se adicionam, Fátima Miranda também
mantém um catálogo dos próprios recursos vocais, resultante das primeiras experiências nos
grupos Taller de Música Mundana e Flatus Vocis Trío. Fátima Miranda dá nomes para os sons da
voz, tais como sons de pranto e voz de cristal, um som agudíssimo que não parece humano. Para
ela, as técnicas vocais são todas compatíveis, mas o treinamento é fundamental. Não significa
apenas treinar a voz, mas também o ouvido e o corpo inteiro. A improvisação, embora fundamen-
tal para a descoberta dos sons, não é compreendida como algo que se realiza sem preparo. Ao
contrário, a liberdade gerada pela improvisação reside para Fátima Miranda em poder eleger o
que se quer fazer. Improvisar significa para ela não fazer “qualquer coisa que surja no momento”,
mas algo que resulte deste constante e árduo preparo de seu corpo como um todo.
Guia de um processo criativo muito original, a voz de Fátima Miranda revela-se como uma
linguagem artística particular, que pode também nortear todo seu processo criativo. O conheci-
mento da história da arte, a história das vanguardas artísticas do século XX são aqui fundamentais. A
influência do movimento Dada e da poesia fonética faz-se sentir claramente em suas obras. E neste
sentido, Fátima Miranda já estava preparada, ao menos conceitualmente, pelo seu conhecimento
da História da Arte. A técnica, ou melhor, as técnicas, decorrem de sua pesquisa com a própria voz.
Mas também resultam de uma procura determinada, de encontros provocados com profissionais
e artistas da voz, através do interesse pelas diversas tradições vocais, aparentemente tão distintas
quanto irreconciliáveis, mas que podem conviver nas múltiplas vozes de Fátima Miranda.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 235
Em sua obra há principalmente uma desvinculação entre palavra e sentido, a palavra
surge na maior parte das vezes enquanto som. Sua trajetória é uma busca das possibilidades
primordiais da voz. Como observa Fátima Miranda ao relatar sobre o trabalho no grupo
Flatus Vocis Trío, não existe “a pretensão de descobrir algo novo, em certa medida se volta
en-cantado às fontes” (In: <www.fatima-miranda.com>).
Este retorno às possibilidades originais da voz torna-se ainda mais curioso, por ocorrer
numa época em que a música resulta cada vez mais de sons sintetizados. Mas a voz não está
aqui procurando um caminho para imitar estes sons, muito pelo contrário, existe um desejo
de recuperar possibilidades sonoras esquecidas, qualidades inerentes aos recursos vocais, um
desejo que conduz a uma pesquisa constante e que revela uma enorme diversidade de sons,
que podem então fazer da voz uma linguagem artística. O que está em sintonia com parte
da produção musical contemporânea é a pesquisa e valorização do som enquanto material
para a criação. O movimento dos artistas da voz orienta-se no entanto a partir de um outro
pressuposto, de retorno às fontes, a uma voz que é ela própria uma linguagem.
Habitualmente se considera a voz como um instrumento, como o violino, como o fagote ou o
piano, mas a voz é muito mais . Eu falaria da arte da voz, como a arte da pintura ou da arte da música.
A voz pode ter uma dimensão enorme, pois não é somente um instrumento (Miranda, 2011).

Referências
BARBER, Llorenç. “Fátima Miranda: una voz muy particular”. In ArteSonado (Livro-Cd de
Fátima Miranda). Madrid, El Europeo Musica-52 PM, Colección LCD 19, p. 8-21, 2000.
MIRANDA, Fátima. Las Voces de la Voz. CD. Unió Músics, 1992.
MIRANDA, Fátima. Concierto em Canto. CD EEM 003. El Europeo, 1994.
MIRANDA, Fátima. ArteSonado. LCD 19. El Europeo, 2000.
MIRANDA, Fátima. Cantos Robados. DVD. 2006.
MIRANDA, Fátima. Cantos Robados. Disponível em: <http://www.fatima-miranda.com>.
Acesso em: 10.04.2011.
MIRANDA, Fátima. Sobre Flatus Vocis Trío. Disponível em: <http://www.fatima-miranda.
com>. Acesso em: 14.05.2011.
MIRANDA, Fátima. PerVERSIONES. Performance. XXVIII Festival de Otõno en Primavera.
Madrid: Teatros del Canal, 31.05.2011.
MIRANDA, Fátima. Entrevista Pessoal. Madrid, 03.06.2011.
NAUCK, Gisela. “Spanischer Minimalismus aus dem Geist von Fluxus. Die paper opera der
gruppe Taller de Música Mundana”. In: Positionen. Berlin, n.28, p. 26-28, 1996.
SCHOON, Andi. Die Ordnung der Klänge: Das Wechsespiel der Künste vom Bauhaus zum
Black Mountain College. Bielefeld: Transcript, 2006.
WEBER-LUCKS, Theda. “Schier grenzenlose Stimmkunst
Die Spanierin Fátima Miranda”. In: Musik Texte. Köln, p. 5-10, August 2003.

236 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
PERFORMANCE E ESTILO

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 237
As Bachianas Brasileiras nº6 para flauta e fagote de
Heitor Villa-Lobos: alguns aspectos interpretativos
para o fagotista

Aloysio Fagerlande
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Aspectos históricos
A partir de 1930 a pioneira e febril atividade modernista da década anterior dá lugar
a uma atividade mais ordenada, mais clássica, embora com a mesma entusiástica exploração
de temas brasileiros. Não só a música, mas vários setores da cultura brasileira, passado o
ímpeto dos anos 20, expandiram-se, com o lançamento de dicionários, enciclopédias na-
cionais, filmes brasileiros, além da fundação de orquestras e coros (Wright, 1992).
Havia também uma tendência mundial de retorno ao século XVIII, já que a música dos
períodos barroco e clássico oferecia como modelos “formas claras e concisas, tão opostas...
ao que havia de longo e complexo em [Gustav] Mahler... além disso, a música de Bach em
especial podia ser considerada um modelo de construção objetiva, e a objetividade estava
agora entre as primeiras preocupações dos artistas” (Griffiths, 1987, p. 62).
A série das Bachianas Brasileiras foi composta entre os anos de 1930 e 1945. Um
dos maiores desafios para Heitor Villa-Lobos após a fase dos Choros, entre 1920 e 1928,
foi procurar um caminho no qual pudesse objetivar a síntese do nacional com o universal.
Ele estava profundamente ligado à obra de Johann Sebastian Bach, de quem fez várias
transcrições, notadamente de peças do “Cravo Bem Temperado”, para coro ou conjunto
de violoncelos. Também estaria estimulado pelas afinidades que acreditava existir entre
as composições de Bach e a música popular e folclórica brasileira, em que cada parte in-
strumental possui uma considerável autonomia melódica, segundo Luiz Heitor Correa de
Azevedo (Sadie [org], 1980, p. 765).
É igualmente interessante estabelecer uma analogia entre Villa-Lobos, Bela Bártok e
Paul Hindemith. Estes dois últimos, como bem observou Paul Griffiths, igualmente buscaram
influências do mestre do barroco alemão, e a abordagem da música barroca, para Bártok, foi
como “a da canção folclórica... profunda e analítica” (Griffiths, 1987, p. 78). Mais um ponto
em comum com Villa-Lobos, que cresceu ouvindo e tocando peças do mestre alemão, e na
juventude participava de grupos de chorões.
Vários autores, como Nóbrega, Neves e Guérios, apenas para mencionar represen-
tantes de três gerações distintas de pesquisadores, abordaram a questão da interpenetração
da música de concerto européia, representada por J.S.Bach, e a música popular urbana
carioca do início do século XX, representada principalmente pelo choro.
Tentarei demonstrar, então, como duas fontes aparentemente tão distintas con-
tribuíram para esta Bachianas Brasileiras n° 6, nosso objeto de estudo.
O próprio choro, enquanto gênero, constituiu-se basicamente através do modo de
tocar de músicos populares das danças de salão européias, em voga na virada do século

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 239
XIX para o XX1, sobretudo a polca e a mazurca. Aos poucos, o choro sedimentou-se quanto
à forma: A-B-A-C-A.
Alguns estudiosos da obra de Villa-Lobos também mencionam um paralelismo, entre
figuras melódicas tipicamente bachianas com algumas encontradas no choro.
Segundo Ademar Nóbrega,

Nos choros de Pixinguinha, de Callado ou de Chiquinha Gonzaga, são encontráveis


desenhos e procedimentos bachianos, como a escrita para um instrumento
monódico dando a impressão de duas vozes, a exemplo do que ocorre nos
concertos [sic] para flauta de Bach. (Nóbrega, 1976:15)

Em seu aspecto formal, a maior parte das Bachianas pode ser considerada como
suítes, constituídas de dois, três ou quatro movimentos. É interessante observar a dupla
denominação dos movimentos: a tradicional da música de concerto e uma outra, tipicamente
brasileira, aludindo ao aspecto rítmico, melódico ou ao conteúdo expressivo.
Esta dupla denominação dos movimentos também remete à própria questão de
dualidade da série - Bach e música popular brasileira.
Em um aspecto mais amplo, a série das Bachianas Brasileiras descarta as combi-
nações instrumentais pouco comuns dos Choros, além de seus efeitos sonoros, sua com-
plexidade rítmica e seu vocabulário harmônico; a bitonalidade praticamente inexiste, e a
harmonia é predominantemente tonal.
A Bachianas Brasileiras n° 6 foi composta em 1938, sendo dedicada a dois músicos
amadores da época, Alfredo Martins Lage, flautista, e Evandro Moreira Pequeno, fagotista.
Interessante notar que é a única obra, de toda a série, para conjunto de câmara.
Villa-Lobos, em depoimento sobre a peça, disse:

“Escolhi a combinação destes dois instrumentos (flauta e fagote) para


sugerir a velha serenata brasileira para dois instrumentos e substituí o
oficlide [sic] pelo fagote, porque este instrumento está mais próximo
do espírito de Bach e quis dar a impressão de improvisação como na
serenata cantada. Esta suíte é mais ‘bachiana’ na sua forma do que
‘brasileira’.” (Palma e Chaves Jr., 1971, p. 121-122)

Como se vê, o próprio compositor sugere a instrumentação da Bachianas n°6 como


uma serenata, atribuindo ao primeiro movimento - Ária - o subtítulo de Choro, para em seguida
afirmar que sua forma está mais para Bach do que para algum outro gênero brasileiro.
Noël Devos conta que, recém-chegado ao Brasil em 1952, foi com a flautista Odette
Ernest Dias tocar a peça para Villa-Lobos, e este recomendou que “tocassem como dois
músicos em uma serenata improvisada, como que debaixo de uma sacada de casa antiga,
Apresento a seguir um quadro com a série das nove Bachianas Brasileiras:
à luz do lampião...”. 2

1
Segundo Ary Vasconcelos, o choro surge por volta de 1870 no Rio de Janeiro, inicialmente não
como um gênero, mas como um determinado tipo de conjunto musical, “um jeito brasileiro de se
tocar a música européia da época” (Vasconcelos, 1977:13).
2
Comunicação pessoal, 1995.

240 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
Quadro 1
As nove Bachianas Brasileiras
Número e ano Destinação instrumental Denominação tradicional dos Denomina-
de composição movimentos ção brasile-
ira dos mo-
vimentos.
1- 1930 Orquestra de violoncelos - Introdução - Embolada
- Prelúdio - Modinha
- Fuga - Conversa

2- 1930 Orquestra - Prelúdio - O canto do


- Ária capadócio
- Dança - O canto de
- Toccata nossa terra
- Lembrança
do sertão
- O trenzinho
do caipira
3- 1938 Piano e Orquestra - Prelúdio - Ponteio
- Fantasia - Devaneio
- Ária - Modinha
- Toccata - Picapau

4-- 1930 Piano (orquestrada em 1941) - Prelúdio - Introdução


- Coral - Canto do
- Ária sertão
- Dança - Cantiga
- Miudinho
5- 1938/45 Canto e Orquestra de violon- - Ária (1938) - Cantilena
celos - Dança (1945) - Martelo

6- 1938 Flauta e Fagote - Ária - Choro


- Fantasia -( )

7- 1942 Orquestra - Prelúdio - Ponteio


- Giga - Quadrilha
- Toccata caipira
- Fuga - Desafio
- Conversa
8- 1944 Orquestra - Prelúdio -( )
- Ária - Modinha
- Toccata - Catira bati-
- Fuga da
-( )
9- 1945 Orquestra de vozes ou de - Prelúdio -( )
cordas - Fuga -( )

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 241
A primeira audição da Bachianas Brasileiras n° 6 ocorreu na então Escola Nacional
de Música, atual Escola de Música da UFRJ, por ocasião do evento “Música das Américas”.
Encontrei duas datas de ocorrência: 21 de janeiro de 1945, segundo Adhemar Nóbrega
(Nóbrega, 1976:95), e 24 de setembro de 1945, segundo o catálogo “Villa-Lobos - Sua
Obra”, publicado pelo Museu Villa-Lobos. Os intérpretes dessa primeira audição foram
Hans Joachin Koelreutter, flautista, e Achiles Spernazzati, fagotista. e a obra encontra-se
editada pela Associated Music Publishers Inc. (1946), nos Estados Unidos, e no Suplemento
Musical do Boletim Latino-Americano de Música - vol. 6, do Instituto Interamericano de
Musicologia, Rio de Janeiro (1946).

Aspectos analítico-interpretativos
1º movimento: Ária (Choro)
Villa-Lobos não estabelece indicações metronômicas para nenhum movimento da
Bachianas Brasileiras nº6. Segundo sua tese de mestrado sobre o Trio do mesmo composi-
tor, defendida em 1996, Luis Carlos Justi afirma que

a anotação metronômica é importante mas não fundamental e não deve ser


tomada como imutável verdade estabelecida, mas antes como sugestão do au-
tor, de um tempo aproximado através do qual, da melhor maneira possível, se
chegaria à sua idéia ou concepção musical”. (Justi, 1996, p. 26)

A questão do correto andamento é de extrema complexidade, pois envolve uma


aproximação quase assintótica do intérprete ao texto do compositor. Tal aproximação pode
ocorrer de várias maneiras, mas talvez a mais eficiente seja a de amadurecer a peça, até
que adquira uma fluência absolutamente natural para o intérprete. Mas o que seria isto?
Provavelmente um estado de compreensão e domínio técnico do texto musical que permita
ao intérprete a melhor execução possível da obra.
O objetivo seria então chegar à verdadeira concepção musical do compositor. No
entanto, dialeticamente, pode-se sempre argumentar que não existe uma verdade absoluta
sobre a interpretação de uma obra musical, mas diferentes visões. Assim, apresentarei
uma determinada linha interpretativa, procurando embasá-la em argumentos teóricos
suficientes para justificá-la.
De acordo com o que expus acima, o andamento inicial estabelecido para esta Ária
é q = 50.
A entrada inicial na nota Ré exige do fagotista uma boa dose de concentração e uma
respiração dentro do andamento da introdução exposta pela flauta nos dois compassos
anteriores; a velocidade da respiração no ataque inicial de um movimento é diretamente
proporcional ao andamento deste – como se a velocidade da inspiração do ar, no preciso
momento anterior ao ataque da primeira nota, fosse dar a exata noção do tempo, mental-
mente, para o intérprete.

242 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Ex.1. Bachianas Brasileiras nº 6, Ária: o motivo na parte do fagote (destacado), c.3 a c.5.1.

As articulações marcadas pelo compositor na parte do fagote não apresentam


maiores problemas, a não ser em determinados instrumentos que talvez necessitem utilizar a
posição do Mi de ligadura3; esta nota é muito importante, pois estabelece o intervalo de 9a.,
característico do acorde do motivo. Para alguns fagotistas, pode ser necessário um ataque
ligeiro, mas muito sutil, dentro da ligadura para o Sol, após um intervalo de 6a. descendente
(c.4.2). Ligaduras em intervalos descendentes para a região grave são às vezes perigosas,
devido à própria natureza acústica do instrumento4; geralmente, com um bom apoio da
coluna de ar, esta ligadura, assim como todas as articuladas com intervalos descendentes,
pode ser realizada, minimizando-se eventuais falhas.
Por se tratar de um movimento com indicação de andamento Largo, as frases são
geralmente longas, e a adequação dos locais para a respiração deve levar em conta toda a
seqüência fraseológica.
A entrada do Motivo na tonalidade contrastante acontece no c.15, na flauta - é
interessante observar a parte livre no fagote, com uma escrita bastante diferente daquela
da flauta, no início: aqui, Villa-Lobos utiliza um movimento cromático com sentido sempre
descendente. Esta entrada é claramente unitônica, em Lá m.
A questão rítmica passa a ser de extrema importância, principalmente por ser um
dos possíveis elementos de conexão com o choro. Quando a flauta expõe o Motivo na to-
nalidade contrastante (c.15), o fagote apresenta uma parte livre, em que a figuração evoca
em alguns trechos a precipitação rítmica característica da baixaria de um violão de sete
cordas, provocando um acirramento do tempo - é como se o intérprete, tendo que chegar
à nota fundamental de determinado acorde do esquema harmônico, pusesse o número
necessário de notas de passagem, gerando figurações com cinco, seis ou sete notas em dois
tempos, ou mesmo quiálteras de semicolcheias, como neste caso (c.16.1 e c.17.3).

3
Encontrada em qualquer tabela de posições para fagote.
4
Alguns dos principais tratados de orquestração do final do séc. XIX e início do séc. XX, como os de
Berlioz e Lavignac, não recomendam a utilização de intervalos descendentes ligados, para o fagote.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 243
Ex.2. Bachianas Brasileiras nº 6, Ária: motivo na flauta (em destaque), c.15 a c.17.1.

A confirmação cadencial iniciada no c.33 (c.33.2 a c.36), sempre em sentido descen-


dente e trabalhando nas três oitavas do instrumento, motivará o fagotista, favorecido pelo
ambiente tonal de Ré m, a procurar uma bela sonoridade. Ela também apresenta algumas
dificuldades quanto à articulação proposta por Villa-Lobos. São três grandes ligaduras,
em três regiões distintas do fagote: aguda, média e grave; estes quatro compassos (c.33 a
c.36) podem demonstrar o grau de técnica do fagotista, exigido em quase toda a extensão
do instrumento.
Em termos interpretativos, há uma interpolação de intenções, pois a flauta em seu
movimento ascendente gera intensidade, enquanto o fagote, em movimento descendente,
suscita uma intenção de acalmando, mesmo com a repetição das reproduções.

Ex.3. Bachianas Brasileiras nº 6, Ária: confirmação cadencial, c.32 a c.36.

244 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
No c.40 surge na parte do fagote o ritmo deslocado, comum ao choro e tão car-
acterístico da obra de Villa-Lobos, fato já mencionado anteriormente.
A flauta apresentará o seu sentido conclusivo cinco compassos antes do fim, en-
quanto o fagote continuará nas reproduções descendentes, passando por uma pequena
conclusão durante três compassos antes do fim, para só então apresentar a entrada final,
embora parcial, do motivo principal para encerrar a Ária. Toda a expressividade natural
deste movimento deverá ser repetida de maneira concentrada na execução, por parte do
fagotista, desta entrada final.

Ex.4. Bachianas Brasileiras nº 6, Ária: c.37 ao fim.

2º movimento: Fantasia
O termo “Fantasia”, de origem italiana, tem vários significados musicais, e quase
sempre é associado a uma livre ordenação de idéias do compositor, em oposição às formas
tradicionais estabelecidas. Mesmo com uma aparente liberdade de apresentação dos moti-
vos, a Fantasia, assim como a Ária, está intrinsecamente ligada à forma binária, com todas
as características desta. É também interessante notar que as seções transitivas constituem
variações motívicas.
Também neste movimento não há indicação metronômica na partitura. Pelos mes-
mos motivos já expostos, a sugestão é de h = 64.
Os pontos para respiração, aqui, são encontrados mais facilmente, pois sendo
basicamente composta por variações motívicas, a Fantasia é mais seccionada que a Ária.
Outro fato interessante é que existe um processo totalmente interligado, no qual tanto a
respiração é dependente do andamento quanto este é determinado por ela.
Quanto ao aspecto virtuosístico, todas as Variações apresentam uma parte de flauta
excepcionalmente difícil do ponto de vista técnico, com figurações bastante variadas: grandes
saltos, vários grupos de fusas com graus disjuntos, e o uso de registros diversos. A parte
do fagote também exige bastante do músico em termos virtuosísticos, principalmente no
tocante aos grandes saltos intervalares e o uso de registros diversos.
Quanto à questão rítmica, assim como na Ária, aparecem com frequência certos

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 245
procedimentos comuns ao choro, como o ritmo deslocado. Na Fantasia, ele surge logo no
c. 5 na parte da flauta e c.6 e c.7 na do fagote.

Ex.5. Bachianas Brasileiras nº 6, Fantasia: ritmo deslocado (destacado), c.6 e c.7.



A parte da flauta apresenta a seguir uma variação extremamente virtuosística, tam-
bém remetendo a procedimentos também adotados no choro, como os grandes saltos. O
ritmo deslocado também está presente nesta ampliação variada que tem início no c.13.

Ex.6. Bachianas Brasileiras nº 6, Fantasia: c.13 a 21.

No final do c.13, há a necessidade de se utilizar um staccato bem leve na parte do


fagote, para não retardar a articulação do c.14 junto com a flauta - o mesmo se aplica no
c.16.4. A apogiatura para o primeiro tempo do c.18 deve ser articulada anacrusticamente,
como está no manuscrito original de Villa-Lobos, diferentemente da edição da American
Music Publishers.
Todas as articulações dos tempos fortes no fagote, que inclusive definem a harmo-
nia, devem ser extremamente precisas junto com a flauta, que tem uma movimentação

246 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
bastante mais difícil; é o caso dos c.13, c.14, c.15, c.17 e c.18.
No c.73, há o início de um pedal de Mib, com a ligadura interrompida para uma
articulação pelo próprio compositor, entre os c.75 e c.76. Após este pedal, há uma ampliação
cadencial, na qual o fagote apresenta um desenho extremamente expressivo e que deve
ser enfatizado, tanto na tercina ligada à mínima pontuada (c.78.4 e c.79.1), como na nota
Sib cadencial (c.79.4) que deve ser articulada como o violoncelo, em uma cadência perfeita
de algum movimento de uma das Suítes de Bach. Nos c.80 e c.81, a repetição é idêntica, e
nos c.82, c.83 e c.84, a imagem da articulação de um violoncelo se adequa perfeitamente.
Em termos interpretativos, podemos nos remeter a J.S. Bach e ao modo de se articular na
música barroca.

Ex.7. Bachianas Brasileiras nº 6, Fantasia: c.73 a c.84.

Os sinais de portato indicados pelo compositor nas três primeiras notas dos c.90,
c.91 e c.92, não significam que elas devam ser articuladas da mesma maneira. Segundo
Pablo Casals, um dos princípios básicos da execução musical é que a nota repetida jamais
deve ser tocada do mesmo modo que a anterior (Blum, 1980). A execução ideal deste trecho
é um crescendo nas três notas repetidas, e um diminuendo nas sextinas posteriores; mas
cada compasso em um grau de dinâmica mais forte que o anterior, até chegar ao ponto
culminante (c. 95).
No início da Coda (c.116.3) aparece uma figuração imitativa também bastante uti-
lizada no choro e que, segundo A. Nóbrega, “evoca as primeiras notas do Tico-tico no Fubá”
(Nóbrega, 1976, p. 99). Isto se deve, provavelmente, às bordaduras duplas encontradas nos
incisos iniciais, tanto do trecho da Fantasia como do início do choro de Zequinha de Abreu.
Com esta figuração imitativa, a partir do c.116.3, a preocupação básica na Coda é
a sincronia entre os dois instrumentos, que devem ser articulados de modo bem preciso,
sendo então necessário uniformizar os ataques.
Os arpejos repetidos, e em oitava, a partir do c.121, devem ser articulados com um
staccato leve e bastante claro; qualquer peso na articulação pode atrapalhar a sincronia
deste desenho conjunto de flauta e fagote, e novamente a repetição da figuração na região
grave do fagote, por cinco compassos seguidos, pode provocar uma eventual falha.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 247
Isto poderá ajudar a vencer as dificuldades técnicas da obra, como as notas superagudas
da flauta ou as ligaduras descendentes para a região grave do fagote, sempre procurando
colocar a idéia musical acima dos problemas mecânicos da técnica.

Ex.8. Bachianas Brasileiras nº 6, Fantasia: c.85 a c.99.

248 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Ex.9. Bachianas Brasileiras nº 6, Fantasia: Coda, c.114 ao fim.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 249
Considerações finais
Certos procedimentos usuais na música de J.S. Bach encontram-se presentes ao lado de
elementos brasileiros, sem que haja, contudo, uma deformação da lógica interna da obra.
Justamente aí se encontra o traço de genialidade de Villa-Lobos: apropria-se de elementos
pertinentes ao universo bachiano, e em seguida constrói uma obra essencialmente pessoal
e brasileira.
Assim, a cada vez que interpreto a Bachianas Brasileiras n°6, surge um novo mo-
vimento interpretativo, ainda que pequeno – e desde 1986 mantenho esta obra em meu
repertório regular, tendo-a tocado com diversos flautistas, em vários países. Mesmo após
gravá-la para o CD A Obra de Câmara para Sopros de Heitor Villa-Lobos (ABMusica, 2005),
em dezembro de 2004, sempre me surgem novas idéias, nos ensaios e concertos. Não no
que diz respeito a grandes conceitos estruturais, mas a pequenos detalhes, que variam um
pouco em cada apresentação. Salas diferentes, climas diferentes, palhetas diferentes, públi-
cos diferentes, tudo contribui para que um concerto ao vivo jamais seja igual a outro.
O intérprete sempre experimenta transformações diárias, o que contribui para tornar
a arte interpretativa cada vez mais viva. É o retrato de um instante, de um momento, com
todas as suas peculiaridades e particularidades. Ele jamais se repetirá.

Referências bibliográficas
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250 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
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Partituras digitalizadas a partir de:
VILLA-LOBOS, Heitor. Bachianas Brasileiras n° 6, fotocópia de manuscrito do autor. Rio de
Janeiro: Museu Villa-Lobos, 1938.
CDs:
VILLA-LOBOS, Heitor. Villa-Lobos - Music for Flute, William Bennett and friends. Londres:
Hyperion, 1987. CDA66295.
VILLA-LOBOS, Heitor. Heitor Villa-Lobos - Wind Music. Griminelli, Borgonovo, Carulli, Vernizzi,
Pomarico. Berlim: Arts Music GMBh, 1988,1995. 47200-2.
VILLA-LOBOS, Heitor. A Musica de Câmara para Sopros de Heitor Villa-Lobos. Quinteto
Villa-Lobos e convidados. Rio de Janeiro: ABM Digital, 2005.

252 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Le tombeau de Couperin de Maurice Ravel:
música sobre música*1

Danieli Verônica Longo Benedetti


Universidade Cruzeiro do Sul / Universidade de São Paulo

Fundamentado em material coletado no acervo da Bibliothèque Nationale de France


– BNF, este trabalho visa analisar sob o ponto de vista histórico e pianístico (e cravístico-
musical), a suíte para piano solo Le Tombeau de Couperin, escrita pelo compositor francês
Maurice Ravel (1875-1937) durante os anos da Primeira Grande Guerra. A Suíte, homena-
gem ao ancestral François Couperin (1668-1733), é composta de seis peças inspiradas nas
formas musicais do século XVIII. Ao abarcar esses dois universos – o século XVIII e o século
XX – a pesquisa busca compreender a fusão realizada por Ravel da música de Couperin
somada à música francesa contemporânea, numa abordagem pianístico-musical em relação
ao momento histórico em que a obra foi composta. Le Tombeau de Couperin sintetiza os
sentimentos e objetivos de uma era, constituindo assim um documento histórico.
Iniciada em julho de 1914 e concluída somente em novembro de 1917, a obra, Le
Tombeau de Couperin, é uma suíte escrita segundo a forma do século XVIII, e composta
de seis peças dedicadas, cada uma delas, a um amigo que, assim como Ravel, se engajaria
pela defesa da França durante a Guerra, porém, diferente dele, estes deixariam suas vidas
nos campos de batalha. As seis peças que compõem a Suíte foram inspiradas em formas
musicais do século XVIII e estão assim organizadas:

1. Prélude - dedicada ao amigo e colaborador Jacques Charlot;


2. Fugue - dedicada ao amigo Jean Crouppi;
3. Forlane - dedicada ao amigo Gabriel Deluc;
4. Rigaudon - dedicada aos irmãos e amigos Pierre e Pascal Gaudin;
5. Menuet - dedicada ao amigo Jean Dreyfus;
6. Toccata - dedicada ao amigo Joseph de Marliave.

A primeira audição da obra ocorreu no dia 11 de abril de 1919, em concerto orga-


nizado pela Societé Musicale Independente – SMI2, na Salle Gaveau em Paris, interpretada

Em continuidade à pesquisa de mestrado intitulada A produção pianística de Claude Debussy du-
rante a Primeira Guerra Mundial (2002), o presente trabalho resulta da tese de doutorado intitulada
Le Tombeau de Couperin (1914-1917) de Maurice Ravel: obra de uma guerra (2008) e da pesquisa de
pós-doutorado (2011), sediada no Departamento de Música da ECA-USP, todas desenvolvidas com o
apoio da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP.
2
A Societé Musicale Independente – SMI, idealizada por Maurice Ravel e criada em 1909 por um
grupo de compositores entre os quais Charles Koechlin, Florent Schimitt e o próprio Ravel, foi uma
associação cujo principal objetivo seria promover a música contemporânea, sem distinção de escola
e nacionalidade. A SMI foi criada a partir do desentendimento desses compositores junto a Societé

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 253
pela pianista Marguerite Long, viúva de Joseph de Marliave, dedicatário da última peça da
Suíte. Segue trecho da crítica do concerto de estréia, publicado pelo Le Courrier Musicale
em 1 de maio de 1919.

Porém os favores do auditório foram – com justiça – à segunda parte do programa.


O adorável Tombeau de Couperin de Maurice Ravel, suíte de peças de um requinte
pianístico, as quais o músico de Scarbo se propõe evocar por meio das mais mod-
ernas expressões, o arcaísmo elegante e sutil de seu mais antigo predecessor!
Ele encantou a todos. Também o toque antigo e moderno, elegante e sutil, da
Sra. Marguerite Long colabora, no sentido em que o talento de uma intérprete
contribui para valorizar o talento de um compositor. E a sala inteira impõe com
entusiasmo o bis da peça preferida: Forlane. Com a presença sobre o estrado do
Sr. Maurice Ravel. L. V. (BNF, Le Courrier Musicale, 1/05/1919, p. 134)

Um paralelo entre a obra de Ravel e de Couperin, seguido de um aprofundamento


da linguagem musical usada nesses períodos histórico-estilísticos, revelam que a suíte para
piano Le Tombeau de Couperin não comporta nenhuma intenção de pastiche. A obra possui
a clareza e a estrutura do estilo das danças que compõem a suíte barroca; é construída com
extremo rigor formal que suscita a filiação intrínseca de Ravel a este período. Ravel combina
assim a linguagem barroca com a modernidade ímpar do seu idioma. Tal abordagem revela
o domínio cabal dos vários estilos formais consagrados, tecladísticos e pianísticos do referido
compositor francês do século XX.
Dois musicólogos se evidenciam na bibliografia fundamental sobre o assunto: Arbie
Orenstein e Marcel Marnat, especialistas da vida e obra de Maurice Ravel. Orenstein, em
seu livro Maurice Ravel – Lettres, écrit, entretiens, reúne o essencial da correspondência,
além de algumas anotações pessoais e entrevistas. No que diz respeito as biografias do
compositor, é necessário citar primeiramente a escrita pelo francês Marcel Marnat. É um
trabalho referencial, documentado com artigos de revistas especializadas e jornais da época.
Importa também citar a biografia escrita por Vladimir Jankélévitch; a realizada pelo já citado
Arbie Orenstein e, mais recente, a de Étienne Rousseau-Plotto, que ressalta a origem basca
do compositor e a influência desta cultura em sua vida e obra.
Marguerite Long, pianista e primeira intérprete da Suíte Le Tombeau de Couperin,
deixou em suas anotações pessoais um precioso material para a interpretação das obras
pianísticas de Ravel. Um capítulo é reservado à Suíte em questão, no qual relata detalhes
acerca da estréia da obra, registrando importantes informações sobre dedilhado e interpre-
tação. Essas anotações foram reunidas e editadas pelo professor e pianista Pierre Laumonier,
sob o título de Marguerite Long au piano avec Maurice Ravel.
No final de 2006 realizamos uma pesquisa de campo em Paris, voltada a uma es-
pecífica coleta de material, como aquisição de partituras, visitas a vários acervos musicais,
em particular o da Bibliothèque Nationale de France - BNF para exame de manuscritos,
depoimentos e publicações em jornais da época, correspondências e gravações, a fim
de complementar banco de dados e checar tais documentos in loco. A BNF permitiu a
reprodução de alguns documentos, ainda hoje inéditos, os quais fazem parte do corpo

Nationale de Musique – SNM, criada em 1871, esta com o objetivo de divulgar a música contempo-
rânea porém restrita aos compositores franceses.

254 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
desse trabalho. Os principais acervos consultados foram: as salas de trabalho restritas
aos pesquisadores no departamento de música Bibliothèque Nationale de France – BNF
(sítios Louvois, Opera e Tolbiac), a Bibliothèque de l´IRCAM, Bibliothèque du Centre George
Pompidou e Bibliothèque de la Sorbonne. Durante a mesma jornada, entrevistas foram
concedidas à autora pelo pianista Dominique Merlet3, pela pianista Dana Ciocarlie4 e pela
cravista Elizabeth Joyé5. Em tais entrevistas foram abordadas questões interpretativas per-
tinentes à linha de pesquisa do presente estudo. As orientações recebidas foram transcritas
no capítulo referente à análise da obra.

O trabalho foi organizado em cinco partes ou capítulos:


O primeiro capítulo tratou do contexto histórico a partir da Guerra Franco-Prussiana
em 1870 até a declaração da Primeira Guerra e está subdividido em três partes. Como ponto
de partida o primeiro item discorre sobre a questão do revanchismo e do nacionalismo como
sentimentos formadores de uma identidade nacional. Tais sentimentos seriam cultivados
pelos franceses em relação ao inimigo alemão a partir do conflito de 1870, influenciando
todo o universo político e cultural até a declaração da Primeira Grande Guerra. O segundo
item irá tratar da redescoberta dos mestres franceses do século XVIII, pois os compositores
da geração revanchista, como forma de salvaguardar a música francesa, buscariam reviver o
significativo século XVIII francês – esquecido durante o século XIX, o qual seria dominando
por compositores germânicos – e inspirar-se-iam nos mestres franceses do passado. A partir
da obra Dix piéces pittoresques (1881) para piano solo, escritas pelo compositor Emmanuel
Chabrier, é realizado um levantamento das obras inspiradas pelos mestres franceses do
século XVIII, no qual serão focalizadas obras de Claude Debussy e Maurice Ravel. A última
parte desse primeiro capítulo enfatiza a criação das Sociedades Musicais como importantes
aparelhos ideológicos dentro do movimento nacionalista francês: a Societé Nationale de
Musique, a Schola Cantorum, a Ligue Nationale pour la Défense de la Musique Française e a
Societé Musicale Independente. A criação, ideologias e consequências desses agrupamentos
são atualmente sujeito desta pesquisa.
O segundo capítulo, intitulado “Ravel e a Guerra”, pretendeu mostrar a que ponto
a idéia fixa pela defesa da pátria tomou conta da vida do compositor Maurice Ravel; para
isso foram transcritas algumas das correspondências do compositor trocadas durante a
guerra. Ravel travaria uma luta pessoal para se fazer incorporar as armas. Recusado por três

3
Pianista francês de renome internacional foi professor do Conservatório Nacional Superior de Mú-
sica de Paris e do Conservatório Nacional de Genève. Merlet é considerado pela crítica especializada
um dos maiores intérpretes da obra pianística de Maurice Ravel da atualidade. Sua versão da inte-
gral da obra para piano de Maurice Ravel foi registrada em 1991 pela gravadora Mandala e recebeu
o prêmio Diapason d´or. Sua versão da obra Le Tombeau de Couperin foi usada como referência para
este trabalho.
4
Jovem pianista romena. É professora de piano na École Normale de Musique de Paris e vem se
afirmando como intérprete de um vasto repertório – o qual inclui a Suíte Le Tombeau de Couperin
- em importantes salas da Europa.
5
Cravista, especialista da música de François Couperin. Esta entrevista foi de grande importância
no sentido de sanar as dúvidas relacionadas à linguagem do cravo barroco francês, em particular os
vários questionamentos sobre a ornamentação usada na obra para cravo de François Couperin, e
usada por Maurice Ravel na suíte Le Tombeau de Couperin.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 255
vezes consecutivas pela sua estatura, 1,57 metros, e seu peso, 48 quilos – o peso mínimo
exigido era 50 quilos – recorreu a amigos influentes para poder participar de seu projeto
patriótico.
As transcrições foram organizadas cronologicamente e traduzidas a partir dos tra-
balhos referenciais sobre o assunto. Existem três trabalhos dedicados à correspondência
de Ravel: Ravel au miroir de ses lettres, livro raro e antigo organizado por René Chalupt em
1956, no qual encontramos 190 cartas; Lettres à Roland Manuel et à sa famille6, no qual
Jean Roy reúne a correspondência do compositor com o amigo e primeiro biógrafo Roland
Manuel e sua mãe, a senhora Fernand Dreyfus, madrinha de guerra e figura importante
na vida do compositor, sobretudo durante os anos do conflito; e Maurice Ravel – Lettres,
écris, entretiens, organizado por Arbie Orenstein, que reúne, após 20 anos de pesquisa, o
essencial da correspondência de Maurice Ravel, 350 cartas inéditas até então.
Em pesquisa de campo realizada em Paris foi obtida autorização para analisar o
acervo das lettres autographes7 da Bibliothèque National de France, que possui um grande
número de cartas de Maurice Ravel, trocadas entre 1900 e 1933, a maioria escrita durante
a Primeira Guerra, sendo que muitas delas se encontram transcritas no trabalho de Oren-
stein. Nesta análise foi possível encontrar algumas cartas inéditas nos trabalhos referentes
à correspondência do compositor e que se encontram transcritas neste capítulo.
O terceiro capítulo pretendeu fazer um levantamento e uma reflexão sobre a
produção musical durante os anos da Primeira Guerra Mundial. Representados por Lili
Boulanger (1893-1918), Erik Satie (1866-1925), Claude Debussy (1862-1918) e Maurice
Ravel (1875-1937). O objetivo deste capítulo foi apontar os procedimentos adotados na
composição das obras de guerra, permitindo-nos reconhecer tal produção, juntamente com
a suíte Le Tombeau de Couperin, como obras inseridas dentro desse contexto histórico.
Com o quarto capítulo dá-se início à análise da obra Le Tombeau de Couperin, em
que se aborda a linguagem que inspirou a criação da obra em questão: a linguagem dos
cravistas franceses do século XVIII. O estudo concentrou-se na obra para cravo de François
Couperin, ancestral homenageado por Maurice Ravel. Nesse sentido, o foco, já com prévio
conhecimento do Tombeau, é direcionado a todo tipo de detalhe relacionado ao personagem
homenageado e a obra do período em questão que levasse a um possível paralelo entre os
procedimentos usados no século XVIII e a obra que esta tese se propôs analisar.
Para tanto, foi importante o estudo e a utilização da obra didática L´Art de toucher
le Clavecin (A Arte de tocar o Cravo), publicada em 1717, e das Pièces de Clavecin, escritas
entre 1713 e 1730 - obras que François Couperin dedicou ao instrumento - como fonte dos
elementos necessários para que esta análise fosse realizada da maneira mais completa e
minuciosa possível. Para estas obras foram consultados fac-símiles dos manuscritos originais
mantidos na Bibliotheque National de France, organizados pela Éditions Fuzeau, a edição de
L´Art de toucher le Clavecin das Edition Breitkopf e para uma leitura mais clara das Pièces
de Clavecin, além das partituras fidedignas, a edição organizada pela Dover Publications a
partir da edição de Fr. Chrysander datada de 1888.
A entrevista realizada em Paris com a cravista Elizabeth Joyé, professora e intérprete

6
Correspondência trocada entre os anos de 1911 a 1934. Mme. Dreyfus ou “Chère marraine” (que-
rida madrinha), termo usado por Ravel ao iniciar as cartas, era casada com Fernand Dreyfus, pai de
René e Jean Dreyfus, ao qual foi dedicado o Minueto do Tombeau.
7
Cartas autógrafas.

256 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
especialista na obra do compositor francês, por ocasião de pesquisa de campo foi de grande
importância, uma vez que possibilitou esclarecer dúvidas relacionadas à complexa linguagem
do cravo barroco francês e, em especial, à obra para cravo de François Couperin.
No quinto capítulo apresento a análise pianístico-musical da obra Le Tombeau de
Couperin escrita para piano solo pelo compositor francês Maurice Ravel entre os anos de
1914 e 1917. Resultado importante para a realização desta análise foram os documentos
coletados e analisados por ocasião de pesquisa de campo em Paris, que levam ao ponto
de partida para a criação do Tombeau.
O ponto de partida para a criação da obra Le Tombeau de Couperin é bastante
curioso. No final do século XIX, autoridades da igreja católica francesa proíbem a dança do
tango argentino, considerado “de natureza lasciva e ofensiva para a moral”8. Tal proibição
criaria grande polêmica e vários artigos seriam publicados sobre o assunto. Com a conde-
nação desta, outra dança deveria ser colocada em seu lugar e, em uma declaração sobre o
assunto, o Papa Pio X diria não ver mal algum na dança condenada, mas que a Forlane lhe
parecia mais bela. Este pronunciamento provocaria o interesse na esquecida dança do século
XVII, de origem italiana, fazendo com que vários compositores fossem convidados a escrever
aos moldes da dança em questão. A Revue Musicale, da qual Ravel era leitor assíduo e na
qual colaborou com alguns artigos durante os anos de 1912 e 1922, publica em 14 de abril
de 1914 um artigo intitulado La Forlane, escrito pelo musicólogo Jules Écorcheville. O longo
artigo de Écorcheville retrata o histórico desta dança e da polêmica causada pela proibição
do tango que deveria ser substituído pela antiga dança. No final do artigo encontramos uma
versão da Forlane do 4º Concert Royale de François Couperin, harmonizada por A. Bertelin.
Certamente Maurice Ravel teria lido o artigo, conforme escreve em carta enviada de Saint
Jean de Luz, onde passava férias, ao amigo Cipa Godebski em maio de 1914.

Eu turbino [expressão usada para dizer que trabalha intensamente] na intenção


do Papa. Você sabia que este augusto personagem [...] acaba de lançar uma
nova dança: a forlane. Estou transcrevendo uma de Couperin. (Chalupt, 1956,
p. 106, grifo nosso)

A cópia dessa desconhecida transcrição de Maurice Ravel, ausente no catálogo


das obras do compositor, organizado por Marcel Marnat9, e do acervo de manuscritos da
Biblioteca Nacional da França, só foi possível através do contato com Dr. Arbie Orenstein,10
que generosamente concedeu uma reprodução deste raríssimo documento.
A dificuldade ao acesso dos manuscritos musicais de Maurice Ravel deve-se a
complexa sucessão da herança do compositor. Maurice Ravel nunca se casou e conse-

8
Laloy (1914).
9
Neste referencial Catálogo cronológico de todos os trabalhos musicais esboçados ou concluídos
por Maurice Ravel, Marnat fornece uma ficha completa das obras de Ravel contendo as seguintes
informações: instrumentação, duração da obra, época de composição, dedicatários, para as obras
vocais as indicações sobre o texto de inspiração, data, local e intérpretes que estrearam as obras,
localização e proprietários dos manuscritos originais; se editada, a casa editora e data de edição da
obra (Marnat, 1986, p.721-778).
10
Autor de inúmeros trabalhos dedicados à obra de Maurice Ravel, Arbie Orenstein é professor na
Escola de Música ‘Aaron Copland’ em New York, EUA.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 257
quentemente não teve herdeiros diretos. Com a sua morte em 28 de dezembro de 1937, o
irmão Eduard foi seu único herdeiro e com a sua morte, todos os manuscritos de posse da
família que perdia seu último membro seriam deixados ao casal de empregados da família.
A Sra. Taverne possui ainda hoje muitos manuscritos, entre eles a versão para piano solo da
suíte Le Tombeau de Couperin – a versão orquestral foi vendida para a The Morgan Library
em New York – e a transcrição em questão da Forlane de François Couperin. Orenstein em
contato com a Sra. Taverne obteve permissão para a reprodução desta transcrição que
publicou no final de seu artigo “Some Unpublished Music and Letters by Maurice Ravel”
(Orenstein, 1973).
A cópia dessa transcrição juntamente com a reprodução da versão original da Forlane
de François Couperin, fazem parte do corpo desse trabalho e foram analisados na primeira
parte desse capítulo. O objetivo desse estudo foi apontar as semelhanças encontradas entre
a Forlane de Couperin e a de Ravel.
Para que a realização da análise pianístico-musical da obra Le Tombeau de Couperin
fosse concretizada, foi necessário, primeiramente como material de suporte, a realização
das análises formal e harmônica que sustentam a estrutura musical da obra, uma vez que
este trabalho está vinculado a linha de pesquisa deste estudo: Técnicas Composicionais e
Questões Interpretativas.
Quanto a análise formal, a pesquisa remeteu-se ao estilo das formas das obras de
François Couperin e dos cravistas franceses do século XVIII, tendo como fonte de pesquisa
o estudo das danças do século XVII e XVIII realizado por Sophie Jouve-Ganvert em seu
Theorie Musicale, os Fundamentos da Composição Musical de Arnold Schoenberg e o Dic-
tionnaire Encyclopedique de la Musique, organizado por Denis Arnold, voltando-se também
aos elementos de composição levantados capítulo anterior, aliado à sua fundamentação
bibliográfica.
Referente à análise harmônica a ferramenta adotada voltou-se ao conceito de regiões
de Arnold Schoenberg expostas em seu estudo Funções Estruturais da Harmonia. Como
bibliografia de apoio para esta análise faz-se importante citar o ensaio analítico realizado por
Jean Claude Teboul em seu Ravel le langage musical dans l´oeuvre pour piano, baseado a
partir dos princípios elaborados por Schoenberg; da análise da suíte Le Tombeau de Couperin
realizada por Oliver Messiaen, publicada em seu Ravel - Analyses des oeuvres pour piano
de Maurice Ravel e do Ètude technique et stylistique de l´Harmonie, do estudioso francês
Jean Doué. A importância desta análise é compreender de que maneira Ravel se afasta dos
paradigmas do século XVIII, conservando assim o seu idiomático.
Logo, o objetivo fundamental e a originalidade desta pesquisa – análise pianística,
cravística e musical da suíte Le Tombeau de Couperin – consiste na comparação e no estudo
da fusão de dois estilos musicais distanciados no tempo: o cravo de François Couperin e o
pianismo de Maurice Ravel, sob o olhar do intérprete.
Apontamentos relacionados as questões interpretativas constituem um item a parte
dentro da análise de cada uma das seis peças do ciclo, enfatizando as dificuldades encon-
tradas e direcionando o executante a soluções no sentido de uma interpretação histórica
e cientificamente fundamentada. Esses apontamentos foram guiados por intermédio dos
intérpretes consultados para este trabalho: Margueritte Long11, Vlado Perlemuter12, Henri-

11
Marguerite Long au piano avec Maurice Ravel (ed. 1995).
12
No livro Ravel d´après Ravel, organizado por Jean Roy, o pianista de origem polonesa (1904-2002)

258 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE
ette Fauré13, Dana Ciocarlie14 e Dominique Merlet15. Nesse sentido, foi realizado sob minha
interpretação e encontra-se anexo ao trabalho, o registro sonoro da obra que significa o
cerne desta pesquisa, a suíte para piano solo Le Tombeau de Couperin de Maurice Ravel.
Para a composição de Le Tombeau de Couperin, Ravel volta no tempo e restaura
a obra de um mestre esquecido durante o século XIX: François Couperin. Presta a ele seu
respeito e suas homenagens sem, entretanto, esquecer que a obra é dedicada ao piano
do século XX. Assim, é importante salientar que o estudo da obra Le Tombeau de Couperin
evidenciou uma fase, uma postura ímpar de Ravel que, ao retroceder no tempo a partir de
um ponto de vista musical, enfatiza o nacionalismo e resgata um período da música francesa
que estava esquecido, tendo como cenário e fonte de inspiração um dos maiores conflitos
da história da humanidade: a Primeira Guerra Mundial.

Referências bibliográficas
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Mundial. Dissertação de Mestrado, ECA/USP/FAPESP, São Paulo, 2002.
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COUPERIN, François. L´Art de toucher le clavecin. FAC – SIMILÉ. Paris: Éditions Fuzeau,
1996.
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LALOY, Louis. “Le Tango”. La Revue Musicale, Paris: 1/02/1914, p. 47-49.
LONG, Marguerite. Au piano avec Maurice Ravel. Paris: Gérard Billaudot Éd., 1995.
L. V. “Critical about the premier of Le Tombeau de Couperin for piano by Maurice Ravel”.

deixa um importante testemunho em forma de entrevista, na qual aborda questões interpretativas


de toda a obra pianística de Maurice Ravel com quem trabalhou a integral desta.
13
Henriette Fauré (1904-1985) é considerada a primeira intérprete da obra completa para piano de
Maurice Ravel, com o qual trabalhou o repertório em questão. Fauré escreve sobre o assunto em
seu livro Mon Maitre Maurice Ravel, no qual reúne suas impressões e os ensinamentos do mestre.
14
Entrevista concedida a autora em Paris no dia 28/12/2006.
15
Entrevista concedida a autora em Paris no dia 21/12/2006.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - TEORIA, CRÍ TICA E MÚ SICA NA ATUAL IDADE 259
Le Courrier Musicale, Paris, 1/05/1919, p. 134.
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260 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
La formación integral del intérprete en cuerdas,
especializado en la música contemporánea

Mariela Nedyalkova
Universidad de Cuyo, Mendoza – Argentina

Para empezar, me gustaría citar el gran compositor contemporáneo, el mexicano


Mario Lavista:
En la actualidad los instrumentos tradicionales están siendo, literalmente rein-
ventados a través de una nueva técnica que propone otra manera de concebir
la música, es decir, de escucharla. Es por ello que las recientes técnicas instru-
mentales inciden directamente y en forma definitiva en el pensamiento musical
de nuestro tiempo. Nos muestran la existencia de inusitados mundos sonoros a
la vez que anuncian el comienzo de un nuevo virtuosismo de un renacimiento
instrumental del que no podemos, ni debemos sustraernos. A partir de este nuevo
virtuosismo se tendrá que reconsiderar seriamente la educación profesional del
músico. (Lavista, 1989, p.7-8)

Estrictamente hablando, la expresión “Música contemporánea” se refiere a la


música que coincide con nosotros en el tiempo. Dentro de la notoria pluralidad de tenden-
cias estéticas en la música muchas son más bien conservadoras, con niveles distinguibles
entre sus extremos más radical y más conservador y no requieren para su ejercicio de una
formación diferente a la que se adquiere dentro del perfil tradicional de un conservatorio.
Pero también después del 1950 los compositores empezaron a buscar nuevas posibilidades
instrumentales; en primer lugar nuevos contrastes tímbricos, debido a la necesidad de crear
los sonidos representativos del nuestro tiempo. Ampliamente fueron exploradas e amplia-
das las principales técnicas referidas a la posición del arco (normal, sul tasto, sul ponticello,
detrás del puente, col legno), a la ejecución del pizzicato, al uso de los armónicos naturales e
artificiales. Sin embargo la fuerte influencia de Webern, asociada con su Rlangferbenmelodie
impuso una nueva dimensión al universo sonoro tradicional y pide rápidas sucesiones de
sonidos contrastantes, cuales brindan un caleidoscópico efecto de timbres. El empleo de
sonidos (ruidos) con poca sustancia crea un efecto parecido al ruido blanco de la electrónica.
Novedosos son también la obtención de los sonidos mecánicos percutiendo el cuerpo del
instrumento o sus cuerdas, el variado uso de la presión de las cerdas del arco sobre las
cuerdas, como también la de los dedos de la mano izq. sobre la cuerda.
Las nuevas formas de pensamiento musical han dado como resultado nuevas formas
de escritura, han llevado a inventar nuevas simbologías. El concepto de Forma musical ha
sido reconsiderado completamente y se concibe como producto del proceso creador e
interpretativo. Ante las partituras instrumentales, denominadas grafías musicales, el rol y
la colaboración del ejecutante se intensifica, exigiendo su imaginación creativa y libertad
de creación. Así en la 2da mitad del siglo XX vemos nacer un personaje nuevo: el intérprete

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 261
especializado en música contemporánea. Su virtuosismo es consecuencia del avance y la
renovación constante de las escuelas de técnica instrumental. El compositor potencia este
grado de perfeccionamiento agregando sucesivas dificultades mecánicas que sus ideas
necesitan para ser expresadas. Es una equivocación pensar que un intérprete no debe mane-
jar mas que conocimientos sobre la técnica y la mecánica de su instrumento, como también
que un buen compositor no precisa del buen manejo de un instrumento. No deberían existir
diferencias de formación en las primeras etapas para intérpretes y compositores.
En la práctica actual en muchas ocasiones al alumno se le induce a imitar la versión
del profesor, pero lo que no se hace, frecuentemente al menos, es formar el criterio del
alumno desde el indicio de los estudios formales educándolo a escuchar varias versiones
de una misma obra y mostrándole detalladamente el trabajo a realizar con la partitura para
convertirla en música. Según el español Pedro Cañada la Improvisación y la Creatividad
tendrían que ser el fundamento del Sistema Pedagógico desde la Primaria hasta terminar
el Ciclo Superior.

Sus principios fundamentales son:


1. Desarrollar y fomentar la Creatividad como eje del proceso educativo a través
de la Improvisación.
2. Desarrollar las capacidades cognitivas a la vez que las técnicas y las expresivas
del alumno.
3. Profundizar en los criterios musicales en los que se basa la Interpretación para
mejorarla.
4. Potenciar el análisis y la audición.
La Creatividad está unida a valores positivos generalmente aceptados. Establecer
propuestas nuevas, ofrecer alternativas distintas a las que en principio se podían pensar,
ser creativo en cualquier ámbito son valores que se aplauden, potencian e impulsan en las
nuevas corrientes pedagógicas. La Improvisación, al contrario suele ser sinónimo de una
falta de preparación y de previsión, que conlleva el no alcanzar determinados objetivos o
metas propuestas.
En la enseñanza tradicional se insiste mucho en la interpretación y la composición,
pero casi nada en la improvisación. La improvisación implicaría por lo tanto:
- la capacidad de hablar musicalmente mediante el propio instrumento, combinando
elementos conocidos para crear ideas nuevas
- el resultado de la comprensión y el manejo practico de los elementos del lenguaje
musical
La creatividad y la improvisación han estado presentes a lo largo de la historia de la
música, siendo los motores de su avance. Antiguamente ser músico implicaba ser composi-
tor e intérprete de manera simultánea. En la música popular, quizá debido a estar desligada
a una partitura, las partes improvisadas también son manifiestas. El hecho que en el s.XX
haya sido la música del Jazz la que mantenga viva la llama de la improvisación, ha conducido
a identificarla en muchos casos con este género.

En la actualidad básicamente se conciben dos alternativas para un músico:


- el compositor que inventa nuevas ideas
- el interprete que las transmite

262 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Este planteamiento, llevado al plano de la enseñanza, ha disminuido notablemente
en los intérpretes la capacidad creativa y de improvisación. Casi todas las energías del
proceso educativo están enfocadas a la formación de instrumentistas y a su perfeccionami-
ento técnico, lo que ha llevado en muchos casos a la mecanización de la lectura, haciendo
que el alumno llega a cursos elevados sin haber comprendido realmente el significado el
mensaje musical, que interpreta y sin poder tocar su instrumento fuera del contexto de
una partitura, salvo en los casos donde la intuición lo permite. Podríamos decir que la
técnica y la expresión estética del mensaje musical han sido los pilares de la formación del
músico-interprete.

Sin embargo:
- la técnica no puede ser un fin de si misma, sino una herramienta para acceder a
la música a través del instrumento
- la expresión del mensaje musical debe basarse en un conocimiento, lo mas pro-
fundo posible, de los elementos de la partitura y no a la intuición como única quía
Por otro lado todas estas metas no podrían ser alcanzadas, al menos durante el
cursado de la carrera, sin la eliminación de algunas paradojas en los denominados Progra-
mas de Estudio. Me refiero que en ninguna de las edades del estudiante estos programas
no consideran el conocimiento del instrumento como parte de la cultura material, como
objeto artesanal, tecnológico, fruto de la creatividad y gran capacidad humana. La Estética
de la Música, la Organología y la Historia de la Luteria como saberes científicos no están
integradas al estudio instrumental. Otra paradoja es el no-estudio de la físico-acústica, el
conocimiento científico del sonido, propiedades, formas de emisión básicas en el instru-
mento, formas de expansión, propagación, reverberación en el medioambiente( acústica)
y de percepción por parte del auditor (socio acústica).

La improvisación y el Piano complementario:


Bajo el prisma de la Improvisación el piano puede llegar a ser una fuente enriquece-
dora de la formación integral musical. Su comportamiento como instrumento globalizador,
sus posibilidades armónicas, sus posibilidades como acompañante y las facilidades que
ofrece a la comprensión musical componen las condiciones que ningún otro instrumento
puede lograr.
Otras de las líneas, pertinentes para el intérprete contemporáneo son la investi-
gación, el estudio y la interpretación de la música contemporánea. Revisando los programas
de estudio de violín en varias Universidades Nacionales Argentinas, he observado que las
obras más contemporáneas incluidas (y la realidad no nos garantiza que los alumnos van
a llegar a tocarlas) son de Stravinski, Bartok, Hachaturian, ya clásicos entre los contem-
poráneos.
En casos esporádicos se exige obligatoriamente la interpretación de una obra de
autor argentino.
Basándome a este hecho y a las dificultades que enfrentan algunos estudiantes en
tocar obras, la mayoría de cuales tienen influencias folclóricas, me gustaría hacer hincapié
a la necesidad que el interprete tenga amplios conocimientos sobre las músicas no occi-
dentales, incluidas las tradicionales del propio país (continente) de origen del intérprete. En
esta relación el estudio del folclore seria un beneficio más para la formación del intérprete
de música contemporánea.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 263
Además, en la formación del intérprete contemporáneo interviene todo tipo de
intercambios con otras áreas de conocimiento, en particular con otras artes, ya sean me-
dios alternativos o más tradicionales. En los programas de licenciatura o de Profesorado
en instrumento rara vez aparece la materia Historia del arte y menos todavía la del Arte
Contemporáneo.
Quizá el elemento más característico de un intérprete de música contemporánea es
el trato frecuente y cercano con compositores vivos que son la fuente natural de la música
que ejecuta. Otro aspecto a fomentar seria la revisión de la bibliografía, en primer lugar de
los tratados contemporáneos a la música que interesa interpretar.
Indudablemente el desarrollo de la creatividad interpretativa debería empezar con
la iniciación al instrumento.
Como resultado de la búsqueda de un método adecuado para niños pequeños,
confiado en sus capacidades perceptivas, estimulando su creatividad y despertando su
amor hacia la interpretación correcta, recomendaría algunos métodos de enseñanza inicial
en violín y en violonchelo ( según mi criterio y experiencia son los instrumentos de cuerda
que exigen la iniciación en una edad temprana)
El método de Ljerko Spiller, Iniciación al violín en grupos, contiene importantes
logros y ofrece al principiante estudios de índole técnica por medio de canciones infantiles
y danzas argentinas. Otro pro es el agregado a la voz principal otra de acompañamiento de
modo que el alumno aprenda a adaptarse desde tierna edad a la ejecución en conjunto,
despertando su oído y sentir para la música de cámara. También es de suma importancia
la exigencia del autor que el niño cante cada canción con el texto, acompañado por el otro
violín o por el piano.
Pero en algunos casos las tonalidades de las canciones parecen ser elegidas de
acuerdo con consideraciones de índole técnica sin tomar en cuenta el registro natural de
la voz infantil.
Tampoco está presente un orden didáctico progresivo.
Queda en duda la necesidad de los ejercicios de gimnasia preparatoria y sobre
todo el extenso periodo de duración, entre 4 y 6 semanas? Suficiente para que el joven
principiante pierda el interés.
Otro punto débil de este método es el comienzo en tercera posición, sobre todo
por la inestable posición del primer dedo y el difícil control de afinación con la octava en-
tre el primer dedo y la cuerda al aire más baja, esto es posible solo si el niño tiene previa
preparación auditiva y reconocimiento de intervalos.
Además el autor usa recursos musicales fuera del alcance de la comprensión infantil,
como ritmos, armonías o contrapuntos más completos.
Mirando hacia el viejo continente podríamos señalar un método mucho más completo
y parejo, basado sobre un orden didáctico progresivo, 33 conversaciones con el joven músico,
de S. Schalmann. El autor lo determina como un complejo de lecciones que se van a desarrollar
en el término de tres años. Cada “conversación” consiste en unas cuantas tareas cuyo objetivo
es desarrollar la musicalidad, la expresión, la percepción auditiva y la habilidad motriz. El autor
está tratando de presentar el contenido al alcance del niño y sobre todo motivador y divertido.
Cada lección es acompañada por textos, que el alumno puede leer solo o con la ayuda de
sus padres. Cabe destacar el lado más valioso de este método-las cartas dirigidas al alumno,
a sus padres y al pedagogo, pero su principal punto débil es su contenido donde prevalecen
canciones de origen ruso, lo que lo hace inaplicable en el medio Nacional.

264 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
De todos modos, las conversaciones y los consejos dirigidos al pequeño violinista
son el logro más significativo del maestro de Siberia.
Otro método que tiene la modalidad de estimular la creatividad infantil es el de Eta
Cohen (Inglaterra). El método está pensado a favorecer la concentración del alumno con
juegos, integrar melodías de todo el mundo, usar desde temprano armonías, pizzicatos,
golpeteos y otros efectos, que acercan a los niños al lenguaje musical contemporáneo.
Aquí, los ejercicios de gimnasia preparatoria se realizan en forma de juego y sin
dedicar tiempo innecesario las partes del violín o como afinar las cuerdas (algo absurdo
en los primeros años del aprendizaje), ofrece al niño imitar al banjo o practicar divertidos
ejercicios de contacto imaginario con el violín y el arco. Otra exigencia muy valiosa es de
tocar todo el material de memoria (después de leerlo).
El niño se inicia simultáneamente con el estudio del violín al de la música vinculada
a ella con este método desde los ejercicios en cuerda al aire. Todas las melodías, escalas
y ejercicios, siguen un orden didáctico progresivo y sirven para despertar el amor hacia la
práctica noble, o sea el fin mismo del aprendizaje musical.
El Método CAD (Desarrollo de la habilidad creativa) de Allice Kay Kanack sostiene
que todos los niños nacen con habilidad creativa, que puede desarrollarse en un alto grado
usando la formula Libertad de elección más Practica disciplinada es igual a Habilidad crea-
tiva. Las instrucciones son presentadas en forma de juego, comparando sus reglas con las
del ejercicio.
Analizando el proceso creativo se destine el trabajo consciente, el subconsciente y
la inspiración. Se apunta a la conciencia del estudiante que no hay creatividad ni inspiración
sin practica. El CD que acompaña el método entrena el oído del estudiante en la afinación
musical y el ritmo y desarrolla su habilidad de hablar el idioma musical. El método propor-
ciona una multitud de estilos y armonías con el objetivo de de alentar nuevas ideas.
Enseñar a los niños de tocar el violonchelo de manera sencilla y lúdica y a la vez
resolver los problemas iniciales de ritmo y extensiones es el propósito del método “Vio-
lonchelo en colores” de la mexicana Pilar Gadea Lacasa. Este método está integrado por
canciones tradicionales de todo Latinoamérica, pero también contiene la letra de las mis-
mas, creadas por grandes poetas del continente. Así los niños toman contacto con el arte
de la poesía y empiezan a vivirla como una parte íntima y cotidiana. Un gran aporte a la
formación integral de los pequeños chelistas son los arreglos para ensambles de violonch-
elos que permiten desarrollar “el oído armónico” y la habilidad de tocar en conjunto, que
además es muy positivo para acostumbrarse a la poliritmia y a la polifonía y desarrollar
habilidades técnicas y motrices.
Otro de los métodos de enseñanza en violonchelo más activos, creativos, y contem-
poráneos es el de K. y D. Blackwell. Este, igual a los ya mencionados parte desde el sonido
hacia el símbolo, contiene más elementos innovadores y asigna un papel más activo al
alumno en su propio proceso de aprendizaje. Estas características junto con las aportaciones
de la tecnología, en forma de grabaciones en los métodos, favorecen una interpretación y
expresiva por parte del alumno.
No es de menor importancia la manera de presentar hasta la melodía más sencilla con
acompañamiento de piano, acostumbrando así al infante a ensamblar la afinación no temperada
de su instrumento con la temperada del piano y acostumbrar el oído la armonía.
Definitivamente cada método tiene sus “pro y sus contras” y es aquí donde entra en
juego el rol del profesor quien sabe combinar los métodos y hacer los arreglos necesarios

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade 265
según las diferencias de personalidad del alumno, su temperamento, velocidad con que
procesa la información, agudeza sensorial y capacidad motriz.
Todos los métodos mencionados más arriba ponen en relieve, la importancia de
la formación del profesorado en formas de enseñanza más activas, creativas, y contem-
poráneas.
En conclusión me gustaría reiterar que solamente un cambio cualitativo programático
de los contenidos curriculares de aprendizaje seria el soporte para la formación integral del
intérprete en cuerdas, especializado en música contemporánea.

Referencias bibliográficas
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266 Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ - Teoria, crítica e música na atualidade
Anais do Simpósio Internacional de
Musiologia da UFRJ
II SIM_UFRJ 2011 - Teoria, Crítica e
Música na Atualidade
III SIM_UFRJ 2012 - Patrimônio
Musical na Atualidade: Tradição,
Memória, Discurso e Poder

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